eixo temático “ciência-tecnologia-sociedade-história · 1 15º seminário nacional de...

22
1 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Universidade Federal de Santa Catarina 16 e 18 de novembro de 2016 Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-HistóriaCiência regulatória no Brasil: A CTNBio como foco ou fonte de controvérsia? Paulo F.C. Fonseca 1 1 IRIS Instituto de Pesquisa em Riscos e Sustentabilidade, Departamento de Sociologia e Ciência Política - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Email: [email protected];

Upload: dinhdan

Post on 16-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História · 1 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Universidade Federal de Santa Catarina 16 e 18 de

1

15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia,

Universidade Federal de Santa Catarina

16 e 18 de novembro de 2016

Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História”

Ciência regulatória no Brasil: A CTNBio como foco ou fonte de controvérsia?

Paulo F.C. Fonseca1

1 IRIS – Instituto de Pesquisa em Riscos e Sustentabilidade, Departamento de Sociologia

e Ciência Política - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Email:

[email protected];

Page 2: Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História · 1 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Universidade Federal de Santa Catarina 16 e 18 de

2

(DRAFT – Favor não citar sem o consentimento do autor)

1. Introdução

Um dos grandes focos de tensão das relações entre ciência, tecnologia e sociedade,

são o desenho e implementação de mecanismos institucionais que devem assegurar

seguras bases epistêmicas que confiram a legitimidade de decisões regulatórias sobre

riscos de natureza sociotécnica. A legitimidade política dos regimes de regulação provém

de uma zona cinzenta em que decisões devem ser percebidas como objetivas e, ao mesmo

tempo, democráticas.

Um dos exemplos mais estridentes deste fenômeno é a regulação sobre os

Organismos Geneticamente Modificados (OGMs), que mesmo após décadas de inserção

no mercado global, continuam a ser uma tecnologia social e politicamente contestada em

praticamente todo o mundo (Rootes, 2003; Leguizamón, 2014; Levidow, 2014; Roden,

2014; Roy, 2015). Se por um lado o rechaço aos transgênicos tem sido caracterizado por

alguns como comportamentos irracionais de atores políticos que não dispõem de

credibilidade ou capacidade científica para a análise dos riscos envolvidos (Marris, 2001;

Blancke, Van Breusegem et al., 2015), por outro a própria comunidade científica parece

ainda não ter atingido um consenso suficientemente maduro para apaziguar as ansiedades

a respeito dos possíveis impactos desta tecnologia para a saúde, para o meio e ambiente e,

especialmente, para questões geopolíticas de justiça e soberania alimentar (Losey, Rayor

et al., 1999; Jasanoff, 2006; Séralini, Clair et al., 2014; Ferreira Holderbaum, Cuhra et

al., 2015; Krimsky, 2015). Atualmente, uma das principais causas de contestação do

pacote tecnológico dos OGM tem sido o aumento da utilização de agrotóxicos em

lavouras transgênicas, contradizendo as promessas por parte de seus defensores de que os

OGM minimizariam o uso de agrotóxicos (Ferment, Melgarejo et al., 2015).

Pesquisas no campo dos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (ESCT) têm

mostrado que, mesmo entre os países de capitalismo mais avançado, os regimes de

Page 3: Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História · 1 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Universidade Federal de Santa Catarina 16 e 18 de

3

regulação implementados divergem significativamente em relação aos critérios de

demonstração, legitimidade e aplicação do conhecimento regulador, sendo caracterizados

por distintas “epistemologias cívicas” (Jasanoff, 2005).

Como parte de um projeto mais abrangente sobre conflitos latentes da ciência

regulatória brasileira, este artigo discute a atuação histórica da Comissão Técnica

Nacional de Biotecnologia – CTNBio, o órgão do governo federal responsável pela

regulamentação acerca de produtos biotecnológicos, no que se refere às primeiras

aprovações para a comercialização de variedades de milhos transgênicos no país. As

aprovações dos milhos Liberty Link (T25), da Bayer e do milho MON-810, da Monsanto,

foram fortemente contestadas por entidades da sociedade civil e por outros órgãos do

próprio governo federal, tendo sido objeto de litigio judicial e administrativo. Este

constitui-se um momento histórico importante, quando foram evidenciados algumas das

questões que continuaram a ser apontadas como fontes de ilegitimação das decisões

técnicas da CTNBio.

2. A CTNBio: solução ou continuação da controvérsia?

A controvérsia sobre a regulação acerca dos OGM no Brasil teve sempre como

um dos principais focos de discussão a atuação e a competência da CTNBio para

regulamentar a pesquisa e a comercialização de OGMs no país. A primeira lei de

biossegurança, aprovada pelo governo de Fernando Henrique Cardoso em 1995, (Lei

8.794/95), instituía um papel consultivo à CTNBio, ou seja, esta tinha o papel consultivo

de emitir pareceres técnicos sobre a biosseguranca de organismos transgênicos, mas não

deixava claro sobre a vinculação destes pareceres com outras instâncias de regulação, e

especialmente sobre a necessidade ou não de Estudos de Impacto Ambiental (EIA).

Em 1998, a CTNBio autorizou o plantio e comercialização do primeiro

transgênico no país, a soja transgenica Roundup Ready da Monsanto. Esta autorização

levou o Insitituto de de Defesa do Consumidor – IDEC, que também contou com o apoio

da ONG Greenpreace, a ajuizar acao cautelar para suspender os seus efeitos, alegando

Page 4: Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História · 1 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Universidade Federal de Santa Catarina 16 e 18 de

4

que a decisao desrespeitava a legislacao vigente pois nao tinham sido realizados estudos

de impacto ambiental e nem havia regulamentacao da seguranca alimentar do produto. A

ONG Greenpeace juntou-se a acao. Em seguida, o IDEC ajuizou tambem Acao Civil

Publica mais ampla, na qual requeria que nenhum organismo transgenico fosse liberado

no Brasil sem a realizacao dos estudos de impacto ambiental e as devidas avaliacoes de

riscos a saude humana, além da implementacao de regras de rotulagem.

