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36 programa de pós-graduação em estudos de linguagem Universidade Federal de Mato Grosso polifonia eISSN 22376844 Estudos Literários Dossiê Estágios Supervisionados em Literatura / Literatura nos Estágios Supervisionados

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36programa de poacutes-graduaccedilatildeoem estudos de linguagemUniversidade Federal de Mato Grosso

polifoniaeISSN 22376844

Estudos Literaacuterios

DossiecircEstaacutegios Supervisionados

em Literatura Literatura nos Estaacutegios Supervisionados

polifoniaNUacuteMERO 36 ndash 2017

eISSN 22376844

Estudos Literaacuterios

DossiecircEstaacutegios Supervisionados em Literatura

Literatura nos Estaacutegios Supervisionados

UFMTMINISTEacuteRIO DA EDUCACcedilAtildeO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

ReitoraMyrian Thereza de Moura Serra

Vice-ReitorEvandro Aparecido Soares da Silva

Proacute-Reitor AdministrativoBruno Ceacutesar Souza Moraes

Proacute-Reitora de Ensino de Poacutes-GraduaccedilatildeoOzerina Victor de Oliveira

Proacute-Reitor de PesquisaGermano Guarim Neto

Proacute-Reitora de Ensino de GraduaccedilatildeoLisiane Pereira de Jesus

Proacute-Reitora de Assistecircncia EstudantilErivatilde Garcia Velasco

Proacute-Reitor de Cultura Extensatildeo e VivecircnciaFernando Tadeu de Miranda Borges

Diretor do Instituto de Linguagens Roberto Boaventura da Silva Saacute

Coordenador do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeoem Estudos de Linguagem ndash PPGEL

Viniacutecius Carvalho Pereira

Coordenador da Editora UniversitaacuteriaRenilson Rosa Ribeiro

Conselho ConsultivoAntoacutenio Manuel de Andrade Moniz ndash Univ Nova de Lisboa

Arnaldo Franco Juacutenior ndash UNESPClaacuteudia Maria Ceneviva Nigro ndash UNESP

Joseacute Augusto Cardoso Bernardes ndash Universidade de Coimbra Maria Elisa Rodrigues Moreira ndash UFMTMaria Zilda Cury ndash UFMGMarinei Almeida ndash UNEMATMauricio Vasconcelos ndash USPOlivier Bara ndash Universiteacute Lumiegravere Lyon 2Osvaldo Cupertino Duarte ndash UNIRRui Miranda ndash University of NottinghamSylvia Helena Cyntratildeo ndash UnB

Conselho EditorialDivanize Carbonieri ndash UFMTCeacutelia Maria Domingues da Rocha Reis ndash UFMTViniacutecius Carvalho Pereira ndash UFMT

Editora Ceacutelia Maria Domingues da Rocha Reis

Projeto Graacutefico e Editoraccedilatildeo EletrocircnicaTeacuteo de Miranda ndash Editora Sustentaacutevel

Suporte teacutecnicoJudikerle Pereira de OliveiraIouchabel S de Faacutetima Falcatildeo

Revisatildeo de Liacutengua InglesaViniacutecius Carvalho Pereira

Revisatildeo de Liacutengua EspanholaMarcia Romero Marccedilal

Tradutorinteacuterprete de LIBRASSeacutergio Pereira Maiolini

OrganizadoresCeacutelia Maria Domingues da Rocha Reis Maria Elisa Moreira Rodrigues

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSOAv Fernando Correcirca da Costa 2367Bairro Boa Esperanccedila ndash Campus Universitaacuterio Gabriel Novis NevesCEP 78060-900 ndash Cuiabaacute-MT ndash Brasil

POLIFONIAPerioacutedico do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos de Linguagem ndash MestradoInstituto de Linguagens ndash Piso 2 sala 42Universidade Federal de Mato Grosso Cuiabaacute-MT ndash BrasilFones 0XX 65 36158418Endereccedilo eletrocircnico httpperiodicoscientificosufmtbrojsindexphppolifoniaE-mail polifoniaufmtbr

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)

P767 Polifonia Estudos literaacuterios[recurso eletrocircnico] ndash v 24

nordm 36 (jul-dez 2017) ndash Cuiabaacute UFMT Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Estudos de Linguagem 2017 195 p

Semestral

Modo de acesso internet

lthtppwwwperiodicoscientificosufmtbrpolifoniagt

ISSN 22376844

Estudos literaacuterios ndash Perioacutedicos I Universidade Federal de

Mato Grosso Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Estudos de

Linguagem

CDU ndash 81rsquo1

Os autores satildeo expressamente responsaacuteveis pelo conteuacutedo dos

respectivos trabalhos publicados neste perioacutedico

Pareceristas deste nuacutemero

Aacutegueda Ap da Cruz Borges (UFMT)

Aacutelvaro Cardoso Gomes (USPUNISA)

Antonio Marcos Pereira (UFBA)

Arnaldo Franco Jr (UNESP)

Benedito Antunes (UNESP)

Camila da Silva Alavarce (UFU)

Camila David Dalvi (IFES - Piuacutema)

Camila Figueiredo (UFMG)

Ceacutelia Maria Domingues da Rocha Reis (UFMT)

Claacuteudia Cristina Maia (CEFET-MG)

Claacuteudia Maria Ceneviva Nigro (UNESP)

Danglei de Castro Pereira (UnB)

Danilo Silva (UFMT)

Eni Freitas e Souza (UFU)

Fernanda Ribeiro (UNIFAL)

Flaacutevio Pereira Camargo (UFG)

Franceli Ap da Silva Mello (UFMT)

Gustavo Cerqueira Guimaratildees (UFMG)

Lindinalva Zagoto Fernandes (UFMT)

Madalena Aparecida Machado (UNEMAT)

Maria Alzira Leite (UniRitter)

Maria do Rosaacuterio Alves Pereira(CEFET-MG)

Maria Elisa Rodrigues Moreira (UFMT)

Maria Fernanda Alvito Pereira de Souza Oliveira (UFRJ)

Maria Tereza de Almeida Lima (UNIPTAN)

Marinete Luzia Francisca de Souza (UFMT)

Maacuterio Ceacutezar Silva Leite (UFMT)

Mauriacutecio Guilherme Silva Jr (UNIBH-Fapemig)

Osvaldo Copertino Duarte (UNIR)

Paulo Seacutergio Nolasco dos Santos (UFGD)

Renata Rocha Ribeiro (UFG)

Rosane Maria Cardoso (UNISC)

Rosacircngela Fachel(URI)

Simone de Jesus Padilha (UFMT)

Vanessa Fabiacuteola Silva de Faria (UNEMAT)

Viniacutecius Carvalho Pereira (UFMT)

eISSN 22376844polifonia

Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo 8

Dossiecirc 12

Estaacutegios Supervisionados em Literatura Literatura nos Estaacutegios Supervisionados 12

Autor e leitor identidades do professor de Literatura em formaccedilatildeo ndash experiecircncias com o estaacutegio supervisionado em Letras 13

Ana Creacutelia Penha Dias

Andreacute Luiacutes Mouratildeo de Uzecircda

Maria Coelho Araripe de Paula Gomes

Leituras de ldquoA flor e a naacuteuseardquo de Carlos Drummond de Andrade em praacuteticas de Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa 28

Diogo dos Santos Souza

Eliana Kefalaacutes de Oliveira

Cenas da formaccedilatildeo de professores de liacutengua e literatura no Curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) 41

Marcos Scheffel

Estaacutegio supervisionado em Letras da UFGD mediando leituras e formando leitores 54

Alexandra Santos Pinheiro

O Estaacutegio Supervisionado em Letras no vieacutes administrativo-pedagoacutegico 67

Flaacutevia Girardo Botelho Borges

Estaacutegio Supervisionado em Literatura um relato de experiecircncia na UTFPR ndash Curitiba 78

Mirelle Mussi Giri

Alice Atsuko Matsuda

Outros lugares 94

Interdiscursividade e intertextualidade a constituiccedilatildeo dos sentidos do dizer no universo autoral 95

Terezinha Maia Martincowski

ldquoMito biograacuteficordquo e ldquoficccedilatildeo familiarrdquo em Borges e Calvino 111

Maria Elisa Rodrigues Moreira

Sobre o amor e a incapacidade de amar 129

Dionei Mathias

Marcel ProustHonoreacute de Balzac a Meacutelange de uma Narratividade 149

Aguinaldo Joseacute Gonccedilalves

Acerca da ekphrasis numa passagem do Clarimundo de Joatildeo de Barros cena de pictoacuterico heroiacutesmo 164

Flaacutevio Antocircnio Fernandes Reis

Entrevista 180

Literatura e Ensino Entrevista com Joseacute Augusto Cardoso Bernardes 181

Por Marinete Luzia Francisca de Souza

Edital de Chamada de Artigos 2018 189

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eISSN 22376844polifonia

Polifonia Cuiabaacute-MT v 24 n 36 p 8-11 jul-dez 2017

Apresentaccedilatildeo

Dossiecirc Estaacutegios Supervisionados em Literatura Literatura nos

Estaacutegios Supervisionados

Os dossiecircs do perioacutedico Polifonia tecircm sido propostos objetivando colocar em circulaccedilatildeo tanto pesquisas de aacutereas consolidadas que jaacute contam com um corpo teoacuterico consideraacutevel inserido nas matrizes curriculares como temas polecircmicos questotildees nascentes que precisam de espaccedilos efetivos de discussatildeo e de apresentaccedilatildeo de experiecircncias realizadas em andamento e em perspectiva na busca de alinhar teorias e procedimentos para a construccedilatildeo de um arcabouccedilo de informaccedilotildees diretoras e conformes agraves necessidades dessas matrizes Tal eacute a situaccedilatildeo do dossiecirc organizado para este nuacutemero 36 do perioacutedico Polifonia aacuterea de Estudos Literaacuterios ndash Estaacutegios Supervisionados em Literatura Literatura nos Estaacutegios Supervisionados

O Estaacutegio Supervisionado eacute um componente curricular exigido legalmente para as licenciaturas colocando-se no acircmbito da matriz curricular como o meio que oportuniza ao licenciando contato mais direto com seu futuro campo profissional Se vislumbrado na esfera das Letras o Estaacutegio Supervisionado em Literatura foi implementado tardiamente em relaccedilatildeo ao Estaacutegio em Liacutengua Portuguesa embora os cursos de Letras apresentem carga horaacuteria equitativa para os estudos linguiacutesticos e para os literaacuterios Esse dado revela a particularidade de docentes do ensino superior desta aacuterea implicarem-se menos em questotildees didaacuteticas mais nos estudos do texto literaacuterio e de suas circunstacircncias

Atualmente em razatildeo das mudanccedilas curriculares no ensino puacuteblico o Estaacutegio Supervisionado tem sido realizado no ensino meacutediono contexto da disciplina de Liacutengua Portuguesa (no ensino fundamental isso jaacute era praacutetica antiga) exceccedilatildeo feita ao ensino privado coleacutegios de aplicaccedilatildeo entre unidades educacionais especiacuteficas Ocupando esse lugar alcanccedilado tambeacutem por dificuldades internas agrave proacutepria aacutereaseraacute preciso repensar as bases metodoloacutegicas nas quais a Literatura como aacuterea artiacutestica e de conhecimento se assenta para a manutenccedilatildeo de sua autonomia evitando constituir-se agrave custa de procedimentos alheios agrave sua natureza eacute preciso encontrar o seu proacuteprio caminho suas estrateacutegias consoantes com seus objetos Daiacute a importacircncia que assume este nuacutemero 36 do perioacutedico Polifonia oferecendo agrave comunidade cientiacutefica nesse tempo de reestruturaccedilatildeo curricular material bibliograacutefico contendo discussotildees que envolvem problemas e alternativas apresentadas por profissionais da aacuterea

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Foi estimulante entatildeo receber artigos de colegas de instituiccedilotildees de ensino superior do paiacutes puacuteblicas e particulares tratando de atividades de Estaacutegio Supervisionado em Literatura e ressalte-se de disciplina afim como Didaacutetica e Praacutetica de Ensino de Portuguecircs e Literaturas apresentando vivecircncias efetivas (e afetivas) realizadas com graduandos em unidades educacionais parceiras a partir de onde conhecem observam questionam o que estaacute posto estudam planejam e desenvolvem atividades compotildeem os relatos avaliam a funcionalidade e dificuldade das experiecircncias apontam soluccedilotildees ou apresentam discussotildees com base na experiecircncia adquirida pelos anos de trabalho Em todos os casos apresentam comprometimento poliacutetico com a aacuterea

Em coerecircncia com esse estado de coisas da leitura atenta dos artigos voltados ao dossiecirc avultou um eixo temaacutetico predominante a questatildeo autoral na formaccedilatildeo do professor de Letras tomado como criteacuterio para ordenar os artigos do dossiecirc

Os trecircs primeiros artigos promovem a discussatildeo da praacutetica autoral docente da escrita autoral da elaboraccedilatildeo criacutetica a partir da experimentaccedilatildeo literaacuteria com base em projetos desenvolvidos No primeiro Autor e leitor identidades do professor de Literatura em formaccedilatildeo ndash experiecircncias com o estaacutegio supervisionado em Letras Ana Creacutelia Penha Dias Andreacute Luiacutes Mouratildeo de Uzecircda e Maria Coelho Araripe de Paula Gomes apontam a necessidade de construir bases para que o Estaacutegio em Literatura se decirc de maneira adequada agrave formaccedilatildeo do licenciando na realidade de ensino-aprendizagem na escola por meio de accedilotildees que promovam autonomia sobre o seu fazer docente e mudanccedilas na realidade da escola e da proacutepria universidade pela revisatildeo dos curriacuteculos a fim de alcanccedilar uma didaacutetica que efetivamente coopere com o ensino baacutesico Dentre as conclusotildees abstraiacutedas das atividades de Estaacutegio realizadas no Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio de Janeiro ressaltam a fragilidade na formaccedilatildeo do estudante de Letras como leitor literaacuterio o que levou agrave consideraccedilatildeo de que deve haver um protagonismo de professor texto e leitor nas aulas de literatura

Diogo dos Santos Souza e Eliana Kefalaacutes de Oliveira constroem seu artigo Leituras de ldquoA flor e a naacuteuseardquo de Carlos Drummond de Andrade em praacuteticas de Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa com base em uma oficina de leitura de poesia realizada por estagiaacuterios observando e atribuindo um vieacutes subjetivo e criacutetico aos mecanismos que eles empregam na experimentaccedilatildeo do texto literaacuterio defendendo endossados por argumento de autoridade que tais experiecircncias analiacuteticas datildeo condiccedilotildees de edificaccedilatildeo de um discurso criacutetico sobre o texto literaacuterio natildeo devendo a teoria e a criacutetica literaacuterias serem estudadas de maneira estratificada e aprioriacutestica na formaccedilatildeo do leitor Nesse sentido defendem o exerciacutecio criacutetico sobre as obras literaacuterias no diaacutelogo com os estudantes cabendo agrave criacutetica o papel de incitar dar indiacutecios para diferentes modos de compreensatildeo das obras em apreccedilo

Marcos Scheffel em Cenas na formaccedilatildeo de liacutengua e literatura no curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com base em suas experiecircncias didaacuteticas e em um projeto de leitura indica criticamente o descompromisso do curso de Letras mais preocupado em formar pesquisadores que profissionais para atuarem na educaccedilatildeo

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baacutesica o que ocorre sobretudo com a aacuterea da Literatura desenvolvida com estudos teoacutericos para anaacutelise e interpretaccedilatildeo de textos com grau de dificuldade que restringe o acesso de leitores com a imposiccedilatildeo de leituras sem discussatildeo de criteacuterios de seleccedilatildeo etc Satildeo questotildees que apontam para dificuldades de formaccedilatildeo de leitores nas escolas Daiacute se deduz o motivo de a literatura estar em ldquoextinccedilatildeo na escolardquo os inuacutemeros obstaacuteculos para a formaccedilatildeo de leitores com estudantes que chegam aos cursos de Letras sem esse perfil e encontram uma universidade que se exime dessa responsabilidade

Os artigos seguintes trazem consideraccedilotildees sobre Estaacutegio que se desenvolvem a partir de reflexotildees sobre letramento em diferentes linhas

Em Estaacutegio supervisionado em Letras da UFGD mediando leituras e formando leitores Alexandra Santos Pinheiro afirma a necessidade de levar o graduando por meio do Estaacutegio Supervisionado a refletir sobre o curso de Letras o conhecimento adquirido a importacircncia equiparada de conteuacutedos e metodologias as proacuteprias restriccedilotildees e as do curso perante as condiccedilotildees que encontraraacute no campo de trabalho Discute as dificuldades dos graduandos na elaboraccedilatildeo de planos de aula para a regecircncia relativas agrave fundamentaccedilatildeo teoacuterica e ao baixo repertoacuterio de leituraso que restringe a seleccedilatildeo na montagem das atividades dos planos Abordando o letramento literaacuterio afirma a necessidade de defesa da literatura nas praacuteticas curriculares da funccedilatildeo do professor de estimular o encontro dos alunos com a literatura mesmo com a dificuldade de acesso aos livros e a disputa comas opccedilotildees tecnoloacutegicas e de laborar com as potencialidades dos textos a fim de que estes ganhem sentido e conhecimento garantindo a formaccedilatildeo do cidadatildeo

Em O Estaacutegio Supervisionado em Letras no vieacutes administrativo-pedagoacutegico Flaacutevia Girardo Botelho Borges procede agrave anaacutelise da formaccedilatildeo de professores integrando a perspectiva da administraccedilatildeo escolar agrave pedagoacutegica considerando inviaacutevel segmentar professor e contexto de atuaccedilatildeo Nesse senso advoga a necessidade de fomentar nas licenciaturas experiecircncias de graduandos com as circunstacircncias de seu campo profis-sional ponto em que ressalta o tema do artigo o Estaacutegio Supervisionado em Letras parametrizado no Projeto Pedagoacutegico em vigecircncia no Curso de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso e nas praacuteticas de letramento Aponta para as muacuteltiplas dificulda-des de realizaccedilatildeo do Estaacutegio que em conexatildeo com as poliacuteticas puacuteblicas com o curriacuteculo pedagoacutegico e com as condiccedilotildees apresentadas pela escola vatildeo compondo a ldquoidentidade docenterdquo numa das fundamentaccedilotildees apresentadas como ldquoum espaccedilo de construccedilatildeo de maneiras de ser e de estar na profissatildeordquo Mediante esse quadro a autora apresenta dire-cionamentos estabelecidos apoacutes discussatildeo com o Colegiado do curso para contribuir para a realizaccedilatildeo do Estaacutegio de maneira mais favoraacutevel ressaltando a importacircncia do trabalho coeso entre professores alunos coordenaccedilatildeo de curso e oacutergatildeo colegiado

Encerrando o dossiecirc em Estaacutegio supervisionado em literatura relato de experiecircncia na UTFPRndash Curitiba Mirelle Mussi Giri e Alice Atsuko Matsuda discorrem sobre o modo como se processa o trabalho com o Estaacutegio Supervisionado em Literatura na Universidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute no acircmbito do qual apresentam uma experiecircncia de observaccedilatildeo e regecircncia realizada por uma dupla de alunas no ensino

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baacutesico Natildeo obstante as dificuldades concluem que o modo de conduccedilatildeo do Estaacutegio integrando aspectos teoacutericos como estudos criacuteticos e reflexivos de textos e documentos oficiais que fundamentam e direcionam o ensino de literatura e praacuteticos promove a capacitaccedilatildeo discente e desenvolve as competecircncias e habilidades para o exerciacutecio da docecircncia realizando os objetivos propostos no Projeto Pedagoacutegico

Em acordo com a poliacutetica do perioacutedico Polifonia apresentamos aleacutem do dossiecirc a seccedilatildeo Outros lugares contendo artigos de temaacuteticas variadas

A seccedilatildeo se inicia com o artigo Interdiscursividade e intertextualidade a constitui-ccedilatildeo dos sentidos do dizer no universo autoral de Terezinha Maia Martincowski no qual ela discute com base em projeto realizado com graduandos do 1ordm ano de cursos dife-rentes reunidos em disciplina que trata da introduccedilatildeo ao conhecimento do campo da pesquisa em educaccedilatildeo o modo como se compotildee o universo autoral a partir da leitura interpretativa formaccedilatildeo de arquivos e produccedilatildeo escrita

Em ldquoMito biograacuteficordquo e ldquoficccedilatildeo familiarrdquo em Borges e Calvino Maria Elisa Rodrigues Moreira abre as generosas bibliotecas dos celebrados autores para refletir a partir des-tas e de uma genealogia afetiva sobre o processo de construccedilatildeo das personas autorais desses escritores

A operaccedilatildeo narrativa a partir do afeto eacute tambeacutem a tocircnica do artigo ldquoSobre o amor e a incapacidade de amarrdquo no qual Dionei Mathias reflete tomando por base o romance A Pianista de Elfriede Jelinek sobre o desejo de amor (em suas mais variadas formas) e a incapacidade de seu pleno desenvolvimento pelas personagens da escritora austriacuteaca

Por seu turno em Marcel ProustHonoreacute de Balzac a Meacutelange de uma Narratividade Aguinaldo Joseacute Gonccedilalves parte do posicionamento contraacuterio ao meacutetodo biograacutefico de Saint-Beuve afirmado por Proust que para sua argumentaccedilatildeo reflete sobre a relaccedilatildeo vidaobra em Honoreacute de Balzac e Gustave Flaubert para afirmar a importacircncia do pensamento criacutetico e inventivo da narrativa proustiana que coloca em relaccedilatildeo de proximidade a ficccedilatildeo e o ensaio

Encerra esta seccedilatildeo o artigo Acerca da ekphrasis numa passagem do Clarimundo de Joatildeo de Barros cena de pictoacuterico heroiacutesmo no qual Flaacutevio Antonio Fernandes Reis tanto apresenta ao leitor essa novela de cavalaria ainda pouco pesquisada quanto constroacutei aprofundado percurso pela conformaccedilatildeo de um pensamento a respeito da ekphrasis para entatildeo analisar como o episoacutedio da ldquoFloresta Encantadardquo se constitui com base nesse ldquocolocar diante dos olhos do leitorrdquo o cenaacuterio e as figuras centrais da obra

Na seccedilatildeo Entrevista Marinete Luzia Francisca de Souza conversa com o Prof Dr Joseacute Augusto Bernardes docente da Universidade de Coimbra acerca das condiccedilotildees do ensino de literatura no niacutevel baacutesico e superior em Portugal da evoluccedilatildeo histoacuterica da possibilidade de inserccedilatildeo de obras de outras culturas na matriz curricular e dos paracircmetros de obras antigas no ensino contemporacircneo entre outros temas

Desejamos a todos uma boa leitura

Ceacutelia Maria Domingues da Rocha ReisMaria Elisa Rodrigues Moreira

Organizadoras

DossiecircEstaacutegios Supervisionados em Literatura

Literatura nos Estaacutegios Supervisionados

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eISSN 22376844polifonia

Autor e leitor identidades do professor de Literatura em formaccedilatildeo ndash experiecircncias com o

estaacutegio supervisionado em LetrasAuthor and Reader Pre-service Literature Teacherrsquos Identities

ndash Experiences with Supervised Internship in the Letras Program

Autor y lector Identidades del profesor de Literatura en formacioacuten ndash experiencias con las praacutecticas supervisadas en Letras

Ana Creacutelia Penha Dias Universidade Federal do Rio de Janeiro

Andreacute Luiacutes Mouratildeo de UzecircdaColeacutegio de Aplicaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Maria Coelho Araripe de Paula GomesColeacutegio de Aplicaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo

No painel educacional brasileiro o estaacutegio supervisionado reflete questotildees de lacuna da formaccedilatildeo inicial e de antecipaccedilatildeo dos problemas da profissatildeo docente Neste cenaacuterio professores regentes de estaacutegio precisam atuar tambeacutem na formaccedilatildeo dos licenciandos e no trato com a literatura eacute necessaacuterio potencializar a dimensatildeo de leitor literaacuterio e de autor das praacuteticas pedagoacutegicas que seratildeo realizadas Este artigo traz reflexotildees acerca dessa experiecircncia com formaccedilatildeo de futuros professores de Literatura e propotildee alguns caminhos para pensar a relaccedilatildeo do licenciando com a leitura literaacuteria e com a ocupaccedilatildeo de um espaccedilo de autoria de seus trabalhos na escola Para isso seratildeo apresentados relatos de duas experiecircncias com estaacutegio supervisionado em Letras no Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio de JaneiroPalavras-chave Estaacutegio supervisionado ensino de Literatura formaccedilatildeo de professores

Abstract

In the Brazilian educational context the supervised internship reflects questions about the lack of initial education and the anticipation of problems related toa teacherrsquos job In this scenario internship supervisors must also act in the training of pre-service teachers and regarding literature they have to enhance the roles of teachers as literary readers and authors of pedagogical practices This article reflects on an experience in the education of future Literature teachers and proposes some ways to think about the relation among prospective teachers reading literature

Polifonia Cuiabaacute-MT v 24 n 36 p 13-27 jul-dez 2017

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and the appropriation of an authorship space at school To do so we will present reports of two experiences of supervised internship in the Letras Program at the Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio de Janeiro Keywords Supervised internship teaching literature teacherrsquos education

Resumen

En el panorama educativo brasilentildeo el periodo de praacutecticas supervisadas refleja cuestiones de vaciacuteos em la formacioacuten inicial y de anticipacioacuten de los problemas de la profesioacuten docente En este escenario los tutores de la supervisioacuten necesitan actuar tambieacuten em la formacioacuten de los alumnos del grado y respecto al tratamiento de la literatura es necesario potenciar la dimensioacuten del lector literario y del autor de las praacutecticas pedagoacutegicas que se realizaraacuten Este artiacuteculo refleja acerca de esa experiencia con la formacioacuten de futuros profesores de Literatura y propone algunos caminos para pensar la relacioacuten del alumno em formacioacuten com la lectura literaria y com la ocupacioacuten de um espacio de autoriacutea de sus trabajos em la escuela Asiacute se presenta la discusioacuten a traveacutes del relato de dos experiencias referentes a praacutecticas supervisadas em Letras realizadas em el Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo de la Universidade Federal do Rio de JaneiroPalabras clave Formacioacuten supervisada ensentildeanza de la literatura formacioacuten docente

Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensinaCora Coralina

Introduccedilatildeo

O estaacutegio supervisionado dos cursos de licenciatura vive muitas vezes a antecipaccedilatildeo da precarizaccedilatildeo com o qual a futuro profissional teraacute que lidar Agrave parte dessa realidade muito frequente precisamos refletir sobre quais seriam as bases para a realizaccedilatildeo de uma experiecircncia condizente com a necessidade da formaccedilatildeo inicial na aacuterea em situaccedilotildees reais de aprendizagem em que o diaacutelogo teoria-praacutetica se faccedila como discurso de construccedilatildeo de saberes entre a universidade e a escola entre licenciando professor regente e professor da Praacutetica de Ensino Isto eacute adentrar a escola durante o estaacutegio se por um lado potildee um grande desafio em relaccedilatildeo ao reconhecimento da realidade educacional brasileira em especial da rede puacuteblica de ensino por outro precisa oportunizar a participaccedilatildeo do licenciando em accedilotildees de construccedilatildeo coletiva que visem agrave mudanccedila do quadro de precariedade convocando neles no momento inicial de formaccedilatildeo atitude de sujeito diante da condiccedilatildeo de professor O cenaacuterio atual no Brasil exige uma formaccedilatildeo de luta pela manutenccedilatildeo do direito agrave educaccedilatildeo puacuteblica e essa necessidade eacute anterior a qualquer especificidade curricular paralelamente as questotildees curriculares demandam muito num tempo em que imposiccedilotildees de uniformizaccedilatildeo de curriacuteculo sem o necessaacuterio debate tambeacutem convocam o olhar para a formaccedilatildeo especiacutefica

Neste artigo pretendemos fazer uma reflexatildeo acerca da formaccedilatildeo em Letras do ponto de vista do estaacutegio supervisionado natildeo soacute do que significa construir com o licenciando

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em niacutevel macro uma praacutetica pedagoacutegica que seja ao mesmo tempo uma experiecircncia em que ele se forma como professor mas tambeacutem o lugar em que ele crie com os professores regentes e no diaacutelogo com estudantes novos saberes que propiciem transformaccedilotildees necessaacuterias agrave educaccedilatildeo baacutesica Em niacutevel mais especiacutefico procuramos entender como esse percurso na escola pode ser para o estudante da licenciatura tambeacutem um espaccedilo privilegiado de sua formaccedilatildeo como leitor literaacuterio

1 Professor de Liacutengua Portuguesa Apecircndice Literatura

Iniciando nossas reflexotildees buscaremos nos aproximar de alguns conceitos pertinentes agrave discussatildeo proposta Quando tratamos de curriacuteculo na realidade brasileira remetemos nossos esforccedilos constantemente ao rol de conteuacutedos a serem desenvolvidos em sala de aula e natildeo a um orientador poliacutetico-pedagoacutegico-filosoacutefico de nossas praacuteticas Pensando em conteuacutedo e formaccedilatildeo mais uma vez nos confrontamos com uma realidade que em geral natildeo eacute muito generosa nem em seus propoacutesitos nem nos resultados pensando curriacuteculo como lista de conteuacutedos essa realidade escolar costuma conceber formaccedilatildeo como transmissatildeo de conteuacutedos quase sempre de forma unilateral Um curriacuteculo organizado em disciplinas que segmentam o conhecimento e o concebem como gama conteudiacutestica colocaraacute a literatura em um lugar de apecircndice nas aulas de Liacutengua Portuguesa Antes de avanccedilar precisamos esclarecer que natildeo haacute aqui a defesa de separaccedilatildeo entre ensino de Liacutengua Portuguesa e Literatura no Ensino Fundamental Colocamos em discussatildeo o espaccedilo da literatura num curriacuteculo em que ela natildeo eacute disciplina numa concepccedilatildeo em que o curriacuteculo se organiza em eixos de aacutereas de conhecimento que se organiza em torno de conteuacutedo O lugar da literatura nessa loacutegica eacute o de algo supeacuterfluo ao qual o estudante pode ter acesso esporaacutedico e que pode servir a propoacutesitos linguiacutesticos apenas na maioria das praacuteticas

A escola brasileira quase sempre traz um retrato muito fragmentado da formaccedilatildeo literaacuteria e a formaccedilatildeo inicial ndash em Pedagogia para os professores das seacuteries iniciais e em Letras para os do Ensino Fundamental II e Ensino Meacutedio ndash natildeo tem conseguido estabelecer relaccedilotildees profundas entre os lugares de ser leitor e ser leitor especializado e esse descompasso se reflete na Educaccedilatildeo Baacutesica direcionando o professor para principalmente um dos dois caminhos reproduzir o discurso elitizado da Literatura como um conhecimento acessiacutevel a poucos ou repetir o ensino que recebeu na escola quando estudante realidade jaacute denunciada desde a deacutecada de 1970 por autores como Ligia Chiappini e Osman Lins dentre outros e revisitada mais contemporaneamente por Todorov e Compagnon

A manutenccedilatildeo na universidade de uma estrutura curricular que subtrai os espaccedilos de relaccedilatildeo mais aprofundada com a licenciatura em que a formaccedilatildeo para a docecircncia assume lugar desprivilegiado coloca ao encargo do estaacutegio supervisionado uma tarefa para aleacutem de orientaccedilatildeo de estaacutegio que eacute a de oferecer a bagagem de conteuacutedo com a qual o licenciando teraacute que lidar para planejar sua aula e colocaacute-la em praacutetica em situaccedilatildeo real de ensino-aprendizagem Portanto natildeo se trata apenas de pensar como precisa acontecer a transposiccedilatildeo didaacutetica mas muitas vezes de apresentar o conteuacutedo que compotildee o programa escolar

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Em realidades que se constituem como exceccedilatildeo no painel educacional brasileiro como as escolas federais e especialmente os Coleacutegios de Aplicaccedilatildeo os professores regentes dispotildeem de mais tempo para esse tipo de atuaccedilatildeo Entretanto essa natildeo eacute a realidade da maioria das escolas e na ausecircncia de amparo agraves lacunas da formaccedilatildeo os licenciandos podem tender agrave repeticcedilatildeo de praacuteticas que nem sempre se arvoram a uma formaccedilatildeo mais complexa e criacutetica dos estudantes da Educaccedilatildeo Baacutesica

Na reproduccedilatildeo de um ciclo em que se privilegia a metalinguagem e a memorizaccedilatildeo dos conteuacutedos para responder a instrumentos de avaliaccedilatildeo ndash quase sempre externa e de ampla abrangecircncia ndash encontramos a Literatura em encruzilhada de propoacutesitos de ensino diferentes mas complementares em sua pouca eficaacutecia para formar leitores um lugar do texto como mais um gecircnero do discurso a ser utilizado para fins de compreensatildeo em torno da forma ou como pretexto para praacuteticas de estudos linguiacutesticos Em ambos os casos a experiecircncia esteacutetica de diaacutelogo entre leitor e texto desaparece em detrimento de uma abordagem superficial O trabalho do estaacutegio supervisionado portanto estaacute tambeacutem no lugar de formaccedilatildeo inicial do licenciando e no caso do futuro professor de Literatura vem responder tambeacutem por leituras e reflexotildees que foram subtraiacutedas dele desde a escola baacutesica em que foi estudante

2 Consideraccedilotildees acerca da atuaccedilatildeo do professor-autor experiecircncias com a produccedilatildeo de material didaacutetico no Estaacutegio Supervisionado em Letras

Tecer consideraccedilotildees sobre a formaccedilatildeo inicial de professores junto ao estaacutegio supervisionado passa necessariamente pela reflexatildeo poliacutetica da praacutetica docente Educar como jaacute lembrava Paulo Freire (2011) implica tomar uma posiccedilatildeo com relaccedilatildeo ao mundo O educador portanto natildeo eacute ndash nem pode ser ndash um agente neutro mas compromissado com um determinado posicionamento poliacutetico Tomando como princiacutepio o engajamento com o mundo deve o professor em formaccedilatildeo assumir-se enquanto agente de transformaccedilatildeo social alinhavado a um discurso ideoloacutegico e que como tal precisa encontrar modos de agir que o coloquem na posiccedilatildeo autoral de suas proacuteprias praacuteticas saberes e fazeres docentes

Nesses termos partimos para a reflexatildeo da atuaccedilatildeo do professor-autor que entende a construccedilatildeo do seu curriacuteculo no cotidiano da sala de aula a partir da diversidade de saberes e experiecircncias compartilhadas pelos seus estudantes e na multiplicidade de realidades de mundo em que seus estudantes se encontram em vias de construccedilatildeo (OLIVEIRA 2013) Considerando-se a especificidade das disciplinas de Liacutengua Portuguesa e Literatura a centralidade do texto que dinamiza o andamento da aula nos confronta diariamente com a posiccedilatildeo da escolha seja de temaacuteticas de gecircneros textuais de autores de recortes os quais satildeo por noacutes selecionados para este ou aquele fim conforme a dinacircmica disposta em cada turma com seu perfil singular de alunado e as situaccedilotildees cotidianas proacuteprias da praacutetica pedagoacutegica

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O estaacutegio curricular supervisionado propicia para a maioria dos graduandos nas mais variadas aacutereas de licenciatura a primeira oportunidade de retornar agrave sala de aula natildeo mais na posiccedilatildeo de estudante Considere-se entretanto a particularidade deste lugar que ainda natildeo eacute o de professor Antes cabe-lhe a posiccedilatildeo ambivalente de um professor-estudante que com curiosidade observa desse entrelugar a postura dos alunos e do professor o que lhe possi-bilita vislumbrar a situaccedilatildeo da sala de aula de modo privilegiado tomando ora o ponto de vista do professor ora o do aluno Esta singularidade de percepccedilatildeo daacute-lhe a oportunidade de entender a dinacircmica da ldquododiscecircnciardquo (FREIRE 1996 p89) da maneira mais potente possiacutevel primeiro passo a ser destacado na construccedilatildeo da sua identidade como professor-autor

O conceito da ldquododiscecircnciardquo compreende a mutualidade da construccedilatildeo do conhecimento de maneira natildeo hieraacuterquica entre professores e estudantes em uma relaccedilatildeo horizontalizada no compartilhamento dos saberes Eacute ela a base para que o professor construa seu projeto didaacutetico metodoloacutegico e curricular de modo mais adequado agrave realidade de seu alunado Quando afirmamos que o curriacuteculo se constroacutei no cotidiano partimos justamente de uma concepccedilatildeo de educaccedilatildeo ldquododiscenterdquo para explorar as abordagens e estrateacutegias de ensino adequadas agrave realidade de nossas salas de aula Mediante o perfil de uma turma cujos alunos se tratam de maneira agressiva entre si a tiacutetulo de exemplo eacute papel do professor trabalhar o tema do respeito o que pode ser feito pela seleccedilatildeo de textos com os quais poderaacute mobilizar discussotildees com os estudantes ou ainda promover atividades em grupo que trabalhem o espiacuterito da colaboraccedilatildeo em vez da competitividade quando no caso de turmas que disputem entre si as melhores notas

Essa praacutetica pedagoacutegica soacute nos eacute possiacutevel quando temos a liberdade autoral de construirmos os nossos proacuteprios curriacuteculos cotidianamente em nossas aulas Natildeo quer isso dizer que o professor seleciona conteuacutedos curriculares a seu bel-prazer escolhendo os que lhe apetecem por gosto pessoal e excluindo aqueles que julga serem menos interessantes ou desgostosos para si ndash argumento a que defensores da uniformizaccedilatildeo do ensino por bases curriculares ou do polecircmico e inconstitucional projeto de lei ldquoEscola sem partidordquo recorrem para falsamente promover uma educaccedilatildeo ldquoequilibradardquo e ldquoneutrardquo para todos equalizando os ldquoniacuteveisrdquo de conhecimento entre os estudantes de uma mesma seacuterieano Na realidade o que se propotildee e defende aqui eacute a articulaccedilatildeo dos conteuacutedos curriculares agraves circunstacircncias impostas na espontaneidade do labor pedagoacutegico entendendo a formaccedilatildeo educacional de nossos estudantes para muito aleacutem do conteuacutedo curricular explorado pelas mais diferentes disciplinas

Na falsa defesa por um equiliacutebrio equacircnime do que eacute ensinado nas vaacuterias escolas puacuteblicas no cenaacuterio nacional (desconsiderando-se as diferenccedilas de realidade entre uma escola de zona rural ou urbana de realidades sociais diacutespares como de bairros nobres e de bairros de periferia ou ainda as particularidades de uma comunidade ribeirinha quilombola ou sertaneja) estrateacutegias de uniformizaccedilatildeo vecircm sendo aplicadas ao longo da histoacuteria da educaccedilatildeo brasileira Para aleacutem dos documentos oficiais que visam agrave isonomia e uniformidade do curriacuteculo tais como a necessaacuteria Lei de Diretrizes e Bases de 1996 os Paracircmetros Curriculares Nacionais de 1998 e a Base Nacional Curricular Comum que

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vem sendo (re)formulada nesse momento para aleacutem da nova proposta de Ensino Meacutedio imposta pelo atual governo federal destacamos para este trabalho os programas voltados para a produccedilatildeo e distribuiccedilatildeo de livros e materiais didaacuteticos enquanto limitadores de uma praacutetica efetivamente autoral na atividade profissional docente

Haacute que se problematizar o papel do livro didaacutetico como instrumento de mediaccedilatildeo da praacutetica pedagoacutegica Natildeo se trata de defendermos aqui a extinccedilatildeo do livro didaacutetico ou reduzirmos a sua importacircncia para a praacutetica das tarefas pedagoacutegicas mais comuns como a leitura de textos sistematizaccedilatildeo de conteuacutedos e de conceitos importantes e a realizaccedilatildeo de atividades e exerciacutecios de fixaccedilatildeo sobre os temas abordados em cada unidadecapiacutetulo Ao contraacuterio haacute que se valorizar a iniciativa de programas como o Programa Nacional do Livro Didaacutetico (PNLD) por exemplo pela accedilatildeo de distribuiccedilatildeo de livros didaacuteticos gratuitamente para as escolas puacuteblicas de todas as regiotildees do paiacutes que em muito contribuiu para a democratizaccedilatildeo da educaccedilatildeo puacuteblica No entanto eacute importante questionarmos sobre a centralidade ocupada pelo livro didaacutetico e materiais apostilados em nossas aulas cujo projeto curricular eacute pensado por terceiros retirando muitas vezes a autoria do trabalho docente a ser desenvolvido com nossas turmas

Tambeacutem natildeo podemos perder de vista a exploraccedilatildeo mercadoloacutegica movimentada pelo programa que mobiliza a maior parcela de lucro de grandes empresas do ramo editorial fazendo da educaccedilatildeo um negoacutecio rentaacutevel e a serviccedilo do capital Quando o interesse envolvido visa ao lucro e natildeo de fato ao aprimoramento do ensino e da aprendizagem dos estudantes da rede puacuteblica natildeo espanta que alguns desses materiais mesmo que passando pelo crivo e criteacuterio dos avaliadores do PNLD apresentem propostas pouco inovadoras para nossos estudantes

Quando a reduccedilatildeo de nossa atuaccedilatildeo docente se pauta centralmente pela aplicaccedilatildeo dos materiais didaacuteticos distribuiacutedos pelos programas governamentais de educaccedilatildeo estamos diante de grande perigo Programas de ensino por apostilamento como o promovido pela Secretaria Municipal do Rio de Janeiro reduzem o trabalho docente ao cumprimento das unidades do material distribuiacutedo e sua execuccedilatildeo ou natildeo eacute aferida por avaliaccedilotildees elaboradas e aplicadas pela Secretaria bimestralmente O mesmo era verificado com as afericcedilotildees promovidas ateacute 2015 pela Secretaria Estadual de Educaccedilatildeo do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ) como o Sistema de Avaliaccedilatildeo do Estado do Rio de Janeiro (SAERJ) no mesmo objetivo de monitoraccedilatildeo do cumprimento ou natildeo dos conteuacutedos curriculares

Para aleacutem disso natildeo eacute possiacutevel dissociar a promoccedilatildeo de tais metodologias de ensino agrave baixa remuneraccedilatildeo profissional dos docentes que com frequecircncia veem-se obrigados a acumular mais de uma matriacutecula no serviccedilo puacuteblico muitas vezes somada(s) agrave contrataccedilatildeo na rede privada de ensino em que a extensa carga horaacuteria reduz o tempo laboral para a organizaccedilatildeo e o planejamento das atividades Na busca por um padratildeo salarial razoaacutevel em detrimento de uma carga horaacuteria tatildeo extensa recorrer a tais materiais apostilados prontos acaba sendo visto como um facilitador do trabalho jaacute tatildeo precarizado

Incorre em grande risco o profissional que acaba por se adequar a tal situaccedilatildeo sem pensar em alternativas a essa loacutegica predominante Vecirc-se na realidade apartado do

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caraacuteter mais intelectual de nossa atividade docente uma vez que natildeo planeja de forma autocircnoma suas proacuteprias aulas natildeo seleciona os textos com os quais deseja trabalhar e tampouco mobiliza os exerciacutecios de maneira reflexiva e dirigida agraves questotildees pedagoacutegicas exigidas pelas especificidades de seu alunado Em outras palavras o docente deixa de atuar como um professor-autor e passa agrave condiccedilatildeo de professor-instrutor tutor de um trabalho pensado por terceiros e apartado da realidade cotidiana de sua sala de aula Diferentemente do que pregam os defensores do PL Escola sem Partido (PL 867 2015) o professor que se alinha a este projeto educacional cumprindo rigorosamente os requisitos postulados por programas educacionais como os citados anteriormente (pelo que muitas vezes satildeo premiados) natildeo eacute um profissional ldquoneutrordquo que meramente cumpre com sua tarefa de transmissor de conhecimento mas trabalha agrave disposiccedilatildeo da loacutegica dominante da meritocracia e do capital

Essas consideraccedilotildees foram pensadas e discutidas com estudantes da licenciatura em Letras do oitavo periacuteodo que foram alocados no Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da UFRJ para a realizaccedilatildeo de seu estaacutegio curricular supervisionado acompanhando turmas de seacutetimo ano do Ensino Fundamental nos anos de 2013 2014 e 2015 Aleacutem de acompanharem as turmas na observaccedilatildeo os graduandos participaram ativamente na construccedilatildeo e planejamento das aulas com encontros de orientaccedilatildeo semanal quando o material didaacutetico elaborado pelo professor orientador a ser aplicado agraves turmas era compartilhado com os estagiaacuterios Nesses encontros de orientaccedilatildeo guiados pelas discussotildees de Chiappini (2005) Lajolo (1996) e Marcuschi (2008) discutimos a respeito da praacutetica docente autoral de diferentes metodologias e recursos didaacuteticos a serem explorados em sala de aula aleacutem da praacutetica de produccedilatildeo de exerciacutecios explorando habilidades e competecircncias (RUEacute 2009)

Dessas trocas de experiecircncias o envolvimento com a praacutetica de produccedilatildeo de material didaacutetico ganhou forccedila e interesse dos estagiaacuterios o que acabou por mobilizar a criaccedilatildeo do projeto de ensino ldquoFichas complementares ndash o que eacute para que serve como se fazrdquo pequena oficina de produccedilatildeo de material didaacutetico complementar e de reforccedilo escolar para os estudantes O projeto ainda embrionaacuterio no ano de 2013 iniciou-se com a coparticipaccedilatildeo dos licenciandos que contribuiacuteram com textos e exerciacutecios aplicados em sala e posteriormente por eles corrigidos em aula Para tanto as experiecircncias leitoras de cada estagiaacuterio foram compartilhadas em nossos encontros de orientaccedilatildeo criando entre o grupo uma coletacircnea de textos literaacuterios e natildeo literaacuterios que dialogavam com o programa e poderiam ser aplicados agraves turmas Com base na seleccedilatildeo de algumas das leituras trazidas os licenciandos exploraram aspectos de anaacutelise importantes para serem alcanccedilados por estudantes e ensaiaram alguns exerciacutecios de interpretaccedilatildeo Aleacutem disso articularam os conteuacutedos curriculares de literatura gramaacutetica e produccedilatildeo textual previstos no programa curricular do seriado elaborado pelo Setor de Liacutengua Portuguesa do CAp UFRJ aos materiais que produziram sob supervisatildeo do professor orientador

A criaccedilatildeo do projeto ainda em andamento veio em virtude da grande quantidade de materiais e exerciacutecios de altiacutessima qualidade que foram elaborados pelos licenciandos

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mas que natildeo poderiam ser todos aplicados nas aulas por natildeo haver tempo haacutebil para tanto no decorrer do ano letivo Daiacute surgiu a ideia de criaccedilatildeo de uma pequena oficina de produccedilatildeo de material didaacutetico agrave distacircncia Em uma pasta de compartilhamento online os estudantes da licenciatura compartilhavam diferentes textos entre si sobre os quais elaboravam exerciacutecios e questotildees e contribuiacuteam com sugestotildees para melhor aprimoramento Tambeacutem agrave distacircncia o professor supervisionava o trabalho com sugestotildees e criacuteticas e indicava quando da aplicabilidade dos exerciacutecios aos estudantes O problema com a falta de tempo para teste de aplicabilidade dos materiais foi resolvido com a criaccedilatildeo de pastas com exerciacutecios ldquoextrasrdquo que poderiam ser resolvidos em casa pelos estudantes como fixaccedilatildeo e reforccedilo escolar posteriormente corrigidos pelos autores de cada ficha

Esse material denominado como ldquofichas complementaresrdquo foi disposto em pastas coloridas deixadas na sala de aula atualizadas semanalmente e exploradas pelos alunos da turma na descoberta de novos textos e exerciacutecios Muitas delas inclusive eram pensadas diretamente para alguns alunos especiacuteficos que apresentavam dificuldades de aprendizagem no campo da leitura ou da escrita por exemplo ndash o que demonstrou a percepccedilatildeo e sensibilidade dos professores em formaccedilatildeo para a importacircncia de uma praacutetica docente autoral Aleacutem disso a escolha dos textos e dos temas abordados eram associados diretamente a situaccedilotildees vividas no cotidiano do trabalho pedagoacutegico para o que muito contribuiu a praacutetica da produccedilatildeo textual explorada pelas fichas que os levava a refletir criticamente sobre temas que consideraacutevamos importantes de serem discutidos Como forma de estimular o interesse para recorrerem agraves pastas e resolverem os exerciacutecios pontos extras somados agraves avaliaccedilotildees foram dados ndash o que contribuiacutea consequentemente para a preparaccedilatildeo e estudos para as provas e testes Com significativo desempenho dos estudantes nas avaliaccedilotildees em decorrecircncia do preparo os pontos ldquobocircnusrdquo logo acabaram se mostrando desnecessaacuterios

Ao final do estaacutegio curricular quando os licenciandos assumem a regecircncia da turma por dois tempos seguidos os resultados alcanccedilaram niacuteveis de satisfaccedilatildeo muito acima do desejado Natildeo soacute criaram seus planos de aula de forma totalmente autoral com a produccedilatildeo de seus proacuteprios materiais e incrementando-os com recursos didaacuteticos diversificados como projeccedilatildeo de slides viacutedeos muacutesicas etc como ainda tinham um grande entrosamento com os estudantes que ao longo do ano letivo receberam o suporte e a atenccedilatildeo dos estagiaacuterios por meio da resoluccedilatildeo e correccedilatildeo atenciosa das fichas complementares desenvolvidas para eles O projeto aprimorado nos anos seguintes ganhou grande repercussatildeo e inclusive contou com a apresentaccedilatildeo de relatos de experiecircncia por parte do professor orientador e dos licenciandos em eventos acadecircmicos como o Encontro Nacional de Ensino e Aprendizagem de Liacutengua e Literatura (ENEALL-UFRJ) em novembro de 2014 e o Congresso Nacional de Ensino de Liacutengua Portuguesa (CONELP-UERJ) em julho de 2016 e seguiraacute contribuindo para a atividade autoral dos professores em formaccedilatildeo inicial em sintonia com uma verdadeira praacutetica educativa emancipatoacuteria

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3 A dimensatildeo do professor leitor experiecircncias com a leitura literaacuteria no Estaacutegio Supervisionado em Letras

A perspectiva autoral defendida neste artigo como fundamento do qual emergem os fios que tecem a identidade docente caminho plural e sempre inacabado pode-se desdobrar na dimensatildeo do professor e da professora autores de seus proacuteprios materiais de trabalho como jaacute visto bem como se apresenta numa outra dimensatildeo a princiacutepio oacutebvia quando pensamos no futuro docente de liacutengua portuguesa e literatura mas que na praacutetica perde o caraacuteter de obviedade para se materializar numa questatildeo complexa a dimensatildeo do professor leitor

A escola entendida aqui como lugar de feitura e partilha de saberes constroacutei-se por vezes num movimento contraacuterio de silenciamento dos sujeitos imediatamente envolvidos no processo de ensino-aprendizagem o estudante visto e avaliado muitas vezes pela falta e natildeo pela sua potecircncia e o proacuteprio professor limitado a um sistema que natildeo lhe permite a elaboraccedilatildeo da autoria e da percepccedilatildeo de si no exerciacutecio de seu ofiacutecio Este sistema no entanto natildeo se encerra na escola baacutesica mas prossegue (ou se inicia) no ensino superior cuja predominacircncia de uma visatildeo hieraacuterquica na construccedilatildeo dos saberes pela via de um discurso da autoridade gera profundos abismos na relaccedilatildeo do estudante de Letras com a literatura A universidade fundamentalmente um lugar de experimentaccedilatildeo e pesquisa natildeo raro termina por privilegiar a reproduccedilatildeo de teorias e reflexotildees jaacute referendadas no meio acadecircmico abrindo de fato poucas brechas para a construccedilatildeo de um saber emancipatoacuterio e criativo Em especial no caso do estudante de Letras em seu contato com o texto literaacuterio o processo de silenciamento eacute reforccedilado por essas ldquovozesrdquo que falam sobre o texto mas que pouco contribuem para que seja ouvida a voz do leitor Apropriando-se do par ldquoexperiecircnciasentidordquo defendido por Larrosa (2002) haacute nas instituiccedilotildees formais de ensino pouco espaccedilo para o saber da experiecircncia entendida aqui como um saber que me passa (Cf LARROSA 2002) ou seja algo do mundo que atravessa o sujeito e o afeta modificando-o e modificando tambeacutem o mundo natildeo apenas pelo racional mas pelo sensiacutevel Desse modo estudantes formados por uma escola baacutesica que silencia ingressam na universidade para se formarem docentes numa instituiccedilatildeo que tambeacutem tem como praacutetica o silenciamento atraveacutes de um estiacutemulo agrave leitura de admiraccedilatildeo que atende ao aspecto racional poreacutem fragiliza a dimensatildeo do afeto tatildeo cara no processo de formaccedilatildeo do leitor literaacuterio

Diante dessa pobreza da experiecircncia alguns desafios satildeo colocados para o licenciando de Letras no momento em que se inicia o estaacutegio supervisionado Eacute muito comum que logo nos primeiros encontros com o professor regente o licenciando manifeste o desejo por realizar sua regecircncia em algum conteuacutedo de liacutengua portuguesa afirmando natildeo ter muito contato ou ateacute mesmo apreccedilo pela literatura Ora como trabalhar o texto literaacuterio com estudantes do Ensino Fundamental II e Ensino Meacutedio na perspectiva da formaccedilatildeo do leitor sem ter o futuro docente de fato experimentado essa dimensatildeo subjetiva do contato com o texto Como transgredir a leitura de admiraccedilatildeo leitura de comentaacuterios para a leitura literaacuteria como experiecircncia ldquoA confrontaccedilatildeo do leitor consigo mesmo eacute uma

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das dimensotildees maiores da leiturardquo afirma Jouve (2002 p 61) e a escassez deste confronto gera leitores pouco iacutentimos do texto literaacuterio e de si afinal ldquoa atitude de se perceber a si mesmo num processo do qual participa eacute um momento central da experiecircncia esteacuteticardquo (ISER 1996 apud JOUVE 2002 p 61) A literatura portanto contribui para um saber sobre si a partir do outro e eacute justamente no retorno agrave escola agora na condiccedilatildeo de licenciandos que ao refletirem sobre seu fazer docente iratildeo experimentar o confronto

A orientaccedilatildeo eacute um dos espaccedilos mais importantes do processo de estaacutegio supervisionado Aleacutem de ser institucionalmente o momento em que se vai refletir e discutir sobre as vivecircncias do licenciando nas aulas elaborar tarefas materiais preparar e analisar as coparticipaccedilotildees ela acaba por tornar-se muitas vezes um espaccedilo de troca de experiecircncias em que as lacunas e os anseios do futuro professor vecircm agrave tona quando deparado com a dimensatildeo praacutetica de sua profissatildeo A dificuldade de realizar a transposiccedilatildeo didaacutetica o pouco acuacutemulo de reflexatildeo sobre a identidade docente e as proacuteprias lacunas da formaccedilatildeo se revelam no estaacutegio cabendo ao professor regente a sensibilidade de perceber as demandas singulares de cada grupo de estagiaacuterios ampliando as accedilotildees a serem elaboradas na orientaccedilatildeo

Neste percurso foi possiacutevel perceber que dentre todas as lacunas possiacuteveis na formaccedilatildeo do estudante de Letras a do leitor literaacuterio era uma das mais recorrentes Ausecircncia de leituras-chave fragilidades na interpretaccedilatildeo e anaacutelise dos textos dificuldades ateacute mesmo na leitura oral de contos e poemas enfim todas estas precariedades geraram novas demandas para o momento da orientaccedilatildeo que passou a ser tambeacutem um lugar da experimentaccedilatildeo literaacuteria na tentativa de romper o silecircncio desses futuros professores diante da literatura Sendo assim iniciamos uma rotina de leitura e interpretaccedilatildeo partilhada dos textos literaacuterios que comporiam as aulas O objetivo era dar contorno agrave identidade do professor-leitor em suas variadas perspectivas o que lecirc para si o que lecirc para o aluno o que lecirc com o aluno

O relato selecionado para este artigo diz respeito ao trabalho realizado ao longo de trecircs anos em turmas do 9ordm ano do EF II do CAp UFRJ O Coleacutegio de aplicaccedilatildeo da UFRJ possui em seu curriacuteculo do segundo segmento do fundamental um trabalho com Literatura na perspectiva da formaccedilatildeo do leitor literaacuterio O trabalho eacute prioritariamente desenvolvido a partir de temaacuteticas divididas e pensadas para cada seacuterie cabendo ao 9deg ano dentre outros temas o trabalho com o fantaacutestico Para isso optamos por elaborar coletivamente uma coletacircnea de contos composta por sugestotildees do professor em conjunto com as leituras que os proacuteprios licenciandos traziam de sua bagagem A etapa de seleccedilatildeo de textos para uma turma jaacute trouxe dificuldades para os estagiaacuterios na medida em que muitos natildeo se sentiam seguros em suas escolhas A seleccedilatildeo de textos natildeo eacute neutra assim como a docecircncia natildeo o eacute Ela implica tomada de posiccedilatildeo atitude poliacutetica diante do curriacuteculo diante do mundo Mas para que essas escolhas possam ser feitas eacute preciso que o professor se sinta rico em experiecircncias de leitura A fim de colaborar com este processo cada conto trazido era lido de forma partilhada na orientaccedilatildeo e cabia ao licenciando responsaacutevel a leitura em voz alta do texto Assim aleacutem de haver uma troca e um amadurecimento a respeito

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dos criteacuterios que nos fariam escolher ou natildeo aquele texto para aquela determinada seacuterie era possiacutevel experimentar uma atividade ainda pouco explorada no cotidiano das aulas a leitura oral o lugar do professor que lecirc para seus alunos e que atraveacutes de sua leitura traz agrave tona imagens e constroacutei pontes entre o estudante e o texto

Finalizada a coletacircnea era preciso que os licenciados elaborassem um plano de aula a partir de um dos contos selecionados Surgem daiacute novas dificuldades que esbarram tanto em um desconhecimento ndash totalmente esperado ndash a respeito do que seria um plano de aula quanto ndash e daiacute voltamos para as lacunas da formaccedilatildeo ndash em uma ignoracircncia frente aos saberes a serem explorados diante de um texto literaacuterio A dificuldade em compreender na praacutetica a literatura como uma forma autocircnoma de conhecimento sobre o mundo ndash ldquoA literatura assume muitos saberesrdquo jaacute dizia Barthes (2007 p 17) ndash dotada de suas proacuteprias leis gerava planos de trabalho que subjugavam o texto literaacuterio a interpretaccedilotildees psicoloacutegicas socioloacutegicas etc ou ateacute mesmo a leituras que davam grande ecircnfase agrave biografia do autor e ao periacuteodo histoacuterico da obra Em outras palavras a dimensatildeo subjetiva e o trabalho com o simboacutelico se perdiam em meio a um dizer sobre o texto que pouco colabora para o engajamento e o viacutenculo afetivo do leitor Assim o processo de refeitura desses planos de aula envolveu o (re)encontro do professor-leitor com aquele texto experimentando ele proacuteprio um atravessamento pelo texto literaacuterio nas suas diferentes camadas mas a princiacutepio sem qualquer premissa teoacuterica Importante ressaltar que natildeo se estaacute aqui abrindo matildeo do professor como um leitor especializado poreacutem estamos defendendo que pensar as aulas de literatura como um lugar de encontro e promoccedilatildeo de experiecircncias esteacuteticas com o texto significa que todos os envolvidos no processo (professor-texto-aluno) devem se sentir protagonistas da experiecircncia

Pensar resultados em um processo de formaccedilatildeo que como dissemos no iniacutecio estaacute sempre por se fazer pode parecer incoerente no entanto a partilha de um relato de trabalho demanda de noacutes capacidade de amarrar certas pontas traccedilar reflexotildees que contribuam para o pensamento sobre nosso objeto de pesquisa ou seja as identidades do professor de liacutengua e literatura Neste sentido eacute preciso afirmar os ecircxitos que o trabalho cotidiano com a leitura literaacuteria gerou na formaccedilatildeo dos futuros professores Licenciandos que fariam sua regecircncia em algum toacutepico de Liacutengua Portuguesa por a princiacutepio sentirem-se mais confortaacuteveis com o conteuacutedo engajaram-se de tal forma no trabalho com a literatura que trocaram seus temas de aula Assim as turmas de 9ordm ano do EF II ao longo desses trecircs anos encontraram-se com Mia Couto Edgar Allan Poe Julio Cortaacutezar Murilo Rubiatildeo Lygia Fagundes Telles entre tantos outros Presenciar licenciandos desejosos de ler com seus alunos mais seguros no trato com o texto literaacuterio eacute realizar o direito agrave literatura defendido por Candido (2011) em sua dimensatildeo do direito humano ao conhecimento e agrave produccedilatildeo artiacutestica do homem ao longo do tempo Esse direito para se estender ao aluno precisa chegar de fato ao professor e para isso na contramatildeo da desumanizaccedilatildeo do trabalho pedagoacutegico eacute preciso forjar espaccedilos para a experiecircncia esteacutetica que ensina nas brechas e promove possibilidades de uma relaccedilatildeo criativa e emancipatoacuteria com o saber

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Consideraccedilotildees finais

A epiacutegrafe que abriu esse artigo de Cora Coralina (2007 p 27) tira do lugar comum a oposiccedilatildeo entre os pares ldquotransferir x ensinarrdquo e ldquosaber x aprenderrdquo Paulo Freire (2011 p92) ao referir-se agrave praacutetica de uma ldquoeducaccedilatildeo bancaacuteriardquo pontuava muito bem essa distinccedilatildeo de modo que o conhecimento natildeo se faz pela transferecircncia e acuacutemulo de saberes mas pela experiecircncia subjetiva do ensinar e aprender No poema de Cora Coralina essa dimensatildeo eacute abarcada poreacutem em uma perspectiva natildeo dialeacutetica o que transfere o que sabe eacute tatildeo feliz quanto o que aprende o que ensina Contudo os saberes transferidos de que trata em seu poema natildeo estatildeo na loacutegica da relaccedilatildeo ensino-aprendizagem mas no que eacute transmitido de geraccedilatildeo para geraccedilatildeo pela cultura oral e pela praacutetica natildeo pela teoria Estaria proacuteximo do que Manoel de Barros chamou de saber por ldquoignoratildeccedilasrdquo (2016 p 5) o que se sabe sem nunca ter precisado aprender o que nos eacute instintivo por natureza Jaacute na relaccedilatildeo de ensino-aprendizagem estaacute em cena a praacutetica da dodiscecircncia em uma relaccedilatildeo horizontal tanto aprende o que ensina quanto ensina o que aprende Essa troca de experiecircncias que eacute pura subjetividade subverte a ordem da verticalidade entre um detentor do saber que transfere para o ignorante aquilo que este deve conhecer

O momento da praacutetica de ensino e do estaacutegio supervisionado abarca essa dupla relaccedilatildeo entre ldquotransferir o que se saberdquo e ldquoaprender o que se ensinardquo dentro da perspectiva abordada por Cora Coralina isto eacute de forma natildeo dialeacutetica Natildeo se ldquoensinardquo ou se ldquoaprenderdquo a ser professor mas muito se aprende ensinando que certos saberes satildeo pela praacutetica e pela troca de experiecircncia transpassados trocados e desenvolvidos pelo proacuteprio fazer pedagoacutegico in loco Assim nesse trabalho tentamos abarcar justamente essas duas dimensotildees ao focarmos na construccedilatildeo de identidades de professores autores e leitores durante o estaacutegio docente de estudantes da licenciatura em Letras da UFRJ

A questatildeo curricular foi ponto de partida de nossa discussatildeo para entender o contexto de formaccedilatildeo docente inicial os curriacuteculos dos cursos de licenciatura em Letras estatildeo apartados da realidade dos curriacuteculos de Liacutengua Portuguesa e Literatura no Ensino Baacutesico encontrados na sala de aula e em poucos momentos a pesquisa nas aacutereas de Liacutengua e Literatura convergem para se repensar abordagens e estrateacutegias de transposiccedilatildeo didaacutetica do que haacute de mais avanccedilado nas discussotildees acadecircmicas para dentro da escola Aleacutem disso a cisatildeo entre ldquoliacutengua x literaturardquo no curriacuteculo acaba por segmentar o conhecimento em toacutepicos curriculares a serem cumpridos por cada aacuterea sem entender que o diaacutelogo entre ambas eacute fundamental para a compreensatildeo de um ensino de liacutengua e literatura natildeo utilitaacuterio que natildeo esteja apenas a serviccedilo da ldquoboa escritardquo ou da ldquoboa leiturardquo mas da formaccedilatildeo de um aluno leitor e autor criacutetico e reflexivo sobre a sua linguagem e sua atuaccedilatildeo social e referencial no mundo Nessa linha o ensino literaacuterio eacute primordial posto que propicia formas de ler e imaginar o mundo em muacuteltiplas potencialidades Ocorre contudo o oposto a literatura vista como mais um gecircnero textual a ser reconhecido pelo ldquobom leitorrdquo que natildeo se trata do ldquoleitor de mundordquo de que fala Freire (2011 p95) entra como apecircndice nas aulas de Liacutengua Portuguesa

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Contribuem de forma significativa para a imutabilidade dessa realidade as condiccedilotildees de trabalho do professor do Ensino Baacutesico com carga horaacuteria em sala de aula exaustiva sem tempo e estiacutemulo para a atualizaccedilatildeo e a formaccedilatildeo continuada sem tempo para a preparaccedilatildeo de suas aulas e produccedilatildeo de seu proacuteprio material didaacutetico vecirc-se enredado agrave obrigatoriedade de cumprimento de uma base curricular comum que vai de encontro a uma praacutetica pedagoacutegica emancipatoacuteria excluindo-se as diversidades de realidades e contextos e a construccedilatildeo de um curriacuteculo que se decirc no cotidiano Assim eacute retirada do professor toda a sua dimensatildeo intelectual e potencialmente criativa posto que se reduz agrave figura de instrutor mediador e reprodutor de um curriacuteculo pensado por terceiros ao aplicar manuais apostilados e livros didaacuteticos reducionistas de nosso trabalho

Por fim haacute que se pensar na dimensatildeo do professor-autor perpassada pela dimensatildeo do professor-leitor que assume a subjetividade de seu repertoacuterio de leituras sem contudo abrir matildeo de seu lugar de leitor especialista e de professor que escuta as leituras de seus estudantes de modo a amparar com a criacutetica necessaacuteria e ampliar o repertoacuterio de sentidos do texto literaacuterio lido em sala de aula

Referecircncias

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BARTHES R Aula Traduccedilatildeo e posfaacutecio de Leila Perrone-Moiseacutes Satildeo Paulo Cultrix 2007

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CHIAPPINI L Reinvenccedilatildeo da catedral liacutengua literatura comunicaccedilatildeo ndash novas tecnologias e poliacuteticas de ensino Satildeo Paulo Cortez Editora 2005

COMPAGNON Antoine Literatura para quecirc Belo Horizonte Editora UFMG 2009

CORALINA Cora Vinteacutem de cobre meias confissotildees de Aninha 9ed Satildeo Paulo Global 2007

DALVI M A REZENDE N JOVER-FALEIROS R (Org) Leitura de literatura na escola Satildeo Paulo Paraacutebola 2013

FREIRE P A importacircncia do ato de ler em trecircs artigos que se completam Satildeo Paulo Cortez Editora 2011

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LARROSA J Notas sobre a experiecircncia e o saber de experiecircncia Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 19 p 20-28 2002

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LINS Osman Do ideal e da gloacuteria problemas inculturais brasileiros Satildeo Paulo Summus 1977

MARCUSCHI L A Produccedilatildeo textual anaacutelise de gecircneros e compreensatildeo Satildeo Paulo Paraacutebola Editorial 2008

OLIVEIRA I B de Curriacuteculo e processos de aprendizagem ensino Poliacuteticas praacuteticas Educacionais Cotidianas Curriacuteculo sem Fronteiras n 3 p 375-391 2013

PARAcircMETROS CURRICULARES NACIONAIS Ensino Meacutedio ndash MEC 2000

PARAcircMETROS CURRICULARES NACIONAIS liacutengua portuguesa ndash terceiro e quarto ciclos do ensino fundamentalSecretaria de Educaccedilatildeo Fundamental Brasiacutelia MEC SEF 1998

PL 8672015 Inclui entre as Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional o ldquoPrograma Escola sem Partidordquo httpwwwcamaragovbrsilegintegras1317168pdf Capturado em 11082017

RUEacute J As competecircncias na sala de aula a atividade como eixo do seu desenvolvimento In ARANTES Valeacuteria Amorim (Org) Educaccedilatildeo e competecircncias pontos e contrapontos Satildeo Paulo Summus Editorial 2009 p 52-57

TODOROV Tzvetan A literatura em perigo Rio de Janeiro Difel 2010

Recebido em 30 de abril de 2017

Aceito em 27 de agosto de 2017

Ana Creacutelia Penha Dias

Possui graduaccedilatildeo em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1994) especializaccedilatildeo em literatura infantil e juvenil (1999) mestrado (2003) e doutorado (2008) em Letras (Letras Vernaacuteculas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Atualmente eacute professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro Tem experiecircncia na aacuterea de Letras com ecircnfase em Literatura Brasileira atuando principalmente nos seguintes temas literatura infantil literatura brasileira literatura e ensino e formaccedilatildeo do leitor literaacuterio Eacute liacuteder do grupo de pesquisa Literatura e Educaccedilatildeo literaacuteria (dgpcnpqbrdgpespelhogrupo5906903233650588) e membro do GT da Anpoll Literatura e Ensino anacreliagmailcom

Andreacute Luiacutes Mouratildeo de Uzecircda

Bacharel e licenciado em Letras com habilitaccedilatildeo em Liacutengua Portuguesa e suas respectivas literaturas pela UFRJ bacharel em Museologia pela UNIRIO Mestre em Ciecircncia da Literatura pela UFRJ Eacute professor do Ensino Baacutesico Teacutecnico e Tecnoloacutegico do Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da UFRJ Pesquisador do grupo de pesquisa Literatura e Educaccedilatildeo Literaacuteria (dgpcnpqbrdgpespelhogrupo5906903233650588) coordenador do projeto de pesquisa Medecircra ndash Mediaccedilotildees do Literaacuterio e integrante do Nuacutecleo Interdisciplinar de Estudos Carnavalescos (NIEC) Foi membro do corpo editorial da Revista Foacuterum de Literatura Brasileira Contemporacircnea junto ao Departamento de Letras Vernaacuteculas da Faculdade de Letras ndash UFRJ e do corpo editorial do perioacutedico Revista Eletrocircnica Jovem Museologia da Escola de Museologia da UNIRIO andreuzedagmailcom

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Maria Coelho Araripe de Paula Gomes

Mestre em Literatura Brasileira pela UFRJ (2015) possui especializaccedilatildeo em Literatura Infanto-Juvenil (2010) e graduaccedilatildeo em Letras pela Universidade Federal Fluminense (2006) onde atuou na aacuterea de Literatura Brasileira Moderna e Literatura Portuguesa Iniciou os estudos de Artes Cecircnicas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (2017) Pertence ao quadro efetivo docente do Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da UFRJ no setor de Liacutengua Portuguesa e desenvolve trabalho artiacutestico como atriz e contadora de histoacuterias desde 2008 com o Grupo Mosaicos ndash Teatro Muacutesica Histoacuterias Integra o grupo de pesquisa Literatura e Educaccedilatildeo Literaacuteria (dgpcnpqbrdgpespelhogrupo5906903233650588) umamaria84gmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Leituras de ldquoA flor e a naacuteuseardquo de Carlos Drummond de Andrade em praacuteticas de Estaacutegio

Supervisionado em Liacutengua Portuguesa Readings of ldquoThe Flower and the Nauseardquo by Carlos

Drummond de Andrade in an Internship in Portuguese Language Teaching

Lecturas de ldquoA flor e a naacuteusearaquo de Carlos Drummond de Andradeen praacutecticas de Pasantiacutea de Intervencioacuten en Lengua

Portuguesa

Diogo dos Santos SouzaUniversidade Federal de AlagoasInstituto Federal de Alagoas

Eliana Kefalaacutes de OliveiraUniversidade Federal de Alagoas

ResumoO contato entre o leitor e palavra literaacuteria eacute uma experiecircncia complexa que no contexto da sala de aula demanda do professor o planejamento de estrateacutegias de leitura e preparo de abordagens do texto que o transformem num objeto significativo para o estudante O objetivo do presente artigo eacute apresentar o relato de uma oficina de leitura sobre o poema ldquoA flor e a naacuteuseardquo de Carlos Drummond de Andrade realizada por alunos da disciplina Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa 2 que teve como foco a teoria e praacutetica do ensino de Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas Atraveacutes da elaboraccedilatildeo e execuccedilatildeo da oficina os estudantes estagiaacuterios notaram que as ldquoinquietudesrdquo do metapoema escolhido poderiam se transformar em caminhos de produccedilatildeo de sentidos variados tornando a sala de aula um lugar tambeacutem de encontro com o inesperado Isto posto concluiu-se que na exploraccedilatildeo da leitura literaacuteria as lacunas os vazios e as indeterminaccedilotildees geradas pelo poema tornam-se elementos que poderiam compor um convite ao leitor a jogar com o texto e com os seus modos de leitura Palavras-chave Poesia Ensino Carlos Drummond

AbstractThe contact between the reader and the literary word is a complex experience that in the context of the classroom requires that teachers plan reading strategies and prepare approaches to the text that make it a significant object for students The purpose of this article is to present the report of a reading class on the poem ldquoThe flower and the nauseardquo by Carlos Drummond de Andrade carried out by students of the Internship in Portuguese Language 2 course at the

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Faculty of Arts of the Federal University of Alagoas The focus of this course is theory and practice of teaching Literature Throughout the preparation and development of the class the students noticed that the ldquodisquietnessesrdquo of the chosen metapoem could lead to varied meanings making the classroom a place where the unexpected is met Therefore in the exploration of literary reading the gaps voids and indeterminacies generated by the poem become elements that can compose an invitation for the reader to play with the text and with its modes of readingKey-words Poetry Teaching Carlos Drummond

ResumenEl contacto entre el lector y la palabra literaria es una experiencia compleja que en el contexto del aula demanda del profesor la planificacioacuten de estrategias de lectura y preparacioacuten de enfoques con el texto que lo transformen en un objeto significativo para el estudiante El objetivo del presente artiacuteculo es presentar el relato de una clase de lectura sobre el poema ldquoA flor e a naacuteuseardquo de Carlos Drummond de Andrade realizada por alumnos de la asignatura de la Pasantiacutea de Intervencioacuten en la Lengua Portuguesa 2 que tuvo como foco la teoriacutea y praacutectica de la ensentildeanza de Literatura de la Facultad de Letras de la Universidad Federal de Alagoas A traveacutes de la elaboracioacuten y ejecucioacuten de la leccioacuten los estudiantes pasantes notaron que las ldquoinquietudesrdquo del metapoema elegido podriacutean transformarse en caminos de produccioacuten de sentidos variados lo que convierte el aula en un lugar tambieacuten de encuentro con lo inesperado En este sentido se concluye que en la exploracioacuten de la lectura literaria los huecos los vaciacuteos e indeterminaciones generadas por el poema se convierten en elementos que podriacutean constituirse en una invitacioacuten al lector a jugar con el texto y con sus modos de lecturaPalabras clave Poesiacutea Ensentildeanza Carlos Drummond de Andrade

1 Introduccedilatildeo

No ensino de literatura um dos desafios prementes eacute o estabelecimento do contato efetivo com o texto literaacuterio em especial com a poesia de modo a atrair o aluno para a malha de significaccedilotildees e para a pluralidade de sentidos dos poemas O presente trabalho1 tem o intuito de analisar uma praacutetica de ensino de literatura realizada por estudantes do Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa 22 na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) momento destinado ao estudo de praacuteticas e metodologias de leitura na sala de aula

Foram feitas anaacutelises de diaacuterios de campo da oficina de leitura literaacuteria aplicada em uma turma do primeiro ano do Ensino Meacutedio do Coleacutegio da Poliacutecia Militar Tiradentes

1 A discussatildeo que propomos apresentar neste artigo corresponde a um recorte da dissertaccedilatildeo ldquoUm eu todo retorcido no jogo de leitura de lsquoA flor e a naacuteusearsquo de Carlos Drummond de Andrade metapoesia e ensinordquo apresentada no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras e Linguiacutestica (PPGLL) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) em marccedilo de 2015 de autoria de Diogo dos Santos Souza e orientaccedilatildeo de Eliana Kefalaacutes Oliveira

2 Os aacuteudios das aulas foram gravados atraveacutes de celular e posteriormente transcritos por Diogo dos Santos Souza sendo ainda utilizados nos diaacuterios de campo aqui analisados escritos por esse mesmo autor

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situado em MaceioacuteAlagoas O professor3 e os discentes estagiaacuterios da disciplina Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa 2 planejaram uma praacutetica realizada em dezembro de 2014 de leitura literaacuteria com base no poema ldquoA flor e a naacuteuseardquo texto que pertence ao livro A rosa do povo (1942) de Carlos Drummond de Andrade Observamos nesse contato entre o poema os estagiaacuterios e os leitores da educaccedilatildeo baacutesica as formas como o texto literaacuterio foi levado para a sala de aula bem como os traccedilos metapoeacuteticos que foram abordados pelos estagiaacuterios em diaacutelogo com os estudantes analisando tambeacutem as inquietudes dessa experiecircncia de trabalho

Interessa-nos portanto pensar que este trabalho fruto de um diaacutelogo com a poesia de Carlos Drummond de Andrade pode contribuir para a forma como o leitor vecirc natildeo somente a metapoesia do autor de ldquosete facesrdquo como tambeacutem a metapoesia de uma forma geral atrelada agrave formaccedilatildeo do leitor Para a nossa surpresa ainda parece ser um tanto incipiente de acordo com os levantamentos bibliograacuteficos realizados a quantidade de trabalhos que se ocupam em estudar as propriedades que caracterizam o discurso metapoeacutetico Essa zona aparenta ser minimizada ainda mais quando relacionamos essa temaacutetica a uma proposta de leitura que visa descobrir novos modos de construir o encontro entre o texto e o leitor

De modo geral procura-se refletir sobre de que maneira a poesia que fala de si proacutepria pode ser transformada num convite agrave leitura num convite que joga brinca e provoca o leitor a entrar nas veredas do acaso do inesperado do mundo literaacuterio

2 Leituras de ldquoA flor e a naacuteuseardquo

Na realizaccedilatildeo da oficina de leitura um trio de estagiaacuterios foi encaminhado para uma turma do 1ordm ano do Ensino Meacutedio com a incumbecircncia de levar uma proposta de leitura do poema ldquoA flor e naacuteuseardquo apontando caminhos de leitura que pudessem indicar os aspectos metapoeacuteticos da poesia de A rosa do povo

Em um primeiro momento da atividade na sala de aula a estagiaacuteria 1 pede para que cada aluno diga o seu nome e cite a ldquoexperiecircncia literaacuteriardquo que teve seja com poema ou qualquer outro gecircnero lido Em seguida a estagiaacuteria 1 explica a complexa posiccedilatildeo de Carlos Drummond no momento de sua produccedilatildeo poeacutetica frente agrave ditadura

[] ou vocecirc se colocava contra ou a favor Carlos Drummond se colocou contra o momento em que a censura estava presente no Brasil As pessoas tinham que seguir aquele padratildeo Como ficavam as pessoas que eram contra o sistema Os artistas tinham que se manifestar de alguma forma4

3 A disciplina de Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa foi ministrada no segundo semestre letivo de 2014 por Diogo dos Santos Souza que atuou como professor voluntaacuterio na ocasiatildeo

4 Todas as referecircncias a passagens dos momentos da aula mencionada competem ao Diaacuterio de Campo da aula do dia 8 de dezembro de 2014

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Observa-se aqui a escolha de antecipar informaccedilotildees relacionadas ao contexto histoacuterico antes de trabalhar a interpretaccedilatildeo do texto A estagiaacuteria destaca que alguns artistas encontravam caminhos menos expliacutecitos para expor o seu pensamento numa espeacutecie de indicaccedilatildeo da atmosfera do poema que seraacute lido Ela tambeacutem pergunta se todos jaacute ouviram falar sobre as figuras de linguagem especificamente a metaacutefora

Prosseguindo esse momento inicial realizou-se a leitura do metapoema objeto de estudo da aula

Preso agrave minha classe e a algumas roupasvou de branco pela rua cinzentaMelancolias mercadorias espreitam-meDevo seguir ateacute o enjooPosso sem armas revoltar-me

Olhos sujos no reloacutegio da torreNatildeo o tempo natildeo chegou de completa justiccedilaO tempo eacute ainda de fezes maus poemas alucinaccedilotildees e esperaO tempo pobre o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse

Em vatildeo me tento explicar os muros satildeo surdosSob a pele das palavras haacute cifras e coacutedigosO sol consola os doentes e natildeo os renovaAs coisas Que tristes satildeo as coisas consideradas sem ecircnfase

Vomitar este teacutedio sobre a cidadeQuarenta anos e nenhum problemaresolvido sequer colocadoNenhuma carta escrita nem recebidaTodos os homens voltam para casaEstatildeo menos livres mas levam jornaise soletram o mundo sabendo que o perdem

Crimes da terra como perdoaacute-losTomei parte em muitos outros escondiAlguns achei belos foram publicadosCrimes suaves que ajudam a viverRaccedilatildeo diaacuteria de erro distribuiacuteda em casaOs ferozes padeiros do malOs ferozes leiteiros do mal

Pocircr fogo em tudo inclusive em mimAo menino de 1918 chamavam anarquistaPoreacutem meu oacutedio eacute o melhor de mimCom ele me salvoe dou a poucos uma esperanccedila miacutenima

Uma flor nasceu na ruaPassem de longe bondes ocircnibus rio de accedilo do traacutefego Uma flor ainda desbotada ilude a poliacutecia rompe o asfaltoFaccedilam completo silecircncio paralisem os negoacutecios garanto que uma flor nasceu

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Sua cor natildeo se percebe Suas peacutetalas natildeo se abremSeu nome natildeo estaacute nos livros Eacute feiaMas eacute realmente uma flor

Sento-me no chatildeo da capital do paiacutes agraves cinco horas da tardee lentamente passo a matildeo nessa forma inseguraDo lado das montanhas nuvens maciccedilas avolumam-sePequenos pontos brancos movem-se no mar galinhas em pacircnico

Eacute feia Mas eacute uma flor Furou o asfalto o teacutedioo nojo e o oacutedio(ANDRADE 2003 p118-119)

Continuando a aula a estagiaacuteria 1 explica o que eacute metapoema ldquoeacute quando um poema fala sobre o proacuteprio poemardquo Essa definiccedilatildeo (talvez um tanto generalizante) torna-se a referecircncia inicial agrave autorreflexividade literaacuteria apresentada na aula Na primeira leitura de ldquoA flor e a naacuteuseardquo o estagiaacuterio 2 pede para que os alunos sublinhem os elementos que fazem o texto ser literaacuterio O estagiaacuterio lecirc o poema e faz o seguinte comentaacuterio ao teacutermino da leitura ldquoagraves vezes ele (sujeito liacuterico) natildeo fala umas coisas sem sentido Ou seraacute que haacute sentido Haacute metaacuteforas nesse textordquo Ainda que a expressatildeo ldquocoisas sem sentidordquo seja questionaacutevel por associar a literatura ao natildeo inteligiacutevel essas primeiras indicaccedilotildees de possiacuteveis olhares para o poema que satildeo lanccediladas para a turma acabam por ganhar um tom provocador pois ao assumir que pode ou natildeo haver ldquocoisas sem sentidordquo nos versos lidos os alunos atentam-se para o inapreensiacutevel e para o que espera ser interpretado pelo leitor Pode-se observar essas ldquocoisas sem sentidordquo atraveacutes da ausecircncia de conexatildeo por exemplo entre a sexta e a seacutetima estrofe o que evidenciaria um eu liacuterico que natildeo se expressa na esteira de uma linearidade angustiando-se nesse espaccedilo em que a flor ainda natildeo nasceu Eacute como se o sujeito liacuterico incomodado pudesse tirar aqueles leitores em diaacutelogos de suas zonas de conforto permitindo que o eu todo retorcido quisesse contaminar as experiecircncias de interpretaccedilatildeo dos proacuteprios leitores Candido (1965 p83) em ldquoInquietudes na poesia de Drummondrdquo diz que ldquoo eu torto do poeta eacute igualmente uma subjetividade de todos ou de muitos no mundo tortordquo Nesse caminho essa noccedilatildeo de ldquotorccedilatildeordquo proposta por Candido foi apropriada no desenvolvimento da leitura da obra de Carlos Drummond de Andrade

O estagiaacuterio 2 na tentativa de explorar possibilidades de leitura para o tiacutetulo do poema pergunta ldquoO que tem a ver vomitar o teacutedio com o tiacutetulo do textordquo Os alunos respondem que esse ldquoteacutediordquo se relaciona com a naacuteusea sendo a flor ldquouma coisa boa e a naacuteusea natildeordquo Nesse contexto o estagiaacuterio 2 segue com uma nova pergunta ldquoSeraacute que o cheiro da flor causou naacuteusea e ele vomitourdquo A turma natildeo concorda talvez por causa da identificaccedilatildeo feita pelos alunos da antiacutetese ldquoflor e naacuteuseardquo O aluno Gustavo5 afirma ldquoa naacuteusea eu acho que eacute relacionada como se fosse a expulsatildeo da vida que natildeo abre caminhos sei laacuterdquo

5 Fizemos a opccedilatildeo de resguardar a identidade de cada interlocutor utilizando nomes fictiacutecios para cada um deles

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Poderiacuteamos pensar a partir da fala desse estudante que a naacuteusea do eu liacuterico se trataria de uma espeacutecie de exiacutelio do seio social em que vive proacuteximo da escrita literaacuteria que estaacute sendo gestada Desse modo o estado nauseante elemento que compotildee a imagem de ldquoum eu todo retorcidordquo proporciona a compreensatildeo da atmosfera metapoeacutetica um indiviacuteduo que sofre ao estar distante da poesia sentindo-se exilado

Ainda na leitura do iniacutecio do texto o estagiaacuterio 2 lecirc o verso inicial ldquoPreso a minha classe e algumas roupasrdquo Em seguida ele pergunta agrave turma o que esse verso pode significar O aluno Everaldo afirma que ldquoas roupas satildeo as aparecircncias que cada classe tinhardquo apontando para a reflexatildeo de uma possiacutevel prisatildeo nas aparecircncias ao padratildeo social seguido Assim a leitura do texto encaminha-se para a compreensatildeo de que alguns versos de Drummond se aproximam de uma expressatildeo de um estado de opressatildeo do indiviacuteduo

Eacute interessante observar que as experiecircncias analiacuteticas de contato com a obra literaacuteria na sala de aula em um espaccedilo dialoacutegico permitem construir coletivamente um discurso criacutetico sobre o texto Pinheiro (2006) em ldquoTeoria da literatura criacutetica literaacuteria e ensinordquo relativiza e revisita o lugar da criacutetica na formaccedilatildeo escolar do leitor literaacuterio Para esse autor a teoria literaacuteria e a criacutetica natildeo devem ser tomadas de modo cristalizado e a priori no trabalho com a leitura na sala de aula Segundo Pinheiro (2006 p 116) a criacutetica pode iluminar e instigar a anaacutelise ou dar ldquopistas para uma compreensatildeo novardquo mas defende-se principalmente o exerciacutecio criacutetico sobre o texto literaacuterio na interlocuccedilatildeo com os estudantes ldquoos alunos devidamente estimuladosmotivados poderiam realizar alguns exerciacutecios de criacuteticardquo (PINHEIRO 2006 p120)

Consideramos que esse exerciacutecio de interpretaccedilatildeo do texto literaacuterio em sala de aula pode ampliar nas pesquisas acadecircmicas o alcance das experiecircncias vividas pois o que desponta na interlocuccedilatildeo e no contato com o texto literaacuterio permite compor (ou ateacute contrapor) sentidos se colocados lado a lado com algumas perspectivas criacuteticas

O modo como a histoacuteria enquanto campo do conhecimento transforma-se em proble-ma esteacutetico eacute uma questatildeo complexa para a criacutetica posto que o enigma do poeta eacute tambeacutem enigma para o criacutetico (como o eacute para qualquer leitor) que lida com a razatildeo dessa incoacutegnita que natildeo se desata Por isso eacute preciso refazer por dentro o trajeto das curvas da aporia (ARRIGUCCI 2005 p 104) Isto eacute as inquietudes do texto no caso do poema de Drummond reforccedilam a intensidade da interrogaccedilatildeo e dos natildeo ditos na propensatildeo agrave reinvenccedilatildeo dos sentidos para a qual o texto aponta Essa situaccedilatildeo transposta para a aula de literatura tambeacutem eacute complexa jaacute que o professor pode ldquotraduzirrdquo esse enigma do texto de forma que o fundo histoacuterico e as ca-tegorias esteacuteticas tatildeo prementes natildeo sejam o eixo preponderante ou cristalizador de anaacutelise

Analisando o verso ldquovou de branco pela rua cinzentardquo o aluno Hugo vecirc uma alusatildeo agrave transparecircncia ldquoA rua cinzenta impossibilita o sujeito de se expressar ou entatildeo todos satildeo iguais e ele eacute o diferenterdquo Assim o eu liacuterico que se apresenta no poema pode ser lido como algueacutem singular que se faz distinto possivelmente ao fazer esse movimento de aproximaccedilatildeo com a escrita literaacuteria

Adiantando a discussatildeo sobre a metapoesia o estagiaacuterio 2 indaga ldquoQual seria a forma de ele se revoltar sem armas ndash Escrevendo Percebam que o poeta estaacute falando

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de poesiardquo Sob essa perspectiva a visatildeo da metapoesia jaacute eacute transposta ndash de antematildeo pelo estagiaacuterio ndash para a voz do sujeito liacuterico O verso ldquoPosso sem armas revoltar-merdquo aparenta ser uma chave de leitura do discurso metalinguiacutestico dada previamente pelo estagiaacuterio (que talvez pudesse ter instigado a questatildeo mais do que exposto sua anaacutelise) Vale destacar tambeacutem que essa pergunta eacute feita logo na primeira estrofe provocando o leitor a entrar nesse universo em que a palavra se reveste como praacutetica social Outra pergunta eacute feita pelo estagiaacuterio 2 ldquoSe ligarmos isso ao momento da histoacuteria e da poliacutetica o que encontraremosrdquo A ditadura eacute a resposta de alguns alunos Por fim o estagiaacuterio pergunta ldquoQual foi o meacutetodo que o poeta achou para se expressarrdquo Os alunos respondem (como previsto na pergunta e resposta dadas pelo estagiaacuterio) que foi a escrita Apoacutes a discussatildeo do poema a turma passou acompreender que a escrita literaacuteria era um aspecto central no poema

Pensar na ideia do texto literaacuterio como fuga eacute entrar no percurso do sujeito liacuterico de ldquoA flor e a naacuteuseardquo que se vecirc preso no iniacutecio do poema e aos poucos vai se libertando ao se aproximar do espaccedilo de nascimento da poesia Eacute possiacutevel tambeacutem compreender a abordagem acima do poema exposta pelo estagiaacuterio 2 como um modo de representar o eu poeacutetico que ao ser associado a uma atmosfera de refuacutegio aparece um tanto retido retorcido os muros que o rodeiam natildeo o escutam exilando-o

A partir desse exerciacutecio analiacutetico do estagiaacuterio poder-se-ia ateacute pontuar que essa prisatildeo diz respeito ao exiacutelio do mundo ficcional tendo em vista que esse poema trata da busca do encontro da voz liacuterica com a sua proacutepria poesia Vale destacar que sendo metaacutefora para um possiacutevel isolamento os muros enunciados na terceira estrofe (ldquoEm vatildeo me tento explicar os muros satildeo surdosrdquo) bloqueiam a tentativa de saiacuteda caso que exprime dessa maneira a solidatildeo existencial de um mundo em que o indiviacuteduo natildeo eacute ouvido aparentando estar num lugar inoacutespito A dor do enclausuramento eacute tatildeo intensa que nem o sol luz preciosa para aqueles que estatildeo privados de ser livres renova-o apesar de ainda ser um consolo (ldquoO sol consola os doentes e natildeo os renovardquo) Visto que os muros ldquosatildeo surdosrdquo o caminho eacute tentar ldquofurar o asfaltordquo ndash o bloqueio metafoacuterico da liberdade ndash atraveacutes da flor pois seraacute ela a voz que se faraacute ouvida na sociedade

Dando prosseguimento agrave interlocuccedilatildeo analiacutetica na leitura da quinta estrofe o estagiaacuterio 2 pergunta ldquoO que seriam os lsquocrimes da terrarsquordquo O aluno Jian responde que esses crimes poderiam ser notiacutecias da ditadura e o estagiaacuterio refuta que provavelmente natildeo asserccedilatildeo que talvez pudesse ter sido melhor revisitada ateacute que ponto o termo ldquocrimes da terrardquo natildeo teria um ponto de contato com a questatildeo da ditadura Natildeo seria apressado demais abrir matildeo desse olhar interpretativo Natildeo seria ele uma pista para um olhar mais abrangente sobre a expressatildeo ldquocrimes da terrardquo

Outro verso entra na discussatildeo ldquoO que o eu liacuterico disse que era canto de libertaccedilatildeordquo O estagiaacuterio 2 responde ldquoA escrita na forma de poemardquo Assim uma aluna complementa ldquoe alguns desses poemas foram publicados pois estes eram o modo de fuga do sistemardquo Essa observaccedilatildeo da aluna ilumina outro ponto do poema natildeo basta somente escrever o texto ele precisa ser publicado nascer para o seu leitor tal como aparece mais ao final do

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poema em sua antepenuacuteltima estrofe o ldquonome que natildeo estaacute nos livrosrdquo mas ele comeccedila a se fazer perceber quando nasce no asfalto Assim como Octavio Paz notou no texto ldquoPoesia e Histoacuteriardquo (2012 p 191) ldquoo poema ser de palavras vai aleacutem das palavras e a histoacuteria natildeo esgota o sentido do poema poreacutem o poema natildeo teria sentido ndash nem sequer existecircncia ndash sem a histoacuteria sem a comunidade que o alimenta e agrave qual alimentardquo Ou seja o que ldquonatildeo estaacute no livrordquo expresso verbalmente faz-se poesia pois a literatura se constroacutei no olhar do leitor em modos de olhar para asfaltos (imaginados ou vistos) que produzem sentidos e reatualizam o poema atraveacutes do diaacutelogo de distintos contextos de circulaccedilatildeo Logo podemos afirmar que a conexatildeo com o extratextual se daacute pela concretude (seja ela da imaginaccedilatildeo ou da experiecircncia ldquorealrdquo)

Seria possiacutevel pensar tambeacutem talvez a partir da observaccedilatildeo analiacutetica acima apresentada por essa aluna que o poema seria uma espeacutecie de linha de fuga de desvio de um sistema opressor E ao ser publicado ao ser aberto para o leitor poderia permitir que o proacuteprio leitor fosse convidado a esse modo de evasatildeo um escape feito de palavras que abre brechas dentro de um sistema que restringe a libertaccedilatildeo

Vale observar que no material didaacutetico elaborado pelos estagiaacuterios houve uma breve contextualizaccedilatildeo sobre o livro mencionado para que a turma entrasse em contato com a atmosfera do espaccedilo de publicaccedilatildeo do poema analisado Depois dessa apresentaccedilatildeo da obra ao retomar a leitura do poema o estagiaacuterio pergunta ldquoPor que a rosa estaacute desbotadardquo Jian responde ldquoela ainda estaacute despercebidardquo Outro aluno comenta ldquoaiacute eu acho que ele estaacute se referindo ao tiacutetulo do livro A rosa do povordquo Interessante notar aqui que com o pouco que foi discutido sobre a atmosfera desse livro os leitores conseguiram nessa situaccedilatildeo de abertura ao diaacutelogo no contato com o poema fazer uma ligaccedilatildeo entre o desbotar da rosa e o tiacutetulo do conjunto dos poemas a que ldquoA flor e a naacuteuseardquo pertence

Talvez atraveacutes dessas anaacutelises dos alunos despontadas no ato da leitura possamos ter condiccedilotildees de refletir sobre esse eu que se contorcena tessitura do proacuteprio poema de modo que suas palavras brotem em meio agrave aspereza do asfalto como ldquorosa desbotadardquo uma rosa ldquodespercebidardquo segundo Jian No verso discutido o nascimento da flor feia sem cor eacute tatildeo vulgar que sequer estaacute classificado nos livros Perceber a rosa eacute a urgecircncia de algo novo algo que surge para romper a naacuteusea Essa poesia que se coloca agrave frente na caminhada por uma conquista social estaacute ao lado da metaacutefora da flor como nascimento de uma nova forma de viver que desabrocha no cerne do discurso literaacuterio uma forma disfarccedilada que passa conforme nota o aluno ldquodespercebidardquo de modo a poder perscrutar caminhos furtivos Os alunos os estagiaacuterios (e os pesquisadores) voltam-se para as lacunas que o poema abre proporcionando elas mesmas um encontro que tambeacutem eacute furtivo

Na relaccedilatildeo texto-leitor assim como nas relaccedilotildees interpessoais segundo Iser (1979) uma das bases da interlocuccedilatildeo estaacute no que natildeo nos eacute dado isto eacute natildeo compreendemos totalmente o outro porque somos incapazes de experimentar a experiecircncia do outro ndash ldquonegatividade da experiecircnciardquo para Iser (1979 p 87) e essa incapacidade nos impulsiona a agir instaura a necessidade da interpretaccedilatildeo Diferentemente das relaccedilotildees interpessoais o texto natildeo pode nos responder de imediato (como poderia

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o outro nos responder em uma conversa) o que na leitura literaacuteria redobra a negatividade da experiecircncia Para Iser (1979 p 88) eacute essa ldquocarecircncia que impulsiona uma relaccedilatildeordquo Essa carecircncia eacute dada pelo texto literaacuterio como lacunas pontos de indeterminaccedilatildeo Esses vazios presentes no poema de Drummond provocam-nos a preenchecirc-los mas como eles nunca se completam a experiecircncia da leitura literaacuteria e da anaacutelise se abrem em infinitas possibilidades Dessa experiecircncia emergem entatildeo incocircmodos duacutevidas curiosidades olhares giros de sentidos que despontam talvez como uma flor no meio de um asfalto

A aluna Sylvia ao analisar os versos que falam da flor

Uma flor nasceu na rua[]Uma flor ainda desbotada ilude a poliacutecia rompe o asfalto[]

Sua cor natildeo se percebe Suas peacutetalas natildeo se abrem[]

daacute segmento agrave discussatildeo comentando o seguinte ldquoeacute como se tivesse uma capa que a escondesse para que natildeo seja percebida pela poliacuteciardquo Nesse comentaacuterio haacute um retorno do contexto histoacuterico como elemento constante no processo de construccedilatildeo literaacuteria Jaacute Hugo destoa desse plano ao afirmar que ldquohaacute um conteuacutedo dentro dela mas que eacute protegido pela capardquo Essa ideia de proteccedilatildeo natildeo nos leva a pensar na resistecircncia do texto literaacuterio Eacute como se esse conteuacutedo ldquosob cifras e coacutedigosrdquo se preservasse guiado pela consciecircncia de hostilidade agrave poesia que estaacute envolta no poema em anaacutelise

A discussatildeo toma um outro rumo quando um aluno pergunta ldquoa flor faz referecircncia a uma pessoa anocircnima ou ao livro A rosa do povordquo A turma concorda que eacute ao livro e uma aluna expotildee o seu ponto de vista ldquoEssa questatildeo da cor das peacutetalas e o nome que natildeo estaacute no livro deve ser eacute referente ao que o senhor falou em mudar a capa tentar se esconderrdquo Apesar da discordacircncia da turma pensamos que eacute possiacutevel atraveacutes da fala do aluno rastrear um traccedilo de uma interpretaccedilatildeo possiacutevel A questatildeo do anonimato ou dessa voz furtiva eacute um aspecto presente na voz do sujeito liacuterico desde o iniacutecio do poema e que aparentemente dissolve-se quando entoa o grito de anunciaccedilatildeo do nascimento da flor Ainda podemos destacar que essa ideia de anonimato ndash ou de uma voz disfarccedilada possibilitada pela ldquocapardquo poeacutetica (apontada pela aluna) ndash pode corresponder ao sujeito liacuterico que se mascara que se dobra que se torce que se forja ao natildeo tentar se mostrar Assim eacute possiacutevel pensar que a flor aleacutem de furar o asfalto perfurou esse anonimato do eu liacuterico um rompimento protegido pelas artimanhas poeacuteticas na medida em que o poema nasce sob essa ldquocapardquo dada pelos siacutembolos poeacuteticos tais como o da flor penetrando o asfalto

Logo eacute possiacutevel recuperar a leitura do aluno redirecionando-a para essa relaccedilatildeo entre indiviacuteduo anocircnimo e nascimento da flor Sobre a coloraccedilatildeo da flor mencionada

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pela aluna haacute um retorno agrave questatildeo do ldquotentar se esconderrdquo que pode tambeacutem ser lido como uma metaacutefora para a proacutepria construccedilatildeo literaacuteria do texto posto que o siacutembolo da flor se constitui aos poucos Tal fato pode ecoar na leitura de poesia quando a observamos como um processo que natildeo se entrega de imediato ao leitor pois eacute um processo de conquista que se apresenta em pequenas doses tal como a flor

No final da anaacutelise inesperadamente um aluno pergunta ldquopor que galinhas em pacircnicordquo O estagiaacuterio 2 responde ldquoisso eacute uma pergunta que eu faccedilo para vocecircrdquo O aluno natildeo responde Eacute interessante ressaltar essa forma como a aula eacute concluiacuteda com um verso transformado numa pergunta deixando um lugar para o inacabado para o suspense do ato de ler pois a cada entrada no texto novas perguntas emergem Dessa maneira o poema pode ser percebido como uma indagaccedilatildeo formal e conceitual aspectos que foram comentados com a turma de estudantes O estagiaacuterio 2 sugeriu que os alunos pensassem atraveacutes das lacunas desse verso nas propriedades plurissignificativas do signo poeacutetico na palavra como um espaccedilo que guarda mais perguntas do que respostas

Poder-se-ia aqui especular sobre esse fato de termos mais perguntas do que respostas na leitura literaacuteria o que de alguma maneira evidencia que o discurso literaacuterio eacute um espaccedilo de constante interrogaccedilatildeo sendo esta uma constataccedilatildeo que nos ratifica a percepccedilatildeo de que haacute na leitura um jogo e o leitor eacute seduzido e provocado por essas indeterminaccedilotildees do texto tal como pontua Iser (1999 p 107) ldquoo jogo ultrapassa o que eacute e se volta para o que natildeo eacute ou ainda natildeo eacuterdquo

A compreensatildeo da leitura literaacuteria como jogo sob a perspectiva iseriana mostra-a como uma travessia de fronteiras em que o leitor se move junto com o texto em que seu horizonte de leitura eacute colocado na esteira de um constante deslocamento Nesse contexto o eu todo retorcido que se expressa em ldquoA flor e a naacuteuseardquo pode nos sugerir a pensar essa questatildeo ao se aproximar num plano metapoeacutetico dos dados histoacutericos reconfigurando essa relaccedilatildeo ao trazer uma reflexatildeo da presenccedila da poesia no seio social do sujeito liacuterico que se inquieta

Retomando o que jaacute foi dito podemos considerar que a forma como o sujeito liacuterico anuncia o nascer da flor sugere uma carga liacuterica cecircnica aos versos como se estes testemunhassem natildeo somente o desabrochar da flor como tambeacutem presenciassem o eu retorcido se reerguendo por meio do signo da flor uma flor desbotada

Quando observamos os estagiaacuterios e os alunos associando a linguagem poeacutetica a um ldquodisfarcerdquo a uma ldquocapardquo que permite uma ldquofugardquo um ldquorefuacutegiordquo ou ainda um ldquocrimerdquo pode-se entrever aiacute uma espeacutecie de tensionamento entre o texto e o contexto histoacuterico com o qual o poema dialoga Percebe-se assim nas reflexotildees tecidas em aula uma articulaccedilatildeo entre o metapoema e o mundo extratextual Alguns aspectos apontados pela criacutetica despontam de modo singular na anaacutelise coletiva do poema que emergiu na sala de aula sem necessariamente terem sido expostas a priori caracteriacutesticas do poema anunciadas por criacuteticos renomados Eacute nesse sentido que o ensino de literatura pode se tornar um exerciacutecio criacutetico

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Vale a pena notar que na anaacutelise feita em sala de aula os alunos apontaram tanto para o desabrochar da flor quanto para a sua caracteriacutestica desbotada o que lhe daria uma apa-recircncia despercebida Ao relacionarem a produccedilatildeo do poema agrave imagem da flor perceben-do-o como uma espeacutecie de disfarce e de via de ldquofugardquo algumas anaacutelises que emergiram na interlocuccedilatildeo com o poema ressaltam a ligaccedilatildeo do metapoema como o seu possiacutevel efeito esteacutetico A linha de fuga dada por esse sujeito liacuterico retorcido e mascarado parece ser revi-sitada pelo leitor que se abre diante do ldquodesafiordquo (como afirmara Hugo no decorrer da aula) proposto pelas ldquocapasrdquo da palavra poeacutetica No entanto trata-se de um desafio tortuoso cujo efeito eacute o da ldquonaacuteuseardquo da repulsa ou como comentou o aluno Gustavo de uma repulsa que ldquopode estar relacionada ao sentimento do indiviacuteduo de expulsatildeo da proacutepria vidardquo Trata-se pois de um eu liacuterico cuja faceta eacute a do sujeito nauseado embrulhado retorcido um sujeito insatisfeito incomodado inquieto

Eacute valido abordar aqui a fala da aluna Karolina ao notar que a flor pode ser a representaccedilatildeo de uma ldquoatitude filosoacuteficardquo desdobrando um dos principais siacutembolos do poema lido como um objeto que instiga a reflexatildeo o questionamento Seguindo o pensamento de ldquopergunta e curiosidaderdquo apontada pela aluna eacute possiacutevel observar uma interlocuccedilatildeo entre a ldquoatitude filosoacuteficardquo e a noccedilatildeo de ldquoiacutendice reflexivordquo uma espeacutecie de ldquoglossaacuterio poeacuteticordquo de temas presentes na poesia de Drummond sugerida por Wisnik (2005) De acordo com o autor os versos drummondianos pertencem a uma conjuntura da qual ao mesmo tempo que se faz parte tambeacutem se exclui indicando para o ldquo(natildeo) lugarrdquo de sua poeacutetica Esse ldquo(natildeo) lugarrdquo possivelmente estaacute expresso em ldquoA flor e a naacuteuseardquo quando pensamos no espaccedilo atiacutepico em que a flor nasce como se estivesse em luta com o proacuteprio local ao qual pertence mas que a exclui Nesse sentido pode-se ler a flor como uma ldquoatitude filosoacuteficardquo pois atraveacutes de seu nascimento e constituiccedilatildeo o texto joga com o leitor ao manter a interrogaccedilatildeo as lacunas em relaccedilatildeo a esse ldquo(natildeo) lugarrdquo da poesia Assim nessas possibilidades de leituras incertas que se camuflam a metaacutefora da flor pode ser estendida para esse olhar que instiga a pergunta a curiosidade dialogando com a discussatildeo do jogo da leitura e recuperando a atmosfera metapoeacutetica do texto ao considerar o siacutembolo da palavra como uma atitude mais direcionada para perguntas do que para respostas

Talvez aqui seja importante voltar para o texto ldquoInquietudes na poesia de Drummondrdquo de Antonio Candido (1965 p 87) em que uma fala do autor faz uma interlocuccedilatildeo direta com o que pudemos constatar no desenvolvimento de nossa discussatildeo ldquoao longo da obra de Drummond natildeo observamos uma certeza esteacutetica nem mesmo a esperanccedila disto poreacutem a duacutevida a procura o debate A sua poesia eacute em boa parte uma indagaccedilatildeo sobre o problema da poesiardquo Portanto construir uma metodologia de leitura literaacuteria para a poesia drummondiana eacute se colocar nesse exerciacutecio de interrogaccedilatildeo em que o texto literaacuterio tal qual visto por Hugo eacute um desafio

O encerramento desta atividade ocorreu com a autoavaliaccedilatildeo da disciplina Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa 2 momento em que os estagiaacuterios apresentaram o seu olhar sobre a experiecircncia de leitura em sala de aula As estagiaacuterias e o estagiaacuterio da oficina de leitura jaacute tinham um percurso pela leitura literaacuteria em sala de aula atraveacutes da

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participaccedilatildeo do Programa Institucional de Iniciaccedilatildeo agrave Docecircncia (PIBID)6 e da colaboraccedilatildeo no Programa de Apoio agraves Escolas Puacuteblicas do Estado de Alagoas (PAESPE)7 projeto do curso de Engenharia Civil da Universidade Federal de Alagoas em parceria com o grupo de bolsistas do Programa de Educaccedilatildeo Tutorial (PET) da Faculdade de Letras

De acordo com os estagiaacuterios foi possiacutevel aprofundar o conhecimento da praacutetica do ensino de literatura em especial ao focar todo o momento da oficina de leitura em um uacutenico poema de Carlos Drummond de Andrade Esse exerciacutecio contribuiu para que esses estudantes se aprofundassem nas variadas ldquofacesrdquo ldquocifrasrdquo e ldquocoacutedigosrdquo da poeacutetica drummondiana

Aleacutem disso os estagiaacuterios comentaram que se sentiram surpresos com o raacutepido acompanhamento da leitura dos poemas que a turma fez adiantando ateacute mais de uma vez comentaacuterios que ainda estavam por vir nas falas das estagiaacuterias

3 Algumas conclusotildees

Vale a pena frisar que as experiecircncias de leitura dos versos metapoeacuteticos de Drummond tanto nas praacuteticas pedagoacutegicas quanto nos caminhos analiacuteticos que viemos trilhando por meio desses diaacutelogos transformou e inquietou a nossa visatildeo sobre as particularidades da poeacutetica do autor e sobre a complexidade do trabalho com a poesia na formaccedilatildeo do leitor A leitura do metapoema em sala de aula eacute por vezes tortuosa difiacutecil de ser conduzida mas parece sempre ser um convite um convite a uma transgressatildeo a uma conquista aquela de uma flor desabrochando em pleno asfalto Natildeo caberia no trabalho com um poema tatildeo inquieto uma metodologia prescritiva informativa O texto desabrocha se o leitor entra em seu jogo aceita seus desafios

O signo da flor essa flor desbotada que rompe o asfalto parece reverberar em noacutes leitores a coragem para abrir fissuras em nossas certezas convidando-nos para o desafio e para o disfarce do jogo do texto um desafio que pode provocar naacuteuseas fugas crimes abrindo refuacutegios em um eu todo retorcido O caminho percorrido pela flor aparenta se tornar um caminho seguido tambeacutem pelo leitor que busca entender a naacuteusea que acompanha

6 O PIBID eacute uma iniciativa para o aperfeiccediloamento e a valorizaccedilatildeo da formaccedilatildeo de professores para a educaccedilatildeo baacutesica O programa concede bolsas a alunos de licenciatura participantes de projetos de iniciaccedilatildeo agrave docecircncia desenvolvidos por Instituiccedilotildees de Educaccedilatildeo Superior (IES) em parceria com escolas de educaccedilatildeo baacutesica da rede puacuteblica de ensino Os projetos devem promover a inserccedilatildeo dos estudantes no contexto das escolas puacuteblicas desde o iniacutecio da sua formaccedilatildeo acadecircmica para que desenvolvam atividades didaacutetico-pedagoacutegicas sob orientaccedilatildeo de um docente da licenciatura e de um professor da escola

7 O PAESPE eacute um projeto que pretende dar subsiacutedios para que os estudantes de escolas puacuteblicas do Estado de Alagoas tenham mais condiccedilotildees de prestar os exames de vestibular ao concluir a educaccedilatildeo baacutesica O programa tambeacutem visa trazer os alunos para o conviacutevio da rotina da Universidade uma vez que as aulas satildeo realizadas na proacutepria Universidade campus AC Simotildees Todas as aacutereas do conhecimento satildeo contempladas pelo Paespe que conta com colaboradores (professores instrutores) de variados cursos da UFAL

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esse eu que se torce e que figura o ambiente do nascimento da flor Assim compreendemos a leitura de poesia como um convite para esse jogo de incertezas ao lado da palavra O verso ldquouma flor nasceu na ruardquo ressoa em noacutes leitores como um lirismo que pulsa que vibra ao anunciar uma vida que nasce seja ela flor seja ela palavra seja ela

Referecircncias

ANDRADE C D de A Poesia completa Rio de Janeiro Nova Fonteira 2003

ARRIGUCCI DJ Coraccedilatildeo partido uma anaacutelise da poesia reflexiva de Drummond Satildeo Paulo Cosac ampNaify 2005

BARTHES Roland Aula Traduccedilatildeo de Leyla Perrone-Moiseacutes Satildeo Paulo Cultrix 1977

CANDIDO A Inquietudes na poesia de Drummond In CANDIDO A Vaacuterios escritos Satildeo Paulo Duas Cidades 1965 p67-97

ISER W A interaccedilatildeo do texto com o leitor In LIMA Luiz Costa (Org) A literatura e o leitor Textos de Esteacutetica da Recepccedilatildeo Rio de Janeiro Paz e Terra 1979 p 83-132

ISER W O jogo Traduccedilatildeo de Bluma Waddington Vilar In ROCHA Joatildeo Cezar (Org)Teoria da ficccedilatildeo indagaccedilotildees agrave obra de Wolfgang Iser Rio de Janeiro Eduerj 1999 p 105-115

PAZ O Poesia e histoacuteria In PAZ O O arco e a lira Traduccedilatildeo de Ari Roitman e PaulimaWatcht Satildeo Paulo Cosac Naify 2012 p 191-258

PINHEIRO H Teoria da literatura criacutetica literaacuteria e ensino In PINHEIRO H NOacuteBREGA M (Org) Literatura da criacutetica agrave sala de aula Campina Grande Bagagem 2006

WISNIK J M Drummond e o mundo In NOVAES A (Org)Poetas que pensaram o mundo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005 p 19-64

Recebido em 24 de abril de 2017

Aceito em 16 de outubro de 2017

Diogo dos Santos Souza

Doutorando em Estudos Literaacuterios (2015) pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras e Linguiacutestica da Universidade Federal de Alagoas Mestre em Estudos Literaacuterios (2015) e Graduado em Letras Portuguecircs pela mesma Instituiccedilatildeo Graduando em Pedagogia pela Universidade Estaacutecio de Saacute (2017) Atualmente eacute docente do Instituto Federal de Alagoas campus Piranhas diogosansouzagmailcom

Eliane Kefalaacutes Oliveira

Doutora em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (2009) com doutorado sanduiacuteche na Universidade de Barcelona Mestre em Educaccedilatildeo (na aacuterea de Educaccedilatildeo Conhecimento Linguagem e Artes) pela Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade Estadual de Campinas (2003) graduada em Licenciatura e Bacharelado em Letras pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (1996) Atualmente eacute docente da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas llycaoliveiragmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Cenas da formaccedilatildeo de professores de liacutengua e literatura no Curso de Letras da Universidade

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)Aspects of Teacher Training in Language and Literature at the

Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ)

Escenas de formacioacuten de profesores de lengua y literatura en el curso de Letras de la Universidad Federal de

Riacuteo de Janeiro (UFRJ)

Marcos ScheffelUniversidade Federal do Rio de Janeiro

ResumoCom base na minha atuaccedilatildeo como professor de Didaacutetica e Praacutetica de Ensino de Portuguecircs e Literaturas na UFRJ e em estudos sobre a mudanccedila do perfil dos alunos de graduaccedilatildeo aponto alguns problemas relacionados agrave formaccedilatildeo de professores num curso marcado pela valorizaccedilatildeo da formaccedilatildeo do pesquisador em detrimento da formaccedilatildeo do professor Nesse contexto as questotildees ligadas ao ensino ficam delegadas agraves disciplinas ofertadas pela Faculdade de Educaccedilatildeo que ainda guardam um caraacuteter final de complemento da formaccedilatildeo A constataccedilatildeo da ausecircncia de discussotildees teoacutericas sobre o ensino de literatura eacute comprovada por meio de vaacuterios relatos escritos dos estudantes quando do ingresso na disciplina de Didaacutetica de Portuguecircs e Literaturas Esses mesmos relatos tambeacutem trazem importantes informaccedilotildees sobre a mudanccedila do perfil dos estudantes da Faculdade de Letras da UFRJ que hoje satildeo em sua maioria moradores da periferia do Rio de Janeiro e oriundos de famiacutelias com pouca escolaridade Em meio a essa realidade complexa parecia importante recompor as trajetoacuterias singulares desses jovens leitores e futuros professores Foi nesse momento que o contato com o livro Os jovens e a leitura (2008) da pesquisadora francesa Michegravele Petit possibilitou pocircr em cena vaacuterias percepccedilotildees da leitura Segundo Petit a leitura pode tanto contribuir para gerar identidades complexas objetivo que deve ser perseguido pelos formadores de leitores como pode gerar problemas identitaacuterios como o sentimento de achar a sua cultura de origem inferior As principais conclusotildees deste trabalho apontam para a necessidade de as licenciaturas em Letras reverem suas praacuteticas de formaccedilatildeo de leitores nos proacuteprios cursosPalavras-chave Formaccedilatildeo de professores ensino de literatura leitura

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AbstractAs a professor of Teaching Practices in Portuguese language and Brazilian Literature at the Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ) and based on studies on the changes of the profile of undergraduate students in this paper I point out some problems related to teacher training in a major that emphasizes the teaching of theoretical research rather than teacher training In this context the issues related to teaching are left to the courses offered by the Faculty of Education which still holds to the character of being a mere final appendix to the majorin language and literature The lack of theoretical discussions about the teaching of literature is evidenced by many reports written by the students when they begin the Teaching Practices in Portuguese Language and Brazilian Literaturecourse These reports also bring important information about the changes in the studentsrsquo profiles in the Faculty of Languages of UFRJ mdashtoday they are mostly residents of the outskirts of Rio de Janeiro and come from families with little schooling In this complex reality it was important to recompose the unique trajectories of these young readers and future teachers At this moment the contact with the book Os jovens e a leitura (2008) by the French researcher Michegravele Petit made it possible to reflect on several views about the act of reading According to Petit reading can both contribute to generating complex identities an objective that should be pursued in the formation of readers as it can generate identity problems such as the feeling of regarding their family culture as inferior The main conclusions of this study point to the need for undergraduate degree programs to review their practices in the developmentof teachers-readersKey-words Teacher development teaching literature reading

ResumenBasado en mi trabajo de profesor de Didaacutectica y Praacutectica de Portugueacutes y Literaturas de la UFRJ y en estudios sobre el cambio del perfil de los alumnos de graduacioacuten trato de sentildealar algunos problemas relacionados con la formacioacuten de profesores en un curso marcado por la valoracioacuten de la formacioacuten en investigacioacuten en detrimento a la del profesor En este contexto los temas relacionados con la ensentildeanza se delegan a las asignaturas que se ofrecen por la Facultad de Educacioacuten que auacuten conservan un caraacutecter final de complemento de la formacioacuten Se ha comprobado la ausencia de discusiones teoacutericas sobre la ensentildeanza de la literatura por medio de diversos relatos escritos por los estudiantes al entrar en la asignatura de Didaacutectica de Portugueacutes y Literaturas Estos mismos relatos tambieacuten proporcionan informacioacuten importante sobre el cambio en el perfil de los estudiantes de la Facultad de Letras de la UFRJ que hoy son en su mayoriacutea residentes en las periferias de Riacuteo de Janeiro y de familias que tienen bajo nivel de escolaridad En medio de esta compleja realidad pareciacutea importante reconstituir las trayectorias singulares de estos joacutevenes lectores y futuros profesores Fue entonces que el contacto con el libro Os jovens e a leitura (2008) de la investigadora francesa Michegravele Petit hizo posible poner en escena diversas percepciones de la lectura Seguacuten Petit la lectura tanto puede contribuir para generar identidades complejas objetivo que los formadores de lectores deben perseguir como tambieacuten generar problemas identitarios tales como el sentimiento de que su cultura de origen es inferior Las principales conclusiones de este estudio apuntan hacia la necesidad de los Cursos de Letras poner en tela de juicio sus praacutecticas de formacioacuten de lectores en el propio CursoPalabras clave Formacioacuten de profesores ensentildeanza de literatura lectura

Introduccedilatildeo

No segundo semestre de 2016 cada um dos meus trinta alunos de Didaacutetica e Praacutetica de Ensino de Portuguecircs e Literatura do Curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro ganhou um exemplar do livro Cenas da vida brasileira

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(2010) de Marques Rebelo Os trinta exemplares do livro foram adquiridos de um projeto do governo do estado do Rio de Janeiro chamado ldquoMais Leiturardquo que tem trecircs estandes fixos (Bangu Satildeo Gonccedilalo e Niteroacutei) onde satildeo vendidos livros a dois trecircs ou quatro reais

O livro de Marques Rebelo foi publicado pela primeira vez em 1951 mas sua origem remonta agrave colaboraccedilatildeo do autor entre abril de 1941 e agosto de 1943 para a revista Cultura Poliacutetica do Departamento de Imprensa do Estado Novo getulista Rebelo responsaacutevel pela seccedilatildeo ldquoQuadros e costumes do Centro-Sulrdquo1 produziu um conjunto significativo de crocircnicas sobre cidades de vaacuterios estados brasileiros As cenas registradas nessas crocircnicas estatildeo em suiacutete ou seja todas elas tratam de temas semelhantes formando uma espeacutecie de arte mural que revela um paiacutes seduzido pelos discursos modernizadores mas ainda preso a antigas estruturas Deve-se destacar ainda a linguagem carregada de lirismo e criticismo de Rebelo que recorta pequenos instantacircneos do cotidiano como no registro sobre a cidade de Carmo do Rio Verde (GO)

ldquoA sulfanilamida nas peritonitesrdquo ldquoA vitamina B-1rdquo ldquoEacute preciso cultivar a sua personalidaderdquo ldquoQuem foi o autor dos Direitos do homemrdquo ldquoQuem fez o papel de Scarlet OrsquoHara no filme E o vento levourdquo ldquoA batalha de Salamina foi na Guerra Europeiardquo ldquoSeraacute liacutecito o lucrordquo ndash os uacuteltimos caixeiros-viajantes nos seus guarda-poacutes com monogramas bordados cansam-se de se ilustrar nas paacuteginas da Readerrsquos Digest Na solidatildeo do trem dentro da noite a tristeza desamparada dos meus pensamentos Por toda parte o mesmo subalimentaccedilatildeo tuberculose siacutefilis maleita devastaccedilatildeo de florestas religiatildeo denso analfabetismo casamento indissoluacutevel luacutegubre mortalidade infantil falta de recursos desalento E natildeo sei o que doacutei mais fundo ndash natildeo saber se os coraccedilotildees satildeo tatildeo bons que suportam tudo se satildeo miseraacuteveis que natildeo tecircm consciecircncia da sua desgraccedila E por vezes brasas que a locomotiva joga luzem como uma chuva de ouro que as trevas logo apagam (REBELO 2010 p92)

Na raacutepida cena o cronista-passageiro observa com desalento para dentro e para fora do trem Do lado de dentro os caixeiros-viajantes se ldquoilustramrdquo com as informaccedilotildees banais de uma revista bastante popular na eacutepoca2 Do lado de fora o cenaacuterio de pobreza do interior do Brasil mostra que o paiacutes estaacute fadado ao atraso eterno No entanto as faiscaccedilotildees das brasas da locomotiva parecem indicar alguma esperanccedila no meio desse cenaacuterio tenebroso

1 Graciliano Ramos escreveu na seccedilatildeo ldquoQuadros e costumes do Nordesterdquo Houve tambeacutem uma seccedilatildeo dedicada ao Norte com crocircnicas do romancista Dalciacutedio Jurandir Eacute interessante observar que todos eles eram criacuteticos do regime getulista mas colaboraram para uma revista de propaganda do governo

2 A Readerrsquos Digest ndash conhecida no Brasil como Seleccedilotildees ndash comeccedilou a circular em 1922 nos Estados Unidos No nosso paiacutes o iniacutecio de sua circulaccedilatildeo tambeacutem data de 1922 sendo uma traduccedilatildeo da ediccedilatildeo norte-americana e trazendo a mesma variedade de assuntos sauacutede anedotas conhecimentos gerais biografias e uma seccedilatildeo literaacuteria com o livro do mecircs

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Ao disponibilizar o livro de Rebelo para os alunos tinha como objetivos

1 Divulgar um projeto de leitura desenvolvido no estado do Rio de Janeiro que pode fornecer materiais de qualidade para eles como futuros professores

2 Por em accedilatildeo um projeto de leitura na aula de Didaacutetica

3 Articular a leitura de Cenas da vida brasileira com as teorias sobre a leitura literaacuteria indicada neste trabalho que costumamos ver na disciplina Didaacutetica I

4 Motivar os licenciandos a escrever sobre a experiecircncia do estaacutegio por meio de uma linguagem que tambeacutem possa ser liacuterica criacutetica e principalmente autoral (rompendo com a escrita burocraacutetica dos relatoacuterios entregues ao final do estaacutegio)

Como se trata de um projeto ainda em andamento (a escrita por parte dos estagiaacuterios de Letras) as seccedilotildees seguintes deste artigo tecircm por objetivo fornecer algumas cenas da Didaacutetica e Praacutetica de Ensino de Portuguecircs e Literatura ndash focando em maior grau na Literatura ndash do ponto de vista do professor orientador de estaacutegio que procura criar nos futuros professores um grau de reflexibilidade sobre teorias e praacuteticas da sala de aula em campos de estaacutegio bastante heterogecircneos Satildeo raacutepidas cenas dos percursos formativos com que se deparam os estudantes de Letras que em breve iratildeo formar leitores de literatura na educaccedilatildeo baacutesica Mas antes disso eacute necessaacuterio apresentar um raacutepido perfil desses estudantes

1 Da periferia agrave casa da indiferente Minerva3

Desde o iniacutecio de minha atividade com professor de Didaacutetica na UFRJ em 2013 costumo fazer um levantamento do perfil social da turma por meio de um questionaacuterio situacional Satildeo questotildees relevantes para saber um pouco do histoacuterico familiar (grau de escolaridade) da relaccedilatildeo com a leitura e com a escola e tambeacutem como o ensino de liacutengua e literatura foi ou natildeo problematizado ao longo da licenciatura em Letras

O que se percebe sobre o background familiar eacute que a maior parte deles faz parte da primeira geraccedilatildeo que concluiraacute um curso superior na famiacutelia4 A maioria desses licenciandos passou pela escola puacuteblica sendo raros os que estudaram unicamente em escolas particulares Esse perfil social eacute fruto das poliacuteticas inclusivas do uacuteltimo dececircnio e tem promovido na universidade algo parecido com o que ocorreu a partir da metade do seacuteculo passado na escola baacutesica brasileira ou seja uma mudanccedila radical no perfil do alunado Foi nesse momento que muitas praacuteticas da escola ndash pensemos nas questotildees

3 Faccedilo alusatildeo aqui ao siacutembolo da UFRJ que traz a imagem de Minerva ndash a deusa romana das artes do comeacutercio e da sabedoria

4 Gabriela Rodella (2013) fez um importante levantamento do background familiar dos estudantes de Letras da USP que comprova este histoacuterico familiar social A UFRJ ainda natildeo tem um estudo desta natureza sobre os alunos de Letras mas os relatos dos estudantes que passam pela Didaacutetica e Praacutetica de Ensino apontam para semelhanccedilas do perfil do alunado

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linguiacutesticas ndash comeccedilaram a ser postas em xeque Aquele ensino voltado para um setor meacutedio de nossa sociedade natildeo fazia sentido para esses novos estudantes A liacutengua que era falada na escola natildeo era a mesma liacutengua que eles traziam de casa

Apesar de mudanccedilas tatildeo visiacuteveis a Minerva parece indiferente Ela quer seguir a sua tradiccedilatildeo de formaccedilatildeo de pesquisadores mesmo tendo ciecircncia que esses estudantes procuraram a universidade tendo em vista a carreira de professores da educaccedilatildeo baacutesica Pautada na sua forte cultura bacharelesca chamada muitas vezes de identidade do curso esta licenciatura ignora que ldquoOs cursos de licenciatura tecircm um papel fundamental na socializaccedilatildeo profissional e na construccedilatildeo da identidade dos professoresrdquo (MARLI 2012 p3) Essa pouca preocupaccedilatildeo com as questotildees relacionadas agrave educaccedilatildeo baacutesica estaacute mais acentuada justamente no ensino de literatura como se pode perceber nas seguintes respostas dadas ao questionaacuterio situacional5

Existe mais preocupaccedilatildeo por parte dos professores de gramaacutetica linguiacutestica Os professores de literatura para aleacutem do curriacuteculo no que vem depois da faculdade (Estudante 1)

Apenas nas disciplinas de liacutengua portuguesa (variaccedilatildeo morfologia morfossintaxe etc) Nas mateacuterias de literatura ou se apresenta o curso de forma panoracircmica ou pensamos a literatura criticamente como pesquisadores da aacuterea de literatura mais voltados para a academia do que para o ensino (Estudante 2)

Este curso [variaccedilatildeo linguiacutestica] foi fundamental para que eu me tornasse uma professora consciente No caso das literaturas natildeo sinto a mesma coisa Se natildeo tivesse participado do Pibid penso que natildeo teria tido qualquer oportunidade de refletir melhor acerca da literatura na escola baacutesica (Estudante 3)

A maioria das cadeiras de literatura focaliza mais no plano teoacuterico dificilmente em como levar essa teoria para a sala de aula (Estudante 4)

As respostas desses estudantes apontam para um vaacutecuo nas discussotildees sobre o ensino de literatura na educaccedilatildeo baacutesica ateacute praticamente o final do curso Um ou outro afirma ter cursado uma disciplina optativa sobre ensino de literatura que eacute bastante disputada e por essa razatildeo natildeo consegue dar conta da demanda de treze habilitaccedilotildees6 Em contrapartida vemos que disciplinas ligadas agrave liacutengua portuguesa e agrave linguiacutestica tematizam o ensino de liacutengua desconstroem conceitos equivocados

5 A questatildeo proposta eacute a seguinte ldquoAteacute este momento no curso de Letras excetuando as disciplinas pedagoacutegicas houve uma preocupaccedilatildeo dos professores das demais disciplinas em discutir o ensino de liacutengua literatura produccedilatildeo textual oralidade e leitura na escola baacutesica Em quais disciplinas houve essa discussatildeo Em quais disciplinas natildeo houve nenhuma discussatildeo desse tipordquo

6 As treze habilitaccedilotildees oferecidas pela UFRJ satildeo Portuguecircs-Literaturas e Portuguecircs + outra habilitaccedilatildeo (aacuterabe alematildeo espanhol francecircs grego hebraico inglecircs japonecircs latim italiano russo e LIBRAS) Esses cursos satildeo oferecidos como bacharelado ou licenciatura

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propotildeem novas metodologias para romper com uma tradiccedilatildeo normativa de ensino Uma raacutepida anaacutelise do mercado editorial brasileiro nos livros sobre ensino de liacutengua e literatura seria suficiente para constatar que a maioria dos estudos eacute da aacuterea de liacutengua7

Haacute uma forte tradiccedilatildeo beletrista por traacutes desse gesto de ignorar a escola por parte dos professores que ensinam literaturateoria da literatura em grandes universidades As leituras complexas promovidas pelos professores universitaacuterios e o forte aparato teoacuterico para se ler um poema por exemplo apontam unicamente para a leitura como algo feito para poucos Como tal a literatura passa a ser vista como algo impossiacutevel de ser levado para a escola Ela eacute um objeto de culto e de admiraccedilatildeo para esses futuros professores

Pode-se pensar que assim como os estudantes da educaccedilatildeo baacutesica dividem sua identidade leitora ndash dando para a escola as respostas esperadas quanto agraves obras indicadas e acionando seus direitos de leitor fora de sala ndash esses futuros professores tambeacutem tenham uma relaccedilatildeo complexa e mal resolvida com a literatura obras lidas unicamente por obrigaccedilatildeo de modo fragmentaacuterio com pouco espaccedilo para a subjetividade e com base em seleccedilotildees promovidas pelos professores sem que haja qualquer tipo de problematizaccedilatildeo sobre os criteacuterios de escolha Todas essas praacuteticas repetidas do iniacutecio ao fim da licenciatura tecircm uma forte tendecircncia de serem replicadas em escala menor na educaccedilatildeo baacutesica Por sua vez competecircncias essenciais para formar leitores em qualquer niacutevel de ensino natildeo satildeo postas em praacutetica como a busca por dar sentido ao que estaacute sendo lido a leitura de obras na integralidade ndash levando-se em conta a materialidade dos livros a abertura para interpretaccedilotildees subjetivas implicadas e a discussatildeo dos criteacuterios de escolha seleccedilatildeo das obras

Outro ponto problemaacutetico na formaccedilatildeo desses futuros professores estaacute ligado aos curriacuteculos dessas licenciaturas extensos universalistas sem a possibilidade da construccedilatildeo de trajetoacuterias diferenciadas e com a ausecircncia de temaacuteticas oacutebvias como o lugar da literatura infantil e infanto-juvenil como afirmou Angela Kleiman (2017) durante o IV Encontro de Ensino e Aprendizagem em Liacutenguas e Literaturas

Eacute preciso enfrentar o problema das Licenciaturas em Letras que natildeo se assumem como tal nas quais ndash via de regra ndash sequer haacute disciplinas obrigatoacuterias de um campo como a leitura Literatura Infantil Literatura Juvenil Leitura Ensino de Leitura Letramento Literaacuterio Ensino da Literatura e Formaccedilatildeo de Leitores

Quanto agrave literatura infanto-juvenil nos deparamos com uma questatildeo matemaacutetica se estamos formando futuros professores para atuarem na educaccedilatildeo baacutesica temos de considerar que haacute uma maior possibilidade de esses profissionais atuarem do sexto ao nono ano (quatro seacuteries) do que no ensino meacutedio (trecircs seacuteries) Apesar da obviedade matemaacutetica a produccedilatildeo literaacuteria para crianccedilas e jovens figura no curriacuteculo desses professores como disciplina optativa ndash isso num curso com uma carga horaacuteria elevada que daacute pouca margem para escolhas

7 Natildeo problematizaremos aqui os fatores que levam o ensino de liacutengua materna na educaccedilatildeo baacutesica a ter mudado tatildeo pouco nas uacuteltimas deacutecadas apesar de uma discussatildeo teoacuterica tatildeo profiacutecua

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Cumprindo apenas os requisitos obrigatoacuterios o estudante dessa licenciatura seraacute professor sem conhecer absolutamente nada da produccedilatildeo para crianccedilas e jovens podendo optar se iraacute ou natildeo pensar no ensino de literatura na escola Ele teraacute dificuldade para se colocar do lado dos leitores em formaccedilatildeo Ele teraacute dificuldade para pensar nas suas escolhas para a sala de aula Ele natildeo teraacute construiacutedo criteacuterios que baseiem suas escolhas (faixa etaacuteria interesses aprendizagens literaacuterias possiacuteveis etc) e estaraacute longe de entender que ldquoum bom corpus nem sempre eacute formado pelas melhores obras Esse corpus deve ser composto por livros com diferentes graus de dificuldade Reforccedilar a autoimagem positiva de leitores e natildeo desestimulaacute-lardquo (COLOMER 2007 p113)

Diante desse cenaacuterio natildeo eacute de se estranhar que a literatura seja um objeto em extinccedilatildeo nas praacuteticas escolares Natildeo eacute de se estranhar que a formaccedilatildeo de leitores na escola encontre tantas barreiras Natildeo eacute de se estranhar que ainda recebamos nos cursos de Letras alunos que raramente leram literatura na escola ndash satildeo inuacutemeros relatos da ausecircncia completa da indicaccedilatildeo de livros ou entatildeo de praacuteticas de leitura anacrocircnicas e pouco efetivas (fichas de leitura resumos provas historiografia literaacuteria no lugar da literatura) Depois o que assistimos eacute o velho choro sobre o leite derramado os estudantes de Letras natildeo leem (como se a universidade natildeo tivesse nada a ver com isso) Mas eacute justamente a percepccedilatildeo desse quadro amplo e complexo no qual estamos inseridos que tem norteado algumas reflexotildees teoacutericas voltadas para a construccedilatildeo da imagem desses jovens como leitores e principalmente como formadores de futuros leitores

2 As liccedilotildees de Michegravele Petit em Os jovens e a leitura

Foi por meio de minha atuaccedilatildeo na Didaacutetica e na Praacutetica de Ensino de Portuguecircs e Literatura que conheci a obra de Michegravele Petit Ao terminar de ler Os jovens e a leitura (2008) estava convencido de que se tratava de um livro essencial para se pensar na formaccedilatildeo de identidades leitoras e de que muito do que estava escrito ali ndash falando dos jovens da periferia francesa (muitos imigrantes ou descendentes de imigrantes) ndash tocaria fundo nestes jovens estudantes de Letras em sua maioria moradores das periferias do Rio de Janeiro e de cidades vizinhas

Em pouco tempo como professor da UFRJ tinha ouvido muito sobre a trajetoacuteria deles como leitores Os relatos eram muacuteltiplos incentivos familiares versus falta de incentivo acesso a livros em situaccedilotildees variadas versus ausecircncia total de contato praacuteticas escolares que os aproximaram da leitura versus um sentido burocraacutetico da leitura escolar bibliotecas escolares bem estruturadas e com pessoas preocupadas em promover encontros significativos (raros casos) versus bibliotecas e acervos fechados a sete chaves ou bibliotecas que eram depoacutesitos de livros didaacuteticos (a maioria das vezes)

Um caso que me chamou especial atenccedilatildeo se referia ao extinto projeto ldquoLiteratura em Minha Casardquo que durou entre 2001 e 2004 e que era uma das accedilotildees do Programa Nacional da Biblioteca Escolar (PNBE) Na paacutegina do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo (FNDE) aparece a seguinte descriccedilatildeo do projeto

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Denominado ldquoLiteratura em Minha Casardquo o acervo foi composto por seis coleccedilotildees diferentes cada uma com cinco tiacutetulos poesia de autor brasileiro conto novela claacutessico da literatura universal e peccedila teatral Pela primeira vez as coleccedilotildees foram entregues aos alunos para levarem para casa A ideia do programa foi incentivar a leitura e a troca dos livros entre os alunos aleacutem de permitir agrave famiacutelia do estudante a opccedilatildeo de leitura em casa As escolas tambeacutem receberam quatro acervos para sua biblioteca8

Este projeto visava a oportunizar um contato com obras literaacuterias para crianccedilas e jovens que muitas vezes natildeo tinham acesso a livros Assim de maneira proposital natildeo havia uma orientaccedilatildeo pedagoacutegica para a ldquoutilizaccedilatildeordquo desses livros que deveriam ser somente fornecidos aos estudantes Tratava-se de uma experiecircncia de leitura ligada agrave fruiccedilatildeo ndash forma de leitura preconizada nos documentos oficiais mas de difiacutecil implantaccedilatildeo nas rotinas de sala de aula em razatildeo do caraacuteter utilitaacuterio da leitura A questatildeo eacute que para os professores e gestores escolares natildeo estavam claros os reais objetivos do projeto Aleacutem disso a distribuiccedilatildeo desses materiais natildeo foi feita conforme o planejado (um kit com cinco livros para cada aluno) ou os kits sequer foram distribuiacutedos ficando na biblioteca da escola

Apesar de todos os problemas e da curta duraccedilatildeo do ldquoLiteratura em Minha Casardquo pude encontrar alguns estudantes de Letras que se lembravam de terem recebido livros do programa A maioria apontava uma experiecircncia positiva e conseguia descrever alguns livros que haviam recebido naquela eacutepoca (haacute mais de dez anos) como se pode perceber no depoimento do licenciando

A coleccedilatildeo ldquoLiteratura em Minha Casardquo teve importante papel na minha formaccedilatildeo como leitor primeiro porque me deu acesso a grandes claacutessicos da literatura universal como A Iliacuteada e Os miseraacuteveis adaptados para um puacuteblico infanto-juvenil o que natildeo soacute me permitiu o contato com essas e outras obras como estimulou o meu interesse em conhecer mais tarde as suas versotildees originais Aleacutem disso a coleccedilatildeo por ser distribuiacuteda gratuitamente nas escolas da rede puacuteblica contemplou alunos que como eu natildeo dispunham de uma biblioteca em casa e tampouco poder aquisitivo para a compra de livros Os livros da coleccedilatildeo eram lidos e trocados entre os amigos eram comentados e o mais importante de tudo vinham como uma espeacutecie de presente tiacutenhamos total liberdade para administrar a leitura conforme nossa vontade podiacuteamos ateacute mesmo exercer a vontade de natildeo ler o que muitos evidentemente faziam Contudo tiacutenhamos uma porta aberta agrave nossa frente pronta para ser explorada (Estudante 6)

No entanto houve um comentaacuterio negativo de uma aluna que se lembrava de ter recebido os livros e de ter ficado frustrada por natildeo dar conta das leituras e por natildeo ter tido naquele momento o apoio de professores para esclarecer suas duacutevidas Diante dos

8 Disponiacutevel em lthttpwwwfndegovbrprogramasbiblioteca-da-escolabiblioteca-da-escola-historicogtAcesso em 20 abr 2017

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livros recebidos ela se sentiu incapaz e esse sentimento de incapacidade fragilizou sua identidade leitora Jaacute outra aluna relatou que na escola onde estudava foi criado um momento durante os intervalos ndash nos moldes de raacutedio da escola ndash para que os estudantes compartilhassem as impressotildees sobre os livros que estavam lendo e que isso foi decisivo na sua formaccedilatildeo como leitora

Essas trajetoacuterias tatildeo diferenciadas apontam para aquilo que Michegravele Petit (2008) tambeacutem percebeu entre os jovens da periferia francesa O contato com a leitura os significados a ela atribuiacutedos e as relaccedilotildees com o livro como objeto podiam variar muito Havia muitos riscos relacionados agrave leitura A leitura podia favorecer o desenvolvimento de identidades mais abertas e plurais ou podia contribuir para o rompimento com a cultura de origem Antigos preconceitos vinham agrave tona como aqueles que viam na leitura uma atividade burguesa para pessoas desocupadas

Por tudo isso ficou evidente que o livro de Petit deveria constar da ementa da disciplina de Didaacutetica e que deveria ser uma leitura norteadora em nossas discussotildees O desafio era saber o quanto aqueles estudantes de Letras conseguiriam relacionar as trajetoacuterias dos jovens leitores franceses das periferias agraves suas proacuteprias trajetoacuterias de leitores e tambeacutem que diferenccedilas eles perceberiam por exemplo no fato de aquela pesquisa ter se concentrado em jovens que frequentavam as bibliotecas dos subuacuterbios de Paris quando no Brasil poucos bairros perifeacutericos tecircm bibliotecas

Como forma de dimensionar o papel de tais espaccedilos houve uma visita agrave Biblioteca Parque Estadual do Rio de Janeiro (BPE) que remete ao modelo das bibliotecas colombianas constituindo-se num espaccedilo de conviacutevio e de experiecircncias culturais variadas (filmes cursos teatro) aleacutem de um acervo composto por livros novos e diversificados A BPE estaacute localizada numa regiatildeo estrateacutegica do Rio nas proximidades da Central do Brasil ndash ponto de passagem dos transportes puacuteblicos suburbanos (ocircnibus trem metrocirc vans)

A primeira dessas visitas foi realizada com as turmas de Didaacutetica I no segundo semestre de 2014 e coincidiu com uma interessante exposiccedilatildeo intitulada ldquoBiblioteca de grifos Wally Salomatildeordquo que trazia grandes cartazes reproduzindo paacuteginas dos livros da biblioteca do poeta com sublinhados anotaccedilotildees poemas etc Era o gesto de um autor ldquomarginalrdquo escrevendo agraves margens dos livros Muitos desses cartazes continuam ateacute hoje expostos na Biblioteca e acabaram por se incorporar ao visual do espaccedilo9

Quanto agraves leituras promovidas naquele semestre havia o pressuposto de fazecirc-los lembrar de um gesto leitor simples escolher um livro Por isso foram indicadas trecircs obras que tratavam do ensino de literatura Aleacutem do livro de Michegravele Petit foram indicados Leitura de literatura na escola (DALVI M A REZENDE N L JOVER-FALEIROS R 2013) e Leitura subjetiva e ensino de literatura (ROUXEL A LANGLADE G REZENDE N L 2013) Foram

9 A Biblioteca Parque Estadual atualmente natildeo estaacute funcionando por conta da natildeo renovaccedilatildeo do contrato da empresa responsaacutevel por sua administraccedilatildeo Ela funcionou ateacute o final de 2016 com recursos do municiacutepio A mesma situaccedilatildeo se repete em outros espaccedilos culturais da cidade que foram fechados em decorrecircncia ldquoda crise do estadordquo

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fornecidos aos estudantes alguns elementos paratextuais daqueles livros capas iacutendices informaccedilotildees sobre os autores Estando de posse desses materiais caberia a eles escolher que livro gostariam de ler ao longo do semestre e comentar sobre os motivos da escolha

Eacute um gesto simples Muito simples mas poderoso A possibilidade de escolher um livro mesmo que seja uma escolha direcionada com livros preacute-definidos pelo professor cria um viacutenculo um comprometimento com aquela leitura Poreacutem apesar de ser um gesto simples nenhum estudante se lembrava de ter escolhido um livro para leitura durante sua vida escolar ndash incluindo a passagem pela universidade O uso de elementos paratextuais para justificar a escolha de um livro ndash algo normal entre leitores ndash tambeacutem nunca havia sido posto em praacutetica

Ao longo do semestre procurei garantir as condiccedilotildees de oferta dos livros indicando sites para compra e pedindo ao livreiro da universidade que encomendasse exemplares das obras indicadas Esse foi um momento de aprendizagem jaacute que alguns natildeo conheciam o Estante Virtual ou ainda natildeo tinham comprado um livro on-line enquanto outros jaacute conheciam essas possibilidades

Os livros foram apresentados pelos estudantes ao final da disciplina mas ao longo do semestre os comentaacuterios surgiam a toda hora Nos dias das apresentaccedilotildees pude presenciar situaccedilotildees que denotavam o grau de envolvimento deles com a atividade livros marcados com bandeirolas sublinhados frases anotadas nos cadernos falas desenvoltas sobre as obras exemplos que se relacionavam agraves suas trajetoacuterias de leitores E um detalhe importante nenhum aluno havia xerocado o livro Todos falavam com o livro em matildeos

Contudo a constataccedilatildeo mais importante apontava para um grande problema que pode ser assim resumido os conflitos vivenciados por aqueles jovens das periferias francesas no contato com a cultura oficial eram semelhantes aos conflitos que eles vivenciavam no curso de Letras na cidade do Rio de Janeiro Eles tambeacutem viviam entre duas culturas a sua de origem (perifeacuterica suburbana pouco letrada) e aquela oferecida pelo curso de Letras com um peso grande numa tradiccedilatildeo literaacuteria (branca elitista beletrista) O sucesso no curso dependia muitas vezes de um rompimento com sua cultura de origem colocada num segundo plano Em lugar da ruptura o que se esperava ali era na verdade que esses jovens e futuros professores conseguissem ao longo do curso compor uma identidade complexa em construccedilatildeo percebendo que ldquoa leitura na realidade eacute uma promessa de natildeo pertencer somente a um pequeno ciacuterculordquo (PETIT 2008 p96)

Consideraccedilotildees finais

A atuaccedilatildeo como professor de liacutengua portuguesa e literatura na escola de educaccedilatildeo baacutesica requer profissionais capazes de em linhas gerais 1) formar leitores na escola 2) fazer com que crianccedilas e jovens escrevam com desenvoltura diversos gecircneros textuais 3) levar crianccedilas e jovens a refletirem sobre usos linguiacutesticos sobre a adequaccedilatildeo de linguagem em diferentes contextos Por outro lado devemos pensar que muitos licenciandos em Letras que estudaram em escolas puacuteblicas do Rio de Janeiro tiveram aulas de liacutengua

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portuguesa e literatura que podem ser sintetizadas da seguinte forma 1) ausecircncia de leituras ou quando muito informaccedilotildees enciclopeacutedicas sobre autores e obras 2) uma escrita voltada unicamente para a praacutetica de gecircneros escolares como a dissertaccedilatildeo 3) ensino normativo da liacutengua enfatizando-se a nomenclatura gramatical

O ensino de liacutengua literatura e produccedilatildeo textual deveria ser percebido de uma maneira articulada pois a separaccedilatildeo desses conteuacutedos em disciplinas (Gramaacutetica Redaccedilatildeo e Literatura) traz para o ambiente escolar uma divisatildeo especializaccedilatildeo que pouco contribui para o aluno da educaccedilatildeo baacutesica Trata-se de uma pedagogia da fragmentaccedilatildeo que delega ao aluno nesse caso da educaccedilatildeo baacutesica a tarefa de juntar as peccedilas qual eacute a relaccedilatildeo das oraccedilotildees subordinadas com a obra de Graciliano Ramos Qual eacute a relaccedilatildeo de tudo isso com a uacuteltima proposta de produccedilatildeo textual do professor de Redaccedilatildeo

Tal pedagogia da fragmentaccedilatildeo encontra amplo espaccedilo nas licenciaturas Desde cedo os estudantes das graduaccedilotildees se veem obrigados a se especializarem para conseguirem bolsas de iniciaccedilatildeo cientiacutefica ou para depois atuarem nas escolas como professores de determinada aacuterea liacutengua literatura ou redaccedilatildeo10 Na contramatildeo de tudo isso as teorias sobre o ensino da liacutengua mostram que eacute impossiacutevel discutir aspectos gramaticais fora do texto que o ensino da literatura pode ser mais produtivo quando articulado com a escrita e que a escrita literaacuteria pode levar a um entendimento melhor dos mecanismos utilizados nas obras literaacuterias (BUNZEN 2006 MARCUSCHI 2008 ANTUNES 2009 GERALDI 2014)

Pede-se ao estudante de Letras que entenda esse quadro complexo do ensino de liacutengua portuguesa literatura e produccedilatildeo textual no Brasil quando esse natildeo eacute o foco do curso que ele faz quando em seu proacuteprio curso natildeo haacute momentos de diaacutelogos e trocas entre essas ldquodiferentesrdquo aacutereas

Some-se a isso a divisatildeo arbitraacuteria entre as disciplinas que satildeo propriamente do Curso de Letras ndash revestidas de prestiacutegio ndash e as disciplinas oferecidas pela Faculdade de Educaccedilatildeo muitas vezes desvalorizadas ou postas em segundo plano Atente-se para o fato de que essa separaccedilatildeo eacute marcada inclusive no plano geograacutefico a Faculdade de Letras na Ilha do Fundatildeo (Zona Norte da cidade) a Faculdade de Educaccedilatildeo na Praia Vermelha (Zona Sul da cidade) Para marcar melhor essa fragmentaccedilatildeo eacute preciso lembrar que o Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da UFRJ tambeacutem estaacute localizado na Zona Sul da cidade numa das regiotildees de mais difiacutecil acesso para os moradores da Zona Norte nas proximidades da Lagoa Rodrigo de Freitas

Tudo isso parece apontar para uma necessidade imperiosa de se rever a articulaccedilatildeo entre teorias e praacuteticas pois como jaacute apontava Joatildeo Wanderley Geraldi num verdadeiro claacutessico do ensino de liacutengua literatura e redaccedilatildeo

Qualquer proposta metodoloacutegica eacute a articulaccedilatildeo de uma concepccedilatildeo de mundo e de educaccedilatildeo ndash e por isso uma concepccedilatildeo de ato poliacutetico ndash e

10 Essa divisatildeo eacute ainda vivenciada em muitas escolas puacuteblicas do Rio de Janeiro que possuem um professor para cada ldquoaacutereardquo A cultura acadecircmica tambeacutem estimula essa fragmentaccedilatildeo por meio da precoce ldquoespecializaccedilatildeo do graduandordquo que adere a uma linha de pesquisa de liacutengua ou de literatura e verbaliza isso ao dizer ldquoeu sou da liacutenguardquo ldquoeu sou da literaturardquo

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uma concepccedilatildeo epistemoloacutegica do objeto de reflexatildeo ndash no nosso caso a linguagem ndash com as atividades desenvolvidas em sala de aula (GERALDI 2011 p128)

Ora essa afirmativa que pode beirar a obviedade ndashpropostas metodoloacutegicas articulam escolhas poliacuteticas ndash publicada haacute mais de trinta anos num livro voltado para professores de educaccedilatildeo baacutesica ganha contornos dramaacuteticos de atualidade no contexto que vivenciamos de formaccedilatildeo de professores de Letras A natildeo percepccedilatildeo das realidades desses jovens que chegam agrave universidade para se tornarem professores e a ausecircncia de tentativa de formaacute-los leitores numa clave complexa tecircm levado agrave repeticcedilatildeo de praacuteticas de escrita e leitura contraditoacuterias com a ideia libertadora e democraacutetica que deveria permear as relaccedilotildees entre teoria e praacutetica na universidade

Todas essas questotildees soacute podem ser pensadas num quadro mais complexo de formaccedilatildeo de professores Talvez o proacuteprio nome Letras que eacute dado para este curso aponte para uma direccedilatildeo diferente daquela que seria a de um curso que se preocupasse em formar professores para atuarem na educaccedilatildeo baacutesica Talvez essa palavra traga mesmo um forte conteuacutedo elitista ligado ao ensino da literatura como algo para poucos11

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11 Este ano de 2017 foi marcado por uma seacuterie de movimentos em torno da reforma curricular do Curso de Letras da UFRJ Muitas dessas questotildees foram discutidas no I Congresso Interno da Faculdade de Letras e nas reuniotildees do Nuacutecleo Docente Estruturante Acredito que houve um grande avanccedilo nas discussotildees e um maior entendimento da necessidade da universidade aproximar-se da escola de educaccedilatildeo baacutesica reconhecendo nela o locus de formaccedilatildeo de uma cultura profissional Neste sentido a universidade estaacute em processo de construccedilatildeo de um complexo de formaccedilatildeo com o a contribuiccedilatildeo do professor Antoacutenio Noacutevoa (Universidade de Coimbra) que visa criar uma relaccedilatildeo mais estreita com as redes de ensino Nem tudo eacute penumbra haacute muitas faiscaccedilotildees de esperanccedila

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Recebido em 29 de abril de 2017

Aceito em 23 de outubro de 2017

Marcos Scheffel

Professor de Didaacutetica e Praacutetica de Ensino de Portuguecircs e Literatura da UFRJ desde 2013 Doutor em Teoria Literaacuteria pela Universidade Federal de Santa Catarina (2011) Atuou na educaccedilatildeo baacutesica em Santa Catarina entre 2000 e 2008 marcosscheffel53gmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Estaacutegio supervisionado em Letras da UFGD mediando leituras e formando leitores

Supervised Internship in Letras at UFGD Mediating Readings and Forming Readers

Praacutecticas supervisadas en Letras de la UFGD mediando lecturas y formando lectores

Alexandra Santos Pinheiro Universidade Federal da Grande Dourados

Resumo

No presente artigo analisamos o Estaacutegio Supervisionado em Literatura pela perspectiva da formaccedilatildeo de leitores Apoacutes apresentarmos o regimento que norteia o componente curricular no curso de Letras refletimos sobre a dificuldade demonstrada pelos estagiaacuterios de proporem planos de intervenccedilatildeo que visem a formaccedilatildeo de leitores da educaccedilatildeo baacutesica Identificamos nesta dificuldade duas questotildees relevantes a pouca relaccedilatildeo estabelecida ao longo da graduaccedilatildeo com as disciplinas voltadas ao texto literaacuterio e a falta de graduandos que se constituam como leitores Palavras-chave Literatura Estaacutegio leitores

Abstract

In the present article we analyze the Supervised Internship in Literature from the perspective of the formation of readers After presenting the regiment that guides this course in the Letras undergraduate program we reflect on the difficulty the interns have to propose intervention plans that aim at the formation of readers within school education In this difficulty we identified two important issues the low commitment tounder graduate courses focused on the literary text and the lack of graduates who are readers themselves Keywords Literature Internship readers

Resumen

En este trabajo se analiza las praacutecticas supervisadas en la literatura desde la perspectiva de la formacioacuten de lectores Tras la presentacioacuten del regimiento que guiacutea el componente curricular en el curso de Letras se reflexiona sobre la dificultad de los alumnos para proponer planes de accioacuten destinados a la formacioacuten de los lectores de la educacioacuten baacutesica Se identifican en esta dificultad dos cuestiones importantes la poca relacioacuten que se establece a lo largo de la graduacioacuten con cursos orientados al texto literario y la falta de alumnos en formacioacuten que constituyan en lectores Palabras clave Literatura Praacutecticas lectores

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1 Palavras iniciais

Na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) o Estaacutegio de Literatura e de Liacutengua Portuguesa eacute pautado por um Regulamento de Estaacutegio (2009) normas que regem a praacutetica de estaacutegio nas duas habilitaccedilotildees do curso de Letras da Faculdade de Artes e Letras (FACALE) dessa universidade Literatura e Inglecircs como liacutengua estrangeira Com base nas normas os alunos propotildeem um plano de aulas Nestes planos os professores orientadores de Estaacutegio Supervisionado de Liacutengua Portuguesa e de Literatura priorizam um trabalho que envolva ensino pesquisa e extensatildeo As orientaccedilotildees em sala de aula a investigaccedilatildeo do funcionamento das instituiccedilotildees escolares de Ensino Fundamental e Meacutedio e a reflexatildeo sobre as observaccedilotildees e regecircncias resultam na elaboraccedilatildeo dos planos No processo de elaboraccedilatildeo os acadecircmicos satildeo orientados a pensar a partir da concepccedilatildeo teoacuterica dos gecircneros textuais que para Bakhtin (2000 p 279) eacute ldquoum enunciado de natureza histoacuterica sociointeracional ideoloacutegica e linguiacutesticardquo E acrescenta ldquoa utilizaccedilatildeo da liacutengua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e uacutenicos que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humanardquo (BAKHTIN 2000 p 279)

Acreditamos ser o estaacutegio para muitos graduandos1 o responsaacutevel por lhes apresentar a realidade escolar e por incutir-lhes o sentimento de que os conhecimentos adquiridos ao longo da graduaccedilatildeo natildeo satildeo suficientes para o exerciacutecio docente mostrando-lhe assim a necessidade de constante pesquisa

Selma Pimenta (2006) constata um fato que muitas vezes pode ser percebido nos cursos de licenciatura do ensino superior Conforme a autora os estagiaacuterios ficam confusos durante a regecircncia porque percebem que os conteuacutedos aprendidos durante o curso natildeo condizem com a realidade da sala de aula dos niacuteveis de ensino Fundamental e Meacutedio Se pensarmos no curso de licenciatura em Letras quantos graduados diante de sua primeira experiecircncia profissional sentem-se perdidos diante dos conteuacutedos a serem ministrados A carga horaacuteria destinada ao estudo da linguiacutestica natildeo lhes daacute subsiacutedios para trabalhar com alunos que muitas vezes chegam ao final do Ensino Fundamental ou mesmo do Ensino Meacutedio sem as capacidades necessaacuterias para estruturar um texto escrito com o miacutenimo de coerecircncia e coesatildeo E o que dizer das aulas de Teoria Literaacuteria Como ler com os educandos do Ensino Meacutedio as obras de Machado de Assis Guimaratildees Rosa Joatildeo Cabral de Melo Neto cacircnones que no discurso dos professores de teoria literaacuteria pareciam tatildeo inteligiacuteveis mas que para a maioria dos ldquoleitoresrdquo satildeo incompreensiacuteveis

O Estaacutegio Supervisionado precisaria possibilitar essa reflexatildeo Deveria representar o momento em que o acadecircmico pensaria o curso de Letras o conhecimento alcanccedilado e as limitaccedilotildees dele (graduando) e de seu curso diante da realidade que o espera do lado de fora da Universidade O Estaacutegio deveria oferecer ao futuro licenciado a oportunidade de

1 Muitos graduandos natildeo podem participar do Programa de Bolsa de Incentivo agrave Docecircncia (PIBID) que existe desde 2009 oferecendo ao aluno oportunidade de muitas horas de atividades nas escolas devido agrave necessidade de trabalhar para sustentar ou contribuir com o sustento de suas famiacutelias

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compreender que o conteuacutedo teoacuterico do curso eacute tatildeo importante quanto pensar a melhor metodologia para desenvolver com os seus futuros alunos em quaisquer niacuteveis

Em nossa instituiccedilatildeo aleacutem da Lei Federal que parametriza os estaacutegios em niacutevel nacional nordm 117882008 de 25092008 temos a Resoluccedilatildeo nordm 118 - CEPEC de 13092007 Delineadas as leis que nortearamnorteiam o estaacutegio no Brasil ficam as questotildees como ele deve ser feito Como fazer e para quecirc Pensando nas questotildees metodoloacutegicas na UFGD como na maioria das licenciaturas a disciplina de Estaacutegio Supervisionado eacute ministrada nos dois uacuteltimos anos do curso No 3deg ano faz-se o estaacutegio de observaccedilatildeo e no 4deg ano o estaacutegio de regecircncia ambos no Ensino Fundamental e Meacutedio Em geral para o cumprimento das atividades e obtenccedilatildeo de uma meacutedia final satisfatoacuteria o estudante precisa

a assistir a uma quantidade X de aulas em escolas dos ensinos fundamental e meacutedio2

b escolher um tema a ser aprofundado teoacuterico-metodologicamente numa sala de aula do ensino baacutesico

c construir planos de aula para a regecircncia Neste plano os graduandos devem apoiando-se nas teorias linguiacutesticas e literaacuterias estudadas durante o curso explicitar a metodologia referencial teoacuterico justificativa objetivos e avaliaccedilatildeo

d participar de seminaacuterios e discussotildees durante o ano letivo para levantamento de problemas observados em sala de aula e suas possiacuteveis intervenccedilotildees

e entregar relatoacuterio de estaacutegio que em siacutentese vai mostrar o percurso do estudante em todas as atividades elencadas

Para o Estaacutegio Supervisionado em Literatura I satildeo previstas a observaccedilatildeo e a regecircncia no Ensino Fundamental do 6ordm ao 9ordm ano e para o Estaacutegio Supervisionado em Literatura II a observaccedilatildeo e a regecircncia no Ensino Meacutedio Nas reformulaccedilotildees jaacute feitas no projeto poliacutetico pedagoacutegico como ementa temos

a reflexotildees teoacuterico-metodoloacutegicas acerca do Estaacutegio Supervisionado e do ensino de literatura nos uacuteltimos anos do Ensino Fundamental visando agrave formaccedilatildeo do profissional de Letras

b Usos de tecnologia na educaccedilatildeo

c Normas e legislaccedilatildeo

No plano de aula o estudante deve apresentar um problema de ensino voltado para a mediaccedilatildeo do texto literaacuterio Deve o estudante basear-se no referencial teoacuterico que o guiaraacute durante o desenvolvimento do plano numa determinada realidade escolar e especificar a

2 Pela norma que regulamenta o estaacutegio supervisionado a Comissatildeo de Estaacutegio (COES) acordou nos seguintes termos a carga horaacuteria para o estaacutegio Liacutengua Portuguesa ndash 20 horas no Ensino Fundamental e 20 horas no Ensino Meacutedio Liacutengua Inglesa ndash 20 horas no Ensino Fundamental ou no Ensino Meacutedio eou em escolas de idiomas Literatura ndash 20 horas no Ensino Fundamental eou no Ensino Meacutedio

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metodologia seus objetivos e a que conclusatildeo pretende chegar Na praacutetica acumulamos a cada ano as dificuldades de muitos graduandos em propor e executar uma atividade de formaccedilatildeo de leitores ou de mediaccedilatildeo de leitura Os obstaacuteculos se fossem apenas relacionados agrave fundamentaccedilatildeo teoacuterica seriam compreensiacuteveis poreacutem eles se refletem tambeacutem na escolha dos textos literaacuterios Nos debates em classe a maioria admite natildeo assumir a praacutetica da leitura e reconhece que lhes falta repertoacuterio de obras literaacuterias para iniciar a preparaccedilatildeo de uma aula que objetive a mediaccedilatildeo da leitura Os limites apresentados infelizmente acompanham alguns dos graduandos em seu percurso profissional que continuaraacute marcado como veremos a seguir pela ausecircncia da praacutetica de leitura literaacuteria

2 Estaacutegio e ensino de literatura entre a teoria e a praacutetica

Se no Brasil o Letramento eacute definido como ldquoEstado ou condiccedilatildeo de quem natildeo apenas sabe ler e escrever mas cultiva e exerce as praacuteticas sociais que usam a escritardquo (SOARES 2007 p 17) o letramento literaacuterio seria visto entatildeo como estado ou condiccedilatildeo de quem natildeo apenas eacute capaz de ler poesia prosa ou drama mas dele se apropria efetivamente por meio da experiecircncia esteacutetica Sempre que possiacutevel dialogamos com Barthes (1980) para quem o texto literaacuterio eacute ldquoum monumentordquo capaz de incorporar as demais imagens Abramovich trabalha na mesma direccedilatildeo e afirma

Eacute atraveacutes duma histoacuteria que se podem descobrir outros lugares outros tempos outros jeitos de agir e de ser outra eacutetica outra oacutetica Eacute ficar sabendo Histoacuteria Geografia Filosofia Poliacutetica Sociologia sem precisar saber o nome disso tudo e muito menos achar que tem cara de aula (ABRAMOVICH 1995 p 17)

Tanto o discurso de Barthes quanto o de Abramovich contribuem para a defesa da literatura e da formaccedilatildeo de leitores Depoimentos como o do filoacutesofo Sartre amparam esses argumentos Sartre rememora sua infacircncia camponesa ele que nunca mexeu na terra nem jogou pedras nos passarinhos Contudo para o autor os livros foram seus passarinhos seus ninhos animais de estimaccedilatildeo

As densas lembranccedilas e o doce contra-senso das crianccedilas camponesas em vatildeo os procuraria em mim Nunca fucei a terra nem procurei ninhos natildeo colecionei plantas nem joguei pedras nos passarinhos No entanto os livros foram meus passarinhos e meus ninhos meus animais de estimaccedilatildeo meu estaacutebulo e meu campo (SARTRE 1993 apud SANTIAGO 1978 p 23)3

3 Cf o trecho original ldquoLes souvenirs touffus et la douce deacuteraison des enfances paysannes en vain les chercherais-je en moi Je nrsquoai jamais gratteacute la terre ni quecircteacute des nids je nrsquoai pasher boriseacute ni lanceacute des Pierre sauxois e aux Mais les libre sonteacuteteacute me sois e aux et mes nids mes becirctes domestiques moneacutetable et ma campagnerdquo

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Nesse sentido percebemos que eacute preciso quando se coloca a literatura e seu ensino em pauta defender o seu espaccedilo nas praacuteticas escolares e assegurar a sua importacircncia para a formaccedilatildeo integral do cidadatildeo Principalmente em realidades como a enfrentada pelo estado do Mato Grosso do Sul que no ano de 2017 excluiu a literatura do curriacuteculo do ensino meacutedio sob o pretexto de que ela seria incorporada pela disciplina de Liacutengua Portuguesa Ao longo da experiecircncia com projetos de Formaccedilatildeo Continuada de professores temos percebido que no ambiente escolar as praacuteticas pedagoacutegicas do ensino de literatura colaboram para um processo que estaacute longe de formar leitores As praacuteticas escolares de muitos professores privilegiam o fragmento literaacuterio o recorte de um texto literaacuterio feito por algueacutem e natildeo o livro Desta forma os fragmentos literaacuterios presentes nos livros didaacuteticos tiram da escola o livro que congrega autor e obra sociedade e mundo representado cultura e economia Aleacutem disso hoje o livro tambeacutem concorre com os meios de comunicaccedilatildeo e com as tecnologias na aacuterea da informaacutetica que alguns pesquisadores vatildeo apontar como obstaacuteculos a serem vencidos no processo de formaccedilatildeo de leitores literaacuterios

Autores decididos a amenizar os problemas da (natildeo) leitura indicam aos professores atividades de praacutetica de leitura ensinam como selecionar os livros explicam sobre a psicologia que norteia a faixa etaacuteria de cada aluno Mas apesar de tudo a ldquocriserdquo ainda persiste e eacute tema recorrente nas mesas de debate de eventos locais regionais nacionais e internacionais a exemplo do Congresso de Leitura do Brasil (COLE)4 Nos documentos oficiais como nas Orientaccedilotildees Curriculares (2006) assegura-se a presenccedila do texto literaacuterio nos Ensinos Fundamental e Meacutedio Eacute possiacutevel perceber nesses textos oficiais que existe uma dimensatildeo do que poderia ser melhorado em sala de aula

No Ensino Fundamental (principalmente da 5ordf agrave 8ordf seacuterie) caracteriza-se por uma formaccedilatildeo menos sistemaacutetica e mais aberta do ponto de vista das escolhas na qual se misturam livros que indistintamente denominamos ldquoliteratura infanto-juvenilrdquo a outros que fazem parte da literatura dita ldquocanocircnicardquo legitimada pela tradiccedilatildeo escolar inflexatildeo que quando acontece se daacute sobretudo nos uacuteltimos anos desse segmento (7ordf ou 8ordf seacuterie) (BRASIL 2006 p 46)

Se no Ensino Fundamental vai predominar a liberdade de escolha e a leitura de fruiccedilatildeo no Meacutedio

constata-se um decliacutenio da experiecircncia de leitura de textos ficcionais seja de livros da literatura infanto-juvenil seja de alguns poucos autores representativos da literatura brasileira selecionados que aos poucos cede lugar agrave histoacuteria da Literatura e seus estilos (BRASIL 2006 p57)

Ao longo do documento natildeo se identifica o conceito de leitura que deveria nortear o ensino de literatura A nosso ver seria interessante observar que o ato de ler eacute um processo

4 Todos os anais das ediccedilotildees do COLE podem ser acessados em httpalborgbranais-cole

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trabalhoso que exige ldquoesforccedilo treino capacitaccedilatildeo e acumulaccedilatildeordquo como explicita Ricardo Azevedo (2004 p 34) Eni Orlandi (2006 p 23) pela perspectiva da Anaacutelise do Discurso define a leitura como ldquocompreensatildeo natildeo apenas decodificaccedilatildeordquo A leitura seria o momento criacutetico da construccedilatildeo do texto um processo de interaccedilatildeo verbal que faz desencadear a assimilaccedilatildeo dos sentidos O leitor por sua vez seria aquele que consegue atribuir sentido a um diversificado nuacutemero de textos Eacute leitor aquele que devido agrave familiaridade com a escrita consegue diferenciar os tipos de gecircneros literaacuterios e natildeo literaacuterios e os motivos que o levam a escolher uma leitura em detrimento da outra

Portanto para que a leitura seja inserida como uma forma de aproveitar o tempo livre ou seja para que seja vista como lazer faz-se necessaacuterio que o indiviacuteduo se torne um leitor e esse processo como se vecirc exige esforccedilo e dedicaccedilatildeo Eacute necessaacuterio saber por que lemos precisamos atribuir sentido ao que lemos e isso exige praacutetica treino acuacutemulo de informaccedilatildeo raciociacutenio A arte literaacuteria deveria fazer parte do ambiente familiar e escolar desde os primeiros meses de vida Essa afirmaccedilatildeo pode parecer utoacutepica mas natildeo eacute Ela estaacute fundamentada em um referencial teoacuterico que permite acreditar que a democratizaccedilatildeo do ensino exigiria um repensar sobre nossa histoacuteria socioeconocircmica de exclusatildeo A leitura literaacuteria oferece meios de enxergar a realidade por outro prisma ela cria possibilidades para si e para o ambiente que a cerca Entretanto a desigualdade econocircmica dificulta a criaccedilatildeo de um ambiente de leitura mostrando que a literatura a situaccedilatildeo socioeconocircmica e as praacuteticas culturais devem ser pensadas de forma indissociada

Se antes a exclusatildeo referia-se principalmente agrave dificuldade do acesso ao livro hoje a tecnologia eacute apontada como uma ldquovilatilderdquo do ensino de literatura

De um lado os tecnoacutefilos veem a tecnificaccedilatildeo do literaacuterio como algo inevitaacutevel diante do qual todos devem se curvar sem resistecircncia Do outro haacute os que desconfiam do novo suporte com medo de que o texto literaacuterio apresentado na tela perca a aura da Literatura (FREITAS 2003 p 156)

Alberto Manguel (1997) lembra que uma nova tecnologia natildeo destroacutei a que lhe antecede Afirma que o surgimento da imprensa acompanhado por negativas previsotildees natildeo erradicou o gosto pelo texto impresso Ele tambeacutem observou que ao mesmo tempo em que os livros se tornavam de faacutecil acesso e mais gente aprendia a ler mais pessoas tambeacutem aprendiam a escrever Em relaccedilatildeo agrave literatura e agrave internet Maria Teresa de Assunccedilatildeo Freitas lembra que

O mundo da Internet natildeo se constitui neste espaccedilo como condiccedilotildees de oferecer a um simples toque no teclado amplos e variados acervos aos seus usuaacuterios Diante dessa multiplicidade de oferta a escolha pessoal natildeo eacute o iniacutecio do processo de navegaccedilatildeo pelos mares da Literatura (FREITAS 2003 p 169)

Essa citaccedilatildeo acende dois questionamentos Por um lado qual o puacuteblico escolar que navega via internet ldquopelos mares da Literaturardquo As salas de tecnologia instaladas

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na maioria das escolas puacuteblicas brasileiras natildeo satildeo suficientes para atender a grande quantidade de alunos de cada instituiccedilatildeo escolar Por outro percebemos no diaacutelogo com os professores que diante do computador a maioria dos alunos natildeo demonstra familiaridade com a tecnologia exigindo do docente grande malabarismo para desenvolver as atividades propostas

Desta forma a presenccedila do livro e da tecnologia vai depender da concepccedilatildeo pedagoacutegica do professor geralmente o principal mediador entre a leitura literaacuteria e o educando Ao professor cabe explorar as potencialidades desse tipo de texto criando as condiccedilotildees para que o encontro do aluno com a literatura culmine em uma busca plena de sentido na leitura do texto literaacuterio Por essa perspectiva tem-se o ensino da literatura pautado no Letramento ou seja na busca do conhecimento a partir do texto literaacuterio pelo proacuteprio aluno e no cotidiano social em que todos estatildeo inseridos O problema como mencionado anteriormente eacute que quando o educador atua em sala ele muitas vezes baseia-se nos fragmentos literaacuterios encontrados nos livros didaacuteticos e na siacutentese das caracteriacutesticas literaacuterias na qual determinado autor e obra estatildeo inseridos5 Aleacutem de priorizar fragmentos literaacuterios muitos docentes desprezam as vivecircncias sociais de seus educandos em geral telespectadores de seacuteries como Malhaccedilatildeo6 dentre outras

Alunos que entendem da constituiccedilatildeo dos personagens e que portanto fazem a sua seleccedilatildeo pessoal dos filmes mais marcantes Eacute a partir dessa vivecircncia que o texto literaacuterio da tradiccedilatildeo canocircnica ou popular deveria ser inserido em sala de aula

Para chegar a essa concepccedilatildeo de ensino de literatura seria necessaacuterio principalmente a presenccedila de professores leitores Ao enfocar a importacircncia do professor para a formaccedilatildeo de leitores literaacuterios natildeo desejamos atribuir somente a ele a responsabilidade por despertar nos educandos o prazer pela leitura literaacuteria Eacute sabido que essa eacute uma questatildeo no Brasil comprometida pela desigualdade social pelo preccedilo dos livros dentre outros fatores Consequentemente a maioria dos alunos de escolas puacuteblicas teraacute os primeiros contatos com livros na escola o que torna significativo o papel desse mediador Da mesma forma que se constata essa realidade percebe-se nos cursos de formaccedilatildeo continuada (e no uacuteltimo ano da graduaccedilatildeo em Letras) que raramente o professor de Liacutengua Portuguesa e de Literatura lembra-se do uacuteltimo livro literaacuterio lido na iacutentegra Quando perguntamos aos mediadores e aos futuros mediadores da leitura literaacuteria o que eacute literatura como selecionam o texto a ser discutido como acontecem suas aulas de Literatura e qual o uacuteltimo livro que leram ou que estatildeo lendo geralmente instaura-se um certo constrangimento

5 Os trabalhos orientados na graduaccedilatildeo e no mestrado sustentam a afirmaccedilatildeo Para aprofundamento no tema sugerimos Leitoras de Best-sellers o que determina suas escolhas dissertaccedilatildeo de mestrado defendida por Mayara Regina Pereira Dau em 2012 pela Universidade Federal da Grande Dourados Literatura e Memoacuteria a formaccedilatildeo de leitoras no Ensino de Jovens e Adultos dissertaccedilatildeo de mestrado defendida por Iva Carla Aveline Teixeira dos Santos em 2017 pela Universidade Federal da Grande Dourados

6 Uma seacuterie televisiva produzida pela Rede Globo desde 1995 ateacute o presente momento

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A maioria escolhe a partir da orientaccedilatildeo do livro didaacutetico natildeo aborda a literatura produzida em seu estado ou cidade e natildeo dialoga com a Academia de Letras de seu municiacutepio Os acadecircmicos escritores da cidade poderiam ser convidados para participar das aulas do professor explicando aos alunos o processo de escrita de um texto literaacuterio e da produccedilatildeo de um livro por exemplo Acerca do que leem raramente uma leitura literaacuteria eacute citada A maioria quando estaacute lendo indica livros classificados como autoajuda A preferecircncia por este tipo de literatura indica pontos importantes o preccedilo a sintaxe e o vocabulaacuterio desses livros satildeo geralmente mais acessiacuteveis

Outro aspecto impressionante refere-se ao diaacutelogo entre a graduaccedilatildeo e a praacutetica docente Salientamos nos cursos de formaccedilatildeo continuada a importacircncia de utilizar o conhecimento da teoria literaacuteria para ensinar a ler literatura e a necessidade de instigar o educando a perceber os elementos que marcam os gecircneros literaacuterios e como esses elementos se relacionam no texto

Nesse momento fica expliacutecito que a maioria natildeo consegue se lembrar das aulas de teoria recebidas ao longo da trajetoacuteria universitaacuteria especialmente na graduaccedilatildeo em Letras Ao inveacutes de questionar-se a maioria prefere afirmar que a deficiecircncia natildeo estaacute em saber (ou natildeo) a teoria que marca cada gecircnero mas na falta de interesse dos educandos Afirmam que natildeo haacute como incentivaacute-los a gostar de ficccedilatildeo Todavia satildeo esses mesmos jovens que alimentam a audiecircncia das seacuteries para adolescentes O que satildeo essas seacuteries Satildeo ficccedilotildees enredos pautados em personagens que correspondem aos aspectos fiacutesicos e psicoloacutegicos dos jovens que acompanham as accedilotildees Tambeacutem se trata de uma ficccedilatildeo marcada por temas claacutessicos como amor traiccedilatildeo o bem e o mal acrescidos de temas modernos como a questatildeo do consumismo e da violecircncia urbana Munido de conhecimento teoacuterico o professor teria pouca dificuldade para mostrar a esses educandos tidos como desinteressados pela leitura literaacuteria como a praacutetica social e familiar e as escolhas dos programas que assistem na TV afirmam o contraacuterio

Tal reflexatildeo gera novo impasse como formar professores leitores O professor deveria perceber que a praacutetica de leitura soacute pode ser atingida a partir de uma reflexatildeo pautada num referencial teoacuterico sustentado pela importacircncia da literatura para a formaccedilatildeo social psicoloacutegica e cognitiva do cidadatildeo por outro lado deveria ter uma praacutetica docente sustentada por pesquisa Assumimos o respeito pelos graduandos e pelos docentes que encontramos nas formaccedilotildees continuadas Por isso eacute impossiacutevel deixar de indagar com uma jornada de trabalho de 40 horas semanais como assumir a postura de professor leitor e pesquisador Eacute preciso dar condiccedilotildees para que o trabalho do professor possa ser mais significativo

Feitas tais ponderaccedilotildees eacute preciso pensar entatildeo em como proporcionar condiccedilotildees para que se tenha professores-leitores e pesquisadores Aleacutem das condiccedilotildees estruturais de trabalho (salaacuterio carga horaacuteria) partimos do pressuposto de que um curso de licenciatura por mais estruturado que seja natildeo forma integralmente um professor Uma vez que a formaccedilatildeo eacute um processo contiacutenuo o processo de preparaccedilatildeo para o iniacutecio da carreira docente natildeo absorve toda a dinacircmica necessaacuteria para a efetiva formaccedilatildeo desses

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profissionais Na realidade independentemente do niacutevel em que lecione o professor faz parte de um grupo de profissionais que deve se atualizar constantemente

Os egressos dos cursos de Letras e de outras licenciaturas contam com os cursos de formaccedilatildeo continuada ofertados em projetos de extensatildeo Nada mais justo uma vez que ao se deparar com a dinacircmica da praacutetica os novos (e os mais velhos tambeacutem) educadores sentem-se desorientados e angustiados Nesse sentido os cursos de formaccedilatildeo continuada possibilitam apreender as dificuldades teoacuterico-metodoloacutegicas da praacutetica dos professores da Educaccedilatildeo Baacutesica Assim sem o engajamento de professores leitores tambeacutem se torna difiacutecil explicar que o letramento literaacuterio deve partir das praacuteticas de leitura dos alunos (novelas filmes diaacuterios desenhos animados) para leituras mais elaboradas que exigem um esforccedilo maior de interpretaccedilatildeo

As escolas satildeo instituiccedilotildees agraves quais a sociedade delega a responsabilidade de prover as novas geraccedilotildees das habilidades conhecimentos crenccedilas valores e atitudes consideradas essenciais agrave formaccedilatildeo de qualquer cidadatildeo Mas com base nas pesquisas de Kleiman (20012003) Rojo (2006) Soares (2003) eacute possiacutevel afirmar que a relaccedilatildeo entre escola e letramento eacute complexa Haacute uma espeacutecie de ldquocontrolerdquo da escola ao inveacutes de expansatildeo de praacuteticas sociais O letramento escolar eacute insuficiente para medir e avaliar as habilidades de leitura e de escrita Em paiacuteses como o Brasil o funcionamento inconsistente e discriminatoacuterio da sociedade gera padrotildees muacuteltiplos e diferenciados de aquisiccedilatildeo do letramento

Desse modo tendo ciecircncia deste tipo de letramento efetuado nas escolas seria significativo avanccedilar para praacuteticas sociais que marcam a vida dos sujeitos envolvidos Entendemos assim que o docentediscente inserido em praacuteticas de leituraescrita de gecircneros diversos que circulam socialmente (da esfera literaacuteria e natildeo literaacuteria como sugerem os Paracircmetros Curriculares Nacionais ndash PCN 1998) deve ser considerado uma pessoa letrada Em se tratando do letramento literaacuterio fixamos a importacircncia de pensar em vaacuterias questotildees o acesso aos livros a formaccedilatildeo de professores a valorizaccedilatildeo do livro dentro da famiacutelia e a questatildeo da tecnologia para citar apenas as que foram abordadas ao longo desse debate Diante de uma sociedade tecnoloacutegica com importantes descobertas cientiacuteficas em que o indiviacuteduo desde muito cedo tem acesso agrave internet e a partir dela ouve muacutesica joga assiste a filmes conhece lugares e pessoas por que insistir na literatura (no livro literaacuterio) Por que se empenhar para que nossos alunos (e noacutes tambeacutem) tenhamos na obra literaacuteria uma opccedilatildeo para o prazer para o conhecimento e para a formaccedilatildeo subjetiva e social E por que insistir na afirmaccedilatildeo de que no Brasil se lecirc pouco