Em 2000, a 6a Vara Federal de Brasilia determinou, em face da ação civil pública,

que os organismos transgenicos deveriam obrigatoriamente passar por estudos de

avaliacao de riscos ambientais e a saude antes de serem comercializados. A partir daí, o

que se observou foi uma longa disputa que não se restringiu apenas ao campo judicial, na

medida em que sementes de soja RR foram sendo crescentemente utilizadas por

agricultores, o que levou o governo Lula a emitir 3 medidas provisórias legalizando a

comercialização da safra. (Fuck e Bonacelli, 2009).

Assim, foi aprovada no início de 2005, uma nova Lei de Biossegurança, a Lei n.

11.105/051, com a finalidade de conferir a necessária estabilidade jurídica e institucional

para atividade de regulação da biotecnologia no Brasil (Fonseca, 2010).

A nova lei reformula a composição e competência da CTNBio, assegurando-lhe

poderes regulatórios e deliberativos que só respondem a um órgão superior, o Conselho

Nacional de Biossegurança, um colegiado de Ministros de Estado que pode ratificar ou

não as decisões da CTNBio.

A comissão passa a ser formada por 27 membros titulares e 27 membros

suplentes, com “grau acadêmico de dotuor e com destacada atividade profissional nas

áreas de biossegurança, biotecnologia, biologia, saude humana e animal ou meio

ambiente”(Art.11, lei 11.105/05). Dentre estes especialistas, as sociedades científicas

devem indicar 3 da area de saude humana, 3 da área animal, 3 da área vegetal e 3 da área

de meio ambiente. Além disso, compõem a comissão um representante indicado pelos

1 Lei Nº 11.105, DE 24 DE MARÇO DE 2005, Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11105.htm (acesso em 3

de março de 2016)

Page 5: Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História · 1 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Universidade Federal de Santa Catarina 16 e 18 de

5

Ministerio da Ciencia e Tecnologia. Ministerio da Agricultura, Pecuaria e Abastecimento,

Ministerio da Saude, Ministerio do Meio Ambiente, Ministerio do Desenvolvimento

Agrario, Ministerio do Desenvolvimento, Industria e Comercio Exterior; Ministerio da

Defesa, Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca da Presidencia da Republica,

Ministerio das Relacoes Exteriores. Por fim, completam a comissão: um especialista em

defesa do consumidor, indicado pelo Ministro da Justica; um especialista na area de

saude, indicado pelo Ministro da Saude; um especialista em meio ambiente, indicado pelo

Ministro do Meio Ambiente; um especialista em biotecnologia, indicado pelo Ministro da

Agricultura, Pecuaria e Abastecimento; um especialista em agricultura familiar, indicado

pelo Ministro do Desenvolvimento Agrario; um especialista em saude do trabalhador,

indicado pelo Ministro do Trabalho e Emprego.

Portanto, a missão desta comissão formada por cientistas de diversas áreas ligadas à

biossegurança é, sobretudo, definir os protocolos de avaliação e monitoramento de risco

de produtos biotecnológicos e decidir, caso a caso, sobre a aprovação ou não de

experimentação, produção, circulação e consumo.

Marinho e Minayo-Gomes (2004), ao analisar os pareceres da comissão de 1995 a

2002, ou seja, antes da nova legislação, apontaram que a forma como esta vinha atuando

era a principal responsável pelo acirramento da controvérsia. A análise aponta que a

ausência de critérios explícitos para o deferimento de liberações experimentais no meio

ambiente, como a discrepância no tamanho das áreas aprovadas para experimentação, (a

comissão havia liberado áreas de plantio experimental tão extensas quanto 110 Ha, o que

pode ter contribuiído para a disseminação ilegal da soja transgênica) indicava a

insustentabilidade “técnica” das liberações comerciais, contribuindo assim para a

instabilidade jurídica e para ilegitimidade política de suas decisões deliberativas.

Segundo estes mesmos autores, o conteúdo da então iminente nova lei de biossegurança,

embora apresentasse mudanças substantivas, não seria suficiente para apaziguar a

discordância entre os diversos atores envolvidos com a temática.

É interessante notar que, de fato, sob a égide da nova legislação que lhe confere

autoridade enquanto órgão máximo responsável pela regulação, sempre baseada em

Page 6: Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História · 1 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Universidade Federal de Santa Catarina 16 e 18 de

6

pareceres ad hoc sobre a segurança de novas biotecnologias, a legitimidade epistêmica da

CTNBio enquanto órgão imparcial e apolítico não tem logrado suficiente consolidação.

Na próxima seção faremos uma contextualização sócio-histórica sobre as primeira

aprovações de milho transgênico da CTNBio, que evidentemente não se propõe como

exaustiva, mas que se dirige a algumas das questões cruciais que parecem ter servido de

base para a contestação futura de suas decisões técnicas, e que parece ter contribuído para

a continuação da instabilidade política e institucional do regime regulatório sobre

biossegurança.

3. As primeiras aprovações comerciais: os milhos transgênicos T25 e MON-810

Os primeiros processos de aprovação comercial da CTNBio foram os milhos

transgênicos Liberty Link (T25) e Guardian (MON-810). O primeiro foi votado e

aprovado na 102ª Reunião Ordinária da CTNBio, realizada em 16 de maio de 20072 e o

segundo na 105a Reunidão Ordinária da CTNBio, realizada em 16 de Agosto de 20073.

Estas decisões ocorreram em meio a fortes contestações e suscitaram respostas distintas

por parte da CTNBio e de outros órgãos do governo.