Regina Zilberman (1982) mostra algumas contradiccedilotildees em relaccedilatildeo agrave chamada crise de leitura De acordo com sua pesquisa nos anos 1970 quando iniciaram efetivamente as reflexotildees sobre a (natildeo) leitura acontecia o crescimento da populaccedilatildeo urbana decorrente da oferta de trabalho nas induacutestrias Esse aumento da populaccedilatildeo por sua vez exigiu uma reformulaccedilatildeo da estrutura escolar devido agrave ampliaccedilatildeo do nuacutemero de alunos Assim dentre as novas propostas da reforma de ensino instituiacuteda nesse periacuteodo o texto literaacuterio ganhou destaque em sala de aula as editoras passaram a investir na publicaccedilatildeo de obras infantis e um elevado nuacutemero de livros passou a circular nos acervos escolares

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Em 2009 de acordo com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo (FNDE) 236 milhotildees de estudantes das seacuteries finais do Ensino Fundamental foram beneficiados com o programa de distribuiccedilatildeo de livros literaacuterios Vale ressaltar que os acervos foram compostos por tiacutetulos de poemas contos crocircnicas teatro texto de tradiccedilatildeo popular romance memoacuteria diaacuterio biografia ensaio histoacuterias em quadrinhos e obras claacutessicas7

O apontamento histoacuterico apresentado e os nuacutemeros indicados pelo FNDE demonstram que aparentemente natildeo haacute lugar para a chamada crise de leitura De acordo com Zilberman (1982) a contradiccedilatildeo instalava-se na recusa agrave leitura O puacuteblico leitor em potencial natildeo demonstrava interesse pela leitura das obras literaacuterias Essa recusa infelizmente ainda eacute a motivaccedilatildeo para o debate acerca do ensino de literatura A diferenccedila eacute que ao debate satildeo acrescidos outros (natildeo) leitores os professores e a famiacutelia Talvez se deva pensar que a (natildeo) leitura eacute uma questatildeo que natildeo perpassa apenas a questatildeo pedagoacutegica pois se assim fosse a diversidade de obras que ensina a ldquoensinar a lerrdquo jaacute a teria solucionado A histoacuteria da leitura demonstra que esse assunto envolve poder poliacutetico poder econocircmico e poder social

3 Em busca de conclusotildees

Quando tratam da linguagem os Paracircmetros Curriculares Nacionais (1997) demonstram a interdisciplinaridade que a envolve lembrando que vaacuterias aacutereas do conhecimento buscam na linguagem o suporte para seus objetos de estudo De acordo com os Paracircmetros a linguagem soacute pode ser estudada em sua interaccedilatildeo social soacute existe enquanto expressatildeo comunicativa entre os sujeitos O efetivo ensino de literatura pode atender a essa expectativa A literatura eacute por natureza interdisciplinar estaacute inserida em um tempo e eacute escrita a partir de um enfoque histoacuterico social e poliacutetico A literatura tambeacutem eacute a prova de que a linguagem soacute existe enquanto interaccedilatildeo social pois eacute escrita por algueacutem que deseja ser compreendido pelo outro sem a relaccedilatildeo entre autor texto e leitor natildeo haacute literatura Mesmo compreendendo que os Paracircmetros natildeo satildeo (e natildeo pretendem ser) a soluccedilatildeo definitiva para o problema do ensino de literatura e para a crise da leitura sentimos falta de um maior destaque agrave literatura e agrave sua importacircncia para a formaccedilatildeo do sujeito social e eacutetico

Regina Zilberman e Liacutegia Cadematori Magalhatildees (1987 p 12) tambeacutem apontam contradiccedilotildees encontradas nos Paracircmetros Para as autoras por exemplo a ecircnfase dada ao ensino da liacutengua como um meio para melhorar a qualidade da produccedilatildeo linguiacutestica ldquopoderia significar uma ruptura com o ensino tradicionalrdquo mas um olhar atento de acordo com as autoras pode conduzir o ensino da liacutengua caso se prenda em demasia agrave meta de oferecer ldquoum conjunto de atividades que possibilitem ao aluno desenvolver o domiacutenio da

7 Disponiacutevel em httpwwwfndegovbrhomeindexjsparquivo=biblioteca_escolahtml Uacuteltimo acesso em marccedilo de 2017

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expressatildeo oral e escrita em situaccedilotildees de uso puacuteblico da linguagemrdquo ao antigo ensino de retoacuterica com uma concepccedilatildeo apenas pragmaacutetica e utilitaacuteria da liacutengua

Mas seria ingenuidade afirmar que alguns professores resumam a aula de Liacutengua Portuguesa ao estudo da gramaacutetica da redaccedilatildeo e de interpretaccedilatildeo de textos apenas pelo pouco comprometimento com a leitura Acreditamos que da mesma forma que a leitura estaacute presa a uma histoacuteria de censura e de equiacutevocos o ensino de literatura estaacute comprometido pela estrutura curricular dos cursos de Letras pelo natildeo comprometimento de alguns docentes dos ensinos fundamental e meacutedio com a leitura pelos salaacuterios desestimulantes dos educadores pela injusta distribuiccedilatildeo de renda praticada no Brasil dentre outros fatores

Assim o momento do estaacutegio deveria representar uma alternativa dentro do tema da formaccedilatildeo do profissional da educaccedilatildeo para se discutira responsabilidade de formar leitores Trata-se de um espaccedilo de discussatildeo de alternativas teoacuterico-metodoloacutegicas para sua praacutetica docente A democratizaccedilatildeo da leitura literaacuteria soacute seraacute representativa quando os mediadores se tornarem leitores e responsaacuteveis pelo exerciacutecio de sua praacutetica docente Acreditamos que a leitura seja um dos instrumentos mais significativos para a formaccedilatildeo do cidadatildeo Todavia a praacutetica precisa ser acompanhada a partir de um referencial teoacuterico-metodoloacutegico que permita ao estudante estabelecer relaccedilatildeo entre o texto e o leitor contemplando sua subjetividade e seu meio social Aleacutem disso como afirmam teoacutericos como Cosson (2006) Soares (2007) e Orlandi (2006) faz-se necessaacuterio oferecer ao leitor em formaccedilatildeo mecanismos para que ele consiga perceber a intertextualidade o ponto de vista do autor a origem do texto a contextualizaccedilatildeo do material impresso dentre outros elementos que permitam a transformaccedilatildeo do sujeito e em consequecircncia a ressignificaccedilatildeo do meio que o cerca

Diante do exposto trabalhar questotildees do Letramento pode contribuir para que a praacutetica dos docentes seja redimensionada para projetos que promovam efetivamente o Letramento (social escolar literaacuterio) A partir do processo de Letramento eacute possiacutevel melhorar o desempenho de nossos educandos ao mesmo tempo em que se permite aos educadores a ressignificaccedilatildeo de sua praacutetica Entretanto soacute eacute possiacutevel o trabalho pela perspectiva do letramento literaacuterio quando se desperta no docente que ainda natildeo se encontrou com o livro o desejo de principiar a praacutetica da leitura Assim fica acertada a teia que sustenta o ensino de literatura poliacuteticas puacuteblicas professor leitor leitura de texto e natildeo de fragmento diaacutelogo entre o texto escolar e as praacuteticas de leitura literaacuteria dos estudantes

Por fim cabe novamente ao professor orientador de estaacutegio (re)iniciar os contatosacordosconversas com os acadecircmicos A uniatildeo entre teoria e praacutetica deve nortear o ensino de literatura na educaccedilatildeo Qual a visatildeo que os acadecircmicos tiveram da realidade escolar Seu discurso dialogou com a teoria e a praacutetica docente O acadecircmico mostrou-se criacutetico diante de suas constataccedilotildees A anaacutelise da intervenccedilatildeo promovida durante o estaacutegio de literatura ofereceraacute as respostas a essas indagaccedilotildees que por sua vez satildeo permeadas por debates maiores o lugar do ensino da linguagem nesses niacuteveis

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escolares a noccedilatildeo de leitor leitura escrita gecircneros textuais literatura e formaccedilatildeo de professor O resultado desta reflexatildeo poderaacute culminar em docentes conscientes de seu papel na mediaccedilatildeo do texto literaacuterio

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BRASIL Ministeacuterio da Educaccedilatildeo e do Desporto Secretaria de Educaccedilatildeo BaacutesicaMinisteacuterio da Educaccedilatildeo Secretaria da Educaccedilatildeo Meacutedia e Tecnoloacutegica PCN+ Ensino Meacutedio orientaccedilotildees educacionais complementares aos Paracircmetros Curriculares NacionaisBrasiacutelia MEC 2002

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Recebido em 28 de marccedilo de 2017

Aceito em 29 de julho de 2017

Alexandra Santos Pinheiro

Doutora em Teoria e Histoacuteria Literaacuteria pela Universidade Estadual de Campinas (2007) e poacutes doutora pela Univerisdad de Jaeacuten (2012-2013) Eacute professora associada da UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados onde atua como professora da graduaccedilatildeo e do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Liacuteder do grupo de pesquisa Nuacutecleo de Estudos Literaacuterios e Culturais Atua na Formaccedilatildeo Continuada de Professores com ecircnfase no Letramento Literaacuterio Atualmente eacute tutora do Pet-Letras-UFGD alexandrasantospinheiroyahoocombr

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eISSN 22376844polifonia

O Estaacutegio Supervisionado em Letras no vieacutes administrativo-pedagoacutegico

The Teaching Internship Component of Portuguese Major Programs from a Managerial-Pedagogical Perspective

La pasantiacutea supervisada en Letras desde la perspectiva administrativa-pedagoacutegica

Flaacutevia Girardo Botelho Borges Universidade Federal de Mato Grosso

Resumo

A disciplina de Estaacutegio Supervisionado em Letras Liacutengua Portuguesa e Literaturaconfigura-se como uma das mais importantes na formaccedilatildeo do aluno como docente pois integra em sua realizaccedilatildeo componentes teoacutericos e praacuteticos da atuaccedilatildeo como professor em contextos reais de vivecircncia pedagoacutegica Neste sentido neste artigo analisaremos do ponto de vista administrativo-pedagoacutegico o componente curricular Estaacutegio Supervisionado no curso de Letrasda Universidade Federal de Mato Grosso fundamentando-nos teoricamente em autores da aacuterea da Educaccedilatildeo da Formaccedilatildeo e Saberes Docentes e da Linguiacutestica dentro da perspectiva dos Letramentos para apontar propostas para atenuar algumas situaccedilotildees que podem comprometer a formaccedilatildeo integral do aluno de Letras Palavras-chave Estaacutegio Supervisionado Letras Formaccedilatildeo Docente

Abstract

The discipline of Teaching Internship in Portuguese and Literature Major Programs is one of the most important in the formation of the student as a teacher because it integrates theoretical and practical components of acting as teacher in real contexts of pedagogical experience In this sense in this article we will analyze from the administrative and pedagogical point of view the curricular component Supervised Stage in the Portuguese and Literature Major Programsof the Federal University of Mato Grosso theoretically based on authors from the areas of Education Training and Teaching Knowledge and Linguistics within the perspective of Literacies so as suggest proposals to attenuate some situations that may compromise the integral formation of the studentsKeywords Teaching internship Portuguese and Literature Major Programs Teacher Training

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Resumen

La asignatura de Praacutecticas Supervisadas en Letras Lengua Portuguesa y Literatura aparece como una de las maacutes importantes en la formacioacuten del estudiante como docente ya que integra en su realizacioacuten componentes teoacutericos y praacutecticos de la actuacioacuten como profesoren contextos reales de experiencia pedagoacutegica En este sentido en este artiacuteculo se analiza desde el punto de vista administrativo y pedagoacutegico el componente curricular Praacutecticas Supervisadas enel curso de Letras de la Universidad Federal de Mato Grosso en teoriacutea basaacutendose en autores del aacuterea de Educacioacuten Formacioacuten y Saberes Docentes y de Linguumliacutestica e nel enfoque de Alfabetizacioacuten para sentildealar propuestas para aliviar algunas situaciones que pueden comprometer la formacioacuten integral de los estudiantes de LetrasPalabras clave Praacutecticas Supervisadas Letras Formacioacuten Docente

1 Introduccedilatildeo

O processo de formaccedilatildeo docente abrange desde o conhecimento dos conteuacutedos teoacutericos da profissatildeo ateacute o conhecimento do contexto escolar com a dinacircmica que envolve e caracteriza este cenaacuterio No sentido de que os contextos educacionais perpassados pela linguagem estatildeo sempre em mudanccedila adequando-se aos novos sujeitos aos saberes aos falares e aos acontecimentos quando se pensa em educaccedilatildeo escolar pensa-se em mudanccedila crise e projetos

Ao se analisar a formaccedilatildeo docente do ponto de vista da administraccedilatildeo escolar torna-se inescapaacutevel aderir ao vieacutes pedagoacutegico visto que natildeo haacute como separar o professor de seu contexto de atuaccedilatildeo e por assim dizendo de todas as imbricaccedilotildees que este contexto traz agrave tona ou deixa imersas como a quantidade de legislaccedilatildeo que permeia o trabalho docente a crise da profissionalizaccedilatildeo e o proacuteprio sistema educacional brasileiro

Colocando dessa maneira os profissionais que atuam na formaccedilatildeo docente dos cursos de licenciatura devem potencializar as atividades e situaccedilotildees que privilegiem a experiecircncia do aluno de graduaccedilatildeo com os contextos de sua profissatildeo e neste ponto destacamos o tema deste artigo o Estaacutegio Supervisionado em Letras

No momento soacutecio-histoacuterico que compartilhamos em que resoluccedilotildees do Conselho Nacional de Educaccedilatildeo estatildeo sendo aprovadas moldando e programando nossas atividades docentes em que Projetos Pedagoacutegicos de Curso doravante PPC estatildeo sendo reformulados dadas as exigecircncias das proacuteprias universidades no caso deste estudo a Resoluccedilatildeo CONSEPE 118 de 2014 que estabelece prazo para novos projetos pedagoacutegicos de curso estamos de acordo com Tardif (2014) quando este aponta que os conhecimentos profissionais devem ser modelados e voltados agrave soluccedilatildeo de situaccedilotildees problemaacuteticas concretas sendo a graduaccedilatildeo o momento em que os discentes tecircm a oportunidade de se aproximarem da aacuterea de atuaccedilatildeo pretendida e a disciplina de Estaacutegio uma das mais apropriadas para esta aproximaccedilatildeo

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2 O Estaacutegio Supervisionado como Componente Curricular

A formaccedilatildeo de professores eacute um tema amplamente pesquisado por diversas aacutereas do conhecimento dada a existecircncia de cursos de licenciatura que por lei exigem a praacutetica de estaacutegio supervisionado

De acordo com o Parecer CNECP1 nordm 28 aprovado em outubro de 2001 os cursos de licenciatura organizados em torno da formaccedilatildeo docente dedicam 400 horas de sua carga total para a disciplina de Estaacutegio ou no plural disciplinas de Estaacutegio como acontece no curso sobre o qual desenvolveremos nossos apontamentos neste artigo

O curso de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso prevecirc em seu plano pedagoacutegico quatro disciplinas que compotildeem o componente curricular Estaacutegio em Licenciatura Cada uma dessas disciplinas totaliza 100h de atividades que envolvem a parte teoacuterica e praacutetica dos saberes escolares sendo em grande parte desenvolvida nas escolas parceiras

No entanto apesar de somarem 400 horas como previsto e exigido pela legislaccedilatildeo vigente os alunos ainda apresentam ao final desse quantitativo de horas dificuldades para pensar planejar e executar uma aula Isto eacute haacute dificuldade tanto para se relacionar o conteuacutedo teoacuterico agraves praacuteticas em sala de aula quanto para conseguir lidar com os saberes escolares que vatildeo muito aleacutem da sala de aula

Algumas hipoacuteteses surgem agrave medida em que se observa o estaacutegio do ponto de vista administrativo-pedagoacutegico como adificuldade de execuccedilatildeo da disciplina conforme prevista no PPC de Letras (2009) UFMT campus Cuiabaacute em relaccedilatildeo agrave quantidade de documentos que precisam ser preenchidos a dificuldade em encontrar escolas parceiras a questatildeo do horaacuterio para execuccedilatildeo da regecircncia entre outras

Assim neste artigo refletiremos sobre as dificuldades encontradas na execuccedilatildeo das disciplinas de Estaacutegio no curso de licenciatura em Letras Portuguecircs e Literatura Eacute importante frisar que nossas ponderaccedilotildees partem do ponto de vista administrativo-pedagoacutegico e deste lugar mostraremos alguns encaminhamentos que possam amenizar as dificuldades

21 O Estaacutegio Supervisionado

O Estaacutegio Supervisionado eacute definido no PPC de Letras (2009 p 151) como um ldquocomponente curricular obrigatoacuterio do curso de Letras e se caracteriza pelo exerciacutecio preacute-profissional do aluno junto a instituiccedilotildees credenciadas da rede puacuteblica ou da rede particular de ensinordquo Eacute uma disciplina que ocorre a partir da metade do curso de Letras em duas etapas dois estaacutegios supervisionados em Liacutengua Portuguesa e dois em

1 Mesmo havendo uma CNE mais recente a respeito do Estaacutegio Supervisionado nas Licenciaturas o PPC de LetrasUFMT data de 2009 utilizando entatildeo as legislaccedilotildees da eacutepoca de sua aprovaccedilatildeo

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Literatura jaacute que a licenciatura da qual tratamos habilita os discentes para atuarem no campo educacional de liacutengua materna e literaturas portuguesa e brasileira As 100 horas correspondentes a cada estaacutegio abarcam orientaccedilatildeo estudo planejamento e atuaccedilatildeo na escola nos niacuteveis de ensino fundamental (Estaacutegios I) e meacutedio (Estaacutegios II)

Segundo o PPC haacute duas formas de se realizar o estaacutegio sendo a primeira

estaacutegio efetuado nas escolas de ensino fundamental e meacutedio do municiacutepio de Cuiabaacute ou Vaacuterzea Grande em que o aluno seraacute inserido dentro da instituiccedilatildeo educacional com vistas a um contato com a realidade escolar agrave participaccedilatildeo efetiva na vida da comunidade escolar em seus diversos aspectos quer sejam pedagoacutegicos teacutecnicos eou sociais Na segunda forma o estaacutegio curricular estaacute vinculado ao desenvolvimento de projetos para a comunidade nas diversas aacutereas que compotildeem as habilitaccedilotildees correspondentes Nestes casos o estaacutegio ocorre na proacutepria UFMT ou em local oferecido pela comunidade solicitante assumindo a forma de atividades de extensatildeo eou pesquisa (PPC 2009 p 150-1)

Como disciplina apresenta os objetivos

I Aproximar a teoria e praacutetica conformando exerciacutecio de anaacutelise aplicaccedilatildeo e criacutetica dos pressupostos teoacutericos e instrumentos metodoloacutegicos que caracterizam a formaccedilatildeo do profissional de Letras II Permitir o contato direto do estagiaacuterio com a realidade educacional brasileira sua histoacuteria suas caracteriacutesticas seus problemas e seus desafios III Confrontar o aluno com situaccedilotildees de exerciacutecio preacute-profissional que lhe permitam a exploraccedilatildeo e a experimentaccedilatildeo das estrateacutegias de transformaccedilatildeo e de melhoria de suas competecircncias e habilidades IV Provar a realizaccedilatildeo das competecircncias e habilidades exigidas na praacutetica profissional e exigiacuteveis dos professores especialmente quanto agrave regecircncia V Formar no estagiaacuterio a disposiccedilatildeo para a pesquisa bibliograacutefica e de campo como estrateacutegias pedagoacutegicas de resoluccedilatildeo de problemas VI Estimular o respeito agrave diferenccedila e o apreccedilo agrave toleracircncia e problematizar accedilotildees a partir da situaccedilatildeo concreta do estagiaacuterio em sala de aula VII Propiciar o desenvolvimento pelo aluno do conjunto de competecircncias e habilidades que venham a caracterizaacute-lo em seu papel de agente da transformaccedilatildeo social (PPC 2009 p 152)

Em termos teoacutericos o estaacutegio eacute entendido por noacutes como uma praacutetica de letramento acadecircmico-profissional Concordamos com Tardiff e Lessard (2008) quando estes apontam que o estaacutegio se constitui em diversas praacuteticas de letramento a partir de um trabalho coletivo interativo voltado para aprendizagens situadas forjado cotidianamente pela possibilidade da ressignificaccedilatildeo profissional

Os teoacutericos do letramento como Barton Hamilton e Ivanic (2000) definem-no como um conjunto de praacuteticas sociais historicamente situadas que envolvem a linguagem em diversas modalidades Os agentes de letramento neste contexto satildeo os alunos-estagiaacuterios que ao vivenciarem na escola as dinacircmicas da atividade docente experienciam as relaccedilotildees assimeacutetricas de trabalho como certos atravessamentos da coordenaccedilatildeo escolar

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sobre o planejamento pedagoacutegico do professor assim como as situaccedilotildees imprevisiacuteveis que atravessam o planejamento docente aulas encurtadas por conta de ensaios para festas falta de aacutegua ou energia eleacutetrica ou mesmo de materiais para o trabalho docente

Todos esses fatores colaboram para que as atividades de estaacutegio sejam mais significativas tanto positiva quanto negativamente que as outras atividades pedagoacutegicas do curso de graduaccedilatildeo Os docentes em formaccedilatildeo ao vivenciarem situaccedilotildees como as mencionadas anteriormente durante o estaacutegio precisam se readequar replanejar de maneira raacutepida e eficiente para conseguirem cumprir carga horaacuteria por exemplo Haacute durante esse percurso ldquonovos modelos de conhecer novos modelos de ensinar e portanto novos modelos de formaccedilatildeo de professoresrdquo (SILVA e ASSIS 2010 p 176)

A construccedilatildeo dos sentidos do que eacute se tornar professor somada agraves poliacuteticas puacuteblicas ao curriacuteculo pedagoacutegico agrave realidade escolar e agrave inexperiecircncia profissional perpassam as atividades de estaacutegio de maneira indeleacutevel A experiecircncia de planejamento de aula escolha das metodologias do vieacutes teoacuterico para apresentaccedilatildeo dos conteuacutedos textos e atividades comeccedilam a compor a identidade docente e a estas se somam a responsabilidade por estes saberes e como construiacute-los com o grupo de alunos Por este processo perpassam as poliacuteticas puacuteblicas e o curriacuteculo escolar como realidades que precisam ser incorporadas agraves praacuteticas do Estaacutegio

Outro ponto que torna o estaacutegio supervisionado um momento excepcional da construccedilatildeo docente eacute a contraposiccedilatildeo acadecircmica entre a universidade e a escola puacuteblica O cenaacuterio educacional puacuteblico ainda mostra-se preso a estruturas arcaicas e a saberes linguiacutesticos ultrapassados sem considerar a natildeo presenccedila das tecnologias na sala de aula o que dificulta algumas praacuteticas docentes pautadas nas miacutedias O aluno-estagiaacuterio tem por sua vez que elaborar sua intervenccedilatildeo considerando natildeo apenas o seu desejo de construir saberes pautados na poacutes-modernidade mas tambeacutem adequados agrave realidade e dinacircmicas escolares

O compromisso da Universidade neste quesito talvez seja um dos grandes obstaacuteculos ao sucesso do estaacutegio supervisionado na escola puacuteblica Haacute na realidade em que me espelho um generalizado desacircnimo da escola puacuteblica em receber os alunos-estagiaacuterios Isso se deve em parte agrave Universidade e natildeo aos alunos ou agrave escola Explicando melhor os alunos-estagiaacuterios vatildeo agrave escola desenvolvem seus projetos individuais utilizam o tempo e o espaccedilo da comunidade escolar poreacutem ao terminarem sua experiecircncia vatildeo embora Nada deixam agrave escola a troca natildeo eacute favoraacutevel para a escola Entendemos que os conhecimentos construiacutedos durante a regecircncia (10 a 20 horas) podem ser estaacuteveis e duradouros poreacutem ainda natildeo satildeo suficientes para configurar uma boa oportunidade para a escola puacuteblica

Talvez o fato de haver um certo descontentamento seja devido ao lugar entre dois mundos em que a disciplina de estaacutegio se encontra tanto na escola na Universidade para os alunos-estagiaacuterios e professores-orientadores Para Reichmann (2015 p 29) a disciplina acadecircmica de estaacutegio apresenta ldquouma especificidade singular pois estaacute situada no mundo da academia mas se estende e abrange o mundo do trabalho constitui um lsquoentrelugarrsquo socioprofissional em movimento lsquona fronteirarsquordquo

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O entrelugar eacute ocupado pelo aluno-estagiaacuterio que nos bancos da universidade eacute aluno na sala de aula da escola puacuteblica eacute professor e no planejamento da disciplina eacute estagiaacuterio Natildeo haacute uma uacutenica identidade para o sujeito aluno-estagiaacuterio e mais importante para a sua construccedilatildeo como docente para a identidade do professor

Compactuamos com Noacutevoa (1995 p 16) quando este afirma que ldquoa identidade natildeo eacute um dado adquirido natildeo eacute uma propriedade natildeo eacute um produto A identidade eacute um lugar de lutas e de conflitos eacute um espaccedilo de construccedilatildeo de maneiras de ser e de estar na profissatildeordquo E esse processo identitaacuterio comeccedila a se delinear durante a disciplina de estaacutegio supervisionado quando o aluno se torna por alguns momentos o professor e depois volta a ser aluno natildeo mais o mesmo mas modificado construiacutedo e desconstruiacutedo pela experiecircncia didaacutetica pelos saberes escolares pela interaccedilatildeo com e na sala de aula

3 Retrato do Estaacutegio normas prescriccedilotildees e dificuldades

Como disciplina acadecircmica o estaacutegio supervisionado apresenta um roteiro de normas resoluccedilotildees orientaccedilotildees em suma documentos oficiais que modelam a disci-plina dos quais o aluno-estagiaacuterio precisa saber conhecer estudar Esses documentos abrangem tanto a educaccedilatildeo em niacutevel nacional como a Lei 9394 de Diretrizes e Bases para a Educaccedilatildeo Nacional a Lei 11788 que trata dos estaacutegios em territoacuterio nacional a Resoluccedilatildeo CNE01 sobre as diretrizes curriculares nacionais para a formaccedilatildeo de professo-res a Resoluccedilatildeo CNE02 que trata dos cursos de licenciatura no Brasil sua duraccedilatildeo e car-ga horaacuteria os documentos nacionais como os Paracircmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Linguagens estadual como as Orientaccedilotildees Curriculares do Estado de Mato GrossoLinguagens e acadecircmico em documentos universitaacuterios como a Resoluccedilatildeo CONSEPE nordm 117 (2009) que dispotildee sobre o Regulamento Geral de Estaacutegio da Universidade Federal de Mato Grosso o Projeto Pedagoacutegico de Curso e o Regulamento do Estaacutegio Supervisionado

Em geral todos esses documentos versam sobre a necessidade de a disciplina de estaacutegio supervisionado estar articulada com o restante do curso de Letras no caso e a dimensatildeo praacutetica que transcende o estaacutegio e promove a articulaccedilatildeo das diferentes praacuteticas numa perspectiva interdisciplinar

No entanto as prescriccedilotildees incidem sobre o estaacutegio supervisionado e seus envolvidos gerando acima de tudo burocracia e trabalho administrativo Aleacutem de lidar com os docu-mentos oficiais o professor-orientador de estaacutegio e o aluno ainda precisam preencher uma seacuterie de formulaacuterios para atuar na escola receptora do processo de estaacutegio Por exemplo a composiccedilatildeo do cumprimento da carga horaacuteria de Estaacutegio Supervisionado de Ensino na ins-tituiccedilatildeo concedente deve ser feita pelo preenchimento de uma Ficha Geral de Estaacutegio com indicaccedilatildeo da data horaacuterio e tema da atividade desenvolvida sendo que estas devem estar assinadas pelo profissional responsaacutevel e ser carimbadas e assinadas pelo diretor da insti-tuiccedilatildeo concedente do estaacutegio Para a coordenaccedilatildeo de curso aleacutem de acompanhar e orien-tar a documentaccedilatildeo tambeacutem eacute exigida a produccedilatildeo de ofiacutecios para cada aluno-estagiaacuterio aleacutem dos Termos de Convecircnio ou Termos de Parceria Seguro do discente etc

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Em termos gerais o PPC de Letras apresenta a divisatildeo das tarefas das partes envolvidas no Estaacutegio como sendo

Art 09 - As atividades de Estaacutegio Supervisionado de Ensino satildeo Coordenadas pela Coordenaccedilatildeo do Curso e pelos professores-supervisores sect 1ordm Compete agrave Coordenaccedilatildeo do Curso de Letras I Indicar os professores-supervisores de Estaacutegio Supervisionado de ensino II Definir o horaacuterio e o local das sessotildees semanais de supervisatildeo sect 2ordm Compete ao Professor-supervisor de estaacutegio I Imprimir e distribuir as cartas de apresentaccedilatildeo dos estagiaacuterios II Credenciar as Instituiccedilotildees concedentes de Estaacutegio III Arquivar os documentos relativos ao Estaacutegio IV Encaminhar agrave Coordenaccedilatildeo do Curso de Letras relatoacuterio anual das atividades de estaacutegio desenvolvidas pelos alunos de Letras V Elaborar com o supervisionado o plano de trabalho seus conteuacutedos suas etapas de desenvolvimento e calendaacuterio de atividades observados os prazos designados no calendaacuterio de Estaacutegio e os horaacuterios definidos pela Coordenaccedilatildeo do Curso VI Atender os seus supervisionados nas sessotildees semanais de supervisatildeo registrando anotaccedilotildees sobre o desenvolvimento do trabalho VII Orientar e acompanhar a elaboraccedilatildeo e a execuccedilatildeo do Projeto de intervenccedilatildeo sob sua supervisatildeo VIII Orientar e acompanhar a elaboraccedilatildeo do Relatoacuterio de Estaacutegio sob sua supervisatildeo IX Auxiliar o aluno na preparaccedilatildeo da intervenccedilatildeo X Avaliar as atividades e atribuir notas aos alunos sob sua supervisatildeo (PPC 2009 p 155-56 grifo nosso)

Em termos locais as disciplinas de estaacutegio supervisionado estatildeo localizadas a partir da segunda metade do curso e suas ementas abordam a atividade de leitura na escola o trabalho com o texto ndash escolha compreensatildeo vocabulaacuterio e interpretaccedilatildeo a leitura no ensino fundamental a teoria da literatura e a leitura na escola a atividade de produccedilatildeo de texto na escola a finalidade a proposta a correccedilatildeo a atividade de anaacutelise linguiacutestica a epilinguiacutestica e a metalinguiacutestica observaccedilatildeo de aulas de leitura no ciclo fundamental as atividades docentes planejamento execuccedilatildeo e avaliaccedilatildeo preparo de plano de aula e material didaacutetico e por fim o periacuteodo de Observaccedilatildeo Regecircncia e Relatoacuterio De acordo com as poliacuteticas de estaacutegio do PPC de Letras as atividades de estaacutegio para contemplarem a ementa devem ser cumpridas a) na instituiccedilatildeo concedente de estaacutegio em atividades de observaccedilatildeo participaccedilatildeo e regecircncia b) nas sessotildees semanais de supervisatildeo c) em atividades extraclasse relacionadas agrave preparaccedilatildeo da intervenccedilatildeo e agrave anaacutelise de seus resultados d) em outras atividades relacionadas ao Estaacutegio

Esse modelo de estaacutegio segundo o qual o curso de Letras hoje estaacute estruturado reserva para o final do curso de forma concentrada a grande parte das atividades de praacutetica docente sendo que nestas o aluno-estagiaacuterio precisaraacute entrelaccedilar a teoria e a praacutetica construiacutedas durante a sua formaccedilatildeo no curso de licenciatura Este entrelaccedilamento requer do aluno-estagiaacuterio certa maturidade intelectual e profissional para entender o noacute e o desatar do noacute que se desenreda nessa relaccedilatildeo Eacute interessante apontar que o aluno sujeito deste processo encontra-se no momento em que o caraacuteter profissionalizante da docecircncia vem sendo questionado tentando-se ldquoreformular e renovar os fundamentos

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epistemoloacutegicos do ofiacutecio de professor e de educador assim como da formaccedilatildeo para o magisteacuteriordquo (TARDIFF 2014 p 250)

Neste sentido eacute importante ressaltar a relaccedilatildeo entre os saberes docentes construiacutedos nos cursos de licenciatura e a atividade praacutetica de docecircncia Tardiff (2014) questiona

que relaccedilotildees deveriam existir entre os saberes profissionais e os conhecimentos universitaacuterios e entre os professores do ensino baacutesico e os professores universitaacuterios (pesquisadores ou formadores) no que diz respeito agrave profissionalizaccedilatildeo do ensino e agrave formaccedilatildeo de professores (TARDIFF 2014 p 246)

Dos pontos de vista administrativo e pedagoacutegico o arranjo entre matriz curricular ementa e horaacuterios de disciplina pode provocar a fragmentaccedilatildeo dos saberes da disciplina de estaacutegio supervisionado da forma como estaacute atualmente colocada em Letras visto que natildeo haacute um entrelaccedilamento entre os conteuacutedos desenvolvidos nas disciplinas O foco do estaacutegio que eacute a observaccedilatildeo e praacutetica pedagoacutegica muitas vezes pode se perder dada a quantidade de documentaccedilatildeo necessaacuteria agrave sua realizaccedilatildeo e estudo Aleacutem disso natildeo haacute um rol de escolas conveniadas com a universidade para que se faccedila o contato e a proposta de estaacutegio Os professores deste componente curricular e a coordenaccedilatildeo de ensino precisam buscar as escolas oferecer a proposta e se sujeitar aos horaacuterios e condiccedilotildees ofertadas

Natildeo eacute uma negociaccedilatildeo faacutecil e suave Haacute diversos momentos de tensatildeo principalmente em relaccedilatildeo ao horaacuterio da realizaccedilatildeo do estaacutegio visto que prevemos estaacutegio supervisionado no ensino fundamental e oferecemos o curso noturno de Letras Assim atualmente natildeo haacute escolas de ensino fundamental no periacuteodo noturno restando ao aluno-estagiaacuterio realizar sua observaccedilatildeo e regecircncia no contraturno durante o qual muitas vezes este aluno exerce atividade profissional remunerada Por diversos momentos o professor-orientador do estaacutegio precisa ir a diversas escolas de ensino baacutesico em Cuiabaacute para acompanhar as duplas de estaacutegio em horaacuterios que natildeo correspondem ao horaacuterio da sua disciplina na grade curricular do curso de Letras

Observando essas dificuldades o Colegiado do Curso de Letras elaborou um documento ainda na forma de minuta com sugestotildees a respeito do Estaacutegio supervisionado Este documento aborda a questatildeo pedagoacutegica poreacutem vai aleacutem fornecendo sugestotildees que podem amenizar as dificuldades e otimizar as relaccedilotildees de tempo e carga horaacuteria

4 Alguns apontamentos para um novo percurso

Em relaccedilatildeo agraves dificuldades apontadas e vivenciadas pelo grupo de docentes e coordenaccedilatildeo de curso o Colegiado dos Cursos de Letras a partir de diversas reuniotildees desde 2014 vem elaborando uma proposta com uma seacuterie de recomendaccedilotildees para que fossem incorporadas nas reformulaccedilotildees dos PPC dos cursos envolvidos (Letras e Literatura Letras e Inglecircs Letras e Francecircs e Letras e Espanhol) sobre o Componente Curricular ldquoEstaacutegio Supervisionadordquo

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Entre essas recomendaccedilotildees parte-se do entendimento de que o componente curricular ldquoEstaacutegio Supervisionadordquo deva ser tratado como disciplina podendo ser criada subturma em caso de nuacutemero de alunos superior a 15 alunos o que possibilitaria ao professor-orientador de Estaacutegio melhores condiccedilotildees de acompanhamento de seus alunos-estagiaacuterios

Sobre a relaccedilatildeo com a escola acolhedora do Estaacutegio a proposta do Colegiado em consonacircncia com a Resoluccedilatildeo CNE nordm 02 de 01052015 eacute a de que o Estaacutegio Supervisionado seja realizado em direta colaboraccedilatildeo com as instituiccedilotildees credenciadas da Educaccedilatildeo Baacutesica e que esse compromisso seja explicitado no texto do PPC e no Regulamento de Estaacutegio Supervisionado do Curso de Letras Ainda sugere-se que os Cursos de Letras desenvolvam projetos de formaccedilatildeo continuada junto aos professores das instituiccedilotildees de educaccedilatildeo baacutesica acolhedoras como contrapartida agrave realizaccedilatildeo do Estaacutegio Supervisionado nas referidas escolas

Para atender a essa demanda e tentar minimizar uma das dificuldades sugere-se tambeacutem que seja feito um cadastramento de escolas interessadas em estabelecer parceria na realizaccedilatildeo do Estaacutegio Supervisionado dos alunos dos Cursos de Letras da UFMT e dos professores supervisores interessados em acompanhar os estagiaacuterios dos Cursos de Letras em suas escolas

Apoacutes o cadastramento das escolas os coordenadores dos Cursos de Letras e os professores responsaacuteveis pelas disciplinas de Estaacutegio Supervisionado podem convidar os Coordenadores das instituiccedilotildees cadastradas para lhes apresentar o novo PPC e explicar como o Estaacutegio Supervisionado seria desenvolvido Ainda como sugestatildeo poder-se-ia estabelecer criteacuterios para a escolha das escolas parceiras tais como localizaccedilatildeo e nuacutemero de salas de modo a permitir aos alunos maior agilidade no deslocamento e permanecircncia durante todo o estaacutegio em uma mesma instituiccedilatildeo

Em relaccedilatildeo ao aporte pedagoacutegico do estaacutegio supervisionado o Colegiado dos Cursos de Letras sugere que o PPC insira a possibilidade de desenvolvimento de projetos interdisciplinares nas praacuteticas de uma das disciplinas de Estaacutegio Supervisionado preferencialmente no uacuteltimo semestre do curso quando o aluno jaacute estiver mais familiarizado com o contexto escolar e com diferentes abordagens de ensino de liacutenguas Nesse caso faz-se necessaacuterio explicar no PCC a(s) concepccedilatildeo (otildees) de interdisciplinaridade que iraacute (atildeo) orientar os projetos

Aconselha-se ainda que a observaccedilatildeo do contexto escolar seja feita no Estaacutegio Supervisionado I em tronco comum agraves duas liacutenguas Jaacute os projetos interdisciplinares podem ser desenvolvidos nas disciplinas de Estaacutegio Supervisionado IV das duas liacutenguas de forma colaborativa com alunos da mesma escola

Em relaccedilatildeo agrave divisatildeo das horas das atividades que compotildeem as disciplinas de Estaacutegio Supervisionado o Colegiado sugeriu que as 100 horas do Estaacutegio fossem divididas em 10 horas para Observaccedilatildeo 20 horas para Planejamento 20 horas para Elaboraccedilatildeo de material didaacutetico 30 horas para Regecircncia e 20 horas para Avaliaccedilatildeo sendo essa divisatildeo baseada nas experiecircncias anteriores

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Sobre a documentaccedilatildeo em atendimento ao art 17 da Resoluccedilatildeo CONSEPE nordm 117 de 11 de agosto de 2009 o Colegiado sugere que seja inserido no PPC que os planos de estaacutegio sejam submetidos ao Colegiado dos Cursos de Letras para anaacutelise e aprovaccedilatildeo Ainda sugere-se que seja utilizada a nomenclatura ldquoprofessor-orientadorrdquo para o professor ministrante da disciplina de Estaacutegio Supervisionado e ldquoprofessor-supervisorrdquo para o professor da escola que recebe e acompanha os alunos estagiaacuterios na escola

5 Consideraccedilotildees Finais

As atividades do Estaacutegio Supervisionado satildeo fundamentais para a formaccedilatildeo docente dos licenciados em Letras No sentido de fortalecer esse componente curricular eacute necessaacuterio fortalecer a relaccedilatildeo entre a escola de educaccedilatildeo baacutesica e a universidade No entanto mais que isso eacute necessaacuterio fortalecer o professor-orientador do estaacutegio otimizando suas atribuiccedilotildees burocraacuteticas para que ele possa desenvolver com plenitude a orientaccedilatildeo pedagoacutegica aos alunos-estagiaacuterios Portanto eacute fundamental que haja uma aproximaccedilatildeo das relaccedilotildees entre professores alunos coordenaccedilatildeo de curso e oacutergatildeo colegiado para que o Estaacutegio se desenvolva de maneira integrada entre estas instacircncias

Observando o contexto de dificuldades este artigo apresentou algumas propostas que os Colegiados dos Cursos de Letras ofereceram no momento de reformulaccedilatildeo dos cursos de graduaccedilatildeo na tentativa de melhorar o andamento da disciplina de estaacutegio supervisionado para os sujeitos envolvidos dentro e fora da universidade

Referecircncias

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PROJETO PEDAGOacuteGICO DE CURSO ndash LETRAS PORTUGUEcircS E LITERATURA Disponiacutevel em httpsistemasufmtbrufmtppcPlanoPedagogicoDownload117 Acesso em marccedilo de 2017

REICHMANN Carla L Letras e letramentos ndash escrita situada identidade e trabalho docente no estaacutegio supervisionado Campinas SP Mercado de Letras 2015

SILVA Jane Q e ASSIS Juliana A ldquoGecircneros na formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo do professor de liacutengua materna o que ainda eacute preciso dizer e fazer a propoacutesito dessa relaccedilatildeordquo In SERRANI Silvana (Orgs) Letramento discurso e trabalho docente Vinhedo Belo Horizonte 2010 p 172-181

TARDIFF Maurice Saberes docentes e formaccedilatildeo profissional Petroacutepolis RJ Editora Vozes 2014

______ LESSARD Claude O trabalho docente elementos para uma teoria de docecircncia como profissatildeo de interaccedilotildees humanas Petroacutepolis RJ Editora Vozes 2008

Recebido em 30 de abril de 2017

Aceito em 27 de junho de 2017

Flaacutevia Girardo Botelho Borges

Eacute doutora em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Pernambuco coordenadora do PIBID Letras - Portuguecircs e professora do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Estudos da Linguagem do Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso Tem experiecircncia na aacuterea de Linguiacutestica atuando principalmente nos seguintes temas letramentos linguagem e tecnologia formaccedilatildeo de professores portuguecircs como liacutengua adicional e morfossintaxe flavia2bgmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Estaacutegio Supervisionado em Literatura um relato de experiecircncia na UTFPR ndash CuritibaSupervised Literature Teaching Practicum an experience

report from UTFPR ndash Curitiba

Praacutectica Supervisada en Literatura um relato de experiencia en la UTFPR ndash Curitiba

Mirelle Mussi Giri Universidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute

Alice Atsuko MatsudaUniversidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute

Resumo

Neste artigo relatamos a partir de um caso praacutetico o processo formativo do professor de literatura em liacutengua portuguesa no curso de Licenciatura em Letras PortuguecircsInglecircs da Universidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute (UTFPR) campus Curitiba Para tanto descrevemos a partir de documentos oficiais como se daacute a formaccedilatildeo do professor de literatura na disciplina de Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio em Liacutengua Portuguesa II apresentamos brevemente as concepccedilotildees teoacutericas baacutesicas sobre as quais essa formaccedilatildeo se constroacutei e relatamos o estaacutegio realizado por uma dupla de discentes De modo a atingir esses objetivos adotamos para a elaboraccedilatildeo deste artigo de natureza descritiva a pesquisa bibliograacutefica e documental Como resultado verificamos que a disciplina mescla questotildees conceituais e praacuteticas que privilegiam uma formaccedilatildeo criacutetico-reflexiva a partir da leitura dirigida de textos teoacutericos e documentos oficiais no que diz respeito ao ensino de literatura Observamos que o processo formativo possibilitado aos discentes preocupa-se em dar uma base de conhecimento cidadatilde e que embora essa formaccedilatildeo docente envolva contextos adversos oportuniza desenvolvimento das competecircncias e habilidades profissionais necessaacuterias ao futuro docente exercendo seu papel como educador e na formaccedilatildeo cidadatilde dos discentes colaborando na transformaccedilatildeo da sociedade para que seja justa e igualitaacuteriaPalavras-chave Formaccedilatildeo docente ensino de literatura estaacutegio supervisionado

Abstract

In this article we report based on a practical case how the pre-service Portuguese literature teacher education is developed in the undergraduate Modern Languages major of the Federal University of Technology (UTFPR) campus Curitiba In order to do so we describe based on official documents how the pre-service Portuguese literature teacher education happens in the

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course Supervised Teaching Practicum in Portuguese Language II we briefly present the basic theoretical conceptions on which this practicum is built and report the practical experience had by a pair of students To achieve these goals we did a bibliographic and documentary research to write this descriptive article As a result we observed that the course combines theoretical and practical concepts that favor a critical-reflexive education based on the reading of theoretical texts and official documents regarding Portuguese literature teaching We observed that the training process students underwent is concerned with providing citizen knowledge and that although this teacher education involves adverse contexts it allows the development of professional skills necessary for the future teacher to exercise his role as an educator for citizenzhip collaborating in the transformation of society so that it becomes fair and egalitarianKeywords Teacher education literature teaching supervised teaching practicum

Resumen

En este artiacuteculo reportamos coacutemo se desarrolla a partir de un caso praacutectico el proceso de formacioacuten del profesor de literatura en lengua portuguesa en la Licenciatura en Lengua Moderna PortugueacutesIngleacutes de la Universidad Tecnoloacutegica Federal de Paranaacute (UTFPR) campus Curitiba Para tanto describimos a partir de documentos oficiales coacutemo es la formacioacuten de un profesor de literatura en la asignatura de praacutectica supervisada en Lengua Portuguesa II presentamos brevemente los conceptos teoacutericos baacutesicos sobre los cuales esta formacioacuten se construye y reportamos la praacutectica cumplida por dos estudiantes Para lograr estos objetivos hemos adoptado para la elaboracioacuten de este artiacuteculo de naturaleza descriptiva la investigacioacuten bibliograacutefica y documental Como resultado observamos que la disciplina mezcla aspectos conceptuales y praacutecticos que privilegian una formacioacuten criacutetico-reflexiva a partir de la lectura dirigida de textos teoacutericos y documentos oficiales con respecto a la ensentildeanza de la literatura Se observa que el proceso formativo posibilitado a los discentes se preocupa en dar una base de conocimiento ciudadana y que aunque esa formacioacuten docente involucra contextos adversos oportuniza el desarrollo de las competencias y habilidades profesionales necesarias para el futuro docente ejerciendo su papel como educador y en la formacioacuten ciudadana de los discentes colaborando en la transformacioacuten de la sociedad para que sea justa e igualitariaPalabras clave La formacioacuten del profesorado ensentildeanza de la literatura praacutecticas supervisadas

1 Introduccedilatildeo

As sociedades atuais vivenciam uma aproximaccedilatildeo em niacuteveis sem precedentes em virtude de um crescente processo de diluiccedilatildeo de fronteiras conhecido por globalizaccedilatildeo As novas dinacircmicas globais dela resultantes estimulam trocas intercacircmbios e fluxos de toda sorte cujos impactos satildeo percebidos natildeo somente na economia e na poliacutetica mas tambeacutem no modo de vida e na cultura das pessoas provocando profundas mudanccedilas em todos os aspectos da vida contemporacircnea Como resultado as sociedades se tornam mais criacuteticas e exigentes diante da imensa variedade e disponibilidade de informaccedilotildees e conhecimento que circulam Isso demanda que elas se adequem a essa nova realidade de modo a assegurar sua relevacircncia e distinccedilatildeo em um ambiente cada vez mais competitivo e integrado (LIMA FILHO 2004 ARCHANJO 2015)

Similarmente os professores tambeacutem precisam se adequar especialmente diante da ampliaccedilatildeo do acesso dos sujeitos agrave informaccedilatildeo e agrave participaccedilatildeo na era do conhecimento

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globalizado Faz-se necessaacuterio portanto que o professor em formaccedilatildeo desenvolva novas competecircncias domine novos saberes revista-se de novas responsabilidades sociais e tome consciecircncia sobre o mundo em que estaacute inserido capacitando-se para trabalhar em contextos dinacircmicos e desafiadores dessa nova realidade (VOLPI 2008ARCHANJO 2015)

Considerando que a Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Brasileira (LDB) publicada sob o nordm 9394 em 20 de dezembro de 1996 estabelece que a finalidade da educaccedilatildeo baacutesica deve ser a de promover a plena formaccedilatildeo do educando para que ele possa exercer sua cidadania e progredir no trabalho e nos estudos o processo formativo do professor pautado a partir dessa premissa deve ser desenvolver de forma criacutetica e reflexiva para tornaacute-lo elemento estrateacutegico de estiacutemulo agrave formaccedilatildeo de seus alunos (BRASIL 1996 VOLPI 2008)

O objetivo eacute formar o professor para que ele consiga enfrentar os desafios das raacutepidas transformaccedilotildees sociais e do mercado de trabalho ser capaz de elaborar novas estrateacutegias buscar novos rumos para a compreensatildeo e a resoluccedilatildeo dos problemas com que porventura se depare em sua docecircncia como problemas de evasatildeo indisciplina desinteresse pelos estudos e preparar seus alunos para exercer direitos e deveres desenvolver consciecircncia criacutetica e tornaacute-los instrumento de transformaccedilatildeo social (VOLPI 2008)

Essa tarefa eacute incumbida inicialmente agraves instituiccedilotildees de ensino superior responsaacuteveis por dar ao futuro docente o aparato para que ele consiga articular os conhecimentos teoacutericos baacutesicos agraves atividades praacuteticas e pedagoacutegicas Essas instituiccedilotildees tecircm autonomia para elaborar seus proacuteprios curriacuteculos contanto que respeitem os princiacutepios fundamentos e procedimentos que orientam os processos formativos do professor no paiacutes (BRASIL 1996 BRASIL 2001)

A partir desse contexto objetivamos relatar neste artigo como se desenvolve com base em um caso praacutetico a formaccedilatildeo do professor de literatura em liacutengua portuguesa na disciplina Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio em Liacutengua Portuguesa II do curso de Licenciatura em Letras PortuguecircsInglecircs da Universidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute campus Curitiba Para tanto propomos como objetivos especiacuteficos descrever a partir de documentos oficiais como se daacute a formaccedilatildeo na disciplina Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio em Liacutengua Portuguesa II apresentar brevemente as concepccedilotildees teoacutericas baacutesicas sobre as quais essa formaccedilatildeo se constroacutei e apresentar alguns dados do estaacutegio realizado por uma dupla de discentes regularmente matriculadas na disciplina no segundo semestre de 2015

Com o intuito de atingir os objetivos aqui traccedilados adotamos para a elaboraccedilatildeo deste artigo de natureza descritiva a pesquisa bibliograacutefica e documental

2 O processo formativo do professor de literatura na UTFPR ndash Curitiba

O processo formativo do professor de literatura em liacutengua portuguesa na Licenciatura em Letras PortuguecircsInglecircs da UTFPR se pauta no disposto em seu Projeto Pedagoacutegico (2011) que revela que o uso da liacutengua portuguesa pelos estudantes brasileiros eacute fonte de grande preocupaccedilatildeo pela sua capacidade insatisfatoacuteria de ler e interpretar textos

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simples (UTFPR 2011) ldquoNo Pisa 2015 5099 dos estudantes ficaram abaixo do niacutevel 21 de proficiecircncia A meacutedia de desempenho foi de 407 pontos Eacute a segunda queda consecutiva na aacuterea de leitura desde 2009rdquo (MORENO 2016 p 1) Para reverter esse quadro os cursos de Letras em consonacircncia com a LDB devem promover uma formaccedilatildeo qualificada e comprometida com a transformaccedilatildeo da realidade e do sistema educacional do paiacutes

O Projeto Pedagoacutegico estabelece as habilidades e competecircncias baacutesicas necessaacuterias ao futuro professor as quais devem ser colocadas em praacutetica no que diz respeito ao ensino de literatura em liacutengua portuguesa na disciplina Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio em Liacutengua Portuguesa II Seu objetivo geral eacute complementar o ensino e a aprendizagem adaptando o estudante psicoloacutegica e socialmente agrave sua futura atividade profissional bem como seu treinamento para facilitar sua futura absorccedilatildeo pelo mercado de trabalho e a orientaccedilatildeo na escolha de sua especializaccedilatildeo profissional

Em consonacircncia com esse objetivo a disciplina ofertada no sexto periacuteodo da licenciatura conta com 135h de carga total de atividades praacuteticas em que o discente frequenta 64h de aulas teoacutericas 59h realiza leituras anaacutelises e discussotildees de textos basilares de fundamentaccedilatildeo teoacuterica para o ensino de literatura elabora projeto de estaacutegio quatro planos de aula e relatoacuterio de estaacutegio realiza 8h de observaccedilatildeo e ministra 4h de regecircncia desenvolvida em uma instituiccedilatildeo de ensino baacutesico no semestre Prioriza tambeacutem o estudo e a reflexatildeo sobre textos teoacutericos e documentos que regem a educaccedilatildeo em acircmbitos estadual e nacional Esse estudo cotejado com atividades praacuteticas objetiva construir o conhecimento sobre o processo de ensinoaprendizagem de forma contextualizada e reflexiva (UTFPR 2011)

Para tanto a disciplina eacute dividida em duas fases Primeiramente leitura e discussatildeo em sala de aula de textos teoacutericos ndash ldquoA literatura e a formaccedilatildeo do homemrdquo (CANDIDO 1972) ldquoO direito agrave literaturardquo (CANDIDO 1995) ldquoTeoria da esteacutetica da recepccedilatildeordquo (ZAPPONE 2005) Meacutetodo recepcional (AGUIAR BORDINI 1993) e ldquoTecendo a aula de portuguecircsrdquo (MATSUDA 2008) ndash que fundamentam posteriormente a segunda fase de aplicaccedilatildeo do conhecimento construiacutedo nas escolas formadoras (UTFPR 2011)

Quanto ao trabalho com a leitura primeiro toacutepico de discussatildeo as Diretrizes Curriculares da Educaccedilatildeo Baacutesica do Paranaacute estabelecem que ela deve ser dialoacutegica e interlocutiva ou seja o leitor deve dialogar com o texto o autor e as circunstacircncias de produccedilatildeo e trazer o contexto da leitura para a atualidade Essa dinacircmica promoveria a construccedilatildeo de um leitor participativo que infere e interveacutem tornando-se coautor e apto a ler textos mais complexos O papel do professor nesse contexto eacute o de mediador que instiga o aluno e o auxilia durante a sua interpretaccedilatildeo (PARANAacute 2008)

O segundo toacutepico trata da noccedilatildeo de literatura entendida por Antonio Candido como um direito baacutesico que natildeo deve ser negado a ningueacutem Segundo ele a literatura

1 Estudantes com baixo desempenho satildeo aqueles que natildeo alcanccedilam o niacutevel 2 considerado o miacutenimo aceitaacutevel deproficiecircncia em Leitura No niacutevel 2 pede-se ao estudante que identifique a ideia principal de um texto compreenda relaccedilotildees ou deduza significado impliacutecito em uma informaccedilatildeo natildeo expliacutecita Disponiacutevel em httpswwwoecdorgpisapisaproductspisainfocus48488426pdf

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desempenha ao menos trecircs funccedilotildees essenciais para a formaccedilatildeo humana ndash psicoloacutegica formativa e de conhecimento do mundo e do ser ndash e alega que natildeo a trabalhar em sala poderia afetar a formaccedilatildeo do leitor como cidadatildeo criacutetico (CANDIDO 1972 1995)

Sequencialmente outro toacutepico estudado eacute a teoria da esteacutetica da recepccedilatildeo Segundo Zappone (2005) o texto deixaria de ser mera construccedilatildeo linguiacutestica que transmite as ideias de seu produtor e passaria a ser uma construccedilatildeo esteacutetica com lacunas que datildeo margem para que o leitor possa refletir e atribuir-lhe sentido desempenhando um papel fundamental no processo de leitura como coautor valorizando a figura do leitor

O penuacuteltimo toacutepico estudado eacute o meacutetodo recepcional (AGUIAR BORDINI 1993) metodologia de ensino que trabalha com textos progressivamente mais complexos em etapas

bull determinaccedilatildeo do horizonte de expectativas verificaccedilatildeo do niacutevel de maturidade do aluno enquanto leitor para prever estrateacutegias de ruptura e de transformaccedilatildeo

bull atendimento do horizonte de expectativa introduccedilatildeo de textos que satisfaccedilam agraves expectativas dos alunos para que eles se sintam confortaacuteveis durante a leitura e as atividades

bull ruptura do horizonte de expectativa introduccedilatildeo de textos e atividades mais complexas de modo a abalar as certezas e os costumes dos alunos

bull questionamento do horizonte de expectativa comparaccedilatildeo dos textos trabalhados nas etapas anteriores para proporcionar aos alunos momentos de reflexatildeo descobertas e construccedilatildeo de novos sentidos

bull ampliaccedilatildeo do horizonte de expectativa introduccedilatildeo de textos de maior focirclego e ainda mais complexos para proporcionar aos alunos uma maior tomada de consciecircncia acerca de suas conquistas intelectuais recentes obtidas por meio da literatura

O resultado da aplicaccedilatildeo dessas cinco etapas eacute a formaccedilatildeo de um leitor proficiente que buscaraacute novos textos de maior focirclego condizentes agrave sua nova condiccedilatildeo de leitor e ao seu novo horizonte de expectativas (AGUIAR BORDINI 1993)

Por fim o uacuteltimo toacutepico discutido eacute a experiecircncia de leitura em uma turma de oitavo ano do ensino fundamental (atual nono ano) durante um ano letivo (MATSUDA 2008) O objetivo eacute mostrar aos discentes como aplicar os vaacuterios ciclos das etapas do meacutetodo recepcional e que o final de um ciclo de cinco etapas ldquoeacute o iniacutecio de uma nova aplicaccedilatildeo do meacutetodo que evolui em espiral sempre permitindo aos alunos uma postura mais consciente com relaccedilatildeo agrave literatura e agrave vidardquo (AGUIAR BORDINI 1993 p 91)

Finda a primeira fase daacute-se iniacutecio agrave realizaccedilatildeo do estaacutegio pelos discentes que trabalham em duplas Essa fase eacute composta pelas seguintes etapas observaccedilatildeo de no miacutenimo de 8 horasaula na escola formadora para conhecer seu puacuteblico tomar consciecircncia de suas dificuldades limitaccedilotildees e potencialidades e levantar as necessidades da turma em que as duplas realizaratildeo as regecircncias elaboraccedilatildeo e finalizaccedilatildeo juntamente com o professor formador e o professor orientador de estaacutegio do projeto de estaacutegio e de quatro planos

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de aula realizaccedilatildeo de 4 horasaula de regecircncia avaliaccedilatildeo pelo professor orientador e orientaccedilatildeo por parte do professor da disciplina para a produccedilatildeo do relatoacuterio final reportando as atividades desenvolvidas durante o estaacutegio (UTFPR 2011)

3 Relato da experiecircncia de estaacutegio

De forma a ilustrar como a segunda fase da disciplina se desenvolve na praacutetica apresentaremos a seguir alguns dados da experiecircncia de uma dupla de alunas regularmente matriculada na disciplina de Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio em Liacutengua Portuguesa II no segundo semestre de 2015 a partir do relatoacuterio da discente Mirelle Mussi Giri (2015)

As observaccedilotildees e regecircncias foram realizadas na unidade concedente de estaacutegio Coleacutegio Estadual Guaiacutera ndash Ensino Fundamental e Meacutedio cujo puacuteblico eacute composto principalmente por estudantes oriundos de famiacutelias trabalhadoras de baixa a meacutedia renda O estaacutegio foi executado junto agrave turma B do 2ordm ano do Ensino Meacutedio periacuteodo matutino durante as aulas da disciplina de Liacutengua Portuguesa aos 32 alunos regularmente matriculados cujas idades variavam entre 15 e 17 anos A carga horaacuteria de observaccedilatildeo na escola foi de 8 horasaula e ocorreu ao longo de trecircs semanas entre os meses de setembro e outubro de 2015

Durante o periacuteodo de observaccedilatildeo as estagiaacuterias foram apresentadas agrave equipe pedagoacutegica aos professores formadores e agrave turma com a qual estagiariam oportunidade em que tambeacutem conheceram as dependecircncias da escola e receberam as orientaccedilotildees gerais para a realizaccedilatildeo do estaacutegio Em seguida elas deram iniacutecio agraves observaccedilotildees em sala de aula

O material didaacutetico adotado para a disciplina era na ocasiatildeo o livro Portuguecircs ndash Linguagens de William Roberto Cereja cujas atividades foram a base principal do trabalho com os conteuacutedos linguiacutesticos e literaacuterios desenvolvidos Durante o periacuteodo de observaccedilatildeo os toacutepicos trabalhados foram pronomes demonstrativos e os movimentos literaacuterios Realismo e Naturalismo Aleacutem das atividades propostas no livro as aulas contaram ainda com atividades elaboradas pela professora revisotildees e atividades avaliativas com e sem consulta ao material

As estagiaacuterias observaram que embora a professora formadora recorresse direta e quase mecanicamente ao material didaacutetico durante a maior parte do tempo ela conseguiu demonstrar tiacutemidas tentativas de tornar suas aulas mais dinacircmicas e de se aproximar de seus alunos propondo leituras mais interativas e a organizaccedilatildeo das carteiras em ciacuterculo para quebrar a monotonia da aula A professora recomendou tambeacutem a leitura da obra Senhora de Joseacute de Alencar momento em que exaltou o prazer da leitura e a sua contribuiccedilatildeo para o desenvolvimento do aluno natildeo soacute como leitor mas tambeacutem como ser humano

Dentre as iniciativas observadas que estabeleceram mais engajamento por parte dos alunos destacou-se a exibiccedilatildeo de um viacutedeo para contextualizar o tema literaacuterio em

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estudo A iniciativa promoveu uma intensa e positiva reaccedilatildeo dos estudantes que durante toda a atividade teceram comentaacuterios riram e participaram ativamente Isso demonstrou que a atividade atendeu plenamente aos seus horizontes de expectativas e que seria uma oacutetima opccedilatildeo de atividade durante as regecircncias que seriam ministradas mais adiante

No que diz respeito agrave dinacircmica em sala as estagiaacuterias observaram que a professora formadora gastava muito tempo tentando acalmar seus alunos que eram em sua maioria agitados indisciplinados e pouco participativos agravando a tensatildeo na relaccedilatildeo professor-aluno Observaram ainda serem muito frequentes por parte da professora reclamaccedilotildees em relaccedilatildeo ao uso do celular o que diminuiacutea ainda mais o tempo de trabalho com o conteuacutedo Notaram tambeacutem que a professora frequentemente induzia seus alunos a determinadas interpretaccedilotildees sem abrir espaccedilo para que eles pudessem tecer suas proacuteprias inferecircncias

Ao longo do periacuteodo de observaccedilatildeo as estagiaacuterias se reuniram com a professora formadora a fim de discutir possiacuteveis temas que pudessem ser trabalhados durante as regecircncias Foi acordado entatildeo que elas trabalhariam com a escola literaacuteria simbolista por esse ser um tema pouco caro agrave professora e que a temaacutetica a ser trabalhada ficaria a cargo delas

Na uacuteltima observaccedilatildeo as estagiaacuterias aplicaram ao final da aula um questionaacuterio escrito aos educandos para pesquisar seus gostos de leitura O intuito foi conhecer melhor a realidade escolar em que elas estavam inseridas averiguar o niacutevel de maturidade do aluno como leitor e determinar seu horizonte de expectativas

Aleacutem de fazer um levantamento da idade meacutedia do puacuteblico alvo o questionaacuterio tambeacutem contemplou questotildees cujos objetivos eram verificar se os familiares dos alunos eram leitores assiacuteduos ou natildeo e se auxiliavam na sua formaccedilatildeo enquanto leitores Nesse quesito as estagiaacuterias constataram que a escola era a grande responsaacutevel por formaacute-los leitores Ao averiguar se houve estiacutemulo agrave leitura e consequentemente agrave formaccedilatildeo do leitor descobriram que mesmo natildeo sendo leitores assiacuteduos em sua maioria boa parte dos paisresponsaacuteveis leram para eles quando crianccedilas e procuraram incentivar o gosto pela leitura Ao verificar com que frequecircncia liam textos de seu interesse os dados revelaram uma turma dividida 381 raramente ou nunca lia por fruiccedilatildeo e 381 frequentemente lia livros de seu proacuteprio interesse Ao indagar as preferecircncias de suporte textual os dados indicaram que 428 dos alunos apreciavam ler textos online ao passo que 239 preferia livros impressos

Findo o periacuteodo de observaccedilatildeo as estagiaacuterias concluiacuteram que a turma ainda que heterogecircnea correspondia ao perfil padratildeo daquela comunidade escolar Ademais revelaram ser perceptiacutevel o desinteresse dos alunos pelas aulas de Liacutengua Portuguesa e de Literatura Observaram tambeacutem que embora parte da turma apresentasse haacutebitos de leitura mais refinados a outra ainda estava em processo de formaccedilatildeo As discentes tambeacutem perceberam que os alunos participavam mais durante as aulas cujos conteuacutedos eram os literaacuterios Concluiacuteram portanto que o ensino de literatura deveria ser articulado com o ensino de liacutengua de modo a proporcionar aulas mais prazerosas e proveitosas para os educandos

A partir do contexto escolar apresentado e considerando as reflexotildees teoacutericas construiacutedas na primeira etapa da disciplina as estagiaacuterias elaboraram o Projeto de Estaacutegio

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fundamentado no meacutetodo recepcional adotado pela disciplina a partir do proposto pelas Diretrizes Curriculares da Educaccedilatildeo Baacutesica do Paranaacute como sugestatildeo de trabalho para o ensino de literatura na Educaccedilatildeo Baacutesica De acordo com esse documento haacute estudos que indicam que se o professor aplicar sistematicamente essa metodologia formaraacute um aluno leitor muito mais criacutetico e competente (PARANAacute 2008)

O objetivo geral do Projeto intitulado A temaacutetica da morte sob a perspectiva da Escola Simbolista foi contextualizar o Simbolismo brasileiro a partir do tema da morte sendo o fio condutor do Projeto A temaacutetica foi desenvolvida a partir de textos contemporacircneos e simbolistas2 os quais embasaram os estudos comparativos e as reflexotildees desenvolvidas Os contos e poemas analisados foram ldquoVenha ver o pocircr-do-sol e outros contosrdquo (TELLES 1995) ldquoIsmaacuteliardquo ldquoHatildeo de chorar por ela os cinamomosrdquo e ldquoCantem outros a clara cor virenterdquo (GUIMARAENS 1985) ldquoVelhordquo ldquoIronia de Laacutegrimasrdquo ldquoA morterdquo e ldquoVisatildeo da morterdquo (SOUSA 1982) Os recursos utilizados para fomentar as discussotildees incluiacuteram desde reproduccedilatildeo de pinturas curta-metragem conto e poemas os quais possuiacuteam a temaacutetica estudada como denominador comum de modo a identificar suas peculiaridades esteacuteticas de forma mais assertiva

As estagiaacuterias elaboraram entatildeo sob orientaccedilatildeo do professor orientador quatro planos de aula fundamentados nas etapas do meacutetodo recepcional de modo a contemplar uma progressatildeo coerente ao longo das aulas Os planos contavam tambeacutem com os procedimentos e os recursos didaacuteticos que seriam utilizados a avaliaccedilatildeo da aprendizagem e o tempo planejado para cada uma das atividades das aulas A etapa de observaccedilatildeo das aulas do professor formador serviu para determinar os horizontes de expectativas dos alunos primeira etapa do meacutetodo recepcional e elaborar o projeto de estaacutegio e os planos de aula

As regecircncias ministradas nos dias 05 e 13 de novembro de 2015 respectivamente foram conduzidas pelas estagiaacuterias de forma intercalada em turnos dentro de uma

2 Os textos utilizados nas aulas de regecircncia como reproduccedilatildeo de pinturas curta-metragem conto e poemas foram os seguintes A Morte do Avarento Disponiacutevel em lt httpsptwikipediaorgwikiMorte_do_Avarentogt Acesso em 031115 Morte da Virgem Disponiacutevel em lthttpvirusdaartenetcaravaggio-a-morte-da-virgemgt Acesso em 031115 Morte de Lucreacutecia Disponiacutevel em httpwwwacervodigitalunespbrbitstreamunesp1797591Mestres20do20Renascimento20CCBB 20pt1 Acesso em 031115 O Uacuteltimo Tamoyo Disponiacutevel em httpsptwikipediaorgwikiRodolfo_Amoedogt Acesso em 031115 Anjo da Morte Disponiacutevel em lthttpscommonswikimediaorgwikiFileEvelyn_De_Morgan_-_Angel_of_Deathjpggt Acesso em 031115 A Morte de Marat Disponiacutevel em lthttpestoriasdahistoria12blogspotcombr201305analise-da-obra-morte-de-marat-dehtmlgt Acesso em 031115 Anjo da Morte Disponiacutevel em lt httpeducacaoglobocomliteraturaassuntomovimentos-literariosromantismo-segunda-geracaohtmlgt Acesso em 031115 A Senhora e a Morte Curta-metragem Disponiacutevel emlthttpswwwyoutubecomwatchv=5SYTkquhhwUamphd=1gt Acesso em 031115 TELLES Lygia Fagundes Venha ver o pocircr-do-sol amp outros contos 10 ed Satildeo Paulo SP Aacutetica 1995 Poemas de Cruz e Souza Disponiacutevel em lthttpwwwcasadobruxocombrpoesiaccruzhtmgt Acesso em 27112015 Poemas de Alphonsus de Guimaraens Disponiacutevel emhttpwwwavozdapoesiacombrobras_lerphpobra_id=7211amppoeta_id=328 Acesso em 27112015

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mesma aula e promoveram constantes debates orais que demandaram a participaccedilatildeo e a ativaccedilatildeo dos conhecimentos preacutevios dos alunos A participaccedilatildeo deles foi satisfatoacuteria ultrapassando as expectativas ao contraacuterio do percebido durante as observaccedilotildees

A primeira aula regida no dia 05 de novembro de 2015 correspondeu agrave etapa de atendimento do horizonte de expectativas Nessa aula cujo objetivo era discutir refletir e comparar a temaacutetica da morte sob uma perspectiva atual e geral bem como ler analisar e relacionar textos de diferentes gecircneros acerca da temaacutetica morte representativos ou natildeo da escola simbolista brasileira a estagiaacuteria pediu primeiramente que os alunos organizassem suas carteiras em semi-ciacuterculo entendida pelos aplicadores do meacutetodo e tambeacutem pela professora da disciplina de Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio de Liacutengua Portuguesa II como a disposiccedilatildeo adequada para se trabalhar em sala de aula Ela entatildeo distribuiu aos alunos folhas em branco para que escrevessem seus nomes e os deixassem agrave vista na parte frontal de suas carteiras para facilitar a comunicaccedilatildeo Em seguida a estagiaacuteria se apresentou aos alunos e explicou como o trabalho seria desenvolvido

Como intuito de atender ao horizonte de expectativas dos alunos a estagiaacuteria solicitou que eles se organizassem em trios para analisar a reproduccedilatildeo impressa de algumas pinturas Cada trio recebeu uma reproduccedilatildeo e precisou discutir os sentimentos que elas provocavam que adjetivos usariam para descrevecirc-las e quais os temas retratados Em seguida cada trio foi convidado a compartilhar suas consideraccedilotildees com o grande grupo A estagiaacuteria por sua vez informou-lhes o tiacutetulo a autoria e a data das pinturas e mediou as discussotildees

O processo de trabalho do meacutetodo recepcional de ensino de literatura ldquoapoacuteia-se no debate constante em todas as suas formas oral e escrito consigo mesmo com os colegas com o professor e com os membros da comunidaderdquo (AGUIAR BORDINI 1988 86) A postura do professor eacute ser mediador da leitura auxiliar e instigar o seu aluno a ser participativo de modo a estabelecer um diaacutelogo com o texto e coautoraacute-lo conforme sugere as Diretrizes Curriculares da Educaccedilatildeo Baacutesica do Paranaacute (PARANAacute 2008) que embasa a disciplina de Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio de Liacutengua Portuguesa II em anaacutelise A leitura precisar ser desenvolvida de forma dialoacutegica e interlocutiva

Em seguida a estagiaacuteria exibiu um curta-metragem de 2009 A Senhora e a morte de Javier Recio Garciacutea e propocircs a discussatildeo de algumas questotildees Na sequecircncia ela destacou que a morte poderia ser representada de diversas maneiras e perguntou aos alunos quais imagens seriam mais recorrentes na atualidade Por fim o toacutepico debatido em aula foi sintetizado e a estagiaacuteria conectou o tema da aula com o que seria abordado na aula seguinte

A segunda regecircncia correspondeu agrave etapa de ruptura do horizonte de expectativas e objetivou analisar e interpretar no gecircnero conto a temaacutetica da morte e seus siacutembolos mais representativos no texto No iniacutecio da aula a estagiaacuteria explicou resumidamente o tema e as atividades que seriam desenvolvidas e distribuiu coacutepias do conto ldquoVenha ver o pocircr do solrdquo de Lygia Fagundes Telles (1970)

Antes da leitura do texto a estagiaacuteria perguntou aos alunos se eles conheciam a autora e os instigou a refletir acerca do tiacutetulo do conto para traccedilar qual relaccedilatildeo poderia

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haver entre ele e a temaacutetica em estudo Convidou entatildeo os alunos aleatoriamente a participarem da atividade Nesse momento a estagiaacuteria talvez por nervosismo desatenccedilatildeo eou inexperiecircncia solicitou que cada um dos alunos lesse partes do texto em voz alta ao inveacutes de pedir que alguns voluntaacuterios fizessem a leitura dramatizada ou a proacutepria estagiaacuteria fizesse a leitura de forma dramatizada com entonaccedilatildeo e os alunos acompanhassem a leitura conforme estava previsto no plano de aula

O fato de um dos alunos quase ao final da leitura ter pedido permissatildeo para finalizaacute-la sem dar oportunidade para que os demais que ainda natildeo tivessem lido participassem indicou que os diferentes niacuteveis de proficiecircncia leitora da turma identificados pela lentidatildeo e dificuldade de alguns e oacutetima desenvoltura de outros perturbaram os leitores mais proficientes ainda que essa diferenccedila natildeo tenha afetado o objetivo da atividade No entanto demonstrou que a leitura em voz alta pelos alunos de trechos de textos muitas vezes com objetivo apenas de eles ficarem atentos mais por questatildeo de disciplina natildeo resulta na compreensatildeo e interesse ao texto que estaacute sendo lido

Em seguida a estagiaacuteria perguntou aos alunos quais foram as suas primeiras impressotildees acerca da histoacuteria dividiu-os em pequenos grupos e entregou a cada um deles sete imagens impressas obtidas de outras fontes de elementos presentes no conto que representavam a morte (chave fechadura nova portinhola enferrujada folhas secas cemiteacuterio abandonado catacumba e pocircr do sol) Explicou na sequecircncia que eles deveriam relacionaacute-las agrave temaacutetica da morte procurando perceber o que havia de estranho identificar em que momento as imagens apareceram no conto e qual sua importacircncia na histoacuteria refletindo sobre a sua influecircncia no desfecho Terminada a discussatildeo a estagiaacuteria convidou os grupos a irem agrave frente da sala para apresentar suas anaacutelises Os alunos entretanto mostraram-se resistentes agrave exposiccedilatildeo preferindo compartilhaacute-las de suas carteiras Ao fim da aula ela os orientou acerca da tarefa de casa que consistiu em trazer por escrito a anaacutelise feita em sala

A estagiaacuteria percebeu que a atividade teria sido mais produtiva se houvesse mais tempo para discussatildeo uma vez que segundo ela em uma aula de apenas 45 minutos natildeo seria possiacutevel promover uma reflexatildeo com mais profundidade

Nas regecircncias realizadas no dia 13 de novembro a classe estava mais vazia e de acordo com o relatoacuterio em anaacutelise isso influenciou na dinacircmica das atividades pois alguns dos alunos mais participativos natildeo estavam presentes Os alunos que estavam em sala por sua vez pouco se voluntariaram a participar das atividades e se mostraram menos interessados em comparaccedilatildeo agraves duas regecircncias anteriores Haacute que se considerar entretanto que essa apatia dos alunos tambeacutem pode ter sido fruto de uma dificuldade enfrentada pela estagiaacuteria em promover outras formas de estiacutemulos agrave sua participaccedilatildeo

Trata-se de uma situaccedilatildeo que eacute desafiadora natildeo soacute para professores em formaccedilatildeo mas tambeacutem para aqueles com muitos anos de experiecircncia na carreira docente a exemplo da professora formadora da turma que durante o periacuteodo de observaccedilatildeo das estagiaacuterias demonstrou ter dificuldade em lidar com os alunos e fazecirc-los participarem e se concentrarem mais

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O objetivo da terceira regecircncia que correspondeu agrave etapa de questionamento do horizonte de expectativas foi comparar os textos trabalhados nas etapas anteriores de modo a refletir sobre as simbologias e aspectos mais representativos da temaacutetica morte No iniacutecio da aula a estagiaacuteria orientou os alunos quanto agraves regras para a participaccedilatildeo oral durante as atividades Na sequecircncia retomou brevemente o conteuacutedo trabalhado na semana anterior

A estagiaacuteria entatildeo exibiu novamente o curta-metragem para que os alunos relembrassem a temaacutetica da produccedilatildeo e observassem como o tema da morte foi construiacutedo por meio de siacutembolos Em seguida entregou aos alunos um quadro comparativo e propocircs o seu preenchimento de forma conjunta

Os alunos contrapuseram o curta-metragem ao conto e observaram em que aspectos se aproximavam e se distanciavam considerando os elementos literaacuterios presentes em relaccedilatildeo agrave temaacutetica da morte (elementos simboacutelicos cores personagens ambienteespaccedilo cliacutemax suspense e linguagem) Durante a discussatildeo dos elementos simboacutelicos a estagiaacuteria pediu que cada grupo compartilhasse sua anaacutelise ndash a qual eles ficaram incumbidos de fazer em casa ndash para os demais alunos Entretanto apenas um grupo fez a liccedilatildeo Ainda que os demais tenham improvisado uma fala os alunos tiveram um bom desempenho e conseguiram fazer as inferecircncias necessaacuterias para a realizaccedilatildeo da atividade Por fim a estagiaacuteria recolheu os quadros comparativos e os entregou para a professora formadora de modo que ela pudesse a seu criteacuterio usaacute-los como forma de avaliaccedilatildeo da aprendizagem de seus alunos

A estagiaacuteria finalizou a aula reforccedilando que os siacutembolos presentes no curta-metragem e no conto que sugerem a morte e um clima de misteacuterio aparecem de forma mais preponderante na escola simbolista tema que foi desenvolvido na aula seguinte

A quarta e uacuteltima regecircncia correspondeu agrave etapa de ampliaccedilatildeo do horizonte de expectativas e objetivou apreciar textos simbolistas refletir sobre os aspectos fundamentais que os caracterizam e apurar a visatildeo criacutetica do aluno acerca da morte e do Simbolismo

Primeiramente a estagiaacuteria distribuiu aos alunos o poema ldquoIsmaacuteliardquo de Alphonsus de Guimaraens e pediu que eles acompanhassem seus versos em um viacutedeo musicalizado Ela observou contudo que os poucos alunos que estavam em sala naquele momento tiveram dificuldade para acompanhar os versos em virtude do barulho dos colegas nos corredores mesmo apoacutes ela pedir o silecircncio e a colaboraccedilatildeo de todos eles Ela tambeacutem percebeu que eles ainda estavam preocupados em terminar a atividade comparativa iniciada na aula anterior para poderem entregaacute-la para a professora formadora que a avaliaria o que tumultuou um pouco o iniacutecio da aula mesmo apoacutes ela assegurar agravequeles que natildeo conseguiram terminar que eles poderiam entregaacute-la em um momento posterior a ser combinado com a professora formadora

Em seguida foi analisado o poema em seus aspectos formais e de conteuacutedo A estagiaacuteria fez uma breve contextualizaccedilatildeo do periacuteodo literaacuterio simbolista e elencou suas principais caracteriacutesticas formais e histoacutericas Ela pediu entatildeo que os alunos abrissem seus livros didaacuteticos para a leitura de um texto e de um quadro comparativo Logo apoacutes

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distribuiu diferentes poemas para que eles em duplas analisassem-nos Os alunos puderam se embasar nas seguintes questotildees qual o tema tratado nesse poema De que maneira ele eacute abordado Quais elementos simboacutelicos presentes O que esses elementos representamO que pode ser observado quanto agrave estrutura formal do poema Quais satildeo as caracteriacutesticas simbolistas presentes

Os grupos entatildeo apresentaram oralmente suas conclusotildees momento em que a estagiaacuteria mediou e fez comentaacuterios relativos agrave discussatildeo Por fim ela recapitulou brevemente tudo que foi estudado ao longo das regecircncias e agradeceu ao grupo e agrave professora formadora pela participaccedilatildeo e compreensatildeo durante todo o processo

A partir do exposto pode-se verificar que as estagiaacuterias conseguiram finalizar o ciclo de etapas proposto na segunda fase da disciplina de realizaccedilatildeo do estaacutegio a qual se embasou na construccedilatildeo teoacuterica construiacuteda na etapa anterior Elas observaram a turma na escola formadora durante 8 horasaula e conseguiram conhecer seu puacuteblico por meio de um levantamento de suas necessidades dificuldades limitaccedilotildees e potencialidades Elaboraram entatildeo o Projeto de Estaacutegio conduziram cada uma regecircncias com duraccedilatildeo de 2 horasaula e produziram individualmente os relatoacuterios finais reportando as atividades

No que diz respeito agraves regecircncias a dupla conseguiu aplicar todas as cinco etapas do meacutetodo recepcional de forma progressiva e ter noccedilatildeo da sua aplicaccedilatildeo a partir da proposiccedilatildeo de atividades originais e dinacircmicas que aproximaram as estagiaacuterias dos alunos Conseguiu tambeacutem contextualizar o Simbolismo brasileiro a partir da temaacutetica da morte e fomentar discussotildees de modo a colaborar para a formaccedilatildeo de um alunoleitor de acordo com a premissa estabelecida pelas Diretrizes Curriculares da Educaccedilatildeo Baacutesica do Paranaacute Isso confirmou que a escolha do meacutetodo recepcional para o ensino de literatura sugerido pelo documento foi acertada

Dentre as iniciativas observadas durante a aplicaccedilatildeo do meacutetodo recepcional que foram bem-sucedidas destaca-se a determinaccedilatildeo do horizonte de expectativas cujo levantamento e anaacutelise foram adequados para compreender natildeo soacute algumas condiccedilotildees da realidade escolar e das necessidades do grupo e seu niacutevel de maturidade ao ler e interpretar os textos mas tambeacutem o tipo de atividades e recursos que poderiam envolvecirc-los e engajaacute-los mais durante as aulas

Ademais cabe sublinhar que a dupla conseguiu ainda atender o horizonte de expectativa dos alunos ao propor atividades em que eles se sentissem confortaacuteveis como a exibiccedilatildeo do curta-metragem romper com as expectativas deles ao fazecirc-los articularem novas ideias e informaccedilotildees por meio da proposiccedilatildeo da leitura da anaacutelise e da discussatildeo do conto sob a temaacutetica morte questionar suas expectativas ao propor a comparaccedilatildeo dos textos trabalhados nas etapas anteriores ampliando a capacidade de os alunos fazerem inferecircncias e ampliar seus horizontes de expectativas ao introduzir poemas para fazecirc-los dialogar com os textos simbolistas de forma dialoacutegica e interlocutiva apurar sua visatildeo criacutetica acerca da morte e da escola literaacuteria simbolista e tomar consciecircncia das novas perspectivas intelectuais construiacutedas

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Dentre os desafios observados destaca-se primeiramente a heterogeneidade da turma especialmente no que diz respeito agrave proficiecircncia leitora A praacutetica confirmou os dados levantados pelas estagiaacuterias durante a primeira etapa do meacutetodo recepcional momento em que descobriram que a maioria natildeo era leitor assiacuteduo e nem lia por fruiccedilatildeo Esse aspecto ficou perceptiacutevel durante a atividade de leitura do conto momento em que todo o grupo percebeu eou confirmou os diferentes niacuteveis existentes entre eles causando mal-estar em alguns

Outro desafio enfrentado foi uma das estagiaacuterias incorrer em um momento pontual no mesmo erro da professora formadora ao induzir os alunos a determinadas interpretaccedilotildees sem abrir espaccedilo para que eles pudessem tecer suas proacuteprias inferecircncias Acreditamos que isso ocorreu pela inexperiecircncia da estagiaacuteria na administraccedilatildeo do tempo e da turma durante a execuccedilatildeo das atividades especialmente ao se considerar que os alunos eram em sua maioria agitados e indisciplinados Outra possiacutevel razatildeo diz respeito agrave carga horaacuteria dedicada agraves regecircncias que talvez natildeo tenha sido suficiente para um desenvolvimento mais aprofundado das leituras atividades e reflexotildees propostas em cada uma das etapas do meacutetodo recepcional fazendo com que o estaacutegio tivesse sua efetividade limitada levando-nos a avaliar a necessidade de ampliar a carga horaacuteria das regecircncias nos estaacutegios

Por fim salienta-se que as estagiaacuterias conseguiram dentro das possibilidades vivenciar uma relaccedilatildeo dialeacutetica entre teoria e praacutetica profissional e as dificuldades e desafios envolvidos durante o processo de ensinoaprendizagem Conseguiram tambeacutem compreender aspectos da realidade escolar em que estavam inseridas e proporcionar aulas prazerosas aos educandos por meio de um trabalho com a literatura buscando compreender mais profundamente o modo como se daacute o processo de formaccedilatildeo sempre tendo em mente a formaccedilatildeo de um alunoleitor criacutetico e competente

4 Consideraccedilotildees finais

Neste artigo relatamos a partir de um caso praacutetico como se daacute a formaccedilatildeo do professor de literatura em liacutengua portuguesa na disciplina de Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio em Liacutengua Portuguesa II do curso de Licenciatura em Letras PortuguecircsInglecircs da UTFPR-Curitiba Para tanto descrevemos como se daacute essa formaccedilatildeo e apresentamos brevemente as concepccedilotildees teoacutericas baacutesicas sobre as quais ela se constroacutei bem como o estaacutegio realizado por uma dupla de estagiaacuterias regularmente matriculadas na disciplina no segundo semestre de 2015

Como resultado verificamos que a disciplina mescla questotildees conceituais e praacuteticas que embasam a capacitaccedilatildeo do discente para a realizaccedilatildeo dos objetivos propostos no Projeto Pedagoacutegico do curso Observamos tambeacutem que a ementa da disciplina privilegia um estudo criacutetico-reflexivo promovido a partir da leitura dirigida de textos teoacutericos e documentos oficiais que fundamentam e norteiam a praacutetica e o ensino de literatura

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Entendemos que o processo formativo priorizado no curso eacute aquele que desenvolve as competecircncias e as habilidades profissionais necessaacuterias para um mercado de trabalho voltado essencialmente para a formaccedilatildeo cidadatilde entendimento construiacutedo a partir da anaacutelise dos documentos que norteiam a formaccedilatildeo em foco Entendemos tambeacutem que se trata de uma formaccedilatildeo que oferece ao futuro professor as ferramentas necessaacuterias para que use o espaccedilo de sua aula para permitir que seu aluno da educaccedilatildeo baacutesica da rede puacuteblica progrida em seus estudos trabalho e como ser humano o que justifica a sugestatildeo pelos documentos que embasam a formaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo do meacutetodo recepcional para esse fim

Depreendemos similarmente que o processo formativo oportunizado na UTFPR-Curitiba viabiliza um contato mais proacuteximo com a realidade profissional e com a reflexatildeo envolvida no processo de ensinoaprendizagem de literatura Eacute pois o momento em que o discente comeccedila a aplicar os aspectos teoacutericos formativos em um ambiente controlado para poder refletir sobre cada passo dado e sentir-se mais seguro para a praacutetica docente fora da academia

Ademais compreendemos que as estagiaacuterias conseguiram se apropriar do conhecimento propiciado pela relaccedilatildeo dialeacutetica estabelecida entre teoria e praacutetica ao empregar o conhecimento teoacuterico construiacutedo na primeira fase da disciplina durante a etapa de realizaccedilatildeo do estaacutegio ainda que tenham enfrentado dificuldades pontuais Aplicaram pois todas as etapas do meacutetodo recepcional durante as regecircncias contextualizaram a temaacutetica literaacuteria e fomentaram discussotildees com o objetivo de contribuir para a formaccedilatildeo de um alunoleitor maduro criacutetico e competente

Entendemos tambeacutem que as estagiaacuterias vivenciaram um processo de ensinoaprendizagem uacutenico e privilegiado A dupla teve a oportunidade natildeo somente de aplicar os conhecimentos teoacutericos na praacutetica mas tambeacutem de compreender e avaliar o espaccedilo social em que o professor estaacute inserido de se apropriar de conhecimentos complementares que contribuiratildeo para o futuro exerciacutecio da sua profissatildeo e de buscar soluccedilotildees diante das situaccedilotildees desafiadoras que ocorreram dentro da sala de aula

Ponderamos entretanto que em virtude de as 4 horasaula dedicadas agraves regecircncias aparentemente natildeo terem sido suficientes para o desenvolvimento mais aprofundado das leituras atividades e reflexotildees propostas nas etapas do meacutetodo recepcional seria interessante que o curso reconsiderasse a carga horaacuteria aumentando-a de modo a proporcionar ao futuro professor um maior contato e entendimento dos contextos dinacircmicos em que iraacute atuar

Por fim entendemos que a formaccedilatildeo oportunizada pelo curso ainda que desafiada por contextos tais como aqueles observados na escola formadora onde o estaacutegio ocorreu desenvolve as competecircncias e habilidades necessaacuterias ao futuro professor para atuar em contextos dinacircmicos e colaborar para a formaccedilatildeo cidadatilde de seus alunos impactando as sociedades positivamente

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Recebido em 28 de abril de 2017

Aceito em 10 de novembro de 2017

Mirelle Mussi Giri

Licenciada em Letras PortuguecircsInglecircs pela Universidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute campus Curitiba e em Direito pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute mirellemussihotmailcom

Alice Atsuko Matsuda

Mestre em Letras ndash Literatura e Ensino ndash pela Universidade Estadual Paulista ldquoJulio de Mesquita Filhordquo Doutora em Letras ndash Estudos Literaacuterios pela Universidade Estadual de Londrina Professora Titular Adjunta IV e Docente Permanente do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos de Linguagens da Universidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute Atualmente encontra-se em Estaacutegio Poacutes-doutoral no Programa de Poacutes-doutoramento em Materialidades da Literatura pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra com auxiacutelio da Capes alicemutfpredubr

Outros lugares

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eISSN 22376844polifonia

Interdiscursividade e intertextualidade a constituiccedilatildeo dos sentidos do dizer no universo autoral

Interdiscursivity and Intertextuality The Constitution of Meanings in the Authorial Universe

Interdiscursividad e intertextualidad La constitucioacuten de los sentidos Del decir en el universo de la autoriacutea

Terezinha Maia Martincowski

Resumo

Neste estudo procuramos discutir a constituiccedilatildeo do universo autoral de jovens universitaacuterios a partir da leitura interpretativa e da formaccedilatildeo de arquivos entendendo que produzimos a partir do uso de textos e argumentos que habitam nossos arquivos A partir dessa compreensatildeo o objetivo da presente pesquisa foi o de analisar o processo de escrita com autoria A anaacutelise da produccedilatildeo foi orientada para a busca da plurivocidade a partir da interdiscursividade e da intertextualidade observando se as ideias principais de textos e de discussotildees trabalhadas em sala de aula satildeo consideradas na produccedilatildeo escrita A maioria manteve-se no tema indicando tanto apropriaccedilatildeo da tarefa como atitude interpretativa das leituras e constituiccedilatildeo dos sentidos do dizer e tambeacutem apresentou textos produzidos com autoria transformando o dizer alheio em dizer proacuteprio assumindo posicionamento axioloacutegico e responsividadePalavras-chave Constituiccedilatildeo autoral ensino superior interdiscursividadeintertextualidade

Abstract

In this study we discuss the constitution of the authorial universe of young university students by means of the interpretive reading and the formation of archives understanding that we produce through the use of texts and arguments that lie in our archives The objective of this research was to analyze the process of authorial writing The analysis of the production was aimed at the search for plurivocity interdiscursivity and intertextuality observing if the main ideas of texts and of discussions held in class are considered in the written production The great majority attained to the subject indicating appropriation of the task as an interpretative attitude towards the readings and as a constitution of meanings Most also presented texts produced with authorship transforming the saying of others into their own words assuming axiological positioning and responsivenessKeywords Authorial constitution higher education interdiscursivityintertextuality

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Resumen

En este estudio tratamos de discutir la constitucioacuten del universo autoral de joacutevenes universitarios a partir de la lectura interpretativa y de la formacioacuten de archivos entendiendo que producimos a partir del uso de textos y argumentos que habitan nuestros archivos A partir de esa comprensioacuten el objetivo de la presente investigacioacuten fue el de analizar el proceso de escritura con autoriacutea El anaacutelisis de la produccioacuten se orientoacute hacia la buacutesqueda de la plurivocidad a partir de la interdiscursividad y de la intertextualidad observando si las ideas principales de textos y de discusiones trabajadas en el aula se consideran en la produccioacuten escrita La gran mayoriacutea se mantuvo en el tema indicando tanto apropiacioacuten de la tarea como actitud interpretativa de las lecturas y constitucioacuten de los sentidos del decir y tambieacuten presentoacute textos producidos con autoriacutea transformando el decir ajeno en decir propio asumiendo posicionamiento axioloacutegico y responsividadPalabras clave Constitucioacuten autoral ensentildeanza superior interdiscursividadintertextualidad

1 Introduccedilatildeo

O grau universitaacuterio eacute um passo de muita importacircncia na vida dos jovens Entretanto de maneira geral os universitaacuterios tecircm enfrentado dificuldades em sua formaccedilatildeo acadecircmica Uma das questotildees que gera dificuldades entre os alunos iniciantes eacute que nem sempre o ensino superior tem condiccedilotildees de acolher os anseios desses jovens no sentido de aproximaccedilatildeo entre os conteuacutedos veiculados nos bancos escolares e a visatildeo da accedilatildeo profissional utilitarista e pragmaacutetica que eles tecircm Tal fato acaba resultando na desidealizaccedilatildeo ou na ruptura de um ideal como considera Millan et al (1991)

Aleacutem do fato de o conteuacutedo geralmente natildeo atender agraves expectativas do aluno iniciante muitos satildeo os que encontram dificuldades na internalizaccedilatildeo desses conhecimentos Isso ocorre natildeo apenas em decorrecircncia de a formaccedilatildeo anterior trazer lacunas mas tambeacutem devido ao fato de os conteuacutedos serem totalmente novos e principalmente pela necessidade de adaptaccedilatildeo a uma nova metodologia de aprendizagem e pela solicitaccedilatildeo de atividades curriculares que caminham na direccedilatildeo de uma formaccedilatildeo de sujeito autocircnomo

Essas dificuldades satildeo perfeitamente visualizadas pelo corpo de docentes universitaacuterios quando percebem a luta que seus alunos enfrentam com textos acadecircmicos quanto agrave compreensatildeo interpretaccedilatildeo expressatildeo oral produccedilatildeo escrita entre outros aspectos Nesse cenaacuterio os professores discutem como dar conta dessas dificuldades juntamente com todo o conteuacutedo programaacutetico e demais compromissos de formaccedilatildeo E os alunos reclamam que os textos acadecircmicos satildeo muito difiacuteceis e que a linguagem dos professores eacute complicada

Na base desse conflito encontram-se textos dos alunos que apresentam falta de coesatildeo de coerecircncia de sentido de clareza de encadeamento de adequabilidade a uma linguagem escrita e para o outro ideias truncadas lacunas quebras de estrutura falta de linearidade no discurso etc Uma produccedilatildeo escrita de forma tatildeo confusa pode evidenciar tambeacutem entre outros aspectos a falta de compreensatildeo das leituras feitas

Sampaio (2009) analisa a questatildeo da produccedilatildeo escrita de nossos alunos ao discutir a atuaccedilatildeo linguiacutestica de estagiaacuterios do curso de Letras de uma Universidade Federal Para a autora os alunos apresentam dificuldades no ensino da liacutengua escrita natildeo por questotildees

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didaacuteticas mas porque eles proacuteprios natildeo sabem escrever A partir de um referencial bourdieusiano essa falta de domiacutenio da liacutengua eacute considerada pela autora como resultado da hysteresis (NOGUEIRA NOGUEIRA 2004 p 55 apud SAMPAIO 2009 p39) ou seja ao longo de nossas relaccedilotildees vamos adquirindo viacutecios e haacutebitos arraigados que natildeo se alteram mesmo que as condiccedilotildees de uso sejam outras Eacute importante destacar que essas dificuldades satildeo encontradas mesmo em cursos de grande distinccedilatildeo no meio educacional como o de Letras e em universidades puacuteblicas como no caso citado acima

A partir de nosso interesse em analisar o desempenho de alunos iniciantes de gradu-accedilatildeo quanto agrave sua produccedilatildeo escrita em situaccedilotildees especiacuteficas faz-se mister discutirmos questotildees relativas agrave leitura agrave interpretaccedilatildeo e agrave produccedilatildeo de textos com o intuito de pro-blematizar e abrir espaccedilo para reflexatildeo sobre essas dificuldades que parecem ser uma tocircni-ca dos anos iniciais da graduaccedilatildeo senatildeo de todo o percurso acadecircmico de muitos alunos

2 Universo autoral

As discussotildees feitas por Paciacutefico (2002) mostram uma estreita relaccedilatildeo entre leitura interpretaccedilatildeo e produccedilatildeo de textos O entrelaccedilamento desses trecircs fatores eacute o que permite segundo Bakhtin (19921988a 1988b) a constituiccedilatildeo do autor ou da autoria que envolve uma posiccedilatildeo axioloacutegica e que engendra uma relaccedilatildeo de valor materializada no texto pelos objetos discursivos O autor a partir do interdiscurso e do intertexto deve apresentar uma postura que reflete e refrata esses valores

O estreitamento entre os aspectos de leitura interpretaccedilatildeo e produccedilatildeo eacute considerado por Paciacutefico (2002) a partir da relaccedilatildeo existente entre o texto argumentativo e a autoria As caracteriacutesticas desse tipo de texto solicitam que o produtor do texto sustente um ponto de vista a respeito do objeto de discurso Assim o sujeito deve assumir a responsabilidade pelo seu dizer de forma a apresentar argumentos persuasivos com intuito de defender seu ponto de vista

Eacute esse movimento que vai permitir segundo a autora que o produtor aleacutem de assumir a responsabilidade pelo dizer tambeacutem faccedila isso a partir de uma perspectiva histoacuterica dos sentidos controlando os pontos de fuga ou seja mantendo-se fiel agrave discussatildeo Contudo esse niacutevel de argumentaccedilatildeo tambeacutem depende de uma accedilatildeo interpretativa

Para a produccedilatildeo de um texto argumentativo devemos considerar a constituiccedilatildeo da autoria a partir da assunccedilatildeo da responsabilidade pelo dizer o que depende por sua vez de uma accedilatildeo de interpretaccedilatildeo pois o domiacutenio da argumentaccedilatildeo envolve a construccedilatildeo dos sentidos que vatildeo surgindo a partir da interpretaccedilatildeo do autor

Entretanto Paciacutefico (2002) destaca que na accedilatildeo da leitura a grande maioria dos leitores soacute atinge o niacutevel do inteligiacutevel sem uma accedilatildeo interpretativa de fato A etapa final que vem a ser a interpretaccedilatildeo depende de um movimento soacutecio-histoacuterico de construccedilatildeo de sentidos que segundo a Anaacutelise do Discurso estaacute ligada ao sujeito agrave histoacuteria e agrave ideologia Esse movimento eacute necessaacuterio uma vez que o sentido nunca estaacute pronto e eacute dependente da interpretaccedilatildeo do sujeito

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Nesse processo Paciacutefico (2002) destaca outra noccedilatildeo importante que eacute a de movimento do sujeito No niacutevel inteligiacutevel observamos a falta de movimento do sujeito-leitor por conta de uma atitude de leitura parafraacutestica que apenas reproduz transformando o sujeito em uma focircrma-leitor Quanto agrave leitura interpretativa percebemos o movimento de busca e construccedilatildeo de sentidos Tal atitude permite o controle da dispersatildeo e a superaccedilatildeo de equiacutevocos

Essa separaccedilatildeo entre a leitura parafraacutestica e a leitura interpretativa eacute constatada desde a Idade Meacutedia quando a necessidade da eacutepoca de geraccedilatildeo de memoacuteria obrigava muitos a gestos incansavelmente repetitivos de reproduccedilatildeo Assim aqueles que tinham a obrigaccedilatildeo da praacutetica de leitura e coacutepia a serviccedilo de interesses de terceiros acabavam se submetendo a gestos de silenciamento e renuacutencia de autoria e originalidade Pecircucheux (1997) entrelaccedila essa discussatildeo com a perspectiva de divisatildeo social do trabalho de leitura em uma relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo poliacutetica

Para a constituiccedilatildeo do universo autoral aleacutem da interpretaccedilatildeo torna-se necessaacuterio discutirmos tambeacutem a questatildeo de arquivo que segundo Pecircucheux (1997) eacute o campo de documentos pertinentes e disponiacuteveis sobre uma questatildeo e que se constitui em fonte de consulta para vaacuterias accedilotildees Quando nos comunicamos utilizamos informaccedilotildees que estatildeo registradas nesses arquivos Contudo a formaccedilatildeo desses arquivos eacute feita a partir de um espaccedilo de acolhimento das vaacuterias vozes que permeiam nosso meio tornando-as nossas vozes Esse eacute o espaccedilo da interdiscursividade e da intertextualidade

Nessa linha pretendemos neste estudo entender o processo da interdiscursividade a partir de Bakhtin (1988a) para quem tudo o que eacute dito e expresso natildeo pertence somente ao falante narrador autor ou sujeito discursivo Desde que nascemos aprendemos sobre o mundo a partir das relaccedilotildees das ideias e da fala dos outros que atribuem significado aos fatos fenocircmenos relaccedilotildees e objetos do mundo

Outra caracteriacutestica que tambeacutem compotildee as produccedilotildees eacute o diaacutelogo entre os muitos textos ou a intertextualidade Segundo Koch e Travaglia (1991) as relaccedilotildees estabelecidas no interior de um texto remetem a outros textos pois os textos de um mesmo campo de conhecimento ou mesmo de outras aacutereas eacutepocas ou culturas dialogam uns com os outros Quanto a esse aspecto Blikstein (1994 p 45) destaca que [hellip] ldquoo discurso seja qual for nunca eacute totalmente autocircnomo [hellip] o discurso natildeo eacute falado por uma uacutenica voz mas por muitas vozes geradoras de textos que se entrecruzam no tempo e no espaccedilordquo [hellip]

Entretanto deve-se considerar que o texto embora constituiacutedo a partir da interdiscursividade e da intertextualidade portanto sendo dialoacutegico pode deixar entrever as muitas vozes que o compotildeem (polifonia) ou apagaacute-las silenciaacute-las em um texto monofocircnico (BARROS 1994) A partir do movimento ou natildeo das vaacuterias vozes o proacuteprio texto passa a ser entendido como algo aleacutem de um objeto de comunicaccedilatildeo para conforme Barros (1994) transformar-se em objeto de significaccedilatildeo pois se constitui a partir dos sentidos que se cruzam transitam e se enredam Texto eacute um processo de construccedilatildeo reproduccedilatildeo e transformaccedilatildeo desses sentidos

Quando produzimos algo fazemos uso de autores argumentos ideias ou nos valemos de teorias teses pesquisas que habitam nossos arquivos e que se tornam fonte de ajuda

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nesse caminho Fiorin (1994) considera que texto eacute a unidade da manifestaccedilatildeo ou o lugar desse interdiscurso

Essa relaccedilatildeo de acolhimento das vaacuterias vozes tambeacutem ocorre com grande intensidade no meio escolar O conhecimento apropriado pelos alunos acontece a partir da relaccedilatildeo estabelecida com a fala dos professores e os dizeres dos livros O mundo se expressa pelas vaacuterias vozes que nesse espaccedilo circulam e se aprende por meio da interdiscursividade incorporando internalizando inclusive pelas vozes que tambeacutem decidimos silenciar (LEMOS 1994 BRAIT 1994)

O que destacamos aqui eacute o espaccedilo de dialogia que existe em uma accedilatildeo de constituiccedilatildeo de um universo autoral Primeiramente a interpretaccedilatildeo vai depender do conhecimento que temos sobre a questatildeo Conforme expotildee Paciacutefico (2002) a interpretaccedilatildeo tambeacutem depende de um aparato teoacuterico que por sua vez depende do interdiscurso e do acesso a arquivos e da proacutepria interaccedilatildeo verbal com os arquivos que possuiacutemos ou seja com o outro enquanto fonte de nossos dados

A preocupaccedilatildeo com o processo de escrita de nossos alunos universitaacuterios tambeacutem deve caminhar nessa direccedilatildeo ou seja da constituiccedilatildeo de autor de seus textos Os textos acadecircmicos devem ser entendidos como dialoacutegicos pois satildeo o resultado da composiccedilatildeo do confronto e das trocas ocorridas entre muitas vozes acadecircmicas contemporacircneas ou natildeo

Essas constataccedilotildees nos levam a sempre acompanhar nossos alunos nessa constituiccedilatildeo de um universo autoral a partir da formaccedilatildeo de arquivo de um trabalho interpretativo e da consideraccedilatildeo da interdiscursividade e da intertextualidade Natildeo se trata apenas de compreender e apreender conteuacutedos e conceitos especiacuteficos uma vez que mesmo estes requerem que o aluno se aproprie deles tornando-os proacuteprios

A partir dessas preocupaccedilotildees inserem-se os objetivos deste estudo quais sejam de desenvolver atividades com textos que permitam a formaccedilatildeo de arquivos de forma a constituir o sujeito-inteacuterprete sujeito-produtor e sujeito-autor assim como utilizar a pesquisa-accedilatildeo como forma de analisar expor interpretar e interromper ou transpor limites sociais

De forma geral espera-se contribuir para o desenvolvimento do conhecimento sobre a integraccedilatildeo dos alunos iniciantes ao conhecimento veiculado no universo acadecircmico assim como para as praacuteticas educativas inserindo o aluno em um processo dinacircmico de aprendizagem

3 Metodologia

Quanto aos procedimentos escolhidos para a investigaccedilatildeo o presente estudo orientou-se especificamente pela pesquisa-accedilatildeo que segundo Andreacute (2001) eacute uma teacutecnica que envolve uma proposta praacutetica de implementaccedilatildeo ou redimensionamento de algo No caso do presente estudo os resultados apoiaram implementaccedilatildeo de atividades no segundo periacuteodo letivo do mesmo ano

O maior envolvimento com esse eixo metodoloacutegico daacute-se pelo interesse investigativo da pesquisa estar voltado para a proacutepria experiecircncia vivida pelo professor envolvendo

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reflexatildeo e transformaccedilatildeo dentro de um processo sistematizado Segundo Pereira (2002) e Zeichner (2002) Kurt Lewin um dos fundadores da pesquisa-accedilatildeo defendia que o conhecimento deveria ser criado a partir da soluccedilatildeo de problemas em situaccedilotildees concretas de vida

Nessa mesma direccedilatildeo Thiollent (2002) destaca que o principal objetivo da pesquisa-accedilatildeo eacute proporcionar aos pesquisadores e grupos participantes caminhos que permitam respostas mais eficazes aos problemas coletivos e situaccedilotildees vividas Jaacute Kemmis e Wilkinson (2002) consideram a importacircncia da pesquisa-accedilatildeo por conta de sua proposta de ajuda agraves pessoas a investigarem e a mudarem suas realidades sociais e educacionais por meio de mudanccedilas de algumas das praacuteticas que constituem suas realidades vividas

31 Sobre os sujeitos da pesquisa

Os participantes deste estudo satildeo estudantes do 1ordm ano de graduaccedilatildeo de um Centro Universitaacuterio (Fundaccedilatildeo regional) de uma cidade do interior do estado de Satildeo Paulo dos cursos de licenciatura em Fiacutesica Quiacutemica Matemaacutetica Biologia Pedagogia e Educaccedilatildeo Fiacutesica O trabalho1foi desenvolvido em uma disciplina que trata da introduccedilatildeo ao conhecimento do campo da pesquisa em educaccedilatildeo no primeiro semestre do primeiro ano Os dados foram colhidos ao final do primeiro semestre

Eacute importante tambeacutem destacar que costumeiramente ao final do periacuteodo os alunos jaacute concluiacuteram seus trabalhos e provas o que imprime um clima de recesso nas atividades principalmente porque muitos deles satildeo de cidades vizinhas e retornam a elas Isso acabou interferindo na quantidade de alunos envolvidos O nuacutemero de alunos interessados em participar da pesquisa no momento do convite e da veiculaccedilatildeo das informaccedilotildees dos trabalhos foi superior a vinte sendo que destes compareceram nove alunos no momento da coleta de dados

32 Procedimentos metodoloacutegicos

Logo no iniacutecio do semestre foram solicitados aos alunos trabalhos constantes do programa da disciplina jaacute com o objetivo tambeacutem de preparativo para a coleta de dados Trecircs textos em especiacutefico de Alves (1996) Cortella (1998) e Gleiser (2010) foram preparados e trabalhados em sala de aula com a intenccedilatildeo de formaccedilatildeo de arquivo no sentido do conceito de Pecircuchex (1997) permitindo a formaccedilatildeo de conhecimento do assunto e tornando o tema familiar

No final do semestre no momento da coleta de dados foi solicitada uma produccedilatildeo escrita que pudesse ser discutida a partir das informaccedilotildees e conteuacutedos veiculados nos textos

1 O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitecirc de Eacutetica e Pesquisa da Instituiccedilatildeo tendo sido inscrito no CONEP sob o nuacutemero FR 332139

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supracitados Como tema desencadeador que permitisse a interlocuccedilatildeo dessas trecircs leituras foi proposta a seguinte pergunta ldquoComo a ciecircncia pode caminhar para aleacutem dos mitosrdquo

33 Criteacuterios de anaacutelise

As anaacutelises quanto ao Universo Autoral estatildeo inseridas na dimensatildeo da busca da plurivocidade a partir da interdiscursividade e da intertextualidade compreendendo-se esses processos a partir da formaccedilatildeo de arquivo e da compreensatildeo (interpretaccedilatildeo) dos textos lidos e das discussotildees de sala de aula O que orientou esse foco de anaacutelise foi a intenccedilatildeo investigativa de observar se as ideias principais dos textos de apoio e das discussotildees de sala de aula satildeo consideradas na produccedilatildeo escrita dos alunos

Natildeo se teve o propoacutesito de discutir neste estudo estilos de linguagem ou adequaccedilatildeo linguiacutestica Entendemos que os alunos estavam iniciando um curso em que as exigecircncias concernentes agrave linguagem acadecircmica ainda natildeo haviam sido consideradas e aleacutem disso havia o propoacutesito de permitir que o aluno produzisse um texto mais independente de regras riacutegidas como incentivo ao universo autoral

Ao serem analisados os dados os criteacuterios de plurivocidade (intertextualidade e interdiscursividade) foram tabulados da seguinte forma

I ndash Citaccedilatildeo das fontesIIndash Composiccedilatildeo autoral dos textosIII ndash Manutenccedilatildeo do tema propostoPara que a questatildeo da interpretaccedilatildeo pudesse ser observada foi tomado o cuidado

de apresentar a questatildeo desencadeadora e alertar para o uso de fontes de apoio sem explicaccedilotildees conceituais

4 Resultados e discussatildeo dos dados

As anaacutelises que se inserem no bojo desta pesquisa procuram um ponto de equiliacutebrio que como destaca Freitas (1994) natildeo reduza seus dados agraves consideraccedilotildees de um objetivismo abstrato com consideraccedilotildees cientiacuteficas ou generalizaccedilotildees que procuram certezas cristalizadas Tampouco se persegue um subjetivismo ao desencarnar individualismos que perdem seu sentido na relaccedilatildeo com o outro

Haacute que se levar em conta que a linguagem eacute fruto de um contexto e as ideias nela contidas satildeo social e culturalmente marcadas Conforme a mesma autora essas duas perspectivas o subjetivismo e o objetivismo quando tratadas individualmente acabam fragmentando a linguagem por natildeo considerar que ela se origina e se concretiza somente no contexto real de sua enunciaccedilatildeo Todo enunciado eacute organizado e adquire sentido a partir do meio social e das condiccedilotildees postas para sua enunciaccedilatildeo

Assim a preocupaccedilatildeo principal eacute levar em conta o dinamismo e o movimento que envolve uma produccedilatildeo qual seja o contexto o sujeito a histoacuteria e a motivaccedilatildeo A partir dessas consideraccedilotildees os dados apontam a seguinte configuraccedilatildeo

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Quadro 01 ndash Dados gerais dos textos

TEXTOS CITACcedilAtildeO DA FONTE

COMPOSICcedilAtildeO AUTORAL DOS TEXTOSMANUTENCcedilAtildeO DO TEMA PROPOSTOTEXTOS DE

APOIOSALAAULA

ELABORACcedilOtildeES PROacutePRIAS

03 X x X x

04 X x X x

19 X

20 X x X x

22 X x

23 x X x

33 X X x

35

37 x X x

Fonte Elaboraccedilatildeo proacutepria

Inicialmente eacute importante considerar que o texto 19 faz uso exclusivo de coacutepia de trechos de um dos textos de apoio com muito poucas adaptaccedilotildees para o contexto desta anaacutelise O texto sequer apresenta uma linha de argumentaccedilatildeo que possa permitir um encadeamento entre os trechos copiados Trata-se apenas de uma colcha de retalhos cujos mosaicos natildeo se encaixam A questatildeo desencadeadora da atividade ldquocomo a ciecircncia pode caminhar para aleacutem dos mitosrdquo eacute substituiacuteda por outra indagaccedilatildeo ldquose a ciecircncia pode explicar o propoacutesito das coisasrdquo pergunta essa adaptada e constante do proacuteprio texto copiado de Gleiser (2010)

Assim o propoacutesito da atividade natildeo foi considerado e o uacutenico criteacuterio atendido foi o uso de texto de apoio O que se revela nessas condiccedilotildees eacute mais do que a natildeo inserccedilatildeo do autor na atividade mas principalmente o abrir matildeo de ser autor

Para Bakhtin (1992) haacute uma distinccedilatildeo entre autor-pessoa e autor-criador sendo que no primeiro caso se trata do escritor eno segundo da funccedilatildeo esteacutetica que materializa as relaccedilotildees de valor entre a obra e o autor Eacute importante abrir uma ressalva no sentido de se observar que as anaacutelises de Bakthin sempre se referiram ao estudo do texto literaacuterio Contudo em ldquoPara uma filosofia do atordquo (sd) Bakhtin considera que

O momento que o pensamento teoacuterico discursivo (nas ciecircncias naturais e na filosofia) a descriccedilatildeo-exposiccedilatildeo histoacuterica e a intuiccedilatildeo esteacutetica tecircm em comum [hellip] eacute este todas as atividades estabelecem uma cisatildeo entre o conteuacutedo ou sentido de um dado ato-atividade e a realidade histoacuterica do seu serhellip (p 19)

Tal anaacutelise mostra que existem aspectos que permitem aproximaccedilatildeo entre as escritas mesmo que de estilos diferentes As anaacutelises deste trabalho consideram que mesmo nos estu-dos cientiacuteficos e nos trabalhos acadecircmicos pode-se discutir o autor-pessoa e o autor-criador

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A partir dessa compreensatildeo entendemos que eacute possiacutevel encontrar trabalhos que satildeo coacutepias ou paraacutefrases no sentido de agregarem muito pouco como trabalhos em que se evidencia todo um processo de construccedilatildeo criaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo de um dizer e um saber de forma dialoacutegica interdiscursiva e criativa Nesse caso entatildeo a funccedilatildeo esteacutetica discutida pelo autor seraacute interpretada aqui como a singularidade que eacute imanente e que constitui o texto acadecircmico

Quanto ao texto 19 podemos afirmar sim que existiu uma produccedilatildeo que foi feita uma escolha de tema que foi escolhido um texto de apoio que foram escolhidos trechos a serem copiados Contudo natildeo existiu autoria no sentido do estabelecimento da singularidade da obra da mesma forma que o texto natildeo refratou valores que partem de uma posiccedilatildeo axioloacutegica (BAKHTIN 1992)

Para Faraco (2010) a funccedilatildeo esteacutetica ou a singularidade nos textos acadecircmicos sustenta e daacute corpo agrave obra e permite refratar o universo social escolhido Nessa situaccedilatildeo o autor-criador torna-se veiacuteculo das vozes escolhidas recortando e refratando falas alheias e reordenando-as em um ato de apropriaccedilatildeo no qual a mesma realidade torna-se refratante

Eacute certo que o autor-pessoa ao fazer escolhas evidencia uma posiccedilatildeo axioloacutegica Contudo ao natildeo se apropriar dela essa posiccedilatildeo axioloacutegica natildeo se concretiza frente a essas escolhas natildeo permitido transpor valores de uma esfera social para uma esfera pessoal e responsiva

O ato de escrever ou tornar-se autor-criador de um texto deve voltar-se como argumenta Sobral (2010) para a compreensatildeo do ato ser concreto ativo durativo intencional envolvendo o aspecto responsivo de sua accedilatildeo A responsividade para esse autor envolve um compromisso eacutetico do agente

Pode-se dizer entatildeo que o texto 19 natildeo envolveu criaccedilatildeo posiccedilatildeo axioloacutegica responsividade e que as vozes escolhidas natildeo se tornaram refratantes saindo do espaccedilo do universo autoral Assim a anaacutelise desse texto seraacute considerada dessa forma global natildeo havendo sentido o detalhamento de cada um dos aspectos analisados para os outros textos

41 Citaccedilatildeo das fontes

Quanto agrave citaccedilatildeo das fontes de apoio nenhum dos nove textos produzidos indicou as fontes dos textos utilizados Eacute importante abrir um espaccedilo para essa discussatildeo pois a disciplina em questatildeo trata do conhecimento cientiacutefico e da importacircncia de serem citadas fontes consultadas Os alunos satildeo orientados para entender que mesmo utilizando informaccedilotildees ideias e concepccedilotildees de outros autores com palavras proacuteprias ainda assim a autoria das informaccedilotildees ideias e concepccedilotildees satildeo do autor lido e as fontes consultadas devem ser mencionadas O que se percebe eacute que no momento da produccedilatildeo velhos haacutebitos solidificados resistem cruelmente agraves novas orientaccedilotildees Eacute preciso muito mais do que apenas orientaccedilotildees e informaccedilotildees

Tal fato chama algumas consideraccedilotildees Primeiramente a partir da experiecircncia da pesquisadora eacute constatado que eacute proacuteprio de alguns jovens escritores fazerem coacutepia literal das fontes consultadas sem explicitar sua origem em um ato apropriativo totalmente

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irresponsivo como jaacute analisado na seccedilatildeo anterior Contudo todos os outros textos envolvem um ato de criaccedilatildeo em que as vozes alheias se transformam em vozes proacuteprias refratando uma realidade social de forma responsiva

O que se observa nessa situaccedilatildeo eacute outro fenocircmeno tambeacutem comum Entre os escritores iniciantes e natildeo acadecircmicos existe a compreensatildeo de que eu digo as palavras do outro com minhas palavras e elas se tornam minhas Se por um lado existe um equiacutevoco entre o uso da palavra e ser o autor ou responsaacutevel pela informaccedilatildeo tambeacutem se vecirc por outro lado a assunccedilatildeo ao ato criador

No primeiro caso trata-se de uma regra acadecircmica que envolve o respeito e a consideraccedilatildeo (por meio da citaccedilatildeo de autoria) aos resultados alcanccedilados por meio de trabalho loacutegico ou empiacuterico Assim natildeo se trata de a palavra veiculada ser deste ou daquele autor mas de a informaccedilatildeo ser fruto do trabalho autoral Mas eacute importante tambeacutem considerar a segunda situaccedilatildeo quando a natildeo citaccedilatildeo das fontes utilizadas reflete uma apropriaccedilatildeo dos textos e a transformaccedilatildeo deste em discurso proacuteprio Neste caso percebe-se uma reivindicaccedilatildeo do ato de autoria e uma accedilatildeo criativa

Haacute um uacuteltimo aspecto a ser analisado nessa questatildeo que eacute o fato de os alunos terem sido orientados quanto agrave escrita acadecircmica e saberem das regras da citaccedilatildeo O natildeo uso desse expediente pode ser indicativo de ldquovelhos haacutebitosrdquo

Na concepccedilatildeo de Bourdieu (2008 p 21-22) habitus (disposiccedilotildees) eacute um ldquo[hellip] princiacutepio gerador e unificador que reproduz as caracteriacutesticas intriacutensecas e relacionais de uma posiccedilatildeo em um estilo de vida uniacutevoco [hellip]rdquo sendo que essas disposiccedilotildees satildeo adquiridas segundo Bonnewitz (2003) durante o processo de socializaccedilatildeo O indiviacuteduo interioriza mecanismos sociais e educacionais que geram comportamentos e valores aprendidos como oacutebvios e naturais Assim aprendemos e automatizamos comportamentos valores e conhecimentos

O habitus sempre estaacute integrando novos valores ajustando e adaptando estes aos valores antigos Contudo ldquoexiste uma ineacutercia (ou hysteresis) do habitus cuja tendecircncia espontacircnea [hellip] consiste em perpetuar estruturas correspondentes agraves suas condiccedilotildees de produccedilatildeordquo (BORDIEU 2001 p 196) Ou como define Sampaio (2009 p39) ldquotendecircncia do habitus a permanecer no indiviacuteduo ao longo do tempo mesmo que as condiccedilotildees objetivas que o produziram e que estatildeo nele refletidas tenham se alteradordquo A hysteresis pode ser justamente o que se vecirc em comportamentos linguiacutesticos que se mantecircm apesar das orientaccedilotildees educacionais contraacuterias

Essas consideraccedilotildees tambeacutem abrem espaccedilo para a questatildeo do que se produz na escola uma vez que o respeito agrave fonte de informaccedilatildeo eacute um procedimento que cabe ser cultivado em instacircncias anteriores ao grau universitaacuterio Para Freitas (1994) a concepccedilatildeo sociointeracionista considera que via de regra a escola ensina a crianccedila a escrever mas natildeo a dizer e sim a repetir Na escola muitas vezes o aluno eacute abstrato e as atividades satildeo esteacutereis e descontextualizadas Nesse contexto trabalhar com as informaccedilotildees de terceiros de maneira a manter sua autoria faz parte de uma dialogicidade que precisa ser mais estimulada no ensino baacutesico

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42 Composiccedilatildeo autoral dos textos

Levando em conta que a intertextualidade2 natildeo eacute medida apenas pela citaccedilatildeo do autor pudemos constatar que 625 dos textos fizeram uso dessas fontes (desconsiderando o texto 19) e em apenas um caso em situaccedilatildeo especiacutefica observamos o uso de informaccedilatildeo de texto de apoio de maneira equivocada apresentando uma compreensatildeo contraacuteria agrave colocada pelo autor

Quanto agrave questatildeo da interdiscursividade no que se refere ao uso de informaccedilotildees de sala de aula observamos que 75 das produccedilotildees fizeram uso dessas informaccedilotildees Muitas questotildees controversas relativas agrave pesquisa social discutidas durante o semestre foram consideradas nas produccedilotildees destacando uma apropriaccedilatildeo do dizer alheio na proacutepria autoria

Quanto ao uso de opiniatildeo proacutepria apoiada em senso comum pudemos observar que 75 dos textos fizeram uso desse expediente O uso de opiniatildeo proacutepria ou de senso comum nesses casosocorreu a partir das fontes de apoio sem que os autores se desviassem do tema

Analisando os criteacuterios concernentes ao universo autoral de forma integrada constatamos que do total dos textos 375 fizeram uso de todos os aspectos de forma integrada ou seja dos textos de apoiodas informaccedilotildees de sala de aula e de elaboraccedilotildees proacuteprias Aleacutem disso 6255 fizeram uso de informaccedilotildees de sala de aula e elaboraccedilotildees proacuteprias e 50 fizeram uso de textos de apoio e elaboraccedilotildees proacuteprias tambeacutem de forma integrada

O que se destaca eacute que aleacutem de um percentual elevado quanto ao uso de fontes de apoio 75 dos textos fazem uso de elaboraccedilotildees proacuteprias de forma integrada com os textos de apoio e com as discussotildees de sala de aula sem desviar-se do tema proposto Isso nos remete diretamente agrave questatildeo da autoria no sentido do autor-criador de Bakhtin (1992) Todos esses textos discutem sobre a ciecircncia seu funcionamento seus progressos mas cada um a partir de uma particularidade

Lecirc-se sobre a contribuiccedilatildeo da ciecircncia para nossas vidas sobre a importacircncia daqueles que questionam a realidade sobre os mitos e sua ligaccedilatildeo com o surgimento da ciecircncia assim como sua relaccedilatildeo com verdades cristalizadas e as fragilidades da ciecircncia O que se percebe eacute a relaccedilatildeo de valor que cada autor atribui ao tema

Para Bakhtin (1988b) eacute a relaccedilatildeo de valor ou a posiccedilatildeo socioaxioloacutegica que daacute forccedila ao autor para a composiccedilatildeo do todo No processo de se tornar autor-criador transforma-se a realidade vivida e diferentes valores sociais em novos valores Assim torna-se possiacutevel um mesmo tema a partir das mesmas leituras originar discursos tatildeo variados Essa eacute a materialidade verbal das posiccedilotildees socioaxioloacutegicas

2 No criteacuterio de anaacutelise ldquocomposiccedilatildeo autoralrdquo foram levados em conta criteacuterios de plurivocidade destacados em itaacutelico

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Nesse processo percebe-se tanto a realidade refratada a partir das vozes sociais e a linguagem alheia quando todos discutem o mito a ciecircncia quanto tambeacutem a posiccedilatildeo refratante que reordena e interpreta cada qual agrave sua maneira Nesse caminho percebe-se uma refraccedilatildeo ou seja a visatildeo dos autores a partir dos valores que carregam

43 Manutenccedilatildeo do tema proposto

Quanto agrave manutenccedilatildeo do tema proposto constatamos que 75 dos textos natildeo apresentam desvios do propoacutesito do tema Esse fato eacute indicativo de que a proposta foi entendida a pergunta desencadeadora levada em conta e foram feitas associaccedilotildees entre a proposta a pergunta e o arquivo Nesse sentido todas as leituras realizadas caminharam na direccedilatildeo da interpretaccedilatildeo

Quanto a essa questatildeo conforme jaacute discutido Pecirccheux (1997) considera que para muitos profissionais da leitura como catalogadores arquivistas escrivatildees copistas contiacutenuos da leitura enfim pessoas que trabalham com a organizaccedilatildeo de textos ou historiadores eacute negada a praacutetica da proacutepria leitura ou da leitura espontacircnea impondo um apagamento do sujeito leitor Assim eacute dado a uns o direito de produzir leituras originais e a outros a obrigaccedilatildeo da reproduccedilatildeo anocircnima Esse divoacutercio cultural entre o literaacuterio e o cientiacutefico gera uma divisatildeo social do trabalho da leitura

Contudo esse ato poliacutetico inscrito na relaccedilatildeo que se deteacutem com a accedilatildeo da leitura natildeo eacute uma questatildeo apenas dos profissionais e literatos mas tambeacutem da escola Esta a partir de tarefas esteacutereis e sem sentido que satildeo desencadeadas magicamente sem motivaccedilatildeo concreta descontextualizadas e sem um propoacutesito que oriente sua leitura ou produccedilatildeo tambeacutem caminha para a inserccedilatildeo do aluno apenas na esfera da leitura literal Aleacutem disso a preocupaccedilatildeo primeira da escola como coloca Pecirccheux (1997) eacute a manutenccedilatildeo de uma assepsia na construccedilatildeo da linguagem procurando sempre ambiguidades buscando sempre o sentido legiacutetimo da palavra das expressotildees e dos enunciados negando ao sujeito o espaccedilo de sua proacutepria construccedilatildeo tolhendo a criaccedilatildeo

O autor natildeo nega a importacircncia da linguagem culta ou convencional poreacutem ela tem que ser alcanccedilada a partir do texto ou seja o texto deve vir antes das regras e estas serviratildeo agravequele A escola ao contraacuterio ensina a regra para que o texto jaacute surja perfeito como se existisse nas palavras de Pecirccheux (1997) uma semacircntica universal

A questatildeo da leitura interpretativa eacute crucial para a formaccedilatildeo da identidade do arquivo Eacute fundamental considerar que os trecircs textos de apoio foram discutidos em sala de aula pela professora e pesquisadora foram feitos trabalhos individuais a partir de cada um dos textos e antes da produccedilatildeo assim como no momento da coleta dos dados o grupo como um todo discutiu o conteuacutedo do arquivo Cada um desses momentos trouxe informaccedilotildees e apoio ao autor No entanto o arquivo entendido como um conjunto de documentos sobre uma determinada questatildeo apresenta uma identidade peculiar para cada um dos autores O material pode ser o mesmo mas seu proacuteprio registro jaacute eacute marcado por preferecircncias pessoais nuanccedilas que apontam

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significados proacuteprios cores indicativas de tendecircncias jaacute na escolha e interpretaccedilatildeo das vozes ou de seu entrecruzamento

Feitas as anaacutelises quanto agrave citaccedilatildeo das fontes a composiccedilatildeo autoral e a manutenccedilatildeo do tema vale destacarmos que apenas um texto natildeo fez uso de qualquer base de informaccedilatildeo dos textos da mesma forma que natildeo teve sucesso quanto agrave manutenccedilatildeo do tema proposto Aleacutem desse texto outro tambeacutem fez uso de elaboraccedilotildees proacuteprias mas apresentando desvios do propoacutesito do texto

Nessas situaccedilotildees as opiniotildees baseadas no senso comum foram usadas apenas como recurso de retoacuterica superficialmente e sem uma ligaccedilatildeo direta com a questatildeo proposta denotando uma natildeo apropriaccedilatildeo dos textos de apoio ou das discussotildees de sala de aula e provavelmente uma leitura literal

5 Consideraccedilotildees finais

O interesse primeiro deste estudo foi o de observar a constituiccedilatildeo do universo autoral de alunos ingressantes no ensino superior a partir da leitura interpretativa e da formaccedilatildeo de arquivos

Na maioria dos casos os alunos conseguiram se manter no tema utilizando uma linguagem proacutepria e utilizando as fontes de apoio A manutenccedilatildeo do tema foi considerada indicaccedilatildeo de que tanto a tarefa quanto o conteuacutedo dos vaacuterios arquivos foram tornados proacuteprios o que envolve um ato de interpretaccedilatildeo Isso implica o movimento do sujeito na direccedilatildeo da constituiccedilatildeo dos sentidos do dizer

A formaccedilatildeo de um campo de conhecimento alimentado pelas discussotildees de sala de aula (interdiscursividade) assim como pelos textos estudados durante o semestre (intertextualidade) permitiram a formaccedilatildeo de arquivo responsaacutevel pelo ter o que dizer e pela constituiccedilatildeo da dialogia estabelecida no espaccedilo do texto

O que se pode observar eacute que a maioria dos textos produzidos tem autoria e pertence ao universo autoral de seus produtores uma vez que transformaram o dizer alheio em dizer proacuteprio assumindo um posicionamento axioloacutegico e com responsividade Tal resultado adquire relevacircncia pelo fato de esses alunos serem iniciantes frequentes do 1ordm semestre de um curso universitaacuterio e participarem de uma pesquisa que solicitava a produccedilatildeo de texto sobre um tema que eacute novo e com conceitos complexos

Frequentemente em nossa accedilatildeo educativa sentimos inseguranccedila quanto ao real aprendizado de nossos alunos ou agrave profundidade alcanccedilada Constatamos nessa investigaccedilatildeo a apropriaccedilatildeo de conceitos e conteuacutedos como resultado de um trabalho de formaccedilatildeo de arquivo

Assim pode-se dizer que o conhecimento eacute algo que se constroacutei ao longo do tempo e em meio a muitos discursos e textos Eacute a possibilidade de entrar em contato com um conhecimento de maneira variada com uma diversidade de textos que permitem sua compreensatildeo

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Dois aspectos servem de alerta a partir dessas consideraccedilotildees Primeiro a condiccedilatildeo de ensino que se institui no 3ordm grau Natildeo se trata apenas da condiccedilatildeo de chegada de nossos alunos mas tambeacutem da urgecircncia que se estabelece com vistas agrave melhoria de vida com a obtenccedilatildeo de um diploma Nesse sentido os fins prejudicam os meios A experiecircncia de sala de aula nos mostra que os alunos jaacute entram querendo aprender somente aquilo de que iratildeo fazer uso como se o campo profissional fosse assim tatildeo reduzido como se o desenvolvimento de um conhecimento capacidade ou habilidade natildeo solicitasse outros recursos natildeo tatildeo diretamente implicados

Cabe destacar ainda que o mercado tem se ampliado aprofundado e diversificado dentro da mesma aacuterea solicitando cada vez mais formaccedilatildeo do profissional em um curto espaccedilo de tempo Diante dessas exigecircncias a formaccedilatildeo e os conteuacutedos passam a ser acelerados e as possiblidades de se trabalhar a formaccedilatildeo de arquivo com isso reduzem-se

O segundo aspecto refere-se agrave qualidade da escrita dos autores Natildeo foram objeto de anaacutelise deste estudo questotildees gramaticais de coerecircncia e de coesatildeo Destacamos nessa direccedilatildeo que todos os trabalhos sem exceccedilatildeo apresentaram vaacuterias falhas que via de regra exigiram um esforccedilo analiacutetico no sentido de relevaacute-las para que o campo dialoacutegico entre produtor e leitor pudesse se estabelecer e se observassem os motivos dos dizeres Contudo haacute que se ressaltar tambeacutem que os desvios observados natildeo apagaram ou invalidaram a constituiccedilatildeo do universo autoral

Tal fato deve ser considerado com cautela pois via de regra nossos alunos escrevem com inconsistecircncias como jaacute colocado no iniacutecio deste trabalho Satildeo produccedilotildees marcadas por falta de loacutegica de fluecircncia de linearidade no discurso com falhas e truncamentos Essas caracteriacutesticas se mantecircm mesmo em trabalhos escritos que permitem aos alunos fazer ediccedilatildeo

Essas caracteriacutesticas ou inconsistecircncias acabam turvando nosso olhar e natildeo permitem que enxerguemos as qualidades do texto que existem apesar dos erros Aleacutem disso as inconsistecircncias encontradas tambeacutem geram equiacutevocos no sentido de acreditarmos que o conteuacutedo os conceitos e as ideias natildeo foram apreendidos o que nem sempre eacute possiacutevel afirmar

Em tais circunstacircncias cabe ressaltar o grande meacuterito da pesquisa-accedilatildeo cujos resultados beneficiam de imediato e de forma direta ao pesquisador e ao grupo pesquisado Nossa accedilatildeo pedagoacutegica nem sempre privilegia um olhar mais direcionado ou o estabelecimento de controles que permitam observaccedilatildeo de minuacutecias que se evidenciam geralmente em situaccedilotildees empiacutericas Condiccedilotildees natildeo tatildeo favoraacuteveis do dia a dia acabam orientando nossos discursos para o senso comum e geram ansiedade diante da falta de respostas para as nossas duacutevidas Aleacutem disso a pesquisa-accedilatildeo entre outros aspectos permite que fragilidades revelem suas possibilidades

Eacute justamente na direccedilatildeo da constituiccedilatildeo de um espaccedilo interativo da pesquisa-accedilatildeo que podemos criar paralelos com a linguagem que segundo Bakhtin (1970 apud BARROS 1994) eacute dialoacutegica o que nos leva a considerar natildeo um sujeito que produz e um sujeito que interpreta mas um espaccedilo de interlocuccedilatildeo verbal

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Recebido em 27102017

Aceito em 15112017

Terezinha Maia Martincowski

Doutora em Educaccedilatildeo pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Psicoacuteloga Escolar e Educacional Professora universitaacuteria na aacuterea de Educaccedilatildeo cowski91gmailcom

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eISSN 22376844polifonia

ldquoMito biograacuteficordquo e ldquoficccedilatildeo familiarrdquo em Borges e Calvino

ldquoBiographical Mythrdquo and ldquoFamily Fictionrdquo in Borges and Calvino

ldquoMito biograacuteficordquo y ldquoficcioacuten familiarrdquo en Borges y Calvino

Maria Elisa Rodrigues MoreiraUniversidade Federal de Mato Grosso

ResumoNeste artigo abordo alguns textos de caraacuteter autobiograacutefico dos escritores Jorge Luis Borges e Italo Calvino com o objetivo de refletir sobre as formas pelas quais nesses textos memoacuteria e ficccedilatildeo satildeo articuladas de forma a constituir ou alimentar uma espeacutecie de ldquoficccedilatildeo familiarrdquo que contribui para a instituiccedilatildeo de um ldquomito biograacuteficordquo que se pode associar aos dois escritores para recuperarmos expressotildees utilizadas por Beatriz Sarlo e Ricardo Piglia em seus estudos dedicados agrave obra de Jorge Luis Borges Essa ficccedilatildeo familiar propotildee uma genealogia que aproxima tanto Borges quanto Calvino do universo da palavra escrita e do mundo dos livros reforccedilando a literatura como o ldquodestinordquo previsiacutevel (se natildeo o uacutenico possiacutevel) de suas vidasPalavras-chave Ficccedilatildeo familiar mito biograacutefico literatura

AbstractIn this article I will discuss a few texts of autobiographical character written by Jorge Luis Borges and Italo Calvino with the purpose to reflect on the ways in which in these texts memory and fiction are articulated to constitute or nurture a kind of ldquofamily fictionrdquo that contributes to the establishment of a ldquobiographical mythrdquo which can be associated to the aforementioned writers in order to recover expressions used by Beatriz Sarlo and Ricardo Piglia in their studies dedicated to the work of Jorge Luis Borges This ldquofamily fictionrdquo proposes a genealogy that approximates Borges and Calvino to the universe of words and the world of books reinforcing literature as the predictable ldquodestinyrdquo (if not the only possible one) of their livesKeywords Family fiction Biographical myth Literature

ResumenEn este artiacuteculo desarrollo un abordaje de algunos textos de caraacutecter autobiograacutefico de los escritores Jorge Luis Borges e Italo Calvino con el propoacutesito de reflexionar acerca de las formas por las cuales en esos textos memoria y ficcioacuten se articulan con tal de constituir o alimentar una especie de ldquoficcioacuten familiarrdquo que aporta a la institucioacuten de un ldquomito biograacuteficordquo que se puede asociar a los dos escritores seguacuten expresiones usadas por Beatriz Sarlo y Ricardo Piglia en sus estudios dedicados a la obra de Jorge Luis Borges Esa ficcioacuten familiar propone una genealogiacutea que acerca tanto Borges como Calvino al universo de la palabra escrita y al mundo de los libros poniendo de relieve la literatura como el ldquodestinordquo previsible (quizaacutes el uacutenico posible) de sus vidasPalabras clave Ficcioacuten familiar mito biograacutefico literatura

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As questotildees relativas agrave memoacuteria perpassam como jaacute o apontaram diversos estudos as obras ficcionais de Jorge Luis Borges e de Italo Calvino contos como ldquoFunes o memoriosordquo(2007c) de autoria do argentino e ldquoA memoacuteria do mundordquo(2001) do italiano apenas para citar dois exemplos satildeo referecircncias claacutessicas dessa perspectiva de leitura de suas obras No entanto ainda que menos estudados pela criacutetica os textos de caraacuteter autobiograacutefico de ambos os escritores satildeo tambeacutem um rico material para se refletir sobre a relaccedilatildeo entre memoacuteria e ficccedilatildeo e indicam o uso de estrateacutegias narrativas similares entre os dois escritores de um lado nesses textos se pode perceber a construccedilatildeo de uma espeacutecie de ldquoficccedilatildeo familiarrdquo conforme expressatildeo utilizada por Ricardo Piglia em ldquoIdeologiacutea y ficcioacuten en Borgesrdquo (1979) por meio da qual tanto o escritor argentino quanto o italiano se vinculam a uma genealogia que os aproxima de alguma maneira do universo dos livros de outro essa ficccedilatildeo familiar serve para fomentar um ldquomito biograacuteficordquo para retomarmos aqui expressatildeo de Beatriz Sarlo cunhada em Jorge Luis Borges um escritor na periferia (2008) que cerca as produccedilotildees borgiana e calviniana mito este que faz da literatura o uacutenico ldquodestinordquo possiacutevel de vidas que se desenvolvem como as deles

Vale destacar que aqui entendemos o biograacutefico e o ficcional atinentes seja agrave expressatildeo ldquoficccedilatildeo familiarrdquo seja agrave expressatildeo ldquomito biograacuteficordquo em chave aproximativa agrave proposta por Juan Joseacute Saer em seu texto ldquoO conceito de ficccedilatildeordquo escrito em 1989 no qual o escritor assim se manifesta

A primeira exigecircncia da biografia a veracidade atributo pretensamente cientiacutefico eacute nada mais do que o constructo retoacuterico de um gecircnero literaacuterio natildeo menos convencional do que as trecircs unidades da trageacutedia claacutessica ou o desmascaramento do assassino nas uacuteltimas paacuteginas do romance policial A negaccedilatildeo escrupulosa do elemento fictiacutecio natildeo eacute um criteacuterio de verdade visto que o proacuteprio conceito de verdade eacute incerto e sua definiccedilatildeo integra elementos diacutespares e ateacute contraditoacuterios [hellip] Portanto podemos afirmar que a verdade natildeo eacute necessariamente o contraacuterio da ficccedilatildeo e que quando optamos pela praacutetica da ficccedilatildeo natildeo o fazemos com o propoacutesito turvo de tergiversar a verdade [hellip] Ao ir em direccedilatildeo ao natildeo verificaacutevel a ficccedilatildeo multiplica ao infinito as possibilidades de tratamento Natildeo nega uma suposta realidade objetiva ao contraacuterio submerge-se em sua turbulecircncia desdenhando a atitude ingecircnua que consiste em pretender saber de antematildeo como essa realidade se conforma (SAER 2012 p 1-3)

Eacute portanto como uma espeacutecie de potencializaccedilatildeo das possibilidades biograacuteficas que se aponta aqui o recurso dos escritores agrave ficccedilatildeo como elemento complexificador de suas vidas e do papel que nelas ocupa a narrativa literaacuteria Se a ficccedilatildeo eacute um ldquotratamento especiacutefico do mundordquo (SAER 2012 p 3) parece-me ser o mais adequado para se pensar as biografias de Borges e Calvino autores cuja relaccedilatildeo com o mundo se dava no mais das vezes entrecortada pela ficccedilatildeo Eacute a refletir sobre essa questatildeo que me dedicarei ao longo deste texto tomando como obras centrais o Ensaio autobiograacutefico de Borges (2009) e O caminho de San Giovanni de Calvino (2000a)

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O viacutenculo com a palavra escrita e a preocupaccedilatildeo com o conhecimento comeccedilam muito cedo na vida dos dois escritores e marcam consideravelmente sua praacutetica criativa e criacutetica levando-os a uma incessante busca pela construccedilatildeo de um saber que reconhecem impossiacutevel ser totalizante Essa busca resulta na extrema mobilidade e na multiplicidade do universo poeacutetico dos autores que transitam entre temaacuteticas e estilos diversificados mesclados em produccedilotildees narrativas poeacuteticas e ensaiacutesticas que se mostram confluentes e coerentes ao desbordar as fronteiras dos gecircneros discursivos e ao fazer transitar duacutevidas hipoacuteteses e saberes muacuteltiplos Criacutetica e ficccedilatildeo andam juntas e se interpolam na tessitura de narrativas que satildeo permanente e simultaneamente uma forma de reflexatildeo

Ricardo Piglia em ldquoIdeologiacutea y ficcioacuten en Borgesrdquo argumenta que a ficccedilatildeo de Borges eacute acompanhada por uma espeacutecie de narrativa genealoacutegica que diz da origem e da proacutepria possibilidade de formaccedilatildeo da escritura borgiana fundada na trajetoacuteria de reconhecimento pelo autor de que pertence a uma dupla linhagem ndash familiar e intelectual a linhagem da histoacuteria e a linhagem da literatura recontadas por Borges por meio de uma ldquoficccedilatildeo familiarrdquo de um lado a famiacutelia da matildee que remonta agrave histoacuteria argentina aos seus guerreiros e fundadores de outro a famiacutelia paterna de origem inglesa remetendo agrave tradiccedilatildeo intelectual e literaacuteria Conforme Piglia

Eacute esta oposiccedilatildeo ideoloacutegica a que eacute obrigada em Borges a tomar a forma de uma tradiccedilatildeo familiar A ficccedilatildeo dessa dupla linhagem lhe permite integrar todas as diferenccedilas fazendo ressaltar simultaneamente o caraacuteter antagocircnico das contradiccedilotildees mas tambeacutem sua harmonia O uacutenico ponto de encontro desse sistema de oposiccedilotildees eacute certamente o mesmo Borges ou melhor os textos de Borges (PIGLIA 1979 p 4 Traduccedilatildeo do autor)

Eacute essa genealogia literaacuteria que conduz conforme Beatriz Sarlo (2008) o ldquomito biograacuteficordquo em torno de Jorge Luis Borges o qual se funda na apropriaccedilatildeo que o escritor argentino faz da literatura Nessa perspectiva a ldquoficccedilatildeo familiarrdquo marca o ldquoensaio autobiograacuteficordquo (BORGES 2009) ditado em inglecircs por Borges a seu tradutor Norman Thomas di Giovanni no iniacutecio de 1970 Nele ambas as linhagens satildeo retomadas e o escritor apresenta-se como herdeiro tanto de uma memoacuteria histoacuterica quanto de uma memoacuteria literaacuteria Interessa-me particularmente essa genealogia literaacuteria a qual precisa ser sempre considerada tendo-se em vista sua constituiccedilatildeo mediante o signo do duplo ou seja uma genealogia que eacute tanto familiar privada (a memoacuteria)quanto social puacuteblica (a biblioteca) Como ressalta Piglia em lugar de excluir as inuacutemeras contradiccedilotildees que marcam essa duplicidade Borges as manteacutem fazendo delas elementos constitutivos de sua escritura ldquoA memoacuteria e a biblioteca representam as propriedades a partir das quais se escreve poreacutem esses dois espaccedilos de acumulaccedilatildeo satildeo ao mesmo tempo o lugar mesmo da ficccedilatildeo em Borgesrdquo (PIGLIA 1979 p 6 traduccedilatildeo minha)

Sob esse prisma procuro aproximar a essa dupla chave de leitura da obra de Borges proposta por Ricardo Piglia pautada pelas linhagens familiarhistoacuterica e literaacuteriaintelectual a perspectiva de uma obra fraturada conforme proposta por Beatriz Sarlo

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(2008) cuja rachadura seria originaacuteria de uma tensatildeo insistente entre o nacional (familiar) e o cosmopolita (literaacuterio) Sarlo indica que eacute nesse lugar tensionado nesse espaccedilo entre duas margens que Borges constitui seu pensamento e sua literatura e que qualquer leitura que se faccedila da produccedilatildeo borgiana a partir de apenas um desses polos ainda que perfeitamente possiacutevel resultaraacute numa perda significativa

Conquanto a reflexatildeo sobre o ensaio como gecircnero particular de escrita e de organizaccedilatildeo do pensamento fuja ao escopo deste texto parece-me relevante destacar a escolha de Borges pelo tiacutetulo de seu livro autobiograacutefico no original inglecircs An Autobiographical Essay (Ensaio autobiograacutefico na traduccedilatildeo brasileira) A pesquisadora uruguaia Lisa Block de Behar que jaacute dedicou livros e artigos agrave obra do escritor argentino afirma que com esse tiacutetulo Borges faz circular em torno do texto os vaacuterios sentidos que se condensam no termo ensaio

Natildeo recordo outros autores que tenham apresentado sua autobiografia como um ldquoensaiordquo tampouco recordo que Borges tenha designado como autobiograacuteficos outros de seus textos aleacutem da alusatildeo a alguma lembranccedila de suas leituras ou agrave intensidade poeacutetica de algum instante de intimidade privada (BEHAR 1999 Traduccedilatildeo do autor)

Ela lamenta ainda que a traduccedilatildeo da obra para a liacutengua espanhola natildeo mantenha o tiacutetulo original

Com efeito o tiacutetulo em espanhol apenas o apresenta como uma sucinta Autobiografia sem explicar qualquer razatildeo para a omissatildeo de uma parte substancial da denominaccedilatildeo em inglecircs suspendendo o enfrentamento que por justapor dois nomes geneacutericos como um soacute impugna a ambos (BEHAR 1999 Traduccedilatildeo do autor)

Esse ldquoensaio de biografiardquo assim que jaacute nasce marcado pelo signo do hiacutebrido destaca a importacircncia dos livros na infacircncia de Borges e no ambiente familiar em que ele cresceu O escritor afirma que ldquouma tradiccedilatildeo literaacuteria percorria a famiacutelia de [s]eu pairdquo (BORGES 2009 p 18) destacando o fato de que Fanny Haslam sua avoacute paterna inglesa ndash responsaacutevel pelo conhecimento de inglecircs que Borges adquiriu desde cedo ndash ldquoera uma grande leitorardquo (p 12) e dizendo a respeito de seu pai ter sido ldquoele quem me revelou o poder da poesia o fato de as palavras serem natildeo apenas um meio de comunicaccedilatildeo mas tambeacutem siacutembolos maacutegicos e muacutesicardquo (p 13) Seu pai Jorge Guillermo Borges escreveu um romance sua matildee Leonor Acevedo com quem Borges viveu por quase toda a vida apoacutes a morte do marido dedicou-se agrave traduccedilatildeo de obras literaacuterias

Nesse mesmo texto Borges se apresenta ainda como ldquoum homem de livrosrdquo (p 16) e destaca a importacircncia da biblioteca do pai em sua vida

Se tivesse de indicar o evento principal de minha vida diria que eacute a biblioteca de meu pai Na realidade creio nunca ter saiacutedo dessa biblioteca Eacute como se ainda a estivesse vendo Ocupava todo um aposento com estantes envidraccediladas e devia conter milhares de volumes Como era

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muito miacuteope esqueci-me da maioria dos rostos dessa eacutepoca (quando penso em meu avocirc Acevedo talvez esteja pensando em sua fotografia) mas ainda lembro com nitidez as gravuras em accedilo da Chambersrsquos Encyclopaedia e da Britannica (BORGES 2009 p 16)

O escritor continua enumerando as diversas obras que leu a partir dessa biblioteca Embora longa a citaccedilatildeo justifica-se tanto por traccedilar a importacircncia emblemaacutetica da biblioteca na vida do escritor desde a infacircncia como por apresentar-se como uma lista das leituras que o marcaram nesse periacuteodo como uma espeacutecie de inventaacuterio de sua heteroacuteclita histoacuteria de aproximaccedilatildeo com a literatura como uma sinalizaccedilatildeo das questotildees que marcaram sua obra posterior ou seja como um elemento conformador do mito biograacutefico que o leva a se tornar um ldquohomem de livrosrdquo

O primeiro romance que li inteiro foi Huckleberry Finn Depois vieram Roughing It e Flush Days in California Tambeacutem li os livros do capitatildeo Marryat Os primeiros homens na Lua de Wells Poe uma ediccedilatildeo da obra de Longfellow em um volume A ilha do tesouro Dickens Dom Quixote Tom Brown na escola os contos de fadas de Grimm Lewis Carroll As aventuras de mr Verdant Green (livro agora esquecido) As mil e uma noites de Burton A obra de Burton ndash infestada de coisas entatildeo consideradas obscenidades ndash foi-me proibida e tive de lecirc-la agraves escondidas no terraccedilo Mas nessa altura estava tatildeo emocionado pela magia do livro que natildeo percebi em absoluto as partes censuraacuteveis e li os contos sem me dar conta de nenhum outro significado Todos os livros que acabo de mencionar eu os li em inglecircs Quando mais tarde li Dom Quixote na versatildeo original pareceu-me uma traduccedilatildeo ruim Ainda lembro aqueles volumes vermelhos com letras impressas em ouro da ediccedilatildeo Garnier Em algum momento a biblioteca de meu pai fragmentou-se e quando li o Quixote em outra ediccedilatildeo tive a sensaccedilatildeo de que natildeo era o verdadeiro Quixote Mais tarde fiz com que um amigo me conseguisse a ediccedilatildeo Garnier com as mesmas gravuras em accedilo as mesmas notas de rodapeacute e tambeacutem as mesmas erratas Para mim todas essas coisas fazem parte do livro considero esse o verdadeiro Quixote (BORGES 2009 p 16-17)

Podemos traccedilar nessa lista de memoacuterias de leitura percursos que as relacionam agraves obras borgianas de modo que eacute como se aiacute na biblioteca paterna estivesse indicado o futuro escritor de sucesso internacional que Borges jaacute era quando escreveu essas paacuteginas autobiograacuteficas Nesse rol encontram-se os verbetes enciclopeacutedicos retrabalhados em Manual de Zoologiacutea Fantaacutestica (BORGES e GUERRERO 2001) e O livro dos seres imaginaacuterios (BORGES e GUERRERO 2007) Richard Burton e as questotildees pertinentes agrave traduccedilatildeo sobre as quais o autor reflete em ldquoProblemas de la traduccioacuten (el oficio de traducir)rdquo (BORGES 1999b) ldquoLas dos maneras de traducirrdquo (BORGES 1926) e ldquoAs versotildees homeacutericasrdquo (BORGES 2008) o ldquoverdadeirordquo Quixote de ldquoPierre Menard autor do Quixoterdquo (BORGES 2007b) A biblioteca paterna parece funcionar assim como uma forccedila centriacutefuga da qual decorre a maioria dos temas que iratildeo compor seu repertoacuterio de produccedilatildeo seja ele narrativo poeacutetico ou ensaiacutestico

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Em espanhol li muitos dos livros de Eduardo Gutieacuterrez sobre bandidos e foragidos argentinos ndash sobretudo Juan Moreira ndash bem como seu Siluetas militares que conteacutem um vigoroso relato da morte do coronel Borges Minha matildee proibiu-me a leitura do Martiacuten Fierro pois o considerava um livro indicado apenas para rufiotildees e colegiais e que aleacutem disso nada tinha a ver com os verdadeiros gauchos Esse tambeacutem eu li agraves escondidas A opiniatildeo de minha matildee baseava-se no fato de que Hernaacutendez apoiara Rosas e portanto era inimigo de nossos antepassados unitaacuterios Li ainda o Facundo de Sarmiento e vaacuterios livros sobre mitologia grega e depois escandinava A poesia chegou-me atraveacutes do inglecircs Shelley Keats FitzGerald e Swinburne esses grandes favoritos de meu pai que ele podia citar extensamente e muitas vezes o fazia (BORGES 2009 p 17)

Genealogia literaacuteria traccedilada a posteriori num movimento como o postulado pelo escritor em ldquoKafka e seus precursoresrdquo (BORGES 2007a) a lista borgiana ndash que poderia estender-se ao infinito ndash embaralha as influecircncias e deixa antever o gosto pelas burlas demarcando ldquoum entrelugar linguiacutestico e literaacuteriordquo (OLMOS 2008 p 13) e indicando uma biblioteca a ser resgatada ndash mesmo que essa biblioteca paterna talvez nunca tenha existido tal qual narrada

Ainda rememorando a biblioteca familiar o escritor afirma ldquoSempre cheguei agraves coisas depois de encontraacute-las nos livrosrdquo (BORGES 2009 p 20) Esse comentaacuterio como destaca Ana Ceciacutelia Olmos diz de um aspecto fundamental da poeacutetica de Borges a leitura como ldquoinstacircncia fundadora de sua escriturardquo como uma experiecircncia de vida tatildeo importante quanto qualquer outra Ela indica a rasura constante praticada pelo escritor entre o que adveacutem de uma imaginaccedilatildeo literaacuteria e o que decorre de uma experiecircncia do mundo sensiacutevel situaccedilotildees por ele aproximadas e vivenciadas sob a mesma oacutetica ldquoUm escritor que assumiu o livro como elemento vital deu agrave leitura o status de extensatildeo da experiecircncia e transformou a biblioteca no seu habitatrdquo (OLMOS 2008 p 8) Como jaacute havia afirmado Maurice Blanchot Borges era um ldquohomem essencialmente literaacuteriordquo com o que se quer dizer que estava ldquosempre pronto para compreender segundo o modo que a literatura autorizardquo (BLANCHOT 1999 p 74 traduccedilatildeo minha)

Nascido em Buenos Aires em 1899 Borges mudou-se com a famiacutelia para a Europa em 1914 laacute vivendo por nove anos a viagem decorrente da busca por tratamento para a perda de visatildeo de seu pai prolongou-se devido agrave eclosatildeo da Primeira Guerra Mundial Ao longo desse periacuteodo ele concluiu em Genebra os estudos de niacutevel meacutedio e aproximou-se do Ultraiacutesmo movimento de vanguarda que conheceu na Espanha e que influenciou suas primeiras obras poeacuteticas Afirmou tambeacutem sua proximidade com a palavra escrita tornando-se um leitor fervoroso tanto de literatura quanto de filosofia e publicando seus primeiros textos em perioacutedicos europeus expandiu assim os limites de sua biblioteca familiar convertida entatildeo numa ldquobiblioteca peregrinardquo

A expressatildeo ldquobiblioteca peregrinardquo foi cunhada por Ana Ceciacutelia Olmos que ao traccedilar um ldquoretrato do artistardquo em seu Por que ler Borges (2008) elabora um panorama biograacutefico do autor que tem na presenccedila da biblioteca em sua vida o principal referencial Esse

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ldquoimperfeito bibliotecaacuteriordquo ndash alusatildeo direta ao texto ldquoA Biblioteca de Babelrdquo ndash eacute apresentado por meio de quatro bibliotecas a ldquobiblioteca familiarrdquo correspondente ao tempo da infacircncia e da formaccedilatildeo de Jorge Luis Borges influenciados fortemente pela biblioteca paterna a ldquobiblioteca peregrinardquo referente ao periacuteodo em que Borges viveu na Europa com sua famiacutelia e no qual ampliou seus referenciais literaacuterios a ldquobiblioteca crepuscularrdquo que diz do momento de seu retorno a Buenos Aires e de sua produccedilatildeo anterior ao amplo reconhecimento de puacuteblico e criacutetica e a ldquobiblioteca da consagraccedilatildeordquo correspondente agrave eacutepoca de suas produccedilotildees de maior sucesso aos precircmios literaacuterios e ao prestiacutegio internacional

No periacuteodo europeu a biblioteca de seu pai ampliava-se incorporando autores textos e idiomas distintos ndash o latim de Virgiacutelio o francecircs de Baudelaire Paul Verlaine Victor Hugo e Eacutemile Zola o alematildeo de Heine Nietzsche Schopenhauer ndash e novos escritores de idiomas jaacute conhecidos como o inglecircs e o espanhol ndash Thomas de Quincey Chesterton Quevedo Goacutengora Miguel de Unamuno Essa biblioteca peregrina marcava assim uma formaccedilatildeo literaacuteria cosmopolita e ao mesmo tempo a inserccedilatildeo ldquoperifeacutericardquo do autor que o levava a transitar pelas diversas tradiccedilotildees literaacuterias assumindo-as e subvertendo-as com a marca de seu lugar nacional

Ambas as bibliotecas familiar e peregrina apresentam-se assim como emblemas de uma escritura que se constroacutei a partir do diaacutelogo nem sempre paciacutefico entre o centro e a margem em decorrecircncia de um olhar que soacute eacute possiacutevel desse lugar ex-cecircntrico

[] sua obra eacute perturbada pela tensatildeo entre a mistura e a nostalgia por uma literatura europeia que um latino-americano natildeo pode nunca viver integralmente como natureza original Apesar da perfeita felicidade do estilo a obra de Borges traz uma rachadura em seu centro desloca-se na crista de vaacuterias culturas que se tocam (ou se repelem) em suas periferias Borges desestabiliza as grandes tradiccedilotildees ocidentais bem como aquelas que conheceu do Oriente cruzando-as (no sentido de caminhos que se cruzam mas tambeacutem no de raccedilas que se misturam) no espaccedilo rio-pratense (SARLO 2008 p 17)

Os conflitos culturais histoacutericos e geograacuteficos que marcam essa tensatildeo ficam ainda mais evidentes quando do retorno do autor agrave Argentina em 1921 Borges redescobriu naquele momento um paiacutes muito diferente daquele que havia deixado A Buenos Aires que encontrou era apenas um rastro da cidade de sua infacircncia passando por mudanccedilas vertiginosas ele voltou para uma cidade em pleno desenvolvimento com um movimento cultural e literaacuterio efervescente uma cidade que incorporava a modernidade em seu sentido mais amplo

Foi nessa nova Buenos Aires que se constituiacutea na interface entre o novo e o que persistia que Borges e outros renomados escritores passaram a atuar ativamente mobilizando seu cenaacuterio cultural Em 1921 fundaram a revista mural Prisma e em 1922 a revista Proa (WOODALL 1999 VACCARO 2006) Em 1923 Borges publicou seu primeiro livro de poemas Fervor de Buenos Aires no qual essa tensatildeo entre a cidade da memoacuteria e a cidade em movimento pode ser considerada o eixo principal A partir de entatildeo manteve

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ateacute sua morte um intenso ritmo de produccedilatildeo colaborou com diversas revistas literaacuterias e suplementos culturais (nos quais publicou ensaios contos e poemas) organizou antologias traduziu romances e escreveu prefaacutecios a vaacuterias obras aleacutem de ter ministrado inuacutemeras conferecircncias Jaacute em seus primeiros textos eacute possiacutevel perceber a ironia o humor e o deslocamento como estrateacutegias para a reflexatildeo sobre a literatura e a cultura (ainda que posteriormente ele tenha vindo a negar a importacircncia desses escritos como os publicados em Inquisiciones de 1925)

O mito biograacutefico continua a se constituir para aleacutem da ficccedilatildeo familiar ganhando importacircncia aiacute uma segunda genealogia traccedilada pelo autor relativa agrave cegueira e agrave biblioteca Foi em 1938 que os livros passaram a cercar Borges tambeacutem profissionalmente seu primeiro emprego regular foi na Biblioteca Municipal Miguel Caneacute da qual foi primeiro assistente durante cerca de nove anos Sobre essa biblioteca ele afirmou

Agora eu deveria ter deixado essa biblioteca ndash era um ambiente assaz mediacuteocre ndash mas continuei trabalhando Natildeo sei se a palavra ldquotrabalhandordquo eacute exata eacuteramos acho uns cinquenta funcionaacuterios e nos designaram um trabalho que tinha que ser lento [] Bom e entatildeo o que acontecia Nosso trabalho era feito em digamos meia hora ou em 45 minutos e depois sobrava o restante das seis horas que eram dedicadas a conversas sobre futebol ndash tema que ignoro profundamente ndash ou fofocas ou por que natildeo contos ldquopicantesrdquo Agora eu me escondia porque tinha encontrado uma estranha ocupaccedilatildeo ler os livros da biblioteca Eu devo a esses nove anos o conhecimento da obra de Leacuteon Bloy de Paul Claudel voltei a ler os seis volumes de Decliacutenio e queda do Impeacuterio Romano de Gibbon e conheci livros dos quais natildeo tinha notiacutecia De maneira que aproveitei o tempo (BORGES e FERRARI 2009 p 56-57)

Na deacutecada de 1940 Borges lanccedilou seus mais famosos livros de contos que lhe valeram o reconhecimento internacional e deram iniacutecio a uma seacuterie de precircmios literaacuterios e tiacutetulos acadecircmicos honoriacuteficos de todas as partes do mundo Ficccedilotildees de 1944 e O Aleph de 1949 Paralelamente ao sucesso como escritor adveacutem tambeacutem a cegueira outra ldquotradiccedilatildeo familiarrdquo que acometera seu pai e iria progressivamente retirar sua visatildeo em 1955 jaacute estava quase completamente cego Os livros entretanto natildeo deixavam de cercaacute-lo foi nomeado nesse ano diretor da Biblioteca Nacional da Argentina

Na conferecircncia ldquoA cegueirardquo publicada no livro Sete noites Borges traccedila a aproximaccedilatildeo entre sua genealogia familiar e sua genealogia bibliotecaacuteria tendo como ponto de uniatildeo a cegueira Num primeiro momento associa a Biblioteca agraves leituras da infacircncia quando a frequentava acompanhado do pai

Fui nomeado diretor da biblioteca e voltei agravequela casa da rua Meacutexico no bairro de Montserrat no Sul de que guardava tantas recordaccedilotildees Eu jamais havia sonhado com a possibilidade de ser diretor da Biblioteca Tinha recordaccedilotildees de outra ordem Ia com meu pai agrave noite (BORGES 2011 p 199)

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Depois associa o fato agrave sua cegueira

Pouco a pouco fui compreendendo a estranha ironia dos fatos Eu sempre imaginara o Paraiacuteso como tendo o aspecto de uma biblioteca Outras pessoas pensam num jardim outras talvez pensem num palaacutecio Laacute estava eu Era de alguma maneira o centro de 900 mil volumes em diversos idiomas Comprovei que mal conseguia decifrar as capas e as lombadas Entatildeo escrevi o ldquoPoema dos donsrdquo que comeccedila por ldquoNingueacutem rebaixe a laacutegrima ou rejeite esta declaraccedilatildeo da maestria de Deus que com magniacutefica ironia deu-me a um soacute tempo os livros e a noiterdquo Esses dois dons que se contradizem os muitos livros e a noite a incapacidade de lecirc-los (BORGES 2011 p 200)

Por fim traccedila a ligaccedilatildeo entre a biblioteca e a cegueira criando uma genealogia de bibliotecaacuterios cegos que passaram pela Biblioteca Nacional da Argentina

Imaginei que Groussac era o autor do poema porque Groussac tambeacutem foi diretor da Biblioteca e tambeacutem cego Groussac foi mais corajoso que eu guardou silecircncio Mas pensei que sem duacutevida havia momentos em que nossas vidas coincidiam jaacute que noacutes dois chegaacuteramos agrave cegueira e noacutes dois amaacutevamos os livros []Na eacutepoca eu ignorava que a Biblioteca tivera outro diretor Joseacute Maacutermol que tambeacutem foi cego Aqui aparece o nuacutemero trecircs que fecha as coisas Dois eacute uma mera coincidecircncia trecircs uma confirmaccedilatildeo []Temos assim trecircs pessoas que receberam igual destino (BORGES 2011 p 201-202)

O ldquodestinordquo confirmava assim o mito biograacutefico Borges permaneceu como diretor da Biblioteca Nacional ateacute se aposentar em 1973 Paralelamente agrave sua entrada no paraiacuteso pelo qual tomava as bibliotecas ao longo da deacutecada de 1940 iniciara-se tambeacutem o viacutenculo de Borges com o ramo editorial no qual se projetou como antologista na editora Emececirc A palavra escrita era sua estrateacutegia de accedilatildeo intervenccedilatildeo e colocaccedilatildeo no mundo escrevia prefaacutecios criacutetica e roteiros de cinema organizava e dirigia coleccedilotildees literaacuterias produzia ensaios para diversos perioacutedicos e ainda se arriscou em um conjunto de milongas posteriormente musicadas por Astor Piazzolla (Para as seis cordas) aleacutem disso dava conferecircncias sobre literatura por todo o mundo concedeu inuacutemeras entrevistas e tinha sob sua responsabilidade caacutetedras acadecircmicas

Essa multiplicidade de textos e esse voraz apetite pela leitura fazem da obra de Borges uma vasta biblioteca um territoacuterio livresco em que a tradiccedilatildeo eacute rememorada e recriada constantemente em que o sonho a realidade e a imaginaccedilatildeo se imbricam de maneira contiacutenua e em que o saber se constroacutei a partir do diaacutelogo entre a ficccedilatildeo e a reflexatildeo em suas mais variadas formas de apariccedilatildeo

Ainda que diferenciadas em vaacuterios aspectos a vida e as obras de Borges e Calvino aproximam-se por esse viacutenculo com a palavra escrita pela presenccedila insistente das figuras do livro e da biblioteca bem como por uma produccedilatildeo textual que constantemente coloca em questatildeo o proacuteprio fazer literaacuterio como pensar por meio

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da ficccedilatildeo como produzir saberes que se instituem no bojo da narrativa e com os recursos desta num cenaacuterio em que predomina a valorizaccedilatildeo da ciecircncia como uacutenico discurso vaacutelido para o conhecimento

A relaccedilatildeo entre literatura e ciecircncia construiacuteda por Calvino pode ser lida a exemplo de Borges a partir de um ldquomito biograacuteficordquo de uma ldquoficccedilatildeo familiarrdquo Luca Baranelli e Ernesto Ferrero ao traccedilarem em Album Calvino (2003) uma biografia do autor afirmam que ele trazia em seu ldquocoacutedigo geneacuteticordquo uma mentalidade cientiacutefica seu pai Mario Calvino era um agrocircnomo de San Remo que passou alguns anos no Meacutexico (onde dirigiu a Estaccedilatildeo Experimental de Agricultura) e em Cuba sua matildee Eva Mameli foi a primeira mulher a ocupar uma caacutetedra de Botacircnica em uma universidade italiana Esse mito biograacutefico eacute entretanto marcado por uma dupla mirada o gosto pelas oposiccedilotildees binaacuterias e dicotomias que se desdobra e ramifica Jean Starobinski no prefaacutecio aos romances e contos de Calvino destaca que desde os primeiros textos do escritor italiano eacute possiacutevel perceber sua predileccedilatildeo pelas antiacuteteses pelas oposiccedilotildees binaacuterias e pelas dicotomias mas que essas duplas opostas nunca se apresentam de maneira simeacutetrica ou equilibrada nas oposiccedilotildees calvinianas prevalecem a tensatildeo a dissimetria e a instabilidade situaccedilotildees de potencialidade criadora (STAROBINSKI 2003)

Num primeiro movimento opotildeem-se a ciecircncia-paixatildeo do pai e a ciecircncia-ordem da matildee Para o pai a ciecircncia era um universo dominante pautado por uma relaccedilatildeo de afeto excessiva que ocupava toda a vida uacutenico espaccedilo no qual o homem poderia existir

O caminho de meu pai tambeacutem levava longe Do mundo ele via somente as plantas e o que tivesse relaccedilatildeo com plantas e de cada planta dizia em voz alta o nome no latim absurdo dos botacircnicos e o lugar de procedecircncia ndash sua paixatildeo fora a vida toda conhecer e aclimatar plantas exoacuteticas ndash e o nome vulgar se houvesse em espanhol ou inglecircs ou em nosso dialeto e nesse nomear as plantas punha a paixatildeo de estar dilapidando um universo sem fim de se aventurar a cada vez ateacute as fronteiras extremas de uma genealogia vegetal e em cada ramo ou folha ou nervura abrir para si um caminho como que fluvial na linfa na rede que cobre a verde terra [] porque esta era sua paixatildeo ndash a primeira sim a primeira ou seja a uacuteltima a forma extrema de sua paixatildeo uacutenica conhecer cultivar caccedilar insistir persistir de todas as maneiras nesse bosque selvagem no universo natildeo antropomorfo diante do qual (e somente aiacute) o homem era homem [] (CALVINO 2000b p 19-20)

Para a matildee se a ciecircncia era tambeacutem o uacutenico universo possiacutevel assumia uma forma diferente aquela do rigor e da ordem na qual natildeo havia espaccedilo para qualquer transbordamento

Que a vida tambeacutem fosse desperdiacutecio isso minha matildee natildeo admitia ndash ou seja que tambeacutem fosse paixatildeo Por isso nunca saiacutea do jardim etiquetado planta a planta da casa forrada de buganviacutelias do escritoacuterio com o microscoacutepio debaixo da redoma de vidro e os herbaacuterios Sem incertezas ordeira transformava as paixotildees em deveres e deles vivia (CALVINO 2000b p 26)

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Num segundo momento a contraposiccedilatildeo se estabelece entre a ciecircncia dos pais e a literatura do filho entre a integraccedilatildeo com a natureza dos primeiros e a ligaccedilatildeo com o humano do segundo mas aqui jaacute ressalta um desequiliacutebrio uma dissimetria um movimento que ao mesmo tempo em que afasta aproxima ndash a ciecircncia que instaura a diferenccedila com os pais vai marcar sua proacutepria produccedilatildeo e a paixatildeo que distancia pais e filhos pelos objetos de desejo aproxima-os pelo modo de olhar

Vocecircs hatildeo de compreender quanto nossos caminhos divergiam o de meu pai e o meu Mas e eu Afinal que caminho eu buscava senatildeo o mesmo de meu pai cavado na densidatildeo de outra estranheza no supramundo (ou inferno) humano O que buscava com o olhar pelos aacutetrios mal iluminados da noite (a sombra de uma mulher agraves vezes desaparecia ali) senatildeo a porta entreaberta a tela do cinema a ser atravessada a paacutegina a ser virada que introduz num mundo em que todas as palavras e figuras pudessem se tornar reais presentes experiecircncia minha natildeo mais o eco de um eco de um eco (CALVINO 2000b p 21)

Mas o que movia meu pai a cada manhatilde pelo caminho de San Giovanni acima ndash e a mim abaixo pelo meu caminho ndash mais que o dever de proprietaacuterio laborioso ou o desprendimento de inovador de meacutetodos agriacutecolas ndash e o que movia a mim mais que as definiccedilotildees daqueles deveres que aos poucos iria me impor ndash era paixatildeo feroz dor de existir ndash o que mais podia nos impelir ele a subir pragais e bosques eu a me entranhar num labirinto de muros e papeacuteis escritos ndash confronto desesperado com o que resta fora de noacutes desperdiacutecio de si em oposiccedilatildeo ao desperdiacutecio geral do mundo (CALVINO 2000b p 26)

Essa ficccedilatildeo familiar se amalgama em Calvino na paixatildeo pela literatura na vida que eacute atravessada pela palavra escrita pela narrativa na conexatildeo com o mundo que se estabelece por meio dela

E eu Eu acreditava ter outros pensamentos O que era a natureza Ervas plantas lugares verdes animais Eu vivia no meio daquilo e queria estar em outro lugar Diante da natureza permanecia indiferente reservado por vezes hostil E natildeo sabia que eu tambeacutem estava buscando uma relaccedilatildeo talvez mais afortunada que a de meu pai uma relaccedilatildeo que a literatura acabaria me dando devolvendo significado a tudo e de repente cada coisa se tornaria verdadeira e tangiacutevel e possuiacutevel e perfeita cada coisa daquele mundo jaacute perdido (CALVINO 2000b p 37)

Tais citaccedilotildees ainda que um tanto extensas satildeo importantes para que identifiquemos nesses ldquoexerciacutecios de memoacuteriardquo postumamente publicados a construccedilatildeo de um mito biograacutefico estreitamente vinculado agrave literatura e agrave visatildeo de mundo que lhe eacute antagocircnica a ciecircncia traccedilos que se apresentam de modo indeleacutevel na obra calviniana O proacuteprio Calvino destaca que esse ambiente estreitamente vinculado agrave pesquisa e ao desenvolvimento cientiacutefico ndash e como veremos agrave frente tambeacutem agrave poliacutetica ndash teve grande influecircncia em sua formaccedilatildeo dando-se a partir dele sua aproximaccedilatildeo com as narrativas com a literatura

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depois da leitura aos 12 ou 13 anos de O livro da selva de Rudyard Kipling obra na qual afirma ter tido ldquoo primeiro verdadeiro prazer da leiturardquo (CALVINO apud BARANELLI e FERRERO 2003 p 43 Traduccedilatildeo do autor) com o cinema sobre o qual chega a afirmar ldquoo cinema era o mundo para mimrdquo (CALVINO 2000c p 41)

Eacute interessante observar que alguns dos motivos que Calvino destaca para seu interesse absoluto pelo cinema em meados da deacutecada de 1930 podem ser pensados como indiacutecios de seu viacutenculo com a narrativa e com questotildees que se coloca sobre a relaccedilatildeo entre o ldquomundo es-critordquo e o ldquomundo natildeo escritordquo ele se sentia encantado com ldquoo contraste entre duas dimensotildees temporais diferentes dentro e fora do filmerdquo ldquoa descontinuidade entre os dois mundosrdquo ldquoa suspensatildeo do tempordquo no periacuteodo de duraccedilatildeo da peliacutecula (CALVINO 2000c p 44)

O cinema apresentava-se entatildeo ndash e conforme seus exerciacutecios de rememoraccedilatildeo o cinema ao qual se refere era o cinema americano da eacutepoca ndash como uma das maneiras de identificar e colocar em praacutetica o que Starobinski aponta como um problema que Calvino se propocircs insistentemente ao longo de toda sua obra o olhar distanciado o intervir sobre o mundo a partir do vislumbre de sua forma o qual soacute eacute possiacutevel atraveacutes de ldquolo sguardo dallrsquoaltordquo do olhar de cima Diante da tela do cinema o mundo apresentava-se como um Outro quase absolutamente distinto (apesar de alguns pontos de contato com o mundo real) do qual era possiacutevel perceber os traccedilos pela distacircncia do qual era possiacutevel apreender a inexauriacutevel superfiacutecie ainda que pelo vieacutes da suspensatildeo

Mas entatildeo o que tinha sido o cinema nesse contexto para mim Diria a distacircncia Ele respondia a uma necessidade de distacircncia de dilataccedilatildeo dos limites do real de ver se abrindo ao meu redor dimensotildees incomensuraacuteveis abstratas como entidades geomeacutetricas mas tambeacutem concretas absolutamente repletas de caras e situaccedilotildees e ambientes que com o mundo da experiecircncia direta estabeleciam uma rede proacutepria (e abstrata) de relaccedilotildees (CALVINO 2000c p 56)

O fascismo no entanto interrompe essa proximidade com o cinema atraveacutes da proibiccedilatildeo do cinema americano na Itaacutelia pouco antes da eclosatildeo da Segunda Guerra Mundial e facilita a passagem do escritor italiano para ldquoo mundo do papel escrito que em algumas de suas margens eacute fronteiriccedilo ao mundo do celuloiderdquo (CALVINO 2000c p 56) A passagem ao papel eacute marcada pelo desejo de buscar novamente ldquoo prazer da leitura provado com Kiplingrdquo (CALVINO apud BARANELLI e FERRERO 2003 p 43 Traduccedilatildeo do autor) Mas suas primeiras manifestaccedilotildees criativas realizam-se atraveacutes do desenho ndash em especial do humor presente nas charges e caricaturas publicadas em 1940 no perioacutedico milanecircs Bertoldo ndash e de algumas peccedilas teatrais das quais persistem em especial os tiacutetulos registrados em sua correspondecircncia

O princiacutepio da deacutecada de 1940 eacute marcado pelo iniacutecio dos estudos universitaacuterios e da produccedilatildeo literaacuteria assim como pelo envolvimento com o PCI o Partido Comunista Italiano no cenaacuterio de guerra que se desenrola Calvino inicia os estudos universitaacuterios na Faculdade de Agronomia de Turim em 1941 periacuteodo em que produziraacute uma seacuterie de pequenos contos interrompidos por seu envolvimento com os partigiani e pela clandestinidade na resistecircncia

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ao fascismo Apoacutes a Libertaccedilatildeo reafirma sua adesatildeo ao PCI e inicia um viacutenculo sem volta com o universo literaacuterio quando se mudou para Turim ao teacutermino da guerra partigiana matriculou-se na Faculdade de Letras e passou a frequentar a editora Einaudi que ao longo desse periacuteodo funcionava como bem mais que uma editora ndash era o local de confluecircncia da intelectualidade de esquerda espaccedilo no qual filoacutesofos historiadores escritores e literatos travavam contiacutenuas discussotildees acerca das tendecircncias poliacuteticas e ideoloacutegicas de entatildeo Pouco depois comeccedilou a prestar serviccedilos para a proacutepria editora trabalhando em vaacuterios setores ateacute 1983 ano em que dela se desvinculou redigiu notas publicitaacuterias dirigiu entre 1952 e 1959 o Notiziario Einaudi um perioacutedico mensal (posteriormente trimestral) de informaccedilatildeo cultural fundou e dirigiu ao lado de Elio Vittorini a revista de literatura Il Menabograve dirigiu coleccedilotildees de literatura diversas e como editor escreveu cerca de cinco mil cartas em que discute e analisa trabalhos de inuacutemeros autores

O envolvimento com a literatura desde os anos 1940 mostrou-se profundo e irreversiacutevel Calvino escreveu inuacutemeros ensaios e textos ficcionais participou de grupos literaacuterios e culturais produziu peccedilas de teatro e musicais Tornou-se um escritor que se interrogava continuamente tanto sobre seu proacuteprio trabalho e sobre as estrateacutegias e escolhas a ele inerentes quanto sobre as possibilidades de existecircncia do ser humano no mundo Explorando a accedilatildeo poliacutetica impliacutecita na narrativa no trabalho da escritura e na proacutepria literatura fez do campo literaacuterio um hiacutebrido no qual confluem o homem praacutetico e o homem contemplativo a ciecircncia e a ficccedilatildeo o poeacutetico e o poliacutetico propriamente dito

Se no caso de Borges sempre foi expliacutecito o desejo de natildeo fazer da literatura campo de disputas poliacuteticas (ainda que isso natildeo o tenha impedido de manifestar com clareza suas posturas) a relaccedilatildeo de Italo Calvino com a poliacutetica estrita mostrou-se mais complexa em especial no princiacutepio de sua produccedilatildeo ficcional No iniacutecio da deacutecada de 1940 ele se envolveu diretamente com o movimento de resistecircncia ao fascismo que avanccedilava sobre a Itaacutelia unindo-se agrave Brigada Garibaldi e militando ativamente na guerra partigiana Apesar da breve duraccedilatildeo cronoloacutegica esse envolvimento teve grande intensidade e foi determinante em sua formaccedilatildeo humana e poliacutetica refletindo-se em sua obra a Resistecircncia Italiana eacute o tema de seu primeiro livro A trilha dos ninhos de aranha (CALVINO 2004) publicado em 1947 e de diversos contos do mesmo periacuteodo

Nos primeiros anos poacutes-resistecircncia eacute assim principalmente por meio de uma narrativa de temaacutetica poliacutetica que o autor estabelece sua atuaccedilatildeo neste campo inclusive colaborando em diversos jornais e perioacutedicos comunistas No entanto seu envolvimento com a poliacutetica tornou-se mais conflituoso a partir dos desdobramentos da conjuntura italiana e essa tensatildeo acabou resultando em seu desvinculamento em 1957 do Partido Comunista Nesse sentido eacute esclarecedora sua resposta em entrevista concedida em 1956 agrave questatildeo ldquoAcredita que os literatos devem participar da vida poliacutetica Como Qual sua tendecircncia poliacuteticardquo

Acredito que quem tem de participar da poliacutetica satildeo os homens E os literatos na medida em que satildeo homens Creio que a consciecircncia ciacutevica e moral deva ter influecircncia primeiro sobre o homem e depois tambeacutem

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sobre o escritor Eacute um caminho longo mas natildeo haacute outro E acredito que o escritor tem de manter em aberto um discurso que em suas implicaccedilotildees natildeo pode deixar de ser tambeacutem poliacutetico [] Da poliacutetica e da literatura participo de maneiras diferentes conforme minhas atitudes mas ambas me interessam como um mesmo discurso sobre o gecircnero humano (CALVINO 2006 p 26-27)

Nesse contexto o envolvimento com o projeto de pesquisa para compilaccedilatildeo e ldquotraduccedilatildeordquo de narrativas tradicionais da Itaacutelia para publicaccedilatildeo do livro Faacutebulas italianas inicia-se em 1954 e aprofunda a relaccedilatildeo do autor com um universo fantaacutestico e fabular que jaacute se fazia perceptiacutevel em sua obra ndash deixando traccedilos inconfundiacuteveis em textos como os que compotildeem a trilogia Os nossos antepassados O visconde partido ao meio O baratildeo nas aacutervores e O cavaleiro inexistente reunidos em volume uacutenico em 1960ndash aleacutem de tornar mais veementes reflexotildees sobre a oralidade e a originalidade das narrativas sobre a ldquoinsaciabilidade de versotildees e de variantesrdquo que marca a ldquoinfinita variedade e infinita repeticcedilatildeordquo que caracterizam essas histoacuterias (CALVINO 1995 p 13) Aleacutem disso ali tambeacutem germinavam as questotildees sobre a liacutengua italiana e seu viacutenculo particular com a escrita sobre um mundo viacutevido e em perpeacutetuo movimento que se cristalizava textualmente temas que habitaratildeo diversas de suas produccedilotildees ensaiacutesticas dentre as quais destacamos ldquoItaliano uma liacutengua entre as outrasrdquo (CALVINO 2009b) e ldquoMondo scritto e mondo non scrittordquo (CALVINO 2002a)

Eacute tambeacutem no uacuteltimo livro da trilogia O cavaleiro inexistente publicado em 1959 que Calvino comeccedila a explicitar a reflexatildeo sobre a literatura como tema narrativo de suas ficccedilotildees num movimento que desborda as fronteiras entre o ensaio e a criaccedilatildeo ali se delineia um pensamento sobre a linguagem sobre a escrita e sobre a posiccedilatildeo desta relativamente ao que ele viria a chamar de ldquomundo natildeo escritordquo O livro narra a histoacuteria de Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez um nome pomposo para algueacutem que natildeo existe Agilulfo natildeo passa de uma armadura branca brilhante e vazia com a qual Calvino aprofunda a discussatildeo filosoacutefica sobre o homem contemporacircneo que perpassa a trilogia encerrando o ciclo com esse personagem denominado inexistente desde o tiacutetulo da obra e que ao fim da narrativa perde ateacute mesmo sua condiccedilatildeo de impossibilidade

No escopo desse movimento de pensar e produzir literatura a mudanccedila para Paris na deacutecada de 1960 (mais especificamente em 1967) possibilita sua aproximaccedilatildeo com o Oulipo (Ouvroir de Litteacuterature Potentielle) e leva sua obra a novas ramificaccedilotildees e desdobramentos Do contato com o grupo matemaacutetico-literaacuterio que propunha a produccedilatildeo textual a partir do uso de contraintes de restriccedilotildees autoimpostas outros elementos integram-se agrave literatura de Calvino como o jogo matemaacutetico e a combinatoacuteria claramente observaacuteveis nas narrativas de O castelo dos destinos cruzados de 1969 As cidades invisiacuteveis de 1972 e Se um viajante numa noite de inverno de 1979

Como articular o pensamento de uma ideia com a narrativa dessa mesma ideia ou para usar a expressatildeo de Jean Starobinski como ldquopensarerdquo e ldquoraccontarerdquo num mesmo

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movimento determinada questatildeo seja ela filosoacutefica cientiacutefica ou literaacuteria Essa me parece a grande questatildeo que se dissemina ao longo de toda a obra de Calvino e que nela se institui a partir da dupla mirada agrave qual me referi anteriormente que mescla a literatura e a ciecircncia originada de sua ldquoficccedilatildeo familiarrdquo e essencial na construccedilatildeo de seu ldquomito biograacuteficordquo Eacute na busca de respostas a essa indagaccedilatildeo que a obra calviniana inventa caminhos ndash que se bifurcam que se entrecruzam que se entrelaccedilam ndash que permitem a instauraccedilatildeo de uma diferenccedila no seio da tradiccedilatildeo percursos que colocam em tracircnsito o centro e a margem que deslocam os saberes e se abrem para um pensamento pautado pela complexidade tal qual abordada por Edgar Morin (2002 2007) Eacute justamente esse percurso que permite que o Calvino ldquoteoacutericordquo seja apontado por Starobinski como um ldquoteoacuterico ambidestrordquo que se apresenta tanto nas ldquolezionirdquo quanto nos ldquoraccontirdquo diluindo assim as fronteiras que cerceiam o espaccedilo da produccedilatildeo do conhecimento e o desvinculam das formas narrativas e ficcionais

[] a postura cientiacutefica e aquela poeacutetica coincidem ambas satildeo posturas de pesquisa e ao mesmo tempo de planejamento de descoberta e de invenccedilatildeo A postura poliacutetica tambeacutem (em sentido lato isto eacute do fazer histoacuteria cultural e civil) O caminho para tornar una a cultura de nosso tempo de outro modo tatildeo divergente em seus discursos especiacuteficos estaacute justamente nessa postura comum (CALVINO 2009a p 103)

A diversidade de viacutenculos com a palavra que se pode perceber tanto em Borges quanto em Calvino ndash que exercem de maneira relacional vaacuterias outras atividades narrativas aleacutem da produccedilatildeo ficcional como a atuaccedilatildeo na aacuterea editorial a traduccedilatildeo a escrita ensaiacutestica a produccedilatildeo jornaliacutestica as conferecircncias aulas e entrevistas a reflexatildeo sobre ciecircncia natureza e filosofia a participaccedilatildeo em grupos artiacutestico-literaacuterios ndash e que tem sua origem e seu lastro nesse ldquomito biograacuteficordquo que procurei aqui brevemente indicar contribui para a transformaccedilatildeo de suas obras em uma rede e indica a biblioteca como possiacutevel metaacutefora para sua concepccedilatildeo de literatura uma biblioteca tecida pelo desejo do uso da narrativa como motor do pensamento

Nesse sentido aproximar suas estrateacutegias narrativas de construccedilatildeo biograacutefica agravequelas de sua produccedilatildeo ficcional nos possibilita concluir que em ambos a biblioteca pode ser tomada natildeo apenas como objeto e temaacutetica mas tambeacutem como um meacutetodo de composiccedilatildeo literaacuteria eles produzem suas vidas e suas obras como se compusessem uma ldquocoleccedilatildeo de livrosrdquo na qual os mais diversos textos se confrontam no estabelecimento de um novo texto que os releia e os rediga afinal ldquoOs livros satildeo feitos para serem muitos um livro uacutenico tem sentido apenas quando se junta a outros livros quando segue e precede outros livrosrdquo (CALVINO 2002b p 127 traduccedilatildeo nossa) ldquoUm livro eacute uma coisa entre as coisas um volume perdido entre os volumes que povoam o indiferente universo ateacute que ele encontra seu leitorrdquo (BORGES 1999a p 519)Em Borges e Calvino escritores jaacute aproximados por muitos pesquisadores em razatildeo de suas obras literaacuterias acredito que encontramos outros pontos de contato a ficccedilatildeo

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familiar o mito biograacutefico e a biblioteca os quais podem ser tomados como locus de construccedilatildeo e subversatildeo dos saberes como espaccedilo de memoacuteria e de esquecimento da tradiccedilatildeo e do conhecimento como figuras sobre as quais se assenta certa ldquoidentidaderdquo entre os escritores

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BORGES J L As versotildees homeacutericas In BORGES J L Discussatildeo TradJosely Vianna Baptista Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008 p 103-110

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BORGES J L A cegueira In BORGES J L Borges oral amp Sete noites Trad Heloisa Jahn Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011 p 197-214

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BORGES J L GUERRERO M Manual de zoologiacutea fantaacutestica Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 2001

BORGES J L GUERRERO M O livro dos seres imaginaacuterios Trad Heloiacutesa Jahn Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007

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CALVINO I O caminho de San Giovanni Trad Roberta Barni Satildeo Paulo Companhia das Letras 2000a

CALVINO I O caminho de San Giovanni In CALVINO I O caminho de San Giovanni Trad Roberta Barni Satildeo Paulo Companhia das Letras 2000b p 15-38

CALVINO I Autobiografia de um espectador In CALVINO I O caminho de San Giovanni Trad Roberta Barni Satildeo Paulo Companhia das Letras 2000c p 39-64

CALVINO I A memoacuteria do mundo In CALVINO I Um general na biblioteca Traduccedilatildeo de Rosa Freire DrsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001 p 127-133

CALVINO I Mondo scritto e mondo non scritto In CALVINO I Mondo scritto e mondo non scritto Milano Mondadori 2002a p 114-125

CALVINO I Il libro i libri In CALVINO I Mondo scritto e mondo non scritto Milano Mondadori 2002b p 126-141

CALVINO I A trilha dos ninhos de aranha Trad Roberta Barni Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004

CALVINO I Questionaacuterio de 1956 In CALVINO I Eremita em Paris paacuteginas autobiograacuteficas Trad Roberta Barni Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 p 21-29

CALVINO I O desafio ao labirinto In CALVINO I Assunto encerrado discurso sobre literatura e sociedade Trad Roberta Barni Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009a p 100-117

CALVINO I Italiano uma liacutengua entre as outras liacutenguas In CALVINO I Assunto encerrado discurso sobre literatura e sociedade Trad Roberta Barni Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009b p 140-147

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Recebido em 23102017

Aceito em 20122017

Maria Elisa Rodrigues Moreira

Doutora em Estudos Literaacuterios ndash Literatura Comparada mestre em Estudos Literaacuterios ndash Teoria da Literatura e bacharel em Comunicaccedilatildeo Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Atualmente eacute professora visitante junto ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Autora dos livros Saber narrativo proposta para leitura de Italo Calvino (Tradiccedilatildeo Planalto 2007) e Coleccedilatildeo arquivo biblioteca a literatura de Borges e Calvino (Clock-T 2016) elisarmoreiragmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Sobre o amor e a incapacidade de amarOn Love and the Incapacity to Love

Sobre el amor y la incapacidad de amar

Dionei MathiasUniversidade Federal de Santa Maria

Resumo

Em muitos textos de Elfriede Jelinek a ausecircncia de amor representa uma caracteriacutestica central na interaccedilatildeo das personagens Isso vale especialmente para o seu romance Die Klavierspielerin (A Pianista) cujo enredo trata do triacircngulo formado por matildee filha e um jovem aluno que negociam signos de amor em busca de uma narrativa de identidade em consonacircncia com seus valores e projetos pessoais Para refletir sobre essa questatildeo o presente artigo estaacute dividido em duas partes Primeiramente discutem-se algumas ideias sobre o conceito de amor a fim de estabelecer uma base teoacuterica ndash sem ambicionar uma definiccedilatildeo exaustiva ndash que permita analisar esse discurso no texto ficcional Na segunda parte a anaacutelise foca no texto literaacuterio com o objetivo de compreender a dinacircmica do amor materno (2) do corpo ao mesmo tempo rebelde e domesticado (3) a busca por espaccedilos iacutentimos natildeo controlados (4) e por fim a imaginaccedilatildeo do futuro como elemento do amor (5) Palavras-Chave Elfriede Jelinek A pianista amor

Abstract

In many texts written by Elfriede Jelinek the absence of love represents a key element in the way characters interact This applies especially to the novel Die Klavierspielerin (The Piano Player) whose plot is about the triangle formed by mother daughter and a young student who trade in signs of love in search of an identity narrative in line with their values and personal projects In order to discuss this question this article is divided into two parts Firstly there is a discussion about some ideas on the concept of love ndash without any ambition for an exhaustive definition ndash trying to establish a theoretical basis which might allow its examination in the fictional text In the second part the focus is on the plot aiming to understand (2) the dynamics of maternal love (3) the insubordinate and docile body (4) the search for unsurveilled private spaces and finally (5) the imagination of future as an element of love Keywords Elfriede Jelinek The Piano Player Love

Resumen

En muchos textos de Elfriede Jelinek la ausencia del amor representa una caracteriacutestica fundamental en la interaccioacuten de los personajes Eso puede decirse especialmente de la novela Die Klavierspielerin (La pianista) cuya trama presenta un triaacutengulo entre madre hija y un joven estudiante que negocian signos de amor en buacutesqueda de una narracioacuten de identidad en

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consonancia con sus valores y sus proyectos personales Para discutir esa cuestioacuten este artiacuteculo estaacute dividido en dos partes Primeramente se introducen algunas ideas sobre el concepto de amor con la finalidad de establecer una base teoacuterica que permita analizar ese concepto en el texto ficcional En la segunda parte el anaacutelisis pasaraacute al texto literario con el objetivo de comprender la dinaacutemica del amor materno (2) del cuerpo a la vez rebelde y domesticado (3) la buacutesqueda por espacios iacutentimos no controlados (4) y por fin la imaginacioacuten del futuro como elemento del amor (5) Palabras clave Elfriede Jelinek La pianista amor

1 Introduccedilatildeo ou tentativa sobre o amor

A tentativa de definir o amor representa um exerciacutecio que perpassa a histoacuteria Talvez nenhuma outra emoccedilatildeo tenha inspirado tantos pensadores a encontrar imagens que pudessem captar e abarcar toda a dimensatildeo desse excerto de realidade que transforma a visatildeo de mundo do sujeito O escopo e o conteuacutedo daquilo que constitui o amor se tornam semanticamente nebulosos pois cada indiviacuteduo colora sua interpretaccedilatildeo de realidade com impressotildees pessoais que por sua vez estatildeo inseridas em moldes culturais especiacuteficos determinando igualmente a formaccedilatildeo de sentido (HANSEN 2003 MUumlLLER-FUNK 2006) Para tentar dar conta desse fenocircmeno eacute possiacutevel aproximar-se de sua descriccedilatildeo interpretando-o como sistema (LUHMANN 1994) como resultado de um processo de civilizaccedilatildeo (ELIAS 2007) como conjunto socialmente reconhecido de discursos ou normas (DEMMERLING LANDWEER 2007 p 128) Nesses modelos a diversidade de sensaccedilotildees fiacutesicas e aniacutemicas no primeiro momento desordenada acaba sendo condensada pelo sujeito transformando o emaranhado caoacutetico numa interpretaccedilatildeo concatenada a fim de que possa ser narrada e transmitida para outros membros do espaccedilo social A narraccedilatildeo do amor equivale a uma organizaccedilatildeo discursiva portanto tambeacutem estaacute perpassada de ideologias e de elementos de cunho histoacuterico

A cultura ou melhor os discursos que regem as normas de comportamento accedilatildeo e construccedilatildeo de identidade definem em grande parte as formas de conceber e realizar a experiecircncia do amor A concepccedilatildeo e expressatildeo do desejo a encenaccedilatildeo iacutentima e social da paixatildeo ou mesmo a configuraccedilatildeo do amor filial dentro do microcosmo familiar satildeo praacuteticas historicamente condicionadas pelos paracircmetros acordados num determinado espaccedilo social e grupo cultural Talvez os instintos eroacuteticos e de proteccedilatildeo apresentem muitas semelhanccedilas se comparados a suas concretizaccedilotildees primordiais poreacutem o modo como eles adentram a simbolizaccedilatildeo da consciecircncia e como satildeo exteriorizados na praacutetica da interaccedilatildeo social se transformam conforme o horizonte de ideias que marca as fronteiras do pensaacutevel na respectiva eacutepoca O discurso ficcional se apropria ndash consciente ou inconscientemente ndash desse ideaacuterio e o metamorfoseia em experiecircncia esteacutetica reproduzindo os modelos vigentes ou questionando sua propriedade para as imposiccedilotildees da existecircncia

Os limiares do conscientemente pensaacutevel se impotildeem especialmente no que concerne agrave concepccedilatildeo do amor como fenocircmeno inscrito no corpo ou seja amor como desejo ou necessidade de satisfaccedilatildeo eroacutetica Para a Psicanaacutelise toda forma de amor nada mais eacute

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que reflexo de pulsotildees libidinais (DEMMERLING LANDWEER 2007 p 128) daiacute toda accedilatildeo e interaccedilatildeo do sujeito no fundo terem por objetivo satisfazer as demandas do corpo Vivendo em sociedade poreacutem e imerso numa rede de signos culturais o sujeito eacute impelido a narrar essas necessidades de forma que sejam admissiacuteveis no espaccedilo social em que circula Disso resultam diversas tessituras culturais que prescrevem em forma de rituais as inuacutemeras modalidades de aproximaccedilatildeo do corpo desejado de exposiccedilatildeo do desejo e de concretizaccedilatildeo das acircnsias da libido Toda forma de intercacircmbio fiacutesico ndash entre pais e filhos entre amigos ou irmatildeos entre amantes hetero ou homossexuais ndash encontra-se em grande parte preacute-definida pelas malhas discursivas da cultura As possibilidades de satisfaccedilatildeo eroacutetica natildeo satildeo as mesmas Existem diferenccedilas oacutebvias em sociedades factualmente poacutes-modernas ou arraigadas em modelos tradicionais no interior ou em grandes centros metropolitanos no mundo assim chamado ocidental ou islacircmico A libido natildeo deixa de ser menos imperativa a despeito do ambiente restritivo Cabe ao sujeito encontrar meios de satisfazer suas demandas fiacutesicas dentro dos limites do pensaacutevel e factiacutevel

Ao mais tardar com Foucault (1978 1999 2005) sabe-se que toda sociedade manteacutem dispositivos para vigiar e disciplinar os corpos inseridos nos diferentes campos de poder Esses instrumentos de vigilacircncia e disciplina em suas funccedilotildees diversas e onipresentes valem especialmente para as concepccedilotildees e exteriorizaccedilotildees da libido Dependendo do grau de poder que o sujeito deteacutem ou ao qual visa ele tem de controlar seus iacutempetos corporais a fim de encenar e impor sua autoridade ou superioridade perante outros membros Dessa dinacircmica provecircm diferentes modos de interagir com o proacuteprio corpo Indiviacuteduos menos ambiciosos no tocante agrave ascensatildeo da hierarquia social ou menos riacutegidos quanto a preceitos impostos por interpretaccedilotildees religiosas conservadoras acabam tendo maior espaccedilo para imaginar suas necessidades e idear estrateacutegias de se esquivarem do controle social

Ao lado das imposiccedilotildees do corpo a maacutescara do amor tambeacutem encobre outros elementos essenciais para o desenvolvimento existencial a saber o anseio pela construccedilatildeo de uma identidade pessoal Essa narraccedilatildeo do si passa incondicionalmente pelo entrelaccedilamento com outros textos identitaacuterios porquanto necessita a atenccedilatildeo do outro a fim de encenar-se e legitimar sua autoimagem (DEMMERLING LANDWEER 2007 p 139) Na interaccedilatildeo com o outro surgem os signos que compotildeem a tessitura da identidade pois no processo de negociaccedilatildeo a imagem projetada adquire concretude quando outros membros da interaccedilatildeo validam seu teor de sentido (LEVITA 2002 MEAD 1992 ZIMA 2000) Isso se revela especialmente importante nos relacionamentos mais iacutentimos uma vez que representam os palcos de interaccedilatildeo primordiais e de maior constacircncia Assim o relacionamento entre pais e filhos ou entre casais encerra uma relevacircncia maior justamente porque as pessoas envolvidas e sobretudo seus juiacutezos sobre os signos postos em circulaccedilatildeo tecircm uma repercussatildeo mais intensa e prolongada para a autoimagem do indiviacuteduo Nesse espaccedilo iacutentimo o amor se transforma numa praacutetica de negociaccedilatildeo de signos na qual se possibilita ao sujeito experimentar diferentes modalidades de autorrepresentaccedilatildeo para que desse modo encontre a narraccedilatildeo que mais lhe conveacutem A aceitaccedilatildeo surge aqui como elemento

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indispensaacutevel para a formaccedilatildeo de uma ambiecircncia confiaacutevel em que todos possam encenar sua proacutepria alteridade (TENHOUTEN 2009 p 52)

Por meio da aceitaccedilatildeo do outro incluindo suas maacuteculas e admissatildeo de maacuteculas proacuteprias cria-se uma narraccedilatildeo solidaacuteria e interessada Nela os membros que a compotildeem ensaiam em suas interaccedilotildees diaacuterias caminhos de sintonia pelos quais buscam ir ao encontro do horizonte de necessidades que o comportamento alheio revela Entre intuiccedilatildeo e expressatildeo delineiam-se espaccedilos comuns nos quais se inscrevem paracircmetros que dispotildeem a cada qual a possibilidade de medrar conforme seus anseios aniacutemicos Dessa forma o amor se transforma num pacto microssocial cujo ecircxito depende em grande parte da profundidade dos conhecimentos que cada membro deteacutem sobre os projetos de identidade que afloram agrave superfiacutecie das interaccedilotildees

O ecircxito nessa empresa depende em grande parte do relacionamento que o indiviacuteduo tem consigo mesmo (FROMM 1984 HUumlLSHOFF 2006) Antes de imergir na narraccedilatildeo alheia ele tem de obter clareza sobre sua proacutepria posiccedilatildeo no espaccedilo social a fim de mobilizar um conjunto de instrumentos que lhe permitam emergir de sua realidade idiossincraacutetica para de fato tomar conhecimentos das tessituras que o circundam Somente com uma autoestima bem desenvolvida e profundamente arraigada na concepccedilatildeo de mundo e interpretaccedilatildeo de realidade ele logra adentrar numa narraccedilatildeo de amor sem capitular perante a percepccedilatildeo inevitaacutevel e inexoraacutevel de fraquezas e imperfeiccedilotildees Logo o amor representa tambeacutem um confronto de realidades ao aproximar os universos aniacutemicos dos membros que participam desse jogo

Com um entrelaccedilamento cada vez mais intricado ndash logo com uma aproximaccedilatildeo de horizontes maior ndash desponta simultaneamente uma necessidade mais concreta de proximidade e de construccedilatildeo de uma narraccedilatildeo duradoura que condense as linhas dispersas e transforme emoccedilotildees incipientes em fenocircmenos articulados e materializados na consciecircncia do sujeito Nesse estaacutegio manifestam-se os primeiros projetos de identidade que preveem o outro como parte irrenunciaacutevel do futuro A orientaccedilatildeo teleoloacutegica por conseguinte estaacute estreitamente atrelada agrave presenccedila de pessoas significativas na materializaccedilatildeo da vida iacutentima em especial para casais e famiacutelias em seus mais diversos formatos (USSEL 1979 SWAAN 1989 HANTEL-QUITMANN 2002) A narraccedilatildeo do amor portanto encerra um espraiamento no espaccedilo iacutentimo e na linha do tempo assimilando com seu desenvolvimento elementos narrativos cada vez mais complexos e intricados o que forccedila os membros desse enredo a buscarem ininterruptamente pela atualizaccedilatildeo dos sentidos que compotildeem suas emoccedilotildees

Com base nas diferentes teorias abordadas queremos definir o amor para o presente artigo como narrativa organizada por uma instacircncia pessoal em que as forccedilas libidinosas do corpo subordinadas agraves regras da cultura e agraves malhas de poder se manifestam e satildeo enfeixadas numa narraccedilatildeo O amor portanto natildeo resulta isoladamente da libido do poder da cultura ou da identidade pessoal O amor assim parece resulta da forma como esses diferentes fatores satildeo organizados numa histoacuteria pensaacutevel e narraacutevel com base na negociaccedilatildeo interessada de sentidos entre dois partidos A narraccedilatildeo do amor surge a

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partir de um pacto de dedicaccedilatildeo exclusiva (entre pais e filhos num casal) que possibilita a inclusatildeo da outra parte na narraccedilatildeo de identidade do sujeito (encenaccedilatildeo social com proteccedilatildeo e pertencimento) e que permite satisfazer as necessidades do corpo (obtenccedilatildeo de atenccedilatildeo dedicaccedilatildeo emocional ou prazer eroacutetico) Isso significa que o amor como entendido aqui implica exclusividade corporeidade narratibilidade e a garantia de que o sujeito narrador possa imaginar a presenccedila da pessoa amada num espaccedilo de tempo prolongado (em princiacutepio por toda a vida)

Em muitos romances de Elfriede Jelinek as personagens procuram por narraccedilotildees de amor Estas contudo raramente tecircm ecircxito uma vez que os participantes envolvidos na negociaccedilatildeo dessa narrativa acabam transformando o outro em objeto produzindo narrativas unilaterais que natildeo preveem as necessidades e os sentidos da outra parte A tese que queremos desenvolver com base no romance Die Klavierspielerin (A Pianista) (2011) dessa autora eacute que as personagens alimentam um desejo intenso por amor mas se mostram incapazes de desenvolvecirc-lo Para isso o foco de anaacutelise recairaacute sobre a dinacircmica do amor materno (2) o corpo ao mesmo tempo rebelde e domesticado (3) a busca por espaccedilos iacutentimos natildeo controlados (4) e por fim a imaginaccedilatildeo do futuro como elemento do amor (5)

2 O amor materno

Os relacionamentos que compotildeem a vida iacutentima da professora de piano no romance A pianista satildeo no miacutenimo problemaacuteticos Para Hoffmann (2003 p 112) concretizaccedilotildees de carecircncia no sentido de falta e insuficiecircncia Dividida entre as imposiccedilotildees maternas e as incursotildees de seu aluno Klemmer ela natildeo suporta a dor incisiva implicada na incerteza sobre sua situaccedilatildeo Ao evitar que um processo de reflexatildeo se materialize nos limites de sua consciecircncia ela proiacutebe uma anaacutelise criacutetica de sua narraccedilatildeo pessoal impedindo com isso uma revisatildeo que possibilite novos percursos identitaacuterios A despeito desses medos no entanto Erika busca por alternativas concebiacuteveis dentro das limitaccedilotildees que a caracterizam A primeira limitaccedilatildeo e talvez a mais incisiva eacute tambeacutem seu principal relacionamento ateacute a chegada de Klemmer Trata-se dos sentimentos que alimenta pela matildee O conjunto de accedilotildees e interaccedilotildees entre as duas mulheres certamente pode ser interpretado como uma tentativa de instaurar uma narraccedilatildeo de amor Interessante neste contexto eacute a imagem que se concretiza a partir do comportamento que ambas trazem agrave tona

O amor da senhora Kohut estaacute longe de ser desinteressado e incondicional disposto a renunciar agrave proacutepria felicidade em prol dos anseios filiais Embora ela tente encenar-se por meio de inquisiccedilotildees preocupadas como matildee aflita e engajada um olhar aleacutem da superfiacutecie de seu comportamento rapidamente revela que essa encenaccedilatildeo natildeo passa de um instrumento discursivo do qual lanccedila matildeo para melhor alcanccedilar seus objetivos Por traacutes da fachada socialmente imposta e estrategicamente melhor manejaacutevel ela encobre uma interpretaccedilatildeo de realidade imersa numa visatildeo autoritaacuteria e intransigente de mundo A partir dessa concepccedilatildeo a matildee representa o princiacutepio instaurador de leis e

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realidades agraves quais a filha deve submeter-se candidamente O dispecircndio de atenccedilatildeo e carinho logo de interesse pela existecircncia de Erika depende em grande parte do grau de submissatildeo por parte desta Qualquer indiacutecio de questionamento ou subversatildeo das leis estabelecidas com rigor e detalhe pela senhora Kohut para todos os movimentos no espaccedilo social implica medidas repressivas para garantir o bom funcionamento de seu estado e a harmonia caseira

A necessidade dessa supervisatildeo significa que sua narraccedilatildeo de amor carece de um elemento central e indispensaacutevel que eacute a confianccedila Sem esse voto de credibilidade nenhum dos membros envolvidos pode de fato encontrar ou criar espaccedilos nos quais tenha a oportunidade de ensaiar projetos de identidade que condigam com seus anseios iacutentimos Para garantir a seguranccedila de seu espaccedilo particular poreacutem a matildee estaacute convencida da necessidade de vigiar os movimentos da filha Por conseguinte grande parte de suas accedilotildees tem por fito idear novas estrateacutegias que potencializem a eficiecircncia de sua malha de controle e ao mesmo tempo criar uma seacuterie de medidas para disciplinar a filha de modo que esta conforme seus atos aos desejos maternos

Dentre as estrateacutegias que emprega com predileccedilatildeo figura o papel da viacutetima Por meio dessa encenaccedilatildeo a matildee logra permanecer no espaccedilo de Erika em forma de peso na consciecircncia forccedilando a filha de maneira sutil a experimentar remorsos de diversos graus de incisatildeo Com o desconforto fiacutesico causado por essa sensaccedilatildeo a filha acaba retornando para os muros maternos sem juntar a energia necessaacuteria para romper o cerco discursivo Alegando fraqueza ou perigos iminentes de morte a matildee obteacutem as informaccedilotildees de que necessita para estar presente mesmo permanecendo em casa Para isso telefona para Erika durante suas aulas ou ateacute mesmo quando esta frequenta um cafeacute pretextando preocupaccedilatildeo e desejo de saber onde estaacute para que num caso extremo possa contataacute-la imediatamente Ateacute certo ponto a encenaccedilatildeo materna se ateacutem agraves prescriccedilotildees sociais no tocante ao comportamento esperado pois sua afliccedilatildeo agrave primeira vista estaacute arraigada num iacutempeto de preocupaccedilatildeo logo num movimento desprendido de si e afincado na filha Essa preocupaccedilatildeo desmesurada facilmente poderia ser confundida com um amor altruiacutesta e incondicional materno que por vezes oblitera os limites aos quais a prole tem direito sem dar-se conta de seu comportamento inadequado

Essa encenaccedilatildeo no entanto nada mais eacute que um instrumento facilmente manejaacutevel do qual a senhora Kohut lanccedila matildeo a fim de garantir o apoio social para seu comportamento e a fim de melhor manipular sua filha Sua preocupaccedilatildeo lhe permite vigiar Erika sem conflitos de legitimaccedilatildeo uma vez que sua imiscuiccedilatildeo jaacute estaacute prevista em seu papel social A vigilacircncia se revela de tal modo eficaz que a matildee logra disciplinar o corpo da professora de piano induzindo-o a obedecer sem antes refletir sobre os acontecimentos que o levam a tal reaccedilatildeo Esse condicionamento do corpo tem lugar quando Erika por exemplo em sua infacircncia executa ininterruptamente os exerciacutecios de piano tendo o fustigo materno como companheiro inseparaacutevel ou tambeacutem mais tarde ao final do romance quando desesperada e existencialmente aniquilada retorna tal qual um autocircmato aos braccedilos protetores que a esperam em casa Para obter ecircxito nesse processo de domesticaccedilatildeo do

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corpo alheio a matildee natildeo hesita em por em risco a felicidade da filha Admoestando-a sobre a necessidade de comprar a casa proacutepria instilando-lhe a ambiccedilatildeo por sucesso profissional e posiccedilatildeo social e advertindo-a sem treacutegua sobre as desvantagens de um companheiro masculino a matildee lhe inscreve nas entranhas o que tem de fazer e o que deve deixar de maneira que a carne reage automaticamente sem dar atenccedilatildeo aos proacuteprios anseios Estes obviamente natildeo deixam de manifestar-se poreacutem sua materializaccedilatildeo acaba sendo reprimida pelo policiamento eacutetico em forma de remorsos que surgem tatildeo logo a matildee desempenhe o papel da viacutetima

3 Matildee filha e o corpo rebelde domesticado

Dentro desse regime fechado de vigilacircncia maacutexima figuram igualmente momentos de insurreiccedilatildeo nos quais Erika tenta desvencilhar-se do aparato autoritaacuterio que a monitora dia e noite Com tal fim ela lanccedila matildeo de uma violecircncia desesperada e sobretudo grotesca para conquistar pequenas ilhas de liberdade Seu ecircxito contudo eacute demasiado limitado e no fundo desesperanccedilado

A filha volta e estaacute quase chorando de tatildeo nervosa Xinga a matildee de malvada e canalha e ao mesmo tempo espera que logo a matildee se reconcilie com ela Com um beijo afetuoso A matildee pragueja que a matildeo de Erika caia por ter batido na matildee e lhe ter arrancado os cabelos Erika soluccedila cada vez mais alto porque agora sente pena da mamatildee que se sacrifica ateacute os ossos e os cabelos De tudo o que Erika faz contra a matildee ela logo se arrepende porque ama sua matildee que jaacute a conhece desde a mais tenra infacircncia Por fim como era de se esperar Erika quer reconciliar-se e chora amargamente E a matildee se retrata com prazer natildeo pode estar verdadeiramente brava com a filha Agora vou eacute passar um cafeacute para noacutes e vamos tomaacute-lo juntas Durante o lanche Erika tem ainda mais pena da matildee e os uacuteltimos resquiacutecios de sua raiva se dissolvem no bolo (JELINEK 2011 p 15)

Percebe-se a oscilaccedilatildeo que caracteriza o comportamento de Erika Por um lado revela um alto potencial agressivo que natildeo titubeia em materializar seu oacutedio por outro lado o mecanismo de retenccedilatildeo automaticamente se impotildee despertando seu arrependimento O mesmo braccedilo que se levanta para esbofetear perde seu arco de forccedila tatildeo logo o maquinaacuterio da contriccedilatildeo envia seus sinais Nesse embate a imagem da viacutetima materna se sobrepotildee agrave ideia de tirania de modo que o amor que senhora Kohut aparentemente tem pela filha acaba sobrepondo-se no conflito discursivo que tem lugar no inconsciente de Erika

Esse conflito que em seu princiacutepio conteacutem um potencial muito grande de extensatildeo da complexidade e de alargamento daquilo que se entende por amor perde sua energia com a inabilidade de ambas as mulheres de suportarem a dor implicada numa discussatildeo atrelada agrave necessidade de construir espaccedilos iacutentimos pessoais livres de controle e vigilacircncia Essa dor poreacutem lhes figura excessivamente incisiva para amealharem a energia demandada para transporem os muros que escudam o prazer da autonomia

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Em seu lugar optam por um silenciamento do conflito assim Erika derrama laacutegrimas conforme seu amestramento e a matildee transige uma vez que sua autoridade jaacute natildeo se encontra mais ameaccedilada O lanche final com bolo e cafeacute nada mais representa que um precircmio distribuiacutedo por parte da instacircncia materna pela submissatildeo filial ou seja o corpo aprende nesse exerciacutecio de condicionamento que com sua anuecircncia seraacute recompensado com docinhos Desse quadro grotesco eacute possiacutevel depreender uma tentativa infantilizada de harmonizaccedilatildeo A harmonia contudo permanece superficial pois os conflitos que motivaram o embate continuam sem soluccedilatildeo e permanecem silenciados Para a narraccedilatildeo do amor isso implica uma base bastante fraacutegil pois se utiliza de imagens e tessituras narrativas cujo teor rapidamente revela sua vacuidade

Se a matildee vigia e disciplina todos os movimentos da filha e natildeo lhe permite desenvolver ensaios de autonomia consequentemente tem de haver alguma motivaccedilatildeo que a impede de alcanccedilar composiccedilotildees mais complexas de amor em sua proacutepria vida pessoal Contudo nem a senhora Kohut nem Erika se permitem uma reflexatildeo sobre o comportamento arbitraacuterio autoritaacuterio e sufocante da matildee O que se encena satildeo os emaranhados reflexivos que a matildee compulsivamente delineia para esquivar-se dos medos que ameaccedilam sua estabilidade

Hoje agrave noite na frente da televisatildeo ela natildeo vai dizer nenhuma palavra a Erika E se for falar algo ela vai explicar a Erika que tudo o que uma matildee faz eacute motivado pelo amor Vai confessar seu amor por Erika e desculpar com esse amor qualquer erro que possa ter cometido E nesse contexto vai citar Deus e outros prepostos que tambeacutem tinham o amor em alta consideraccedilatildeo poreacutem nunca o amor egoiacutesta que estaacute germinando nessa jovem Como castigo a matildee natildeo vai desperdiccedilar uma palavra sequer nem a favor nem contra o filme (JELINEK 2011 p 238)

Seu foco se concentra quase exclusivamente em como garantir a obediecircncia de Erika Nisso projeta toda uma argumentaccedilatildeo acerca do amor aduzindo autoridades que corroborem sua linha de pensamento e forcem Erika a subordinar-se ao jugo da tradiccedilatildeo Esse comportamento tiacutepico e factualmente reiterativo revela no entanto que evita pensar o amor independentemente da presenccedila de sua filha Por conseguinte toda sua construccedilatildeo de identidade estaacute arraigada numa narraccedilatildeo que demanda a atenccedilatildeo completa e ininterrupta de Erika Tatildeo logo esta tenta se desvencilhar do cerco a senhora Kohut pressente um vazio que lhe indica a estrutura instaacutevel de sua narraccedilatildeo pessoal Como ela natildeo suporta a dor causada pelo pensamento sobre a possibilidade de um amor pessoal eroacutetico proacuteprio ela tem de erradicar tambeacutem de Erika quaisquer indiacutecios que pudessem levaacute-la a esse desejo Assim natildeo lhe resta outra coisa senatildeo satanizar o homem que deseja conquistar a atenccedilatildeo da filha Este tendo ecircxito a matildee teria que idear um projeto de narraccedilatildeo identitaacuteria que abdicasse da filha o que a ela parece impossiacutevel Ou seja o amor narrado pela matildee em forma de afliccedilatildeo cuidado e atenccedilatildeo na verdade representa uma carecircncia identitaacuteria irresoluta um conflito de autoaceitaccedilatildeo diante dos obstaacuteculos impostos pela existecircncia Entre

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dor e autoengano a senhora Kohut projeta na filha uma realidade para ela sofriacutevel mas negadora e indiferente agraves necessidades da filha

Essa negaccedilatildeo se revela de forma conspiacutecua numa cena grotesca de pseudossexualidade O encontro entre matildee e filha num primeiro momento aparenta ter o formato de uma brincadeira levada um tanto temeraacuteria por passar dos limites Contudo a matildee natildeo tarda em intuir que os gestos da filha tecircm um teor de sentido muito mais abrangente do que assumira inicialmente A despeito dessas intuiccedilotildees ela procura por interpretaccedilotildees alternativas que condigam com sua visatildeo e ordenaccedilatildeo de mundo para evitar um confronto com o indesejado levantando a hipoacutetese de loucura ou embriaguez As incursotildees incessantes da filha a forccedilam natildeo somente a defender-se fisicamente mas tambeacutem e com mais premecircncia a conceber a sexualidade inerente aos gestos Paradoxalmente ao mesmo tempo que o comportamento de Erika a assusta os gestos da filha lhe sugerem que esta deseja sua atenccedilatildeo e seu amor ldquoDe repente se sente desejada Uma das condiccedilotildees fundamentais para o amor eacute sentir-se valorizado porque um outro nos solicita e nos daacute precedecircnciardquo (JELINEK 2011 p 264) No tumulto da aproximaccedilatildeo eroacutetica a matildee se alegra ao constatar que sua filha natildeo dissipa suas emoccedilotildees com homens cujos planos natildeo confluem com seus projetos Esse movimento se revela especialmente importante pois sinaliza o quatildeo imersa a senhora Kohut se encontra em seu mundo autoritaacuterio e egoiacutesta um mundo no qual ela reina e sua filha obedece

A solidez dessa construccedilatildeo de realidade se fragmenta quando Erika passa a utilizar-se do corpo materno como objeto de prazer eroacutetico desconstruindo dessa forma toda a complexa distribuiccedilatildeo de signos ldquoE a carne velha eacute a que mais se cansa Essa carne natildeo eacute considerada como matildee mas simplesmente como carne Erika arranca pedaccedilos da carne da matildee com os dentes Ela beija e beija Beija a matildee como uma selvagemrdquo (JELINEK 2011 p 265) Nessa interaccedilatildeo Erika desconsidera os papeacuteis sociais e as possiacuteveis sanccedilotildees quando de sua inobservacircncia permitindo que seu corpo e suas necessidades tenham prioridade absoluta a despeito dos tabus violados e tatildeo profundamente inscritos em sua interpretaccedilatildeo de realidade Ela busca de forma desesperada e desenfreada a proximidade que lhe fora negada ateacute entatildeo pelas diversas estrateacutegias de vigilacircncia e disciplina que a matildee lhe impusera Para silenciar o corpo e obliterar as palavras irreversivelmente instauradoras de realidade a matildee denomina o inominaacutevel uma ldquonojeirardquo ignominiosa O desprezo e a vergonha implicados nesse movimento pretendem salvar a situaccedilatildeo eliminando da interpretaccedilatildeo de realidade elementos sofisticadamente reprimidos A cena culmina com a visatildeo do inexistente

Por um instante a filha pode observar os pelos pubianos da matildee jaacute ralos e finos que fecham por baixo a gorda barriga materna E isso lhe ofereceu uma vista incomum Ateacute entatildeo a matildee sempre mantinha esses pelos pubianos sob fecho rigoroso Enquanto lutava a filha olhou de propoacutesito para a camisola da matildee para finalmente poder enxergar esses pelos dos quais ela sabia o tempo todo eles tecircm que estar ali Infelizmente a iluminaccedilatildeo era muito deficiente Erika descobriu deliberadamente sua matildee para poder ver tudo tudo mesmo A matildee tentou se defender disso

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Em vatildeo Erika eacute mais forte do que sua matildee jaacute meio exaurida se pensarmos em termos estritamente corporais A filha joga na cara da matildee o que acabou de ver E a matildee permanece em silecircncio para fazer o visto natildeo visto (JELINEK 2011 p 265)

Essa cena revela que existe um tema na casa da famiacutelia Kohut jamais abordado e hermeticamente trancafiado nos calabouccedilos do inconsciente a saber o corpo e suas demandas eroacuteticas Dispositivos indumentaacuterios disciplina vigilacircncia e por fim silecircncio representam diferentes estrateacutegias para calar as entranhas Estas acabam tumultuando a narraccedilatildeo de realidade minuciosamente tecida pela senhora Kohut Elas tambeacutem descentralizam a narraccedilatildeo de amor porquanto demonstram de forma mais incisiva e terminante que as palavras autoritaacuterias da matildee que a negociaccedilatildeo de signos iacutentimos estaacute restrita ao conscientemente sofriacutevel excluindo todo tipo de maacuteculas que natildeo se subordinam agrave imagem desejada Com a identidade fragmentada e a autoaceitaccedilatildeo bastante limitada prefere-se negar a presenccedila do corpo comprometendo desse modo a complexidade da narraccedilatildeo do amor Esta no tocante ao relacionamento entre a matildee e a filha somente existe como instrumento de imposiccedilatildeo ou como maquinaacuterio de repressatildeo impedindo uma tessitura mais complexa que desbrave caminhos desconhecidos

4 Desbravamento de espaccedilos iacutentimos natildeo controlados

Diante desse cenaacuterio no qual a matildee se impotildee ininterruptamente Erika tem de travar uma luta acirrada para conquistar pequenos espaccedilos de intimidade onde possa desenvolver seus anseios e criar redes narrativas libertas dos dispositivos maternos Trata-se de espaccedilos nos quais possa inserir-se sem ser constantemente vigiada e disciplinada tendo a oportunidade de atentar para seus desejos e aceitar suas maacuteculas Com tal espaccedilo em princiacutepio ela delinearia algumas coordenadas essenciais dentre as quais a narraccedilatildeo de amor pudesse medrar Importante salientar que a matildee procura obliterar todos os signos de desejo da mente forccediladamente pura de sua filha dispondo um crivo de percepccedilatildeo que mal permite que esta tenha condiccedilotildees de idear imagens que natildeo tenham passado pelo maquinaacuterio de censura instituiacutedo pela senhora Kohut A presenccedila do corpo alheio no entanto desperta em Erika movimentos que natildeo consegue ordenar tampouco reprimir Assim a presenccedila de seu primo num episoacutedio de sua adolescecircncia lhe indica a existecircncia de experiecircncias que vatildeo aleacutem do condicionamento musical ferrenho arbitrado pela matildee Ao contraacuterio dela o rapaz dispotildee de um corpo fincado na natureza sem embaraccedilos que impeccedilam seu desenvolvimento Quando este inicia uma brincadeira que envolve um contato corporal bastante intenso Erika praticamente fica paralisada perante o desconhecido que se desvela diante de seus olhos Sem desejar e ao mesmo tempo incapaz de reprimir seus impulsos ela toca o sexo de seu primo boquiaberta e arrebatada como se fosse um presente de natal ldquoFoi contra a vontade dela O garotinho natildeo sabe que desencadeou uma avalanche de pedras em sua prima Ela natildeo para de olhar [hellip] Esse instante deve permanecer por favor Eacute tatildeo lindordquo (JELINEK 2011 p 53) As palavras de

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Fausto agraves quais aludem as uacuteltimas frases caracterizam ironicamente a intensidade dessa experiecircncia que transforma a consciecircncia de Erika dado que se apercebe provavelmente pela primeira vez das necessidades de seu corpo Natildeo haacute duacutevidas a utilizaccedilatildeo dessa citaccedilatildeo como em muitas outras situaccedilotildees eacute tambeacutem irocircnica mas natildeo somente Existe um desejo na realidade dessa personagem que ela tragicamente natildeo consegue articular ou natildeo tem o espaccedilo para deixar crescer A ironia no niacutevel estrutural e o ridiacuteculo no niacutevel do conteuacutedo natildeo negam a humanidade e a legitimidade do desejo O que se encena aqui eacute um corpo que natildeo sabe se articular e com essa insuficiecircncia se vecirc arremessado inexoravelmente agrave infelicidade concretizada justamente na ausecircncia de amor Nessa e em muitas das citaccedilotildees subsequentes haacute algo de ciacutenico e traacutegico O cinismo proveacutem de uma voz narrativa que eacute tudo menos imparcial A tragicidade se constitui diante das implicaccedilotildees que essas informaccedilotildees tecircm para a concretizaccedilatildeo existencial da personagem

O conflito pessoal desencadeado por essa experiecircncia reside na impossibilidade de harmonizar o condicionamento materno com as premecircncias corporais que se materializam de forma cada vez mais intensa Desse modo Erika se encontra impossibilitada de criar um espaccedilo no qual natildeo tenha que romper com a matildee nem que impeccedila a presenccedila de uma figura masculina para dar iniacutecio a sua narraccedilatildeo pessoal de amor O resultado desse embate eacute a procura por ambientes nos quais possa neutralizar os movimentos contraditoacuterios que a assolam Logo Erika natildeo tarda em localizar casas eroacuteticas ou melhor sex shops situados nos subuacuterbios de Viena e redutos de elementos embrutecidos para dar reacutedeas soltas agrave sua necessidade de ao menos ver o corpo alheio sem mecanismos de controle Nessa praacutetica de voyeurismo num lugar conspicuamente distante do espaccedilo social no qual constroacutei sua identidade Erika pode confortavelmente manter seu papel social de mulher culta e superior sem precisar assimilar as maacuteculas que poderiam minorar sua superfiacutecie de encenaccedilatildeo O voyeurismo parece representar um acordo num primeiro momento aceitaacutevel e animicamente suportaacutevel harmonizando ateacute certo grau desejos pessoais e ditames maternos No entanto o prazer que ela depreende dessa praacutetica rapidamente se vecirc acossado pelos riscos em que incorre quando abandona as coordenadas socialmente encenaacuteveis Assim ao inveacutes de encontrar um espaccedilo neutralizado ela se defronta com um novo conflito comportando movimentos excludentes mas igualmente prementes para sua realizaccedilatildeo pessoal

Acresce que surgem elementos que fogem de seu domiacutenio Muito embora condicionada a manter tudo sob seu rigoroso controle Erika se apercebe que nesses exerciacutecios de desbravamento do desconhecido despontam sentidos que emergem de seu interior sem passar pela triagem disciplinadora Em analogia a seu primeiro encontro com seu primo a visatildeo do outro nesse espaccedilo obscuro a impele a aproximar-se do corpo alheio desencadeando processos de autoconhecimento

Erika olha atentamente Natildeo para aprender Nada nela se mexe Mas ainda ela eacute obrigada a olhar Para seu proacuteprio prazer Cada vez que ela quer ir embora alguma coisa que vem laacute de cima faz sua cabeccedila bem penteada voltar-se energicamente para a janelinha e ela eacute obrigada a continuar

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olhando O torno sobre o qual a linda mulher estaacute sentada gira em ciacuterculos Erika natildeo tem culpa Simplesmente eacute obrigada a olhar Ele eacute um tabu para si mesma Natildeo pode tocar-se (JELINEK 2011 p 66)

Por um lado seu proacuteprio corpo se rebela natildeo obedecendo agrave ordem social de abandonar o lugar e voltar ao seio daquilo que considera respeitaacutevel o que aponta certa sintonia Por outro lado esse mesmo corpo lhe figura como um objeto tamanhamente estranho que envolto por uma aura do intocaacutevel e impenetraacutevel parece natildeo lhe pertencer Ao evitar o toque Erika perde a oportunidade de conhecer a si mesma e tecer novas filigranas de sentidos esquivando-se por conseguinte de defrontar a complexidade que reside em seu corpo O maquinaacuterio da disciplina estaacute inscrito de tal forma em suas entranhas que natildeo logra romper a redoma que encobre seu corpo

Todo esse episoacutedio em torno do voyeurismo encerra uma seacuterie de implicaccedilotildees para sua narraccedilatildeo de amor Ao procurar um lugar social e pessoalmente distante para satisfazer seus anseios ela evita integrar os signos produzidos nesse contexto em sua narraccedilatildeo de identidade Ou seja haacute tessituras identitaacuterias que satildeo importantes para seu corpo poreacutem impassiacuteveis de serem integradas em sua representaccedilatildeo social A disciplina e a vigilacircncia continuam imperando de forma recocircndita pois suas visitas permanecem anocircnimas e realizadas agraves escondidas O prazer que experimenta na verdade eacute o prazer encenado pelo outro natildeo o seu porquanto o proacuteprio corpo continua intocado Com isso ela se esquiva tambeacutem de um movimento de proximidade no qual dois seres negociam seus signos aceitando maacuteculas e rupturas

O elemento central que impede o iniacutecio de uma narraccedilatildeo de amor reside na autoaceitaccedilatildeo Sem aceitar suas necessidades por motivos externos no mais das vezes socialmente estipulados pela voz autoritaacuteria da matildee Erika se encontra impedida de iniciar uma narraccedilatildeo que inclui a presenccedila do outro pois este automaticamente tem de confrontaacute-la com as contradiccedilotildees que caracterizam sua identidade A dor implicada na resoluccedilatildeo desses conflitos no entanto eacute tamanha que Erika prefere renunciar ao amor a obter clareza acerca dos paradoxos imbricados em seu comportamento

ldquoErika eacute um aparelho compacto em forma humanardquo (JELINEK 2011 p 62) Essa frase usada pela voz narrativa para caracterizar a professora de piano procede em vaacuterios sentidos Ela age como um autocircmato perante os desiacutegnios maternos e se comporta como se seu corpo natildeo tivesse vontades proacuteprias A despeito de frequentar casas eroacuteticas deleitar-se com filmes pornograacuteficos ou perambular pelo famoso parque Prater a altas horas da noite agrave procura de casais copulando seu prazer na verdade permanece sempre superficial e pertencente a outro Dessa forma sua satisfaccedilatildeo resulta quase sempre de uma experiecircncia raacutepida e contingente evitando uma condensaccedilatildeo narrativa com projeccedilotildees para o futuro Tanto a narraccedilatildeo do amor como a da identidade necessitam do futuro como linha temporal imaginaacuteria para desenvolver tessituras duradouras Erika no entanto permanece fincada no agora esquivando-se de projetar ou ao menos imaginar um relacionamento que natildeo tenha o caraacuteter de algo provisoacuterio necessaacuterio mas natildeo propriamente desejado

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5 O amor como aurora do futuro

O fato de optar por relacionamentos contingentes em si natildeo parece ser tatildeo problemaacutetico quanto o fato de natildeo refletir sobre seu comportamento pois isso corrobora mais uma vez que seus atos satildeo frutos de imposiccedilotildees (corporais) natildeo de seu livre-arbiacutetrio Essa ausecircncia de reflexatildeo sobre suas accedilotildees e os sentimentos de culpa que a acompanham em suas incursotildees patenteiam o excesso de dor que se encobre por traacutes do silecircncio Essa mesma dor a forccedila a agir tal qual um autocircmato impossibilitando narraccedilotildees que vatildeo aleacutem das demarcaccedilotildees predispostas Assim quando Klemmer daacute iniacutecio a suas primeiras tentativas de aproximaccedilatildeo Erika reage com um profundo mal-estar

Erika sente-se cada vez mais repelida Ela gostaria que ele jaacute tivesse ido embora Ele que leve a matildeo dele consigo Fora Ele se tornou um terriacutevel desafio da vida pra ela Erika e ela soacute costuma aceitar os desafios da interpretaccedilatildeo fiel Por fim eles avistam a parada do bonde A cobertura de fibra de vidro iluminada com um banquinho embaixo eacute tranquilizadora [hellip] Erika estaacute aterrorizada Ela quer que essa aproximaccedilatildeo acabe de uma vez por todas e que esse supliacutecio termine O bonde estaacute chegando Logo ela vai conversar com a matildee sobre o que se passou quando Herr Klemmer jaacute estiver longe Primeiro ele tem quer ir embora Depois ele vai se tornar assunto da conversa Natildeo vai incomodar mais do que passar uma pena na pele (JELINEK 2011 p 94)

Esse mal-estar resulta em primeiro lugar dos signos com os quais Erika se vecirc confrontada e que na verdade deseja reprimir A presenccedila de um homem interessado nela como mulher no espaccedilo social no qual circula e em que encena sua identidade a forccedila a rever sua narraccedilatildeo pessoal1 O confronto por conseguinte requer a revisatildeo de determinadas tessituras especialmente no tocante ao corpo o que evitava em suas escapadelas anocircnimas O testemunho de outras pessoas a impede de negar os acontecimentos e suprimi-los de sua autorrepresentaccedilatildeo logo a instauraccedilatildeo de sentidos que irradiam desse encontro a desconcertam imensamente Contudo o que transforma o encontro num supliacutecio aterrorizando-a de modo a desejar o sumiccedilo imediato desse homem reside no conflito interior que a avassala Assim o desejo ndash inarticulado e impassiacutevel de materializaccedilatildeo perante o maquinaacuterio de vigilacircncia implantado pela matildee ndash de aventurar-se pelos meandros de uma narraccedilatildeo pessoal que permita a presenccedila de uma figura masculina se contrapotildee ao conforto e agrave harmonia meticulosamente estabelecidos

1 O problema seria bem mais simples se ambos Erika e Klemmer fossem duas carnes coisificadas agrave procura do equiliacutebrio libidinal numa troca capitalista e anti-humana de mercadorias ou bem mais simples numa animalizaccedilatildeo que exclui repercussotildees identitaacuterias O conflito reside justamente no desejo por amor que a personagem Erika indica em seu comportamento mas do qual natildeo consegue dar conta Inscrito nesse desejo encontra-se o anseio por um humanismo que na realidade se revela incapaz de conciliar as demandas do corpo e as necessidades da identidade humana mas que nem por isso deixa de existir

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pela matriarca O choque entre essas duas possibilidades de conformaccedilatildeo de realidade a imobiliza especialmente pela necessidade de uma tomada de decisatildeo

O segundo aspecto que produz seu mal-estar ndash atrelado tambeacutem ao processo de deliberaccedilatildeo ndash proveacutem de uma possiacutevel projeccedilatildeo de futuro Com as incursotildees de Klemmer o futuro se impotildee de forma demasiado intensa porquanto entreabre outras possibilidades de narraccedilatildeo pessoal Se no primeiro movimento o conflito residia na produccedilatildeo imediata de signos instaurados por novas visotildees do si no segundo esses signos surgem como possiacuteveis figuraccedilotildees do futuro O agora retrocede para permitir que o devir adentre o primeiro plano Com isso outros elementos se tornam relevantes especialmente no que concerne agrave narraccedilatildeo de amor e de identidade Os elementos circunstanciais como a parada do bonde ou a conversa posterior com a matildee enfatizam o conforto que experimenta com rituais estabelecidos e previsiacuteveis Isso vale igualmente para a imagem da interpretaccedilatildeo fiel das obras pois tambeacutem nesse exerciacutecio as coordenadas dos processos cognitivos estatildeo predispostas demandando do sujeito somente que se atenha aos caminhos inscritos na obra Ateacute mesmo seu desprezo inicial indicando seu desejo que Klemmer se distancie nada mais representa que um ritual bem delineado a fim de impedir que o desconhecido irrompa no agora A sensaccedilatildeo posterior ndash uma pena deslizando pela pele ndash representa a uacutenica espoacutertula destinada ao corpo de forma comedida e jaacute domesticada A imaginaccedilatildeo do futuro pois implica para Erika um desafio existencial que naquele momento ainda lhe figura como insuportaacutevel pois lhe exige que revise sua construccedilatildeo de identidade e que permita a presenccedila da alteridade para iniciar uma narraccedilatildeo de amor

Klemmer no entanto obstina-se em conquistar sua atenccedilatildeo e para tanto estaacute disposto a investir toda sua energia a fim de romper as barreiras construiacutedas pela professora de piano Enquanto Erika se mostra inquieta perante suas incursotildees desejando nada mais intensamente que retornar ao conforto ritualmente demarcado pelo som do aparelho televiso Klemmer procura desconcertaacute-la com o fito de aperfeiccediloar suas teacutecnicas de seduccedilatildeo Para Klemmer Erika se reduz a um objeto de estudo interessante mas definitivamente passageiro para Erika o aluno se transforma ndash a despeito de seu medo de admitir seus desejos para si mesma ndash numa possibilidade de futuro Logo o tempo volta a perpassar sua narraccedilatildeo indicando sua importacircncia para a concepccedilatildeo de identidade e amor O interesse do aluno desencadeia um processo no qual Erika comeccedila a imaginar linhas alternativas de futuro inserindo nelas narraccedilotildees que preveem a presenccedila de uma figura masculina e a afirmaccedilatildeo de seu corpo

A decadecircncia de Erika bate agrave porta com dedos aacutegeis Doenccedilas mal definidas perturbaccedilotildees vasculares nas pernas ataques de reumatismo inflamaccedilotildees nas juntas alastram-se nela (Doenccedilas como essas satildeo poucas vezes conhecidas pelas crianccedilas E Erika tambeacutem natildeo as conhecia ateacute entatildeo) Klemmer que parece um folheto de propaganda do saudaacutevel esporte da canoagem mede sua professora como se quisesse mandar embrulhaacute-la imediatamente e levaacute-la ou comecirc-la ali mesmo de peacute na loja Talvez esse seja o uacuteltimo a me desejar pensa Erika enfurecida e logo eu estarei morta com apenas trinta e cinco

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anos pensa com raiva Eacute melhor embarcar logo nessa porque depois que eu morrer natildeo vou ouvir cheirar nem sentir o gosto de mais nada (JELINEK 2011 p 132)

A passagem do tempo e suas marcas indeleacuteveis nos signos do corpo a impelem a percepccedilotildees que antes evitara Com a deterioraccedilatildeo do corpo suas chances de satisfazer suas necessidades fiacutesicas se tornam cada vez menores Diante desse cenaacuterio a visatildeo do jovem que a deseja lhe figura como uacuteltima chance natildeo somente quanto a uma possiacutevel narraccedilatildeo de amor mas sobretudo no que concerne a uma construccedilatildeo alternativa de futuro Essa imaginaccedilatildeo contudo tem seu iniacutecio com uma contraposiccedilatildeo muito intensa do capital fiacutesico que os dois provaacuteveis parceiros ostentam Erika por um lado apresenta um corpo em princiacutepio de ldquoruiacutenardquo enquanto Klemmer na flor da idade pode jactar-se de elasticidade e vigor Essa contraposiccedilatildeo estaacute igualmente inscrita no movimento de percepccedilatildeo Erika transcreve o desejo corporal em imagens socialmente inocentes ndash o lanche para o gaacuteudio dos sentidos natildeo deseja consumir entre as quatro paredes mas no cafeacute tamanha a fome ndash enquanto a percepccedilatildeo de Klemmer recai sobre o imediatismo juvenil que natildeo suporta a delonga tampouco considera o momento apoacutes a satisfaccedilatildeo Erika se encontra imersa numa interpretaccedilatildeo de realidade imbuiacuteda de esperanccedila logo natildeo se daacute conta da incongruecircncia que tal relacionamento traz consigo e da impossibilidade da construccedilatildeo de uma narrativa de amor que transcenda o momento

Embora Klemmer natildeo poupe esforccedilos para conquistar a confianccedila da professora suas tentativas de aproximaccedilatildeo natildeo passam de exerciacutecios com o objetivo de comprovar sua destreza e capacidade de manipulaccedilatildeo Assim a imperfeiccedilatildeo da mulher a torna desejaacutevel por franquear-lhe caminhos aos quais natildeo teria acesso se Erika ostentasse uma beleza que o desconcertasse A percepccedilatildeo detalhada do corpo da professora incluindo a identificaccedilatildeo de maacuteculas que minoram seu capital fiacutesico por conseguinte natildeo representa aceitaccedilatildeo do outro em sua integridade senatildeo um mecanismo que impotildee ao outro sua inferioridade Desse modo Klemmer lanccedila matildeo de um aparato por meio do qual pretende vigiar e sobretudo disciplinar Erika Sua juventude e beleza fiacutesica servem de instrumento para legitimar a distribuiccedilatildeo de poder ao mesmo tempo que forccedilam o corpo da professora a curvar-se diante da chance que o aluno supostamente representa Ciente dessa discrepacircncia e de possiacuteveis implicaccedilotildees favoraacuteveis para seus interesses Klemmer se engaja para alcanccedilar seus objetivos

O projeto de identidade de Klemmer natildeo prevecirc a presenccedila de Erika numa escala de tempo mais prolongada jaacute que a paixatildeo que reclama e encena natildeo passa da categoria de objeto Com a coisificaccedilatildeo de Erika a narraccedilatildeo de amor se transforma em narraccedilatildeo de jogo no qual a competitividade se patenteia como algo elementar Klemmer admitidamente natildeo tem predileccedilatildeo por derrotas logo o tempo de jogo que se dispocircs para vencer o adversaacuterio segue padrotildees racionalizados usando toda sorte de teacutecnicas para desconcertar Erika e fazecirc-la curvar-se a seus desejos Nisso ele natildeo divisa a pessoa com suas narraccedilotildees pessoais e projetos de futuro mas somente uma superfiacutecie de projeccedilatildeo cuja funcionalidade natildeo hesita em reduzir para servir-lhe de objeto de prazer e diversatildeo

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Ao contraacuterio dele Erika sim comeccedila a divagar imaginando possibilidades de futuro comum ldquoMecanicamente Erika executa a parte do piano bastante simples Seus pensamentos se dirigem para longe para uma viagem de estudos de piano em companhia de aluno Klemmer Soacute ela ele um quartinho de hotel e o amorrdquo (JELINEK 2011 p 183) Os sonhos em meio a sua encenaccedilatildeo social e profissional imediatamente se rompem perante as lembranccedilas impositivas da matildee mas representam exerciacutecios narrativos soacutelidos que desenvolvem alternativas Embora o tom irocircnico inerente agraves imagens um tanto piegas seja gritante ele encobre um projeto de identidade e de amor em forma de esperanccedila Mais tarde Erika ateacute mesmo se imagina como noiva numa cena em que harmoniza todos os antagonismos O grau de seriedade que Erika atribui a esses projetos se evidencia no momento em que pretende revelar a Klemmer seus verdadeiros desejos confiando cega e plenamente no amor de seu aluno

Renuncia agrave sua proacutepria vontade Essa vontade que ateacute aqui foi sempre propriedade da matildee agora eacute passada para Walter Klemmer como numa corrida de revezamento com bastatildeo Ela se inclina para traacutes e espera para ver o que seraacute decidido a seu respeito Abre matildeo de sua liberdade mas impotildee uma condiccedilatildeo Erika Kohut usa seu amor para que esse jovem se torne seu senhor Quanto mais poder ele tiver sobre ela mais ele se tornaraacute uma criatura agrave disposiccedilatildeo das vontades de Erika Klemmer seraacute escravizado por ela por exemplo se eles forem juntos a Ramsau para passear pelas montanhas E ao mesmo tempo ele vai imaginar que eacute o senhor de Erika Eacute para isso que Erika vai usar seu amor (JELINEK 2011 p 234)

Desejosa de transformar a imaginaccedilatildeo de seu futuro Erika adota um movimento duplo Por um lado ela aparentemente estaacute disposta a obliterar seu projeto de identidade para conformar-se plenamente aos desejos de Klemmer substituindo a matildee como fonte de signos e interpretaccedilotildees de realidade Por outro lado ela natildeo abdica de sua autonomia ao utilizar-se do discurso de submissatildeo como instrumento para alcanccedilar seus objetivos pessoais Esse comportamento contraditoacuterio acaba desconcertando Klemmer que natildeo espera outro tipo de accedilatildeo senatildeo sua completa submissatildeo Quando Erika lhe entrega a carta em que descreve com minuacutecias seus desejos eroacuteticos Klemmer se vecirc confrontado com uma mulher que estaacute longe de ser o objeto de seu prazer egoiacutesta e tirano Ao contraacuterio Erika mostra que possui uma visatildeo muito clara e concreta daquilo que deseja e necessita Com isso a encenaccedilatildeo de identidade machista autoritaacuteria e condescendente de Klemmer sofre uma fragmentaccedilatildeo que abala completamente seu autoentendimento Desconcertado o aluno natildeo sabe como reagir desacreditando da seriedade daquilo que a carta sugere Ele precisa imputar infantilidade aos atos da professora a fim de proteger sua identidade paternalista Seu grau de perturbaccedilatildeo fica ainda mais evidente quando mais tarde incapaz de uma ereccedilatildeo se encontra diante de Erika disposta a satisfazer seus desejos Para salvar sua imagem ele natildeo hesita em ferir a dignidade de Erika assegurando dessa forma sua superioridade pois natildeo logra

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encenar o ldquomacho desvairadordquo para o qual o corpo da mulher natildeo passa de um objeto de prazer a seu dispor

As cenas que seguem a revelaccedilatildeo dos desejos de Erika narram em grande parte o complexo processo de reestruturaccedilatildeo de identidade no qual Klemmer se vecirc inesperadamente arremessado Assim seu passeio pelo parque com a cena grotesca em que tenta assassinar os flamingos quando se masturba em frente agrave casa da famiacutelia Kohut ou por fim quando utilizando-se de violecircncia se apodera do corpo de Erika violentando-a para aparentemente satisfazer os desejos desta Klemmer na verdade estaacute tentando dar conta da realidade Essa realidade desfaz sua narraccedilatildeo de identidade paternalista e machista forccedilando-o a perceber a complexidade da mulher que o confronta com seus anseios Ele tem de reconstruir sua imagem com signos indesejados e rever sua narraccedilatildeo haja vista que esta se vecirc indubitavelmente questionada pelo comportamento de Erika Para Klemmer Erika se limita a uma superfiacutecie sem narraccedilotildees proacuteprias para a projeccedilatildeo de seus desejos portanto um instrumento de consumo raacutepido e temporalmente limitado

Para Erika o relacionamento com Klemmer tem conotaccedilotildees completamente diferentes Embora ela tambeacutem alimente desejos de instrumentalizaacute-lo para seus fins o grau de seriedade que aplica a essa empresa eacute muito maior Ao aproximar-se de Klemmer Erika precisa esquivar-se do maquinaacuterio disciplinador e vigilante da matildee e refazer seu projeto de identidade em diversos aspectos comeccedilando por sua encenaccedilatildeo social que incluiria a presenccedila do aluno em sua narraccedilatildeo passando por uma linha divisoacuteria no seu relacionamento com a matildee e terminando com uma nova percepccedilatildeo de seu corpo Erika enumera seus desejos e expotildee suas maacuteculas sem reservas evidenciando portanto que estaacute disposta a construir um espaccedilo iacutentimo proacuteprio Ao descobrir que a narraccedilatildeo de amor de Klemmer natildeo passa de um discurso sem conteuacutedo sua imaginaccedilatildeo de futuro desvanece desta vez de modo inexoraacutevel especialmente perante o dispecircndio de energia destinado a esse projeto Seu desejo de mataacute-lo a facadas representa uma tentativa de salvar desta vez sua dignidade pessoal e sua configuraccedilatildeo teleoloacutegica A decisatildeo de ferir-se a si mesma por fim revela seu desejo de aniquilar sua identidade uma vez que somente a obliteraccedilatildeo completa dos signos pode minorar a dor que experimenta diante da indiferenccedila que a circunda Embora doloroso o momento encerra para Erika uma grande chance de expansatildeo de sua complexidade aniacutemica se ela optasse por desvencilhar-se do cordatildeo sufocante que a prende a sua matildee e se estivesse disposta a suportar de forma independente todas as dimensotildees do sofrimento que a avassalam naquele momento Erika no entanto retorna para casa a fim de buscar o conforto materno conhecido A professora de piano desenvolve tessituras que poderiam materializar uma narraccedilatildeo de amor essa tessitura no entanto se revela demasiado fraacutegil para resultar em algo concreto duradouro e projetado com uma perspectiva de futuro Tragicamente sua narraccedilatildeo pessoal se caracteriza pela conspiacutecua ausecircncia de amor

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6 Consideraccedilotildees finais

A representaccedilatildeo do amor mostra como as figuras se apropriam de diferentes discursos para encenarem aquilo que consideram corresponder ao sentimento de amor Este serve de chave para uma seacuterie de representaccedilotildees que de fato estatildeo muito distantes do fenocircmeno do amor compreendido como narraccedilatildeo densa compartilhada por duas pessoas e projetado numa linha de futuro comum Os diversos conflitos internos que atribulam a estabilidade aniacutemica das personagens as impelem a procurar no invoacutelucro ldquoamorrdquo um caminho para dar conta do excesso ou ao menos representar aquilo que natildeo desejam processar conscientemente

A narraccedilatildeo do amor se revela parcial e tributaacuteria de outras motivaccedilotildees Assim a senhora Kohut matildee da professora de piano encena-se de acordo com expectativas sociais incorporando o papel da matildee preocupada aflita e protetora para desse modo apropriar-se e controlar a vida iacutentima de sua filha O amor se patenteia como instrumento de uma visatildeo autoritaacuteria que natildeo tolera questionamentos Para potencializar sua eficaacutecia ela natildeo hesita em utilizar-se da culpa como estrateacutegia discursiva para dominar e domesticar o corpo da filha Por traacutes dessa narraccedilatildeo impositiva encobre-se a incapacidade de construir uma identidade pessoal autocircnoma e independente da subserviecircncia filial Incapaz de processar conscientemente seus proacuteprios anseios carnais a matildee exige da filha que tambeacutem ela reprima todo indiacutecio do indiziacutevel O amor materno eacute uma narraccedilatildeo fracassada fruto da incapacidade de suportar a dor de suas proacuteprias insuficiecircncias

Socializada dessa forma Erika aprende bem cedo a negar as necessidades do corpo excluindo-o de sua autorrepresentaccedilatildeo o que para a criaccedilatildeo de um espaccedilo iacutentimo se revela como enorme barreira As premecircncias do corpo contudo natildeo se calam de forma que Erika se vecirc forccedilada a procurar espaccedilos em que possa libertar-se do controle materno para apaziguar as demandas corporais Esse espaccedilo ela o encontra em estabelecimentos eroacuteticos situados nos subuacuterbios de Viena Longe do acircmbito em que normalmente circula e se encena socialmente ela pode ver o corpo alheio deleitando-se com prazeres eroacuteticos sem a necessidade de integrar esses signos em sua identidade Suas escapadelas no entanto natildeo a ajudam a conhecer seu proacuteprio corpo nem a construir relacionamentos estaacuteveis Pelo contraacuterio as experiecircncias contingentes completamente desligadas de sua realidade social impedem uma projeccedilatildeo no futuro obstruindo a criaccedilatildeo de uma base soacutelida para o surgimento do amor

Com o interesse repentino de seu aluno Klemmer o amor comeccedila a concretizar-se em sua interpretaccedilatildeo de realidade Afeita a rituais a professora se intimida com a alteridade do amor que desponta inesperadamente A despeito de seus medos e suas insuficiecircncias Erika se mostra disposta a rever sua narraccedilatildeo e incluir o amor em suas redes significativas Para isso mostra e admite suas fraquezas dispondo-se a incluir o aluno em sua narraccedilatildeo de identidade desligar-se dos jugos maternos e aceitar a alteridade do corpo A falta de seriedade por parte de Klemmer contudo natildeo permite que o amor medre deixando para traacutes uma mulher ainda mais fragmentada

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Para Klemmer Erika se limita a um objeto de estudo com o qual pretende aprimorar suas habilidades amorosas A percepccedilatildeo das fraquezas da mulher que o defronta natildeo serve como base para construccedilatildeo de um projeto comum embasado na confianccedila mas como instrumento do qual se utiliza para impor seus caprichos Ao coisificaacute-la ele elide sua identidade e ignora a dignidade da professora Quando se apercebe que ela tem seus desejos proacuteprios e um grau de reflexatildeo e autodomiacutenio muito maior que o esperado Klemmer vecirc sua encenaccedilatildeo de identidade em risco uma vez que jaacute natildeo pode mais se representar como o macho possuidor Diante desse perigo ele a abandona natildeo sem antes mostrar que o amor que supostamente sentia natildeo passava de um instrumento para enredaacute-la Nos trecircs casos o amor constantemente invocado se revela com narraccedilatildeo insuficiente e demasiado vaacutecua

O que essas diferentes narrativas de amor tecircm em comum eacute um caraacuteter polifocircnico Nisso o amor em si como foi definido no iniacutecio deste artigo apresenta uma natureza plural em que vaacuterias fontes de sentido se manifestam formando um grupo de vozes a ser enfeixado de modo subjetivamente harmocircnico Ao mesmo tempo o amor que de fato se concretiza no romance analisado se revela polifocircnico pois natildeo haacute confluecircncia de interesses mas sim uma instrumentalizaccedilatildeo da narrativa do amor para outros fins Isto eacute a voz que se materializa por meio do discurso do amor na verdade persegue um objetivo diferente daquele articulado superficialmente O que resta satildeo personagens fracassadas e incapazes de amar

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Recebido em 22102017

Aceito em 17112017

Dionei Mathias

Doutor em Letras pela Universidade de Hamburgo (Alemanha) e pela Universidade Federal do Paranaacute (UFPR) Professor do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade Federal de Santa Maria ndash RS dioneimathiasgmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Marcel ProustHonoreacute de Balzac a Meacutelange de uma Narratividade

Marcel Proust Honoreacute de Balzac the Meacutelange of Narrativity

Marcel ProustHonoreacute de Balzac la Meacutelange de una Narratividad

Aguinaldo Joseacute GonccedilalvesUniversidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Goiaacutes

Resumo

Ao nos propormos a apresentar este artigo elegemos como tema as relaccedilotildees entre criacutetica e invenccedilatildeo A metodologia consiste em abordagem comparativa entre o pensamento criacutetico de Marcel Proust e o meacutetodo biograacutefico de Sainte-Beuve com implicaccedilotildees sobre procedimentos inventivos de Honoreacute de Balzac e Gustave Flaubert O objetivo eacute mostrar o modo como Marcel Proust constroacutei seu pensamento criacutetico e ao criticar os equiacutevocos de Sainte-Beuve acaba questionando o modo referencial de Balzac e a construccedilatildeo da literariedade em Flaubert O resultado da anaacutelise mostra a profundidade literaacuteria e ensaiacutestica de Proust contribuindo para a compreensatildeo da literatura e das artes Palavras-chave Balzac Proust Sainte-Beuve

Abstract

By proposing this present article we chose as its theme the relationship between criticism and invention The methodology consists of a comparative approach between Marcel Proustrsquos critical thinking and the Sainte-Beuversquos biographical method with implications on Honoreacute de Balzacrsquos and Gustave Flaubertrsquos inventive procedures The goal is to show how Marcel Proust builds his critical thinking and by criticizing Sainte-Beuversquos he ends up questioning Balzacrsquos referential mode and the construction of literariness in Flaubert The result shows the depth of Proustrsquos literature and essays contributing to the understanding of literature and artsKeywords Balzac Proust Sainte-Beuve

Resumen

El objeto de este artiacuteculo son las relaciones entre criacutetica e invencioacuten La metodologiacutea consiste en un enfoque comparativo entre el pensamiento criacutetico de Marcel Proust y el meacutetodo biograacutefico de Sainte-Beuve con implicaciones sobre procedimientos inventivos de Honoreacute de Balzac y Gustave Flaubert El objetivo es mostrar el modo como Proust construye su pensamiento

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criacutetico y al criticar las posiciones de Sainte-Beuve cuestiona el apego referencial de Balzac y la construccioacuten de la literariedad en Flaubert El resultado del anaacutelisis muestra la profundidad literaria y ensayiacutestica de Proust contribuyendo a la comprensioacuten de la literatura y de las artesPalabras clave Balzac Proust Sainte-Beuve

1 Introduccedilatildeo

Este artigo tem como proposiccedilatildeo acompanhar o movimento do pensamento do escritor francecircs Marcel Proust (1871-1922) no primeiro dececircnio do seacuteculo XX poucos anos de iniciar a escritura da grande obra Em Busca do Tempo Perdido (1908-1909 a 1922) Foi nesse periacuteodo que o escritor se investiu de coragem e competecircncia criacutetica para escrever a obra Contre Sainte-Beuve (1988) posicionando-se a respeito do meacutetodo de uma criacutetica biograacutefica Ao realizar esse trabalho Marcel Proust elenca grandes autores mdash Nerval Baudelaire Balzac e Flaubert mdash que teriam sido criticados e algumas vezes desdenhados ou diminuiacutedos por Sainte-Beuve (1804-1869) Mediante a incocircmoda posiccedilatildeo de Marcel Proust em razatildeo daquilo que considera equiacutevocos de Sainte-Beuve desenvolveu-se uma leitura por meio da qual se instaura um procedimento comparativo entre os dois de um lado a criacutetica sustentada na relaccedilatildeo entre o autor sua vida seus haacutebitos e sua obra por outro lado uma criacutetica em favor dos procedimentos intriacutensecos agrave obra Entretanto ao focalizar as questotildees levantadas por Sainte-Beuve sobre Honoreacute de Balzac e Gustave Flaubert Proust (1899 p 131-8) estabelece uma outra abordagem comparativa agora independente da criacutetica de Sainte-Beuve qual seja analisar os estilos dos dois autores deitando luz sobre aspectos decisivos no processo de realizaccedilatildeo literaacuteria Dentre eles a relaccedilatildeo entre literatura e realidade nuanccedilas de estilo que segundo Proust fazem a diferenccedila entre a literatura meramente formadora de quadros de eacutepoca e aquela que transcende a referencialidade exatamente por transformar tais quadros em signos plurais que determinam o discurso artiacutestico Por isso esperamos o maacuteximo de clareza na realizaccedilatildeo deste artigo mas natildeo a esperada clareza das questotildees discutidas Muitas vezes elas ficam num entrecruzar entre sombra e luz outras vezes nem isso temos quando a noite se fecha e precisamos esperar o dia seguinte para clarear as imagens Diante disso devemos ressaltar a relevacircncia do meacutetodo comparativo como forma de melhor elucidar o pensamento criacutetico que por consequecircncia mais nos aproxima da literatura

2 Proust precursor de Balzac e de Flaubert

Se os movimentos do pensamento criacutetico e inventivo da poesia do seacuteculo XIX criaram uma verdadeira saga de vivificaccedilatildeo do poeacutetico e das transmutaccedilotildees de linguagem atingindo o apogeu com o Simbolismo francecircs sobretudo com Baudelaire Mallarmeacute Rimbaud e Valeacutery (este atingindo seu auge jaacute no seacuteculo XX) menos intenso natildeo foi o movimento que se desenvolveu com a narrativa Entretanto com este gecircnero os obstaacuteculos se impuseram com maior intransigecircncia Como assinalamos na introduccedilatildeo a proposiccedilatildeo criacutetica deste artigo analisa o movimento que se instaura

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entre o pensamento criacutetico-inventivo do escritor francecircs Marcel Proust (1871-1922) seu estilo seus fundamentos e sua visatildeo sobre a obra do criador de A Comeacutedia Humana (18341) Honoreacute de Balzac (1799-1850)

O texto trilharaacute pelos negaceios do leitor Marcel Proust em relaccedilatildeo agrave sua criacutetica ao meacutetodo de Sainte-Beuve O delineamento deste artigo portanto caminha pelos meandros das narratividades de dois nomes da literatura mundial e em especial da literatura francesa Na verdade o que se daacute no ritmo ondulante de Marcel Proust eacute um exerciacutecio criacutetico instigante para o estudo das artes e da Literatura por meio seja de suas consideraccedilotildees mais transparentes sobre o (natildeo) estilo de Balzac seja pela forma com que Proust se vale dos ingredientes existentes na obra daquele autor para fermentar e edificar sua obra principal A obra literaacuteria de um autor considerado iacutentegro nas partes constitutivas de seu discurso denuncia uma espeacutecie de harmonia entre os ingredientes da execuccedilatildeo no conjunto de sua produccedilatildeo que depois de composta se torna um corpo fechado no qual reside certa incorporeidade impossiacutevel de ser desconstruiacuteda

A obra que temos na mira do pensamento eacute a do escritor francecircs Marcel Proust assim como os desdobramentos expressivos de sua poeacutetica A narrativa proustiana eacute composta de mais de trecircs mil paacuteginas que se sequenciam como um moto perpeacutetuo constituiacutedo de sete partes cada uma formando um volume com um tiacutetulo distinto mas que se amalgama num soacute corpo denominado Em Busca do Tempo Perdido Para Proust o ponto nevraacutelgico para a reflexatildeo sobre literatura sempre foi o estilo

Entretanto naquele momento histoacuterico o processo de discussatildeo de estilo ao pensar o processo inventivo de qualquer escritor passava obrigatoriamente pelas marcas criacuteticas de uma figura social e literaacuteria no mundo da criaccedilatildeo e no mundo da criacutetica que acabou se impondo com todas as forccedilas no pensamento intelectual de meados do seacuteculo XIX Trata-se de Charles Augustin Sainte-Beuve (1804-1869) Como escritor ele realizou uma obra muito extensa atuando em vaacuterios gecircneros como a poesia e a narrativa Entretanto seu trabalho artiacutestico natildeo conseguiu o sucesso almejado ao contraacuterio foi renegado e desconsiderado como obra O meacutetodo criacutetico de Sainte-Beuve quer se impor tomando por princiacutepio o fato de que a obra de um escritor seria primeiramente todo um reflexo de sua vida e se poderia explicar por ela este meacutetodo se estabelece sobre a busca do intento poeacutetico do autor (intencionalismo) e sobre suas qualidades pessoais (biografismo)

A criacutetica biograacutefica foi assim instituiacuteda e influenciou sobremaneira a produccedilatildeo literaacuteria da segunda metade do seacuteculo XIX especialmente na Franccedila O curioso eacute que mesmo com a morte desse pensador em 1869 seus fundamentos criacuteticos se mantiveram inexoraacuteveis e com intensificada interferecircncia no pensamento inventivo de escritores que nasceram apoacutes este momento Depois de tantos anos agrave mercecirc desse tipo de pensamento criacutetico tomado como base por alguns escritores famosos que alimentaram essas turvas noccedilotildees sobre invenccedilatildeo e criacutetica literaacuteria tais como Vitor Hugo e outros ldquoaliadosrdquo do autoritarismo de Sainte-

1 Refiro-me ao ano em que Balzac teria encontrado o tiacutetulo definitivo para o conjunto drsquoA Comeacutedia Humana

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Beuve iniciaram-se as manifestaccedilotildees desfavoraacuteveis a esse ideal criacutetico Mediante a vigorosa e ateacute violenta posiccedilatildeo do biografismo criacutetico com sombras de influecircncia do Positivismo e do Determinismo as raiacutezes jaacute estavam se alastrando por todos os lados e deitando influecircncia nas manifestaccedilotildees artiacutesticas quiccedilaacute sobre um certo Realismo e com certeza sobre o Naturalismo Para iniciar um combate a Sainte-Beuve as forccedilas criacuteticas tinham de possuir uma natildeo apenas contraacuteria mas operante e inteligente forma de reaccedilatildeo E ela se iniciaria com Marcel Proust o qual mesmo bastante jovem apresentava uma arguta consciecircncia intelectual e de seus atos Com seu ensaio Contre-Sainte-Beuve (1988) foi o primeiro a contestar a visatildeo criacutetica desse

Aleacutem de Marcel Proust a Escola Formalista Russa bem como os criacuteticos Robert Curtius e Leo Sptizer com seus projetos teoacutericos advindos da Filologia e da Estiliacutestica (CURTIUS 1923 SPITZER 1955) deram continuidade aos fundamentos voltados para o texto opondo-se aos ditames do Biografismo Apesar de toda a reaccedilatildeo dessas linhas determinantes do juiacutezo criacutetico sobre a literatura e sua realidade textual de quando em quando a tendecircncia ao biografismo volta sorrateiramente

De extensa obra criacutetica poucos trabalhos de Sainte-Beuve parecem ter contribuiacutedo para os estudos culturais franceses Dentre eles destacam-se seus estudos sobre Chateaubriand (1996) O que ficou como registro criacutetico a respeito de Sainte-Beuve foi sua visatildeo equivocada sobre os autores e as obras que analisava e avaliava Como criacutetico elevou os mediacuteocres que se perderam nos desvatildeos dos estudos literaacuterios e diminuiu os melhores chegando a desdenhar alguns deles Sua obra criacutetica reunida e publicada num periacuteodo de trinta anos (1851-1881) denominada Causeries du lundi [Conversas de segunda-feira] (1953) reuacutene por volta de dezesseis tiacutetulos sendo que cada tiacutetulo apresenta muitos volumes Eacute necessaacuterio reabilitaacute-lo aqui para que se compreendam determinados passos da evoluccedilatildeo da criacutetica europeia e por que natildeo mundial sobretudo se temos Marcel Proust como nosso guia nesse percurso histoacuterico-esteacutetico O modo como o escritor francecircs leu Sainte-Beuve e sua criacutetica biograacutefica eacute fundamental para que passemos a compreender a maneira como Honoreacute de Balzac se insere nesse painel

3 Nas malhas da criacutetica inventiva ou do ensaio ficcional de Marcel Proust

A obra Em Busca do Tempo Perdido foi resultado de intensivo movimento criacutetico incluindo obras de seus contemporacircneos e da tradiccedilatildeo realizando exerciacutecios ficcionais e criacuteticos crocircnicas e pastiches preacutevios treinamentos romanescos (como Jean Santeuil (1982) e outros procedimentos que pudessem contribuir na construccedilatildeo de sua epopeia liacuterica

Como jaacute assinalei metaforicamente em produccedilatildeo anterior2 se Jean Santeuil representa a larva na evoluccedilatildeo da futura borboleta a obra criacutetica Contre Sainte-Beuve eacute a crisaacutelida (ou

2 Trata-se da apresentaccedilatildeo ao livro Contre Sainte-Beuve intitulada ldquoO processo holometaboacutelico de Marcel Proustrdquo (GONCcedilALVES 1988)

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casulo) Colocando-lhe lentes de aumento o que se nota eacute um texto anfiacutebio de representaccedilatildeo capital no processo evolutivo do estilo de Proust Esta obra funciona como anaacutefora e como cataacutefora no processo inventivo desse artista O movimento anafoacuterico se daacute natildeo soacute agrave criacutetica de Sainte-Beuve mas agrave de Taine e de outros que dominaram o tom criacutetico do seacuteculo XIX Quanto ao movimento catafoacuterico este sim regeu o procedimento propriamente inovador de Proust e representa a sua imersatildeo no fluxo da linguagem e do pensamento em busca de uma realizaccedilatildeo criadora A nossa atenccedilatildeo deve recair sobre a preposiccedilatildeo contre e avaliaacute-la dentro de paracircmetros cautelosos Ela atua como vaacutelvula e como reaccedilatildeo Se por um lado significa o incocircmodo por outro representa impulsatildeo Assim este quase-ensaio ou este exerciacutecio-anfiacutebio deixa de possuir o sentido linear do ldquocontrardquo para significar uma praacutetica ldquoa favorrdquo da arte literaacuteria de Proust Eacute assim que a amplitude desta criaccedilatildeo-reaccedilatildeo eacute muito grande se analisarmos a sua importacircncia no painel criacutetico ou no seu duplo movimento o que eacute a arte e o que eacute a criacutetica

Manifestando-se no conjunto de sua produccedilatildeo literaacuteria a resposta de Proust agrave criacutetica do seacuteculo XIX adquire em certos momentos uma natureza quase didaacutetica Numa das passagens de Jean Santeuil a criacutetica do retrato literaacuterio de caraacuteter biograacutefico defendido por Sainte-Beuve assume dimensatildeo irocircnica na pena de Proust Trata-se da parte IV capiacutetulo I em que Jean conhece o ldquogenial escritorrdquo Traves ao passar alguns dias em Reacuteveillon Depois de atentar para a presenccedila de Traves de extrair elementos de sua personalidade apoacutes conversar com ele e recolher aspectos de sua vida Jean percebe que tudo isso ou nada disso conseguia explicar ou prolongar o estranho fasciacutenio o mundo uacutenico para aonde ele Traves transportava-nos desde as primeiras paacuteginas de um de seus livros e no qual sem duacutevida vivia quando ele proacuteprio o trabalhava fabricando-o agrave medida que escrevia e tendo jaacute vagamente desenrolado diante dele em sonhos singulares a mateacuteria preciosa ainda informe como uma via-laacutectea da qual devia ser pouco a pouco tecida (PROUST 1982 p 246) Os movimentos que se estabelecem entre a vida de um autor e a obra que fabrica se comparam para Proust a uma janela que se abre para um quarto vazio Eacute a via-laacutectea nebulosa e informe que se enformaraacute de signos marcados pelo estilo a que vimos aludindo

Mais profuso no gecircnero narrativo em que os temas da vida e as referecircncias satildeo mais notoacuterios consegue elevar esse gecircnero agrave condiccedilatildeo de uma praacutetica conferindo-lhe uma autonomia que mais que refletir resgata a essecircncia das coisas num processo de emergecircncia da proacutepria arte numa espeacutecie de remissatildeo contiacutenua de um a outro sistema O signo da arte eacute o grande referencial da narrativa de Proust Para isso foi necessaacuterio um exerciacutecio de realizaccedilatildeo marcado por procedimentos de perfuraccedilatildeo da camada da mateacuteria seja da realidade seja da linguagem O que chamamos processo de metamorfose em Proust eacute na verdade um processo de traduccedilatildeo mimeacutetica da proacutepria linguagem ou um defrontar-se com a mateacuteria-prima da representaccedilatildeo que eacute o signo Como em Mallarmeacute a obra de Proust potildee em pauta a relaccedilatildeo dialeacutetica entre o Signo e a Realidade Ao buscar a natureza da ldquoliacutenguardquo da poesia eou da literatura tambeacutem o discurso proustiano ldquodesrealizardquo a funccedilatildeo normativa da ldquoliacutenguardquo dos comunicados mobiliza a necessaacuteria relaccedilatildeo entre significante e significado aleacutem de recuperar ou

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nomear (indiretamente) aquilo que era apenas nebuloso no pensamento e no espiacuterito Esse exerciacutecio de mimesis da proacutepria linguagem tem como resultado a tensatildeo do limite extremo em que se opera a transubstancializaccedilatildeo da realidade referencializada para a realidade referencializaacutevel da obra O que se denominam ldquoiluminaccedilotildeesrdquo em Proust eacute o que o proacuteprio autor denominou ldquomemoacuteria involuntaacuteriardquo Satildeo formas de criaccedilatildeo ou de traduccedilatildeo da nebulosidade do espiacuterito Por tudo isso reler Ilusotildees Perdidas (2011) de Balzac depois de ter lido Em Busca do Tempo Perdido de Marcel Proust consistiu num exerciacutecio no miacutenimo surpreendente

Havia lido algumas obras de Balzac haacute muitos anos e o que me ficava na memoacuteria era a sequecircncia de figuras humanas que pareciam natildeo se caracterizar como personagens com todas elas se parecendo seja pela conjunccedilatildeo nas relaccedilotildees seja por disjunccedilatildeo que denunciava tramas possiacuteveis mas dentro sempre da mesma estrutura num tom sequenciado de efabulaccedilatildeo Ao ler e analisar Contre Sainte-Beuve fez-se necessaacuteria a releitura de Ilusotildees Perdidas e daiacute todas as vagas estranhezas de minha memoacuteria voltaram e ganharam sentido Aquelas figuras se amontoavam na minha memoacuteria em outras obras que compunham A Comeacutedia Humana sempre marcadas pelo teor alegoacuterico das personagens muitas vezes caricatural Assim quem me conduziu a Balzac foi o pensamento criacutetico-analiacutetico de Marcel Proust as razotildees encetam para uma seacuterie de elementos todos eles voltados para a questatildeo do estilo e da representaccedilatildeo literaacuteria Esse fenocircmeno criacutetico eacute em si decisivo a obra criacutetica e narrativa de Proust tornou-se precursora da obra de Balzac

A leitura equivocada que Sainte-Beuve realiza de alguns de seus contemporacircneos a propoacutesito dos melhores deles muitas vezes indivisa determinadas relaccedilotildees ou determinados autores ou obras mas por outro lado acabou por provocar os acircnimos daqueles que iniciariam uma reaccedilatildeo contra a criacutetica biograacutefica e com isso uma revisatildeo de determinados autores mitificados pelo puacuteblico e pela criacutetica Foi o caso de Balzac e Flaubert Como se natildeo houvesse uma intenccedilatildeo criacutetica declarada ao falar de um Proust sempre se reporta ao outro Esse meacutetodo mostrou-se fundamental para que nosso olhar se mova como pecircndulo para um e outro estilo para uma e outra visatildeo sobre literatura O futuro criador de Em Busca do Tempo Perdido se volta contra Sainte-Beuve quando este critica Balzac Ao mesmo tempo ao realizar suas consideraccedilotildees criacuteticas acaba por aproximar a visatildeo do autor de A Comeacutedia Humana daquela do autor de Madame Bovary (FLAUBERT 2011) A atraccedilatildeo do criacutetico Marcel Proust pelo estilo de Flaubert intesifica sua negaccedilatildeo de um possiacutevel estilo em Balzac e isso se manifesta em vaacuterios sentidos Ele cria uma metaacutefora para se referir ao discurso do autor de A Educaccedilatildeo Sentimental (FLAUBERT 2015) a qual eacute chamada por ele de esteira rolante (PROUST 1994) Com essa imagem ele se reporta agrave articulaccedilatildeo interna da linguagem aos arranjos das categorias de cada meio expressivo na busca da ampliaccedilatildeo de seus limites ndash traccedilo condutor da modernidade ndash que geram uma forccedila diferente uma convulsatildeo das formas que exige do receptor uma postura mental distinta Satildeo obras estruturalmente dinacircmicas e tematicamente estaacuteticas que como resultado geram novas relaccedilotildees distintas e muito mais intensas que aquelas dos modelos tradicionais

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Nos anos que precederam ao iniacutecio da grande escritura muitos estudos ou muitas leituras foram realizadas por Proust acompanhadas de pequenos textos ou comentaacuterios que redigia agrave luz desse exerciacutecio laboratorial Esse universo construiacutedo lhe serviria como fragmentos de sua experiecircncia como palimpsestos inventivos dos quais Proust elegeu aqueles que foram determinantes na formaccedilatildeo da narrativa francesa e de seu juiacutezo criacutetico pois essas duas vertentes sempre caminharam como uma soacute coisa para esse grande escritor A esteira rolante utilizada para metaforizar a narrativa de Flaubert caberia em certa medida para caracterizar o proacuteprio estilo proustiano Vale neste contexto citar uma assertiva de E R Curtius

A primeira leitura de Proust produz uma impressatildeo estranha mescla de encantamento e de confusatildeo Sentimo-nos envolvidos pela abundacircncia de materiais em aparente desordem extraviado num estilo prolixo e sinuoso em cujo ritmo natildeo se descobre nenhuma lei sente-se de uma vez atraiacutedo como que pelo timbre de uma muacutesica nova cuja harmonia natildeo se consegue analisar atraiacutedo a um universo de seduccedilatildeo tatildeo original que qualquer um se abandona em seus feiticcedilos (CURTIUS 1923 p 14-15)

Muito tem se esforccedilado a criacutetica em busca do ldquotempo de Proustrdquo entretanto muito se tem errado buscando esse tempo na vida do escritor nos seus haacutebitos nos lugares que frequentava bem como nas suas idiossincrasias Aleacutem da incongruecircncia de tais procedimentos criacuteticos pode-se considerar de extrema ironia que alguns criacuteticos se valham em pleno seacuteculo XXI de meacutetodos similares agravequeles utilizados por Sainte-Beuve para analisar uma obra que surgiu pela negaccedilatildeo do referido meacutetodo Todos esses elementos fazem parte do material utilizado por Proust em sua moenda inventiva mas assim como outros ingredientes tudo foi metamorfoseado na sua obra em ldquoneblinadas metaacuteforasrdquo fontes de sua ldquoprecisatildeordquo A respeito de Flaubert Proust ainda ressalta a sua isenccedilatildeo no modo de narrar e de descrever assinalando que esse procedimento permite ao autor ir cada vez mais ao encontro do narrador e natildeo do ser histoacuterico Flaubert

Diriacuteamos em espelho que o que mais interessa para os estudos proustianos e nisso consiste toda a sua busca criacutetica eacute liberar-se cada vez mais daquilo que natildeo eacute Proust tornando-se cada vez mais narrador no espaccedilo do discurso ficcional metafoacuterico preciso Faz bem Curtius ao advertir que devemos interpretar essas posiccedilotildees de Proust no sentido de que a verdadeira criacutetica tende a descobrir os elementos formais da alma de um autor e natildeo suas opiniotildees nem seus sentimentos Tender agrave descoberta dos elementos formais da alma de um autor significa mergulhar nos elementos internos da obra no seu estilo pactuando-se o maacuteximo possiacutevel com a metaacutefora do discurso artiacutestico para que seja viaacutevel uma vez recebida que ela seja bem percebida

Nesse modo de ver o estilo de Flaubert Proust indicia ou ateacute mesmo aponta para elementos criacuteticos determinantes na obra de Balzac Um dos elementos determinantes eacute mostrado por Proust da seguinte maneira comentando aspectos da vida de Balzac de suas minudecircncias mundanas comentadas e assinaladas pelo proacuteprio Balzac em cartas

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agrave sua irmatilde seus interesses financeiros sua visatildeo de casamentos arranjados a relevacircncia de conviver na sociedade parisiense de abrir os salotildees para a sociedade de se mostrar ao lado de uma mulher de prestiacutegio entre outros faz ver Proust como tudo isso estaacute retratado em sua obra Em todas elas sobretudo em Ilusotildees Perdidas sua obra maior os dados mundanos em todas as suas referecircncias plurais satildeo praticamente transportados para a obra Aleacutem de tudo isso suas ideias suas frases feitas seu humor aacutecido sua visatildeo pessoal da condiccedilatildeo humana entram para sua obra com a mesma indiscriminaccedilatildeo

A criacutetica de Proust agrave visatildeo de Balzac se daacute pela comparaccedilatildeo que realiza com a construccedilatildeo da narrativa de Flaubert para quem como assinala a realidade da obra estaacute na proacutepria obra para ele o autor de A Educaccedilatildeo Sentimental sabe muito bem separar a vida do autor de sua obra como segundo Proust deve ocorrer para que se tenha um resultado propriamente artiacutestico capaz de realizar uma efetiva leitura do homem no mundo e de suas relaccedilotildees natildeo apenas sociais mas tambeacutem consigo mesmo Dentro dessa mesma base de consideraccedilotildees criacuteticas no ziguezaguear da percepccedilatildeo e fina anaacutelise proustiana ocorre nos discursos dos dois romancistas Balzac e Flaubert um movimento distintivo e ainda mais detidamente estiliacutestico que na verdade revela o modo de ver o mundo pelo escritor Trata-se da questatildeo da vulgaridade em Balzac

A questatildeo da vulgaridade foi muito discutida na obra desse autor seja quanto aos temas tratados seja na forma da utilizaccedilatildeo da linguagem tanto nas palavras quanto no tom de articulaccedilatildeo discursiva E nesse sentido tambeacutem criticou e vilipendiou Sainte-Beuve o autor de Ilusotildees Perdidas Essa vulgaridade sobretudo no sentido temaacutetico tambeacutem foi apontada na obra de Flaubert principalmente em Madame Bovary Proust com feiccedilotildees de teoacuterico da literatura mas se valendo da pena do criacutetico que estava se transformando em autor num movimento de metamorfose que nos lembra processos alquiacutemicos examina as diferenccedilas entre o tratamento da vulgaridade em Balzac e em Flaubert Para ele coisa que natildeo ocorre em Flaubert uma representaccedilatildeo da vulgaridade eacute construiacuteda na obra de Balzac sem que haja uma transcriaccedilatildeo efetiva daquela vivenciada pelo autor ou por qualquer outro ser humano Balzac apesar de tratar de assuntos tatildeo interessantes geradores de um caraacuteter polecircmico que o celebrizou por tantos anos deixa agrave margem aquele processo que Antonio Candido (1993 p 30-4) chama de ldquodesfazer e refazer a realidade pela linguagemrdquo Algumas peculiaridades em Balzac ganham dupla qualificaccedilatildeo O seu descritivismo exemplar em alguns momentos traz consigo sua outra face torna-se esvaziado a natildeo ser como parte das milhares de caricaturas que constroacutei Junto com as descriccedilotildees que satildeo retratos diretos da vida real e que natildeo atingem a dimensatildeo do discurso literaacuterio surgem possibilidades surpreendentes de uma invenccedilatildeo natildeo concluiacuteda

Um dos ingredientes reaproveitados por Proust eacute o universo das artes plaacutesticas que surge de maneira intensa na obra de Balzac dentro daquele mesmo espiacuterito de descriccedilatildeo Honoreacute de Balzac constitui caso excepcional de escritor gerando incocircmodos na massa criacutetica de sua eacutepoca e mais ainda na criacutetica posterior razatildeo pela qual natildeo se pode emparedar a sua obra aos paradigmas do Romantismo mais vale consideraacute-lo como um iniciador precoce do Realismo

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Cremos que esse extenso focirclego atingiu de certa forma os maiores e mais notaacuteveis do seacuteculo XIX (Eacutemile Zola Charles Dickens Dostoievsky e Marcel Proust) e fascinou o puacuteblico embevecido por suas ideias suas frases de impacto e sua ciacutetrica forma de ironizar os valores sociais e morais de toda a primeira metade daquele seacuteculo A mulher de trinta anos Eugegravene Grandet O Pai Goriot Ilusotildees Perdidas estatildeo dentre os mais lidos e os mais comentados da grande saga balzaquiana Dizer seu nome passou a ser sinocircnimo de denuacutencia problemas de dinheiro da usura da hipocrisia familiar da constituiccedilatildeo dos verdadeiros poderes da Franccedila liberal burguesa e indiretamente do universo dos operaacuterios e camponeses Exalta-se nesse escritor sua enorme capacidade de trabalho sobretudo pelas emergentes necessidades de resoluccedilatildeo de suas diacutevidas permanentes

Dado curioso e digno de anaacutelise eacute o modo como sua obra foi tatildeo amplamente recepcionada O protagonista de Ilusotildees Perdidas Lucien de Rubempreacute sua saga em Paris suas buscas e fracassos sua fome de ascensatildeo e de prestiacutegio em todos os niacuteveis sociais e ainda querendo se impor como poeta todas essas marcas estatildeo no proacuteprio Honoreacute de Balzac que se representa na obra construiacuteda Ele se torna catalisador numa espeacutecie de ldquorelatoacuterio rascunhordquo da humanidade Quando a criacutetica o considera o mais relevante escritor do romantismo francecircs as coisas parecem ficar extremamente nubladas para quem pensa literatura Natildeo se trata aqui de um caminho criacutetico ou de uma teoria que possa conduzir a uma visatildeo aacutecida do escritor Eacute fato que Balzac realizou em pleno iniacutecio do seacuteculo XIX um trabalho sui generis como massa referencial levantou temas ou ldquoassuntosrdquo de grande interesse da sociedade da eacutepoca e mesmo de eacutepocas futuras passando seu trabalho a alimentar possibilidades de sentido por manter os mesmos personagens em todos os romances

Por outro lado natildeo apenas a vulgaridade mas qualquer outro tema mundano ou natildeo ganha em Flaubert outro patamar de realidade e dentro disso ele emerge como o grande criador do romance moderno em que a isenccedilatildeo do autor e a autonomia do narrador alcanccedilam dimensotildees determinantes Nesse posicionamento construtivo a vida do autor bem como suas relaccedilotildees pessoais com assuntos mundanos deixa de existir para Flaubert para ceder agrave obra mediada pela linguagem que jaacute natildeo pertence ao que denominamos semioacutetica I Com Flaubert passamos para uma segunda semioacutetica que pode ser entendida como Liacutengua II Nessa busca de aproximaccedilotildees as condiccedilotildees reais dos procedimentos artiacutesticos acabam por estabelecer convergecircncias mais acentuadas entre a obra de Gustave Flaubert e a obra de Marcel Proust do que das obras desses dois artistas em relaccedilatildeo a Honoreacute de Balzac Dentre as convergecircncias entre os dois escritores Proust e Flaubert uma se destaca o fato de ambos produzirem o que Paul Valeacutery (1999) denominaria uma obra claacutessica por trazerem no seu proacuteprio plano de fabricaccedilatildeo um criacutetico Ambos conferem agraves suas obras a devida autonomia enquanto tal e nisso estaacute impliacutecita a isenccedilatildeo da vida do autor em relaccedilatildeo agrave obra Entretanto a invenccedilatildeo proustiana natildeo se limita agraves questotildees criacuteticas engendradas pelo autor de Madame Bovary e de A Educaccedilatildeo Sentimental mas se estende e se engasta em outras obras fundamentais sobretudo da narrativa do seacuteculo XIX

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Eacute nesse movimento criativo que se insere o contraponto do discurso que ora se inventa em oposiccedilatildeo ao referencial balzaquiano Trata-se da estranha relaccedilatildeo entre a narrativa de Em busca do tempo perdido e procedimentos utilizados pelo autor de A Condiccedilatildeo Humana Dizemos ldquoestranha relaccedilatildeordquo devido a uma seacuterie de elementos que nos instigam a buscar no pensamento criacutetico e inventivo de Proust sorrateiras estrateacutegias de construccedilatildeo que se manifestam dentro de um estilo peculiar elementos que desvelam ter sido Proust um exiacutemio leitor de Balzac Proust assinala em Balzac o estilo de retratista da sociedade com traccedilos fortes e de tintas coloridas extraindo daquele estilo o que nele natildeo se manifestou O que se pode depreender desse processo eacute que longe de se poder considerar a obra maior de Balzac como uma grande obra literaacuteria ateacute porque se trata de uma obra com falta de literariedade a sua ldquoestrutura oacutesseardquo foi percebida por Proust que ldquona calada da noiterdquo se valeu de maneira brilhante dessa estrutura

Ao comentar fato que ocupa grande parte do ensaio sobre o caraacuteter inovador do uso do preteacuterito imperfeito pela narrativa flaubertiana Proust diz o seguinte ldquoPortanto esse imperfeito tatildeo novo na literatura muda inteiramente o aspecto das coisas e dos seres como uma lacircmpada que tenha sido deslocada agrave chegada em uma nova casa a antiga quando estaacute quase vazia e que se estaacute em plena mudanccedilardquo (PROUST 1994 p71)

Essa ideia capta o verdadeiro sentido da relaccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e modernidade referindo-se a uma evoluccedilatildeo do estilo A nova casa (modernidade) e a antiga satildeo a mesma e completamente outras quando marcadas pela poccedilatildeo metamorfoseante e mantenedora do signo do estranhamento da refraccedilatildeo artiacutestica capaz de mobilizar os elementos cristalizados As formas artiacutesticas de invenccedilatildeo satildeo princiacutepios composicionais ou brechas que desvelam o olho cliacutenico do Homem feito artista radar captador dos retalhos da realidade Ao dizermos retalhos da realidade pensamos nas condiccedilotildees baacutesicas sem as quais nenhum trabalho artiacutestico pode se concretizar Este consiste na consciecircncia de uma meta a atingir que parte da superaccedilatildeo das linhas de superfiacutecie da realidade ldquodetrito da experiecircnciardquo para Proust representado pelos signos emblemaacuteticos cadaverizados pela convenccedilatildeo O trabalho ficcional de Marcel Proust evolui num processo de metamorfose inventiva primeiro de captaccedilatildeo depois de destruiccedilatildeo e finalmente de remontagem ou traduccedilatildeo da realidade essencial Seu princiacutepio de composiccedilatildeo conduzido pela intraduziacutevel busca da Forma do Tempo faz-se forma espacial profusa enquanto movimento enlaccedilado nos entrecruzados noacutes das veredas da linguagem Este trabalho do artista de buscar sob a mateacuteria sob a experiecircncia sob as palavras algo diferente eacute exatamente o inverso do que a todo instante quando vivemos alheados de noacutes realizam por sua vez o amor-proacuteprio a paixatildeo a inteligecircncia e o haacutebito amontoando sobre as nossas impressotildees mas para de noacutes esconder as nomenclaturas os objetivos praacuteticos a que erradamente chamamos vida (PROUST 1970 p 142) A busca sob e natildeo sobre constitui um universo que transcende a ele proacuteprio por ir o maacuteximo possiacutevel agraves profundezas do verdadeiro eu Dizendo assim tentando driblar a palavra-chave que define esta obra uma poeacutetica no sentido de elevaccedilatildeo da potecircncia da linguagem sem atributos possuindo portanto a mais rigorosa precisatildeo Eacute correto afirmar que Em busca

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do tempo perdido eacute a histoacuteria de uma escritura pois que traz nela mesma essa histoacuteria Esta histoacuteria eacute o esteacuteril pretexto que vai deixando para amanhatilde sempre numa posiccedilatildeo de adiamento uma possiacutevel obra literaacuteria

4 A profundidade criacutetica e literaacuteria de Proust agrave guisa de consideraccedilotildees finais

Apesar da consideraacutevel distacircncia entre Ilusotildees perdidas e Em busca do tempo perdido entretanto vale notar que nos dois tiacutetulos resiste a ideia de perda Contudo em Balzac essa ideia estaacute imediatamente ligada ao temaacuterio referencial de sua obra fantasiado pelo signo ldquoilusotildeesrdquo e marcado semanticamente pelo processo de degenerescecircncia causada pelas perdas e pela impossibilidade de atingir os propoacutesitos da vida Em Proust em que a mateacuteria de vida eacute transformada em mito da linguagem tudo caminha pelo sentido oposto e encontra no tempo da arte o espaccedilo sensiacutevel para dizer com Juacutelia Kristeva (1994) a respeito do autor em questatildeo

Nessa forma de suspensatildeo do tempo cronoloacutegico para a vivecircncia da esfera miacutetica por meio da arte ocorre como diriam os mitoacutelogos a eterna reiniciaccedilatildeo As multiacuteplices relaccedilotildees das linhas de superfiacutecie da realidade mudam alteram-se a cada instante O tempo prossegue inexoravelmente e o uacutenico meio de estancaacute-lo eacute integrar-se a ele eacute habitaacute-lo Mas habitaacute-lo implica espacializaacute-lo colocando-lhe reacutedeas atraveacutes de finas agulhas com linhas tecircnues fabricaccedilatildeo do tecido ou da rede da proacutepria vida Esse gesto de criar coincide com o gesto de viver indissolubilidade apreendida e empreendida no exerciacutecio de profunda identidade do ser que acaba sendo de extremo alheamento Para a realizaccedilatildeo desse movimento o escritor deve descobrir que a realizaccedilatildeo artiacutestica consiste no produto de um outro eu que natildeo aquele das vicissitudes mundanas dos haacutebitos e dos sentimentos pessoais ldquoDentro da perda da memoacuteriardquo3 deu-se iniacutecio agrave emersatildeo do novo universo e uma outra viagem se inaugurou Nela o roteiro jaacute natildeo eacute mais delimitado pois isto significaria a submissatildeo agrave proacutepria dimensatildeo cronoloacutegica da existecircncia

A busca do eu profundo equivale ao exerciacutecio do narrador ao pocircr em praacutetica as suas iluminaccedilotildees ou as iluminaccedilotildees da memoacuteria involuntaacuteria para recriar as experiecircncias da vida num trabalho de arte Eacute este o fio condutor desta viagem O acaso assessorado pela inteligecircncia compotildee o trabalho de criaccedilatildeo Mais importante que recordar pela memoacuteria voluntaacuteria eacute estarem os cinco sentidos despertos disponiacuteveis aguccedilados e integrados para a composiccedilatildeo associativa dos fluxos da realidade literaacuteria O olho deste artista viu na tradiccedilatildeo atraveacutes de formas de reaccedilatildeo caminhos possiacuteveis para se iniciar esta viagem sem retorno composta de meandros circulares em busca de um retrato sem moldura Este retrato teria como modelo primeiramente a experiecircncia que se transforma em

3 A metaacutefora discursiva se reporta ao poema de Joatildeo Cabral de Melo Neto publicado em Pedra do sono (1999)

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escritura e teria como imagem um outro retrato Antes que esse retrato pudesse ser fixado a imagem se estilhaccedilou no campo perdido da linguagem e retratou-se em signos que se movimentam em infinitas direccedilotildees Tornou-se um campo blindado propenso a metamorfoses tornou-se a poccedilatildeo dialeacutetica entre a arte e a vida Natildeo consiste numa inferecircncia indeterminada o fato de julgarmos o texto de Marcel Proust um grande ensaio ficcional Trata-se de um fenocircmeno iacutempar na literatura Evidentemente os recursos de metalinguagem determinam a literatura moderna Num capiacutetulo memoraacutevel denominado ldquoLiteratura e Metalinguagemrdquo contido na obra Criacutetica e Verdade (1982) Roland Barthes discute esse traccedilo da literatura que se inicia nos meados do seacuteculo XIX e se prolonga durante o seacuteculo XX Para ele durante seacuteculos nossos escritores natildeo imaginavam que fosse possiacutevel considerar a literatura como uma linguagem submetida como qualquer outra linguagem agrave distinccedilatildeo loacutegica

A literatura nunca refletia sobre si mesma (agraves vezes sobre suas figuras mas nunca sobre seu ser) nunca se dividia em objeto ao mesmo tempo olhante e olhado em suma ela falava mas natildeo se falava Mais tarde provavelmente com os primeiros abalos da boa consciecircncia burguesa a literatura comeccedilou a sentir-se dupla ao mesmo tempo objeto e olhar sobre esse objeto fala e fala dessa fala literatura-objeto e metaliteratura Eis quais foram grosso modo as fases desse desenvolvimento primeiramente uma consciecircncia artesanal da fabricaccedilatildeo literaacuteria levada ateacute o escruacutepulo doloroso ao tormento do impossiacutevel (Flaubert) depois a vontade heroacuteica de confundir numa mesma substacircncia escrita a literatura e o pensamento da literatura (Mallarmeacute) depois a esperanccedila de chegar a escapar da tautologia literaacuteria deixando sempre por assim dizer a literatura para o dia seguinte declarando longamente que se vai escrever e fazendo dessa declaraccedilatildeo a proacutepria literatura (Proust) em seguida o processo da boa-feacute literaacuteria multiplicando voluntariamente sistematicamente ateacute o infinito os sentidos da palavra-objeto sem nunca se deter num significado uniacutevoco (surrealismo) inversamente afinal rarefazendo esses sentidos a ponto de esperar obter um estar-ali da linguagem literaacuteria uma espeacutecie de brancura da escritura (mas natildeo uma inocecircncia) penso aqui na obra de Robbe-Grillet (BARTHES 1982 p 27-28)

Ao aludir ao caso de Proust Barthes se refere a uma estrateacutegia criativa que evidentemente eacute de profunda significaccedilatildeo no contexto da obra Entretanto como denuncia a citaccedilatildeo do proacuteprio escritor haacute no interior da ldquoficccedilatildeordquo proustiana uma espeacutecie de mesclagem em que o ldquoliteraacuteriordquo se conjuga ao ldquocriacuteticordquo e a ldquonarrativardquo se articula ao ldquodissertativordquo Eacute sabido que esta caracteriacutestica determina o trabalho de todo grande artista Entretanto no seu caso tal fenocircmeno adquiriu uma feiccedilatildeo proacutepria uma vez que a tentativa de ser criacutetico e apenas criacutetico eacute lograda em funccedilatildeo de uma invenccedilatildeo ou traduccedilatildeo criacutetica que eacute sua proacutepria obra ficcional Consagrou a vida inteira para tentar compreender e resolver parte das questotildees que o dominaram Compreenderiacuteamos assim quais as afinidades secretas as metamorfoses necessaacuterias existentes entre a vida de um escritor e sua obra entre a realidade e a arte ou antes como pensaacutevamos entatildeo entre as aparecircncias

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de vida e a proacutepria realidade que dela fazia um fundamento soacutelido e que a arte resgatou (PROUST 1982 p 29)

Essas consideraccedilotildees de Proust presentes em Jean Santeuil obra produzida entre 1895 e 1900 mantiveram-se em toda a sua criaccedilatildeo futura Ao penetrarmos em seu universo o que se percebe eacute que Jean Santeuil eacute muito mais que um esboccedilo ficcional Escrito em terceira pessoa na sua maior parte apresenta agraves vezes uma estranha mudanccedila de foco narrativo passando para a primeira Por este e por outros motivos Jean Santeuil acaba apresentando procedimentos tatildeo especiacuteficos que seu caraacuteter inacabado se torna no miacutenimo questionaacutevel Penso aqui em Charles Baudelaire que ao analisar a pintura de Camille Corot apoacutes revelar expliacutecita indignaccedilatildeo frente agrave incompreensatildeo do puacuteblico romacircntico mostra as especificidades dos quadros de Corot e as diferenccedilas entre eles e os de outros pintores inclusive os de Eugegravene Delacroix (BAUDELAIRE 1976) Analisa a diferenccedila entre um quadro feito e um quadro acabado Para Baudelaire em geral uma obra que eacute feita natildeo eacute acabada e uma obra completamente acabada natildeo eacute totalmente feita Eacute certo que Jean Santeuil eacute obra abandonada por Proust por consideraacute-la apenas um exerciacutecio eacute certo tambeacutem que eacute esta estrutura moacutevel que a torna relevante Isso acentua sua natureza dialoacutegica fenocircmeno que determinaraacute toda a evoluccedilatildeo de Em busca do tempo perdido Realizada neste periacuteodo precedente oito anos antes de Contre Sainte-Beuve Jean Santeuil consiste num dos mais notaacuteveis exerciacutecios de traduccedilatildeo criativa que aleacutem de nos fornecer subsiacutedios para a compreensatildeo da maacutequina de fabricaccedilatildeo proustiana eacute em si um universo autocircnomo marcado pela articulaccedilatildeo dos retalhos ou dos fragmentos que determinam o teor metoniacutemico da elaboraccedilatildeo ficcional de Marcel Proust

O trabalho artiacutestico-literaacuterio de Marcel Proust apresenta peculiaridades de vaacuterias naturezas todas elas entretanto repousam sobre uma uacutenica questatildeo realizar para investigar e modular para cumprir aquilo que tatildeo somente a arte pode conquistar o resgate do tempo infindo e a suspensatildeo do tempo cronoloacutegico para que seja possiacutevel recuperar a instacircncia atemporal da vida

Esse sistema criacutetico-inventivo soacute seria possiacutevel de ser realizado como o fez o pensador francecircs com o olho direito mirando cuidadosamente a tradiccedilatildeo e o olho esquerdo cravado sobre o presente no mapa da invenccedilatildeo e buscando cumprir com profundo prazer e ao mesmo tempo com aacuterduo trabalho o peacuteriplo de uma experiecircncia desconstruiacuteda

Por fim conveacutem dizer ainda que o olhar de Marcel Proust para a obra de Balzac exige muita cautela e observaccedilatildeo nos miacutenimos elementos que ele aponta valendo-se de seu singular modo de ler e de ver por entrelinhas fundamentais para que se vaacute recuperando o ldquotempo de Proustrdquo nos interstiacutecios de sua produccedilatildeo Haacute que se vasculhar em ciacuterculos as suas palavras Por um lado defende criticamente Balzac mediante as colocaccedilotildees de Sainte-Beuve assim como defendeu outros autores vociferados pelo criador da criacutetica biograacutefica na segunda metade do seacuteculo XIX Por outro lado os seus comentaacuterios comparativos entre Gustave Flaubert e Honoreacute de Balzac fazem com que revejamos os passos de composiccedilatildeo do famoso autor de Ilusotildees Perdidas Esse movimento criacutetico nos deixa como estudiosos e como criacuteticos literaacuterios um tanto

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ensimesmados diante de algumas incocircmodas questotildees que procuramos deslindar agrave medida que avanccedilamos na abordagem deste artigo objetivando mostrar por meio do trabalho literaacuterio e ensaiacutestico de Marcel Proust sua contribuiccedilatildeo para o entendimento dos processos da literatura e das artes

Referecircncias

BALZAC H de Ilusotildees Perdidas Trad Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Penguin ClassicsCompanhia da Letras 2011

BARTHES R Criacutetica e Verdade Trad Leyla Perrone-Moiseacutes Satildeo Paulo Perspectiva 1982

BAUDELAIRE C Salon de 1845 In BAUDELAIRE C Oeuvres Complegravetes Texte eacutetabli preacutesenteacute et annoteacute par Claude Pichois Paris Gallimard 1976 Tome II pp 351-407

CANDIDO Antocircnio Recortes Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993

CHATEAUBRIAND F R de Atala Rene Les aventures du dernier abencerage Paris Flammarion 1996

CURTIUS R Marcel Proust La Nouvelle Revue Franccedilaise Paris Tomo XX 1923

FLAUBERT G Madame Bovary Trad Maacuterio Laranjeira Satildeo Paulo Penguin ClassicsCompanhia das Letras 2011

FLAUBERT G A educaccedilatildeo sentimental historia de um jovem 2 ed Trad Adolfo Casais Monteiro Satildeo Paulo Nova Alexandria 2015

GONCcedilALVES A J O processo holometaboacutelico em Marcel Proust In PROUST M Contre sainte-beuve notas sobre criacutetica e literatura Trad Haroldo Ramanzini Satildeo Paulo Iluminuras 1988

GONCcedilALVES A J A propoacutesito da criacutetica de Marcel Proust In PROUST M Nas trilhas da criacutetica Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo PauloImaginaacuterio 1994

GONCcedilALVES A J Museu Movente o signo da arte em Marcel Proust Satildeo Paulo Editora UNESP 2004

KRISTEVA J Le Temps Sensible Proust et lrsquoExpeacuterience Litteacuteraire Paris Gallimard 1994 (NRF eacutessais)

MELO NETO J C de Obra completa Rio de Janeiro Nova Aguilar 1999

PROUST M Le Balzac de Monsieur de Guermantes (avec quatre dessins de lrsquoauteur) Paris Neuchatel Ides et Calendes 1930

PROUST M O tempo redescoberto Trad Luacutecia Miguel Pereira Globo Porto Alegre 1970

PROUST M Jean Santeuil Trad Fernando Py Rio de Janeiro Nova Fronteira 1982

PROUST M Contre sainte-beuve notas sobre criacutetica e literatura Trad Haroldo Ramanzini

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Satildeo Paulo Iluminuras 1988

PROUST M Nas trilhas da criacutetica Trad Pliacutenio Augusto Coelho Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo PauloImaginaacuterio 1994

SAINTE-BEUVE C Causeacuteries du Lundi les Contemporains de Sainte-Beuve Org B Lalande Paris Larousse 1953 tome 124 partie II (Collection Classiques Larousse)

SAINTE-BEUVE C Oeuvres de Sainte-Beuve Paris Editions la Bibliothegraveque Digitale (eBook Kindle) 2012

SPITZER L Linguumliacutestica e historia literaria Trad Joseacute Peacuterez Riesgo Madrid Editorial Gredos 1955 (Biblioteca Romaacutenica Hispaacutenica Estudios y Ensayos 19)

VALEacuteRY P Variedades Trad Maiza Martins de Siqueira Satildeo Paulo Iluminuras 1999

Recebido em 25 de marccedilo de 2017

Aceito em 30 de setembro de 2017

Aguinaldo Joseacute Gonccedilalves

Livre-docecircncia pela UNESP (1997) Doutorado em Letras (Teoria Literaacuteria e Literatura Comparada) pela USP (1988) Tem publicaccedilotildees na interface de literatura e outros sistemas semioacuteticos Professor titular da UNESP e PUC de Goiaacutes atuando nos cursos de Mestrado e Doutorado nessas instituiccedilotildees agnusfenixgmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Acerca da ekphrasis numa passagem do Clarimundo de Joatildeo de Barros cena de pictoacuterico heroiacutesmo

On Ekphrasis in an Excerpt from Clarimundo by Joatildeo de Barros A Scene of Pictorial Heroism

Sobre la ekphrasis en un paso del Clarimundo de Joatildeo de Barros escena de pictoacuterico heroiacutesmo

Flaacutevio Antocircnio Fernandes Reis Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Resumo

No artigo tratamos de um procedimento discursivo a ekphrasis na leitura de uma passagem da Primeira Parte da crocircnica do imperador Clarimundo donde os reis de Portugal descendem narrativa de cavalaria publicada por Joatildeo de Barros em 1522 e dedicada ao priacutencipe e depois rei D Joatildeo III Trata-se da primeira narrativa cavaleiresca com mateacuteria paacutetria publicada em Portugal obra essa que teve algumas reimpressotildees e reediccedilotildees dos seacuteculos XVI ao seacuteculo XX Dada a pouca atenccedilatildeo dispensada a este livro nosso artigo apresenta-o na sua primeira parte Em seguida tratamos do que seja a ekphrasis ou sua acepccedilatildeo latina a descriptio segundo alguns estudos recentes e em tratados antigos como o de Hermoacutegenes Aftocircnio e o anocircnimo dirigido a Herecircnio Por fim nosso objetivo foi analisar a ekphrasis composta no episoacutedio da ldquoFloresta Encantadardquo do Clarimundo observando como a cena compotildee-se com fins retoacutericos de persuadir pelo ldquomaravilhosordquo da cena e pela forccedila dos argumentos dado o caraacuteter de quem diz e as circunstacircncias de enunciaccedilatildeo compostos na ficccedilatildeo de Joatildeo de Barros Palavras-chave Joatildeo de Barros Clarimundo Ekphrasis

Abstract

In this article we propose the study of a discursive procedure ekphrasis in the reading of an excerpt from ldquoda Primeira parte da Croacutenica do Imperador Clarimundo donde os Reis de Portugal descendemrdquo a chivalric narration published by Joatildeo de Barros in 1522 and dedicated to the prince and later king D Joatildeo III This was the first chivalric narrative published in Portugal and was reprinted from the sixteenth century to the twentieth century In the first part the article presents the book by Joatildeo Barros Next we speak of ekphrasis or its Latin meaning descriptio according to some recent studies and according to ancient treatises like that by Hermoacutegenes Aftocircnio and the anonymous ldquoRhetoric to Herecircniordquo Finally our objective was to analyze the ekphrasis in the episode of the ldquoFloresta Encantadardquo from Clarimundo observing how the scene is composed for rhetorical purposes of persuading by the ldquomarvelousrdquo taking into account who speaks and the utterance circumstances in the fiction by Joatildeo de BarrosKeywordsJoatildeo de Barros Clarimundo Ekphrasis

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Resumen

En este artiacuteculo se propone el estudio de un procedimiento discursivo ekphrasis en la lectura de un pasaje del ldquoda Primeira Parte Croacutenica do Imperador Clarimundo Donde os Reis de Portugal descendemrdquo una narracioacuten de caballeriacutea publicado por Joatildeo de Barros en 1522 y dedicado al priacutencipe y maacutes tarde rey D Joatildeo III Es la primera narrativa caballeresca publicada en Portugal una obra que tuvo algunas reimpresiones del siglo XVI al siglo XX En la primera parte el artiacuteculo presenta el libro de Joatildeo Barros A continuacioacuten hablamos de la ekphrasis o su significado latino descriptio seguacuten algunos estudios recientes y seguacuten tratados antiguos como el de Hermoacutegenes Aftocircnio y la anoacutenima Retoacuterica a Herecircnio Por uacuteltimo nuestro objetivo fue analizar la ekphrasis compuesto en el episodio del ldquoFloresta Encantadardquo por Clarimundo observando coacutemo la escena se compone con fines retoacutericos de persuadir por el ldquomaravilhosordquo teniendo en cuenta que habla y las circunstancias de la enunciacioacuten compuesto en la ficcioacuten de Joatildeo de BarrosPalabras clave Joatildeo de Barros Clarimundo Ekphrasis

1 Introduccedilatildeo a primeira narrativa de cavalaria portuguesa com mateacuteria lusitana

A Prymera parte da cronica do emperador Clarimundo donde os reys de Portugal desccedilendem publicada nas prensas lisboetas de Germatildeo de Galharde em 1522 compotildee-se de trecircs livros natildeo acabados e ditos ldquoprimeira parterdquo em consonacircncia com a dinacircmica comum das maacutequinas cavaleirescas dos ldquoamadizesrdquo e dos ldquopalmeirinsrdquo No entanto se as relaccedilotildees entre as narrativas cavaleirescas figuram como emaranhado de parentescos discursivos concebidos com invenccedilatildeo comum de imitaccedilatildeo a genealogia que o Clarimundo propotildee o ressalva genericamente o especifica como ldquodonde os Reys de Portugal desccedilendemrdquo figurando mateacuteria ateacute entatildeo incomum nas letras ibeacutericas mas reconhecida nas letras antigas mais precisamente na Eneida de Virgiacutelio e emulada no encocircmio da Casa drsquoEste presente no Orlando Furioso de Ariosto1

1 Acerca da abordagem retoacuterico-poeacutetica desse estudo entendem-se as doutrinas retoacutericas e poeacuteticas como saberes comuns herdados e atualizados dos antigos para o ldquofermoso fablarrdquo conforme Alfonso de Cartagena na dedicatoacuteria da Retorica dirigida a D Duarte no seacuteculo XV Aniacutebal Pinto de Castro no conhecido estudo Retoacuterica e teorizaccedilatildeo literaacuteria em Portugal do Humanismo ao Neoclassicismo (2008) mostra o vigor dos preceitos retoacutericos e poeacuteticos sobretudo a difusatildeo dos preceitos de Ciacutecero e Quintiliano nas praacuteticas letradas portuguesas dos seacuteculos XV e XVI Nesse sentido a Oraccedilatildeo de Sapiecircncia proferida por D Pedro de Menezes na abertura dos trabalhos letivos do Estudo Geral de Lisboa de 1504 eacute bastante eloquente ldquoDas artes a primeira que se me mostra a mais formosa elegante e conveniente esta eacute a Retoacuterica Com efeito enquanto preceitua assim se chama mas enquanto executa com ordem e propriedade o que preceituou chama-se Oratoacuteria disciplina sem a qual toda a doutrina toda a ciecircncia embora tendo olhos ouvidos e liacutengua andaria cega surda e mudardquo(Cf D Pedro de Menezes Oraccedilatildeo proferida no Estudo Geral de Lisboa Texto latino presente na ediccedilatildeo de Miguel Pinto de Menezes Lisboa Centro de Estudos de Psicologia e de Histoacuteria da Filosofia anexo agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1994 p 96 ldquoQuarum prima se mihi offert illa veluti formosiacutessima decentissima elegantissima quaedam virgo quae rethorica est Sic enim dum praecipit appellatur cum vero ea quae praecepit distincte apteque exequitur oratoacuteria sine qua omnis doctrina omnis scientia habens oacuteculos aures linguam caeca surda muta ambulatrdquo)

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Joatildeo de Barros moccedilo de cacircmara do priacutencipe D Joatildeo futuro D Joatildeo III humanista latinado aproximou a narrativa extensa das batalhas de cavaleiros do Amadis e do Orlando aos ensinamentos e agrave elocuccedilatildeo da eacutepica antiga operando com o caraacuteter misto proacuteprio da narrativa de aventuras e batalhas entre cavaleiros2 A aparente transparecircncia da operaccedilatildeo esconde um emaranhado disperso de construccedilatildeo narrativa conjugada a procedimentos retoacutericos e poeacuteticos de longa duraccedilatildeo nas letras europeias e a ensinamentos de virtudes morais dirigidas aos priacutencipes e seus conselheiros aspectos esses que tornam inadequados o julgamento apressado da obra em questatildeo Ademais a publicaccedilatildeo impressa do Clarimundo denota a relevacircncia do livro salvaguardada nos tipos moacuteveis com boa qualidade das manchas impressas e dedicada a D Joatildeo III por meio de proacutelogos um ao priacutencipe e outro ao rei O ornamento das letras capitais e a moldura do ldquoProacutelogo sobre a trasladaccedilatildeo da primeira parterdquo convecircm agrave mateacuteria elevada do livro ornamentaccedilatildeo floral selva organizada na qual se entrevecirc entre ramos ordenados Cupido figuraccedilotildees de bestas paacutessaros e floraccedilotildees simetricamente dispostos como moldura que enaltece a figuraccedilatildeo daquele a que se atribui como o ancestral mais recuado da Casa Real portuguesa Nessa paacutegina de rosto na editio princeps figura o imperador Clarimundo no centro da composiccedilatildeo e na raiz de uma aacutervore genealoacutegica em cujos ramos ordenam-se os reis portugueses ateacute D Joatildeo III O cavaleiro traz as insiacutegnias de imperador bizantino a coroa fechada o orbe ou globus cruciger e o escudo no qual figura a aacuteguia bifronte iconografia do poder imperial e cristatildeo sobre o Ocidente e o Oriente A justaposiccedilatildeo dos reis o esquematismo proacuteprio da aacutervore genealoacutegica pressupotildeem a memoacuteria do modelo preteacuterito e a legitimidade do moderno pela antiguidade ancestral memoacuteria essa que se salvaguarda na ldquocrocircnica do imperador Clarimundordquo modo pelo qual a obra passou a ser conhecida a partir das ediccedilotildees setecentistas

Mais a Prymera parte da cronica do emperador Clarimundo eacute o uacutenico livro de batalhas e aventuras de cavaleiros com mateacuteria aacuteulica impresso em portuguecircs na primeira metade do seacuteculo XVI3 Embora sejam conhecidas as inuacutemeras objeccedilotildees aos livros de cavalaria seja pelos aspectos de construccedilatildeo mista seja pelas mateacuterias mal quistas pelos letrados religiosos a narrativa de Barros obteve uma segunda impressatildeo ainda no reinado de D Joatildeo III em 1555 Ateacute entatildeo ainda se manteve a eloquente portada o que natildeo eacute o caso da publicaccedilatildeo seiscentista do livro realizada por Antoacutenio Alvarez em 1601 na qual se figuram outros valores para o caraacuteter de Clarimundo Nessa ediccedilatildeo

2 Cf ALMEIDA Isabel Orlando Furioso em livros portugueses de cavalaria pistas de investigaccedilatildeo In Revista eHumanista vol 8 2007 O estudo de Isabel Almeida demonstra os efeitos imitativos operados entre o Clarimundo de Joatildeo de Barros e o Orlando Furioso de Aristo repassando sobretudo imagens e construccedilotildees cenograacuteficas

3 DIAacuteZ-TOLEDO Aureacutelio Vargas Os livros de cavalaria renascentistas nas histoacuterias da literatura portuguesa Peniacutensula Revista de Estudos Ibeacutericos n 3 2006 p 239 Ver tambeacutem excelente livro do prof Aureacutelio intitulado Os livros de cavalarias portugueses dos seacuteculos XVI ndash XVIII Lisboa Pearlbooks 2012 p 17

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seiscentista a aacutervore genealoacutegica anterior eacute substituiacuteda pela estampa de um cavaleiro rei pronto para a batalha tendo agrave frente uma mesquita Essa figuraccedilatildeo imita a portada da ediccedilatildeo quinhentista do Amadis de Gaula impressa em Veneza no ano de 1533 Com isso o Clarimundo ldquomata-turcosrdquo bastante notoacuterio na narrativa sobrepotildee-se agravequela imagem do imperador de Constantinopla e assim impotildee-se na representaccedilatildeo do rei natildeo a gloacuteria do trono bizantino mas o valor de cruzado cristatildeo os merecimentos da ldquoguerra justardquo contra o infiel

Embora o apelo das estampas se diferencie o cotejo dos textos mostra que se tratou apenas de outra impressatildeo do texto quinhentista com pequenas atualizaccedilotildees graacuteficas e linguiacutesticas Nada mais O mesmo natildeo se pode dizer acerca da ediccedilatildeo de 1742 na qual se baseiam as leituras mais recentes respectivamente 1791 1843 e 1953 essa uacuteltima a mais conhecida do grande puacuteblico a cargo do professor Marques Braga e editada pela coleccedilatildeo Claacutessicos Saacute da Costa Acompanha a ediccedilatildeo setecentista a Vida de Joatildeo de Barros composta pelo letrado seiscentista Manuel Severim de Faria4 Uma vida segundo os preceitos antigos do gecircnero encomiaacutestica com o fim de mostrar os merecimentos do historiador que o tornavam apto para o serviccedilo da monarquia catoacutelica portuguesa Antes de tudo conveacutem observar que a ediccedilatildeo de 1742 altera bastante a elocuccedilatildeo da editio princeps desfazendo-lhe o caraacuteter parcial de ldquoPrymera parterdquo e intitulando-a de Chronica do emperador Clarimundo donde os reis de Portugal descendem tirada da linguagem ungara em a nossa Portugueza dirigida ao Esclarecido priacutencipe D Joatildeo Filho do muy Poderoso Rey D Manoel primeiro deste nome Para tanto emenda-lhe um capiacutetulo final que mesmo natildeo aparecendo na taacutebua de capiacutetulos encontra-se no volume terceiro como cap XXVIII no qual narra-se a morte honrosa de Clarimundo mantendo-se afinado com o decoro da personagem e com a elocuccedilatildeo de Joatildeo de Barros Ademais para o editor setecentista a genealogia proposta por Barros na falta de partes que a continuem resolve-se na chegada do filho de Clarimundo ndash D Sancho ndash agrave Peniacutensula a continuaccedilatildeo seria a histoacuteria dos reis que tantos cronistas fizeram Para isso o desfecho apoacutecrifo narra a viagem maravilhosa de D Sancho filho do imperador de Constantinopla Clarimundo e da imperatriz Clarinda em terras ibeacutericas ldquoDe como o priacutencipe D Sancho e seus primos foram levados a Espanha e de como foram feitos reis e da morte do imperador Clarimundordquo5 As modificaccedilotildees dessa ediccedilatildeo estatildeo em consonacircncia com fins eacuteticos e poliacuteticos proacuteprios do discurso da histoacuteria que se mantecircm numa longa duraccedilatildeo nas composiccedilotildees do gecircnero nos seacuteculos XVI XVII e XVIII

4 FARIA Manuel Severim de Discursos varios poliacuteticos por Manoel Severim de Faria Chantre amp Conego na Santa Secirc de Euora Em Euora impressos por Manoel Carvalho impressor da Vniversidade 1624 Cf tambeacutem excelente artigo de Luis Cristiano de Andrade Os preceitos da memoacuteria Manuel Severim de Faria inventor de autoridades lusas In Histoacuterias e perspectivas Uberlacircndia 34 janjun 2006 107-137

5 Cf Croacutenica do emperador Clarimundo op cit p 299 e seguintes O pastiche como o chama Isabel Almeida foi acrescentado no seacuteculo XVIII e deu unidade agrave obra alterando-a drasticamente no seu aspecto de inacabada ou parcialmente publicada

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O exemplar da editio princeps impressa em 1522 que pertence agrave Biblioteca Nacional de Madrid encontra-se em muito bom estado de conservaccedilatildeo6 Trata-se de um impresso elegante legiacutevel com portada na qual estampa-se a figura de Clarimundo e a genealogia dos reis portugueses desde D Sancho e D Henrique ateacute D Joatildeo III Saiu das prensas de Germatildeo de Galharde impressor francecircs radicado em Portugal e que mais publicou obras no seacuteculo XVI em terras lusitanas depois de Joatildeo de Barreira Entre 1509 e 1561 imprimiu em Lisboa e em Coimbra nas prensas do Mosteiro de Santa Cruz usando na maioria dos livros caracteres goacuteticos Seus emblemas tipograacuteficos trazem a esfera armilar o escudo de armas reais e um grifo no timbre Galharde imprimiu outras narrativas de aventuras de cavaleiros como as trecircs partes do Florando de Inglaterra impressas em 15457

No caso do Clarimundo as manchas trazem tipos em letra goacutetica menor cada capiacutetulo eacute introduzido por uma letra ornamentada e os foacutelios satildeo enumerados nos versos do lado direito superior da paacutegina com nuacutemeros romanos A obra compotildee-se pela ldquoTavoadardquo dos trecircs livros por dois proacutelogos ldquoProacutelogo feyto depoys desta obra imprensardquo dirigido ao rei D Joatildeo III e um ldquoProacutelogo sobre a trasladaccedilam da primeira parte da cronica do emperador Clarimundordquo dedicado ao priacutencipe D Joatildeo a ldquoConcordanccedilia que o trasladador faz antre dous cronistas sobre a vinda de dom Anrique nestes reynos despanha e sobre sua genealogiardquo por 114 capiacutetulos divididos em trecircs livros o libro primeiro do foacutelio III ao LIII do capiacutetulos I ao XXXIIII (sic) (34 capiacutetulos) o libro segundo do foacutelio LIII ao CXXIII r do capiacutetulo XXXV ao LXXVIII (43 capiacutetulos) e o libro terccedileyro do foacutelio CXXIII r ao CLXXVI do cap LXXIX ao CXIIII (35 capiacutetulos)8 Haacute um evidente equiliacutebrio na extensatildeo dos capiacutetulos ordenados em trecircs livros o livro primeiro trata da famiacutelia do nascimento da criaccedilatildeo da sagraccedilatildeo do heroacutei como cavaleiro de vaacuterias batalhas entre elas o embate com os gigantes Learco e Pantafasul para libertar a rainha Briaina que reconhece em Belifonte seu filho Clarimundo O primeiro livro conclui-se com a chegada e os combates da Ilha Perfeita Nesse livro a personagem central Clarimundo tem outros nomes de acordo com as circunstacircncias que enfrenta nomeando-se como ldquoBelifonterdquo e ldquoCavaleiro das

6 Prymeira parte da croacutenica do emperador Clarimundo donde os Reys de Portugal desccedilendem de Joatildeo de Barros Lisboa Germatildeo de Galharde 1522 Biblioteca Nacional de Madrid (R-11-727) Haacute um exemplar da segunda impressatildeo de 1555 na Biblioteca do Paccedilo Ducal de Vila Viccedilosa As outras ediccedilotildees satildeo 1601 Clarimundo Lisboa Antoacutenio Alvarez a custa de Andreacute Lopes e outra a custa de Hieroacutenimo Lopes 1742 Chronica do Emperador Clarimundo Lisboa Na Officina de Francisco da Sylva 1791 Chronica do emperador Clarimundo donde os reis de portugal descendem tirada da linguagem ungara em a nossa Lisboa Officina de Joao Antonio da Silva Desta ediccedilatildeo haacute um exemplar na biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da USP 1953 Croacutenica do imperador Clarimundo Com pref e notas do prof Marques Braga Lisboa Saacute da Costa

7 Cf Aureacutelio Vargas Diacuteaz-Toledo Os romances de cavalaria portugueses na sua versatildeo impressa In Os livros de cavalarias portugueses dos seacuteculos XVI ndash XVIII Lisboa Pearlbooks 2012 p 47 Este livro eacute um bem realizado manual que situa as publicaccedilotildees de cavalaria portuguesas tanto os impressos quanto manuscritos servindo de importante guia para os futuros estudiosos

8 No apecircndice final encontra-se um cotejo entre a ldquotavoadardquo de capiacutetulos da editio princeps (reimpressatildeo de 1555 e a editada de 1601) e as ediccedilotildees de 1742 (base das posteriores)

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Laacutegrimas Tristesrdquo O livro segundo trata dos amores do cavaleiro os feitos em armas os episoacutedios de corte sobretudo em Constantinopla Nesse livro ocorre a aventura na qual Clarimundo encantado pelo ldquovaso do esquecimentordquo um tipo de bebida maacutegica eacute acometido por certa loucura e se nomeia ldquoCavaleiro Descuidadordquo respondendo agravequeles com quem fala por meio de versos rimados O terceiro livro trata das profecias do Saacutebio Fanimor sobre os reis de Portugal prenunciando sobretudo os embates entre cristatildeos e mouros recorrentes entre os reis lusitanos

O exemplar da editio princeps utilizado eacute coacutepia digital do livro que pertenceu agrave biblioteca de Pascual de Gayangos ceacutelebre estudioso ibeacuterico de narrativas de cavalarias Ademais eacute curioso que a narrativa de Joatildeo de Barros compartilhe a mesma encadernaccedilatildeo que o livro Espelho de Cristina de Cristine de Pisan impresso em 1518 a mando da Rainha velha D Leonor Embora sejam dois impressores diferentes Germatildeo de Galharde e Herman de Campos e as obras estampadas com quatro anos de distacircncia a encadernaccedilatildeo com os livros geminados natildeo parece compor uma compilaccedilatildeo desatada de obras mas reunir em volume uacutenico obras de gecircnero semelhante ou seja obras de ensinamento moral numa as excelecircncias e virtudes do priacutencipe figuradas no caraacuteter do Clarimundo noutra as virtudes das princesas das mulheres burguesas e das religiosas9

2 O objeto de estudo o episoacutedio da Floresta Encantada cena de pictoacuterico heroiacutesmo

Aleacutem da importacircncia histoacuterica da narrativa cavaleiresca de Joatildeo de Barros o livro compotildee-se como mencionamos como obra dirigida agrave cabeccedila do reino realizada com o esmero que as obras dedicadas aos priacutencipes e reis costumavam receber Assim de imediato podemos destacar o uso apurado da liacutengua portuguesa quinhentista e imitando obras da Antiguidade Latina sobretudo a prosa latina de Suetocircnio propor em liacutengua vernaacutecula a narrativa de batalhas e feitos de cavaleiros com ornamentos e arranjos de linguagem que bem avivam nos leitores os efeitos da mateacuteria narrada Natildeo devemos perder de vista que se trata de obra realizada para a leitura puacuteblica havendo portanto uma ordenaccedilatildeo discursiva que bem atende a esse costume Ademais antes de passarmos ao objeto deste estudo vale atentarmos para o elogio que Eduardo Lourenccedilo confere ao Clarimundo de Joatildeo de Barros destacando justamente os aspectos de primor no uso da linguagem na obra

9 Colofatildeo do impresso do Espelho de Cristina (1518 sn) ldquoPor mandado da muyto esclarecida reyna dona lyanor molher do poderoso e muy manifico rey dotilde juan segundo de portugal Acabouse el libro intitulado das tres virtudes no qual se cotildetem muytas profeytosas doutrinas y saludables exemplos assy pera as generosas y grandes donas como pera as outras de qualquer estado o condiccediliom que sejam E poderam enelle de prender como se ham de regir e governar no regimento de suas casas fazendas y homrras Impresso em ha muy nobre y sempre leal cibdade de lixboa por herman de campos Imprimidor y bomardeyro do rey nosso senhor cotilde gracia y privilegio de su alteza Anno de nostra salvaccedilammdyxviiiannosaxxdias do mes de juniordquo

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Se haacute um livro admiravelmente escrito nesses comeccedilos do seacuteculo XVI () eacute bem esta a primeira obra daquele que se tornaraacute o modelo da nossa grande prosa nobre clara grave e ao mesmo tempo corrente do seacuteculo de Quinhentos Com ele a Idade Meacutedia da nossa liacutengua ainda tatildeo sensiacutevel em Gil Vicente termina e entramos na planiacutecie suave aberta da assimilaccedilatildeo fecunda dos grandes autores claacutessicos que serviraacute de modelo escrito mas tambeacutem de modelo de pensar a nossa melhor prosa do seacuteculo XVI (LOURENCcedilO 1999 p 36)

Feito este proecircmio passamos a tratar daquilo que pretendemos mostrar mais detidamente O verbo ldquomostrarrdquo eacute propositalmente utilizado aqui jaacute que nosso intento eacute falar de demonstraccedilatildeo de figuraccedilatildeo de ekphrasis traduzida pelos latinos como descriptio utilizada como procedimento retoacuterico com fim na enargeia termo da preceituaccedilatildeo retoacuterica antiga que significa exatamente ldquocolocar diante dos olhosrdquo Tratamos de um episoacutedio miraculoso da narrativa de Joatildeo de Barros no qual a ekphrasis opera discursivamente para a produccedilatildeo de efeitos tal como soacutei acontecer com o uso desse artificio textual dizemos logo do efeito para depois atermo-nos no artifiacutecio colocar diante do olhos para ensinar preceito moral colocar diante dos olhos para compor caracteres Antes da cena passemos a algumas breviacutessimas consideraccedilotildees acerca da ekphrasis por alguns estudiosos recentes e na preceptiva de alguns retores antigos e depois vejamos o episoacutedio da narrativa de Joatildeo de Barros em questatildeo

A ekphrasis associa-se a teacutecnicas de amplificaccedilatildeo de toacutepicas narrativas nos diversos gecircneros retoacutericos (HANSEN 2006 p 85) ou como propotildee Barbara Cassin em verbete dedicado ao conceito ldquoeacute uma construccedilatildeo de frases que esgota seu objeto e designa terminologicamente as descriccedilotildees minuciosas e completas que se datildeo de obras de arterdquo10 Segundo os Progymnasmata (Exerciacutecios preparatoacuterios) de Hermoacutegenes a ekphrasis traduzida como ldquodescriccedilatildeordquo consiste em ldquoum enunciado que apresenta em detalhe como dizem os teoacutericos que tem a evidecircncia (enargeia) e que coloca sob os olhos o que ele mostrardquo (HERMOGEacuteNE 1997 p 148) Michel Patillon no estudo introdutoacuterio da ediccedilatildeo francesa da preceptiva de Hermoacutegenes cita um estudo de Zanger o ldquoEnargeia in the ancient Criticism of Poetryrdquo no qual realiza-se uma proposta de siacutentese dos fins a que se propotildee a enargeia ldquoA evidecircncia do estilo eacute sua capacidade de oferecer uma representaccedilatildeo

10 Baacuterbara Cassin em ldquoLrsquolaquo ekphrasis raquo du mot au motrdquo apresenta uma siacutentese do que teria sido o artificio da ekprasis ou descriptio latina tratando da formulaccedilatildeo e do funcionamento na composiccedilatildeo discursiva do termo bem como obras diversas da Antiguidade grega e latina que se valeram do recurso da ekphrasis sendo o ldquoEscudo de Aquilesrdquo uma das mais ceacutelebres realizaccedilotildees da figura ldquoLrsquo ekphrasis [ἔκϕρασις] (sur phrazugrave [ϕράζω] faire comprendre expliquer et ek [ἐκ] jusqursquoau bout) est une mise en phrases qui egravepuise son objet et degravesigne terminologiquement les descriptions minutieuses et compleumltes qursquoon donne des oeuvres drsquoartrdquo Disponiacutevel em In lthttprobertbvdepcompublicvepPages_HTML$DESCRIPTION1HTMgt Acesso em novembro de 2017

Aproveitamos o ensejo e indicamos ao leitor o execelente artigo de Aacutelvaro Cardoso Gomes intitulado ldquoUm mimese da cultura (um estudo da figura retoacuterica da Ekprasis) In Revista de Letras Satildeo Paulo v54 n2 p123-144 juldez 2014

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viva do objeto que se propotildee a colocaacute-lo diante dos olhos do auditoacuterio Isso obteacutem-se essencialmente pela acumulaccedilatildeo de detalhes e o emprego de imagensrdquo (HERMOGEacuteNE 1997 p 49) Aleacutem disso com Hermoacutegenes aprendemos que os objetos a serem descritos pertencem a uma lista bem ampla ldquoas descriccedilotildees satildeo feitas de personagens de accedilotildees de circunstacircncias de lugares de tempos etcrdquo Por exemplo Libanos orador do seacuteculo IV descreve combates em terra uma pintura na sala do conselho festas a embriaguez a primavera um porto um jardim uma caccedila uma batalha naval um leatildeo abocanhando um cervo Hera Heacutercules a destruiccedilatildeo de Troia Polixena assassinada por Neoptoacutelemo Prometeu Medeacuteia a Quimera Palas Ajax a Fortuna etc um panegiacuterico a beleza Outro exemplo Aftocircnio o ceacutelebre preceptista da segunda sofiacutestica preceitua para a descriccedilatildeo de pessoa ndash dita prosopografia ndash que comece pelo alto na cabeccedila e siga em direccedilatildeo ao peacutes Para os fatos comeccedila a descriccedilatildeo pelo que precedeu em direccedilatildeo ao ocorrido Como nos lembra Joatildeo Adolfo Hansen a ekphrasis relaciona-se diretamente com passagens iniciais da poeacutetica e da retoacuterica aristoteacutelica quando ambas defendem que tanto historiadores quanto poetas devem compor com verossimilhanccedila isto eacute aristotelicamente verossiacutemil eacute aquilo que se toma por verdadeiro pela maioria ou pelos mais saacutebios Nesse sentido o verossiacutemil define-se como uma relaccedilatildeo entre discursos e a verificaccedilatildeo de coerecircncia entre um e outro como condiccedilatildeo de aceitaccedilatildeo

Uma das autoridades antigas mais ceacutelebres de ekphrasis eacute Filoacutestrato de Lemos e seus Eikones (Descricotildees) obra antiga grega na qual propotildee-se a descriccedilatildeo de cenas quadros pinturas que existem discursivamente e que se colocam diante dos olhos pela habilidade letrada de Filoacutestrato Para menores delongas na Rhetorica ad Herennium uma das mais acessadas na histoacuteria dos discursos a Descriptio eacute tratada na parte sobre os ornamentos de sentenccedila e deixando de lado os exemplos que didaticamente apresenta destaco duas acepccedilotildees entatildeo divulgadas ldquoa descriccedilatildeo conteacutem uma exposiccedilatildeo perspiacutecua clara e grave das consequecircncias das accedilotildees (coisas)rdquo11 e os efeitos da descriccedilatildeo segundo a preceptiva satildeo ldquoCom esse gecircnero de ornamento pode-se suscitar indignaccedilatildeo ou misericoacuterdia quando todas as consequecircncias reunidas se exprimem brevemente num discurso perspiacutecuordquo Faz-se necessaacuterio atentar para um detalhe apenas colocando-o diante dos nossos olhos um termo que aparece ao iniacutecio e ao fim das consideraccedilotildees sobre a descriptio termo latino de ekprasis eacute o adjetivo perspicuus a um em vernaacuteculo com sentido de claro liacutempido evidente manifesto

Na diegese da narrativa a ekphrasis instaura uma pausa das accedilotildees para a contemplaccedilatildeo de uma figura Cessam os movimentos das accedilotildees para o repouso do olhar que mira as formas as pedras os metais as cores as dimensotildees os gestos as linhas os contornos etc que aparentemente instauram outra natureza discursiva no entanto o aparente corte do fluxo narrativo desfaz-se ao notar-se a conexatildeo entre as partes Isto eacute a descriccedilatildeo estaacute em funccedilatildeo da narraccedilatildeo funcionando-lhe como artifiacutecio que compotildee caracteres e efetuam paixotildees

11 A traduccedilatildeo inglesa da Loeb Classical Library ldquoVivid Description is the name for the figure which contains a clear lucid and impressive exposition of the consequences of an actrdquo (op cit p 357)

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Muito haveria ainda para ser dito acerca da ekfrasis e do seu efeito principal de enargeia sobretudo acerca de seu aspecto retoacuterico mais imediato a persuasatildeo decorrente da amplificaccedilatildeo que produz mas para o que se pretende aqui jaacute eacute o suficiente Para mais sugerimos nas Descriccedilotildees de Filoacutestrato o artigo ldquoCategorias epidiacuteticas da ekphrasisrdquo citado o capiacutetulo da Arte Retoacuterica de Hermoacutegenes sobre as ldquoDescriccedilotildeesrdquo e destaco a ceacutelebre obra de Antoine Du Verdier intitulada La prosopographie ou description des personnes insignes enrichie de plusieurs effigies e reduite en quatre livres publicada em 1583

Passemos agora agrave leitura da cena de Clarimundo que pretendemos analisar Nosso fim eacute observar como a narrativa de Barros vale-se da ldquopausardquo das accedilotildees resultante da descriccedilatildeo de um monumento no qual se datildeo eventos miraculosos dentro da poeacutetica das narrativas de cavaleiros O episoacutedio da ldquoFloresta Encantadardquo produz-se pelo artifiacutecio da ekphrasis ou descriptio colocando diante dos olhos do leitor um minucioso quadro que se constitui tanto do cenaacuterio como de figuras centrais como a cabeccedila esculpida de ouro que fala com Clarimundo

Episoacutedio da Floresta Encantada

() e chegando ao mais baixo e escuro lugar daquele vale viu um corucheacuteu que seria da altura de trinta braccedilas coberto de pedra negra e leonado com extremos de pardo e sustinha-se sobre quatro colunas de metal de quinze braccedilas e da grossura necessaacuteria para tamanho peso as quais era lavradas ao buril de histoacuterias antigas e debaixo desse corucheacuteu estava uma sepultura agrave maneira de essa que tinha cinquenta degraus de pedra negra e nos cantos da quadra estavam estas quatro alimaacuterias feitas de metal que a sustinham sobre si um leatildeo um tigre um touro e um grifo feitos tatildeo artificiosamente e com tal espiacuterito e agudeza nos olhos e em todas as outras feiccedilotildees que enganavam a vista para os temer e natildeo para folgar de os olhar E cada alimaacuteria destas tinha entre as matildeos um ciacuterio negro que ardia sem se consumir tatildeo altos que chegavam agrave maior altura daquela essa Nos outros cantos da quadra que o derradeiro degrau fazia estava em cada um uma imagem de gigante armado com todas as suas armas somente a cabeccedila descoberta porque no rosto mostrava maior ferocidade que nas armas que lho podiam cobrir e tinham suas bisarmas nas matildeos para defender a subida No estrado de todo acima estava uma imagem de mulher feita de prata assentada em uma cadeira real e na cabeccedila tinha uma coroa de ouro a modo de imperatriz mostrando grande acatamento e nas matildeos um cofre de barro que tinha os fechos de ouro e na cinta estava a chave dele (BARROS 1953 vol II p 202-203)

Os elementos da descriccedilatildeo evidenciam-se na pintura de formas objetos alturas volumes ornamentos cores pedras arquitetura etc Elementos esses que compotildee o quadro no qual se cristaliza a narrativa e se emoldura a accedilatildeo de que participa Clarimundo e seu interlocutor miraculoso essa descriccedilatildeo introduz uma das cenas mais marcantes de tantas que o Clarimundo conteacutem depois de enfrentar as estaacutetuas de pedra guardiatildes de um edifiacutecio tumular (essa) que por maravilha se tornaram animadas e tentam-no impedir a entrada no mausoleacuteu Clarimundo toma a chave presente da cinta da estaacutetua de prata e

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abre certa arca de barro ali depositada Nela encontra-se a cabeccedila de um rei feita de ouro ldquocom uma coroa de pedraria de grande preccedilordquo Para espanto e maravilha como o proacuteprio narrador ressalta a cabeccedila comeccedila a falar e o seu discurso justifica toda a amplificaccedilatildeo que o texto compotildee em torno de si A narrativa na fala da cabeccedila suspende seu curso e daacute ao rei a primeira voz em discurso direto apresentando os lamentos de um monarca de vida atormentada pelas injusticcedilas feitas no exerciacutecio do poder

Todas as noites tanto que me recolhia em minha cacircmara dos negoacutecios do dia vinha alma de meu pai que era passado deste mundo e com umas vergas de ferro me accediloutava tatildeo cruelmente que me parecia natildeo poder chegar agrave manhatilde segundo me deixava atormentado poreacutem tanto que se partia de mim ficava livre daquela dor (BARROS 1953 vol II p 206)

O filho (cuja cabeccedila de ouro conversava com Clarimundo) recebia as visitas noturnas do pai rei jaacute falecido e de quem recebera o trono e deste uacuteltimo sofria tormentos porque herdara natildeo apenas as riquezas do reino mas vieram tambeacutem com elas as injusticcedilas desmandos assassinatos e usurpaccedilotildees O descanso do pai se daria com os fracassos do filho com a perda da heranccedila maldita de um reinado que se fizera tiracircnico Na diegese da narrativa Clarimundo estava predestinado a encontrar aquela sepultura e ouvir da cabeccedila de ouro os vaticiacutenios sobre as gloacuterias da sua prole de digniacutessimos reis Aquela cabeccedila encantada a partir do encontro com Clarimundo dispotildee-se agrave conversaccedilatildeo com cavaleiros que lhe sejam merecedores em bondade das armas para os quais revelaraacute as coisas futuras A fala da personagem miraculosa a escultura falante expotildee na formulaccedilatildeo de seu discurso o enaltecimento da linhagem de Clarimundo amplificando os merecimentos da descendecircncia do cavaleiro huacutengaro e por decorrecircncia da Casa Real portuguesa Mais o reforccedilo dos conselhos de pareneacutetica reacutegia centrais na narrativa datildeo-se nos lamentos acerca do destino dos monarcas viciosos o supliacutecio post mortem do agente e o tormento em vida do herdeiro penalizado pela derrota fatal A ekphrasis do tuacutemulo da Floresta encantada apoacutes a passagem de Clarimundo converte-se numa ldquoArca da sabedoriardquo e potildee agrave frente dos olhos a grandeza de um monumentum (no sentido latino de ldquoaquilo que se deve lembrarrdquo) que enaltece os saberes necessaacuterio dirigido aos priacutencipes reis e fidalgos em geral ligados ao comando do reino o destino daqueles que praticam injusticcedila e tirania na conduccedilatildeo da coisa puacuteblica Como se realiza de modo recorrente na narrativa de Joatildeo de Barros as cenas maravilhosas de aventuras e batalhas satildeo sucedidas por aconselhamentos e demonstraccedilotildees de saberes eacuteticos concernentes agrave excelecircncia do poder Nesse sentido a ficccedilatildeo (no sentido de fictio de imagem e figura) do Clarimundo corrobora ou melhor alinha-se agrave ceacutelebre maacutexima horaciana preconizada na Carta aos Pisotildees a chamada Arte poeacutetica de Horaacutecio que ao deleite se siga o ensinamento e no caso ensinamento poliacutetico de extrema relevacircncia numa ordem monaacuterquica de poder

O ensinamento proposto evidencia-se nas sentenccedilas da narrativa nessa passagem entrelaccedila-se a vida e a morte o terreno e o aleacutem ou melhor a praacutetica terrena e o castigo vindouro e como lembra Isabel de Almeida ldquoa responsabilidade de pensamento e actos

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reacutegios em foco no exemplordquo Seguindo o raciociacutenio de Almeida e pensando no caso especiacutefico dessa passagem o ensinamento preconizado diz respeito agrave distinccedilatildeo entre governo e tirania entre a conquista insana de comarcotildees e a guerra justa aquela que se embate com o inimigo infiel sobretudo o turco

Ademais no que diz respeito agrave construccedilatildeo retoacuterica da cena torna-se bastante eloquente e decoroso atribuir a uma aacuteurea cabeccedila de imperador todo o discurso que ouvimos e mais numa anaacutelise do episoacutedio em relaccedilatildeo agrave totalidade da narrativa evidenciam-se as provaacuteveis fontes de invenccedilatildeo da representaccedilatildeo Devemos lembrar que no canto VI Eneias encontra-se em Cumes e pede agrave Sibila um uacuteltimo encontro com seu falecido pai Anquises Para tanto Eneias desceria ao mundo dos mortos encontraacute-lo-ia e ouviria dele tal como vemos na cena do Clarimundo os vaticiacutenios sobre sua elevada ascendecircncia

Cessa Anquises a Eneias e a SibilaTraz ao mais basto da ruidosa turbaUm combro toma donde a extensa filaDivise dos que vecircm e a todos possaOs traccedilos discernir Entatildeo prossegueldquoEia a gloacuteria que os Daacuterdanos esperaDo iacutetalo tronco os descendentes nossosQue a fama ilustraratildeo dos seus maioresHei de explicar-te e aprenderaacutes teus fadosNotas proacuteximo agrave luz por sorte um jovemSe arrima em hasta pura agraves auras mistoLatino sangue surgiraacute primeiroO teu postremo Siacutelvio nome albanoQue a ti longevo pariraacute nas selvasTarde Laviacutenia rei de reis estiacutepitePor quem seremos de Alba inda senhores (VIRGILIO 2008 versos 771-786)

A longa jornada de Eneias pelo mundo dos mortos estaacute para a descriccedilatildeo e as aventuras de Clarimundo ao penetrar na sepultura encantada seguindo por uma escada guardada por grandes estaacutetuas de pedra que a defendiam dos intrusos Do mesmo modo ouvimos o vaticiacutenio e os ensinamentos sobre as virtudes de rei da boca de figuras autorizadas para tais dizeres pelo caraacuteter que apresentam na narrativa um rei do passado representado numa cabeccedila de ouro que maravilhosamente fala como um monumento loquaz que ldquofaz lembrarrdquo o infortuacutenio de um reino malfadado pela injusticcedila e pelos viacutecios No entanto em meio a tantas penas e desconcertos a cabeccedila exorta ao futuro imperador de Greacutecia as virtudes necessaacuterias agrave cabeccedila do reino - o rei

Outra fonte verossiacutemil de invenccedilatildeo encontra-se no Orlando Furioso de Ariosto No canto III Bradamante encontra-se numa capela na qual lhe aparece uma figura ldquovem descalccedila traz soltas vestimentas E grenhas e por nome a cumprimentardquo Bradamante eacute guiada a uma entrada uma gruta

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Santa e antiga eacute esta gruta e quem a fezConstruir foi Merlim o saacutebio magoQue aqui (teraacutes ouvido isso talvez)Caiu no engano da Dama do LagoSeu corpo haacute muito em poacute jaacute se desfezE jaz neste sepulcro onde ele pagoDe dar ouvidos agravequela mulherVivo deitou-se e morto estaacute a jazer (ARIOSTO 2002 p 94)

A imitaccedilatildeo parece verossiacutemil pelos procedimentos de composiccedilatildeo estando as cinzas de Merlim para a cabeccedila de ouro do imperador ambos finados por causa de seus enganos e no mundo dos mortos expiam sua condiccedilatildeo pela profecia e pelo ensinamento Vejamos um pouco mais do canto III do Orlando Furioso de Ariosto as profecias de Merlim sobre a ascendecircncia de Bradamante e Ruggiero

Tatildeo logo Bradamante dos umbraisSe aproxima da fuacutenebre capelaCom voz sonora dos restos mortaisO espiacuterito vivente diz a ela- Que a Fortuna te ajude sempre maisOacute casta e nobiliacutessima donzelaCujo seio traraacute o germe fecundoDa gente a que honraratildeo Itaacutelia e o mundo (ARIOSTO 2002 p 96)

A pena de Ariosto compotildee uma genealogia elevada para a Casa DrsquoEste a quem se dedica o Orlando elogiando-a pela elevaccedilatildeo dos seus primeiros pais e descrevendo-lhe os ilustres filhos e seus feitos A imitaccedilatildeo de Joatildeo de Barros compartilha dos mesmos procedimentos de elogio pela elevaccedilatildeo da genealogia no entanto daacute soluccedilotildees diferentes e de certo modo eficientes no que diz respeito ao deleite do leitor isto eacute a cena da ldquoFloresta Encantadardquo como ocorre em vaacuterios outros episoacutedios do Clarimundo satildeo prenuacutencios dos vaticiacutenios da Torre de Sintra episoacutedio central na narrativa de Barros12 Com isso constitui-se uma unidade e uma evidenciaccedilatildeo do momento no qual se confirmam os merecimentos de Clarimundo e pela proacutepria disposiccedilatildeo narrativa anunciam e preparam as profecias de Fanimor

12 O episoacutedio da torre de Sintra eacute a cena mais lembrada do Clarimundo na sua remissatildeo criacutetica breve apresentada em geral nos manuais de histoacuteria da literatura portuguesa Esse episoacutedio apresenta Clarimundo em terras portuguesas e na companhia de Fanimor um mago que protege o priacutencipe em toda a narrativa e que no alto da torre de Sintra vaticina em oitavas rimas toda a descendecircncia heroica do priacutencipe Clarimundo Na ediccedilatildeo de Marques Braga estaacute no capiacutetulo IV do livro III intitulado ldquoComo partidos os moradores de Sintra quisera Clarimundo ir ao castelo de Torres Vedras mas foi desviado por Fanimor E das grandes profecias que profetizou acerca das coisas de Portugalrdquo

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A leitura do discurso transcrito atribuiacutedo ao imperador condenado remete-nos a uma provaacutevel fonte da filosofia moral cristatilde preconizada por Joatildeo de Barros Trata-se do capiacutetulo XXIV do quinto livro da Cidade de Deus de Santo Agostinho no qual se apresentam as virtudes que garantem a felicidade dos imperadores cristatildeos

Nem noacutes chamamos felizes a alguns imperadores cristatildeos laacute porque reinaram por muito tempo e legaram apoacutes uma plaacutecida morte o impeacuterio aos filhos ou domaram os inimigos da Repuacuteblica ou conseguiram prevenir e reprimir cidadatildeos que contra si se rebelaram Estas e outras daacutedivas ou consolaccedilotildees desta vida atribulada tambeacutem certos adoradores dos democircnios mereceram recebecirc-las sem pertencerem como aqueles pertencem ao reino de Deus ndash e Deus assim o decidiu na sua misericoacuterdia para que os que nrsquoEle creem natildeo as desejassem como se elas fossem o Bem Supremo (AGOSTINHO 2006 p 541)

A doutrina moral desta passagem eacute anaacuteloga agrave representaccedilatildeo do discurso da cabeccedila de ouro indicando o inferno e as tormentas eternas como fim daqueles que ao contraacuterio do que vimos desejam as conquistas mundanas em si mesmas movidos pela ambiccedilatildeo viciosa Para Agostinho o imperador cristatildeo feliz governa com justiccedila natildeo se orgulha com elogios e se lembra de que eacute homem submete seu poder agrave majestade de Deus a fim de dilatar ao maacuteximo seu culto teme a Deus ama-o e teme-o satildeo lentos a punir e prontos a perdoar exercem a vinganccedila pela obrigaccedilatildeo de protegerem a repuacuteblica e natildeo para cevarem os seus oacutedios contra os inimigos concedem o perdatildeo na esperanccedila da emenda compensam as medidas severas com a brandura da misericoacuterdia e a largueza dos benefiacutecios preferem dominar em si as paixotildees a quaisquer povos e tudo isso em amor agrave felicidade eterna e natildeo agrave gloacuteria terrena A construccedilatildeo do caraacuteter heroico de Clarimundo daacute-se pela sucessatildeo de suas accedilotildees nas diversas circunstacircncias enfrentadas o que se evidencia em episoacutedios como a aventura da ldquoFloresta Encantadardquo o episoacutedio da ldquoIlha Perfeitardquo a aventura nos domiacutenios da maga Arpinda a fidelidade ao amor de Clarinda Assim o caraacuteter da personagem Clarimundo confirma em palavras e feitos os prenuacutencios do mago Fanimor e endossam modelos reacutegios preconizados em obras autorizadas sobre a figura do rei e do priacutencipe excelentes

Voltando ao discurso da estaacutetua conveacutem observar alguns elementos de sua constituiccedilatildeo natildeo apenas por seus argumentos de filosofia moral mas tambeacutem pelos artifiacutecios elocutivos utilizados Precede agrave revelaccedilatildeo da estaacutetua falante um trecho entre parecircnteses que enaltece ao leitor em forma de digressatildeo a ldquomaravilhardquo daquele momento ldquooh cousa maravilhosa de crer e espantosa para cometer se outras de tanta admiraccedilatildeo natildeo tiveacuteramos vistordquo O proecircmio do discurso seguinte utiliza-se de toacutepicas de captatio benevolentiae nesse caso com fins agrave piedade jaacute que se procede por construccedilotildees argumentativas antiteacuteticas que num primeiro membro revela o poder a gloacuteria a sabedoria os domiacutenios sobre os ceacuteus e as terras para logo em seguida apoacutes uma digressatildeo acerca da fraqueza de tudo que eacute humano e terreno revelarem-se os termos antagocircnicos ao poder agrave gloacuteria e agrave sabedoria quais sejam a tormenta

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o fracasso e a morte O cerne de toda a argumentaccedilatildeo encontra-se na descriccedilatildeo de um sonho no qual se revela a causa da perdiccedilatildeo dos reis a injusticcedila e a tirania Viacutecios estes que condenam agraves tormentas eternas no inferno Todo o pathos desta cena sobretudo na descriccedilatildeo do sonho serve como recurso retoacuterico de evidenciaccedilatildeo da seccedilatildeo posterior do episoacutedio que traz o elogio da luta contra os turcos um dos pontos centrais deste capiacutetulo e do Clarimundo

E no te[m]poacute q[ue] a nobre cavalaria de Greacutecia desfalleccediler q[ue] sera quatildedo se nam achar neste impeacuterio que[m] suba o primeiro degrao desta minha sepoltura entam sera por seus pecados tomado e posuydo dos Turcos Entrando per elle como os baacuterbaros entraratilde na feroz Espanha q[ua]ndo dom Rodrygo o derradeyro rey dos Godos a perdeo E assi tatilde bem como os reys Portugueses q[ue] de ty am de proceder lanccedilaram [de] suas terras a esta danada seyta e entraratilde nas partes Dafrica e Asia regando od catildepos cotilde o sangue desta barbara Ge[n]te (Prymera parte da crocircnica livro II fol XCIII)

Eacute interessante notar a proeminecircncia da guerra contra os mouros na gloacuteria futura da profecia e mais do que isso notar o artifiacutecio retoacuterico de associaccedilatildeo por equivalecircncia das investidas dos Turcos e as investidas baacuterbaras registradas nas crocircnicas ibeacutericas desde o seacuteculo XIII Com isso a narrativa fabulosa apresenta-se como crocircnica como histoacuteria na qual realiza-se a propaganda contra os inimigos da feacute Aleacutem disso haacute um artifiacutecio retoacuterico no argumento que lhe confere paradoxalmente o sentido de elogio na fala da cabeccedila de ouro as profecias acerca dos reis portugueses destacam-lhes as vitoacuterias futuras sobre os infieacuteis mencionados como a ldquobaacuterbara genterdquo a ldquodanada seitardquo a ldquomaacute geraccedilatildeordquo cujo sucesso proveacutem da decadecircncia da cavalaria e dos seus valores aos pecados e erros do Ocidente Nesse sentido sugere-se que a accedilatildeo portuguesa seraacute o antiacutedoto contra a decadecircncia da luta contra os infieacuteis Com isso as conquistas portuguesas recebem jaacute no Clarimundo a justificativa que as valorizaram tais como a cristianizaccedilatildeo da Aacutefrica e da Aacutesia e o aniquilamento dos inimigos da feacute ldquoregando os campos com o seu sanguerdquo

Ademais tanto no que diz respeito agrave ordenaccedilatildeo dos capiacutetulos como na disposiccedilatildeo das accedilotildees do nascimento de Clarimundo e sua coroaccedilatildeo como imperador de Constantinopla o episoacutedio da ldquoFloresta Encantadardquo ocorre num momento central da narrativa ou seja Clarimundo eacute reconhecido como priacutencipe herdeiro do trono da Constantinopla manteacutem-se casto e fiel agrave Clarinda que tambeacutem lhe retribui o amor jaacute conquistou a Ilha Perfeita na qual demonstrou por feitos maravilhosos todos os seus merecimentos como cavaleiro e priacutencipe Assim a cena da ldquoFloresta Encantadardquo a descriccedilatildeo do lugar e dos seres miraculosos que nele estatildeo envolvidos essa descriccedilatildeo coloca diante dos olhos do leitor natildeo apenas as imagens que conferem maravilhamento e deleite mas tambeacutem doutrinas poliacuteticas e religiosas quinhentistas que se pretende preconizar aos leitores e sobretudo agravequele leitor primordial da narrativa de Joatildeo de Barros o rei e seus iacutentimos

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Referecircncias

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Recebido em 12052017

Aceito em 25092017

Flaacutevio Antocircnio Fernandes Reis

Mestre e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de Satildeo Paulo Docente do Departamento de Estudos Linguiacutesticos e Literaacuterios e do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Memoacuteria Sociedade e Linguagem (CAPES nota 5) ambos da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) flavuspgmailcom

Entrevista

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eISSN 22376844polifonia

Literatura e Ensino Entrevista com Joseacute Augusto Cardoso Bernardes

Por Marinete Luzia Francisca de Souza

JOSEacute AUGUSTO CARDOSO BERNARDES (1958) eacute Professor Catedraacutetico na Faculdade de Letras de Coimbra e membro do Centro de Literatura Portuguesa Foi codiretor de Biblos Enciclopeacutedia Verbo das Literaturas de Liacutengua Portuguesa (1995-2005) Eacute Diretor da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (desde 2011) e consultor para o Programa Liacutengua Portuguesa da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian (desde 2013) Foi Membro do Conselho Nacional de Educaccedilatildeo entre 2011 e 2016

De entre as obras que publicou destacam-se O Bucolismo Portuguecircs (1988) Saacutetira e Lirismo em Gil Vicente (1996) Histoacuteria Criacutetica da Literatura

Portuguesa Humanismo e Renascimento (1999)1 Revisotildees de Gil Vicente (2003) A Literatura no Ensino Secundaacuterio (2004) Miguel Torga e a melancolia de Portugal (2006) Gil Vicente (2008) A Literatura e o Ensino de Portuguecircs (2013)2 A Biblioteca da Universidade Permanecircncia e metamorfoses (2015) Camotildees nos prelos de Portugal e da Europa 1563-2000 (2015)3

Para aleacutem de ter publicado estudos sobre Gil Vicente e Luiacutes de Camotildees como foi visto vem se dedicando aos problemas da investigaccedilatildeo e do ensino das Humanidades tema dessa entrevista

Entrevista

Polifonia ndash Considerando as investigaccedilotildees que vem sendo realizadas sobre o ensino de literatura nos niacuteveis Fundamental e Meacutedio (Secundaacuterio) como analisaria a evoluccedilatildeo dos estudos nesta aacuterea

Bernardes ndash Ao longo de vaacuterias deacutecadas nas universidades portuguesas os estudos so-bre o ensino da literatura foram considerados como aacuterea marginal

1 Com Direccedilatildeo de Carlos Reis2 Em colaboraccedilatildeo com Rui Afonso Mateus3 Em colaboraccedilatildeo com Ana Migueis e Carla Ferreira

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O desprezo sobranceiro que recaiacutea sobre domiacutenio do conhecimento tem duas explicaccedilotildees principais a desconfianccedila suscitada pelas ciecircncias da educaccedilatildeo em geral que alguns entatildeo consideravam desprovidas de suficiente base epistemoloacutegica e a proclamaccedilatildeo de primazia que provinha das aacutereas de investigaccedilatildeo mais estabelecidas e convencionais Basta lembrarmos que os estudos literaacuterios se mostravam abertos a colaboraccedilotildees interdisciplinares com a linguiacutestica (concebida nos seus diferentes ramos) com a esteacutetica ou com a histoacuteria mas enjeitavam ocupar-se da adequaccedilatildeo do seu saber agraves diferentes realidades escolares

Eu proacuteprio testemunhei muitos sinais dessa desconfianccedila Nos anos 80 ou 90 do seacuteculo passado na minha Faculdade de Letras (Universidade de Coimbra) natildeo era faacutecil incluir um pequeno moacutedulo que fosse destinado a problematizar a forma como se poderia ensinar Camotildees ou Gil Vicente O fundamento para esta exclusatildeo era o de que o conhecimento adquirido pela via da pesquisa se bastava a si proacuteprio

As tarefas de adequaccedilatildeo eram reconhecidas mas eram tidas como ldquofaacuteceisrdquo e competiam estritamente aos professores dos diferentes niacuteveis Prevalecia a ideia de que saber em causa carecia apenas de regulaccedilatildeo cientiacutefica (assegurada pelas universidades) A sua transmissatildeo deveria fazer-se de maneira uniforme exclusivamente sustentada pela preparaccedilatildeo e motivaccedilatildeo de professores e alunos Era ainda suposto que uns e outros reagissem da mesma forma agrave transmissatildeo dos conhecimentos independentemente das suas circunstacircncias socioculturais

Pouco a pouco estes pressupostos foram sendo objeto de questionaccedilatildeo Tal sucedia por via teoacuterica desde logo

Mas foi sobretudo pelo confronto com a praacutetica que se foi descobrindo que o cenaacuterio escolar mudara muito A democratizaccedilatildeo do acesso agrave Escola por parte das nossas crianccedilas e adolescentes (que em Portugal se situa atualmente nos 18 anos ou no 12ordm ano) contribuiu para que as turmas se tornassem comunidades cada vez mais heterogeacuteneas Ensinar qualquer mateacuteria tornou-se assim mais difiacutecil envolvendo requisitos como dinamismo flexibilidade adaptaccedilatildeo de meacutetodos reconversatildeo de objetivos etc

Polifonia ndash O que pensa sobre o ensino de literaturas dos Paiacuteses de Liacutengua Portuguesa em detrimento das literaturas ditas nacionais

Bernardes ndash O ensino da literatura nacional teve e continua a ter um efeito identitaacuterio muito forte Ler os mesmos livros num determinado espaccedilo e ao longo de sucessivas geraccedilotildees constroacutei memoacuteria coletiva e reforccedila viacutenculos Natildeo podemos esquecer que foi esse o principal fundamento para a escolarizaccedilatildeo da literatura que na Europa teve lugar a partir das trecircs uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Hoje poreacutem a ideia de comunidade alargou-se deixando de estar limitada ao acircmbito poliacutetico Um adolescente portuguecircs brasileiro ou angolano deve ser educado com bases de cidadania poliacutetica Isso natildeo impede poreacutem o alargamento a outros contextos envolvendo o que poderiacuteamos chamar a Cidadania linguiacutestica e cultural

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Nesse sentido aplaudindo uma proposta concreta formulada haacute dois anos em Coimbra pelo Professor Viacutetor Aguiar e Silva sou favoraacutevel a compromissos que possibilitem a entrada de autores brasileiros e africanos no cacircnone escolar portuguecircs Essa entrada pode fazer-se de muitas maneiras Natildeo me parece necessaacuterio desde logo que haja uma substituiccedilatildeo de uns autores por outros

Defendo nomeadamente que o conhecimento dos textos literaacuterios na Escola deve ser de natureza antoloacutegica e natildeo tatildeo intensiva como eacute hoje Em Portugal com 14 anos um aluno pode andar dois meses a falar do Auto da Barca do inferno e outros dois de Os Lusiacuteadas Acho que se trata de um tempo excessivo e potencialmente saturante

Com uma visatildeo mais panoracircmica destinada a estimular a curiosidade do aluno haveria lugar para mais autores e mais textos uns e outros tomados como estiacutemulo agrave leitura e natildeo tanto como objeto de estudo minucioso e totalizante

Polifonia ndash Se por um lado as humanidades vecircm sendo colocadas de lado por outro a escrita e leitura satildeo fatores de inserccedilatildeo ou discriminaccedilatildeo social O que diria sobre esse tema

Bernardes ndash Como qualquer outra atividade humana a leitura e a escrita podem servir a propoacutesitos discriminatoacuterios Mas isso natildeo significa que em si mesmas essas praacuteticas devam ser vistas com suspeiccedilatildeo ou relutacircncia Pelo contraacuterio ler e escrever em patamares elevados de sensibilidade e consciecircncia criacutetica constituem instrumentos insubstituiacuteveis de promoccedilatildeo de qualquer ser humano Haacute que lutar por que todos tenham acesso a esses instrumentos O caminho soacute pode ser o da democratizaccedilatildeo metoacutedica exigente e esperanccedilosa Haacute ainda muitos seres humanos sem aacutegua potaacutevel eletricidade ou alimentaccedilatildeo e isso eacute inaceitaacutevel Como eacute inaceitaacutevel que haja seres humanos incapazes de tirar proveito das grandes realizaccedilotildees teacutecnicas e artiacutesticas da espeacutecie A leitura e a escrita situam-se neste uacuteltimo acircmbito