Os procedimentos científicos e administrativos destas primeiras duas aprovações,

bem como os protestos e recursos judiciais a elas relacionados, apresentam alguns dos

indícios sobre possíveis fatores que têm fragilizado a legitimação não apenas enquanto

órgão técnico e, portanto, imparcial, mas do próprio regime de governança dos riscos

biotecnológicos no país. Este artigo mostra que, apesar de a CTNBio se fundamentar

sobre os pilares de que as decisões políticas devem ser tomadas a partir do escrutínio

técnico, científico e portanto imparcial, as dinâmicas operativas de seu funcionamento

2 Parecer no 987/2007, relativo ao processo nº: 01200.005154/1998-36, disponível em:

http://ctnbio.mcti.gov.br , (acesso em 10 de marco de 2016) 3 Parecer no 1100/2007, relative ao processo nº: 01200.002995/1999-54. Disponível em

http://ctnbio.mcti.gov.br (acesso em 10 de marco de 2016)

Page 7: Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História · 1 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Universidade Federal de Santa Catarina 16 e 18 de

7

revelam que, desde o início de seu funcionamento “normal” após a regulamentação da

Lei 11.105/05, são critérios políticos, e não técnicos, que têm definido o seu

posicionamento.

3.1 De maioria qualificada a maioria simples

Uma primeira questão envolve o número de votos favoráveis necessários para a

aprovação de liberações comerciais. A lei 11.105/05 previa que as deliberações da

CTNBio deveriam ser tomadas por maioria qualificada em votação aberta, isto é, que ao

menos dois terços do colegiado, portanto, 18 membros, votassem a favor da decisão.

Enquanto tal regulamentação esteve em vigor, não foi aprovado nenhum pedido de

liberação comercial por parte da comissão. Por exemplo, em novembro de 2006, a

comissão negou a autorização de uso comercial de uma vacina contra a doença de

Aujelszky, feita com vírus modificado e usada em porcos e cavalos, apesar de o placar

apontar 17 votos favoráveis e 4 contrários à aprovação. Em 21 de março de 2007, o

presidente Lula sancionou a medida provisória No. 327, convertida em Lei No. 11.4604,

que reduzia o quórum mínimo para maioria simples, ou seja, para 14 integrantes.

Apenas dois meses depois, em maio de 2007, o milho transgênico T25,

comercialmente conhecido como Liberty Link, da empresa Bayer, resistente a herbicida

glufosinato de amônio, produzido pela Bayer teve seu uso comercial liberado pela

CTNBio, com o mesmo placar de 17 votos favoráveis e 4 contrários.

Portanto, ficou claro que a alteração do quórum mínimo de votação implicou na

viabilização de aprovações que até então estavam bloqueadas pelo bloco minoritário de

cientistas da comissão. É somente a partir desta ação administrativa que as decisões

técnicas favoráveis começam a acontecer, sugerindo que o funcionamento interno da

comissão é baseado, mais que na busca de consenso sobre a biossegurança, na afirmação

de um grupo levemente maioritário como aquele que efetivamente detém os poderes

4 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-

2010/2007/Lei/L11460.htm (acesso em 15 de março de 2016)

Page 8: Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História · 1 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Universidade Federal de Santa Catarina 16 e 18 de

8

decisórios. Este é um dos argumentos que têm sido sistematicamente utilizado para a

contestação da legitimidade das decisões da CTNBio. A crucialidade do quórum mínimo

de metade mais um indica que, ao contrário do discurso, não é o consenso científico que

guia as decisões dentro da própria comissão, na medida em que nunca se conseguiu

aprovar alguma liberação comercial com dois terços dos votos dos integrantes. Mais

ainda, isso indica o consenso nunca é atingido interdisciplinarmente e que, portanto, não

se trata de uma avaliação científica rigorosa, embasada em diferentes contribuições de

áreas complementares, mas de uma definição política, que se dá a partir da disciplina

científica dominante na comissão. Há uma maioria, formada por especialistas que

gravitam as áreas de biotecnologia e agricultura, e um grupo minoritário, que congrega

especialistas em meio ambiente e saúde. Cada grupo recorre às suas próprias referências e

fundamentações científicas, mas apenas o grupo que dispuser de mais votos tem seus

posicionamentos deferidos.

3.2 Audiência pública e sigilo dos processos: um modelo de participação contestado

Outra tema que se mostrou controverso, sobretudo em relação o primeiro pedido

de liberação comercial foi a questão da participação pública. Em dezembro de 2006,

ainda com o processo em tramitação, um juiz federal do Paraná, Nicolau Konkel Junior,

publicou uma liminar que suspendia a análise do pedido de liberaçãoo do milho LIberty

Link até que se efetivasse uma audiência pública sobre o assunto5. A comissão cumpriu

com a liminar e promoveu uma audiência pública, que ocorreu durante a manhã e tarde

de 20 de março de 2007. Segundo o então presidente da CTNBio, Walter Colli, foram 62

inscritos, sendo 20 selecionados para fazerem intervenções. A estrutura do evento foi de

apresentações subsequentes de 15 minutos, com uma hora para debates e perguntas, ao

fim de cada período. Além disso, foram protocolados 36 documentos com “opiniões ou

5 Decisão judicial liminar proferida nos autos da ação civil pública número

2006.70.00.030708-0

Page 9: Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História · 1 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Universidade Federal de Santa Catarina 16 e 18 de

9

sugestões”, todos eles disponíveis no site da CTNBio.6 O Dr. Colli deixou claro que o

motivo da audiência era cumprir a decisão judicial, relativa ao milho Liberty Link, mas

decidiu incluir na pauta a discussão sobre outros milhos geneticamente modificados.