Verifico que ciclicamente existe a tentaccedilatildeo de eliminar dos Programas aquilo que eacute difiacutecil os textos literaacuterios e filosoacuteficos por exemplo Assim se teriam em devida consideraccedilatildeo as especiais dificuldades que alguns alunos socialmente desfavorecidos costumam sentir quando na Escola lidam com esses textos pela primeira vez

Ora em meu entendimento o raciociacutenio deve ser justamente o oposto Se essas crianccedilas natildeo tecircm outra possibilidade de conhecer esses textos e de deles tirar o devido partido tem que ser a Escola a cumprir esse papel compensatoacuterio Isso coloca nos professores uma responsabilidade acrescida que comeccedila na motivaccedilatildeo e termina na avaliaccedilatildeo Mas natildeo existe outra maneira de cumprir esse imperativo social

Polifonia ndash Haacute no mundo de Liacutengua Portuguesa uma dicotomia entre as literaturas escritas canocircnicas e as literaturas orais indiacutegenas (casos dos paiacuteses africanos do Brasil e Timor Leste) em sua maioria intercultural O que proporia para essa divisatildeo

Bernardes ndash Tambeacutem nesse plano sou a favor de compromissos e equiliacutebrios ditados pela sen-satez e pelas condiccedilotildees especiacuteficas que se verificam em cada situaccedilatildeo

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Natildeo faz nenhum sentido separar radicalmente os dois tipos de produccedilatildeo literaacuteria numa loacutegica de disputa Eacute nocivo ignorar as literaturas ditas indiacutegenas sob qualquer pretexto E eacute igualmente negativo privar seja quem for do acesso ao contacto com as obras mais lidas e conhecidas do cacircnone (ocidental e oriental) Mais do que dicotomia tem que haver espaccedilo e estiacutemulo para conhecer ambas Ambas ajudam a crescer em espiacuterito de abertura e toleracircncia

Polifonia ndash Qual sua opiniatildeo sobre as adaptaccedilotildees de textos claacutessicos para a sala de aula

Bernardes ndash O ideal seria que as adaptaccedilotildees pudessem servir como introduccedilatildeo ao texto original Muitas vezes se diz que a adaptaccedilatildeo eacute faacutecil e o original eacute difiacutecil Julgo no entanto que existem maneiras mais ou menos adequadas de apresentar esses mesmos textos ditos difiacuteceis Tudo estaacute nos objetivos que pretendemos alcanccedilar Olhando para a forma como os programas tratam certos autores no ensino baacutesico e secundaacuterio (reporto-me mais uma vez ao que sucede em Portugal) fico com a ideia de que seria possiacutevel uma aproximaccedilatildeo menos convencional e mais ajustada agraves necessidades dos alunos

Em minha opiniatildeo a necessidade maior eacute sempre a de formar o gosto dos alunos tornando-os leitores assiacuteduos curiosos e preparados O pior que se pode fazer com a literatura na Escola eacute criar a ideia de que os livros satildeo para serem lidos uma soacute vez e ateacute agrave exaustatildeo

Costumo dizer que a pior reaccedilatildeo que podemos ouvir de um aluno a propoacutesito de um determinado texto eacute a que se traduz pelas consabidas palavras ldquoJaacute deirdquo Um texto nunca estaacute verdadeiramente dado Ao longo das aulas o professor deve abrir alguns caminhos mas permitindo que o aluno fique com vontade de continuar a caminhar por trilhos novos e que em alguns casos satildeo soacute seus

Polifonia ndash Em alguns paiacuteses o acesso ao texto literaacuterio se daacute preferencialmente por meio do livro didaacutetico (que apresenta fragmentos de textos) ou dos textos recomendados pelo Exame Nacional (ENEM no caso do Brasil) ou pelos programas curriculares instituiacutedos pelo governo O que proporia para superar essa barreira na formaccedilatildeo de leitores

Bernardes ndash Natildeo conheccedilo suficientemente a realidade brasileira para me pronunciar sobre ela em concreto No que diz respeito agrave realidade portuguesa julgo que os manuais escolares tecircm melhorado bastante nos uacuteltimos anos Qualquer manual carece hoje de certificaccedilatildeo legal concedida por uma instituiccedilatildeo de ensino superior Esse requisito levou as editoras a ter mais cuidado na escolha das equipas que concebem os livros

De uma forma geral pode dizer-se que em Portugal os manuais escolares de Portuguecircs reuacutenem condiccedilotildees para funcionarem como estiacutemulo agrave leitura Satildeo bastante cuidados do ponto de vista graacutefico apoiam-se em investigaccedilatildeo consolidada tecircm em conta as expetativas e as criacuteticas de professores e alunos

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Ainda assim parece-me que existe bastante caminho para percorrer Dou um exemplo Natildeo me parece bem que os manuais possam conter obras integrais O Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente que se lecirc no 9ordm ano de escolaridade quando o aluno tem cerca de 14 anos ou o conto A Aboacutebada de Alexandre Herculano que faz parte do Programa do 11ordm ano figuram integralmente nos manuais Nem sempre surgem bem anotados e explicados o que eacute compreensiacutevel

Do meu ponto de vista seria preferiacutevel que o aluno fosse encorajado a aproximar-se de uma ediccedilatildeo didaacutetica publicada em volume separado a cargo de um especialista Quem estuda continuadamente um determinado autor sabe alertar-nos melhor para os significados escondidos dos textos Seria no entanto ldquoobrigatoacuteriordquo que o dito estudioso natildeo esquecesse nunca que os seus destinataacuterios concretos (os alunos e mesmo os professores) dispensam divagaccedilotildees complicadas em termos de discurso Necessitam sobretudo de explicaccedilotildees pacientes e claras Vejo nesta praacutetica uma outra vantagem para aleacutem de permitir um aproveitamento diferente dos textos em causa esta estrateacutegia permitiria que o aluno frequentasse a biblioteca ou pensasse em formar a sua proacutepria coleccedilatildeo de livros Por uacuteltimo lendo os textos em volumes separados o aluno dar-se-ia conta de que Gil Vicente ou Alexandre Herculano natildeo escreveram os textos diretamente para nenhum manual Assisto com muita apreensatildeo a uma desqualificaccedilatildeo do livro enquanto objeto no pressuposto erradiacutessimo de que se trata de um objeto anacroacutenico e sem futuro Posso entender que esta ideia circule com tracircnsito faacutecil em determinados meios Basta lembrarmo-nos da promoccedilatildeo publicitaacuteria que envolve os produtos digitais em oposiccedilatildeo ao livro Custa-me a aceitar que a Escola natildeo tenha em relaccedilatildeo a essa propaganda uma atitude mais distante e ponderada Tanto mais quanto se sabe que quando falamos de tecnologia digital falamos de instrumentos que eacute necessaacuterio usar com cautela sob todos os pontos de vista

Polifonia ndash O senhor considera que o ensino de obras de autores dos diversos paiacuteses de Liacutengua Portuguesa configura para aleacutem de um alargamento dos horizontes culturais do estudante a afirmaccedilatildeo de uma ldquocomunidade imaginadardquo no sentido que Benedict Anderson atribui agrave expressatildeo em torno da CPLP

Bernardes ndash Tal como referi na resposta agrave pergunta nordm 2 entendo que haveria conveniecircncia poliacutetica e fundamento cultural para a integraccedilatildeo nos programas de Portuguecircs de obras feitas e publicadas em diferentes paiacuteses Parece-me inclusivamente que o criteacuterio linguiacutestico e cultural natildeo eacute suficiente

Acho que em algum momento um aluno portuguecircs deveria ter notiacutecia da existecircncia de livros como a Divina Comeacutedia o Dom Quixote ou o Rei Lear Isso natildeo significa repito que passasse um mecircs a estudar cada um destes livros Mas ningueacutem deveria abandonar a escolaridade obrigatoacuteria sem ter a noccedilatildeo de que a literatura eacute uma atividade que define e transforma a espeacutecie humana muito para aleacutem da diversidade dos tempos e das liacutenguas

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Polifonia ndash Ainda sobre a literatura do poacutes-independecircncia como vecirc a literatura brasileira desse periacuteodo que foi ao mesmo tempo poacutes-independente e imperial (jaacute que o Brasil passou de colocircnia a ldquoBrasil Impeacuteriordquo conforme desejo Dom Pedro II) Como articular essa antiacutetese em sala de aula

Bernardes ndash Parece-me que seja a que niacutevel for a literatura natildeo deve ser separada das circunstacircncias histoacuterico-culturais em que nasce e eacute depois recebida O conhecimento dos contextos proporciona informaccedilatildeo preciosa Sem duacutevida que conhecemos melhor o Portugal do seacuteculo XIX atraveacutes da leitura de Eccedila e de Camilo Castelo Branco ou o Brasil da mesma eacutepoca atraveacutes dos livros de Machado de Assis O mesmo sucede com determinados lugares Alguns escritores tecircm o condatildeo de nos revelar regiotildees ou cidades que de outro modo natildeo conseguiriacuteamos compreender com tanta profundidade e sob tantos acircngulos Existe uma Lisboa de Eccedila de Queiroacutes outra de Fernando Pessoa e inda outra de Joseacute Saramago por exemplo Tal como existe um Rio de Janeiro de Machado que natildeo conheceriacuteamos tatildeo bem sem ter lido os seus contos e os seus romances

E no entanto sendo um defensor da valorizaccedilatildeo dos contextos no ensino da literatura natildeo me parece bem que se acentue demasiado esse viacutenculo As obras literaacuterias como a arte em geral conservam a marca da circunstacircncia em que inspiram e das referecircncias temporais e espaciais que incorporam Do mesmo modo eacute sabido que natildeo satildeo neutras sob o ponto de vista poliacutetico Ainda assim detecircm uma vasta margem de autonomia que conveacutem explorar nas aulas mais e melhor

Deixar a literatura respirar fazendo avultar aquilo que nela existe de livre em relaccedilatildeo agrave histoacuteria parece-me um desiderato cada vez mais necessaacuterio

Polifonia ndash Ao longo de sua estada na academia suas pesquisas tecircm se voltado dentre outras sobretudo para Gil Vicente Poderia expor o que pondera sobre a atualidade deste autor e seu ensino

Bernardes ndash Ensinar literatura eacute sempre um desafio grande Podemos muitas vezes ser tomados pelo pensamento de que estamos a insistir em mateacuterias que interessam cada vez a menos gente Essa sensaccedilatildeo pode ainda tornar-se mais viva quando se trata de autores que escreveram haacute muito tempo

Eacute o caso de Gil Vicente ou de Camotildees Quando se aproxima pela primeira vez de textos vicentinos por exemplo o aluno evidencia uma grande sensaccedilatildeo de estranheza Haacute palavras que jaacute natildeo ditas por ningueacutem nem sequer se encontram nos dicionaacuterios E isto apesar de o Portuguecircs ser uma liacutengua muito mais estaacutevel do que outras liacutenguas europeias

Mas tambeacutem existem barreiras importantes sob o ponto de vista dos valores Depois de ter destacado a importacircncia esteacutetica e histoacuterico-cultural de Gil Vicente natildeo eacute faacutecil explicar a um aluno de 14 anos que lecirc a Barca do Inferno que um judeu tenha ido para o inferno por motivos exclusivamente religiosos por exemplo Perante essa dificuldade muitos professores gostariam que essa e outras cenas natildeo existissem na peccedila

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Polifonia Cuiabaacute-MT v 24 n 36 p 181-188 jul-dez 2017

Quando deparamos com uma situaccedilatildeo deste tipo natildeo temos outra forma seacuteria de lidar com o problema senatildeo tentar compreendecirc-lo agrave luz das circunstacircncias histoacutericas Eacute uacutetil lembrar aos alunos que a Humanidade natildeo pensou e agiu sempre da mesma forma Os procedimentos de alteridade devem ser explicados e encorajados Apreciar um autor natildeo significa necessariamente aprovar todos os aspetos da sua mensagem O papel da Escola deve ser mesmo o de ajudar a compreender e natildeo tanto a aplaudir ou a reprovar A Escola deve ensinar que concordar e discordar natildeo podem ser atos baacutesicos pulsionais e definitivos Trata-se de atos essenciais agrave vida ciacutevica mas que requerem sensibilidade e informaccedilatildeo segura A interpretaccedilatildeo de textos literaacuterios constitui um excelente treino para cultivar essa atitude

Poder escutar os autores de outras eacutepocas equivale a um privileacutegio enorme Significa de algum modo escutar a voz dos mortos E isso deve ocorrer em clima de toleracircncia e de consciecircncia relativamente ao pensamento e aos valores de quem nos fala a partir de outros tempos Tambeacutem sob esse ponto de vista o ensino da literatura pode e deve ser um exerciacutecio de atenccedilatildeo aberta e qualificada ao que o outro tem para nos dizer

Polifonia ndash Por gentileza faccedila suas consideraccedilotildees gerais sobre o tema

Bernardes ndash A Literatura globalmente considerada eacute um dos produtos mais nobres e identificadores da espeacutecie humana Nela convergem atributos tatildeo diferentes como a criatividade o domiacutenio da liacutengua oral e escrita o ordenamento da memoacuteria a capacidade de construir utopias e de criticar realidades

Enquanto discurso essencial e complexo a literatura convida a um entendimento especial que mobiliza a sensibilidade e o conhecimento Ensinar literatura eacute por isso e desde logo treinar essas duas componentes essenciais

Uma sociedade livre e democraacutetica tem tudo a ganhar com a presenccedila da literatura na Escola

A exclusatildeo ou a menorizaccedilatildeo dos conteuacutedos literaacuterios dos programas escolares conduziria a uma situaccedilatildeo de injusta desigualdade Nessa eventualidade o contacto com os livros de poesia ou de narrativa ficaria limitado aos jovens nascidos em ambiente familiar favorecido Soacute esses poderiam desfrutar do sortileacutegio de um poema Os outros aqueles muitos que natildeo ouvem falar de poesia em casa se natildeo tiverem com ela um bom encontro na Escola ficaratildeo privados de um encontro que pode e deve ser transformador

Ensinar literatura serve por isso os ideais de uma sociedade democraacutetica e livre

Do ponto de vista pessoal o contacto com os textos literaacuterios cumpre vaacuterios desiacutegnios importantes a educaccedilatildeo do gosto e para o gosto a maturaccedilatildeo do espiacuterito criacutetico que recorre a fundamentos a expressatildeo da sensibilidade atraveacutes do discurso oral e escrito

Haacute decerto bons motivos para que a literatura continue nos programas de Portuguecircs com os ajustamentos que os tempos novos justificam Eacute certo que muitas coisas se ensinam atraveacutes dela mas para aleacutem disso eu estou genuinamente convencido de que outras natildeo se conseguem ensinar sem ela

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Polifonia Cuiabaacute-MT v 24 n 36 p 181-188 jul-dez 2017

Marinete Luzia Francisca de Souza

Docente do Curso de Graduaccedilatildeo em Letras ndash campus do Meacutedio Araguaia e do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Estudos de Linguagem ndash campus Cuiabaacute da Universidade Federal de Mato Grosso marineteluzia2gmailcom

eISSN 22376844polifonia

UFMT

PERIOacuteDICO CIENTIacuteFICO POLIFONIA

EDITAL DE CHAMADA DE ARTIGOS 2018

ESTUDOS LINGUIacuteSTICOS ndash VOL 25 N 37

ESTUDOS LITERAacuteRIOS ndash VOL 25 N 40

ISSN 22376844 versatildeo eletrocircnica

PERIOacuteDICO ARTICULADO AOPROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM

Universidade Federal de Mato GrossoInstituto de Linguagens

Pesquisadores doutores brasileiros e estrangeiros poderatildeo enviar seus trabalhos ineacuteditos artigos resenhas entrevistas voltados agraves aacutereas de estudos linguiacutesticos e literaacuterios para publicaccedilatildeo no perioacutedico cientiacutefico Polifonia em 2018 mediante avaliaccedilatildeo cega por pares e aprovaccedilatildeo No caso de trabalhos em coautoria sendo um dos autores doutor os demais poderatildeo ser mestres graduandos etc quando da submissatildeo

A partir desta chamada textos literaacuterios poemas e contos poderatildeo ser submetidos agrave avaliaccedilatildeo por especialistas das respectivas aacutereas com vistas agrave possiacutevel publicaccedilatildeo no perioacutedico

Objetivando atender a demanda de acessibilidade agrave produccedilatildeo do conhecimento o perioacutedico Polifonia estaacute sendo constituiacutedo tambeacutem com viacutedeos contendo os resumos dos artigos traduzidos em Liacutengua Brasileira de Sinais (LIBRAS) iniciativa que favorece a inclusatildeo da comunidade surda na produccedilatildeo circulaccedilatildeo e recepccedilatildeo dos textos veiculados e a consolidaccedilatildeo do multilinguismo do perioacutedico A traduccedilatildeo e a preparaccedilatildeo dos viacutedeos com resumos em LIBRAS estatildeo sob a responsabilidade da equipe editorial

No perioacutedico Polifonia tambeacutem satildeo publicados artigos produzidos em LIBRAS e documentados em viacutedeo devendo estes obrigatoriamente ser apresentados na forma escrita em Liacutengua Portuguesa e revisados por um profissional O artigo na modalidade

Polifonia - Chamada de Artigos

grafocecircntrica tem como justificativa a partilha dos saberes cientiacuteficos com a comunidade de pesquisadores e demais interessados que em sua maioria natildeo tem conhecimento da LIBRAS A preparaccedilatildeo dos viacutedeos deveraacute seguir as normas dispostas neste edital

ESTUDOS LINGUIacuteSTICOS ndash vol 25 n 37

DOSSIEcirc DIVERSIDADES EM LINGUIacuteSTICA

Chamada aberta para artigos na aacuterea de Linguiacutestica sem delimitaccedilatildeo teoacuterica ou aacuterea dentro deste campo de estudos A proposta eacute contemplar diversas publicaccedilotildees que abordem o objeto da Linguiacutestica ou seja as liacutenguaslinguagem em suas multifacetadas caracteriacutesticas Palavras-chave Linguiacutestica diversidade correntes teoacutericas

OrganizadoresFlaacutevia Girardo Botelho Borges (Universidade Federal de Mato Grosso)Zaacuteira Bonfante dos Santos (Universidade Federal do Espiacuterito Santo)

Prazo para encaminhamento 25 de janeiro de 2018Publicaccedilatildeo abril2018

ESTUDOS LITERAacuteRIOS ndash vol 25 n 40

DOSSIEcirc LITERATURA E INTERMEDIALIDADE

A letra eacute sempre uma instacircncia ambiacutegua a meio do caminho entre o descarnado som e o corpoacutereo traccedilo graacutefico Se tal ambivalecircncia nos escapa na maioria das interaccedilotildees por meio da liacutengua na poesia a cintilaccedilatildeo entre o focircnico e o visual ndash os principais dois canais da experiecircncia humana no mundo ndash ganha novas dimensotildees na medida em que o a poesia (e a literatura por extensatildeo) eacute a instacircncia por excelecircncia do riacutetmico e da imaginaccedilatildeo (aqui entendida na polissemia do termo) Do conceito de imagem poeacutetica agrave possibilidade de perceber a imagem como poesia multiplicam-se os regimes semioacuteticos e as dimensotildees fenomenoloacutegicas que podem confluir na imaginaccedilatildeo literaacuteria literatura e pintura literatura e cinema literatura e fotografia entre tantos outros diaacutelogos intermidiaacuteticos que tomem como ponto de inflexatildeo a visualidade artiacutestica no literaacuterio Nesse contexto interessam agrave presente chamada artigos que versem sobre a literatura sob perspectivas de intertextualidade intermedialidade remediatizaccedilatildeo iconicidade ekphrasis vanguardas e experimentalismos interartesPalavras-chave Literatura intermedialidade visualidade diaacutelogos intersemioacuteticos

OrganizadoresViniacutecius Carvalho Pereira (Universidade Federal de Mato Grosso)Joana Matos Frias (Universidade do Porto)

Prazo para encaminhamento 30 de marccedilo de 2018Publicaccedilatildeo dezembro2018

Artigos das aacutereas de estudos linguiacutesticos e literaacuterios que natildeo apresentem temaacuteticas relativas aos dossiecircs poderatildeo ser aceitos para publicaccedilatildeo na seccedilatildeo OUTROS LUGARES Poemas e contos aceitos seratildeo publicados na seccedilatildeo NEOFONIAS

Polifonia - Chamada de Artigos

Instruccedilotildees aos autores para publicaccedilatildeo de artigos no perioacutedico Polifonia

Os trabalhos deveratildeo ser submetidos por meio do Sistema de Editoraccedilatildeo Eletrocircnico de Revistas (SEER) do perioacutedico Polifonia Para a primeira submissatildeo eacute necessaacuterio fazer o cadastro no Sistema como autor por meio do link httpperiodicoscientificosufmtbrojsindexphppolifoniauserregister

ATENCcedilAtildeO Ao preencher o cadastro inserir obrigatoriamente um breve curriacuteculo no campo especiacutefico informando instituiccedilatildeo de origem cargos acadecircmicos se o artigo resulta de projeto de pesquisa se eacute financiado entre outras informaccedilotildees consideradas relevantes e que tenham relaccedilatildeo com o conteuacutedo do artigo

Apoacutes o cadastro o usuaacuterio estaraacute habilitado para submeter seu artigo acessando o link httpperiodicoscientificosufmtbrojsindexphppolifoniaauthorsubmit1

Duacutevidas polifoniaufmtbr ou atendimentoeditorasustentavelgmailcom

O conteuacutedo dos artigos eacute da inteira responsabilidade de seus autores

Formataccedilatildeo dos artigos e resenhas

Artigos e resenhas devem ser submetidos em formato doc em paacutegina tamanho A4 com tiacutetulo sem o nome do(s) autor(es) para garantir a avaliaccedilatildeo agraves cegas A identificaccedilatildeo do autor seraacute feita no momento da submissatildeo por meio do preenchimento do devido campo no Sistema (SEER)

Artigos e resenhas deveratildeo ser adequados agraves normas da ABNT e ao novo acordo ortograacutefico bem como agraves instruccedilotildees aos autores previstas neste edital antes da submissatildeo podendo ser desconsiderados se natildeo atenderem a essas condiccedilotildees

Dimensotildees o artigo deveraacute ter de 12 a 15 paacuteginas (incluindo as referecircncias) a resenha deveraacute ter de 03 a 05 paacuteginas Fonte Times New Roman tamanho 12 espaccedilo entre linhas 15

Tiacutetulo em portuguecircs inglecircs e espanhol fonte Times New Roman tamanho 16 alinhado agrave direita

Apoacutes o aceite do artigo ou da resenha na revisatildeo final colocar nome do(s) autor(es) com as iniciais maiuacutesculas dois espaccedilos abaixo do tiacutetulo Abaixo do(s) nome(s) colocar a(s) instituiccedilatildeo(otildees) agrave(s) qual(is) se vincula(m) por extenso

Resumo

A palavra ldquoresumordquo deveraacute ser colocada com a inicial maiuacutescula acima do conteuacutedo do resumo centralizada

Polifonia - Chamada de Artigos

Para a preparaccedilatildeo do resumo miacutenimo de 100 e maacuteximo de 250 palavras espaccedilo 10 fonte Times New Roman tamanho10 O resumo deveraacute ser conciso claro coeso e completo apresentando tema da pesquisa principais objetivos metodologia utilizada principais descobertas do estudo principais conclusotildees

Natildeo inserir nomes de autores e datas no resumo Natildeo colocar o artigo como sujeito personificado Ex ldquoeste artigo refleterdquo ldquoeste artigo desenvolverdquo Ao inveacutes usar 1ordf ou 3ordf pessoa Ex ldquoNeste artigo faremosrdquo

Palavras-chave

Expressatildeo escrita com inicial maiuacutescula apoacutes o resumo Deveratildeo ser escritas trecircs palavras-chave em letras minuacutesculas separadas por viacutergula e encerradas por ponto final

O resumo e as palavras-chave deveratildeo constar em portuguecircs inglecircs e espanhol e seguir as mesmas normas

Dar dois espaccedilos apoacutes as palavras-chave antes do tiacutetulo das seccedilotildees Dar um espaccedilo de 15 antes e depois de cada tiacutetulo das seccedilotildees e subseccedilotildees

ATENCcedilAtildeO as resenhas natildeo deveratildeo ter resumopalavras-chave

Tiacutetulos das seccedilotildees e subseccedilotildees

Numeradas fonte Times New Roman tamanho14 primeira letra maiuacutescula e demais minuacutesculas Caso o tiacutetulo seja longo com mais de uma linha colocar espaccedilo 10 entre essas linhas

Caso haja necessidade de destacar algum termo no texto e palavras estrangeiras fazecirc-lo apenas em itaacutelico Palavras expressotildees retiradas de textos teoacutericos e literaacuterios e usadas nas anaacutelises etc deveratildeo ser colocadas entre aspas

O artigo deveraacute ter introduccedilatildeo desenvolvimento (seccedilotildees e subseccedilotildees) consideraccedilotildees finais e referecircncias

Tabelas e quadros

O conteuacutedo deve ser colocado em fonte Times New Roman tamanho10 espaccedilo simples Legendas fonte Times New Roman tamanho10 espaccedilo simples imediatamente abaixo do elemento que referecircncia

Citaccedilotildees

Com mais de trecircs linhas deveratildeo ser recuadas em 4 cm da margem esquerda Times New Roman alinhamento justificado espaccedilo 10 fonte 10 sem itaacutelico sem aspas seguida da indicaccedilatildeo bibliograacutefica Ex (CHAUI 2002 p 57)

Polifonia - Chamada de Artigos

Citaccedilatildeo com ateacute trecircs linhas

Sem recuo no proacuteprio corpo do texto entre aspas seguida da indicaccedilatildeo bibliograacutefica (CHAUI 2002 p 57)

Citaccedilotildees em outras liacutenguas

1 De fragmentos teoacutericos o autor poderaacute fazer a traduccedilatildeo no proacuteprio corpo do texto seguida da referecircncia bibliograacutefica e da observaccedilatildeo ldquoTraduccedilatildeo nossardquo Ex (FESTINO 2008 p 12 Traduccedilatildeo nossa)

2 Poderaacute tambeacutem caso queira colocar o fragmento na liacutengua original em rodapeacute com a expressatildeo Cf o trecho original e inserir o texto entre aspas

3 De fragmentos literaacuterios o autor poderaacute fazer a traduccedilatildeo no proacuteprio corpo do texto seguida da referecircncia bibliograacutefica e da observaccedilatildeo ldquoTraduccedilatildeo nossardquo

Ex (CONRAD 1994 p 22-24 Traduccedilatildeo nossa) O autor obrigatoriamente deveraacute colocar o fragmento na liacutengua original em rodapeacute com a expressatildeo Cf o trecho original e inserir o texto entre aspas

Notas explicativas

Evitar notas de rodapeacute Se muito necessaacuterias colocaacute-las ao final da paacutegina Referecircncias bibliograacuteficas devem ser apresentadas no proacuteprio texto Ex (ANDRADE 1980 p 7)

Referecircncias

Usar soacute a palavra ldquoReferecircnciasrdquo (soacute a inicial maiuacutescula) Devem ser apresentadas nas referecircncias somente as obras que foram efetivamente citadas no texto Quando citados no corpo do texto os tiacutetulos das obras devem ser colocados em itaacutelico Cada referecircncia deve ser formatada em espaccedilo entre linhas 10 Colocar espaccedilo 10 entre uma referecircncia e outra

Para referecircncias de entrevistas consultar a ABNTNBR 10520 Informaccedilatildeo e documentaccedilatildeo ndash citaccedilotildees em documentos ndash apresentaccedilatildeo Rio de Janeiro 2002b

As Referecircncias devem ser dispostas em ordem alfabeacutetica ao final do texto seguindo a NBR 6023

Polifonia - Chamada de Artigos

Alguns casos de maior ocorrecircncia

LIVRO

GOMES LGFF Novela e sociedade no Brasil Niteroacutei EdUFF 1998

Quando necessaacuterio acrescentam-se elementos complementares agrave referecircncia para melhor identificar o documento

GOMES LGFF Novela e sociedade no Brasil Niteroacutei EdUFF 1998 (Coleccedilatildeo Antropologia e Poliacutetica 15) ISBN 85-228-0268-8

ARTIGO EM PERIOacuteDICO

ANDREacute RML LACERDA PO O catildeo e o homem no romance Los perros hambrientos de Ciro Alegria Polifonia Cuiabaacute n 20 p151-173 2009

CAPIacuteTULO DE LIVRO

SANTAELLA L A criacutetica das miacutedias na entrada do seacuteculo 21 In PRADO J L A (Org) Criacutetica das praacuteticas midiaacuteticas da sociedade de massa agraves ciberculturas Satildeo Paulo Hacker Editores 2002 p 44-56

TRABALHO APRESENTADO EM EVENTO

BRAYNER A R A MEDEIROS CB Incorporaccedilatildeo do tempo em SGDB orientado a objetos In SIMPOacuteSIO BRASILEIRO DE BANCO DE DADOS 9 1994 Satildeo Paulo Anais Satildeo Paulo USP 1994 p16-29

DISSERTACcedilAtildeO OU TESE

COX M IPJe est unmot drsquoordre escritas em torno de sujeito linguagem e educaccedilatildeo 1989 196f Tese (Doutorado em Educaccedilatildeo) ndash Universidade Estadual de Campinas Campinas SP 1989

DALATE S A escritura do silecircncio uma poeacutetica do olhar em Wlademir Dias Pino 1997 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras) ndash Faculdade de Ciecircncias e Letras Universidade Estadual de Satildeo Paulo Assis SP 1997

DOCUMENTO COM AUTORIA DE ENTIDADE

BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil) Relatoacuterio da Diretoria-Geral 1984 Rio de Janeiro 1985 40p

OBRAS CONSULTADAS ON LINE colocar informaccedilotildees sobre o endereccedilo eletrocircnico apresentado entre os sinais ltgt precedido da expressatildeo ldquoDisponiacutevel emrdquo e a data de acesso ao documento precedida da expressatildeo ldquoAcesso emrdquo opcionalmente acrescida dos dados referentes a hora minutos e segundos Exemplos

ALVES C Navio negreiro (1869) Virtual Books 2000 Disponiacutevel em lthttpvirtualbooksterracombrfreebookportNavio_Negreirohtmgt Acesso em 10 jan2002

Polifonia - Chamada de Artigos

Obs haacute necessidade de colocar o ano Se natildeo houver coloca-se um provaacutevel [193]ou apenas o seacuteculo [19]

RIBEIRO PSG Adoccedilatildeo agrave brasileira uma anaacutelise soacuteciojuriacutedica Dataveni Satildeo Paulo ano 3 n18 ago1998 Disponiacutevel em lthttpwwwdataveniainfbrframeartightml gt Acesso em 10 set 1998

Satildeo permitidas imagens No caso de fotografias deve-se anexar o nome do fotoacutegrafo e autorizaccedilatildeo dele para publicaccedilatildeo aleacutem da autorizaccedilatildeo das pessoas fotografadas

Normas para a preparaccedilatildeo dos trabalhos em viacutedeo (libras)

1 Na modalidade viacutedeo natildeo haacute necessidade de apresentar uma traduccedilatildeo integral do texto escrito O autor tem autonomia para apresentar o seu trabalho utilizando como recurso linguiacutestico a sua liacutengua materna a estrutura linguiacutestica e gramatical da LIBRAS

2 Os viacutedeos poderatildeo ser gravados pelo autor ou por terceiros

3 Os viacutedeos natildeo poderatildeo apresentar propagandas de instituiccedilotildees produtos eventos e outros As filmagens deveratildeo ser feitas com fundo exclusivamente verde

4 Caso a pesquisa tenha mais de um autor todos poderatildeo compor o viacutedeo

5 A vestimenta de quem faraacute a apresentaccedilatildeo deveraacute ser obrigatoriamente de cor que tenha contraste com a tonalidade da sua pele e tambeacutem deveraacute ser monocromaacutetica

6 Dado o seu caraacuteter cientiacutefico a filmagem deveraacute contemplar o acircngulo da cabeccedila ateacute a cintura do apresentador

7 Ao final da gravaccedilatildeo natildeo haacute necessidade de apresentar as referecircncias bibliograacuteficas pois estas jaacute estaratildeo constando no texto escrito

  • Polifonia Cuiabaacute-MT v 24 nordm 36 (jul-dez 2017)
  • Sumaacuterio
  • Apresentaccedilatildeo
  • Dossiecirc Estaacutegios Supervisionados em Literatura Literatura nos Estaacutegios Supervisionados
    • Autor e leitor identidades do professor de Literatura em formaccedilatildeo ndash experiecircncias com o estaacutegio supervisionado em Letras
      • Ana Creacutelia Penha Dias
      • Andreacute Luiacutes Mouratildeo de Uzecircda
      • Maria Coelho Araripe de Paula Gomes
        • Leituras de ldquoA flor e a naacuteuseardquo de Carlos Drummond de Andrade em praacuteticas de Estaacutegio Supervisionadoem Liacutengua Portuguesa
          • Diogo dos Santos Souza
          • Eliana Kefalaacutes de Oliveira
            • Cenas da formaccedilatildeo de professores de liacutengua e literatura no curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ)
              • Marcos Scheffel
                • Estaacutegio supervisionado em Letras da UFGD mediando leituras e formando leitores
                  • Alexandra Santos Pinheiro
                    • O Estaacutegio Supervisionado em Letras no vieacutes administrativo-pedagoacutegico
                      • Flaacutevia Girardo Botelho Borges
                        • Estaacutegio Supervisionado em Literatura um relato de experiecircncia na UTFPR ndash Curitiba
                          • Mirelle Mussi Giri
                          • Alice Atsuko Matsuda
                              • Outros lugares
                                • Interdiscursividade e intertextualidade a constituiccedilatildeo dos sentidos do dizer no universo autoral
                                  • Terezinha Maia Martincowski
                                    • ldquoMito biograacuteficordquo e ldquoficccedilatildeo familiarrdquo em Borges e Calvino
                                      • Maria Elisa Rodrigues Moreira
                                        • Sobre o amor e a incapacidade de amar
                                          • Dionei Mathias
                                            • Marcel ProustHonoreacute de Balzac a Meacutelange de uma Narratividade
                                              • Aguinaldo Joseacute Gonccedilalves
                                                • Acerca da ekphrasis numa passagem do Clarimundo de Joatildeo de Barros cena de pictoacuterico heroiacutesmo
                                                  • Flaacutevio Antocircnio Fernandes Reis
                                                      • Entrevista
                                                        • Literatura e Ensino Entrevista com Joseacute Augusto Cardoso Bernardes
                                                          • Por Marinete Luzia Francisca de Souza
                                                              • EDITAL DE CHAMADA DE ARTIGOS 2018
Page 2: eISSN 22376844 polifonia

polifoniaNUacuteMERO 36 ndash 2017

eISSN 22376844

Estudos Literaacuterios

DossiecircEstaacutegios Supervisionados em Literatura

Literatura nos Estaacutegios Supervisionados

UFMTMINISTEacuteRIO DA EDUCACcedilAtildeO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

ReitoraMyrian Thereza de Moura Serra

Vice-ReitorEvandro Aparecido Soares da Silva

Proacute-Reitor AdministrativoBruno Ceacutesar Souza Moraes

Proacute-Reitora de Ensino de Poacutes-GraduaccedilatildeoOzerina Victor de Oliveira

Proacute-Reitor de PesquisaGermano Guarim Neto

Proacute-Reitora de Ensino de GraduaccedilatildeoLisiane Pereira de Jesus

Proacute-Reitora de Assistecircncia EstudantilErivatilde Garcia Velasco

Proacute-Reitor de Cultura Extensatildeo e VivecircnciaFernando Tadeu de Miranda Borges

Diretor do Instituto de Linguagens Roberto Boaventura da Silva Saacute

Coordenador do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeoem Estudos de Linguagem ndash PPGEL

Viniacutecius Carvalho Pereira

Coordenador da Editora UniversitaacuteriaRenilson Rosa Ribeiro

Conselho ConsultivoAntoacutenio Manuel de Andrade Moniz ndash Univ Nova de Lisboa

Arnaldo Franco Juacutenior ndash UNESPClaacuteudia Maria Ceneviva Nigro ndash UNESP

Joseacute Augusto Cardoso Bernardes ndash Universidade de Coimbra Maria Elisa Rodrigues Moreira ndash UFMTMaria Zilda Cury ndash UFMGMarinei Almeida ndash UNEMATMauricio Vasconcelos ndash USPOlivier Bara ndash Universiteacute Lumiegravere Lyon 2Osvaldo Cupertino Duarte ndash UNIRRui Miranda ndash University of NottinghamSylvia Helena Cyntratildeo ndash UnB

Conselho EditorialDivanize Carbonieri ndash UFMTCeacutelia Maria Domingues da Rocha Reis ndash UFMTViniacutecius Carvalho Pereira ndash UFMT

Editora Ceacutelia Maria Domingues da Rocha Reis

Projeto Graacutefico e Editoraccedilatildeo EletrocircnicaTeacuteo de Miranda ndash Editora Sustentaacutevel

Suporte teacutecnicoJudikerle Pereira de OliveiraIouchabel S de Faacutetima Falcatildeo

Revisatildeo de Liacutengua InglesaViniacutecius Carvalho Pereira

Revisatildeo de Liacutengua EspanholaMarcia Romero Marccedilal

Tradutorinteacuterprete de LIBRASSeacutergio Pereira Maiolini

OrganizadoresCeacutelia Maria Domingues da Rocha Reis Maria Elisa Moreira Rodrigues

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSOAv Fernando Correcirca da Costa 2367Bairro Boa Esperanccedila ndash Campus Universitaacuterio Gabriel Novis NevesCEP 78060-900 ndash Cuiabaacute-MT ndash Brasil

POLIFONIAPerioacutedico do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos de Linguagem ndash MestradoInstituto de Linguagens ndash Piso 2 sala 42Universidade Federal de Mato Grosso Cuiabaacute-MT ndash BrasilFones 0XX 65 36158418Endereccedilo eletrocircnico httpperiodicoscientificosufmtbrojsindexphppolifoniaE-mail polifoniaufmtbr

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)

P767 Polifonia Estudos literaacuterios[recurso eletrocircnico] ndash v 24

nordm 36 (jul-dez 2017) ndash Cuiabaacute UFMT Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Estudos de Linguagem 2017 195 p

Semestral

Modo de acesso internet

lthtppwwwperiodicoscientificosufmtbrpolifoniagt

ISSN 22376844

Estudos literaacuterios ndash Perioacutedicos I Universidade Federal de

Mato Grosso Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Estudos de

Linguagem

CDU ndash 81rsquo1

Os autores satildeo expressamente responsaacuteveis pelo conteuacutedo dos

respectivos trabalhos publicados neste perioacutedico

Pareceristas deste nuacutemero

Aacutegueda Ap da Cruz Borges (UFMT)

Aacutelvaro Cardoso Gomes (USPUNISA)

Antonio Marcos Pereira (UFBA)

Arnaldo Franco Jr (UNESP)

Benedito Antunes (UNESP)

Camila da Silva Alavarce (UFU)

Camila David Dalvi (IFES - Piuacutema)

Camila Figueiredo (UFMG)

Ceacutelia Maria Domingues da Rocha Reis (UFMT)

Claacuteudia Cristina Maia (CEFET-MG)

Claacuteudia Maria Ceneviva Nigro (UNESP)

Danglei de Castro Pereira (UnB)

Danilo Silva (UFMT)

Eni Freitas e Souza (UFU)

Fernanda Ribeiro (UNIFAL)

Flaacutevio Pereira Camargo (UFG)

Franceli Ap da Silva Mello (UFMT)

Gustavo Cerqueira Guimaratildees (UFMG)

Lindinalva Zagoto Fernandes (UFMT)

Madalena Aparecida Machado (UNEMAT)

Maria Alzira Leite (UniRitter)

Maria do Rosaacuterio Alves Pereira(CEFET-MG)

Maria Elisa Rodrigues Moreira (UFMT)

Maria Fernanda Alvito Pereira de Souza Oliveira (UFRJ)

Maria Tereza de Almeida Lima (UNIPTAN)

Marinete Luzia Francisca de Souza (UFMT)

Maacuterio Ceacutezar Silva Leite (UFMT)

Mauriacutecio Guilherme Silva Jr (UNIBH-Fapemig)

Osvaldo Copertino Duarte (UNIR)

Paulo Seacutergio Nolasco dos Santos (UFGD)

Renata Rocha Ribeiro (UFG)

Rosane Maria Cardoso (UNISC)

Rosacircngela Fachel(URI)

Simone de Jesus Padilha (UFMT)

Vanessa Fabiacuteola Silva de Faria (UNEMAT)

Viniacutecius Carvalho Pereira (UFMT)

eISSN 22376844polifonia

Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo 8

Dossiecirc 12

Estaacutegios Supervisionados em Literatura Literatura nos Estaacutegios Supervisionados 12

Autor e leitor identidades do professor de Literatura em formaccedilatildeo ndash experiecircncias com o estaacutegio supervisionado em Letras 13

Ana Creacutelia Penha Dias

Andreacute Luiacutes Mouratildeo de Uzecircda

Maria Coelho Araripe de Paula Gomes

Leituras de ldquoA flor e a naacuteuseardquo de Carlos Drummond de Andrade em praacuteticas de Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa 28

Diogo dos Santos Souza

Eliana Kefalaacutes de Oliveira

Cenas da formaccedilatildeo de professores de liacutengua e literatura no Curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) 41

Marcos Scheffel

Estaacutegio supervisionado em Letras da UFGD mediando leituras e formando leitores 54

Alexandra Santos Pinheiro

O Estaacutegio Supervisionado em Letras no vieacutes administrativo-pedagoacutegico 67

Flaacutevia Girardo Botelho Borges

Estaacutegio Supervisionado em Literatura um relato de experiecircncia na UTFPR ndash Curitiba 78

Mirelle Mussi Giri

Alice Atsuko Matsuda

Outros lugares 94

Interdiscursividade e intertextualidade a constituiccedilatildeo dos sentidos do dizer no universo autoral 95

Terezinha Maia Martincowski

ldquoMito biograacuteficordquo e ldquoficccedilatildeo familiarrdquo em Borges e Calvino 111

Maria Elisa Rodrigues Moreira

Sobre o amor e a incapacidade de amar 129

Dionei Mathias

Marcel ProustHonoreacute de Balzac a Meacutelange de uma Narratividade 149

Aguinaldo Joseacute Gonccedilalves

Acerca da ekphrasis numa passagem do Clarimundo de Joatildeo de Barros cena de pictoacuterico heroiacutesmo 164

Flaacutevio Antocircnio Fernandes Reis

Entrevista 180

Literatura e Ensino Entrevista com Joseacute Augusto Cardoso Bernardes 181

Por Marinete Luzia Francisca de Souza

Edital de Chamada de Artigos 2018 189

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eISSN 22376844polifonia

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Apresentaccedilatildeo

Dossiecirc Estaacutegios Supervisionados em Literatura Literatura nos

Estaacutegios Supervisionados

Os dossiecircs do perioacutedico Polifonia tecircm sido propostos objetivando colocar em circulaccedilatildeo tanto pesquisas de aacutereas consolidadas que jaacute contam com um corpo teoacuterico consideraacutevel inserido nas matrizes curriculares como temas polecircmicos questotildees nascentes que precisam de espaccedilos efetivos de discussatildeo e de apresentaccedilatildeo de experiecircncias realizadas em andamento e em perspectiva na busca de alinhar teorias e procedimentos para a construccedilatildeo de um arcabouccedilo de informaccedilotildees diretoras e conformes agraves necessidades dessas matrizes Tal eacute a situaccedilatildeo do dossiecirc organizado para este nuacutemero 36 do perioacutedico Polifonia aacuterea de Estudos Literaacuterios ndash Estaacutegios Supervisionados em Literatura Literatura nos Estaacutegios Supervisionados

O Estaacutegio Supervisionado eacute um componente curricular exigido legalmente para as licenciaturas colocando-se no acircmbito da matriz curricular como o meio que oportuniza ao licenciando contato mais direto com seu futuro campo profissional Se vislumbrado na esfera das Letras o Estaacutegio Supervisionado em Literatura foi implementado tardiamente em relaccedilatildeo ao Estaacutegio em Liacutengua Portuguesa embora os cursos de Letras apresentem carga horaacuteria equitativa para os estudos linguiacutesticos e para os literaacuterios Esse dado revela a particularidade de docentes do ensino superior desta aacuterea implicarem-se menos em questotildees didaacuteticas mais nos estudos do texto literaacuterio e de suas circunstacircncias

Atualmente em razatildeo das mudanccedilas curriculares no ensino puacuteblico o Estaacutegio Supervisionado tem sido realizado no ensino meacutediono contexto da disciplina de Liacutengua Portuguesa (no ensino fundamental isso jaacute era praacutetica antiga) exceccedilatildeo feita ao ensino privado coleacutegios de aplicaccedilatildeo entre unidades educacionais especiacuteficas Ocupando esse lugar alcanccedilado tambeacutem por dificuldades internas agrave proacutepria aacutereaseraacute preciso repensar as bases metodoloacutegicas nas quais a Literatura como aacuterea artiacutestica e de conhecimento se assenta para a manutenccedilatildeo de sua autonomia evitando constituir-se agrave custa de procedimentos alheios agrave sua natureza eacute preciso encontrar o seu proacuteprio caminho suas estrateacutegias consoantes com seus objetos Daiacute a importacircncia que assume este nuacutemero 36 do perioacutedico Polifonia oferecendo agrave comunidade cientiacutefica nesse tempo de reestruturaccedilatildeo curricular material bibliograacutefico contendo discussotildees que envolvem problemas e alternativas apresentadas por profissionais da aacuterea

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Foi estimulante entatildeo receber artigos de colegas de instituiccedilotildees de ensino superior do paiacutes puacuteblicas e particulares tratando de atividades de Estaacutegio Supervisionado em Literatura e ressalte-se de disciplina afim como Didaacutetica e Praacutetica de Ensino de Portuguecircs e Literaturas apresentando vivecircncias efetivas (e afetivas) realizadas com graduandos em unidades educacionais parceiras a partir de onde conhecem observam questionam o que estaacute posto estudam planejam e desenvolvem atividades compotildeem os relatos avaliam a funcionalidade e dificuldade das experiecircncias apontam soluccedilotildees ou apresentam discussotildees com base na experiecircncia adquirida pelos anos de trabalho Em todos os casos apresentam comprometimento poliacutetico com a aacuterea

Em coerecircncia com esse estado de coisas da leitura atenta dos artigos voltados ao dossiecirc avultou um eixo temaacutetico predominante a questatildeo autoral na formaccedilatildeo do professor de Letras tomado como criteacuterio para ordenar os artigos do dossiecirc

Os trecircs primeiros artigos promovem a discussatildeo da praacutetica autoral docente da escrita autoral da elaboraccedilatildeo criacutetica a partir da experimentaccedilatildeo literaacuteria com base em projetos desenvolvidos No primeiro Autor e leitor identidades do professor de Literatura em formaccedilatildeo ndash experiecircncias com o estaacutegio supervisionado em Letras Ana Creacutelia Penha Dias Andreacute Luiacutes Mouratildeo de Uzecircda e Maria Coelho Araripe de Paula Gomes apontam a necessidade de construir bases para que o Estaacutegio em Literatura se decirc de maneira adequada agrave formaccedilatildeo do licenciando na realidade de ensino-aprendizagem na escola por meio de accedilotildees que promovam autonomia sobre o seu fazer docente e mudanccedilas na realidade da escola e da proacutepria universidade pela revisatildeo dos curriacuteculos a fim de alcanccedilar uma didaacutetica que efetivamente coopere com o ensino baacutesico Dentre as conclusotildees abstraiacutedas das atividades de Estaacutegio realizadas no Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio de Janeiro ressaltam a fragilidade na formaccedilatildeo do estudante de Letras como leitor literaacuterio o que levou agrave consideraccedilatildeo de que deve haver um protagonismo de professor texto e leitor nas aulas de literatura

Diogo dos Santos Souza e Eliana Kefalaacutes de Oliveira constroem seu artigo Leituras de ldquoA flor e a naacuteuseardquo de Carlos Drummond de Andrade em praacuteticas de Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa com base em uma oficina de leitura de poesia realizada por estagiaacuterios observando e atribuindo um vieacutes subjetivo e criacutetico aos mecanismos que eles empregam na experimentaccedilatildeo do texto literaacuterio defendendo endossados por argumento de autoridade que tais experiecircncias analiacuteticas datildeo condiccedilotildees de edificaccedilatildeo de um discurso criacutetico sobre o texto literaacuterio natildeo devendo a teoria e a criacutetica literaacuterias serem estudadas de maneira estratificada e aprioriacutestica na formaccedilatildeo do leitor Nesse sentido defendem o exerciacutecio criacutetico sobre as obras literaacuterias no diaacutelogo com os estudantes cabendo agrave criacutetica o papel de incitar dar indiacutecios para diferentes modos de compreensatildeo das obras em apreccedilo

Marcos Scheffel em Cenas na formaccedilatildeo de liacutengua e literatura no curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com base em suas experiecircncias didaacuteticas e em um projeto de leitura indica criticamente o descompromisso do curso de Letras mais preocupado em formar pesquisadores que profissionais para atuarem na educaccedilatildeo

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baacutesica o que ocorre sobretudo com a aacuterea da Literatura desenvolvida com estudos teoacutericos para anaacutelise e interpretaccedilatildeo de textos com grau de dificuldade que restringe o acesso de leitores com a imposiccedilatildeo de leituras sem discussatildeo de criteacuterios de seleccedilatildeo etc Satildeo questotildees que apontam para dificuldades de formaccedilatildeo de leitores nas escolas Daiacute se deduz o motivo de a literatura estar em ldquoextinccedilatildeo na escolardquo os inuacutemeros obstaacuteculos para a formaccedilatildeo de leitores com estudantes que chegam aos cursos de Letras sem esse perfil e encontram uma universidade que se exime dessa responsabilidade

Os artigos seguintes trazem consideraccedilotildees sobre Estaacutegio que se desenvolvem a partir de reflexotildees sobre letramento em diferentes linhas

Em Estaacutegio supervisionado em Letras da UFGD mediando leituras e formando leitores Alexandra Santos Pinheiro afirma a necessidade de levar o graduando por meio do Estaacutegio Supervisionado a refletir sobre o curso de Letras o conhecimento adquirido a importacircncia equiparada de conteuacutedos e metodologias as proacuteprias restriccedilotildees e as do curso perante as condiccedilotildees que encontraraacute no campo de trabalho Discute as dificuldades dos graduandos na elaboraccedilatildeo de planos de aula para a regecircncia relativas agrave fundamentaccedilatildeo teoacuterica e ao baixo repertoacuterio de leituraso que restringe a seleccedilatildeo na montagem das atividades dos planos Abordando o letramento literaacuterio afirma a necessidade de defesa da literatura nas praacuteticas curriculares da funccedilatildeo do professor de estimular o encontro dos alunos com a literatura mesmo com a dificuldade de acesso aos livros e a disputa comas opccedilotildees tecnoloacutegicas e de laborar com as potencialidades dos textos a fim de que estes ganhem sentido e conhecimento garantindo a formaccedilatildeo do cidadatildeo

Em O Estaacutegio Supervisionado em Letras no vieacutes administrativo-pedagoacutegico Flaacutevia Girardo Botelho Borges procede agrave anaacutelise da formaccedilatildeo de professores integrando a perspectiva da administraccedilatildeo escolar agrave pedagoacutegica considerando inviaacutevel segmentar professor e contexto de atuaccedilatildeo Nesse senso advoga a necessidade de fomentar nas licenciaturas experiecircncias de graduandos com as circunstacircncias de seu campo profis-sional ponto em que ressalta o tema do artigo o Estaacutegio Supervisionado em Letras parametrizado no Projeto Pedagoacutegico em vigecircncia no Curso de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso e nas praacuteticas de letramento Aponta para as muacuteltiplas dificulda-des de realizaccedilatildeo do Estaacutegio que em conexatildeo com as poliacuteticas puacuteblicas com o curriacuteculo pedagoacutegico e com as condiccedilotildees apresentadas pela escola vatildeo compondo a ldquoidentidade docenterdquo numa das fundamentaccedilotildees apresentadas como ldquoum espaccedilo de construccedilatildeo de maneiras de ser e de estar na profissatildeordquo Mediante esse quadro a autora apresenta dire-cionamentos estabelecidos apoacutes discussatildeo com o Colegiado do curso para contribuir para a realizaccedilatildeo do Estaacutegio de maneira mais favoraacutevel ressaltando a importacircncia do trabalho coeso entre professores alunos coordenaccedilatildeo de curso e oacutergatildeo colegiado

Encerrando o dossiecirc em Estaacutegio supervisionado em literatura relato de experiecircncia na UTFPRndash Curitiba Mirelle Mussi Giri e Alice Atsuko Matsuda discorrem sobre o modo como se processa o trabalho com o Estaacutegio Supervisionado em Literatura na Universidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute no acircmbito do qual apresentam uma experiecircncia de observaccedilatildeo e regecircncia realizada por uma dupla de alunas no ensino

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baacutesico Natildeo obstante as dificuldades concluem que o modo de conduccedilatildeo do Estaacutegio integrando aspectos teoacutericos como estudos criacuteticos e reflexivos de textos e documentos oficiais que fundamentam e direcionam o ensino de literatura e praacuteticos promove a capacitaccedilatildeo discente e desenvolve as competecircncias e habilidades para o exerciacutecio da docecircncia realizando os objetivos propostos no Projeto Pedagoacutegico

Em acordo com a poliacutetica do perioacutedico Polifonia apresentamos aleacutem do dossiecirc a seccedilatildeo Outros lugares contendo artigos de temaacuteticas variadas

A seccedilatildeo se inicia com o artigo Interdiscursividade e intertextualidade a constitui-ccedilatildeo dos sentidos do dizer no universo autoral de Terezinha Maia Martincowski no qual ela discute com base em projeto realizado com graduandos do 1ordm ano de cursos dife-rentes reunidos em disciplina que trata da introduccedilatildeo ao conhecimento do campo da pesquisa em educaccedilatildeo o modo como se compotildee o universo autoral a partir da leitura interpretativa formaccedilatildeo de arquivos e produccedilatildeo escrita

Em ldquoMito biograacuteficordquo e ldquoficccedilatildeo familiarrdquo em Borges e Calvino Maria Elisa Rodrigues Moreira abre as generosas bibliotecas dos celebrados autores para refletir a partir des-tas e de uma genealogia afetiva sobre o processo de construccedilatildeo das personas autorais desses escritores

A operaccedilatildeo narrativa a partir do afeto eacute tambeacutem a tocircnica do artigo ldquoSobre o amor e a incapacidade de amarrdquo no qual Dionei Mathias reflete tomando por base o romance A Pianista de Elfriede Jelinek sobre o desejo de amor (em suas mais variadas formas) e a incapacidade de seu pleno desenvolvimento pelas personagens da escritora austriacuteaca

Por seu turno em Marcel ProustHonoreacute de Balzac a Meacutelange de uma Narratividade Aguinaldo Joseacute Gonccedilalves parte do posicionamento contraacuterio ao meacutetodo biograacutefico de Saint-Beuve afirmado por Proust que para sua argumentaccedilatildeo reflete sobre a relaccedilatildeo vidaobra em Honoreacute de Balzac e Gustave Flaubert para afirmar a importacircncia do pensamento criacutetico e inventivo da narrativa proustiana que coloca em relaccedilatildeo de proximidade a ficccedilatildeo e o ensaio

Encerra esta seccedilatildeo o artigo Acerca da ekphrasis numa passagem do Clarimundo de Joatildeo de Barros cena de pictoacuterico heroiacutesmo no qual Flaacutevio Antonio Fernandes Reis tanto apresenta ao leitor essa novela de cavalaria ainda pouco pesquisada quanto constroacutei aprofundado percurso pela conformaccedilatildeo de um pensamento a respeito da ekphrasis para entatildeo analisar como o episoacutedio da ldquoFloresta Encantadardquo se constitui com base nesse ldquocolocar diante dos olhos do leitorrdquo o cenaacuterio e as figuras centrais da obra

Na seccedilatildeo Entrevista Marinete Luzia Francisca de Souza conversa com o Prof Dr Joseacute Augusto Bernardes docente da Universidade de Coimbra acerca das condiccedilotildees do ensino de literatura no niacutevel baacutesico e superior em Portugal da evoluccedilatildeo histoacuterica da possibilidade de inserccedilatildeo de obras de outras culturas na matriz curricular e dos paracircmetros de obras antigas no ensino contemporacircneo entre outros temas

Desejamos a todos uma boa leitura

Ceacutelia Maria Domingues da Rocha ReisMaria Elisa Rodrigues Moreira

Organizadoras

DossiecircEstaacutegios Supervisionados em Literatura

Literatura nos Estaacutegios Supervisionados

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eISSN 22376844polifonia

Autor e leitor identidades do professor de Literatura em formaccedilatildeo ndash experiecircncias com o

estaacutegio supervisionado em LetrasAuthor and Reader Pre-service Literature Teacherrsquos Identities

ndash Experiences with Supervised Internship in the Letras Program

Autor y lector Identidades del profesor de Literatura en formacioacuten ndash experiencias con las praacutecticas supervisadas en Letras

Ana Creacutelia Penha Dias Universidade Federal do Rio de Janeiro

Andreacute Luiacutes Mouratildeo de UzecircdaColeacutegio de Aplicaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Maria Coelho Araripe de Paula GomesColeacutegio de Aplicaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo

No painel educacional brasileiro o estaacutegio supervisionado reflete questotildees de lacuna da formaccedilatildeo inicial e de antecipaccedilatildeo dos problemas da profissatildeo docente Neste cenaacuterio professores regentes de estaacutegio precisam atuar tambeacutem na formaccedilatildeo dos licenciandos e no trato com a literatura eacute necessaacuterio potencializar a dimensatildeo de leitor literaacuterio e de autor das praacuteticas pedagoacutegicas que seratildeo realizadas Este artigo traz reflexotildees acerca dessa experiecircncia com formaccedilatildeo de futuros professores de Literatura e propotildee alguns caminhos para pensar a relaccedilatildeo do licenciando com a leitura literaacuteria e com a ocupaccedilatildeo de um espaccedilo de autoria de seus trabalhos na escola Para isso seratildeo apresentados relatos de duas experiecircncias com estaacutegio supervisionado em Letras no Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio de JaneiroPalavras-chave Estaacutegio supervisionado ensino de Literatura formaccedilatildeo de professores

Abstract

In the Brazilian educational context the supervised internship reflects questions about the lack of initial education and the anticipation of problems related toa teacherrsquos job In this scenario internship supervisors must also act in the training of pre-service teachers and regarding literature they have to enhance the roles of teachers as literary readers and authors of pedagogical practices This article reflects on an experience in the education of future Literature teachers and proposes some ways to think about the relation among prospective teachers reading literature

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and the appropriation of an authorship space at school To do so we will present reports of two experiences of supervised internship in the Letras Program at the Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio de Janeiro Keywords Supervised internship teaching literature teacherrsquos education

Resumen

En el panorama educativo brasilentildeo el periodo de praacutecticas supervisadas refleja cuestiones de vaciacuteos em la formacioacuten inicial y de anticipacioacuten de los problemas de la profesioacuten docente En este escenario los tutores de la supervisioacuten necesitan actuar tambieacuten em la formacioacuten de los alumnos del grado y respecto al tratamiento de la literatura es necesario potenciar la dimensioacuten del lector literario y del autor de las praacutecticas pedagoacutegicas que se realizaraacuten Este artiacuteculo refleja acerca de esa experiencia con la formacioacuten de futuros profesores de Literatura y propone algunos caminos para pensar la relacioacuten del alumno em formacioacuten com la lectura literaria y com la ocupacioacuten de um espacio de autoriacutea de sus trabajos em la escuela Asiacute se presenta la discusioacuten a traveacutes del relato de dos experiencias referentes a praacutecticas supervisadas em Letras realizadas em el Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo de la Universidade Federal do Rio de JaneiroPalabras clave Formacioacuten supervisada ensentildeanza de la literatura formacioacuten docente

Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensinaCora Coralina

Introduccedilatildeo

O estaacutegio supervisionado dos cursos de licenciatura vive muitas vezes a antecipaccedilatildeo da precarizaccedilatildeo com o qual a futuro profissional teraacute que lidar Agrave parte dessa realidade muito frequente precisamos refletir sobre quais seriam as bases para a realizaccedilatildeo de uma experiecircncia condizente com a necessidade da formaccedilatildeo inicial na aacuterea em situaccedilotildees reais de aprendizagem em que o diaacutelogo teoria-praacutetica se faccedila como discurso de construccedilatildeo de saberes entre a universidade e a escola entre licenciando professor regente e professor da Praacutetica de Ensino Isto eacute adentrar a escola durante o estaacutegio se por um lado potildee um grande desafio em relaccedilatildeo ao reconhecimento da realidade educacional brasileira em especial da rede puacuteblica de ensino por outro precisa oportunizar a participaccedilatildeo do licenciando em accedilotildees de construccedilatildeo coletiva que visem agrave mudanccedila do quadro de precariedade convocando neles no momento inicial de formaccedilatildeo atitude de sujeito diante da condiccedilatildeo de professor O cenaacuterio atual no Brasil exige uma formaccedilatildeo de luta pela manutenccedilatildeo do direito agrave educaccedilatildeo puacuteblica e essa necessidade eacute anterior a qualquer especificidade curricular paralelamente as questotildees curriculares demandam muito num tempo em que imposiccedilotildees de uniformizaccedilatildeo de curriacuteculo sem o necessaacuterio debate tambeacutem convocam o olhar para a formaccedilatildeo especiacutefica

Neste artigo pretendemos fazer uma reflexatildeo acerca da formaccedilatildeo em Letras do ponto de vista do estaacutegio supervisionado natildeo soacute do que significa construir com o licenciando

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em niacutevel macro uma praacutetica pedagoacutegica que seja ao mesmo tempo uma experiecircncia em que ele se forma como professor mas tambeacutem o lugar em que ele crie com os professores regentes e no diaacutelogo com estudantes novos saberes que propiciem transformaccedilotildees necessaacuterias agrave educaccedilatildeo baacutesica Em niacutevel mais especiacutefico procuramos entender como esse percurso na escola pode ser para o estudante da licenciatura tambeacutem um espaccedilo privilegiado de sua formaccedilatildeo como leitor literaacuterio

1 Professor de Liacutengua Portuguesa Apecircndice Literatura

Iniciando nossas reflexotildees buscaremos nos aproximar de alguns conceitos pertinentes agrave discussatildeo proposta Quando tratamos de curriacuteculo na realidade brasileira remetemos nossos esforccedilos constantemente ao rol de conteuacutedos a serem desenvolvidos em sala de aula e natildeo a um orientador poliacutetico-pedagoacutegico-filosoacutefico de nossas praacuteticas Pensando em conteuacutedo e formaccedilatildeo mais uma vez nos confrontamos com uma realidade que em geral natildeo eacute muito generosa nem em seus propoacutesitos nem nos resultados pensando curriacuteculo como lista de conteuacutedos essa realidade escolar costuma conceber formaccedilatildeo como transmissatildeo de conteuacutedos quase sempre de forma unilateral Um curriacuteculo organizado em disciplinas que segmentam o conhecimento e o concebem como gama conteudiacutestica colocaraacute a literatura em um lugar de apecircndice nas aulas de Liacutengua Portuguesa Antes de avanccedilar precisamos esclarecer que natildeo haacute aqui a defesa de separaccedilatildeo entre ensino de Liacutengua Portuguesa e Literatura no Ensino Fundamental Colocamos em discussatildeo o espaccedilo da literatura num curriacuteculo em que ela natildeo eacute disciplina numa concepccedilatildeo em que o curriacuteculo se organiza em eixos de aacutereas de conhecimento que se organiza em torno de conteuacutedo O lugar da literatura nessa loacutegica eacute o de algo supeacuterfluo ao qual o estudante pode ter acesso esporaacutedico e que pode servir a propoacutesitos linguiacutesticos apenas na maioria das praacuteticas

A escola brasileira quase sempre traz um retrato muito fragmentado da formaccedilatildeo literaacuteria e a formaccedilatildeo inicial ndash em Pedagogia para os professores das seacuteries iniciais e em Letras para os do Ensino Fundamental II e Ensino Meacutedio ndash natildeo tem conseguido estabelecer relaccedilotildees profundas entre os lugares de ser leitor e ser leitor especializado e esse descompasso se reflete na Educaccedilatildeo Baacutesica direcionando o professor para principalmente um dos dois caminhos reproduzir o discurso elitizado da Literatura como um conhecimento acessiacutevel a poucos ou repetir o ensino que recebeu na escola quando estudante realidade jaacute denunciada desde a deacutecada de 1970 por autores como Ligia Chiappini e Osman Lins dentre outros e revisitada mais contemporaneamente por Todorov e Compagnon

A manutenccedilatildeo na universidade de uma estrutura curricular que subtrai os espaccedilos de relaccedilatildeo mais aprofundada com a licenciatura em que a formaccedilatildeo para a docecircncia assume lugar desprivilegiado coloca ao encargo do estaacutegio supervisionado uma tarefa para aleacutem de orientaccedilatildeo de estaacutegio que eacute a de oferecer a bagagem de conteuacutedo com a qual o licenciando teraacute que lidar para planejar sua aula e colocaacute-la em praacutetica em situaccedilatildeo real de ensino-aprendizagem Portanto natildeo se trata apenas de pensar como precisa acontecer a transposiccedilatildeo didaacutetica mas muitas vezes de apresentar o conteuacutedo que compotildee o programa escolar

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Em realidades que se constituem como exceccedilatildeo no painel educacional brasileiro como as escolas federais e especialmente os Coleacutegios de Aplicaccedilatildeo os professores regentes dispotildeem de mais tempo para esse tipo de atuaccedilatildeo Entretanto essa natildeo eacute a realidade da maioria das escolas e na ausecircncia de amparo agraves lacunas da formaccedilatildeo os licenciandos podem tender agrave repeticcedilatildeo de praacuteticas que nem sempre se arvoram a uma formaccedilatildeo mais complexa e criacutetica dos estudantes da Educaccedilatildeo Baacutesica

Na reproduccedilatildeo de um ciclo em que se privilegia a metalinguagem e a memorizaccedilatildeo dos conteuacutedos para responder a instrumentos de avaliaccedilatildeo ndash quase sempre externa e de ampla abrangecircncia ndash encontramos a Literatura em encruzilhada de propoacutesitos de ensino diferentes mas complementares em sua pouca eficaacutecia para formar leitores um lugar do texto como mais um gecircnero do discurso a ser utilizado para fins de compreensatildeo em torno da forma ou como pretexto para praacuteticas de estudos linguiacutesticos Em ambos os casos a experiecircncia esteacutetica de diaacutelogo entre leitor e texto desaparece em detrimento de uma abordagem superficial O trabalho do estaacutegio supervisionado portanto estaacute tambeacutem no lugar de formaccedilatildeo inicial do licenciando e no caso do futuro professor de Literatura vem responder tambeacutem por leituras e reflexotildees que foram subtraiacutedas dele desde a escola baacutesica em que foi estudante

2 Consideraccedilotildees acerca da atuaccedilatildeo do professor-autor experiecircncias com a produccedilatildeo de material didaacutetico no Estaacutegio Supervisionado em Letras

Tecer consideraccedilotildees sobre a formaccedilatildeo inicial de professores junto ao estaacutegio supervisionado passa necessariamente pela reflexatildeo poliacutetica da praacutetica docente Educar como jaacute lembrava Paulo Freire (2011) implica tomar uma posiccedilatildeo com relaccedilatildeo ao mundo O educador portanto natildeo eacute ndash nem pode ser ndash um agente neutro mas compromissado com um determinado posicionamento poliacutetico Tomando como princiacutepio o engajamento com o mundo deve o professor em formaccedilatildeo assumir-se enquanto agente de transformaccedilatildeo social alinhavado a um discurso ideoloacutegico e que como tal precisa encontrar modos de agir que o coloquem na posiccedilatildeo autoral de suas proacuteprias praacuteticas saberes e fazeres docentes

Nesses termos partimos para a reflexatildeo da atuaccedilatildeo do professor-autor que entende a construccedilatildeo do seu curriacuteculo no cotidiano da sala de aula a partir da diversidade de saberes e experiecircncias compartilhadas pelos seus estudantes e na multiplicidade de realidades de mundo em que seus estudantes se encontram em vias de construccedilatildeo (OLIVEIRA 2013) Considerando-se a especificidade das disciplinas de Liacutengua Portuguesa e Literatura a centralidade do texto que dinamiza o andamento da aula nos confronta diariamente com a posiccedilatildeo da escolha seja de temaacuteticas de gecircneros textuais de autores de recortes os quais satildeo por noacutes selecionados para este ou aquele fim conforme a dinacircmica disposta em cada turma com seu perfil singular de alunado e as situaccedilotildees cotidianas proacuteprias da praacutetica pedagoacutegica

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O estaacutegio curricular supervisionado propicia para a maioria dos graduandos nas mais variadas aacutereas de licenciatura a primeira oportunidade de retornar agrave sala de aula natildeo mais na posiccedilatildeo de estudante Considere-se entretanto a particularidade deste lugar que ainda natildeo eacute o de professor Antes cabe-lhe a posiccedilatildeo ambivalente de um professor-estudante que com curiosidade observa desse entrelugar a postura dos alunos e do professor o que lhe possi-bilita vislumbrar a situaccedilatildeo da sala de aula de modo privilegiado tomando ora o ponto de vista do professor ora o do aluno Esta singularidade de percepccedilatildeo daacute-lhe a oportunidade de entender a dinacircmica da ldquododiscecircnciardquo (FREIRE 1996 p89) da maneira mais potente possiacutevel primeiro passo a ser destacado na construccedilatildeo da sua identidade como professor-autor

O conceito da ldquododiscecircnciardquo compreende a mutualidade da construccedilatildeo do conhecimento de maneira natildeo hieraacuterquica entre professores e estudantes em uma relaccedilatildeo horizontalizada no compartilhamento dos saberes Eacute ela a base para que o professor construa seu projeto didaacutetico metodoloacutegico e curricular de modo mais adequado agrave realidade de seu alunado Quando afirmamos que o curriacuteculo se constroacutei no cotidiano partimos justamente de uma concepccedilatildeo de educaccedilatildeo ldquododiscenterdquo para explorar as abordagens e estrateacutegias de ensino adequadas agrave realidade de nossas salas de aula Mediante o perfil de uma turma cujos alunos se tratam de maneira agressiva entre si a tiacutetulo de exemplo eacute papel do professor trabalhar o tema do respeito o que pode ser feito pela seleccedilatildeo de textos com os quais poderaacute mobilizar discussotildees com os estudantes ou ainda promover atividades em grupo que trabalhem o espiacuterito da colaboraccedilatildeo em vez da competitividade quando no caso de turmas que disputem entre si as melhores notas

Essa praacutetica pedagoacutegica soacute nos eacute possiacutevel quando temos a liberdade autoral de construirmos os nossos proacuteprios curriacuteculos cotidianamente em nossas aulas Natildeo quer isso dizer que o professor seleciona conteuacutedos curriculares a seu bel-prazer escolhendo os que lhe apetecem por gosto pessoal e excluindo aqueles que julga serem menos interessantes ou desgostosos para si ndash argumento a que defensores da uniformizaccedilatildeo do ensino por bases curriculares ou do polecircmico e inconstitucional projeto de lei ldquoEscola sem partidordquo recorrem para falsamente promover uma educaccedilatildeo ldquoequilibradardquo e ldquoneutrardquo para todos equalizando os ldquoniacuteveisrdquo de conhecimento entre os estudantes de uma mesma seacuterieano Na realidade o que se propotildee e defende aqui eacute a articulaccedilatildeo dos conteuacutedos curriculares agraves circunstacircncias impostas na espontaneidade do labor pedagoacutegico entendendo a formaccedilatildeo educacional de nossos estudantes para muito aleacutem do conteuacutedo curricular explorado pelas mais diferentes disciplinas

Na falsa defesa por um equiliacutebrio equacircnime do que eacute ensinado nas vaacuterias escolas puacuteblicas no cenaacuterio nacional (desconsiderando-se as diferenccedilas de realidade entre uma escola de zona rural ou urbana de realidades sociais diacutespares como de bairros nobres e de bairros de periferia ou ainda as particularidades de uma comunidade ribeirinha quilombola ou sertaneja) estrateacutegias de uniformizaccedilatildeo vecircm sendo aplicadas ao longo da histoacuteria da educaccedilatildeo brasileira Para aleacutem dos documentos oficiais que visam agrave isonomia e uniformidade do curriacuteculo tais como a necessaacuteria Lei de Diretrizes e Bases de 1996 os Paracircmetros Curriculares Nacionais de 1998 e a Base Nacional Curricular Comum que

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vem sendo (re)formulada nesse momento para aleacutem da nova proposta de Ensino Meacutedio imposta pelo atual governo federal destacamos para este trabalho os programas voltados para a produccedilatildeo e distribuiccedilatildeo de livros e materiais didaacuteticos enquanto limitadores de uma praacutetica efetivamente autoral na atividade profissional docente

Haacute que se problematizar o papel do livro didaacutetico como instrumento de mediaccedilatildeo da praacutetica pedagoacutegica Natildeo se trata de defendermos aqui a extinccedilatildeo do livro didaacutetico ou reduzirmos a sua importacircncia para a praacutetica das tarefas pedagoacutegicas mais comuns como a leitura de textos sistematizaccedilatildeo de conteuacutedos e de conceitos importantes e a realizaccedilatildeo de atividades e exerciacutecios de fixaccedilatildeo sobre os temas abordados em cada unidadecapiacutetulo Ao contraacuterio haacute que se valorizar a iniciativa de programas como o Programa Nacional do Livro Didaacutetico (PNLD) por exemplo pela accedilatildeo de distribuiccedilatildeo de livros didaacuteticos gratuitamente para as escolas puacuteblicas de todas as regiotildees do paiacutes que em muito contribuiu para a democratizaccedilatildeo da educaccedilatildeo puacuteblica No entanto eacute importante questionarmos sobre a centralidade ocupada pelo livro didaacutetico e materiais apostilados em nossas aulas cujo projeto curricular eacute pensado por terceiros retirando muitas vezes a autoria do trabalho docente a ser desenvolvido com nossas turmas

Tambeacutem natildeo podemos perder de vista a exploraccedilatildeo mercadoloacutegica movimentada pelo programa que mobiliza a maior parcela de lucro de grandes empresas do ramo editorial fazendo da educaccedilatildeo um negoacutecio rentaacutevel e a serviccedilo do capital Quando o interesse envolvido visa ao lucro e natildeo de fato ao aprimoramento do ensino e da aprendizagem dos estudantes da rede puacuteblica natildeo espanta que alguns desses materiais mesmo que passando pelo crivo e criteacuterio dos avaliadores do PNLD apresentem propostas pouco inovadoras para nossos estudantes

Quando a reduccedilatildeo de nossa atuaccedilatildeo docente se pauta centralmente pela aplicaccedilatildeo dos materiais didaacuteticos distribuiacutedos pelos programas governamentais de educaccedilatildeo estamos diante de grande perigo Programas de ensino por apostilamento como o promovido pela Secretaria Municipal do Rio de Janeiro reduzem o trabalho docente ao cumprimento das unidades do material distribuiacutedo e sua execuccedilatildeo ou natildeo eacute aferida por avaliaccedilotildees elaboradas e aplicadas pela Secretaria bimestralmente O mesmo era verificado com as afericcedilotildees promovidas ateacute 2015 pela Secretaria Estadual de Educaccedilatildeo do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ) como o Sistema de Avaliaccedilatildeo do Estado do Rio de Janeiro (SAERJ) no mesmo objetivo de monitoraccedilatildeo do cumprimento ou natildeo dos conteuacutedos curriculares

Para aleacutem disso natildeo eacute possiacutevel dissociar a promoccedilatildeo de tais metodologias de ensino agrave baixa remuneraccedilatildeo profissional dos docentes que com frequecircncia veem-se obrigados a acumular mais de uma matriacutecula no serviccedilo puacuteblico muitas vezes somada(s) agrave contrataccedilatildeo na rede privada de ensino em que a extensa carga horaacuteria reduz o tempo laboral para a organizaccedilatildeo e o planejamento das atividades Na busca por um padratildeo salarial razoaacutevel em detrimento de uma carga horaacuteria tatildeo extensa recorrer a tais materiais apostilados prontos acaba sendo visto como um facilitador do trabalho jaacute tatildeo precarizado

Incorre em grande risco o profissional que acaba por se adequar a tal situaccedilatildeo sem pensar em alternativas a essa loacutegica predominante Vecirc-se na realidade apartado do

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caraacuteter mais intelectual de nossa atividade docente uma vez que natildeo planeja de forma autocircnoma suas proacuteprias aulas natildeo seleciona os textos com os quais deseja trabalhar e tampouco mobiliza os exerciacutecios de maneira reflexiva e dirigida agraves questotildees pedagoacutegicas exigidas pelas especificidades de seu alunado Em outras palavras o docente deixa de atuar como um professor-autor e passa agrave condiccedilatildeo de professor-instrutor tutor de um trabalho pensado por terceiros e apartado da realidade cotidiana de sua sala de aula Diferentemente do que pregam os defensores do PL Escola sem Partido (PL 867 2015) o professor que se alinha a este projeto educacional cumprindo rigorosamente os requisitos postulados por programas educacionais como os citados anteriormente (pelo que muitas vezes satildeo premiados) natildeo eacute um profissional ldquoneutrordquo que meramente cumpre com sua tarefa de transmissor de conhecimento mas trabalha agrave disposiccedilatildeo da loacutegica dominante da meritocracia e do capital

Essas consideraccedilotildees foram pensadas e discutidas com estudantes da licenciatura em Letras do oitavo periacuteodo que foram alocados no Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da UFRJ para a realizaccedilatildeo de seu estaacutegio curricular supervisionado acompanhando turmas de seacutetimo ano do Ensino Fundamental nos anos de 2013 2014 e 2015 Aleacutem de acompanharem as turmas na observaccedilatildeo os graduandos participaram ativamente na construccedilatildeo e planejamento das aulas com encontros de orientaccedilatildeo semanal quando o material didaacutetico elaborado pelo professor orientador a ser aplicado agraves turmas era compartilhado com os estagiaacuterios Nesses encontros de orientaccedilatildeo guiados pelas discussotildees de Chiappini (2005) Lajolo (1996) e Marcuschi (2008) discutimos a respeito da praacutetica docente autoral de diferentes metodologias e recursos didaacuteticos a serem explorados em sala de aula aleacutem da praacutetica de produccedilatildeo de exerciacutecios explorando habilidades e competecircncias (RUEacute 2009)

Dessas trocas de experiecircncias o envolvimento com a praacutetica de produccedilatildeo de material didaacutetico ganhou forccedila e interesse dos estagiaacuterios o que acabou por mobilizar a criaccedilatildeo do projeto de ensino ldquoFichas complementares ndash o que eacute para que serve como se fazrdquo pequena oficina de produccedilatildeo de material didaacutetico complementar e de reforccedilo escolar para os estudantes O projeto ainda embrionaacuterio no ano de 2013 iniciou-se com a coparticipaccedilatildeo dos licenciandos que contribuiacuteram com textos e exerciacutecios aplicados em sala e posteriormente por eles corrigidos em aula Para tanto as experiecircncias leitoras de cada estagiaacuterio foram compartilhadas em nossos encontros de orientaccedilatildeo criando entre o grupo uma coletacircnea de textos literaacuterios e natildeo literaacuterios que dialogavam com o programa e poderiam ser aplicados agraves turmas Com base na seleccedilatildeo de algumas das leituras trazidas os licenciandos exploraram aspectos de anaacutelise importantes para serem alcanccedilados por estudantes e ensaiaram alguns exerciacutecios de interpretaccedilatildeo Aleacutem disso articularam os conteuacutedos curriculares de literatura gramaacutetica e produccedilatildeo textual previstos no programa curricular do seriado elaborado pelo Setor de Liacutengua Portuguesa do CAp UFRJ aos materiais que produziram sob supervisatildeo do professor orientador

A criaccedilatildeo do projeto ainda em andamento veio em virtude da grande quantidade de materiais e exerciacutecios de altiacutessima qualidade que foram elaborados pelos licenciandos

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mas que natildeo poderiam ser todos aplicados nas aulas por natildeo haver tempo haacutebil para tanto no decorrer do ano letivo Daiacute surgiu a ideia de criaccedilatildeo de uma pequena oficina de produccedilatildeo de material didaacutetico agrave distacircncia Em uma pasta de compartilhamento online os estudantes da licenciatura compartilhavam diferentes textos entre si sobre os quais elaboravam exerciacutecios e questotildees e contribuiacuteam com sugestotildees para melhor aprimoramento Tambeacutem agrave distacircncia o professor supervisionava o trabalho com sugestotildees e criacuteticas e indicava quando da aplicabilidade dos exerciacutecios aos estudantes O problema com a falta de tempo para teste de aplicabilidade dos materiais foi resolvido com a criaccedilatildeo de pastas com exerciacutecios ldquoextrasrdquo que poderiam ser resolvidos em casa pelos estudantes como fixaccedilatildeo e reforccedilo escolar posteriormente corrigidos pelos autores de cada ficha

Esse material denominado como ldquofichas complementaresrdquo foi disposto em pastas coloridas deixadas na sala de aula atualizadas semanalmente e exploradas pelos alunos da turma na descoberta de novos textos e exerciacutecios Muitas delas inclusive eram pensadas diretamente para alguns alunos especiacuteficos que apresentavam dificuldades de aprendizagem no campo da leitura ou da escrita por exemplo ndash o que demonstrou a percepccedilatildeo e sensibilidade dos professores em formaccedilatildeo para a importacircncia de uma praacutetica docente autoral Aleacutem disso a escolha dos textos e dos temas abordados eram associados diretamente a situaccedilotildees vividas no cotidiano do trabalho pedagoacutegico para o que muito contribuiu a praacutetica da produccedilatildeo textual explorada pelas fichas que os levava a refletir criticamente sobre temas que consideraacutevamos importantes de serem discutidos Como forma de estimular o interesse para recorrerem agraves pastas e resolverem os exerciacutecios pontos extras somados agraves avaliaccedilotildees foram dados ndash o que contribuiacutea consequentemente para a preparaccedilatildeo e estudos para as provas e testes Com significativo desempenho dos estudantes nas avaliaccedilotildees em decorrecircncia do preparo os pontos ldquobocircnusrdquo logo acabaram se mostrando desnecessaacuterios

Ao final do estaacutegio curricular quando os licenciandos assumem a regecircncia da turma por dois tempos seguidos os resultados alcanccedilaram niacuteveis de satisfaccedilatildeo muito acima do desejado Natildeo soacute criaram seus planos de aula de forma totalmente autoral com a produccedilatildeo de seus proacuteprios materiais e incrementando-os com recursos didaacuteticos diversificados como projeccedilatildeo de slides viacutedeos muacutesicas etc como ainda tinham um grande entrosamento com os estudantes que ao longo do ano letivo receberam o suporte e a atenccedilatildeo dos estagiaacuterios por meio da resoluccedilatildeo e correccedilatildeo atenciosa das fichas complementares desenvolvidas para eles O projeto aprimorado nos anos seguintes ganhou grande repercussatildeo e inclusive contou com a apresentaccedilatildeo de relatos de experiecircncia por parte do professor orientador e dos licenciandos em eventos acadecircmicos como o Encontro Nacional de Ensino e Aprendizagem de Liacutengua e Literatura (ENEALL-UFRJ) em novembro de 2014 e o Congresso Nacional de Ensino de Liacutengua Portuguesa (CONELP-UERJ) em julho de 2016 e seguiraacute contribuindo para a atividade autoral dos professores em formaccedilatildeo inicial em sintonia com uma verdadeira praacutetica educativa emancipatoacuteria

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3 A dimensatildeo do professor leitor experiecircncias com a leitura literaacuteria no Estaacutegio Supervisionado em Letras

A perspectiva autoral defendida neste artigo como fundamento do qual emergem os fios que tecem a identidade docente caminho plural e sempre inacabado pode-se desdobrar na dimensatildeo do professor e da professora autores de seus proacuteprios materiais de trabalho como jaacute visto bem como se apresenta numa outra dimensatildeo a princiacutepio oacutebvia quando pensamos no futuro docente de liacutengua portuguesa e literatura mas que na praacutetica perde o caraacuteter de obviedade para se materializar numa questatildeo complexa a dimensatildeo do professor leitor

A escola entendida aqui como lugar de feitura e partilha de saberes constroacutei-se por vezes num movimento contraacuterio de silenciamento dos sujeitos imediatamente envolvidos no processo de ensino-aprendizagem o estudante visto e avaliado muitas vezes pela falta e natildeo pela sua potecircncia e o proacuteprio professor limitado a um sistema que natildeo lhe permite a elaboraccedilatildeo da autoria e da percepccedilatildeo de si no exerciacutecio de seu ofiacutecio Este sistema no entanto natildeo se encerra na escola baacutesica mas prossegue (ou se inicia) no ensino superior cuja predominacircncia de uma visatildeo hieraacuterquica na construccedilatildeo dos saberes pela via de um discurso da autoridade gera profundos abismos na relaccedilatildeo do estudante de Letras com a literatura A universidade fundamentalmente um lugar de experimentaccedilatildeo e pesquisa natildeo raro termina por privilegiar a reproduccedilatildeo de teorias e reflexotildees jaacute referendadas no meio acadecircmico abrindo de fato poucas brechas para a construccedilatildeo de um saber emancipatoacuterio e criativo Em especial no caso do estudante de Letras em seu contato com o texto literaacuterio o processo de silenciamento eacute reforccedilado por essas ldquovozesrdquo que falam sobre o texto mas que pouco contribuem para que seja ouvida a voz do leitor Apropriando-se do par ldquoexperiecircnciasentidordquo defendido por Larrosa (2002) haacute nas instituiccedilotildees formais de ensino pouco espaccedilo para o saber da experiecircncia entendida aqui como um saber que me passa (Cf LARROSA 2002) ou seja algo do mundo que atravessa o sujeito e o afeta modificando-o e modificando tambeacutem o mundo natildeo apenas pelo racional mas pelo sensiacutevel Desse modo estudantes formados por uma escola baacutesica que silencia ingressam na universidade para se formarem docentes numa instituiccedilatildeo que tambeacutem tem como praacutetica o silenciamento atraveacutes de um estiacutemulo agrave leitura de admiraccedilatildeo que atende ao aspecto racional poreacutem fragiliza a dimensatildeo do afeto tatildeo cara no processo de formaccedilatildeo do leitor literaacuterio

Diante dessa pobreza da experiecircncia alguns desafios satildeo colocados para o licenciando de Letras no momento em que se inicia o estaacutegio supervisionado Eacute muito comum que logo nos primeiros encontros com o professor regente o licenciando manifeste o desejo por realizar sua regecircncia em algum conteuacutedo de liacutengua portuguesa afirmando natildeo ter muito contato ou ateacute mesmo apreccedilo pela literatura Ora como trabalhar o texto literaacuterio com estudantes do Ensino Fundamental II e Ensino Meacutedio na perspectiva da formaccedilatildeo do leitor sem ter o futuro docente de fato experimentado essa dimensatildeo subjetiva do contato com o texto Como transgredir a leitura de admiraccedilatildeo leitura de comentaacuterios para a leitura literaacuteria como experiecircncia ldquoA confrontaccedilatildeo do leitor consigo mesmo eacute uma

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das dimensotildees maiores da leiturardquo afirma Jouve (2002 p 61) e a escassez deste confronto gera leitores pouco iacutentimos do texto literaacuterio e de si afinal ldquoa atitude de se perceber a si mesmo num processo do qual participa eacute um momento central da experiecircncia esteacuteticardquo (ISER 1996 apud JOUVE 2002 p 61) A literatura portanto contribui para um saber sobre si a partir do outro e eacute justamente no retorno agrave escola agora na condiccedilatildeo de licenciandos que ao refletirem sobre seu fazer docente iratildeo experimentar o confronto

A orientaccedilatildeo eacute um dos espaccedilos mais importantes do processo de estaacutegio supervisionado Aleacutem de ser institucionalmente o momento em que se vai refletir e discutir sobre as vivecircncias do licenciando nas aulas elaborar tarefas materiais preparar e analisar as coparticipaccedilotildees ela acaba por tornar-se muitas vezes um espaccedilo de troca de experiecircncias em que as lacunas e os anseios do futuro professor vecircm agrave tona quando deparado com a dimensatildeo praacutetica de sua profissatildeo A dificuldade de realizar a transposiccedilatildeo didaacutetica o pouco acuacutemulo de reflexatildeo sobre a identidade docente e as proacuteprias lacunas da formaccedilatildeo se revelam no estaacutegio cabendo ao professor regente a sensibilidade de perceber as demandas singulares de cada grupo de estagiaacuterios ampliando as accedilotildees a serem elaboradas na orientaccedilatildeo

Neste percurso foi possiacutevel perceber que dentre todas as lacunas possiacuteveis na formaccedilatildeo do estudante de Letras a do leitor literaacuterio era uma das mais recorrentes Ausecircncia de leituras-chave fragilidades na interpretaccedilatildeo e anaacutelise dos textos dificuldades ateacute mesmo na leitura oral de contos e poemas enfim todas estas precariedades geraram novas demandas para o momento da orientaccedilatildeo que passou a ser tambeacutem um lugar da experimentaccedilatildeo literaacuteria na tentativa de romper o silecircncio desses futuros professores diante da literatura Sendo assim iniciamos uma rotina de leitura e interpretaccedilatildeo partilhada dos textos literaacuterios que comporiam as aulas O objetivo era dar contorno agrave identidade do professor-leitor em suas variadas perspectivas o que lecirc para si o que lecirc para o aluno o que lecirc com o aluno

O relato selecionado para este artigo diz respeito ao trabalho realizado ao longo de trecircs anos em turmas do 9ordm ano do EF II do CAp UFRJ O Coleacutegio de aplicaccedilatildeo da UFRJ possui em seu curriacuteculo do segundo segmento do fundamental um trabalho com Literatura na perspectiva da formaccedilatildeo do leitor literaacuterio O trabalho eacute prioritariamente desenvolvido a partir de temaacuteticas divididas e pensadas para cada seacuterie cabendo ao 9deg ano dentre outros temas o trabalho com o fantaacutestico Para isso optamos por elaborar coletivamente uma coletacircnea de contos composta por sugestotildees do professor em conjunto com as leituras que os proacuteprios licenciandos traziam de sua bagagem A etapa de seleccedilatildeo de textos para uma turma jaacute trouxe dificuldades para os estagiaacuterios na medida em que muitos natildeo se sentiam seguros em suas escolhas A seleccedilatildeo de textos natildeo eacute neutra assim como a docecircncia natildeo o eacute Ela implica tomada de posiccedilatildeo atitude poliacutetica diante do curriacuteculo diante do mundo Mas para que essas escolhas possam ser feitas eacute preciso que o professor se sinta rico em experiecircncias de leitura A fim de colaborar com este processo cada conto trazido era lido de forma partilhada na orientaccedilatildeo e cabia ao licenciando responsaacutevel a leitura em voz alta do texto Assim aleacutem de haver uma troca e um amadurecimento a respeito

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dos criteacuterios que nos fariam escolher ou natildeo aquele texto para aquela determinada seacuterie era possiacutevel experimentar uma atividade ainda pouco explorada no cotidiano das aulas a leitura oral o lugar do professor que lecirc para seus alunos e que atraveacutes de sua leitura traz agrave tona imagens e constroacutei pontes entre o estudante e o texto

Finalizada a coletacircnea era preciso que os licenciados elaborassem um plano de aula a partir de um dos contos selecionados Surgem daiacute novas dificuldades que esbarram tanto em um desconhecimento ndash totalmente esperado ndash a respeito do que seria um plano de aula quanto ndash e daiacute voltamos para as lacunas da formaccedilatildeo ndash em uma ignoracircncia frente aos saberes a serem explorados diante de um texto literaacuterio A dificuldade em compreender na praacutetica a literatura como uma forma autocircnoma de conhecimento sobre o mundo ndash ldquoA literatura assume muitos saberesrdquo jaacute dizia Barthes (2007 p 17) ndash dotada de suas proacuteprias leis gerava planos de trabalho que subjugavam o texto literaacuterio a interpretaccedilotildees psicoloacutegicas socioloacutegicas etc ou ateacute mesmo a leituras que davam grande ecircnfase agrave biografia do autor e ao periacuteodo histoacuterico da obra Em outras palavras a dimensatildeo subjetiva e o trabalho com o simboacutelico se perdiam em meio a um dizer sobre o texto que pouco colabora para o engajamento e o viacutenculo afetivo do leitor Assim o processo de refeitura desses planos de aula envolveu o (re)encontro do professor-leitor com aquele texto experimentando ele proacuteprio um atravessamento pelo texto literaacuterio nas suas diferentes camadas mas a princiacutepio sem qualquer premissa teoacuterica Importante ressaltar que natildeo se estaacute aqui abrindo matildeo do professor como um leitor especializado poreacutem estamos defendendo que pensar as aulas de literatura como um lugar de encontro e promoccedilatildeo de experiecircncias esteacuteticas com o texto significa que todos os envolvidos no processo (professor-texto-aluno) devem se sentir protagonistas da experiecircncia

Pensar resultados em um processo de formaccedilatildeo que como dissemos no iniacutecio estaacute sempre por se fazer pode parecer incoerente no entanto a partilha de um relato de trabalho demanda de noacutes capacidade de amarrar certas pontas traccedilar reflexotildees que contribuam para o pensamento sobre nosso objeto de pesquisa ou seja as identidades do professor de liacutengua e literatura Neste sentido eacute preciso afirmar os ecircxitos que o trabalho cotidiano com a leitura literaacuteria gerou na formaccedilatildeo dos futuros professores Licenciandos que fariam sua regecircncia em algum toacutepico de Liacutengua Portuguesa por a princiacutepio sentirem-se mais confortaacuteveis com o conteuacutedo engajaram-se de tal forma no trabalho com a literatura que trocaram seus temas de aula Assim as turmas de 9ordm ano do EF II ao longo desses trecircs anos encontraram-se com Mia Couto Edgar Allan Poe Julio Cortaacutezar Murilo Rubiatildeo Lygia Fagundes Telles entre tantos outros Presenciar licenciandos desejosos de ler com seus alunos mais seguros no trato com o texto literaacuterio eacute realizar o direito agrave literatura defendido por Candido (2011) em sua dimensatildeo do direito humano ao conhecimento e agrave produccedilatildeo artiacutestica do homem ao longo do tempo Esse direito para se estender ao aluno precisa chegar de fato ao professor e para isso na contramatildeo da desumanizaccedilatildeo do trabalho pedagoacutegico eacute preciso forjar espaccedilos para a experiecircncia esteacutetica que ensina nas brechas e promove possibilidades de uma relaccedilatildeo criativa e emancipatoacuteria com o saber

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Consideraccedilotildees finais

A epiacutegrafe que abriu esse artigo de Cora Coralina (2007 p 27) tira do lugar comum a oposiccedilatildeo entre os pares ldquotransferir x ensinarrdquo e ldquosaber x aprenderrdquo Paulo Freire (2011 p92) ao referir-se agrave praacutetica de uma ldquoeducaccedilatildeo bancaacuteriardquo pontuava muito bem essa distinccedilatildeo de modo que o conhecimento natildeo se faz pela transferecircncia e acuacutemulo de saberes mas pela experiecircncia subjetiva do ensinar e aprender No poema de Cora Coralina essa dimensatildeo eacute abarcada poreacutem em uma perspectiva natildeo dialeacutetica o que transfere o que sabe eacute tatildeo feliz quanto o que aprende o que ensina Contudo os saberes transferidos de que trata em seu poema natildeo estatildeo na loacutegica da relaccedilatildeo ensino-aprendizagem mas no que eacute transmitido de geraccedilatildeo para geraccedilatildeo pela cultura oral e pela praacutetica natildeo pela teoria Estaria proacuteximo do que Manoel de Barros chamou de saber por ldquoignoratildeccedilasrdquo (2016 p 5) o que se sabe sem nunca ter precisado aprender o que nos eacute instintivo por natureza Jaacute na relaccedilatildeo de ensino-aprendizagem estaacute em cena a praacutetica da dodiscecircncia em uma relaccedilatildeo horizontal tanto aprende o que ensina quanto ensina o que aprende Essa troca de experiecircncias que eacute pura subjetividade subverte a ordem da verticalidade entre um detentor do saber que transfere para o ignorante aquilo que este deve conhecer

O momento da praacutetica de ensino e do estaacutegio supervisionado abarca essa dupla relaccedilatildeo entre ldquotransferir o que se saberdquo e ldquoaprender o que se ensinardquo dentro da perspectiva abordada por Cora Coralina isto eacute de forma natildeo dialeacutetica Natildeo se ldquoensinardquo ou se ldquoaprenderdquo a ser professor mas muito se aprende ensinando que certos saberes satildeo pela praacutetica e pela troca de experiecircncia transpassados trocados e desenvolvidos pelo proacuteprio fazer pedagoacutegico in loco Assim nesse trabalho tentamos abarcar justamente essas duas dimensotildees ao focarmos na construccedilatildeo de identidades de professores autores e leitores durante o estaacutegio docente de estudantes da licenciatura em Letras da UFRJ

A questatildeo curricular foi ponto de partida de nossa discussatildeo para entender o contexto de formaccedilatildeo docente inicial os curriacuteculos dos cursos de licenciatura em Letras estatildeo apartados da realidade dos curriacuteculos de Liacutengua Portuguesa e Literatura no Ensino Baacutesico encontrados na sala de aula e em poucos momentos a pesquisa nas aacutereas de Liacutengua e Literatura convergem para se repensar abordagens e estrateacutegias de transposiccedilatildeo didaacutetica do que haacute de mais avanccedilado nas discussotildees acadecircmicas para dentro da escola Aleacutem disso a cisatildeo entre ldquoliacutengua x literaturardquo no curriacuteculo acaba por segmentar o conhecimento em toacutepicos curriculares a serem cumpridos por cada aacuterea sem entender que o diaacutelogo entre ambas eacute fundamental para a compreensatildeo de um ensino de liacutengua e literatura natildeo utilitaacuterio que natildeo esteja apenas a serviccedilo da ldquoboa escritardquo ou da ldquoboa leiturardquo mas da formaccedilatildeo de um aluno leitor e autor criacutetico e reflexivo sobre a sua linguagem e sua atuaccedilatildeo social e referencial no mundo Nessa linha o ensino literaacuterio eacute primordial posto que propicia formas de ler e imaginar o mundo em muacuteltiplas potencialidades Ocorre contudo o oposto a literatura vista como mais um gecircnero textual a ser reconhecido pelo ldquobom leitorrdquo que natildeo se trata do ldquoleitor de mundordquo de que fala Freire (2011 p95) entra como apecircndice nas aulas de Liacutengua Portuguesa

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Contribuem de forma significativa para a imutabilidade dessa realidade as condiccedilotildees de trabalho do professor do Ensino Baacutesico com carga horaacuteria em sala de aula exaustiva sem tempo e estiacutemulo para a atualizaccedilatildeo e a formaccedilatildeo continuada sem tempo para a preparaccedilatildeo de suas aulas e produccedilatildeo de seu proacuteprio material didaacutetico vecirc-se enredado agrave obrigatoriedade de cumprimento de uma base curricular comum que vai de encontro a uma praacutetica pedagoacutegica emancipatoacuteria excluindo-se as diversidades de realidades e contextos e a construccedilatildeo de um curriacuteculo que se decirc no cotidiano Assim eacute retirada do professor toda a sua dimensatildeo intelectual e potencialmente criativa posto que se reduz agrave figura de instrutor mediador e reprodutor de um curriacuteculo pensado por terceiros ao aplicar manuais apostilados e livros didaacuteticos reducionistas de nosso trabalho

Por fim haacute que se pensar na dimensatildeo do professor-autor perpassada pela dimensatildeo do professor-leitor que assume a subjetividade de seu repertoacuterio de leituras sem contudo abrir matildeo de seu lugar de leitor especialista e de professor que escuta as leituras de seus estudantes de modo a amparar com a criacutetica necessaacuteria e ampliar o repertoacuterio de sentidos do texto literaacuterio lido em sala de aula

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OLIVEIRA I B de Curriacuteculo e processos de aprendizagem ensino Poliacuteticas praacuteticas Educacionais Cotidianas Curriacuteculo sem Fronteiras n 3 p 375-391 2013

PARAcircMETROS CURRICULARES NACIONAIS Ensino Meacutedio ndash MEC 2000

PARAcircMETROS CURRICULARES NACIONAIS liacutengua portuguesa ndash terceiro e quarto ciclos do ensino fundamentalSecretaria de Educaccedilatildeo Fundamental Brasiacutelia MEC SEF 1998

PL 8672015 Inclui entre as Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional o ldquoPrograma Escola sem Partidordquo httpwwwcamaragovbrsilegintegras1317168pdf Capturado em 11082017

RUEacute J As competecircncias na sala de aula a atividade como eixo do seu desenvolvimento In ARANTES Valeacuteria Amorim (Org) Educaccedilatildeo e competecircncias pontos e contrapontos Satildeo Paulo Summus Editorial 2009 p 52-57

TODOROV Tzvetan A literatura em perigo Rio de Janeiro Difel 2010

Recebido em 30 de abril de 2017

Aceito em 27 de agosto de 2017

Ana Creacutelia Penha Dias

Possui graduaccedilatildeo em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1994) especializaccedilatildeo em literatura infantil e juvenil (1999) mestrado (2003) e doutorado (2008) em Letras (Letras Vernaacuteculas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Atualmente eacute professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro Tem experiecircncia na aacuterea de Letras com ecircnfase em Literatura Brasileira atuando principalmente nos seguintes temas literatura infantil literatura brasileira literatura e ensino e formaccedilatildeo do leitor literaacuterio Eacute liacuteder do grupo de pesquisa Literatura e Educaccedilatildeo literaacuteria (dgpcnpqbrdgpespelhogrupo5906903233650588) e membro do GT da Anpoll Literatura e Ensino anacreliagmailcom

Andreacute Luiacutes Mouratildeo de Uzecircda

Bacharel e licenciado em Letras com habilitaccedilatildeo em Liacutengua Portuguesa e suas respectivas literaturas pela UFRJ bacharel em Museologia pela UNIRIO Mestre em Ciecircncia da Literatura pela UFRJ Eacute professor do Ensino Baacutesico Teacutecnico e Tecnoloacutegico do Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da UFRJ Pesquisador do grupo de pesquisa Literatura e Educaccedilatildeo Literaacuteria (dgpcnpqbrdgpespelhogrupo5906903233650588) coordenador do projeto de pesquisa Medecircra ndash Mediaccedilotildees do Literaacuterio e integrante do Nuacutecleo Interdisciplinar de Estudos Carnavalescos (NIEC) Foi membro do corpo editorial da Revista Foacuterum de Literatura Brasileira Contemporacircnea junto ao Departamento de Letras Vernaacuteculas da Faculdade de Letras ndash UFRJ e do corpo editorial do perioacutedico Revista Eletrocircnica Jovem Museologia da Escola de Museologia da UNIRIO andreuzedagmailcom

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Maria Coelho Araripe de Paula Gomes

Mestre em Literatura Brasileira pela UFRJ (2015) possui especializaccedilatildeo em Literatura Infanto-Juvenil (2010) e graduaccedilatildeo em Letras pela Universidade Federal Fluminense (2006) onde atuou na aacuterea de Literatura Brasileira Moderna e Literatura Portuguesa Iniciou os estudos de Artes Cecircnicas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (2017) Pertence ao quadro efetivo docente do Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da UFRJ no setor de Liacutengua Portuguesa e desenvolve trabalho artiacutestico como atriz e contadora de histoacuterias desde 2008 com o Grupo Mosaicos ndash Teatro Muacutesica Histoacuterias Integra o grupo de pesquisa Literatura e Educaccedilatildeo Literaacuteria (dgpcnpqbrdgpespelhogrupo5906903233650588) umamaria84gmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Leituras de ldquoA flor e a naacuteuseardquo de Carlos Drummond de Andrade em praacuteticas de Estaacutegio

Supervisionado em Liacutengua Portuguesa Readings of ldquoThe Flower and the Nauseardquo by Carlos

Drummond de Andrade in an Internship in Portuguese Language Teaching

Lecturas de ldquoA flor e a naacuteusearaquo de Carlos Drummond de Andradeen praacutecticas de Pasantiacutea de Intervencioacuten en Lengua

Portuguesa

Diogo dos Santos SouzaUniversidade Federal de AlagoasInstituto Federal de Alagoas

Eliana Kefalaacutes de OliveiraUniversidade Federal de Alagoas

ResumoO contato entre o leitor e palavra literaacuteria eacute uma experiecircncia complexa que no contexto da sala de aula demanda do professor o planejamento de estrateacutegias de leitura e preparo de abordagens do texto que o transformem num objeto significativo para o estudante O objetivo do presente artigo eacute apresentar o relato de uma oficina de leitura sobre o poema ldquoA flor e a naacuteuseardquo de Carlos Drummond de Andrade realizada por alunos da disciplina Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa 2 que teve como foco a teoria e praacutetica do ensino de Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas Atraveacutes da elaboraccedilatildeo e execuccedilatildeo da oficina os estudantes estagiaacuterios notaram que as ldquoinquietudesrdquo do metapoema escolhido poderiam se transformar em caminhos de produccedilatildeo de sentidos variados tornando a sala de aula um lugar tambeacutem de encontro com o inesperado Isto posto concluiu-se que na exploraccedilatildeo da leitura literaacuteria as lacunas os vazios e as indeterminaccedilotildees geradas pelo poema tornam-se elementos que poderiam compor um convite ao leitor a jogar com o texto e com os seus modos de leitura Palavras-chave Poesia Ensino Carlos Drummond

AbstractThe contact between the reader and the literary word is a complex experience that in the context of the classroom requires that teachers plan reading strategies and prepare approaches to the text that make it a significant object for students The purpose of this article is to present the report of a reading class on the poem ldquoThe flower and the nauseardquo by Carlos Drummond de Andrade carried out by students of the Internship in Portuguese Language 2 course at the

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Faculty of Arts of the Federal University of Alagoas The focus of this course is theory and practice of teaching Literature Throughout the preparation and development of the class the students noticed that the ldquodisquietnessesrdquo of the chosen metapoem could lead to varied meanings making the classroom a place where the unexpected is met Therefore in the exploration of literary reading the gaps voids and indeterminacies generated by the poem become elements that can compose an invitation for the reader to play with the text and with its modes of readingKey-words Poetry Teaching Carlos Drummond

ResumenEl contacto entre el lector y la palabra literaria es una experiencia compleja que en el contexto del aula demanda del profesor la planificacioacuten de estrategias de lectura y preparacioacuten de enfoques con el texto que lo transformen en un objeto significativo para el estudiante El objetivo del presente artiacuteculo es presentar el relato de una clase de lectura sobre el poema ldquoA flor e a naacuteuseardquo de Carlos Drummond de Andrade realizada por alumnos de la asignatura de la Pasantiacutea de Intervencioacuten en la Lengua Portuguesa 2 que tuvo como foco la teoriacutea y praacutectica de la ensentildeanza de Literatura de la Facultad de Letras de la Universidad Federal de Alagoas A traveacutes de la elaboracioacuten y ejecucioacuten de la leccioacuten los estudiantes pasantes notaron que las ldquoinquietudesrdquo del metapoema elegido podriacutean transformarse en caminos de produccioacuten de sentidos variados lo que convierte el aula en un lugar tambieacuten de encuentro con lo inesperado En este sentido se concluye que en la exploracioacuten de la lectura literaria los huecos los vaciacuteos e indeterminaciones generadas por el poema se convierten en elementos que podriacutean constituirse en una invitacioacuten al lector a jugar con el texto y con sus modos de lecturaPalabras clave Poesiacutea Ensentildeanza Carlos Drummond de Andrade

1 Introduccedilatildeo

No ensino de literatura um dos desafios prementes eacute o estabelecimento do contato efetivo com o texto literaacuterio em especial com a poesia de modo a atrair o aluno para a malha de significaccedilotildees e para a pluralidade de sentidos dos poemas O presente trabalho1 tem o intuito de analisar uma praacutetica de ensino de literatura realizada por estudantes do Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa 22 na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) momento destinado ao estudo de praacuteticas e metodologias de leitura na sala de aula

Foram feitas anaacutelises de diaacuterios de campo da oficina de leitura literaacuteria aplicada em uma turma do primeiro ano do Ensino Meacutedio do Coleacutegio da Poliacutecia Militar Tiradentes

1 A discussatildeo que propomos apresentar neste artigo corresponde a um recorte da dissertaccedilatildeo ldquoUm eu todo retorcido no jogo de leitura de lsquoA flor e a naacuteusearsquo de Carlos Drummond de Andrade metapoesia e ensinordquo apresentada no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras e Linguiacutestica (PPGLL) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) em marccedilo de 2015 de autoria de Diogo dos Santos Souza e orientaccedilatildeo de Eliana Kefalaacutes Oliveira

2 Os aacuteudios das aulas foram gravados atraveacutes de celular e posteriormente transcritos por Diogo dos Santos Souza sendo ainda utilizados nos diaacuterios de campo aqui analisados escritos por esse mesmo autor

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situado em MaceioacuteAlagoas O professor3 e os discentes estagiaacuterios da disciplina Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa 2 planejaram uma praacutetica realizada em dezembro de 2014 de leitura literaacuteria com base no poema ldquoA flor e a naacuteuseardquo texto que pertence ao livro A rosa do povo (1942) de Carlos Drummond de Andrade Observamos nesse contato entre o poema os estagiaacuterios e os leitores da educaccedilatildeo baacutesica as formas como o texto literaacuterio foi levado para a sala de aula bem como os traccedilos metapoeacuteticos que foram abordados pelos estagiaacuterios em diaacutelogo com os estudantes analisando tambeacutem as inquietudes dessa experiecircncia de trabalho

Interessa-nos portanto pensar que este trabalho fruto de um diaacutelogo com a poesia de Carlos Drummond de Andrade pode contribuir para a forma como o leitor vecirc natildeo somente a metapoesia do autor de ldquosete facesrdquo como tambeacutem a metapoesia de uma forma geral atrelada agrave formaccedilatildeo do leitor Para a nossa surpresa ainda parece ser um tanto incipiente de acordo com os levantamentos bibliograacuteficos realizados a quantidade de trabalhos que se ocupam em estudar as propriedades que caracterizam o discurso metapoeacutetico Essa zona aparenta ser minimizada ainda mais quando relacionamos essa temaacutetica a uma proposta de leitura que visa descobrir novos modos de construir o encontro entre o texto e o leitor

De modo geral procura-se refletir sobre de que maneira a poesia que fala de si proacutepria pode ser transformada num convite agrave leitura num convite que joga brinca e provoca o leitor a entrar nas veredas do acaso do inesperado do mundo literaacuterio

2 Leituras de ldquoA flor e a naacuteuseardquo

Na realizaccedilatildeo da oficina de leitura um trio de estagiaacuterios foi encaminhado para uma turma do 1ordm ano do Ensino Meacutedio com a incumbecircncia de levar uma proposta de leitura do poema ldquoA flor e naacuteuseardquo apontando caminhos de leitura que pudessem indicar os aspectos metapoeacuteticos da poesia de A rosa do povo

Em um primeiro momento da atividade na sala de aula a estagiaacuteria 1 pede para que cada aluno diga o seu nome e cite a ldquoexperiecircncia literaacuteriardquo que teve seja com poema ou qualquer outro gecircnero lido Em seguida a estagiaacuteria 1 explica a complexa posiccedilatildeo de Carlos Drummond no momento de sua produccedilatildeo poeacutetica frente agrave ditadura

[] ou vocecirc se colocava contra ou a favor Carlos Drummond se colocou contra o momento em que a censura estava presente no Brasil As pessoas tinham que seguir aquele padratildeo Como ficavam as pessoas que eram contra o sistema Os artistas tinham que se manifestar de alguma forma4

3 A disciplina de Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa foi ministrada no segundo semestre letivo de 2014 por Diogo dos Santos Souza que atuou como professor voluntaacuterio na ocasiatildeo

4 Todas as referecircncias a passagens dos momentos da aula mencionada competem ao Diaacuterio de Campo da aula do dia 8 de dezembro de 2014

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Observa-se aqui a escolha de antecipar informaccedilotildees relacionadas ao contexto histoacuterico antes de trabalhar a interpretaccedilatildeo do texto A estagiaacuteria destaca que alguns artistas encontravam caminhos menos expliacutecitos para expor o seu pensamento numa espeacutecie de indicaccedilatildeo da atmosfera do poema que seraacute lido Ela tambeacutem pergunta se todos jaacute ouviram falar sobre as figuras de linguagem especificamente a metaacutefora

Prosseguindo esse momento inicial realizou-se a leitura do metapoema objeto de estudo da aula

Preso agrave minha classe e a algumas roupasvou de branco pela rua cinzentaMelancolias mercadorias espreitam-meDevo seguir ateacute o enjooPosso sem armas revoltar-me

Olhos sujos no reloacutegio da torreNatildeo o tempo natildeo chegou de completa justiccedilaO tempo eacute ainda de fezes maus poemas alucinaccedilotildees e esperaO tempo pobre o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse

Em vatildeo me tento explicar os muros satildeo surdosSob a pele das palavras haacute cifras e coacutedigosO sol consola os doentes e natildeo os renovaAs coisas Que tristes satildeo as coisas consideradas sem ecircnfase

Vomitar este teacutedio sobre a cidadeQuarenta anos e nenhum problemaresolvido sequer colocadoNenhuma carta escrita nem recebidaTodos os homens voltam para casaEstatildeo menos livres mas levam jornaise soletram o mundo sabendo que o perdem

Crimes da terra como perdoaacute-losTomei parte em muitos outros escondiAlguns achei belos foram publicadosCrimes suaves que ajudam a viverRaccedilatildeo diaacuteria de erro distribuiacuteda em casaOs ferozes padeiros do malOs ferozes leiteiros do mal

Pocircr fogo em tudo inclusive em mimAo menino de 1918 chamavam anarquistaPoreacutem meu oacutedio eacute o melhor de mimCom ele me salvoe dou a poucos uma esperanccedila miacutenima

Uma flor nasceu na ruaPassem de longe bondes ocircnibus rio de accedilo do traacutefego Uma flor ainda desbotada ilude a poliacutecia rompe o asfaltoFaccedilam completo silecircncio paralisem os negoacutecios garanto que uma flor nasceu

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Sua cor natildeo se percebe Suas peacutetalas natildeo se abremSeu nome natildeo estaacute nos livros Eacute feiaMas eacute realmente uma flor

Sento-me no chatildeo da capital do paiacutes agraves cinco horas da tardee lentamente passo a matildeo nessa forma inseguraDo lado das montanhas nuvens maciccedilas avolumam-sePequenos pontos brancos movem-se no mar galinhas em pacircnico

Eacute feia Mas eacute uma flor Furou o asfalto o teacutedioo nojo e o oacutedio(ANDRADE 2003 p118-119)

Continuando a aula a estagiaacuteria 1 explica o que eacute metapoema ldquoeacute quando um poema fala sobre o proacuteprio poemardquo Essa definiccedilatildeo (talvez um tanto generalizante) torna-se a referecircncia inicial agrave autorreflexividade literaacuteria apresentada na aula Na primeira leitura de ldquoA flor e a naacuteuseardquo o estagiaacuterio 2 pede para que os alunos sublinhem os elementos que fazem o texto ser literaacuterio O estagiaacuterio lecirc o poema e faz o seguinte comentaacuterio ao teacutermino da leitura ldquoagraves vezes ele (sujeito liacuterico) natildeo fala umas coisas sem sentido Ou seraacute que haacute sentido Haacute metaacuteforas nesse textordquo Ainda que a expressatildeo ldquocoisas sem sentidordquo seja questionaacutevel por associar a literatura ao natildeo inteligiacutevel essas primeiras indicaccedilotildees de possiacuteveis olhares para o poema que satildeo lanccediladas para a turma acabam por ganhar um tom provocador pois ao assumir que pode ou natildeo haver ldquocoisas sem sentidordquo nos versos lidos os alunos atentam-se para o inapreensiacutevel e para o que espera ser interpretado pelo leitor Pode-se observar essas ldquocoisas sem sentidordquo atraveacutes da ausecircncia de conexatildeo por exemplo entre a sexta e a seacutetima estrofe o que evidenciaria um eu liacuterico que natildeo se expressa na esteira de uma linearidade angustiando-se nesse espaccedilo em que a flor ainda natildeo nasceu Eacute como se o sujeito liacuterico incomodado pudesse tirar aqueles leitores em diaacutelogos de suas zonas de conforto permitindo que o eu todo retorcido quisesse contaminar as experiecircncias de interpretaccedilatildeo dos proacuteprios leitores Candido (1965 p83) em ldquoInquietudes na poesia de Drummondrdquo diz que ldquoo eu torto do poeta eacute igualmente uma subjetividade de todos ou de muitos no mundo tortordquo Nesse caminho essa noccedilatildeo de ldquotorccedilatildeordquo proposta por Candido foi apropriada no desenvolvimento da leitura da obra de Carlos Drummond de Andrade

O estagiaacuterio 2 na tentativa de explorar possibilidades de leitura para o tiacutetulo do poema pergunta ldquoO que tem a ver vomitar o teacutedio com o tiacutetulo do textordquo Os alunos respondem que esse ldquoteacutediordquo se relaciona com a naacuteusea sendo a flor ldquouma coisa boa e a naacuteusea natildeordquo Nesse contexto o estagiaacuterio 2 segue com uma nova pergunta ldquoSeraacute que o cheiro da flor causou naacuteusea e ele vomitourdquo A turma natildeo concorda talvez por causa da identificaccedilatildeo feita pelos alunos da antiacutetese ldquoflor e naacuteuseardquo O aluno Gustavo5 afirma ldquoa naacuteusea eu acho que eacute relacionada como se fosse a expulsatildeo da vida que natildeo abre caminhos sei laacuterdquo

5 Fizemos a opccedilatildeo de resguardar a identidade de cada interlocutor utilizando nomes fictiacutecios para cada um deles

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Poderiacuteamos pensar a partir da fala desse estudante que a naacuteusea do eu liacuterico se trataria de uma espeacutecie de exiacutelio do seio social em que vive proacuteximo da escrita literaacuteria que estaacute sendo gestada Desse modo o estado nauseante elemento que compotildee a imagem de ldquoum eu todo retorcidordquo proporciona a compreensatildeo da atmosfera metapoeacutetica um indiviacuteduo que sofre ao estar distante da poesia sentindo-se exilado

Ainda na leitura do iniacutecio do texto o estagiaacuterio 2 lecirc o verso inicial ldquoPreso a minha classe e algumas roupasrdquo Em seguida ele pergunta agrave turma o que esse verso pode significar O aluno Everaldo afirma que ldquoas roupas satildeo as aparecircncias que cada classe tinhardquo apontando para a reflexatildeo de uma possiacutevel prisatildeo nas aparecircncias ao padratildeo social seguido Assim a leitura do texto encaminha-se para a compreensatildeo de que alguns versos de Drummond se aproximam de uma expressatildeo de um estado de opressatildeo do indiviacuteduo

Eacute interessante observar que as experiecircncias analiacuteticas de contato com a obra literaacuteria na sala de aula em um espaccedilo dialoacutegico permitem construir coletivamente um discurso criacutetico sobre o texto Pinheiro (2006) em ldquoTeoria da literatura criacutetica literaacuteria e ensinordquo relativiza e revisita o lugar da criacutetica na formaccedilatildeo escolar do leitor literaacuterio Para esse autor a teoria literaacuteria e a criacutetica natildeo devem ser tomadas de modo cristalizado e a priori no trabalho com a leitura na sala de aula Segundo Pinheiro (2006 p 116) a criacutetica pode iluminar e instigar a anaacutelise ou dar ldquopistas para uma compreensatildeo novardquo mas defende-se principalmente o exerciacutecio criacutetico sobre o texto literaacuterio na interlocuccedilatildeo com os estudantes ldquoos alunos devidamente estimuladosmotivados poderiam realizar alguns exerciacutecios de criacuteticardquo (PINHEIRO 2006 p120)

Consideramos que esse exerciacutecio de interpretaccedilatildeo do texto literaacuterio em sala de aula pode ampliar nas pesquisas acadecircmicas o alcance das experiecircncias vividas pois o que desponta na interlocuccedilatildeo e no contato com o texto literaacuterio permite compor (ou ateacute contrapor) sentidos se colocados lado a lado com algumas perspectivas criacuteticas

O modo como a histoacuteria enquanto campo do conhecimento transforma-se em proble-ma esteacutetico eacute uma questatildeo complexa para a criacutetica posto que o enigma do poeta eacute tambeacutem enigma para o criacutetico (como o eacute para qualquer leitor) que lida com a razatildeo dessa incoacutegnita que natildeo se desata Por isso eacute preciso refazer por dentro o trajeto das curvas da aporia (ARRIGUCCI 2005 p 104) Isto eacute as inquietudes do texto no caso do poema de Drummond reforccedilam a intensidade da interrogaccedilatildeo e dos natildeo ditos na propensatildeo agrave reinvenccedilatildeo dos sentidos para a qual o texto aponta Essa situaccedilatildeo transposta para a aula de literatura tambeacutem eacute complexa jaacute que o professor pode ldquotraduzirrdquo esse enigma do texto de forma que o fundo histoacuterico e as ca-tegorias esteacuteticas tatildeo prementes natildeo sejam o eixo preponderante ou cristalizador de anaacutelise

Analisando o verso ldquovou de branco pela rua cinzentardquo o aluno Hugo vecirc uma alusatildeo agrave transparecircncia ldquoA rua cinzenta impossibilita o sujeito de se expressar ou entatildeo todos satildeo iguais e ele eacute o diferenterdquo Assim o eu liacuterico que se apresenta no poema pode ser lido como algueacutem singular que se faz distinto possivelmente ao fazer esse movimento de aproximaccedilatildeo com a escrita literaacuteria

Adiantando a discussatildeo sobre a metapoesia o estagiaacuterio 2 indaga ldquoQual seria a forma de ele se revoltar sem armas ndash Escrevendo Percebam que o poeta estaacute falando

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de poesiardquo Sob essa perspectiva a visatildeo da metapoesia jaacute eacute transposta ndash de antematildeo pelo estagiaacuterio ndash para a voz do sujeito liacuterico O verso ldquoPosso sem armas revoltar-merdquo aparenta ser uma chave de leitura do discurso metalinguiacutestico dada previamente pelo estagiaacuterio (que talvez pudesse ter instigado a questatildeo mais do que exposto sua anaacutelise) Vale destacar tambeacutem que essa pergunta eacute feita logo na primeira estrofe provocando o leitor a entrar nesse universo em que a palavra se reveste como praacutetica social Outra pergunta eacute feita pelo estagiaacuterio 2 ldquoSe ligarmos isso ao momento da histoacuteria e da poliacutetica o que encontraremosrdquo A ditadura eacute a resposta de alguns alunos Por fim o estagiaacuterio pergunta ldquoQual foi o meacutetodo que o poeta achou para se expressarrdquo Os alunos respondem (como previsto na pergunta e resposta dadas pelo estagiaacuterio) que foi a escrita Apoacutes a discussatildeo do poema a turma passou acompreender que a escrita literaacuteria era um aspecto central no poema

Pensar na ideia do texto literaacuterio como fuga eacute entrar no percurso do sujeito liacuterico de ldquoA flor e a naacuteuseardquo que se vecirc preso no iniacutecio do poema e aos poucos vai se libertando ao se aproximar do espaccedilo de nascimento da poesia Eacute possiacutevel tambeacutem compreender a abordagem acima do poema exposta pelo estagiaacuterio 2 como um modo de representar o eu poeacutetico que ao ser associado a uma atmosfera de refuacutegio aparece um tanto retido retorcido os muros que o rodeiam natildeo o escutam exilando-o

A partir desse exerciacutecio analiacutetico do estagiaacuterio poder-se-ia ateacute pontuar que essa prisatildeo diz respeito ao exiacutelio do mundo ficcional tendo em vista que esse poema trata da busca do encontro da voz liacuterica com a sua proacutepria poesia Vale destacar que sendo metaacutefora para um possiacutevel isolamento os muros enunciados na terceira estrofe (ldquoEm vatildeo me tento explicar os muros satildeo surdosrdquo) bloqueiam a tentativa de saiacuteda caso que exprime dessa maneira a solidatildeo existencial de um mundo em que o indiviacuteduo natildeo eacute ouvido aparentando estar num lugar inoacutespito A dor do enclausuramento eacute tatildeo intensa que nem o sol luz preciosa para aqueles que estatildeo privados de ser livres renova-o apesar de ainda ser um consolo (ldquoO sol consola os doentes e natildeo os renovardquo) Visto que os muros ldquosatildeo surdosrdquo o caminho eacute tentar ldquofurar o asfaltordquo ndash o bloqueio metafoacuterico da liberdade ndash atraveacutes da flor pois seraacute ela a voz que se faraacute ouvida na sociedade

Dando prosseguimento agrave interlocuccedilatildeo analiacutetica na leitura da quinta estrofe o estagiaacuterio 2 pergunta ldquoO que seriam os lsquocrimes da terrarsquordquo O aluno Jian responde que esses crimes poderiam ser notiacutecias da ditadura e o estagiaacuterio refuta que provavelmente natildeo asserccedilatildeo que talvez pudesse ter sido melhor revisitada ateacute que ponto o termo ldquocrimes da terrardquo natildeo teria um ponto de contato com a questatildeo da ditadura Natildeo seria apressado demais abrir matildeo desse olhar interpretativo Natildeo seria ele uma pista para um olhar mais abrangente sobre a expressatildeo ldquocrimes da terrardquo

Outro verso entra na discussatildeo ldquoO que o eu liacuterico disse que era canto de libertaccedilatildeordquo O estagiaacuterio 2 responde ldquoA escrita na forma de poemardquo Assim uma aluna complementa ldquoe alguns desses poemas foram publicados pois estes eram o modo de fuga do sistemardquo Essa observaccedilatildeo da aluna ilumina outro ponto do poema natildeo basta somente escrever o texto ele precisa ser publicado nascer para o seu leitor tal como aparece mais ao final do

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poema em sua antepenuacuteltima estrofe o ldquonome que natildeo estaacute nos livrosrdquo mas ele comeccedila a se fazer perceber quando nasce no asfalto Assim como Octavio Paz notou no texto ldquoPoesia e Histoacuteriardquo (2012 p 191) ldquoo poema ser de palavras vai aleacutem das palavras e a histoacuteria natildeo esgota o sentido do poema poreacutem o poema natildeo teria sentido ndash nem sequer existecircncia ndash sem a histoacuteria sem a comunidade que o alimenta e agrave qual alimentardquo Ou seja o que ldquonatildeo estaacute no livrordquo expresso verbalmente faz-se poesia pois a literatura se constroacutei no olhar do leitor em modos de olhar para asfaltos (imaginados ou vistos) que produzem sentidos e reatualizam o poema atraveacutes do diaacutelogo de distintos contextos de circulaccedilatildeo Logo podemos afirmar que a conexatildeo com o extratextual se daacute pela concretude (seja ela da imaginaccedilatildeo ou da experiecircncia ldquorealrdquo)

Seria possiacutevel pensar tambeacutem talvez a partir da observaccedilatildeo analiacutetica acima apresentada por essa aluna que o poema seria uma espeacutecie de linha de fuga de desvio de um sistema opressor E ao ser publicado ao ser aberto para o leitor poderia permitir que o proacuteprio leitor fosse convidado a esse modo de evasatildeo um escape feito de palavras que abre brechas dentro de um sistema que restringe a libertaccedilatildeo

Vale observar que no material didaacutetico elaborado pelos estagiaacuterios houve uma breve contextualizaccedilatildeo sobre o livro mencionado para que a turma entrasse em contato com a atmosfera do espaccedilo de publicaccedilatildeo do poema analisado Depois dessa apresentaccedilatildeo da obra ao retomar a leitura do poema o estagiaacuterio pergunta ldquoPor que a rosa estaacute desbotadardquo Jian responde ldquoela ainda estaacute despercebidardquo Outro aluno comenta ldquoaiacute eu acho que ele estaacute se referindo ao tiacutetulo do livro A rosa do povordquo Interessante notar aqui que com o pouco que foi discutido sobre a atmosfera desse livro os leitores conseguiram nessa situaccedilatildeo de abertura ao diaacutelogo no contato com o poema fazer uma ligaccedilatildeo entre o desbotar da rosa e o tiacutetulo do conjunto dos poemas a que ldquoA flor e a naacuteuseardquo pertence

Talvez atraveacutes dessas anaacutelises dos alunos despontadas no ato da leitura possamos ter condiccedilotildees de refletir sobre esse eu que se contorcena tessitura do proacuteprio poema de modo que suas palavras brotem em meio agrave aspereza do asfalto como ldquorosa desbotadardquo uma rosa ldquodespercebidardquo segundo Jian No verso discutido o nascimento da flor feia sem cor eacute tatildeo vulgar que sequer estaacute classificado nos livros Perceber a rosa eacute a urgecircncia de algo novo algo que surge para romper a naacuteusea Essa poesia que se coloca agrave frente na caminhada por uma conquista social estaacute ao lado da metaacutefora da flor como nascimento de uma nova forma de viver que desabrocha no cerne do discurso literaacuterio uma forma disfarccedilada que passa conforme nota o aluno ldquodespercebidardquo de modo a poder perscrutar caminhos furtivos Os alunos os estagiaacuterios (e os pesquisadores) voltam-se para as lacunas que o poema abre proporcionando elas mesmas um encontro que tambeacutem eacute furtivo

Na relaccedilatildeo texto-leitor assim como nas relaccedilotildees interpessoais segundo Iser (1979) uma das bases da interlocuccedilatildeo estaacute no que natildeo nos eacute dado isto eacute natildeo compreendemos totalmente o outro porque somos incapazes de experimentar a experiecircncia do outro ndash ldquonegatividade da experiecircnciardquo para Iser (1979 p 87) e essa incapacidade nos impulsiona a agir instaura a necessidade da interpretaccedilatildeo Diferentemente das relaccedilotildees interpessoais o texto natildeo pode nos responder de imediato (como poderia

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o outro nos responder em uma conversa) o que na leitura literaacuteria redobra a negatividade da experiecircncia Para Iser (1979 p 88) eacute essa ldquocarecircncia que impulsiona uma relaccedilatildeordquo Essa carecircncia eacute dada pelo texto literaacuterio como lacunas pontos de indeterminaccedilatildeo Esses vazios presentes no poema de Drummond provocam-nos a preenchecirc-los mas como eles nunca se completam a experiecircncia da leitura literaacuteria e da anaacutelise se abrem em infinitas possibilidades Dessa experiecircncia emergem entatildeo incocircmodos duacutevidas curiosidades olhares giros de sentidos que despontam talvez como uma flor no meio de um asfalto

A aluna Sylvia ao analisar os versos que falam da flor

Uma flor nasceu na rua[]Uma flor ainda desbotada ilude a poliacutecia rompe o asfalto[]

Sua cor natildeo se percebe Suas peacutetalas natildeo se abrem[]

daacute segmento agrave discussatildeo comentando o seguinte ldquoeacute como se tivesse uma capa que a escondesse para que natildeo seja percebida pela poliacuteciardquo Nesse comentaacuterio haacute um retorno do contexto histoacuterico como elemento constante no processo de construccedilatildeo literaacuteria Jaacute Hugo destoa desse plano ao afirmar que ldquohaacute um conteuacutedo dentro dela mas que eacute protegido pela capardquo Essa ideia de proteccedilatildeo natildeo nos leva a pensar na resistecircncia do texto literaacuterio Eacute como se esse conteuacutedo ldquosob cifras e coacutedigosrdquo se preservasse guiado pela consciecircncia de hostilidade agrave poesia que estaacute envolta no poema em anaacutelise

A discussatildeo toma um outro rumo quando um aluno pergunta ldquoa flor faz referecircncia a uma pessoa anocircnima ou ao livro A rosa do povordquo A turma concorda que eacute ao livro e uma aluna expotildee o seu ponto de vista ldquoEssa questatildeo da cor das peacutetalas e o nome que natildeo estaacute no livro deve ser eacute referente ao que o senhor falou em mudar a capa tentar se esconderrdquo Apesar da discordacircncia da turma pensamos que eacute possiacutevel atraveacutes da fala do aluno rastrear um traccedilo de uma interpretaccedilatildeo possiacutevel A questatildeo do anonimato ou dessa voz furtiva eacute um aspecto presente na voz do sujeito liacuterico desde o iniacutecio do poema e que aparentemente dissolve-se quando entoa o grito de anunciaccedilatildeo do nascimento da flor Ainda podemos destacar que essa ideia de anonimato ndash ou de uma voz disfarccedilada possibilitada pela ldquocapardquo poeacutetica (apontada pela aluna) ndash pode corresponder ao sujeito liacuterico que se mascara que se dobra que se torce que se forja ao natildeo tentar se mostrar Assim eacute possiacutevel pensar que a flor aleacutem de furar o asfalto perfurou esse anonimato do eu liacuterico um rompimento protegido pelas artimanhas poeacuteticas na medida em que o poema nasce sob essa ldquocapardquo dada pelos siacutembolos poeacuteticos tais como o da flor penetrando o asfalto

Logo eacute possiacutevel recuperar a leitura do aluno redirecionando-a para essa relaccedilatildeo entre indiviacuteduo anocircnimo e nascimento da flor Sobre a coloraccedilatildeo da flor mencionada

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pela aluna haacute um retorno agrave questatildeo do ldquotentar se esconderrdquo que pode tambeacutem ser lido como uma metaacutefora para a proacutepria construccedilatildeo literaacuteria do texto posto que o siacutembolo da flor se constitui aos poucos Tal fato pode ecoar na leitura de poesia quando a observamos como um processo que natildeo se entrega de imediato ao leitor pois eacute um processo de conquista que se apresenta em pequenas doses tal como a flor

No final da anaacutelise inesperadamente um aluno pergunta ldquopor que galinhas em pacircnicordquo O estagiaacuterio 2 responde ldquoisso eacute uma pergunta que eu faccedilo para vocecircrdquo O aluno natildeo responde Eacute interessante ressaltar essa forma como a aula eacute concluiacuteda com um verso transformado numa pergunta deixando um lugar para o inacabado para o suspense do ato de ler pois a cada entrada no texto novas perguntas emergem Dessa maneira o poema pode ser percebido como uma indagaccedilatildeo formal e conceitual aspectos que foram comentados com a turma de estudantes O estagiaacuterio 2 sugeriu que os alunos pensassem atraveacutes das lacunas desse verso nas propriedades plurissignificativas do signo poeacutetico na palavra como um espaccedilo que guarda mais perguntas do que respostas

Poder-se-ia aqui especular sobre esse fato de termos mais perguntas do que respostas na leitura literaacuteria o que de alguma maneira evidencia que o discurso literaacuterio eacute um espaccedilo de constante interrogaccedilatildeo sendo esta uma constataccedilatildeo que nos ratifica a percepccedilatildeo de que haacute na leitura um jogo e o leitor eacute seduzido e provocado por essas indeterminaccedilotildees do texto tal como pontua Iser (1999 p 107) ldquoo jogo ultrapassa o que eacute e se volta para o que natildeo eacute ou ainda natildeo eacuterdquo

A compreensatildeo da leitura literaacuteria como jogo sob a perspectiva iseriana mostra-a como uma travessia de fronteiras em que o leitor se move junto com o texto em que seu horizonte de leitura eacute colocado na esteira de um constante deslocamento Nesse contexto o eu todo retorcido que se expressa em ldquoA flor e a naacuteuseardquo pode nos sugerir a pensar essa questatildeo ao se aproximar num plano metapoeacutetico dos dados histoacutericos reconfigurando essa relaccedilatildeo ao trazer uma reflexatildeo da presenccedila da poesia no seio social do sujeito liacuterico que se inquieta

Retomando o que jaacute foi dito podemos considerar que a forma como o sujeito liacuterico anuncia o nascer da flor sugere uma carga liacuterica cecircnica aos versos como se estes testemunhassem natildeo somente o desabrochar da flor como tambeacutem presenciassem o eu retorcido se reerguendo por meio do signo da flor uma flor desbotada

Quando observamos os estagiaacuterios e os alunos associando a linguagem poeacutetica a um ldquodisfarcerdquo a uma ldquocapardquo que permite uma ldquofugardquo um ldquorefuacutegiordquo ou ainda um ldquocrimerdquo pode-se entrever aiacute uma espeacutecie de tensionamento entre o texto e o contexto histoacuterico com o qual o poema dialoga Percebe-se assim nas reflexotildees tecidas em aula uma articulaccedilatildeo entre o metapoema e o mundo extratextual Alguns aspectos apontados pela criacutetica despontam de modo singular na anaacutelise coletiva do poema que emergiu na sala de aula sem necessariamente terem sido expostas a priori caracteriacutesticas do poema anunciadas por criacuteticos renomados Eacute nesse sentido que o ensino de literatura pode se tornar um exerciacutecio criacutetico

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Vale a pena notar que na anaacutelise feita em sala de aula os alunos apontaram tanto para o desabrochar da flor quanto para a sua caracteriacutestica desbotada o que lhe daria uma apa-recircncia despercebida Ao relacionarem a produccedilatildeo do poema agrave imagem da flor perceben-do-o como uma espeacutecie de disfarce e de via de ldquofugardquo algumas anaacutelises que emergiram na interlocuccedilatildeo com o poema ressaltam a ligaccedilatildeo do metapoema como o seu possiacutevel efeito esteacutetico A linha de fuga dada por esse sujeito liacuterico retorcido e mascarado parece ser revi-sitada pelo leitor que se abre diante do ldquodesafiordquo (como afirmara Hugo no decorrer da aula) proposto pelas ldquocapasrdquo da palavra poeacutetica No entanto trata-se de um desafio tortuoso cujo efeito eacute o da ldquonaacuteuseardquo da repulsa ou como comentou o aluno Gustavo de uma repulsa que ldquopode estar relacionada ao sentimento do indiviacuteduo de expulsatildeo da proacutepria vidardquo Trata-se pois de um eu liacuterico cuja faceta eacute a do sujeito nauseado embrulhado retorcido um sujeito insatisfeito incomodado inquieto

Eacute valido abordar aqui a fala da aluna Karolina ao notar que a flor pode ser a representaccedilatildeo de uma ldquoatitude filosoacuteficardquo desdobrando um dos principais siacutembolos do poema lido como um objeto que instiga a reflexatildeo o questionamento Seguindo o pensamento de ldquopergunta e curiosidaderdquo apontada pela aluna eacute possiacutevel observar uma interlocuccedilatildeo entre a ldquoatitude filosoacuteficardquo e a noccedilatildeo de ldquoiacutendice reflexivordquo uma espeacutecie de ldquoglossaacuterio poeacuteticordquo de temas presentes na poesia de Drummond sugerida por Wisnik (2005) De acordo com o autor os versos drummondianos pertencem a uma conjuntura da qual ao mesmo tempo que se faz parte tambeacutem se exclui indicando para o ldquo(natildeo) lugarrdquo de sua poeacutetica Esse ldquo(natildeo) lugarrdquo possivelmente estaacute expresso em ldquoA flor e a naacuteuseardquo quando pensamos no espaccedilo atiacutepico em que a flor nasce como se estivesse em luta com o proacuteprio local ao qual pertence mas que a exclui Nesse sentido pode-se ler a flor como uma ldquoatitude filosoacuteficardquo pois atraveacutes de seu nascimento e constituiccedilatildeo o texto joga com o leitor ao manter a interrogaccedilatildeo as lacunas em relaccedilatildeo a esse ldquo(natildeo) lugarrdquo da poesia Assim nessas possibilidades de leituras incertas que se camuflam a metaacutefora da flor pode ser estendida para esse olhar que instiga a pergunta a curiosidade dialogando com a discussatildeo do jogo da leitura e recuperando a atmosfera metapoeacutetica do texto ao considerar o siacutembolo da palavra como uma atitude mais direcionada para perguntas do que para respostas

Talvez aqui seja importante voltar para o texto ldquoInquietudes na poesia de Drummondrdquo de Antonio Candido (1965 p 87) em que uma fala do autor faz uma interlocuccedilatildeo direta com o que pudemos constatar no desenvolvimento de nossa discussatildeo ldquoao longo da obra de Drummond natildeo observamos uma certeza esteacutetica nem mesmo a esperanccedila disto poreacutem a duacutevida a procura o debate A sua poesia eacute em boa parte uma indagaccedilatildeo sobre o problema da poesiardquo Portanto construir uma metodologia de leitura literaacuteria para a poesia drummondiana eacute se colocar nesse exerciacutecio de interrogaccedilatildeo em que o texto literaacuterio tal qual visto por Hugo eacute um desafio

O encerramento desta atividade ocorreu com a autoavaliaccedilatildeo da disciplina Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa 2 momento em que os estagiaacuterios apresentaram o seu olhar sobre a experiecircncia de leitura em sala de aula As estagiaacuterias e o estagiaacuterio da oficina de leitura jaacute tinham um percurso pela leitura literaacuteria em sala de aula atraveacutes da

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participaccedilatildeo do Programa Institucional de Iniciaccedilatildeo agrave Docecircncia (PIBID)6 e da colaboraccedilatildeo no Programa de Apoio agraves Escolas Puacuteblicas do Estado de Alagoas (PAESPE)7 projeto do curso de Engenharia Civil da Universidade Federal de Alagoas em parceria com o grupo de bolsistas do Programa de Educaccedilatildeo Tutorial (PET) da Faculdade de Letras

De acordo com os estagiaacuterios foi possiacutevel aprofundar o conhecimento da praacutetica do ensino de literatura em especial ao focar todo o momento da oficina de leitura em um uacutenico poema de Carlos Drummond de Andrade Esse exerciacutecio contribuiu para que esses estudantes se aprofundassem nas variadas ldquofacesrdquo ldquocifrasrdquo e ldquocoacutedigosrdquo da poeacutetica drummondiana

Aleacutem disso os estagiaacuterios comentaram que se sentiram surpresos com o raacutepido acompanhamento da leitura dos poemas que a turma fez adiantando ateacute mais de uma vez comentaacuterios que ainda estavam por vir nas falas das estagiaacuterias

3 Algumas conclusotildees

Vale a pena frisar que as experiecircncias de leitura dos versos metapoeacuteticos de Drummond tanto nas praacuteticas pedagoacutegicas quanto nos caminhos analiacuteticos que viemos trilhando por meio desses diaacutelogos transformou e inquietou a nossa visatildeo sobre as particularidades da poeacutetica do autor e sobre a complexidade do trabalho com a poesia na formaccedilatildeo do leitor A leitura do metapoema em sala de aula eacute por vezes tortuosa difiacutecil de ser conduzida mas parece sempre ser um convite um convite a uma transgressatildeo a uma conquista aquela de uma flor desabrochando em pleno asfalto Natildeo caberia no trabalho com um poema tatildeo inquieto uma metodologia prescritiva informativa O texto desabrocha se o leitor entra em seu jogo aceita seus desafios

O signo da flor essa flor desbotada que rompe o asfalto parece reverberar em noacutes leitores a coragem para abrir fissuras em nossas certezas convidando-nos para o desafio e para o disfarce do jogo do texto um desafio que pode provocar naacuteuseas fugas crimes abrindo refuacutegios em um eu todo retorcido O caminho percorrido pela flor aparenta se tornar um caminho seguido tambeacutem pelo leitor que busca entender a naacuteusea que acompanha

6 O PIBID eacute uma iniciativa para o aperfeiccediloamento e a valorizaccedilatildeo da formaccedilatildeo de professores para a educaccedilatildeo baacutesica O programa concede bolsas a alunos de licenciatura participantes de projetos de iniciaccedilatildeo agrave docecircncia desenvolvidos por Instituiccedilotildees de Educaccedilatildeo Superior (IES) em parceria com escolas de educaccedilatildeo baacutesica da rede puacuteblica de ensino Os projetos devem promover a inserccedilatildeo dos estudantes no contexto das escolas puacuteblicas desde o iniacutecio da sua formaccedilatildeo acadecircmica para que desenvolvam atividades didaacutetico-pedagoacutegicas sob orientaccedilatildeo de um docente da licenciatura e de um professor da escola

7 O PAESPE eacute um projeto que pretende dar subsiacutedios para que os estudantes de escolas puacuteblicas do Estado de Alagoas tenham mais condiccedilotildees de prestar os exames de vestibular ao concluir a educaccedilatildeo baacutesica O programa tambeacutem visa trazer os alunos para o conviacutevio da rotina da Universidade uma vez que as aulas satildeo realizadas na proacutepria Universidade campus AC Simotildees Todas as aacutereas do conhecimento satildeo contempladas pelo Paespe que conta com colaboradores (professores instrutores) de variados cursos da UFAL

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esse eu que se torce e que figura o ambiente do nascimento da flor Assim compreendemos a leitura de poesia como um convite para esse jogo de incertezas ao lado da palavra O verso ldquouma flor nasceu na ruardquo ressoa em noacutes leitores como um lirismo que pulsa que vibra ao anunciar uma vida que nasce seja ela flor seja ela palavra seja ela

Referecircncias

ANDRADE C D de A Poesia completa Rio de Janeiro Nova Fonteira 2003

ARRIGUCCI DJ Coraccedilatildeo partido uma anaacutelise da poesia reflexiva de Drummond Satildeo Paulo Cosac ampNaify 2005

BARTHES Roland Aula Traduccedilatildeo de Leyla Perrone-Moiseacutes Satildeo Paulo Cultrix 1977

CANDIDO A Inquietudes na poesia de Drummond In CANDIDO A Vaacuterios escritos Satildeo Paulo Duas Cidades 1965 p67-97

ISER W A interaccedilatildeo do texto com o leitor In LIMA Luiz Costa (Org) A literatura e o leitor Textos de Esteacutetica da Recepccedilatildeo Rio de Janeiro Paz e Terra 1979 p 83-132

ISER W O jogo Traduccedilatildeo de Bluma Waddington Vilar In ROCHA Joatildeo Cezar (Org)Teoria da ficccedilatildeo indagaccedilotildees agrave obra de Wolfgang Iser Rio de Janeiro Eduerj 1999 p 105-115

PAZ O Poesia e histoacuteria In PAZ O O arco e a lira Traduccedilatildeo de Ari Roitman e PaulimaWatcht Satildeo Paulo Cosac Naify 2012 p 191-258

PINHEIRO H Teoria da literatura criacutetica literaacuteria e ensino In PINHEIRO H NOacuteBREGA M (Org) Literatura da criacutetica agrave sala de aula Campina Grande Bagagem 2006

WISNIK J M Drummond e o mundo In NOVAES A (Org)Poetas que pensaram o mundo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005 p 19-64

Recebido em 24 de abril de 2017

Aceito em 16 de outubro de 2017

Diogo dos Santos Souza

Doutorando em Estudos Literaacuterios (2015) pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras e Linguiacutestica da Universidade Federal de Alagoas Mestre em Estudos Literaacuterios (2015) e Graduado em Letras Portuguecircs pela mesma Instituiccedilatildeo Graduando em Pedagogia pela Universidade Estaacutecio de Saacute (2017) Atualmente eacute docente do Instituto Federal de Alagoas campus Piranhas diogosansouzagmailcom

Eliane Kefalaacutes Oliveira

Doutora em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (2009) com doutorado sanduiacuteche na Universidade de Barcelona Mestre em Educaccedilatildeo (na aacuterea de Educaccedilatildeo Conhecimento Linguagem e Artes) pela Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade Estadual de Campinas (2003) graduada em Licenciatura e Bacharelado em Letras pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (1996) Atualmente eacute docente da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas llycaoliveiragmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Cenas da formaccedilatildeo de professores de liacutengua e literatura no Curso de Letras da Universidade

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)Aspects of Teacher Training in Language and Literature at the

Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ)

Escenas de formacioacuten de profesores de lengua y literatura en el curso de Letras de la Universidad Federal de

Riacuteo de Janeiro (UFRJ)

Marcos ScheffelUniversidade Federal do Rio de Janeiro

ResumoCom base na minha atuaccedilatildeo como professor de Didaacutetica e Praacutetica de Ensino de Portuguecircs e Literaturas na UFRJ e em estudos sobre a mudanccedila do perfil dos alunos de graduaccedilatildeo aponto alguns problemas relacionados agrave formaccedilatildeo de professores num curso marcado pela valorizaccedilatildeo da formaccedilatildeo do pesquisador em detrimento da formaccedilatildeo do professor Nesse contexto as questotildees ligadas ao ensino ficam delegadas agraves disciplinas ofertadas pela Faculdade de Educaccedilatildeo que ainda guardam um caraacuteter final de complemento da formaccedilatildeo A constataccedilatildeo da ausecircncia de discussotildees teoacutericas sobre o ensino de literatura eacute comprovada por meio de vaacuterios relatos escritos dos estudantes quando do ingresso na disciplina de Didaacutetica de Portuguecircs e Literaturas Esses mesmos relatos tambeacutem trazem importantes informaccedilotildees sobre a mudanccedila do perfil dos estudantes da Faculdade de Letras da UFRJ que hoje satildeo em sua maioria moradores da periferia do Rio de Janeiro e oriundos de famiacutelias com pouca escolaridade Em meio a essa realidade complexa parecia importante recompor as trajetoacuterias singulares desses jovens leitores e futuros professores Foi nesse momento que o contato com o livro Os jovens e a leitura (2008) da pesquisadora francesa Michegravele Petit possibilitou pocircr em cena vaacuterias percepccedilotildees da leitura Segundo Petit a leitura pode tanto contribuir para gerar identidades complexas objetivo que deve ser perseguido pelos formadores de leitores como pode gerar problemas identitaacuterios como o sentimento de achar a sua cultura de origem inferior As principais conclusotildees deste trabalho apontam para a necessidade de as licenciaturas em Letras reverem suas praacuteticas de formaccedilatildeo de leitores nos proacuteprios cursosPalavras-chave Formaccedilatildeo de professores ensino de literatura leitura

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AbstractAs a professor of Teaching Practices in Portuguese language and Brazilian Literature at the Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ) and based on studies on the changes of the profile of undergraduate students in this paper I point out some problems related to teacher training in a major that emphasizes the teaching of theoretical research rather than teacher training In this context the issues related to teaching are left to the courses offered by the Faculty of Education which still holds to the character of being a mere final appendix to the majorin language and literature The lack of theoretical discussions about the teaching of literature is evidenced by many reports written by the students when they begin the Teaching Practices in Portuguese Language and Brazilian Literaturecourse These reports also bring important information about the changes in the studentsrsquo profiles in the Faculty of Languages of UFRJ mdashtoday they are mostly residents of the outskirts of Rio de Janeiro and come from families with little schooling In this complex reality it was important to recompose the unique trajectories of these young readers and future teachers At this moment the contact with the book Os jovens e a leitura (2008) by the French researcher Michegravele Petit made it possible to reflect on several views about the act of reading According to Petit reading can both contribute to generating complex identities an objective that should be pursued in the formation of readers as it can generate identity problems such as the feeling of regarding their family culture as inferior The main conclusions of this study point to the need for undergraduate degree programs to review their practices in the developmentof teachers-readersKey-words Teacher development teaching literature reading

ResumenBasado en mi trabajo de profesor de Didaacutectica y Praacutectica de Portugueacutes y Literaturas de la UFRJ y en estudios sobre el cambio del perfil de los alumnos de graduacioacuten trato de sentildealar algunos problemas relacionados con la formacioacuten de profesores en un curso marcado por la valoracioacuten de la formacioacuten en investigacioacuten en detrimento a la del profesor En este contexto los temas relacionados con la ensentildeanza se delegan a las asignaturas que se ofrecen por la Facultad de Educacioacuten que auacuten conservan un caraacutecter final de complemento de la formacioacuten Se ha comprobado la ausencia de discusiones teoacutericas sobre la ensentildeanza de la literatura por medio de diversos relatos escritos por los estudiantes al entrar en la asignatura de Didaacutectica de Portugueacutes y Literaturas Estos mismos relatos tambieacuten proporcionan informacioacuten importante sobre el cambio en el perfil de los estudiantes de la Facultad de Letras de la UFRJ que hoy son en su mayoriacutea residentes en las periferias de Riacuteo de Janeiro y de familias que tienen bajo nivel de escolaridad En medio de esta compleja realidad pareciacutea importante reconstituir las trayectorias singulares de estos joacutevenes lectores y futuros profesores Fue entonces que el contacto con el libro Os jovens e a leitura (2008) de la investigadora francesa Michegravele Petit hizo posible poner en escena diversas percepciones de la lectura Seguacuten Petit la lectura tanto puede contribuir para generar identidades complejas objetivo que los formadores de lectores deben perseguir como tambieacuten generar problemas identitarios tales como el sentimiento de que su cultura de origen es inferior Las principales conclusiones de este estudio apuntan hacia la necesidad de los Cursos de Letras poner en tela de juicio sus praacutecticas de formacioacuten de lectores en el propio CursoPalabras clave Formacioacuten de profesores ensentildeanza de literatura lectura

Introduccedilatildeo

No segundo semestre de 2016 cada um dos meus trinta alunos de Didaacutetica e Praacutetica de Ensino de Portuguecircs e Literatura do Curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro ganhou um exemplar do livro Cenas da vida brasileira

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(2010) de Marques Rebelo Os trinta exemplares do livro foram adquiridos de um projeto do governo do estado do Rio de Janeiro chamado ldquoMais Leiturardquo que tem trecircs estandes fixos (Bangu Satildeo Gonccedilalo e Niteroacutei) onde satildeo vendidos livros a dois trecircs ou quatro reais

O livro de Marques Rebelo foi publicado pela primeira vez em 1951 mas sua origem remonta agrave colaboraccedilatildeo do autor entre abril de 1941 e agosto de 1943 para a revista Cultura Poliacutetica do Departamento de Imprensa do Estado Novo getulista Rebelo responsaacutevel pela seccedilatildeo ldquoQuadros e costumes do Centro-Sulrdquo1 produziu um conjunto significativo de crocircnicas sobre cidades de vaacuterios estados brasileiros As cenas registradas nessas crocircnicas estatildeo em suiacutete ou seja todas elas tratam de temas semelhantes formando uma espeacutecie de arte mural que revela um paiacutes seduzido pelos discursos modernizadores mas ainda preso a antigas estruturas Deve-se destacar ainda a linguagem carregada de lirismo e criticismo de Rebelo que recorta pequenos instantacircneos do cotidiano como no registro sobre a cidade de Carmo do Rio Verde (GO)

ldquoA sulfanilamida nas peritonitesrdquo ldquoA vitamina B-1rdquo ldquoEacute preciso cultivar a sua personalidaderdquo ldquoQuem foi o autor dos Direitos do homemrdquo ldquoQuem fez o papel de Scarlet OrsquoHara no filme E o vento levourdquo ldquoA batalha de Salamina foi na Guerra Europeiardquo ldquoSeraacute liacutecito o lucrordquo ndash os uacuteltimos caixeiros-viajantes nos seus guarda-poacutes com monogramas bordados cansam-se de se ilustrar nas paacuteginas da Readerrsquos Digest Na solidatildeo do trem dentro da noite a tristeza desamparada dos meus pensamentos Por toda parte o mesmo subalimentaccedilatildeo tuberculose siacutefilis maleita devastaccedilatildeo de florestas religiatildeo denso analfabetismo casamento indissoluacutevel luacutegubre mortalidade infantil falta de recursos desalento E natildeo sei o que doacutei mais fundo ndash natildeo saber se os coraccedilotildees satildeo tatildeo bons que suportam tudo se satildeo miseraacuteveis que natildeo tecircm consciecircncia da sua desgraccedila E por vezes brasas que a locomotiva joga luzem como uma chuva de ouro que as trevas logo apagam (REBELO 2010 p92)

Na raacutepida cena o cronista-passageiro observa com desalento para dentro e para fora do trem Do lado de dentro os caixeiros-viajantes se ldquoilustramrdquo com as informaccedilotildees banais de uma revista bastante popular na eacutepoca2 Do lado de fora o cenaacuterio de pobreza do interior do Brasil mostra que o paiacutes estaacute fadado ao atraso eterno No entanto as faiscaccedilotildees das brasas da locomotiva parecem indicar alguma esperanccedila no meio desse cenaacuterio tenebroso

1 Graciliano Ramos escreveu na seccedilatildeo ldquoQuadros e costumes do Nordesterdquo Houve tambeacutem uma seccedilatildeo dedicada ao Norte com crocircnicas do romancista Dalciacutedio Jurandir Eacute interessante observar que todos eles eram criacuteticos do regime getulista mas colaboraram para uma revista de propaganda do governo

2 A Readerrsquos Digest ndash conhecida no Brasil como Seleccedilotildees ndash comeccedilou a circular em 1922 nos Estados Unidos No nosso paiacutes o iniacutecio de sua circulaccedilatildeo tambeacutem data de 1922 sendo uma traduccedilatildeo da ediccedilatildeo norte-americana e trazendo a mesma variedade de assuntos sauacutede anedotas conhecimentos gerais biografias e uma seccedilatildeo literaacuteria com o livro do mecircs

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Ao disponibilizar o livro de Rebelo para os alunos tinha como objetivos

1 Divulgar um projeto de leitura desenvolvido no estado do Rio de Janeiro que pode fornecer materiais de qualidade para eles como futuros professores

2 Por em accedilatildeo um projeto de leitura na aula de Didaacutetica

3 Articular a leitura de Cenas da vida brasileira com as teorias sobre a leitura literaacuteria indicada neste trabalho que costumamos ver na disciplina Didaacutetica I

4 Motivar os licenciandos a escrever sobre a experiecircncia do estaacutegio por meio de uma linguagem que tambeacutem possa ser liacuterica criacutetica e principalmente autoral (rompendo com a escrita burocraacutetica dos relatoacuterios entregues ao final do estaacutegio)

Como se trata de um projeto ainda em andamento (a escrita por parte dos estagiaacuterios de Letras) as seccedilotildees seguintes deste artigo tecircm por objetivo fornecer algumas cenas da Didaacutetica e Praacutetica de Ensino de Portuguecircs e Literatura ndash focando em maior grau na Literatura ndash do ponto de vista do professor orientador de estaacutegio que procura criar nos futuros professores um grau de reflexibilidade sobre teorias e praacuteticas da sala de aula em campos de estaacutegio bastante heterogecircneos Satildeo raacutepidas cenas dos percursos formativos com que se deparam os estudantes de Letras que em breve iratildeo formar leitores de literatura na educaccedilatildeo baacutesica Mas antes disso eacute necessaacuterio apresentar um raacutepido perfil desses estudantes

1 Da periferia agrave casa da indiferente Minerva3

Desde o iniacutecio de minha atividade com professor de Didaacutetica na UFRJ em 2013 costumo fazer um levantamento do perfil social da turma por meio de um questionaacuterio situacional Satildeo questotildees relevantes para saber um pouco do histoacuterico familiar (grau de escolaridade) da relaccedilatildeo com a leitura e com a escola e tambeacutem como o ensino de liacutengua e literatura foi ou natildeo problematizado ao longo da licenciatura em Letras

O que se percebe sobre o background familiar eacute que a maior parte deles faz parte da primeira geraccedilatildeo que concluiraacute um curso superior na famiacutelia4 A maioria desses licenciandos passou pela escola puacuteblica sendo raros os que estudaram unicamente em escolas particulares Esse perfil social eacute fruto das poliacuteticas inclusivas do uacuteltimo dececircnio e tem promovido na universidade algo parecido com o que ocorreu a partir da metade do seacuteculo passado na escola baacutesica brasileira ou seja uma mudanccedila radical no perfil do alunado Foi nesse momento que muitas praacuteticas da escola ndash pensemos nas questotildees

3 Faccedilo alusatildeo aqui ao siacutembolo da UFRJ que traz a imagem de Minerva ndash a deusa romana das artes do comeacutercio e da sabedoria

4 Gabriela Rodella (2013) fez um importante levantamento do background familiar dos estudantes de Letras da USP que comprova este histoacuterico familiar social A UFRJ ainda natildeo tem um estudo desta natureza sobre os alunos de Letras mas os relatos dos estudantes que passam pela Didaacutetica e Praacutetica de Ensino apontam para semelhanccedilas do perfil do alunado

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linguiacutesticas ndash comeccedilaram a ser postas em xeque Aquele ensino voltado para um setor meacutedio de nossa sociedade natildeo fazia sentido para esses novos estudantes A liacutengua que era falada na escola natildeo era a mesma liacutengua que eles traziam de casa

Apesar de mudanccedilas tatildeo visiacuteveis a Minerva parece indiferente Ela quer seguir a sua tradiccedilatildeo de formaccedilatildeo de pesquisadores mesmo tendo ciecircncia que esses estudantes procuraram a universidade tendo em vista a carreira de professores da educaccedilatildeo baacutesica Pautada na sua forte cultura bacharelesca chamada muitas vezes de identidade do curso esta licenciatura ignora que ldquoOs cursos de licenciatura tecircm um papel fundamental na socializaccedilatildeo profissional e na construccedilatildeo da identidade dos professoresrdquo (MARLI 2012 p3) Essa pouca preocupaccedilatildeo com as questotildees relacionadas agrave educaccedilatildeo baacutesica estaacute mais acentuada justamente no ensino de literatura como se pode perceber nas seguintes respostas dadas ao questionaacuterio situacional5

Existe mais preocupaccedilatildeo por parte dos professores de gramaacutetica linguiacutestica Os professores de literatura para aleacutem do curriacuteculo no que vem depois da faculdade (Estudante 1)

Apenas nas disciplinas de liacutengua portuguesa (variaccedilatildeo morfologia morfossintaxe etc) Nas mateacuterias de literatura ou se apresenta o curso de forma panoracircmica ou pensamos a literatura criticamente como pesquisadores da aacuterea de literatura mais voltados para a academia do que para o ensino (Estudante 2)

Este curso [variaccedilatildeo linguiacutestica] foi fundamental para que eu me tornasse uma professora consciente No caso das literaturas natildeo sinto a mesma coisa Se natildeo tivesse participado do Pibid penso que natildeo teria tido qualquer oportunidade de refletir melhor acerca da literatura na escola baacutesica (Estudante 3)

A maioria das cadeiras de literatura focaliza mais no plano teoacuterico dificilmente em como levar essa teoria para a sala de aula (Estudante 4)

As respostas desses estudantes apontam para um vaacutecuo nas discussotildees sobre o ensino de literatura na educaccedilatildeo baacutesica ateacute praticamente o final do curso Um ou outro afirma ter cursado uma disciplina optativa sobre ensino de literatura que eacute bastante disputada e por essa razatildeo natildeo consegue dar conta da demanda de treze habilitaccedilotildees6 Em contrapartida vemos que disciplinas ligadas agrave liacutengua portuguesa e agrave linguiacutestica tematizam o ensino de liacutengua desconstroem conceitos equivocados

5 A questatildeo proposta eacute a seguinte ldquoAteacute este momento no curso de Letras excetuando as disciplinas pedagoacutegicas houve uma preocupaccedilatildeo dos professores das demais disciplinas em discutir o ensino de liacutengua literatura produccedilatildeo textual oralidade e leitura na escola baacutesica Em quais disciplinas houve essa discussatildeo Em quais disciplinas natildeo houve nenhuma discussatildeo desse tipordquo

6 As treze habilitaccedilotildees oferecidas pela UFRJ satildeo Portuguecircs-Literaturas e Portuguecircs + outra habilitaccedilatildeo (aacuterabe alematildeo espanhol francecircs grego hebraico inglecircs japonecircs latim italiano russo e LIBRAS) Esses cursos satildeo oferecidos como bacharelado ou licenciatura

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propotildeem novas metodologias para romper com uma tradiccedilatildeo normativa de ensino Uma raacutepida anaacutelise do mercado editorial brasileiro nos livros sobre ensino de liacutengua e literatura seria suficiente para constatar que a maioria dos estudos eacute da aacuterea de liacutengua7

Haacute uma forte tradiccedilatildeo beletrista por traacutes desse gesto de ignorar a escola por parte dos professores que ensinam literaturateoria da literatura em grandes universidades As leituras complexas promovidas pelos professores universitaacuterios e o forte aparato teoacuterico para se ler um poema por exemplo apontam unicamente para a leitura como algo feito para poucos Como tal a literatura passa a ser vista como algo impossiacutevel de ser levado para a escola Ela eacute um objeto de culto e de admiraccedilatildeo para esses futuros professores

Pode-se pensar que assim como os estudantes da educaccedilatildeo baacutesica dividem sua identidade leitora ndash dando para a escola as respostas esperadas quanto agraves obras indicadas e acionando seus direitos de leitor fora de sala ndash esses futuros professores tambeacutem tenham uma relaccedilatildeo complexa e mal resolvida com a literatura obras lidas unicamente por obrigaccedilatildeo de modo fragmentaacuterio com pouco espaccedilo para a subjetividade e com base em seleccedilotildees promovidas pelos professores sem que haja qualquer tipo de problematizaccedilatildeo sobre os criteacuterios de escolha Todas essas praacuteticas repetidas do iniacutecio ao fim da licenciatura tecircm uma forte tendecircncia de serem replicadas em escala menor na educaccedilatildeo baacutesica Por sua vez competecircncias essenciais para formar leitores em qualquer niacutevel de ensino natildeo satildeo postas em praacutetica como a busca por dar sentido ao que estaacute sendo lido a leitura de obras na integralidade ndash levando-se em conta a materialidade dos livros a abertura para interpretaccedilotildees subjetivas implicadas e a discussatildeo dos criteacuterios de escolha seleccedilatildeo das obras

Outro ponto problemaacutetico na formaccedilatildeo desses futuros professores estaacute ligado aos curriacuteculos dessas licenciaturas extensos universalistas sem a possibilidade da construccedilatildeo de trajetoacuterias diferenciadas e com a ausecircncia de temaacuteticas oacutebvias como o lugar da literatura infantil e infanto-juvenil como afirmou Angela Kleiman (2017) durante o IV Encontro de Ensino e Aprendizagem em Liacutenguas e Literaturas

Eacute preciso enfrentar o problema das Licenciaturas em Letras que natildeo se assumem como tal nas quais ndash via de regra ndash sequer haacute disciplinas obrigatoacuterias de um campo como a leitura Literatura Infantil Literatura Juvenil Leitura Ensino de Leitura Letramento Literaacuterio Ensino da Literatura e Formaccedilatildeo de Leitores

Quanto agrave literatura infanto-juvenil nos deparamos com uma questatildeo matemaacutetica se estamos formando futuros professores para atuarem na educaccedilatildeo baacutesica temos de considerar que haacute uma maior possibilidade de esses profissionais atuarem do sexto ao nono ano (quatro seacuteries) do que no ensino meacutedio (trecircs seacuteries) Apesar da obviedade matemaacutetica a produccedilatildeo literaacuteria para crianccedilas e jovens figura no curriacuteculo desses professores como disciplina optativa ndash isso num curso com uma carga horaacuteria elevada que daacute pouca margem para escolhas

7 Natildeo problematizaremos aqui os fatores que levam o ensino de liacutengua materna na educaccedilatildeo baacutesica a ter mudado tatildeo pouco nas uacuteltimas deacutecadas apesar de uma discussatildeo teoacuterica tatildeo profiacutecua

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Cumprindo apenas os requisitos obrigatoacuterios o estudante dessa licenciatura seraacute professor sem conhecer absolutamente nada da produccedilatildeo para crianccedilas e jovens podendo optar se iraacute ou natildeo pensar no ensino de literatura na escola Ele teraacute dificuldade para se colocar do lado dos leitores em formaccedilatildeo Ele teraacute dificuldade para pensar nas suas escolhas para a sala de aula Ele natildeo teraacute construiacutedo criteacuterios que baseiem suas escolhas (faixa etaacuteria interesses aprendizagens literaacuterias possiacuteveis etc) e estaraacute longe de entender que ldquoum bom corpus nem sempre eacute formado pelas melhores obras Esse corpus deve ser composto por livros com diferentes graus de dificuldade Reforccedilar a autoimagem positiva de leitores e natildeo desestimulaacute-lardquo (COLOMER 2007 p113)

Diante desse cenaacuterio natildeo eacute de se estranhar que a literatura seja um objeto em extinccedilatildeo nas praacuteticas escolares Natildeo eacute de se estranhar que a formaccedilatildeo de leitores na escola encontre tantas barreiras Natildeo eacute de se estranhar que ainda recebamos nos cursos de Letras alunos que raramente leram literatura na escola ndash satildeo inuacutemeros relatos da ausecircncia completa da indicaccedilatildeo de livros ou entatildeo de praacuteticas de leitura anacrocircnicas e pouco efetivas (fichas de leitura resumos provas historiografia literaacuteria no lugar da literatura) Depois o que assistimos eacute o velho choro sobre o leite derramado os estudantes de Letras natildeo leem (como se a universidade natildeo tivesse nada a ver com isso) Mas eacute justamente a percepccedilatildeo desse quadro amplo e complexo no qual estamos inseridos que tem norteado algumas reflexotildees teoacutericas voltadas para a construccedilatildeo da imagem desses jovens como leitores e principalmente como formadores de futuros leitores

2 As liccedilotildees de Michegravele Petit em Os jovens e a leitura

Foi por meio de minha atuaccedilatildeo na Didaacutetica e na Praacutetica de Ensino de Portuguecircs e Literatura que conheci a obra de Michegravele Petit Ao terminar de ler Os jovens e a leitura (2008) estava convencido de que se tratava de um livro essencial para se pensar na formaccedilatildeo de identidades leitoras e de que muito do que estava escrito ali ndash falando dos jovens da periferia francesa (muitos imigrantes ou descendentes de imigrantes) ndash tocaria fundo nestes jovens estudantes de Letras em sua maioria moradores das periferias do Rio de Janeiro e de cidades vizinhas

Em pouco tempo como professor da UFRJ tinha ouvido muito sobre a trajetoacuteria deles como leitores Os relatos eram muacuteltiplos incentivos familiares versus falta de incentivo acesso a livros em situaccedilotildees variadas versus ausecircncia total de contato praacuteticas escolares que os aproximaram da leitura versus um sentido burocraacutetico da leitura escolar bibliotecas escolares bem estruturadas e com pessoas preocupadas em promover encontros significativos (raros casos) versus bibliotecas e acervos fechados a sete chaves ou bibliotecas que eram depoacutesitos de livros didaacuteticos (a maioria das vezes)

Um caso que me chamou especial atenccedilatildeo se referia ao extinto projeto ldquoLiteratura em Minha Casardquo que durou entre 2001 e 2004 e que era uma das accedilotildees do Programa Nacional da Biblioteca Escolar (PNBE) Na paacutegina do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo (FNDE) aparece a seguinte descriccedilatildeo do projeto

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Denominado ldquoLiteratura em Minha Casardquo o acervo foi composto por seis coleccedilotildees diferentes cada uma com cinco tiacutetulos poesia de autor brasileiro conto novela claacutessico da literatura universal e peccedila teatral Pela primeira vez as coleccedilotildees foram entregues aos alunos para levarem para casa A ideia do programa foi incentivar a leitura e a troca dos livros entre os alunos aleacutem de permitir agrave famiacutelia do estudante a opccedilatildeo de leitura em casa As escolas tambeacutem receberam quatro acervos para sua biblioteca8

Este projeto visava a oportunizar um contato com obras literaacuterias para crianccedilas e jovens que muitas vezes natildeo tinham acesso a livros Assim de maneira proposital natildeo havia uma orientaccedilatildeo pedagoacutegica para a ldquoutilizaccedilatildeordquo desses livros que deveriam ser somente fornecidos aos estudantes Tratava-se de uma experiecircncia de leitura ligada agrave fruiccedilatildeo ndash forma de leitura preconizada nos documentos oficiais mas de difiacutecil implantaccedilatildeo nas rotinas de sala de aula em razatildeo do caraacuteter utilitaacuterio da leitura A questatildeo eacute que para os professores e gestores escolares natildeo estavam claros os reais objetivos do projeto Aleacutem disso a distribuiccedilatildeo desses materiais natildeo foi feita conforme o planejado (um kit com cinco livros para cada aluno) ou os kits sequer foram distribuiacutedos ficando na biblioteca da escola

Apesar de todos os problemas e da curta duraccedilatildeo do ldquoLiteratura em Minha Casardquo pude encontrar alguns estudantes de Letras que se lembravam de terem recebido livros do programa A maioria apontava uma experiecircncia positiva e conseguia descrever alguns livros que haviam recebido naquela eacutepoca (haacute mais de dez anos) como se pode perceber no depoimento do licenciando

A coleccedilatildeo ldquoLiteratura em Minha Casardquo teve importante papel na minha formaccedilatildeo como leitor primeiro porque me deu acesso a grandes claacutessicos da literatura universal como A Iliacuteada e Os miseraacuteveis adaptados para um puacuteblico infanto-juvenil o que natildeo soacute me permitiu o contato com essas e outras obras como estimulou o meu interesse em conhecer mais tarde as suas versotildees originais Aleacutem disso a coleccedilatildeo por ser distribuiacuteda gratuitamente nas escolas da rede puacuteblica contemplou alunos que como eu natildeo dispunham de uma biblioteca em casa e tampouco poder aquisitivo para a compra de livros Os livros da coleccedilatildeo eram lidos e trocados entre os amigos eram comentados e o mais importante de tudo vinham como uma espeacutecie de presente tiacutenhamos total liberdade para administrar a leitura conforme nossa vontade podiacuteamos ateacute mesmo exercer a vontade de natildeo ler o que muitos evidentemente faziam Contudo tiacutenhamos uma porta aberta agrave nossa frente pronta para ser explorada (Estudante 6)

No entanto houve um comentaacuterio negativo de uma aluna que se lembrava de ter recebido os livros e de ter ficado frustrada por natildeo dar conta das leituras e por natildeo ter tido naquele momento o apoio de professores para esclarecer suas duacutevidas Diante dos

8 Disponiacutevel em lthttpwwwfndegovbrprogramasbiblioteca-da-escolabiblioteca-da-escola-historicogtAcesso em 20 abr 2017

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livros recebidos ela se sentiu incapaz e esse sentimento de incapacidade fragilizou sua identidade leitora Jaacute outra aluna relatou que na escola onde estudava foi criado um momento durante os intervalos ndash nos moldes de raacutedio da escola ndash para que os estudantes compartilhassem as impressotildees sobre os livros que estavam lendo e que isso foi decisivo na sua formaccedilatildeo como leitora

Essas trajetoacuterias tatildeo diferenciadas apontam para aquilo que Michegravele Petit (2008) tambeacutem percebeu entre os jovens da periferia francesa O contato com a leitura os significados a ela atribuiacutedos e as relaccedilotildees com o livro como objeto podiam variar muito Havia muitos riscos relacionados agrave leitura A leitura podia favorecer o desenvolvimento de identidades mais abertas e plurais ou podia contribuir para o rompimento com a cultura de origem Antigos preconceitos vinham agrave tona como aqueles que viam na leitura uma atividade burguesa para pessoas desocupadas

Por tudo isso ficou evidente que o livro de Petit deveria constar da ementa da disciplina de Didaacutetica e que deveria ser uma leitura norteadora em nossas discussotildees O desafio era saber o quanto aqueles estudantes de Letras conseguiriam relacionar as trajetoacuterias dos jovens leitores franceses das periferias agraves suas proacuteprias trajetoacuterias de leitores e tambeacutem que diferenccedilas eles perceberiam por exemplo no fato de aquela pesquisa ter se concentrado em jovens que frequentavam as bibliotecas dos subuacuterbios de Paris quando no Brasil poucos bairros perifeacutericos tecircm bibliotecas

Como forma de dimensionar o papel de tais espaccedilos houve uma visita agrave Biblioteca Parque Estadual do Rio de Janeiro (BPE) que remete ao modelo das bibliotecas colombianas constituindo-se num espaccedilo de conviacutevio e de experiecircncias culturais variadas (filmes cursos teatro) aleacutem de um acervo composto por livros novos e diversificados A BPE estaacute localizada numa regiatildeo estrateacutegica do Rio nas proximidades da Central do Brasil ndash ponto de passagem dos transportes puacuteblicos suburbanos (ocircnibus trem metrocirc vans)

A primeira dessas visitas foi realizada com as turmas de Didaacutetica I no segundo semestre de 2014 e coincidiu com uma interessante exposiccedilatildeo intitulada ldquoBiblioteca de grifos Wally Salomatildeordquo que trazia grandes cartazes reproduzindo paacuteginas dos livros da biblioteca do poeta com sublinhados anotaccedilotildees poemas etc Era o gesto de um autor ldquomarginalrdquo escrevendo agraves margens dos livros Muitos desses cartazes continuam ateacute hoje expostos na Biblioteca e acabaram por se incorporar ao visual do espaccedilo9

Quanto agraves leituras promovidas naquele semestre havia o pressuposto de fazecirc-los lembrar de um gesto leitor simples escolher um livro Por isso foram indicadas trecircs obras que tratavam do ensino de literatura Aleacutem do livro de Michegravele Petit foram indicados Leitura de literatura na escola (DALVI M A REZENDE N L JOVER-FALEIROS R 2013) e Leitura subjetiva e ensino de literatura (ROUXEL A LANGLADE G REZENDE N L 2013) Foram

9 A Biblioteca Parque Estadual atualmente natildeo estaacute funcionando por conta da natildeo renovaccedilatildeo do contrato da empresa responsaacutevel por sua administraccedilatildeo Ela funcionou ateacute o final de 2016 com recursos do municiacutepio A mesma situaccedilatildeo se repete em outros espaccedilos culturais da cidade que foram fechados em decorrecircncia ldquoda crise do estadordquo

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fornecidos aos estudantes alguns elementos paratextuais daqueles livros capas iacutendices informaccedilotildees sobre os autores Estando de posse desses materiais caberia a eles escolher que livro gostariam de ler ao longo do semestre e comentar sobre os motivos da escolha

Eacute um gesto simples Muito simples mas poderoso A possibilidade de escolher um livro mesmo que seja uma escolha direcionada com livros preacute-definidos pelo professor cria um viacutenculo um comprometimento com aquela leitura Poreacutem apesar de ser um gesto simples nenhum estudante se lembrava de ter escolhido um livro para leitura durante sua vida escolar ndash incluindo a passagem pela universidade O uso de elementos paratextuais para justificar a escolha de um livro ndash algo normal entre leitores ndash tambeacutem nunca havia sido posto em praacutetica

Ao longo do semestre procurei garantir as condiccedilotildees de oferta dos livros indicando sites para compra e pedindo ao livreiro da universidade que encomendasse exemplares das obras indicadas Esse foi um momento de aprendizagem jaacute que alguns natildeo conheciam o Estante Virtual ou ainda natildeo tinham comprado um livro on-line enquanto outros jaacute conheciam essas possibilidades

Os livros foram apresentados pelos estudantes ao final da disciplina mas ao longo do semestre os comentaacuterios surgiam a toda hora Nos dias das apresentaccedilotildees pude presenciar situaccedilotildees que denotavam o grau de envolvimento deles com a atividade livros marcados com bandeirolas sublinhados frases anotadas nos cadernos falas desenvoltas sobre as obras exemplos que se relacionavam agraves suas trajetoacuterias de leitores E um detalhe importante nenhum aluno havia xerocado o livro Todos falavam com o livro em matildeos

Contudo a constataccedilatildeo mais importante apontava para um grande problema que pode ser assim resumido os conflitos vivenciados por aqueles jovens das periferias francesas no contato com a cultura oficial eram semelhantes aos conflitos que eles vivenciavam no curso de Letras na cidade do Rio de Janeiro Eles tambeacutem viviam entre duas culturas a sua de origem (perifeacuterica suburbana pouco letrada) e aquela oferecida pelo curso de Letras com um peso grande numa tradiccedilatildeo literaacuteria (branca elitista beletrista) O sucesso no curso dependia muitas vezes de um rompimento com sua cultura de origem colocada num segundo plano Em lugar da ruptura o que se esperava ali era na verdade que esses jovens e futuros professores conseguissem ao longo do curso compor uma identidade complexa em construccedilatildeo percebendo que ldquoa leitura na realidade eacute uma promessa de natildeo pertencer somente a um pequeno ciacuterculordquo (PETIT 2008 p96)

Consideraccedilotildees finais

A atuaccedilatildeo como professor de liacutengua portuguesa e literatura na escola de educaccedilatildeo baacutesica requer profissionais capazes de em linhas gerais 1) formar leitores na escola 2) fazer com que crianccedilas e jovens escrevam com desenvoltura diversos gecircneros textuais 3) levar crianccedilas e jovens a refletirem sobre usos linguiacutesticos sobre a adequaccedilatildeo de linguagem em diferentes contextos Por outro lado devemos pensar que muitos licenciandos em Letras que estudaram em escolas puacuteblicas do Rio de Janeiro tiveram aulas de liacutengua

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portuguesa e literatura que podem ser sintetizadas da seguinte forma 1) ausecircncia de leituras ou quando muito informaccedilotildees enciclopeacutedicas sobre autores e obras 2) uma escrita voltada unicamente para a praacutetica de gecircneros escolares como a dissertaccedilatildeo 3) ensino normativo da liacutengua enfatizando-se a nomenclatura gramatical

O ensino de liacutengua literatura e produccedilatildeo textual deveria ser percebido de uma maneira articulada pois a separaccedilatildeo desses conteuacutedos em disciplinas (Gramaacutetica Redaccedilatildeo e Literatura) traz para o ambiente escolar uma divisatildeo especializaccedilatildeo que pouco contribui para o aluno da educaccedilatildeo baacutesica Trata-se de uma pedagogia da fragmentaccedilatildeo que delega ao aluno nesse caso da educaccedilatildeo baacutesica a tarefa de juntar as peccedilas qual eacute a relaccedilatildeo das oraccedilotildees subordinadas com a obra de Graciliano Ramos Qual eacute a relaccedilatildeo de tudo isso com a uacuteltima proposta de produccedilatildeo textual do professor de Redaccedilatildeo

Tal pedagogia da fragmentaccedilatildeo encontra amplo espaccedilo nas licenciaturas Desde cedo os estudantes das graduaccedilotildees se veem obrigados a se especializarem para conseguirem bolsas de iniciaccedilatildeo cientiacutefica ou para depois atuarem nas escolas como professores de determinada aacuterea liacutengua literatura ou redaccedilatildeo10 Na contramatildeo de tudo isso as teorias sobre o ensino da liacutengua mostram que eacute impossiacutevel discutir aspectos gramaticais fora do texto que o ensino da literatura pode ser mais produtivo quando articulado com a escrita e que a escrita literaacuteria pode levar a um entendimento melhor dos mecanismos utilizados nas obras literaacuterias (BUNZEN 2006 MARCUSCHI 2008 ANTUNES 2009 GERALDI 2014)

Pede-se ao estudante de Letras que entenda esse quadro complexo do ensino de liacutengua portuguesa literatura e produccedilatildeo textual no Brasil quando esse natildeo eacute o foco do curso que ele faz quando em seu proacuteprio curso natildeo haacute momentos de diaacutelogos e trocas entre essas ldquodiferentesrdquo aacutereas

Some-se a isso a divisatildeo arbitraacuteria entre as disciplinas que satildeo propriamente do Curso de Letras ndash revestidas de prestiacutegio ndash e as disciplinas oferecidas pela Faculdade de Educaccedilatildeo muitas vezes desvalorizadas ou postas em segundo plano Atente-se para o fato de que essa separaccedilatildeo eacute marcada inclusive no plano geograacutefico a Faculdade de Letras na Ilha do Fundatildeo (Zona Norte da cidade) a Faculdade de Educaccedilatildeo na Praia Vermelha (Zona Sul da cidade) Para marcar melhor essa fragmentaccedilatildeo eacute preciso lembrar que o Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da UFRJ tambeacutem estaacute localizado na Zona Sul da cidade numa das regiotildees de mais difiacutecil acesso para os moradores da Zona Norte nas proximidades da Lagoa Rodrigo de Freitas

Tudo isso parece apontar para uma necessidade imperiosa de se rever a articulaccedilatildeo entre teorias e praacuteticas pois como jaacute apontava Joatildeo Wanderley Geraldi num verdadeiro claacutessico do ensino de liacutengua literatura e redaccedilatildeo

Qualquer proposta metodoloacutegica eacute a articulaccedilatildeo de uma concepccedilatildeo de mundo e de educaccedilatildeo ndash e por isso uma concepccedilatildeo de ato poliacutetico ndash e

10 Essa divisatildeo eacute ainda vivenciada em muitas escolas puacuteblicas do Rio de Janeiro que possuem um professor para cada ldquoaacutereardquo A cultura acadecircmica tambeacutem estimula essa fragmentaccedilatildeo por meio da precoce ldquoespecializaccedilatildeo do graduandordquo que adere a uma linha de pesquisa de liacutengua ou de literatura e verbaliza isso ao dizer ldquoeu sou da liacutenguardquo ldquoeu sou da literaturardquo

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uma concepccedilatildeo epistemoloacutegica do objeto de reflexatildeo ndash no nosso caso a linguagem ndash com as atividades desenvolvidas em sala de aula (GERALDI 2011 p128)

Ora essa afirmativa que pode beirar a obviedade ndashpropostas metodoloacutegicas articulam escolhas poliacuteticas ndash publicada haacute mais de trinta anos num livro voltado para professores de educaccedilatildeo baacutesica ganha contornos dramaacuteticos de atualidade no contexto que vivenciamos de formaccedilatildeo de professores de Letras A natildeo percepccedilatildeo das realidades desses jovens que chegam agrave universidade para se tornarem professores e a ausecircncia de tentativa de formaacute-los leitores numa clave complexa tecircm levado agrave repeticcedilatildeo de praacuteticas de escrita e leitura contraditoacuterias com a ideia libertadora e democraacutetica que deveria permear as relaccedilotildees entre teoria e praacutetica na universidade

Todas essas questotildees soacute podem ser pensadas num quadro mais complexo de formaccedilatildeo de professores Talvez o proacuteprio nome Letras que eacute dado para este curso aponte para uma direccedilatildeo diferente daquela que seria a de um curso que se preocupasse em formar professores para atuarem na educaccedilatildeo baacutesica Talvez essa palavra traga mesmo um forte conteuacutedo elitista ligado ao ensino da literatura como algo para poucos11

Referecircncias

ANTUNES I Liacutengua texto e ensino ndash outra escola possiacutevel Satildeo Paulo Paraacutebola 2009

BUNZEN C MENDONCcedilA M Portuguecircs no ensino meacutedio e a formaccedilatildeo do professor Satildeo Paulo Paraacutebola 2006

CULTURA POLIacuteTICA (Revista mensal de Estudos Brasileiros) Rio de Janeiro Departamento de Imprensa e Propaganda Ano 1 a 3 (1941-1943) Disponiacutevel em httpcpdocfgvbr

COLOMER T Andar entre livros a leitura literaacuteria na escola Satildeo Paulo Global 2007

DALVI M A REZENDE N L JOVER-FALEIROS R (Org) Leitura de literatura na escola Satildeo Paulo Paraacutebola 2013

GERALDI J W et al O texto na sala de aula 5ed Satildeo Paulo Aacutetica 2011

KLEIMAN Angela Letramento identidade e formaccedilatildeo do professor Rio de Janeiro IV Encontro de Ensino e Aprendizagem em Liacutenguas e Literaturas 2017 (palestra)

11 Este ano de 2017 foi marcado por uma seacuterie de movimentos em torno da reforma curricular do Curso de Letras da UFRJ Muitas dessas questotildees foram discutidas no I Congresso Interno da Faculdade de Letras e nas reuniotildees do Nuacutecleo Docente Estruturante Acredito que houve um grande avanccedilo nas discussotildees e um maior entendimento da necessidade da universidade aproximar-se da escola de educaccedilatildeo baacutesica reconhecendo nela o locus de formaccedilatildeo de uma cultura profissional Neste sentido a universidade estaacute em processo de construccedilatildeo de um complexo de formaccedilatildeo com o a contribuiccedilatildeo do professor Antoacutenio Noacutevoa (Universidade de Coimbra) que visa criar uma relaccedilatildeo mais estreita com as redes de ensino Nem tudo eacute penumbra haacute muitas faiscaccedilotildees de esperanccedila

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MARCUSCHI L A Produccedilatildeo textual anaacutelise de gecircneros e compreensatildeo Satildeo Paulo Paraacutebola 2008

ANDREacute Marli O trabalho docente do professor formador e as praacuteticas curriculares da licenciatura na voz dos estudantes In SANTOS Luciacuteola Liciacutenio de Castro Paixatildeo FAVACHO Andreacute Maacutercio Picanccedilo (orgs) Poliacuteticas e praacuteticas curriculares desafios contemporacircneos Curitiba CRV 2012 (p35-49)

PETIT M Os jovens e a leitura uma nova perspectiva Satildeo Paulo Editora 34 2008

REBELO M Cenas da vida brasileira 2ed Rio de Janeiro Joseacute Olympio 2010

RODELLA Gabriela O professor de portuguecircs e a literatura ndash relaccedilotildees entre formaccedilatildeo haacutebitos de leitura e praacuteticas de ensino Satildeo Paulo Alameda 2013

ROUXEL A LANGLADE G REZENDE N L (Org) Leitura subjetiva e ensino de literatura Satildeo Paulo Alameda 2013

Recebido em 29 de abril de 2017

Aceito em 23 de outubro de 2017

Marcos Scheffel

Professor de Didaacutetica e Praacutetica de Ensino de Portuguecircs e Literatura da UFRJ desde 2013 Doutor em Teoria Literaacuteria pela Universidade Federal de Santa Catarina (2011) Atuou na educaccedilatildeo baacutesica em Santa Catarina entre 2000 e 2008 marcosscheffel53gmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Estaacutegio supervisionado em Letras da UFGD mediando leituras e formando leitores

Supervised Internship in Letras at UFGD Mediating Readings and Forming Readers

Praacutecticas supervisadas en Letras de la UFGD mediando lecturas y formando lectores

Alexandra Santos Pinheiro Universidade Federal da Grande Dourados

Resumo

No presente artigo analisamos o Estaacutegio Supervisionado em Literatura pela perspectiva da formaccedilatildeo de leitores Apoacutes apresentarmos o regimento que norteia o componente curricular no curso de Letras refletimos sobre a dificuldade demonstrada pelos estagiaacuterios de proporem planos de intervenccedilatildeo que visem a formaccedilatildeo de leitores da educaccedilatildeo baacutesica Identificamos nesta dificuldade duas questotildees relevantes a pouca relaccedilatildeo estabelecida ao longo da graduaccedilatildeo com as disciplinas voltadas ao texto literaacuterio e a falta de graduandos que se constituam como leitores Palavras-chave Literatura Estaacutegio leitores

Abstract

In the present article we analyze the Supervised Internship in Literature from the perspective of the formation of readers After presenting the regiment that guides this course in the Letras undergraduate program we reflect on the difficulty the interns have to propose intervention plans that aim at the formation of readers within school education In this difficulty we identified two important issues the low commitment tounder graduate courses focused on the literary text and the lack of graduates who are readers themselves Keywords Literature Internship readers

Resumen

En este trabajo se analiza las praacutecticas supervisadas en la literatura desde la perspectiva de la formacioacuten de lectores Tras la presentacioacuten del regimiento que guiacutea el componente curricular en el curso de Letras se reflexiona sobre la dificultad de los alumnos para proponer planes de accioacuten destinados a la formacioacuten de los lectores de la educacioacuten baacutesica Se identifican en esta dificultad dos cuestiones importantes la poca relacioacuten que se establece a lo largo de la graduacioacuten con cursos orientados al texto literario y la falta de alumnos en formacioacuten que constituyan en lectores Palabras clave Literatura Praacutecticas lectores

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1 Palavras iniciais

Na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) o Estaacutegio de Literatura e de Liacutengua Portuguesa eacute pautado por um Regulamento de Estaacutegio (2009) normas que regem a praacutetica de estaacutegio nas duas habilitaccedilotildees do curso de Letras da Faculdade de Artes e Letras (FACALE) dessa universidade Literatura e Inglecircs como liacutengua estrangeira Com base nas normas os alunos propotildeem um plano de aulas Nestes planos os professores orientadores de Estaacutegio Supervisionado de Liacutengua Portuguesa e de Literatura priorizam um trabalho que envolva ensino pesquisa e extensatildeo As orientaccedilotildees em sala de aula a investigaccedilatildeo do funcionamento das instituiccedilotildees escolares de Ensino Fundamental e Meacutedio e a reflexatildeo sobre as observaccedilotildees e regecircncias resultam na elaboraccedilatildeo dos planos No processo de elaboraccedilatildeo os acadecircmicos satildeo orientados a pensar a partir da concepccedilatildeo teoacuterica dos gecircneros textuais que para Bakhtin (2000 p 279) eacute ldquoum enunciado de natureza histoacuterica sociointeracional ideoloacutegica e linguiacutesticardquo E acrescenta ldquoa utilizaccedilatildeo da liacutengua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e uacutenicos que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humanardquo (BAKHTIN 2000 p 279)

Acreditamos ser o estaacutegio para muitos graduandos1 o responsaacutevel por lhes apresentar a realidade escolar e por incutir-lhes o sentimento de que os conhecimentos adquiridos ao longo da graduaccedilatildeo natildeo satildeo suficientes para o exerciacutecio docente mostrando-lhe assim a necessidade de constante pesquisa

Selma Pimenta (2006) constata um fato que muitas vezes pode ser percebido nos cursos de licenciatura do ensino superior Conforme a autora os estagiaacuterios ficam confusos durante a regecircncia porque percebem que os conteuacutedos aprendidos durante o curso natildeo condizem com a realidade da sala de aula dos niacuteveis de ensino Fundamental e Meacutedio Se pensarmos no curso de licenciatura em Letras quantos graduados diante de sua primeira experiecircncia profissional sentem-se perdidos diante dos conteuacutedos a serem ministrados A carga horaacuteria destinada ao estudo da linguiacutestica natildeo lhes daacute subsiacutedios para trabalhar com alunos que muitas vezes chegam ao final do Ensino Fundamental ou mesmo do Ensino Meacutedio sem as capacidades necessaacuterias para estruturar um texto escrito com o miacutenimo de coerecircncia e coesatildeo E o que dizer das aulas de Teoria Literaacuteria Como ler com os educandos do Ensino Meacutedio as obras de Machado de Assis Guimaratildees Rosa Joatildeo Cabral de Melo Neto cacircnones que no discurso dos professores de teoria literaacuteria pareciam tatildeo inteligiacuteveis mas que para a maioria dos ldquoleitoresrdquo satildeo incompreensiacuteveis

O Estaacutegio Supervisionado precisaria possibilitar essa reflexatildeo Deveria representar o momento em que o acadecircmico pensaria o curso de Letras o conhecimento alcanccedilado e as limitaccedilotildees dele (graduando) e de seu curso diante da realidade que o espera do lado de fora da Universidade O Estaacutegio deveria oferecer ao futuro licenciado a oportunidade de

1 Muitos graduandos natildeo podem participar do Programa de Bolsa de Incentivo agrave Docecircncia (PIBID) que existe desde 2009 oferecendo ao aluno oportunidade de muitas horas de atividades nas escolas devido agrave necessidade de trabalhar para sustentar ou contribuir com o sustento de suas famiacutelias

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compreender que o conteuacutedo teoacuterico do curso eacute tatildeo importante quanto pensar a melhor metodologia para desenvolver com os seus futuros alunos em quaisquer niacuteveis

Em nossa instituiccedilatildeo aleacutem da Lei Federal que parametriza os estaacutegios em niacutevel nacional nordm 117882008 de 25092008 temos a Resoluccedilatildeo nordm 118 - CEPEC de 13092007 Delineadas as leis que nortearamnorteiam o estaacutegio no Brasil ficam as questotildees como ele deve ser feito Como fazer e para quecirc Pensando nas questotildees metodoloacutegicas na UFGD como na maioria das licenciaturas a disciplina de Estaacutegio Supervisionado eacute ministrada nos dois uacuteltimos anos do curso No 3deg ano faz-se o estaacutegio de observaccedilatildeo e no 4deg ano o estaacutegio de regecircncia ambos no Ensino Fundamental e Meacutedio Em geral para o cumprimento das atividades e obtenccedilatildeo de uma meacutedia final satisfatoacuteria o estudante precisa

a assistir a uma quantidade X de aulas em escolas dos ensinos fundamental e meacutedio2

b escolher um tema a ser aprofundado teoacuterico-metodologicamente numa sala de aula do ensino baacutesico

c construir planos de aula para a regecircncia Neste plano os graduandos devem apoiando-se nas teorias linguiacutesticas e literaacuterias estudadas durante o curso explicitar a metodologia referencial teoacuterico justificativa objetivos e avaliaccedilatildeo

d participar de seminaacuterios e discussotildees durante o ano letivo para levantamento de problemas observados em sala de aula e suas possiacuteveis intervenccedilotildees

e entregar relatoacuterio de estaacutegio que em siacutentese vai mostrar o percurso do estudante em todas as atividades elencadas

Para o Estaacutegio Supervisionado em Literatura I satildeo previstas a observaccedilatildeo e a regecircncia no Ensino Fundamental do 6ordm ao 9ordm ano e para o Estaacutegio Supervisionado em Literatura II a observaccedilatildeo e a regecircncia no Ensino Meacutedio Nas reformulaccedilotildees jaacute feitas no projeto poliacutetico pedagoacutegico como ementa temos

a reflexotildees teoacuterico-metodoloacutegicas acerca do Estaacutegio Supervisionado e do ensino de literatura nos uacuteltimos anos do Ensino Fundamental visando agrave formaccedilatildeo do profissional de Letras

b Usos de tecnologia na educaccedilatildeo

c Normas e legislaccedilatildeo

No plano de aula o estudante deve apresentar um problema de ensino voltado para a mediaccedilatildeo do texto literaacuterio Deve o estudante basear-se no referencial teoacuterico que o guiaraacute durante o desenvolvimento do plano numa determinada realidade escolar e especificar a

2 Pela norma que regulamenta o estaacutegio supervisionado a Comissatildeo de Estaacutegio (COES) acordou nos seguintes termos a carga horaacuteria para o estaacutegio Liacutengua Portuguesa ndash 20 horas no Ensino Fundamental e 20 horas no Ensino Meacutedio Liacutengua Inglesa ndash 20 horas no Ensino Fundamental ou no Ensino Meacutedio eou em escolas de idiomas Literatura ndash 20 horas no Ensino Fundamental eou no Ensino Meacutedio

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metodologia seus objetivos e a que conclusatildeo pretende chegar Na praacutetica acumulamos a cada ano as dificuldades de muitos graduandos em propor e executar uma atividade de formaccedilatildeo de leitores ou de mediaccedilatildeo de leitura Os obstaacuteculos se fossem apenas relacionados agrave fundamentaccedilatildeo teoacuterica seriam compreensiacuteveis poreacutem eles se refletem tambeacutem na escolha dos textos literaacuterios Nos debates em classe a maioria admite natildeo assumir a praacutetica da leitura e reconhece que lhes falta repertoacuterio de obras literaacuterias para iniciar a preparaccedilatildeo de uma aula que objetive a mediaccedilatildeo da leitura Os limites apresentados infelizmente acompanham alguns dos graduandos em seu percurso profissional que continuaraacute marcado como veremos a seguir pela ausecircncia da praacutetica de leitura literaacuteria

2 Estaacutegio e ensino de literatura entre a teoria e a praacutetica

Se no Brasil o Letramento eacute definido como ldquoEstado ou condiccedilatildeo de quem natildeo apenas sabe ler e escrever mas cultiva e exerce as praacuteticas sociais que usam a escritardquo (SOARES 2007 p 17) o letramento literaacuterio seria visto entatildeo como estado ou condiccedilatildeo de quem natildeo apenas eacute capaz de ler poesia prosa ou drama mas dele se apropria efetivamente por meio da experiecircncia esteacutetica Sempre que possiacutevel dialogamos com Barthes (1980) para quem o texto literaacuterio eacute ldquoum monumentordquo capaz de incorporar as demais imagens Abramovich trabalha na mesma direccedilatildeo e afirma

Eacute atraveacutes duma histoacuteria que se podem descobrir outros lugares outros tempos outros jeitos de agir e de ser outra eacutetica outra oacutetica Eacute ficar sabendo Histoacuteria Geografia Filosofia Poliacutetica Sociologia sem precisar saber o nome disso tudo e muito menos achar que tem cara de aula (ABRAMOVICH 1995 p 17)

Tanto o discurso de Barthes quanto o de Abramovich contribuem para a defesa da literatura e da formaccedilatildeo de leitores Depoimentos como o do filoacutesofo Sartre amparam esses argumentos Sartre rememora sua infacircncia camponesa ele que nunca mexeu na terra nem jogou pedras nos passarinhos Contudo para o autor os livros foram seus passarinhos seus ninhos animais de estimaccedilatildeo

As densas lembranccedilas e o doce contra-senso das crianccedilas camponesas em vatildeo os procuraria em mim Nunca fucei a terra nem procurei ninhos natildeo colecionei plantas nem joguei pedras nos passarinhos No entanto os livros foram meus passarinhos e meus ninhos meus animais de estimaccedilatildeo meu estaacutebulo e meu campo (SARTRE 1993 apud SANTIAGO 1978 p 23)3

3 Cf o trecho original ldquoLes souvenirs touffus et la douce deacuteraison des enfances paysannes en vain les chercherais-je en moi Je nrsquoai jamais gratteacute la terre ni quecircteacute des nids je nrsquoai pasher boriseacute ni lanceacute des Pierre sauxois e aux Mais les libre sonteacuteteacute me sois e aux et mes nids mes becirctes domestiques moneacutetable et ma campagnerdquo

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Nesse sentido percebemos que eacute preciso quando se coloca a literatura e seu ensino em pauta defender o seu espaccedilo nas praacuteticas escolares e assegurar a sua importacircncia para a formaccedilatildeo integral do cidadatildeo Principalmente em realidades como a enfrentada pelo estado do Mato Grosso do Sul que no ano de 2017 excluiu a literatura do curriacuteculo do ensino meacutedio sob o pretexto de que ela seria incorporada pela disciplina de Liacutengua Portuguesa Ao longo da experiecircncia com projetos de Formaccedilatildeo Continuada de professores temos percebido que no ambiente escolar as praacuteticas pedagoacutegicas do ensino de literatura colaboram para um processo que estaacute longe de formar leitores As praacuteticas escolares de muitos professores privilegiam o fragmento literaacuterio o recorte de um texto literaacuterio feito por algueacutem e natildeo o livro Desta forma os fragmentos literaacuterios presentes nos livros didaacuteticos tiram da escola o livro que congrega autor e obra sociedade e mundo representado cultura e economia Aleacutem disso hoje o livro tambeacutem concorre com os meios de comunicaccedilatildeo e com as tecnologias na aacuterea da informaacutetica que alguns pesquisadores vatildeo apontar como obstaacuteculos a serem vencidos no processo de formaccedilatildeo de leitores literaacuterios

Autores decididos a amenizar os problemas da (natildeo) leitura indicam aos professores atividades de praacutetica de leitura ensinam como selecionar os livros explicam sobre a psicologia que norteia a faixa etaacuteria de cada aluno Mas apesar de tudo a ldquocriserdquo ainda persiste e eacute tema recorrente nas mesas de debate de eventos locais regionais nacionais e internacionais a exemplo do Congresso de Leitura do Brasil (COLE)4 Nos documentos oficiais como nas Orientaccedilotildees Curriculares (2006) assegura-se a presenccedila do texto literaacuterio nos Ensinos Fundamental e Meacutedio Eacute possiacutevel perceber nesses textos oficiais que existe uma dimensatildeo do que poderia ser melhorado em sala de aula

No Ensino Fundamental (principalmente da 5ordf agrave 8ordf seacuterie) caracteriza-se por uma formaccedilatildeo menos sistemaacutetica e mais aberta do ponto de vista das escolhas na qual se misturam livros que indistintamente denominamos ldquoliteratura infanto-juvenilrdquo a outros que fazem parte da literatura dita ldquocanocircnicardquo legitimada pela tradiccedilatildeo escolar inflexatildeo que quando acontece se daacute sobretudo nos uacuteltimos anos desse segmento (7ordf ou 8ordf seacuterie) (BRASIL 2006 p 46)

Se no Ensino Fundamental vai predominar a liberdade de escolha e a leitura de fruiccedilatildeo no Meacutedio

constata-se um decliacutenio da experiecircncia de leitura de textos ficcionais seja de livros da literatura infanto-juvenil seja de alguns poucos autores representativos da literatura brasileira selecionados que aos poucos cede lugar agrave histoacuteria da Literatura e seus estilos (BRASIL 2006 p57)

Ao longo do documento natildeo se identifica o conceito de leitura que deveria nortear o ensino de literatura A nosso ver seria interessante observar que o ato de ler eacute um processo

4 Todos os anais das ediccedilotildees do COLE podem ser acessados em httpalborgbranais-cole

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trabalhoso que exige ldquoesforccedilo treino capacitaccedilatildeo e acumulaccedilatildeordquo como explicita Ricardo Azevedo (2004 p 34) Eni Orlandi (2006 p 23) pela perspectiva da Anaacutelise do Discurso define a leitura como ldquocompreensatildeo natildeo apenas decodificaccedilatildeordquo A leitura seria o momento criacutetico da construccedilatildeo do texto um processo de interaccedilatildeo verbal que faz desencadear a assimilaccedilatildeo dos sentidos O leitor por sua vez seria aquele que consegue atribuir sentido a um diversificado nuacutemero de textos Eacute leitor aquele que devido agrave familiaridade com a escrita consegue diferenciar os tipos de gecircneros literaacuterios e natildeo literaacuterios e os motivos que o levam a escolher uma leitura em detrimento da outra

Portanto para que a leitura seja inserida como uma forma de aproveitar o tempo livre ou seja para que seja vista como lazer faz-se necessaacuterio que o indiviacuteduo se torne um leitor e esse processo como se vecirc exige esforccedilo e dedicaccedilatildeo Eacute necessaacuterio saber por que lemos precisamos atribuir sentido ao que lemos e isso exige praacutetica treino acuacutemulo de informaccedilatildeo raciociacutenio A arte literaacuteria deveria fazer parte do ambiente familiar e escolar desde os primeiros meses de vida Essa afirmaccedilatildeo pode parecer utoacutepica mas natildeo eacute Ela estaacute fundamentada em um referencial teoacuterico que permite acreditar que a democratizaccedilatildeo do ensino exigiria um repensar sobre nossa histoacuteria socioeconocircmica de exclusatildeo A leitura literaacuteria oferece meios de enxergar a realidade por outro prisma ela cria possibilidades para si e para o ambiente que a cerca Entretanto a desigualdade econocircmica dificulta a criaccedilatildeo de um ambiente de leitura mostrando que a literatura a situaccedilatildeo socioeconocircmica e as praacuteticas culturais devem ser pensadas de forma indissociada

Se antes a exclusatildeo referia-se principalmente agrave dificuldade do acesso ao livro hoje a tecnologia eacute apontada como uma ldquovilatilderdquo do ensino de literatura

De um lado os tecnoacutefilos veem a tecnificaccedilatildeo do literaacuterio como algo inevitaacutevel diante do qual todos devem se curvar sem resistecircncia Do outro haacute os que desconfiam do novo suporte com medo de que o texto literaacuterio apresentado na tela perca a aura da Literatura (FREITAS 2003 p 156)

Alberto Manguel (1997) lembra que uma nova tecnologia natildeo destroacutei a que lhe antecede Afirma que o surgimento da imprensa acompanhado por negativas previsotildees natildeo erradicou o gosto pelo texto impresso Ele tambeacutem observou que ao mesmo tempo em que os livros se tornavam de faacutecil acesso e mais gente aprendia a ler mais pessoas tambeacutem aprendiam a escrever Em relaccedilatildeo agrave literatura e agrave internet Maria Teresa de Assunccedilatildeo Freitas lembra que

O mundo da Internet natildeo se constitui neste espaccedilo como condiccedilotildees de oferecer a um simples toque no teclado amplos e variados acervos aos seus usuaacuterios Diante dessa multiplicidade de oferta a escolha pessoal natildeo eacute o iniacutecio do processo de navegaccedilatildeo pelos mares da Literatura (FREITAS 2003 p 169)

Essa citaccedilatildeo acende dois questionamentos Por um lado qual o puacuteblico escolar que navega via internet ldquopelos mares da Literaturardquo As salas de tecnologia instaladas

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na maioria das escolas puacuteblicas brasileiras natildeo satildeo suficientes para atender a grande quantidade de alunos de cada instituiccedilatildeo escolar Por outro percebemos no diaacutelogo com os professores que diante do computador a maioria dos alunos natildeo demonstra familiaridade com a tecnologia exigindo do docente grande malabarismo para desenvolver as atividades propostas

Desta forma a presenccedila do livro e da tecnologia vai depender da concepccedilatildeo pedagoacutegica do professor geralmente o principal mediador entre a leitura literaacuteria e o educando Ao professor cabe explorar as potencialidades desse tipo de texto criando as condiccedilotildees para que o encontro do aluno com a literatura culmine em uma busca plena de sentido na leitura do texto literaacuterio Por essa perspectiva tem-se o ensino da literatura pautado no Letramento ou seja na busca do conhecimento a partir do texto literaacuterio pelo proacuteprio aluno e no cotidiano social em que todos estatildeo inseridos O problema como mencionado anteriormente eacute que quando o educador atua em sala ele muitas vezes baseia-se nos fragmentos literaacuterios encontrados nos livros didaacuteticos e na siacutentese das caracteriacutesticas literaacuterias na qual determinado autor e obra estatildeo inseridos5 Aleacutem de priorizar fragmentos literaacuterios muitos docentes desprezam as vivecircncias sociais de seus educandos em geral telespectadores de seacuteries como Malhaccedilatildeo6 dentre outras

Alunos que entendem da constituiccedilatildeo dos personagens e que portanto fazem a sua seleccedilatildeo pessoal dos filmes mais marcantes Eacute a partir dessa vivecircncia que o texto literaacuterio da tradiccedilatildeo canocircnica ou popular deveria ser inserido em sala de aula

Para chegar a essa concepccedilatildeo de ensino de literatura seria necessaacuterio principalmente a presenccedila de professores leitores Ao enfocar a importacircncia do professor para a formaccedilatildeo de leitores literaacuterios natildeo desejamos atribuir somente a ele a responsabilidade por despertar nos educandos o prazer pela leitura literaacuteria Eacute sabido que essa eacute uma questatildeo no Brasil comprometida pela desigualdade social pelo preccedilo dos livros dentre outros fatores Consequentemente a maioria dos alunos de escolas puacuteblicas teraacute os primeiros contatos com livros na escola o que torna significativo o papel desse mediador Da mesma forma que se constata essa realidade percebe-se nos cursos de formaccedilatildeo continuada (e no uacuteltimo ano da graduaccedilatildeo em Letras) que raramente o professor de Liacutengua Portuguesa e de Literatura lembra-se do uacuteltimo livro literaacuterio lido na iacutentegra Quando perguntamos aos mediadores e aos futuros mediadores da leitura literaacuteria o que eacute literatura como selecionam o texto a ser discutido como acontecem suas aulas de Literatura e qual o uacuteltimo livro que leram ou que estatildeo lendo geralmente instaura-se um certo constrangimento

5 Os trabalhos orientados na graduaccedilatildeo e no mestrado sustentam a afirmaccedilatildeo Para aprofundamento no tema sugerimos Leitoras de Best-sellers o que determina suas escolhas dissertaccedilatildeo de mestrado defendida por Mayara Regina Pereira Dau em 2012 pela Universidade Federal da Grande Dourados Literatura e Memoacuteria a formaccedilatildeo de leitoras no Ensino de Jovens e Adultos dissertaccedilatildeo de mestrado defendida por Iva Carla Aveline Teixeira dos Santos em 2017 pela Universidade Federal da Grande Dourados

6 Uma seacuterie televisiva produzida pela Rede Globo desde 1995 ateacute o presente momento

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A maioria escolhe a partir da orientaccedilatildeo do livro didaacutetico natildeo aborda a literatura produzida em seu estado ou cidade e natildeo dialoga com a Academia de Letras de seu municiacutepio Os acadecircmicos escritores da cidade poderiam ser convidados para participar das aulas do professor explicando aos alunos o processo de escrita de um texto literaacuterio e da produccedilatildeo de um livro por exemplo Acerca do que leem raramente uma leitura literaacuteria eacute citada A maioria quando estaacute lendo indica livros classificados como autoajuda A preferecircncia por este tipo de literatura indica pontos importantes o preccedilo a sintaxe e o vocabulaacuterio desses livros satildeo geralmente mais acessiacuteveis

Outro aspecto impressionante refere-se ao diaacutelogo entre a graduaccedilatildeo e a praacutetica docente Salientamos nos cursos de formaccedilatildeo continuada a importacircncia de utilizar o conhecimento da teoria literaacuteria para ensinar a ler literatura e a necessidade de instigar o educando a perceber os elementos que marcam os gecircneros literaacuterios e como esses elementos se relacionam no texto

Nesse momento fica expliacutecito que a maioria natildeo consegue se lembrar das aulas de teoria recebidas ao longo da trajetoacuteria universitaacuteria especialmente na graduaccedilatildeo em Letras Ao inveacutes de questionar-se a maioria prefere afirmar que a deficiecircncia natildeo estaacute em saber (ou natildeo) a teoria que marca cada gecircnero mas na falta de interesse dos educandos Afirmam que natildeo haacute como incentivaacute-los a gostar de ficccedilatildeo Todavia satildeo esses mesmos jovens que alimentam a audiecircncia das seacuteries para adolescentes O que satildeo essas seacuteries Satildeo ficccedilotildees enredos pautados em personagens que correspondem aos aspectos fiacutesicos e psicoloacutegicos dos jovens que acompanham as accedilotildees Tambeacutem se trata de uma ficccedilatildeo marcada por temas claacutessicos como amor traiccedilatildeo o bem e o mal acrescidos de temas modernos como a questatildeo do consumismo e da violecircncia urbana Munido de conhecimento teoacuterico o professor teria pouca dificuldade para mostrar a esses educandos tidos como desinteressados pela leitura literaacuteria como a praacutetica social e familiar e as escolhas dos programas que assistem na TV afirmam o contraacuterio

Tal reflexatildeo gera novo impasse como formar professores leitores O professor deveria perceber que a praacutetica de leitura soacute pode ser atingida a partir de uma reflexatildeo pautada num referencial teoacuterico sustentado pela importacircncia da literatura para a formaccedilatildeo social psicoloacutegica e cognitiva do cidadatildeo por outro lado deveria ter uma praacutetica docente sustentada por pesquisa Assumimos o respeito pelos graduandos e pelos docentes que encontramos nas formaccedilotildees continuadas Por isso eacute impossiacutevel deixar de indagar com uma jornada de trabalho de 40 horas semanais como assumir a postura de professor leitor e pesquisador Eacute preciso dar condiccedilotildees para que o trabalho do professor possa ser mais significativo

Feitas tais ponderaccedilotildees eacute preciso pensar entatildeo em como proporcionar condiccedilotildees para que se tenha professores-leitores e pesquisadores Aleacutem das condiccedilotildees estruturais de trabalho (salaacuterio carga horaacuteria) partimos do pressuposto de que um curso de licenciatura por mais estruturado que seja natildeo forma integralmente um professor Uma vez que a formaccedilatildeo eacute um processo contiacutenuo o processo de preparaccedilatildeo para o iniacutecio da carreira docente natildeo absorve toda a dinacircmica necessaacuteria para a efetiva formaccedilatildeo desses

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profissionais Na realidade independentemente do niacutevel em que lecione o professor faz parte de um grupo de profissionais que deve se atualizar constantemente

Os egressos dos cursos de Letras e de outras licenciaturas contam com os cursos de formaccedilatildeo continuada ofertados em projetos de extensatildeo Nada mais justo uma vez que ao se deparar com a dinacircmica da praacutetica os novos (e os mais velhos tambeacutem) educadores sentem-se desorientados e angustiados Nesse sentido os cursos de formaccedilatildeo continuada possibilitam apreender as dificuldades teoacuterico-metodoloacutegicas da praacutetica dos professores da Educaccedilatildeo Baacutesica Assim sem o engajamento de professores leitores tambeacutem se torna difiacutecil explicar que o letramento literaacuterio deve partir das praacuteticas de leitura dos alunos (novelas filmes diaacuterios desenhos animados) para leituras mais elaboradas que exigem um esforccedilo maior de interpretaccedilatildeo

As escolas satildeo instituiccedilotildees agraves quais a sociedade delega a responsabilidade de prover as novas geraccedilotildees das habilidades conhecimentos crenccedilas valores e atitudes consideradas essenciais agrave formaccedilatildeo de qualquer cidadatildeo Mas com base nas pesquisas de Kleiman (20012003) Rojo (2006) Soares (2003) eacute possiacutevel afirmar que a relaccedilatildeo entre escola e letramento eacute complexa Haacute uma espeacutecie de ldquocontrolerdquo da escola ao inveacutes de expansatildeo de praacuteticas sociais O letramento escolar eacute insuficiente para medir e avaliar as habilidades de leitura e de escrita Em paiacuteses como o Brasil o funcionamento inconsistente e discriminatoacuterio da sociedade gera padrotildees muacuteltiplos e diferenciados de aquisiccedilatildeo do letramento

Desse modo tendo ciecircncia deste tipo de letramento efetuado nas escolas seria significativo avanccedilar para praacuteticas sociais que marcam a vida dos sujeitos envolvidos Entendemos assim que o docentediscente inserido em praacuteticas de leituraescrita de gecircneros diversos que circulam socialmente (da esfera literaacuteria e natildeo literaacuteria como sugerem os Paracircmetros Curriculares Nacionais ndash PCN 1998) deve ser considerado uma pessoa letrada Em se tratando do letramento literaacuterio fixamos a importacircncia de pensar em vaacuterias questotildees o acesso aos livros a formaccedilatildeo de professores a valorizaccedilatildeo do livro dentro da famiacutelia e a questatildeo da tecnologia para citar apenas as que foram abordadas ao longo desse debate Diante de uma sociedade tecnoloacutegica com importantes descobertas cientiacuteficas em que o indiviacuteduo desde muito cedo tem acesso agrave internet e a partir dela ouve muacutesica joga assiste a filmes conhece lugares e pessoas por que insistir na literatura (no livro literaacuterio) Por que se empenhar para que nossos alunos (e noacutes tambeacutem) tenhamos na obra literaacuteria uma opccedilatildeo para o prazer para o conhecimento e para a formaccedilatildeo subjetiva e social E por que insistir na afirmaccedilatildeo de que no Brasil se lecirc pouco

Regina Zilberman (1982) mostra algumas contradiccedilotildees em relaccedilatildeo agrave chamada crise de leitura De acordo com sua pesquisa nos anos 1970 quando iniciaram efetivamente as reflexotildees sobre a (natildeo) leitura acontecia o crescimento da populaccedilatildeo urbana decorrente da oferta de trabalho nas induacutestrias Esse aumento da populaccedilatildeo por sua vez exigiu uma reformulaccedilatildeo da estrutura escolar devido agrave ampliaccedilatildeo do nuacutemero de alunos Assim dentre as novas propostas da reforma de ensino instituiacuteda nesse periacuteodo o texto literaacuterio ganhou destaque em sala de aula as editoras passaram a investir na publicaccedilatildeo de obras infantis e um elevado nuacutemero de livros passou a circular nos acervos escolares

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Em 2009 de acordo com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo (FNDE) 236 milhotildees de estudantes das seacuteries finais do Ensino Fundamental foram beneficiados com o programa de distribuiccedilatildeo de livros literaacuterios Vale ressaltar que os acervos foram compostos por tiacutetulos de poemas contos crocircnicas teatro texto de tradiccedilatildeo popular romance memoacuteria diaacuterio biografia ensaio histoacuterias em quadrinhos e obras claacutessicas7

O apontamento histoacuterico apresentado e os nuacutemeros indicados pelo FNDE demonstram que aparentemente natildeo haacute lugar para a chamada crise de leitura De acordo com Zilberman (1982) a contradiccedilatildeo instalava-se na recusa agrave leitura O puacuteblico leitor em potencial natildeo demonstrava interesse pela leitura das obras literaacuterias Essa recusa infelizmente ainda eacute a motivaccedilatildeo para o debate acerca do ensino de literatura A diferenccedila eacute que ao debate satildeo acrescidos outros (natildeo) leitores os professores e a famiacutelia Talvez se deva pensar que a (natildeo) leitura eacute uma questatildeo que natildeo perpassa apenas a questatildeo pedagoacutegica pois se assim fosse a diversidade de obras que ensina a ldquoensinar a lerrdquo jaacute a teria solucionado A histoacuteria da leitura demonstra que esse assunto envolve poder poliacutetico poder econocircmico e poder social

3 Em busca de conclusotildees

Quando tratam da linguagem os Paracircmetros Curriculares Nacionais (1997) demonstram a interdisciplinaridade que a envolve lembrando que vaacuterias aacutereas do conhecimento buscam na linguagem o suporte para seus objetos de estudo De acordo com os Paracircmetros a linguagem soacute pode ser estudada em sua interaccedilatildeo social soacute existe enquanto expressatildeo comunicativa entre os sujeitos O efetivo ensino de literatura pode atender a essa expectativa A literatura eacute por natureza interdisciplinar estaacute inserida em um tempo e eacute escrita a partir de um enfoque histoacuterico social e poliacutetico A literatura tambeacutem eacute a prova de que a linguagem soacute existe enquanto interaccedilatildeo social pois eacute escrita por algueacutem que deseja ser compreendido pelo outro sem a relaccedilatildeo entre autor texto e leitor natildeo haacute literatura Mesmo compreendendo que os Paracircmetros natildeo satildeo (e natildeo pretendem ser) a soluccedilatildeo definitiva para o problema do ensino de literatura e para a crise da leitura sentimos falta de um maior destaque agrave literatura e agrave sua importacircncia para a formaccedilatildeo do sujeito social e eacutetico

Regina Zilberman e Liacutegia Cadematori Magalhatildees (1987 p 12) tambeacutem apontam contradiccedilotildees encontradas nos Paracircmetros Para as autoras por exemplo a ecircnfase dada ao ensino da liacutengua como um meio para melhorar a qualidade da produccedilatildeo linguiacutestica ldquopoderia significar uma ruptura com o ensino tradicionalrdquo mas um olhar atento de acordo com as autoras pode conduzir o ensino da liacutengua caso se prenda em demasia agrave meta de oferecer ldquoum conjunto de atividades que possibilitem ao aluno desenvolver o domiacutenio da

7 Disponiacutevel em httpwwwfndegovbrhomeindexjsparquivo=biblioteca_escolahtml Uacuteltimo acesso em marccedilo de 2017

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expressatildeo oral e escrita em situaccedilotildees de uso puacuteblico da linguagemrdquo ao antigo ensino de retoacuterica com uma concepccedilatildeo apenas pragmaacutetica e utilitaacuteria da liacutengua

Mas seria ingenuidade afirmar que alguns professores resumam a aula de Liacutengua Portuguesa ao estudo da gramaacutetica da redaccedilatildeo e de interpretaccedilatildeo de textos apenas pelo pouco comprometimento com a leitura Acreditamos que da mesma forma que a leitura estaacute presa a uma histoacuteria de censura e de equiacutevocos o ensino de literatura estaacute comprometido pela estrutura curricular dos cursos de Letras pelo natildeo comprometimento de alguns docentes dos ensinos fundamental e meacutedio com a leitura pelos salaacuterios desestimulantes dos educadores pela injusta distribuiccedilatildeo de renda praticada no Brasil dentre outros fatores

Assim o momento do estaacutegio deveria representar uma alternativa dentro do tema da formaccedilatildeo do profissional da educaccedilatildeo para se discutira responsabilidade de formar leitores Trata-se de um espaccedilo de discussatildeo de alternativas teoacuterico-metodoloacutegicas para sua praacutetica docente A democratizaccedilatildeo da leitura literaacuteria soacute seraacute representativa quando os mediadores se tornarem leitores e responsaacuteveis pelo exerciacutecio de sua praacutetica docente Acreditamos que a leitura seja um dos instrumentos mais significativos para a formaccedilatildeo do cidadatildeo Todavia a praacutetica precisa ser acompanhada a partir de um referencial teoacuterico-metodoloacutegico que permita ao estudante estabelecer relaccedilatildeo entre o texto e o leitor contemplando sua subjetividade e seu meio social Aleacutem disso como afirmam teoacutericos como Cosson (2006) Soares (2007) e Orlandi (2006) faz-se necessaacuterio oferecer ao leitor em formaccedilatildeo mecanismos para que ele consiga perceber a intertextualidade o ponto de vista do autor a origem do texto a contextualizaccedilatildeo do material impresso dentre outros elementos que permitam a transformaccedilatildeo do sujeito e em consequecircncia a ressignificaccedilatildeo do meio que o cerca

Diante do exposto trabalhar questotildees do Letramento pode contribuir para que a praacutetica dos docentes seja redimensionada para projetos que promovam efetivamente o Letramento (social escolar literaacuterio) A partir do processo de Letramento eacute possiacutevel melhorar o desempenho de nossos educandos ao mesmo tempo em que se permite aos educadores a ressignificaccedilatildeo de sua praacutetica Entretanto soacute eacute possiacutevel o trabalho pela perspectiva do letramento literaacuterio quando se desperta no docente que ainda natildeo se encontrou com o livro o desejo de principiar a praacutetica da leitura Assim fica acertada a teia que sustenta o ensino de literatura poliacuteticas puacuteblicas professor leitor leitura de texto e natildeo de fragmento diaacutelogo entre o texto escolar e as praacuteticas de leitura literaacuteria dos estudantes

Por fim cabe novamente ao professor orientador de estaacutegio (re)iniciar os contatosacordosconversas com os acadecircmicos A uniatildeo entre teoria e praacutetica deve nortear o ensino de literatura na educaccedilatildeo Qual a visatildeo que os acadecircmicos tiveram da realidade escolar Seu discurso dialogou com a teoria e a praacutetica docente O acadecircmico mostrou-se criacutetico diante de suas constataccedilotildees A anaacutelise da intervenccedilatildeo promovida durante o estaacutegio de literatura ofereceraacute as respostas a essas indagaccedilotildees que por sua vez satildeo permeadas por debates maiores o lugar do ensino da linguagem nesses niacuteveis

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escolares a noccedilatildeo de leitor leitura escrita gecircneros textuais literatura e formaccedilatildeo de professor O resultado desta reflexatildeo poderaacute culminar em docentes conscientes de seu papel na mediaccedilatildeo do texto literaacuterio

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Recebido em 28 de marccedilo de 2017

Aceito em 29 de julho de 2017

Alexandra Santos Pinheiro

Doutora em Teoria e Histoacuteria Literaacuteria pela Universidade Estadual de Campinas (2007) e poacutes doutora pela Univerisdad de Jaeacuten (2012-2013) Eacute professora associada da UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados onde atua como professora da graduaccedilatildeo e do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Liacuteder do grupo de pesquisa Nuacutecleo de Estudos Literaacuterios e Culturais Atua na Formaccedilatildeo Continuada de Professores com ecircnfase no Letramento Literaacuterio Atualmente eacute tutora do Pet-Letras-UFGD alexandrasantospinheiroyahoocombr

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eISSN 22376844polifonia

O Estaacutegio Supervisionado em Letras no vieacutes administrativo-pedagoacutegico

The Teaching Internship Component of Portuguese Major Programs from a Managerial-Pedagogical Perspective

La pasantiacutea supervisada en Letras desde la perspectiva administrativa-pedagoacutegica

Flaacutevia Girardo Botelho Borges Universidade Federal de Mato Grosso

Resumo

A disciplina de Estaacutegio Supervisionado em Letras Liacutengua Portuguesa e Literaturaconfigura-se como uma das mais importantes na formaccedilatildeo do aluno como docente pois integra em sua realizaccedilatildeo componentes teoacutericos e praacuteticos da atuaccedilatildeo como professor em contextos reais de vivecircncia pedagoacutegica Neste sentido neste artigo analisaremos do ponto de vista administrativo-pedagoacutegico o componente curricular Estaacutegio Supervisionado no curso de Letrasda Universidade Federal de Mato Grosso fundamentando-nos teoricamente em autores da aacuterea da Educaccedilatildeo da Formaccedilatildeo e Saberes Docentes e da Linguiacutestica dentro da perspectiva dos Letramentos para apontar propostas para atenuar algumas situaccedilotildees que podem comprometer a formaccedilatildeo integral do aluno de Letras Palavras-chave Estaacutegio Supervisionado Letras Formaccedilatildeo Docente

Abstract

The discipline of Teaching Internship in Portuguese and Literature Major Programs is one of the most important in the formation of the student as a teacher because it integrates theoretical and practical components of acting as teacher in real contexts of pedagogical experience In this sense in this article we will analyze from the administrative and pedagogical point of view the curricular component Supervised Stage in the Portuguese and Literature Major Programsof the Federal University of Mato Grosso theoretically based on authors from the areas of Education Training and Teaching Knowledge and Linguistics within the perspective of Literacies so as suggest proposals to attenuate some situations that may compromise the integral formation of the studentsKeywords Teaching internship Portuguese and Literature Major Programs Teacher Training

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Resumen

La asignatura de Praacutecticas Supervisadas en Letras Lengua Portuguesa y Literatura aparece como una de las maacutes importantes en la formacioacuten del estudiante como docente ya que integra en su realizacioacuten componentes teoacutericos y praacutecticos de la actuacioacuten como profesoren contextos reales de experiencia pedagoacutegica En este sentido en este artiacuteculo se analiza desde el punto de vista administrativo y pedagoacutegico el componente curricular Praacutecticas Supervisadas enel curso de Letras de la Universidad Federal de Mato Grosso en teoriacutea basaacutendose en autores del aacuterea de Educacioacuten Formacioacuten y Saberes Docentes y de Linguumliacutestica e nel enfoque de Alfabetizacioacuten para sentildealar propuestas para aliviar algunas situaciones que pueden comprometer la formacioacuten integral de los estudiantes de LetrasPalabras clave Praacutecticas Supervisadas Letras Formacioacuten Docente

1 Introduccedilatildeo

O processo de formaccedilatildeo docente abrange desde o conhecimento dos conteuacutedos teoacutericos da profissatildeo ateacute o conhecimento do contexto escolar com a dinacircmica que envolve e caracteriza este cenaacuterio No sentido de que os contextos educacionais perpassados pela linguagem estatildeo sempre em mudanccedila adequando-se aos novos sujeitos aos saberes aos falares e aos acontecimentos quando se pensa em educaccedilatildeo escolar pensa-se em mudanccedila crise e projetos

Ao se analisar a formaccedilatildeo docente do ponto de vista da administraccedilatildeo escolar torna-se inescapaacutevel aderir ao vieacutes pedagoacutegico visto que natildeo haacute como separar o professor de seu contexto de atuaccedilatildeo e por assim dizendo de todas as imbricaccedilotildees que este contexto traz agrave tona ou deixa imersas como a quantidade de legislaccedilatildeo que permeia o trabalho docente a crise da profissionalizaccedilatildeo e o proacuteprio sistema educacional brasileiro

Colocando dessa maneira os profissionais que atuam na formaccedilatildeo docente dos cursos de licenciatura devem potencializar as atividades e situaccedilotildees que privilegiem a experiecircncia do aluno de graduaccedilatildeo com os contextos de sua profissatildeo e neste ponto destacamos o tema deste artigo o Estaacutegio Supervisionado em Letras

No momento soacutecio-histoacuterico que compartilhamos em que resoluccedilotildees do Conselho Nacional de Educaccedilatildeo estatildeo sendo aprovadas moldando e programando nossas atividades docentes em que Projetos Pedagoacutegicos de Curso doravante PPC estatildeo sendo reformulados dadas as exigecircncias das proacuteprias universidades no caso deste estudo a Resoluccedilatildeo CONSEPE 118 de 2014 que estabelece prazo para novos projetos pedagoacutegicos de curso estamos de acordo com Tardif (2014) quando este aponta que os conhecimentos profissionais devem ser modelados e voltados agrave soluccedilatildeo de situaccedilotildees problemaacuteticas concretas sendo a graduaccedilatildeo o momento em que os discentes tecircm a oportunidade de se aproximarem da aacuterea de atuaccedilatildeo pretendida e a disciplina de Estaacutegio uma das mais apropriadas para esta aproximaccedilatildeo

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2 O Estaacutegio Supervisionado como Componente Curricular

A formaccedilatildeo de professores eacute um tema amplamente pesquisado por diversas aacutereas do conhecimento dada a existecircncia de cursos de licenciatura que por lei exigem a praacutetica de estaacutegio supervisionado

De acordo com o Parecer CNECP1 nordm 28 aprovado em outubro de 2001 os cursos de licenciatura organizados em torno da formaccedilatildeo docente dedicam 400 horas de sua carga total para a disciplina de Estaacutegio ou no plural disciplinas de Estaacutegio como acontece no curso sobre o qual desenvolveremos nossos apontamentos neste artigo

O curso de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso prevecirc em seu plano pedagoacutegico quatro disciplinas que compotildeem o componente curricular Estaacutegio em Licenciatura Cada uma dessas disciplinas totaliza 100h de atividades que envolvem a parte teoacuterica e praacutetica dos saberes escolares sendo em grande parte desenvolvida nas escolas parceiras

No entanto apesar de somarem 400 horas como previsto e exigido pela legislaccedilatildeo vigente os alunos ainda apresentam ao final desse quantitativo de horas dificuldades para pensar planejar e executar uma aula Isto eacute haacute dificuldade tanto para se relacionar o conteuacutedo teoacuterico agraves praacuteticas em sala de aula quanto para conseguir lidar com os saberes escolares que vatildeo muito aleacutem da sala de aula

Algumas hipoacuteteses surgem agrave medida em que se observa o estaacutegio do ponto de vista administrativo-pedagoacutegico como adificuldade de execuccedilatildeo da disciplina conforme prevista no PPC de Letras (2009) UFMT campus Cuiabaacute em relaccedilatildeo agrave quantidade de documentos que precisam ser preenchidos a dificuldade em encontrar escolas parceiras a questatildeo do horaacuterio para execuccedilatildeo da regecircncia entre outras

Assim neste artigo refletiremos sobre as dificuldades encontradas na execuccedilatildeo das disciplinas de Estaacutegio no curso de licenciatura em Letras Portuguecircs e Literatura Eacute importante frisar que nossas ponderaccedilotildees partem do ponto de vista administrativo-pedagoacutegico e deste lugar mostraremos alguns encaminhamentos que possam amenizar as dificuldades

21 O Estaacutegio Supervisionado

O Estaacutegio Supervisionado eacute definido no PPC de Letras (2009 p 151) como um ldquocomponente curricular obrigatoacuterio do curso de Letras e se caracteriza pelo exerciacutecio preacute-profissional do aluno junto a instituiccedilotildees credenciadas da rede puacuteblica ou da rede particular de ensinordquo Eacute uma disciplina que ocorre a partir da metade do curso de Letras em duas etapas dois estaacutegios supervisionados em Liacutengua Portuguesa e dois em

1 Mesmo havendo uma CNE mais recente a respeito do Estaacutegio Supervisionado nas Licenciaturas o PPC de LetrasUFMT data de 2009 utilizando entatildeo as legislaccedilotildees da eacutepoca de sua aprovaccedilatildeo

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Literatura jaacute que a licenciatura da qual tratamos habilita os discentes para atuarem no campo educacional de liacutengua materna e literaturas portuguesa e brasileira As 100 horas correspondentes a cada estaacutegio abarcam orientaccedilatildeo estudo planejamento e atuaccedilatildeo na escola nos niacuteveis de ensino fundamental (Estaacutegios I) e meacutedio (Estaacutegios II)

Segundo o PPC haacute duas formas de se realizar o estaacutegio sendo a primeira

estaacutegio efetuado nas escolas de ensino fundamental e meacutedio do municiacutepio de Cuiabaacute ou Vaacuterzea Grande em que o aluno seraacute inserido dentro da instituiccedilatildeo educacional com vistas a um contato com a realidade escolar agrave participaccedilatildeo efetiva na vida da comunidade escolar em seus diversos aspectos quer sejam pedagoacutegicos teacutecnicos eou sociais Na segunda forma o estaacutegio curricular estaacute vinculado ao desenvolvimento de projetos para a comunidade nas diversas aacutereas que compotildeem as habilitaccedilotildees correspondentes Nestes casos o estaacutegio ocorre na proacutepria UFMT ou em local oferecido pela comunidade solicitante assumindo a forma de atividades de extensatildeo eou pesquisa (PPC 2009 p 150-1)

Como disciplina apresenta os objetivos

I Aproximar a teoria e praacutetica conformando exerciacutecio de anaacutelise aplicaccedilatildeo e criacutetica dos pressupostos teoacutericos e instrumentos metodoloacutegicos que caracterizam a formaccedilatildeo do profissional de Letras II Permitir o contato direto do estagiaacuterio com a realidade educacional brasileira sua histoacuteria suas caracteriacutesticas seus problemas e seus desafios III Confrontar o aluno com situaccedilotildees de exerciacutecio preacute-profissional que lhe permitam a exploraccedilatildeo e a experimentaccedilatildeo das estrateacutegias de transformaccedilatildeo e de melhoria de suas competecircncias e habilidades IV Provar a realizaccedilatildeo das competecircncias e habilidades exigidas na praacutetica profissional e exigiacuteveis dos professores especialmente quanto agrave regecircncia V Formar no estagiaacuterio a disposiccedilatildeo para a pesquisa bibliograacutefica e de campo como estrateacutegias pedagoacutegicas de resoluccedilatildeo de problemas VI Estimular o respeito agrave diferenccedila e o apreccedilo agrave toleracircncia e problematizar accedilotildees a partir da situaccedilatildeo concreta do estagiaacuterio em sala de aula VII Propiciar o desenvolvimento pelo aluno do conjunto de competecircncias e habilidades que venham a caracterizaacute-lo em seu papel de agente da transformaccedilatildeo social (PPC 2009 p 152)

Em termos teoacutericos o estaacutegio eacute entendido por noacutes como uma praacutetica de letramento acadecircmico-profissional Concordamos com Tardiff e Lessard (2008) quando estes apontam que o estaacutegio se constitui em diversas praacuteticas de letramento a partir de um trabalho coletivo interativo voltado para aprendizagens situadas forjado cotidianamente pela possibilidade da ressignificaccedilatildeo profissional

Os teoacutericos do letramento como Barton Hamilton e Ivanic (2000) definem-no como um conjunto de praacuteticas sociais historicamente situadas que envolvem a linguagem em diversas modalidades Os agentes de letramento neste contexto satildeo os alunos-estagiaacuterios que ao vivenciarem na escola as dinacircmicas da atividade docente experienciam as relaccedilotildees assimeacutetricas de trabalho como certos atravessamentos da coordenaccedilatildeo escolar

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sobre o planejamento pedagoacutegico do professor assim como as situaccedilotildees imprevisiacuteveis que atravessam o planejamento docente aulas encurtadas por conta de ensaios para festas falta de aacutegua ou energia eleacutetrica ou mesmo de materiais para o trabalho docente

Todos esses fatores colaboram para que as atividades de estaacutegio sejam mais significativas tanto positiva quanto negativamente que as outras atividades pedagoacutegicas do curso de graduaccedilatildeo Os docentes em formaccedilatildeo ao vivenciarem situaccedilotildees como as mencionadas anteriormente durante o estaacutegio precisam se readequar replanejar de maneira raacutepida e eficiente para conseguirem cumprir carga horaacuteria por exemplo Haacute durante esse percurso ldquonovos modelos de conhecer novos modelos de ensinar e portanto novos modelos de formaccedilatildeo de professoresrdquo (SILVA e ASSIS 2010 p 176)

A construccedilatildeo dos sentidos do que eacute se tornar professor somada agraves poliacuteticas puacuteblicas ao curriacuteculo pedagoacutegico agrave realidade escolar e agrave inexperiecircncia profissional perpassam as atividades de estaacutegio de maneira indeleacutevel A experiecircncia de planejamento de aula escolha das metodologias do vieacutes teoacuterico para apresentaccedilatildeo dos conteuacutedos textos e atividades comeccedilam a compor a identidade docente e a estas se somam a responsabilidade por estes saberes e como construiacute-los com o grupo de alunos Por este processo perpassam as poliacuteticas puacuteblicas e o curriacuteculo escolar como realidades que precisam ser incorporadas agraves praacuteticas do Estaacutegio

Outro ponto que torna o estaacutegio supervisionado um momento excepcional da construccedilatildeo docente eacute a contraposiccedilatildeo acadecircmica entre a universidade e a escola puacuteblica O cenaacuterio educacional puacuteblico ainda mostra-se preso a estruturas arcaicas e a saberes linguiacutesticos ultrapassados sem considerar a natildeo presenccedila das tecnologias na sala de aula o que dificulta algumas praacuteticas docentes pautadas nas miacutedias O aluno-estagiaacuterio tem por sua vez que elaborar sua intervenccedilatildeo considerando natildeo apenas o seu desejo de construir saberes pautados na poacutes-modernidade mas tambeacutem adequados agrave realidade e dinacircmicas escolares

O compromisso da Universidade neste quesito talvez seja um dos grandes obstaacuteculos ao sucesso do estaacutegio supervisionado na escola puacuteblica Haacute na realidade em que me espelho um generalizado desacircnimo da escola puacuteblica em receber os alunos-estagiaacuterios Isso se deve em parte agrave Universidade e natildeo aos alunos ou agrave escola Explicando melhor os alunos-estagiaacuterios vatildeo agrave escola desenvolvem seus projetos individuais utilizam o tempo e o espaccedilo da comunidade escolar poreacutem ao terminarem sua experiecircncia vatildeo embora Nada deixam agrave escola a troca natildeo eacute favoraacutevel para a escola Entendemos que os conhecimentos construiacutedos durante a regecircncia (10 a 20 horas) podem ser estaacuteveis e duradouros poreacutem ainda natildeo satildeo suficientes para configurar uma boa oportunidade para a escola puacuteblica

Talvez o fato de haver um certo descontentamento seja devido ao lugar entre dois mundos em que a disciplina de estaacutegio se encontra tanto na escola na Universidade para os alunos-estagiaacuterios e professores-orientadores Para Reichmann (2015 p 29) a disciplina acadecircmica de estaacutegio apresenta ldquouma especificidade singular pois estaacute situada no mundo da academia mas se estende e abrange o mundo do trabalho constitui um lsquoentrelugarrsquo socioprofissional em movimento lsquona fronteirarsquordquo

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O entrelugar eacute ocupado pelo aluno-estagiaacuterio que nos bancos da universidade eacute aluno na sala de aula da escola puacuteblica eacute professor e no planejamento da disciplina eacute estagiaacuterio Natildeo haacute uma uacutenica identidade para o sujeito aluno-estagiaacuterio e mais importante para a sua construccedilatildeo como docente para a identidade do professor

Compactuamos com Noacutevoa (1995 p 16) quando este afirma que ldquoa identidade natildeo eacute um dado adquirido natildeo eacute uma propriedade natildeo eacute um produto A identidade eacute um lugar de lutas e de conflitos eacute um espaccedilo de construccedilatildeo de maneiras de ser e de estar na profissatildeordquo E esse processo identitaacuterio comeccedila a se delinear durante a disciplina de estaacutegio supervisionado quando o aluno se torna por alguns momentos o professor e depois volta a ser aluno natildeo mais o mesmo mas modificado construiacutedo e desconstruiacutedo pela experiecircncia didaacutetica pelos saberes escolares pela interaccedilatildeo com e na sala de aula

3 Retrato do Estaacutegio normas prescriccedilotildees e dificuldades

Como disciplina acadecircmica o estaacutegio supervisionado apresenta um roteiro de normas resoluccedilotildees orientaccedilotildees em suma documentos oficiais que modelam a disci-plina dos quais o aluno-estagiaacuterio precisa saber conhecer estudar Esses documentos abrangem tanto a educaccedilatildeo em niacutevel nacional como a Lei 9394 de Diretrizes e Bases para a Educaccedilatildeo Nacional a Lei 11788 que trata dos estaacutegios em territoacuterio nacional a Resoluccedilatildeo CNE01 sobre as diretrizes curriculares nacionais para a formaccedilatildeo de professo-res a Resoluccedilatildeo CNE02 que trata dos cursos de licenciatura no Brasil sua duraccedilatildeo e car-ga horaacuteria os documentos nacionais como os Paracircmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Linguagens estadual como as Orientaccedilotildees Curriculares do Estado de Mato GrossoLinguagens e acadecircmico em documentos universitaacuterios como a Resoluccedilatildeo CONSEPE nordm 117 (2009) que dispotildee sobre o Regulamento Geral de Estaacutegio da Universidade Federal de Mato Grosso o Projeto Pedagoacutegico de Curso e o Regulamento do Estaacutegio Supervisionado

Em geral todos esses documentos versam sobre a necessidade de a disciplina de estaacutegio supervisionado estar articulada com o restante do curso de Letras no caso e a dimensatildeo praacutetica que transcende o estaacutegio e promove a articulaccedilatildeo das diferentes praacuteticas numa perspectiva interdisciplinar

No entanto as prescriccedilotildees incidem sobre o estaacutegio supervisionado e seus envolvidos gerando acima de tudo burocracia e trabalho administrativo Aleacutem de lidar com os docu-mentos oficiais o professor-orientador de estaacutegio e o aluno ainda precisam preencher uma seacuterie de formulaacuterios para atuar na escola receptora do processo de estaacutegio Por exemplo a composiccedilatildeo do cumprimento da carga horaacuteria de Estaacutegio Supervisionado de Ensino na ins-tituiccedilatildeo concedente deve ser feita pelo preenchimento de uma Ficha Geral de Estaacutegio com indicaccedilatildeo da data horaacuterio e tema da atividade desenvolvida sendo que estas devem estar assinadas pelo profissional responsaacutevel e ser carimbadas e assinadas pelo diretor da insti-tuiccedilatildeo concedente do estaacutegio Para a coordenaccedilatildeo de curso aleacutem de acompanhar e orien-tar a documentaccedilatildeo tambeacutem eacute exigida a produccedilatildeo de ofiacutecios para cada aluno-estagiaacuterio aleacutem dos Termos de Convecircnio ou Termos de Parceria Seguro do discente etc

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Em termos gerais o PPC de Letras apresenta a divisatildeo das tarefas das partes envolvidas no Estaacutegio como sendo

Art 09 - As atividades de Estaacutegio Supervisionado de Ensino satildeo Coordenadas pela Coordenaccedilatildeo do Curso e pelos professores-supervisores sect 1ordm Compete agrave Coordenaccedilatildeo do Curso de Letras I Indicar os professores-supervisores de Estaacutegio Supervisionado de ensino II Definir o horaacuterio e o local das sessotildees semanais de supervisatildeo sect 2ordm Compete ao Professor-supervisor de estaacutegio I Imprimir e distribuir as cartas de apresentaccedilatildeo dos estagiaacuterios II Credenciar as Instituiccedilotildees concedentes de Estaacutegio III Arquivar os documentos relativos ao Estaacutegio IV Encaminhar agrave Coordenaccedilatildeo do Curso de Letras relatoacuterio anual das atividades de estaacutegio desenvolvidas pelos alunos de Letras V Elaborar com o supervisionado o plano de trabalho seus conteuacutedos suas etapas de desenvolvimento e calendaacuterio de atividades observados os prazos designados no calendaacuterio de Estaacutegio e os horaacuterios definidos pela Coordenaccedilatildeo do Curso VI Atender os seus supervisionados nas sessotildees semanais de supervisatildeo registrando anotaccedilotildees sobre o desenvolvimento do trabalho VII Orientar e acompanhar a elaboraccedilatildeo e a execuccedilatildeo do Projeto de intervenccedilatildeo sob sua supervisatildeo VIII Orientar e acompanhar a elaboraccedilatildeo do Relatoacuterio de Estaacutegio sob sua supervisatildeo IX Auxiliar o aluno na preparaccedilatildeo da intervenccedilatildeo X Avaliar as atividades e atribuir notas aos alunos sob sua supervisatildeo (PPC 2009 p 155-56 grifo nosso)

Em termos locais as disciplinas de estaacutegio supervisionado estatildeo localizadas a partir da segunda metade do curso e suas ementas abordam a atividade de leitura na escola o trabalho com o texto ndash escolha compreensatildeo vocabulaacuterio e interpretaccedilatildeo a leitura no ensino fundamental a teoria da literatura e a leitura na escola a atividade de produccedilatildeo de texto na escola a finalidade a proposta a correccedilatildeo a atividade de anaacutelise linguiacutestica a epilinguiacutestica e a metalinguiacutestica observaccedilatildeo de aulas de leitura no ciclo fundamental as atividades docentes planejamento execuccedilatildeo e avaliaccedilatildeo preparo de plano de aula e material didaacutetico e por fim o periacuteodo de Observaccedilatildeo Regecircncia e Relatoacuterio De acordo com as poliacuteticas de estaacutegio do PPC de Letras as atividades de estaacutegio para contemplarem a ementa devem ser cumpridas a) na instituiccedilatildeo concedente de estaacutegio em atividades de observaccedilatildeo participaccedilatildeo e regecircncia b) nas sessotildees semanais de supervisatildeo c) em atividades extraclasse relacionadas agrave preparaccedilatildeo da intervenccedilatildeo e agrave anaacutelise de seus resultados d) em outras atividades relacionadas ao Estaacutegio

Esse modelo de estaacutegio segundo o qual o curso de Letras hoje estaacute estruturado reserva para o final do curso de forma concentrada a grande parte das atividades de praacutetica docente sendo que nestas o aluno-estagiaacuterio precisaraacute entrelaccedilar a teoria e a praacutetica construiacutedas durante a sua formaccedilatildeo no curso de licenciatura Este entrelaccedilamento requer do aluno-estagiaacuterio certa maturidade intelectual e profissional para entender o noacute e o desatar do noacute que se desenreda nessa relaccedilatildeo Eacute interessante apontar que o aluno sujeito deste processo encontra-se no momento em que o caraacuteter profissionalizante da docecircncia vem sendo questionado tentando-se ldquoreformular e renovar os fundamentos

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epistemoloacutegicos do ofiacutecio de professor e de educador assim como da formaccedilatildeo para o magisteacuteriordquo (TARDIFF 2014 p 250)

Neste sentido eacute importante ressaltar a relaccedilatildeo entre os saberes docentes construiacutedos nos cursos de licenciatura e a atividade praacutetica de docecircncia Tardiff (2014) questiona

que relaccedilotildees deveriam existir entre os saberes profissionais e os conhecimentos universitaacuterios e entre os professores do ensino baacutesico e os professores universitaacuterios (pesquisadores ou formadores) no que diz respeito agrave profissionalizaccedilatildeo do ensino e agrave formaccedilatildeo de professores (TARDIFF 2014 p 246)

Dos pontos de vista administrativo e pedagoacutegico o arranjo entre matriz curricular ementa e horaacuterios de disciplina pode provocar a fragmentaccedilatildeo dos saberes da disciplina de estaacutegio supervisionado da forma como estaacute atualmente colocada em Letras visto que natildeo haacute um entrelaccedilamento entre os conteuacutedos desenvolvidos nas disciplinas O foco do estaacutegio que eacute a observaccedilatildeo e praacutetica pedagoacutegica muitas vezes pode se perder dada a quantidade de documentaccedilatildeo necessaacuteria agrave sua realizaccedilatildeo e estudo Aleacutem disso natildeo haacute um rol de escolas conveniadas com a universidade para que se faccedila o contato e a proposta de estaacutegio Os professores deste componente curricular e a coordenaccedilatildeo de ensino precisam buscar as escolas oferecer a proposta e se sujeitar aos horaacuterios e condiccedilotildees ofertadas

Natildeo eacute uma negociaccedilatildeo faacutecil e suave Haacute diversos momentos de tensatildeo principalmente em relaccedilatildeo ao horaacuterio da realizaccedilatildeo do estaacutegio visto que prevemos estaacutegio supervisionado no ensino fundamental e oferecemos o curso noturno de Letras Assim atualmente natildeo haacute escolas de ensino fundamental no periacuteodo noturno restando ao aluno-estagiaacuterio realizar sua observaccedilatildeo e regecircncia no contraturno durante o qual muitas vezes este aluno exerce atividade profissional remunerada Por diversos momentos o professor-orientador do estaacutegio precisa ir a diversas escolas de ensino baacutesico em Cuiabaacute para acompanhar as duplas de estaacutegio em horaacuterios que natildeo correspondem ao horaacuterio da sua disciplina na grade curricular do curso de Letras

Observando essas dificuldades o Colegiado do Curso de Letras elaborou um documento ainda na forma de minuta com sugestotildees a respeito do Estaacutegio supervisionado Este documento aborda a questatildeo pedagoacutegica poreacutem vai aleacutem fornecendo sugestotildees que podem amenizar as dificuldades e otimizar as relaccedilotildees de tempo e carga horaacuteria

4 Alguns apontamentos para um novo percurso

Em relaccedilatildeo agraves dificuldades apontadas e vivenciadas pelo grupo de docentes e coordenaccedilatildeo de curso o Colegiado dos Cursos de Letras a partir de diversas reuniotildees desde 2014 vem elaborando uma proposta com uma seacuterie de recomendaccedilotildees para que fossem incorporadas nas reformulaccedilotildees dos PPC dos cursos envolvidos (Letras e Literatura Letras e Inglecircs Letras e Francecircs e Letras e Espanhol) sobre o Componente Curricular ldquoEstaacutegio Supervisionadordquo

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Entre essas recomendaccedilotildees parte-se do entendimento de que o componente curricular ldquoEstaacutegio Supervisionadordquo deva ser tratado como disciplina podendo ser criada subturma em caso de nuacutemero de alunos superior a 15 alunos o que possibilitaria ao professor-orientador de Estaacutegio melhores condiccedilotildees de acompanhamento de seus alunos-estagiaacuterios

Sobre a relaccedilatildeo com a escola acolhedora do Estaacutegio a proposta do Colegiado em consonacircncia com a Resoluccedilatildeo CNE nordm 02 de 01052015 eacute a de que o Estaacutegio Supervisionado seja realizado em direta colaboraccedilatildeo com as instituiccedilotildees credenciadas da Educaccedilatildeo Baacutesica e que esse compromisso seja explicitado no texto do PPC e no Regulamento de Estaacutegio Supervisionado do Curso de Letras Ainda sugere-se que os Cursos de Letras desenvolvam projetos de formaccedilatildeo continuada junto aos professores das instituiccedilotildees de educaccedilatildeo baacutesica acolhedoras como contrapartida agrave realizaccedilatildeo do Estaacutegio Supervisionado nas referidas escolas

Para atender a essa demanda e tentar minimizar uma das dificuldades sugere-se tambeacutem que seja feito um cadastramento de escolas interessadas em estabelecer parceria na realizaccedilatildeo do Estaacutegio Supervisionado dos alunos dos Cursos de Letras da UFMT e dos professores supervisores interessados em acompanhar os estagiaacuterios dos Cursos de Letras em suas escolas

Apoacutes o cadastramento das escolas os coordenadores dos Cursos de Letras e os professores responsaacuteveis pelas disciplinas de Estaacutegio Supervisionado podem convidar os Coordenadores das instituiccedilotildees cadastradas para lhes apresentar o novo PPC e explicar como o Estaacutegio Supervisionado seria desenvolvido Ainda como sugestatildeo poder-se-ia estabelecer criteacuterios para a escolha das escolas parceiras tais como localizaccedilatildeo e nuacutemero de salas de modo a permitir aos alunos maior agilidade no deslocamento e permanecircncia durante todo o estaacutegio em uma mesma instituiccedilatildeo

Em relaccedilatildeo ao aporte pedagoacutegico do estaacutegio supervisionado o Colegiado dos Cursos de Letras sugere que o PPC insira a possibilidade de desenvolvimento de projetos interdisciplinares nas praacuteticas de uma das disciplinas de Estaacutegio Supervisionado preferencialmente no uacuteltimo semestre do curso quando o aluno jaacute estiver mais familiarizado com o contexto escolar e com diferentes abordagens de ensino de liacutenguas Nesse caso faz-se necessaacuterio explicar no PCC a(s) concepccedilatildeo (otildees) de interdisciplinaridade que iraacute (atildeo) orientar os projetos

Aconselha-se ainda que a observaccedilatildeo do contexto escolar seja feita no Estaacutegio Supervisionado I em tronco comum agraves duas liacutenguas Jaacute os projetos interdisciplinares podem ser desenvolvidos nas disciplinas de Estaacutegio Supervisionado IV das duas liacutenguas de forma colaborativa com alunos da mesma escola

Em relaccedilatildeo agrave divisatildeo das horas das atividades que compotildeem as disciplinas de Estaacutegio Supervisionado o Colegiado sugeriu que as 100 horas do Estaacutegio fossem divididas em 10 horas para Observaccedilatildeo 20 horas para Planejamento 20 horas para Elaboraccedilatildeo de material didaacutetico 30 horas para Regecircncia e 20 horas para Avaliaccedilatildeo sendo essa divisatildeo baseada nas experiecircncias anteriores

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Sobre a documentaccedilatildeo em atendimento ao art 17 da Resoluccedilatildeo CONSEPE nordm 117 de 11 de agosto de 2009 o Colegiado sugere que seja inserido no PPC que os planos de estaacutegio sejam submetidos ao Colegiado dos Cursos de Letras para anaacutelise e aprovaccedilatildeo Ainda sugere-se que seja utilizada a nomenclatura ldquoprofessor-orientadorrdquo para o professor ministrante da disciplina de Estaacutegio Supervisionado e ldquoprofessor-supervisorrdquo para o professor da escola que recebe e acompanha os alunos estagiaacuterios na escola

5 Consideraccedilotildees Finais

As atividades do Estaacutegio Supervisionado satildeo fundamentais para a formaccedilatildeo docente dos licenciados em Letras No sentido de fortalecer esse componente curricular eacute necessaacuterio fortalecer a relaccedilatildeo entre a escola de educaccedilatildeo baacutesica e a universidade No entanto mais que isso eacute necessaacuterio fortalecer o professor-orientador do estaacutegio otimizando suas atribuiccedilotildees burocraacuteticas para que ele possa desenvolver com plenitude a orientaccedilatildeo pedagoacutegica aos alunos-estagiaacuterios Portanto eacute fundamental que haja uma aproximaccedilatildeo das relaccedilotildees entre professores alunos coordenaccedilatildeo de curso e oacutergatildeo colegiado para que o Estaacutegio se desenvolva de maneira integrada entre estas instacircncias

Observando o contexto de dificuldades este artigo apresentou algumas propostas que os Colegiados dos Cursos de Letras ofereceram no momento de reformulaccedilatildeo dos cursos de graduaccedilatildeo na tentativa de melhorar o andamento da disciplina de estaacutegio supervisionado para os sujeitos envolvidos dentro e fora da universidade

Referecircncias

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PROJETO PEDAGOacuteGICO DE CURSO ndash LETRAS PORTUGUEcircS E LITERATURA Disponiacutevel em httpsistemasufmtbrufmtppcPlanoPedagogicoDownload117 Acesso em marccedilo de 2017

REICHMANN Carla L Letras e letramentos ndash escrita situada identidade e trabalho docente no estaacutegio supervisionado Campinas SP Mercado de Letras 2015

SILVA Jane Q e ASSIS Juliana A ldquoGecircneros na formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo do professor de liacutengua materna o que ainda eacute preciso dizer e fazer a propoacutesito dessa relaccedilatildeordquo In SERRANI Silvana (Orgs) Letramento discurso e trabalho docente Vinhedo Belo Horizonte 2010 p 172-181

TARDIFF Maurice Saberes docentes e formaccedilatildeo profissional Petroacutepolis RJ Editora Vozes 2014

______ LESSARD Claude O trabalho docente elementos para uma teoria de docecircncia como profissatildeo de interaccedilotildees humanas Petroacutepolis RJ Editora Vozes 2008

Recebido em 30 de abril de 2017

Aceito em 27 de junho de 2017

Flaacutevia Girardo Botelho Borges

Eacute doutora em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Pernambuco coordenadora do PIBID Letras - Portuguecircs e professora do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Estudos da Linguagem do Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso Tem experiecircncia na aacuterea de Linguiacutestica atuando principalmente nos seguintes temas letramentos linguagem e tecnologia formaccedilatildeo de professores portuguecircs como liacutengua adicional e morfossintaxe flavia2bgmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Estaacutegio Supervisionado em Literatura um relato de experiecircncia na UTFPR ndash CuritibaSupervised Literature Teaching Practicum an experience

report from UTFPR ndash Curitiba

Praacutectica Supervisada en Literatura um relato de experiencia en la UTFPR ndash Curitiba

Mirelle Mussi Giri Universidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute

Alice Atsuko MatsudaUniversidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute

Resumo

Neste artigo relatamos a partir de um caso praacutetico o processo formativo do professor de literatura em liacutengua portuguesa no curso de Licenciatura em Letras PortuguecircsInglecircs da Universidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute (UTFPR) campus Curitiba Para tanto descrevemos a partir de documentos oficiais como se daacute a formaccedilatildeo do professor de literatura na disciplina de Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio em Liacutengua Portuguesa II apresentamos brevemente as concepccedilotildees teoacutericas baacutesicas sobre as quais essa formaccedilatildeo se constroacutei e relatamos o estaacutegio realizado por uma dupla de discentes De modo a atingir esses objetivos adotamos para a elaboraccedilatildeo deste artigo de natureza descritiva a pesquisa bibliograacutefica e documental Como resultado verificamos que a disciplina mescla questotildees conceituais e praacuteticas que privilegiam uma formaccedilatildeo criacutetico-reflexiva a partir da leitura dirigida de textos teoacutericos e documentos oficiais no que diz respeito ao ensino de literatura Observamos que o processo formativo possibilitado aos discentes preocupa-se em dar uma base de conhecimento cidadatilde e que embora essa formaccedilatildeo docente envolva contextos adversos oportuniza desenvolvimento das competecircncias e habilidades profissionais necessaacuterias ao futuro docente exercendo seu papel como educador e na formaccedilatildeo cidadatilde dos discentes colaborando na transformaccedilatildeo da sociedade para que seja justa e igualitaacuteriaPalavras-chave Formaccedilatildeo docente ensino de literatura estaacutegio supervisionado

Abstract

In this article we report based on a practical case how the pre-service Portuguese literature teacher education is developed in the undergraduate Modern Languages major of the Federal University of Technology (UTFPR) campus Curitiba In order to do so we describe based on official documents how the pre-service Portuguese literature teacher education happens in the

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course Supervised Teaching Practicum in Portuguese Language II we briefly present the basic theoretical conceptions on which this practicum is built and report the practical experience had by a pair of students To achieve these goals we did a bibliographic and documentary research to write this descriptive article As a result we observed that the course combines theoretical and practical concepts that favor a critical-reflexive education based on the reading of theoretical texts and official documents regarding Portuguese literature teaching We observed that the training process students underwent is concerned with providing citizen knowledge and that although this teacher education involves adverse contexts it allows the development of professional skills necessary for the future teacher to exercise his role as an educator for citizenzhip collaborating in the transformation of society so that it becomes fair and egalitarianKeywords Teacher education literature teaching supervised teaching practicum

Resumen

En este artiacuteculo reportamos coacutemo se desarrolla a partir de un caso praacutectico el proceso de formacioacuten del profesor de literatura en lengua portuguesa en la Licenciatura en Lengua Moderna PortugueacutesIngleacutes de la Universidad Tecnoloacutegica Federal de Paranaacute (UTFPR) campus Curitiba Para tanto describimos a partir de documentos oficiales coacutemo es la formacioacuten de un profesor de literatura en la asignatura de praacutectica supervisada en Lengua Portuguesa II presentamos brevemente los conceptos teoacutericos baacutesicos sobre los cuales esta formacioacuten se construye y reportamos la praacutectica cumplida por dos estudiantes Para lograr estos objetivos hemos adoptado para la elaboracioacuten de este artiacuteculo de naturaleza descriptiva la investigacioacuten bibliograacutefica y documental Como resultado observamos que la disciplina mezcla aspectos conceptuales y praacutecticos que privilegian una formacioacuten criacutetico-reflexiva a partir de la lectura dirigida de textos teoacutericos y documentos oficiales con respecto a la ensentildeanza de la literatura Se observa que el proceso formativo posibilitado a los discentes se preocupa en dar una base de conocimiento ciudadana y que aunque esa formacioacuten docente involucra contextos adversos oportuniza el desarrollo de las competencias y habilidades profesionales necesarias para el futuro docente ejerciendo su papel como educador y en la formacioacuten ciudadana de los discentes colaborando en la transformacioacuten de la sociedad para que sea justa e igualitariaPalabras clave La formacioacuten del profesorado ensentildeanza de la literatura praacutecticas supervisadas

1 Introduccedilatildeo

As sociedades atuais vivenciam uma aproximaccedilatildeo em niacuteveis sem precedentes em virtude de um crescente processo de diluiccedilatildeo de fronteiras conhecido por globalizaccedilatildeo As novas dinacircmicas globais dela resultantes estimulam trocas intercacircmbios e fluxos de toda sorte cujos impactos satildeo percebidos natildeo somente na economia e na poliacutetica mas tambeacutem no modo de vida e na cultura das pessoas provocando profundas mudanccedilas em todos os aspectos da vida contemporacircnea Como resultado as sociedades se tornam mais criacuteticas e exigentes diante da imensa variedade e disponibilidade de informaccedilotildees e conhecimento que circulam Isso demanda que elas se adequem a essa nova realidade de modo a assegurar sua relevacircncia e distinccedilatildeo em um ambiente cada vez mais competitivo e integrado (LIMA FILHO 2004 ARCHANJO 2015)

Similarmente os professores tambeacutem precisam se adequar especialmente diante da ampliaccedilatildeo do acesso dos sujeitos agrave informaccedilatildeo e agrave participaccedilatildeo na era do conhecimento

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globalizado Faz-se necessaacuterio portanto que o professor em formaccedilatildeo desenvolva novas competecircncias domine novos saberes revista-se de novas responsabilidades sociais e tome consciecircncia sobre o mundo em que estaacute inserido capacitando-se para trabalhar em contextos dinacircmicos e desafiadores dessa nova realidade (VOLPI 2008ARCHANJO 2015)

Considerando que a Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Brasileira (LDB) publicada sob o nordm 9394 em 20 de dezembro de 1996 estabelece que a finalidade da educaccedilatildeo baacutesica deve ser a de promover a plena formaccedilatildeo do educando para que ele possa exercer sua cidadania e progredir no trabalho e nos estudos o processo formativo do professor pautado a partir dessa premissa deve ser desenvolver de forma criacutetica e reflexiva para tornaacute-lo elemento estrateacutegico de estiacutemulo agrave formaccedilatildeo de seus alunos (BRASIL 1996 VOLPI 2008)

O objetivo eacute formar o professor para que ele consiga enfrentar os desafios das raacutepidas transformaccedilotildees sociais e do mercado de trabalho ser capaz de elaborar novas estrateacutegias buscar novos rumos para a compreensatildeo e a resoluccedilatildeo dos problemas com que porventura se depare em sua docecircncia como problemas de evasatildeo indisciplina desinteresse pelos estudos e preparar seus alunos para exercer direitos e deveres desenvolver consciecircncia criacutetica e tornaacute-los instrumento de transformaccedilatildeo social (VOLPI 2008)

Essa tarefa eacute incumbida inicialmente agraves instituiccedilotildees de ensino superior responsaacuteveis por dar ao futuro docente o aparato para que ele consiga articular os conhecimentos teoacutericos baacutesicos agraves atividades praacuteticas e pedagoacutegicas Essas instituiccedilotildees tecircm autonomia para elaborar seus proacuteprios curriacuteculos contanto que respeitem os princiacutepios fundamentos e procedimentos que orientam os processos formativos do professor no paiacutes (BRASIL 1996 BRASIL 2001)

A partir desse contexto objetivamos relatar neste artigo como se desenvolve com base em um caso praacutetico a formaccedilatildeo do professor de literatura em liacutengua portuguesa na disciplina Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio em Liacutengua Portuguesa II do curso de Licenciatura em Letras PortuguecircsInglecircs da Universidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute campus Curitiba Para tanto propomos como objetivos especiacuteficos descrever a partir de documentos oficiais como se daacute a formaccedilatildeo na disciplina Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio em Liacutengua Portuguesa II apresentar brevemente as concepccedilotildees teoacutericas baacutesicas sobre as quais essa formaccedilatildeo se constroacutei e apresentar alguns dados do estaacutegio realizado por uma dupla de discentes regularmente matriculadas na disciplina no segundo semestre de 2015

Com o intuito de atingir os objetivos aqui traccedilados adotamos para a elaboraccedilatildeo deste artigo de natureza descritiva a pesquisa bibliograacutefica e documental

2 O processo formativo do professor de literatura na UTFPR ndash Curitiba

O processo formativo do professor de literatura em liacutengua portuguesa na Licenciatura em Letras PortuguecircsInglecircs da UTFPR se pauta no disposto em seu Projeto Pedagoacutegico (2011) que revela que o uso da liacutengua portuguesa pelos estudantes brasileiros eacute fonte de grande preocupaccedilatildeo pela sua capacidade insatisfatoacuteria de ler e interpretar textos

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simples (UTFPR 2011) ldquoNo Pisa 2015 5099 dos estudantes ficaram abaixo do niacutevel 21 de proficiecircncia A meacutedia de desempenho foi de 407 pontos Eacute a segunda queda consecutiva na aacuterea de leitura desde 2009rdquo (MORENO 2016 p 1) Para reverter esse quadro os cursos de Letras em consonacircncia com a LDB devem promover uma formaccedilatildeo qualificada e comprometida com a transformaccedilatildeo da realidade e do sistema educacional do paiacutes

O Projeto Pedagoacutegico estabelece as habilidades e competecircncias baacutesicas necessaacuterias ao futuro professor as quais devem ser colocadas em praacutetica no que diz respeito ao ensino de literatura em liacutengua portuguesa na disciplina Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio em Liacutengua Portuguesa II Seu objetivo geral eacute complementar o ensino e a aprendizagem adaptando o estudante psicoloacutegica e socialmente agrave sua futura atividade profissional bem como seu treinamento para facilitar sua futura absorccedilatildeo pelo mercado de trabalho e a orientaccedilatildeo na escolha de sua especializaccedilatildeo profissional

Em consonacircncia com esse objetivo a disciplina ofertada no sexto periacuteodo da licenciatura conta com 135h de carga total de atividades praacuteticas em que o discente frequenta 64h de aulas teoacutericas 59h realiza leituras anaacutelises e discussotildees de textos basilares de fundamentaccedilatildeo teoacuterica para o ensino de literatura elabora projeto de estaacutegio quatro planos de aula e relatoacuterio de estaacutegio realiza 8h de observaccedilatildeo e ministra 4h de regecircncia desenvolvida em uma instituiccedilatildeo de ensino baacutesico no semestre Prioriza tambeacutem o estudo e a reflexatildeo sobre textos teoacutericos e documentos que regem a educaccedilatildeo em acircmbitos estadual e nacional Esse estudo cotejado com atividades praacuteticas objetiva construir o conhecimento sobre o processo de ensinoaprendizagem de forma contextualizada e reflexiva (UTFPR 2011)

Para tanto a disciplina eacute dividida em duas fases Primeiramente leitura e discussatildeo em sala de aula de textos teoacutericos ndash ldquoA literatura e a formaccedilatildeo do homemrdquo (CANDIDO 1972) ldquoO direito agrave literaturardquo (CANDIDO 1995) ldquoTeoria da esteacutetica da recepccedilatildeordquo (ZAPPONE 2005) Meacutetodo recepcional (AGUIAR BORDINI 1993) e ldquoTecendo a aula de portuguecircsrdquo (MATSUDA 2008) ndash que fundamentam posteriormente a segunda fase de aplicaccedilatildeo do conhecimento construiacutedo nas escolas formadoras (UTFPR 2011)

Quanto ao trabalho com a leitura primeiro toacutepico de discussatildeo as Diretrizes Curriculares da Educaccedilatildeo Baacutesica do Paranaacute estabelecem que ela deve ser dialoacutegica e interlocutiva ou seja o leitor deve dialogar com o texto o autor e as circunstacircncias de produccedilatildeo e trazer o contexto da leitura para a atualidade Essa dinacircmica promoveria a construccedilatildeo de um leitor participativo que infere e interveacutem tornando-se coautor e apto a ler textos mais complexos O papel do professor nesse contexto eacute o de mediador que instiga o aluno e o auxilia durante a sua interpretaccedilatildeo (PARANAacute 2008)

O segundo toacutepico trata da noccedilatildeo de literatura entendida por Antonio Candido como um direito baacutesico que natildeo deve ser negado a ningueacutem Segundo ele a literatura

1 Estudantes com baixo desempenho satildeo aqueles que natildeo alcanccedilam o niacutevel 2 considerado o miacutenimo aceitaacutevel deproficiecircncia em Leitura No niacutevel 2 pede-se ao estudante que identifique a ideia principal de um texto compreenda relaccedilotildees ou deduza significado impliacutecito em uma informaccedilatildeo natildeo expliacutecita Disponiacutevel em httpswwwoecdorgpisapisaproductspisainfocus48488426pdf

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desempenha ao menos trecircs funccedilotildees essenciais para a formaccedilatildeo humana ndash psicoloacutegica formativa e de conhecimento do mundo e do ser ndash e alega que natildeo a trabalhar em sala poderia afetar a formaccedilatildeo do leitor como cidadatildeo criacutetico (CANDIDO 1972 1995)

Sequencialmente outro toacutepico estudado eacute a teoria da esteacutetica da recepccedilatildeo Segundo Zappone (2005) o texto deixaria de ser mera construccedilatildeo linguiacutestica que transmite as ideias de seu produtor e passaria a ser uma construccedilatildeo esteacutetica com lacunas que datildeo margem para que o leitor possa refletir e atribuir-lhe sentido desempenhando um papel fundamental no processo de leitura como coautor valorizando a figura do leitor

O penuacuteltimo toacutepico estudado eacute o meacutetodo recepcional (AGUIAR BORDINI 1993) metodologia de ensino que trabalha com textos progressivamente mais complexos em etapas

bull determinaccedilatildeo do horizonte de expectativas verificaccedilatildeo do niacutevel de maturidade do aluno enquanto leitor para prever estrateacutegias de ruptura e de transformaccedilatildeo

bull atendimento do horizonte de expectativa introduccedilatildeo de textos que satisfaccedilam agraves expectativas dos alunos para que eles se sintam confortaacuteveis durante a leitura e as atividades

bull ruptura do horizonte de expectativa introduccedilatildeo de textos e atividades mais complexas de modo a abalar as certezas e os costumes dos alunos

bull questionamento do horizonte de expectativa comparaccedilatildeo dos textos trabalhados nas etapas anteriores para proporcionar aos alunos momentos de reflexatildeo descobertas e construccedilatildeo de novos sentidos

bull ampliaccedilatildeo do horizonte de expectativa introduccedilatildeo de textos de maior focirclego e ainda mais complexos para proporcionar aos alunos uma maior tomada de consciecircncia acerca de suas conquistas intelectuais recentes obtidas por meio da literatura

O resultado da aplicaccedilatildeo dessas cinco etapas eacute a formaccedilatildeo de um leitor proficiente que buscaraacute novos textos de maior focirclego condizentes agrave sua nova condiccedilatildeo de leitor e ao seu novo horizonte de expectativas (AGUIAR BORDINI 1993)

Por fim o uacuteltimo toacutepico discutido eacute a experiecircncia de leitura em uma turma de oitavo ano do ensino fundamental (atual nono ano) durante um ano letivo (MATSUDA 2008) O objetivo eacute mostrar aos discentes como aplicar os vaacuterios ciclos das etapas do meacutetodo recepcional e que o final de um ciclo de cinco etapas ldquoeacute o iniacutecio de uma nova aplicaccedilatildeo do meacutetodo que evolui em espiral sempre permitindo aos alunos uma postura mais consciente com relaccedilatildeo agrave literatura e agrave vidardquo (AGUIAR BORDINI 1993 p 91)

Finda a primeira fase daacute-se iniacutecio agrave realizaccedilatildeo do estaacutegio pelos discentes que trabalham em duplas Essa fase eacute composta pelas seguintes etapas observaccedilatildeo de no miacutenimo de 8 horasaula na escola formadora para conhecer seu puacuteblico tomar consciecircncia de suas dificuldades limitaccedilotildees e potencialidades e levantar as necessidades da turma em que as duplas realizaratildeo as regecircncias elaboraccedilatildeo e finalizaccedilatildeo juntamente com o professor formador e o professor orientador de estaacutegio do projeto de estaacutegio e de quatro planos

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de aula realizaccedilatildeo de 4 horasaula de regecircncia avaliaccedilatildeo pelo professor orientador e orientaccedilatildeo por parte do professor da disciplina para a produccedilatildeo do relatoacuterio final reportando as atividades desenvolvidas durante o estaacutegio (UTFPR 2011)

3 Relato da experiecircncia de estaacutegio

De forma a ilustrar como a segunda fase da disciplina se desenvolve na praacutetica apresentaremos a seguir alguns dados da experiecircncia de uma dupla de alunas regularmente matriculada na disciplina de Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio em Liacutengua Portuguesa II no segundo semestre de 2015 a partir do relatoacuterio da discente Mirelle Mussi Giri (2015)

As observaccedilotildees e regecircncias foram realizadas na unidade concedente de estaacutegio Coleacutegio Estadual Guaiacutera ndash Ensino Fundamental e Meacutedio cujo puacuteblico eacute composto principalmente por estudantes oriundos de famiacutelias trabalhadoras de baixa a meacutedia renda O estaacutegio foi executado junto agrave turma B do 2ordm ano do Ensino Meacutedio periacuteodo matutino durante as aulas da disciplina de Liacutengua Portuguesa aos 32 alunos regularmente matriculados cujas idades variavam entre 15 e 17 anos A carga horaacuteria de observaccedilatildeo na escola foi de 8 horasaula e ocorreu ao longo de trecircs semanas entre os meses de setembro e outubro de 2015

Durante o periacuteodo de observaccedilatildeo as estagiaacuterias foram apresentadas agrave equipe pedagoacutegica aos professores formadores e agrave turma com a qual estagiariam oportunidade em que tambeacutem conheceram as dependecircncias da escola e receberam as orientaccedilotildees gerais para a realizaccedilatildeo do estaacutegio Em seguida elas deram iniacutecio agraves observaccedilotildees em sala de aula

O material didaacutetico adotado para a disciplina era na ocasiatildeo o livro Portuguecircs ndash Linguagens de William Roberto Cereja cujas atividades foram a base principal do trabalho com os conteuacutedos linguiacutesticos e literaacuterios desenvolvidos Durante o periacuteodo de observaccedilatildeo os toacutepicos trabalhados foram pronomes demonstrativos e os movimentos literaacuterios Realismo e Naturalismo Aleacutem das atividades propostas no livro as aulas contaram ainda com atividades elaboradas pela professora revisotildees e atividades avaliativas com e sem consulta ao material

As estagiaacuterias observaram que embora a professora formadora recorresse direta e quase mecanicamente ao material didaacutetico durante a maior parte do tempo ela conseguiu demonstrar tiacutemidas tentativas de tornar suas aulas mais dinacircmicas e de se aproximar de seus alunos propondo leituras mais interativas e a organizaccedilatildeo das carteiras em ciacuterculo para quebrar a monotonia da aula A professora recomendou tambeacutem a leitura da obra Senhora de Joseacute de Alencar momento em que exaltou o prazer da leitura e a sua contribuiccedilatildeo para o desenvolvimento do aluno natildeo soacute como leitor mas tambeacutem como ser humano

Dentre as iniciativas observadas que estabeleceram mais engajamento por parte dos alunos destacou-se a exibiccedilatildeo de um viacutedeo para contextualizar o tema literaacuterio em

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estudo A iniciativa promoveu uma intensa e positiva reaccedilatildeo dos estudantes que durante toda a atividade teceram comentaacuterios riram e participaram ativamente Isso demonstrou que a atividade atendeu plenamente aos seus horizontes de expectativas e que seria uma oacutetima opccedilatildeo de atividade durante as regecircncias que seriam ministradas mais adiante

No que diz respeito agrave dinacircmica em sala as estagiaacuterias observaram que a professora formadora gastava muito tempo tentando acalmar seus alunos que eram em sua maioria agitados indisciplinados e pouco participativos agravando a tensatildeo na relaccedilatildeo professor-aluno Observaram ainda serem muito frequentes por parte da professora reclamaccedilotildees em relaccedilatildeo ao uso do celular o que diminuiacutea ainda mais o tempo de trabalho com o conteuacutedo Notaram tambeacutem que a professora frequentemente induzia seus alunos a determinadas interpretaccedilotildees sem abrir espaccedilo para que eles pudessem tecer suas proacuteprias inferecircncias

Ao longo do periacuteodo de observaccedilatildeo as estagiaacuterias se reuniram com a professora formadora a fim de discutir possiacuteveis temas que pudessem ser trabalhados durante as regecircncias Foi acordado entatildeo que elas trabalhariam com a escola literaacuteria simbolista por esse ser um tema pouco caro agrave professora e que a temaacutetica a ser trabalhada ficaria a cargo delas

Na uacuteltima observaccedilatildeo as estagiaacuterias aplicaram ao final da aula um questionaacuterio escrito aos educandos para pesquisar seus gostos de leitura O intuito foi conhecer melhor a realidade escolar em que elas estavam inseridas averiguar o niacutevel de maturidade do aluno como leitor e determinar seu horizonte de expectativas

Aleacutem de fazer um levantamento da idade meacutedia do puacuteblico alvo o questionaacuterio tambeacutem contemplou questotildees cujos objetivos eram verificar se os familiares dos alunos eram leitores assiacuteduos ou natildeo e se auxiliavam na sua formaccedilatildeo enquanto leitores Nesse quesito as estagiaacuterias constataram que a escola era a grande responsaacutevel por formaacute-los leitores Ao averiguar se houve estiacutemulo agrave leitura e consequentemente agrave formaccedilatildeo do leitor descobriram que mesmo natildeo sendo leitores assiacuteduos em sua maioria boa parte dos paisresponsaacuteveis leram para eles quando crianccedilas e procuraram incentivar o gosto pela leitura Ao verificar com que frequecircncia liam textos de seu interesse os dados revelaram uma turma dividida 381 raramente ou nunca lia por fruiccedilatildeo e 381 frequentemente lia livros de seu proacuteprio interesse Ao indagar as preferecircncias de suporte textual os dados indicaram que 428 dos alunos apreciavam ler textos online ao passo que 239 preferia livros impressos

Findo o periacuteodo de observaccedilatildeo as estagiaacuterias concluiacuteram que a turma ainda que heterogecircnea correspondia ao perfil padratildeo daquela comunidade escolar Ademais revelaram ser perceptiacutevel o desinteresse dos alunos pelas aulas de Liacutengua Portuguesa e de Literatura Observaram tambeacutem que embora parte da turma apresentasse haacutebitos de leitura mais refinados a outra ainda estava em processo de formaccedilatildeo As discentes tambeacutem perceberam que os alunos participavam mais durante as aulas cujos conteuacutedos eram os literaacuterios Concluiacuteram portanto que o ensino de literatura deveria ser articulado com o ensino de liacutengua de modo a proporcionar aulas mais prazerosas e proveitosas para os educandos

A partir do contexto escolar apresentado e considerando as reflexotildees teoacutericas construiacutedas na primeira etapa da disciplina as estagiaacuterias elaboraram o Projeto de Estaacutegio

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fundamentado no meacutetodo recepcional adotado pela disciplina a partir do proposto pelas Diretrizes Curriculares da Educaccedilatildeo Baacutesica do Paranaacute como sugestatildeo de trabalho para o ensino de literatura na Educaccedilatildeo Baacutesica De acordo com esse documento haacute estudos que indicam que se o professor aplicar sistematicamente essa metodologia formaraacute um aluno leitor muito mais criacutetico e competente (PARANAacute 2008)

O objetivo geral do Projeto intitulado A temaacutetica da morte sob a perspectiva da Escola Simbolista foi contextualizar o Simbolismo brasileiro a partir do tema da morte sendo o fio condutor do Projeto A temaacutetica foi desenvolvida a partir de textos contemporacircneos e simbolistas2 os quais embasaram os estudos comparativos e as reflexotildees desenvolvidas Os contos e poemas analisados foram ldquoVenha ver o pocircr-do-sol e outros contosrdquo (TELLES 1995) ldquoIsmaacuteliardquo ldquoHatildeo de chorar por ela os cinamomosrdquo e ldquoCantem outros a clara cor virenterdquo (GUIMARAENS 1985) ldquoVelhordquo ldquoIronia de Laacutegrimasrdquo ldquoA morterdquo e ldquoVisatildeo da morterdquo (SOUSA 1982) Os recursos utilizados para fomentar as discussotildees incluiacuteram desde reproduccedilatildeo de pinturas curta-metragem conto e poemas os quais possuiacuteam a temaacutetica estudada como denominador comum de modo a identificar suas peculiaridades esteacuteticas de forma mais assertiva

As estagiaacuterias elaboraram entatildeo sob orientaccedilatildeo do professor orientador quatro planos de aula fundamentados nas etapas do meacutetodo recepcional de modo a contemplar uma progressatildeo coerente ao longo das aulas Os planos contavam tambeacutem com os procedimentos e os recursos didaacuteticos que seriam utilizados a avaliaccedilatildeo da aprendizagem e o tempo planejado para cada uma das atividades das aulas A etapa de observaccedilatildeo das aulas do professor formador serviu para determinar os horizontes de expectativas dos alunos primeira etapa do meacutetodo recepcional e elaborar o projeto de estaacutegio e os planos de aula

As regecircncias ministradas nos dias 05 e 13 de novembro de 2015 respectivamente foram conduzidas pelas estagiaacuterias de forma intercalada em turnos dentro de uma

2 Os textos utilizados nas aulas de regecircncia como reproduccedilatildeo de pinturas curta-metragem conto e poemas foram os seguintes A Morte do Avarento Disponiacutevel em lt httpsptwikipediaorgwikiMorte_do_Avarentogt Acesso em 031115 Morte da Virgem Disponiacutevel em lthttpvirusdaartenetcaravaggio-a-morte-da-virgemgt Acesso em 031115 Morte de Lucreacutecia Disponiacutevel em httpwwwacervodigitalunespbrbitstreamunesp1797591Mestres20do20Renascimento20CCBB 20pt1 Acesso em 031115 O Uacuteltimo Tamoyo Disponiacutevel em httpsptwikipediaorgwikiRodolfo_Amoedogt Acesso em 031115 Anjo da Morte Disponiacutevel em lthttpscommonswikimediaorgwikiFileEvelyn_De_Morgan_-_Angel_of_Deathjpggt Acesso em 031115 A Morte de Marat Disponiacutevel em lthttpestoriasdahistoria12blogspotcombr201305analise-da-obra-morte-de-marat-dehtmlgt Acesso em 031115 Anjo da Morte Disponiacutevel em lt httpeducacaoglobocomliteraturaassuntomovimentos-literariosromantismo-segunda-geracaohtmlgt Acesso em 031115 A Senhora e a Morte Curta-metragem Disponiacutevel emlthttpswwwyoutubecomwatchv=5SYTkquhhwUamphd=1gt Acesso em 031115 TELLES Lygia Fagundes Venha ver o pocircr-do-sol amp outros contos 10 ed Satildeo Paulo SP Aacutetica 1995 Poemas de Cruz e Souza Disponiacutevel em lthttpwwwcasadobruxocombrpoesiaccruzhtmgt Acesso em 27112015 Poemas de Alphonsus de Guimaraens Disponiacutevel emhttpwwwavozdapoesiacombrobras_lerphpobra_id=7211amppoeta_id=328 Acesso em 27112015

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mesma aula e promoveram constantes debates orais que demandaram a participaccedilatildeo e a ativaccedilatildeo dos conhecimentos preacutevios dos alunos A participaccedilatildeo deles foi satisfatoacuteria ultrapassando as expectativas ao contraacuterio do percebido durante as observaccedilotildees

A primeira aula regida no dia 05 de novembro de 2015 correspondeu agrave etapa de atendimento do horizonte de expectativas Nessa aula cujo objetivo era discutir refletir e comparar a temaacutetica da morte sob uma perspectiva atual e geral bem como ler analisar e relacionar textos de diferentes gecircneros acerca da temaacutetica morte representativos ou natildeo da escola simbolista brasileira a estagiaacuteria pediu primeiramente que os alunos organizassem suas carteiras em semi-ciacuterculo entendida pelos aplicadores do meacutetodo e tambeacutem pela professora da disciplina de Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio de Liacutengua Portuguesa II como a disposiccedilatildeo adequada para se trabalhar em sala de aula Ela entatildeo distribuiu aos alunos folhas em branco para que escrevessem seus nomes e os deixassem agrave vista na parte frontal de suas carteiras para facilitar a comunicaccedilatildeo Em seguida a estagiaacuteria se apresentou aos alunos e explicou como o trabalho seria desenvolvido

Como intuito de atender ao horizonte de expectativas dos alunos a estagiaacuteria solicitou que eles se organizassem em trios para analisar a reproduccedilatildeo impressa de algumas pinturas Cada trio recebeu uma reproduccedilatildeo e precisou discutir os sentimentos que elas provocavam que adjetivos usariam para descrevecirc-las e quais os temas retratados Em seguida cada trio foi convidado a compartilhar suas consideraccedilotildees com o grande grupo A estagiaacuteria por sua vez informou-lhes o tiacutetulo a autoria e a data das pinturas e mediou as discussotildees

O processo de trabalho do meacutetodo recepcional de ensino de literatura ldquoapoacuteia-se no debate constante em todas as suas formas oral e escrito consigo mesmo com os colegas com o professor e com os membros da comunidaderdquo (AGUIAR BORDINI 1988 86) A postura do professor eacute ser mediador da leitura auxiliar e instigar o seu aluno a ser participativo de modo a estabelecer um diaacutelogo com o texto e coautoraacute-lo conforme sugere as Diretrizes Curriculares da Educaccedilatildeo Baacutesica do Paranaacute (PARANAacute 2008) que embasa a disciplina de Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio de Liacutengua Portuguesa II em anaacutelise A leitura precisar ser desenvolvida de forma dialoacutegica e interlocutiva

Em seguida a estagiaacuteria exibiu um curta-metragem de 2009 A Senhora e a morte de Javier Recio Garciacutea e propocircs a discussatildeo de algumas questotildees Na sequecircncia ela destacou que a morte poderia ser representada de diversas maneiras e perguntou aos alunos quais imagens seriam mais recorrentes na atualidade Por fim o toacutepico debatido em aula foi sintetizado e a estagiaacuteria conectou o tema da aula com o que seria abordado na aula seguinte

A segunda regecircncia correspondeu agrave etapa de ruptura do horizonte de expectativas e objetivou analisar e interpretar no gecircnero conto a temaacutetica da morte e seus siacutembolos mais representativos no texto No iniacutecio da aula a estagiaacuteria explicou resumidamente o tema e as atividades que seriam desenvolvidas e distribuiu coacutepias do conto ldquoVenha ver o pocircr do solrdquo de Lygia Fagundes Telles (1970)

Antes da leitura do texto a estagiaacuteria perguntou aos alunos se eles conheciam a autora e os instigou a refletir acerca do tiacutetulo do conto para traccedilar qual relaccedilatildeo poderia

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haver entre ele e a temaacutetica em estudo Convidou entatildeo os alunos aleatoriamente a participarem da atividade Nesse momento a estagiaacuteria talvez por nervosismo desatenccedilatildeo eou inexperiecircncia solicitou que cada um dos alunos lesse partes do texto em voz alta ao inveacutes de pedir que alguns voluntaacuterios fizessem a leitura dramatizada ou a proacutepria estagiaacuteria fizesse a leitura de forma dramatizada com entonaccedilatildeo e os alunos acompanhassem a leitura conforme estava previsto no plano de aula

O fato de um dos alunos quase ao final da leitura ter pedido permissatildeo para finalizaacute-la sem dar oportunidade para que os demais que ainda natildeo tivessem lido participassem indicou que os diferentes niacuteveis de proficiecircncia leitora da turma identificados pela lentidatildeo e dificuldade de alguns e oacutetima desenvoltura de outros perturbaram os leitores mais proficientes ainda que essa diferenccedila natildeo tenha afetado o objetivo da atividade No entanto demonstrou que a leitura em voz alta pelos alunos de trechos de textos muitas vezes com objetivo apenas de eles ficarem atentos mais por questatildeo de disciplina natildeo resulta na compreensatildeo e interesse ao texto que estaacute sendo lido

Em seguida a estagiaacuteria perguntou aos alunos quais foram as suas primeiras impressotildees acerca da histoacuteria dividiu-os em pequenos grupos e entregou a cada um deles sete imagens impressas obtidas de outras fontes de elementos presentes no conto que representavam a morte (chave fechadura nova portinhola enferrujada folhas secas cemiteacuterio abandonado catacumba e pocircr do sol) Explicou na sequecircncia que eles deveriam relacionaacute-las agrave temaacutetica da morte procurando perceber o que havia de estranho identificar em que momento as imagens apareceram no conto e qual sua importacircncia na histoacuteria refletindo sobre a sua influecircncia no desfecho Terminada a discussatildeo a estagiaacuteria convidou os grupos a irem agrave frente da sala para apresentar suas anaacutelises Os alunos entretanto mostraram-se resistentes agrave exposiccedilatildeo preferindo compartilhaacute-las de suas carteiras Ao fim da aula ela os orientou acerca da tarefa de casa que consistiu em trazer por escrito a anaacutelise feita em sala

A estagiaacuteria percebeu que a atividade teria sido mais produtiva se houvesse mais tempo para discussatildeo uma vez que segundo ela em uma aula de apenas 45 minutos natildeo seria possiacutevel promover uma reflexatildeo com mais profundidade

Nas regecircncias realizadas no dia 13 de novembro a classe estava mais vazia e de acordo com o relatoacuterio em anaacutelise isso influenciou na dinacircmica das atividades pois alguns dos alunos mais participativos natildeo estavam presentes Os alunos que estavam em sala por sua vez pouco se voluntariaram a participar das atividades e se mostraram menos interessados em comparaccedilatildeo agraves duas regecircncias anteriores Haacute que se considerar entretanto que essa apatia dos alunos tambeacutem pode ter sido fruto de uma dificuldade enfrentada pela estagiaacuteria em promover outras formas de estiacutemulos agrave sua participaccedilatildeo

Trata-se de uma situaccedilatildeo que eacute desafiadora natildeo soacute para professores em formaccedilatildeo mas tambeacutem para aqueles com muitos anos de experiecircncia na carreira docente a exemplo da professora formadora da turma que durante o periacuteodo de observaccedilatildeo das estagiaacuterias demonstrou ter dificuldade em lidar com os alunos e fazecirc-los participarem e se concentrarem mais

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O objetivo da terceira regecircncia que correspondeu agrave etapa de questionamento do horizonte de expectativas foi comparar os textos trabalhados nas etapas anteriores de modo a refletir sobre as simbologias e aspectos mais representativos da temaacutetica morte No iniacutecio da aula a estagiaacuteria orientou os alunos quanto agraves regras para a participaccedilatildeo oral durante as atividades Na sequecircncia retomou brevemente o conteuacutedo trabalhado na semana anterior

A estagiaacuteria entatildeo exibiu novamente o curta-metragem para que os alunos relembrassem a temaacutetica da produccedilatildeo e observassem como o tema da morte foi construiacutedo por meio de siacutembolos Em seguida entregou aos alunos um quadro comparativo e propocircs o seu preenchimento de forma conjunta

Os alunos contrapuseram o curta-metragem ao conto e observaram em que aspectos se aproximavam e se distanciavam considerando os elementos literaacuterios presentes em relaccedilatildeo agrave temaacutetica da morte (elementos simboacutelicos cores personagens ambienteespaccedilo cliacutemax suspense e linguagem) Durante a discussatildeo dos elementos simboacutelicos a estagiaacuteria pediu que cada grupo compartilhasse sua anaacutelise ndash a qual eles ficaram incumbidos de fazer em casa ndash para os demais alunos Entretanto apenas um grupo fez a liccedilatildeo Ainda que os demais tenham improvisado uma fala os alunos tiveram um bom desempenho e conseguiram fazer as inferecircncias necessaacuterias para a realizaccedilatildeo da atividade Por fim a estagiaacuteria recolheu os quadros comparativos e os entregou para a professora formadora de modo que ela pudesse a seu criteacuterio usaacute-los como forma de avaliaccedilatildeo da aprendizagem de seus alunos

A estagiaacuteria finalizou a aula reforccedilando que os siacutembolos presentes no curta-metragem e no conto que sugerem a morte e um clima de misteacuterio aparecem de forma mais preponderante na escola simbolista tema que foi desenvolvido na aula seguinte

A quarta e uacuteltima regecircncia correspondeu agrave etapa de ampliaccedilatildeo do horizonte de expectativas e objetivou apreciar textos simbolistas refletir sobre os aspectos fundamentais que os caracterizam e apurar a visatildeo criacutetica do aluno acerca da morte e do Simbolismo

Primeiramente a estagiaacuteria distribuiu aos alunos o poema ldquoIsmaacuteliardquo de Alphonsus de Guimaraens e pediu que eles acompanhassem seus versos em um viacutedeo musicalizado Ela observou contudo que os poucos alunos que estavam em sala naquele momento tiveram dificuldade para acompanhar os versos em virtude do barulho dos colegas nos corredores mesmo apoacutes ela pedir o silecircncio e a colaboraccedilatildeo de todos eles Ela tambeacutem percebeu que eles ainda estavam preocupados em terminar a atividade comparativa iniciada na aula anterior para poderem entregaacute-la para a professora formadora que a avaliaria o que tumultuou um pouco o iniacutecio da aula mesmo apoacutes ela assegurar agravequeles que natildeo conseguiram terminar que eles poderiam entregaacute-la em um momento posterior a ser combinado com a professora formadora

Em seguida foi analisado o poema em seus aspectos formais e de conteuacutedo A estagiaacuteria fez uma breve contextualizaccedilatildeo do periacuteodo literaacuterio simbolista e elencou suas principais caracteriacutesticas formais e histoacutericas Ela pediu entatildeo que os alunos abrissem seus livros didaacuteticos para a leitura de um texto e de um quadro comparativo Logo apoacutes

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distribuiu diferentes poemas para que eles em duplas analisassem-nos Os alunos puderam se embasar nas seguintes questotildees qual o tema tratado nesse poema De que maneira ele eacute abordado Quais elementos simboacutelicos presentes O que esses elementos representamO que pode ser observado quanto agrave estrutura formal do poema Quais satildeo as caracteriacutesticas simbolistas presentes

Os grupos entatildeo apresentaram oralmente suas conclusotildees momento em que a estagiaacuteria mediou e fez comentaacuterios relativos agrave discussatildeo Por fim ela recapitulou brevemente tudo que foi estudado ao longo das regecircncias e agradeceu ao grupo e agrave professora formadora pela participaccedilatildeo e compreensatildeo durante todo o processo

A partir do exposto pode-se verificar que as estagiaacuterias conseguiram finalizar o ciclo de etapas proposto na segunda fase da disciplina de realizaccedilatildeo do estaacutegio a qual se embasou na construccedilatildeo teoacuterica construiacuteda na etapa anterior Elas observaram a turma na escola formadora durante 8 horasaula e conseguiram conhecer seu puacuteblico por meio de um levantamento de suas necessidades dificuldades limitaccedilotildees e potencialidades Elaboraram entatildeo o Projeto de Estaacutegio conduziram cada uma regecircncias com duraccedilatildeo de 2 horasaula e produziram individualmente os relatoacuterios finais reportando as atividades

No que diz respeito agraves regecircncias a dupla conseguiu aplicar todas as cinco etapas do meacutetodo recepcional de forma progressiva e ter noccedilatildeo da sua aplicaccedilatildeo a partir da proposiccedilatildeo de atividades originais e dinacircmicas que aproximaram as estagiaacuterias dos alunos Conseguiu tambeacutem contextualizar o Simbolismo brasileiro a partir da temaacutetica da morte e fomentar discussotildees de modo a colaborar para a formaccedilatildeo de um alunoleitor de acordo com a premissa estabelecida pelas Diretrizes Curriculares da Educaccedilatildeo Baacutesica do Paranaacute Isso confirmou que a escolha do meacutetodo recepcional para o ensino de literatura sugerido pelo documento foi acertada

Dentre as iniciativas observadas durante a aplicaccedilatildeo do meacutetodo recepcional que foram bem-sucedidas destaca-se a determinaccedilatildeo do horizonte de expectativas cujo levantamento e anaacutelise foram adequados para compreender natildeo soacute algumas condiccedilotildees da realidade escolar e das necessidades do grupo e seu niacutevel de maturidade ao ler e interpretar os textos mas tambeacutem o tipo de atividades e recursos que poderiam envolvecirc-los e engajaacute-los mais durante as aulas

Ademais cabe sublinhar que a dupla conseguiu ainda atender o horizonte de expectativa dos alunos ao propor atividades em que eles se sentissem confortaacuteveis como a exibiccedilatildeo do curta-metragem romper com as expectativas deles ao fazecirc-los articularem novas ideias e informaccedilotildees por meio da proposiccedilatildeo da leitura da anaacutelise e da discussatildeo do conto sob a temaacutetica morte questionar suas expectativas ao propor a comparaccedilatildeo dos textos trabalhados nas etapas anteriores ampliando a capacidade de os alunos fazerem inferecircncias e ampliar seus horizontes de expectativas ao introduzir poemas para fazecirc-los dialogar com os textos simbolistas de forma dialoacutegica e interlocutiva apurar sua visatildeo criacutetica acerca da morte e da escola literaacuteria simbolista e tomar consciecircncia das novas perspectivas intelectuais construiacutedas

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Dentre os desafios observados destaca-se primeiramente a heterogeneidade da turma especialmente no que diz respeito agrave proficiecircncia leitora A praacutetica confirmou os dados levantados pelas estagiaacuterias durante a primeira etapa do meacutetodo recepcional momento em que descobriram que a maioria natildeo era leitor assiacuteduo e nem lia por fruiccedilatildeo Esse aspecto ficou perceptiacutevel durante a atividade de leitura do conto momento em que todo o grupo percebeu eou confirmou os diferentes niacuteveis existentes entre eles causando mal-estar em alguns

Outro desafio enfrentado foi uma das estagiaacuterias incorrer em um momento pontual no mesmo erro da professora formadora ao induzir os alunos a determinadas interpretaccedilotildees sem abrir espaccedilo para que eles pudessem tecer suas proacuteprias inferecircncias Acreditamos que isso ocorreu pela inexperiecircncia da estagiaacuteria na administraccedilatildeo do tempo e da turma durante a execuccedilatildeo das atividades especialmente ao se considerar que os alunos eram em sua maioria agitados e indisciplinados Outra possiacutevel razatildeo diz respeito agrave carga horaacuteria dedicada agraves regecircncias que talvez natildeo tenha sido suficiente para um desenvolvimento mais aprofundado das leituras atividades e reflexotildees propostas em cada uma das etapas do meacutetodo recepcional fazendo com que o estaacutegio tivesse sua efetividade limitada levando-nos a avaliar a necessidade de ampliar a carga horaacuteria das regecircncias nos estaacutegios

Por fim salienta-se que as estagiaacuterias conseguiram dentro das possibilidades vivenciar uma relaccedilatildeo dialeacutetica entre teoria e praacutetica profissional e as dificuldades e desafios envolvidos durante o processo de ensinoaprendizagem Conseguiram tambeacutem compreender aspectos da realidade escolar em que estavam inseridas e proporcionar aulas prazerosas aos educandos por meio de um trabalho com a literatura buscando compreender mais profundamente o modo como se daacute o processo de formaccedilatildeo sempre tendo em mente a formaccedilatildeo de um alunoleitor criacutetico e competente

4 Consideraccedilotildees finais

Neste artigo relatamos a partir de um caso praacutetico como se daacute a formaccedilatildeo do professor de literatura em liacutengua portuguesa na disciplina de Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio em Liacutengua Portuguesa II do curso de Licenciatura em Letras PortuguecircsInglecircs da UTFPR-Curitiba Para tanto descrevemos como se daacute essa formaccedilatildeo e apresentamos brevemente as concepccedilotildees teoacutericas baacutesicas sobre as quais ela se constroacutei bem como o estaacutegio realizado por uma dupla de estagiaacuterias regularmente matriculadas na disciplina no segundo semestre de 2015

Como resultado verificamos que a disciplina mescla questotildees conceituais e praacuteticas que embasam a capacitaccedilatildeo do discente para a realizaccedilatildeo dos objetivos propostos no Projeto Pedagoacutegico do curso Observamos tambeacutem que a ementa da disciplina privilegia um estudo criacutetico-reflexivo promovido a partir da leitura dirigida de textos teoacutericos e documentos oficiais que fundamentam e norteiam a praacutetica e o ensino de literatura

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Entendemos que o processo formativo priorizado no curso eacute aquele que desenvolve as competecircncias e as habilidades profissionais necessaacuterias para um mercado de trabalho voltado essencialmente para a formaccedilatildeo cidadatilde entendimento construiacutedo a partir da anaacutelise dos documentos que norteiam a formaccedilatildeo em foco Entendemos tambeacutem que se trata de uma formaccedilatildeo que oferece ao futuro professor as ferramentas necessaacuterias para que use o espaccedilo de sua aula para permitir que seu aluno da educaccedilatildeo baacutesica da rede puacuteblica progrida em seus estudos trabalho e como ser humano o que justifica a sugestatildeo pelos documentos que embasam a formaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo do meacutetodo recepcional para esse fim

Depreendemos similarmente que o processo formativo oportunizado na UTFPR-Curitiba viabiliza um contato mais proacuteximo com a realidade profissional e com a reflexatildeo envolvida no processo de ensinoaprendizagem de literatura Eacute pois o momento em que o discente comeccedila a aplicar os aspectos teoacutericos formativos em um ambiente controlado para poder refletir sobre cada passo dado e sentir-se mais seguro para a praacutetica docente fora da academia

Ademais compreendemos que as estagiaacuterias conseguiram se apropriar do conhecimento propiciado pela relaccedilatildeo dialeacutetica estabelecida entre teoria e praacutetica ao empregar o conhecimento teoacuterico construiacutedo na primeira fase da disciplina durante a etapa de realizaccedilatildeo do estaacutegio ainda que tenham enfrentado dificuldades pontuais Aplicaram pois todas as etapas do meacutetodo recepcional durante as regecircncias contextualizaram a temaacutetica literaacuteria e fomentaram discussotildees com o objetivo de contribuir para a formaccedilatildeo de um alunoleitor maduro criacutetico e competente

Entendemos tambeacutem que as estagiaacuterias vivenciaram um processo de ensinoaprendizagem uacutenico e privilegiado A dupla teve a oportunidade natildeo somente de aplicar os conhecimentos teoacutericos na praacutetica mas tambeacutem de compreender e avaliar o espaccedilo social em que o professor estaacute inserido de se apropriar de conhecimentos complementares que contribuiratildeo para o futuro exerciacutecio da sua profissatildeo e de buscar soluccedilotildees diante das situaccedilotildees desafiadoras que ocorreram dentro da sala de aula

Ponderamos entretanto que em virtude de as 4 horasaula dedicadas agraves regecircncias aparentemente natildeo terem sido suficientes para o desenvolvimento mais aprofundado das leituras atividades e reflexotildees propostas nas etapas do meacutetodo recepcional seria interessante que o curso reconsiderasse a carga horaacuteria aumentando-a de modo a proporcionar ao futuro professor um maior contato e entendimento dos contextos dinacircmicos em que iraacute atuar

Por fim entendemos que a formaccedilatildeo oportunizada pelo curso ainda que desafiada por contextos tais como aqueles observados na escola formadora onde o estaacutegio ocorreu desenvolve as competecircncias e habilidades necessaacuterias ao futuro professor para atuar em contextos dinacircmicos e colaborar para a formaccedilatildeo cidadatilde de seus alunos impactando as sociedades positivamente

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Recebido em 28 de abril de 2017

Aceito em 10 de novembro de 2017

Mirelle Mussi Giri

Licenciada em Letras PortuguecircsInglecircs pela Universidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute campus Curitiba e em Direito pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute mirellemussihotmailcom

Alice Atsuko Matsuda

Mestre em Letras ndash Literatura e Ensino ndash pela Universidade Estadual Paulista ldquoJulio de Mesquita Filhordquo Doutora em Letras ndash Estudos Literaacuterios pela Universidade Estadual de Londrina Professora Titular Adjunta IV e Docente Permanente do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos de Linguagens da Universidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute Atualmente encontra-se em Estaacutegio Poacutes-doutoral no Programa de Poacutes-doutoramento em Materialidades da Literatura pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra com auxiacutelio da Capes alicemutfpredubr

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eISSN 22376844polifonia

Interdiscursividade e intertextualidade a constituiccedilatildeo dos sentidos do dizer no universo autoral

Interdiscursivity and Intertextuality The Constitution of Meanings in the Authorial Universe

Interdiscursividad e intertextualidad La constitucioacuten de los sentidos Del decir en el universo de la autoriacutea

Terezinha Maia Martincowski

Resumo

Neste estudo procuramos discutir a constituiccedilatildeo do universo autoral de jovens universitaacuterios a partir da leitura interpretativa e da formaccedilatildeo de arquivos entendendo que produzimos a partir do uso de textos e argumentos que habitam nossos arquivos A partir dessa compreensatildeo o objetivo da presente pesquisa foi o de analisar o processo de escrita com autoria A anaacutelise da produccedilatildeo foi orientada para a busca da plurivocidade a partir da interdiscursividade e da intertextualidade observando se as ideias principais de textos e de discussotildees trabalhadas em sala de aula satildeo consideradas na produccedilatildeo escrita A maioria manteve-se no tema indicando tanto apropriaccedilatildeo da tarefa como atitude interpretativa das leituras e constituiccedilatildeo dos sentidos do dizer e tambeacutem apresentou textos produzidos com autoria transformando o dizer alheio em dizer proacuteprio assumindo posicionamento axioloacutegico e responsividadePalavras-chave Constituiccedilatildeo autoral ensino superior interdiscursividadeintertextualidade

Abstract

In this study we discuss the constitution of the authorial universe of young university students by means of the interpretive reading and the formation of archives understanding that we produce through the use of texts and arguments that lie in our archives The objective of this research was to analyze the process of authorial writing The analysis of the production was aimed at the search for plurivocity interdiscursivity and intertextuality observing if the main ideas of texts and of discussions held in class are considered in the written production The great majority attained to the subject indicating appropriation of the task as an interpretative attitude towards the readings and as a constitution of meanings Most also presented texts produced with authorship transforming the saying of others into their own words assuming axiological positioning and responsivenessKeywords Authorial constitution higher education interdiscursivityintertextuality

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Resumen

En este estudio tratamos de discutir la constitucioacuten del universo autoral de joacutevenes universitarios a partir de la lectura interpretativa y de la formacioacuten de archivos entendiendo que producimos a partir del uso de textos y argumentos que habitan nuestros archivos A partir de esa comprensioacuten el objetivo de la presente investigacioacuten fue el de analizar el proceso de escritura con autoriacutea El anaacutelisis de la produccioacuten se orientoacute hacia la buacutesqueda de la plurivocidad a partir de la interdiscursividad y de la intertextualidad observando si las ideas principales de textos y de discusiones trabajadas en el aula se consideran en la produccioacuten escrita La gran mayoriacutea se mantuvo en el tema indicando tanto apropiacioacuten de la tarea como actitud interpretativa de las lecturas y constitucioacuten de los sentidos del decir y tambieacuten presentoacute textos producidos con autoriacutea transformando el decir ajeno en decir propio asumiendo posicionamiento axioloacutegico y responsividadPalabras clave Constitucioacuten autoral ensentildeanza superior interdiscursividadintertextualidad

1 Introduccedilatildeo

O grau universitaacuterio eacute um passo de muita importacircncia na vida dos jovens Entretanto de maneira geral os universitaacuterios tecircm enfrentado dificuldades em sua formaccedilatildeo acadecircmica Uma das questotildees que gera dificuldades entre os alunos iniciantes eacute que nem sempre o ensino superior tem condiccedilotildees de acolher os anseios desses jovens no sentido de aproximaccedilatildeo entre os conteuacutedos veiculados nos bancos escolares e a visatildeo da accedilatildeo profissional utilitarista e pragmaacutetica que eles tecircm Tal fato acaba resultando na desidealizaccedilatildeo ou na ruptura de um ideal como considera Millan et al (1991)

Aleacutem do fato de o conteuacutedo geralmente natildeo atender agraves expectativas do aluno iniciante muitos satildeo os que encontram dificuldades na internalizaccedilatildeo desses conhecimentos Isso ocorre natildeo apenas em decorrecircncia de a formaccedilatildeo anterior trazer lacunas mas tambeacutem devido ao fato de os conteuacutedos serem totalmente novos e principalmente pela necessidade de adaptaccedilatildeo a uma nova metodologia de aprendizagem e pela solicitaccedilatildeo de atividades curriculares que caminham na direccedilatildeo de uma formaccedilatildeo de sujeito autocircnomo

Essas dificuldades satildeo perfeitamente visualizadas pelo corpo de docentes universitaacuterios quando percebem a luta que seus alunos enfrentam com textos acadecircmicos quanto agrave compreensatildeo interpretaccedilatildeo expressatildeo oral produccedilatildeo escrita entre outros aspectos Nesse cenaacuterio os professores discutem como dar conta dessas dificuldades juntamente com todo o conteuacutedo programaacutetico e demais compromissos de formaccedilatildeo E os alunos reclamam que os textos acadecircmicos satildeo muito difiacuteceis e que a linguagem dos professores eacute complicada

Na base desse conflito encontram-se textos dos alunos que apresentam falta de coesatildeo de coerecircncia de sentido de clareza de encadeamento de adequabilidade a uma linguagem escrita e para o outro ideias truncadas lacunas quebras de estrutura falta de linearidade no discurso etc Uma produccedilatildeo escrita de forma tatildeo confusa pode evidenciar tambeacutem entre outros aspectos a falta de compreensatildeo das leituras feitas

Sampaio (2009) analisa a questatildeo da produccedilatildeo escrita de nossos alunos ao discutir a atuaccedilatildeo linguiacutestica de estagiaacuterios do curso de Letras de uma Universidade Federal Para a autora os alunos apresentam dificuldades no ensino da liacutengua escrita natildeo por questotildees

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didaacuteticas mas porque eles proacuteprios natildeo sabem escrever A partir de um referencial bourdieusiano essa falta de domiacutenio da liacutengua eacute considerada pela autora como resultado da hysteresis (NOGUEIRA NOGUEIRA 2004 p 55 apud SAMPAIO 2009 p39) ou seja ao longo de nossas relaccedilotildees vamos adquirindo viacutecios e haacutebitos arraigados que natildeo se alteram mesmo que as condiccedilotildees de uso sejam outras Eacute importante destacar que essas dificuldades satildeo encontradas mesmo em cursos de grande distinccedilatildeo no meio educacional como o de Letras e em universidades puacuteblicas como no caso citado acima

A partir de nosso interesse em analisar o desempenho de alunos iniciantes de gradu-accedilatildeo quanto agrave sua produccedilatildeo escrita em situaccedilotildees especiacuteficas faz-se mister discutirmos questotildees relativas agrave leitura agrave interpretaccedilatildeo e agrave produccedilatildeo de textos com o intuito de pro-blematizar e abrir espaccedilo para reflexatildeo sobre essas dificuldades que parecem ser uma tocircni-ca dos anos iniciais da graduaccedilatildeo senatildeo de todo o percurso acadecircmico de muitos alunos

2 Universo autoral

As discussotildees feitas por Paciacutefico (2002) mostram uma estreita relaccedilatildeo entre leitura interpretaccedilatildeo e produccedilatildeo de textos O entrelaccedilamento desses trecircs fatores eacute o que permite segundo Bakhtin (19921988a 1988b) a constituiccedilatildeo do autor ou da autoria que envolve uma posiccedilatildeo axioloacutegica e que engendra uma relaccedilatildeo de valor materializada no texto pelos objetos discursivos O autor a partir do interdiscurso e do intertexto deve apresentar uma postura que reflete e refrata esses valores

O estreitamento entre os aspectos de leitura interpretaccedilatildeo e produccedilatildeo eacute considerado por Paciacutefico (2002) a partir da relaccedilatildeo existente entre o texto argumentativo e a autoria As caracteriacutesticas desse tipo de texto solicitam que o produtor do texto sustente um ponto de vista a respeito do objeto de discurso Assim o sujeito deve assumir a responsabilidade pelo seu dizer de forma a apresentar argumentos persuasivos com intuito de defender seu ponto de vista

Eacute esse movimento que vai permitir segundo a autora que o produtor aleacutem de assumir a responsabilidade pelo dizer tambeacutem faccedila isso a partir de uma perspectiva histoacuterica dos sentidos controlando os pontos de fuga ou seja mantendo-se fiel agrave discussatildeo Contudo esse niacutevel de argumentaccedilatildeo tambeacutem depende de uma accedilatildeo interpretativa

Para a produccedilatildeo de um texto argumentativo devemos considerar a constituiccedilatildeo da autoria a partir da assunccedilatildeo da responsabilidade pelo dizer o que depende por sua vez de uma accedilatildeo de interpretaccedilatildeo pois o domiacutenio da argumentaccedilatildeo envolve a construccedilatildeo dos sentidos que vatildeo surgindo a partir da interpretaccedilatildeo do autor

Entretanto Paciacutefico (2002) destaca que na accedilatildeo da leitura a grande maioria dos leitores soacute atinge o niacutevel do inteligiacutevel sem uma accedilatildeo interpretativa de fato A etapa final que vem a ser a interpretaccedilatildeo depende de um movimento soacutecio-histoacuterico de construccedilatildeo de sentidos que segundo a Anaacutelise do Discurso estaacute ligada ao sujeito agrave histoacuteria e agrave ideologia Esse movimento eacute necessaacuterio uma vez que o sentido nunca estaacute pronto e eacute dependente da interpretaccedilatildeo do sujeito

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Nesse processo Paciacutefico (2002) destaca outra noccedilatildeo importante que eacute a de movimento do sujeito No niacutevel inteligiacutevel observamos a falta de movimento do sujeito-leitor por conta de uma atitude de leitura parafraacutestica que apenas reproduz transformando o sujeito em uma focircrma-leitor Quanto agrave leitura interpretativa percebemos o movimento de busca e construccedilatildeo de sentidos Tal atitude permite o controle da dispersatildeo e a superaccedilatildeo de equiacutevocos

Essa separaccedilatildeo entre a leitura parafraacutestica e a leitura interpretativa eacute constatada desde a Idade Meacutedia quando a necessidade da eacutepoca de geraccedilatildeo de memoacuteria obrigava muitos a gestos incansavelmente repetitivos de reproduccedilatildeo Assim aqueles que tinham a obrigaccedilatildeo da praacutetica de leitura e coacutepia a serviccedilo de interesses de terceiros acabavam se submetendo a gestos de silenciamento e renuacutencia de autoria e originalidade Pecircucheux (1997) entrelaccedila essa discussatildeo com a perspectiva de divisatildeo social do trabalho de leitura em uma relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo poliacutetica

Para a constituiccedilatildeo do universo autoral aleacutem da interpretaccedilatildeo torna-se necessaacuterio discutirmos tambeacutem a questatildeo de arquivo que segundo Pecircucheux (1997) eacute o campo de documentos pertinentes e disponiacuteveis sobre uma questatildeo e que se constitui em fonte de consulta para vaacuterias accedilotildees Quando nos comunicamos utilizamos informaccedilotildees que estatildeo registradas nesses arquivos Contudo a formaccedilatildeo desses arquivos eacute feita a partir de um espaccedilo de acolhimento das vaacuterias vozes que permeiam nosso meio tornando-as nossas vozes Esse eacute o espaccedilo da interdiscursividade e da intertextualidade

Nessa linha pretendemos neste estudo entender o processo da interdiscursividade a partir de Bakhtin (1988a) para quem tudo o que eacute dito e expresso natildeo pertence somente ao falante narrador autor ou sujeito discursivo Desde que nascemos aprendemos sobre o mundo a partir das relaccedilotildees das ideias e da fala dos outros que atribuem significado aos fatos fenocircmenos relaccedilotildees e objetos do mundo

Outra caracteriacutestica que tambeacutem compotildee as produccedilotildees eacute o diaacutelogo entre os muitos textos ou a intertextualidade Segundo Koch e Travaglia (1991) as relaccedilotildees estabelecidas no interior de um texto remetem a outros textos pois os textos de um mesmo campo de conhecimento ou mesmo de outras aacutereas eacutepocas ou culturas dialogam uns com os outros Quanto a esse aspecto Blikstein (1994 p 45) destaca que [hellip] ldquoo discurso seja qual for nunca eacute totalmente autocircnomo [hellip] o discurso natildeo eacute falado por uma uacutenica voz mas por muitas vozes geradoras de textos que se entrecruzam no tempo e no espaccedilordquo [hellip]

Entretanto deve-se considerar que o texto embora constituiacutedo a partir da interdiscursividade e da intertextualidade portanto sendo dialoacutegico pode deixar entrever as muitas vozes que o compotildeem (polifonia) ou apagaacute-las silenciaacute-las em um texto monofocircnico (BARROS 1994) A partir do movimento ou natildeo das vaacuterias vozes o proacuteprio texto passa a ser entendido como algo aleacutem de um objeto de comunicaccedilatildeo para conforme Barros (1994) transformar-se em objeto de significaccedilatildeo pois se constitui a partir dos sentidos que se cruzam transitam e se enredam Texto eacute um processo de construccedilatildeo reproduccedilatildeo e transformaccedilatildeo desses sentidos

Quando produzimos algo fazemos uso de autores argumentos ideias ou nos valemos de teorias teses pesquisas que habitam nossos arquivos e que se tornam fonte de ajuda

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nesse caminho Fiorin (1994) considera que texto eacute a unidade da manifestaccedilatildeo ou o lugar desse interdiscurso

Essa relaccedilatildeo de acolhimento das vaacuterias vozes tambeacutem ocorre com grande intensidade no meio escolar O conhecimento apropriado pelos alunos acontece a partir da relaccedilatildeo estabelecida com a fala dos professores e os dizeres dos livros O mundo se expressa pelas vaacuterias vozes que nesse espaccedilo circulam e se aprende por meio da interdiscursividade incorporando internalizando inclusive pelas vozes que tambeacutem decidimos silenciar (LEMOS 1994 BRAIT 1994)

O que destacamos aqui eacute o espaccedilo de dialogia que existe em uma accedilatildeo de constituiccedilatildeo de um universo autoral Primeiramente a interpretaccedilatildeo vai depender do conhecimento que temos sobre a questatildeo Conforme expotildee Paciacutefico (2002) a interpretaccedilatildeo tambeacutem depende de um aparato teoacuterico que por sua vez depende do interdiscurso e do acesso a arquivos e da proacutepria interaccedilatildeo verbal com os arquivos que possuiacutemos ou seja com o outro enquanto fonte de nossos dados

A preocupaccedilatildeo com o processo de escrita de nossos alunos universitaacuterios tambeacutem deve caminhar nessa direccedilatildeo ou seja da constituiccedilatildeo de autor de seus textos Os textos acadecircmicos devem ser entendidos como dialoacutegicos pois satildeo o resultado da composiccedilatildeo do confronto e das trocas ocorridas entre muitas vozes acadecircmicas contemporacircneas ou natildeo

Essas constataccedilotildees nos levam a sempre acompanhar nossos alunos nessa constituiccedilatildeo de um universo autoral a partir da formaccedilatildeo de arquivo de um trabalho interpretativo e da consideraccedilatildeo da interdiscursividade e da intertextualidade Natildeo se trata apenas de compreender e apreender conteuacutedos e conceitos especiacuteficos uma vez que mesmo estes requerem que o aluno se aproprie deles tornando-os proacuteprios

A partir dessas preocupaccedilotildees inserem-se os objetivos deste estudo quais sejam de desenvolver atividades com textos que permitam a formaccedilatildeo de arquivos de forma a constituir o sujeito-inteacuterprete sujeito-produtor e sujeito-autor assim como utilizar a pesquisa-accedilatildeo como forma de analisar expor interpretar e interromper ou transpor limites sociais

De forma geral espera-se contribuir para o desenvolvimento do conhecimento sobre a integraccedilatildeo dos alunos iniciantes ao conhecimento veiculado no universo acadecircmico assim como para as praacuteticas educativas inserindo o aluno em um processo dinacircmico de aprendizagem

3 Metodologia

Quanto aos procedimentos escolhidos para a investigaccedilatildeo o presente estudo orientou-se especificamente pela pesquisa-accedilatildeo que segundo Andreacute (2001) eacute uma teacutecnica que envolve uma proposta praacutetica de implementaccedilatildeo ou redimensionamento de algo No caso do presente estudo os resultados apoiaram implementaccedilatildeo de atividades no segundo periacuteodo letivo do mesmo ano

O maior envolvimento com esse eixo metodoloacutegico daacute-se pelo interesse investigativo da pesquisa estar voltado para a proacutepria experiecircncia vivida pelo professor envolvendo

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reflexatildeo e transformaccedilatildeo dentro de um processo sistematizado Segundo Pereira (2002) e Zeichner (2002) Kurt Lewin um dos fundadores da pesquisa-accedilatildeo defendia que o conhecimento deveria ser criado a partir da soluccedilatildeo de problemas em situaccedilotildees concretas de vida

Nessa mesma direccedilatildeo Thiollent (2002) destaca que o principal objetivo da pesquisa-accedilatildeo eacute proporcionar aos pesquisadores e grupos participantes caminhos que permitam respostas mais eficazes aos problemas coletivos e situaccedilotildees vividas Jaacute Kemmis e Wilkinson (2002) consideram a importacircncia da pesquisa-accedilatildeo por conta de sua proposta de ajuda agraves pessoas a investigarem e a mudarem suas realidades sociais e educacionais por meio de mudanccedilas de algumas das praacuteticas que constituem suas realidades vividas

31 Sobre os sujeitos da pesquisa

Os participantes deste estudo satildeo estudantes do 1ordm ano de graduaccedilatildeo de um Centro Universitaacuterio (Fundaccedilatildeo regional) de uma cidade do interior do estado de Satildeo Paulo dos cursos de licenciatura em Fiacutesica Quiacutemica Matemaacutetica Biologia Pedagogia e Educaccedilatildeo Fiacutesica O trabalho1foi desenvolvido em uma disciplina que trata da introduccedilatildeo ao conhecimento do campo da pesquisa em educaccedilatildeo no primeiro semestre do primeiro ano Os dados foram colhidos ao final do primeiro semestre

Eacute importante tambeacutem destacar que costumeiramente ao final do periacuteodo os alunos jaacute concluiacuteram seus trabalhos e provas o que imprime um clima de recesso nas atividades principalmente porque muitos deles satildeo de cidades vizinhas e retornam a elas Isso acabou interferindo na quantidade de alunos envolvidos O nuacutemero de alunos interessados em participar da pesquisa no momento do convite e da veiculaccedilatildeo das informaccedilotildees dos trabalhos foi superior a vinte sendo que destes compareceram nove alunos no momento da coleta de dados

32 Procedimentos metodoloacutegicos

Logo no iniacutecio do semestre foram solicitados aos alunos trabalhos constantes do programa da disciplina jaacute com o objetivo tambeacutem de preparativo para a coleta de dados Trecircs textos em especiacutefico de Alves (1996) Cortella (1998) e Gleiser (2010) foram preparados e trabalhados em sala de aula com a intenccedilatildeo de formaccedilatildeo de arquivo no sentido do conceito de Pecircuchex (1997) permitindo a formaccedilatildeo de conhecimento do assunto e tornando o tema familiar

No final do semestre no momento da coleta de dados foi solicitada uma produccedilatildeo escrita que pudesse ser discutida a partir das informaccedilotildees e conteuacutedos veiculados nos textos

1 O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitecirc de Eacutetica e Pesquisa da Instituiccedilatildeo tendo sido inscrito no CONEP sob o nuacutemero FR 332139

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supracitados Como tema desencadeador que permitisse a interlocuccedilatildeo dessas trecircs leituras foi proposta a seguinte pergunta ldquoComo a ciecircncia pode caminhar para aleacutem dos mitosrdquo

33 Criteacuterios de anaacutelise

As anaacutelises quanto ao Universo Autoral estatildeo inseridas na dimensatildeo da busca da plurivocidade a partir da interdiscursividade e da intertextualidade compreendendo-se esses processos a partir da formaccedilatildeo de arquivo e da compreensatildeo (interpretaccedilatildeo) dos textos lidos e das discussotildees de sala de aula O que orientou esse foco de anaacutelise foi a intenccedilatildeo investigativa de observar se as ideias principais dos textos de apoio e das discussotildees de sala de aula satildeo consideradas na produccedilatildeo escrita dos alunos

Natildeo se teve o propoacutesito de discutir neste estudo estilos de linguagem ou adequaccedilatildeo linguiacutestica Entendemos que os alunos estavam iniciando um curso em que as exigecircncias concernentes agrave linguagem acadecircmica ainda natildeo haviam sido consideradas e aleacutem disso havia o propoacutesito de permitir que o aluno produzisse um texto mais independente de regras riacutegidas como incentivo ao universo autoral

Ao serem analisados os dados os criteacuterios de plurivocidade (intertextualidade e interdiscursividade) foram tabulados da seguinte forma

I ndash Citaccedilatildeo das fontesIIndash Composiccedilatildeo autoral dos textosIII ndash Manutenccedilatildeo do tema propostoPara que a questatildeo da interpretaccedilatildeo pudesse ser observada foi tomado o cuidado

de apresentar a questatildeo desencadeadora e alertar para o uso de fontes de apoio sem explicaccedilotildees conceituais

4 Resultados e discussatildeo dos dados

As anaacutelises que se inserem no bojo desta pesquisa procuram um ponto de equiliacutebrio que como destaca Freitas (1994) natildeo reduza seus dados agraves consideraccedilotildees de um objetivismo abstrato com consideraccedilotildees cientiacuteficas ou generalizaccedilotildees que procuram certezas cristalizadas Tampouco se persegue um subjetivismo ao desencarnar individualismos que perdem seu sentido na relaccedilatildeo com o outro

Haacute que se levar em conta que a linguagem eacute fruto de um contexto e as ideias nela contidas satildeo social e culturalmente marcadas Conforme a mesma autora essas duas perspectivas o subjetivismo e o objetivismo quando tratadas individualmente acabam fragmentando a linguagem por natildeo considerar que ela se origina e se concretiza somente no contexto real de sua enunciaccedilatildeo Todo enunciado eacute organizado e adquire sentido a partir do meio social e das condiccedilotildees postas para sua enunciaccedilatildeo

Assim a preocupaccedilatildeo principal eacute levar em conta o dinamismo e o movimento que envolve uma produccedilatildeo qual seja o contexto o sujeito a histoacuteria e a motivaccedilatildeo A partir dessas consideraccedilotildees os dados apontam a seguinte configuraccedilatildeo

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Quadro 01 ndash Dados gerais dos textos

TEXTOS CITACcedilAtildeO DA FONTE

COMPOSICcedilAtildeO AUTORAL DOS TEXTOSMANUTENCcedilAtildeO DO TEMA PROPOSTOTEXTOS DE

APOIOSALAAULA

ELABORACcedilOtildeES PROacutePRIAS

03 X x X x

04 X x X x

19 X

20 X x X x

22 X x

23 x X x

33 X X x

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37 x X x

Fonte Elaboraccedilatildeo proacutepria

Inicialmente eacute importante considerar que o texto 19 faz uso exclusivo de coacutepia de trechos de um dos textos de apoio com muito poucas adaptaccedilotildees para o contexto desta anaacutelise O texto sequer apresenta uma linha de argumentaccedilatildeo que possa permitir um encadeamento entre os trechos copiados Trata-se apenas de uma colcha de retalhos cujos mosaicos natildeo se encaixam A questatildeo desencadeadora da atividade ldquocomo a ciecircncia pode caminhar para aleacutem dos mitosrdquo eacute substituiacuteda por outra indagaccedilatildeo ldquose a ciecircncia pode explicar o propoacutesito das coisasrdquo pergunta essa adaptada e constante do proacuteprio texto copiado de Gleiser (2010)

Assim o propoacutesito da atividade natildeo foi considerado e o uacutenico criteacuterio atendido foi o uso de texto de apoio O que se revela nessas condiccedilotildees eacute mais do que a natildeo inserccedilatildeo do autor na atividade mas principalmente o abrir matildeo de ser autor

Para Bakhtin (1992) haacute uma distinccedilatildeo entre autor-pessoa e autor-criador sendo que no primeiro caso se trata do escritor eno segundo da funccedilatildeo esteacutetica que materializa as relaccedilotildees de valor entre a obra e o autor Eacute importante abrir uma ressalva no sentido de se observar que as anaacutelises de Bakthin sempre se referiram ao estudo do texto literaacuterio Contudo em ldquoPara uma filosofia do atordquo (sd) Bakhtin considera que

O momento que o pensamento teoacuterico discursivo (nas ciecircncias naturais e na filosofia) a descriccedilatildeo-exposiccedilatildeo histoacuterica e a intuiccedilatildeo esteacutetica tecircm em comum [hellip] eacute este todas as atividades estabelecem uma cisatildeo entre o conteuacutedo ou sentido de um dado ato-atividade e a realidade histoacuterica do seu serhellip (p 19)

Tal anaacutelise mostra que existem aspectos que permitem aproximaccedilatildeo entre as escritas mesmo que de estilos diferentes As anaacutelises deste trabalho consideram que mesmo nos estu-dos cientiacuteficos e nos trabalhos acadecircmicos pode-se discutir o autor-pessoa e o autor-criador

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A partir dessa compreensatildeo entendemos que eacute possiacutevel encontrar trabalhos que satildeo coacutepias ou paraacutefrases no sentido de agregarem muito pouco como trabalhos em que se evidencia todo um processo de construccedilatildeo criaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo de um dizer e um saber de forma dialoacutegica interdiscursiva e criativa Nesse caso entatildeo a funccedilatildeo esteacutetica discutida pelo autor seraacute interpretada aqui como a singularidade que eacute imanente e que constitui o texto acadecircmico

Quanto ao texto 19 podemos afirmar sim que existiu uma produccedilatildeo que foi feita uma escolha de tema que foi escolhido um texto de apoio que foram escolhidos trechos a serem copiados Contudo natildeo existiu autoria no sentido do estabelecimento da singularidade da obra da mesma forma que o texto natildeo refratou valores que partem de uma posiccedilatildeo axioloacutegica (BAKHTIN 1992)

Para Faraco (2010) a funccedilatildeo esteacutetica ou a singularidade nos textos acadecircmicos sustenta e daacute corpo agrave obra e permite refratar o universo social escolhido Nessa situaccedilatildeo o autor-criador torna-se veiacuteculo das vozes escolhidas recortando e refratando falas alheias e reordenando-as em um ato de apropriaccedilatildeo no qual a mesma realidade torna-se refratante

Eacute certo que o autor-pessoa ao fazer escolhas evidencia uma posiccedilatildeo axioloacutegica Contudo ao natildeo se apropriar dela essa posiccedilatildeo axioloacutegica natildeo se concretiza frente a essas escolhas natildeo permitido transpor valores de uma esfera social para uma esfera pessoal e responsiva

O ato de escrever ou tornar-se autor-criador de um texto deve voltar-se como argumenta Sobral (2010) para a compreensatildeo do ato ser concreto ativo durativo intencional envolvendo o aspecto responsivo de sua accedilatildeo A responsividade para esse autor envolve um compromisso eacutetico do agente

Pode-se dizer entatildeo que o texto 19 natildeo envolveu criaccedilatildeo posiccedilatildeo axioloacutegica responsividade e que as vozes escolhidas natildeo se tornaram refratantes saindo do espaccedilo do universo autoral Assim a anaacutelise desse texto seraacute considerada dessa forma global natildeo havendo sentido o detalhamento de cada um dos aspectos analisados para os outros textos

41 Citaccedilatildeo das fontes

Quanto agrave citaccedilatildeo das fontes de apoio nenhum dos nove textos produzidos indicou as fontes dos textos utilizados Eacute importante abrir um espaccedilo para essa discussatildeo pois a disciplina em questatildeo trata do conhecimento cientiacutefico e da importacircncia de serem citadas fontes consultadas Os alunos satildeo orientados para entender que mesmo utilizando informaccedilotildees ideias e concepccedilotildees de outros autores com palavras proacuteprias ainda assim a autoria das informaccedilotildees ideias e concepccedilotildees satildeo do autor lido e as fontes consultadas devem ser mencionadas O que se percebe eacute que no momento da produccedilatildeo velhos haacutebitos solidificados resistem cruelmente agraves novas orientaccedilotildees Eacute preciso muito mais do que apenas orientaccedilotildees e informaccedilotildees

Tal fato chama algumas consideraccedilotildees Primeiramente a partir da experiecircncia da pesquisadora eacute constatado que eacute proacuteprio de alguns jovens escritores fazerem coacutepia literal das fontes consultadas sem explicitar sua origem em um ato apropriativo totalmente

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irresponsivo como jaacute analisado na seccedilatildeo anterior Contudo todos os outros textos envolvem um ato de criaccedilatildeo em que as vozes alheias se transformam em vozes proacuteprias refratando uma realidade social de forma responsiva

O que se observa nessa situaccedilatildeo eacute outro fenocircmeno tambeacutem comum Entre os escritores iniciantes e natildeo acadecircmicos existe a compreensatildeo de que eu digo as palavras do outro com minhas palavras e elas se tornam minhas Se por um lado existe um equiacutevoco entre o uso da palavra e ser o autor ou responsaacutevel pela informaccedilatildeo tambeacutem se vecirc por outro lado a assunccedilatildeo ao ato criador

No primeiro caso trata-se de uma regra acadecircmica que envolve o respeito e a consideraccedilatildeo (por meio da citaccedilatildeo de autoria) aos resultados alcanccedilados por meio de trabalho loacutegico ou empiacuterico Assim natildeo se trata de a palavra veiculada ser deste ou daquele autor mas de a informaccedilatildeo ser fruto do trabalho autoral Mas eacute importante tambeacutem considerar a segunda situaccedilatildeo quando a natildeo citaccedilatildeo das fontes utilizadas reflete uma apropriaccedilatildeo dos textos e a transformaccedilatildeo deste em discurso proacuteprio Neste caso percebe-se uma reivindicaccedilatildeo do ato de autoria e uma accedilatildeo criativa

Haacute um uacuteltimo aspecto a ser analisado nessa questatildeo que eacute o fato de os alunos terem sido orientados quanto agrave escrita acadecircmica e saberem das regras da citaccedilatildeo O natildeo uso desse expediente pode ser indicativo de ldquovelhos haacutebitosrdquo

Na concepccedilatildeo de Bourdieu (2008 p 21-22) habitus (disposiccedilotildees) eacute um ldquo[hellip] princiacutepio gerador e unificador que reproduz as caracteriacutesticas intriacutensecas e relacionais de uma posiccedilatildeo em um estilo de vida uniacutevoco [hellip]rdquo sendo que essas disposiccedilotildees satildeo adquiridas segundo Bonnewitz (2003) durante o processo de socializaccedilatildeo O indiviacuteduo interioriza mecanismos sociais e educacionais que geram comportamentos e valores aprendidos como oacutebvios e naturais Assim aprendemos e automatizamos comportamentos valores e conhecimentos

O habitus sempre estaacute integrando novos valores ajustando e adaptando estes aos valores antigos Contudo ldquoexiste uma ineacutercia (ou hysteresis) do habitus cuja tendecircncia espontacircnea [hellip] consiste em perpetuar estruturas correspondentes agraves suas condiccedilotildees de produccedilatildeordquo (BORDIEU 2001 p 196) Ou como define Sampaio (2009 p39) ldquotendecircncia do habitus a permanecer no indiviacuteduo ao longo do tempo mesmo que as condiccedilotildees objetivas que o produziram e que estatildeo nele refletidas tenham se alteradordquo A hysteresis pode ser justamente o que se vecirc em comportamentos linguiacutesticos que se mantecircm apesar das orientaccedilotildees educacionais contraacuterias

Essas consideraccedilotildees tambeacutem abrem espaccedilo para a questatildeo do que se produz na escola uma vez que o respeito agrave fonte de informaccedilatildeo eacute um procedimento que cabe ser cultivado em instacircncias anteriores ao grau universitaacuterio Para Freitas (1994) a concepccedilatildeo sociointeracionista considera que via de regra a escola ensina a crianccedila a escrever mas natildeo a dizer e sim a repetir Na escola muitas vezes o aluno eacute abstrato e as atividades satildeo esteacutereis e descontextualizadas Nesse contexto trabalhar com as informaccedilotildees de terceiros de maneira a manter sua autoria faz parte de uma dialogicidade que precisa ser mais estimulada no ensino baacutesico

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42 Composiccedilatildeo autoral dos textos

Levando em conta que a intertextualidade2 natildeo eacute medida apenas pela citaccedilatildeo do autor pudemos constatar que 625 dos textos fizeram uso dessas fontes (desconsiderando o texto 19) e em apenas um caso em situaccedilatildeo especiacutefica observamos o uso de informaccedilatildeo de texto de apoio de maneira equivocada apresentando uma compreensatildeo contraacuteria agrave colocada pelo autor

Quanto agrave questatildeo da interdiscursividade no que se refere ao uso de informaccedilotildees de sala de aula observamos que 75 das produccedilotildees fizeram uso dessas informaccedilotildees Muitas questotildees controversas relativas agrave pesquisa social discutidas durante o semestre foram consideradas nas produccedilotildees destacando uma apropriaccedilatildeo do dizer alheio na proacutepria autoria

Quanto ao uso de opiniatildeo proacutepria apoiada em senso comum pudemos observar que 75 dos textos fizeram uso desse expediente O uso de opiniatildeo proacutepria ou de senso comum nesses casosocorreu a partir das fontes de apoio sem que os autores se desviassem do tema

Analisando os criteacuterios concernentes ao universo autoral de forma integrada constatamos que do total dos textos 375 fizeram uso de todos os aspectos de forma integrada ou seja dos textos de apoiodas informaccedilotildees de sala de aula e de elaboraccedilotildees proacuteprias Aleacutem disso 6255 fizeram uso de informaccedilotildees de sala de aula e elaboraccedilotildees proacuteprias e 50 fizeram uso de textos de apoio e elaboraccedilotildees proacuteprias tambeacutem de forma integrada

O que se destaca eacute que aleacutem de um percentual elevado quanto ao uso de fontes de apoio 75 dos textos fazem uso de elaboraccedilotildees proacuteprias de forma integrada com os textos de apoio e com as discussotildees de sala de aula sem desviar-se do tema proposto Isso nos remete diretamente agrave questatildeo da autoria no sentido do autor-criador de Bakhtin (1992) Todos esses textos discutem sobre a ciecircncia seu funcionamento seus progressos mas cada um a partir de uma particularidade

Lecirc-se sobre a contribuiccedilatildeo da ciecircncia para nossas vidas sobre a importacircncia daqueles que questionam a realidade sobre os mitos e sua ligaccedilatildeo com o surgimento da ciecircncia assim como sua relaccedilatildeo com verdades cristalizadas e as fragilidades da ciecircncia O que se percebe eacute a relaccedilatildeo de valor que cada autor atribui ao tema

Para Bakhtin (1988b) eacute a relaccedilatildeo de valor ou a posiccedilatildeo socioaxioloacutegica que daacute forccedila ao autor para a composiccedilatildeo do todo No processo de se tornar autor-criador transforma-se a realidade vivida e diferentes valores sociais em novos valores Assim torna-se possiacutevel um mesmo tema a partir das mesmas leituras originar discursos tatildeo variados Essa eacute a materialidade verbal das posiccedilotildees socioaxioloacutegicas

2 No criteacuterio de anaacutelise ldquocomposiccedilatildeo autoralrdquo foram levados em conta criteacuterios de plurivocidade destacados em itaacutelico

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Nesse processo percebe-se tanto a realidade refratada a partir das vozes sociais e a linguagem alheia quando todos discutem o mito a ciecircncia quanto tambeacutem a posiccedilatildeo refratante que reordena e interpreta cada qual agrave sua maneira Nesse caminho percebe-se uma refraccedilatildeo ou seja a visatildeo dos autores a partir dos valores que carregam

43 Manutenccedilatildeo do tema proposto

Quanto agrave manutenccedilatildeo do tema proposto constatamos que 75 dos textos natildeo apresentam desvios do propoacutesito do tema Esse fato eacute indicativo de que a proposta foi entendida a pergunta desencadeadora levada em conta e foram feitas associaccedilotildees entre a proposta a pergunta e o arquivo Nesse sentido todas as leituras realizadas caminharam na direccedilatildeo da interpretaccedilatildeo

Quanto a essa questatildeo conforme jaacute discutido Pecirccheux (1997) considera que para muitos profissionais da leitura como catalogadores arquivistas escrivatildees copistas contiacutenuos da leitura enfim pessoas que trabalham com a organizaccedilatildeo de textos ou historiadores eacute negada a praacutetica da proacutepria leitura ou da leitura espontacircnea impondo um apagamento do sujeito leitor Assim eacute dado a uns o direito de produzir leituras originais e a outros a obrigaccedilatildeo da reproduccedilatildeo anocircnima Esse divoacutercio cultural entre o literaacuterio e o cientiacutefico gera uma divisatildeo social do trabalho da leitura

Contudo esse ato poliacutetico inscrito na relaccedilatildeo que se deteacutem com a accedilatildeo da leitura natildeo eacute uma questatildeo apenas dos profissionais e literatos mas tambeacutem da escola Esta a partir de tarefas esteacutereis e sem sentido que satildeo desencadeadas magicamente sem motivaccedilatildeo concreta descontextualizadas e sem um propoacutesito que oriente sua leitura ou produccedilatildeo tambeacutem caminha para a inserccedilatildeo do aluno apenas na esfera da leitura literal Aleacutem disso a preocupaccedilatildeo primeira da escola como coloca Pecirccheux (1997) eacute a manutenccedilatildeo de uma assepsia na construccedilatildeo da linguagem procurando sempre ambiguidades buscando sempre o sentido legiacutetimo da palavra das expressotildees e dos enunciados negando ao sujeito o espaccedilo de sua proacutepria construccedilatildeo tolhendo a criaccedilatildeo

O autor natildeo nega a importacircncia da linguagem culta ou convencional poreacutem ela tem que ser alcanccedilada a partir do texto ou seja o texto deve vir antes das regras e estas serviratildeo agravequele A escola ao contraacuterio ensina a regra para que o texto jaacute surja perfeito como se existisse nas palavras de Pecirccheux (1997) uma semacircntica universal

A questatildeo da leitura interpretativa eacute crucial para a formaccedilatildeo da identidade do arquivo Eacute fundamental considerar que os trecircs textos de apoio foram discutidos em sala de aula pela professora e pesquisadora foram feitos trabalhos individuais a partir de cada um dos textos e antes da produccedilatildeo assim como no momento da coleta dos dados o grupo como um todo discutiu o conteuacutedo do arquivo Cada um desses momentos trouxe informaccedilotildees e apoio ao autor No entanto o arquivo entendido como um conjunto de documentos sobre uma determinada questatildeo apresenta uma identidade peculiar para cada um dos autores O material pode ser o mesmo mas seu proacuteprio registro jaacute eacute marcado por preferecircncias pessoais nuanccedilas que apontam

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significados proacuteprios cores indicativas de tendecircncias jaacute na escolha e interpretaccedilatildeo das vozes ou de seu entrecruzamento

Feitas as anaacutelises quanto agrave citaccedilatildeo das fontes a composiccedilatildeo autoral e a manutenccedilatildeo do tema vale destacarmos que apenas um texto natildeo fez uso de qualquer base de informaccedilatildeo dos textos da mesma forma que natildeo teve sucesso quanto agrave manutenccedilatildeo do tema proposto Aleacutem desse texto outro tambeacutem fez uso de elaboraccedilotildees proacuteprias mas apresentando desvios do propoacutesito do texto

Nessas situaccedilotildees as opiniotildees baseadas no senso comum foram usadas apenas como recurso de retoacuterica superficialmente e sem uma ligaccedilatildeo direta com a questatildeo proposta denotando uma natildeo apropriaccedilatildeo dos textos de apoio ou das discussotildees de sala de aula e provavelmente uma leitura literal

5 Consideraccedilotildees finais

O interesse primeiro deste estudo foi o de observar a constituiccedilatildeo do universo autoral de alunos ingressantes no ensino superior a partir da leitura interpretativa e da formaccedilatildeo de arquivos

Na maioria dos casos os alunos conseguiram se manter no tema utilizando uma linguagem proacutepria e utilizando as fontes de apoio A manutenccedilatildeo do tema foi considerada indicaccedilatildeo de que tanto a tarefa quanto o conteuacutedo dos vaacuterios arquivos foram tornados proacuteprios o que envolve um ato de interpretaccedilatildeo Isso implica o movimento do sujeito na direccedilatildeo da constituiccedilatildeo dos sentidos do dizer

A formaccedilatildeo de um campo de conhecimento alimentado pelas discussotildees de sala de aula (interdiscursividade) assim como pelos textos estudados durante o semestre (intertextualidade) permitiram a formaccedilatildeo de arquivo responsaacutevel pelo ter o que dizer e pela constituiccedilatildeo da dialogia estabelecida no espaccedilo do texto

O que se pode observar eacute que a maioria dos textos produzidos tem autoria e pertence ao universo autoral de seus produtores uma vez que transformaram o dizer alheio em dizer proacuteprio assumindo um posicionamento axioloacutegico e com responsividade Tal resultado adquire relevacircncia pelo fato de esses alunos serem iniciantes frequentes do 1ordm semestre de um curso universitaacuterio e participarem de uma pesquisa que solicitava a produccedilatildeo de texto sobre um tema que eacute novo e com conceitos complexos

Frequentemente em nossa accedilatildeo educativa sentimos inseguranccedila quanto ao real aprendizado de nossos alunos ou agrave profundidade alcanccedilada Constatamos nessa investigaccedilatildeo a apropriaccedilatildeo de conceitos e conteuacutedos como resultado de um trabalho de formaccedilatildeo de arquivo

Assim pode-se dizer que o conhecimento eacute algo que se constroacutei ao longo do tempo e em meio a muitos discursos e textos Eacute a possibilidade de entrar em contato com um conhecimento de maneira variada com uma diversidade de textos que permitem sua compreensatildeo

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Dois aspectos servem de alerta a partir dessas consideraccedilotildees Primeiro a condiccedilatildeo de ensino que se institui no 3ordm grau Natildeo se trata apenas da condiccedilatildeo de chegada de nossos alunos mas tambeacutem da urgecircncia que se estabelece com vistas agrave melhoria de vida com a obtenccedilatildeo de um diploma Nesse sentido os fins prejudicam os meios A experiecircncia de sala de aula nos mostra que os alunos jaacute entram querendo aprender somente aquilo de que iratildeo fazer uso como se o campo profissional fosse assim tatildeo reduzido como se o desenvolvimento de um conhecimento capacidade ou habilidade natildeo solicitasse outros recursos natildeo tatildeo diretamente implicados

Cabe destacar ainda que o mercado tem se ampliado aprofundado e diversificado dentro da mesma aacuterea solicitando cada vez mais formaccedilatildeo do profissional em um curto espaccedilo de tempo Diante dessas exigecircncias a formaccedilatildeo e os conteuacutedos passam a ser acelerados e as possiblidades de se trabalhar a formaccedilatildeo de arquivo com isso reduzem-se

O segundo aspecto refere-se agrave qualidade da escrita dos autores Natildeo foram objeto de anaacutelise deste estudo questotildees gramaticais de coerecircncia e de coesatildeo Destacamos nessa direccedilatildeo que todos os trabalhos sem exceccedilatildeo apresentaram vaacuterias falhas que via de regra exigiram um esforccedilo analiacutetico no sentido de relevaacute-las para que o campo dialoacutegico entre produtor e leitor pudesse se estabelecer e se observassem os motivos dos dizeres Contudo haacute que se ressaltar tambeacutem que os desvios observados natildeo apagaram ou invalidaram a constituiccedilatildeo do universo autoral

Tal fato deve ser considerado com cautela pois via de regra nossos alunos escrevem com inconsistecircncias como jaacute colocado no iniacutecio deste trabalho Satildeo produccedilotildees marcadas por falta de loacutegica de fluecircncia de linearidade no discurso com falhas e truncamentos Essas caracteriacutesticas se mantecircm mesmo em trabalhos escritos que permitem aos alunos fazer ediccedilatildeo

Essas caracteriacutesticas ou inconsistecircncias acabam turvando nosso olhar e natildeo permitem que enxerguemos as qualidades do texto que existem apesar dos erros Aleacutem disso as inconsistecircncias encontradas tambeacutem geram equiacutevocos no sentido de acreditarmos que o conteuacutedo os conceitos e as ideias natildeo foram apreendidos o que nem sempre eacute possiacutevel afirmar

Em tais circunstacircncias cabe ressaltar o grande meacuterito da pesquisa-accedilatildeo cujos resultados beneficiam de imediato e de forma direta ao pesquisador e ao grupo pesquisado Nossa accedilatildeo pedagoacutegica nem sempre privilegia um olhar mais direcionado ou o estabelecimento de controles que permitam observaccedilatildeo de minuacutecias que se evidenciam geralmente em situaccedilotildees empiacutericas Condiccedilotildees natildeo tatildeo favoraacuteveis do dia a dia acabam orientando nossos discursos para o senso comum e geram ansiedade diante da falta de respostas para as nossas duacutevidas Aleacutem disso a pesquisa-accedilatildeo entre outros aspectos permite que fragilidades revelem suas possibilidades

Eacute justamente na direccedilatildeo da constituiccedilatildeo de um espaccedilo interativo da pesquisa-accedilatildeo que podemos criar paralelos com a linguagem que segundo Bakhtin (1970 apud BARROS 1994) eacute dialoacutegica o que nos leva a considerar natildeo um sujeito que produz e um sujeito que interpreta mas um espaccedilo de interlocuccedilatildeo verbal

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Recebido em 27102017

Aceito em 15112017

Terezinha Maia Martincowski

Doutora em Educaccedilatildeo pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Psicoacuteloga Escolar e Educacional Professora universitaacuteria na aacuterea de Educaccedilatildeo cowski91gmailcom

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eISSN 22376844polifonia

ldquoMito biograacuteficordquo e ldquoficccedilatildeo familiarrdquo em Borges e Calvino

ldquoBiographical Mythrdquo and ldquoFamily Fictionrdquo in Borges and Calvino

ldquoMito biograacuteficordquo y ldquoficcioacuten familiarrdquo en Borges y Calvino

Maria Elisa Rodrigues MoreiraUniversidade Federal de Mato Grosso

ResumoNeste artigo abordo alguns textos de caraacuteter autobiograacutefico dos escritores Jorge Luis Borges e Italo Calvino com o objetivo de refletir sobre as formas pelas quais nesses textos memoacuteria e ficccedilatildeo satildeo articuladas de forma a constituir ou alimentar uma espeacutecie de ldquoficccedilatildeo familiarrdquo que contribui para a instituiccedilatildeo de um ldquomito biograacuteficordquo que se pode associar aos dois escritores para recuperarmos expressotildees utilizadas por Beatriz Sarlo e Ricardo Piglia em seus estudos dedicados agrave obra de Jorge Luis Borges Essa ficccedilatildeo familiar propotildee uma genealogia que aproxima tanto Borges quanto Calvino do universo da palavra escrita e do mundo dos livros reforccedilando a literatura como o ldquodestinordquo previsiacutevel (se natildeo o uacutenico possiacutevel) de suas vidasPalavras-chave Ficccedilatildeo familiar mito biograacutefico literatura

AbstractIn this article I will discuss a few texts of autobiographical character written by Jorge Luis Borges and Italo Calvino with the purpose to reflect on the ways in which in these texts memory and fiction are articulated to constitute or nurture a kind of ldquofamily fictionrdquo that contributes to the establishment of a ldquobiographical mythrdquo which can be associated to the aforementioned writers in order to recover expressions used by Beatriz Sarlo and Ricardo Piglia in their studies dedicated to the work of Jorge Luis Borges This ldquofamily fictionrdquo proposes a genealogy that approximates Borges and Calvino to the universe of words and the world of books reinforcing literature as the predictable ldquodestinyrdquo (if not the only possible one) of their livesKeywords Family fiction Biographical myth Literature

ResumenEn este artiacuteculo desarrollo un abordaje de algunos textos de caraacutecter autobiograacutefico de los escritores Jorge Luis Borges e Italo Calvino con el propoacutesito de reflexionar acerca de las formas por las cuales en esos textos memoria y ficcioacuten se articulan con tal de constituir o alimentar una especie de ldquoficcioacuten familiarrdquo que aporta a la institucioacuten de un ldquomito biograacuteficordquo que se puede asociar a los dos escritores seguacuten expresiones usadas por Beatriz Sarlo y Ricardo Piglia en sus estudios dedicados a la obra de Jorge Luis Borges Esa ficcioacuten familiar propone una genealogiacutea que acerca tanto Borges como Calvino al universo de la palabra escrita y al mundo de los libros poniendo de relieve la literatura como el ldquodestinordquo previsible (quizaacutes el uacutenico posible) de sus vidasPalabras clave Ficcioacuten familiar mito biograacutefico literatura

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As questotildees relativas agrave memoacuteria perpassam como jaacute o apontaram diversos estudos as obras ficcionais de Jorge Luis Borges e de Italo Calvino contos como ldquoFunes o memoriosordquo(2007c) de autoria do argentino e ldquoA memoacuteria do mundordquo(2001) do italiano apenas para citar dois exemplos satildeo referecircncias claacutessicas dessa perspectiva de leitura de suas obras No entanto ainda que menos estudados pela criacutetica os textos de caraacuteter autobiograacutefico de ambos os escritores satildeo tambeacutem um rico material para se refletir sobre a relaccedilatildeo entre memoacuteria e ficccedilatildeo e indicam o uso de estrateacutegias narrativas similares entre os dois escritores de um lado nesses textos se pode perceber a construccedilatildeo de uma espeacutecie de ldquoficccedilatildeo familiarrdquo conforme expressatildeo utilizada por Ricardo Piglia em ldquoIdeologiacutea y ficcioacuten en Borgesrdquo (1979) por meio da qual tanto o escritor argentino quanto o italiano se vinculam a uma genealogia que os aproxima de alguma maneira do universo dos livros de outro essa ficccedilatildeo familiar serve para fomentar um ldquomito biograacuteficordquo para retomarmos aqui expressatildeo de Beatriz Sarlo cunhada em Jorge Luis Borges um escritor na periferia (2008) que cerca as produccedilotildees borgiana e calviniana mito este que faz da literatura o uacutenico ldquodestinordquo possiacutevel de vidas que se desenvolvem como as deles

Vale destacar que aqui entendemos o biograacutefico e o ficcional atinentes seja agrave expressatildeo ldquoficccedilatildeo familiarrdquo seja agrave expressatildeo ldquomito biograacuteficordquo em chave aproximativa agrave proposta por Juan Joseacute Saer em seu texto ldquoO conceito de ficccedilatildeordquo escrito em 1989 no qual o escritor assim se manifesta

A primeira exigecircncia da biografia a veracidade atributo pretensamente cientiacutefico eacute nada mais do que o constructo retoacuterico de um gecircnero literaacuterio natildeo menos convencional do que as trecircs unidades da trageacutedia claacutessica ou o desmascaramento do assassino nas uacuteltimas paacuteginas do romance policial A negaccedilatildeo escrupulosa do elemento fictiacutecio natildeo eacute um criteacuterio de verdade visto que o proacuteprio conceito de verdade eacute incerto e sua definiccedilatildeo integra elementos diacutespares e ateacute contraditoacuterios [hellip] Portanto podemos afirmar que a verdade natildeo eacute necessariamente o contraacuterio da ficccedilatildeo e que quando optamos pela praacutetica da ficccedilatildeo natildeo o fazemos com o propoacutesito turvo de tergiversar a verdade [hellip] Ao ir em direccedilatildeo ao natildeo verificaacutevel a ficccedilatildeo multiplica ao infinito as possibilidades de tratamento Natildeo nega uma suposta realidade objetiva ao contraacuterio submerge-se em sua turbulecircncia desdenhando a atitude ingecircnua que consiste em pretender saber de antematildeo como essa realidade se conforma (SAER 2012 p 1-3)

Eacute portanto como uma espeacutecie de potencializaccedilatildeo das possibilidades biograacuteficas que se aponta aqui o recurso dos escritores agrave ficccedilatildeo como elemento complexificador de suas vidas e do papel que nelas ocupa a narrativa literaacuteria Se a ficccedilatildeo eacute um ldquotratamento especiacutefico do mundordquo (SAER 2012 p 3) parece-me ser o mais adequado para se pensar as biografias de Borges e Calvino autores cuja relaccedilatildeo com o mundo se dava no mais das vezes entrecortada pela ficccedilatildeo Eacute a refletir sobre essa questatildeo que me dedicarei ao longo deste texto tomando como obras centrais o Ensaio autobiograacutefico de Borges (2009) e O caminho de San Giovanni de Calvino (2000a)

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O viacutenculo com a palavra escrita e a preocupaccedilatildeo com o conhecimento comeccedilam muito cedo na vida dos dois escritores e marcam consideravelmente sua praacutetica criativa e criacutetica levando-os a uma incessante busca pela construccedilatildeo de um saber que reconhecem impossiacutevel ser totalizante Essa busca resulta na extrema mobilidade e na multiplicidade do universo poeacutetico dos autores que transitam entre temaacuteticas e estilos diversificados mesclados em produccedilotildees narrativas poeacuteticas e ensaiacutesticas que se mostram confluentes e coerentes ao desbordar as fronteiras dos gecircneros discursivos e ao fazer transitar duacutevidas hipoacuteteses e saberes muacuteltiplos Criacutetica e ficccedilatildeo andam juntas e se interpolam na tessitura de narrativas que satildeo permanente e simultaneamente uma forma de reflexatildeo

Ricardo Piglia em ldquoIdeologiacutea y ficcioacuten en Borgesrdquo argumenta que a ficccedilatildeo de Borges eacute acompanhada por uma espeacutecie de narrativa genealoacutegica que diz da origem e da proacutepria possibilidade de formaccedilatildeo da escritura borgiana fundada na trajetoacuteria de reconhecimento pelo autor de que pertence a uma dupla linhagem ndash familiar e intelectual a linhagem da histoacuteria e a linhagem da literatura recontadas por Borges por meio de uma ldquoficccedilatildeo familiarrdquo de um lado a famiacutelia da matildee que remonta agrave histoacuteria argentina aos seus guerreiros e fundadores de outro a famiacutelia paterna de origem inglesa remetendo agrave tradiccedilatildeo intelectual e literaacuteria Conforme Piglia

Eacute esta oposiccedilatildeo ideoloacutegica a que eacute obrigada em Borges a tomar a forma de uma tradiccedilatildeo familiar A ficccedilatildeo dessa dupla linhagem lhe permite integrar todas as diferenccedilas fazendo ressaltar simultaneamente o caraacuteter antagocircnico das contradiccedilotildees mas tambeacutem sua harmonia O uacutenico ponto de encontro desse sistema de oposiccedilotildees eacute certamente o mesmo Borges ou melhor os textos de Borges (PIGLIA 1979 p 4 Traduccedilatildeo do autor)

Eacute essa genealogia literaacuteria que conduz conforme Beatriz Sarlo (2008) o ldquomito biograacuteficordquo em torno de Jorge Luis Borges o qual se funda na apropriaccedilatildeo que o escritor argentino faz da literatura Nessa perspectiva a ldquoficccedilatildeo familiarrdquo marca o ldquoensaio autobiograacuteficordquo (BORGES 2009) ditado em inglecircs por Borges a seu tradutor Norman Thomas di Giovanni no iniacutecio de 1970 Nele ambas as linhagens satildeo retomadas e o escritor apresenta-se como herdeiro tanto de uma memoacuteria histoacuterica quanto de uma memoacuteria literaacuteria Interessa-me particularmente essa genealogia literaacuteria a qual precisa ser sempre considerada tendo-se em vista sua constituiccedilatildeo mediante o signo do duplo ou seja uma genealogia que eacute tanto familiar privada (a memoacuteria)quanto social puacuteblica (a biblioteca) Como ressalta Piglia em lugar de excluir as inuacutemeras contradiccedilotildees que marcam essa duplicidade Borges as manteacutem fazendo delas elementos constitutivos de sua escritura ldquoA memoacuteria e a biblioteca representam as propriedades a partir das quais se escreve poreacutem esses dois espaccedilos de acumulaccedilatildeo satildeo ao mesmo tempo o lugar mesmo da ficccedilatildeo em Borgesrdquo (PIGLIA 1979 p 6 traduccedilatildeo minha)

Sob esse prisma procuro aproximar a essa dupla chave de leitura da obra de Borges proposta por Ricardo Piglia pautada pelas linhagens familiarhistoacuterica e literaacuteriaintelectual a perspectiva de uma obra fraturada conforme proposta por Beatriz Sarlo

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(2008) cuja rachadura seria originaacuteria de uma tensatildeo insistente entre o nacional (familiar) e o cosmopolita (literaacuterio) Sarlo indica que eacute nesse lugar tensionado nesse espaccedilo entre duas margens que Borges constitui seu pensamento e sua literatura e que qualquer leitura que se faccedila da produccedilatildeo borgiana a partir de apenas um desses polos ainda que perfeitamente possiacutevel resultaraacute numa perda significativa

Conquanto a reflexatildeo sobre o ensaio como gecircnero particular de escrita e de organizaccedilatildeo do pensamento fuja ao escopo deste texto parece-me relevante destacar a escolha de Borges pelo tiacutetulo de seu livro autobiograacutefico no original inglecircs An Autobiographical Essay (Ensaio autobiograacutefico na traduccedilatildeo brasileira) A pesquisadora uruguaia Lisa Block de Behar que jaacute dedicou livros e artigos agrave obra do escritor argentino afirma que com esse tiacutetulo Borges faz circular em torno do texto os vaacuterios sentidos que se condensam no termo ensaio

Natildeo recordo outros autores que tenham apresentado sua autobiografia como um ldquoensaiordquo tampouco recordo que Borges tenha designado como autobiograacuteficos outros de seus textos aleacutem da alusatildeo a alguma lembranccedila de suas leituras ou agrave intensidade poeacutetica de algum instante de intimidade privada (BEHAR 1999 Traduccedilatildeo do autor)

Ela lamenta ainda que a traduccedilatildeo da obra para a liacutengua espanhola natildeo mantenha o tiacutetulo original

Com efeito o tiacutetulo em espanhol apenas o apresenta como uma sucinta Autobiografia sem explicar qualquer razatildeo para a omissatildeo de uma parte substancial da denominaccedilatildeo em inglecircs suspendendo o enfrentamento que por justapor dois nomes geneacutericos como um soacute impugna a ambos (BEHAR 1999 Traduccedilatildeo do autor)