Este mecanismo de participação pública foi fortemente contestado por grupos

opositores. Em primeiro lugar, conforme se verifica ao longo de algumas das próprias

intervenções,7 foi questionada a utilidade de se reunir pessoas em apenas um dia, com

quinze minutos cada, para se debater um tópico complexo como a biossegurança de um

milho transgênico, incluindo os questões específicas relacionadas ao risco do milho para

a saúde e para o meio ambiente, mas também à confiabilidade e necessário escrutínio das

informações apresentadas pelo requerente. Por outro lado, muitos dos questionamentos

apresentados por alguns dos participantes não foram contemplados, sejam nas discussões

no dia, mas principalmente após o protoclamento das dúvidas e sugestões. Portanto, esta

primeira audiência pública realizada pela CTNBio, ao contrário de contribuir para a

construção de uma imagem de transparência e de abertura democrática, acabou por

reforçar a ideia de que a CTNBio não está disposta a se abrir para contribuições externas.

Mais que isso, segundo constam algumas das manifestações na altura, o comportamento

do presidente da comissão foi o de ignorar indiscriminadamente as contribuições ou

indagações (também de natureza técnica) levantadas pela sociedade civil.8 O Ministério

Público manifestou, na altura, a intenção de entrar com uma ação para anular a audiência

pública da CTNBio, na medida em que, segundo a procuradora Maria Cordiolli, “Fica

parecendo que eles quiseram apenas tirar o problema da frente para votar logo, o que não

6 Disponível em: http://ctnbio.mcti.gov.br/participacao-publica/-

/document_library_display/IVl5tCZGEO72/view/668445?_110_INSTANCE_IVl5tCZG

EO72_redirect=http%3A%2F%2Fctnbio.mcti.gov.br%2Fparticipacao-

publica%3Fp_p_id%3D110_INSTANCE_IVl5tCZGEO72%26p_p_lifecycle%3D0%26p

_p_state%3Dnormal%26p_p_mode%3Dview%26p_p_col_id%3Dcolumn-

2%26p_p_col_count%3D1 (acesso em 16 de marco de 2016) 7 A transcrição ipsis verbis de toda a audiência está disponível no endereço acima. 8 Ver, por exemplo: http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Meio-Ambiente/CTNBio-

ignora-audiencia-publica-e-aprova-milho-transgenico-da-Bayer/3/13106 (acesso em 31

de Março de 2016)

Page 10: Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História · 1 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Universidade Federal de Santa Catarina 16 e 18 de

10

é razoável”. 9 Neste sentido, uma nova liminar concedida na 2ª Vara da Justiça Federal, a

sessão ordinária da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) realizada

em Abril de 2007, teve de ser realizada a portas abertas.10

Da mesma forma, foram reiteradas as contestações sobre a falta de transparência

em relação aos processos de avaliação de pedidos de liberação comercial. Os processos

não estão disponíveis a escrutínio público, mesmo aqueles que não requerem pedido de

sigilo devido a questões de propriedade intelectual. Alguns dos participantes da audiência

pública, como o representante da ASP-TA, Gabriel Fernandes, indicou que, apesar da

solicitação, não recebeu as cópias dos processos em tempo hábil para que se pudesse

fazer uma avaliação que fundamentasse a sua contribuição na audiência pública.

3.3 Monitoramento e regras de convivência: Aprovação sem regulamentação

A aprovação milho Liberty Link foi contestada por diversas organizações da

sociedade civil, sobretudo pelo motivo de que a liberação foi efetuada antes de que a

mesma comissão estipulasse as regras de monitoramento e de coexistência entre o milho

transgênico e o milho convencional. De fato, a justiça federal do Paraná, proferiu

sentença anulando a liberação do milho, atendendo à ação civil pública movida pelo Idec

e as organizações Terra de Direitos, Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura

Alternatia (AS-PTA) e Associação Nacional de Pequenos Produtores (Anpa).11 A Juíza

Pepita Durski Tramontini Mazini suspendeu a decisão técnica da Comissão Técnica

Nacional de Biossegurança (CTNBio) referente à liberação do milho Liberty Link, até

9 http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Noticias/mp-vai-entrar-com-a-o-para-an/ (acesso

em 31 de Março de 2016)

10 Ver, por exemplo: http://gvces.com.br/ctnbio-e-obrigada-a-abrir-as-portas?locale=pt-br

(acesso em 31 de Março de 2016)

11

http://www.ecoagencia.com.br/?open=noticias&id=VZlSXRFWWNlYHZEWOZlVaN2a

KVVVB1TP

Page 11: Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História · 1 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Universidade Federal de Santa Catarina 16 e 18 de

11

que fossem elaboradas normas de coexistência das variedades orgânicas, ecológicas e

convencionais com as variedades transgênicas e até que fossem definidos os termos do

monitoramento. Concomitantemente, em julho, a Agência Nacional de Vigilância

Sanitária - ANVISA e o Instituto Brasileiro para o Meio Ambiente - Ibama apresentaram

recurso ao Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS contra a decisão da CTNBio de

liberar o milho Liberty Link.

Em 16 de Agosto de 2007, a CTNBio aprovou as normas de monitoramento que

cumpririam com a resolução da justiça e, a seguir, a liberação comercial do milho

Guardian, da Monsanto, com 15 votos favoráveis, uma abstenção e um voto contrário. O

motivo de apenas um voto contrário foi que cinco integrantes da comissão, que não

concordaram com a forma com a qual as regras de monitoramento e coexistência foram

propostas e aprovadas, sem o devido escrutínio e discussão no plenário da comissão,

deixaram o plenário em protesto. Assim, a CTNBio aprovou, de uma só vez, as

resoluções normativas no 3 e no 4, dispondo, respectivamente, sobre as normas de

monitoramento de milho geneticamente modificado em uso comercial e sobre as

distâncias mínimas entre cultivos comerciais de milho geneticamente modificado, e a

liberação de mais uma espécie de milho.