Esse ldquoensaio de biografiardquo assim que jaacute nasce marcado pelo signo do hiacutebrido destaca a importacircncia dos livros na infacircncia de Borges e no ambiente familiar em que ele cresceu O escritor afirma que ldquouma tradiccedilatildeo literaacuteria percorria a famiacutelia de [s]eu pairdquo (BORGES 2009 p 18) destacando o fato de que Fanny Haslam sua avoacute paterna inglesa ndash responsaacutevel pelo conhecimento de inglecircs que Borges adquiriu desde cedo ndash ldquoera uma grande leitorardquo (p 12) e dizendo a respeito de seu pai ter sido ldquoele quem me revelou o poder da poesia o fato de as palavras serem natildeo apenas um meio de comunicaccedilatildeo mas tambeacutem siacutembolos maacutegicos e muacutesicardquo (p 13) Seu pai Jorge Guillermo Borges escreveu um romance sua matildee Leonor Acevedo com quem Borges viveu por quase toda a vida apoacutes a morte do marido dedicou-se agrave traduccedilatildeo de obras literaacuterias

Nesse mesmo texto Borges se apresenta ainda como ldquoum homem de livrosrdquo (p 16) e destaca a importacircncia da biblioteca do pai em sua vida

Se tivesse de indicar o evento principal de minha vida diria que eacute a biblioteca de meu pai Na realidade creio nunca ter saiacutedo dessa biblioteca Eacute como se ainda a estivesse vendo Ocupava todo um aposento com estantes envidraccediladas e devia conter milhares de volumes Como era

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muito miacuteope esqueci-me da maioria dos rostos dessa eacutepoca (quando penso em meu avocirc Acevedo talvez esteja pensando em sua fotografia) mas ainda lembro com nitidez as gravuras em accedilo da Chambersrsquos Encyclopaedia e da Britannica (BORGES 2009 p 16)

O escritor continua enumerando as diversas obras que leu a partir dessa biblioteca Embora longa a citaccedilatildeo justifica-se tanto por traccedilar a importacircncia emblemaacutetica da biblioteca na vida do escritor desde a infacircncia como por apresentar-se como uma lista das leituras que o marcaram nesse periacuteodo como uma espeacutecie de inventaacuterio de sua heteroacuteclita histoacuteria de aproximaccedilatildeo com a literatura como uma sinalizaccedilatildeo das questotildees que marcaram sua obra posterior ou seja como um elemento conformador do mito biograacutefico que o leva a se tornar um ldquohomem de livrosrdquo

O primeiro romance que li inteiro foi Huckleberry Finn Depois vieram Roughing It e Flush Days in California Tambeacutem li os livros do capitatildeo Marryat Os primeiros homens na Lua de Wells Poe uma ediccedilatildeo da obra de Longfellow em um volume A ilha do tesouro Dickens Dom Quixote Tom Brown na escola os contos de fadas de Grimm Lewis Carroll As aventuras de mr Verdant Green (livro agora esquecido) As mil e uma noites de Burton A obra de Burton ndash infestada de coisas entatildeo consideradas obscenidades ndash foi-me proibida e tive de lecirc-la agraves escondidas no terraccedilo Mas nessa altura estava tatildeo emocionado pela magia do livro que natildeo percebi em absoluto as partes censuraacuteveis e li os contos sem me dar conta de nenhum outro significado Todos os livros que acabo de mencionar eu os li em inglecircs Quando mais tarde li Dom Quixote na versatildeo original pareceu-me uma traduccedilatildeo ruim Ainda lembro aqueles volumes vermelhos com letras impressas em ouro da ediccedilatildeo Garnier Em algum momento a biblioteca de meu pai fragmentou-se e quando li o Quixote em outra ediccedilatildeo tive a sensaccedilatildeo de que natildeo era o verdadeiro Quixote Mais tarde fiz com que um amigo me conseguisse a ediccedilatildeo Garnier com as mesmas gravuras em accedilo as mesmas notas de rodapeacute e tambeacutem as mesmas erratas Para mim todas essas coisas fazem parte do livro considero esse o verdadeiro Quixote (BORGES 2009 p 16-17)

Podemos traccedilar nessa lista de memoacuterias de leitura percursos que as relacionam agraves obras borgianas de modo que eacute como se aiacute na biblioteca paterna estivesse indicado o futuro escritor de sucesso internacional que Borges jaacute era quando escreveu essas paacuteginas autobiograacuteficas Nesse rol encontram-se os verbetes enciclopeacutedicos retrabalhados em Manual de Zoologiacutea Fantaacutestica (BORGES e GUERRERO 2001) e O livro dos seres imaginaacuterios (BORGES e GUERRERO 2007) Richard Burton e as questotildees pertinentes agrave traduccedilatildeo sobre as quais o autor reflete em ldquoProblemas de la traduccioacuten (el oficio de traducir)rdquo (BORGES 1999b) ldquoLas dos maneras de traducirrdquo (BORGES 1926) e ldquoAs versotildees homeacutericasrdquo (BORGES 2008) o ldquoverdadeirordquo Quixote de ldquoPierre Menard autor do Quixoterdquo (BORGES 2007b) A biblioteca paterna parece funcionar assim como uma forccedila centriacutefuga da qual decorre a maioria dos temas que iratildeo compor seu repertoacuterio de produccedilatildeo seja ele narrativo poeacutetico ou ensaiacutestico

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Em espanhol li muitos dos livros de Eduardo Gutieacuterrez sobre bandidos e foragidos argentinos ndash sobretudo Juan Moreira ndash bem como seu Siluetas militares que conteacutem um vigoroso relato da morte do coronel Borges Minha matildee proibiu-me a leitura do Martiacuten Fierro pois o considerava um livro indicado apenas para rufiotildees e colegiais e que aleacutem disso nada tinha a ver com os verdadeiros gauchos Esse tambeacutem eu li agraves escondidas A opiniatildeo de minha matildee baseava-se no fato de que Hernaacutendez apoiara Rosas e portanto era inimigo de nossos antepassados unitaacuterios Li ainda o Facundo de Sarmiento e vaacuterios livros sobre mitologia grega e depois escandinava A poesia chegou-me atraveacutes do inglecircs Shelley Keats FitzGerald e Swinburne esses grandes favoritos de meu pai que ele podia citar extensamente e muitas vezes o fazia (BORGES 2009 p 17)

Genealogia literaacuteria traccedilada a posteriori num movimento como o postulado pelo escritor em ldquoKafka e seus precursoresrdquo (BORGES 2007a) a lista borgiana ndash que poderia estender-se ao infinito ndash embaralha as influecircncias e deixa antever o gosto pelas burlas demarcando ldquoum entrelugar linguiacutestico e literaacuteriordquo (OLMOS 2008 p 13) e indicando uma biblioteca a ser resgatada ndash mesmo que essa biblioteca paterna talvez nunca tenha existido tal qual narrada

Ainda rememorando a biblioteca familiar o escritor afirma ldquoSempre cheguei agraves coisas depois de encontraacute-las nos livrosrdquo (BORGES 2009 p 20) Esse comentaacuterio como destaca Ana Ceciacutelia Olmos diz de um aspecto fundamental da poeacutetica de Borges a leitura como ldquoinstacircncia fundadora de sua escriturardquo como uma experiecircncia de vida tatildeo importante quanto qualquer outra Ela indica a rasura constante praticada pelo escritor entre o que adveacutem de uma imaginaccedilatildeo literaacuteria e o que decorre de uma experiecircncia do mundo sensiacutevel situaccedilotildees por ele aproximadas e vivenciadas sob a mesma oacutetica ldquoUm escritor que assumiu o livro como elemento vital deu agrave leitura o status de extensatildeo da experiecircncia e transformou a biblioteca no seu habitatrdquo (OLMOS 2008 p 8) Como jaacute havia afirmado Maurice Blanchot Borges era um ldquohomem essencialmente literaacuteriordquo com o que se quer dizer que estava ldquosempre pronto para compreender segundo o modo que a literatura autorizardquo (BLANCHOT 1999 p 74 traduccedilatildeo minha)

Nascido em Buenos Aires em 1899 Borges mudou-se com a famiacutelia para a Europa em 1914 laacute vivendo por nove anos a viagem decorrente da busca por tratamento para a perda de visatildeo de seu pai prolongou-se devido agrave eclosatildeo da Primeira Guerra Mundial Ao longo desse periacuteodo ele concluiu em Genebra os estudos de niacutevel meacutedio e aproximou-se do Ultraiacutesmo movimento de vanguarda que conheceu na Espanha e que influenciou suas primeiras obras poeacuteticas Afirmou tambeacutem sua proximidade com a palavra escrita tornando-se um leitor fervoroso tanto de literatura quanto de filosofia e publicando seus primeiros textos em perioacutedicos europeus expandiu assim os limites de sua biblioteca familiar convertida entatildeo numa ldquobiblioteca peregrinardquo

A expressatildeo ldquobiblioteca peregrinardquo foi cunhada por Ana Ceciacutelia Olmos que ao traccedilar um ldquoretrato do artistardquo em seu Por que ler Borges (2008) elabora um panorama biograacutefico do autor que tem na presenccedila da biblioteca em sua vida o principal referencial Esse

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ldquoimperfeito bibliotecaacuteriordquo ndash alusatildeo direta ao texto ldquoA Biblioteca de Babelrdquo ndash eacute apresentado por meio de quatro bibliotecas a ldquobiblioteca familiarrdquo correspondente ao tempo da infacircncia e da formaccedilatildeo de Jorge Luis Borges influenciados fortemente pela biblioteca paterna a ldquobiblioteca peregrinardquo referente ao periacuteodo em que Borges viveu na Europa com sua famiacutelia e no qual ampliou seus referenciais literaacuterios a ldquobiblioteca crepuscularrdquo que diz do momento de seu retorno a Buenos Aires e de sua produccedilatildeo anterior ao amplo reconhecimento de puacuteblico e criacutetica e a ldquobiblioteca da consagraccedilatildeordquo correspondente agrave eacutepoca de suas produccedilotildees de maior sucesso aos precircmios literaacuterios e ao prestiacutegio internacional

No periacuteodo europeu a biblioteca de seu pai ampliava-se incorporando autores textos e idiomas distintos ndash o latim de Virgiacutelio o francecircs de Baudelaire Paul Verlaine Victor Hugo e Eacutemile Zola o alematildeo de Heine Nietzsche Schopenhauer ndash e novos escritores de idiomas jaacute conhecidos como o inglecircs e o espanhol ndash Thomas de Quincey Chesterton Quevedo Goacutengora Miguel de Unamuno Essa biblioteca peregrina marcava assim uma formaccedilatildeo literaacuteria cosmopolita e ao mesmo tempo a inserccedilatildeo ldquoperifeacutericardquo do autor que o levava a transitar pelas diversas tradiccedilotildees literaacuterias assumindo-as e subvertendo-as com a marca de seu lugar nacional

Ambas as bibliotecas familiar e peregrina apresentam-se assim como emblemas de uma escritura que se constroacutei a partir do diaacutelogo nem sempre paciacutefico entre o centro e a margem em decorrecircncia de um olhar que soacute eacute possiacutevel desse lugar ex-cecircntrico

[] sua obra eacute perturbada pela tensatildeo entre a mistura e a nostalgia por uma literatura europeia que um latino-americano natildeo pode nunca viver integralmente como natureza original Apesar da perfeita felicidade do estilo a obra de Borges traz uma rachadura em seu centro desloca-se na crista de vaacuterias culturas que se tocam (ou se repelem) em suas periferias Borges desestabiliza as grandes tradiccedilotildees ocidentais bem como aquelas que conheceu do Oriente cruzando-as (no sentido de caminhos que se cruzam mas tambeacutem no de raccedilas que se misturam) no espaccedilo rio-pratense (SARLO 2008 p 17)

Os conflitos culturais histoacutericos e geograacuteficos que marcam essa tensatildeo ficam ainda mais evidentes quando do retorno do autor agrave Argentina em 1921 Borges redescobriu naquele momento um paiacutes muito diferente daquele que havia deixado A Buenos Aires que encontrou era apenas um rastro da cidade de sua infacircncia passando por mudanccedilas vertiginosas ele voltou para uma cidade em pleno desenvolvimento com um movimento cultural e literaacuterio efervescente uma cidade que incorporava a modernidade em seu sentido mais amplo

Foi nessa nova Buenos Aires que se constituiacutea na interface entre o novo e o que persistia que Borges e outros renomados escritores passaram a atuar ativamente mobilizando seu cenaacuterio cultural Em 1921 fundaram a revista mural Prisma e em 1922 a revista Proa (WOODALL 1999 VACCARO 2006) Em 1923 Borges publicou seu primeiro livro de poemas Fervor de Buenos Aires no qual essa tensatildeo entre a cidade da memoacuteria e a cidade em movimento pode ser considerada o eixo principal A partir de entatildeo manteve

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ateacute sua morte um intenso ritmo de produccedilatildeo colaborou com diversas revistas literaacuterias e suplementos culturais (nos quais publicou ensaios contos e poemas) organizou antologias traduziu romances e escreveu prefaacutecios a vaacuterias obras aleacutem de ter ministrado inuacutemeras conferecircncias Jaacute em seus primeiros textos eacute possiacutevel perceber a ironia o humor e o deslocamento como estrateacutegias para a reflexatildeo sobre a literatura e a cultura (ainda que posteriormente ele tenha vindo a negar a importacircncia desses escritos como os publicados em Inquisiciones de 1925)

O mito biograacutefico continua a se constituir para aleacutem da ficccedilatildeo familiar ganhando importacircncia aiacute uma segunda genealogia traccedilada pelo autor relativa agrave cegueira e agrave biblioteca Foi em 1938 que os livros passaram a cercar Borges tambeacutem profissionalmente seu primeiro emprego regular foi na Biblioteca Municipal Miguel Caneacute da qual foi primeiro assistente durante cerca de nove anos Sobre essa biblioteca ele afirmou

Agora eu deveria ter deixado essa biblioteca ndash era um ambiente assaz mediacuteocre ndash mas continuei trabalhando Natildeo sei se a palavra ldquotrabalhandordquo eacute exata eacuteramos acho uns cinquenta funcionaacuterios e nos designaram um trabalho que tinha que ser lento [] Bom e entatildeo o que acontecia Nosso trabalho era feito em digamos meia hora ou em 45 minutos e depois sobrava o restante das seis horas que eram dedicadas a conversas sobre futebol ndash tema que ignoro profundamente ndash ou fofocas ou por que natildeo contos ldquopicantesrdquo Agora eu me escondia porque tinha encontrado uma estranha ocupaccedilatildeo ler os livros da biblioteca Eu devo a esses nove anos o conhecimento da obra de Leacuteon Bloy de Paul Claudel voltei a ler os seis volumes de Decliacutenio e queda do Impeacuterio Romano de Gibbon e conheci livros dos quais natildeo tinha notiacutecia De maneira que aproveitei o tempo (BORGES e FERRARI 2009 p 56-57)

Na deacutecada de 1940 Borges lanccedilou seus mais famosos livros de contos que lhe valeram o reconhecimento internacional e deram iniacutecio a uma seacuterie de precircmios literaacuterios e tiacutetulos acadecircmicos honoriacuteficos de todas as partes do mundo Ficccedilotildees de 1944 e O Aleph de 1949 Paralelamente ao sucesso como escritor adveacutem tambeacutem a cegueira outra ldquotradiccedilatildeo familiarrdquo que acometera seu pai e iria progressivamente retirar sua visatildeo em 1955 jaacute estava quase completamente cego Os livros entretanto natildeo deixavam de cercaacute-lo foi nomeado nesse ano diretor da Biblioteca Nacional da Argentina

Na conferecircncia ldquoA cegueirardquo publicada no livro Sete noites Borges traccedila a aproximaccedilatildeo entre sua genealogia familiar e sua genealogia bibliotecaacuteria tendo como ponto de uniatildeo a cegueira Num primeiro momento associa a Biblioteca agraves leituras da infacircncia quando a frequentava acompanhado do pai

Fui nomeado diretor da biblioteca e voltei agravequela casa da rua Meacutexico no bairro de Montserrat no Sul de que guardava tantas recordaccedilotildees Eu jamais havia sonhado com a possibilidade de ser diretor da Biblioteca Tinha recordaccedilotildees de outra ordem Ia com meu pai agrave noite (BORGES 2011 p 199)

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Depois associa o fato agrave sua cegueira

Pouco a pouco fui compreendendo a estranha ironia dos fatos Eu sempre imaginara o Paraiacuteso como tendo o aspecto de uma biblioteca Outras pessoas pensam num jardim outras talvez pensem num palaacutecio Laacute estava eu Era de alguma maneira o centro de 900 mil volumes em diversos idiomas Comprovei que mal conseguia decifrar as capas e as lombadas Entatildeo escrevi o ldquoPoema dos donsrdquo que comeccedila por ldquoNingueacutem rebaixe a laacutegrima ou rejeite esta declaraccedilatildeo da maestria de Deus que com magniacutefica ironia deu-me a um soacute tempo os livros e a noiterdquo Esses dois dons que se contradizem os muitos livros e a noite a incapacidade de lecirc-los (BORGES 2011 p 200)

Por fim traccedila a ligaccedilatildeo entre a biblioteca e a cegueira criando uma genealogia de bibliotecaacuterios cegos que passaram pela Biblioteca Nacional da Argentina

Imaginei que Groussac era o autor do poema porque Groussac tambeacutem foi diretor da Biblioteca e tambeacutem cego Groussac foi mais corajoso que eu guardou silecircncio Mas pensei que sem duacutevida havia momentos em que nossas vidas coincidiam jaacute que noacutes dois chegaacuteramos agrave cegueira e noacutes dois amaacutevamos os livros []Na eacutepoca eu ignorava que a Biblioteca tivera outro diretor Joseacute Maacutermol que tambeacutem foi cego Aqui aparece o nuacutemero trecircs que fecha as coisas Dois eacute uma mera coincidecircncia trecircs uma confirmaccedilatildeo []Temos assim trecircs pessoas que receberam igual destino (BORGES 2011 p 201-202)

O ldquodestinordquo confirmava assim o mito biograacutefico Borges permaneceu como diretor da Biblioteca Nacional ateacute se aposentar em 1973 Paralelamente agrave sua entrada no paraiacuteso pelo qual tomava as bibliotecas ao longo da deacutecada de 1940 iniciara-se tambeacutem o viacutenculo de Borges com o ramo editorial no qual se projetou como antologista na editora Emececirc A palavra escrita era sua estrateacutegia de accedilatildeo intervenccedilatildeo e colocaccedilatildeo no mundo escrevia prefaacutecios criacutetica e roteiros de cinema organizava e dirigia coleccedilotildees literaacuterias produzia ensaios para diversos perioacutedicos e ainda se arriscou em um conjunto de milongas posteriormente musicadas por Astor Piazzolla (Para as seis cordas) aleacutem disso dava conferecircncias sobre literatura por todo o mundo concedeu inuacutemeras entrevistas e tinha sob sua responsabilidade caacutetedras acadecircmicas

Essa multiplicidade de textos e esse voraz apetite pela leitura fazem da obra de Borges uma vasta biblioteca um territoacuterio livresco em que a tradiccedilatildeo eacute rememorada e recriada constantemente em que o sonho a realidade e a imaginaccedilatildeo se imbricam de maneira contiacutenua e em que o saber se constroacutei a partir do diaacutelogo entre a ficccedilatildeo e a reflexatildeo em suas mais variadas formas de apariccedilatildeo

Ainda que diferenciadas em vaacuterios aspectos a vida e as obras de Borges e Calvino aproximam-se por esse viacutenculo com a palavra escrita pela presenccedila insistente das figuras do livro e da biblioteca bem como por uma produccedilatildeo textual que constantemente coloca em questatildeo o proacuteprio fazer literaacuterio como pensar por meio

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da ficccedilatildeo como produzir saberes que se instituem no bojo da narrativa e com os recursos desta num cenaacuterio em que predomina a valorizaccedilatildeo da ciecircncia como uacutenico discurso vaacutelido para o conhecimento

A relaccedilatildeo entre literatura e ciecircncia construiacuteda por Calvino pode ser lida a exemplo de Borges a partir de um ldquomito biograacuteficordquo de uma ldquoficccedilatildeo familiarrdquo Luca Baranelli e Ernesto Ferrero ao traccedilarem em Album Calvino (2003) uma biografia do autor afirmam que ele trazia em seu ldquocoacutedigo geneacuteticordquo uma mentalidade cientiacutefica seu pai Mario Calvino era um agrocircnomo de San Remo que passou alguns anos no Meacutexico (onde dirigiu a Estaccedilatildeo Experimental de Agricultura) e em Cuba sua matildee Eva Mameli foi a primeira mulher a ocupar uma caacutetedra de Botacircnica em uma universidade italiana Esse mito biograacutefico eacute entretanto marcado por uma dupla mirada o gosto pelas oposiccedilotildees binaacuterias e dicotomias que se desdobra e ramifica Jean Starobinski no prefaacutecio aos romances e contos de Calvino destaca que desde os primeiros textos do escritor italiano eacute possiacutevel perceber sua predileccedilatildeo pelas antiacuteteses pelas oposiccedilotildees binaacuterias e pelas dicotomias mas que essas duplas opostas nunca se apresentam de maneira simeacutetrica ou equilibrada nas oposiccedilotildees calvinianas prevalecem a tensatildeo a dissimetria e a instabilidade situaccedilotildees de potencialidade criadora (STAROBINSKI 2003)

Num primeiro movimento opotildeem-se a ciecircncia-paixatildeo do pai e a ciecircncia-ordem da matildee Para o pai a ciecircncia era um universo dominante pautado por uma relaccedilatildeo de afeto excessiva que ocupava toda a vida uacutenico espaccedilo no qual o homem poderia existir

O caminho de meu pai tambeacutem levava longe Do mundo ele via somente as plantas e o que tivesse relaccedilatildeo com plantas e de cada planta dizia em voz alta o nome no latim absurdo dos botacircnicos e o lugar de procedecircncia ndash sua paixatildeo fora a vida toda conhecer e aclimatar plantas exoacuteticas ndash e o nome vulgar se houvesse em espanhol ou inglecircs ou em nosso dialeto e nesse nomear as plantas punha a paixatildeo de estar dilapidando um universo sem fim de se aventurar a cada vez ateacute as fronteiras extremas de uma genealogia vegetal e em cada ramo ou folha ou nervura abrir para si um caminho como que fluvial na linfa na rede que cobre a verde terra [] porque esta era sua paixatildeo ndash a primeira sim a primeira ou seja a uacuteltima a forma extrema de sua paixatildeo uacutenica conhecer cultivar caccedilar insistir persistir de todas as maneiras nesse bosque selvagem no universo natildeo antropomorfo diante do qual (e somente aiacute) o homem era homem [] (CALVINO 2000b p 19-20)

Para a matildee se a ciecircncia era tambeacutem o uacutenico universo possiacutevel assumia uma forma diferente aquela do rigor e da ordem na qual natildeo havia espaccedilo para qualquer transbordamento

Que a vida tambeacutem fosse desperdiacutecio isso minha matildee natildeo admitia ndash ou seja que tambeacutem fosse paixatildeo Por isso nunca saiacutea do jardim etiquetado planta a planta da casa forrada de buganviacutelias do escritoacuterio com o microscoacutepio debaixo da redoma de vidro e os herbaacuterios Sem incertezas ordeira transformava as paixotildees em deveres e deles vivia (CALVINO 2000b p 26)

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Num segundo momento a contraposiccedilatildeo se estabelece entre a ciecircncia dos pais e a literatura do filho entre a integraccedilatildeo com a natureza dos primeiros e a ligaccedilatildeo com o humano do segundo mas aqui jaacute ressalta um desequiliacutebrio uma dissimetria um movimento que ao mesmo tempo em que afasta aproxima ndash a ciecircncia que instaura a diferenccedila com os pais vai marcar sua proacutepria produccedilatildeo e a paixatildeo que distancia pais e filhos pelos objetos de desejo aproxima-os pelo modo de olhar

Vocecircs hatildeo de compreender quanto nossos caminhos divergiam o de meu pai e o meu Mas e eu Afinal que caminho eu buscava senatildeo o mesmo de meu pai cavado na densidatildeo de outra estranheza no supramundo (ou inferno) humano O que buscava com o olhar pelos aacutetrios mal iluminados da noite (a sombra de uma mulher agraves vezes desaparecia ali) senatildeo a porta entreaberta a tela do cinema a ser atravessada a paacutegina a ser virada que introduz num mundo em que todas as palavras e figuras pudessem se tornar reais presentes experiecircncia minha natildeo mais o eco de um eco de um eco (CALVINO 2000b p 21)

Mas o que movia meu pai a cada manhatilde pelo caminho de San Giovanni acima ndash e a mim abaixo pelo meu caminho ndash mais que o dever de proprietaacuterio laborioso ou o desprendimento de inovador de meacutetodos agriacutecolas ndash e o que movia a mim mais que as definiccedilotildees daqueles deveres que aos poucos iria me impor ndash era paixatildeo feroz dor de existir ndash o que mais podia nos impelir ele a subir pragais e bosques eu a me entranhar num labirinto de muros e papeacuteis escritos ndash confronto desesperado com o que resta fora de noacutes desperdiacutecio de si em oposiccedilatildeo ao desperdiacutecio geral do mundo (CALVINO 2000b p 26)

Essa ficccedilatildeo familiar se amalgama em Calvino na paixatildeo pela literatura na vida que eacute atravessada pela palavra escrita pela narrativa na conexatildeo com o mundo que se estabelece por meio dela

E eu Eu acreditava ter outros pensamentos O que era a natureza Ervas plantas lugares verdes animais Eu vivia no meio daquilo e queria estar em outro lugar Diante da natureza permanecia indiferente reservado por vezes hostil E natildeo sabia que eu tambeacutem estava buscando uma relaccedilatildeo talvez mais afortunada que a de meu pai uma relaccedilatildeo que a literatura acabaria me dando devolvendo significado a tudo e de repente cada coisa se tornaria verdadeira e tangiacutevel e possuiacutevel e perfeita cada coisa daquele mundo jaacute perdido (CALVINO 2000b p 37)

Tais citaccedilotildees ainda que um tanto extensas satildeo importantes para que identifiquemos nesses ldquoexerciacutecios de memoacuteriardquo postumamente publicados a construccedilatildeo de um mito biograacutefico estreitamente vinculado agrave literatura e agrave visatildeo de mundo que lhe eacute antagocircnica a ciecircncia traccedilos que se apresentam de modo indeleacutevel na obra calviniana O proacuteprio Calvino destaca que esse ambiente estreitamente vinculado agrave pesquisa e ao desenvolvimento cientiacutefico ndash e como veremos agrave frente tambeacutem agrave poliacutetica ndash teve grande influecircncia em sua formaccedilatildeo dando-se a partir dele sua aproximaccedilatildeo com as narrativas com a literatura

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depois da leitura aos 12 ou 13 anos de O livro da selva de Rudyard Kipling obra na qual afirma ter tido ldquoo primeiro verdadeiro prazer da leiturardquo (CALVINO apud BARANELLI e FERRERO 2003 p 43 Traduccedilatildeo do autor) com o cinema sobre o qual chega a afirmar ldquoo cinema era o mundo para mimrdquo (CALVINO 2000c p 41)

Eacute interessante observar que alguns dos motivos que Calvino destaca para seu interesse absoluto pelo cinema em meados da deacutecada de 1930 podem ser pensados como indiacutecios de seu viacutenculo com a narrativa e com questotildees que se coloca sobre a relaccedilatildeo entre o ldquomundo es-critordquo e o ldquomundo natildeo escritordquo ele se sentia encantado com ldquoo contraste entre duas dimensotildees temporais diferentes dentro e fora do filmerdquo ldquoa descontinuidade entre os dois mundosrdquo ldquoa suspensatildeo do tempordquo no periacuteodo de duraccedilatildeo da peliacutecula (CALVINO 2000c p 44)

O cinema apresentava-se entatildeo ndash e conforme seus exerciacutecios de rememoraccedilatildeo o cinema ao qual se refere era o cinema americano da eacutepoca ndash como uma das maneiras de identificar e colocar em praacutetica o que Starobinski aponta como um problema que Calvino se propocircs insistentemente ao longo de toda sua obra o olhar distanciado o intervir sobre o mundo a partir do vislumbre de sua forma o qual soacute eacute possiacutevel atraveacutes de ldquolo sguardo dallrsquoaltordquo do olhar de cima Diante da tela do cinema o mundo apresentava-se como um Outro quase absolutamente distinto (apesar de alguns pontos de contato com o mundo real) do qual era possiacutevel perceber os traccedilos pela distacircncia do qual era possiacutevel apreender a inexauriacutevel superfiacutecie ainda que pelo vieacutes da suspensatildeo

Mas entatildeo o que tinha sido o cinema nesse contexto para mim Diria a distacircncia Ele respondia a uma necessidade de distacircncia de dilataccedilatildeo dos limites do real de ver se abrindo ao meu redor dimensotildees incomensuraacuteveis abstratas como entidades geomeacutetricas mas tambeacutem concretas absolutamente repletas de caras e situaccedilotildees e ambientes que com o mundo da experiecircncia direta estabeleciam uma rede proacutepria (e abstrata) de relaccedilotildees (CALVINO 2000c p 56)

O fascismo no entanto interrompe essa proximidade com o cinema atraveacutes da proibiccedilatildeo do cinema americano na Itaacutelia pouco antes da eclosatildeo da Segunda Guerra Mundial e facilita a passagem do escritor italiano para ldquoo mundo do papel escrito que em algumas de suas margens eacute fronteiriccedilo ao mundo do celuloiderdquo (CALVINO 2000c p 56) A passagem ao papel eacute marcada pelo desejo de buscar novamente ldquoo prazer da leitura provado com Kiplingrdquo (CALVINO apud BARANELLI e FERRERO 2003 p 43 Traduccedilatildeo do autor) Mas suas primeiras manifestaccedilotildees criativas realizam-se atraveacutes do desenho ndash em especial do humor presente nas charges e caricaturas publicadas em 1940 no perioacutedico milanecircs Bertoldo ndash e de algumas peccedilas teatrais das quais persistem em especial os tiacutetulos registrados em sua correspondecircncia

O princiacutepio da deacutecada de 1940 eacute marcado pelo iniacutecio dos estudos universitaacuterios e da produccedilatildeo literaacuteria assim como pelo envolvimento com o PCI o Partido Comunista Italiano no cenaacuterio de guerra que se desenrola Calvino inicia os estudos universitaacuterios na Faculdade de Agronomia de Turim em 1941 periacuteodo em que produziraacute uma seacuterie de pequenos contos interrompidos por seu envolvimento com os partigiani e pela clandestinidade na resistecircncia

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ao fascismo Apoacutes a Libertaccedilatildeo reafirma sua adesatildeo ao PCI e inicia um viacutenculo sem volta com o universo literaacuterio quando se mudou para Turim ao teacutermino da guerra partigiana matriculou-se na Faculdade de Letras e passou a frequentar a editora Einaudi que ao longo desse periacuteodo funcionava como bem mais que uma editora ndash era o local de confluecircncia da intelectualidade de esquerda espaccedilo no qual filoacutesofos historiadores escritores e literatos travavam contiacutenuas discussotildees acerca das tendecircncias poliacuteticas e ideoloacutegicas de entatildeo Pouco depois comeccedilou a prestar serviccedilos para a proacutepria editora trabalhando em vaacuterios setores ateacute 1983 ano em que dela se desvinculou redigiu notas publicitaacuterias dirigiu entre 1952 e 1959 o Notiziario Einaudi um perioacutedico mensal (posteriormente trimestral) de informaccedilatildeo cultural fundou e dirigiu ao lado de Elio Vittorini a revista de literatura Il Menabograve dirigiu coleccedilotildees de literatura diversas e como editor escreveu cerca de cinco mil cartas em que discute e analisa trabalhos de inuacutemeros autores

O envolvimento com a literatura desde os anos 1940 mostrou-se profundo e irreversiacutevel Calvino escreveu inuacutemeros ensaios e textos ficcionais participou de grupos literaacuterios e culturais produziu peccedilas de teatro e musicais Tornou-se um escritor que se interrogava continuamente tanto sobre seu proacuteprio trabalho e sobre as estrateacutegias e escolhas a ele inerentes quanto sobre as possibilidades de existecircncia do ser humano no mundo Explorando a accedilatildeo poliacutetica impliacutecita na narrativa no trabalho da escritura e na proacutepria literatura fez do campo literaacuterio um hiacutebrido no qual confluem o homem praacutetico e o homem contemplativo a ciecircncia e a ficccedilatildeo o poeacutetico e o poliacutetico propriamente dito

Se no caso de Borges sempre foi expliacutecito o desejo de natildeo fazer da literatura campo de disputas poliacuteticas (ainda que isso natildeo o tenha impedido de manifestar com clareza suas posturas) a relaccedilatildeo de Italo Calvino com a poliacutetica estrita mostrou-se mais complexa em especial no princiacutepio de sua produccedilatildeo ficcional No iniacutecio da deacutecada de 1940 ele se envolveu diretamente com o movimento de resistecircncia ao fascismo que avanccedilava sobre a Itaacutelia unindo-se agrave Brigada Garibaldi e militando ativamente na guerra partigiana Apesar da breve duraccedilatildeo cronoloacutegica esse envolvimento teve grande intensidade e foi determinante em sua formaccedilatildeo humana e poliacutetica refletindo-se em sua obra a Resistecircncia Italiana eacute o tema de seu primeiro livro A trilha dos ninhos de aranha (CALVINO 2004) publicado em 1947 e de diversos contos do mesmo periacuteodo

Nos primeiros anos poacutes-resistecircncia eacute assim principalmente por meio de uma narrativa de temaacutetica poliacutetica que o autor estabelece sua atuaccedilatildeo neste campo inclusive colaborando em diversos jornais e perioacutedicos comunistas No entanto seu envolvimento com a poliacutetica tornou-se mais conflituoso a partir dos desdobramentos da conjuntura italiana e essa tensatildeo acabou resultando em seu desvinculamento em 1957 do Partido Comunista Nesse sentido eacute esclarecedora sua resposta em entrevista concedida em 1956 agrave questatildeo ldquoAcredita que os literatos devem participar da vida poliacutetica Como Qual sua tendecircncia poliacuteticardquo

Acredito que quem tem de participar da poliacutetica satildeo os homens E os literatos na medida em que satildeo homens Creio que a consciecircncia ciacutevica e moral deva ter influecircncia primeiro sobre o homem e depois tambeacutem

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sobre o escritor Eacute um caminho longo mas natildeo haacute outro E acredito que o escritor tem de manter em aberto um discurso que em suas implicaccedilotildees natildeo pode deixar de ser tambeacutem poliacutetico [] Da poliacutetica e da literatura participo de maneiras diferentes conforme minhas atitudes mas ambas me interessam como um mesmo discurso sobre o gecircnero humano (CALVINO 2006 p 26-27)

Nesse contexto o envolvimento com o projeto de pesquisa para compilaccedilatildeo e ldquotraduccedilatildeordquo de narrativas tradicionais da Itaacutelia para publicaccedilatildeo do livro Faacutebulas italianas inicia-se em 1954 e aprofunda a relaccedilatildeo do autor com um universo fantaacutestico e fabular que jaacute se fazia perceptiacutevel em sua obra ndash deixando traccedilos inconfundiacuteveis em textos como os que compotildeem a trilogia Os nossos antepassados O visconde partido ao meio O baratildeo nas aacutervores e O cavaleiro inexistente reunidos em volume uacutenico em 1960ndash aleacutem de tornar mais veementes reflexotildees sobre a oralidade e a originalidade das narrativas sobre a ldquoinsaciabilidade de versotildees e de variantesrdquo que marca a ldquoinfinita variedade e infinita repeticcedilatildeordquo que caracterizam essas histoacuterias (CALVINO 1995 p 13) Aleacutem disso ali tambeacutem germinavam as questotildees sobre a liacutengua italiana e seu viacutenculo particular com a escrita sobre um mundo viacutevido e em perpeacutetuo movimento que se cristalizava textualmente temas que habitaratildeo diversas de suas produccedilotildees ensaiacutesticas dentre as quais destacamos ldquoItaliano uma liacutengua entre as outrasrdquo (CALVINO 2009b) e ldquoMondo scritto e mondo non scrittordquo (CALVINO 2002a)

Eacute tambeacutem no uacuteltimo livro da trilogia O cavaleiro inexistente publicado em 1959 que Calvino comeccedila a explicitar a reflexatildeo sobre a literatura como tema narrativo de suas ficccedilotildees num movimento que desborda as fronteiras entre o ensaio e a criaccedilatildeo ali se delineia um pensamento sobre a linguagem sobre a escrita e sobre a posiccedilatildeo desta relativamente ao que ele viria a chamar de ldquomundo natildeo escritordquo O livro narra a histoacuteria de Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez um nome pomposo para algueacutem que natildeo existe Agilulfo natildeo passa de uma armadura branca brilhante e vazia com a qual Calvino aprofunda a discussatildeo filosoacutefica sobre o homem contemporacircneo que perpassa a trilogia encerrando o ciclo com esse personagem denominado inexistente desde o tiacutetulo da obra e que ao fim da narrativa perde ateacute mesmo sua condiccedilatildeo de impossibilidade

No escopo desse movimento de pensar e produzir literatura a mudanccedila para Paris na deacutecada de 1960 (mais especificamente em 1967) possibilita sua aproximaccedilatildeo com o Oulipo (Ouvroir de Litteacuterature Potentielle) e leva sua obra a novas ramificaccedilotildees e desdobramentos Do contato com o grupo matemaacutetico-literaacuterio que propunha a produccedilatildeo textual a partir do uso de contraintes de restriccedilotildees autoimpostas outros elementos integram-se agrave literatura de Calvino como o jogo matemaacutetico e a combinatoacuteria claramente observaacuteveis nas narrativas de O castelo dos destinos cruzados de 1969 As cidades invisiacuteveis de 1972 e Se um viajante numa noite de inverno de 1979

Como articular o pensamento de uma ideia com a narrativa dessa mesma ideia ou para usar a expressatildeo de Jean Starobinski como ldquopensarerdquo e ldquoraccontarerdquo num mesmo

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movimento determinada questatildeo seja ela filosoacutefica cientiacutefica ou literaacuteria Essa me parece a grande questatildeo que se dissemina ao longo de toda a obra de Calvino e que nela se institui a partir da dupla mirada agrave qual me referi anteriormente que mescla a literatura e a ciecircncia originada de sua ldquoficccedilatildeo familiarrdquo e essencial na construccedilatildeo de seu ldquomito biograacuteficordquo Eacute na busca de respostas a essa indagaccedilatildeo que a obra calviniana inventa caminhos ndash que se bifurcam que se entrecruzam que se entrelaccedilam ndash que permitem a instauraccedilatildeo de uma diferenccedila no seio da tradiccedilatildeo percursos que colocam em tracircnsito o centro e a margem que deslocam os saberes e se abrem para um pensamento pautado pela complexidade tal qual abordada por Edgar Morin (2002 2007) Eacute justamente esse percurso que permite que o Calvino ldquoteoacutericordquo seja apontado por Starobinski como um ldquoteoacuterico ambidestrordquo que se apresenta tanto nas ldquolezionirdquo quanto nos ldquoraccontirdquo diluindo assim as fronteiras que cerceiam o espaccedilo da produccedilatildeo do conhecimento e o desvinculam das formas narrativas e ficcionais

[] a postura cientiacutefica e aquela poeacutetica coincidem ambas satildeo posturas de pesquisa e ao mesmo tempo de planejamento de descoberta e de invenccedilatildeo A postura poliacutetica tambeacutem (em sentido lato isto eacute do fazer histoacuteria cultural e civil) O caminho para tornar una a cultura de nosso tempo de outro modo tatildeo divergente em seus discursos especiacuteficos estaacute justamente nessa postura comum (CALVINO 2009a p 103)

A diversidade de viacutenculos com a palavra que se pode perceber tanto em Borges quanto em Calvino ndash que exercem de maneira relacional vaacuterias outras atividades narrativas aleacutem da produccedilatildeo ficcional como a atuaccedilatildeo na aacuterea editorial a traduccedilatildeo a escrita ensaiacutestica a produccedilatildeo jornaliacutestica as conferecircncias aulas e entrevistas a reflexatildeo sobre ciecircncia natureza e filosofia a participaccedilatildeo em grupos artiacutestico-literaacuterios ndash e que tem sua origem e seu lastro nesse ldquomito biograacuteficordquo que procurei aqui brevemente indicar contribui para a transformaccedilatildeo de suas obras em uma rede e indica a biblioteca como possiacutevel metaacutefora para sua concepccedilatildeo de literatura uma biblioteca tecida pelo desejo do uso da narrativa como motor do pensamento

Nesse sentido aproximar suas estrateacutegias narrativas de construccedilatildeo biograacutefica agravequelas de sua produccedilatildeo ficcional nos possibilita concluir que em ambos a biblioteca pode ser tomada natildeo apenas como objeto e temaacutetica mas tambeacutem como um meacutetodo de composiccedilatildeo literaacuteria eles produzem suas vidas e suas obras como se compusessem uma ldquocoleccedilatildeo de livrosrdquo na qual os mais diversos textos se confrontam no estabelecimento de um novo texto que os releia e os rediga afinal ldquoOs livros satildeo feitos para serem muitos um livro uacutenico tem sentido apenas quando se junta a outros livros quando segue e precede outros livrosrdquo (CALVINO 2002b p 127 traduccedilatildeo nossa) ldquoUm livro eacute uma coisa entre as coisas um volume perdido entre os volumes que povoam o indiferente universo ateacute que ele encontra seu leitorrdquo (BORGES 1999a p 519)Em Borges e Calvino escritores jaacute aproximados por muitos pesquisadores em razatildeo de suas obras literaacuterias acredito que encontramos outros pontos de contato a ficccedilatildeo

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familiar o mito biograacutefico e a biblioteca os quais podem ser tomados como locus de construccedilatildeo e subversatildeo dos saberes como espaccedilo de memoacuteria e de esquecimento da tradiccedilatildeo e do conhecimento como figuras sobre as quais se assenta certa ldquoidentidaderdquo entre os escritores

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BORGES J L As versotildees homeacutericas In BORGES J L Discussatildeo TradJosely Vianna Baptista Satildeo Paulo Companhia das Letras 2008 p 103-110

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BORGES J L A cegueira In BORGES J L Borges oral amp Sete noites Trad Heloisa Jahn Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011 p 197-214

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BORGES J L GUERRERO M Manual de zoologiacutea fantaacutestica Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 2001

BORGES J L GUERRERO M O livro dos seres imaginaacuterios Trad Heloiacutesa Jahn Satildeo Paulo Companhia das Letras 2007

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CALVINO I O caminho de San Giovanni Trad Roberta Barni Satildeo Paulo Companhia das Letras 2000a

CALVINO I O caminho de San Giovanni In CALVINO I O caminho de San Giovanni Trad Roberta Barni Satildeo Paulo Companhia das Letras 2000b p 15-38

CALVINO I Autobiografia de um espectador In CALVINO I O caminho de San Giovanni Trad Roberta Barni Satildeo Paulo Companhia das Letras 2000c p 39-64

CALVINO I A memoacuteria do mundo In CALVINO I Um general na biblioteca Traduccedilatildeo de Rosa Freire DrsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001 p 127-133

CALVINO I Mondo scritto e mondo non scritto In CALVINO I Mondo scritto e mondo non scritto Milano Mondadori 2002a p 114-125

CALVINO I Il libro i libri In CALVINO I Mondo scritto e mondo non scritto Milano Mondadori 2002b p 126-141

CALVINO I A trilha dos ninhos de aranha Trad Roberta Barni Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004

CALVINO I Questionaacuterio de 1956 In CALVINO I Eremita em Paris paacuteginas autobiograacuteficas Trad Roberta Barni Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 p 21-29

CALVINO I O desafio ao labirinto In CALVINO I Assunto encerrado discurso sobre literatura e sociedade Trad Roberta Barni Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009a p 100-117

CALVINO I Italiano uma liacutengua entre as outras liacutenguas In CALVINO I Assunto encerrado discurso sobre literatura e sociedade Trad Roberta Barni Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009b p 140-147

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Recebido em 23102017

Aceito em 20122017

Maria Elisa Rodrigues Moreira

Doutora em Estudos Literaacuterios ndash Literatura Comparada mestre em Estudos Literaacuterios ndash Teoria da Literatura e bacharel em Comunicaccedilatildeo Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Atualmente eacute professora visitante junto ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Autora dos livros Saber narrativo proposta para leitura de Italo Calvino (Tradiccedilatildeo Planalto 2007) e Coleccedilatildeo arquivo biblioteca a literatura de Borges e Calvino (Clock-T 2016) elisarmoreiragmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Sobre o amor e a incapacidade de amarOn Love and the Incapacity to Love

Sobre el amor y la incapacidad de amar

Dionei MathiasUniversidade Federal de Santa Maria

Resumo

Em muitos textos de Elfriede Jelinek a ausecircncia de amor representa uma caracteriacutestica central na interaccedilatildeo das personagens Isso vale especialmente para o seu romance Die Klavierspielerin (A Pianista) cujo enredo trata do triacircngulo formado por matildee filha e um jovem aluno que negociam signos de amor em busca de uma narrativa de identidade em consonacircncia com seus valores e projetos pessoais Para refletir sobre essa questatildeo o presente artigo estaacute dividido em duas partes Primeiramente discutem-se algumas ideias sobre o conceito de amor a fim de estabelecer uma base teoacuterica ndash sem ambicionar uma definiccedilatildeo exaustiva ndash que permita analisar esse discurso no texto ficcional Na segunda parte a anaacutelise foca no texto literaacuterio com o objetivo de compreender a dinacircmica do amor materno (2) do corpo ao mesmo tempo rebelde e domesticado (3) a busca por espaccedilos iacutentimos natildeo controlados (4) e por fim a imaginaccedilatildeo do futuro como elemento do amor (5) Palavras-Chave Elfriede Jelinek A pianista amor

Abstract

In many texts written by Elfriede Jelinek the absence of love represents a key element in the way characters interact This applies especially to the novel Die Klavierspielerin (The Piano Player) whose plot is about the triangle formed by mother daughter and a young student who trade in signs of love in search of an identity narrative in line with their values and personal projects In order to discuss this question this article is divided into two parts Firstly there is a discussion about some ideas on the concept of love ndash without any ambition for an exhaustive definition ndash trying to establish a theoretical basis which might allow its examination in the fictional text In the second part the focus is on the plot aiming to understand (2) the dynamics of maternal love (3) the insubordinate and docile body (4) the search for unsurveilled private spaces and finally (5) the imagination of future as an element of love Keywords Elfriede Jelinek The Piano Player Love

Resumen

En muchos textos de Elfriede Jelinek la ausencia del amor representa una caracteriacutestica fundamental en la interaccioacuten de los personajes Eso puede decirse especialmente de la novela Die Klavierspielerin (La pianista) cuya trama presenta un triaacutengulo entre madre hija y un joven estudiante que negocian signos de amor en buacutesqueda de una narracioacuten de identidad en

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consonancia con sus valores y sus proyectos personales Para discutir esa cuestioacuten este artiacuteculo estaacute dividido en dos partes Primeramente se introducen algunas ideas sobre el concepto de amor con la finalidad de establecer una base teoacuterica que permita analizar ese concepto en el texto ficcional En la segunda parte el anaacutelisis pasaraacute al texto literario con el objetivo de comprender la dinaacutemica del amor materno (2) del cuerpo a la vez rebelde y domesticado (3) la buacutesqueda por espacios iacutentimos no controlados (4) y por fin la imaginacioacuten del futuro como elemento del amor (5) Palabras clave Elfriede Jelinek La pianista amor

1 Introduccedilatildeo ou tentativa sobre o amor

A tentativa de definir o amor representa um exerciacutecio que perpassa a histoacuteria Talvez nenhuma outra emoccedilatildeo tenha inspirado tantos pensadores a encontrar imagens que pudessem captar e abarcar toda a dimensatildeo desse excerto de realidade que transforma a visatildeo de mundo do sujeito O escopo e o conteuacutedo daquilo que constitui o amor se tornam semanticamente nebulosos pois cada indiviacuteduo colora sua interpretaccedilatildeo de realidade com impressotildees pessoais que por sua vez estatildeo inseridas em moldes culturais especiacuteficos determinando igualmente a formaccedilatildeo de sentido (HANSEN 2003 MUumlLLER-FUNK 2006) Para tentar dar conta desse fenocircmeno eacute possiacutevel aproximar-se de sua descriccedilatildeo interpretando-o como sistema (LUHMANN 1994) como resultado de um processo de civilizaccedilatildeo (ELIAS 2007) como conjunto socialmente reconhecido de discursos ou normas (DEMMERLING LANDWEER 2007 p 128) Nesses modelos a diversidade de sensaccedilotildees fiacutesicas e aniacutemicas no primeiro momento desordenada acaba sendo condensada pelo sujeito transformando o emaranhado caoacutetico numa interpretaccedilatildeo concatenada a fim de que possa ser narrada e transmitida para outros membros do espaccedilo social A narraccedilatildeo do amor equivale a uma organizaccedilatildeo discursiva portanto tambeacutem estaacute perpassada de ideologias e de elementos de cunho histoacuterico

A cultura ou melhor os discursos que regem as normas de comportamento accedilatildeo e construccedilatildeo de identidade definem em grande parte as formas de conceber e realizar a experiecircncia do amor A concepccedilatildeo e expressatildeo do desejo a encenaccedilatildeo iacutentima e social da paixatildeo ou mesmo a configuraccedilatildeo do amor filial dentro do microcosmo familiar satildeo praacuteticas historicamente condicionadas pelos paracircmetros acordados num determinado espaccedilo social e grupo cultural Talvez os instintos eroacuteticos e de proteccedilatildeo apresentem muitas semelhanccedilas se comparados a suas concretizaccedilotildees primordiais poreacutem o modo como eles adentram a simbolizaccedilatildeo da consciecircncia e como satildeo exteriorizados na praacutetica da interaccedilatildeo social se transformam conforme o horizonte de ideias que marca as fronteiras do pensaacutevel na respectiva eacutepoca O discurso ficcional se apropria ndash consciente ou inconscientemente ndash desse ideaacuterio e o metamorfoseia em experiecircncia esteacutetica reproduzindo os modelos vigentes ou questionando sua propriedade para as imposiccedilotildees da existecircncia

Os limiares do conscientemente pensaacutevel se impotildeem especialmente no que concerne agrave concepccedilatildeo do amor como fenocircmeno inscrito no corpo ou seja amor como desejo ou necessidade de satisfaccedilatildeo eroacutetica Para a Psicanaacutelise toda forma de amor nada mais eacute

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que reflexo de pulsotildees libidinais (DEMMERLING LANDWEER 2007 p 128) daiacute toda accedilatildeo e interaccedilatildeo do sujeito no fundo terem por objetivo satisfazer as demandas do corpo Vivendo em sociedade poreacutem e imerso numa rede de signos culturais o sujeito eacute impelido a narrar essas necessidades de forma que sejam admissiacuteveis no espaccedilo social em que circula Disso resultam diversas tessituras culturais que prescrevem em forma de rituais as inuacutemeras modalidades de aproximaccedilatildeo do corpo desejado de exposiccedilatildeo do desejo e de concretizaccedilatildeo das acircnsias da libido Toda forma de intercacircmbio fiacutesico ndash entre pais e filhos entre amigos ou irmatildeos entre amantes hetero ou homossexuais ndash encontra-se em grande parte preacute-definida pelas malhas discursivas da cultura As possibilidades de satisfaccedilatildeo eroacutetica natildeo satildeo as mesmas Existem diferenccedilas oacutebvias em sociedades factualmente poacutes-modernas ou arraigadas em modelos tradicionais no interior ou em grandes centros metropolitanos no mundo assim chamado ocidental ou islacircmico A libido natildeo deixa de ser menos imperativa a despeito do ambiente restritivo Cabe ao sujeito encontrar meios de satisfazer suas demandas fiacutesicas dentro dos limites do pensaacutevel e factiacutevel

Ao mais tardar com Foucault (1978 1999 2005) sabe-se que toda sociedade manteacutem dispositivos para vigiar e disciplinar os corpos inseridos nos diferentes campos de poder Esses instrumentos de vigilacircncia e disciplina em suas funccedilotildees diversas e onipresentes valem especialmente para as concepccedilotildees e exteriorizaccedilotildees da libido Dependendo do grau de poder que o sujeito deteacutem ou ao qual visa ele tem de controlar seus iacutempetos corporais a fim de encenar e impor sua autoridade ou superioridade perante outros membros Dessa dinacircmica provecircm diferentes modos de interagir com o proacuteprio corpo Indiviacuteduos menos ambiciosos no tocante agrave ascensatildeo da hierarquia social ou menos riacutegidos quanto a preceitos impostos por interpretaccedilotildees religiosas conservadoras acabam tendo maior espaccedilo para imaginar suas necessidades e idear estrateacutegias de se esquivarem do controle social

Ao lado das imposiccedilotildees do corpo a maacutescara do amor tambeacutem encobre outros elementos essenciais para o desenvolvimento existencial a saber o anseio pela construccedilatildeo de uma identidade pessoal Essa narraccedilatildeo do si passa incondicionalmente pelo entrelaccedilamento com outros textos identitaacuterios porquanto necessita a atenccedilatildeo do outro a fim de encenar-se e legitimar sua autoimagem (DEMMERLING LANDWEER 2007 p 139) Na interaccedilatildeo com o outro surgem os signos que compotildeem a tessitura da identidade pois no processo de negociaccedilatildeo a imagem projetada adquire concretude quando outros membros da interaccedilatildeo validam seu teor de sentido (LEVITA 2002 MEAD 1992 ZIMA 2000) Isso se revela especialmente importante nos relacionamentos mais iacutentimos uma vez que representam os palcos de interaccedilatildeo primordiais e de maior constacircncia Assim o relacionamento entre pais e filhos ou entre casais encerra uma relevacircncia maior justamente porque as pessoas envolvidas e sobretudo seus juiacutezos sobre os signos postos em circulaccedilatildeo tecircm uma repercussatildeo mais intensa e prolongada para a autoimagem do indiviacuteduo Nesse espaccedilo iacutentimo o amor se transforma numa praacutetica de negociaccedilatildeo de signos na qual se possibilita ao sujeito experimentar diferentes modalidades de autorrepresentaccedilatildeo para que desse modo encontre a narraccedilatildeo que mais lhe conveacutem A aceitaccedilatildeo surge aqui como elemento

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indispensaacutevel para a formaccedilatildeo de uma ambiecircncia confiaacutevel em que todos possam encenar sua proacutepria alteridade (TENHOUTEN 2009 p 52)

Por meio da aceitaccedilatildeo do outro incluindo suas maacuteculas e admissatildeo de maacuteculas proacuteprias cria-se uma narraccedilatildeo solidaacuteria e interessada Nela os membros que a compotildeem ensaiam em suas interaccedilotildees diaacuterias caminhos de sintonia pelos quais buscam ir ao encontro do horizonte de necessidades que o comportamento alheio revela Entre intuiccedilatildeo e expressatildeo delineiam-se espaccedilos comuns nos quais se inscrevem paracircmetros que dispotildeem a cada qual a possibilidade de medrar conforme seus anseios aniacutemicos Dessa forma o amor se transforma num pacto microssocial cujo ecircxito depende em grande parte da profundidade dos conhecimentos que cada membro deteacutem sobre os projetos de identidade que afloram agrave superfiacutecie das interaccedilotildees

O ecircxito nessa empresa depende em grande parte do relacionamento que o indiviacuteduo tem consigo mesmo (FROMM 1984 HUumlLSHOFF 2006) Antes de imergir na narraccedilatildeo alheia ele tem de obter clareza sobre sua proacutepria posiccedilatildeo no espaccedilo social a fim de mobilizar um conjunto de instrumentos que lhe permitam emergir de sua realidade idiossincraacutetica para de fato tomar conhecimentos das tessituras que o circundam Somente com uma autoestima bem desenvolvida e profundamente arraigada na concepccedilatildeo de mundo e interpretaccedilatildeo de realidade ele logra adentrar numa narraccedilatildeo de amor sem capitular perante a percepccedilatildeo inevitaacutevel e inexoraacutevel de fraquezas e imperfeiccedilotildees Logo o amor representa tambeacutem um confronto de realidades ao aproximar os universos aniacutemicos dos membros que participam desse jogo

Com um entrelaccedilamento cada vez mais intricado ndash logo com uma aproximaccedilatildeo de horizontes maior ndash desponta simultaneamente uma necessidade mais concreta de proximidade e de construccedilatildeo de uma narraccedilatildeo duradoura que condense as linhas dispersas e transforme emoccedilotildees incipientes em fenocircmenos articulados e materializados na consciecircncia do sujeito Nesse estaacutegio manifestam-se os primeiros projetos de identidade que preveem o outro como parte irrenunciaacutevel do futuro A orientaccedilatildeo teleoloacutegica por conseguinte estaacute estreitamente atrelada agrave presenccedila de pessoas significativas na materializaccedilatildeo da vida iacutentima em especial para casais e famiacutelias em seus mais diversos formatos (USSEL 1979 SWAAN 1989 HANTEL-QUITMANN 2002) A narraccedilatildeo do amor portanto encerra um espraiamento no espaccedilo iacutentimo e na linha do tempo assimilando com seu desenvolvimento elementos narrativos cada vez mais complexos e intricados o que forccedila os membros desse enredo a buscarem ininterruptamente pela atualizaccedilatildeo dos sentidos que compotildeem suas emoccedilotildees

Com base nas diferentes teorias abordadas queremos definir o amor para o presente artigo como narrativa organizada por uma instacircncia pessoal em que as forccedilas libidinosas do corpo subordinadas agraves regras da cultura e agraves malhas de poder se manifestam e satildeo enfeixadas numa narraccedilatildeo O amor portanto natildeo resulta isoladamente da libido do poder da cultura ou da identidade pessoal O amor assim parece resulta da forma como esses diferentes fatores satildeo organizados numa histoacuteria pensaacutevel e narraacutevel com base na negociaccedilatildeo interessada de sentidos entre dois partidos A narraccedilatildeo do amor surge a

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partir de um pacto de dedicaccedilatildeo exclusiva (entre pais e filhos num casal) que possibilita a inclusatildeo da outra parte na narraccedilatildeo de identidade do sujeito (encenaccedilatildeo social com proteccedilatildeo e pertencimento) e que permite satisfazer as necessidades do corpo (obtenccedilatildeo de atenccedilatildeo dedicaccedilatildeo emocional ou prazer eroacutetico) Isso significa que o amor como entendido aqui implica exclusividade corporeidade narratibilidade e a garantia de que o sujeito narrador possa imaginar a presenccedila da pessoa amada num espaccedilo de tempo prolongado (em princiacutepio por toda a vida)

Em muitos romances de Elfriede Jelinek as personagens procuram por narraccedilotildees de amor Estas contudo raramente tecircm ecircxito uma vez que os participantes envolvidos na negociaccedilatildeo dessa narrativa acabam transformando o outro em objeto produzindo narrativas unilaterais que natildeo preveem as necessidades e os sentidos da outra parte A tese que queremos desenvolver com base no romance Die Klavierspielerin (A Pianista) (2011) dessa autora eacute que as personagens alimentam um desejo intenso por amor mas se mostram incapazes de desenvolvecirc-lo Para isso o foco de anaacutelise recairaacute sobre a dinacircmica do amor materno (2) o corpo ao mesmo tempo rebelde e domesticado (3) a busca por espaccedilos iacutentimos natildeo controlados (4) e por fim a imaginaccedilatildeo do futuro como elemento do amor (5)

2 O amor materno

Os relacionamentos que compotildeem a vida iacutentima da professora de piano no romance A pianista satildeo no miacutenimo problemaacuteticos Para Hoffmann (2003 p 112) concretizaccedilotildees de carecircncia no sentido de falta e insuficiecircncia Dividida entre as imposiccedilotildees maternas e as incursotildees de seu aluno Klemmer ela natildeo suporta a dor incisiva implicada na incerteza sobre sua situaccedilatildeo Ao evitar que um processo de reflexatildeo se materialize nos limites de sua consciecircncia ela proiacutebe uma anaacutelise criacutetica de sua narraccedilatildeo pessoal impedindo com isso uma revisatildeo que possibilite novos percursos identitaacuterios A despeito desses medos no entanto Erika busca por alternativas concebiacuteveis dentro das limitaccedilotildees que a caracterizam A primeira limitaccedilatildeo e talvez a mais incisiva eacute tambeacutem seu principal relacionamento ateacute a chegada de Klemmer Trata-se dos sentimentos que alimenta pela matildee O conjunto de accedilotildees e interaccedilotildees entre as duas mulheres certamente pode ser interpretado como uma tentativa de instaurar uma narraccedilatildeo de amor Interessante neste contexto eacute a imagem que se concretiza a partir do comportamento que ambas trazem agrave tona

O amor da senhora Kohut estaacute longe de ser desinteressado e incondicional disposto a renunciar agrave proacutepria felicidade em prol dos anseios filiais Embora ela tente encenar-se por meio de inquisiccedilotildees preocupadas como matildee aflita e engajada um olhar aleacutem da superfiacutecie de seu comportamento rapidamente revela que essa encenaccedilatildeo natildeo passa de um instrumento discursivo do qual lanccedila matildeo para melhor alcanccedilar seus objetivos Por traacutes da fachada socialmente imposta e estrategicamente melhor manejaacutevel ela encobre uma interpretaccedilatildeo de realidade imersa numa visatildeo autoritaacuteria e intransigente de mundo A partir dessa concepccedilatildeo a matildee representa o princiacutepio instaurador de leis e

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realidades agraves quais a filha deve submeter-se candidamente O dispecircndio de atenccedilatildeo e carinho logo de interesse pela existecircncia de Erika depende em grande parte do grau de submissatildeo por parte desta Qualquer indiacutecio de questionamento ou subversatildeo das leis estabelecidas com rigor e detalhe pela senhora Kohut para todos os movimentos no espaccedilo social implica medidas repressivas para garantir o bom funcionamento de seu estado e a harmonia caseira

A necessidade dessa supervisatildeo significa que sua narraccedilatildeo de amor carece de um elemento central e indispensaacutevel que eacute a confianccedila Sem esse voto de credibilidade nenhum dos membros envolvidos pode de fato encontrar ou criar espaccedilos nos quais tenha a oportunidade de ensaiar projetos de identidade que condigam com seus anseios iacutentimos Para garantir a seguranccedila de seu espaccedilo particular poreacutem a matildee estaacute convencida da necessidade de vigiar os movimentos da filha Por conseguinte grande parte de suas accedilotildees tem por fito idear novas estrateacutegias que potencializem a eficiecircncia de sua malha de controle e ao mesmo tempo criar uma seacuterie de medidas para disciplinar a filha de modo que esta conforme seus atos aos desejos maternos

Dentre as estrateacutegias que emprega com predileccedilatildeo figura o papel da viacutetima Por meio dessa encenaccedilatildeo a matildee logra permanecer no espaccedilo de Erika em forma de peso na consciecircncia forccedilando a filha de maneira sutil a experimentar remorsos de diversos graus de incisatildeo Com o desconforto fiacutesico causado por essa sensaccedilatildeo a filha acaba retornando para os muros maternos sem juntar a energia necessaacuteria para romper o cerco discursivo Alegando fraqueza ou perigos iminentes de morte a matildee obteacutem as informaccedilotildees de que necessita para estar presente mesmo permanecendo em casa Para isso telefona para Erika durante suas aulas ou ateacute mesmo quando esta frequenta um cafeacute pretextando preocupaccedilatildeo e desejo de saber onde estaacute para que num caso extremo possa contataacute-la imediatamente Ateacute certo ponto a encenaccedilatildeo materna se ateacutem agraves prescriccedilotildees sociais no tocante ao comportamento esperado pois sua afliccedilatildeo agrave primeira vista estaacute arraigada num iacutempeto de preocupaccedilatildeo logo num movimento desprendido de si e afincado na filha Essa preocupaccedilatildeo desmesurada facilmente poderia ser confundida com um amor altruiacutesta e incondicional materno que por vezes oblitera os limites aos quais a prole tem direito sem dar-se conta de seu comportamento inadequado

Essa encenaccedilatildeo no entanto nada mais eacute que um instrumento facilmente manejaacutevel do qual a senhora Kohut lanccedila matildeo a fim de garantir o apoio social para seu comportamento e a fim de melhor manipular sua filha Sua preocupaccedilatildeo lhe permite vigiar Erika sem conflitos de legitimaccedilatildeo uma vez que sua imiscuiccedilatildeo jaacute estaacute prevista em seu papel social A vigilacircncia se revela de tal modo eficaz que a matildee logra disciplinar o corpo da professora de piano induzindo-o a obedecer sem antes refletir sobre os acontecimentos que o levam a tal reaccedilatildeo Esse condicionamento do corpo tem lugar quando Erika por exemplo em sua infacircncia executa ininterruptamente os exerciacutecios de piano tendo o fustigo materno como companheiro inseparaacutevel ou tambeacutem mais tarde ao final do romance quando desesperada e existencialmente aniquilada retorna tal qual um autocircmato aos braccedilos protetores que a esperam em casa Para obter ecircxito nesse processo de domesticaccedilatildeo do

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corpo alheio a matildee natildeo hesita em por em risco a felicidade da filha Admoestando-a sobre a necessidade de comprar a casa proacutepria instilando-lhe a ambiccedilatildeo por sucesso profissional e posiccedilatildeo social e advertindo-a sem treacutegua sobre as desvantagens de um companheiro masculino a matildee lhe inscreve nas entranhas o que tem de fazer e o que deve deixar de maneira que a carne reage automaticamente sem dar atenccedilatildeo aos proacuteprios anseios Estes obviamente natildeo deixam de manifestar-se poreacutem sua materializaccedilatildeo acaba sendo reprimida pelo policiamento eacutetico em forma de remorsos que surgem tatildeo logo a matildee desempenhe o papel da viacutetima

3 Matildee filha e o corpo rebelde domesticado

Dentro desse regime fechado de vigilacircncia maacutexima figuram igualmente momentos de insurreiccedilatildeo nos quais Erika tenta desvencilhar-se do aparato autoritaacuterio que a monitora dia e noite Com tal fim ela lanccedila matildeo de uma violecircncia desesperada e sobretudo grotesca para conquistar pequenas ilhas de liberdade Seu ecircxito contudo eacute demasiado limitado e no fundo desesperanccedilado

A filha volta e estaacute quase chorando de tatildeo nervosa Xinga a matildee de malvada e canalha e ao mesmo tempo espera que logo a matildee se reconcilie com ela Com um beijo afetuoso A matildee pragueja que a matildeo de Erika caia por ter batido na matildee e lhe ter arrancado os cabelos Erika soluccedila cada vez mais alto porque agora sente pena da mamatildee que se sacrifica ateacute os ossos e os cabelos De tudo o que Erika faz contra a matildee ela logo se arrepende porque ama sua matildee que jaacute a conhece desde a mais tenra infacircncia Por fim como era de se esperar Erika quer reconciliar-se e chora amargamente E a matildee se retrata com prazer natildeo pode estar verdadeiramente brava com a filha Agora vou eacute passar um cafeacute para noacutes e vamos tomaacute-lo juntas Durante o lanche Erika tem ainda mais pena da matildee e os uacuteltimos resquiacutecios de sua raiva se dissolvem no bolo (JELINEK 2011 p 15)

Percebe-se a oscilaccedilatildeo que caracteriza o comportamento de Erika Por um lado revela um alto potencial agressivo que natildeo titubeia em materializar seu oacutedio por outro lado o mecanismo de retenccedilatildeo automaticamente se impotildee despertando seu arrependimento O mesmo braccedilo que se levanta para esbofetear perde seu arco de forccedila tatildeo logo o maquinaacuterio da contriccedilatildeo envia seus sinais Nesse embate a imagem da viacutetima materna se sobrepotildee agrave ideia de tirania de modo que o amor que senhora Kohut aparentemente tem pela filha acaba sobrepondo-se no conflito discursivo que tem lugar no inconsciente de Erika

Esse conflito que em seu princiacutepio conteacutem um potencial muito grande de extensatildeo da complexidade e de alargamento daquilo que se entende por amor perde sua energia com a inabilidade de ambas as mulheres de suportarem a dor implicada numa discussatildeo atrelada agrave necessidade de construir espaccedilos iacutentimos pessoais livres de controle e vigilacircncia Essa dor poreacutem lhes figura excessivamente incisiva para amealharem a energia demandada para transporem os muros que escudam o prazer da autonomia

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Em seu lugar optam por um silenciamento do conflito assim Erika derrama laacutegrimas conforme seu amestramento e a matildee transige uma vez que sua autoridade jaacute natildeo se encontra mais ameaccedilada O lanche final com bolo e cafeacute nada mais representa que um precircmio distribuiacutedo por parte da instacircncia materna pela submissatildeo filial ou seja o corpo aprende nesse exerciacutecio de condicionamento que com sua anuecircncia seraacute recompensado com docinhos Desse quadro grotesco eacute possiacutevel depreender uma tentativa infantilizada de harmonizaccedilatildeo A harmonia contudo permanece superficial pois os conflitos que motivaram o embate continuam sem soluccedilatildeo e permanecem silenciados Para a narraccedilatildeo do amor isso implica uma base bastante fraacutegil pois se utiliza de imagens e tessituras narrativas cujo teor rapidamente revela sua vacuidade

Se a matildee vigia e disciplina todos os movimentos da filha e natildeo lhe permite desenvolver ensaios de autonomia consequentemente tem de haver alguma motivaccedilatildeo que a impede de alcanccedilar composiccedilotildees mais complexas de amor em sua proacutepria vida pessoal Contudo nem a senhora Kohut nem Erika se permitem uma reflexatildeo sobre o comportamento arbitraacuterio autoritaacuterio e sufocante da matildee O que se encena satildeo os emaranhados reflexivos que a matildee compulsivamente delineia para esquivar-se dos medos que ameaccedilam sua estabilidade

Hoje agrave noite na frente da televisatildeo ela natildeo vai dizer nenhuma palavra a Erika E se for falar algo ela vai explicar a Erika que tudo o que uma matildee faz eacute motivado pelo amor Vai confessar seu amor por Erika e desculpar com esse amor qualquer erro que possa ter cometido E nesse contexto vai citar Deus e outros prepostos que tambeacutem tinham o amor em alta consideraccedilatildeo poreacutem nunca o amor egoiacutesta que estaacute germinando nessa jovem Como castigo a matildee natildeo vai desperdiccedilar uma palavra sequer nem a favor nem contra o filme (JELINEK 2011 p 238)

Seu foco se concentra quase exclusivamente em como garantir a obediecircncia de Erika Nisso projeta toda uma argumentaccedilatildeo acerca do amor aduzindo autoridades que corroborem sua linha de pensamento e forcem Erika a subordinar-se ao jugo da tradiccedilatildeo Esse comportamento tiacutepico e factualmente reiterativo revela no entanto que evita pensar o amor independentemente da presenccedila de sua filha Por conseguinte toda sua construccedilatildeo de identidade estaacute arraigada numa narraccedilatildeo que demanda a atenccedilatildeo completa e ininterrupta de Erika Tatildeo logo esta tenta se desvencilhar do cerco a senhora Kohut pressente um vazio que lhe indica a estrutura instaacutevel de sua narraccedilatildeo pessoal Como ela natildeo suporta a dor causada pelo pensamento sobre a possibilidade de um amor pessoal eroacutetico proacuteprio ela tem de erradicar tambeacutem de Erika quaisquer indiacutecios que pudessem levaacute-la a esse desejo Assim natildeo lhe resta outra coisa senatildeo satanizar o homem que deseja conquistar a atenccedilatildeo da filha Este tendo ecircxito a matildee teria que idear um projeto de narraccedilatildeo identitaacuteria que abdicasse da filha o que a ela parece impossiacutevel Ou seja o amor narrado pela matildee em forma de afliccedilatildeo cuidado e atenccedilatildeo na verdade representa uma carecircncia identitaacuteria irresoluta um conflito de autoaceitaccedilatildeo diante dos obstaacuteculos impostos pela existecircncia Entre

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dor e autoengano a senhora Kohut projeta na filha uma realidade para ela sofriacutevel mas negadora e indiferente agraves necessidades da filha

Essa negaccedilatildeo se revela de forma conspiacutecua numa cena grotesca de pseudossexualidade O encontro entre matildee e filha num primeiro momento aparenta ter o formato de uma brincadeira levada um tanto temeraacuteria por passar dos limites Contudo a matildee natildeo tarda em intuir que os gestos da filha tecircm um teor de sentido muito mais abrangente do que assumira inicialmente A despeito dessas intuiccedilotildees ela procura por interpretaccedilotildees alternativas que condigam com sua visatildeo e ordenaccedilatildeo de mundo para evitar um confronto com o indesejado levantando a hipoacutetese de loucura ou embriaguez As incursotildees incessantes da filha a forccedilam natildeo somente a defender-se fisicamente mas tambeacutem e com mais premecircncia a conceber a sexualidade inerente aos gestos Paradoxalmente ao mesmo tempo que o comportamento de Erika a assusta os gestos da filha lhe sugerem que esta deseja sua atenccedilatildeo e seu amor ldquoDe repente se sente desejada Uma das condiccedilotildees fundamentais para o amor eacute sentir-se valorizado porque um outro nos solicita e nos daacute precedecircnciardquo (JELINEK 2011 p 264) No tumulto da aproximaccedilatildeo eroacutetica a matildee se alegra ao constatar que sua filha natildeo dissipa suas emoccedilotildees com homens cujos planos natildeo confluem com seus projetos Esse movimento se revela especialmente importante pois sinaliza o quatildeo imersa a senhora Kohut se encontra em seu mundo autoritaacuterio e egoiacutesta um mundo no qual ela reina e sua filha obedece

A solidez dessa construccedilatildeo de realidade se fragmenta quando Erika passa a utilizar-se do corpo materno como objeto de prazer eroacutetico desconstruindo dessa forma toda a complexa distribuiccedilatildeo de signos ldquoE a carne velha eacute a que mais se cansa Essa carne natildeo eacute considerada como matildee mas simplesmente como carne Erika arranca pedaccedilos da carne da matildee com os dentes Ela beija e beija Beija a matildee como uma selvagemrdquo (JELINEK 2011 p 265) Nessa interaccedilatildeo Erika desconsidera os papeacuteis sociais e as possiacuteveis sanccedilotildees quando de sua inobservacircncia permitindo que seu corpo e suas necessidades tenham prioridade absoluta a despeito dos tabus violados e tatildeo profundamente inscritos em sua interpretaccedilatildeo de realidade Ela busca de forma desesperada e desenfreada a proximidade que lhe fora negada ateacute entatildeo pelas diversas estrateacutegias de vigilacircncia e disciplina que a matildee lhe impusera Para silenciar o corpo e obliterar as palavras irreversivelmente instauradoras de realidade a matildee denomina o inominaacutevel uma ldquonojeirardquo ignominiosa O desprezo e a vergonha implicados nesse movimento pretendem salvar a situaccedilatildeo eliminando da interpretaccedilatildeo de realidade elementos sofisticadamente reprimidos A cena culmina com a visatildeo do inexistente

Por um instante a filha pode observar os pelos pubianos da matildee jaacute ralos e finos que fecham por baixo a gorda barriga materna E isso lhe ofereceu uma vista incomum Ateacute entatildeo a matildee sempre mantinha esses pelos pubianos sob fecho rigoroso Enquanto lutava a filha olhou de propoacutesito para a camisola da matildee para finalmente poder enxergar esses pelos dos quais ela sabia o tempo todo eles tecircm que estar ali Infelizmente a iluminaccedilatildeo era muito deficiente Erika descobriu deliberadamente sua matildee para poder ver tudo tudo mesmo A matildee tentou se defender disso

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Em vatildeo Erika eacute mais forte do que sua matildee jaacute meio exaurida se pensarmos em termos estritamente corporais A filha joga na cara da matildee o que acabou de ver E a matildee permanece em silecircncio para fazer o visto natildeo visto (JELINEK 2011 p 265)

Essa cena revela que existe um tema na casa da famiacutelia Kohut jamais abordado e hermeticamente trancafiado nos calabouccedilos do inconsciente a saber o corpo e suas demandas eroacuteticas Dispositivos indumentaacuterios disciplina vigilacircncia e por fim silecircncio representam diferentes estrateacutegias para calar as entranhas Estas acabam tumultuando a narraccedilatildeo de realidade minuciosamente tecida pela senhora Kohut Elas tambeacutem descentralizam a narraccedilatildeo de amor porquanto demonstram de forma mais incisiva e terminante que as palavras autoritaacuterias da matildee que a negociaccedilatildeo de signos iacutentimos estaacute restrita ao conscientemente sofriacutevel excluindo todo tipo de maacuteculas que natildeo se subordinam agrave imagem desejada Com a identidade fragmentada e a autoaceitaccedilatildeo bastante limitada prefere-se negar a presenccedila do corpo comprometendo desse modo a complexidade da narraccedilatildeo do amor Esta no tocante ao relacionamento entre a matildee e a filha somente existe como instrumento de imposiccedilatildeo ou como maquinaacuterio de repressatildeo impedindo uma tessitura mais complexa que desbrave caminhos desconhecidos

4 Desbravamento de espaccedilos iacutentimos natildeo controlados

Diante desse cenaacuterio no qual a matildee se impotildee ininterruptamente Erika tem de travar uma luta acirrada para conquistar pequenos espaccedilos de intimidade onde possa desenvolver seus anseios e criar redes narrativas libertas dos dispositivos maternos Trata-se de espaccedilos nos quais possa inserir-se sem ser constantemente vigiada e disciplinada tendo a oportunidade de atentar para seus desejos e aceitar suas maacuteculas Com tal espaccedilo em princiacutepio ela delinearia algumas coordenadas essenciais dentre as quais a narraccedilatildeo de amor pudesse medrar Importante salientar que a matildee procura obliterar todos os signos de desejo da mente forccediladamente pura de sua filha dispondo um crivo de percepccedilatildeo que mal permite que esta tenha condiccedilotildees de idear imagens que natildeo tenham passado pelo maquinaacuterio de censura instituiacutedo pela senhora Kohut A presenccedila do corpo alheio no entanto desperta em Erika movimentos que natildeo consegue ordenar tampouco reprimir Assim a presenccedila de seu primo num episoacutedio de sua adolescecircncia lhe indica a existecircncia de experiecircncias que vatildeo aleacutem do condicionamento musical ferrenho arbitrado pela matildee Ao contraacuterio dela o rapaz dispotildee de um corpo fincado na natureza sem embaraccedilos que impeccedilam seu desenvolvimento Quando este inicia uma brincadeira que envolve um contato corporal bastante intenso Erika praticamente fica paralisada perante o desconhecido que se desvela diante de seus olhos Sem desejar e ao mesmo tempo incapaz de reprimir seus impulsos ela toca o sexo de seu primo boquiaberta e arrebatada como se fosse um presente de natal ldquoFoi contra a vontade dela O garotinho natildeo sabe que desencadeou uma avalanche de pedras em sua prima Ela natildeo para de olhar [hellip] Esse instante deve permanecer por favor Eacute tatildeo lindordquo (JELINEK 2011 p 53) As palavras de

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Fausto agraves quais aludem as uacuteltimas frases caracterizam ironicamente a intensidade dessa experiecircncia que transforma a consciecircncia de Erika dado que se apercebe provavelmente pela primeira vez das necessidades de seu corpo Natildeo haacute duacutevidas a utilizaccedilatildeo dessa citaccedilatildeo como em muitas outras situaccedilotildees eacute tambeacutem irocircnica mas natildeo somente Existe um desejo na realidade dessa personagem que ela tragicamente natildeo consegue articular ou natildeo tem o espaccedilo para deixar crescer A ironia no niacutevel estrutural e o ridiacuteculo no niacutevel do conteuacutedo natildeo negam a humanidade e a legitimidade do desejo O que se encena aqui eacute um corpo que natildeo sabe se articular e com essa insuficiecircncia se vecirc arremessado inexoravelmente agrave infelicidade concretizada justamente na ausecircncia de amor Nessa e em muitas das citaccedilotildees subsequentes haacute algo de ciacutenico e traacutegico O cinismo proveacutem de uma voz narrativa que eacute tudo menos imparcial A tragicidade se constitui diante das implicaccedilotildees que essas informaccedilotildees tecircm para a concretizaccedilatildeo existencial da personagem

O conflito pessoal desencadeado por essa experiecircncia reside na impossibilidade de harmonizar o condicionamento materno com as premecircncias corporais que se materializam de forma cada vez mais intensa Desse modo Erika se encontra impossibilitada de criar um espaccedilo no qual natildeo tenha que romper com a matildee nem que impeccedila a presenccedila de uma figura masculina para dar iniacutecio a sua narraccedilatildeo pessoal de amor O resultado desse embate eacute a procura por ambientes nos quais possa neutralizar os movimentos contraditoacuterios que a assolam Logo Erika natildeo tarda em localizar casas eroacuteticas ou melhor sex shops situados nos subuacuterbios de Viena e redutos de elementos embrutecidos para dar reacutedeas soltas agrave sua necessidade de ao menos ver o corpo alheio sem mecanismos de controle Nessa praacutetica de voyeurismo num lugar conspicuamente distante do espaccedilo social no qual constroacutei sua identidade Erika pode confortavelmente manter seu papel social de mulher culta e superior sem precisar assimilar as maacuteculas que poderiam minorar sua superfiacutecie de encenaccedilatildeo O voyeurismo parece representar um acordo num primeiro momento aceitaacutevel e animicamente suportaacutevel harmonizando ateacute certo grau desejos pessoais e ditames maternos No entanto o prazer que ela depreende dessa praacutetica rapidamente se vecirc acossado pelos riscos em que incorre quando abandona as coordenadas socialmente encenaacuteveis Assim ao inveacutes de encontrar um espaccedilo neutralizado ela se defronta com um novo conflito comportando movimentos excludentes mas igualmente prementes para sua realizaccedilatildeo pessoal

Acresce que surgem elementos que fogem de seu domiacutenio Muito embora condicionada a manter tudo sob seu rigoroso controle Erika se apercebe que nesses exerciacutecios de desbravamento do desconhecido despontam sentidos que emergem de seu interior sem passar pela triagem disciplinadora Em analogia a seu primeiro encontro com seu primo a visatildeo do outro nesse espaccedilo obscuro a impele a aproximar-se do corpo alheio desencadeando processos de autoconhecimento

Erika olha atentamente Natildeo para aprender Nada nela se mexe Mas ainda ela eacute obrigada a olhar Para seu proacuteprio prazer Cada vez que ela quer ir embora alguma coisa que vem laacute de cima faz sua cabeccedila bem penteada voltar-se energicamente para a janelinha e ela eacute obrigada a continuar

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olhando O torno sobre o qual a linda mulher estaacute sentada gira em ciacuterculos Erika natildeo tem culpa Simplesmente eacute obrigada a olhar Ele eacute um tabu para si mesma Natildeo pode tocar-se (JELINEK 2011 p 66)

Por um lado seu proacuteprio corpo se rebela natildeo obedecendo agrave ordem social de abandonar o lugar e voltar ao seio daquilo que considera respeitaacutevel o que aponta certa sintonia Por outro lado esse mesmo corpo lhe figura como um objeto tamanhamente estranho que envolto por uma aura do intocaacutevel e impenetraacutevel parece natildeo lhe pertencer Ao evitar o toque Erika perde a oportunidade de conhecer a si mesma e tecer novas filigranas de sentidos esquivando-se por conseguinte de defrontar a complexidade que reside em seu corpo O maquinaacuterio da disciplina estaacute inscrito de tal forma em suas entranhas que natildeo logra romper a redoma que encobre seu corpo

Todo esse episoacutedio em torno do voyeurismo encerra uma seacuterie de implicaccedilotildees para sua narraccedilatildeo de amor Ao procurar um lugar social e pessoalmente distante para satisfazer seus anseios ela evita integrar os signos produzidos nesse contexto em sua narraccedilatildeo de identidade Ou seja haacute tessituras identitaacuterias que satildeo importantes para seu corpo poreacutem impassiacuteveis de serem integradas em sua representaccedilatildeo social A disciplina e a vigilacircncia continuam imperando de forma recocircndita pois suas visitas permanecem anocircnimas e realizadas agraves escondidas O prazer que experimenta na verdade eacute o prazer encenado pelo outro natildeo o seu porquanto o proacuteprio corpo continua intocado Com isso ela se esquiva tambeacutem de um movimento de proximidade no qual dois seres negociam seus signos aceitando maacuteculas e rupturas

O elemento central que impede o iniacutecio de uma narraccedilatildeo de amor reside na autoaceitaccedilatildeo Sem aceitar suas necessidades por motivos externos no mais das vezes socialmente estipulados pela voz autoritaacuteria da matildee Erika se encontra impedida de iniciar uma narraccedilatildeo que inclui a presenccedila do outro pois este automaticamente tem de confrontaacute-la com as contradiccedilotildees que caracterizam sua identidade A dor implicada na resoluccedilatildeo desses conflitos no entanto eacute tamanha que Erika prefere renunciar ao amor a obter clareza acerca dos paradoxos imbricados em seu comportamento

ldquoErika eacute um aparelho compacto em forma humanardquo (JELINEK 2011 p 62) Essa frase usada pela voz narrativa para caracterizar a professora de piano procede em vaacuterios sentidos Ela age como um autocircmato perante os desiacutegnios maternos e se comporta como se seu corpo natildeo tivesse vontades proacuteprias A despeito de frequentar casas eroacuteticas deleitar-se com filmes pornograacuteficos ou perambular pelo famoso parque Prater a altas horas da noite agrave procura de casais copulando seu prazer na verdade permanece sempre superficial e pertencente a outro Dessa forma sua satisfaccedilatildeo resulta quase sempre de uma experiecircncia raacutepida e contingente evitando uma condensaccedilatildeo narrativa com projeccedilotildees para o futuro Tanto a narraccedilatildeo do amor como a da identidade necessitam do futuro como linha temporal imaginaacuteria para desenvolver tessituras duradouras Erika no entanto permanece fincada no agora esquivando-se de projetar ou ao menos imaginar um relacionamento que natildeo tenha o caraacuteter de algo provisoacuterio necessaacuterio mas natildeo propriamente desejado

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5 O amor como aurora do futuro

O fato de optar por relacionamentos contingentes em si natildeo parece ser tatildeo problemaacutetico quanto o fato de natildeo refletir sobre seu comportamento pois isso corrobora mais uma vez que seus atos satildeo frutos de imposiccedilotildees (corporais) natildeo de seu livre-arbiacutetrio Essa ausecircncia de reflexatildeo sobre suas accedilotildees e os sentimentos de culpa que a acompanham em suas incursotildees patenteiam o excesso de dor que se encobre por traacutes do silecircncio Essa mesma dor a forccedila a agir tal qual um autocircmato impossibilitando narraccedilotildees que vatildeo aleacutem das demarcaccedilotildees predispostas Assim quando Klemmer daacute iniacutecio a suas primeiras tentativas de aproximaccedilatildeo Erika reage com um profundo mal-estar

Erika sente-se cada vez mais repelida Ela gostaria que ele jaacute tivesse ido embora Ele que leve a matildeo dele consigo Fora Ele se tornou um terriacutevel desafio da vida pra ela Erika e ela soacute costuma aceitar os desafios da interpretaccedilatildeo fiel Por fim eles avistam a parada do bonde A cobertura de fibra de vidro iluminada com um banquinho embaixo eacute tranquilizadora [hellip] Erika estaacute aterrorizada Ela quer que essa aproximaccedilatildeo acabe de uma vez por todas e que esse supliacutecio termine O bonde estaacute chegando Logo ela vai conversar com a matildee sobre o que se passou quando Herr Klemmer jaacute estiver longe Primeiro ele tem quer ir embora Depois ele vai se tornar assunto da conversa Natildeo vai incomodar mais do que passar uma pena na pele (JELINEK 2011 p 94)

Esse mal-estar resulta em primeiro lugar dos signos com os quais Erika se vecirc confrontada e que na verdade deseja reprimir A presenccedila de um homem interessado nela como mulher no espaccedilo social no qual circula e em que encena sua identidade a forccedila a rever sua narraccedilatildeo pessoal1 O confronto por conseguinte requer a revisatildeo de determinadas tessituras especialmente no tocante ao corpo o que evitava em suas escapadelas anocircnimas O testemunho de outras pessoas a impede de negar os acontecimentos e suprimi-los de sua autorrepresentaccedilatildeo logo a instauraccedilatildeo de sentidos que irradiam desse encontro a desconcertam imensamente Contudo o que transforma o encontro num supliacutecio aterrorizando-a de modo a desejar o sumiccedilo imediato desse homem reside no conflito interior que a avassala Assim o desejo ndash inarticulado e impassiacutevel de materializaccedilatildeo perante o maquinaacuterio de vigilacircncia implantado pela matildee ndash de aventurar-se pelos meandros de uma narraccedilatildeo pessoal que permita a presenccedila de uma figura masculina se contrapotildee ao conforto e agrave harmonia meticulosamente estabelecidos

1 O problema seria bem mais simples se ambos Erika e Klemmer fossem duas carnes coisificadas agrave procura do equiliacutebrio libidinal numa troca capitalista e anti-humana de mercadorias ou bem mais simples numa animalizaccedilatildeo que exclui repercussotildees identitaacuterias O conflito reside justamente no desejo por amor que a personagem Erika indica em seu comportamento mas do qual natildeo consegue dar conta Inscrito nesse desejo encontra-se o anseio por um humanismo que na realidade se revela incapaz de conciliar as demandas do corpo e as necessidades da identidade humana mas que nem por isso deixa de existir

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pela matriarca O choque entre essas duas possibilidades de conformaccedilatildeo de realidade a imobiliza especialmente pela necessidade de uma tomada de decisatildeo

O segundo aspecto que produz seu mal-estar ndash atrelado tambeacutem ao processo de deliberaccedilatildeo ndash proveacutem de uma possiacutevel projeccedilatildeo de futuro Com as incursotildees de Klemmer o futuro se impotildee de forma demasiado intensa porquanto entreabre outras possibilidades de narraccedilatildeo pessoal Se no primeiro movimento o conflito residia na produccedilatildeo imediata de signos instaurados por novas visotildees do si no segundo esses signos surgem como possiacuteveis figuraccedilotildees do futuro O agora retrocede para permitir que o devir adentre o primeiro plano Com isso outros elementos se tornam relevantes especialmente no que concerne agrave narraccedilatildeo de amor e de identidade Os elementos circunstanciais como a parada do bonde ou a conversa posterior com a matildee enfatizam o conforto que experimenta com rituais estabelecidos e previsiacuteveis Isso vale igualmente para a imagem da interpretaccedilatildeo fiel das obras pois tambeacutem nesse exerciacutecio as coordenadas dos processos cognitivos estatildeo predispostas demandando do sujeito somente que se atenha aos caminhos inscritos na obra Ateacute mesmo seu desprezo inicial indicando seu desejo que Klemmer se distancie nada mais representa que um ritual bem delineado a fim de impedir que o desconhecido irrompa no agora A sensaccedilatildeo posterior ndash uma pena deslizando pela pele ndash representa a uacutenica espoacutertula destinada ao corpo de forma comedida e jaacute domesticada A imaginaccedilatildeo do futuro pois implica para Erika um desafio existencial que naquele momento ainda lhe figura como insuportaacutevel pois lhe exige que revise sua construccedilatildeo de identidade e que permita a presenccedila da alteridade para iniciar uma narraccedilatildeo de amor

Klemmer no entanto obstina-se em conquistar sua atenccedilatildeo e para tanto estaacute disposto a investir toda sua energia a fim de romper as barreiras construiacutedas pela professora de piano Enquanto Erika se mostra inquieta perante suas incursotildees desejando nada mais intensamente que retornar ao conforto ritualmente demarcado pelo som do aparelho televiso Klemmer procura desconcertaacute-la com o fito de aperfeiccediloar suas teacutecnicas de seduccedilatildeo Para Klemmer Erika se reduz a um objeto de estudo interessante mas definitivamente passageiro para Erika o aluno se transforma ndash a despeito de seu medo de admitir seus desejos para si mesma ndash numa possibilidade de futuro Logo o tempo volta a perpassar sua narraccedilatildeo indicando sua importacircncia para a concepccedilatildeo de identidade e amor O interesse do aluno desencadeia um processo no qual Erika comeccedila a imaginar linhas alternativas de futuro inserindo nelas narraccedilotildees que preveem a presenccedila de uma figura masculina e a afirmaccedilatildeo de seu corpo

A decadecircncia de Erika bate agrave porta com dedos aacutegeis Doenccedilas mal definidas perturbaccedilotildees vasculares nas pernas ataques de reumatismo inflamaccedilotildees nas juntas alastram-se nela (Doenccedilas como essas satildeo poucas vezes conhecidas pelas crianccedilas E Erika tambeacutem natildeo as conhecia ateacute entatildeo) Klemmer que parece um folheto de propaganda do saudaacutevel esporte da canoagem mede sua professora como se quisesse mandar embrulhaacute-la imediatamente e levaacute-la ou comecirc-la ali mesmo de peacute na loja Talvez esse seja o uacuteltimo a me desejar pensa Erika enfurecida e logo eu estarei morta com apenas trinta e cinco

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anos pensa com raiva Eacute melhor embarcar logo nessa porque depois que eu morrer natildeo vou ouvir cheirar nem sentir o gosto de mais nada (JELINEK 2011 p 132)

A passagem do tempo e suas marcas indeleacuteveis nos signos do corpo a impelem a percepccedilotildees que antes evitara Com a deterioraccedilatildeo do corpo suas chances de satisfazer suas necessidades fiacutesicas se tornam cada vez menores Diante desse cenaacuterio a visatildeo do jovem que a deseja lhe figura como uacuteltima chance natildeo somente quanto a uma possiacutevel narraccedilatildeo de amor mas sobretudo no que concerne a uma construccedilatildeo alternativa de futuro Essa imaginaccedilatildeo contudo tem seu iniacutecio com uma contraposiccedilatildeo muito intensa do capital fiacutesico que os dois provaacuteveis parceiros ostentam Erika por um lado apresenta um corpo em princiacutepio de ldquoruiacutenardquo enquanto Klemmer na flor da idade pode jactar-se de elasticidade e vigor Essa contraposiccedilatildeo estaacute igualmente inscrita no movimento de percepccedilatildeo Erika transcreve o desejo corporal em imagens socialmente inocentes ndash o lanche para o gaacuteudio dos sentidos natildeo deseja consumir entre as quatro paredes mas no cafeacute tamanha a fome ndash enquanto a percepccedilatildeo de Klemmer recai sobre o imediatismo juvenil que natildeo suporta a delonga tampouco considera o momento apoacutes a satisfaccedilatildeo Erika se encontra imersa numa interpretaccedilatildeo de realidade imbuiacuteda de esperanccedila logo natildeo se daacute conta da incongruecircncia que tal relacionamento traz consigo e da impossibilidade da construccedilatildeo de uma narrativa de amor que transcenda o momento

Embora Klemmer natildeo poupe esforccedilos para conquistar a confianccedila da professora suas tentativas de aproximaccedilatildeo natildeo passam de exerciacutecios com o objetivo de comprovar sua destreza e capacidade de manipulaccedilatildeo Assim a imperfeiccedilatildeo da mulher a torna desejaacutevel por franquear-lhe caminhos aos quais natildeo teria acesso se Erika ostentasse uma beleza que o desconcertasse A percepccedilatildeo detalhada do corpo da professora incluindo a identificaccedilatildeo de maacuteculas que minoram seu capital fiacutesico por conseguinte natildeo representa aceitaccedilatildeo do outro em sua integridade senatildeo um mecanismo que impotildee ao outro sua inferioridade Desse modo Klemmer lanccedila matildeo de um aparato por meio do qual pretende vigiar e sobretudo disciplinar Erika Sua juventude e beleza fiacutesica servem de instrumento para legitimar a distribuiccedilatildeo de poder ao mesmo tempo que forccedilam o corpo da professora a curvar-se diante da chance que o aluno supostamente representa Ciente dessa discrepacircncia e de possiacuteveis implicaccedilotildees favoraacuteveis para seus interesses Klemmer se engaja para alcanccedilar seus objetivos

O projeto de identidade de Klemmer natildeo prevecirc a presenccedila de Erika numa escala de tempo mais prolongada jaacute que a paixatildeo que reclama e encena natildeo passa da categoria de objeto Com a coisificaccedilatildeo de Erika a narraccedilatildeo de amor se transforma em narraccedilatildeo de jogo no qual a competitividade se patenteia como algo elementar Klemmer admitidamente natildeo tem predileccedilatildeo por derrotas logo o tempo de jogo que se dispocircs para vencer o adversaacuterio segue padrotildees racionalizados usando toda sorte de teacutecnicas para desconcertar Erika e fazecirc-la curvar-se a seus desejos Nisso ele natildeo divisa a pessoa com suas narraccedilotildees pessoais e projetos de futuro mas somente uma superfiacutecie de projeccedilatildeo cuja funcionalidade natildeo hesita em reduzir para servir-lhe de objeto de prazer e diversatildeo

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Ao contraacuterio dele Erika sim comeccedila a divagar imaginando possibilidades de futuro comum ldquoMecanicamente Erika executa a parte do piano bastante simples Seus pensamentos se dirigem para longe para uma viagem de estudos de piano em companhia de aluno Klemmer Soacute ela ele um quartinho de hotel e o amorrdquo (JELINEK 2011 p 183) Os sonhos em meio a sua encenaccedilatildeo social e profissional imediatamente se rompem perante as lembranccedilas impositivas da matildee mas representam exerciacutecios narrativos soacutelidos que desenvolvem alternativas Embora o tom irocircnico inerente agraves imagens um tanto piegas seja gritante ele encobre um projeto de identidade e de amor em forma de esperanccedila Mais tarde Erika ateacute mesmo se imagina como noiva numa cena em que harmoniza todos os antagonismos O grau de seriedade que Erika atribui a esses projetos se evidencia no momento em que pretende revelar a Klemmer seus verdadeiros desejos confiando cega e plenamente no amor de seu aluno

Renuncia agrave sua proacutepria vontade Essa vontade que ateacute aqui foi sempre propriedade da matildee agora eacute passada para Walter Klemmer como numa corrida de revezamento com bastatildeo Ela se inclina para traacutes e espera para ver o que seraacute decidido a seu respeito Abre matildeo de sua liberdade mas impotildee uma condiccedilatildeo Erika Kohut usa seu amor para que esse jovem se torne seu senhor Quanto mais poder ele tiver sobre ela mais ele se tornaraacute uma criatura agrave disposiccedilatildeo das vontades de Erika Klemmer seraacute escravizado por ela por exemplo se eles forem juntos a Ramsau para passear pelas montanhas E ao mesmo tempo ele vai imaginar que eacute o senhor de Erika Eacute para isso que Erika vai usar seu amor (JELINEK 2011 p 234)

Desejosa de transformar a imaginaccedilatildeo de seu futuro Erika adota um movimento duplo Por um lado ela aparentemente estaacute disposta a obliterar seu projeto de identidade para conformar-se plenamente aos desejos de Klemmer substituindo a matildee como fonte de signos e interpretaccedilotildees de realidade Por outro lado ela natildeo abdica de sua autonomia ao utilizar-se do discurso de submissatildeo como instrumento para alcanccedilar seus objetivos pessoais Esse comportamento contraditoacuterio acaba desconcertando Klemmer que natildeo espera outro tipo de accedilatildeo senatildeo sua completa submissatildeo Quando Erika lhe entrega a carta em que descreve com minuacutecias seus desejos eroacuteticos Klemmer se vecirc confrontado com uma mulher que estaacute longe de ser o objeto de seu prazer egoiacutesta e tirano Ao contraacuterio Erika mostra que possui uma visatildeo muito clara e concreta daquilo que deseja e necessita Com isso a encenaccedilatildeo de identidade machista autoritaacuteria e condescendente de Klemmer sofre uma fragmentaccedilatildeo que abala completamente seu autoentendimento Desconcertado o aluno natildeo sabe como reagir desacreditando da seriedade daquilo que a carta sugere Ele precisa imputar infantilidade aos atos da professora a fim de proteger sua identidade paternalista Seu grau de perturbaccedilatildeo fica ainda mais evidente quando mais tarde incapaz de uma ereccedilatildeo se encontra diante de Erika disposta a satisfazer seus desejos Para salvar sua imagem ele natildeo hesita em ferir a dignidade de Erika assegurando dessa forma sua superioridade pois natildeo logra

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encenar o ldquomacho desvairadordquo para o qual o corpo da mulher natildeo passa de um objeto de prazer a seu dispor

As cenas que seguem a revelaccedilatildeo dos desejos de Erika narram em grande parte o complexo processo de reestruturaccedilatildeo de identidade no qual Klemmer se vecirc inesperadamente arremessado Assim seu passeio pelo parque com a cena grotesca em que tenta assassinar os flamingos quando se masturba em frente agrave casa da famiacutelia Kohut ou por fim quando utilizando-se de violecircncia se apodera do corpo de Erika violentando-a para aparentemente satisfazer os desejos desta Klemmer na verdade estaacute tentando dar conta da realidade Essa realidade desfaz sua narraccedilatildeo de identidade paternalista e machista forccedilando-o a perceber a complexidade da mulher que o confronta com seus anseios Ele tem de reconstruir sua imagem com signos indesejados e rever sua narraccedilatildeo haja vista que esta se vecirc indubitavelmente questionada pelo comportamento de Erika Para Klemmer Erika se limita a uma superfiacutecie sem narraccedilotildees proacuteprias para a projeccedilatildeo de seus desejos portanto um instrumento de consumo raacutepido e temporalmente limitado

Para Erika o relacionamento com Klemmer tem conotaccedilotildees completamente diferentes Embora ela tambeacutem alimente desejos de instrumentalizaacute-lo para seus fins o grau de seriedade que aplica a essa empresa eacute muito maior Ao aproximar-se de Klemmer Erika precisa esquivar-se do maquinaacuterio disciplinador e vigilante da matildee e refazer seu projeto de identidade em diversos aspectos comeccedilando por sua encenaccedilatildeo social que incluiria a presenccedila do aluno em sua narraccedilatildeo passando por uma linha divisoacuteria no seu relacionamento com a matildee e terminando com uma nova percepccedilatildeo de seu corpo Erika enumera seus desejos e expotildee suas maacuteculas sem reservas evidenciando portanto que estaacute disposta a construir um espaccedilo iacutentimo proacuteprio Ao descobrir que a narraccedilatildeo de amor de Klemmer natildeo passa de um discurso sem conteuacutedo sua imaginaccedilatildeo de futuro desvanece desta vez de modo inexoraacutevel especialmente perante o dispecircndio de energia destinado a esse projeto Seu desejo de mataacute-lo a facadas representa uma tentativa de salvar desta vez sua dignidade pessoal e sua configuraccedilatildeo teleoloacutegica A decisatildeo de ferir-se a si mesma por fim revela seu desejo de aniquilar sua identidade uma vez que somente a obliteraccedilatildeo completa dos signos pode minorar a dor que experimenta diante da indiferenccedila que a circunda Embora doloroso o momento encerra para Erika uma grande chance de expansatildeo de sua complexidade aniacutemica se ela optasse por desvencilhar-se do cordatildeo sufocante que a prende a sua matildee e se estivesse disposta a suportar de forma independente todas as dimensotildees do sofrimento que a avassalam naquele momento Erika no entanto retorna para casa a fim de buscar o conforto materno conhecido A professora de piano desenvolve tessituras que poderiam materializar uma narraccedilatildeo de amor essa tessitura no entanto se revela demasiado fraacutegil para resultar em algo concreto duradouro e projetado com uma perspectiva de futuro Tragicamente sua narraccedilatildeo pessoal se caracteriza pela conspiacutecua ausecircncia de amor

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6 Consideraccedilotildees finais

A representaccedilatildeo do amor mostra como as figuras se apropriam de diferentes discursos para encenarem aquilo que consideram corresponder ao sentimento de amor Este serve de chave para uma seacuterie de representaccedilotildees que de fato estatildeo muito distantes do fenocircmeno do amor compreendido como narraccedilatildeo densa compartilhada por duas pessoas e projetado numa linha de futuro comum Os diversos conflitos internos que atribulam a estabilidade aniacutemica das personagens as impelem a procurar no invoacutelucro ldquoamorrdquo um caminho para dar conta do excesso ou ao menos representar aquilo que natildeo desejam processar conscientemente

A narraccedilatildeo do amor se revela parcial e tributaacuteria de outras motivaccedilotildees Assim a senhora Kohut matildee da professora de piano encena-se de acordo com expectativas sociais incorporando o papel da matildee preocupada aflita e protetora para desse modo apropriar-se e controlar a vida iacutentima de sua filha O amor se patenteia como instrumento de uma visatildeo autoritaacuteria que natildeo tolera questionamentos Para potencializar sua eficaacutecia ela natildeo hesita em utilizar-se da culpa como estrateacutegia discursiva para dominar e domesticar o corpo da filha Por traacutes dessa narraccedilatildeo impositiva encobre-se a incapacidade de construir uma identidade pessoal autocircnoma e independente da subserviecircncia filial Incapaz de processar conscientemente seus proacuteprios anseios carnais a matildee exige da filha que tambeacutem ela reprima todo indiacutecio do indiziacutevel O amor materno eacute uma narraccedilatildeo fracassada fruto da incapacidade de suportar a dor de suas proacuteprias insuficiecircncias

Socializada dessa forma Erika aprende bem cedo a negar as necessidades do corpo excluindo-o de sua autorrepresentaccedilatildeo o que para a criaccedilatildeo de um espaccedilo iacutentimo se revela como enorme barreira As premecircncias do corpo contudo natildeo se calam de forma que Erika se vecirc forccedilada a procurar espaccedilos em que possa libertar-se do controle materno para apaziguar as demandas corporais Esse espaccedilo ela o encontra em estabelecimentos eroacuteticos situados nos subuacuterbios de Viena Longe do acircmbito em que normalmente circula e se encena socialmente ela pode ver o corpo alheio deleitando-se com prazeres eroacuteticos sem a necessidade de integrar esses signos em sua identidade Suas escapadelas no entanto natildeo a ajudam a conhecer seu proacuteprio corpo nem a construir relacionamentos estaacuteveis Pelo contraacuterio as experiecircncias contingentes completamente desligadas de sua realidade social impedem uma projeccedilatildeo no futuro obstruindo a criaccedilatildeo de uma base soacutelida para o surgimento do amor

Com o interesse repentino de seu aluno Klemmer o amor comeccedila a concretizar-se em sua interpretaccedilatildeo de realidade Afeita a rituais a professora se intimida com a alteridade do amor que desponta inesperadamente A despeito de seus medos e suas insuficiecircncias Erika se mostra disposta a rever sua narraccedilatildeo e incluir o amor em suas redes significativas Para isso mostra e admite suas fraquezas dispondo-se a incluir o aluno em sua narraccedilatildeo de identidade desligar-se dos jugos maternos e aceitar a alteridade do corpo A falta de seriedade por parte de Klemmer contudo natildeo permite que o amor medre deixando para traacutes uma mulher ainda mais fragmentada

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Para Klemmer Erika se limita a um objeto de estudo com o qual pretende aprimorar suas habilidades amorosas A percepccedilatildeo das fraquezas da mulher que o defronta natildeo serve como base para construccedilatildeo de um projeto comum embasado na confianccedila mas como instrumento do qual se utiliza para impor seus caprichos Ao coisificaacute-la ele elide sua identidade e ignora a dignidade da professora Quando se apercebe que ela tem seus desejos proacuteprios e um grau de reflexatildeo e autodomiacutenio muito maior que o esperado Klemmer vecirc sua encenaccedilatildeo de identidade em risco uma vez que jaacute natildeo pode mais se representar como o macho possuidor Diante desse perigo ele a abandona natildeo sem antes mostrar que o amor que supostamente sentia natildeo passava de um instrumento para enredaacute-la Nos trecircs casos o amor constantemente invocado se revela com narraccedilatildeo insuficiente e demasiado vaacutecua

O que essas diferentes narrativas de amor tecircm em comum eacute um caraacuteter polifocircnico Nisso o amor em si como foi definido no iniacutecio deste artigo apresenta uma natureza plural em que vaacuterias fontes de sentido se manifestam formando um grupo de vozes a ser enfeixado de modo subjetivamente harmocircnico Ao mesmo tempo o amor que de fato se concretiza no romance analisado se revela polifocircnico pois natildeo haacute confluecircncia de interesses mas sim uma instrumentalizaccedilatildeo da narrativa do amor para outros fins Isto eacute a voz que se materializa por meio do discurso do amor na verdade persegue um objetivo diferente daquele articulado superficialmente O que resta satildeo personagens fracassadas e incapazes de amar

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Recebido em 22102017

Aceito em 17112017

Dionei Mathias

Doutor em Letras pela Universidade de Hamburgo (Alemanha) e pela Universidade Federal do Paranaacute (UFPR) Professor do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade Federal de Santa Maria ndash RS dioneimathiasgmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Marcel ProustHonoreacute de Balzac a Meacutelange de uma Narratividade

Marcel Proust Honoreacute de Balzac the Meacutelange of Narrativity

Marcel ProustHonoreacute de Balzac la Meacutelange de una Narratividad

Aguinaldo Joseacute GonccedilalvesUniversidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Goiaacutes

Resumo

Ao nos propormos a apresentar este artigo elegemos como tema as relaccedilotildees entre criacutetica e invenccedilatildeo A metodologia consiste em abordagem comparativa entre o pensamento criacutetico de Marcel Proust e o meacutetodo biograacutefico de Sainte-Beuve com implicaccedilotildees sobre procedimentos inventivos de Honoreacute de Balzac e Gustave Flaubert O objetivo eacute mostrar o modo como Marcel Proust constroacutei seu pensamento criacutetico e ao criticar os equiacutevocos de Sainte-Beuve acaba questionando o modo referencial de Balzac e a construccedilatildeo da literariedade em Flaubert O resultado da anaacutelise mostra a profundidade literaacuteria e ensaiacutestica de Proust contribuindo para a compreensatildeo da literatura e das artes Palavras-chave Balzac Proust Sainte-Beuve

Abstract

By proposing this present article we chose as its theme the relationship between criticism and invention The methodology consists of a comparative approach between Marcel Proustrsquos critical thinking and the Sainte-Beuversquos biographical method with implications on Honoreacute de Balzacrsquos and Gustave Flaubertrsquos inventive procedures The goal is to show how Marcel Proust builds his critical thinking and by criticizing Sainte-Beuversquos he ends up questioning Balzacrsquos referential mode and the construction of literariness in Flaubert The result shows the depth of Proustrsquos literature and essays contributing to the understanding of literature and artsKeywords Balzac Proust Sainte-Beuve

Resumen

El objeto de este artiacuteculo son las relaciones entre criacutetica e invencioacuten La metodologiacutea consiste en un enfoque comparativo entre el pensamiento criacutetico de Marcel Proust y el meacutetodo biograacutefico de Sainte-Beuve con implicaciones sobre procedimientos inventivos de Honoreacute de Balzac y Gustave Flaubert El objetivo es mostrar el modo como Proust construye su pensamiento

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criacutetico y al criticar las posiciones de Sainte-Beuve cuestiona el apego referencial de Balzac y la construccioacuten de la literariedad en Flaubert El resultado del anaacutelisis muestra la profundidad literaria y ensayiacutestica de Proust contribuyendo a la comprensioacuten de la literatura y de las artesPalabras clave Balzac Proust Sainte-Beuve

1 Introduccedilatildeo

Este artigo tem como proposiccedilatildeo acompanhar o movimento do pensamento do escritor francecircs Marcel Proust (1871-1922) no primeiro dececircnio do seacuteculo XX poucos anos de iniciar a escritura da grande obra Em Busca do Tempo Perdido (1908-1909 a 1922) Foi nesse periacuteodo que o escritor se investiu de coragem e competecircncia criacutetica para escrever a obra Contre Sainte-Beuve (1988) posicionando-se a respeito do meacutetodo de uma criacutetica biograacutefica Ao realizar esse trabalho Marcel Proust elenca grandes autores mdash Nerval Baudelaire Balzac e Flaubert mdash que teriam sido criticados e algumas vezes desdenhados ou diminuiacutedos por Sainte-Beuve (1804-1869) Mediante a incocircmoda posiccedilatildeo de Marcel Proust em razatildeo daquilo que considera equiacutevocos de Sainte-Beuve desenvolveu-se uma leitura por meio da qual se instaura um procedimento comparativo entre os dois de um lado a criacutetica sustentada na relaccedilatildeo entre o autor sua vida seus haacutebitos e sua obra por outro lado uma criacutetica em favor dos procedimentos intriacutensecos agrave obra Entretanto ao focalizar as questotildees levantadas por Sainte-Beuve sobre Honoreacute de Balzac e Gustave Flaubert Proust (1899 p 131-8) estabelece uma outra abordagem comparativa agora independente da criacutetica de Sainte-Beuve qual seja analisar os estilos dos dois autores deitando luz sobre aspectos decisivos no processo de realizaccedilatildeo literaacuteria Dentre eles a relaccedilatildeo entre literatura e realidade nuanccedilas de estilo que segundo Proust fazem a diferenccedila entre a literatura meramente formadora de quadros de eacutepoca e aquela que transcende a referencialidade exatamente por transformar tais quadros em signos plurais que determinam o discurso artiacutestico Por isso esperamos o maacuteximo de clareza na realizaccedilatildeo deste artigo mas natildeo a esperada clareza das questotildees discutidas Muitas vezes elas ficam num entrecruzar entre sombra e luz outras vezes nem isso temos quando a noite se fecha e precisamos esperar o dia seguinte para clarear as imagens Diante disso devemos ressaltar a relevacircncia do meacutetodo comparativo como forma de melhor elucidar o pensamento criacutetico que por consequecircncia mais nos aproxima da literatura

2 Proust precursor de Balzac e de Flaubert

Se os movimentos do pensamento criacutetico e inventivo da poesia do seacuteculo XIX criaram uma verdadeira saga de vivificaccedilatildeo do poeacutetico e das transmutaccedilotildees de linguagem atingindo o apogeu com o Simbolismo francecircs sobretudo com Baudelaire Mallarmeacute Rimbaud e Valeacutery (este atingindo seu auge jaacute no seacuteculo XX) menos intenso natildeo foi o movimento que se desenvolveu com a narrativa Entretanto com este gecircnero os obstaacuteculos se impuseram com maior intransigecircncia Como assinalamos na introduccedilatildeo a proposiccedilatildeo criacutetica deste artigo analisa o movimento que se instaura

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entre o pensamento criacutetico-inventivo do escritor francecircs Marcel Proust (1871-1922) seu estilo seus fundamentos e sua visatildeo sobre a obra do criador de A Comeacutedia Humana (18341) Honoreacute de Balzac (1799-1850)

O texto trilharaacute pelos negaceios do leitor Marcel Proust em relaccedilatildeo agrave sua criacutetica ao meacutetodo de Sainte-Beuve O delineamento deste artigo portanto caminha pelos meandros das narratividades de dois nomes da literatura mundial e em especial da literatura francesa Na verdade o que se daacute no ritmo ondulante de Marcel Proust eacute um exerciacutecio criacutetico instigante para o estudo das artes e da Literatura por meio seja de suas consideraccedilotildees mais transparentes sobre o (natildeo) estilo de Balzac seja pela forma com que Proust se vale dos ingredientes existentes na obra daquele autor para fermentar e edificar sua obra principal A obra literaacuteria de um autor considerado iacutentegro nas partes constitutivas de seu discurso denuncia uma espeacutecie de harmonia entre os ingredientes da execuccedilatildeo no conjunto de sua produccedilatildeo que depois de composta se torna um corpo fechado no qual reside certa incorporeidade impossiacutevel de ser desconstruiacuteda

A obra que temos na mira do pensamento eacute a do escritor francecircs Marcel Proust assim como os desdobramentos expressivos de sua poeacutetica A narrativa proustiana eacute composta de mais de trecircs mil paacuteginas que se sequenciam como um moto perpeacutetuo constituiacutedo de sete partes cada uma formando um volume com um tiacutetulo distinto mas que se amalgama num soacute corpo denominado Em Busca do Tempo Perdido Para Proust o ponto nevraacutelgico para a reflexatildeo sobre literatura sempre foi o estilo

Entretanto naquele momento histoacuterico o processo de discussatildeo de estilo ao pensar o processo inventivo de qualquer escritor passava obrigatoriamente pelas marcas criacuteticas de uma figura social e literaacuteria no mundo da criaccedilatildeo e no mundo da criacutetica que acabou se impondo com todas as forccedilas no pensamento intelectual de meados do seacuteculo XIX Trata-se de Charles Augustin Sainte-Beuve (1804-1869) Como escritor ele realizou uma obra muito extensa atuando em vaacuterios gecircneros como a poesia e a narrativa Entretanto seu trabalho artiacutestico natildeo conseguiu o sucesso almejado ao contraacuterio foi renegado e desconsiderado como obra O meacutetodo criacutetico de Sainte-Beuve quer se impor tomando por princiacutepio o fato de que a obra de um escritor seria primeiramente todo um reflexo de sua vida e se poderia explicar por ela este meacutetodo se estabelece sobre a busca do intento poeacutetico do autor (intencionalismo) e sobre suas qualidades pessoais (biografismo)

A criacutetica biograacutefica foi assim instituiacuteda e influenciou sobremaneira a produccedilatildeo literaacuteria da segunda metade do seacuteculo XIX especialmente na Franccedila O curioso eacute que mesmo com a morte desse pensador em 1869 seus fundamentos criacuteticos se mantiveram inexoraacuteveis e com intensificada interferecircncia no pensamento inventivo de escritores que nasceram apoacutes este momento Depois de tantos anos agrave mercecirc desse tipo de pensamento criacutetico tomado como base por alguns escritores famosos que alimentaram essas turvas noccedilotildees sobre invenccedilatildeo e criacutetica literaacuteria tais como Vitor Hugo e outros ldquoaliadosrdquo do autoritarismo de Sainte-

1 Refiro-me ao ano em que Balzac teria encontrado o tiacutetulo definitivo para o conjunto drsquoA Comeacutedia Humana

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Beuve iniciaram-se as manifestaccedilotildees desfavoraacuteveis a esse ideal criacutetico Mediante a vigorosa e ateacute violenta posiccedilatildeo do biografismo criacutetico com sombras de influecircncia do Positivismo e do Determinismo as raiacutezes jaacute estavam se alastrando por todos os lados e deitando influecircncia nas manifestaccedilotildees artiacutesticas quiccedilaacute sobre um certo Realismo e com certeza sobre o Naturalismo Para iniciar um combate a Sainte-Beuve as forccedilas criacuteticas tinham de possuir uma natildeo apenas contraacuteria mas operante e inteligente forma de reaccedilatildeo E ela se iniciaria com Marcel Proust o qual mesmo bastante jovem apresentava uma arguta consciecircncia intelectual e de seus atos Com seu ensaio Contre-Sainte-Beuve (1988) foi o primeiro a contestar a visatildeo criacutetica desse

Aleacutem de Marcel Proust a Escola Formalista Russa bem como os criacuteticos Robert Curtius e Leo Sptizer com seus projetos teoacutericos advindos da Filologia e da Estiliacutestica (CURTIUS 1923 SPITZER 1955) deram continuidade aos fundamentos voltados para o texto opondo-se aos ditames do Biografismo Apesar de toda a reaccedilatildeo dessas linhas determinantes do juiacutezo criacutetico sobre a literatura e sua realidade textual de quando em quando a tendecircncia ao biografismo volta sorrateiramente

De extensa obra criacutetica poucos trabalhos de Sainte-Beuve parecem ter contribuiacutedo para os estudos culturais franceses Dentre eles destacam-se seus estudos sobre Chateaubriand (1996) O que ficou como registro criacutetico a respeito de Sainte-Beuve foi sua visatildeo equivocada sobre os autores e as obras que analisava e avaliava Como criacutetico elevou os mediacuteocres que se perderam nos desvatildeos dos estudos literaacuterios e diminuiu os melhores chegando a desdenhar alguns deles Sua obra criacutetica reunida e publicada num periacuteodo de trinta anos (1851-1881) denominada Causeries du lundi [Conversas de segunda-feira] (1953) reuacutene por volta de dezesseis tiacutetulos sendo que cada tiacutetulo apresenta muitos volumes Eacute necessaacuterio reabilitaacute-lo aqui para que se compreendam determinados passos da evoluccedilatildeo da criacutetica europeia e por que natildeo mundial sobretudo se temos Marcel Proust como nosso guia nesse percurso histoacuterico-esteacutetico O modo como o escritor francecircs leu Sainte-Beuve e sua criacutetica biograacutefica eacute fundamental para que passemos a compreender a maneira como Honoreacute de Balzac se insere nesse painel

3 Nas malhas da criacutetica inventiva ou do ensaio ficcional de Marcel Proust

A obra Em Busca do Tempo Perdido foi resultado de intensivo movimento criacutetico incluindo obras de seus contemporacircneos e da tradiccedilatildeo realizando exerciacutecios ficcionais e criacuteticos crocircnicas e pastiches preacutevios treinamentos romanescos (como Jean Santeuil (1982) e outros procedimentos que pudessem contribuir na construccedilatildeo de sua epopeia liacuterica

Como jaacute assinalei metaforicamente em produccedilatildeo anterior2 se Jean Santeuil representa a larva na evoluccedilatildeo da futura borboleta a obra criacutetica Contre Sainte-Beuve eacute a crisaacutelida (ou

2 Trata-se da apresentaccedilatildeo ao livro Contre Sainte-Beuve intitulada ldquoO processo holometaboacutelico de Marcel Proustrdquo (GONCcedilALVES 1988)

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casulo) Colocando-lhe lentes de aumento o que se nota eacute um texto anfiacutebio de representaccedilatildeo capital no processo evolutivo do estilo de Proust Esta obra funciona como anaacutefora e como cataacutefora no processo inventivo desse artista O movimento anafoacuterico se daacute natildeo soacute agrave criacutetica de Sainte-Beuve mas agrave de Taine e de outros que dominaram o tom criacutetico do seacuteculo XIX Quanto ao movimento catafoacuterico este sim regeu o procedimento propriamente inovador de Proust e representa a sua imersatildeo no fluxo da linguagem e do pensamento em busca de uma realizaccedilatildeo criadora A nossa atenccedilatildeo deve recair sobre a preposiccedilatildeo contre e avaliaacute-la dentro de paracircmetros cautelosos Ela atua como vaacutelvula e como reaccedilatildeo Se por um lado significa o incocircmodo por outro representa impulsatildeo Assim este quase-ensaio ou este exerciacutecio-anfiacutebio deixa de possuir o sentido linear do ldquocontrardquo para significar uma praacutetica ldquoa favorrdquo da arte literaacuteria de Proust Eacute assim que a amplitude desta criaccedilatildeo-reaccedilatildeo eacute muito grande se analisarmos a sua importacircncia no painel criacutetico ou no seu duplo movimento o que eacute a arte e o que eacute a criacutetica

Manifestando-se no conjunto de sua produccedilatildeo literaacuteria a resposta de Proust agrave criacutetica do seacuteculo XIX adquire em certos momentos uma natureza quase didaacutetica Numa das passagens de Jean Santeuil a criacutetica do retrato literaacuterio de caraacuteter biograacutefico defendido por Sainte-Beuve assume dimensatildeo irocircnica na pena de Proust Trata-se da parte IV capiacutetulo I em que Jean conhece o ldquogenial escritorrdquo Traves ao passar alguns dias em Reacuteveillon Depois de atentar para a presenccedila de Traves de extrair elementos de sua personalidade apoacutes conversar com ele e recolher aspectos de sua vida Jean percebe que tudo isso ou nada disso conseguia explicar ou prolongar o estranho fasciacutenio o mundo uacutenico para aonde ele Traves transportava-nos desde as primeiras paacuteginas de um de seus livros e no qual sem duacutevida vivia quando ele proacuteprio o trabalhava fabricando-o agrave medida que escrevia e tendo jaacute vagamente desenrolado diante dele em sonhos singulares a mateacuteria preciosa ainda informe como uma via-laacutectea da qual devia ser pouco a pouco tecida (PROUST 1982 p 246) Os movimentos que se estabelecem entre a vida de um autor e a obra que fabrica se comparam para Proust a uma janela que se abre para um quarto vazio Eacute a via-laacutectea nebulosa e informe que se enformaraacute de signos marcados pelo estilo a que vimos aludindo

Mais profuso no gecircnero narrativo em que os temas da vida e as referecircncias satildeo mais notoacuterios consegue elevar esse gecircnero agrave condiccedilatildeo de uma praacutetica conferindo-lhe uma autonomia que mais que refletir resgata a essecircncia das coisas num processo de emergecircncia da proacutepria arte numa espeacutecie de remissatildeo contiacutenua de um a outro sistema O signo da arte eacute o grande referencial da narrativa de Proust Para isso foi necessaacuterio um exerciacutecio de realizaccedilatildeo marcado por procedimentos de perfuraccedilatildeo da camada da mateacuteria seja da realidade seja da linguagem O que chamamos processo de metamorfose em Proust eacute na verdade um processo de traduccedilatildeo mimeacutetica da proacutepria linguagem ou um defrontar-se com a mateacuteria-prima da representaccedilatildeo que eacute o signo Como em Mallarmeacute a obra de Proust potildee em pauta a relaccedilatildeo dialeacutetica entre o Signo e a Realidade Ao buscar a natureza da ldquoliacutenguardquo da poesia eou da literatura tambeacutem o discurso proustiano ldquodesrealizardquo a funccedilatildeo normativa da ldquoliacutenguardquo dos comunicados mobiliza a necessaacuteria relaccedilatildeo entre significante e significado aleacutem de recuperar ou

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nomear (indiretamente) aquilo que era apenas nebuloso no pensamento e no espiacuterito Esse exerciacutecio de mimesis da proacutepria linguagem tem como resultado a tensatildeo do limite extremo em que se opera a transubstancializaccedilatildeo da realidade referencializada para a realidade referencializaacutevel da obra O que se denominam ldquoiluminaccedilotildeesrdquo em Proust eacute o que o proacuteprio autor denominou ldquomemoacuteria involuntaacuteriardquo Satildeo formas de criaccedilatildeo ou de traduccedilatildeo da nebulosidade do espiacuterito Por tudo isso reler Ilusotildees Perdidas (2011) de Balzac depois de ter lido Em Busca do Tempo Perdido de Marcel Proust consistiu num exerciacutecio no miacutenimo surpreendente

Havia lido algumas obras de Balzac haacute muitos anos e o que me ficava na memoacuteria era a sequecircncia de figuras humanas que pareciam natildeo se caracterizar como personagens com todas elas se parecendo seja pela conjunccedilatildeo nas relaccedilotildees seja por disjunccedilatildeo que denunciava tramas possiacuteveis mas dentro sempre da mesma estrutura num tom sequenciado de efabulaccedilatildeo Ao ler e analisar Contre Sainte-Beuve fez-se necessaacuteria a releitura de Ilusotildees Perdidas e daiacute todas as vagas estranhezas de minha memoacuteria voltaram e ganharam sentido Aquelas figuras se amontoavam na minha memoacuteria em outras obras que compunham A Comeacutedia Humana sempre marcadas pelo teor alegoacuterico das personagens muitas vezes caricatural Assim quem me conduziu a Balzac foi o pensamento criacutetico-analiacutetico de Marcel Proust as razotildees encetam para uma seacuterie de elementos todos eles voltados para a questatildeo do estilo e da representaccedilatildeo literaacuteria Esse fenocircmeno criacutetico eacute em si decisivo a obra criacutetica e narrativa de Proust tornou-se precursora da obra de Balzac

A leitura equivocada que Sainte-Beuve realiza de alguns de seus contemporacircneos a propoacutesito dos melhores deles muitas vezes indivisa determinadas relaccedilotildees ou determinados autores ou obras mas por outro lado acabou por provocar os acircnimos daqueles que iniciariam uma reaccedilatildeo contra a criacutetica biograacutefica e com isso uma revisatildeo de determinados autores mitificados pelo puacuteblico e pela criacutetica Foi o caso de Balzac e Flaubert Como se natildeo houvesse uma intenccedilatildeo criacutetica declarada ao falar de um Proust sempre se reporta ao outro Esse meacutetodo mostrou-se fundamental para que nosso olhar se mova como pecircndulo para um e outro estilo para uma e outra visatildeo sobre literatura O futuro criador de Em Busca do Tempo Perdido se volta contra Sainte-Beuve quando este critica Balzac Ao mesmo tempo ao realizar suas consideraccedilotildees criacuteticas acaba por aproximar a visatildeo do autor de A Comeacutedia Humana daquela do autor de Madame Bovary (FLAUBERT 2011) A atraccedilatildeo do criacutetico Marcel Proust pelo estilo de Flaubert intesifica sua negaccedilatildeo de um possiacutevel estilo em Balzac e isso se manifesta em vaacuterios sentidos Ele cria uma metaacutefora para se referir ao discurso do autor de A Educaccedilatildeo Sentimental (FLAUBERT 2015) a qual eacute chamada por ele de esteira rolante (PROUST 1994) Com essa imagem ele se reporta agrave articulaccedilatildeo interna da linguagem aos arranjos das categorias de cada meio expressivo na busca da ampliaccedilatildeo de seus limites ndash traccedilo condutor da modernidade ndash que geram uma forccedila diferente uma convulsatildeo das formas que exige do receptor uma postura mental distinta Satildeo obras estruturalmente dinacircmicas e tematicamente estaacuteticas que como resultado geram novas relaccedilotildees distintas e muito mais intensas que aquelas dos modelos tradicionais

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Nos anos que precederam ao iniacutecio da grande escritura muitos estudos ou muitas leituras foram realizadas por Proust acompanhadas de pequenos textos ou comentaacuterios que redigia agrave luz desse exerciacutecio laboratorial Esse universo construiacutedo lhe serviria como fragmentos de sua experiecircncia como palimpsestos inventivos dos quais Proust elegeu aqueles que foram determinantes na formaccedilatildeo da narrativa francesa e de seu juiacutezo criacutetico pois essas duas vertentes sempre caminharam como uma soacute coisa para esse grande escritor A esteira rolante utilizada para metaforizar a narrativa de Flaubert caberia em certa medida para caracterizar o proacuteprio estilo proustiano Vale neste contexto citar uma assertiva de E R Curtius

A primeira leitura de Proust produz uma impressatildeo estranha mescla de encantamento e de confusatildeo Sentimo-nos envolvidos pela abundacircncia de materiais em aparente desordem extraviado num estilo prolixo e sinuoso em cujo ritmo natildeo se descobre nenhuma lei sente-se de uma vez atraiacutedo como que pelo timbre de uma muacutesica nova cuja harmonia natildeo se consegue analisar atraiacutedo a um universo de seduccedilatildeo tatildeo original que qualquer um se abandona em seus feiticcedilos (CURTIUS 1923 p 14-15)

Muito tem se esforccedilado a criacutetica em busca do ldquotempo de Proustrdquo entretanto muito se tem errado buscando esse tempo na vida do escritor nos seus haacutebitos nos lugares que frequentava bem como nas suas idiossincrasias Aleacutem da incongruecircncia de tais procedimentos criacuteticos pode-se considerar de extrema ironia que alguns criacuteticos se valham em pleno seacuteculo XXI de meacutetodos similares agravequeles utilizados por Sainte-Beuve para analisar uma obra que surgiu pela negaccedilatildeo do referido meacutetodo Todos esses elementos fazem parte do material utilizado por Proust em sua moenda inventiva mas assim como outros ingredientes tudo foi metamorfoseado na sua obra em ldquoneblinadas metaacuteforasrdquo fontes de sua ldquoprecisatildeordquo A respeito de Flaubert Proust ainda ressalta a sua isenccedilatildeo no modo de narrar e de descrever assinalando que esse procedimento permite ao autor ir cada vez mais ao encontro do narrador e natildeo do ser histoacuterico Flaubert

Diriacuteamos em espelho que o que mais interessa para os estudos proustianos e nisso consiste toda a sua busca criacutetica eacute liberar-se cada vez mais daquilo que natildeo eacute Proust tornando-se cada vez mais narrador no espaccedilo do discurso ficcional metafoacuterico preciso Faz bem Curtius ao advertir que devemos interpretar essas posiccedilotildees de Proust no sentido de que a verdadeira criacutetica tende a descobrir os elementos formais da alma de um autor e natildeo suas opiniotildees nem seus sentimentos Tender agrave descoberta dos elementos formais da alma de um autor significa mergulhar nos elementos internos da obra no seu estilo pactuando-se o maacuteximo possiacutevel com a metaacutefora do discurso artiacutestico para que seja viaacutevel uma vez recebida que ela seja bem percebida

Nesse modo de ver o estilo de Flaubert Proust indicia ou ateacute mesmo aponta para elementos criacuteticos determinantes na obra de Balzac Um dos elementos determinantes eacute mostrado por Proust da seguinte maneira comentando aspectos da vida de Balzac de suas minudecircncias mundanas comentadas e assinaladas pelo proacuteprio Balzac em cartas

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agrave sua irmatilde seus interesses financeiros sua visatildeo de casamentos arranjados a relevacircncia de conviver na sociedade parisiense de abrir os salotildees para a sociedade de se mostrar ao lado de uma mulher de prestiacutegio entre outros faz ver Proust como tudo isso estaacute retratado em sua obra Em todas elas sobretudo em Ilusotildees Perdidas sua obra maior os dados mundanos em todas as suas referecircncias plurais satildeo praticamente transportados para a obra Aleacutem de tudo isso suas ideias suas frases feitas seu humor aacutecido sua visatildeo pessoal da condiccedilatildeo humana entram para sua obra com a mesma indiscriminaccedilatildeo

A criacutetica de Proust agrave visatildeo de Balzac se daacute pela comparaccedilatildeo que realiza com a construccedilatildeo da narrativa de Flaubert para quem como assinala a realidade da obra estaacute na proacutepria obra para ele o autor de A Educaccedilatildeo Sentimental sabe muito bem separar a vida do autor de sua obra como segundo Proust deve ocorrer para que se tenha um resultado propriamente artiacutestico capaz de realizar uma efetiva leitura do homem no mundo e de suas relaccedilotildees natildeo apenas sociais mas tambeacutem consigo mesmo Dentro dessa mesma base de consideraccedilotildees criacuteticas no ziguezaguear da percepccedilatildeo e fina anaacutelise proustiana ocorre nos discursos dos dois romancistas Balzac e Flaubert um movimento distintivo e ainda mais detidamente estiliacutestico que na verdade revela o modo de ver o mundo pelo escritor Trata-se da questatildeo da vulgaridade em Balzac

A questatildeo da vulgaridade foi muito discutida na obra desse autor seja quanto aos temas tratados seja na forma da utilizaccedilatildeo da linguagem tanto nas palavras quanto no tom de articulaccedilatildeo discursiva E nesse sentido tambeacutem criticou e vilipendiou Sainte-Beuve o autor de Ilusotildees Perdidas Essa vulgaridade sobretudo no sentido temaacutetico tambeacutem foi apontada na obra de Flaubert principalmente em Madame Bovary Proust com feiccedilotildees de teoacuterico da literatura mas se valendo da pena do criacutetico que estava se transformando em autor num movimento de metamorfose que nos lembra processos alquiacutemicos examina as diferenccedilas entre o tratamento da vulgaridade em Balzac e em Flaubert Para ele coisa que natildeo ocorre em Flaubert uma representaccedilatildeo da vulgaridade eacute construiacuteda na obra de Balzac sem que haja uma transcriaccedilatildeo efetiva daquela vivenciada pelo autor ou por qualquer outro ser humano Balzac apesar de tratar de assuntos tatildeo interessantes geradores de um caraacuteter polecircmico que o celebrizou por tantos anos deixa agrave margem aquele processo que Antonio Candido (1993 p 30-4) chama de ldquodesfazer e refazer a realidade pela linguagemrdquo Algumas peculiaridades em Balzac ganham dupla qualificaccedilatildeo O seu descritivismo exemplar em alguns momentos traz consigo sua outra face torna-se esvaziado a natildeo ser como parte das milhares de caricaturas que constroacutei Junto com as descriccedilotildees que satildeo retratos diretos da vida real e que natildeo atingem a dimensatildeo do discurso literaacuterio surgem possibilidades surpreendentes de uma invenccedilatildeo natildeo concluiacuteda

Um dos ingredientes reaproveitados por Proust eacute o universo das artes plaacutesticas que surge de maneira intensa na obra de Balzac dentro daquele mesmo espiacuterito de descriccedilatildeo Honoreacute de Balzac constitui caso excepcional de escritor gerando incocircmodos na massa criacutetica de sua eacutepoca e mais ainda na criacutetica posterior razatildeo pela qual natildeo se pode emparedar a sua obra aos paradigmas do Romantismo mais vale consideraacute-lo como um iniciador precoce do Realismo

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Cremos que esse extenso focirclego atingiu de certa forma os maiores e mais notaacuteveis do seacuteculo XIX (Eacutemile Zola Charles Dickens Dostoievsky e Marcel Proust) e fascinou o puacuteblico embevecido por suas ideias suas frases de impacto e sua ciacutetrica forma de ironizar os valores sociais e morais de toda a primeira metade daquele seacuteculo A mulher de trinta anos Eugegravene Grandet O Pai Goriot Ilusotildees Perdidas estatildeo dentre os mais lidos e os mais comentados da grande saga balzaquiana Dizer seu nome passou a ser sinocircnimo de denuacutencia problemas de dinheiro da usura da hipocrisia familiar da constituiccedilatildeo dos verdadeiros poderes da Franccedila liberal burguesa e indiretamente do universo dos operaacuterios e camponeses Exalta-se nesse escritor sua enorme capacidade de trabalho sobretudo pelas emergentes necessidades de resoluccedilatildeo de suas diacutevidas permanentes

Dado curioso e digno de anaacutelise eacute o modo como sua obra foi tatildeo amplamente recepcionada O protagonista de Ilusotildees Perdidas Lucien de Rubempreacute sua saga em Paris suas buscas e fracassos sua fome de ascensatildeo e de prestiacutegio em todos os niacuteveis sociais e ainda querendo se impor como poeta todas essas marcas estatildeo no proacuteprio Honoreacute de Balzac que se representa na obra construiacuteda Ele se torna catalisador numa espeacutecie de ldquorelatoacuterio rascunhordquo da humanidade Quando a criacutetica o considera o mais relevante escritor do romantismo francecircs as coisas parecem ficar extremamente nubladas para quem pensa literatura Natildeo se trata aqui de um caminho criacutetico ou de uma teoria que possa conduzir a uma visatildeo aacutecida do escritor Eacute fato que Balzac realizou em pleno iniacutecio do seacuteculo XIX um trabalho sui generis como massa referencial levantou temas ou ldquoassuntosrdquo de grande interesse da sociedade da eacutepoca e mesmo de eacutepocas futuras passando seu trabalho a alimentar possibilidades de sentido por manter os mesmos personagens em todos os romances

Por outro lado natildeo apenas a vulgaridade mas qualquer outro tema mundano ou natildeo ganha em Flaubert outro patamar de realidade e dentro disso ele emerge como o grande criador do romance moderno em que a isenccedilatildeo do autor e a autonomia do narrador alcanccedilam dimensotildees determinantes Nesse posicionamento construtivo a vida do autor bem como suas relaccedilotildees pessoais com assuntos mundanos deixa de existir para Flaubert para ceder agrave obra mediada pela linguagem que jaacute natildeo pertence ao que denominamos semioacutetica I Com Flaubert passamos para uma segunda semioacutetica que pode ser entendida como Liacutengua II Nessa busca de aproximaccedilotildees as condiccedilotildees reais dos procedimentos artiacutesticos acabam por estabelecer convergecircncias mais acentuadas entre a obra de Gustave Flaubert e a obra de Marcel Proust do que das obras desses dois artistas em relaccedilatildeo a Honoreacute de Balzac Dentre as convergecircncias entre os dois escritores Proust e Flaubert uma se destaca o fato de ambos produzirem o que Paul Valeacutery (1999) denominaria uma obra claacutessica por trazerem no seu proacuteprio plano de fabricaccedilatildeo um criacutetico Ambos conferem agraves suas obras a devida autonomia enquanto tal e nisso estaacute impliacutecita a isenccedilatildeo da vida do autor em relaccedilatildeo agrave obra Entretanto a invenccedilatildeo proustiana natildeo se limita agraves questotildees criacuteticas engendradas pelo autor de Madame Bovary e de A Educaccedilatildeo Sentimental mas se estende e se engasta em outras obras fundamentais sobretudo da narrativa do seacuteculo XIX

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Eacute nesse movimento criativo que se insere o contraponto do discurso que ora se inventa em oposiccedilatildeo ao referencial balzaquiano Trata-se da estranha relaccedilatildeo entre a narrativa de Em busca do tempo perdido e procedimentos utilizados pelo autor de A Condiccedilatildeo Humana Dizemos ldquoestranha relaccedilatildeordquo devido a uma seacuterie de elementos que nos instigam a buscar no pensamento criacutetico e inventivo de Proust sorrateiras estrateacutegias de construccedilatildeo que se manifestam dentro de um estilo peculiar elementos que desvelam ter sido Proust um exiacutemio leitor de Balzac Proust assinala em Balzac o estilo de retratista da sociedade com traccedilos fortes e de tintas coloridas extraindo daquele estilo o que nele natildeo se manifestou O que se pode depreender desse processo eacute que longe de se poder considerar a obra maior de Balzac como uma grande obra literaacuteria ateacute porque se trata de uma obra com falta de literariedade a sua ldquoestrutura oacutesseardquo foi percebida por Proust que ldquona calada da noiterdquo se valeu de maneira brilhante dessa estrutura

Ao comentar fato que ocupa grande parte do ensaio sobre o caraacuteter inovador do uso do preteacuterito imperfeito pela narrativa flaubertiana Proust diz o seguinte ldquoPortanto esse imperfeito tatildeo novo na literatura muda inteiramente o aspecto das coisas e dos seres como uma lacircmpada que tenha sido deslocada agrave chegada em uma nova casa a antiga quando estaacute quase vazia e que se estaacute em plena mudanccedilardquo (PROUST 1994 p71)

Essa ideia capta o verdadeiro sentido da relaccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e modernidade referindo-se a uma evoluccedilatildeo do estilo A nova casa (modernidade) e a antiga satildeo a mesma e completamente outras quando marcadas pela poccedilatildeo metamorfoseante e mantenedora do signo do estranhamento da refraccedilatildeo artiacutestica capaz de mobilizar os elementos cristalizados As formas artiacutesticas de invenccedilatildeo satildeo princiacutepios composicionais ou brechas que desvelam o olho cliacutenico do Homem feito artista radar captador dos retalhos da realidade Ao dizermos retalhos da realidade pensamos nas condiccedilotildees baacutesicas sem as quais nenhum trabalho artiacutestico pode se concretizar Este consiste na consciecircncia de uma meta a atingir que parte da superaccedilatildeo das linhas de superfiacutecie da realidade ldquodetrito da experiecircnciardquo para Proust representado pelos signos emblemaacuteticos cadaverizados pela convenccedilatildeo O trabalho ficcional de Marcel Proust evolui num processo de metamorfose inventiva primeiro de captaccedilatildeo depois de destruiccedilatildeo e finalmente de remontagem ou traduccedilatildeo da realidade essencial Seu princiacutepio de composiccedilatildeo conduzido pela intraduziacutevel busca da Forma do Tempo faz-se forma espacial profusa enquanto movimento enlaccedilado nos entrecruzados noacutes das veredas da linguagem Este trabalho do artista de buscar sob a mateacuteria sob a experiecircncia sob as palavras algo diferente eacute exatamente o inverso do que a todo instante quando vivemos alheados de noacutes realizam por sua vez o amor-proacuteprio a paixatildeo a inteligecircncia e o haacutebito amontoando sobre as nossas impressotildees mas para de noacutes esconder as nomenclaturas os objetivos praacuteticos a que erradamente chamamos vida (PROUST 1970 p 142) A busca sob e natildeo sobre constitui um universo que transcende a ele proacuteprio por ir o maacuteximo possiacutevel agraves profundezas do verdadeiro eu Dizendo assim tentando driblar a palavra-chave que define esta obra uma poeacutetica no sentido de elevaccedilatildeo da potecircncia da linguagem sem atributos possuindo portanto a mais rigorosa precisatildeo Eacute correto afirmar que Em busca

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do tempo perdido eacute a histoacuteria de uma escritura pois que traz nela mesma essa histoacuteria Esta histoacuteria eacute o esteacuteril pretexto que vai deixando para amanhatilde sempre numa posiccedilatildeo de adiamento uma possiacutevel obra literaacuteria

4 A profundidade criacutetica e literaacuteria de Proust agrave guisa de consideraccedilotildees finais

Apesar da consideraacutevel distacircncia entre Ilusotildees perdidas e Em busca do tempo perdido entretanto vale notar que nos dois tiacutetulos resiste a ideia de perda Contudo em Balzac essa ideia estaacute imediatamente ligada ao temaacuterio referencial de sua obra fantasiado pelo signo ldquoilusotildeesrdquo e marcado semanticamente pelo processo de degenerescecircncia causada pelas perdas e pela impossibilidade de atingir os propoacutesitos da vida Em Proust em que a mateacuteria de vida eacute transformada em mito da linguagem tudo caminha pelo sentido oposto e encontra no tempo da arte o espaccedilo sensiacutevel para dizer com Juacutelia Kristeva (1994) a respeito do autor em questatildeo

Nessa forma de suspensatildeo do tempo cronoloacutegico para a vivecircncia da esfera miacutetica por meio da arte ocorre como diriam os mitoacutelogos a eterna reiniciaccedilatildeo As multiacuteplices relaccedilotildees das linhas de superfiacutecie da realidade mudam alteram-se a cada instante O tempo prossegue inexoravelmente e o uacutenico meio de estancaacute-lo eacute integrar-se a ele eacute habitaacute-lo Mas habitaacute-lo implica espacializaacute-lo colocando-lhe reacutedeas atraveacutes de finas agulhas com linhas tecircnues fabricaccedilatildeo do tecido ou da rede da proacutepria vida Esse gesto de criar coincide com o gesto de viver indissolubilidade apreendida e empreendida no exerciacutecio de profunda identidade do ser que acaba sendo de extremo alheamento Para a realizaccedilatildeo desse movimento o escritor deve descobrir que a realizaccedilatildeo artiacutestica consiste no produto de um outro eu que natildeo aquele das vicissitudes mundanas dos haacutebitos e dos sentimentos pessoais ldquoDentro da perda da memoacuteriardquo3 deu-se iniacutecio agrave emersatildeo do novo universo e uma outra viagem se inaugurou Nela o roteiro jaacute natildeo eacute mais delimitado pois isto significaria a submissatildeo agrave proacutepria dimensatildeo cronoloacutegica da existecircncia

A busca do eu profundo equivale ao exerciacutecio do narrador ao pocircr em praacutetica as suas iluminaccedilotildees ou as iluminaccedilotildees da memoacuteria involuntaacuteria para recriar as experiecircncias da vida num trabalho de arte Eacute este o fio condutor desta viagem O acaso assessorado pela inteligecircncia compotildee o trabalho de criaccedilatildeo Mais importante que recordar pela memoacuteria voluntaacuteria eacute estarem os cinco sentidos despertos disponiacuteveis aguccedilados e integrados para a composiccedilatildeo associativa dos fluxos da realidade literaacuteria O olho deste artista viu na tradiccedilatildeo atraveacutes de formas de reaccedilatildeo caminhos possiacuteveis para se iniciar esta viagem sem retorno composta de meandros circulares em busca de um retrato sem moldura Este retrato teria como modelo primeiramente a experiecircncia que se transforma em

3 A metaacutefora discursiva se reporta ao poema de Joatildeo Cabral de Melo Neto publicado em Pedra do sono (1999)

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escritura e teria como imagem um outro retrato Antes que esse retrato pudesse ser fixado a imagem se estilhaccedilou no campo perdido da linguagem e retratou-se em signos que se movimentam em infinitas direccedilotildees Tornou-se um campo blindado propenso a metamorfoses tornou-se a poccedilatildeo dialeacutetica entre a arte e a vida Natildeo consiste numa inferecircncia indeterminada o fato de julgarmos o texto de Marcel Proust um grande ensaio ficcional Trata-se de um fenocircmeno iacutempar na literatura Evidentemente os recursos de metalinguagem determinam a literatura moderna Num capiacutetulo memoraacutevel denominado ldquoLiteratura e Metalinguagemrdquo contido na obra Criacutetica e Verdade (1982) Roland Barthes discute esse traccedilo da literatura que se inicia nos meados do seacuteculo XIX e se prolonga durante o seacuteculo XX Para ele durante seacuteculos nossos escritores natildeo imaginavam que fosse possiacutevel considerar a literatura como uma linguagem submetida como qualquer outra linguagem agrave distinccedilatildeo loacutegica

A literatura nunca refletia sobre si mesma (agraves vezes sobre suas figuras mas nunca sobre seu ser) nunca se dividia em objeto ao mesmo tempo olhante e olhado em suma ela falava mas natildeo se falava Mais tarde provavelmente com os primeiros abalos da boa consciecircncia burguesa a literatura comeccedilou a sentir-se dupla ao mesmo tempo objeto e olhar sobre esse objeto fala e fala dessa fala literatura-objeto e metaliteratura Eis quais foram grosso modo as fases desse desenvolvimento primeiramente uma consciecircncia artesanal da fabricaccedilatildeo literaacuteria levada ateacute o escruacutepulo doloroso ao tormento do impossiacutevel (Flaubert) depois a vontade heroacuteica de confundir numa mesma substacircncia escrita a literatura e o pensamento da literatura (Mallarmeacute) depois a esperanccedila de chegar a escapar da tautologia literaacuteria deixando sempre por assim dizer a literatura para o dia seguinte declarando longamente que se vai escrever e fazendo dessa declaraccedilatildeo a proacutepria literatura (Proust) em seguida o processo da boa-feacute literaacuteria multiplicando voluntariamente sistematicamente ateacute o infinito os sentidos da palavra-objeto sem nunca se deter num significado uniacutevoco (surrealismo) inversamente afinal rarefazendo esses sentidos a ponto de esperar obter um estar-ali da linguagem literaacuteria uma espeacutecie de brancura da escritura (mas natildeo uma inocecircncia) penso aqui na obra de Robbe-Grillet (BARTHES 1982 p 27-28)

Ao aludir ao caso de Proust Barthes se refere a uma estrateacutegia criativa que evidentemente eacute de profunda significaccedilatildeo no contexto da obra Entretanto como denuncia a citaccedilatildeo do proacuteprio escritor haacute no interior da ldquoficccedilatildeordquo proustiana uma espeacutecie de mesclagem em que o ldquoliteraacuteriordquo se conjuga ao ldquocriacuteticordquo e a ldquonarrativardquo se articula ao ldquodissertativordquo Eacute sabido que esta caracteriacutestica determina o trabalho de todo grande artista Entretanto no seu caso tal fenocircmeno adquiriu uma feiccedilatildeo proacutepria uma vez que a tentativa de ser criacutetico e apenas criacutetico eacute lograda em funccedilatildeo de uma invenccedilatildeo ou traduccedilatildeo criacutetica que eacute sua proacutepria obra ficcional Consagrou a vida inteira para tentar compreender e resolver parte das questotildees que o dominaram Compreenderiacuteamos assim quais as afinidades secretas as metamorfoses necessaacuterias existentes entre a vida de um escritor e sua obra entre a realidade e a arte ou antes como pensaacutevamos entatildeo entre as aparecircncias

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de vida e a proacutepria realidade que dela fazia um fundamento soacutelido e que a arte resgatou (PROUST 1982 p 29)

Essas consideraccedilotildees de Proust presentes em Jean Santeuil obra produzida entre 1895 e 1900 mantiveram-se em toda a sua criaccedilatildeo futura Ao penetrarmos em seu universo o que se percebe eacute que Jean Santeuil eacute muito mais que um esboccedilo ficcional Escrito em terceira pessoa na sua maior parte apresenta agraves vezes uma estranha mudanccedila de foco narrativo passando para a primeira Por este e por outros motivos Jean Santeuil acaba apresentando procedimentos tatildeo especiacuteficos que seu caraacuteter inacabado se torna no miacutenimo questionaacutevel Penso aqui em Charles Baudelaire que ao analisar a pintura de Camille Corot apoacutes revelar expliacutecita indignaccedilatildeo frente agrave incompreensatildeo do puacuteblico romacircntico mostra as especificidades dos quadros de Corot e as diferenccedilas entre eles e os de outros pintores inclusive os de Eugegravene Delacroix (BAUDELAIRE 1976) Analisa a diferenccedila entre um quadro feito e um quadro acabado Para Baudelaire em geral uma obra que eacute feita natildeo eacute acabada e uma obra completamente acabada natildeo eacute totalmente feita Eacute certo que Jean Santeuil eacute obra abandonada por Proust por consideraacute-la apenas um exerciacutecio eacute certo tambeacutem que eacute esta estrutura moacutevel que a torna relevante Isso acentua sua natureza dialoacutegica fenocircmeno que determinaraacute toda a evoluccedilatildeo de Em busca do tempo perdido Realizada neste periacuteodo precedente oito anos antes de Contre Sainte-Beuve Jean Santeuil consiste num dos mais notaacuteveis exerciacutecios de traduccedilatildeo criativa que aleacutem de nos fornecer subsiacutedios para a compreensatildeo da maacutequina de fabricaccedilatildeo proustiana eacute em si um universo autocircnomo marcado pela articulaccedilatildeo dos retalhos ou dos fragmentos que determinam o teor metoniacutemico da elaboraccedilatildeo ficcional de Marcel Proust

O trabalho artiacutestico-literaacuterio de Marcel Proust apresenta peculiaridades de vaacuterias naturezas todas elas entretanto repousam sobre uma uacutenica questatildeo realizar para investigar e modular para cumprir aquilo que tatildeo somente a arte pode conquistar o resgate do tempo infindo e a suspensatildeo do tempo cronoloacutegico para que seja possiacutevel recuperar a instacircncia atemporal da vida

Esse sistema criacutetico-inventivo soacute seria possiacutevel de ser realizado como o fez o pensador francecircs com o olho direito mirando cuidadosamente a tradiccedilatildeo e o olho esquerdo cravado sobre o presente no mapa da invenccedilatildeo e buscando cumprir com profundo prazer e ao mesmo tempo com aacuterduo trabalho o peacuteriplo de uma experiecircncia desconstruiacuteda

Por fim conveacutem dizer ainda que o olhar de Marcel Proust para a obra de Balzac exige muita cautela e observaccedilatildeo nos miacutenimos elementos que ele aponta valendo-se de seu singular modo de ler e de ver por entrelinhas fundamentais para que se vaacute recuperando o ldquotempo de Proustrdquo nos interstiacutecios de sua produccedilatildeo Haacute que se vasculhar em ciacuterculos as suas palavras Por um lado defende criticamente Balzac mediante as colocaccedilotildees de Sainte-Beuve assim como defendeu outros autores vociferados pelo criador da criacutetica biograacutefica na segunda metade do seacuteculo XIX Por outro lado os seus comentaacuterios comparativos entre Gustave Flaubert e Honoreacute de Balzac fazem com que revejamos os passos de composiccedilatildeo do famoso autor de Ilusotildees Perdidas Esse movimento criacutetico nos deixa como estudiosos e como criacuteticos literaacuterios um tanto

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ensimesmados diante de algumas incocircmodas questotildees que procuramos deslindar agrave medida que avanccedilamos na abordagem deste artigo objetivando mostrar por meio do trabalho literaacuterio e ensaiacutestico de Marcel Proust sua contribuiccedilatildeo para o entendimento dos processos da literatura e das artes

Referecircncias

BALZAC H de Ilusotildees Perdidas Trad Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Penguin ClassicsCompanhia da Letras 2011

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BAUDELAIRE C Salon de 1845 In BAUDELAIRE C Oeuvres Complegravetes Texte eacutetabli preacutesenteacute et annoteacute par Claude Pichois Paris Gallimard 1976 Tome II pp 351-407

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CHATEAUBRIAND F R de Atala Rene Les aventures du dernier abencerage Paris Flammarion 1996

CURTIUS R Marcel Proust La Nouvelle Revue Franccedilaise Paris Tomo XX 1923

FLAUBERT G Madame Bovary Trad Maacuterio Laranjeira Satildeo Paulo Penguin ClassicsCompanhia das Letras 2011

FLAUBERT G A educaccedilatildeo sentimental historia de um jovem 2 ed Trad Adolfo Casais Monteiro Satildeo Paulo Nova Alexandria 2015

GONCcedilALVES A J O processo holometaboacutelico em Marcel Proust In PROUST M Contre sainte-beuve notas sobre criacutetica e literatura Trad Haroldo Ramanzini Satildeo Paulo Iluminuras 1988

GONCcedilALVES A J A propoacutesito da criacutetica de Marcel Proust In PROUST M Nas trilhas da criacutetica Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo PauloImaginaacuterio 1994

GONCcedilALVES A J Museu Movente o signo da arte em Marcel Proust Satildeo Paulo Editora UNESP 2004

KRISTEVA J Le Temps Sensible Proust et lrsquoExpeacuterience Litteacuteraire Paris Gallimard 1994 (NRF eacutessais)

MELO NETO J C de Obra completa Rio de Janeiro Nova Aguilar 1999

PROUST M Le Balzac de Monsieur de Guermantes (avec quatre dessins de lrsquoauteur) Paris Neuchatel Ides et Calendes 1930

PROUST M O tempo redescoberto Trad Luacutecia Miguel Pereira Globo Porto Alegre 1970

PROUST M Jean Santeuil Trad Fernando Py Rio de Janeiro Nova Fronteira 1982

PROUST M Contre sainte-beuve notas sobre criacutetica e literatura Trad Haroldo Ramanzini

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Satildeo Paulo Iluminuras 1988

PROUST M Nas trilhas da criacutetica Trad Pliacutenio Augusto Coelho Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo PauloImaginaacuterio 1994

SAINTE-BEUVE C Causeacuteries du Lundi les Contemporains de Sainte-Beuve Org B Lalande Paris Larousse 1953 tome 124 partie II (Collection Classiques Larousse)

SAINTE-BEUVE C Oeuvres de Sainte-Beuve Paris Editions la Bibliothegraveque Digitale (eBook Kindle) 2012

SPITZER L Linguumliacutestica e historia literaria Trad Joseacute Peacuterez Riesgo Madrid Editorial Gredos 1955 (Biblioteca Romaacutenica Hispaacutenica Estudios y Ensayos 19)

VALEacuteRY P Variedades Trad Maiza Martins de Siqueira Satildeo Paulo Iluminuras 1999

Recebido em 25 de marccedilo de 2017

Aceito em 30 de setembro de 2017

Aguinaldo Joseacute Gonccedilalves

Livre-docecircncia pela UNESP (1997) Doutorado em Letras (Teoria Literaacuteria e Literatura Comparada) pela USP (1988) Tem publicaccedilotildees na interface de literatura e outros sistemas semioacuteticos Professor titular da UNESP e PUC de Goiaacutes atuando nos cursos de Mestrado e Doutorado nessas instituiccedilotildees agnusfenixgmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Acerca da ekphrasis numa passagem do Clarimundo de Joatildeo de Barros cena de pictoacuterico heroiacutesmo

On Ekphrasis in an Excerpt from Clarimundo by Joatildeo de Barros A Scene of Pictorial Heroism

Sobre la ekphrasis en un paso del Clarimundo de Joatildeo de Barros escena de pictoacuterico heroiacutesmo

Flaacutevio Antocircnio Fernandes Reis Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Resumo

No artigo tratamos de um procedimento discursivo a ekphrasis na leitura de uma passagem da Primeira Parte da crocircnica do imperador Clarimundo donde os reis de Portugal descendem narrativa de cavalaria publicada por Joatildeo de Barros em 1522 e dedicada ao priacutencipe e depois rei D Joatildeo III Trata-se da primeira narrativa cavaleiresca com mateacuteria paacutetria publicada em Portugal obra essa que teve algumas reimpressotildees e reediccedilotildees dos seacuteculos XVI ao seacuteculo XX Dada a pouca atenccedilatildeo dispensada a este livro nosso artigo apresenta-o na sua primeira parte Em seguida tratamos do que seja a ekphrasis ou sua acepccedilatildeo latina a descriptio segundo alguns estudos recentes e em tratados antigos como o de Hermoacutegenes Aftocircnio e o anocircnimo dirigido a Herecircnio Por fim nosso objetivo foi analisar a ekphrasis composta no episoacutedio da ldquoFloresta Encantadardquo do Clarimundo observando como a cena compotildee-se com fins retoacutericos de persuadir pelo ldquomaravilhosordquo da cena e pela forccedila dos argumentos dado o caraacuteter de quem diz e as circunstacircncias de enunciaccedilatildeo compostos na ficccedilatildeo de Joatildeo de Barros Palavras-chave Joatildeo de Barros Clarimundo Ekphrasis

Abstract

In this article we propose the study of a discursive procedure ekphrasis in the reading of an excerpt from ldquoda Primeira parte da Croacutenica do Imperador Clarimundo donde os Reis de Portugal descendemrdquo a chivalric narration published by Joatildeo de Barros in 1522 and dedicated to the prince and later king D Joatildeo III This was the first chivalric narrative published in Portugal and was reprinted from the sixteenth century to the twentieth century In the first part the article presents the book by Joatildeo Barros Next we speak of ekphrasis or its Latin meaning descriptio according to some recent studies and according to ancient treatises like that by Hermoacutegenes Aftocircnio and the anonymous ldquoRhetoric to Herecircniordquo Finally our objective was to analyze the ekphrasis in the episode of the ldquoFloresta Encantadardquo from Clarimundo observing how the scene is composed for rhetorical purposes of persuading by the ldquomarvelousrdquo taking into account who speaks and the utterance circumstances in the fiction by Joatildeo de BarrosKeywordsJoatildeo de Barros Clarimundo Ekphrasis

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Resumen

En este artiacuteculo se propone el estudio de un procedimiento discursivo ekphrasis en la lectura de un pasaje del ldquoda Primeira Parte Croacutenica do Imperador Clarimundo Donde os Reis de Portugal descendemrdquo una narracioacuten de caballeriacutea publicado por Joatildeo de Barros en 1522 y dedicado al priacutencipe y maacutes tarde rey D Joatildeo III Es la primera narrativa caballeresca publicada en Portugal una obra que tuvo algunas reimpresiones del siglo XVI al siglo XX En la primera parte el artiacuteculo presenta el libro de Joatildeo Barros A continuacioacuten hablamos de la ekphrasis o su significado latino descriptio seguacuten algunos estudios recientes y seguacuten tratados antiguos como el de Hermoacutegenes Aftocircnio y la anoacutenima Retoacuterica a Herecircnio Por uacuteltimo nuestro objetivo fue analizar la ekphrasis compuesto en el episodio del ldquoFloresta Encantadardquo por Clarimundo observando coacutemo la escena se compone con fines retoacutericos de persuadir por el ldquomaravilhosordquo teniendo en cuenta que habla y las circunstancias de la enunciacioacuten compuesto en la ficcioacuten de Joatildeo de BarrosPalabras clave Joatildeo de Barros Clarimundo Ekphrasis

1 Introduccedilatildeo a primeira narrativa de cavalaria portuguesa com mateacuteria lusitana

A Prymera parte da cronica do emperador Clarimundo donde os reys de Portugal desccedilendem publicada nas prensas lisboetas de Germatildeo de Galharde em 1522 compotildee-se de trecircs livros natildeo acabados e ditos ldquoprimeira parterdquo em consonacircncia com a dinacircmica comum das maacutequinas cavaleirescas dos ldquoamadizesrdquo e dos ldquopalmeirinsrdquo No entanto se as relaccedilotildees entre as narrativas cavaleirescas figuram como emaranhado de parentescos discursivos concebidos com invenccedilatildeo comum de imitaccedilatildeo a genealogia que o Clarimundo propotildee o ressalva genericamente o especifica como ldquodonde os Reys de Portugal desccedilendemrdquo figurando mateacuteria ateacute entatildeo incomum nas letras ibeacutericas mas reconhecida nas letras antigas mais precisamente na Eneida de Virgiacutelio e emulada no encocircmio da Casa drsquoEste presente no Orlando Furioso de Ariosto1

1 Acerca da abordagem retoacuterico-poeacutetica desse estudo entendem-se as doutrinas retoacutericas e poeacuteticas como saberes comuns herdados e atualizados dos antigos para o ldquofermoso fablarrdquo conforme Alfonso de Cartagena na dedicatoacuteria da Retorica dirigida a D Duarte no seacuteculo XV Aniacutebal Pinto de Castro no conhecido estudo Retoacuterica e teorizaccedilatildeo literaacuteria em Portugal do Humanismo ao Neoclassicismo (2008) mostra o vigor dos preceitos retoacutericos e poeacuteticos sobretudo a difusatildeo dos preceitos de Ciacutecero e Quintiliano nas praacuteticas letradas portuguesas dos seacuteculos XV e XVI Nesse sentido a Oraccedilatildeo de Sapiecircncia proferida por D Pedro de Menezes na abertura dos trabalhos letivos do Estudo Geral de Lisboa de 1504 eacute bastante eloquente ldquoDas artes a primeira que se me mostra a mais formosa elegante e conveniente esta eacute a Retoacuterica Com efeito enquanto preceitua assim se chama mas enquanto executa com ordem e propriedade o que preceituou chama-se Oratoacuteria disciplina sem a qual toda a doutrina toda a ciecircncia embora tendo olhos ouvidos e liacutengua andaria cega surda e mudardquo(Cf D Pedro de Menezes Oraccedilatildeo proferida no Estudo Geral de Lisboa Texto latino presente na ediccedilatildeo de Miguel Pinto de Menezes Lisboa Centro de Estudos de Psicologia e de Histoacuteria da Filosofia anexo agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1994 p 96 ldquoQuarum prima se mihi offert illa veluti formosiacutessima decentissima elegantissima quaedam virgo quae rethorica est Sic enim dum praecipit appellatur cum vero ea quae praecepit distincte apteque exequitur oratoacuteria sine qua omnis doctrina omnis scientia habens oacuteculos aures linguam caeca surda muta ambulatrdquo)

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Joatildeo de Barros moccedilo de cacircmara do priacutencipe D Joatildeo futuro D Joatildeo III humanista latinado aproximou a narrativa extensa das batalhas de cavaleiros do Amadis e do Orlando aos ensinamentos e agrave elocuccedilatildeo da eacutepica antiga operando com o caraacuteter misto proacuteprio da narrativa de aventuras e batalhas entre cavaleiros2 A aparente transparecircncia da operaccedilatildeo esconde um emaranhado disperso de construccedilatildeo narrativa conjugada a procedimentos retoacutericos e poeacuteticos de longa duraccedilatildeo nas letras europeias e a ensinamentos de virtudes morais dirigidas aos priacutencipes e seus conselheiros aspectos esses que tornam inadequados o julgamento apressado da obra em questatildeo Ademais a publicaccedilatildeo impressa do Clarimundo denota a relevacircncia do livro salvaguardada nos tipos moacuteveis com boa qualidade das manchas impressas e dedicada a D Joatildeo III por meio de proacutelogos um ao priacutencipe e outro ao rei O ornamento das letras capitais e a moldura do ldquoProacutelogo sobre a trasladaccedilatildeo da primeira parterdquo convecircm agrave mateacuteria elevada do livro ornamentaccedilatildeo floral selva organizada na qual se entrevecirc entre ramos ordenados Cupido figuraccedilotildees de bestas paacutessaros e floraccedilotildees simetricamente dispostos como moldura que enaltece a figuraccedilatildeo daquele a que se atribui como o ancestral mais recuado da Casa Real portuguesa Nessa paacutegina de rosto na editio princeps figura o imperador Clarimundo no centro da composiccedilatildeo e na raiz de uma aacutervore genealoacutegica em cujos ramos ordenam-se os reis portugueses ateacute D Joatildeo III O cavaleiro traz as insiacutegnias de imperador bizantino a coroa fechada o orbe ou globus cruciger e o escudo no qual figura a aacuteguia bifronte iconografia do poder imperial e cristatildeo sobre o Ocidente e o Oriente A justaposiccedilatildeo dos reis o esquematismo proacuteprio da aacutervore genealoacutegica pressupotildeem a memoacuteria do modelo preteacuterito e a legitimidade do moderno pela antiguidade ancestral memoacuteria essa que se salvaguarda na ldquocrocircnica do imperador Clarimundordquo modo pelo qual a obra passou a ser conhecida a partir das ediccedilotildees setecentistas

Mais a Prymera parte da cronica do emperador Clarimundo eacute o uacutenico livro de batalhas e aventuras de cavaleiros com mateacuteria aacuteulica impresso em portuguecircs na primeira metade do seacuteculo XVI3 Embora sejam conhecidas as inuacutemeras objeccedilotildees aos livros de cavalaria seja pelos aspectos de construccedilatildeo mista seja pelas mateacuterias mal quistas pelos letrados religiosos a narrativa de Barros obteve uma segunda impressatildeo ainda no reinado de D Joatildeo III em 1555 Ateacute entatildeo ainda se manteve a eloquente portada o que natildeo eacute o caso da publicaccedilatildeo seiscentista do livro realizada por Antoacutenio Alvarez em 1601 na qual se figuram outros valores para o caraacuteter de Clarimundo Nessa ediccedilatildeo

2 Cf ALMEIDA Isabel Orlando Furioso em livros portugueses de cavalaria pistas de investigaccedilatildeo In Revista eHumanista vol 8 2007 O estudo de Isabel Almeida demonstra os efeitos imitativos operados entre o Clarimundo de Joatildeo de Barros e o Orlando Furioso de Aristo repassando sobretudo imagens e construccedilotildees cenograacuteficas

3 DIAacuteZ-TOLEDO Aureacutelio Vargas Os livros de cavalaria renascentistas nas histoacuterias da literatura portuguesa Peniacutensula Revista de Estudos Ibeacutericos n 3 2006 p 239 Ver tambeacutem excelente livro do prof Aureacutelio intitulado Os livros de cavalarias portugueses dos seacuteculos XVI ndash XVIII Lisboa Pearlbooks 2012 p 17

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seiscentista a aacutervore genealoacutegica anterior eacute substituiacuteda pela estampa de um cavaleiro rei pronto para a batalha tendo agrave frente uma mesquita Essa figuraccedilatildeo imita a portada da ediccedilatildeo quinhentista do Amadis de Gaula impressa em Veneza no ano de 1533 Com isso o Clarimundo ldquomata-turcosrdquo bastante notoacuterio na narrativa sobrepotildee-se agravequela imagem do imperador de Constantinopla e assim impotildee-se na representaccedilatildeo do rei natildeo a gloacuteria do trono bizantino mas o valor de cruzado cristatildeo os merecimentos da ldquoguerra justardquo contra o infiel

Embora o apelo das estampas se diferencie o cotejo dos textos mostra que se tratou apenas de outra impressatildeo do texto quinhentista com pequenas atualizaccedilotildees graacuteficas e linguiacutesticas Nada mais O mesmo natildeo se pode dizer acerca da ediccedilatildeo de 1742 na qual se baseiam as leituras mais recentes respectivamente 1791 1843 e 1953 essa uacuteltima a mais conhecida do grande puacuteblico a cargo do professor Marques Braga e editada pela coleccedilatildeo Claacutessicos Saacute da Costa Acompanha a ediccedilatildeo setecentista a Vida de Joatildeo de Barros composta pelo letrado seiscentista Manuel Severim de Faria4 Uma vida segundo os preceitos antigos do gecircnero encomiaacutestica com o fim de mostrar os merecimentos do historiador que o tornavam apto para o serviccedilo da monarquia catoacutelica portuguesa Antes de tudo conveacutem observar que a ediccedilatildeo de 1742 altera bastante a elocuccedilatildeo da editio princeps desfazendo-lhe o caraacuteter parcial de ldquoPrymera parterdquo e intitulando-a de Chronica do emperador Clarimundo donde os reis de Portugal descendem tirada da linguagem ungara em a nossa Portugueza dirigida ao Esclarecido priacutencipe D Joatildeo Filho do muy Poderoso Rey D Manoel primeiro deste nome Para tanto emenda-lhe um capiacutetulo final que mesmo natildeo aparecendo na taacutebua de capiacutetulos encontra-se no volume terceiro como cap XXVIII no qual narra-se a morte honrosa de Clarimundo mantendo-se afinado com o decoro da personagem e com a elocuccedilatildeo de Joatildeo de Barros Ademais para o editor setecentista a genealogia proposta por Barros na falta de partes que a continuem resolve-se na chegada do filho de Clarimundo ndash D Sancho ndash agrave Peniacutensula a continuaccedilatildeo seria a histoacuteria dos reis que tantos cronistas fizeram Para isso o desfecho apoacutecrifo narra a viagem maravilhosa de D Sancho filho do imperador de Constantinopla Clarimundo e da imperatriz Clarinda em terras ibeacutericas ldquoDe como o priacutencipe D Sancho e seus primos foram levados a Espanha e de como foram feitos reis e da morte do imperador Clarimundordquo5 As modificaccedilotildees dessa ediccedilatildeo estatildeo em consonacircncia com fins eacuteticos e poliacuteticos proacuteprios do discurso da histoacuteria que se mantecircm numa longa duraccedilatildeo nas composiccedilotildees do gecircnero nos seacuteculos XVI XVII e XVIII

4 FARIA Manuel Severim de Discursos varios poliacuteticos por Manoel Severim de Faria Chantre amp Conego na Santa Secirc de Euora Em Euora impressos por Manoel Carvalho impressor da Vniversidade 1624 Cf tambeacutem excelente artigo de Luis Cristiano de Andrade Os preceitos da memoacuteria Manuel Severim de Faria inventor de autoridades lusas In Histoacuterias e perspectivas Uberlacircndia 34 janjun 2006 107-137

5 Cf Croacutenica do emperador Clarimundo op cit p 299 e seguintes O pastiche como o chama Isabel Almeida foi acrescentado no seacuteculo XVIII e deu unidade agrave obra alterando-a drasticamente no seu aspecto de inacabada ou parcialmente publicada

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O exemplar da editio princeps impressa em 1522 que pertence agrave Biblioteca Nacional de Madrid encontra-se em muito bom estado de conservaccedilatildeo6 Trata-se de um impresso elegante legiacutevel com portada na qual estampa-se a figura de Clarimundo e a genealogia dos reis portugueses desde D Sancho e D Henrique ateacute D Joatildeo III Saiu das prensas de Germatildeo de Galharde impressor francecircs radicado em Portugal e que mais publicou obras no seacuteculo XVI em terras lusitanas depois de Joatildeo de Barreira Entre 1509 e 1561 imprimiu em Lisboa e em Coimbra nas prensas do Mosteiro de Santa Cruz usando na maioria dos livros caracteres goacuteticos Seus emblemas tipograacuteficos trazem a esfera armilar o escudo de armas reais e um grifo no timbre Galharde imprimiu outras narrativas de aventuras de cavaleiros como as trecircs partes do Florando de Inglaterra impressas em 15457

No caso do Clarimundo as manchas trazem tipos em letra goacutetica menor cada capiacutetulo eacute introduzido por uma letra ornamentada e os foacutelios satildeo enumerados nos versos do lado direito superior da paacutegina com nuacutemeros romanos A obra compotildee-se pela ldquoTavoadardquo dos trecircs livros por dois proacutelogos ldquoProacutelogo feyto depoys desta obra imprensardquo dirigido ao rei D Joatildeo III e um ldquoProacutelogo sobre a trasladaccedilam da primeira parte da cronica do emperador Clarimundordquo dedicado ao priacutencipe D Joatildeo a ldquoConcordanccedilia que o trasladador faz antre dous cronistas sobre a vinda de dom Anrique nestes reynos despanha e sobre sua genealogiardquo por 114 capiacutetulos divididos em trecircs livros o libro primeiro do foacutelio III ao LIII do capiacutetulos I ao XXXIIII (sic) (34 capiacutetulos) o libro segundo do foacutelio LIII ao CXXIII r do capiacutetulo XXXV ao LXXVIII (43 capiacutetulos) e o libro terccedileyro do foacutelio CXXIII r ao CLXXVI do cap LXXIX ao CXIIII (35 capiacutetulos)8 Haacute um evidente equiliacutebrio na extensatildeo dos capiacutetulos ordenados em trecircs livros o livro primeiro trata da famiacutelia do nascimento da criaccedilatildeo da sagraccedilatildeo do heroacutei como cavaleiro de vaacuterias batalhas entre elas o embate com os gigantes Learco e Pantafasul para libertar a rainha Briaina que reconhece em Belifonte seu filho Clarimundo O primeiro livro conclui-se com a chegada e os combates da Ilha Perfeita Nesse livro a personagem central Clarimundo tem outros nomes de acordo com as circunstacircncias que enfrenta nomeando-se como ldquoBelifonterdquo e ldquoCavaleiro das

6 Prymeira parte da croacutenica do emperador Clarimundo donde os Reys de Portugal desccedilendem de Joatildeo de Barros Lisboa Germatildeo de Galharde 1522 Biblioteca Nacional de Madrid (R-11-727) Haacute um exemplar da segunda impressatildeo de 1555 na Biblioteca do Paccedilo Ducal de Vila Viccedilosa As outras ediccedilotildees satildeo 1601 Clarimundo Lisboa Antoacutenio Alvarez a custa de Andreacute Lopes e outra a custa de Hieroacutenimo Lopes 1742 Chronica do Emperador Clarimundo Lisboa Na Officina de Francisco da Sylva 1791 Chronica do emperador Clarimundo donde os reis de portugal descendem tirada da linguagem ungara em a nossa Lisboa Officina de Joao Antonio da Silva Desta ediccedilatildeo haacute um exemplar na biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da USP 1953 Croacutenica do imperador Clarimundo Com pref e notas do prof Marques Braga Lisboa Saacute da Costa

7 Cf Aureacutelio Vargas Diacuteaz-Toledo Os romances de cavalaria portugueses na sua versatildeo impressa In Os livros de cavalarias portugueses dos seacuteculos XVI ndash XVIII Lisboa Pearlbooks 2012 p 47 Este livro eacute um bem realizado manual que situa as publicaccedilotildees de cavalaria portuguesas tanto os impressos quanto manuscritos servindo de importante guia para os futuros estudiosos

8 No apecircndice final encontra-se um cotejo entre a ldquotavoadardquo de capiacutetulos da editio princeps (reimpressatildeo de 1555 e a editada de 1601) e as ediccedilotildees de 1742 (base das posteriores)

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Laacutegrimas Tristesrdquo O livro segundo trata dos amores do cavaleiro os feitos em armas os episoacutedios de corte sobretudo em Constantinopla Nesse livro ocorre a aventura na qual Clarimundo encantado pelo ldquovaso do esquecimentordquo um tipo de bebida maacutegica eacute acometido por certa loucura e se nomeia ldquoCavaleiro Descuidadordquo respondendo agravequeles com quem fala por meio de versos rimados O terceiro livro trata das profecias do Saacutebio Fanimor sobre os reis de Portugal prenunciando sobretudo os embates entre cristatildeos e mouros recorrentes entre os reis lusitanos

O exemplar da editio princeps utilizado eacute coacutepia digital do livro que pertenceu agrave biblioteca de Pascual de Gayangos ceacutelebre estudioso ibeacuterico de narrativas de cavalarias Ademais eacute curioso que a narrativa de Joatildeo de Barros compartilhe a mesma encadernaccedilatildeo que o livro Espelho de Cristina de Cristine de Pisan impresso em 1518 a mando da Rainha velha D Leonor Embora sejam dois impressores diferentes Germatildeo de Galharde e Herman de Campos e as obras estampadas com quatro anos de distacircncia a encadernaccedilatildeo com os livros geminados natildeo parece compor uma compilaccedilatildeo desatada de obras mas reunir em volume uacutenico obras de gecircnero semelhante ou seja obras de ensinamento moral numa as excelecircncias e virtudes do priacutencipe figuradas no caraacuteter do Clarimundo noutra as virtudes das princesas das mulheres burguesas e das religiosas9

2 O objeto de estudo o episoacutedio da Floresta Encantada cena de pictoacuterico heroiacutesmo

Aleacutem da importacircncia histoacuterica da narrativa cavaleiresca de Joatildeo de Barros o livro compotildee-se como mencionamos como obra dirigida agrave cabeccedila do reino realizada com o esmero que as obras dedicadas aos priacutencipes e reis costumavam receber Assim de imediato podemos destacar o uso apurado da liacutengua portuguesa quinhentista e imitando obras da Antiguidade Latina sobretudo a prosa latina de Suetocircnio propor em liacutengua vernaacutecula a narrativa de batalhas e feitos de cavaleiros com ornamentos e arranjos de linguagem que bem avivam nos leitores os efeitos da mateacuteria narrada Natildeo devemos perder de vista que se trata de obra realizada para a leitura puacuteblica havendo portanto uma ordenaccedilatildeo discursiva que bem atende a esse costume Ademais antes de passarmos ao objeto deste estudo vale atentarmos para o elogio que Eduardo Lourenccedilo confere ao Clarimundo de Joatildeo de Barros destacando justamente os aspectos de primor no uso da linguagem na obra

9 Colofatildeo do impresso do Espelho de Cristina (1518 sn) ldquoPor mandado da muyto esclarecida reyna dona lyanor molher do poderoso e muy manifico rey dotilde juan segundo de portugal Acabouse el libro intitulado das tres virtudes no qual se cotildetem muytas profeytosas doutrinas y saludables exemplos assy pera as generosas y grandes donas como pera as outras de qualquer estado o condiccediliom que sejam E poderam enelle de prender como se ham de regir e governar no regimento de suas casas fazendas y homrras Impresso em ha muy nobre y sempre leal cibdade de lixboa por herman de campos Imprimidor y bomardeyro do rey nosso senhor cotilde gracia y privilegio de su alteza Anno de nostra salvaccedilammdyxviiiannosaxxdias do mes de juniordquo

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Se haacute um livro admiravelmente escrito nesses comeccedilos do seacuteculo XVI () eacute bem esta a primeira obra daquele que se tornaraacute o modelo da nossa grande prosa nobre clara grave e ao mesmo tempo corrente do seacuteculo de Quinhentos Com ele a Idade Meacutedia da nossa liacutengua ainda tatildeo sensiacutevel em Gil Vicente termina e entramos na planiacutecie suave aberta da assimilaccedilatildeo fecunda dos grandes autores claacutessicos que serviraacute de modelo escrito mas tambeacutem de modelo de pensar a nossa melhor prosa do seacuteculo XVI (LOURENCcedilO 1999 p 36)

Feito este proecircmio passamos a tratar daquilo que pretendemos mostrar mais detidamente O verbo ldquomostrarrdquo eacute propositalmente utilizado aqui jaacute que nosso intento eacute falar de demonstraccedilatildeo de figuraccedilatildeo de ekphrasis traduzida pelos latinos como descriptio utilizada como procedimento retoacuterico com fim na enargeia termo da preceituaccedilatildeo retoacuterica antiga que significa exatamente ldquocolocar diante dos olhosrdquo Tratamos de um episoacutedio miraculoso da narrativa de Joatildeo de Barros no qual a ekphrasis opera discursivamente para a produccedilatildeo de efeitos tal como soacutei acontecer com o uso desse artificio textual dizemos logo do efeito para depois atermo-nos no artifiacutecio colocar diante do olhos para ensinar preceito moral colocar diante dos olhos para compor caracteres Antes da cena passemos a algumas breviacutessimas consideraccedilotildees acerca da ekphrasis por alguns estudiosos recentes e na preceptiva de alguns retores antigos e depois vejamos o episoacutedio da narrativa de Joatildeo de Barros em questatildeo

A ekphrasis associa-se a teacutecnicas de amplificaccedilatildeo de toacutepicas narrativas nos diversos gecircneros retoacutericos (HANSEN 2006 p 85) ou como propotildee Barbara Cassin em verbete dedicado ao conceito ldquoeacute uma construccedilatildeo de frases que esgota seu objeto e designa terminologicamente as descriccedilotildees minuciosas e completas que se datildeo de obras de arterdquo10 Segundo os Progymnasmata (Exerciacutecios preparatoacuterios) de Hermoacutegenes a ekphrasis traduzida como ldquodescriccedilatildeordquo consiste em ldquoum enunciado que apresenta em detalhe como dizem os teoacutericos que tem a evidecircncia (enargeia) e que coloca sob os olhos o que ele mostrardquo (HERMOGEacuteNE 1997 p 148) Michel Patillon no estudo introdutoacuterio da ediccedilatildeo francesa da preceptiva de Hermoacutegenes cita um estudo de Zanger o ldquoEnargeia in the ancient Criticism of Poetryrdquo no qual realiza-se uma proposta de siacutentese dos fins a que se propotildee a enargeia ldquoA evidecircncia do estilo eacute sua capacidade de oferecer uma representaccedilatildeo

10 Baacuterbara Cassin em ldquoLrsquolaquo ekphrasis raquo du mot au motrdquo apresenta uma siacutentese do que teria sido o artificio da ekprasis ou descriptio latina tratando da formulaccedilatildeo e do funcionamento na composiccedilatildeo discursiva do termo bem como obras diversas da Antiguidade grega e latina que se valeram do recurso da ekphrasis sendo o ldquoEscudo de Aquilesrdquo uma das mais ceacutelebres realizaccedilotildees da figura ldquoLrsquo ekphrasis [ἔκϕρασις] (sur phrazugrave [ϕράζω] faire comprendre expliquer et ek [ἐκ] jusqursquoau bout) est une mise en phrases qui egravepuise son objet et degravesigne terminologiquement les descriptions minutieuses et compleumltes qursquoon donne des oeuvres drsquoartrdquo Disponiacutevel em In lthttprobertbvdepcompublicvepPages_HTML$DESCRIPTION1HTMgt Acesso em novembro de 2017

Aproveitamos o ensejo e indicamos ao leitor o execelente artigo de Aacutelvaro Cardoso Gomes intitulado ldquoUm mimese da cultura (um estudo da figura retoacuterica da Ekprasis) In Revista de Letras Satildeo Paulo v54 n2 p123-144 juldez 2014

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viva do objeto que se propotildee a colocaacute-lo diante dos olhos do auditoacuterio Isso obteacutem-se essencialmente pela acumulaccedilatildeo de detalhes e o emprego de imagensrdquo (HERMOGEacuteNE 1997 p 49) Aleacutem disso com Hermoacutegenes aprendemos que os objetos a serem descritos pertencem a uma lista bem ampla ldquoas descriccedilotildees satildeo feitas de personagens de accedilotildees de circunstacircncias de lugares de tempos etcrdquo Por exemplo Libanos orador do seacuteculo IV descreve combates em terra uma pintura na sala do conselho festas a embriaguez a primavera um porto um jardim uma caccedila uma batalha naval um leatildeo abocanhando um cervo Hera Heacutercules a destruiccedilatildeo de Troia Polixena assassinada por Neoptoacutelemo Prometeu Medeacuteia a Quimera Palas Ajax a Fortuna etc um panegiacuterico a beleza Outro exemplo Aftocircnio o ceacutelebre preceptista da segunda sofiacutestica preceitua para a descriccedilatildeo de pessoa ndash dita prosopografia ndash que comece pelo alto na cabeccedila e siga em direccedilatildeo ao peacutes Para os fatos comeccedila a descriccedilatildeo pelo que precedeu em direccedilatildeo ao ocorrido Como nos lembra Joatildeo Adolfo Hansen a ekphrasis relaciona-se diretamente com passagens iniciais da poeacutetica e da retoacuterica aristoteacutelica quando ambas defendem que tanto historiadores quanto poetas devem compor com verossimilhanccedila isto eacute aristotelicamente verossiacutemil eacute aquilo que se toma por verdadeiro pela maioria ou pelos mais saacutebios Nesse sentido o verossiacutemil define-se como uma relaccedilatildeo entre discursos e a verificaccedilatildeo de coerecircncia entre um e outro como condiccedilatildeo de aceitaccedilatildeo

Uma das autoridades antigas mais ceacutelebres de ekphrasis eacute Filoacutestrato de Lemos e seus Eikones (Descricotildees) obra antiga grega na qual propotildee-se a descriccedilatildeo de cenas quadros pinturas que existem discursivamente e que se colocam diante dos olhos pela habilidade letrada de Filoacutestrato Para menores delongas na Rhetorica ad Herennium uma das mais acessadas na histoacuteria dos discursos a Descriptio eacute tratada na parte sobre os ornamentos de sentenccedila e deixando de lado os exemplos que didaticamente apresenta destaco duas acepccedilotildees entatildeo divulgadas ldquoa descriccedilatildeo conteacutem uma exposiccedilatildeo perspiacutecua clara e grave das consequecircncias das accedilotildees (coisas)rdquo11 e os efeitos da descriccedilatildeo segundo a preceptiva satildeo ldquoCom esse gecircnero de ornamento pode-se suscitar indignaccedilatildeo ou misericoacuterdia quando todas as consequecircncias reunidas se exprimem brevemente num discurso perspiacutecuordquo Faz-se necessaacuterio atentar para um detalhe apenas colocando-o diante dos nossos olhos um termo que aparece ao iniacutecio e ao fim das consideraccedilotildees sobre a descriptio termo latino de ekprasis eacute o adjetivo perspicuus a um em vernaacuteculo com sentido de claro liacutempido evidente manifesto

Na diegese da narrativa a ekphrasis instaura uma pausa das accedilotildees para a contemplaccedilatildeo de uma figura Cessam os movimentos das accedilotildees para o repouso do olhar que mira as formas as pedras os metais as cores as dimensotildees os gestos as linhas os contornos etc que aparentemente instauram outra natureza discursiva no entanto o aparente corte do fluxo narrativo desfaz-se ao notar-se a conexatildeo entre as partes Isto eacute a descriccedilatildeo estaacute em funccedilatildeo da narraccedilatildeo funcionando-lhe como artifiacutecio que compotildee caracteres e efetuam paixotildees

11 A traduccedilatildeo inglesa da Loeb Classical Library ldquoVivid Description is the name for the figure which contains a clear lucid and impressive exposition of the consequences of an actrdquo (op cit p 357)

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Muito haveria ainda para ser dito acerca da ekfrasis e do seu efeito principal de enargeia sobretudo acerca de seu aspecto retoacuterico mais imediato a persuasatildeo decorrente da amplificaccedilatildeo que produz mas para o que se pretende aqui jaacute eacute o suficiente Para mais sugerimos nas Descriccedilotildees de Filoacutestrato o artigo ldquoCategorias epidiacuteticas da ekphrasisrdquo citado o capiacutetulo da Arte Retoacuterica de Hermoacutegenes sobre as ldquoDescriccedilotildeesrdquo e destaco a ceacutelebre obra de Antoine Du Verdier intitulada La prosopographie ou description des personnes insignes enrichie de plusieurs effigies e reduite en quatre livres publicada em 1583

Passemos agora agrave leitura da cena de Clarimundo que pretendemos analisar Nosso fim eacute observar como a narrativa de Barros vale-se da ldquopausardquo das accedilotildees resultante da descriccedilatildeo de um monumento no qual se datildeo eventos miraculosos dentro da poeacutetica das narrativas de cavaleiros O episoacutedio da ldquoFloresta Encantadardquo produz-se pelo artifiacutecio da ekphrasis ou descriptio colocando diante dos olhos do leitor um minucioso quadro que se constitui tanto do cenaacuterio como de figuras centrais como a cabeccedila esculpida de ouro que fala com Clarimundo

Episoacutedio da Floresta Encantada

() e chegando ao mais baixo e escuro lugar daquele vale viu um corucheacuteu que seria da altura de trinta braccedilas coberto de pedra negra e leonado com extremos de pardo e sustinha-se sobre quatro colunas de metal de quinze braccedilas e da grossura necessaacuteria para tamanho peso as quais era lavradas ao buril de histoacuterias antigas e debaixo desse corucheacuteu estava uma sepultura agrave maneira de essa que tinha cinquenta degraus de pedra negra e nos cantos da quadra estavam estas quatro alimaacuterias feitas de metal que a sustinham sobre si um leatildeo um tigre um touro e um grifo feitos tatildeo artificiosamente e com tal espiacuterito e agudeza nos olhos e em todas as outras feiccedilotildees que enganavam a vista para os temer e natildeo para folgar de os olhar E cada alimaacuteria destas tinha entre as matildeos um ciacuterio negro que ardia sem se consumir tatildeo altos que chegavam agrave maior altura daquela essa Nos outros cantos da quadra que o derradeiro degrau fazia estava em cada um uma imagem de gigante armado com todas as suas armas somente a cabeccedila descoberta porque no rosto mostrava maior ferocidade que nas armas que lho podiam cobrir e tinham suas bisarmas nas matildeos para defender a subida No estrado de todo acima estava uma imagem de mulher feita de prata assentada em uma cadeira real e na cabeccedila tinha uma coroa de ouro a modo de imperatriz mostrando grande acatamento e nas matildeos um cofre de barro que tinha os fechos de ouro e na cinta estava a chave dele (BARROS 1953 vol II p 202-203)

Os elementos da descriccedilatildeo evidenciam-se na pintura de formas objetos alturas volumes ornamentos cores pedras arquitetura etc Elementos esses que compotildee o quadro no qual se cristaliza a narrativa e se emoldura a accedilatildeo de que participa Clarimundo e seu interlocutor miraculoso essa descriccedilatildeo introduz uma das cenas mais marcantes de tantas que o Clarimundo conteacutem depois de enfrentar as estaacutetuas de pedra guardiatildes de um edifiacutecio tumular (essa) que por maravilha se tornaram animadas e tentam-no impedir a entrada no mausoleacuteu Clarimundo toma a chave presente da cinta da estaacutetua de prata e

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abre certa arca de barro ali depositada Nela encontra-se a cabeccedila de um rei feita de ouro ldquocom uma coroa de pedraria de grande preccedilordquo Para espanto e maravilha como o proacuteprio narrador ressalta a cabeccedila comeccedila a falar e o seu discurso justifica toda a amplificaccedilatildeo que o texto compotildee em torno de si A narrativa na fala da cabeccedila suspende seu curso e daacute ao rei a primeira voz em discurso direto apresentando os lamentos de um monarca de vida atormentada pelas injusticcedilas feitas no exerciacutecio do poder

Todas as noites tanto que me recolhia em minha cacircmara dos negoacutecios do dia vinha alma de meu pai que era passado deste mundo e com umas vergas de ferro me accediloutava tatildeo cruelmente que me parecia natildeo poder chegar agrave manhatilde segundo me deixava atormentado poreacutem tanto que se partia de mim ficava livre daquela dor (BARROS 1953 vol II p 206)

O filho (cuja cabeccedila de ouro conversava com Clarimundo) recebia as visitas noturnas do pai rei jaacute falecido e de quem recebera o trono e deste uacuteltimo sofria tormentos porque herdara natildeo apenas as riquezas do reino mas vieram tambeacutem com elas as injusticcedilas desmandos assassinatos e usurpaccedilotildees O descanso do pai se daria com os fracassos do filho com a perda da heranccedila maldita de um reinado que se fizera tiracircnico Na diegese da narrativa Clarimundo estava predestinado a encontrar aquela sepultura e ouvir da cabeccedila de ouro os vaticiacutenios sobre as gloacuterias da sua prole de digniacutessimos reis Aquela cabeccedila encantada a partir do encontro com Clarimundo dispotildee-se agrave conversaccedilatildeo com cavaleiros que lhe sejam merecedores em bondade das armas para os quais revelaraacute as coisas futuras A fala da personagem miraculosa a escultura falante expotildee na formulaccedilatildeo de seu discurso o enaltecimento da linhagem de Clarimundo amplificando os merecimentos da descendecircncia do cavaleiro huacutengaro e por decorrecircncia da Casa Real portuguesa Mais o reforccedilo dos conselhos de pareneacutetica reacutegia centrais na narrativa datildeo-se nos lamentos acerca do destino dos monarcas viciosos o supliacutecio post mortem do agente e o tormento em vida do herdeiro penalizado pela derrota fatal A ekphrasis do tuacutemulo da Floresta encantada apoacutes a passagem de Clarimundo converte-se numa ldquoArca da sabedoriardquo e potildee agrave frente dos olhos a grandeza de um monumentum (no sentido latino de ldquoaquilo que se deve lembrarrdquo) que enaltece os saberes necessaacuterio dirigido aos priacutencipes reis e fidalgos em geral ligados ao comando do reino o destino daqueles que praticam injusticcedila e tirania na conduccedilatildeo da coisa puacuteblica Como se realiza de modo recorrente na narrativa de Joatildeo de Barros as cenas maravilhosas de aventuras e batalhas satildeo sucedidas por aconselhamentos e demonstraccedilotildees de saberes eacuteticos concernentes agrave excelecircncia do poder Nesse sentido a ficccedilatildeo (no sentido de fictio de imagem e figura) do Clarimundo corrobora ou melhor alinha-se agrave ceacutelebre maacutexima horaciana preconizada na Carta aos Pisotildees a chamada Arte poeacutetica de Horaacutecio que ao deleite se siga o ensinamento e no caso ensinamento poliacutetico de extrema relevacircncia numa ordem monaacuterquica de poder

O ensinamento proposto evidencia-se nas sentenccedilas da narrativa nessa passagem entrelaccedila-se a vida e a morte o terreno e o aleacutem ou melhor a praacutetica terrena e o castigo vindouro e como lembra Isabel de Almeida ldquoa responsabilidade de pensamento e actos

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reacutegios em foco no exemplordquo Seguindo o raciociacutenio de Almeida e pensando no caso especiacutefico dessa passagem o ensinamento preconizado diz respeito agrave distinccedilatildeo entre governo e tirania entre a conquista insana de comarcotildees e a guerra justa aquela que se embate com o inimigo infiel sobretudo o turco

Ademais no que diz respeito agrave construccedilatildeo retoacuterica da cena torna-se bastante eloquente e decoroso atribuir a uma aacuteurea cabeccedila de imperador todo o discurso que ouvimos e mais numa anaacutelise do episoacutedio em relaccedilatildeo agrave totalidade da narrativa evidenciam-se as provaacuteveis fontes de invenccedilatildeo da representaccedilatildeo Devemos lembrar que no canto VI Eneias encontra-se em Cumes e pede agrave Sibila um uacuteltimo encontro com seu falecido pai Anquises Para tanto Eneias desceria ao mundo dos mortos encontraacute-lo-ia e ouviria dele tal como vemos na cena do Clarimundo os vaticiacutenios sobre sua elevada ascendecircncia

Cessa Anquises a Eneias e a SibilaTraz ao mais basto da ruidosa turbaUm combro toma donde a extensa filaDivise dos que vecircm e a todos possaOs traccedilos discernir Entatildeo prossegueldquoEia a gloacuteria que os Daacuterdanos esperaDo iacutetalo tronco os descendentes nossosQue a fama ilustraratildeo dos seus maioresHei de explicar-te e aprenderaacutes teus fadosNotas proacuteximo agrave luz por sorte um jovemSe arrima em hasta pura agraves auras mistoLatino sangue surgiraacute primeiroO teu postremo Siacutelvio nome albanoQue a ti longevo pariraacute nas selvasTarde Laviacutenia rei de reis estiacutepitePor quem seremos de Alba inda senhores (VIRGILIO 2008 versos 771-786)

A longa jornada de Eneias pelo mundo dos mortos estaacute para a descriccedilatildeo e as aventuras de Clarimundo ao penetrar na sepultura encantada seguindo por uma escada guardada por grandes estaacutetuas de pedra que a defendiam dos intrusos Do mesmo modo ouvimos o vaticiacutenio e os ensinamentos sobre as virtudes de rei da boca de figuras autorizadas para tais dizeres pelo caraacuteter que apresentam na narrativa um rei do passado representado numa cabeccedila de ouro que maravilhosamente fala como um monumento loquaz que ldquofaz lembrarrdquo o infortuacutenio de um reino malfadado pela injusticcedila e pelos viacutecios No entanto em meio a tantas penas e desconcertos a cabeccedila exorta ao futuro imperador de Greacutecia as virtudes necessaacuterias agrave cabeccedila do reino - o rei

Outra fonte verossiacutemil de invenccedilatildeo encontra-se no Orlando Furioso de Ariosto No canto III Bradamante encontra-se numa capela na qual lhe aparece uma figura ldquovem descalccedila traz soltas vestimentas E grenhas e por nome a cumprimentardquo Bradamante eacute guiada a uma entrada uma gruta

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Santa e antiga eacute esta gruta e quem a fezConstruir foi Merlim o saacutebio magoQue aqui (teraacutes ouvido isso talvez)Caiu no engano da Dama do LagoSeu corpo haacute muito em poacute jaacute se desfezE jaz neste sepulcro onde ele pagoDe dar ouvidos agravequela mulherVivo deitou-se e morto estaacute a jazer (ARIOSTO 2002 p 94)

A imitaccedilatildeo parece verossiacutemil pelos procedimentos de composiccedilatildeo estando as cinzas de Merlim para a cabeccedila de ouro do imperador ambos finados por causa de seus enganos e no mundo dos mortos expiam sua condiccedilatildeo pela profecia e pelo ensinamento Vejamos um pouco mais do canto III do Orlando Furioso de Ariosto as profecias de Merlim sobre a ascendecircncia de Bradamante e Ruggiero

Tatildeo logo Bradamante dos umbraisSe aproxima da fuacutenebre capelaCom voz sonora dos restos mortaisO espiacuterito vivente diz a ela- Que a Fortuna te ajude sempre maisOacute casta e nobiliacutessima donzelaCujo seio traraacute o germe fecundoDa gente a que honraratildeo Itaacutelia e o mundo (ARIOSTO 2002 p 96)

A pena de Ariosto compotildee uma genealogia elevada para a Casa DrsquoEste a quem se dedica o Orlando elogiando-a pela elevaccedilatildeo dos seus primeiros pais e descrevendo-lhe os ilustres filhos e seus feitos A imitaccedilatildeo de Joatildeo de Barros compartilha dos mesmos procedimentos de elogio pela elevaccedilatildeo da genealogia no entanto daacute soluccedilotildees diferentes e de certo modo eficientes no que diz respeito ao deleite do leitor isto eacute a cena da ldquoFloresta Encantadardquo como ocorre em vaacuterios outros episoacutedios do Clarimundo satildeo prenuacutencios dos vaticiacutenios da Torre de Sintra episoacutedio central na narrativa de Barros12 Com isso constitui-se uma unidade e uma evidenciaccedilatildeo do momento no qual se confirmam os merecimentos de Clarimundo e pela proacutepria disposiccedilatildeo narrativa anunciam e preparam as profecias de Fanimor

12 O episoacutedio da torre de Sintra eacute a cena mais lembrada do Clarimundo na sua remissatildeo criacutetica breve apresentada em geral nos manuais de histoacuteria da literatura portuguesa Esse episoacutedio apresenta Clarimundo em terras portuguesas e na companhia de Fanimor um mago que protege o priacutencipe em toda a narrativa e que no alto da torre de Sintra vaticina em oitavas rimas toda a descendecircncia heroica do priacutencipe Clarimundo Na ediccedilatildeo de Marques Braga estaacute no capiacutetulo IV do livro III intitulado ldquoComo partidos os moradores de Sintra quisera Clarimundo ir ao castelo de Torres Vedras mas foi desviado por Fanimor E das grandes profecias que profetizou acerca das coisas de Portugalrdquo

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A leitura do discurso transcrito atribuiacutedo ao imperador condenado remete-nos a uma provaacutevel fonte da filosofia moral cristatilde preconizada por Joatildeo de Barros Trata-se do capiacutetulo XXIV do quinto livro da Cidade de Deus de Santo Agostinho no qual se apresentam as virtudes que garantem a felicidade dos imperadores cristatildeos

Nem noacutes chamamos felizes a alguns imperadores cristatildeos laacute porque reinaram por muito tempo e legaram apoacutes uma plaacutecida morte o impeacuterio aos filhos ou domaram os inimigos da Repuacuteblica ou conseguiram prevenir e reprimir cidadatildeos que contra si se rebelaram Estas e outras daacutedivas ou consolaccedilotildees desta vida atribulada tambeacutem certos adoradores dos democircnios mereceram recebecirc-las sem pertencerem como aqueles pertencem ao reino de Deus ndash e Deus assim o decidiu na sua misericoacuterdia para que os que nrsquoEle creem natildeo as desejassem como se elas fossem o Bem Supremo (AGOSTINHO 2006 p 541)

A doutrina moral desta passagem eacute anaacuteloga agrave representaccedilatildeo do discurso da cabeccedila de ouro indicando o inferno e as tormentas eternas como fim daqueles que ao contraacuterio do que vimos desejam as conquistas mundanas em si mesmas movidos pela ambiccedilatildeo viciosa Para Agostinho o imperador cristatildeo feliz governa com justiccedila natildeo se orgulha com elogios e se lembra de que eacute homem submete seu poder agrave majestade de Deus a fim de dilatar ao maacuteximo seu culto teme a Deus ama-o e teme-o satildeo lentos a punir e prontos a perdoar exercem a vinganccedila pela obrigaccedilatildeo de protegerem a repuacuteblica e natildeo para cevarem os seus oacutedios contra os inimigos concedem o perdatildeo na esperanccedila da emenda compensam as medidas severas com a brandura da misericoacuterdia e a largueza dos benefiacutecios preferem dominar em si as paixotildees a quaisquer povos e tudo isso em amor agrave felicidade eterna e natildeo agrave gloacuteria terrena A construccedilatildeo do caraacuteter heroico de Clarimundo daacute-se pela sucessatildeo de suas accedilotildees nas diversas circunstacircncias enfrentadas o que se evidencia em episoacutedios como a aventura da ldquoFloresta Encantadardquo o episoacutedio da ldquoIlha Perfeitardquo a aventura nos domiacutenios da maga Arpinda a fidelidade ao amor de Clarinda Assim o caraacuteter da personagem Clarimundo confirma em palavras e feitos os prenuacutencios do mago Fanimor e endossam modelos reacutegios preconizados em obras autorizadas sobre a figura do rei e do priacutencipe excelentes

Voltando ao discurso da estaacutetua conveacutem observar alguns elementos de sua constituiccedilatildeo natildeo apenas por seus argumentos de filosofia moral mas tambeacutem pelos artifiacutecios elocutivos utilizados Precede agrave revelaccedilatildeo da estaacutetua falante um trecho entre parecircnteses que enaltece ao leitor em forma de digressatildeo a ldquomaravilhardquo daquele momento ldquooh cousa maravilhosa de crer e espantosa para cometer se outras de tanta admiraccedilatildeo natildeo tiveacuteramos vistordquo O proecircmio do discurso seguinte utiliza-se de toacutepicas de captatio benevolentiae nesse caso com fins agrave piedade jaacute que se procede por construccedilotildees argumentativas antiteacuteticas que num primeiro membro revela o poder a gloacuteria a sabedoria os domiacutenios sobre os ceacuteus e as terras para logo em seguida apoacutes uma digressatildeo acerca da fraqueza de tudo que eacute humano e terreno revelarem-se os termos antagocircnicos ao poder agrave gloacuteria e agrave sabedoria quais sejam a tormenta

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o fracasso e a morte O cerne de toda a argumentaccedilatildeo encontra-se na descriccedilatildeo de um sonho no qual se revela a causa da perdiccedilatildeo dos reis a injusticcedila e a tirania Viacutecios estes que condenam agraves tormentas eternas no inferno Todo o pathos desta cena sobretudo na descriccedilatildeo do sonho serve como recurso retoacuterico de evidenciaccedilatildeo da seccedilatildeo posterior do episoacutedio que traz o elogio da luta contra os turcos um dos pontos centrais deste capiacutetulo e do Clarimundo

E no te[m]poacute q[ue] a nobre cavalaria de Greacutecia desfalleccediler q[ue] sera quatildedo se nam achar neste impeacuterio que[m] suba o primeiro degrao desta minha sepoltura entam sera por seus pecados tomado e posuydo dos Turcos Entrando per elle como os baacuterbaros entraratilde na feroz Espanha q[ua]ndo dom Rodrygo o derradeyro rey dos Godos a perdeo E assi tatilde bem como os reys Portugueses q[ue] de ty am de proceder lanccedilaram [de] suas terras a esta danada seyta e entraratilde nas partes Dafrica e Asia regando od catildepos cotilde o sangue desta barbara Ge[n]te (Prymera parte da crocircnica livro II fol XCIII)

Eacute interessante notar a proeminecircncia da guerra contra os mouros na gloacuteria futura da profecia e mais do que isso notar o artifiacutecio retoacuterico de associaccedilatildeo por equivalecircncia das investidas dos Turcos e as investidas baacuterbaras registradas nas crocircnicas ibeacutericas desde o seacuteculo XIII Com isso a narrativa fabulosa apresenta-se como crocircnica como histoacuteria na qual realiza-se a propaganda contra os inimigos da feacute Aleacutem disso haacute um artifiacutecio retoacuterico no argumento que lhe confere paradoxalmente o sentido de elogio na fala da cabeccedila de ouro as profecias acerca dos reis portugueses destacam-lhes as vitoacuterias futuras sobre os infieacuteis mencionados como a ldquobaacuterbara genterdquo a ldquodanada seitardquo a ldquomaacute geraccedilatildeordquo cujo sucesso proveacutem da decadecircncia da cavalaria e dos seus valores aos pecados e erros do Ocidente Nesse sentido sugere-se que a accedilatildeo portuguesa seraacute o antiacutedoto contra a decadecircncia da luta contra os infieacuteis Com isso as conquistas portuguesas recebem jaacute no Clarimundo a justificativa que as valorizaram tais como a cristianizaccedilatildeo da Aacutefrica e da Aacutesia e o aniquilamento dos inimigos da feacute ldquoregando os campos com o seu sanguerdquo

Ademais tanto no que diz respeito agrave ordenaccedilatildeo dos capiacutetulos como na disposiccedilatildeo das accedilotildees do nascimento de Clarimundo e sua coroaccedilatildeo como imperador de Constantinopla o episoacutedio da ldquoFloresta Encantadardquo ocorre num momento central da narrativa ou seja Clarimundo eacute reconhecido como priacutencipe herdeiro do trono da Constantinopla manteacutem-se casto e fiel agrave Clarinda que tambeacutem lhe retribui o amor jaacute conquistou a Ilha Perfeita na qual demonstrou por feitos maravilhosos todos os seus merecimentos como cavaleiro e priacutencipe Assim a cena da ldquoFloresta Encantadardquo a descriccedilatildeo do lugar e dos seres miraculosos que nele estatildeo envolvidos essa descriccedilatildeo coloca diante dos olhos do leitor natildeo apenas as imagens que conferem maravilhamento e deleite mas tambeacutem doutrinas poliacuteticas e religiosas quinhentistas que se pretende preconizar aos leitores e sobretudo agravequele leitor primordial da narrativa de Joatildeo de Barros o rei e seus iacutentimos

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Referecircncias

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Recebido em 12052017

Aceito em 25092017

Flaacutevio Antocircnio Fernandes Reis

Mestre e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de Satildeo Paulo Docente do Departamento de Estudos Linguiacutesticos e Literaacuterios e do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Memoacuteria Sociedade e Linguagem (CAPES nota 5) ambos da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) flavuspgmailcom

Entrevista

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eISSN 22376844polifonia

Literatura e Ensino Entrevista com Joseacute Augusto Cardoso Bernardes

Por Marinete Luzia Francisca de Souza

JOSEacute AUGUSTO CARDOSO BERNARDES (1958) eacute Professor Catedraacutetico na Faculdade de Letras de Coimbra e membro do Centro de Literatura Portuguesa Foi codiretor de Biblos Enciclopeacutedia Verbo das Literaturas de Liacutengua Portuguesa (1995-2005) Eacute Diretor da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (desde 2011) e consultor para o Programa Liacutengua Portuguesa da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian (desde 2013) Foi Membro do Conselho Nacional de Educaccedilatildeo entre 2011 e 2016

De entre as obras que publicou destacam-se O Bucolismo Portuguecircs (1988) Saacutetira e Lirismo em Gil Vicente (1996) Histoacuteria Criacutetica da Literatura

Portuguesa Humanismo e Renascimento (1999)1 Revisotildees de Gil Vicente (2003) A Literatura no Ensino Secundaacuterio (2004) Miguel Torga e a melancolia de Portugal (2006) Gil Vicente (2008) A Literatura e o Ensino de Portuguecircs (2013)2 A Biblioteca da Universidade Permanecircncia e metamorfoses (2015) Camotildees nos prelos de Portugal e da Europa 1563-2000 (2015)3

Para aleacutem de ter publicado estudos sobre Gil Vicente e Luiacutes de Camotildees como foi visto vem se dedicando aos problemas da investigaccedilatildeo e do ensino das Humanidades tema dessa entrevista

Entrevista

Polifonia ndash Considerando as investigaccedilotildees que vem sendo realizadas sobre o ensino de literatura nos niacuteveis Fundamental e Meacutedio (Secundaacuterio) como analisaria a evoluccedilatildeo dos estudos nesta aacuterea

Bernardes ndash Ao longo de vaacuterias deacutecadas nas universidades portuguesas os estudos so-bre o ensino da literatura foram considerados como aacuterea marginal

1 Com Direccedilatildeo de Carlos Reis2 Em colaboraccedilatildeo com Rui Afonso Mateus3 Em colaboraccedilatildeo com Ana Migueis e Carla Ferreira

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O desprezo sobranceiro que recaiacutea sobre domiacutenio do conhecimento tem duas explicaccedilotildees principais a desconfianccedila suscitada pelas ciecircncias da educaccedilatildeo em geral que alguns entatildeo consideravam desprovidas de suficiente base epistemoloacutegica e a proclamaccedilatildeo de primazia que provinha das aacutereas de investigaccedilatildeo mais estabelecidas e convencionais Basta lembrarmos que os estudos literaacuterios se mostravam abertos a colaboraccedilotildees interdisciplinares com a linguiacutestica (concebida nos seus diferentes ramos) com a esteacutetica ou com a histoacuteria mas enjeitavam ocupar-se da adequaccedilatildeo do seu saber agraves diferentes realidades escolares

Eu proacuteprio testemunhei muitos sinais dessa desconfianccedila Nos anos 80 ou 90 do seacuteculo passado na minha Faculdade de Letras (Universidade de Coimbra) natildeo era faacutecil incluir um pequeno moacutedulo que fosse destinado a problematizar a forma como se poderia ensinar Camotildees ou Gil Vicente O fundamento para esta exclusatildeo era o de que o conhecimento adquirido pela via da pesquisa se bastava a si proacuteprio

As tarefas de adequaccedilatildeo eram reconhecidas mas eram tidas como ldquofaacuteceisrdquo e competiam estritamente aos professores dos diferentes niacuteveis Prevalecia a ideia de que saber em causa carecia apenas de regulaccedilatildeo cientiacutefica (assegurada pelas universidades) A sua transmissatildeo deveria fazer-se de maneira uniforme exclusivamente sustentada pela preparaccedilatildeo e motivaccedilatildeo de professores e alunos Era ainda suposto que uns e outros reagissem da mesma forma agrave transmissatildeo dos conhecimentos independentemente das suas circunstacircncias socioculturais

Pouco a pouco estes pressupostos foram sendo objeto de questionaccedilatildeo Tal sucedia por via teoacuterica desde logo

Mas foi sobretudo pelo confronto com a praacutetica que se foi descobrindo que o cenaacuterio escolar mudara muito A democratizaccedilatildeo do acesso agrave Escola por parte das nossas crianccedilas e adolescentes (que em Portugal se situa atualmente nos 18 anos ou no 12ordm ano) contribuiu para que as turmas se tornassem comunidades cada vez mais heterogeacuteneas Ensinar qualquer mateacuteria tornou-se assim mais difiacutecil envolvendo requisitos como dinamismo flexibilidade adaptaccedilatildeo de meacutetodos reconversatildeo de objetivos etc

Polifonia ndash O que pensa sobre o ensino de literaturas dos Paiacuteses de Liacutengua Portuguesa em detrimento das literaturas ditas nacionais

Bernardes ndash O ensino da literatura nacional teve e continua a ter um efeito identitaacuterio muito forte Ler os mesmos livros num determinado espaccedilo e ao longo de sucessivas geraccedilotildees constroacutei memoacuteria coletiva e reforccedila viacutenculos Natildeo podemos esquecer que foi esse o principal fundamento para a escolarizaccedilatildeo da literatura que na Europa teve lugar a partir das trecircs uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Hoje poreacutem a ideia de comunidade alargou-se deixando de estar limitada ao acircmbito poliacutetico Um adolescente portuguecircs brasileiro ou angolano deve ser educado com bases de cidadania poliacutetica Isso natildeo impede poreacutem o alargamento a outros contextos envolvendo o que poderiacuteamos chamar a Cidadania linguiacutestica e cultural

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Nesse sentido aplaudindo uma proposta concreta formulada haacute dois anos em Coimbra pelo Professor Viacutetor Aguiar e Silva sou favoraacutevel a compromissos que possibilitem a entrada de autores brasileiros e africanos no cacircnone escolar portuguecircs Essa entrada pode fazer-se de muitas maneiras Natildeo me parece necessaacuterio desde logo que haja uma substituiccedilatildeo de uns autores por outros

Defendo nomeadamente que o conhecimento dos textos literaacuterios na Escola deve ser de natureza antoloacutegica e natildeo tatildeo intensiva como eacute hoje Em Portugal com 14 anos um aluno pode andar dois meses a falar do Auto da Barca do inferno e outros dois de Os Lusiacuteadas Acho que se trata de um tempo excessivo e potencialmente saturante

Com uma visatildeo mais panoracircmica destinada a estimular a curiosidade do aluno haveria lugar para mais autores e mais textos uns e outros tomados como estiacutemulo agrave leitura e natildeo tanto como objeto de estudo minucioso e totalizante

Polifonia ndash Se por um lado as humanidades vecircm sendo colocadas de lado por outro a escrita e leitura satildeo fatores de inserccedilatildeo ou discriminaccedilatildeo social O que diria sobre esse tema

Bernardes ndash Como qualquer outra atividade humana a leitura e a escrita podem servir a propoacutesitos discriminatoacuterios Mas isso natildeo significa que em si mesmas essas praacuteticas devam ser vistas com suspeiccedilatildeo ou relutacircncia Pelo contraacuterio ler e escrever em patamares elevados de sensibilidade e consciecircncia criacutetica constituem instrumentos insubstituiacuteveis de promoccedilatildeo de qualquer ser humano Haacute que lutar por que todos tenham acesso a esses instrumentos O caminho soacute pode ser o da democratizaccedilatildeo metoacutedica exigente e esperanccedilosa Haacute ainda muitos seres humanos sem aacutegua potaacutevel eletricidade ou alimentaccedilatildeo e isso eacute inaceitaacutevel Como eacute inaceitaacutevel que haja seres humanos incapazes de tirar proveito das grandes realizaccedilotildees teacutecnicas e artiacutesticas da espeacutecie A leitura e a escrita situam-se neste uacuteltimo acircmbito

Verifico que ciclicamente existe a tentaccedilatildeo de eliminar dos Programas aquilo que eacute difiacutecil os textos literaacuterios e filosoacuteficos por exemplo Assim se teriam em devida consideraccedilatildeo as especiais dificuldades que alguns alunos socialmente desfavorecidos costumam sentir quando na Escola lidam com esses textos pela primeira vez

Ora em meu entendimento o raciociacutenio deve ser justamente o oposto Se essas crianccedilas natildeo tecircm outra possibilidade de conhecer esses textos e de deles tirar o devido partido tem que ser a Escola a cumprir esse papel compensatoacuterio Isso coloca nos professores uma responsabilidade acrescida que comeccedila na motivaccedilatildeo e termina na avaliaccedilatildeo Mas natildeo existe outra maneira de cumprir esse imperativo social

Polifonia ndash Haacute no mundo de Liacutengua Portuguesa uma dicotomia entre as literaturas escritas canocircnicas e as literaturas orais indiacutegenas (casos dos paiacuteses africanos do Brasil e Timor Leste) em sua maioria intercultural O que proporia para essa divisatildeo

Bernardes ndash Tambeacutem nesse plano sou a favor de compromissos e equiliacutebrios ditados pela sen-satez e pelas condiccedilotildees especiacuteficas que se verificam em cada situaccedilatildeo

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Natildeo faz nenhum sentido separar radicalmente os dois tipos de produccedilatildeo literaacuteria numa loacutegica de disputa Eacute nocivo ignorar as literaturas ditas indiacutegenas sob qualquer pretexto E eacute igualmente negativo privar seja quem for do acesso ao contacto com as obras mais lidas e conhecidas do cacircnone (ocidental e oriental) Mais do que dicotomia tem que haver espaccedilo e estiacutemulo para conhecer ambas Ambas ajudam a crescer em espiacuterito de abertura e toleracircncia

Polifonia ndash Qual sua opiniatildeo sobre as adaptaccedilotildees de textos claacutessicos para a sala de aula

Bernardes ndash O ideal seria que as adaptaccedilotildees pudessem servir como introduccedilatildeo ao texto original Muitas vezes se diz que a adaptaccedilatildeo eacute faacutecil e o original eacute difiacutecil Julgo no entanto que existem maneiras mais ou menos adequadas de apresentar esses mesmos textos ditos difiacuteceis Tudo estaacute nos objetivos que pretendemos alcanccedilar Olhando para a forma como os programas tratam certos autores no ensino baacutesico e secundaacuterio (reporto-me mais uma vez ao que sucede em Portugal) fico com a ideia de que seria possiacutevel uma aproximaccedilatildeo menos convencional e mais ajustada agraves necessidades dos alunos

Em minha opiniatildeo a necessidade maior eacute sempre a de formar o gosto dos alunos tornando-os leitores assiacuteduos curiosos e preparados O pior que se pode fazer com a literatura na Escola eacute criar a ideia de que os livros satildeo para serem lidos uma soacute vez e ateacute agrave exaustatildeo

Costumo dizer que a pior reaccedilatildeo que podemos ouvir de um aluno a propoacutesito de um determinado texto eacute a que se traduz pelas consabidas palavras ldquoJaacute deirdquo Um texto nunca estaacute verdadeiramente dado Ao longo das aulas o professor deve abrir alguns caminhos mas permitindo que o aluno fique com vontade de continuar a caminhar por trilhos novos e que em alguns casos satildeo soacute seus

Polifonia ndash Em alguns paiacuteses o acesso ao texto literaacuterio se daacute preferencialmente por meio do livro didaacutetico (que apresenta fragmentos de textos) ou dos textos recomendados pelo Exame Nacional (ENEM no caso do Brasil) ou pelos programas curriculares instituiacutedos pelo governo O que proporia para superar essa barreira na formaccedilatildeo de leitores

Bernardes ndash Natildeo conheccedilo suficientemente a realidade brasileira para me pronunciar sobre ela em concreto No que diz respeito agrave realidade portuguesa julgo que os manuais escolares tecircm melhorado bastante nos uacuteltimos anos Qualquer manual carece hoje de certificaccedilatildeo legal concedida por uma instituiccedilatildeo de ensino superior Esse requisito levou as editoras a ter mais cuidado na escolha das equipas que concebem os livros

De uma forma geral pode dizer-se que em Portugal os manuais escolares de Portuguecircs reuacutenem condiccedilotildees para funcionarem como estiacutemulo agrave leitura Satildeo bastante cuidados do ponto de vista graacutefico apoiam-se em investigaccedilatildeo consolidada tecircm em conta as expetativas e as criacuteticas de professores e alunos

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Ainda assim parece-me que existe bastante caminho para percorrer Dou um exemplo Natildeo me parece bem que os manuais possam conter obras integrais O Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente que se lecirc no 9ordm ano de escolaridade quando o aluno tem cerca de 14 anos ou o conto A Aboacutebada de Alexandre Herculano que faz parte do Programa do 11ordm ano figuram integralmente nos manuais Nem sempre surgem bem anotados e explicados o que eacute compreensiacutevel

Do meu ponto de vista seria preferiacutevel que o aluno fosse encorajado a aproximar-se de uma ediccedilatildeo didaacutetica publicada em volume separado a cargo de um especialista Quem estuda continuadamente um determinado autor sabe alertar-nos melhor para os significados escondidos dos textos Seria no entanto ldquoobrigatoacuteriordquo que o dito estudioso natildeo esquecesse nunca que os seus destinataacuterios concretos (os alunos e mesmo os professores) dispensam divagaccedilotildees complicadas em termos de discurso Necessitam sobretudo de explicaccedilotildees pacientes e claras Vejo nesta praacutetica uma outra vantagem para aleacutem de permitir um aproveitamento diferente dos textos em causa esta estrateacutegia permitiria que o aluno frequentasse a biblioteca ou pensasse em formar a sua proacutepria coleccedilatildeo de livros Por uacuteltimo lendo os textos em volumes separados o aluno dar-se-ia conta de que Gil Vicente ou Alexandre Herculano natildeo escreveram os textos diretamente para nenhum manual Assisto com muita apreensatildeo a uma desqualificaccedilatildeo do livro enquanto objeto no pressuposto erradiacutessimo de que se trata de um objeto anacroacutenico e sem futuro Posso entender que esta ideia circule com tracircnsito faacutecil em determinados meios Basta lembrarmo-nos da promoccedilatildeo publicitaacuteria que envolve os produtos digitais em oposiccedilatildeo ao livro Custa-me a aceitar que a Escola natildeo tenha em relaccedilatildeo a essa propaganda uma atitude mais distante e ponderada Tanto mais quanto se sabe que quando falamos de tecnologia digital falamos de instrumentos que eacute necessaacuterio usar com cautela sob todos os pontos de vista

Polifonia ndash O senhor considera que o ensino de obras de autores dos diversos paiacuteses de Liacutengua Portuguesa configura para aleacutem de um alargamento dos horizontes culturais do estudante a afirmaccedilatildeo de uma ldquocomunidade imaginadardquo no sentido que Benedict Anderson atribui agrave expressatildeo em torno da CPLP

Bernardes ndash Tal como referi na resposta agrave pergunta nordm 2 entendo que haveria conveniecircncia poliacutetica e fundamento cultural para a integraccedilatildeo nos programas de Portuguecircs de obras feitas e publicadas em diferentes paiacuteses Parece-me inclusivamente que o criteacuterio linguiacutestico e cultural natildeo eacute suficiente

Acho que em algum momento um aluno portuguecircs deveria ter notiacutecia da existecircncia de livros como a Divina Comeacutedia o Dom Quixote ou o Rei Lear Isso natildeo significa repito que passasse um mecircs a estudar cada um destes livros Mas ningueacutem deveria abandonar a escolaridade obrigatoacuteria sem ter a noccedilatildeo de que a literatura eacute uma atividade que define e transforma a espeacutecie humana muito para aleacutem da diversidade dos tempos e das liacutenguas

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Polifonia ndash Ainda sobre a literatura do poacutes-independecircncia como vecirc a literatura brasileira desse periacuteodo que foi ao mesmo tempo poacutes-independente e imperial (jaacute que o Brasil passou de colocircnia a ldquoBrasil Impeacuteriordquo conforme desejo Dom Pedro II) Como articular essa antiacutetese em sala de aula

Bernardes ndash Parece-me que seja a que niacutevel for a literatura natildeo deve ser separada das circunstacircncias histoacuterico-culturais em que nasce e eacute depois recebida O conhecimento dos contextos proporciona informaccedilatildeo preciosa Sem duacutevida que conhecemos melhor o Portugal do seacuteculo XIX atraveacutes da leitura de Eccedila e de Camilo Castelo Branco ou o Brasil da mesma eacutepoca atraveacutes dos livros de Machado de Assis O mesmo sucede com determinados lugares Alguns escritores tecircm o condatildeo de nos revelar regiotildees ou cidades que de outro modo natildeo conseguiriacuteamos compreender com tanta profundidade e sob tantos acircngulos Existe uma Lisboa de Eccedila de Queiroacutes outra de Fernando Pessoa e inda outra de Joseacute Saramago por exemplo Tal como existe um Rio de Janeiro de Machado que natildeo conheceriacuteamos tatildeo bem sem ter lido os seus contos e os seus romances

E no entanto sendo um defensor da valorizaccedilatildeo dos contextos no ensino da literatura natildeo me parece bem que se acentue demasiado esse viacutenculo As obras literaacuterias como a arte em geral conservam a marca da circunstacircncia em que inspiram e das referecircncias temporais e espaciais que incorporam Do mesmo modo eacute sabido que natildeo satildeo neutras sob o ponto de vista poliacutetico Ainda assim detecircm uma vasta margem de autonomia que conveacutem explorar nas aulas mais e melhor

Deixar a literatura respirar fazendo avultar aquilo que nela existe de livre em relaccedilatildeo agrave histoacuteria parece-me um desiderato cada vez mais necessaacuterio

Polifonia ndash Ao longo de sua estada na academia suas pesquisas tecircm se voltado dentre outras sobretudo para Gil Vicente Poderia expor o que pondera sobre a atualidade deste autor e seu ensino

Bernardes ndash Ensinar literatura eacute sempre um desafio grande Podemos muitas vezes ser tomados pelo pensamento de que estamos a insistir em mateacuterias que interessam cada vez a menos gente Essa sensaccedilatildeo pode ainda tornar-se mais viva quando se trata de autores que escreveram haacute muito tempo

Eacute o caso de Gil Vicente ou de Camotildees Quando se aproxima pela primeira vez de textos vicentinos por exemplo o aluno evidencia uma grande sensaccedilatildeo de estranheza Haacute palavras que jaacute natildeo ditas por ningueacutem nem sequer se encontram nos dicionaacuterios E isto apesar de o Portuguecircs ser uma liacutengua muito mais estaacutevel do que outras liacutenguas europeias

Mas tambeacutem existem barreiras importantes sob o ponto de vista dos valores Depois de ter destacado a importacircncia esteacutetica e histoacuterico-cultural de Gil Vicente natildeo eacute faacutecil explicar a um aluno de 14 anos que lecirc a Barca do Inferno que um judeu tenha ido para o inferno por motivos exclusivamente religiosos por exemplo Perante essa dificuldade muitos professores gostariam que essa e outras cenas natildeo existissem na peccedila

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Quando deparamos com uma situaccedilatildeo deste tipo natildeo temos outra forma seacuteria de lidar com o problema senatildeo tentar compreendecirc-lo agrave luz das circunstacircncias histoacutericas Eacute uacutetil lembrar aos alunos que a Humanidade natildeo pensou e agiu sempre da mesma forma Os procedimentos de alteridade devem ser explicados e encorajados Apreciar um autor natildeo significa necessariamente aprovar todos os aspetos da sua mensagem O papel da Escola deve ser mesmo o de ajudar a compreender e natildeo tanto a aplaudir ou a reprovar A Escola deve ensinar que concordar e discordar natildeo podem ser atos baacutesicos pulsionais e definitivos Trata-se de atos essenciais agrave vida ciacutevica mas que requerem sensibilidade e informaccedilatildeo segura A interpretaccedilatildeo de textos literaacuterios constitui um excelente treino para cultivar essa atitude

Poder escutar os autores de outras eacutepocas equivale a um privileacutegio enorme Significa de algum modo escutar a voz dos mortos E isso deve ocorrer em clima de toleracircncia e de consciecircncia relativamente ao pensamento e aos valores de quem nos fala a partir de outros tempos Tambeacutem sob esse ponto de vista o ensino da literatura pode e deve ser um exerciacutecio de atenccedilatildeo aberta e qualificada ao que o outro tem para nos dizer

Polifonia ndash Por gentileza faccedila suas consideraccedilotildees gerais sobre o tema

Bernardes ndash A Literatura globalmente considerada eacute um dos produtos mais nobres e identificadores da espeacutecie humana Nela convergem atributos tatildeo diferentes como a criatividade o domiacutenio da liacutengua oral e escrita o ordenamento da memoacuteria a capacidade de construir utopias e de criticar realidades

Enquanto discurso essencial e complexo a literatura convida a um entendimento especial que mobiliza a sensibilidade e o conhecimento Ensinar literatura eacute por isso e desde logo treinar essas duas componentes essenciais

Uma sociedade livre e democraacutetica tem tudo a ganhar com a presenccedila da literatura na Escola

A exclusatildeo ou a menorizaccedilatildeo dos conteuacutedos literaacuterios dos programas escolares conduziria a uma situaccedilatildeo de injusta desigualdade Nessa eventualidade o contacto com os livros de poesia ou de narrativa ficaria limitado aos jovens nascidos em ambiente familiar favorecido Soacute esses poderiam desfrutar do sortileacutegio de um poema Os outros aqueles muitos que natildeo ouvem falar de poesia em casa se natildeo tiverem com ela um bom encontro na Escola ficaratildeo privados de um encontro que pode e deve ser transformador

Ensinar literatura serve por isso os ideais de uma sociedade democraacutetica e livre

Do ponto de vista pessoal o contacto com os textos literaacuterios cumpre vaacuterios desiacutegnios importantes a educaccedilatildeo do gosto e para o gosto a maturaccedilatildeo do espiacuterito criacutetico que recorre a fundamentos a expressatildeo da sensibilidade atraveacutes do discurso oral e escrito

Haacute decerto bons motivos para que a literatura continue nos programas de Portuguecircs com os ajustamentos que os tempos novos justificam Eacute certo que muitas coisas se ensinam atraveacutes dela mas para aleacutem disso eu estou genuinamente convencido de que outras natildeo se conseguem ensinar sem ela

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Marinete Luzia Francisca de Souza

Docente do Curso de Graduaccedilatildeo em Letras ndash campus do Meacutedio Araguaia e do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Estudos de Linguagem ndash campus Cuiabaacute da Universidade Federal de Mato Grosso marineteluzia2gmailcom

eISSN 22376844polifonia

UFMT

PERIOacuteDICO CIENTIacuteFICO POLIFONIA

EDITAL DE CHAMADA DE ARTIGOS 2018

ESTUDOS LINGUIacuteSTICOS ndash VOL 25 N 37

ESTUDOS LITERAacuteRIOS ndash VOL 25 N 40

ISSN 22376844 versatildeo eletrocircnica

PERIOacuteDICO ARTICULADO AOPROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM

Universidade Federal de Mato GrossoInstituto de Linguagens

Pesquisadores doutores brasileiros e estrangeiros poderatildeo enviar seus trabalhos ineacuteditos artigos resenhas entrevistas voltados agraves aacutereas de estudos linguiacutesticos e literaacuterios para publicaccedilatildeo no perioacutedico cientiacutefico Polifonia em 2018 mediante avaliaccedilatildeo cega por pares e aprovaccedilatildeo No caso de trabalhos em coautoria sendo um dos autores doutor os demais poderatildeo ser mestres graduandos etc quando da submissatildeo

A partir desta chamada textos literaacuterios poemas e contos poderatildeo ser submetidos agrave avaliaccedilatildeo por especialistas das respectivas aacutereas com vistas agrave possiacutevel publicaccedilatildeo no perioacutedico

Objetivando atender a demanda de acessibilidade agrave produccedilatildeo do conhecimento o perioacutedico Polifonia estaacute sendo constituiacutedo tambeacutem com viacutedeos contendo os resumos dos artigos traduzidos em Liacutengua Brasileira de Sinais (LIBRAS) iniciativa que favorece a inclusatildeo da comunidade surda na produccedilatildeo circulaccedilatildeo e recepccedilatildeo dos textos veiculados e a consolidaccedilatildeo do multilinguismo do perioacutedico A traduccedilatildeo e a preparaccedilatildeo dos viacutedeos com resumos em LIBRAS estatildeo sob a responsabilidade da equipe editorial

No perioacutedico Polifonia tambeacutem satildeo publicados artigos produzidos em LIBRAS e documentados em viacutedeo devendo estes obrigatoriamente ser apresentados na forma escrita em Liacutengua Portuguesa e revisados por um profissional O artigo na modalidade

Polifonia - Chamada de Artigos

grafocecircntrica tem como justificativa a partilha dos saberes cientiacuteficos com a comunidade de pesquisadores e demais interessados que em sua maioria natildeo tem conhecimento da LIBRAS A preparaccedilatildeo dos viacutedeos deveraacute seguir as normas dispostas neste edital

ESTUDOS LINGUIacuteSTICOS ndash vol 25 n 37

DOSSIEcirc DIVERSIDADES EM LINGUIacuteSTICA

Chamada aberta para artigos na aacuterea de Linguiacutestica sem delimitaccedilatildeo teoacuterica ou aacuterea dentro deste campo de estudos A proposta eacute contemplar diversas publicaccedilotildees que abordem o objeto da Linguiacutestica ou seja as liacutenguaslinguagem em suas multifacetadas caracteriacutesticas Palavras-chave Linguiacutestica diversidade correntes teoacutericas

OrganizadoresFlaacutevia Girardo Botelho Borges (Universidade Federal de Mato Grosso)Zaacuteira Bonfante dos Santos (Universidade Federal do Espiacuterito Santo)

Prazo para encaminhamento 25 de janeiro de 2018Publicaccedilatildeo abril2018

ESTUDOS LITERAacuteRIOS ndash vol 25 n 40

DOSSIEcirc LITERATURA E INTERMEDIALIDADE

A letra eacute sempre uma instacircncia ambiacutegua a meio do caminho entre o descarnado som e o corpoacutereo traccedilo graacutefico Se tal ambivalecircncia nos escapa na maioria das interaccedilotildees por meio da liacutengua na poesia a cintilaccedilatildeo entre o focircnico e o visual ndash os principais dois canais da experiecircncia humana no mundo ndash ganha novas dimensotildees na medida em que o a poesia (e a literatura por extensatildeo) eacute a instacircncia por excelecircncia do riacutetmico e da imaginaccedilatildeo (aqui entendida na polissemia do termo) Do conceito de imagem poeacutetica agrave possibilidade de perceber a imagem como poesia multiplicam-se os regimes semioacuteticos e as dimensotildees fenomenoloacutegicas que podem confluir na imaginaccedilatildeo literaacuteria literatura e pintura literatura e cinema literatura e fotografia entre tantos outros diaacutelogos intermidiaacuteticos que tomem como ponto de inflexatildeo a visualidade artiacutestica no literaacuterio Nesse contexto interessam agrave presente chamada artigos que versem sobre a literatura sob perspectivas de intertextualidade intermedialidade remediatizaccedilatildeo iconicidade ekphrasis vanguardas e experimentalismos interartesPalavras-chave Literatura intermedialidade visualidade diaacutelogos intersemioacuteticos

OrganizadoresViniacutecius Carvalho Pereira (Universidade Federal de Mato Grosso)Joana Matos Frias (Universidade do Porto)

Prazo para encaminhamento 30 de marccedilo de 2018Publicaccedilatildeo dezembro2018

Artigos das aacutereas de estudos linguiacutesticos e literaacuterios que natildeo apresentem temaacuteticas relativas aos dossiecircs poderatildeo ser aceitos para publicaccedilatildeo na seccedilatildeo OUTROS LUGARES Poemas e contos aceitos seratildeo publicados na seccedilatildeo NEOFONIAS

Polifonia - Chamada de Artigos

Instruccedilotildees aos autores para publicaccedilatildeo de artigos no perioacutedico Polifonia

Os trabalhos deveratildeo ser submetidos por meio do Sistema de Editoraccedilatildeo Eletrocircnico de Revistas (SEER) do perioacutedico Polifonia Para a primeira submissatildeo eacute necessaacuterio fazer o cadastro no Sistema como autor por meio do link httpperiodicoscientificosufmtbrojsindexphppolifoniauserregister

ATENCcedilAtildeO Ao preencher o cadastro inserir obrigatoriamente um breve curriacuteculo no campo especiacutefico informando instituiccedilatildeo de origem cargos acadecircmicos se o artigo resulta de projeto de pesquisa se eacute financiado entre outras informaccedilotildees consideradas relevantes e que tenham relaccedilatildeo com o conteuacutedo do artigo

Apoacutes o cadastro o usuaacuterio estaraacute habilitado para submeter seu artigo acessando o link httpperiodicoscientificosufmtbrojsindexphppolifoniaauthorsubmit1

Duacutevidas polifoniaufmtbr ou atendimentoeditorasustentavelgmailcom

O conteuacutedo dos artigos eacute da inteira responsabilidade de seus autores

Formataccedilatildeo dos artigos e resenhas

Artigos e resenhas devem ser submetidos em formato doc em paacutegina tamanho A4 com tiacutetulo sem o nome do(s) autor(es) para garantir a avaliaccedilatildeo agraves cegas A identificaccedilatildeo do autor seraacute feita no momento da submissatildeo por meio do preenchimento do devido campo no Sistema (SEER)

Artigos e resenhas deveratildeo ser adequados agraves normas da ABNT e ao novo acordo ortograacutefico bem como agraves instruccedilotildees aos autores previstas neste edital antes da submissatildeo podendo ser desconsiderados se natildeo atenderem a essas condiccedilotildees

Dimensotildees o artigo deveraacute ter de 12 a 15 paacuteginas (incluindo as referecircncias) a resenha deveraacute ter de 03 a 05 paacuteginas Fonte Times New Roman tamanho 12 espaccedilo entre linhas 15

Tiacutetulo em portuguecircs inglecircs e espanhol fonte Times New Roman tamanho 16 alinhado agrave direita

Apoacutes o aceite do artigo ou da resenha na revisatildeo final colocar nome do(s) autor(es) com as iniciais maiuacutesculas dois espaccedilos abaixo do tiacutetulo Abaixo do(s) nome(s) colocar a(s) instituiccedilatildeo(otildees) agrave(s) qual(is) se vincula(m) por extenso

Resumo

A palavra ldquoresumordquo deveraacute ser colocada com a inicial maiuacutescula acima do conteuacutedo do resumo centralizada

Polifonia - Chamada de Artigos

Para a preparaccedilatildeo do resumo miacutenimo de 100 e maacuteximo de 250 palavras espaccedilo 10 fonte Times New Roman tamanho10 O resumo deveraacute ser conciso claro coeso e completo apresentando tema da pesquisa principais objetivos metodologia utilizada principais descobertas do estudo principais conclusotildees

Natildeo inserir nomes de autores e datas no resumo Natildeo colocar o artigo como sujeito personificado Ex ldquoeste artigo refleterdquo ldquoeste artigo desenvolverdquo Ao inveacutes usar 1ordf ou 3ordf pessoa Ex ldquoNeste artigo faremosrdquo

Palavras-chave

Expressatildeo escrita com inicial maiuacutescula apoacutes o resumo Deveratildeo ser escritas trecircs palavras-chave em letras minuacutesculas separadas por viacutergula e encerradas por ponto final

O resumo e as palavras-chave deveratildeo constar em portuguecircs inglecircs e espanhol e seguir as mesmas normas

Dar dois espaccedilos apoacutes as palavras-chave antes do tiacutetulo das seccedilotildees Dar um espaccedilo de 15 antes e depois de cada tiacutetulo das seccedilotildees e subseccedilotildees

ATENCcedilAtildeO as resenhas natildeo deveratildeo ter resumopalavras-chave

Tiacutetulos das seccedilotildees e subseccedilotildees

Numeradas fonte Times New Roman tamanho14 primeira letra maiuacutescula e demais minuacutesculas Caso o tiacutetulo seja longo com mais de uma linha colocar espaccedilo 10 entre essas linhas

Caso haja necessidade de destacar algum termo no texto e palavras estrangeiras fazecirc-lo apenas em itaacutelico Palavras expressotildees retiradas de textos teoacutericos e literaacuterios e usadas nas anaacutelises etc deveratildeo ser colocadas entre aspas

O artigo deveraacute ter introduccedilatildeo desenvolvimento (seccedilotildees e subseccedilotildees) consideraccedilotildees finais e referecircncias

Tabelas e quadros

O conteuacutedo deve ser colocado em fonte Times New Roman tamanho10 espaccedilo simples Legendas fonte Times New Roman tamanho10 espaccedilo simples imediatamente abaixo do elemento que referecircncia

Citaccedilotildees

Com mais de trecircs linhas deveratildeo ser recuadas em 4 cm da margem esquerda Times New Roman alinhamento justificado espaccedilo 10 fonte 10 sem itaacutelico sem aspas seguida da indicaccedilatildeo bibliograacutefica Ex (CHAUI 2002 p 57)

Polifonia - Chamada de Artigos

Citaccedilatildeo com ateacute trecircs linhas

Sem recuo no proacuteprio corpo do texto entre aspas seguida da indicaccedilatildeo bibliograacutefica (CHAUI 2002 p 57)

Citaccedilotildees em outras liacutenguas

1 De fragmentos teoacutericos o autor poderaacute fazer a traduccedilatildeo no proacuteprio corpo do texto seguida da referecircncia bibliograacutefica e da observaccedilatildeo ldquoTraduccedilatildeo nossardquo Ex (FESTINO 2008 p 12 Traduccedilatildeo nossa)

2 Poderaacute tambeacutem caso queira colocar o fragmento na liacutengua original em rodapeacute com a expressatildeo Cf o trecho original e inserir o texto entre aspas

3 De fragmentos literaacuterios o autor poderaacute fazer a traduccedilatildeo no proacuteprio corpo do texto seguida da referecircncia bibliograacutefica e da observaccedilatildeo ldquoTraduccedilatildeo nossardquo

Ex (CONRAD 1994 p 22-24 Traduccedilatildeo nossa) O autor obrigatoriamente deveraacute colocar o fragmento na liacutengua original em rodapeacute com a expressatildeo Cf o trecho original e inserir o texto entre aspas

Notas explicativas

Evitar notas de rodapeacute Se muito necessaacuterias colocaacute-las ao final da paacutegina Referecircncias bibliograacuteficas devem ser apresentadas no proacuteprio texto Ex (ANDRADE 1980 p 7)

Referecircncias

Usar soacute a palavra ldquoReferecircnciasrdquo (soacute a inicial maiuacutescula) Devem ser apresentadas nas referecircncias somente as obras que foram efetivamente citadas no texto Quando citados no corpo do texto os tiacutetulos das obras devem ser colocados em itaacutelico Cada referecircncia deve ser formatada em espaccedilo entre linhas 10 Colocar espaccedilo 10 entre uma referecircncia e outra

Para referecircncias de entrevistas consultar a ABNTNBR 10520 Informaccedilatildeo e documentaccedilatildeo ndash citaccedilotildees em documentos ndash apresentaccedilatildeo Rio de Janeiro 2002b

As Referecircncias devem ser dispostas em ordem alfabeacutetica ao final do texto seguindo a NBR 6023

Polifonia - Chamada de Artigos

Alguns casos de maior ocorrecircncia

LIVRO

GOMES LGFF Novela e sociedade no Brasil Niteroacutei EdUFF 1998

Quando necessaacuterio acrescentam-se elementos complementares agrave referecircncia para melhor identificar o documento

GOMES LGFF Novela e sociedade no Brasil Niteroacutei EdUFF 1998 (Coleccedilatildeo Antropologia e Poliacutetica 15) ISBN 85-228-0268-8

ARTIGO EM PERIOacuteDICO

ANDREacute RML LACERDA PO O catildeo e o homem no romance Los perros hambrientos de Ciro Alegria Polifonia Cuiabaacute n 20 p151-173 2009

CAPIacuteTULO DE LIVRO

SANTAELLA L A criacutetica das miacutedias na entrada do seacuteculo 21 In PRADO J L A (Org) Criacutetica das praacuteticas midiaacuteticas da sociedade de massa agraves ciberculturas Satildeo Paulo Hacker Editores 2002 p 44-56

TRABALHO APRESENTADO EM EVENTO

BRAYNER A R A MEDEIROS CB Incorporaccedilatildeo do tempo em SGDB orientado a objetos In SIMPOacuteSIO BRASILEIRO DE BANCO DE DADOS 9 1994 Satildeo Paulo Anais Satildeo Paulo USP 1994 p16-29

DISSERTACcedilAtildeO OU TESE

COX M IPJe est unmot drsquoordre escritas em torno de sujeito linguagem e educaccedilatildeo 1989 196f Tese (Doutorado em Educaccedilatildeo) ndash Universidade Estadual de Campinas Campinas SP 1989

DALATE S A escritura do silecircncio uma poeacutetica do olhar em Wlademir Dias Pino 1997 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras) ndash Faculdade de Ciecircncias e Letras Universidade Estadual de Satildeo Paulo Assis SP 1997

DOCUMENTO COM AUTORIA DE ENTIDADE

BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil) Relatoacuterio da Diretoria-Geral 1984 Rio de Janeiro 1985 40p

OBRAS CONSULTADAS ON LINE colocar informaccedilotildees sobre o endereccedilo eletrocircnico apresentado entre os sinais ltgt precedido da expressatildeo ldquoDisponiacutevel emrdquo e a data de acesso ao documento precedida da expressatildeo ldquoAcesso emrdquo opcionalmente acrescida dos dados referentes a hora minutos e segundos Exemplos

ALVES C Navio negreiro (1869) Virtual Books 2000 Disponiacutevel em lthttpvirtualbooksterracombrfreebookportNavio_Negreirohtmgt Acesso em 10 jan2002

Polifonia - Chamada de Artigos

Obs haacute necessidade de colocar o ano Se natildeo houver coloca-se um provaacutevel [193]ou apenas o seacuteculo [19]

RIBEIRO PSG Adoccedilatildeo agrave brasileira uma anaacutelise soacuteciojuriacutedica Dataveni Satildeo Paulo ano 3 n18 ago1998 Disponiacutevel em lthttpwwwdataveniainfbrframeartightml gt Acesso em 10 set 1998

Satildeo permitidas imagens No caso de fotografias deve-se anexar o nome do fotoacutegrafo e autorizaccedilatildeo dele para publicaccedilatildeo aleacutem da autorizaccedilatildeo das pessoas fotografadas

Normas para a preparaccedilatildeo dos trabalhos em viacutedeo (libras)

1 Na modalidade viacutedeo natildeo haacute necessidade de apresentar uma traduccedilatildeo integral do texto escrito O autor tem autonomia para apresentar o seu trabalho utilizando como recurso linguiacutestico a sua liacutengua materna a estrutura linguiacutestica e gramatical da LIBRAS

2 Os viacutedeos poderatildeo ser gravados pelo autor ou por terceiros

3 Os viacutedeos natildeo poderatildeo apresentar propagandas de instituiccedilotildees produtos eventos e outros As filmagens deveratildeo ser feitas com fundo exclusivamente verde

4 Caso a pesquisa tenha mais de um autor todos poderatildeo compor o viacutedeo

5 A vestimenta de quem faraacute a apresentaccedilatildeo deveraacute ser obrigatoriamente de cor que tenha contraste com a tonalidade da sua pele e tambeacutem deveraacute ser monocromaacutetica

6 Dado o seu caraacuteter cientiacutefico a filmagem deveraacute contemplar o acircngulo da cabeccedila ateacute a cintura do apresentador

7 Ao final da gravaccedilatildeo natildeo haacute necessidade de apresentar as referecircncias bibliograacuteficas pois estas jaacute estaratildeo constando no texto escrito

  • Polifonia Cuiabaacute-MT v 24 nordm 36 (jul-dez 2017)
  • Sumaacuterio
  • Apresentaccedilatildeo
  • Dossiecirc Estaacutegios Supervisionados em Literatura Literatura nos Estaacutegios Supervisionados
    • Autor e leitor identidades do professor de Literatura em formaccedilatildeo ndash experiecircncias com o estaacutegio supervisionado em Letras
      • Ana Creacutelia Penha Dias
      • Andreacute Luiacutes Mouratildeo de Uzecircda
      • Maria Coelho Araripe de Paula Gomes
        • Leituras de ldquoA flor e a naacuteuseardquo de Carlos Drummond de Andrade em praacuteticas de Estaacutegio Supervisionadoem Liacutengua Portuguesa
          • Diogo dos Santos Souza
          • Eliana Kefalaacutes de Oliveira
            • Cenas da formaccedilatildeo de professores de liacutengua e literatura no curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ)
              • Marcos Scheffel
                • Estaacutegio supervisionado em Letras da UFGD mediando leituras e formando leitores
                  • Alexandra Santos Pinheiro
                    • O Estaacutegio Supervisionado em Letras no vieacutes administrativo-pedagoacutegico
                      • Flaacutevia Girardo Botelho Borges
                        • Estaacutegio Supervisionado em Literatura um relato de experiecircncia na UTFPR ndash Curitiba
                          • Mirelle Mussi Giri
                          • Alice Atsuko Matsuda
                              • Outros lugares
                                • Interdiscursividade e intertextualidade a constituiccedilatildeo dos sentidos do dizer no universo autoral
                                  • Terezinha Maia Martincowski
                                    • ldquoMito biograacuteficordquo e ldquoficccedilatildeo familiarrdquo em Borges e Calvino
                                      • Maria Elisa Rodrigues Moreira
                                        • Sobre o amor e a incapacidade de amar
                                          • Dionei Mathias
                                            • Marcel ProustHonoreacute de Balzac a Meacutelange de uma Narratividade
                                              • Aguinaldo Joseacute Gonccedilalves
                                                • Acerca da ekphrasis numa passagem do Clarimundo de Joatildeo de Barros cena de pictoacuterico heroiacutesmo
                                                  • Flaacutevio Antocircnio Fernandes Reis
                                                      • Entrevista
                                                        • Literatura e Ensino Entrevista com Joseacute Augusto Cardoso Bernardes
                                                          • Por Marinete Luzia Francisca de Souza
                                                              • EDITAL DE CHAMADA DE ARTIGOS 2018
Page 3: eISSN 22376844 polifonia

UFMTMINISTEacuteRIO DA EDUCACcedilAtildeO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

ReitoraMyrian Thereza de Moura Serra

Vice-ReitorEvandro Aparecido Soares da Silva

Proacute-Reitor AdministrativoBruno Ceacutesar Souza Moraes

Proacute-Reitora de Ensino de Poacutes-GraduaccedilatildeoOzerina Victor de Oliveira

Proacute-Reitor de PesquisaGermano Guarim Neto

Proacute-Reitora de Ensino de GraduaccedilatildeoLisiane Pereira de Jesus

Proacute-Reitora de Assistecircncia EstudantilErivatilde Garcia Velasco

Proacute-Reitor de Cultura Extensatildeo e VivecircnciaFernando Tadeu de Miranda Borges

Diretor do Instituto de Linguagens Roberto Boaventura da Silva Saacute

Coordenador do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeoem Estudos de Linguagem ndash PPGEL

Viniacutecius Carvalho Pereira

Coordenador da Editora UniversitaacuteriaRenilson Rosa Ribeiro

Conselho ConsultivoAntoacutenio Manuel de Andrade Moniz ndash Univ Nova de Lisboa

Arnaldo Franco Juacutenior ndash UNESPClaacuteudia Maria Ceneviva Nigro ndash UNESP

Joseacute Augusto Cardoso Bernardes ndash Universidade de Coimbra Maria Elisa Rodrigues Moreira ndash UFMTMaria Zilda Cury ndash UFMGMarinei Almeida ndash UNEMATMauricio Vasconcelos ndash USPOlivier Bara ndash Universiteacute Lumiegravere Lyon 2Osvaldo Cupertino Duarte ndash UNIRRui Miranda ndash University of NottinghamSylvia Helena Cyntratildeo ndash UnB

Conselho EditorialDivanize Carbonieri ndash UFMTCeacutelia Maria Domingues da Rocha Reis ndash UFMTViniacutecius Carvalho Pereira ndash UFMT

Editora Ceacutelia Maria Domingues da Rocha Reis

Projeto Graacutefico e Editoraccedilatildeo EletrocircnicaTeacuteo de Miranda ndash Editora Sustentaacutevel

Suporte teacutecnicoJudikerle Pereira de OliveiraIouchabel S de Faacutetima Falcatildeo

Revisatildeo de Liacutengua InglesaViniacutecius Carvalho Pereira

Revisatildeo de Liacutengua EspanholaMarcia Romero Marccedilal

Tradutorinteacuterprete de LIBRASSeacutergio Pereira Maiolini

OrganizadoresCeacutelia Maria Domingues da Rocha Reis Maria Elisa Moreira Rodrigues

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSOAv Fernando Correcirca da Costa 2367Bairro Boa Esperanccedila ndash Campus Universitaacuterio Gabriel Novis NevesCEP 78060-900 ndash Cuiabaacute-MT ndash Brasil

POLIFONIAPerioacutedico do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos de Linguagem ndash MestradoInstituto de Linguagens ndash Piso 2 sala 42Universidade Federal de Mato Grosso Cuiabaacute-MT ndash BrasilFones 0XX 65 36158418Endereccedilo eletrocircnico httpperiodicoscientificosufmtbrojsindexphppolifoniaE-mail polifoniaufmtbr

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)

P767 Polifonia Estudos literaacuterios[recurso eletrocircnico] ndash v 24

nordm 36 (jul-dez 2017) ndash Cuiabaacute UFMT Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Estudos de Linguagem 2017 195 p

Semestral

Modo de acesso internet

lthtppwwwperiodicoscientificosufmtbrpolifoniagt

ISSN 22376844

Estudos literaacuterios ndash Perioacutedicos I Universidade Federal de

Mato Grosso Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Estudos de

Linguagem

CDU ndash 81rsquo1

Os autores satildeo expressamente responsaacuteveis pelo conteuacutedo dos

respectivos trabalhos publicados neste perioacutedico

Pareceristas deste nuacutemero

Aacutegueda Ap da Cruz Borges (UFMT)

Aacutelvaro Cardoso Gomes (USPUNISA)

Antonio Marcos Pereira (UFBA)

Arnaldo Franco Jr (UNESP)

Benedito Antunes (UNESP)

Camila da Silva Alavarce (UFU)

Camila David Dalvi (IFES - Piuacutema)

Camila Figueiredo (UFMG)

Ceacutelia Maria Domingues da Rocha Reis (UFMT)

Claacuteudia Cristina Maia (CEFET-MG)

Claacuteudia Maria Ceneviva Nigro (UNESP)

Danglei de Castro Pereira (UnB)

Danilo Silva (UFMT)

Eni Freitas e Souza (UFU)

Fernanda Ribeiro (UNIFAL)

Flaacutevio Pereira Camargo (UFG)

Franceli Ap da Silva Mello (UFMT)

Gustavo Cerqueira Guimaratildees (UFMG)

Lindinalva Zagoto Fernandes (UFMT)

Madalena Aparecida Machado (UNEMAT)

Maria Alzira Leite (UniRitter)

Maria do Rosaacuterio Alves Pereira(CEFET-MG)

Maria Elisa Rodrigues Moreira (UFMT)

Maria Fernanda Alvito Pereira de Souza Oliveira (UFRJ)

Maria Tereza de Almeida Lima (UNIPTAN)

Marinete Luzia Francisca de Souza (UFMT)

Maacuterio Ceacutezar Silva Leite (UFMT)

Mauriacutecio Guilherme Silva Jr (UNIBH-Fapemig)

Osvaldo Copertino Duarte (UNIR)

Paulo Seacutergio Nolasco dos Santos (UFGD)

Renata Rocha Ribeiro (UFG)

Rosane Maria Cardoso (UNISC)

Rosacircngela Fachel(URI)

Simone de Jesus Padilha (UFMT)

Vanessa Fabiacuteola Silva de Faria (UNEMAT)

Viniacutecius Carvalho Pereira (UFMT)

eISSN 22376844polifonia

Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo 8

Dossiecirc 12

Estaacutegios Supervisionados em Literatura Literatura nos Estaacutegios Supervisionados 12

Autor e leitor identidades do professor de Literatura em formaccedilatildeo ndash experiecircncias com o estaacutegio supervisionado em Letras 13

Ana Creacutelia Penha Dias

Andreacute Luiacutes Mouratildeo de Uzecircda

Maria Coelho Araripe de Paula Gomes

Leituras de ldquoA flor e a naacuteuseardquo de Carlos Drummond de Andrade em praacuteticas de Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa 28

Diogo dos Santos Souza

Eliana Kefalaacutes de Oliveira

Cenas da formaccedilatildeo de professores de liacutengua e literatura no Curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) 41

Marcos Scheffel

Estaacutegio supervisionado em Letras da UFGD mediando leituras e formando leitores 54

Alexandra Santos Pinheiro

O Estaacutegio Supervisionado em Letras no vieacutes administrativo-pedagoacutegico 67

Flaacutevia Girardo Botelho Borges

Estaacutegio Supervisionado em Literatura um relato de experiecircncia na UTFPR ndash Curitiba 78

Mirelle Mussi Giri

Alice Atsuko Matsuda

Outros lugares 94

Interdiscursividade e intertextualidade a constituiccedilatildeo dos sentidos do dizer no universo autoral 95

Terezinha Maia Martincowski

ldquoMito biograacuteficordquo e ldquoficccedilatildeo familiarrdquo em Borges e Calvino 111

Maria Elisa Rodrigues Moreira

Sobre o amor e a incapacidade de amar 129

Dionei Mathias

Marcel ProustHonoreacute de Balzac a Meacutelange de uma Narratividade 149

Aguinaldo Joseacute Gonccedilalves

Acerca da ekphrasis numa passagem do Clarimundo de Joatildeo de Barros cena de pictoacuterico heroiacutesmo 164

Flaacutevio Antocircnio Fernandes Reis

Entrevista 180

Literatura e Ensino Entrevista com Joseacute Augusto Cardoso Bernardes 181

Por Marinete Luzia Francisca de Souza

Edital de Chamada de Artigos 2018 189

8

eISSN 22376844polifonia

Polifonia Cuiabaacute-MT v 24 n 36 p 8-11 jul-dez 2017

Apresentaccedilatildeo

Dossiecirc Estaacutegios Supervisionados em Literatura Literatura nos

Estaacutegios Supervisionados

Os dossiecircs do perioacutedico Polifonia tecircm sido propostos objetivando colocar em circulaccedilatildeo tanto pesquisas de aacutereas consolidadas que jaacute contam com um corpo teoacuterico consideraacutevel inserido nas matrizes curriculares como temas polecircmicos questotildees nascentes que precisam de espaccedilos efetivos de discussatildeo e de apresentaccedilatildeo de experiecircncias realizadas em andamento e em perspectiva na busca de alinhar teorias e procedimentos para a construccedilatildeo de um arcabouccedilo de informaccedilotildees diretoras e conformes agraves necessidades dessas matrizes Tal eacute a situaccedilatildeo do dossiecirc organizado para este nuacutemero 36 do perioacutedico Polifonia aacuterea de Estudos Literaacuterios ndash Estaacutegios Supervisionados em Literatura Literatura nos Estaacutegios Supervisionados

O Estaacutegio Supervisionado eacute um componente curricular exigido legalmente para as licenciaturas colocando-se no acircmbito da matriz curricular como o meio que oportuniza ao licenciando contato mais direto com seu futuro campo profissional Se vislumbrado na esfera das Letras o Estaacutegio Supervisionado em Literatura foi implementado tardiamente em relaccedilatildeo ao Estaacutegio em Liacutengua Portuguesa embora os cursos de Letras apresentem carga horaacuteria equitativa para os estudos linguiacutesticos e para os literaacuterios Esse dado revela a particularidade de docentes do ensino superior desta aacuterea implicarem-se menos em questotildees didaacuteticas mais nos estudos do texto literaacuterio e de suas circunstacircncias

Atualmente em razatildeo das mudanccedilas curriculares no ensino puacuteblico o Estaacutegio Supervisionado tem sido realizado no ensino meacutediono contexto da disciplina de Liacutengua Portuguesa (no ensino fundamental isso jaacute era praacutetica antiga) exceccedilatildeo feita ao ensino privado coleacutegios de aplicaccedilatildeo entre unidades educacionais especiacuteficas Ocupando esse lugar alcanccedilado tambeacutem por dificuldades internas agrave proacutepria aacutereaseraacute preciso repensar as bases metodoloacutegicas nas quais a Literatura como aacuterea artiacutestica e de conhecimento se assenta para a manutenccedilatildeo de sua autonomia evitando constituir-se agrave custa de procedimentos alheios agrave sua natureza eacute preciso encontrar o seu proacuteprio caminho suas estrateacutegias consoantes com seus objetos Daiacute a importacircncia que assume este nuacutemero 36 do perioacutedico Polifonia oferecendo agrave comunidade cientiacutefica nesse tempo de reestruturaccedilatildeo curricular material bibliograacutefico contendo discussotildees que envolvem problemas e alternativas apresentadas por profissionais da aacuterea

9

Polifonia Cuiabaacute-MT v 24 n 36 p 8-11 jul-dez 2017

Foi estimulante entatildeo receber artigos de colegas de instituiccedilotildees de ensino superior do paiacutes puacuteblicas e particulares tratando de atividades de Estaacutegio Supervisionado em Literatura e ressalte-se de disciplina afim como Didaacutetica e Praacutetica de Ensino de Portuguecircs e Literaturas apresentando vivecircncias efetivas (e afetivas) realizadas com graduandos em unidades educacionais parceiras a partir de onde conhecem observam questionam o que estaacute posto estudam planejam e desenvolvem atividades compotildeem os relatos avaliam a funcionalidade e dificuldade das experiecircncias apontam soluccedilotildees ou apresentam discussotildees com base na experiecircncia adquirida pelos anos de trabalho Em todos os casos apresentam comprometimento poliacutetico com a aacuterea

Em coerecircncia com esse estado de coisas da leitura atenta dos artigos voltados ao dossiecirc avultou um eixo temaacutetico predominante a questatildeo autoral na formaccedilatildeo do professor de Letras tomado como criteacuterio para ordenar os artigos do dossiecirc

Os trecircs primeiros artigos promovem a discussatildeo da praacutetica autoral docente da escrita autoral da elaboraccedilatildeo criacutetica a partir da experimentaccedilatildeo literaacuteria com base em projetos desenvolvidos No primeiro Autor e leitor identidades do professor de Literatura em formaccedilatildeo ndash experiecircncias com o estaacutegio supervisionado em Letras Ana Creacutelia Penha Dias Andreacute Luiacutes Mouratildeo de Uzecircda e Maria Coelho Araripe de Paula Gomes apontam a necessidade de construir bases para que o Estaacutegio em Literatura se decirc de maneira adequada agrave formaccedilatildeo do licenciando na realidade de ensino-aprendizagem na escola por meio de accedilotildees que promovam autonomia sobre o seu fazer docente e mudanccedilas na realidade da escola e da proacutepria universidade pela revisatildeo dos curriacuteculos a fim de alcanccedilar uma didaacutetica que efetivamente coopere com o ensino baacutesico Dentre as conclusotildees abstraiacutedas das atividades de Estaacutegio realizadas no Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio de Janeiro ressaltam a fragilidade na formaccedilatildeo do estudante de Letras como leitor literaacuterio o que levou agrave consideraccedilatildeo de que deve haver um protagonismo de professor texto e leitor nas aulas de literatura

Diogo dos Santos Souza e Eliana Kefalaacutes de Oliveira constroem seu artigo Leituras de ldquoA flor e a naacuteuseardquo de Carlos Drummond de Andrade em praacuteticas de Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa com base em uma oficina de leitura de poesia realizada por estagiaacuterios observando e atribuindo um vieacutes subjetivo e criacutetico aos mecanismos que eles empregam na experimentaccedilatildeo do texto literaacuterio defendendo endossados por argumento de autoridade que tais experiecircncias analiacuteticas datildeo condiccedilotildees de edificaccedilatildeo de um discurso criacutetico sobre o texto literaacuterio natildeo devendo a teoria e a criacutetica literaacuterias serem estudadas de maneira estratificada e aprioriacutestica na formaccedilatildeo do leitor Nesse sentido defendem o exerciacutecio criacutetico sobre as obras literaacuterias no diaacutelogo com os estudantes cabendo agrave criacutetica o papel de incitar dar indiacutecios para diferentes modos de compreensatildeo das obras em apreccedilo

Marcos Scheffel em Cenas na formaccedilatildeo de liacutengua e literatura no curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com base em suas experiecircncias didaacuteticas e em um projeto de leitura indica criticamente o descompromisso do curso de Letras mais preocupado em formar pesquisadores que profissionais para atuarem na educaccedilatildeo

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baacutesica o que ocorre sobretudo com a aacuterea da Literatura desenvolvida com estudos teoacutericos para anaacutelise e interpretaccedilatildeo de textos com grau de dificuldade que restringe o acesso de leitores com a imposiccedilatildeo de leituras sem discussatildeo de criteacuterios de seleccedilatildeo etc Satildeo questotildees que apontam para dificuldades de formaccedilatildeo de leitores nas escolas Daiacute se deduz o motivo de a literatura estar em ldquoextinccedilatildeo na escolardquo os inuacutemeros obstaacuteculos para a formaccedilatildeo de leitores com estudantes que chegam aos cursos de Letras sem esse perfil e encontram uma universidade que se exime dessa responsabilidade

Os artigos seguintes trazem consideraccedilotildees sobre Estaacutegio que se desenvolvem a partir de reflexotildees sobre letramento em diferentes linhas

Em Estaacutegio supervisionado em Letras da UFGD mediando leituras e formando leitores Alexandra Santos Pinheiro afirma a necessidade de levar o graduando por meio do Estaacutegio Supervisionado a refletir sobre o curso de Letras o conhecimento adquirido a importacircncia equiparada de conteuacutedos e metodologias as proacuteprias restriccedilotildees e as do curso perante as condiccedilotildees que encontraraacute no campo de trabalho Discute as dificuldades dos graduandos na elaboraccedilatildeo de planos de aula para a regecircncia relativas agrave fundamentaccedilatildeo teoacuterica e ao baixo repertoacuterio de leituraso que restringe a seleccedilatildeo na montagem das atividades dos planos Abordando o letramento literaacuterio afirma a necessidade de defesa da literatura nas praacuteticas curriculares da funccedilatildeo do professor de estimular o encontro dos alunos com a literatura mesmo com a dificuldade de acesso aos livros e a disputa comas opccedilotildees tecnoloacutegicas e de laborar com as potencialidades dos textos a fim de que estes ganhem sentido e conhecimento garantindo a formaccedilatildeo do cidadatildeo

Em O Estaacutegio Supervisionado em Letras no vieacutes administrativo-pedagoacutegico Flaacutevia Girardo Botelho Borges procede agrave anaacutelise da formaccedilatildeo de professores integrando a perspectiva da administraccedilatildeo escolar agrave pedagoacutegica considerando inviaacutevel segmentar professor e contexto de atuaccedilatildeo Nesse senso advoga a necessidade de fomentar nas licenciaturas experiecircncias de graduandos com as circunstacircncias de seu campo profis-sional ponto em que ressalta o tema do artigo o Estaacutegio Supervisionado em Letras parametrizado no Projeto Pedagoacutegico em vigecircncia no Curso de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso e nas praacuteticas de letramento Aponta para as muacuteltiplas dificulda-des de realizaccedilatildeo do Estaacutegio que em conexatildeo com as poliacuteticas puacuteblicas com o curriacuteculo pedagoacutegico e com as condiccedilotildees apresentadas pela escola vatildeo compondo a ldquoidentidade docenterdquo numa das fundamentaccedilotildees apresentadas como ldquoum espaccedilo de construccedilatildeo de maneiras de ser e de estar na profissatildeordquo Mediante esse quadro a autora apresenta dire-cionamentos estabelecidos apoacutes discussatildeo com o Colegiado do curso para contribuir para a realizaccedilatildeo do Estaacutegio de maneira mais favoraacutevel ressaltando a importacircncia do trabalho coeso entre professores alunos coordenaccedilatildeo de curso e oacutergatildeo colegiado

Encerrando o dossiecirc em Estaacutegio supervisionado em literatura relato de experiecircncia na UTFPRndash Curitiba Mirelle Mussi Giri e Alice Atsuko Matsuda discorrem sobre o modo como se processa o trabalho com o Estaacutegio Supervisionado em Literatura na Universidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute no acircmbito do qual apresentam uma experiecircncia de observaccedilatildeo e regecircncia realizada por uma dupla de alunas no ensino

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baacutesico Natildeo obstante as dificuldades concluem que o modo de conduccedilatildeo do Estaacutegio integrando aspectos teoacutericos como estudos criacuteticos e reflexivos de textos e documentos oficiais que fundamentam e direcionam o ensino de literatura e praacuteticos promove a capacitaccedilatildeo discente e desenvolve as competecircncias e habilidades para o exerciacutecio da docecircncia realizando os objetivos propostos no Projeto Pedagoacutegico

Em acordo com a poliacutetica do perioacutedico Polifonia apresentamos aleacutem do dossiecirc a seccedilatildeo Outros lugares contendo artigos de temaacuteticas variadas

A seccedilatildeo se inicia com o artigo Interdiscursividade e intertextualidade a constitui-ccedilatildeo dos sentidos do dizer no universo autoral de Terezinha Maia Martincowski no qual ela discute com base em projeto realizado com graduandos do 1ordm ano de cursos dife-rentes reunidos em disciplina que trata da introduccedilatildeo ao conhecimento do campo da pesquisa em educaccedilatildeo o modo como se compotildee o universo autoral a partir da leitura interpretativa formaccedilatildeo de arquivos e produccedilatildeo escrita

Em ldquoMito biograacuteficordquo e ldquoficccedilatildeo familiarrdquo em Borges e Calvino Maria Elisa Rodrigues Moreira abre as generosas bibliotecas dos celebrados autores para refletir a partir des-tas e de uma genealogia afetiva sobre o processo de construccedilatildeo das personas autorais desses escritores

A operaccedilatildeo narrativa a partir do afeto eacute tambeacutem a tocircnica do artigo ldquoSobre o amor e a incapacidade de amarrdquo no qual Dionei Mathias reflete tomando por base o romance A Pianista de Elfriede Jelinek sobre o desejo de amor (em suas mais variadas formas) e a incapacidade de seu pleno desenvolvimento pelas personagens da escritora austriacuteaca

Por seu turno em Marcel ProustHonoreacute de Balzac a Meacutelange de uma Narratividade Aguinaldo Joseacute Gonccedilalves parte do posicionamento contraacuterio ao meacutetodo biograacutefico de Saint-Beuve afirmado por Proust que para sua argumentaccedilatildeo reflete sobre a relaccedilatildeo vidaobra em Honoreacute de Balzac e Gustave Flaubert para afirmar a importacircncia do pensamento criacutetico e inventivo da narrativa proustiana que coloca em relaccedilatildeo de proximidade a ficccedilatildeo e o ensaio

Encerra esta seccedilatildeo o artigo Acerca da ekphrasis numa passagem do Clarimundo de Joatildeo de Barros cena de pictoacuterico heroiacutesmo no qual Flaacutevio Antonio Fernandes Reis tanto apresenta ao leitor essa novela de cavalaria ainda pouco pesquisada quanto constroacutei aprofundado percurso pela conformaccedilatildeo de um pensamento a respeito da ekphrasis para entatildeo analisar como o episoacutedio da ldquoFloresta Encantadardquo se constitui com base nesse ldquocolocar diante dos olhos do leitorrdquo o cenaacuterio e as figuras centrais da obra

Na seccedilatildeo Entrevista Marinete Luzia Francisca de Souza conversa com o Prof Dr Joseacute Augusto Bernardes docente da Universidade de Coimbra acerca das condiccedilotildees do ensino de literatura no niacutevel baacutesico e superior em Portugal da evoluccedilatildeo histoacuterica da possibilidade de inserccedilatildeo de obras de outras culturas na matriz curricular e dos paracircmetros de obras antigas no ensino contemporacircneo entre outros temas

Desejamos a todos uma boa leitura

Ceacutelia Maria Domingues da Rocha ReisMaria Elisa Rodrigues Moreira

Organizadoras

DossiecircEstaacutegios Supervisionados em Literatura

Literatura nos Estaacutegios Supervisionados

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eISSN 22376844polifonia

Autor e leitor identidades do professor de Literatura em formaccedilatildeo ndash experiecircncias com o

estaacutegio supervisionado em LetrasAuthor and Reader Pre-service Literature Teacherrsquos Identities

ndash Experiences with Supervised Internship in the Letras Program

Autor y lector Identidades del profesor de Literatura en formacioacuten ndash experiencias con las praacutecticas supervisadas en Letras

Ana Creacutelia Penha Dias Universidade Federal do Rio de Janeiro

Andreacute Luiacutes Mouratildeo de UzecircdaColeacutegio de Aplicaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Maria Coelho Araripe de Paula GomesColeacutegio de Aplicaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo

No painel educacional brasileiro o estaacutegio supervisionado reflete questotildees de lacuna da formaccedilatildeo inicial e de antecipaccedilatildeo dos problemas da profissatildeo docente Neste cenaacuterio professores regentes de estaacutegio precisam atuar tambeacutem na formaccedilatildeo dos licenciandos e no trato com a literatura eacute necessaacuterio potencializar a dimensatildeo de leitor literaacuterio e de autor das praacuteticas pedagoacutegicas que seratildeo realizadas Este artigo traz reflexotildees acerca dessa experiecircncia com formaccedilatildeo de futuros professores de Literatura e propotildee alguns caminhos para pensar a relaccedilatildeo do licenciando com a leitura literaacuteria e com a ocupaccedilatildeo de um espaccedilo de autoria de seus trabalhos na escola Para isso seratildeo apresentados relatos de duas experiecircncias com estaacutegio supervisionado em Letras no Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio de JaneiroPalavras-chave Estaacutegio supervisionado ensino de Literatura formaccedilatildeo de professores

Abstract

In the Brazilian educational context the supervised internship reflects questions about the lack of initial education and the anticipation of problems related toa teacherrsquos job In this scenario internship supervisors must also act in the training of pre-service teachers and regarding literature they have to enhance the roles of teachers as literary readers and authors of pedagogical practices This article reflects on an experience in the education of future Literature teachers and proposes some ways to think about the relation among prospective teachers reading literature

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and the appropriation of an authorship space at school To do so we will present reports of two experiences of supervised internship in the Letras Program at the Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio de Janeiro Keywords Supervised internship teaching literature teacherrsquos education

Resumen

En el panorama educativo brasilentildeo el periodo de praacutecticas supervisadas refleja cuestiones de vaciacuteos em la formacioacuten inicial y de anticipacioacuten de los problemas de la profesioacuten docente En este escenario los tutores de la supervisioacuten necesitan actuar tambieacuten em la formacioacuten de los alumnos del grado y respecto al tratamiento de la literatura es necesario potenciar la dimensioacuten del lector literario y del autor de las praacutecticas pedagoacutegicas que se realizaraacuten Este artiacuteculo refleja acerca de esa experiencia con la formacioacuten de futuros profesores de Literatura y propone algunos caminos para pensar la relacioacuten del alumno em formacioacuten com la lectura literaria y com la ocupacioacuten de um espacio de autoriacutea de sus trabajos em la escuela Asiacute se presenta la discusioacuten a traveacutes del relato de dos experiencias referentes a praacutecticas supervisadas em Letras realizadas em el Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo de la Universidade Federal do Rio de JaneiroPalabras clave Formacioacuten supervisada ensentildeanza de la literatura formacioacuten docente

Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensinaCora Coralina

Introduccedilatildeo

O estaacutegio supervisionado dos cursos de licenciatura vive muitas vezes a antecipaccedilatildeo da precarizaccedilatildeo com o qual a futuro profissional teraacute que lidar Agrave parte dessa realidade muito frequente precisamos refletir sobre quais seriam as bases para a realizaccedilatildeo de uma experiecircncia condizente com a necessidade da formaccedilatildeo inicial na aacuterea em situaccedilotildees reais de aprendizagem em que o diaacutelogo teoria-praacutetica se faccedila como discurso de construccedilatildeo de saberes entre a universidade e a escola entre licenciando professor regente e professor da Praacutetica de Ensino Isto eacute adentrar a escola durante o estaacutegio se por um lado potildee um grande desafio em relaccedilatildeo ao reconhecimento da realidade educacional brasileira em especial da rede puacuteblica de ensino por outro precisa oportunizar a participaccedilatildeo do licenciando em accedilotildees de construccedilatildeo coletiva que visem agrave mudanccedila do quadro de precariedade convocando neles no momento inicial de formaccedilatildeo atitude de sujeito diante da condiccedilatildeo de professor O cenaacuterio atual no Brasil exige uma formaccedilatildeo de luta pela manutenccedilatildeo do direito agrave educaccedilatildeo puacuteblica e essa necessidade eacute anterior a qualquer especificidade curricular paralelamente as questotildees curriculares demandam muito num tempo em que imposiccedilotildees de uniformizaccedilatildeo de curriacuteculo sem o necessaacuterio debate tambeacutem convocam o olhar para a formaccedilatildeo especiacutefica

Neste artigo pretendemos fazer uma reflexatildeo acerca da formaccedilatildeo em Letras do ponto de vista do estaacutegio supervisionado natildeo soacute do que significa construir com o licenciando

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em niacutevel macro uma praacutetica pedagoacutegica que seja ao mesmo tempo uma experiecircncia em que ele se forma como professor mas tambeacutem o lugar em que ele crie com os professores regentes e no diaacutelogo com estudantes novos saberes que propiciem transformaccedilotildees necessaacuterias agrave educaccedilatildeo baacutesica Em niacutevel mais especiacutefico procuramos entender como esse percurso na escola pode ser para o estudante da licenciatura tambeacutem um espaccedilo privilegiado de sua formaccedilatildeo como leitor literaacuterio

1 Professor de Liacutengua Portuguesa Apecircndice Literatura

Iniciando nossas reflexotildees buscaremos nos aproximar de alguns conceitos pertinentes agrave discussatildeo proposta Quando tratamos de curriacuteculo na realidade brasileira remetemos nossos esforccedilos constantemente ao rol de conteuacutedos a serem desenvolvidos em sala de aula e natildeo a um orientador poliacutetico-pedagoacutegico-filosoacutefico de nossas praacuteticas Pensando em conteuacutedo e formaccedilatildeo mais uma vez nos confrontamos com uma realidade que em geral natildeo eacute muito generosa nem em seus propoacutesitos nem nos resultados pensando curriacuteculo como lista de conteuacutedos essa realidade escolar costuma conceber formaccedilatildeo como transmissatildeo de conteuacutedos quase sempre de forma unilateral Um curriacuteculo organizado em disciplinas que segmentam o conhecimento e o concebem como gama conteudiacutestica colocaraacute a literatura em um lugar de apecircndice nas aulas de Liacutengua Portuguesa Antes de avanccedilar precisamos esclarecer que natildeo haacute aqui a defesa de separaccedilatildeo entre ensino de Liacutengua Portuguesa e Literatura no Ensino Fundamental Colocamos em discussatildeo o espaccedilo da literatura num curriacuteculo em que ela natildeo eacute disciplina numa concepccedilatildeo em que o curriacuteculo se organiza em eixos de aacutereas de conhecimento que se organiza em torno de conteuacutedo O lugar da literatura nessa loacutegica eacute o de algo supeacuterfluo ao qual o estudante pode ter acesso esporaacutedico e que pode servir a propoacutesitos linguiacutesticos apenas na maioria das praacuteticas

A escola brasileira quase sempre traz um retrato muito fragmentado da formaccedilatildeo literaacuteria e a formaccedilatildeo inicial ndash em Pedagogia para os professores das seacuteries iniciais e em Letras para os do Ensino Fundamental II e Ensino Meacutedio ndash natildeo tem conseguido estabelecer relaccedilotildees profundas entre os lugares de ser leitor e ser leitor especializado e esse descompasso se reflete na Educaccedilatildeo Baacutesica direcionando o professor para principalmente um dos dois caminhos reproduzir o discurso elitizado da Literatura como um conhecimento acessiacutevel a poucos ou repetir o ensino que recebeu na escola quando estudante realidade jaacute denunciada desde a deacutecada de 1970 por autores como Ligia Chiappini e Osman Lins dentre outros e revisitada mais contemporaneamente por Todorov e Compagnon

A manutenccedilatildeo na universidade de uma estrutura curricular que subtrai os espaccedilos de relaccedilatildeo mais aprofundada com a licenciatura em que a formaccedilatildeo para a docecircncia assume lugar desprivilegiado coloca ao encargo do estaacutegio supervisionado uma tarefa para aleacutem de orientaccedilatildeo de estaacutegio que eacute a de oferecer a bagagem de conteuacutedo com a qual o licenciando teraacute que lidar para planejar sua aula e colocaacute-la em praacutetica em situaccedilatildeo real de ensino-aprendizagem Portanto natildeo se trata apenas de pensar como precisa acontecer a transposiccedilatildeo didaacutetica mas muitas vezes de apresentar o conteuacutedo que compotildee o programa escolar

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Em realidades que se constituem como exceccedilatildeo no painel educacional brasileiro como as escolas federais e especialmente os Coleacutegios de Aplicaccedilatildeo os professores regentes dispotildeem de mais tempo para esse tipo de atuaccedilatildeo Entretanto essa natildeo eacute a realidade da maioria das escolas e na ausecircncia de amparo agraves lacunas da formaccedilatildeo os licenciandos podem tender agrave repeticcedilatildeo de praacuteticas que nem sempre se arvoram a uma formaccedilatildeo mais complexa e criacutetica dos estudantes da Educaccedilatildeo Baacutesica

Na reproduccedilatildeo de um ciclo em que se privilegia a metalinguagem e a memorizaccedilatildeo dos conteuacutedos para responder a instrumentos de avaliaccedilatildeo ndash quase sempre externa e de ampla abrangecircncia ndash encontramos a Literatura em encruzilhada de propoacutesitos de ensino diferentes mas complementares em sua pouca eficaacutecia para formar leitores um lugar do texto como mais um gecircnero do discurso a ser utilizado para fins de compreensatildeo em torno da forma ou como pretexto para praacuteticas de estudos linguiacutesticos Em ambos os casos a experiecircncia esteacutetica de diaacutelogo entre leitor e texto desaparece em detrimento de uma abordagem superficial O trabalho do estaacutegio supervisionado portanto estaacute tambeacutem no lugar de formaccedilatildeo inicial do licenciando e no caso do futuro professor de Literatura vem responder tambeacutem por leituras e reflexotildees que foram subtraiacutedas dele desde a escola baacutesica em que foi estudante

2 Consideraccedilotildees acerca da atuaccedilatildeo do professor-autor experiecircncias com a produccedilatildeo de material didaacutetico no Estaacutegio Supervisionado em Letras

Tecer consideraccedilotildees sobre a formaccedilatildeo inicial de professores junto ao estaacutegio supervisionado passa necessariamente pela reflexatildeo poliacutetica da praacutetica docente Educar como jaacute lembrava Paulo Freire (2011) implica tomar uma posiccedilatildeo com relaccedilatildeo ao mundo O educador portanto natildeo eacute ndash nem pode ser ndash um agente neutro mas compromissado com um determinado posicionamento poliacutetico Tomando como princiacutepio o engajamento com o mundo deve o professor em formaccedilatildeo assumir-se enquanto agente de transformaccedilatildeo social alinhavado a um discurso ideoloacutegico e que como tal precisa encontrar modos de agir que o coloquem na posiccedilatildeo autoral de suas proacuteprias praacuteticas saberes e fazeres docentes

Nesses termos partimos para a reflexatildeo da atuaccedilatildeo do professor-autor que entende a construccedilatildeo do seu curriacuteculo no cotidiano da sala de aula a partir da diversidade de saberes e experiecircncias compartilhadas pelos seus estudantes e na multiplicidade de realidades de mundo em que seus estudantes se encontram em vias de construccedilatildeo (OLIVEIRA 2013) Considerando-se a especificidade das disciplinas de Liacutengua Portuguesa e Literatura a centralidade do texto que dinamiza o andamento da aula nos confronta diariamente com a posiccedilatildeo da escolha seja de temaacuteticas de gecircneros textuais de autores de recortes os quais satildeo por noacutes selecionados para este ou aquele fim conforme a dinacircmica disposta em cada turma com seu perfil singular de alunado e as situaccedilotildees cotidianas proacuteprias da praacutetica pedagoacutegica

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O estaacutegio curricular supervisionado propicia para a maioria dos graduandos nas mais variadas aacutereas de licenciatura a primeira oportunidade de retornar agrave sala de aula natildeo mais na posiccedilatildeo de estudante Considere-se entretanto a particularidade deste lugar que ainda natildeo eacute o de professor Antes cabe-lhe a posiccedilatildeo ambivalente de um professor-estudante que com curiosidade observa desse entrelugar a postura dos alunos e do professor o que lhe possi-bilita vislumbrar a situaccedilatildeo da sala de aula de modo privilegiado tomando ora o ponto de vista do professor ora o do aluno Esta singularidade de percepccedilatildeo daacute-lhe a oportunidade de entender a dinacircmica da ldquododiscecircnciardquo (FREIRE 1996 p89) da maneira mais potente possiacutevel primeiro passo a ser destacado na construccedilatildeo da sua identidade como professor-autor

O conceito da ldquododiscecircnciardquo compreende a mutualidade da construccedilatildeo do conhecimento de maneira natildeo hieraacuterquica entre professores e estudantes em uma relaccedilatildeo horizontalizada no compartilhamento dos saberes Eacute ela a base para que o professor construa seu projeto didaacutetico metodoloacutegico e curricular de modo mais adequado agrave realidade de seu alunado Quando afirmamos que o curriacuteculo se constroacutei no cotidiano partimos justamente de uma concepccedilatildeo de educaccedilatildeo ldquododiscenterdquo para explorar as abordagens e estrateacutegias de ensino adequadas agrave realidade de nossas salas de aula Mediante o perfil de uma turma cujos alunos se tratam de maneira agressiva entre si a tiacutetulo de exemplo eacute papel do professor trabalhar o tema do respeito o que pode ser feito pela seleccedilatildeo de textos com os quais poderaacute mobilizar discussotildees com os estudantes ou ainda promover atividades em grupo que trabalhem o espiacuterito da colaboraccedilatildeo em vez da competitividade quando no caso de turmas que disputem entre si as melhores notas

Essa praacutetica pedagoacutegica soacute nos eacute possiacutevel quando temos a liberdade autoral de construirmos os nossos proacuteprios curriacuteculos cotidianamente em nossas aulas Natildeo quer isso dizer que o professor seleciona conteuacutedos curriculares a seu bel-prazer escolhendo os que lhe apetecem por gosto pessoal e excluindo aqueles que julga serem menos interessantes ou desgostosos para si ndash argumento a que defensores da uniformizaccedilatildeo do ensino por bases curriculares ou do polecircmico e inconstitucional projeto de lei ldquoEscola sem partidordquo recorrem para falsamente promover uma educaccedilatildeo ldquoequilibradardquo e ldquoneutrardquo para todos equalizando os ldquoniacuteveisrdquo de conhecimento entre os estudantes de uma mesma seacuterieano Na realidade o que se propotildee e defende aqui eacute a articulaccedilatildeo dos conteuacutedos curriculares agraves circunstacircncias impostas na espontaneidade do labor pedagoacutegico entendendo a formaccedilatildeo educacional de nossos estudantes para muito aleacutem do conteuacutedo curricular explorado pelas mais diferentes disciplinas

Na falsa defesa por um equiliacutebrio equacircnime do que eacute ensinado nas vaacuterias escolas puacuteblicas no cenaacuterio nacional (desconsiderando-se as diferenccedilas de realidade entre uma escola de zona rural ou urbana de realidades sociais diacutespares como de bairros nobres e de bairros de periferia ou ainda as particularidades de uma comunidade ribeirinha quilombola ou sertaneja) estrateacutegias de uniformizaccedilatildeo vecircm sendo aplicadas ao longo da histoacuteria da educaccedilatildeo brasileira Para aleacutem dos documentos oficiais que visam agrave isonomia e uniformidade do curriacuteculo tais como a necessaacuteria Lei de Diretrizes e Bases de 1996 os Paracircmetros Curriculares Nacionais de 1998 e a Base Nacional Curricular Comum que

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vem sendo (re)formulada nesse momento para aleacutem da nova proposta de Ensino Meacutedio imposta pelo atual governo federal destacamos para este trabalho os programas voltados para a produccedilatildeo e distribuiccedilatildeo de livros e materiais didaacuteticos enquanto limitadores de uma praacutetica efetivamente autoral na atividade profissional docente

Haacute que se problematizar o papel do livro didaacutetico como instrumento de mediaccedilatildeo da praacutetica pedagoacutegica Natildeo se trata de defendermos aqui a extinccedilatildeo do livro didaacutetico ou reduzirmos a sua importacircncia para a praacutetica das tarefas pedagoacutegicas mais comuns como a leitura de textos sistematizaccedilatildeo de conteuacutedos e de conceitos importantes e a realizaccedilatildeo de atividades e exerciacutecios de fixaccedilatildeo sobre os temas abordados em cada unidadecapiacutetulo Ao contraacuterio haacute que se valorizar a iniciativa de programas como o Programa Nacional do Livro Didaacutetico (PNLD) por exemplo pela accedilatildeo de distribuiccedilatildeo de livros didaacuteticos gratuitamente para as escolas puacuteblicas de todas as regiotildees do paiacutes que em muito contribuiu para a democratizaccedilatildeo da educaccedilatildeo puacuteblica No entanto eacute importante questionarmos sobre a centralidade ocupada pelo livro didaacutetico e materiais apostilados em nossas aulas cujo projeto curricular eacute pensado por terceiros retirando muitas vezes a autoria do trabalho docente a ser desenvolvido com nossas turmas

Tambeacutem natildeo podemos perder de vista a exploraccedilatildeo mercadoloacutegica movimentada pelo programa que mobiliza a maior parcela de lucro de grandes empresas do ramo editorial fazendo da educaccedilatildeo um negoacutecio rentaacutevel e a serviccedilo do capital Quando o interesse envolvido visa ao lucro e natildeo de fato ao aprimoramento do ensino e da aprendizagem dos estudantes da rede puacuteblica natildeo espanta que alguns desses materiais mesmo que passando pelo crivo e criteacuterio dos avaliadores do PNLD apresentem propostas pouco inovadoras para nossos estudantes

Quando a reduccedilatildeo de nossa atuaccedilatildeo docente se pauta centralmente pela aplicaccedilatildeo dos materiais didaacuteticos distribuiacutedos pelos programas governamentais de educaccedilatildeo estamos diante de grande perigo Programas de ensino por apostilamento como o promovido pela Secretaria Municipal do Rio de Janeiro reduzem o trabalho docente ao cumprimento das unidades do material distribuiacutedo e sua execuccedilatildeo ou natildeo eacute aferida por avaliaccedilotildees elaboradas e aplicadas pela Secretaria bimestralmente O mesmo era verificado com as afericcedilotildees promovidas ateacute 2015 pela Secretaria Estadual de Educaccedilatildeo do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ) como o Sistema de Avaliaccedilatildeo do Estado do Rio de Janeiro (SAERJ) no mesmo objetivo de monitoraccedilatildeo do cumprimento ou natildeo dos conteuacutedos curriculares

Para aleacutem disso natildeo eacute possiacutevel dissociar a promoccedilatildeo de tais metodologias de ensino agrave baixa remuneraccedilatildeo profissional dos docentes que com frequecircncia veem-se obrigados a acumular mais de uma matriacutecula no serviccedilo puacuteblico muitas vezes somada(s) agrave contrataccedilatildeo na rede privada de ensino em que a extensa carga horaacuteria reduz o tempo laboral para a organizaccedilatildeo e o planejamento das atividades Na busca por um padratildeo salarial razoaacutevel em detrimento de uma carga horaacuteria tatildeo extensa recorrer a tais materiais apostilados prontos acaba sendo visto como um facilitador do trabalho jaacute tatildeo precarizado

Incorre em grande risco o profissional que acaba por se adequar a tal situaccedilatildeo sem pensar em alternativas a essa loacutegica predominante Vecirc-se na realidade apartado do

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caraacuteter mais intelectual de nossa atividade docente uma vez que natildeo planeja de forma autocircnoma suas proacuteprias aulas natildeo seleciona os textos com os quais deseja trabalhar e tampouco mobiliza os exerciacutecios de maneira reflexiva e dirigida agraves questotildees pedagoacutegicas exigidas pelas especificidades de seu alunado Em outras palavras o docente deixa de atuar como um professor-autor e passa agrave condiccedilatildeo de professor-instrutor tutor de um trabalho pensado por terceiros e apartado da realidade cotidiana de sua sala de aula Diferentemente do que pregam os defensores do PL Escola sem Partido (PL 867 2015) o professor que se alinha a este projeto educacional cumprindo rigorosamente os requisitos postulados por programas educacionais como os citados anteriormente (pelo que muitas vezes satildeo premiados) natildeo eacute um profissional ldquoneutrordquo que meramente cumpre com sua tarefa de transmissor de conhecimento mas trabalha agrave disposiccedilatildeo da loacutegica dominante da meritocracia e do capital

Essas consideraccedilotildees foram pensadas e discutidas com estudantes da licenciatura em Letras do oitavo periacuteodo que foram alocados no Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da UFRJ para a realizaccedilatildeo de seu estaacutegio curricular supervisionado acompanhando turmas de seacutetimo ano do Ensino Fundamental nos anos de 2013 2014 e 2015 Aleacutem de acompanharem as turmas na observaccedilatildeo os graduandos participaram ativamente na construccedilatildeo e planejamento das aulas com encontros de orientaccedilatildeo semanal quando o material didaacutetico elaborado pelo professor orientador a ser aplicado agraves turmas era compartilhado com os estagiaacuterios Nesses encontros de orientaccedilatildeo guiados pelas discussotildees de Chiappini (2005) Lajolo (1996) e Marcuschi (2008) discutimos a respeito da praacutetica docente autoral de diferentes metodologias e recursos didaacuteticos a serem explorados em sala de aula aleacutem da praacutetica de produccedilatildeo de exerciacutecios explorando habilidades e competecircncias (RUEacute 2009)

Dessas trocas de experiecircncias o envolvimento com a praacutetica de produccedilatildeo de material didaacutetico ganhou forccedila e interesse dos estagiaacuterios o que acabou por mobilizar a criaccedilatildeo do projeto de ensino ldquoFichas complementares ndash o que eacute para que serve como se fazrdquo pequena oficina de produccedilatildeo de material didaacutetico complementar e de reforccedilo escolar para os estudantes O projeto ainda embrionaacuterio no ano de 2013 iniciou-se com a coparticipaccedilatildeo dos licenciandos que contribuiacuteram com textos e exerciacutecios aplicados em sala e posteriormente por eles corrigidos em aula Para tanto as experiecircncias leitoras de cada estagiaacuterio foram compartilhadas em nossos encontros de orientaccedilatildeo criando entre o grupo uma coletacircnea de textos literaacuterios e natildeo literaacuterios que dialogavam com o programa e poderiam ser aplicados agraves turmas Com base na seleccedilatildeo de algumas das leituras trazidas os licenciandos exploraram aspectos de anaacutelise importantes para serem alcanccedilados por estudantes e ensaiaram alguns exerciacutecios de interpretaccedilatildeo Aleacutem disso articularam os conteuacutedos curriculares de literatura gramaacutetica e produccedilatildeo textual previstos no programa curricular do seriado elaborado pelo Setor de Liacutengua Portuguesa do CAp UFRJ aos materiais que produziram sob supervisatildeo do professor orientador

A criaccedilatildeo do projeto ainda em andamento veio em virtude da grande quantidade de materiais e exerciacutecios de altiacutessima qualidade que foram elaborados pelos licenciandos

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mas que natildeo poderiam ser todos aplicados nas aulas por natildeo haver tempo haacutebil para tanto no decorrer do ano letivo Daiacute surgiu a ideia de criaccedilatildeo de uma pequena oficina de produccedilatildeo de material didaacutetico agrave distacircncia Em uma pasta de compartilhamento online os estudantes da licenciatura compartilhavam diferentes textos entre si sobre os quais elaboravam exerciacutecios e questotildees e contribuiacuteam com sugestotildees para melhor aprimoramento Tambeacutem agrave distacircncia o professor supervisionava o trabalho com sugestotildees e criacuteticas e indicava quando da aplicabilidade dos exerciacutecios aos estudantes O problema com a falta de tempo para teste de aplicabilidade dos materiais foi resolvido com a criaccedilatildeo de pastas com exerciacutecios ldquoextrasrdquo que poderiam ser resolvidos em casa pelos estudantes como fixaccedilatildeo e reforccedilo escolar posteriormente corrigidos pelos autores de cada ficha

Esse material denominado como ldquofichas complementaresrdquo foi disposto em pastas coloridas deixadas na sala de aula atualizadas semanalmente e exploradas pelos alunos da turma na descoberta de novos textos e exerciacutecios Muitas delas inclusive eram pensadas diretamente para alguns alunos especiacuteficos que apresentavam dificuldades de aprendizagem no campo da leitura ou da escrita por exemplo ndash o que demonstrou a percepccedilatildeo e sensibilidade dos professores em formaccedilatildeo para a importacircncia de uma praacutetica docente autoral Aleacutem disso a escolha dos textos e dos temas abordados eram associados diretamente a situaccedilotildees vividas no cotidiano do trabalho pedagoacutegico para o que muito contribuiu a praacutetica da produccedilatildeo textual explorada pelas fichas que os levava a refletir criticamente sobre temas que consideraacutevamos importantes de serem discutidos Como forma de estimular o interesse para recorrerem agraves pastas e resolverem os exerciacutecios pontos extras somados agraves avaliaccedilotildees foram dados ndash o que contribuiacutea consequentemente para a preparaccedilatildeo e estudos para as provas e testes Com significativo desempenho dos estudantes nas avaliaccedilotildees em decorrecircncia do preparo os pontos ldquobocircnusrdquo logo acabaram se mostrando desnecessaacuterios

Ao final do estaacutegio curricular quando os licenciandos assumem a regecircncia da turma por dois tempos seguidos os resultados alcanccedilaram niacuteveis de satisfaccedilatildeo muito acima do desejado Natildeo soacute criaram seus planos de aula de forma totalmente autoral com a produccedilatildeo de seus proacuteprios materiais e incrementando-os com recursos didaacuteticos diversificados como projeccedilatildeo de slides viacutedeos muacutesicas etc como ainda tinham um grande entrosamento com os estudantes que ao longo do ano letivo receberam o suporte e a atenccedilatildeo dos estagiaacuterios por meio da resoluccedilatildeo e correccedilatildeo atenciosa das fichas complementares desenvolvidas para eles O projeto aprimorado nos anos seguintes ganhou grande repercussatildeo e inclusive contou com a apresentaccedilatildeo de relatos de experiecircncia por parte do professor orientador e dos licenciandos em eventos acadecircmicos como o Encontro Nacional de Ensino e Aprendizagem de Liacutengua e Literatura (ENEALL-UFRJ) em novembro de 2014 e o Congresso Nacional de Ensino de Liacutengua Portuguesa (CONELP-UERJ) em julho de 2016 e seguiraacute contribuindo para a atividade autoral dos professores em formaccedilatildeo inicial em sintonia com uma verdadeira praacutetica educativa emancipatoacuteria

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3 A dimensatildeo do professor leitor experiecircncias com a leitura literaacuteria no Estaacutegio Supervisionado em Letras

A perspectiva autoral defendida neste artigo como fundamento do qual emergem os fios que tecem a identidade docente caminho plural e sempre inacabado pode-se desdobrar na dimensatildeo do professor e da professora autores de seus proacuteprios materiais de trabalho como jaacute visto bem como se apresenta numa outra dimensatildeo a princiacutepio oacutebvia quando pensamos no futuro docente de liacutengua portuguesa e literatura mas que na praacutetica perde o caraacuteter de obviedade para se materializar numa questatildeo complexa a dimensatildeo do professor leitor

A escola entendida aqui como lugar de feitura e partilha de saberes constroacutei-se por vezes num movimento contraacuterio de silenciamento dos sujeitos imediatamente envolvidos no processo de ensino-aprendizagem o estudante visto e avaliado muitas vezes pela falta e natildeo pela sua potecircncia e o proacuteprio professor limitado a um sistema que natildeo lhe permite a elaboraccedilatildeo da autoria e da percepccedilatildeo de si no exerciacutecio de seu ofiacutecio Este sistema no entanto natildeo se encerra na escola baacutesica mas prossegue (ou se inicia) no ensino superior cuja predominacircncia de uma visatildeo hieraacuterquica na construccedilatildeo dos saberes pela via de um discurso da autoridade gera profundos abismos na relaccedilatildeo do estudante de Letras com a literatura A universidade fundamentalmente um lugar de experimentaccedilatildeo e pesquisa natildeo raro termina por privilegiar a reproduccedilatildeo de teorias e reflexotildees jaacute referendadas no meio acadecircmico abrindo de fato poucas brechas para a construccedilatildeo de um saber emancipatoacuterio e criativo Em especial no caso do estudante de Letras em seu contato com o texto literaacuterio o processo de silenciamento eacute reforccedilado por essas ldquovozesrdquo que falam sobre o texto mas que pouco contribuem para que seja ouvida a voz do leitor Apropriando-se do par ldquoexperiecircnciasentidordquo defendido por Larrosa (2002) haacute nas instituiccedilotildees formais de ensino pouco espaccedilo para o saber da experiecircncia entendida aqui como um saber que me passa (Cf LARROSA 2002) ou seja algo do mundo que atravessa o sujeito e o afeta modificando-o e modificando tambeacutem o mundo natildeo apenas pelo racional mas pelo sensiacutevel Desse modo estudantes formados por uma escola baacutesica que silencia ingressam na universidade para se formarem docentes numa instituiccedilatildeo que tambeacutem tem como praacutetica o silenciamento atraveacutes de um estiacutemulo agrave leitura de admiraccedilatildeo que atende ao aspecto racional poreacutem fragiliza a dimensatildeo do afeto tatildeo cara no processo de formaccedilatildeo do leitor literaacuterio

Diante dessa pobreza da experiecircncia alguns desafios satildeo colocados para o licenciando de Letras no momento em que se inicia o estaacutegio supervisionado Eacute muito comum que logo nos primeiros encontros com o professor regente o licenciando manifeste o desejo por realizar sua regecircncia em algum conteuacutedo de liacutengua portuguesa afirmando natildeo ter muito contato ou ateacute mesmo apreccedilo pela literatura Ora como trabalhar o texto literaacuterio com estudantes do Ensino Fundamental II e Ensino Meacutedio na perspectiva da formaccedilatildeo do leitor sem ter o futuro docente de fato experimentado essa dimensatildeo subjetiva do contato com o texto Como transgredir a leitura de admiraccedilatildeo leitura de comentaacuterios para a leitura literaacuteria como experiecircncia ldquoA confrontaccedilatildeo do leitor consigo mesmo eacute uma

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das dimensotildees maiores da leiturardquo afirma Jouve (2002 p 61) e a escassez deste confronto gera leitores pouco iacutentimos do texto literaacuterio e de si afinal ldquoa atitude de se perceber a si mesmo num processo do qual participa eacute um momento central da experiecircncia esteacuteticardquo (ISER 1996 apud JOUVE 2002 p 61) A literatura portanto contribui para um saber sobre si a partir do outro e eacute justamente no retorno agrave escola agora na condiccedilatildeo de licenciandos que ao refletirem sobre seu fazer docente iratildeo experimentar o confronto

A orientaccedilatildeo eacute um dos espaccedilos mais importantes do processo de estaacutegio supervisionado Aleacutem de ser institucionalmente o momento em que se vai refletir e discutir sobre as vivecircncias do licenciando nas aulas elaborar tarefas materiais preparar e analisar as coparticipaccedilotildees ela acaba por tornar-se muitas vezes um espaccedilo de troca de experiecircncias em que as lacunas e os anseios do futuro professor vecircm agrave tona quando deparado com a dimensatildeo praacutetica de sua profissatildeo A dificuldade de realizar a transposiccedilatildeo didaacutetica o pouco acuacutemulo de reflexatildeo sobre a identidade docente e as proacuteprias lacunas da formaccedilatildeo se revelam no estaacutegio cabendo ao professor regente a sensibilidade de perceber as demandas singulares de cada grupo de estagiaacuterios ampliando as accedilotildees a serem elaboradas na orientaccedilatildeo

Neste percurso foi possiacutevel perceber que dentre todas as lacunas possiacuteveis na formaccedilatildeo do estudante de Letras a do leitor literaacuterio era uma das mais recorrentes Ausecircncia de leituras-chave fragilidades na interpretaccedilatildeo e anaacutelise dos textos dificuldades ateacute mesmo na leitura oral de contos e poemas enfim todas estas precariedades geraram novas demandas para o momento da orientaccedilatildeo que passou a ser tambeacutem um lugar da experimentaccedilatildeo literaacuteria na tentativa de romper o silecircncio desses futuros professores diante da literatura Sendo assim iniciamos uma rotina de leitura e interpretaccedilatildeo partilhada dos textos literaacuterios que comporiam as aulas O objetivo era dar contorno agrave identidade do professor-leitor em suas variadas perspectivas o que lecirc para si o que lecirc para o aluno o que lecirc com o aluno

O relato selecionado para este artigo diz respeito ao trabalho realizado ao longo de trecircs anos em turmas do 9ordm ano do EF II do CAp UFRJ O Coleacutegio de aplicaccedilatildeo da UFRJ possui em seu curriacuteculo do segundo segmento do fundamental um trabalho com Literatura na perspectiva da formaccedilatildeo do leitor literaacuterio O trabalho eacute prioritariamente desenvolvido a partir de temaacuteticas divididas e pensadas para cada seacuterie cabendo ao 9deg ano dentre outros temas o trabalho com o fantaacutestico Para isso optamos por elaborar coletivamente uma coletacircnea de contos composta por sugestotildees do professor em conjunto com as leituras que os proacuteprios licenciandos traziam de sua bagagem A etapa de seleccedilatildeo de textos para uma turma jaacute trouxe dificuldades para os estagiaacuterios na medida em que muitos natildeo se sentiam seguros em suas escolhas A seleccedilatildeo de textos natildeo eacute neutra assim como a docecircncia natildeo o eacute Ela implica tomada de posiccedilatildeo atitude poliacutetica diante do curriacuteculo diante do mundo Mas para que essas escolhas possam ser feitas eacute preciso que o professor se sinta rico em experiecircncias de leitura A fim de colaborar com este processo cada conto trazido era lido de forma partilhada na orientaccedilatildeo e cabia ao licenciando responsaacutevel a leitura em voz alta do texto Assim aleacutem de haver uma troca e um amadurecimento a respeito

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dos criteacuterios que nos fariam escolher ou natildeo aquele texto para aquela determinada seacuterie era possiacutevel experimentar uma atividade ainda pouco explorada no cotidiano das aulas a leitura oral o lugar do professor que lecirc para seus alunos e que atraveacutes de sua leitura traz agrave tona imagens e constroacutei pontes entre o estudante e o texto

Finalizada a coletacircnea era preciso que os licenciados elaborassem um plano de aula a partir de um dos contos selecionados Surgem daiacute novas dificuldades que esbarram tanto em um desconhecimento ndash totalmente esperado ndash a respeito do que seria um plano de aula quanto ndash e daiacute voltamos para as lacunas da formaccedilatildeo ndash em uma ignoracircncia frente aos saberes a serem explorados diante de um texto literaacuterio A dificuldade em compreender na praacutetica a literatura como uma forma autocircnoma de conhecimento sobre o mundo ndash ldquoA literatura assume muitos saberesrdquo jaacute dizia Barthes (2007 p 17) ndash dotada de suas proacuteprias leis gerava planos de trabalho que subjugavam o texto literaacuterio a interpretaccedilotildees psicoloacutegicas socioloacutegicas etc ou ateacute mesmo a leituras que davam grande ecircnfase agrave biografia do autor e ao periacuteodo histoacuterico da obra Em outras palavras a dimensatildeo subjetiva e o trabalho com o simboacutelico se perdiam em meio a um dizer sobre o texto que pouco colabora para o engajamento e o viacutenculo afetivo do leitor Assim o processo de refeitura desses planos de aula envolveu o (re)encontro do professor-leitor com aquele texto experimentando ele proacuteprio um atravessamento pelo texto literaacuterio nas suas diferentes camadas mas a princiacutepio sem qualquer premissa teoacuterica Importante ressaltar que natildeo se estaacute aqui abrindo matildeo do professor como um leitor especializado poreacutem estamos defendendo que pensar as aulas de literatura como um lugar de encontro e promoccedilatildeo de experiecircncias esteacuteticas com o texto significa que todos os envolvidos no processo (professor-texto-aluno) devem se sentir protagonistas da experiecircncia

Pensar resultados em um processo de formaccedilatildeo que como dissemos no iniacutecio estaacute sempre por se fazer pode parecer incoerente no entanto a partilha de um relato de trabalho demanda de noacutes capacidade de amarrar certas pontas traccedilar reflexotildees que contribuam para o pensamento sobre nosso objeto de pesquisa ou seja as identidades do professor de liacutengua e literatura Neste sentido eacute preciso afirmar os ecircxitos que o trabalho cotidiano com a leitura literaacuteria gerou na formaccedilatildeo dos futuros professores Licenciandos que fariam sua regecircncia em algum toacutepico de Liacutengua Portuguesa por a princiacutepio sentirem-se mais confortaacuteveis com o conteuacutedo engajaram-se de tal forma no trabalho com a literatura que trocaram seus temas de aula Assim as turmas de 9ordm ano do EF II ao longo desses trecircs anos encontraram-se com Mia Couto Edgar Allan Poe Julio Cortaacutezar Murilo Rubiatildeo Lygia Fagundes Telles entre tantos outros Presenciar licenciandos desejosos de ler com seus alunos mais seguros no trato com o texto literaacuterio eacute realizar o direito agrave literatura defendido por Candido (2011) em sua dimensatildeo do direito humano ao conhecimento e agrave produccedilatildeo artiacutestica do homem ao longo do tempo Esse direito para se estender ao aluno precisa chegar de fato ao professor e para isso na contramatildeo da desumanizaccedilatildeo do trabalho pedagoacutegico eacute preciso forjar espaccedilos para a experiecircncia esteacutetica que ensina nas brechas e promove possibilidades de uma relaccedilatildeo criativa e emancipatoacuteria com o saber

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Consideraccedilotildees finais

A epiacutegrafe que abriu esse artigo de Cora Coralina (2007 p 27) tira do lugar comum a oposiccedilatildeo entre os pares ldquotransferir x ensinarrdquo e ldquosaber x aprenderrdquo Paulo Freire (2011 p92) ao referir-se agrave praacutetica de uma ldquoeducaccedilatildeo bancaacuteriardquo pontuava muito bem essa distinccedilatildeo de modo que o conhecimento natildeo se faz pela transferecircncia e acuacutemulo de saberes mas pela experiecircncia subjetiva do ensinar e aprender No poema de Cora Coralina essa dimensatildeo eacute abarcada poreacutem em uma perspectiva natildeo dialeacutetica o que transfere o que sabe eacute tatildeo feliz quanto o que aprende o que ensina Contudo os saberes transferidos de que trata em seu poema natildeo estatildeo na loacutegica da relaccedilatildeo ensino-aprendizagem mas no que eacute transmitido de geraccedilatildeo para geraccedilatildeo pela cultura oral e pela praacutetica natildeo pela teoria Estaria proacuteximo do que Manoel de Barros chamou de saber por ldquoignoratildeccedilasrdquo (2016 p 5) o que se sabe sem nunca ter precisado aprender o que nos eacute instintivo por natureza Jaacute na relaccedilatildeo de ensino-aprendizagem estaacute em cena a praacutetica da dodiscecircncia em uma relaccedilatildeo horizontal tanto aprende o que ensina quanto ensina o que aprende Essa troca de experiecircncias que eacute pura subjetividade subverte a ordem da verticalidade entre um detentor do saber que transfere para o ignorante aquilo que este deve conhecer

O momento da praacutetica de ensino e do estaacutegio supervisionado abarca essa dupla relaccedilatildeo entre ldquotransferir o que se saberdquo e ldquoaprender o que se ensinardquo dentro da perspectiva abordada por Cora Coralina isto eacute de forma natildeo dialeacutetica Natildeo se ldquoensinardquo ou se ldquoaprenderdquo a ser professor mas muito se aprende ensinando que certos saberes satildeo pela praacutetica e pela troca de experiecircncia transpassados trocados e desenvolvidos pelo proacuteprio fazer pedagoacutegico in loco Assim nesse trabalho tentamos abarcar justamente essas duas dimensotildees ao focarmos na construccedilatildeo de identidades de professores autores e leitores durante o estaacutegio docente de estudantes da licenciatura em Letras da UFRJ

A questatildeo curricular foi ponto de partida de nossa discussatildeo para entender o contexto de formaccedilatildeo docente inicial os curriacuteculos dos cursos de licenciatura em Letras estatildeo apartados da realidade dos curriacuteculos de Liacutengua Portuguesa e Literatura no Ensino Baacutesico encontrados na sala de aula e em poucos momentos a pesquisa nas aacutereas de Liacutengua e Literatura convergem para se repensar abordagens e estrateacutegias de transposiccedilatildeo didaacutetica do que haacute de mais avanccedilado nas discussotildees acadecircmicas para dentro da escola Aleacutem disso a cisatildeo entre ldquoliacutengua x literaturardquo no curriacuteculo acaba por segmentar o conhecimento em toacutepicos curriculares a serem cumpridos por cada aacuterea sem entender que o diaacutelogo entre ambas eacute fundamental para a compreensatildeo de um ensino de liacutengua e literatura natildeo utilitaacuterio que natildeo esteja apenas a serviccedilo da ldquoboa escritardquo ou da ldquoboa leiturardquo mas da formaccedilatildeo de um aluno leitor e autor criacutetico e reflexivo sobre a sua linguagem e sua atuaccedilatildeo social e referencial no mundo Nessa linha o ensino literaacuterio eacute primordial posto que propicia formas de ler e imaginar o mundo em muacuteltiplas potencialidades Ocorre contudo o oposto a literatura vista como mais um gecircnero textual a ser reconhecido pelo ldquobom leitorrdquo que natildeo se trata do ldquoleitor de mundordquo de que fala Freire (2011 p95) entra como apecircndice nas aulas de Liacutengua Portuguesa

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Contribuem de forma significativa para a imutabilidade dessa realidade as condiccedilotildees de trabalho do professor do Ensino Baacutesico com carga horaacuteria em sala de aula exaustiva sem tempo e estiacutemulo para a atualizaccedilatildeo e a formaccedilatildeo continuada sem tempo para a preparaccedilatildeo de suas aulas e produccedilatildeo de seu proacuteprio material didaacutetico vecirc-se enredado agrave obrigatoriedade de cumprimento de uma base curricular comum que vai de encontro a uma praacutetica pedagoacutegica emancipatoacuteria excluindo-se as diversidades de realidades e contextos e a construccedilatildeo de um curriacuteculo que se decirc no cotidiano Assim eacute retirada do professor toda a sua dimensatildeo intelectual e potencialmente criativa posto que se reduz agrave figura de instrutor mediador e reprodutor de um curriacuteculo pensado por terceiros ao aplicar manuais apostilados e livros didaacuteticos reducionistas de nosso trabalho

Por fim haacute que se pensar na dimensatildeo do professor-autor perpassada pela dimensatildeo do professor-leitor que assume a subjetividade de seu repertoacuterio de leituras sem contudo abrir matildeo de seu lugar de leitor especialista e de professor que escuta as leituras de seus estudantes de modo a amparar com a criacutetica necessaacuteria e ampliar o repertoacuterio de sentidos do texto literaacuterio lido em sala de aula

Referecircncias

BARROS Manoel de O livro das ignoratildeccedilas Rio de Janeiro Alfaguara 2016

BARTHES R Aula Traduccedilatildeo e posfaacutecio de Leila Perrone-Moiseacutes Satildeo Paulo Cultrix 2007

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CHIAPPINI L Reinvenccedilatildeo da catedral liacutengua literatura comunicaccedilatildeo ndash novas tecnologias e poliacuteticas de ensino Satildeo Paulo Cortez Editora 2005

COMPAGNON Antoine Literatura para quecirc Belo Horizonte Editora UFMG 2009

CORALINA Cora Vinteacutem de cobre meias confissotildees de Aninha 9ed Satildeo Paulo Global 2007

DALVI M A REZENDE N JOVER-FALEIROS R (Org) Leitura de literatura na escola Satildeo Paulo Paraacutebola 2013

FREIRE P A importacircncia do ato de ler em trecircs artigos que se completam Satildeo Paulo Cortez Editora 2011

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JOUVE V A leitura Traduccedilatildeo Brigitte Hervot Satildeo Paulo Ed UNESP 2002

LAJOLO M Livro didaacutetico um (quase) manual de usuaacuterio Em aberto Brasiacutelia ano 16 n 69 p 3-9 janmar 1996

LARROSA J Notas sobre a experiecircncia e o saber de experiecircncia Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 19 p 20-28 2002

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LINS Osman Do ideal e da gloacuteria problemas inculturais brasileiros Satildeo Paulo Summus 1977

MARCUSCHI L A Produccedilatildeo textual anaacutelise de gecircneros e compreensatildeo Satildeo Paulo Paraacutebola Editorial 2008

OLIVEIRA I B de Curriacuteculo e processos de aprendizagem ensino Poliacuteticas praacuteticas Educacionais Cotidianas Curriacuteculo sem Fronteiras n 3 p 375-391 2013

PARAcircMETROS CURRICULARES NACIONAIS Ensino Meacutedio ndash MEC 2000

PARAcircMETROS CURRICULARES NACIONAIS liacutengua portuguesa ndash terceiro e quarto ciclos do ensino fundamentalSecretaria de Educaccedilatildeo Fundamental Brasiacutelia MEC SEF 1998

PL 8672015 Inclui entre as Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional o ldquoPrograma Escola sem Partidordquo httpwwwcamaragovbrsilegintegras1317168pdf Capturado em 11082017

RUEacute J As competecircncias na sala de aula a atividade como eixo do seu desenvolvimento In ARANTES Valeacuteria Amorim (Org) Educaccedilatildeo e competecircncias pontos e contrapontos Satildeo Paulo Summus Editorial 2009 p 52-57

TODOROV Tzvetan A literatura em perigo Rio de Janeiro Difel 2010

Recebido em 30 de abril de 2017

Aceito em 27 de agosto de 2017

Ana Creacutelia Penha Dias

Possui graduaccedilatildeo em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1994) especializaccedilatildeo em literatura infantil e juvenil (1999) mestrado (2003) e doutorado (2008) em Letras (Letras Vernaacuteculas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Atualmente eacute professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro Tem experiecircncia na aacuterea de Letras com ecircnfase em Literatura Brasileira atuando principalmente nos seguintes temas literatura infantil literatura brasileira literatura e ensino e formaccedilatildeo do leitor literaacuterio Eacute liacuteder do grupo de pesquisa Literatura e Educaccedilatildeo literaacuteria (dgpcnpqbrdgpespelhogrupo5906903233650588) e membro do GT da Anpoll Literatura e Ensino anacreliagmailcom

Andreacute Luiacutes Mouratildeo de Uzecircda

Bacharel e licenciado em Letras com habilitaccedilatildeo em Liacutengua Portuguesa e suas respectivas literaturas pela UFRJ bacharel em Museologia pela UNIRIO Mestre em Ciecircncia da Literatura pela UFRJ Eacute professor do Ensino Baacutesico Teacutecnico e Tecnoloacutegico do Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da UFRJ Pesquisador do grupo de pesquisa Literatura e Educaccedilatildeo Literaacuteria (dgpcnpqbrdgpespelhogrupo5906903233650588) coordenador do projeto de pesquisa Medecircra ndash Mediaccedilotildees do Literaacuterio e integrante do Nuacutecleo Interdisciplinar de Estudos Carnavalescos (NIEC) Foi membro do corpo editorial da Revista Foacuterum de Literatura Brasileira Contemporacircnea junto ao Departamento de Letras Vernaacuteculas da Faculdade de Letras ndash UFRJ e do corpo editorial do perioacutedico Revista Eletrocircnica Jovem Museologia da Escola de Museologia da UNIRIO andreuzedagmailcom

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Maria Coelho Araripe de Paula Gomes

Mestre em Literatura Brasileira pela UFRJ (2015) possui especializaccedilatildeo em Literatura Infanto-Juvenil (2010) e graduaccedilatildeo em Letras pela Universidade Federal Fluminense (2006) onde atuou na aacuterea de Literatura Brasileira Moderna e Literatura Portuguesa Iniciou os estudos de Artes Cecircnicas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (2017) Pertence ao quadro efetivo docente do Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da UFRJ no setor de Liacutengua Portuguesa e desenvolve trabalho artiacutestico como atriz e contadora de histoacuterias desde 2008 com o Grupo Mosaicos ndash Teatro Muacutesica Histoacuterias Integra o grupo de pesquisa Literatura e Educaccedilatildeo Literaacuteria (dgpcnpqbrdgpespelhogrupo5906903233650588) umamaria84gmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Leituras de ldquoA flor e a naacuteuseardquo de Carlos Drummond de Andrade em praacuteticas de Estaacutegio

Supervisionado em Liacutengua Portuguesa Readings of ldquoThe Flower and the Nauseardquo by Carlos

Drummond de Andrade in an Internship in Portuguese Language Teaching

Lecturas de ldquoA flor e a naacuteusearaquo de Carlos Drummond de Andradeen praacutecticas de Pasantiacutea de Intervencioacuten en Lengua

Portuguesa

Diogo dos Santos SouzaUniversidade Federal de AlagoasInstituto Federal de Alagoas

Eliana Kefalaacutes de OliveiraUniversidade Federal de Alagoas

ResumoO contato entre o leitor e palavra literaacuteria eacute uma experiecircncia complexa que no contexto da sala de aula demanda do professor o planejamento de estrateacutegias de leitura e preparo de abordagens do texto que o transformem num objeto significativo para o estudante O objetivo do presente artigo eacute apresentar o relato de uma oficina de leitura sobre o poema ldquoA flor e a naacuteuseardquo de Carlos Drummond de Andrade realizada por alunos da disciplina Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa 2 que teve como foco a teoria e praacutetica do ensino de Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas Atraveacutes da elaboraccedilatildeo e execuccedilatildeo da oficina os estudantes estagiaacuterios notaram que as ldquoinquietudesrdquo do metapoema escolhido poderiam se transformar em caminhos de produccedilatildeo de sentidos variados tornando a sala de aula um lugar tambeacutem de encontro com o inesperado Isto posto concluiu-se que na exploraccedilatildeo da leitura literaacuteria as lacunas os vazios e as indeterminaccedilotildees geradas pelo poema tornam-se elementos que poderiam compor um convite ao leitor a jogar com o texto e com os seus modos de leitura Palavras-chave Poesia Ensino Carlos Drummond

AbstractThe contact between the reader and the literary word is a complex experience that in the context of the classroom requires that teachers plan reading strategies and prepare approaches to the text that make it a significant object for students The purpose of this article is to present the report of a reading class on the poem ldquoThe flower and the nauseardquo by Carlos Drummond de Andrade carried out by students of the Internship in Portuguese Language 2 course at the

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Faculty of Arts of the Federal University of Alagoas The focus of this course is theory and practice of teaching Literature Throughout the preparation and development of the class the students noticed that the ldquodisquietnessesrdquo of the chosen metapoem could lead to varied meanings making the classroom a place where the unexpected is met Therefore in the exploration of literary reading the gaps voids and indeterminacies generated by the poem become elements that can compose an invitation for the reader to play with the text and with its modes of readingKey-words Poetry Teaching Carlos Drummond

ResumenEl contacto entre el lector y la palabra literaria es una experiencia compleja que en el contexto del aula demanda del profesor la planificacioacuten de estrategias de lectura y preparacioacuten de enfoques con el texto que lo transformen en un objeto significativo para el estudiante El objetivo del presente artiacuteculo es presentar el relato de una clase de lectura sobre el poema ldquoA flor e a naacuteuseardquo de Carlos Drummond de Andrade realizada por alumnos de la asignatura de la Pasantiacutea de Intervencioacuten en la Lengua Portuguesa 2 que tuvo como foco la teoriacutea y praacutectica de la ensentildeanza de Literatura de la Facultad de Letras de la Universidad Federal de Alagoas A traveacutes de la elaboracioacuten y ejecucioacuten de la leccioacuten los estudiantes pasantes notaron que las ldquoinquietudesrdquo del metapoema elegido podriacutean transformarse en caminos de produccioacuten de sentidos variados lo que convierte el aula en un lugar tambieacuten de encuentro con lo inesperado En este sentido se concluye que en la exploracioacuten de la lectura literaria los huecos los vaciacuteos e indeterminaciones generadas por el poema se convierten en elementos que podriacutean constituirse en una invitacioacuten al lector a jugar con el texto y con sus modos de lecturaPalabras clave Poesiacutea Ensentildeanza Carlos Drummond de Andrade

1 Introduccedilatildeo

No ensino de literatura um dos desafios prementes eacute o estabelecimento do contato efetivo com o texto literaacuterio em especial com a poesia de modo a atrair o aluno para a malha de significaccedilotildees e para a pluralidade de sentidos dos poemas O presente trabalho1 tem o intuito de analisar uma praacutetica de ensino de literatura realizada por estudantes do Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa 22 na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) momento destinado ao estudo de praacuteticas e metodologias de leitura na sala de aula

Foram feitas anaacutelises de diaacuterios de campo da oficina de leitura literaacuteria aplicada em uma turma do primeiro ano do Ensino Meacutedio do Coleacutegio da Poliacutecia Militar Tiradentes

1 A discussatildeo que propomos apresentar neste artigo corresponde a um recorte da dissertaccedilatildeo ldquoUm eu todo retorcido no jogo de leitura de lsquoA flor e a naacuteusearsquo de Carlos Drummond de Andrade metapoesia e ensinordquo apresentada no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras e Linguiacutestica (PPGLL) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) em marccedilo de 2015 de autoria de Diogo dos Santos Souza e orientaccedilatildeo de Eliana Kefalaacutes Oliveira

2 Os aacuteudios das aulas foram gravados atraveacutes de celular e posteriormente transcritos por Diogo dos Santos Souza sendo ainda utilizados nos diaacuterios de campo aqui analisados escritos por esse mesmo autor

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situado em MaceioacuteAlagoas O professor3 e os discentes estagiaacuterios da disciplina Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa 2 planejaram uma praacutetica realizada em dezembro de 2014 de leitura literaacuteria com base no poema ldquoA flor e a naacuteuseardquo texto que pertence ao livro A rosa do povo (1942) de Carlos Drummond de Andrade Observamos nesse contato entre o poema os estagiaacuterios e os leitores da educaccedilatildeo baacutesica as formas como o texto literaacuterio foi levado para a sala de aula bem como os traccedilos metapoeacuteticos que foram abordados pelos estagiaacuterios em diaacutelogo com os estudantes analisando tambeacutem as inquietudes dessa experiecircncia de trabalho

Interessa-nos portanto pensar que este trabalho fruto de um diaacutelogo com a poesia de Carlos Drummond de Andrade pode contribuir para a forma como o leitor vecirc natildeo somente a metapoesia do autor de ldquosete facesrdquo como tambeacutem a metapoesia de uma forma geral atrelada agrave formaccedilatildeo do leitor Para a nossa surpresa ainda parece ser um tanto incipiente de acordo com os levantamentos bibliograacuteficos realizados a quantidade de trabalhos que se ocupam em estudar as propriedades que caracterizam o discurso metapoeacutetico Essa zona aparenta ser minimizada ainda mais quando relacionamos essa temaacutetica a uma proposta de leitura que visa descobrir novos modos de construir o encontro entre o texto e o leitor

De modo geral procura-se refletir sobre de que maneira a poesia que fala de si proacutepria pode ser transformada num convite agrave leitura num convite que joga brinca e provoca o leitor a entrar nas veredas do acaso do inesperado do mundo literaacuterio

2 Leituras de ldquoA flor e a naacuteuseardquo

Na realizaccedilatildeo da oficina de leitura um trio de estagiaacuterios foi encaminhado para uma turma do 1ordm ano do Ensino Meacutedio com a incumbecircncia de levar uma proposta de leitura do poema ldquoA flor e naacuteuseardquo apontando caminhos de leitura que pudessem indicar os aspectos metapoeacuteticos da poesia de A rosa do povo

Em um primeiro momento da atividade na sala de aula a estagiaacuteria 1 pede para que cada aluno diga o seu nome e cite a ldquoexperiecircncia literaacuteriardquo que teve seja com poema ou qualquer outro gecircnero lido Em seguida a estagiaacuteria 1 explica a complexa posiccedilatildeo de Carlos Drummond no momento de sua produccedilatildeo poeacutetica frente agrave ditadura

[] ou vocecirc se colocava contra ou a favor Carlos Drummond se colocou contra o momento em que a censura estava presente no Brasil As pessoas tinham que seguir aquele padratildeo Como ficavam as pessoas que eram contra o sistema Os artistas tinham que se manifestar de alguma forma4

3 A disciplina de Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa foi ministrada no segundo semestre letivo de 2014 por Diogo dos Santos Souza que atuou como professor voluntaacuterio na ocasiatildeo

4 Todas as referecircncias a passagens dos momentos da aula mencionada competem ao Diaacuterio de Campo da aula do dia 8 de dezembro de 2014

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Observa-se aqui a escolha de antecipar informaccedilotildees relacionadas ao contexto histoacuterico antes de trabalhar a interpretaccedilatildeo do texto A estagiaacuteria destaca que alguns artistas encontravam caminhos menos expliacutecitos para expor o seu pensamento numa espeacutecie de indicaccedilatildeo da atmosfera do poema que seraacute lido Ela tambeacutem pergunta se todos jaacute ouviram falar sobre as figuras de linguagem especificamente a metaacutefora

Prosseguindo esse momento inicial realizou-se a leitura do metapoema objeto de estudo da aula

Preso agrave minha classe e a algumas roupasvou de branco pela rua cinzentaMelancolias mercadorias espreitam-meDevo seguir ateacute o enjooPosso sem armas revoltar-me

Olhos sujos no reloacutegio da torreNatildeo o tempo natildeo chegou de completa justiccedilaO tempo eacute ainda de fezes maus poemas alucinaccedilotildees e esperaO tempo pobre o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse

Em vatildeo me tento explicar os muros satildeo surdosSob a pele das palavras haacute cifras e coacutedigosO sol consola os doentes e natildeo os renovaAs coisas Que tristes satildeo as coisas consideradas sem ecircnfase

Vomitar este teacutedio sobre a cidadeQuarenta anos e nenhum problemaresolvido sequer colocadoNenhuma carta escrita nem recebidaTodos os homens voltam para casaEstatildeo menos livres mas levam jornaise soletram o mundo sabendo que o perdem

Crimes da terra como perdoaacute-losTomei parte em muitos outros escondiAlguns achei belos foram publicadosCrimes suaves que ajudam a viverRaccedilatildeo diaacuteria de erro distribuiacuteda em casaOs ferozes padeiros do malOs ferozes leiteiros do mal

Pocircr fogo em tudo inclusive em mimAo menino de 1918 chamavam anarquistaPoreacutem meu oacutedio eacute o melhor de mimCom ele me salvoe dou a poucos uma esperanccedila miacutenima

Uma flor nasceu na ruaPassem de longe bondes ocircnibus rio de accedilo do traacutefego Uma flor ainda desbotada ilude a poliacutecia rompe o asfaltoFaccedilam completo silecircncio paralisem os negoacutecios garanto que uma flor nasceu

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Sua cor natildeo se percebe Suas peacutetalas natildeo se abremSeu nome natildeo estaacute nos livros Eacute feiaMas eacute realmente uma flor

Sento-me no chatildeo da capital do paiacutes agraves cinco horas da tardee lentamente passo a matildeo nessa forma inseguraDo lado das montanhas nuvens maciccedilas avolumam-sePequenos pontos brancos movem-se no mar galinhas em pacircnico

Eacute feia Mas eacute uma flor Furou o asfalto o teacutedioo nojo e o oacutedio(ANDRADE 2003 p118-119)

Continuando a aula a estagiaacuteria 1 explica o que eacute metapoema ldquoeacute quando um poema fala sobre o proacuteprio poemardquo Essa definiccedilatildeo (talvez um tanto generalizante) torna-se a referecircncia inicial agrave autorreflexividade literaacuteria apresentada na aula Na primeira leitura de ldquoA flor e a naacuteuseardquo o estagiaacuterio 2 pede para que os alunos sublinhem os elementos que fazem o texto ser literaacuterio O estagiaacuterio lecirc o poema e faz o seguinte comentaacuterio ao teacutermino da leitura ldquoagraves vezes ele (sujeito liacuterico) natildeo fala umas coisas sem sentido Ou seraacute que haacute sentido Haacute metaacuteforas nesse textordquo Ainda que a expressatildeo ldquocoisas sem sentidordquo seja questionaacutevel por associar a literatura ao natildeo inteligiacutevel essas primeiras indicaccedilotildees de possiacuteveis olhares para o poema que satildeo lanccediladas para a turma acabam por ganhar um tom provocador pois ao assumir que pode ou natildeo haver ldquocoisas sem sentidordquo nos versos lidos os alunos atentam-se para o inapreensiacutevel e para o que espera ser interpretado pelo leitor Pode-se observar essas ldquocoisas sem sentidordquo atraveacutes da ausecircncia de conexatildeo por exemplo entre a sexta e a seacutetima estrofe o que evidenciaria um eu liacuterico que natildeo se expressa na esteira de uma linearidade angustiando-se nesse espaccedilo em que a flor ainda natildeo nasceu Eacute como se o sujeito liacuterico incomodado pudesse tirar aqueles leitores em diaacutelogos de suas zonas de conforto permitindo que o eu todo retorcido quisesse contaminar as experiecircncias de interpretaccedilatildeo dos proacuteprios leitores Candido (1965 p83) em ldquoInquietudes na poesia de Drummondrdquo diz que ldquoo eu torto do poeta eacute igualmente uma subjetividade de todos ou de muitos no mundo tortordquo Nesse caminho essa noccedilatildeo de ldquotorccedilatildeordquo proposta por Candido foi apropriada no desenvolvimento da leitura da obra de Carlos Drummond de Andrade

O estagiaacuterio 2 na tentativa de explorar possibilidades de leitura para o tiacutetulo do poema pergunta ldquoO que tem a ver vomitar o teacutedio com o tiacutetulo do textordquo Os alunos respondem que esse ldquoteacutediordquo se relaciona com a naacuteusea sendo a flor ldquouma coisa boa e a naacuteusea natildeordquo Nesse contexto o estagiaacuterio 2 segue com uma nova pergunta ldquoSeraacute que o cheiro da flor causou naacuteusea e ele vomitourdquo A turma natildeo concorda talvez por causa da identificaccedilatildeo feita pelos alunos da antiacutetese ldquoflor e naacuteuseardquo O aluno Gustavo5 afirma ldquoa naacuteusea eu acho que eacute relacionada como se fosse a expulsatildeo da vida que natildeo abre caminhos sei laacuterdquo

5 Fizemos a opccedilatildeo de resguardar a identidade de cada interlocutor utilizando nomes fictiacutecios para cada um deles

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Poderiacuteamos pensar a partir da fala desse estudante que a naacuteusea do eu liacuterico se trataria de uma espeacutecie de exiacutelio do seio social em que vive proacuteximo da escrita literaacuteria que estaacute sendo gestada Desse modo o estado nauseante elemento que compotildee a imagem de ldquoum eu todo retorcidordquo proporciona a compreensatildeo da atmosfera metapoeacutetica um indiviacuteduo que sofre ao estar distante da poesia sentindo-se exilado

Ainda na leitura do iniacutecio do texto o estagiaacuterio 2 lecirc o verso inicial ldquoPreso a minha classe e algumas roupasrdquo Em seguida ele pergunta agrave turma o que esse verso pode significar O aluno Everaldo afirma que ldquoas roupas satildeo as aparecircncias que cada classe tinhardquo apontando para a reflexatildeo de uma possiacutevel prisatildeo nas aparecircncias ao padratildeo social seguido Assim a leitura do texto encaminha-se para a compreensatildeo de que alguns versos de Drummond se aproximam de uma expressatildeo de um estado de opressatildeo do indiviacuteduo

Eacute interessante observar que as experiecircncias analiacuteticas de contato com a obra literaacuteria na sala de aula em um espaccedilo dialoacutegico permitem construir coletivamente um discurso criacutetico sobre o texto Pinheiro (2006) em ldquoTeoria da literatura criacutetica literaacuteria e ensinordquo relativiza e revisita o lugar da criacutetica na formaccedilatildeo escolar do leitor literaacuterio Para esse autor a teoria literaacuteria e a criacutetica natildeo devem ser tomadas de modo cristalizado e a priori no trabalho com a leitura na sala de aula Segundo Pinheiro (2006 p 116) a criacutetica pode iluminar e instigar a anaacutelise ou dar ldquopistas para uma compreensatildeo novardquo mas defende-se principalmente o exerciacutecio criacutetico sobre o texto literaacuterio na interlocuccedilatildeo com os estudantes ldquoos alunos devidamente estimuladosmotivados poderiam realizar alguns exerciacutecios de criacuteticardquo (PINHEIRO 2006 p120)

Consideramos que esse exerciacutecio de interpretaccedilatildeo do texto literaacuterio em sala de aula pode ampliar nas pesquisas acadecircmicas o alcance das experiecircncias vividas pois o que desponta na interlocuccedilatildeo e no contato com o texto literaacuterio permite compor (ou ateacute contrapor) sentidos se colocados lado a lado com algumas perspectivas criacuteticas

O modo como a histoacuteria enquanto campo do conhecimento transforma-se em proble-ma esteacutetico eacute uma questatildeo complexa para a criacutetica posto que o enigma do poeta eacute tambeacutem enigma para o criacutetico (como o eacute para qualquer leitor) que lida com a razatildeo dessa incoacutegnita que natildeo se desata Por isso eacute preciso refazer por dentro o trajeto das curvas da aporia (ARRIGUCCI 2005 p 104) Isto eacute as inquietudes do texto no caso do poema de Drummond reforccedilam a intensidade da interrogaccedilatildeo e dos natildeo ditos na propensatildeo agrave reinvenccedilatildeo dos sentidos para a qual o texto aponta Essa situaccedilatildeo transposta para a aula de literatura tambeacutem eacute complexa jaacute que o professor pode ldquotraduzirrdquo esse enigma do texto de forma que o fundo histoacuterico e as ca-tegorias esteacuteticas tatildeo prementes natildeo sejam o eixo preponderante ou cristalizador de anaacutelise

Analisando o verso ldquovou de branco pela rua cinzentardquo o aluno Hugo vecirc uma alusatildeo agrave transparecircncia ldquoA rua cinzenta impossibilita o sujeito de se expressar ou entatildeo todos satildeo iguais e ele eacute o diferenterdquo Assim o eu liacuterico que se apresenta no poema pode ser lido como algueacutem singular que se faz distinto possivelmente ao fazer esse movimento de aproximaccedilatildeo com a escrita literaacuteria

Adiantando a discussatildeo sobre a metapoesia o estagiaacuterio 2 indaga ldquoQual seria a forma de ele se revoltar sem armas ndash Escrevendo Percebam que o poeta estaacute falando

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de poesiardquo Sob essa perspectiva a visatildeo da metapoesia jaacute eacute transposta ndash de antematildeo pelo estagiaacuterio ndash para a voz do sujeito liacuterico O verso ldquoPosso sem armas revoltar-merdquo aparenta ser uma chave de leitura do discurso metalinguiacutestico dada previamente pelo estagiaacuterio (que talvez pudesse ter instigado a questatildeo mais do que exposto sua anaacutelise) Vale destacar tambeacutem que essa pergunta eacute feita logo na primeira estrofe provocando o leitor a entrar nesse universo em que a palavra se reveste como praacutetica social Outra pergunta eacute feita pelo estagiaacuterio 2 ldquoSe ligarmos isso ao momento da histoacuteria e da poliacutetica o que encontraremosrdquo A ditadura eacute a resposta de alguns alunos Por fim o estagiaacuterio pergunta ldquoQual foi o meacutetodo que o poeta achou para se expressarrdquo Os alunos respondem (como previsto na pergunta e resposta dadas pelo estagiaacuterio) que foi a escrita Apoacutes a discussatildeo do poema a turma passou acompreender que a escrita literaacuteria era um aspecto central no poema

Pensar na ideia do texto literaacuterio como fuga eacute entrar no percurso do sujeito liacuterico de ldquoA flor e a naacuteuseardquo que se vecirc preso no iniacutecio do poema e aos poucos vai se libertando ao se aproximar do espaccedilo de nascimento da poesia Eacute possiacutevel tambeacutem compreender a abordagem acima do poema exposta pelo estagiaacuterio 2 como um modo de representar o eu poeacutetico que ao ser associado a uma atmosfera de refuacutegio aparece um tanto retido retorcido os muros que o rodeiam natildeo o escutam exilando-o

A partir desse exerciacutecio analiacutetico do estagiaacuterio poder-se-ia ateacute pontuar que essa prisatildeo diz respeito ao exiacutelio do mundo ficcional tendo em vista que esse poema trata da busca do encontro da voz liacuterica com a sua proacutepria poesia Vale destacar que sendo metaacutefora para um possiacutevel isolamento os muros enunciados na terceira estrofe (ldquoEm vatildeo me tento explicar os muros satildeo surdosrdquo) bloqueiam a tentativa de saiacuteda caso que exprime dessa maneira a solidatildeo existencial de um mundo em que o indiviacuteduo natildeo eacute ouvido aparentando estar num lugar inoacutespito A dor do enclausuramento eacute tatildeo intensa que nem o sol luz preciosa para aqueles que estatildeo privados de ser livres renova-o apesar de ainda ser um consolo (ldquoO sol consola os doentes e natildeo os renovardquo) Visto que os muros ldquosatildeo surdosrdquo o caminho eacute tentar ldquofurar o asfaltordquo ndash o bloqueio metafoacuterico da liberdade ndash atraveacutes da flor pois seraacute ela a voz que se faraacute ouvida na sociedade

Dando prosseguimento agrave interlocuccedilatildeo analiacutetica na leitura da quinta estrofe o estagiaacuterio 2 pergunta ldquoO que seriam os lsquocrimes da terrarsquordquo O aluno Jian responde que esses crimes poderiam ser notiacutecias da ditadura e o estagiaacuterio refuta que provavelmente natildeo asserccedilatildeo que talvez pudesse ter sido melhor revisitada ateacute que ponto o termo ldquocrimes da terrardquo natildeo teria um ponto de contato com a questatildeo da ditadura Natildeo seria apressado demais abrir matildeo desse olhar interpretativo Natildeo seria ele uma pista para um olhar mais abrangente sobre a expressatildeo ldquocrimes da terrardquo

Outro verso entra na discussatildeo ldquoO que o eu liacuterico disse que era canto de libertaccedilatildeordquo O estagiaacuterio 2 responde ldquoA escrita na forma de poemardquo Assim uma aluna complementa ldquoe alguns desses poemas foram publicados pois estes eram o modo de fuga do sistemardquo Essa observaccedilatildeo da aluna ilumina outro ponto do poema natildeo basta somente escrever o texto ele precisa ser publicado nascer para o seu leitor tal como aparece mais ao final do

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poema em sua antepenuacuteltima estrofe o ldquonome que natildeo estaacute nos livrosrdquo mas ele comeccedila a se fazer perceber quando nasce no asfalto Assim como Octavio Paz notou no texto ldquoPoesia e Histoacuteriardquo (2012 p 191) ldquoo poema ser de palavras vai aleacutem das palavras e a histoacuteria natildeo esgota o sentido do poema poreacutem o poema natildeo teria sentido ndash nem sequer existecircncia ndash sem a histoacuteria sem a comunidade que o alimenta e agrave qual alimentardquo Ou seja o que ldquonatildeo estaacute no livrordquo expresso verbalmente faz-se poesia pois a literatura se constroacutei no olhar do leitor em modos de olhar para asfaltos (imaginados ou vistos) que produzem sentidos e reatualizam o poema atraveacutes do diaacutelogo de distintos contextos de circulaccedilatildeo Logo podemos afirmar que a conexatildeo com o extratextual se daacute pela concretude (seja ela da imaginaccedilatildeo ou da experiecircncia ldquorealrdquo)

Seria possiacutevel pensar tambeacutem talvez a partir da observaccedilatildeo analiacutetica acima apresentada por essa aluna que o poema seria uma espeacutecie de linha de fuga de desvio de um sistema opressor E ao ser publicado ao ser aberto para o leitor poderia permitir que o proacuteprio leitor fosse convidado a esse modo de evasatildeo um escape feito de palavras que abre brechas dentro de um sistema que restringe a libertaccedilatildeo

Vale observar que no material didaacutetico elaborado pelos estagiaacuterios houve uma breve contextualizaccedilatildeo sobre o livro mencionado para que a turma entrasse em contato com a atmosfera do espaccedilo de publicaccedilatildeo do poema analisado Depois dessa apresentaccedilatildeo da obra ao retomar a leitura do poema o estagiaacuterio pergunta ldquoPor que a rosa estaacute desbotadardquo Jian responde ldquoela ainda estaacute despercebidardquo Outro aluno comenta ldquoaiacute eu acho que ele estaacute se referindo ao tiacutetulo do livro A rosa do povordquo Interessante notar aqui que com o pouco que foi discutido sobre a atmosfera desse livro os leitores conseguiram nessa situaccedilatildeo de abertura ao diaacutelogo no contato com o poema fazer uma ligaccedilatildeo entre o desbotar da rosa e o tiacutetulo do conjunto dos poemas a que ldquoA flor e a naacuteuseardquo pertence

Talvez atraveacutes dessas anaacutelises dos alunos despontadas no ato da leitura possamos ter condiccedilotildees de refletir sobre esse eu que se contorcena tessitura do proacuteprio poema de modo que suas palavras brotem em meio agrave aspereza do asfalto como ldquorosa desbotadardquo uma rosa ldquodespercebidardquo segundo Jian No verso discutido o nascimento da flor feia sem cor eacute tatildeo vulgar que sequer estaacute classificado nos livros Perceber a rosa eacute a urgecircncia de algo novo algo que surge para romper a naacuteusea Essa poesia que se coloca agrave frente na caminhada por uma conquista social estaacute ao lado da metaacutefora da flor como nascimento de uma nova forma de viver que desabrocha no cerne do discurso literaacuterio uma forma disfarccedilada que passa conforme nota o aluno ldquodespercebidardquo de modo a poder perscrutar caminhos furtivos Os alunos os estagiaacuterios (e os pesquisadores) voltam-se para as lacunas que o poema abre proporcionando elas mesmas um encontro que tambeacutem eacute furtivo

Na relaccedilatildeo texto-leitor assim como nas relaccedilotildees interpessoais segundo Iser (1979) uma das bases da interlocuccedilatildeo estaacute no que natildeo nos eacute dado isto eacute natildeo compreendemos totalmente o outro porque somos incapazes de experimentar a experiecircncia do outro ndash ldquonegatividade da experiecircnciardquo para Iser (1979 p 87) e essa incapacidade nos impulsiona a agir instaura a necessidade da interpretaccedilatildeo Diferentemente das relaccedilotildees interpessoais o texto natildeo pode nos responder de imediato (como poderia

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o outro nos responder em uma conversa) o que na leitura literaacuteria redobra a negatividade da experiecircncia Para Iser (1979 p 88) eacute essa ldquocarecircncia que impulsiona uma relaccedilatildeordquo Essa carecircncia eacute dada pelo texto literaacuterio como lacunas pontos de indeterminaccedilatildeo Esses vazios presentes no poema de Drummond provocam-nos a preenchecirc-los mas como eles nunca se completam a experiecircncia da leitura literaacuteria e da anaacutelise se abrem em infinitas possibilidades Dessa experiecircncia emergem entatildeo incocircmodos duacutevidas curiosidades olhares giros de sentidos que despontam talvez como uma flor no meio de um asfalto

A aluna Sylvia ao analisar os versos que falam da flor

Uma flor nasceu na rua[]Uma flor ainda desbotada ilude a poliacutecia rompe o asfalto[]

Sua cor natildeo se percebe Suas peacutetalas natildeo se abrem[]

daacute segmento agrave discussatildeo comentando o seguinte ldquoeacute como se tivesse uma capa que a escondesse para que natildeo seja percebida pela poliacuteciardquo Nesse comentaacuterio haacute um retorno do contexto histoacuterico como elemento constante no processo de construccedilatildeo literaacuteria Jaacute Hugo destoa desse plano ao afirmar que ldquohaacute um conteuacutedo dentro dela mas que eacute protegido pela capardquo Essa ideia de proteccedilatildeo natildeo nos leva a pensar na resistecircncia do texto literaacuterio Eacute como se esse conteuacutedo ldquosob cifras e coacutedigosrdquo se preservasse guiado pela consciecircncia de hostilidade agrave poesia que estaacute envolta no poema em anaacutelise

A discussatildeo toma um outro rumo quando um aluno pergunta ldquoa flor faz referecircncia a uma pessoa anocircnima ou ao livro A rosa do povordquo A turma concorda que eacute ao livro e uma aluna expotildee o seu ponto de vista ldquoEssa questatildeo da cor das peacutetalas e o nome que natildeo estaacute no livro deve ser eacute referente ao que o senhor falou em mudar a capa tentar se esconderrdquo Apesar da discordacircncia da turma pensamos que eacute possiacutevel atraveacutes da fala do aluno rastrear um traccedilo de uma interpretaccedilatildeo possiacutevel A questatildeo do anonimato ou dessa voz furtiva eacute um aspecto presente na voz do sujeito liacuterico desde o iniacutecio do poema e que aparentemente dissolve-se quando entoa o grito de anunciaccedilatildeo do nascimento da flor Ainda podemos destacar que essa ideia de anonimato ndash ou de uma voz disfarccedilada possibilitada pela ldquocapardquo poeacutetica (apontada pela aluna) ndash pode corresponder ao sujeito liacuterico que se mascara que se dobra que se torce que se forja ao natildeo tentar se mostrar Assim eacute possiacutevel pensar que a flor aleacutem de furar o asfalto perfurou esse anonimato do eu liacuterico um rompimento protegido pelas artimanhas poeacuteticas na medida em que o poema nasce sob essa ldquocapardquo dada pelos siacutembolos poeacuteticos tais como o da flor penetrando o asfalto

Logo eacute possiacutevel recuperar a leitura do aluno redirecionando-a para essa relaccedilatildeo entre indiviacuteduo anocircnimo e nascimento da flor Sobre a coloraccedilatildeo da flor mencionada

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pela aluna haacute um retorno agrave questatildeo do ldquotentar se esconderrdquo que pode tambeacutem ser lido como uma metaacutefora para a proacutepria construccedilatildeo literaacuteria do texto posto que o siacutembolo da flor se constitui aos poucos Tal fato pode ecoar na leitura de poesia quando a observamos como um processo que natildeo se entrega de imediato ao leitor pois eacute um processo de conquista que se apresenta em pequenas doses tal como a flor

No final da anaacutelise inesperadamente um aluno pergunta ldquopor que galinhas em pacircnicordquo O estagiaacuterio 2 responde ldquoisso eacute uma pergunta que eu faccedilo para vocecircrdquo O aluno natildeo responde Eacute interessante ressaltar essa forma como a aula eacute concluiacuteda com um verso transformado numa pergunta deixando um lugar para o inacabado para o suspense do ato de ler pois a cada entrada no texto novas perguntas emergem Dessa maneira o poema pode ser percebido como uma indagaccedilatildeo formal e conceitual aspectos que foram comentados com a turma de estudantes O estagiaacuterio 2 sugeriu que os alunos pensassem atraveacutes das lacunas desse verso nas propriedades plurissignificativas do signo poeacutetico na palavra como um espaccedilo que guarda mais perguntas do que respostas

Poder-se-ia aqui especular sobre esse fato de termos mais perguntas do que respostas na leitura literaacuteria o que de alguma maneira evidencia que o discurso literaacuterio eacute um espaccedilo de constante interrogaccedilatildeo sendo esta uma constataccedilatildeo que nos ratifica a percepccedilatildeo de que haacute na leitura um jogo e o leitor eacute seduzido e provocado por essas indeterminaccedilotildees do texto tal como pontua Iser (1999 p 107) ldquoo jogo ultrapassa o que eacute e se volta para o que natildeo eacute ou ainda natildeo eacuterdquo

A compreensatildeo da leitura literaacuteria como jogo sob a perspectiva iseriana mostra-a como uma travessia de fronteiras em que o leitor se move junto com o texto em que seu horizonte de leitura eacute colocado na esteira de um constante deslocamento Nesse contexto o eu todo retorcido que se expressa em ldquoA flor e a naacuteuseardquo pode nos sugerir a pensar essa questatildeo ao se aproximar num plano metapoeacutetico dos dados histoacutericos reconfigurando essa relaccedilatildeo ao trazer uma reflexatildeo da presenccedila da poesia no seio social do sujeito liacuterico que se inquieta

Retomando o que jaacute foi dito podemos considerar que a forma como o sujeito liacuterico anuncia o nascer da flor sugere uma carga liacuterica cecircnica aos versos como se estes testemunhassem natildeo somente o desabrochar da flor como tambeacutem presenciassem o eu retorcido se reerguendo por meio do signo da flor uma flor desbotada

Quando observamos os estagiaacuterios e os alunos associando a linguagem poeacutetica a um ldquodisfarcerdquo a uma ldquocapardquo que permite uma ldquofugardquo um ldquorefuacutegiordquo ou ainda um ldquocrimerdquo pode-se entrever aiacute uma espeacutecie de tensionamento entre o texto e o contexto histoacuterico com o qual o poema dialoga Percebe-se assim nas reflexotildees tecidas em aula uma articulaccedilatildeo entre o metapoema e o mundo extratextual Alguns aspectos apontados pela criacutetica despontam de modo singular na anaacutelise coletiva do poema que emergiu na sala de aula sem necessariamente terem sido expostas a priori caracteriacutesticas do poema anunciadas por criacuteticos renomados Eacute nesse sentido que o ensino de literatura pode se tornar um exerciacutecio criacutetico

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Vale a pena notar que na anaacutelise feita em sala de aula os alunos apontaram tanto para o desabrochar da flor quanto para a sua caracteriacutestica desbotada o que lhe daria uma apa-recircncia despercebida Ao relacionarem a produccedilatildeo do poema agrave imagem da flor perceben-do-o como uma espeacutecie de disfarce e de via de ldquofugardquo algumas anaacutelises que emergiram na interlocuccedilatildeo com o poema ressaltam a ligaccedilatildeo do metapoema como o seu possiacutevel efeito esteacutetico A linha de fuga dada por esse sujeito liacuterico retorcido e mascarado parece ser revi-sitada pelo leitor que se abre diante do ldquodesafiordquo (como afirmara Hugo no decorrer da aula) proposto pelas ldquocapasrdquo da palavra poeacutetica No entanto trata-se de um desafio tortuoso cujo efeito eacute o da ldquonaacuteuseardquo da repulsa ou como comentou o aluno Gustavo de uma repulsa que ldquopode estar relacionada ao sentimento do indiviacuteduo de expulsatildeo da proacutepria vidardquo Trata-se pois de um eu liacuterico cuja faceta eacute a do sujeito nauseado embrulhado retorcido um sujeito insatisfeito incomodado inquieto

Eacute valido abordar aqui a fala da aluna Karolina ao notar que a flor pode ser a representaccedilatildeo de uma ldquoatitude filosoacuteficardquo desdobrando um dos principais siacutembolos do poema lido como um objeto que instiga a reflexatildeo o questionamento Seguindo o pensamento de ldquopergunta e curiosidaderdquo apontada pela aluna eacute possiacutevel observar uma interlocuccedilatildeo entre a ldquoatitude filosoacuteficardquo e a noccedilatildeo de ldquoiacutendice reflexivordquo uma espeacutecie de ldquoglossaacuterio poeacuteticordquo de temas presentes na poesia de Drummond sugerida por Wisnik (2005) De acordo com o autor os versos drummondianos pertencem a uma conjuntura da qual ao mesmo tempo que se faz parte tambeacutem se exclui indicando para o ldquo(natildeo) lugarrdquo de sua poeacutetica Esse ldquo(natildeo) lugarrdquo possivelmente estaacute expresso em ldquoA flor e a naacuteuseardquo quando pensamos no espaccedilo atiacutepico em que a flor nasce como se estivesse em luta com o proacuteprio local ao qual pertence mas que a exclui Nesse sentido pode-se ler a flor como uma ldquoatitude filosoacuteficardquo pois atraveacutes de seu nascimento e constituiccedilatildeo o texto joga com o leitor ao manter a interrogaccedilatildeo as lacunas em relaccedilatildeo a esse ldquo(natildeo) lugarrdquo da poesia Assim nessas possibilidades de leituras incertas que se camuflam a metaacutefora da flor pode ser estendida para esse olhar que instiga a pergunta a curiosidade dialogando com a discussatildeo do jogo da leitura e recuperando a atmosfera metapoeacutetica do texto ao considerar o siacutembolo da palavra como uma atitude mais direcionada para perguntas do que para respostas

Talvez aqui seja importante voltar para o texto ldquoInquietudes na poesia de Drummondrdquo de Antonio Candido (1965 p 87) em que uma fala do autor faz uma interlocuccedilatildeo direta com o que pudemos constatar no desenvolvimento de nossa discussatildeo ldquoao longo da obra de Drummond natildeo observamos uma certeza esteacutetica nem mesmo a esperanccedila disto poreacutem a duacutevida a procura o debate A sua poesia eacute em boa parte uma indagaccedilatildeo sobre o problema da poesiardquo Portanto construir uma metodologia de leitura literaacuteria para a poesia drummondiana eacute se colocar nesse exerciacutecio de interrogaccedilatildeo em que o texto literaacuterio tal qual visto por Hugo eacute um desafio

O encerramento desta atividade ocorreu com a autoavaliaccedilatildeo da disciplina Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa 2 momento em que os estagiaacuterios apresentaram o seu olhar sobre a experiecircncia de leitura em sala de aula As estagiaacuterias e o estagiaacuterio da oficina de leitura jaacute tinham um percurso pela leitura literaacuteria em sala de aula atraveacutes da

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participaccedilatildeo do Programa Institucional de Iniciaccedilatildeo agrave Docecircncia (PIBID)6 e da colaboraccedilatildeo no Programa de Apoio agraves Escolas Puacuteblicas do Estado de Alagoas (PAESPE)7 projeto do curso de Engenharia Civil da Universidade Federal de Alagoas em parceria com o grupo de bolsistas do Programa de Educaccedilatildeo Tutorial (PET) da Faculdade de Letras

De acordo com os estagiaacuterios foi possiacutevel aprofundar o conhecimento da praacutetica do ensino de literatura em especial ao focar todo o momento da oficina de leitura em um uacutenico poema de Carlos Drummond de Andrade Esse exerciacutecio contribuiu para que esses estudantes se aprofundassem nas variadas ldquofacesrdquo ldquocifrasrdquo e ldquocoacutedigosrdquo da poeacutetica drummondiana

Aleacutem disso os estagiaacuterios comentaram que se sentiram surpresos com o raacutepido acompanhamento da leitura dos poemas que a turma fez adiantando ateacute mais de uma vez comentaacuterios que ainda estavam por vir nas falas das estagiaacuterias

3 Algumas conclusotildees

Vale a pena frisar que as experiecircncias de leitura dos versos metapoeacuteticos de Drummond tanto nas praacuteticas pedagoacutegicas quanto nos caminhos analiacuteticos que viemos trilhando por meio desses diaacutelogos transformou e inquietou a nossa visatildeo sobre as particularidades da poeacutetica do autor e sobre a complexidade do trabalho com a poesia na formaccedilatildeo do leitor A leitura do metapoema em sala de aula eacute por vezes tortuosa difiacutecil de ser conduzida mas parece sempre ser um convite um convite a uma transgressatildeo a uma conquista aquela de uma flor desabrochando em pleno asfalto Natildeo caberia no trabalho com um poema tatildeo inquieto uma metodologia prescritiva informativa O texto desabrocha se o leitor entra em seu jogo aceita seus desafios

O signo da flor essa flor desbotada que rompe o asfalto parece reverberar em noacutes leitores a coragem para abrir fissuras em nossas certezas convidando-nos para o desafio e para o disfarce do jogo do texto um desafio que pode provocar naacuteuseas fugas crimes abrindo refuacutegios em um eu todo retorcido O caminho percorrido pela flor aparenta se tornar um caminho seguido tambeacutem pelo leitor que busca entender a naacuteusea que acompanha

6 O PIBID eacute uma iniciativa para o aperfeiccediloamento e a valorizaccedilatildeo da formaccedilatildeo de professores para a educaccedilatildeo baacutesica O programa concede bolsas a alunos de licenciatura participantes de projetos de iniciaccedilatildeo agrave docecircncia desenvolvidos por Instituiccedilotildees de Educaccedilatildeo Superior (IES) em parceria com escolas de educaccedilatildeo baacutesica da rede puacuteblica de ensino Os projetos devem promover a inserccedilatildeo dos estudantes no contexto das escolas puacuteblicas desde o iniacutecio da sua formaccedilatildeo acadecircmica para que desenvolvam atividades didaacutetico-pedagoacutegicas sob orientaccedilatildeo de um docente da licenciatura e de um professor da escola

7 O PAESPE eacute um projeto que pretende dar subsiacutedios para que os estudantes de escolas puacuteblicas do Estado de Alagoas tenham mais condiccedilotildees de prestar os exames de vestibular ao concluir a educaccedilatildeo baacutesica O programa tambeacutem visa trazer os alunos para o conviacutevio da rotina da Universidade uma vez que as aulas satildeo realizadas na proacutepria Universidade campus AC Simotildees Todas as aacutereas do conhecimento satildeo contempladas pelo Paespe que conta com colaboradores (professores instrutores) de variados cursos da UFAL

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esse eu que se torce e que figura o ambiente do nascimento da flor Assim compreendemos a leitura de poesia como um convite para esse jogo de incertezas ao lado da palavra O verso ldquouma flor nasceu na ruardquo ressoa em noacutes leitores como um lirismo que pulsa que vibra ao anunciar uma vida que nasce seja ela flor seja ela palavra seja ela

Referecircncias

ANDRADE C D de A Poesia completa Rio de Janeiro Nova Fonteira 2003

ARRIGUCCI DJ Coraccedilatildeo partido uma anaacutelise da poesia reflexiva de Drummond Satildeo Paulo Cosac ampNaify 2005

BARTHES Roland Aula Traduccedilatildeo de Leyla Perrone-Moiseacutes Satildeo Paulo Cultrix 1977

CANDIDO A Inquietudes na poesia de Drummond In CANDIDO A Vaacuterios escritos Satildeo Paulo Duas Cidades 1965 p67-97

ISER W A interaccedilatildeo do texto com o leitor In LIMA Luiz Costa (Org) A literatura e o leitor Textos de Esteacutetica da Recepccedilatildeo Rio de Janeiro Paz e Terra 1979 p 83-132

ISER W O jogo Traduccedilatildeo de Bluma Waddington Vilar In ROCHA Joatildeo Cezar (Org)Teoria da ficccedilatildeo indagaccedilotildees agrave obra de Wolfgang Iser Rio de Janeiro Eduerj 1999 p 105-115

PAZ O Poesia e histoacuteria In PAZ O O arco e a lira Traduccedilatildeo de Ari Roitman e PaulimaWatcht Satildeo Paulo Cosac Naify 2012 p 191-258

PINHEIRO H Teoria da literatura criacutetica literaacuteria e ensino In PINHEIRO H NOacuteBREGA M (Org) Literatura da criacutetica agrave sala de aula Campina Grande Bagagem 2006

WISNIK J M Drummond e o mundo In NOVAES A (Org)Poetas que pensaram o mundo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2005 p 19-64

Recebido em 24 de abril de 2017

Aceito em 16 de outubro de 2017

Diogo dos Santos Souza

Doutorando em Estudos Literaacuterios (2015) pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras e Linguiacutestica da Universidade Federal de Alagoas Mestre em Estudos Literaacuterios (2015) e Graduado em Letras Portuguecircs pela mesma Instituiccedilatildeo Graduando em Pedagogia pela Universidade Estaacutecio de Saacute (2017) Atualmente eacute docente do Instituto Federal de Alagoas campus Piranhas diogosansouzagmailcom

Eliane Kefalaacutes Oliveira

Doutora em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (2009) com doutorado sanduiacuteche na Universidade de Barcelona Mestre em Educaccedilatildeo (na aacuterea de Educaccedilatildeo Conhecimento Linguagem e Artes) pela Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade Estadual de Campinas (2003) graduada em Licenciatura e Bacharelado em Letras pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (1996) Atualmente eacute docente da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas llycaoliveiragmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Cenas da formaccedilatildeo de professores de liacutengua e literatura no Curso de Letras da Universidade