Mais uma vez, a CTNBio, e especialmente o seu comando por parte da

presidência de então, parece ter oferecido fundamentos para subsidiar análises de que as

suas resoluções normativas, isto é, a regulamentação sobre os critérios de segurança a

serem respeitados, não foram elaboradas a partir do escrutínio minucioso dos

posicionamentos científicos e, portanto, de que não se tratam de critérios legítimos de

biossegurança. De fato, o parecer técnico que fundamenta a liberação do milho Liberty

Link, cita o estudo científico de Luna et al (2001) para afirmar que, “sob ventos baixos a

moderados, estimou-se que, comparando-se as concentrações a 1 m da cultura fonte,

aproximadamente 2% de pólen são anotados a 60 m, 1,1% a 200 m e 0,75-0,5% a 500 m

de distância”.12 No entanto, a resolução normativa no 4, em seu artigo 2o, estabelece que:

12 PARECER TÉCNICO Nº 987/2007

Page 12: Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História · 1 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Universidade Federal de Santa Catarina 16 e 18 de

12

Para permitir a coexistência, a distância entre uma lavoura comercial de milho

geneticamente modificado e outra de milho não geneticamente modificado,

localizada em área vizinha, deve ser igual ou superior a 100 (cem) metros ou,

alternativamente, 20 (vinte) metros, desde que acrescida de bordadura com, no

mínimo, 10 (dez) fileiras de plantas de milho convencional de porte e ciclo

vegetativo similar ao milho geneticamente modificado.13

Ou seja, a resolução normativa contradiz o próprio parecer técnico. Enquanto este

segundo atesta que a 200 metros, sob ventos moderados, ainda pode haver polinização

cruzada, a resolução desproblematiza as condições geográficas e coloca um isolamento

de 100 metros. Chama a atenção que a resolução não apresenta qualquer fundamentação

ou justificação científica para a definição de tal critério.

Esta resolução normativa foi fortemente contestada, tendo sido objeto de uma

publicação por parte do NEAD, Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento, Rural,

órgão vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário que contava com membros

da área minoritária da CTNBio, que se opõe cientificamente aos critérios adotados

(Ferment, Zanoni et al., 2009). A publicação apresenta estudos científicos que

contradizem a norma da CTNBio, como pesquisas realizadas na Franca, que indicam que

graos de polen do milho foram identificados a uma distância de mais de mil metros do

perímetro da área plantada. Praticamente de forma concomitante, a CTNBio publicou

outro documento, de autoria de 7 membros da CTNBio e com a colaboracao de outros 27

membros e ex-membros, o estudo “Milho geneticamente modificado: bases cientificas

das normas de coexistencia entre cultivares” (Andrade, Nepomuceno et al., 2009). Neste

documento, que já no prefácio se justifica como resposta à publicação do ENAD, são

apresentadas as justificativas para as normas aprovadas, sobretudo a partir da premissa de

que um fluxo gênico zero é impraticável e mesmo indesejável (p.25-7).

Independentemente do mérito científico, o fato de a justificativa das normas de

coexistência terem se dado de forma reativa sugere que, de fato, o embasamento

científico foi buscado a posteriori, o que inegavelmente erode a confiabilidade das

13 CTNBio, RESOLUÇÃO NORMATIVA Nº 4, DE 16 DE AGOSTO DE 2007.

Disponível em www.ctnbio.mcti.gov.br

Page 13: Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História · 1 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Universidade Federal de Santa Catarina 16 e 18 de

13

normas aprovadas de forma célere pela CTNBio. Além disso, conforme discute Zanoni et

al (2011), a publicação da comissão repassa o eventual fracasso das normas de

coexistência, que na altura já começavam a se manifestar, como casos de contaminação

significativa de milhos convencionais documentados no Parana, para os próprios

produtores rurais:

Os agricultores que tiverem suas lavouras contaminadas terao cometido algum

erro no manejo da cultura, ou terao sido contaminados por sementes misturadas,

graos misturados ou fluxo de polen de plantios GM vizinhos (Andraade et al, p.

41).

Portanto, a postura da CTNBio em relação às regras de coexistência, ao contrário

de contribuir para a construção da legitimidade de suas primeiras decisões, que devem ser

calcadas em critérios técnicos de biossegurança, apontam para uma maleabilidade que

acaba por alimentar a imagem de que, mais que critérios científicos, as decisões estavam

sendo tomadas por critérios a priori ideológicos e morais, que colocam a transgenia como

evolução inexorável da tecnologia agrícola.

3.4 A resolução normativa no 5: regras definidas após decisões

O posicionamento de contestação ao caráter aparentemente ideológico da

comissão pode ser ainda reforçado diante do fato de que a Resolução Normativa nº 514,

que dispõe sobre as normas para a liberação comercial de Organismos Geneticamente

Modificados e seus derivados, foi publicada apenas em 12 de março de 2008, portanto

após a aprovação comercial dos milhos Liberty Link e Guardian. Em outras palavras,

trata-se de um caso em que a aprovação sobre a segurança de um produto ocorre antes da

aprovação sobre quais são os critérios de segurança que devem ser respeitados, o que

obviamente fragiliza ainda mais a legitimidade técnica do órgão.

Não se obteve acesso, até a presente data, aos processos completos relativos aso

14 Disponível em http://ctnbio.mcti.gov.br/resolucoes-normativas (acesso em 31 de março

de 2016)

Page 14: Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História · 1 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Universidade Federal de Santa Catarina 16 e 18 de

14

pedidos de liberação dos milhos Liberty Link e Guardian (o pedido submetido à CTNBio

ainda não foi atendido), mas uma análise comparativa entre os pareceres técnicos e as

regras estabelecidas no anexo da resolução normativa sugere que, ainda que de fato a

expressiva maioria das exigências colocadas na resolução são discutidas no parecer,

alguns dos itens presentes nos anexos da resolução estão ausentes do parecer.

Evidentemente, o anexo I da resolução normativa requer que as proponentes

apresentem um plano de monitoramento, o que, conforme já discutido anteriormente, não

foi feito nos casos do milho Liberty Link e Guardian. As informações dispostas nos

pareceres parecem contemplar todos os itens dispostos no anexo II e no anexo III,

respectivamente sobre as informações relativas aos OGM e sobre a avaliação de risco

para a saúde humana e animal. No entanto, em relação à avaliação de risco, a resolução

aponta para uma classificação de níveis que não aparece de maneira explícita nos

pareceres, ainda que estes indiquem, de forma qualitativa, que o risco relacionado com os

eventos T25 e MON-810 são baixos (o que devem coloca-los, por inferência, dentro da

categoria I). Já dentre os itens presentes no anexos IV, sobre a avaliação de risco ao meio

ambiente, é possível identificar a ausência de menções nos pareceres que indiquem a

correspondência com alguns deles. Especificamente, no parecer relativo ao milho Liberty

Link, estão omissas menções sobre os itens: 9 ( “ as modificações da capacidade da

planta em adicionar ou remover substâncias do solo, em decorrência da introdução de

novas características, descrevendo possíveis alterações físicas e químicas no solo e

contaminação dos corpos d’água adjacentes resultantes das interações com o OGM,

comparativamente aos sistemas convencionais); 10 (“as possíveis modificações da

biodegradabilidade da planta GM, comparativamente ao genótipo parental”); e 11 (“a

possível resistência a agentes químicos conferida pela característica introduzida”). O voto

divergente manifestado no parecer , da relatora Dra. Lia Giraldo da Silva Augusto,

manifestou, além da inexistência da resoluçãoo normativa e de critérios de

monitoramento, que a aprovação não cumpria com o principio da precaução.

Em seu ponto 18, o parecer coloca que

As críticas, questionamentos e alegações protocoladas por pessoas ou

Page 15: Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História · 1 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Universidade Federal de Santa Catarina 16 e 18 de

15

organizações que discutem a liberação desta variedade transgênica são, em sua

maioria, baseadas em notícias de jornais ou endereços eletrônicos de

organizações não–científicas, não apresentando fundamento científico. (MCT –

CTNbio PARECER TÉCNICO Nº 1100/2007)

O parecer prossegue, no ponto 19, afirmando que

Alguns documentos protocolados apresentam diversas afirmações

conceitualmente erradas ou superficiais, mostrando um desconhecimento

profundo de biologia molecular e induzindo o leitor a conclusões errôneas. (MCT

– CTNbio PARECER TÉCNICO Nº 1100/2007)

Sem entrar no mérito do recurso retórico de desqualificação por meio da falta de

autoridade científica, que é recorrentemente apontado pelos grupos opositores, chama

atenção o cuidado do texto ao colocar a que, “em sua maioria”, são baseados em

argumentos não científicos, e que “alguns documentos” apresentam afirmações erradas.

Ou seja, ao contrário de uma resposta eminentemente técnica aos questionamentos, o

parecer apresenta uma desqualificação evasiva e generalizante, e acaba por desqualificar

as divergências, supostamente científicas, colocadas pelos próprios integrantes da

CTNBio na altura.

Entre elas, está registrado, no próprio parecer, o voto divergente do Dr. Rubens

Nodari, então membro da comissão, que coloca diversos argumentos que não poderiam se

encaixar dentro da desqualificação acima. Por exemplo, o Dr. Nodari aponta que:

A seqüência de nucleotídeos inseridos nas linhagens MON810 estão

indisponíveis;

A análise de risco, composta de estudos sobre possíveis efeitos adversos ao meio

ambiente nos ecossistemas brasileiros com as variedades brasileiras

descendentes do MON810, está ausente.

Estudos com o núcleo inseticida da toxina Cry1Ab extraído de plantas MON810

estão ausentes.

Dados de expressão da toxina inseticida cry1Ab nos diferentes órgãos e tecidos

das plantas transgênicas das variedades brasileiras (exceto folhas) estão

ausentes.

A maioria dos estudos com organismos não-alvo não são cientificamente

robustos.

Demandas da CTNBio não foram atendidas pela empresa requerente.

A literatura científica disponível foi parcialmente utilizada.

Page 16: Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História · 1 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Universidade Federal de Santa Catarina 16 e 18 de

16

Houve tentativa de considerar iguais o uso de inseticidas biológicos a base de

Bacillus thuringiensis e o MON810, sem considerar que o OGM contém genes

não nativos e parcialmente sintéticos expressos todo o tempo e em todos os

tecidos da planta. (MCTI – CTNBio, Parecer técnico Nº 1100/2007: pp. 19)

Ao contrário dos argumentos expostos acima, o Dr. Nodari aponta diversos

questionamentos científicos, que, apesar de aparecerem ao final do parecer, não são

discutidos em nenhum outro documento disponível no site da comissão.

4. Epistemologias cívicas no Brasil: uma linha de inquérito para análises

qualitativas da percepção pública de risco

Apesar de não existir, no Brasil, uma tradição de pesquisa sobre a percepção

pública da Ciência e Tecnologia, existem algumas discussões que nos fornecem indícios

sobre alguns dos posicionamentos mais presentes do público brasileiro em relação à

autoridade de sua ciência regulatória (Guivant, 2006).

Neste âmbito, uma útil contribuição conceitual oferecida pela perspectiva dos

ESCT é o conceito de epistemologia cívica (Jasanoff, 2005). Desenvolvido por Sheila

Jasanoff ao analisar e comparar a biotecnologia e sua governança nos EUA, Alemanha e

Reino Unido, a noção de epistemologia cívica parte do pressuposto de que, na ausência

de provas universalmente reconhecidas, é a aceitação geral das novas tecnologias que

requer explicação. Ou seja, a credibilidade do conhecimento produzido e/ou utilizado

pelo Estado é baseada nos padrões de argumentação e demonstração que são mais aceitos

pelo modo de pensar do público. Os processos de validação e aceitação de um

conhecimento regulatório são moldados por aspectos contextuais, caracterizados

exatamente pelo que a autora define como epistemologias cívicas. Estas são, de acordo

com Jasanoff (2005:249), “caminhos públicos de conhecimento, específicos para cada

cultura e histórico e politicamente situados”. De modo mais claro, podemos definir a

epistemologia cívica como as “práticas sociais e institucionais pelas quais comunidades

políticas constroem, reveem, validam e deliberam sobre conhecimento politicamente

Page 17: Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História · 1 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Universidade Federal de Santa Catarina 16 e 18 de

17

relevante (Miller, 2008): 1896).

O conhecimento, e especialmente o conhecimento politicamente relevante, é mais

que simplesmente afirmações de verdade ou de fatos, ele é feito de julgamentos

complexos sobre como identificar múltiplas modalidades de evidência empírica, avaliar a

sua credibilidade e significado e integrá-las de acordo com protocolos específicos e

diversos de relevância. Mais ainda, estes julgamentos são produtos de processos sociais

dinâmicos, onde padrões ou embasamentos para a análise, validação, ou avaliação

competem e são articulados, negociados, valorizados ou descartados (Shapin e Schaffer,

1985). Compreender o conhecimento publicamente aceito como válido, portanto, requer

conhecer os processos de construção deste conhecimento (Cetina, 1999).

Assim, inquirir sobre a epistemologia cívica presente em um determinado contexto é

indagar sobre como as formas de racionalidade estão imbricadas nas próprias formas de

organização política. Estas formas são normalmente estabilizadas em períodos históricos,

materializadas em práticas epistêmicas cristalizadas em instituições sociais e políticas,

como a própria CTNBio. No entanto, elas são dinâmicas, isto é, abertas à mudança por

meio de processos de coprodução que conectam novas epistemologias, inovações e

contestações sócio políticas (Miller, 2008).

Portanto, as epistemologias cívicas, e o seu dinamismo, consolidam o substrato

para a estabilidade e para a legitimidade da ciência regulatória. Isto é, na medida em que

a prática de ciência regulatória diverge da epistemologia cívica dominante, ela também

fragiliza sua legitimidade. Na medida em que novas epistemologias cívicas não são

reconhecidas pelas instituições políticas, estas perdem sua capacidade de sintonizar-se

com as aspirações e valores de bem comum.

5. A CTNBio como foco ou fonte de controvérsia?

Se por um lado a CTNBio pode ser vista como o foco natural da controvérsia sobre

a regulação de transgênicos, uma vez que se trata do fórum onde as posições devem ser

confrontadas e debatidas, esta pesquisa sugere uma melhor reflexão sobre até que ponto a

Page 18: Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História · 1 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Universidade Federal de Santa Catarina 16 e 18 de

18

mesma pode ser, mais que um mecanismo gerador de consenso, uma fonte de

controvérsia. Em outras palavras, até que ponto o seu funcionamento e resultados podem

contribuir para o apaziguamento ou, pelo contrário, para o acirramento de controvérsias

sociotécnicas relacionadas com os transgênicos?

A análise acima para as primeiras decisões tomadas pela CTNBio após a sua

reformulação identificou um padrão de conflitos e tensões, embasado em duas questões

recorrentes. A primeira está relacionada com a incapacidade, ou impossibilidade, do

órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia em se afirmar enquanto órgão técnico e não

político. Ou seja, as dinâmicas que caracterizaram suas primeiras decisões e aprovações

de resoluções normativas acabaram por transparecer uma perspectiva de enviesamento

que, independentemente de sua verificação empírica, foi explorada por grupos diversos,

da sociedade civil ou do próprio governo, que contestam a sua legitimidade. A segunda

questão que também parece contribuir para minar a confiança pública na CTNBio é a sua

pouca preocupação com os valores de transparência e, sobretudo, de inclusão

democrática. Conforme se verificou, os primeiros momentos de atuação da comissão

parecem ter negligenciado a emergente demanda do público brasileiro por maior abertura

à participação em decisões de natureza técnica e regulatória. Isso parece estar relacionado

com a incapacidade de alguns dos membros da comissão em lidar com a perícia

interdisciplinar, e de não reconhecer a emergência de novas dinâmicas de contato entre o

saber leigo e científico. A desqualificação de posições científicas divergentes, presentes

dentro da própria comissão, parece ter reforçado a imagem de que, ao contrário de um

julgamento científico sobre biossegurança, as decisões foram tomadas a partir de um

julgamento moral sobre a biotecnologia.

6. Considerações finais

Este trabalho, que é parte de uma pesquisa mais ampla em andamento, oferece

subsídios para caracterizar um aparente conflito entre a epistemologia cívica “brasileira”

e a epistemologia performada nos procedimentos da CTNBio. De forma ainda hipotética,

podemos sugerir que a primeira, no presente momento histórico, está calcada nos

Page 19: Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História · 1 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Universidade Federal de Santa Catarina 16 e 18 de

19

pressupostos de uma interação simbiótica entre a análise tecnocientífica criteriosa (e

portanto imparcial) e a inclusão democrática de vozes divergentes, cumprindo assim as

premissas do princípio da precaução. O próprio texto da lei 11.105/05, que foi aprovada

após intensos debates e disputas politicas, oferece uma perspectiva de governança calcada

nestes dois pontos. De fato, muitas das contestações à atuação da CTNBio evoca o não

cumprimento da lei, sobretudo no que concerne ao respeito ao princípio da precaução. Já

a epistemologia performada pela e na CTNBio, neste primeiro momento de sua

implantação, parece se fundamentar no uso ideológico da autoridade científica,

(Habermas, 1986[1968]), ignorando a complexa relação entre perícias distintas (Collins e

Evans, 2008), mas sobretudo a demanda por maior transparência e democratização do

debate técnico. O uso estratégico da demarcação científica (Gieryn, 1995) não parece ter

sido empregado de acordo com as aspirações de parte dos públicos interessados. Com a

desqualificação generalizante de toda oposição como não-científica, a CTNBio acaba por

desconstruir sua própria autoridade científica, na medida em que deixa margem para a

acusação de sua parcialidade no escrutínio de informações científicas.

Referências

ANDRADE, PAULO PAES DE et al. Milho geneticamente modificado: Bases científicas das normas de coexistência entre cultivares. Brasília: Ministério da Ciência e Tecnologia, 2009. BLANCKE, STEFAAN et al. Fatal attraction: the intuitive appeal of GMO opposition. Trends in Plant Science, v. 20, n. 7, p. 414-418, 7// 2015. ISSN 1360-1385. CETINA, KARIN KNORR. Epistemic Cultures: How the sciences make knowledge. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1999.

Page 20: Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História · 1 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Universidade Federal de Santa Catarina 16 e 18 de

20

COLLINS, HARRY; EVANS, ROBERT. You cannot be serious! Public understanding of technology with special reference to ‚ÄúHawk-Eye‚Äù. Public Understanding of Science, v. 17, n. 3, p. 283-308, July 1, 2008 2008. FERMENT, GILLES et al. Lavouras Transgenicas: riscos e incertezas - Mais de 750 estudos desprezados pelos orgaos reguladores de OGMs. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, MDA, 2015. FERMENT, GILLES et al. Coexistencia: O caso do milho - Proposta de Revisao da Resolucao Normativa n°4 da CTNBio. Brasília: Ministério de Desenvolvimento Agrário - MDA, 2009. FERREIRA HOLDERBAUM, DANIEL et al. Chronic Responses of Daphnia magna Under Dietary Exposure to Leaves of a Transgenic (Event MON810) Bt–Maize Hybrid and its Conventional Near-Isoline. Journal of Toxicology and Environmental Health, Part A, v. 78, n. 15, p. 993-1007, 2015/08/03 2015. ISSN 1528-7394. FONSECA, PAULO. El papel de la prensa en el debate acerca de la reglamentación sobre Biotecnología en Brasil: ¿seguridad de los transgénicos o de las células madre embrionarias? , 2010. FUCK, MARCOS PAULO; BONACELLI, MARIA BEATRIZ. Sementes geneticamente modificadas: (in)segurança e racionalidade na adoção de transgênicos no Brasil e na Argentina. Revista iberoamericana de ciencia tecnología y sociedad, v. 4, p. 9-30, 2009. ISSN 1850-0013. GIERYN, THOMAS F. Boundaries of Science. In: JASANOFF, S.;MARKLE, G. E., et al (Ed.). Handbook of Science and Technology Studies Thousand Oaks, London, New Delhi: Sage, 1995. GUIVANT, JULIA S. Transgênicos e percepção pública da ciência no Brasil. Ambiente & Sociedade, v. 9, p. 81-103, 2006. ISSN 1414-753X. HABERMAS, JURGEN. Ciencia y tecnica como «ideologia». Madrid: Tecnos, 1986[1968]. JASANOFF, SHEILA. Designs on Nature: Science and Democracy in Europe and The United States. New Jersey: Princeton Universtiy Press, 2005. ______. Biotechnology and Empire: The Global Power of Seeds and Science. OSIRIS, v. 21, p. 273-292, 2006.

Page 21: Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História · 1 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Universidade Federal de Santa Catarina 16 e 18 de

21

KRIMSKY, SHELDON. An Illusory Consensus behind GMO Health Assessment. Science, Technology & Human Values, 2015. LEGUIZAMÓN, AMALIA. Modifying Argentina: GM soy and socio-environmental change. Geoforum, v. 53, p. 149-160, 5// 2014. ISSN 0016-7185. LEVIDOW, LES. EU Regulatory Conflicts over GM Food: Lessons for the Future. In: THOMPSON, P. B. e KAPLAN, D. M. (Ed.). Encyclopedia of Food and Agricultural Ethics: Springer Netherlands, 2014. cap. 359-2, p.1-8. LOSEY, JOHN E.; RAYOR, LINDA S.; CARTER, MAUREEN E. Transgenic pollen harms monarch larvae. Nature, v. 399, n. 6733, p. 214-214, 05/20/print 1999. ISSN 0028-0836. LUNA, S.V. et al. Maize pollen longevity and distance isolation requirements for effective pollen control. Crop Science v. 41, p. 1551-1557. , 2001. MARINHO, CARMEM L. C.; MINAYO-GOMEZ, CARLOS. Decisões conflitivas na liberação dos transgênicos no Brasil. São Paulo em Perspectiva, v. 18, p. 96-102, 2004. ISSN 0102-8839. MARRIS, CLAIRE. Public views on GMOs: deconstructing the myths. EMBO reports, v. 2, n. 7, p. 545-548, 2001. MILLER, CLARK A. Civic Epistemologies: Constituting Knowledge and Order in Political Communities. Sociology Compass v. 2, n. 6, p. 1896-1919, 2008. RODEN, DUNCAN. . How Monsanto threatens people and planet. Green Left Weekly, v. 1009, 2014. ROOTES, CHISTOPHER. Environmental Protest in Western Europe. Oxfortd: Oxford University Press, 2003. ROY, DEVPARNA. Contesting Corporate Transgenic Crops in a Semi-peripheral Context: The Case of the Anti-GM Movement in India1. Journal of World-Systems Research, v. 21, n. 1, p. 88-105, 2015. SÉRALINI, GILLES-ERIC et al. Republished study: long-term toxicity of a Roundup herbicide and a Roundup-tolerant genetically modified maize. Environmental Sciences Europe, v. 26, n. 1, p. 1-17, 2014/06/24 2014. ISSN 2190-4707.

Page 22: Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História · 1 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Universidade Federal de Santa Catarina 16 e 18 de

22

SHAPIN, STEVEN; SCHAFFER, SIMON. Leviathan and the air-pump: Hobbes, Boyle, and the experimental life. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1985. ZANONI, MAGDA et al. O biorrisco e a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança: Lições de uma experiência. In: ZANONI, M. e FERMENT, G. (Ed.). ransgenicos para quem? Agricultura, Ciencia e Sociedade. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA 2011.