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)Aspects of Teacher Training in Language and Literature at the

Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ)

Escenas de formacioacuten de profesores de lengua y literatura en el curso de Letras de la Universidad Federal de

Riacuteo de Janeiro (UFRJ)

Marcos ScheffelUniversidade Federal do Rio de Janeiro

ResumoCom base na minha atuaccedilatildeo como professor de Didaacutetica e Praacutetica de Ensino de Portuguecircs e Literaturas na UFRJ e em estudos sobre a mudanccedila do perfil dos alunos de graduaccedilatildeo aponto alguns problemas relacionados agrave formaccedilatildeo de professores num curso marcado pela valorizaccedilatildeo da formaccedilatildeo do pesquisador em detrimento da formaccedilatildeo do professor Nesse contexto as questotildees ligadas ao ensino ficam delegadas agraves disciplinas ofertadas pela Faculdade de Educaccedilatildeo que ainda guardam um caraacuteter final de complemento da formaccedilatildeo A constataccedilatildeo da ausecircncia de discussotildees teoacutericas sobre o ensino de literatura eacute comprovada por meio de vaacuterios relatos escritos dos estudantes quando do ingresso na disciplina de Didaacutetica de Portuguecircs e Literaturas Esses mesmos relatos tambeacutem trazem importantes informaccedilotildees sobre a mudanccedila do perfil dos estudantes da Faculdade de Letras da UFRJ que hoje satildeo em sua maioria moradores da periferia do Rio de Janeiro e oriundos de famiacutelias com pouca escolaridade Em meio a essa realidade complexa parecia importante recompor as trajetoacuterias singulares desses jovens leitores e futuros professores Foi nesse momento que o contato com o livro Os jovens e a leitura (2008) da pesquisadora francesa Michegravele Petit possibilitou pocircr em cena vaacuterias percepccedilotildees da leitura Segundo Petit a leitura pode tanto contribuir para gerar identidades complexas objetivo que deve ser perseguido pelos formadores de leitores como pode gerar problemas identitaacuterios como o sentimento de achar a sua cultura de origem inferior As principais conclusotildees deste trabalho apontam para a necessidade de as licenciaturas em Letras reverem suas praacuteticas de formaccedilatildeo de leitores nos proacuteprios cursosPalavras-chave Formaccedilatildeo de professores ensino de literatura leitura

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AbstractAs a professor of Teaching Practices in Portuguese language and Brazilian Literature at the Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ) and based on studies on the changes of the profile of undergraduate students in this paper I point out some problems related to teacher training in a major that emphasizes the teaching of theoretical research rather than teacher training In this context the issues related to teaching are left to the courses offered by the Faculty of Education which still holds to the character of being a mere final appendix to the majorin language and literature The lack of theoretical discussions about the teaching of literature is evidenced by many reports written by the students when they begin the Teaching Practices in Portuguese Language and Brazilian Literaturecourse These reports also bring important information about the changes in the studentsrsquo profiles in the Faculty of Languages of UFRJ mdashtoday they are mostly residents of the outskirts of Rio de Janeiro and come from families with little schooling In this complex reality it was important to recompose the unique trajectories of these young readers and future teachers At this moment the contact with the book Os jovens e a leitura (2008) by the French researcher Michegravele Petit made it possible to reflect on several views about the act of reading According to Petit reading can both contribute to generating complex identities an objective that should be pursued in the formation of readers as it can generate identity problems such as the feeling of regarding their family culture as inferior The main conclusions of this study point to the need for undergraduate degree programs to review their practices in the developmentof teachers-readersKey-words Teacher development teaching literature reading

ResumenBasado en mi trabajo de profesor de Didaacutectica y Praacutectica de Portugueacutes y Literaturas de la UFRJ y en estudios sobre el cambio del perfil de los alumnos de graduacioacuten trato de sentildealar algunos problemas relacionados con la formacioacuten de profesores en un curso marcado por la valoracioacuten de la formacioacuten en investigacioacuten en detrimento a la del profesor En este contexto los temas relacionados con la ensentildeanza se delegan a las asignaturas que se ofrecen por la Facultad de Educacioacuten que auacuten conservan un caraacutecter final de complemento de la formacioacuten Se ha comprobado la ausencia de discusiones teoacutericas sobre la ensentildeanza de la literatura por medio de diversos relatos escritos por los estudiantes al entrar en la asignatura de Didaacutectica de Portugueacutes y Literaturas Estos mismos relatos tambieacuten proporcionan informacioacuten importante sobre el cambio en el perfil de los estudiantes de la Facultad de Letras de la UFRJ que hoy son en su mayoriacutea residentes en las periferias de Riacuteo de Janeiro y de familias que tienen bajo nivel de escolaridad En medio de esta compleja realidad pareciacutea importante reconstituir las trayectorias singulares de estos joacutevenes lectores y futuros profesores Fue entonces que el contacto con el libro Os jovens e a leitura (2008) de la investigadora francesa Michegravele Petit hizo posible poner en escena diversas percepciones de la lectura Seguacuten Petit la lectura tanto puede contribuir para generar identidades complejas objetivo que los formadores de lectores deben perseguir como tambieacuten generar problemas identitarios tales como el sentimiento de que su cultura de origen es inferior Las principales conclusiones de este estudio apuntan hacia la necesidad de los Cursos de Letras poner en tela de juicio sus praacutecticas de formacioacuten de lectores en el propio CursoPalabras clave Formacioacuten de profesores ensentildeanza de literatura lectura

Introduccedilatildeo

No segundo semestre de 2016 cada um dos meus trinta alunos de Didaacutetica e Praacutetica de Ensino de Portuguecircs e Literatura do Curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro ganhou um exemplar do livro Cenas da vida brasileira

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(2010) de Marques Rebelo Os trinta exemplares do livro foram adquiridos de um projeto do governo do estado do Rio de Janeiro chamado ldquoMais Leiturardquo que tem trecircs estandes fixos (Bangu Satildeo Gonccedilalo e Niteroacutei) onde satildeo vendidos livros a dois trecircs ou quatro reais

O livro de Marques Rebelo foi publicado pela primeira vez em 1951 mas sua origem remonta agrave colaboraccedilatildeo do autor entre abril de 1941 e agosto de 1943 para a revista Cultura Poliacutetica do Departamento de Imprensa do Estado Novo getulista Rebelo responsaacutevel pela seccedilatildeo ldquoQuadros e costumes do Centro-Sulrdquo1 produziu um conjunto significativo de crocircnicas sobre cidades de vaacuterios estados brasileiros As cenas registradas nessas crocircnicas estatildeo em suiacutete ou seja todas elas tratam de temas semelhantes formando uma espeacutecie de arte mural que revela um paiacutes seduzido pelos discursos modernizadores mas ainda preso a antigas estruturas Deve-se destacar ainda a linguagem carregada de lirismo e criticismo de Rebelo que recorta pequenos instantacircneos do cotidiano como no registro sobre a cidade de Carmo do Rio Verde (GO)

ldquoA sulfanilamida nas peritonitesrdquo ldquoA vitamina B-1rdquo ldquoEacute preciso cultivar a sua personalidaderdquo ldquoQuem foi o autor dos Direitos do homemrdquo ldquoQuem fez o papel de Scarlet OrsquoHara no filme E o vento levourdquo ldquoA batalha de Salamina foi na Guerra Europeiardquo ldquoSeraacute liacutecito o lucrordquo ndash os uacuteltimos caixeiros-viajantes nos seus guarda-poacutes com monogramas bordados cansam-se de se ilustrar nas paacuteginas da Readerrsquos Digest Na solidatildeo do trem dentro da noite a tristeza desamparada dos meus pensamentos Por toda parte o mesmo subalimentaccedilatildeo tuberculose siacutefilis maleita devastaccedilatildeo de florestas religiatildeo denso analfabetismo casamento indissoluacutevel luacutegubre mortalidade infantil falta de recursos desalento E natildeo sei o que doacutei mais fundo ndash natildeo saber se os coraccedilotildees satildeo tatildeo bons que suportam tudo se satildeo miseraacuteveis que natildeo tecircm consciecircncia da sua desgraccedila E por vezes brasas que a locomotiva joga luzem como uma chuva de ouro que as trevas logo apagam (REBELO 2010 p92)

Na raacutepida cena o cronista-passageiro observa com desalento para dentro e para fora do trem Do lado de dentro os caixeiros-viajantes se ldquoilustramrdquo com as informaccedilotildees banais de uma revista bastante popular na eacutepoca2 Do lado de fora o cenaacuterio de pobreza do interior do Brasil mostra que o paiacutes estaacute fadado ao atraso eterno No entanto as faiscaccedilotildees das brasas da locomotiva parecem indicar alguma esperanccedila no meio desse cenaacuterio tenebroso

1 Graciliano Ramos escreveu na seccedilatildeo ldquoQuadros e costumes do Nordesterdquo Houve tambeacutem uma seccedilatildeo dedicada ao Norte com crocircnicas do romancista Dalciacutedio Jurandir Eacute interessante observar que todos eles eram criacuteticos do regime getulista mas colaboraram para uma revista de propaganda do governo

2 A Readerrsquos Digest ndash conhecida no Brasil como Seleccedilotildees ndash comeccedilou a circular em 1922 nos Estados Unidos No nosso paiacutes o iniacutecio de sua circulaccedilatildeo tambeacutem data de 1922 sendo uma traduccedilatildeo da ediccedilatildeo norte-americana e trazendo a mesma variedade de assuntos sauacutede anedotas conhecimentos gerais biografias e uma seccedilatildeo literaacuteria com o livro do mecircs

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Ao disponibilizar o livro de Rebelo para os alunos tinha como objetivos

1 Divulgar um projeto de leitura desenvolvido no estado do Rio de Janeiro que pode fornecer materiais de qualidade para eles como futuros professores

2 Por em accedilatildeo um projeto de leitura na aula de Didaacutetica

3 Articular a leitura de Cenas da vida brasileira com as teorias sobre a leitura literaacuteria indicada neste trabalho que costumamos ver na disciplina Didaacutetica I

4 Motivar os licenciandos a escrever sobre a experiecircncia do estaacutegio por meio de uma linguagem que tambeacutem possa ser liacuterica criacutetica e principalmente autoral (rompendo com a escrita burocraacutetica dos relatoacuterios entregues ao final do estaacutegio)

Como se trata de um projeto ainda em andamento (a escrita por parte dos estagiaacuterios de Letras) as seccedilotildees seguintes deste artigo tecircm por objetivo fornecer algumas cenas da Didaacutetica e Praacutetica de Ensino de Portuguecircs e Literatura ndash focando em maior grau na Literatura ndash do ponto de vista do professor orientador de estaacutegio que procura criar nos futuros professores um grau de reflexibilidade sobre teorias e praacuteticas da sala de aula em campos de estaacutegio bastante heterogecircneos Satildeo raacutepidas cenas dos percursos formativos com que se deparam os estudantes de Letras que em breve iratildeo formar leitores de literatura na educaccedilatildeo baacutesica Mas antes disso eacute necessaacuterio apresentar um raacutepido perfil desses estudantes

1 Da periferia agrave casa da indiferente Minerva3

Desde o iniacutecio de minha atividade com professor de Didaacutetica na UFRJ em 2013 costumo fazer um levantamento do perfil social da turma por meio de um questionaacuterio situacional Satildeo questotildees relevantes para saber um pouco do histoacuterico familiar (grau de escolaridade) da relaccedilatildeo com a leitura e com a escola e tambeacutem como o ensino de liacutengua e literatura foi ou natildeo problematizado ao longo da licenciatura em Letras

O que se percebe sobre o background familiar eacute que a maior parte deles faz parte da primeira geraccedilatildeo que concluiraacute um curso superior na famiacutelia4 A maioria desses licenciandos passou pela escola puacuteblica sendo raros os que estudaram unicamente em escolas particulares Esse perfil social eacute fruto das poliacuteticas inclusivas do uacuteltimo dececircnio e tem promovido na universidade algo parecido com o que ocorreu a partir da metade do seacuteculo passado na escola baacutesica brasileira ou seja uma mudanccedila radical no perfil do alunado Foi nesse momento que muitas praacuteticas da escola ndash pensemos nas questotildees

3 Faccedilo alusatildeo aqui ao siacutembolo da UFRJ que traz a imagem de Minerva ndash a deusa romana das artes do comeacutercio e da sabedoria

4 Gabriela Rodella (2013) fez um importante levantamento do background familiar dos estudantes de Letras da USP que comprova este histoacuterico familiar social A UFRJ ainda natildeo tem um estudo desta natureza sobre os alunos de Letras mas os relatos dos estudantes que passam pela Didaacutetica e Praacutetica de Ensino apontam para semelhanccedilas do perfil do alunado

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linguiacutesticas ndash comeccedilaram a ser postas em xeque Aquele ensino voltado para um setor meacutedio de nossa sociedade natildeo fazia sentido para esses novos estudantes A liacutengua que era falada na escola natildeo era a mesma liacutengua que eles traziam de casa

Apesar de mudanccedilas tatildeo visiacuteveis a Minerva parece indiferente Ela quer seguir a sua tradiccedilatildeo de formaccedilatildeo de pesquisadores mesmo tendo ciecircncia que esses estudantes procuraram a universidade tendo em vista a carreira de professores da educaccedilatildeo baacutesica Pautada na sua forte cultura bacharelesca chamada muitas vezes de identidade do curso esta licenciatura ignora que ldquoOs cursos de licenciatura tecircm um papel fundamental na socializaccedilatildeo profissional e na construccedilatildeo da identidade dos professoresrdquo (MARLI 2012 p3) Essa pouca preocupaccedilatildeo com as questotildees relacionadas agrave educaccedilatildeo baacutesica estaacute mais acentuada justamente no ensino de literatura como se pode perceber nas seguintes respostas dadas ao questionaacuterio situacional5

Existe mais preocupaccedilatildeo por parte dos professores de gramaacutetica linguiacutestica Os professores de literatura para aleacutem do curriacuteculo no que vem depois da faculdade (Estudante 1)

Apenas nas disciplinas de liacutengua portuguesa (variaccedilatildeo morfologia morfossintaxe etc) Nas mateacuterias de literatura ou se apresenta o curso de forma panoracircmica ou pensamos a literatura criticamente como pesquisadores da aacuterea de literatura mais voltados para a academia do que para o ensino (Estudante 2)

Este curso [variaccedilatildeo linguiacutestica] foi fundamental para que eu me tornasse uma professora consciente No caso das literaturas natildeo sinto a mesma coisa Se natildeo tivesse participado do Pibid penso que natildeo teria tido qualquer oportunidade de refletir melhor acerca da literatura na escola baacutesica (Estudante 3)

A maioria das cadeiras de literatura focaliza mais no plano teoacuterico dificilmente em como levar essa teoria para a sala de aula (Estudante 4)

As respostas desses estudantes apontam para um vaacutecuo nas discussotildees sobre o ensino de literatura na educaccedilatildeo baacutesica ateacute praticamente o final do curso Um ou outro afirma ter cursado uma disciplina optativa sobre ensino de literatura que eacute bastante disputada e por essa razatildeo natildeo consegue dar conta da demanda de treze habilitaccedilotildees6 Em contrapartida vemos que disciplinas ligadas agrave liacutengua portuguesa e agrave linguiacutestica tematizam o ensino de liacutengua desconstroem conceitos equivocados

5 A questatildeo proposta eacute a seguinte ldquoAteacute este momento no curso de Letras excetuando as disciplinas pedagoacutegicas houve uma preocupaccedilatildeo dos professores das demais disciplinas em discutir o ensino de liacutengua literatura produccedilatildeo textual oralidade e leitura na escola baacutesica Em quais disciplinas houve essa discussatildeo Em quais disciplinas natildeo houve nenhuma discussatildeo desse tipordquo

6 As treze habilitaccedilotildees oferecidas pela UFRJ satildeo Portuguecircs-Literaturas e Portuguecircs + outra habilitaccedilatildeo (aacuterabe alematildeo espanhol francecircs grego hebraico inglecircs japonecircs latim italiano russo e LIBRAS) Esses cursos satildeo oferecidos como bacharelado ou licenciatura

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propotildeem novas metodologias para romper com uma tradiccedilatildeo normativa de ensino Uma raacutepida anaacutelise do mercado editorial brasileiro nos livros sobre ensino de liacutengua e literatura seria suficiente para constatar que a maioria dos estudos eacute da aacuterea de liacutengua7

Haacute uma forte tradiccedilatildeo beletrista por traacutes desse gesto de ignorar a escola por parte dos professores que ensinam literaturateoria da literatura em grandes universidades As leituras complexas promovidas pelos professores universitaacuterios e o forte aparato teoacuterico para se ler um poema por exemplo apontam unicamente para a leitura como algo feito para poucos Como tal a literatura passa a ser vista como algo impossiacutevel de ser levado para a escola Ela eacute um objeto de culto e de admiraccedilatildeo para esses futuros professores

Pode-se pensar que assim como os estudantes da educaccedilatildeo baacutesica dividem sua identidade leitora ndash dando para a escola as respostas esperadas quanto agraves obras indicadas e acionando seus direitos de leitor fora de sala ndash esses futuros professores tambeacutem tenham uma relaccedilatildeo complexa e mal resolvida com a literatura obras lidas unicamente por obrigaccedilatildeo de modo fragmentaacuterio com pouco espaccedilo para a subjetividade e com base em seleccedilotildees promovidas pelos professores sem que haja qualquer tipo de problematizaccedilatildeo sobre os criteacuterios de escolha Todas essas praacuteticas repetidas do iniacutecio ao fim da licenciatura tecircm uma forte tendecircncia de serem replicadas em escala menor na educaccedilatildeo baacutesica Por sua vez competecircncias essenciais para formar leitores em qualquer niacutevel de ensino natildeo satildeo postas em praacutetica como a busca por dar sentido ao que estaacute sendo lido a leitura de obras na integralidade ndash levando-se em conta a materialidade dos livros a abertura para interpretaccedilotildees subjetivas implicadas e a discussatildeo dos criteacuterios de escolha seleccedilatildeo das obras

Outro ponto problemaacutetico na formaccedilatildeo desses futuros professores estaacute ligado aos curriacuteculos dessas licenciaturas extensos universalistas sem a possibilidade da construccedilatildeo de trajetoacuterias diferenciadas e com a ausecircncia de temaacuteticas oacutebvias como o lugar da literatura infantil e infanto-juvenil como afirmou Angela Kleiman (2017) durante o IV Encontro de Ensino e Aprendizagem em Liacutenguas e Literaturas

Eacute preciso enfrentar o problema das Licenciaturas em Letras que natildeo se assumem como tal nas quais ndash via de regra ndash sequer haacute disciplinas obrigatoacuterias de um campo como a leitura Literatura Infantil Literatura Juvenil Leitura Ensino de Leitura Letramento Literaacuterio Ensino da Literatura e Formaccedilatildeo de Leitores

Quanto agrave literatura infanto-juvenil nos deparamos com uma questatildeo matemaacutetica se estamos formando futuros professores para atuarem na educaccedilatildeo baacutesica temos de considerar que haacute uma maior possibilidade de esses profissionais atuarem do sexto ao nono ano (quatro seacuteries) do que no ensino meacutedio (trecircs seacuteries) Apesar da obviedade matemaacutetica a produccedilatildeo literaacuteria para crianccedilas e jovens figura no curriacuteculo desses professores como disciplina optativa ndash isso num curso com uma carga horaacuteria elevada que daacute pouca margem para escolhas

7 Natildeo problematizaremos aqui os fatores que levam o ensino de liacutengua materna na educaccedilatildeo baacutesica a ter mudado tatildeo pouco nas uacuteltimas deacutecadas apesar de uma discussatildeo teoacuterica tatildeo profiacutecua

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Cumprindo apenas os requisitos obrigatoacuterios o estudante dessa licenciatura seraacute professor sem conhecer absolutamente nada da produccedilatildeo para crianccedilas e jovens podendo optar se iraacute ou natildeo pensar no ensino de literatura na escola Ele teraacute dificuldade para se colocar do lado dos leitores em formaccedilatildeo Ele teraacute dificuldade para pensar nas suas escolhas para a sala de aula Ele natildeo teraacute construiacutedo criteacuterios que baseiem suas escolhas (faixa etaacuteria interesses aprendizagens literaacuterias possiacuteveis etc) e estaraacute longe de entender que ldquoum bom corpus nem sempre eacute formado pelas melhores obras Esse corpus deve ser composto por livros com diferentes graus de dificuldade Reforccedilar a autoimagem positiva de leitores e natildeo desestimulaacute-lardquo (COLOMER 2007 p113)

Diante desse cenaacuterio natildeo eacute de se estranhar que a literatura seja um objeto em extinccedilatildeo nas praacuteticas escolares Natildeo eacute de se estranhar que a formaccedilatildeo de leitores na escola encontre tantas barreiras Natildeo eacute de se estranhar que ainda recebamos nos cursos de Letras alunos que raramente leram literatura na escola ndash satildeo inuacutemeros relatos da ausecircncia completa da indicaccedilatildeo de livros ou entatildeo de praacuteticas de leitura anacrocircnicas e pouco efetivas (fichas de leitura resumos provas historiografia literaacuteria no lugar da literatura) Depois o que assistimos eacute o velho choro sobre o leite derramado os estudantes de Letras natildeo leem (como se a universidade natildeo tivesse nada a ver com isso) Mas eacute justamente a percepccedilatildeo desse quadro amplo e complexo no qual estamos inseridos que tem norteado algumas reflexotildees teoacutericas voltadas para a construccedilatildeo da imagem desses jovens como leitores e principalmente como formadores de futuros leitores

2 As liccedilotildees de Michegravele Petit em Os jovens e a leitura

Foi por meio de minha atuaccedilatildeo na Didaacutetica e na Praacutetica de Ensino de Portuguecircs e Literatura que conheci a obra de Michegravele Petit Ao terminar de ler Os jovens e a leitura (2008) estava convencido de que se tratava de um livro essencial para se pensar na formaccedilatildeo de identidades leitoras e de que muito do que estava escrito ali ndash falando dos jovens da periferia francesa (muitos imigrantes ou descendentes de imigrantes) ndash tocaria fundo nestes jovens estudantes de Letras em sua maioria moradores das periferias do Rio de Janeiro e de cidades vizinhas

Em pouco tempo como professor da UFRJ tinha ouvido muito sobre a trajetoacuteria deles como leitores Os relatos eram muacuteltiplos incentivos familiares versus falta de incentivo acesso a livros em situaccedilotildees variadas versus ausecircncia total de contato praacuteticas escolares que os aproximaram da leitura versus um sentido burocraacutetico da leitura escolar bibliotecas escolares bem estruturadas e com pessoas preocupadas em promover encontros significativos (raros casos) versus bibliotecas e acervos fechados a sete chaves ou bibliotecas que eram depoacutesitos de livros didaacuteticos (a maioria das vezes)

Um caso que me chamou especial atenccedilatildeo se referia ao extinto projeto ldquoLiteratura em Minha Casardquo que durou entre 2001 e 2004 e que era uma das accedilotildees do Programa Nacional da Biblioteca Escolar (PNBE) Na paacutegina do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo (FNDE) aparece a seguinte descriccedilatildeo do projeto

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Denominado ldquoLiteratura em Minha Casardquo o acervo foi composto por seis coleccedilotildees diferentes cada uma com cinco tiacutetulos poesia de autor brasileiro conto novela claacutessico da literatura universal e peccedila teatral Pela primeira vez as coleccedilotildees foram entregues aos alunos para levarem para casa A ideia do programa foi incentivar a leitura e a troca dos livros entre os alunos aleacutem de permitir agrave famiacutelia do estudante a opccedilatildeo de leitura em casa As escolas tambeacutem receberam quatro acervos para sua biblioteca8

Este projeto visava a oportunizar um contato com obras literaacuterias para crianccedilas e jovens que muitas vezes natildeo tinham acesso a livros Assim de maneira proposital natildeo havia uma orientaccedilatildeo pedagoacutegica para a ldquoutilizaccedilatildeordquo desses livros que deveriam ser somente fornecidos aos estudantes Tratava-se de uma experiecircncia de leitura ligada agrave fruiccedilatildeo ndash forma de leitura preconizada nos documentos oficiais mas de difiacutecil implantaccedilatildeo nas rotinas de sala de aula em razatildeo do caraacuteter utilitaacuterio da leitura A questatildeo eacute que para os professores e gestores escolares natildeo estavam claros os reais objetivos do projeto Aleacutem disso a distribuiccedilatildeo desses materiais natildeo foi feita conforme o planejado (um kit com cinco livros para cada aluno) ou os kits sequer foram distribuiacutedos ficando na biblioteca da escola

Apesar de todos os problemas e da curta duraccedilatildeo do ldquoLiteratura em Minha Casardquo pude encontrar alguns estudantes de Letras que se lembravam de terem recebido livros do programa A maioria apontava uma experiecircncia positiva e conseguia descrever alguns livros que haviam recebido naquela eacutepoca (haacute mais de dez anos) como se pode perceber no depoimento do licenciando

A coleccedilatildeo ldquoLiteratura em Minha Casardquo teve importante papel na minha formaccedilatildeo como leitor primeiro porque me deu acesso a grandes claacutessicos da literatura universal como A Iliacuteada e Os miseraacuteveis adaptados para um puacuteblico infanto-juvenil o que natildeo soacute me permitiu o contato com essas e outras obras como estimulou o meu interesse em conhecer mais tarde as suas versotildees originais Aleacutem disso a coleccedilatildeo por ser distribuiacuteda gratuitamente nas escolas da rede puacuteblica contemplou alunos que como eu natildeo dispunham de uma biblioteca em casa e tampouco poder aquisitivo para a compra de livros Os livros da coleccedilatildeo eram lidos e trocados entre os amigos eram comentados e o mais importante de tudo vinham como uma espeacutecie de presente tiacutenhamos total liberdade para administrar a leitura conforme nossa vontade podiacuteamos ateacute mesmo exercer a vontade de natildeo ler o que muitos evidentemente faziam Contudo tiacutenhamos uma porta aberta agrave nossa frente pronta para ser explorada (Estudante 6)

No entanto houve um comentaacuterio negativo de uma aluna que se lembrava de ter recebido os livros e de ter ficado frustrada por natildeo dar conta das leituras e por natildeo ter tido naquele momento o apoio de professores para esclarecer suas duacutevidas Diante dos

8 Disponiacutevel em lthttpwwwfndegovbrprogramasbiblioteca-da-escolabiblioteca-da-escola-historicogtAcesso em 20 abr 2017

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livros recebidos ela se sentiu incapaz e esse sentimento de incapacidade fragilizou sua identidade leitora Jaacute outra aluna relatou que na escola onde estudava foi criado um momento durante os intervalos ndash nos moldes de raacutedio da escola ndash para que os estudantes compartilhassem as impressotildees sobre os livros que estavam lendo e que isso foi decisivo na sua formaccedilatildeo como leitora

Essas trajetoacuterias tatildeo diferenciadas apontam para aquilo que Michegravele Petit (2008) tambeacutem percebeu entre os jovens da periferia francesa O contato com a leitura os significados a ela atribuiacutedos e as relaccedilotildees com o livro como objeto podiam variar muito Havia muitos riscos relacionados agrave leitura A leitura podia favorecer o desenvolvimento de identidades mais abertas e plurais ou podia contribuir para o rompimento com a cultura de origem Antigos preconceitos vinham agrave tona como aqueles que viam na leitura uma atividade burguesa para pessoas desocupadas

Por tudo isso ficou evidente que o livro de Petit deveria constar da ementa da disciplina de Didaacutetica e que deveria ser uma leitura norteadora em nossas discussotildees O desafio era saber o quanto aqueles estudantes de Letras conseguiriam relacionar as trajetoacuterias dos jovens leitores franceses das periferias agraves suas proacuteprias trajetoacuterias de leitores e tambeacutem que diferenccedilas eles perceberiam por exemplo no fato de aquela pesquisa ter se concentrado em jovens que frequentavam as bibliotecas dos subuacuterbios de Paris quando no Brasil poucos bairros perifeacutericos tecircm bibliotecas

Como forma de dimensionar o papel de tais espaccedilos houve uma visita agrave Biblioteca Parque Estadual do Rio de Janeiro (BPE) que remete ao modelo das bibliotecas colombianas constituindo-se num espaccedilo de conviacutevio e de experiecircncias culturais variadas (filmes cursos teatro) aleacutem de um acervo composto por livros novos e diversificados A BPE estaacute localizada numa regiatildeo estrateacutegica do Rio nas proximidades da Central do Brasil ndash ponto de passagem dos transportes puacuteblicos suburbanos (ocircnibus trem metrocirc vans)

A primeira dessas visitas foi realizada com as turmas de Didaacutetica I no segundo semestre de 2014 e coincidiu com uma interessante exposiccedilatildeo intitulada ldquoBiblioteca de grifos Wally Salomatildeordquo que trazia grandes cartazes reproduzindo paacuteginas dos livros da biblioteca do poeta com sublinhados anotaccedilotildees poemas etc Era o gesto de um autor ldquomarginalrdquo escrevendo agraves margens dos livros Muitos desses cartazes continuam ateacute hoje expostos na Biblioteca e acabaram por se incorporar ao visual do espaccedilo9

Quanto agraves leituras promovidas naquele semestre havia o pressuposto de fazecirc-los lembrar de um gesto leitor simples escolher um livro Por isso foram indicadas trecircs obras que tratavam do ensino de literatura Aleacutem do livro de Michegravele Petit foram indicados Leitura de literatura na escola (DALVI M A REZENDE N L JOVER-FALEIROS R 2013) e Leitura subjetiva e ensino de literatura (ROUXEL A LANGLADE G REZENDE N L 2013) Foram

9 A Biblioteca Parque Estadual atualmente natildeo estaacute funcionando por conta da natildeo renovaccedilatildeo do contrato da empresa responsaacutevel por sua administraccedilatildeo Ela funcionou ateacute o final de 2016 com recursos do municiacutepio A mesma situaccedilatildeo se repete em outros espaccedilos culturais da cidade que foram fechados em decorrecircncia ldquoda crise do estadordquo

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fornecidos aos estudantes alguns elementos paratextuais daqueles livros capas iacutendices informaccedilotildees sobre os autores Estando de posse desses materiais caberia a eles escolher que livro gostariam de ler ao longo do semestre e comentar sobre os motivos da escolha

Eacute um gesto simples Muito simples mas poderoso A possibilidade de escolher um livro mesmo que seja uma escolha direcionada com livros preacute-definidos pelo professor cria um viacutenculo um comprometimento com aquela leitura Poreacutem apesar de ser um gesto simples nenhum estudante se lembrava de ter escolhido um livro para leitura durante sua vida escolar ndash incluindo a passagem pela universidade O uso de elementos paratextuais para justificar a escolha de um livro ndash algo normal entre leitores ndash tambeacutem nunca havia sido posto em praacutetica

Ao longo do semestre procurei garantir as condiccedilotildees de oferta dos livros indicando sites para compra e pedindo ao livreiro da universidade que encomendasse exemplares das obras indicadas Esse foi um momento de aprendizagem jaacute que alguns natildeo conheciam o Estante Virtual ou ainda natildeo tinham comprado um livro on-line enquanto outros jaacute conheciam essas possibilidades

Os livros foram apresentados pelos estudantes ao final da disciplina mas ao longo do semestre os comentaacuterios surgiam a toda hora Nos dias das apresentaccedilotildees pude presenciar situaccedilotildees que denotavam o grau de envolvimento deles com a atividade livros marcados com bandeirolas sublinhados frases anotadas nos cadernos falas desenvoltas sobre as obras exemplos que se relacionavam agraves suas trajetoacuterias de leitores E um detalhe importante nenhum aluno havia xerocado o livro Todos falavam com o livro em matildeos

Contudo a constataccedilatildeo mais importante apontava para um grande problema que pode ser assim resumido os conflitos vivenciados por aqueles jovens das periferias francesas no contato com a cultura oficial eram semelhantes aos conflitos que eles vivenciavam no curso de Letras na cidade do Rio de Janeiro Eles tambeacutem viviam entre duas culturas a sua de origem (perifeacuterica suburbana pouco letrada) e aquela oferecida pelo curso de Letras com um peso grande numa tradiccedilatildeo literaacuteria (branca elitista beletrista) O sucesso no curso dependia muitas vezes de um rompimento com sua cultura de origem colocada num segundo plano Em lugar da ruptura o que se esperava ali era na verdade que esses jovens e futuros professores conseguissem ao longo do curso compor uma identidade complexa em construccedilatildeo percebendo que ldquoa leitura na realidade eacute uma promessa de natildeo pertencer somente a um pequeno ciacuterculordquo (PETIT 2008 p96)

Consideraccedilotildees finais

A atuaccedilatildeo como professor de liacutengua portuguesa e literatura na escola de educaccedilatildeo baacutesica requer profissionais capazes de em linhas gerais 1) formar leitores na escola 2) fazer com que crianccedilas e jovens escrevam com desenvoltura diversos gecircneros textuais 3) levar crianccedilas e jovens a refletirem sobre usos linguiacutesticos sobre a adequaccedilatildeo de linguagem em diferentes contextos Por outro lado devemos pensar que muitos licenciandos em Letras que estudaram em escolas puacuteblicas do Rio de Janeiro tiveram aulas de liacutengua

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portuguesa e literatura que podem ser sintetizadas da seguinte forma 1) ausecircncia de leituras ou quando muito informaccedilotildees enciclopeacutedicas sobre autores e obras 2) uma escrita voltada unicamente para a praacutetica de gecircneros escolares como a dissertaccedilatildeo 3) ensino normativo da liacutengua enfatizando-se a nomenclatura gramatical

O ensino de liacutengua literatura e produccedilatildeo textual deveria ser percebido de uma maneira articulada pois a separaccedilatildeo desses conteuacutedos em disciplinas (Gramaacutetica Redaccedilatildeo e Literatura) traz para o ambiente escolar uma divisatildeo especializaccedilatildeo que pouco contribui para o aluno da educaccedilatildeo baacutesica Trata-se de uma pedagogia da fragmentaccedilatildeo que delega ao aluno nesse caso da educaccedilatildeo baacutesica a tarefa de juntar as peccedilas qual eacute a relaccedilatildeo das oraccedilotildees subordinadas com a obra de Graciliano Ramos Qual eacute a relaccedilatildeo de tudo isso com a uacuteltima proposta de produccedilatildeo textual do professor de Redaccedilatildeo

Tal pedagogia da fragmentaccedilatildeo encontra amplo espaccedilo nas licenciaturas Desde cedo os estudantes das graduaccedilotildees se veem obrigados a se especializarem para conseguirem bolsas de iniciaccedilatildeo cientiacutefica ou para depois atuarem nas escolas como professores de determinada aacuterea liacutengua literatura ou redaccedilatildeo10 Na contramatildeo de tudo isso as teorias sobre o ensino da liacutengua mostram que eacute impossiacutevel discutir aspectos gramaticais fora do texto que o ensino da literatura pode ser mais produtivo quando articulado com a escrita e que a escrita literaacuteria pode levar a um entendimento melhor dos mecanismos utilizados nas obras literaacuterias (BUNZEN 2006 MARCUSCHI 2008 ANTUNES 2009 GERALDI 2014)

Pede-se ao estudante de Letras que entenda esse quadro complexo do ensino de liacutengua portuguesa literatura e produccedilatildeo textual no Brasil quando esse natildeo eacute o foco do curso que ele faz quando em seu proacuteprio curso natildeo haacute momentos de diaacutelogos e trocas entre essas ldquodiferentesrdquo aacutereas

Some-se a isso a divisatildeo arbitraacuteria entre as disciplinas que satildeo propriamente do Curso de Letras ndash revestidas de prestiacutegio ndash e as disciplinas oferecidas pela Faculdade de Educaccedilatildeo muitas vezes desvalorizadas ou postas em segundo plano Atente-se para o fato de que essa separaccedilatildeo eacute marcada inclusive no plano geograacutefico a Faculdade de Letras na Ilha do Fundatildeo (Zona Norte da cidade) a Faculdade de Educaccedilatildeo na Praia Vermelha (Zona Sul da cidade) Para marcar melhor essa fragmentaccedilatildeo eacute preciso lembrar que o Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da UFRJ tambeacutem estaacute localizado na Zona Sul da cidade numa das regiotildees de mais difiacutecil acesso para os moradores da Zona Norte nas proximidades da Lagoa Rodrigo de Freitas

Tudo isso parece apontar para uma necessidade imperiosa de se rever a articulaccedilatildeo entre teorias e praacuteticas pois como jaacute apontava Joatildeo Wanderley Geraldi num verdadeiro claacutessico do ensino de liacutengua literatura e redaccedilatildeo

Qualquer proposta metodoloacutegica eacute a articulaccedilatildeo de uma concepccedilatildeo de mundo e de educaccedilatildeo ndash e por isso uma concepccedilatildeo de ato poliacutetico ndash e

10 Essa divisatildeo eacute ainda vivenciada em muitas escolas puacuteblicas do Rio de Janeiro que possuem um professor para cada ldquoaacutereardquo A cultura acadecircmica tambeacutem estimula essa fragmentaccedilatildeo por meio da precoce ldquoespecializaccedilatildeo do graduandordquo que adere a uma linha de pesquisa de liacutengua ou de literatura e verbaliza isso ao dizer ldquoeu sou da liacutenguardquo ldquoeu sou da literaturardquo

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uma concepccedilatildeo epistemoloacutegica do objeto de reflexatildeo ndash no nosso caso a linguagem ndash com as atividades desenvolvidas em sala de aula (GERALDI 2011 p128)

Ora essa afirmativa que pode beirar a obviedade ndashpropostas metodoloacutegicas articulam escolhas poliacuteticas ndash publicada haacute mais de trinta anos num livro voltado para professores de educaccedilatildeo baacutesica ganha contornos dramaacuteticos de atualidade no contexto que vivenciamos de formaccedilatildeo de professores de Letras A natildeo percepccedilatildeo das realidades desses jovens que chegam agrave universidade para se tornarem professores e a ausecircncia de tentativa de formaacute-los leitores numa clave complexa tecircm levado agrave repeticcedilatildeo de praacuteticas de escrita e leitura contraditoacuterias com a ideia libertadora e democraacutetica que deveria permear as relaccedilotildees entre teoria e praacutetica na universidade

Todas essas questotildees soacute podem ser pensadas num quadro mais complexo de formaccedilatildeo de professores Talvez o proacuteprio nome Letras que eacute dado para este curso aponte para uma direccedilatildeo diferente daquela que seria a de um curso que se preocupasse em formar professores para atuarem na educaccedilatildeo baacutesica Talvez essa palavra traga mesmo um forte conteuacutedo elitista ligado ao ensino da literatura como algo para poucos11

Referecircncias

ANTUNES I Liacutengua texto e ensino ndash outra escola possiacutevel Satildeo Paulo Paraacutebola 2009

BUNZEN C MENDONCcedilA M Portuguecircs no ensino meacutedio e a formaccedilatildeo do professor Satildeo Paulo Paraacutebola 2006

CULTURA POLIacuteTICA (Revista mensal de Estudos Brasileiros) Rio de Janeiro Departamento de Imprensa e Propaganda Ano 1 a 3 (1941-1943) Disponiacutevel em httpcpdocfgvbr

COLOMER T Andar entre livros a leitura literaacuteria na escola Satildeo Paulo Global 2007

DALVI M A REZENDE N L JOVER-FALEIROS R (Org) Leitura de literatura na escola Satildeo Paulo Paraacutebola 2013

GERALDI J W et al O texto na sala de aula 5ed Satildeo Paulo Aacutetica 2011

KLEIMAN Angela Letramento identidade e formaccedilatildeo do professor Rio de Janeiro IV Encontro de Ensino e Aprendizagem em Liacutenguas e Literaturas 2017 (palestra)

11 Este ano de 2017 foi marcado por uma seacuterie de movimentos em torno da reforma curricular do Curso de Letras da UFRJ Muitas dessas questotildees foram discutidas no I Congresso Interno da Faculdade de Letras e nas reuniotildees do Nuacutecleo Docente Estruturante Acredito que houve um grande avanccedilo nas discussotildees e um maior entendimento da necessidade da universidade aproximar-se da escola de educaccedilatildeo baacutesica reconhecendo nela o locus de formaccedilatildeo de uma cultura profissional Neste sentido a universidade estaacute em processo de construccedilatildeo de um complexo de formaccedilatildeo com o a contribuiccedilatildeo do professor Antoacutenio Noacutevoa (Universidade de Coimbra) que visa criar uma relaccedilatildeo mais estreita com as redes de ensino Nem tudo eacute penumbra haacute muitas faiscaccedilotildees de esperanccedila

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MARCUSCHI L A Produccedilatildeo textual anaacutelise de gecircneros e compreensatildeo Satildeo Paulo Paraacutebola 2008

ANDREacute Marli O trabalho docente do professor formador e as praacuteticas curriculares da licenciatura na voz dos estudantes In SANTOS Luciacuteola Liciacutenio de Castro Paixatildeo FAVACHO Andreacute Maacutercio Picanccedilo (orgs) Poliacuteticas e praacuteticas curriculares desafios contemporacircneos Curitiba CRV 2012 (p35-49)

PETIT M Os jovens e a leitura uma nova perspectiva Satildeo Paulo Editora 34 2008

REBELO M Cenas da vida brasileira 2ed Rio de Janeiro Joseacute Olympio 2010

RODELLA Gabriela O professor de portuguecircs e a literatura ndash relaccedilotildees entre formaccedilatildeo haacutebitos de leitura e praacuteticas de ensino Satildeo Paulo Alameda 2013

ROUXEL A LANGLADE G REZENDE N L (Org) Leitura subjetiva e ensino de literatura Satildeo Paulo Alameda 2013

Recebido em 29 de abril de 2017

Aceito em 23 de outubro de 2017

Marcos Scheffel

Professor de Didaacutetica e Praacutetica de Ensino de Portuguecircs e Literatura da UFRJ desde 2013 Doutor em Teoria Literaacuteria pela Universidade Federal de Santa Catarina (2011) Atuou na educaccedilatildeo baacutesica em Santa Catarina entre 2000 e 2008 marcosscheffel53gmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Estaacutegio supervisionado em Letras da UFGD mediando leituras e formando leitores

Supervised Internship in Letras at UFGD Mediating Readings and Forming Readers

Praacutecticas supervisadas en Letras de la UFGD mediando lecturas y formando lectores

Alexandra Santos Pinheiro Universidade Federal da Grande Dourados

Resumo

No presente artigo analisamos o Estaacutegio Supervisionado em Literatura pela perspectiva da formaccedilatildeo de leitores Apoacutes apresentarmos o regimento que norteia o componente curricular no curso de Letras refletimos sobre a dificuldade demonstrada pelos estagiaacuterios de proporem planos de intervenccedilatildeo que visem a formaccedilatildeo de leitores da educaccedilatildeo baacutesica Identificamos nesta dificuldade duas questotildees relevantes a pouca relaccedilatildeo estabelecida ao longo da graduaccedilatildeo com as disciplinas voltadas ao texto literaacuterio e a falta de graduandos que se constituam como leitores Palavras-chave Literatura Estaacutegio leitores

Abstract

In the present article we analyze the Supervised Internship in Literature from the perspective of the formation of readers After presenting the regiment that guides this course in the Letras undergraduate program we reflect on the difficulty the interns have to propose intervention plans that aim at the formation of readers within school education In this difficulty we identified two important issues the low commitment tounder graduate courses focused on the literary text and the lack of graduates who are readers themselves Keywords Literature Internship readers

Resumen

En este trabajo se analiza las praacutecticas supervisadas en la literatura desde la perspectiva de la formacioacuten de lectores Tras la presentacioacuten del regimiento que guiacutea el componente curricular en el curso de Letras se reflexiona sobre la dificultad de los alumnos para proponer planes de accioacuten destinados a la formacioacuten de los lectores de la educacioacuten baacutesica Se identifican en esta dificultad dos cuestiones importantes la poca relacioacuten que se establece a lo largo de la graduacioacuten con cursos orientados al texto literario y la falta de alumnos en formacioacuten que constituyan en lectores Palabras clave Literatura Praacutecticas lectores

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1 Palavras iniciais

Na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) o Estaacutegio de Literatura e de Liacutengua Portuguesa eacute pautado por um Regulamento de Estaacutegio (2009) normas que regem a praacutetica de estaacutegio nas duas habilitaccedilotildees do curso de Letras da Faculdade de Artes e Letras (FACALE) dessa universidade Literatura e Inglecircs como liacutengua estrangeira Com base nas normas os alunos propotildeem um plano de aulas Nestes planos os professores orientadores de Estaacutegio Supervisionado de Liacutengua Portuguesa e de Literatura priorizam um trabalho que envolva ensino pesquisa e extensatildeo As orientaccedilotildees em sala de aula a investigaccedilatildeo do funcionamento das instituiccedilotildees escolares de Ensino Fundamental e Meacutedio e a reflexatildeo sobre as observaccedilotildees e regecircncias resultam na elaboraccedilatildeo dos planos No processo de elaboraccedilatildeo os acadecircmicos satildeo orientados a pensar a partir da concepccedilatildeo teoacuterica dos gecircneros textuais que para Bakhtin (2000 p 279) eacute ldquoum enunciado de natureza histoacuterica sociointeracional ideoloacutegica e linguiacutesticardquo E acrescenta ldquoa utilizaccedilatildeo da liacutengua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e uacutenicos que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humanardquo (BAKHTIN 2000 p 279)

Acreditamos ser o estaacutegio para muitos graduandos1 o responsaacutevel por lhes apresentar a realidade escolar e por incutir-lhes o sentimento de que os conhecimentos adquiridos ao longo da graduaccedilatildeo natildeo satildeo suficientes para o exerciacutecio docente mostrando-lhe assim a necessidade de constante pesquisa

Selma Pimenta (2006) constata um fato que muitas vezes pode ser percebido nos cursos de licenciatura do ensino superior Conforme a autora os estagiaacuterios ficam confusos durante a regecircncia porque percebem que os conteuacutedos aprendidos durante o curso natildeo condizem com a realidade da sala de aula dos niacuteveis de ensino Fundamental e Meacutedio Se pensarmos no curso de licenciatura em Letras quantos graduados diante de sua primeira experiecircncia profissional sentem-se perdidos diante dos conteuacutedos a serem ministrados A carga horaacuteria destinada ao estudo da linguiacutestica natildeo lhes daacute subsiacutedios para trabalhar com alunos que muitas vezes chegam ao final do Ensino Fundamental ou mesmo do Ensino Meacutedio sem as capacidades necessaacuterias para estruturar um texto escrito com o miacutenimo de coerecircncia e coesatildeo E o que dizer das aulas de Teoria Literaacuteria Como ler com os educandos do Ensino Meacutedio as obras de Machado de Assis Guimaratildees Rosa Joatildeo Cabral de Melo Neto cacircnones que no discurso dos professores de teoria literaacuteria pareciam tatildeo inteligiacuteveis mas que para a maioria dos ldquoleitoresrdquo satildeo incompreensiacuteveis

O Estaacutegio Supervisionado precisaria possibilitar essa reflexatildeo Deveria representar o momento em que o acadecircmico pensaria o curso de Letras o conhecimento alcanccedilado e as limitaccedilotildees dele (graduando) e de seu curso diante da realidade que o espera do lado de fora da Universidade O Estaacutegio deveria oferecer ao futuro licenciado a oportunidade de

1 Muitos graduandos natildeo podem participar do Programa de Bolsa de Incentivo agrave Docecircncia (PIBID) que existe desde 2009 oferecendo ao aluno oportunidade de muitas horas de atividades nas escolas devido agrave necessidade de trabalhar para sustentar ou contribuir com o sustento de suas famiacutelias

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compreender que o conteuacutedo teoacuterico do curso eacute tatildeo importante quanto pensar a melhor metodologia para desenvolver com os seus futuros alunos em quaisquer niacuteveis

Em nossa instituiccedilatildeo aleacutem da Lei Federal que parametriza os estaacutegios em niacutevel nacional nordm 117882008 de 25092008 temos a Resoluccedilatildeo nordm 118 - CEPEC de 13092007 Delineadas as leis que nortearamnorteiam o estaacutegio no Brasil ficam as questotildees como ele deve ser feito Como fazer e para quecirc Pensando nas questotildees metodoloacutegicas na UFGD como na maioria das licenciaturas a disciplina de Estaacutegio Supervisionado eacute ministrada nos dois uacuteltimos anos do curso No 3deg ano faz-se o estaacutegio de observaccedilatildeo e no 4deg ano o estaacutegio de regecircncia ambos no Ensino Fundamental e Meacutedio Em geral para o cumprimento das atividades e obtenccedilatildeo de uma meacutedia final satisfatoacuteria o estudante precisa

a assistir a uma quantidade X de aulas em escolas dos ensinos fundamental e meacutedio2

b escolher um tema a ser aprofundado teoacuterico-metodologicamente numa sala de aula do ensino baacutesico

c construir planos de aula para a regecircncia Neste plano os graduandos devem apoiando-se nas teorias linguiacutesticas e literaacuterias estudadas durante o curso explicitar a metodologia referencial teoacuterico justificativa objetivos e avaliaccedilatildeo

d participar de seminaacuterios e discussotildees durante o ano letivo para levantamento de problemas observados em sala de aula e suas possiacuteveis intervenccedilotildees

e entregar relatoacuterio de estaacutegio que em siacutentese vai mostrar o percurso do estudante em todas as atividades elencadas

Para o Estaacutegio Supervisionado em Literatura I satildeo previstas a observaccedilatildeo e a regecircncia no Ensino Fundamental do 6ordm ao 9ordm ano e para o Estaacutegio Supervisionado em Literatura II a observaccedilatildeo e a regecircncia no Ensino Meacutedio Nas reformulaccedilotildees jaacute feitas no projeto poliacutetico pedagoacutegico como ementa temos

a reflexotildees teoacuterico-metodoloacutegicas acerca do Estaacutegio Supervisionado e do ensino de literatura nos uacuteltimos anos do Ensino Fundamental visando agrave formaccedilatildeo do profissional de Letras

b Usos de tecnologia na educaccedilatildeo

c Normas e legislaccedilatildeo

No plano de aula o estudante deve apresentar um problema de ensino voltado para a mediaccedilatildeo do texto literaacuterio Deve o estudante basear-se no referencial teoacuterico que o guiaraacute durante o desenvolvimento do plano numa determinada realidade escolar e especificar a

2 Pela norma que regulamenta o estaacutegio supervisionado a Comissatildeo de Estaacutegio (COES) acordou nos seguintes termos a carga horaacuteria para o estaacutegio Liacutengua Portuguesa ndash 20 horas no Ensino Fundamental e 20 horas no Ensino Meacutedio Liacutengua Inglesa ndash 20 horas no Ensino Fundamental ou no Ensino Meacutedio eou em escolas de idiomas Literatura ndash 20 horas no Ensino Fundamental eou no Ensino Meacutedio

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metodologia seus objetivos e a que conclusatildeo pretende chegar Na praacutetica acumulamos a cada ano as dificuldades de muitos graduandos em propor e executar uma atividade de formaccedilatildeo de leitores ou de mediaccedilatildeo de leitura Os obstaacuteculos se fossem apenas relacionados agrave fundamentaccedilatildeo teoacuterica seriam compreensiacuteveis poreacutem eles se refletem tambeacutem na escolha dos textos literaacuterios Nos debates em classe a maioria admite natildeo assumir a praacutetica da leitura e reconhece que lhes falta repertoacuterio de obras literaacuterias para iniciar a preparaccedilatildeo de uma aula que objetive a mediaccedilatildeo da leitura Os limites apresentados infelizmente acompanham alguns dos graduandos em seu percurso profissional que continuaraacute marcado como veremos a seguir pela ausecircncia da praacutetica de leitura literaacuteria

2 Estaacutegio e ensino de literatura entre a teoria e a praacutetica

Se no Brasil o Letramento eacute definido como ldquoEstado ou condiccedilatildeo de quem natildeo apenas sabe ler e escrever mas cultiva e exerce as praacuteticas sociais que usam a escritardquo (SOARES 2007 p 17) o letramento literaacuterio seria visto entatildeo como estado ou condiccedilatildeo de quem natildeo apenas eacute capaz de ler poesia prosa ou drama mas dele se apropria efetivamente por meio da experiecircncia esteacutetica Sempre que possiacutevel dialogamos com Barthes (1980) para quem o texto literaacuterio eacute ldquoum monumentordquo capaz de incorporar as demais imagens Abramovich trabalha na mesma direccedilatildeo e afirma

Eacute atraveacutes duma histoacuteria que se podem descobrir outros lugares outros tempos outros jeitos de agir e de ser outra eacutetica outra oacutetica Eacute ficar sabendo Histoacuteria Geografia Filosofia Poliacutetica Sociologia sem precisar saber o nome disso tudo e muito menos achar que tem cara de aula (ABRAMOVICH 1995 p 17)

Tanto o discurso de Barthes quanto o de Abramovich contribuem para a defesa da literatura e da formaccedilatildeo de leitores Depoimentos como o do filoacutesofo Sartre amparam esses argumentos Sartre rememora sua infacircncia camponesa ele que nunca mexeu na terra nem jogou pedras nos passarinhos Contudo para o autor os livros foram seus passarinhos seus ninhos animais de estimaccedilatildeo

As densas lembranccedilas e o doce contra-senso das crianccedilas camponesas em vatildeo os procuraria em mim Nunca fucei a terra nem procurei ninhos natildeo colecionei plantas nem joguei pedras nos passarinhos No entanto os livros foram meus passarinhos e meus ninhos meus animais de estimaccedilatildeo meu estaacutebulo e meu campo (SARTRE 1993 apud SANTIAGO 1978 p 23)3

3 Cf o trecho original ldquoLes souvenirs touffus et la douce deacuteraison des enfances paysannes en vain les chercherais-je en moi Je nrsquoai jamais gratteacute la terre ni quecircteacute des nids je nrsquoai pasher boriseacute ni lanceacute des Pierre sauxois e aux Mais les libre sonteacuteteacute me sois e aux et mes nids mes becirctes domestiques moneacutetable et ma campagnerdquo

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Nesse sentido percebemos que eacute preciso quando se coloca a literatura e seu ensino em pauta defender o seu espaccedilo nas praacuteticas escolares e assegurar a sua importacircncia para a formaccedilatildeo integral do cidadatildeo Principalmente em realidades como a enfrentada pelo estado do Mato Grosso do Sul que no ano de 2017 excluiu a literatura do curriacuteculo do ensino meacutedio sob o pretexto de que ela seria incorporada pela disciplina de Liacutengua Portuguesa Ao longo da experiecircncia com projetos de Formaccedilatildeo Continuada de professores temos percebido que no ambiente escolar as praacuteticas pedagoacutegicas do ensino de literatura colaboram para um processo que estaacute longe de formar leitores As praacuteticas escolares de muitos professores privilegiam o fragmento literaacuterio o recorte de um texto literaacuterio feito por algueacutem e natildeo o livro Desta forma os fragmentos literaacuterios presentes nos livros didaacuteticos tiram da escola o livro que congrega autor e obra sociedade e mundo representado cultura e economia Aleacutem disso hoje o livro tambeacutem concorre com os meios de comunicaccedilatildeo e com as tecnologias na aacuterea da informaacutetica que alguns pesquisadores vatildeo apontar como obstaacuteculos a serem vencidos no processo de formaccedilatildeo de leitores literaacuterios

Autores decididos a amenizar os problemas da (natildeo) leitura indicam aos professores atividades de praacutetica de leitura ensinam como selecionar os livros explicam sobre a psicologia que norteia a faixa etaacuteria de cada aluno Mas apesar de tudo a ldquocriserdquo ainda persiste e eacute tema recorrente nas mesas de debate de eventos locais regionais nacionais e internacionais a exemplo do Congresso de Leitura do Brasil (COLE)4 Nos documentos oficiais como nas Orientaccedilotildees Curriculares (2006) assegura-se a presenccedila do texto literaacuterio nos Ensinos Fundamental e Meacutedio Eacute possiacutevel perceber nesses textos oficiais que existe uma dimensatildeo do que poderia ser melhorado em sala de aula

No Ensino Fundamental (principalmente da 5ordf agrave 8ordf seacuterie) caracteriza-se por uma formaccedilatildeo menos sistemaacutetica e mais aberta do ponto de vista das escolhas na qual se misturam livros que indistintamente denominamos ldquoliteratura infanto-juvenilrdquo a outros que fazem parte da literatura dita ldquocanocircnicardquo legitimada pela tradiccedilatildeo escolar inflexatildeo que quando acontece se daacute sobretudo nos uacuteltimos anos desse segmento (7ordf ou 8ordf seacuterie) (BRASIL 2006 p 46)

Se no Ensino Fundamental vai predominar a liberdade de escolha e a leitura de fruiccedilatildeo no Meacutedio

constata-se um decliacutenio da experiecircncia de leitura de textos ficcionais seja de livros da literatura infanto-juvenil seja de alguns poucos autores representativos da literatura brasileira selecionados que aos poucos cede lugar agrave histoacuteria da Literatura e seus estilos (BRASIL 2006 p57)

Ao longo do documento natildeo se identifica o conceito de leitura que deveria nortear o ensino de literatura A nosso ver seria interessante observar que o ato de ler eacute um processo

4 Todos os anais das ediccedilotildees do COLE podem ser acessados em httpalborgbranais-cole

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trabalhoso que exige ldquoesforccedilo treino capacitaccedilatildeo e acumulaccedilatildeordquo como explicita Ricardo Azevedo (2004 p 34) Eni Orlandi (2006 p 23) pela perspectiva da Anaacutelise do Discurso define a leitura como ldquocompreensatildeo natildeo apenas decodificaccedilatildeordquo A leitura seria o momento criacutetico da construccedilatildeo do texto um processo de interaccedilatildeo verbal que faz desencadear a assimilaccedilatildeo dos sentidos O leitor por sua vez seria aquele que consegue atribuir sentido a um diversificado nuacutemero de textos Eacute leitor aquele que devido agrave familiaridade com a escrita consegue diferenciar os tipos de gecircneros literaacuterios e natildeo literaacuterios e os motivos que o levam a escolher uma leitura em detrimento da outra

Portanto para que a leitura seja inserida como uma forma de aproveitar o tempo livre ou seja para que seja vista como lazer faz-se necessaacuterio que o indiviacuteduo se torne um leitor e esse processo como se vecirc exige esforccedilo e dedicaccedilatildeo Eacute necessaacuterio saber por que lemos precisamos atribuir sentido ao que lemos e isso exige praacutetica treino acuacutemulo de informaccedilatildeo raciociacutenio A arte literaacuteria deveria fazer parte do ambiente familiar e escolar desde os primeiros meses de vida Essa afirmaccedilatildeo pode parecer utoacutepica mas natildeo eacute Ela estaacute fundamentada em um referencial teoacuterico que permite acreditar que a democratizaccedilatildeo do ensino exigiria um repensar sobre nossa histoacuteria socioeconocircmica de exclusatildeo A leitura literaacuteria oferece meios de enxergar a realidade por outro prisma ela cria possibilidades para si e para o ambiente que a cerca Entretanto a desigualdade econocircmica dificulta a criaccedilatildeo de um ambiente de leitura mostrando que a literatura a situaccedilatildeo socioeconocircmica e as praacuteticas culturais devem ser pensadas de forma indissociada

Se antes a exclusatildeo referia-se principalmente agrave dificuldade do acesso ao livro hoje a tecnologia eacute apontada como uma ldquovilatilderdquo do ensino de literatura

De um lado os tecnoacutefilos veem a tecnificaccedilatildeo do literaacuterio como algo inevitaacutevel diante do qual todos devem se curvar sem resistecircncia Do outro haacute os que desconfiam do novo suporte com medo de que o texto literaacuterio apresentado na tela perca a aura da Literatura (FREITAS 2003 p 156)

Alberto Manguel (1997) lembra que uma nova tecnologia natildeo destroacutei a que lhe antecede Afirma que o surgimento da imprensa acompanhado por negativas previsotildees natildeo erradicou o gosto pelo texto impresso Ele tambeacutem observou que ao mesmo tempo em que os livros se tornavam de faacutecil acesso e mais gente aprendia a ler mais pessoas tambeacutem aprendiam a escrever Em relaccedilatildeo agrave literatura e agrave internet Maria Teresa de Assunccedilatildeo Freitas lembra que

O mundo da Internet natildeo se constitui neste espaccedilo como condiccedilotildees de oferecer a um simples toque no teclado amplos e variados acervos aos seus usuaacuterios Diante dessa multiplicidade de oferta a escolha pessoal natildeo eacute o iniacutecio do processo de navegaccedilatildeo pelos mares da Literatura (FREITAS 2003 p 169)

Essa citaccedilatildeo acende dois questionamentos Por um lado qual o puacuteblico escolar que navega via internet ldquopelos mares da Literaturardquo As salas de tecnologia instaladas

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na maioria das escolas puacuteblicas brasileiras natildeo satildeo suficientes para atender a grande quantidade de alunos de cada instituiccedilatildeo escolar Por outro percebemos no diaacutelogo com os professores que diante do computador a maioria dos alunos natildeo demonstra familiaridade com a tecnologia exigindo do docente grande malabarismo para desenvolver as atividades propostas

Desta forma a presenccedila do livro e da tecnologia vai depender da concepccedilatildeo pedagoacutegica do professor geralmente o principal mediador entre a leitura literaacuteria e o educando Ao professor cabe explorar as potencialidades desse tipo de texto criando as condiccedilotildees para que o encontro do aluno com a literatura culmine em uma busca plena de sentido na leitura do texto literaacuterio Por essa perspectiva tem-se o ensino da literatura pautado no Letramento ou seja na busca do conhecimento a partir do texto literaacuterio pelo proacuteprio aluno e no cotidiano social em que todos estatildeo inseridos O problema como mencionado anteriormente eacute que quando o educador atua em sala ele muitas vezes baseia-se nos fragmentos literaacuterios encontrados nos livros didaacuteticos e na siacutentese das caracteriacutesticas literaacuterias na qual determinado autor e obra estatildeo inseridos5 Aleacutem de priorizar fragmentos literaacuterios muitos docentes desprezam as vivecircncias sociais de seus educandos em geral telespectadores de seacuteries como Malhaccedilatildeo6 dentre outras

Alunos que entendem da constituiccedilatildeo dos personagens e que portanto fazem a sua seleccedilatildeo pessoal dos filmes mais marcantes Eacute a partir dessa vivecircncia que o texto literaacuterio da tradiccedilatildeo canocircnica ou popular deveria ser inserido em sala de aula

Para chegar a essa concepccedilatildeo de ensino de literatura seria necessaacuterio principalmente a presenccedila de professores leitores Ao enfocar a importacircncia do professor para a formaccedilatildeo de leitores literaacuterios natildeo desejamos atribuir somente a ele a responsabilidade por despertar nos educandos o prazer pela leitura literaacuteria Eacute sabido que essa eacute uma questatildeo no Brasil comprometida pela desigualdade social pelo preccedilo dos livros dentre outros fatores Consequentemente a maioria dos alunos de escolas puacuteblicas teraacute os primeiros contatos com livros na escola o que torna significativo o papel desse mediador Da mesma forma que se constata essa realidade percebe-se nos cursos de formaccedilatildeo continuada (e no uacuteltimo ano da graduaccedilatildeo em Letras) que raramente o professor de Liacutengua Portuguesa e de Literatura lembra-se do uacuteltimo livro literaacuterio lido na iacutentegra Quando perguntamos aos mediadores e aos futuros mediadores da leitura literaacuteria o que eacute literatura como selecionam o texto a ser discutido como acontecem suas aulas de Literatura e qual o uacuteltimo livro que leram ou que estatildeo lendo geralmente instaura-se um certo constrangimento

5 Os trabalhos orientados na graduaccedilatildeo e no mestrado sustentam a afirmaccedilatildeo Para aprofundamento no tema sugerimos Leitoras de Best-sellers o que determina suas escolhas dissertaccedilatildeo de mestrado defendida por Mayara Regina Pereira Dau em 2012 pela Universidade Federal da Grande Dourados Literatura e Memoacuteria a formaccedilatildeo de leitoras no Ensino de Jovens e Adultos dissertaccedilatildeo de mestrado defendida por Iva Carla Aveline Teixeira dos Santos em 2017 pela Universidade Federal da Grande Dourados

6 Uma seacuterie televisiva produzida pela Rede Globo desde 1995 ateacute o presente momento

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A maioria escolhe a partir da orientaccedilatildeo do livro didaacutetico natildeo aborda a literatura produzida em seu estado ou cidade e natildeo dialoga com a Academia de Letras de seu municiacutepio Os acadecircmicos escritores da cidade poderiam ser convidados para participar das aulas do professor explicando aos alunos o processo de escrita de um texto literaacuterio e da produccedilatildeo de um livro por exemplo Acerca do que leem raramente uma leitura literaacuteria eacute citada A maioria quando estaacute lendo indica livros classificados como autoajuda A preferecircncia por este tipo de literatura indica pontos importantes o preccedilo a sintaxe e o vocabulaacuterio desses livros satildeo geralmente mais acessiacuteveis

Outro aspecto impressionante refere-se ao diaacutelogo entre a graduaccedilatildeo e a praacutetica docente Salientamos nos cursos de formaccedilatildeo continuada a importacircncia de utilizar o conhecimento da teoria literaacuteria para ensinar a ler literatura e a necessidade de instigar o educando a perceber os elementos que marcam os gecircneros literaacuterios e como esses elementos se relacionam no texto

Nesse momento fica expliacutecito que a maioria natildeo consegue se lembrar das aulas de teoria recebidas ao longo da trajetoacuteria universitaacuteria especialmente na graduaccedilatildeo em Letras Ao inveacutes de questionar-se a maioria prefere afirmar que a deficiecircncia natildeo estaacute em saber (ou natildeo) a teoria que marca cada gecircnero mas na falta de interesse dos educandos Afirmam que natildeo haacute como incentivaacute-los a gostar de ficccedilatildeo Todavia satildeo esses mesmos jovens que alimentam a audiecircncia das seacuteries para adolescentes O que satildeo essas seacuteries Satildeo ficccedilotildees enredos pautados em personagens que correspondem aos aspectos fiacutesicos e psicoloacutegicos dos jovens que acompanham as accedilotildees Tambeacutem se trata de uma ficccedilatildeo marcada por temas claacutessicos como amor traiccedilatildeo o bem e o mal acrescidos de temas modernos como a questatildeo do consumismo e da violecircncia urbana Munido de conhecimento teoacuterico o professor teria pouca dificuldade para mostrar a esses educandos tidos como desinteressados pela leitura literaacuteria como a praacutetica social e familiar e as escolhas dos programas que assistem na TV afirmam o contraacuterio

Tal reflexatildeo gera novo impasse como formar professores leitores O professor deveria perceber que a praacutetica de leitura soacute pode ser atingida a partir de uma reflexatildeo pautada num referencial teoacuterico sustentado pela importacircncia da literatura para a formaccedilatildeo social psicoloacutegica e cognitiva do cidadatildeo por outro lado deveria ter uma praacutetica docente sustentada por pesquisa Assumimos o respeito pelos graduandos e pelos docentes que encontramos nas formaccedilotildees continuadas Por isso eacute impossiacutevel deixar de indagar com uma jornada de trabalho de 40 horas semanais como assumir a postura de professor leitor e pesquisador Eacute preciso dar condiccedilotildees para que o trabalho do professor possa ser mais significativo

Feitas tais ponderaccedilotildees eacute preciso pensar entatildeo em como proporcionar condiccedilotildees para que se tenha professores-leitores e pesquisadores Aleacutem das condiccedilotildees estruturais de trabalho (salaacuterio carga horaacuteria) partimos do pressuposto de que um curso de licenciatura por mais estruturado que seja natildeo forma integralmente um professor Uma vez que a formaccedilatildeo eacute um processo contiacutenuo o processo de preparaccedilatildeo para o iniacutecio da carreira docente natildeo absorve toda a dinacircmica necessaacuteria para a efetiva formaccedilatildeo desses

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profissionais Na realidade independentemente do niacutevel em que lecione o professor faz parte de um grupo de profissionais que deve se atualizar constantemente

Os egressos dos cursos de Letras e de outras licenciaturas contam com os cursos de formaccedilatildeo continuada ofertados em projetos de extensatildeo Nada mais justo uma vez que ao se deparar com a dinacircmica da praacutetica os novos (e os mais velhos tambeacutem) educadores sentem-se desorientados e angustiados Nesse sentido os cursos de formaccedilatildeo continuada possibilitam apreender as dificuldades teoacuterico-metodoloacutegicas da praacutetica dos professores da Educaccedilatildeo Baacutesica Assim sem o engajamento de professores leitores tambeacutem se torna difiacutecil explicar que o letramento literaacuterio deve partir das praacuteticas de leitura dos alunos (novelas filmes diaacuterios desenhos animados) para leituras mais elaboradas que exigem um esforccedilo maior de interpretaccedilatildeo

As escolas satildeo instituiccedilotildees agraves quais a sociedade delega a responsabilidade de prover as novas geraccedilotildees das habilidades conhecimentos crenccedilas valores e atitudes consideradas essenciais agrave formaccedilatildeo de qualquer cidadatildeo Mas com base nas pesquisas de Kleiman (20012003) Rojo (2006) Soares (2003) eacute possiacutevel afirmar que a relaccedilatildeo entre escola e letramento eacute complexa Haacute uma espeacutecie de ldquocontrolerdquo da escola ao inveacutes de expansatildeo de praacuteticas sociais O letramento escolar eacute insuficiente para medir e avaliar as habilidades de leitura e de escrita Em paiacuteses como o Brasil o funcionamento inconsistente e discriminatoacuterio da sociedade gera padrotildees muacuteltiplos e diferenciados de aquisiccedilatildeo do letramento

Desse modo tendo ciecircncia deste tipo de letramento efetuado nas escolas seria significativo avanccedilar para praacuteticas sociais que marcam a vida dos sujeitos envolvidos Entendemos assim que o docentediscente inserido em praacuteticas de leituraescrita de gecircneros diversos que circulam socialmente (da esfera literaacuteria e natildeo literaacuteria como sugerem os Paracircmetros Curriculares Nacionais ndash PCN 1998) deve ser considerado uma pessoa letrada Em se tratando do letramento literaacuterio fixamos a importacircncia de pensar em vaacuterias questotildees o acesso aos livros a formaccedilatildeo de professores a valorizaccedilatildeo do livro dentro da famiacutelia e a questatildeo da tecnologia para citar apenas as que foram abordadas ao longo desse debate Diante de uma sociedade tecnoloacutegica com importantes descobertas cientiacuteficas em que o indiviacuteduo desde muito cedo tem acesso agrave internet e a partir dela ouve muacutesica joga assiste a filmes conhece lugares e pessoas por que insistir na literatura (no livro literaacuterio) Por que se empenhar para que nossos alunos (e noacutes tambeacutem) tenhamos na obra literaacuteria uma opccedilatildeo para o prazer para o conhecimento e para a formaccedilatildeo subjetiva e social E por que insistir na afirmaccedilatildeo de que no Brasil se lecirc pouco

Regina Zilberman (1982) mostra algumas contradiccedilotildees em relaccedilatildeo agrave chamada crise de leitura De acordo com sua pesquisa nos anos 1970 quando iniciaram efetivamente as reflexotildees sobre a (natildeo) leitura acontecia o crescimento da populaccedilatildeo urbana decorrente da oferta de trabalho nas induacutestrias Esse aumento da populaccedilatildeo por sua vez exigiu uma reformulaccedilatildeo da estrutura escolar devido agrave ampliaccedilatildeo do nuacutemero de alunos Assim dentre as novas propostas da reforma de ensino instituiacuteda nesse periacuteodo o texto literaacuterio ganhou destaque em sala de aula as editoras passaram a investir na publicaccedilatildeo de obras infantis e um elevado nuacutemero de livros passou a circular nos acervos escolares

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Em 2009 de acordo com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo (FNDE) 236 milhotildees de estudantes das seacuteries finais do Ensino Fundamental foram beneficiados com o programa de distribuiccedilatildeo de livros literaacuterios Vale ressaltar que os acervos foram compostos por tiacutetulos de poemas contos crocircnicas teatro texto de tradiccedilatildeo popular romance memoacuteria diaacuterio biografia ensaio histoacuterias em quadrinhos e obras claacutessicas7

O apontamento histoacuterico apresentado e os nuacutemeros indicados pelo FNDE demonstram que aparentemente natildeo haacute lugar para a chamada crise de leitura De acordo com Zilberman (1982) a contradiccedilatildeo instalava-se na recusa agrave leitura O puacuteblico leitor em potencial natildeo demonstrava interesse pela leitura das obras literaacuterias Essa recusa infelizmente ainda eacute a motivaccedilatildeo para o debate acerca do ensino de literatura A diferenccedila eacute que ao debate satildeo acrescidos outros (natildeo) leitores os professores e a famiacutelia Talvez se deva pensar que a (natildeo) leitura eacute uma questatildeo que natildeo perpassa apenas a questatildeo pedagoacutegica pois se assim fosse a diversidade de obras que ensina a ldquoensinar a lerrdquo jaacute a teria solucionado A histoacuteria da leitura demonstra que esse assunto envolve poder poliacutetico poder econocircmico e poder social

3 Em busca de conclusotildees

Quando tratam da linguagem os Paracircmetros Curriculares Nacionais (1997) demonstram a interdisciplinaridade que a envolve lembrando que vaacuterias aacutereas do conhecimento buscam na linguagem o suporte para seus objetos de estudo De acordo com os Paracircmetros a linguagem soacute pode ser estudada em sua interaccedilatildeo social soacute existe enquanto expressatildeo comunicativa entre os sujeitos O efetivo ensino de literatura pode atender a essa expectativa A literatura eacute por natureza interdisciplinar estaacute inserida em um tempo e eacute escrita a partir de um enfoque histoacuterico social e poliacutetico A literatura tambeacutem eacute a prova de que a linguagem soacute existe enquanto interaccedilatildeo social pois eacute escrita por algueacutem que deseja ser compreendido pelo outro sem a relaccedilatildeo entre autor texto e leitor natildeo haacute literatura Mesmo compreendendo que os Paracircmetros natildeo satildeo (e natildeo pretendem ser) a soluccedilatildeo definitiva para o problema do ensino de literatura e para a crise da leitura sentimos falta de um maior destaque agrave literatura e agrave sua importacircncia para a formaccedilatildeo do sujeito social e eacutetico

Regina Zilberman e Liacutegia Cadematori Magalhatildees (1987 p 12) tambeacutem apontam contradiccedilotildees encontradas nos Paracircmetros Para as autoras por exemplo a ecircnfase dada ao ensino da liacutengua como um meio para melhorar a qualidade da produccedilatildeo linguiacutestica ldquopoderia significar uma ruptura com o ensino tradicionalrdquo mas um olhar atento de acordo com as autoras pode conduzir o ensino da liacutengua caso se prenda em demasia agrave meta de oferecer ldquoum conjunto de atividades que possibilitem ao aluno desenvolver o domiacutenio da

7 Disponiacutevel em httpwwwfndegovbrhomeindexjsparquivo=biblioteca_escolahtml Uacuteltimo acesso em marccedilo de 2017

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expressatildeo oral e escrita em situaccedilotildees de uso puacuteblico da linguagemrdquo ao antigo ensino de retoacuterica com uma concepccedilatildeo apenas pragmaacutetica e utilitaacuteria da liacutengua

Mas seria ingenuidade afirmar que alguns professores resumam a aula de Liacutengua Portuguesa ao estudo da gramaacutetica da redaccedilatildeo e de interpretaccedilatildeo de textos apenas pelo pouco comprometimento com a leitura Acreditamos que da mesma forma que a leitura estaacute presa a uma histoacuteria de censura e de equiacutevocos o ensino de literatura estaacute comprometido pela estrutura curricular dos cursos de Letras pelo natildeo comprometimento de alguns docentes dos ensinos fundamental e meacutedio com a leitura pelos salaacuterios desestimulantes dos educadores pela injusta distribuiccedilatildeo de renda praticada no Brasil dentre outros fatores

Assim o momento do estaacutegio deveria representar uma alternativa dentro do tema da formaccedilatildeo do profissional da educaccedilatildeo para se discutira responsabilidade de formar leitores Trata-se de um espaccedilo de discussatildeo de alternativas teoacuterico-metodoloacutegicas para sua praacutetica docente A democratizaccedilatildeo da leitura literaacuteria soacute seraacute representativa quando os mediadores se tornarem leitores e responsaacuteveis pelo exerciacutecio de sua praacutetica docente Acreditamos que a leitura seja um dos instrumentos mais significativos para a formaccedilatildeo do cidadatildeo Todavia a praacutetica precisa ser acompanhada a partir de um referencial teoacuterico-metodoloacutegico que permita ao estudante estabelecer relaccedilatildeo entre o texto e o leitor contemplando sua subjetividade e seu meio social Aleacutem disso como afirmam teoacutericos como Cosson (2006) Soares (2007) e Orlandi (2006) faz-se necessaacuterio oferecer ao leitor em formaccedilatildeo mecanismos para que ele consiga perceber a intertextualidade o ponto de vista do autor a origem do texto a contextualizaccedilatildeo do material impresso dentre outros elementos que permitam a transformaccedilatildeo do sujeito e em consequecircncia a ressignificaccedilatildeo do meio que o cerca

Diante do exposto trabalhar questotildees do Letramento pode contribuir para que a praacutetica dos docentes seja redimensionada para projetos que promovam efetivamente o Letramento (social escolar literaacuterio) A partir do processo de Letramento eacute possiacutevel melhorar o desempenho de nossos educandos ao mesmo tempo em que se permite aos educadores a ressignificaccedilatildeo de sua praacutetica Entretanto soacute eacute possiacutevel o trabalho pela perspectiva do letramento literaacuterio quando se desperta no docente que ainda natildeo se encontrou com o livro o desejo de principiar a praacutetica da leitura Assim fica acertada a teia que sustenta o ensino de literatura poliacuteticas puacuteblicas professor leitor leitura de texto e natildeo de fragmento diaacutelogo entre o texto escolar e as praacuteticas de leitura literaacuteria dos estudantes

Por fim cabe novamente ao professor orientador de estaacutegio (re)iniciar os contatosacordosconversas com os acadecircmicos A uniatildeo entre teoria e praacutetica deve nortear o ensino de literatura na educaccedilatildeo Qual a visatildeo que os acadecircmicos tiveram da realidade escolar Seu discurso dialogou com a teoria e a praacutetica docente O acadecircmico mostrou-se criacutetico diante de suas constataccedilotildees A anaacutelise da intervenccedilatildeo promovida durante o estaacutegio de literatura ofereceraacute as respostas a essas indagaccedilotildees que por sua vez satildeo permeadas por debates maiores o lugar do ensino da linguagem nesses niacuteveis

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escolares a noccedilatildeo de leitor leitura escrita gecircneros textuais literatura e formaccedilatildeo de professor O resultado desta reflexatildeo poderaacute culminar em docentes conscientes de seu papel na mediaccedilatildeo do texto literaacuterio

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS Faculdade de Comunicaccedilatildeo Artes e Letras Regulamento de Estaacutegio Supervisionado Dourados FACALE UFGD 2009

ZILBERMAN Regina MAGALHAtildeES Ligia Cademartori Literatura Infantil autoritarismo e emancipaccedilatildeo Satildeo Paulo Aacutetica 1987

ZILBERMAN Regina (Org) Leitura em crise na escola as alternativas do professor 9 ed Porto Alegre Mercado Aberto 1982

Recebido em 28 de marccedilo de 2017

Aceito em 29 de julho de 2017

Alexandra Santos Pinheiro

Doutora em Teoria e Histoacuteria Literaacuteria pela Universidade Estadual de Campinas (2007) e poacutes doutora pela Univerisdad de Jaeacuten (2012-2013) Eacute professora associada da UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados onde atua como professora da graduaccedilatildeo e do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Liacuteder do grupo de pesquisa Nuacutecleo de Estudos Literaacuterios e Culturais Atua na Formaccedilatildeo Continuada de Professores com ecircnfase no Letramento Literaacuterio Atualmente eacute tutora do Pet-Letras-UFGD alexandrasantospinheiroyahoocombr

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eISSN 22376844polifonia

O Estaacutegio Supervisionado em Letras no vieacutes administrativo-pedagoacutegico

The Teaching Internship Component of Portuguese Major Programs from a Managerial-Pedagogical Perspective

La pasantiacutea supervisada en Letras desde la perspectiva administrativa-pedagoacutegica

Flaacutevia Girardo Botelho Borges Universidade Federal de Mato Grosso

Resumo

A disciplina de Estaacutegio Supervisionado em Letras Liacutengua Portuguesa e Literaturaconfigura-se como uma das mais importantes na formaccedilatildeo do aluno como docente pois integra em sua realizaccedilatildeo componentes teoacutericos e praacuteticos da atuaccedilatildeo como professor em contextos reais de vivecircncia pedagoacutegica Neste sentido neste artigo analisaremos do ponto de vista administrativo-pedagoacutegico o componente curricular Estaacutegio Supervisionado no curso de Letrasda Universidade Federal de Mato Grosso fundamentando-nos teoricamente em autores da aacuterea da Educaccedilatildeo da Formaccedilatildeo e Saberes Docentes e da Linguiacutestica dentro da perspectiva dos Letramentos para apontar propostas para atenuar algumas situaccedilotildees que podem comprometer a formaccedilatildeo integral do aluno de Letras Palavras-chave Estaacutegio Supervisionado Letras Formaccedilatildeo Docente

Abstract

The discipline of Teaching Internship in Portuguese and Literature Major Programs is one of the most important in the formation of the student as a teacher because it integrates theoretical and practical components of acting as teacher in real contexts of pedagogical experience In this sense in this article we will analyze from the administrative and pedagogical point of view the curricular component Supervised Stage in the Portuguese and Literature Major Programsof the Federal University of Mato Grosso theoretically based on authors from the areas of Education Training and Teaching Knowledge and Linguistics within the perspective of Literacies so as suggest proposals to attenuate some situations that may compromise the integral formation of the studentsKeywords Teaching internship Portuguese and Literature Major Programs Teacher Training

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Resumen

La asignatura de Praacutecticas Supervisadas en Letras Lengua Portuguesa y Literatura aparece como una de las maacutes importantes en la formacioacuten del estudiante como docente ya que integra en su realizacioacuten componentes teoacutericos y praacutecticos de la actuacioacuten como profesoren contextos reales de experiencia pedagoacutegica En este sentido en este artiacuteculo se analiza desde el punto de vista administrativo y pedagoacutegico el componente curricular Praacutecticas Supervisadas enel curso de Letras de la Universidad Federal de Mato Grosso en teoriacutea basaacutendose en autores del aacuterea de Educacioacuten Formacioacuten y Saberes Docentes y de Linguumliacutestica e nel enfoque de Alfabetizacioacuten para sentildealar propuestas para aliviar algunas situaciones que pueden comprometer la formacioacuten integral de los estudiantes de LetrasPalabras clave Praacutecticas Supervisadas Letras Formacioacuten Docente

1 Introduccedilatildeo

O processo de formaccedilatildeo docente abrange desde o conhecimento dos conteuacutedos teoacutericos da profissatildeo ateacute o conhecimento do contexto escolar com a dinacircmica que envolve e caracteriza este cenaacuterio No sentido de que os contextos educacionais perpassados pela linguagem estatildeo sempre em mudanccedila adequando-se aos novos sujeitos aos saberes aos falares e aos acontecimentos quando se pensa em educaccedilatildeo escolar pensa-se em mudanccedila crise e projetos

Ao se analisar a formaccedilatildeo docente do ponto de vista da administraccedilatildeo escolar torna-se inescapaacutevel aderir ao vieacutes pedagoacutegico visto que natildeo haacute como separar o professor de seu contexto de atuaccedilatildeo e por assim dizendo de todas as imbricaccedilotildees que este contexto traz agrave tona ou deixa imersas como a quantidade de legislaccedilatildeo que permeia o trabalho docente a crise da profissionalizaccedilatildeo e o proacuteprio sistema educacional brasileiro

Colocando dessa maneira os profissionais que atuam na formaccedilatildeo docente dos cursos de licenciatura devem potencializar as atividades e situaccedilotildees que privilegiem a experiecircncia do aluno de graduaccedilatildeo com os contextos de sua profissatildeo e neste ponto destacamos o tema deste artigo o Estaacutegio Supervisionado em Letras

No momento soacutecio-histoacuterico que compartilhamos em que resoluccedilotildees do Conselho Nacional de Educaccedilatildeo estatildeo sendo aprovadas moldando e programando nossas atividades docentes em que Projetos Pedagoacutegicos de Curso doravante PPC estatildeo sendo reformulados dadas as exigecircncias das proacuteprias universidades no caso deste estudo a Resoluccedilatildeo CONSEPE 118 de 2014 que estabelece prazo para novos projetos pedagoacutegicos de curso estamos de acordo com Tardif (2014) quando este aponta que os conhecimentos profissionais devem ser modelados e voltados agrave soluccedilatildeo de situaccedilotildees problemaacuteticas concretas sendo a graduaccedilatildeo o momento em que os discentes tecircm a oportunidade de se aproximarem da aacuterea de atuaccedilatildeo pretendida e a disciplina de Estaacutegio uma das mais apropriadas para esta aproximaccedilatildeo

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2 O Estaacutegio Supervisionado como Componente Curricular

A formaccedilatildeo de professores eacute um tema amplamente pesquisado por diversas aacutereas do conhecimento dada a existecircncia de cursos de licenciatura que por lei exigem a praacutetica de estaacutegio supervisionado

De acordo com o Parecer CNECP1 nordm 28 aprovado em outubro de 2001 os cursos de licenciatura organizados em torno da formaccedilatildeo docente dedicam 400 horas de sua carga total para a disciplina de Estaacutegio ou no plural disciplinas de Estaacutegio como acontece no curso sobre o qual desenvolveremos nossos apontamentos neste artigo

O curso de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso prevecirc em seu plano pedagoacutegico quatro disciplinas que compotildeem o componente curricular Estaacutegio em Licenciatura Cada uma dessas disciplinas totaliza 100h de atividades que envolvem a parte teoacuterica e praacutetica dos saberes escolares sendo em grande parte desenvolvida nas escolas parceiras

No entanto apesar de somarem 400 horas como previsto e exigido pela legislaccedilatildeo vigente os alunos ainda apresentam ao final desse quantitativo de horas dificuldades para pensar planejar e executar uma aula Isto eacute haacute dificuldade tanto para se relacionar o conteuacutedo teoacuterico agraves praacuteticas em sala de aula quanto para conseguir lidar com os saberes escolares que vatildeo muito aleacutem da sala de aula

Algumas hipoacuteteses surgem agrave medida em que se observa o estaacutegio do ponto de vista administrativo-pedagoacutegico como adificuldade de execuccedilatildeo da disciplina conforme prevista no PPC de Letras (2009) UFMT campus Cuiabaacute em relaccedilatildeo agrave quantidade de documentos que precisam ser preenchidos a dificuldade em encontrar escolas parceiras a questatildeo do horaacuterio para execuccedilatildeo da regecircncia entre outras

Assim neste artigo refletiremos sobre as dificuldades encontradas na execuccedilatildeo das disciplinas de Estaacutegio no curso de licenciatura em Letras Portuguecircs e Literatura Eacute importante frisar que nossas ponderaccedilotildees partem do ponto de vista administrativo-pedagoacutegico e deste lugar mostraremos alguns encaminhamentos que possam amenizar as dificuldades

21 O Estaacutegio Supervisionado

O Estaacutegio Supervisionado eacute definido no PPC de Letras (2009 p 151) como um ldquocomponente curricular obrigatoacuterio do curso de Letras e se caracteriza pelo exerciacutecio preacute-profissional do aluno junto a instituiccedilotildees credenciadas da rede puacuteblica ou da rede particular de ensinordquo Eacute uma disciplina que ocorre a partir da metade do curso de Letras em duas etapas dois estaacutegios supervisionados em Liacutengua Portuguesa e dois em

1 Mesmo havendo uma CNE mais recente a respeito do Estaacutegio Supervisionado nas Licenciaturas o PPC de LetrasUFMT data de 2009 utilizando entatildeo as legislaccedilotildees da eacutepoca de sua aprovaccedilatildeo

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Literatura jaacute que a licenciatura da qual tratamos habilita os discentes para atuarem no campo educacional de liacutengua materna e literaturas portuguesa e brasileira As 100 horas correspondentes a cada estaacutegio abarcam orientaccedilatildeo estudo planejamento e atuaccedilatildeo na escola nos niacuteveis de ensino fundamental (Estaacutegios I) e meacutedio (Estaacutegios II)

Segundo o PPC haacute duas formas de se realizar o estaacutegio sendo a primeira

estaacutegio efetuado nas escolas de ensino fundamental e meacutedio do municiacutepio de Cuiabaacute ou Vaacuterzea Grande em que o aluno seraacute inserido dentro da instituiccedilatildeo educacional com vistas a um contato com a realidade escolar agrave participaccedilatildeo efetiva na vida da comunidade escolar em seus diversos aspectos quer sejam pedagoacutegicos teacutecnicos eou sociais Na segunda forma o estaacutegio curricular estaacute vinculado ao desenvolvimento de projetos para a comunidade nas diversas aacutereas que compotildeem as habilitaccedilotildees correspondentes Nestes casos o estaacutegio ocorre na proacutepria UFMT ou em local oferecido pela comunidade solicitante assumindo a forma de atividades de extensatildeo eou pesquisa (PPC 2009 p 150-1)

Como disciplina apresenta os objetivos

I Aproximar a teoria e praacutetica conformando exerciacutecio de anaacutelise aplicaccedilatildeo e criacutetica dos pressupostos teoacutericos e instrumentos metodoloacutegicos que caracterizam a formaccedilatildeo do profissional de Letras II Permitir o contato direto do estagiaacuterio com a realidade educacional brasileira sua histoacuteria suas caracteriacutesticas seus problemas e seus desafios III Confrontar o aluno com situaccedilotildees de exerciacutecio preacute-profissional que lhe permitam a exploraccedilatildeo e a experimentaccedilatildeo das estrateacutegias de transformaccedilatildeo e de melhoria de suas competecircncias e habilidades IV Provar a realizaccedilatildeo das competecircncias e habilidades exigidas na praacutetica profissional e exigiacuteveis dos professores especialmente quanto agrave regecircncia V Formar no estagiaacuterio a disposiccedilatildeo para a pesquisa bibliograacutefica e de campo como estrateacutegias pedagoacutegicas de resoluccedilatildeo de problemas VI Estimular o respeito agrave diferenccedila e o apreccedilo agrave toleracircncia e problematizar accedilotildees a partir da situaccedilatildeo concreta do estagiaacuterio em sala de aula VII Propiciar o desenvolvimento pelo aluno do conjunto de competecircncias e habilidades que venham a caracterizaacute-lo em seu papel de agente da transformaccedilatildeo social (PPC 2009 p 152)

Em termos teoacutericos o estaacutegio eacute entendido por noacutes como uma praacutetica de letramento acadecircmico-profissional Concordamos com Tardiff e Lessard (2008) quando estes apontam que o estaacutegio se constitui em diversas praacuteticas de letramento a partir de um trabalho coletivo interativo voltado para aprendizagens situadas forjado cotidianamente pela possibilidade da ressignificaccedilatildeo profissional

Os teoacutericos do letramento como Barton Hamilton e Ivanic (2000) definem-no como um conjunto de praacuteticas sociais historicamente situadas que envolvem a linguagem em diversas modalidades Os agentes de letramento neste contexto satildeo os alunos-estagiaacuterios que ao vivenciarem na escola as dinacircmicas da atividade docente experienciam as relaccedilotildees assimeacutetricas de trabalho como certos atravessamentos da coordenaccedilatildeo escolar

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sobre o planejamento pedagoacutegico do professor assim como as situaccedilotildees imprevisiacuteveis que atravessam o planejamento docente aulas encurtadas por conta de ensaios para festas falta de aacutegua ou energia eleacutetrica ou mesmo de materiais para o trabalho docente

Todos esses fatores colaboram para que as atividades de estaacutegio sejam mais significativas tanto positiva quanto negativamente que as outras atividades pedagoacutegicas do curso de graduaccedilatildeo Os docentes em formaccedilatildeo ao vivenciarem situaccedilotildees como as mencionadas anteriormente durante o estaacutegio precisam se readequar replanejar de maneira raacutepida e eficiente para conseguirem cumprir carga horaacuteria por exemplo Haacute durante esse percurso ldquonovos modelos de conhecer novos modelos de ensinar e portanto novos modelos de formaccedilatildeo de professoresrdquo (SILVA e ASSIS 2010 p 176)

A construccedilatildeo dos sentidos do que eacute se tornar professor somada agraves poliacuteticas puacuteblicas ao curriacuteculo pedagoacutegico agrave realidade escolar e agrave inexperiecircncia profissional perpassam as atividades de estaacutegio de maneira indeleacutevel A experiecircncia de planejamento de aula escolha das metodologias do vieacutes teoacuterico para apresentaccedilatildeo dos conteuacutedos textos e atividades comeccedilam a compor a identidade docente e a estas se somam a responsabilidade por estes saberes e como construiacute-los com o grupo de alunos Por este processo perpassam as poliacuteticas puacuteblicas e o curriacuteculo escolar como realidades que precisam ser incorporadas agraves praacuteticas do Estaacutegio

Outro ponto que torna o estaacutegio supervisionado um momento excepcional da construccedilatildeo docente eacute a contraposiccedilatildeo acadecircmica entre a universidade e a escola puacuteblica O cenaacuterio educacional puacuteblico ainda mostra-se preso a estruturas arcaicas e a saberes linguiacutesticos ultrapassados sem considerar a natildeo presenccedila das tecnologias na sala de aula o que dificulta algumas praacuteticas docentes pautadas nas miacutedias O aluno-estagiaacuterio tem por sua vez que elaborar sua intervenccedilatildeo considerando natildeo apenas o seu desejo de construir saberes pautados na poacutes-modernidade mas tambeacutem adequados agrave realidade e dinacircmicas escolares

O compromisso da Universidade neste quesito talvez seja um dos grandes obstaacuteculos ao sucesso do estaacutegio supervisionado na escola puacuteblica Haacute na realidade em que me espelho um generalizado desacircnimo da escola puacuteblica em receber os alunos-estagiaacuterios Isso se deve em parte agrave Universidade e natildeo aos alunos ou agrave escola Explicando melhor os alunos-estagiaacuterios vatildeo agrave escola desenvolvem seus projetos individuais utilizam o tempo e o espaccedilo da comunidade escolar poreacutem ao terminarem sua experiecircncia vatildeo embora Nada deixam agrave escola a troca natildeo eacute favoraacutevel para a escola Entendemos que os conhecimentos construiacutedos durante a regecircncia (10 a 20 horas) podem ser estaacuteveis e duradouros poreacutem ainda natildeo satildeo suficientes para configurar uma boa oportunidade para a escola puacuteblica

Talvez o fato de haver um certo descontentamento seja devido ao lugar entre dois mundos em que a disciplina de estaacutegio se encontra tanto na escola na Universidade para os alunos-estagiaacuterios e professores-orientadores Para Reichmann (2015 p 29) a disciplina acadecircmica de estaacutegio apresenta ldquouma especificidade singular pois estaacute situada no mundo da academia mas se estende e abrange o mundo do trabalho constitui um lsquoentrelugarrsquo socioprofissional em movimento lsquona fronteirarsquordquo

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O entrelugar eacute ocupado pelo aluno-estagiaacuterio que nos bancos da universidade eacute aluno na sala de aula da escola puacuteblica eacute professor e no planejamento da disciplina eacute estagiaacuterio Natildeo haacute uma uacutenica identidade para o sujeito aluno-estagiaacuterio e mais importante para a sua construccedilatildeo como docente para a identidade do professor

Compactuamos com Noacutevoa (1995 p 16) quando este afirma que ldquoa identidade natildeo eacute um dado adquirido natildeo eacute uma propriedade natildeo eacute um produto A identidade eacute um lugar de lutas e de conflitos eacute um espaccedilo de construccedilatildeo de maneiras de ser e de estar na profissatildeordquo E esse processo identitaacuterio comeccedila a se delinear durante a disciplina de estaacutegio supervisionado quando o aluno se torna por alguns momentos o professor e depois volta a ser aluno natildeo mais o mesmo mas modificado construiacutedo e desconstruiacutedo pela experiecircncia didaacutetica pelos saberes escolares pela interaccedilatildeo com e na sala de aula

3 Retrato do Estaacutegio normas prescriccedilotildees e dificuldades

Como disciplina acadecircmica o estaacutegio supervisionado apresenta um roteiro de normas resoluccedilotildees orientaccedilotildees em suma documentos oficiais que modelam a disci-plina dos quais o aluno-estagiaacuterio precisa saber conhecer estudar Esses documentos abrangem tanto a educaccedilatildeo em niacutevel nacional como a Lei 9394 de Diretrizes e Bases para a Educaccedilatildeo Nacional a Lei 11788 que trata dos estaacutegios em territoacuterio nacional a Resoluccedilatildeo CNE01 sobre as diretrizes curriculares nacionais para a formaccedilatildeo de professo-res a Resoluccedilatildeo CNE02 que trata dos cursos de licenciatura no Brasil sua duraccedilatildeo e car-ga horaacuteria os documentos nacionais como os Paracircmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Linguagens estadual como as Orientaccedilotildees Curriculares do Estado de Mato GrossoLinguagens e acadecircmico em documentos universitaacuterios como a Resoluccedilatildeo CONSEPE nordm 117 (2009) que dispotildee sobre o Regulamento Geral de Estaacutegio da Universidade Federal de Mato Grosso o Projeto Pedagoacutegico de Curso e o Regulamento do Estaacutegio Supervisionado

Em geral todos esses documentos versam sobre a necessidade de a disciplina de estaacutegio supervisionado estar articulada com o restante do curso de Letras no caso e a dimensatildeo praacutetica que transcende o estaacutegio e promove a articulaccedilatildeo das diferentes praacuteticas numa perspectiva interdisciplinar

No entanto as prescriccedilotildees incidem sobre o estaacutegio supervisionado e seus envolvidos gerando acima de tudo burocracia e trabalho administrativo Aleacutem de lidar com os docu-mentos oficiais o professor-orientador de estaacutegio e o aluno ainda precisam preencher uma seacuterie de formulaacuterios para atuar na escola receptora do processo de estaacutegio Por exemplo a composiccedilatildeo do cumprimento da carga horaacuteria de Estaacutegio Supervisionado de Ensino na ins-tituiccedilatildeo concedente deve ser feita pelo preenchimento de uma Ficha Geral de Estaacutegio com indicaccedilatildeo da data horaacuterio e tema da atividade desenvolvida sendo que estas devem estar assinadas pelo profissional responsaacutevel e ser carimbadas e assinadas pelo diretor da insti-tuiccedilatildeo concedente do estaacutegio Para a coordenaccedilatildeo de curso aleacutem de acompanhar e orien-tar a documentaccedilatildeo tambeacutem eacute exigida a produccedilatildeo de ofiacutecios para cada aluno-estagiaacuterio aleacutem dos Termos de Convecircnio ou Termos de Parceria Seguro do discente etc

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Em termos gerais o PPC de Letras apresenta a divisatildeo das tarefas das partes envolvidas no Estaacutegio como sendo

Art 09 - As atividades de Estaacutegio Supervisionado de Ensino satildeo Coordenadas pela Coordenaccedilatildeo do Curso e pelos professores-supervisores sect 1ordm Compete agrave Coordenaccedilatildeo do Curso de Letras I Indicar os professores-supervisores de Estaacutegio Supervisionado de ensino II Definir o horaacuterio e o local das sessotildees semanais de supervisatildeo sect 2ordm Compete ao Professor-supervisor de estaacutegio I Imprimir e distribuir as cartas de apresentaccedilatildeo dos estagiaacuterios II Credenciar as Instituiccedilotildees concedentes de Estaacutegio III Arquivar os documentos relativos ao Estaacutegio IV Encaminhar agrave Coordenaccedilatildeo do Curso de Letras relatoacuterio anual das atividades de estaacutegio desenvolvidas pelos alunos de Letras V Elaborar com o supervisionado o plano de trabalho seus conteuacutedos suas etapas de desenvolvimento e calendaacuterio de atividades observados os prazos designados no calendaacuterio de Estaacutegio e os horaacuterios definidos pela Coordenaccedilatildeo do Curso VI Atender os seus supervisionados nas sessotildees semanais de supervisatildeo registrando anotaccedilotildees sobre o desenvolvimento do trabalho VII Orientar e acompanhar a elaboraccedilatildeo e a execuccedilatildeo do Projeto de intervenccedilatildeo sob sua supervisatildeo VIII Orientar e acompanhar a elaboraccedilatildeo do Relatoacuterio de Estaacutegio sob sua supervisatildeo IX Auxiliar o aluno na preparaccedilatildeo da intervenccedilatildeo X Avaliar as atividades e atribuir notas aos alunos sob sua supervisatildeo (PPC 2009 p 155-56 grifo nosso)

Em termos locais as disciplinas de estaacutegio supervisionado estatildeo localizadas a partir da segunda metade do curso e suas ementas abordam a atividade de leitura na escola o trabalho com o texto ndash escolha compreensatildeo vocabulaacuterio e interpretaccedilatildeo a leitura no ensino fundamental a teoria da literatura e a leitura na escola a atividade de produccedilatildeo de texto na escola a finalidade a proposta a correccedilatildeo a atividade de anaacutelise linguiacutestica a epilinguiacutestica e a metalinguiacutestica observaccedilatildeo de aulas de leitura no ciclo fundamental as atividades docentes planejamento execuccedilatildeo e avaliaccedilatildeo preparo de plano de aula e material didaacutetico e por fim o periacuteodo de Observaccedilatildeo Regecircncia e Relatoacuterio De acordo com as poliacuteticas de estaacutegio do PPC de Letras as atividades de estaacutegio para contemplarem a ementa devem ser cumpridas a) na instituiccedilatildeo concedente de estaacutegio em atividades de observaccedilatildeo participaccedilatildeo e regecircncia b) nas sessotildees semanais de supervisatildeo c) em atividades extraclasse relacionadas agrave preparaccedilatildeo da intervenccedilatildeo e agrave anaacutelise de seus resultados d) em outras atividades relacionadas ao Estaacutegio

Esse modelo de estaacutegio segundo o qual o curso de Letras hoje estaacute estruturado reserva para o final do curso de forma concentrada a grande parte das atividades de praacutetica docente sendo que nestas o aluno-estagiaacuterio precisaraacute entrelaccedilar a teoria e a praacutetica construiacutedas durante a sua formaccedilatildeo no curso de licenciatura Este entrelaccedilamento requer do aluno-estagiaacuterio certa maturidade intelectual e profissional para entender o noacute e o desatar do noacute que se desenreda nessa relaccedilatildeo Eacute interessante apontar que o aluno sujeito deste processo encontra-se no momento em que o caraacuteter profissionalizante da docecircncia vem sendo questionado tentando-se ldquoreformular e renovar os fundamentos

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epistemoloacutegicos do ofiacutecio de professor e de educador assim como da formaccedilatildeo para o magisteacuteriordquo (TARDIFF 2014 p 250)

Neste sentido eacute importante ressaltar a relaccedilatildeo entre os saberes docentes construiacutedos nos cursos de licenciatura e a atividade praacutetica de docecircncia Tardiff (2014) questiona

que relaccedilotildees deveriam existir entre os saberes profissionais e os conhecimentos universitaacuterios e entre os professores do ensino baacutesico e os professores universitaacuterios (pesquisadores ou formadores) no que diz respeito agrave profissionalizaccedilatildeo do ensino e agrave formaccedilatildeo de professores (TARDIFF 2014 p 246)

Dos pontos de vista administrativo e pedagoacutegico o arranjo entre matriz curricular ementa e horaacuterios de disciplina pode provocar a fragmentaccedilatildeo dos saberes da disciplina de estaacutegio supervisionado da forma como estaacute atualmente colocada em Letras visto que natildeo haacute um entrelaccedilamento entre os conteuacutedos desenvolvidos nas disciplinas O foco do estaacutegio que eacute a observaccedilatildeo e praacutetica pedagoacutegica muitas vezes pode se perder dada a quantidade de documentaccedilatildeo necessaacuteria agrave sua realizaccedilatildeo e estudo Aleacutem disso natildeo haacute um rol de escolas conveniadas com a universidade para que se faccedila o contato e a proposta de estaacutegio Os professores deste componente curricular e a coordenaccedilatildeo de ensino precisam buscar as escolas oferecer a proposta e se sujeitar aos horaacuterios e condiccedilotildees ofertadas

Natildeo eacute uma negociaccedilatildeo faacutecil e suave Haacute diversos momentos de tensatildeo principalmente em relaccedilatildeo ao horaacuterio da realizaccedilatildeo do estaacutegio visto que prevemos estaacutegio supervisionado no ensino fundamental e oferecemos o curso noturno de Letras Assim atualmente natildeo haacute escolas de ensino fundamental no periacuteodo noturno restando ao aluno-estagiaacuterio realizar sua observaccedilatildeo e regecircncia no contraturno durante o qual muitas vezes este aluno exerce atividade profissional remunerada Por diversos momentos o professor-orientador do estaacutegio precisa ir a diversas escolas de ensino baacutesico em Cuiabaacute para acompanhar as duplas de estaacutegio em horaacuterios que natildeo correspondem ao horaacuterio da sua disciplina na grade curricular do curso de Letras

Observando essas dificuldades o Colegiado do Curso de Letras elaborou um documento ainda na forma de minuta com sugestotildees a respeito do Estaacutegio supervisionado Este documento aborda a questatildeo pedagoacutegica poreacutem vai aleacutem fornecendo sugestotildees que podem amenizar as dificuldades e otimizar as relaccedilotildees de tempo e carga horaacuteria

4 Alguns apontamentos para um novo percurso

Em relaccedilatildeo agraves dificuldades apontadas e vivenciadas pelo grupo de docentes e coordenaccedilatildeo de curso o Colegiado dos Cursos de Letras a partir de diversas reuniotildees desde 2014 vem elaborando uma proposta com uma seacuterie de recomendaccedilotildees para que fossem incorporadas nas reformulaccedilotildees dos PPC dos cursos envolvidos (Letras e Literatura Letras e Inglecircs Letras e Francecircs e Letras e Espanhol) sobre o Componente Curricular ldquoEstaacutegio Supervisionadordquo

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Entre essas recomendaccedilotildees parte-se do entendimento de que o componente curricular ldquoEstaacutegio Supervisionadordquo deva ser tratado como disciplina podendo ser criada subturma em caso de nuacutemero de alunos superior a 15 alunos o que possibilitaria ao professor-orientador de Estaacutegio melhores condiccedilotildees de acompanhamento de seus alunos-estagiaacuterios

Sobre a relaccedilatildeo com a escola acolhedora do Estaacutegio a proposta do Colegiado em consonacircncia com a Resoluccedilatildeo CNE nordm 02 de 01052015 eacute a de que o Estaacutegio Supervisionado seja realizado em direta colaboraccedilatildeo com as instituiccedilotildees credenciadas da Educaccedilatildeo Baacutesica e que esse compromisso seja explicitado no texto do PPC e no Regulamento de Estaacutegio Supervisionado do Curso de Letras Ainda sugere-se que os Cursos de Letras desenvolvam projetos de formaccedilatildeo continuada junto aos professores das instituiccedilotildees de educaccedilatildeo baacutesica acolhedoras como contrapartida agrave realizaccedilatildeo do Estaacutegio Supervisionado nas referidas escolas

Para atender a essa demanda e tentar minimizar uma das dificuldades sugere-se tambeacutem que seja feito um cadastramento de escolas interessadas em estabelecer parceria na realizaccedilatildeo do Estaacutegio Supervisionado dos alunos dos Cursos de Letras da UFMT e dos professores supervisores interessados em acompanhar os estagiaacuterios dos Cursos de Letras em suas escolas

Apoacutes o cadastramento das escolas os coordenadores dos Cursos de Letras e os professores responsaacuteveis pelas disciplinas de Estaacutegio Supervisionado podem convidar os Coordenadores das instituiccedilotildees cadastradas para lhes apresentar o novo PPC e explicar como o Estaacutegio Supervisionado seria desenvolvido Ainda como sugestatildeo poder-se-ia estabelecer criteacuterios para a escolha das escolas parceiras tais como localizaccedilatildeo e nuacutemero de salas de modo a permitir aos alunos maior agilidade no deslocamento e permanecircncia durante todo o estaacutegio em uma mesma instituiccedilatildeo

Em relaccedilatildeo ao aporte pedagoacutegico do estaacutegio supervisionado o Colegiado dos Cursos de Letras sugere que o PPC insira a possibilidade de desenvolvimento de projetos interdisciplinares nas praacuteticas de uma das disciplinas de Estaacutegio Supervisionado preferencialmente no uacuteltimo semestre do curso quando o aluno jaacute estiver mais familiarizado com o contexto escolar e com diferentes abordagens de ensino de liacutenguas Nesse caso faz-se necessaacuterio explicar no PCC a(s) concepccedilatildeo (otildees) de interdisciplinaridade que iraacute (atildeo) orientar os projetos

Aconselha-se ainda que a observaccedilatildeo do contexto escolar seja feita no Estaacutegio Supervisionado I em tronco comum agraves duas liacutenguas Jaacute os projetos interdisciplinares podem ser desenvolvidos nas disciplinas de Estaacutegio Supervisionado IV das duas liacutenguas de forma colaborativa com alunos da mesma escola

Em relaccedilatildeo agrave divisatildeo das horas das atividades que compotildeem as disciplinas de Estaacutegio Supervisionado o Colegiado sugeriu que as 100 horas do Estaacutegio fossem divididas em 10 horas para Observaccedilatildeo 20 horas para Planejamento 20 horas para Elaboraccedilatildeo de material didaacutetico 30 horas para Regecircncia e 20 horas para Avaliaccedilatildeo sendo essa divisatildeo baseada nas experiecircncias anteriores

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Sobre a documentaccedilatildeo em atendimento ao art 17 da Resoluccedilatildeo CONSEPE nordm 117 de 11 de agosto de 2009 o Colegiado sugere que seja inserido no PPC que os planos de estaacutegio sejam submetidos ao Colegiado dos Cursos de Letras para anaacutelise e aprovaccedilatildeo Ainda sugere-se que seja utilizada a nomenclatura ldquoprofessor-orientadorrdquo para o professor ministrante da disciplina de Estaacutegio Supervisionado e ldquoprofessor-supervisorrdquo para o professor da escola que recebe e acompanha os alunos estagiaacuterios na escola

5 Consideraccedilotildees Finais

As atividades do Estaacutegio Supervisionado satildeo fundamentais para a formaccedilatildeo docente dos licenciados em Letras No sentido de fortalecer esse componente curricular eacute necessaacuterio fortalecer a relaccedilatildeo entre a escola de educaccedilatildeo baacutesica e a universidade No entanto mais que isso eacute necessaacuterio fortalecer o professor-orientador do estaacutegio otimizando suas atribuiccedilotildees burocraacuteticas para que ele possa desenvolver com plenitude a orientaccedilatildeo pedagoacutegica aos alunos-estagiaacuterios Portanto eacute fundamental que haja uma aproximaccedilatildeo das relaccedilotildees entre professores alunos coordenaccedilatildeo de curso e oacutergatildeo colegiado para que o Estaacutegio se desenvolva de maneira integrada entre estas instacircncias

Observando o contexto de dificuldades este artigo apresentou algumas propostas que os Colegiados dos Cursos de Letras ofereceram no momento de reformulaccedilatildeo dos cursos de graduaccedilatildeo na tentativa de melhorar o andamento da disciplina de estaacutegio supervisionado para os sujeitos envolvidos dentro e fora da universidade

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Recebido em 30 de abril de 2017

Aceito em 27 de junho de 2017

Flaacutevia Girardo Botelho Borges

Eacute doutora em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Pernambuco coordenadora do PIBID Letras - Portuguecircs e professora do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Estudos da Linguagem do Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso Tem experiecircncia na aacuterea de Linguiacutestica atuando principalmente nos seguintes temas letramentos linguagem e tecnologia formaccedilatildeo de professores portuguecircs como liacutengua adicional e morfossintaxe flavia2bgmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Estaacutegio Supervisionado em Literatura um relato de experiecircncia na UTFPR ndash CuritibaSupervised Literature Teaching Practicum an experience

report from UTFPR ndash Curitiba

Praacutectica Supervisada en Literatura um relato de experiencia en la UTFPR ndash Curitiba

Mirelle Mussi Giri Universidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute

Alice Atsuko MatsudaUniversidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute

Resumo

Neste artigo relatamos a partir de um caso praacutetico o processo formativo do professor de literatura em liacutengua portuguesa no curso de Licenciatura em Letras PortuguecircsInglecircs da Universidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute (UTFPR) campus Curitiba Para tanto descrevemos a partir de documentos oficiais como se daacute a formaccedilatildeo do professor de literatura na disciplina de Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio em Liacutengua Portuguesa II apresentamos brevemente as concepccedilotildees teoacutericas baacutesicas sobre as quais essa formaccedilatildeo se constroacutei e relatamos o estaacutegio realizado por uma dupla de discentes De modo a atingir esses objetivos adotamos para a elaboraccedilatildeo deste artigo de natureza descritiva a pesquisa bibliograacutefica e documental Como resultado verificamos que a disciplina mescla questotildees conceituais e praacuteticas que privilegiam uma formaccedilatildeo criacutetico-reflexiva a partir da leitura dirigida de textos teoacutericos e documentos oficiais no que diz respeito ao ensino de literatura Observamos que o processo formativo possibilitado aos discentes preocupa-se em dar uma base de conhecimento cidadatilde e que embora essa formaccedilatildeo docente envolva contextos adversos oportuniza desenvolvimento das competecircncias e habilidades profissionais necessaacuterias ao futuro docente exercendo seu papel como educador e na formaccedilatildeo cidadatilde dos discentes colaborando na transformaccedilatildeo da sociedade para que seja justa e igualitaacuteriaPalavras-chave Formaccedilatildeo docente ensino de literatura estaacutegio supervisionado

Abstract

In this article we report based on a practical case how the pre-service Portuguese literature teacher education is developed in the undergraduate Modern Languages major of the Federal University of Technology (UTFPR) campus Curitiba In order to do so we describe based on official documents how the pre-service Portuguese literature teacher education happens in the

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course Supervised Teaching Practicum in Portuguese Language II we briefly present the basic theoretical conceptions on which this practicum is built and report the practical experience had by a pair of students To achieve these goals we did a bibliographic and documentary research to write this descriptive article As a result we observed that the course combines theoretical and practical concepts that favor a critical-reflexive education based on the reading of theoretical texts and official documents regarding Portuguese literature teaching We observed that the training process students underwent is concerned with providing citizen knowledge and that although this teacher education involves adverse contexts it allows the development of professional skills necessary for the future teacher to exercise his role as an educator for citizenzhip collaborating in the transformation of society so that it becomes fair and egalitarianKeywords Teacher education literature teaching supervised teaching practicum

Resumen

En este artiacuteculo reportamos coacutemo se desarrolla a partir de un caso praacutectico el proceso de formacioacuten del profesor de literatura en lengua portuguesa en la Licenciatura en Lengua Moderna PortugueacutesIngleacutes de la Universidad Tecnoloacutegica Federal de Paranaacute (UTFPR) campus Curitiba Para tanto describimos a partir de documentos oficiales coacutemo es la formacioacuten de un profesor de literatura en la asignatura de praacutectica supervisada en Lengua Portuguesa II presentamos brevemente los conceptos teoacutericos baacutesicos sobre los cuales esta formacioacuten se construye y reportamos la praacutectica cumplida por dos estudiantes Para lograr estos objetivos hemos adoptado para la elaboracioacuten de este artiacuteculo de naturaleza descriptiva la investigacioacuten bibliograacutefica y documental Como resultado observamos que la disciplina mezcla aspectos conceptuales y praacutecticos que privilegian una formacioacuten criacutetico-reflexiva a partir de la lectura dirigida de textos teoacutericos y documentos oficiales con respecto a la ensentildeanza de la literatura Se observa que el proceso formativo posibilitado a los discentes se preocupa en dar una base de conocimiento ciudadana y que aunque esa formacioacuten docente involucra contextos adversos oportuniza el desarrollo de las competencias y habilidades profesionales necesarias para el futuro docente ejerciendo su papel como educador y en la formacioacuten ciudadana de los discentes colaborando en la transformacioacuten de la sociedad para que sea justa e igualitariaPalabras clave La formacioacuten del profesorado ensentildeanza de la literatura praacutecticas supervisadas

1 Introduccedilatildeo

As sociedades atuais vivenciam uma aproximaccedilatildeo em niacuteveis sem precedentes em virtude de um crescente processo de diluiccedilatildeo de fronteiras conhecido por globalizaccedilatildeo As novas dinacircmicas globais dela resultantes estimulam trocas intercacircmbios e fluxos de toda sorte cujos impactos satildeo percebidos natildeo somente na economia e na poliacutetica mas tambeacutem no modo de vida e na cultura das pessoas provocando profundas mudanccedilas em todos os aspectos da vida contemporacircnea Como resultado as sociedades se tornam mais criacuteticas e exigentes diante da imensa variedade e disponibilidade de informaccedilotildees e conhecimento que circulam Isso demanda que elas se adequem a essa nova realidade de modo a assegurar sua relevacircncia e distinccedilatildeo em um ambiente cada vez mais competitivo e integrado (LIMA FILHO 2004 ARCHANJO 2015)

Similarmente os professores tambeacutem precisam se adequar especialmente diante da ampliaccedilatildeo do acesso dos sujeitos agrave informaccedilatildeo e agrave participaccedilatildeo na era do conhecimento

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globalizado Faz-se necessaacuterio portanto que o professor em formaccedilatildeo desenvolva novas competecircncias domine novos saberes revista-se de novas responsabilidades sociais e tome consciecircncia sobre o mundo em que estaacute inserido capacitando-se para trabalhar em contextos dinacircmicos e desafiadores dessa nova realidade (VOLPI 2008ARCHANJO 2015)

Considerando que a Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Brasileira (LDB) publicada sob o nordm 9394 em 20 de dezembro de 1996 estabelece que a finalidade da educaccedilatildeo baacutesica deve ser a de promover a plena formaccedilatildeo do educando para que ele possa exercer sua cidadania e progredir no trabalho e nos estudos o processo formativo do professor pautado a partir dessa premissa deve ser desenvolver de forma criacutetica e reflexiva para tornaacute-lo elemento estrateacutegico de estiacutemulo agrave formaccedilatildeo de seus alunos (BRASIL 1996 VOLPI 2008)

O objetivo eacute formar o professor para que ele consiga enfrentar os desafios das raacutepidas transformaccedilotildees sociais e do mercado de trabalho ser capaz de elaborar novas estrateacutegias buscar novos rumos para a compreensatildeo e a resoluccedilatildeo dos problemas com que porventura se depare em sua docecircncia como problemas de evasatildeo indisciplina desinteresse pelos estudos e preparar seus alunos para exercer direitos e deveres desenvolver consciecircncia criacutetica e tornaacute-los instrumento de transformaccedilatildeo social (VOLPI 2008)

Essa tarefa eacute incumbida inicialmente agraves instituiccedilotildees de ensino superior responsaacuteveis por dar ao futuro docente o aparato para que ele consiga articular os conhecimentos teoacutericos baacutesicos agraves atividades praacuteticas e pedagoacutegicas Essas instituiccedilotildees tecircm autonomia para elaborar seus proacuteprios curriacuteculos contanto que respeitem os princiacutepios fundamentos e procedimentos que orientam os processos formativos do professor no paiacutes (BRASIL 1996 BRASIL 2001)

A partir desse contexto objetivamos relatar neste artigo como se desenvolve com base em um caso praacutetico a formaccedilatildeo do professor de literatura em liacutengua portuguesa na disciplina Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio em Liacutengua Portuguesa II do curso de Licenciatura em Letras PortuguecircsInglecircs da Universidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute campus Curitiba Para tanto propomos como objetivos especiacuteficos descrever a partir de documentos oficiais como se daacute a formaccedilatildeo na disciplina Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio em Liacutengua Portuguesa II apresentar brevemente as concepccedilotildees teoacutericas baacutesicas sobre as quais essa formaccedilatildeo se constroacutei e apresentar alguns dados do estaacutegio realizado por uma dupla de discentes regularmente matriculadas na disciplina no segundo semestre de 2015

Com o intuito de atingir os objetivos aqui traccedilados adotamos para a elaboraccedilatildeo deste artigo de natureza descritiva a pesquisa bibliograacutefica e documental

2 O processo formativo do professor de literatura na UTFPR ndash Curitiba

O processo formativo do professor de literatura em liacutengua portuguesa na Licenciatura em Letras PortuguecircsInglecircs da UTFPR se pauta no disposto em seu Projeto Pedagoacutegico (2011) que revela que o uso da liacutengua portuguesa pelos estudantes brasileiros eacute fonte de grande preocupaccedilatildeo pela sua capacidade insatisfatoacuteria de ler e interpretar textos

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simples (UTFPR 2011) ldquoNo Pisa 2015 5099 dos estudantes ficaram abaixo do niacutevel 21 de proficiecircncia A meacutedia de desempenho foi de 407 pontos Eacute a segunda queda consecutiva na aacuterea de leitura desde 2009rdquo (MORENO 2016 p 1) Para reverter esse quadro os cursos de Letras em consonacircncia com a LDB devem promover uma formaccedilatildeo qualificada e comprometida com a transformaccedilatildeo da realidade e do sistema educacional do paiacutes

O Projeto Pedagoacutegico estabelece as habilidades e competecircncias baacutesicas necessaacuterias ao futuro professor as quais devem ser colocadas em praacutetica no que diz respeito ao ensino de literatura em liacutengua portuguesa na disciplina Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio em Liacutengua Portuguesa II Seu objetivo geral eacute complementar o ensino e a aprendizagem adaptando o estudante psicoloacutegica e socialmente agrave sua futura atividade profissional bem como seu treinamento para facilitar sua futura absorccedilatildeo pelo mercado de trabalho e a orientaccedilatildeo na escolha de sua especializaccedilatildeo profissional

Em consonacircncia com esse objetivo a disciplina ofertada no sexto periacuteodo da licenciatura conta com 135h de carga total de atividades praacuteticas em que o discente frequenta 64h de aulas teoacutericas 59h realiza leituras anaacutelises e discussotildees de textos basilares de fundamentaccedilatildeo teoacuterica para o ensino de literatura elabora projeto de estaacutegio quatro planos de aula e relatoacuterio de estaacutegio realiza 8h de observaccedilatildeo e ministra 4h de regecircncia desenvolvida em uma instituiccedilatildeo de ensino baacutesico no semestre Prioriza tambeacutem o estudo e a reflexatildeo sobre textos teoacutericos e documentos que regem a educaccedilatildeo em acircmbitos estadual e nacional Esse estudo cotejado com atividades praacuteticas objetiva construir o conhecimento sobre o processo de ensinoaprendizagem de forma contextualizada e reflexiva (UTFPR 2011)

Para tanto a disciplina eacute dividida em duas fases Primeiramente leitura e discussatildeo em sala de aula de textos teoacutericos ndash ldquoA literatura e a formaccedilatildeo do homemrdquo (CANDIDO 1972) ldquoO direito agrave literaturardquo (CANDIDO 1995) ldquoTeoria da esteacutetica da recepccedilatildeordquo (ZAPPONE 2005) Meacutetodo recepcional (AGUIAR BORDINI 1993) e ldquoTecendo a aula de portuguecircsrdquo (MATSUDA 2008) ndash que fundamentam posteriormente a segunda fase de aplicaccedilatildeo do conhecimento construiacutedo nas escolas formadoras (UTFPR 2011)

Quanto ao trabalho com a leitura primeiro toacutepico de discussatildeo as Diretrizes Curriculares da Educaccedilatildeo Baacutesica do Paranaacute estabelecem que ela deve ser dialoacutegica e interlocutiva ou seja o leitor deve dialogar com o texto o autor e as circunstacircncias de produccedilatildeo e trazer o contexto da leitura para a atualidade Essa dinacircmica promoveria a construccedilatildeo de um leitor participativo que infere e interveacutem tornando-se coautor e apto a ler textos mais complexos O papel do professor nesse contexto eacute o de mediador que instiga o aluno e o auxilia durante a sua interpretaccedilatildeo (PARANAacute 2008)

O segundo toacutepico trata da noccedilatildeo de literatura entendida por Antonio Candido como um direito baacutesico que natildeo deve ser negado a ningueacutem Segundo ele a literatura

1 Estudantes com baixo desempenho satildeo aqueles que natildeo alcanccedilam o niacutevel 2 considerado o miacutenimo aceitaacutevel deproficiecircncia em Leitura No niacutevel 2 pede-se ao estudante que identifique a ideia principal de um texto compreenda relaccedilotildees ou deduza significado impliacutecito em uma informaccedilatildeo natildeo expliacutecita Disponiacutevel em httpswwwoecdorgpisapisaproductspisainfocus48488426pdf

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desempenha ao menos trecircs funccedilotildees essenciais para a formaccedilatildeo humana ndash psicoloacutegica formativa e de conhecimento do mundo e do ser ndash e alega que natildeo a trabalhar em sala poderia afetar a formaccedilatildeo do leitor como cidadatildeo criacutetico (CANDIDO 1972 1995)

Sequencialmente outro toacutepico estudado eacute a teoria da esteacutetica da recepccedilatildeo Segundo Zappone (2005) o texto deixaria de ser mera construccedilatildeo linguiacutestica que transmite as ideias de seu produtor e passaria a ser uma construccedilatildeo esteacutetica com lacunas que datildeo margem para que o leitor possa refletir e atribuir-lhe sentido desempenhando um papel fundamental no processo de leitura como coautor valorizando a figura do leitor

O penuacuteltimo toacutepico estudado eacute o meacutetodo recepcional (AGUIAR BORDINI 1993) metodologia de ensino que trabalha com textos progressivamente mais complexos em etapas

bull determinaccedilatildeo do horizonte de expectativas verificaccedilatildeo do niacutevel de maturidade do aluno enquanto leitor para prever estrateacutegias de ruptura e de transformaccedilatildeo

bull atendimento do horizonte de expectativa introduccedilatildeo de textos que satisfaccedilam agraves expectativas dos alunos para que eles se sintam confortaacuteveis durante a leitura e as atividades

bull ruptura do horizonte de expectativa introduccedilatildeo de textos e atividades mais complexas de modo a abalar as certezas e os costumes dos alunos

bull questionamento do horizonte de expectativa comparaccedilatildeo dos textos trabalhados nas etapas anteriores para proporcionar aos alunos momentos de reflexatildeo descobertas e construccedilatildeo de novos sentidos

bull ampliaccedilatildeo do horizonte de expectativa introduccedilatildeo de textos de maior focirclego e ainda mais complexos para proporcionar aos alunos uma maior tomada de consciecircncia acerca de suas conquistas intelectuais recentes obtidas por meio da literatura

O resultado da aplicaccedilatildeo dessas cinco etapas eacute a formaccedilatildeo de um leitor proficiente que buscaraacute novos textos de maior focirclego condizentes agrave sua nova condiccedilatildeo de leitor e ao seu novo horizonte de expectativas (AGUIAR BORDINI 1993)

Por fim o uacuteltimo toacutepico discutido eacute a experiecircncia de leitura em uma turma de oitavo ano do ensino fundamental (atual nono ano) durante um ano letivo (MATSUDA 2008) O objetivo eacute mostrar aos discentes como aplicar os vaacuterios ciclos das etapas do meacutetodo recepcional e que o final de um ciclo de cinco etapas ldquoeacute o iniacutecio de uma nova aplicaccedilatildeo do meacutetodo que evolui em espiral sempre permitindo aos alunos uma postura mais consciente com relaccedilatildeo agrave literatura e agrave vidardquo (AGUIAR BORDINI 1993 p 91)

Finda a primeira fase daacute-se iniacutecio agrave realizaccedilatildeo do estaacutegio pelos discentes que trabalham em duplas Essa fase eacute composta pelas seguintes etapas observaccedilatildeo de no miacutenimo de 8 horasaula na escola formadora para conhecer seu puacuteblico tomar consciecircncia de suas dificuldades limitaccedilotildees e potencialidades e levantar as necessidades da turma em que as duplas realizaratildeo as regecircncias elaboraccedilatildeo e finalizaccedilatildeo juntamente com o professor formador e o professor orientador de estaacutegio do projeto de estaacutegio e de quatro planos

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de aula realizaccedilatildeo de 4 horasaula de regecircncia avaliaccedilatildeo pelo professor orientador e orientaccedilatildeo por parte do professor da disciplina para a produccedilatildeo do relatoacuterio final reportando as atividades desenvolvidas durante o estaacutegio (UTFPR 2011)

3 Relato da experiecircncia de estaacutegio

De forma a ilustrar como a segunda fase da disciplina se desenvolve na praacutetica apresentaremos a seguir alguns dados da experiecircncia de uma dupla de alunas regularmente matriculada na disciplina de Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio em Liacutengua Portuguesa II no segundo semestre de 2015 a partir do relatoacuterio da discente Mirelle Mussi Giri (2015)

As observaccedilotildees e regecircncias foram realizadas na unidade concedente de estaacutegio Coleacutegio Estadual Guaiacutera ndash Ensino Fundamental e Meacutedio cujo puacuteblico eacute composto principalmente por estudantes oriundos de famiacutelias trabalhadoras de baixa a meacutedia renda O estaacutegio foi executado junto agrave turma B do 2ordm ano do Ensino Meacutedio periacuteodo matutino durante as aulas da disciplina de Liacutengua Portuguesa aos 32 alunos regularmente matriculados cujas idades variavam entre 15 e 17 anos A carga horaacuteria de observaccedilatildeo na escola foi de 8 horasaula e ocorreu ao longo de trecircs semanas entre os meses de setembro e outubro de 2015

Durante o periacuteodo de observaccedilatildeo as estagiaacuterias foram apresentadas agrave equipe pedagoacutegica aos professores formadores e agrave turma com a qual estagiariam oportunidade em que tambeacutem conheceram as dependecircncias da escola e receberam as orientaccedilotildees gerais para a realizaccedilatildeo do estaacutegio Em seguida elas deram iniacutecio agraves observaccedilotildees em sala de aula

O material didaacutetico adotado para a disciplina era na ocasiatildeo o livro Portuguecircs ndash Linguagens de William Roberto Cereja cujas atividades foram a base principal do trabalho com os conteuacutedos linguiacutesticos e literaacuterios desenvolvidos Durante o periacuteodo de observaccedilatildeo os toacutepicos trabalhados foram pronomes demonstrativos e os movimentos literaacuterios Realismo e Naturalismo Aleacutem das atividades propostas no livro as aulas contaram ainda com atividades elaboradas pela professora revisotildees e atividades avaliativas com e sem consulta ao material

As estagiaacuterias observaram que embora a professora formadora recorresse direta e quase mecanicamente ao material didaacutetico durante a maior parte do tempo ela conseguiu demonstrar tiacutemidas tentativas de tornar suas aulas mais dinacircmicas e de se aproximar de seus alunos propondo leituras mais interativas e a organizaccedilatildeo das carteiras em ciacuterculo para quebrar a monotonia da aula A professora recomendou tambeacutem a leitura da obra Senhora de Joseacute de Alencar momento em que exaltou o prazer da leitura e a sua contribuiccedilatildeo para o desenvolvimento do aluno natildeo soacute como leitor mas tambeacutem como ser humano

Dentre as iniciativas observadas que estabeleceram mais engajamento por parte dos alunos destacou-se a exibiccedilatildeo de um viacutedeo para contextualizar o tema literaacuterio em

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estudo A iniciativa promoveu uma intensa e positiva reaccedilatildeo dos estudantes que durante toda a atividade teceram comentaacuterios riram e participaram ativamente Isso demonstrou que a atividade atendeu plenamente aos seus horizontes de expectativas e que seria uma oacutetima opccedilatildeo de atividade durante as regecircncias que seriam ministradas mais adiante

No que diz respeito agrave dinacircmica em sala as estagiaacuterias observaram que a professora formadora gastava muito tempo tentando acalmar seus alunos que eram em sua maioria agitados indisciplinados e pouco participativos agravando a tensatildeo na relaccedilatildeo professor-aluno Observaram ainda serem muito frequentes por parte da professora reclamaccedilotildees em relaccedilatildeo ao uso do celular o que diminuiacutea ainda mais o tempo de trabalho com o conteuacutedo Notaram tambeacutem que a professora frequentemente induzia seus alunos a determinadas interpretaccedilotildees sem abrir espaccedilo para que eles pudessem tecer suas proacuteprias inferecircncias

Ao longo do periacuteodo de observaccedilatildeo as estagiaacuterias se reuniram com a professora formadora a fim de discutir possiacuteveis temas que pudessem ser trabalhados durante as regecircncias Foi acordado entatildeo que elas trabalhariam com a escola literaacuteria simbolista por esse ser um tema pouco caro agrave professora e que a temaacutetica a ser trabalhada ficaria a cargo delas

Na uacuteltima observaccedilatildeo as estagiaacuterias aplicaram ao final da aula um questionaacuterio escrito aos educandos para pesquisar seus gostos de leitura O intuito foi conhecer melhor a realidade escolar em que elas estavam inseridas averiguar o niacutevel de maturidade do aluno como leitor e determinar seu horizonte de expectativas

Aleacutem de fazer um levantamento da idade meacutedia do puacuteblico alvo o questionaacuterio tambeacutem contemplou questotildees cujos objetivos eram verificar se os familiares dos alunos eram leitores assiacuteduos ou natildeo e se auxiliavam na sua formaccedilatildeo enquanto leitores Nesse quesito as estagiaacuterias constataram que a escola era a grande responsaacutevel por formaacute-los leitores Ao averiguar se houve estiacutemulo agrave leitura e consequentemente agrave formaccedilatildeo do leitor descobriram que mesmo natildeo sendo leitores assiacuteduos em sua maioria boa parte dos paisresponsaacuteveis leram para eles quando crianccedilas e procuraram incentivar o gosto pela leitura Ao verificar com que frequecircncia liam textos de seu interesse os dados revelaram uma turma dividida 381 raramente ou nunca lia por fruiccedilatildeo e 381 frequentemente lia livros de seu proacuteprio interesse Ao indagar as preferecircncias de suporte textual os dados indicaram que 428 dos alunos apreciavam ler textos online ao passo que 239 preferia livros impressos

Findo o periacuteodo de observaccedilatildeo as estagiaacuterias concluiacuteram que a turma ainda que heterogecircnea correspondia ao perfil padratildeo daquela comunidade escolar Ademais revelaram ser perceptiacutevel o desinteresse dos alunos pelas aulas de Liacutengua Portuguesa e de Literatura Observaram tambeacutem que embora parte da turma apresentasse haacutebitos de leitura mais refinados a outra ainda estava em processo de formaccedilatildeo As discentes tambeacutem perceberam que os alunos participavam mais durante as aulas cujos conteuacutedos eram os literaacuterios Concluiacuteram portanto que o ensino de literatura deveria ser articulado com o ensino de liacutengua de modo a proporcionar aulas mais prazerosas e proveitosas para os educandos

A partir do contexto escolar apresentado e considerando as reflexotildees teoacutericas construiacutedas na primeira etapa da disciplina as estagiaacuterias elaboraram o Projeto de Estaacutegio

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fundamentado no meacutetodo recepcional adotado pela disciplina a partir do proposto pelas Diretrizes Curriculares da Educaccedilatildeo Baacutesica do Paranaacute como sugestatildeo de trabalho para o ensino de literatura na Educaccedilatildeo Baacutesica De acordo com esse documento haacute estudos que indicam que se o professor aplicar sistematicamente essa metodologia formaraacute um aluno leitor muito mais criacutetico e competente (PARANAacute 2008)

O objetivo geral do Projeto intitulado A temaacutetica da morte sob a perspectiva da Escola Simbolista foi contextualizar o Simbolismo brasileiro a partir do tema da morte sendo o fio condutor do Projeto A temaacutetica foi desenvolvida a partir de textos contemporacircneos e simbolistas2 os quais embasaram os estudos comparativos e as reflexotildees desenvolvidas Os contos e poemas analisados foram ldquoVenha ver o pocircr-do-sol e outros contosrdquo (TELLES 1995) ldquoIsmaacuteliardquo ldquoHatildeo de chorar por ela os cinamomosrdquo e ldquoCantem outros a clara cor virenterdquo (GUIMARAENS 1985) ldquoVelhordquo ldquoIronia de Laacutegrimasrdquo ldquoA morterdquo e ldquoVisatildeo da morterdquo (SOUSA 1982) Os recursos utilizados para fomentar as discussotildees incluiacuteram desde reproduccedilatildeo de pinturas curta-metragem conto e poemas os quais possuiacuteam a temaacutetica estudada como denominador comum de modo a identificar suas peculiaridades esteacuteticas de forma mais assertiva

As estagiaacuterias elaboraram entatildeo sob orientaccedilatildeo do professor orientador quatro planos de aula fundamentados nas etapas do meacutetodo recepcional de modo a contemplar uma progressatildeo coerente ao longo das aulas Os planos contavam tambeacutem com os procedimentos e os recursos didaacuteticos que seriam utilizados a avaliaccedilatildeo da aprendizagem e o tempo planejado para cada uma das atividades das aulas A etapa de observaccedilatildeo das aulas do professor formador serviu para determinar os horizontes de expectativas dos alunos primeira etapa do meacutetodo recepcional e elaborar o projeto de estaacutegio e os planos de aula

As regecircncias ministradas nos dias 05 e 13 de novembro de 2015 respectivamente foram conduzidas pelas estagiaacuterias de forma intercalada em turnos dentro de uma

2 Os textos utilizados nas aulas de regecircncia como reproduccedilatildeo de pinturas curta-metragem conto e poemas foram os seguintes A Morte do Avarento Disponiacutevel em lt httpsptwikipediaorgwikiMorte_do_Avarentogt Acesso em 031115 Morte da Virgem Disponiacutevel em lthttpvirusdaartenetcaravaggio-a-morte-da-virgemgt Acesso em 031115 Morte de Lucreacutecia Disponiacutevel em httpwwwacervodigitalunespbrbitstreamunesp1797591Mestres20do20Renascimento20CCBB 20pt1 Acesso em 031115 O Uacuteltimo Tamoyo Disponiacutevel em httpsptwikipediaorgwikiRodolfo_Amoedogt Acesso em 031115 Anjo da Morte Disponiacutevel em lthttpscommonswikimediaorgwikiFileEvelyn_De_Morgan_-_Angel_of_Deathjpggt Acesso em 031115 A Morte de Marat Disponiacutevel em lthttpestoriasdahistoria12blogspotcombr201305analise-da-obra-morte-de-marat-dehtmlgt Acesso em 031115 Anjo da Morte Disponiacutevel em lt httpeducacaoglobocomliteraturaassuntomovimentos-literariosromantismo-segunda-geracaohtmlgt Acesso em 031115 A Senhora e a Morte Curta-metragem Disponiacutevel emlthttpswwwyoutubecomwatchv=5SYTkquhhwUamphd=1gt Acesso em 031115 TELLES Lygia Fagundes Venha ver o pocircr-do-sol amp outros contos 10 ed Satildeo Paulo SP Aacutetica 1995 Poemas de Cruz e Souza Disponiacutevel em lthttpwwwcasadobruxocombrpoesiaccruzhtmgt Acesso em 27112015 Poemas de Alphonsus de Guimaraens Disponiacutevel emhttpwwwavozdapoesiacombrobras_lerphpobra_id=7211amppoeta_id=328 Acesso em 27112015

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mesma aula e promoveram constantes debates orais que demandaram a participaccedilatildeo e a ativaccedilatildeo dos conhecimentos preacutevios dos alunos A participaccedilatildeo deles foi satisfatoacuteria ultrapassando as expectativas ao contraacuterio do percebido durante as observaccedilotildees

A primeira aula regida no dia 05 de novembro de 2015 correspondeu agrave etapa de atendimento do horizonte de expectativas Nessa aula cujo objetivo era discutir refletir e comparar a temaacutetica da morte sob uma perspectiva atual e geral bem como ler analisar e relacionar textos de diferentes gecircneros acerca da temaacutetica morte representativos ou natildeo da escola simbolista brasileira a estagiaacuteria pediu primeiramente que os alunos organizassem suas carteiras em semi-ciacuterculo entendida pelos aplicadores do meacutetodo e tambeacutem pela professora da disciplina de Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio de Liacutengua Portuguesa II como a disposiccedilatildeo adequada para se trabalhar em sala de aula Ela entatildeo distribuiu aos alunos folhas em branco para que escrevessem seus nomes e os deixassem agrave vista na parte frontal de suas carteiras para facilitar a comunicaccedilatildeo Em seguida a estagiaacuteria se apresentou aos alunos e explicou como o trabalho seria desenvolvido

Como intuito de atender ao horizonte de expectativas dos alunos a estagiaacuteria solicitou que eles se organizassem em trios para analisar a reproduccedilatildeo impressa de algumas pinturas Cada trio recebeu uma reproduccedilatildeo e precisou discutir os sentimentos que elas provocavam que adjetivos usariam para descrevecirc-las e quais os temas retratados Em seguida cada trio foi convidado a compartilhar suas consideraccedilotildees com o grande grupo A estagiaacuteria por sua vez informou-lhes o tiacutetulo a autoria e a data das pinturas e mediou as discussotildees

O processo de trabalho do meacutetodo recepcional de ensino de literatura ldquoapoacuteia-se no debate constante em todas as suas formas oral e escrito consigo mesmo com os colegas com o professor e com os membros da comunidaderdquo (AGUIAR BORDINI 1988 86) A postura do professor eacute ser mediador da leitura auxiliar e instigar o seu aluno a ser participativo de modo a estabelecer um diaacutelogo com o texto e coautoraacute-lo conforme sugere as Diretrizes Curriculares da Educaccedilatildeo Baacutesica do Paranaacute (PARANAacute 2008) que embasa a disciplina de Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio de Liacutengua Portuguesa II em anaacutelise A leitura precisar ser desenvolvida de forma dialoacutegica e interlocutiva

Em seguida a estagiaacuteria exibiu um curta-metragem de 2009 A Senhora e a morte de Javier Recio Garciacutea e propocircs a discussatildeo de algumas questotildees Na sequecircncia ela destacou que a morte poderia ser representada de diversas maneiras e perguntou aos alunos quais imagens seriam mais recorrentes na atualidade Por fim o toacutepico debatido em aula foi sintetizado e a estagiaacuteria conectou o tema da aula com o que seria abordado na aula seguinte

A segunda regecircncia correspondeu agrave etapa de ruptura do horizonte de expectativas e objetivou analisar e interpretar no gecircnero conto a temaacutetica da morte e seus siacutembolos mais representativos no texto No iniacutecio da aula a estagiaacuteria explicou resumidamente o tema e as atividades que seriam desenvolvidas e distribuiu coacutepias do conto ldquoVenha ver o pocircr do solrdquo de Lygia Fagundes Telles (1970)

Antes da leitura do texto a estagiaacuteria perguntou aos alunos se eles conheciam a autora e os instigou a refletir acerca do tiacutetulo do conto para traccedilar qual relaccedilatildeo poderia

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haver entre ele e a temaacutetica em estudo Convidou entatildeo os alunos aleatoriamente a participarem da atividade Nesse momento a estagiaacuteria talvez por nervosismo desatenccedilatildeo eou inexperiecircncia solicitou que cada um dos alunos lesse partes do texto em voz alta ao inveacutes de pedir que alguns voluntaacuterios fizessem a leitura dramatizada ou a proacutepria estagiaacuteria fizesse a leitura de forma dramatizada com entonaccedilatildeo e os alunos acompanhassem a leitura conforme estava previsto no plano de aula

O fato de um dos alunos quase ao final da leitura ter pedido permissatildeo para finalizaacute-la sem dar oportunidade para que os demais que ainda natildeo tivessem lido participassem indicou que os diferentes niacuteveis de proficiecircncia leitora da turma identificados pela lentidatildeo e dificuldade de alguns e oacutetima desenvoltura de outros perturbaram os leitores mais proficientes ainda que essa diferenccedila natildeo tenha afetado o objetivo da atividade No entanto demonstrou que a leitura em voz alta pelos alunos de trechos de textos muitas vezes com objetivo apenas de eles ficarem atentos mais por questatildeo de disciplina natildeo resulta na compreensatildeo e interesse ao texto que estaacute sendo lido

Em seguida a estagiaacuteria perguntou aos alunos quais foram as suas primeiras impressotildees acerca da histoacuteria dividiu-os em pequenos grupos e entregou a cada um deles sete imagens impressas obtidas de outras fontes de elementos presentes no conto que representavam a morte (chave fechadura nova portinhola enferrujada folhas secas cemiteacuterio abandonado catacumba e pocircr do sol) Explicou na sequecircncia que eles deveriam relacionaacute-las agrave temaacutetica da morte procurando perceber o que havia de estranho identificar em que momento as imagens apareceram no conto e qual sua importacircncia na histoacuteria refletindo sobre a sua influecircncia no desfecho Terminada a discussatildeo a estagiaacuteria convidou os grupos a irem agrave frente da sala para apresentar suas anaacutelises Os alunos entretanto mostraram-se resistentes agrave exposiccedilatildeo preferindo compartilhaacute-las de suas carteiras Ao fim da aula ela os orientou acerca da tarefa de casa que consistiu em trazer por escrito a anaacutelise feita em sala

A estagiaacuteria percebeu que a atividade teria sido mais produtiva se houvesse mais tempo para discussatildeo uma vez que segundo ela em uma aula de apenas 45 minutos natildeo seria possiacutevel promover uma reflexatildeo com mais profundidade

Nas regecircncias realizadas no dia 13 de novembro a classe estava mais vazia e de acordo com o relatoacuterio em anaacutelise isso influenciou na dinacircmica das atividades pois alguns dos alunos mais participativos natildeo estavam presentes Os alunos que estavam em sala por sua vez pouco se voluntariaram a participar das atividades e se mostraram menos interessados em comparaccedilatildeo agraves duas regecircncias anteriores Haacute que se considerar entretanto que essa apatia dos alunos tambeacutem pode ter sido fruto de uma dificuldade enfrentada pela estagiaacuteria em promover outras formas de estiacutemulos agrave sua participaccedilatildeo

Trata-se de uma situaccedilatildeo que eacute desafiadora natildeo soacute para professores em formaccedilatildeo mas tambeacutem para aqueles com muitos anos de experiecircncia na carreira docente a exemplo da professora formadora da turma que durante o periacuteodo de observaccedilatildeo das estagiaacuterias demonstrou ter dificuldade em lidar com os alunos e fazecirc-los participarem e se concentrarem mais

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O objetivo da terceira regecircncia que correspondeu agrave etapa de questionamento do horizonte de expectativas foi comparar os textos trabalhados nas etapas anteriores de modo a refletir sobre as simbologias e aspectos mais representativos da temaacutetica morte No iniacutecio da aula a estagiaacuteria orientou os alunos quanto agraves regras para a participaccedilatildeo oral durante as atividades Na sequecircncia retomou brevemente o conteuacutedo trabalhado na semana anterior

A estagiaacuteria entatildeo exibiu novamente o curta-metragem para que os alunos relembrassem a temaacutetica da produccedilatildeo e observassem como o tema da morte foi construiacutedo por meio de siacutembolos Em seguida entregou aos alunos um quadro comparativo e propocircs o seu preenchimento de forma conjunta

Os alunos contrapuseram o curta-metragem ao conto e observaram em que aspectos se aproximavam e se distanciavam considerando os elementos literaacuterios presentes em relaccedilatildeo agrave temaacutetica da morte (elementos simboacutelicos cores personagens ambienteespaccedilo cliacutemax suspense e linguagem) Durante a discussatildeo dos elementos simboacutelicos a estagiaacuteria pediu que cada grupo compartilhasse sua anaacutelise ndash a qual eles ficaram incumbidos de fazer em casa ndash para os demais alunos Entretanto apenas um grupo fez a liccedilatildeo Ainda que os demais tenham improvisado uma fala os alunos tiveram um bom desempenho e conseguiram fazer as inferecircncias necessaacuterias para a realizaccedilatildeo da atividade Por fim a estagiaacuteria recolheu os quadros comparativos e os entregou para a professora formadora de modo que ela pudesse a seu criteacuterio usaacute-los como forma de avaliaccedilatildeo da aprendizagem de seus alunos

A estagiaacuteria finalizou a aula reforccedilando que os siacutembolos presentes no curta-metragem e no conto que sugerem a morte e um clima de misteacuterio aparecem de forma mais preponderante na escola simbolista tema que foi desenvolvido na aula seguinte

A quarta e uacuteltima regecircncia correspondeu agrave etapa de ampliaccedilatildeo do horizonte de expectativas e objetivou apreciar textos simbolistas refletir sobre os aspectos fundamentais que os caracterizam e apurar a visatildeo criacutetica do aluno acerca da morte e do Simbolismo

Primeiramente a estagiaacuteria distribuiu aos alunos o poema ldquoIsmaacuteliardquo de Alphonsus de Guimaraens e pediu que eles acompanhassem seus versos em um viacutedeo musicalizado Ela observou contudo que os poucos alunos que estavam em sala naquele momento tiveram dificuldade para acompanhar os versos em virtude do barulho dos colegas nos corredores mesmo apoacutes ela pedir o silecircncio e a colaboraccedilatildeo de todos eles Ela tambeacutem percebeu que eles ainda estavam preocupados em terminar a atividade comparativa iniciada na aula anterior para poderem entregaacute-la para a professora formadora que a avaliaria o que tumultuou um pouco o iniacutecio da aula mesmo apoacutes ela assegurar agravequeles que natildeo conseguiram terminar que eles poderiam entregaacute-la em um momento posterior a ser combinado com a professora formadora

Em seguida foi analisado o poema em seus aspectos formais e de conteuacutedo A estagiaacuteria fez uma breve contextualizaccedilatildeo do periacuteodo literaacuterio simbolista e elencou suas principais caracteriacutesticas formais e histoacutericas Ela pediu entatildeo que os alunos abrissem seus livros didaacuteticos para a leitura de um texto e de um quadro comparativo Logo apoacutes

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distribuiu diferentes poemas para que eles em duplas analisassem-nos Os alunos puderam se embasar nas seguintes questotildees qual o tema tratado nesse poema De que maneira ele eacute abordado Quais elementos simboacutelicos presentes O que esses elementos representamO que pode ser observado quanto agrave estrutura formal do poema Quais satildeo as caracteriacutesticas simbolistas presentes

Os grupos entatildeo apresentaram oralmente suas conclusotildees momento em que a estagiaacuteria mediou e fez comentaacuterios relativos agrave discussatildeo Por fim ela recapitulou brevemente tudo que foi estudado ao longo das regecircncias e agradeceu ao grupo e agrave professora formadora pela participaccedilatildeo e compreensatildeo durante todo o processo

A partir do exposto pode-se verificar que as estagiaacuterias conseguiram finalizar o ciclo de etapas proposto na segunda fase da disciplina de realizaccedilatildeo do estaacutegio a qual se embasou na construccedilatildeo teoacuterica construiacuteda na etapa anterior Elas observaram a turma na escola formadora durante 8 horasaula e conseguiram conhecer seu puacuteblico por meio de um levantamento de suas necessidades dificuldades limitaccedilotildees e potencialidades Elaboraram entatildeo o Projeto de Estaacutegio conduziram cada uma regecircncias com duraccedilatildeo de 2 horasaula e produziram individualmente os relatoacuterios finais reportando as atividades

No que diz respeito agraves regecircncias a dupla conseguiu aplicar todas as cinco etapas do meacutetodo recepcional de forma progressiva e ter noccedilatildeo da sua aplicaccedilatildeo a partir da proposiccedilatildeo de atividades originais e dinacircmicas que aproximaram as estagiaacuterias dos alunos Conseguiu tambeacutem contextualizar o Simbolismo brasileiro a partir da temaacutetica da morte e fomentar discussotildees de modo a colaborar para a formaccedilatildeo de um alunoleitor de acordo com a premissa estabelecida pelas Diretrizes Curriculares da Educaccedilatildeo Baacutesica do Paranaacute Isso confirmou que a escolha do meacutetodo recepcional para o ensino de literatura sugerido pelo documento foi acertada

Dentre as iniciativas observadas durante a aplicaccedilatildeo do meacutetodo recepcional que foram bem-sucedidas destaca-se a determinaccedilatildeo do horizonte de expectativas cujo levantamento e anaacutelise foram adequados para compreender natildeo soacute algumas condiccedilotildees da realidade escolar e das necessidades do grupo e seu niacutevel de maturidade ao ler e interpretar os textos mas tambeacutem o tipo de atividades e recursos que poderiam envolvecirc-los e engajaacute-los mais durante as aulas

Ademais cabe sublinhar que a dupla conseguiu ainda atender o horizonte de expectativa dos alunos ao propor atividades em que eles se sentissem confortaacuteveis como a exibiccedilatildeo do curta-metragem romper com as expectativas deles ao fazecirc-los articularem novas ideias e informaccedilotildees por meio da proposiccedilatildeo da leitura da anaacutelise e da discussatildeo do conto sob a temaacutetica morte questionar suas expectativas ao propor a comparaccedilatildeo dos textos trabalhados nas etapas anteriores ampliando a capacidade de os alunos fazerem inferecircncias e ampliar seus horizontes de expectativas ao introduzir poemas para fazecirc-los dialogar com os textos simbolistas de forma dialoacutegica e interlocutiva apurar sua visatildeo criacutetica acerca da morte e da escola literaacuteria simbolista e tomar consciecircncia das novas perspectivas intelectuais construiacutedas

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Dentre os desafios observados destaca-se primeiramente a heterogeneidade da turma especialmente no que diz respeito agrave proficiecircncia leitora A praacutetica confirmou os dados levantados pelas estagiaacuterias durante a primeira etapa do meacutetodo recepcional momento em que descobriram que a maioria natildeo era leitor assiacuteduo e nem lia por fruiccedilatildeo Esse aspecto ficou perceptiacutevel durante a atividade de leitura do conto momento em que todo o grupo percebeu eou confirmou os diferentes niacuteveis existentes entre eles causando mal-estar em alguns

Outro desafio enfrentado foi uma das estagiaacuterias incorrer em um momento pontual no mesmo erro da professora formadora ao induzir os alunos a determinadas interpretaccedilotildees sem abrir espaccedilo para que eles pudessem tecer suas proacuteprias inferecircncias Acreditamos que isso ocorreu pela inexperiecircncia da estagiaacuteria na administraccedilatildeo do tempo e da turma durante a execuccedilatildeo das atividades especialmente ao se considerar que os alunos eram em sua maioria agitados e indisciplinados Outra possiacutevel razatildeo diz respeito agrave carga horaacuteria dedicada agraves regecircncias que talvez natildeo tenha sido suficiente para um desenvolvimento mais aprofundado das leituras atividades e reflexotildees propostas em cada uma das etapas do meacutetodo recepcional fazendo com que o estaacutegio tivesse sua efetividade limitada levando-nos a avaliar a necessidade de ampliar a carga horaacuteria das regecircncias nos estaacutegios

Por fim salienta-se que as estagiaacuterias conseguiram dentro das possibilidades vivenciar uma relaccedilatildeo dialeacutetica entre teoria e praacutetica profissional e as dificuldades e desafios envolvidos durante o processo de ensinoaprendizagem Conseguiram tambeacutem compreender aspectos da realidade escolar em que estavam inseridas e proporcionar aulas prazerosas aos educandos por meio de um trabalho com a literatura buscando compreender mais profundamente o modo como se daacute o processo de formaccedilatildeo sempre tendo em mente a formaccedilatildeo de um alunoleitor criacutetico e competente

4 Consideraccedilotildees finais

Neste artigo relatamos a partir de um caso praacutetico como se daacute a formaccedilatildeo do professor de literatura em liacutengua portuguesa na disciplina de Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio em Liacutengua Portuguesa II do curso de Licenciatura em Letras PortuguecircsInglecircs da UTFPR-Curitiba Para tanto descrevemos como se daacute essa formaccedilatildeo e apresentamos brevemente as concepccedilotildees teoacutericas baacutesicas sobre as quais ela se constroacutei bem como o estaacutegio realizado por uma dupla de estagiaacuterias regularmente matriculadas na disciplina no segundo semestre de 2015

Como resultado verificamos que a disciplina mescla questotildees conceituais e praacuteticas que embasam a capacitaccedilatildeo do discente para a realizaccedilatildeo dos objetivos propostos no Projeto Pedagoacutegico do curso Observamos tambeacutem que a ementa da disciplina privilegia um estudo criacutetico-reflexivo promovido a partir da leitura dirigida de textos teoacutericos e documentos oficiais que fundamentam e norteiam a praacutetica e o ensino de literatura

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Entendemos que o processo formativo priorizado no curso eacute aquele que desenvolve as competecircncias e as habilidades profissionais necessaacuterias para um mercado de trabalho voltado essencialmente para a formaccedilatildeo cidadatilde entendimento construiacutedo a partir da anaacutelise dos documentos que norteiam a formaccedilatildeo em foco Entendemos tambeacutem que se trata de uma formaccedilatildeo que oferece ao futuro professor as ferramentas necessaacuterias para que use o espaccedilo de sua aula para permitir que seu aluno da educaccedilatildeo baacutesica da rede puacuteblica progrida em seus estudos trabalho e como ser humano o que justifica a sugestatildeo pelos documentos que embasam a formaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo do meacutetodo recepcional para esse fim

Depreendemos similarmente que o processo formativo oportunizado na UTFPR-Curitiba viabiliza um contato mais proacuteximo com a realidade profissional e com a reflexatildeo envolvida no processo de ensinoaprendizagem de literatura Eacute pois o momento em que o discente comeccedila a aplicar os aspectos teoacutericos formativos em um ambiente controlado para poder refletir sobre cada passo dado e sentir-se mais seguro para a praacutetica docente fora da academia

Ademais compreendemos que as estagiaacuterias conseguiram se apropriar do conhecimento propiciado pela relaccedilatildeo dialeacutetica estabelecida entre teoria e praacutetica ao empregar o conhecimento teoacuterico construiacutedo na primeira fase da disciplina durante a etapa de realizaccedilatildeo do estaacutegio ainda que tenham enfrentado dificuldades pontuais Aplicaram pois todas as etapas do meacutetodo recepcional durante as regecircncias contextualizaram a temaacutetica literaacuteria e fomentaram discussotildees com o objetivo de contribuir para a formaccedilatildeo de um alunoleitor maduro criacutetico e competente

Entendemos tambeacutem que as estagiaacuterias vivenciaram um processo de ensinoaprendizagem uacutenico e privilegiado A dupla teve a oportunidade natildeo somente de aplicar os conhecimentos teoacutericos na praacutetica mas tambeacutem de compreender e avaliar o espaccedilo social em que o professor estaacute inserido de se apropriar de conhecimentos complementares que contribuiratildeo para o futuro exerciacutecio da sua profissatildeo e de buscar soluccedilotildees diante das situaccedilotildees desafiadoras que ocorreram dentro da sala de aula

Ponderamos entretanto que em virtude de as 4 horasaula dedicadas agraves regecircncias aparentemente natildeo terem sido suficientes para o desenvolvimento mais aprofundado das leituras atividades e reflexotildees propostas nas etapas do meacutetodo recepcional seria interessante que o curso reconsiderasse a carga horaacuteria aumentando-a de modo a proporcionar ao futuro professor um maior contato e entendimento dos contextos dinacircmicos em que iraacute atuar

Por fim entendemos que a formaccedilatildeo oportunizada pelo curso ainda que desafiada por contextos tais como aqueles observados na escola formadora onde o estaacutegio ocorreu desenvolve as competecircncias e habilidades necessaacuterias ao futuro professor para atuar em contextos dinacircmicos e colaborar para a formaccedilatildeo cidadatilde de seus alunos impactando as sociedades positivamente

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Recebido em 28 de abril de 2017

Aceito em 10 de novembro de 2017

Mirelle Mussi Giri

Licenciada em Letras PortuguecircsInglecircs pela Universidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute campus Curitiba e em Direito pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute mirellemussihotmailcom

Alice Atsuko Matsuda

Mestre em Letras ndash Literatura e Ensino ndash pela Universidade Estadual Paulista ldquoJulio de Mesquita Filhordquo Doutora em Letras ndash Estudos Literaacuterios pela Universidade Estadual de Londrina Professora Titular Adjunta IV e Docente Permanente do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos de Linguagens da Universidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute Atualmente encontra-se em Estaacutegio Poacutes-doutoral no Programa de Poacutes-doutoramento em Materialidades da Literatura pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra com auxiacutelio da Capes alicemutfpredubr

Outros lugares

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eISSN 22376844polifonia

Interdiscursividade e intertextualidade a constituiccedilatildeo dos sentidos do dizer no universo autoral

Interdiscursivity and Intertextuality The Constitution of Meanings in the Authorial Universe

Interdiscursividad e intertextualidad La constitucioacuten de los sentidos Del decir en el universo de la autoriacutea

Terezinha Maia Martincowski

Resumo

Neste estudo procuramos discutir a constituiccedilatildeo do universo autoral de jovens universitaacuterios a partir da leitura interpretativa e da formaccedilatildeo de arquivos entendendo que produzimos a partir do uso de textos e argumentos que habitam nossos arquivos A partir dessa compreensatildeo o objetivo da presente pesquisa foi o de analisar o processo de escrita com autoria A anaacutelise da produccedilatildeo foi orientada para a busca da plurivocidade a partir da interdiscursividade e da intertextualidade observando se as ideias principais de textos e de discussotildees trabalhadas em sala de aula satildeo consideradas na produccedilatildeo escrita A maioria manteve-se no tema indicando tanto apropriaccedilatildeo da tarefa como atitude interpretativa das leituras e constituiccedilatildeo dos sentidos do dizer e tambeacutem apresentou textos produzidos com autoria transformando o dizer alheio em dizer proacuteprio assumindo posicionamento axioloacutegico e responsividadePalavras-chave Constituiccedilatildeo autoral ensino superior interdiscursividadeintertextualidade

Abstract

In this study we discuss the constitution of the authorial universe of young university students by means of the interpretive reading and the formation of archives understanding that we produce through the use of texts and arguments that lie in our archives The objective of this research was to analyze the process of authorial writing The analysis of the production was aimed at the search for plurivocity interdiscursivity and intertextuality observing if the main ideas of texts and of discussions held in class are considered in the written production The great majority attained to the subject indicating appropriation of the task as an interpretative attitude towards the readings and as a constitution of meanings Most also presented texts produced with authorship transforming the saying of others into their own words assuming axiological positioning and responsivenessKeywords Authorial constitution higher education interdiscursivityintertextuality

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Resumen

En este estudio tratamos de discutir la constitucioacuten del universo autoral de joacutevenes universitarios a partir de la lectura interpretativa y de la formacioacuten de archivos entendiendo que producimos a partir del uso de textos y argumentos que habitan nuestros archivos A partir de esa comprensioacuten el objetivo de la presente investigacioacuten fue el de analizar el proceso de escritura con autoriacutea El anaacutelisis de la produccioacuten se orientoacute hacia la buacutesqueda de la plurivocidad a partir de la interdiscursividad y de la intertextualidad observando si las ideas principales de textos y de discusiones trabajadas en el aula se consideran en la produccioacuten escrita La gran mayoriacutea se mantuvo en el tema indicando tanto apropiacioacuten de la tarea como actitud interpretativa de las lecturas y constitucioacuten de los sentidos del decir y tambieacuten presentoacute textos producidos con autoriacutea transformando el decir ajeno en decir propio asumiendo posicionamiento axioloacutegico y responsividadPalabras clave Constitucioacuten autoral ensentildeanza superior interdiscursividadintertextualidad

1 Introduccedilatildeo

O grau universitaacuterio eacute um passo de muita importacircncia na vida dos jovens Entretanto de maneira geral os universitaacuterios tecircm enfrentado dificuldades em sua formaccedilatildeo acadecircmica Uma das questotildees que gera dificuldades entre os alunos iniciantes eacute que nem sempre o ensino superior tem condiccedilotildees de acolher os anseios desses jovens no sentido de aproximaccedilatildeo entre os conteuacutedos veiculados nos bancos escolares e a visatildeo da accedilatildeo profissional utilitarista e pragmaacutetica que eles tecircm Tal fato acaba resultando na desidealizaccedilatildeo ou na ruptura de um ideal como considera Millan et al (1991)

Aleacutem do fato de o conteuacutedo geralmente natildeo atender agraves expectativas do aluno iniciante muitos satildeo os que encontram dificuldades na internalizaccedilatildeo desses conhecimentos Isso ocorre natildeo apenas em decorrecircncia de a formaccedilatildeo anterior trazer lacunas mas tambeacutem devido ao fato de os conteuacutedos serem totalmente novos e principalmente pela necessidade de adaptaccedilatildeo a uma nova metodologia de aprendizagem e pela solicitaccedilatildeo de atividades curriculares que caminham na direccedilatildeo de uma formaccedilatildeo de sujeito autocircnomo

Essas dificuldades satildeo perfeitamente visualizadas pelo corpo de docentes universitaacuterios quando percebem a luta que seus alunos enfrentam com textos acadecircmicos quanto agrave compreensatildeo interpretaccedilatildeo expressatildeo oral produccedilatildeo escrita entre outros aspectos Nesse cenaacuterio os professores discutem como dar conta dessas dificuldades juntamente com todo o conteuacutedo programaacutetico e demais compromissos de formaccedilatildeo E os alunos reclamam que os textos acadecircmicos satildeo muito difiacuteceis e que a linguagem dos professores eacute complicada

Na base desse conflito encontram-se textos dos alunos que apresentam falta de coesatildeo de coerecircncia de sentido de clareza de encadeamento de adequabilidade a uma linguagem escrita e para o outro ideias truncadas lacunas quebras de estrutura falta de linearidade no discurso etc Uma produccedilatildeo escrita de forma tatildeo confusa pode evidenciar tambeacutem entre outros aspectos a falta de compreensatildeo das leituras feitas

Sampaio (2009) analisa a questatildeo da produccedilatildeo escrita de nossos alunos ao discutir a atuaccedilatildeo linguiacutestica de estagiaacuterios do curso de Letras de uma Universidade Federal Para a autora os alunos apresentam dificuldades no ensino da liacutengua escrita natildeo por questotildees

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didaacuteticas mas porque eles proacuteprios natildeo sabem escrever A partir de um referencial bourdieusiano essa falta de domiacutenio da liacutengua eacute considerada pela autora como resultado da hysteresis (NOGUEIRA NOGUEIRA 2004 p 55 apud SAMPAIO 2009 p39) ou seja ao longo de nossas relaccedilotildees vamos adquirindo viacutecios e haacutebitos arraigados que natildeo se alteram mesmo que as condiccedilotildees de uso sejam outras Eacute importante destacar que essas dificuldades satildeo encontradas mesmo em cursos de grande distinccedilatildeo no meio educacional como o de Letras e em universidades puacuteblicas como no caso citado acima

A partir de nosso interesse em analisar o desempenho de alunos iniciantes de gradu-accedilatildeo quanto agrave sua produccedilatildeo escrita em situaccedilotildees especiacuteficas faz-se mister discutirmos questotildees relativas agrave leitura agrave interpretaccedilatildeo e agrave produccedilatildeo de textos com o intuito de pro-blematizar e abrir espaccedilo para reflexatildeo sobre essas dificuldades que parecem ser uma tocircni-ca dos anos iniciais da graduaccedilatildeo senatildeo de todo o percurso acadecircmico de muitos alunos

2 Universo autoral

As discussotildees feitas por Paciacutefico (2002) mostram uma estreita relaccedilatildeo entre leitura interpretaccedilatildeo e produccedilatildeo de textos O entrelaccedilamento desses trecircs fatores eacute o que permite segundo Bakhtin (19921988a 1988b) a constituiccedilatildeo do autor ou da autoria que envolve uma posiccedilatildeo axioloacutegica e que engendra uma relaccedilatildeo de valor materializada no texto pelos objetos discursivos O autor a partir do interdiscurso e do intertexto deve apresentar uma postura que reflete e refrata esses valores

O estreitamento entre os aspectos de leitura interpretaccedilatildeo e produccedilatildeo eacute considerado por Paciacutefico (2002) a partir da relaccedilatildeo existente entre o texto argumentativo e a autoria As caracteriacutesticas desse tipo de texto solicitam que o produtor do texto sustente um ponto de vista a respeito do objeto de discurso Assim o sujeito deve assumir a responsabilidade pelo seu dizer de forma a apresentar argumentos persuasivos com intuito de defender seu ponto de vista

Eacute esse movimento que vai permitir segundo a autora que o produtor aleacutem de assumir a responsabilidade pelo dizer tambeacutem faccedila isso a partir de uma perspectiva histoacuterica dos sentidos controlando os pontos de fuga ou seja mantendo-se fiel agrave discussatildeo Contudo esse niacutevel de argumentaccedilatildeo tambeacutem depende de uma accedilatildeo interpretativa

Para a produccedilatildeo de um texto argumentativo devemos considerar a constituiccedilatildeo da autoria a partir da assunccedilatildeo da responsabilidade pelo dizer o que depende por sua vez de uma accedilatildeo de interpretaccedilatildeo pois o domiacutenio da argumentaccedilatildeo envolve a construccedilatildeo dos sentidos que vatildeo surgindo a partir da interpretaccedilatildeo do autor

Entretanto Paciacutefico (2002) destaca que na accedilatildeo da leitura a grande maioria dos leitores soacute atinge o niacutevel do inteligiacutevel sem uma accedilatildeo interpretativa de fato A etapa final que vem a ser a interpretaccedilatildeo depende de um movimento soacutecio-histoacuterico de construccedilatildeo de sentidos que segundo a Anaacutelise do Discurso estaacute ligada ao sujeito agrave histoacuteria e agrave ideologia Esse movimento eacute necessaacuterio uma vez que o sentido nunca estaacute pronto e eacute dependente da interpretaccedilatildeo do sujeito

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Nesse processo Paciacutefico (2002) destaca outra noccedilatildeo importante que eacute a de movimento do sujeito No niacutevel inteligiacutevel observamos a falta de movimento do sujeito-leitor por conta de uma atitude de leitura parafraacutestica que apenas reproduz transformando o sujeito em uma focircrma-leitor Quanto agrave leitura interpretativa percebemos o movimento de busca e construccedilatildeo de sentidos Tal atitude permite o controle da dispersatildeo e a superaccedilatildeo de equiacutevocos

Essa separaccedilatildeo entre a leitura parafraacutestica e a leitura interpretativa eacute constatada desde a Idade Meacutedia quando a necessidade da eacutepoca de geraccedilatildeo de memoacuteria obrigava muitos a gestos incansavelmente repetitivos de reproduccedilatildeo Assim aqueles que tinham a obrigaccedilatildeo da praacutetica de leitura e coacutepia a serviccedilo de interesses de terceiros acabavam se submetendo a gestos de silenciamento e renuacutencia de autoria e originalidade Pecircucheux (1997) entrelaccedila essa discussatildeo com a perspectiva de divisatildeo social do trabalho de leitura em uma relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo poliacutetica

Para a constituiccedilatildeo do universo autoral aleacutem da interpretaccedilatildeo torna-se necessaacuterio discutirmos tambeacutem a questatildeo de arquivo que segundo Pecircucheux (1997) eacute o campo de documentos pertinentes e disponiacuteveis sobre uma questatildeo e que se constitui em fonte de consulta para vaacuterias accedilotildees Quando nos comunicamos utilizamos informaccedilotildees que estatildeo registradas nesses arquivos Contudo a formaccedilatildeo desses arquivos eacute feita a partir de um espaccedilo de acolhimento das vaacuterias vozes que permeiam nosso meio tornando-as nossas vozes Esse eacute o espaccedilo da interdiscursividade e da intertextualidade

Nessa linha pretendemos neste estudo entender o processo da interdiscursividade a partir de Bakhtin (1988a) para quem tudo o que eacute dito e expresso natildeo pertence somente ao falante narrador autor ou sujeito discursivo Desde que nascemos aprendemos sobre o mundo a partir das relaccedilotildees das ideias e da fala dos outros que atribuem significado aos fatos fenocircmenos relaccedilotildees e objetos do mundo

Outra caracteriacutestica que tambeacutem compotildee as produccedilotildees eacute o diaacutelogo entre os muitos textos ou a intertextualidade Segundo Koch e Travaglia (1991) as relaccedilotildees estabelecidas no interior de um texto remetem a outros textos pois os textos de um mesmo campo de conhecimento ou mesmo de outras aacutereas eacutepocas ou culturas dialogam uns com os outros Quanto a esse aspecto Blikstein (1994 p 45) destaca que [hellip] ldquoo discurso seja qual for nunca eacute totalmente autocircnomo [hellip] o discurso natildeo eacute falado por uma uacutenica voz mas por muitas vozes geradoras de textos que se entrecruzam no tempo e no espaccedilordquo [hellip]

Entretanto deve-se considerar que o texto embora constituiacutedo a partir da interdiscursividade e da intertextualidade portanto sendo dialoacutegico pode deixar entrever as muitas vozes que o compotildeem (polifonia) ou apagaacute-las silenciaacute-las em um texto monofocircnico (BARROS 1994) A partir do movimento ou natildeo das vaacuterias vozes o proacuteprio texto passa a ser entendido como algo aleacutem de um objeto de comunicaccedilatildeo para conforme Barros (1994) transformar-se em objeto de significaccedilatildeo pois se constitui a partir dos sentidos que se cruzam transitam e se enredam Texto eacute um processo de construccedilatildeo reproduccedilatildeo e transformaccedilatildeo desses sentidos

Quando produzimos algo fazemos uso de autores argumentos ideias ou nos valemos de teorias teses pesquisas que habitam nossos arquivos e que se tornam fonte de ajuda

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nesse caminho Fiorin (1994) considera que texto eacute a unidade da manifestaccedilatildeo ou o lugar desse interdiscurso

Essa relaccedilatildeo de acolhimento das vaacuterias vozes tambeacutem ocorre com grande intensidade no meio escolar O conhecimento apropriado pelos alunos acontece a partir da relaccedilatildeo estabelecida com a fala dos professores e os dizeres dos livros O mundo se expressa pelas vaacuterias vozes que nesse espaccedilo circulam e se aprende por meio da interdiscursividade incorporando internalizando inclusive pelas vozes que tambeacutem decidimos silenciar (LEMOS 1994 BRAIT 1994)

O que destacamos aqui eacute o espaccedilo de dialogia que existe em uma accedilatildeo de constituiccedilatildeo de um universo autoral Primeiramente a interpretaccedilatildeo vai depender do conhecimento que temos sobre a questatildeo Conforme expotildee Paciacutefico (2002) a interpretaccedilatildeo tambeacutem depende de um aparato teoacuterico que por sua vez depende do interdiscurso e do acesso a arquivos e da proacutepria interaccedilatildeo verbal com os arquivos que possuiacutemos ou seja com o outro enquanto fonte de nossos dados

A preocupaccedilatildeo com o processo de escrita de nossos alunos universitaacuterios tambeacutem deve caminhar nessa direccedilatildeo ou seja da constituiccedilatildeo de autor de seus textos Os textos acadecircmicos devem ser entendidos como dialoacutegicos pois satildeo o resultado da composiccedilatildeo do confronto e das trocas ocorridas entre muitas vozes acadecircmicas contemporacircneas ou natildeo

Essas constataccedilotildees nos levam a sempre acompanhar nossos alunos nessa constituiccedilatildeo de um universo autoral a partir da formaccedilatildeo de arquivo de um trabalho interpretativo e da consideraccedilatildeo da interdiscursividade e da intertextualidade Natildeo se trata apenas de compreender e apreender conteuacutedos e conceitos especiacuteficos uma vez que mesmo estes requerem que o aluno se aproprie deles tornando-os proacuteprios

A partir dessas preocupaccedilotildees inserem-se os objetivos deste estudo quais sejam de desenvolver atividades com textos que permitam a formaccedilatildeo de arquivos de forma a constituir o sujeito-inteacuterprete sujeito-produtor e sujeito-autor assim como utilizar a pesquisa-accedilatildeo como forma de analisar expor interpretar e interromper ou transpor limites sociais

De forma geral espera-se contribuir para o desenvolvimento do conhecimento sobre a integraccedilatildeo dos alunos iniciantes ao conhecimento veiculado no universo acadecircmico assim como para as praacuteticas educativas inserindo o aluno em um processo dinacircmico de aprendizagem

3 Metodologia

Quanto aos procedimentos escolhidos para a investigaccedilatildeo o presente estudo orientou-se especificamente pela pesquisa-accedilatildeo que segundo Andreacute (2001) eacute uma teacutecnica que envolve uma proposta praacutetica de implementaccedilatildeo ou redimensionamento de algo No caso do presente estudo os resultados apoiaram implementaccedilatildeo de atividades no segundo periacuteodo letivo do mesmo ano

O maior envolvimento com esse eixo metodoloacutegico daacute-se pelo interesse investigativo da pesquisa estar voltado para a proacutepria experiecircncia vivida pelo professor envolvendo

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reflexatildeo e transformaccedilatildeo dentro de um processo sistematizado Segundo Pereira (2002) e Zeichner (2002) Kurt Lewin um dos fundadores da pesquisa-accedilatildeo defendia que o conhecimento deveria ser criado a partir da soluccedilatildeo de problemas em situaccedilotildees concretas de vida

Nessa mesma direccedilatildeo Thiollent (2002) destaca que o principal objetivo da pesquisa-accedilatildeo eacute proporcionar aos pesquisadores e grupos participantes caminhos que permitam respostas mais eficazes aos problemas coletivos e situaccedilotildees vividas Jaacute Kemmis e Wilkinson (2002) consideram a importacircncia da pesquisa-accedilatildeo por conta de sua proposta de ajuda agraves pessoas a investigarem e a mudarem suas realidades sociais e educacionais por meio de mudanccedilas de algumas das praacuteticas que constituem suas realidades vividas

31 Sobre os sujeitos da pesquisa

Os participantes deste estudo satildeo estudantes do 1ordm ano de graduaccedilatildeo de um Centro Universitaacuterio (Fundaccedilatildeo regional) de uma cidade do interior do estado de Satildeo Paulo dos cursos de licenciatura em Fiacutesica Quiacutemica Matemaacutetica Biologia Pedagogia e Educaccedilatildeo Fiacutesica O trabalho1foi desenvolvido em uma disciplina que trata da introduccedilatildeo ao conhecimento do campo da pesquisa em educaccedilatildeo no primeiro semestre do primeiro ano Os dados foram colhidos ao final do primeiro semestre

Eacute importante tambeacutem destacar que costumeiramente ao final do periacuteodo os alunos jaacute concluiacuteram seus trabalhos e provas o que imprime um clima de recesso nas atividades principalmente porque muitos deles satildeo de cidades vizinhas e retornam a elas Isso acabou interferindo na quantidade de alunos envolvidos O nuacutemero de alunos interessados em participar da pesquisa no momento do convite e da veiculaccedilatildeo das informaccedilotildees dos trabalhos foi superior a vinte sendo que destes compareceram nove alunos no momento da coleta de dados

32 Procedimentos metodoloacutegicos

Logo no iniacutecio do semestre foram solicitados aos alunos trabalhos constantes do programa da disciplina jaacute com o objetivo tambeacutem de preparativo para a coleta de dados Trecircs textos em especiacutefico de Alves (1996) Cortella (1998) e Gleiser (2010) foram preparados e trabalhados em sala de aula com a intenccedilatildeo de formaccedilatildeo de arquivo no sentido do conceito de Pecircuchex (1997) permitindo a formaccedilatildeo de conhecimento do assunto e tornando o tema familiar

No final do semestre no momento da coleta de dados foi solicitada uma produccedilatildeo escrita que pudesse ser discutida a partir das informaccedilotildees e conteuacutedos veiculados nos textos

1 O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitecirc de Eacutetica e Pesquisa da Instituiccedilatildeo tendo sido inscrito no CONEP sob o nuacutemero FR 332139

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supracitados Como tema desencadeador que permitisse a interlocuccedilatildeo dessas trecircs leituras foi proposta a seguinte pergunta ldquoComo a ciecircncia pode caminhar para aleacutem dos mitosrdquo

33 Criteacuterios de anaacutelise

As anaacutelises quanto ao Universo Autoral estatildeo inseridas na dimensatildeo da busca da plurivocidade a partir da interdiscursividade e da intertextualidade compreendendo-se esses processos a partir da formaccedilatildeo de arquivo e da compreensatildeo (interpretaccedilatildeo) dos textos lidos e das discussotildees de sala de aula O que orientou esse foco de anaacutelise foi a intenccedilatildeo investigativa de observar se as ideias principais dos textos de apoio e das discussotildees de sala de aula satildeo consideradas na produccedilatildeo escrita dos alunos

Natildeo se teve o propoacutesito de discutir neste estudo estilos de linguagem ou adequaccedilatildeo linguiacutestica Entendemos que os alunos estavam iniciando um curso em que as exigecircncias concernentes agrave linguagem acadecircmica ainda natildeo haviam sido consideradas e aleacutem disso havia o propoacutesito de permitir que o aluno produzisse um texto mais independente de regras riacutegidas como incentivo ao universo autoral

Ao serem analisados os dados os criteacuterios de plurivocidade (intertextualidade e interdiscursividade) foram tabulados da seguinte forma

I ndash Citaccedilatildeo das fontesIIndash Composiccedilatildeo autoral dos textosIII ndash Manutenccedilatildeo do tema propostoPara que a questatildeo da interpretaccedilatildeo pudesse ser observada foi tomado o cuidado

de apresentar a questatildeo desencadeadora e alertar para o uso de fontes de apoio sem explicaccedilotildees conceituais

4 Resultados e discussatildeo dos dados

As anaacutelises que se inserem no bojo desta pesquisa procuram um ponto de equiliacutebrio que como destaca Freitas (1994) natildeo reduza seus dados agraves consideraccedilotildees de um objetivismo abstrato com consideraccedilotildees cientiacuteficas ou generalizaccedilotildees que procuram certezas cristalizadas Tampouco se persegue um subjetivismo ao desencarnar individualismos que perdem seu sentido na relaccedilatildeo com o outro

Haacute que se levar em conta que a linguagem eacute fruto de um contexto e as ideias nela contidas satildeo social e culturalmente marcadas Conforme a mesma autora essas duas perspectivas o subjetivismo e o objetivismo quando tratadas individualmente acabam fragmentando a linguagem por natildeo considerar que ela se origina e se concretiza somente no contexto real de sua enunciaccedilatildeo Todo enunciado eacute organizado e adquire sentido a partir do meio social e das condiccedilotildees postas para sua enunciaccedilatildeo

Assim a preocupaccedilatildeo principal eacute levar em conta o dinamismo e o movimento que envolve uma produccedilatildeo qual seja o contexto o sujeito a histoacuteria e a motivaccedilatildeo A partir dessas consideraccedilotildees os dados apontam a seguinte configuraccedilatildeo

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Quadro 01 ndash Dados gerais dos textos

TEXTOS CITACcedilAtildeO DA FONTE

COMPOSICcedilAtildeO AUTORAL DOS TEXTOSMANUTENCcedilAtildeO DO TEMA PROPOSTOTEXTOS DE

APOIOSALAAULA

ELABORACcedilOtildeES PROacutePRIAS

03 X x X x

04 X x X x

19 X

20 X x X x

22 X x

23 x X x

33 X X x

35

37 x X x

Fonte Elaboraccedilatildeo proacutepria

Inicialmente eacute importante considerar que o texto 19 faz uso exclusivo de coacutepia de trechos de um dos textos de apoio com muito poucas adaptaccedilotildees para o contexto desta anaacutelise O texto sequer apresenta uma linha de argumentaccedilatildeo que possa permitir um encadeamento entre os trechos copiados Trata-se apenas de uma colcha de retalhos cujos mosaicos natildeo se encaixam A questatildeo desencadeadora da atividade ldquocomo a ciecircncia pode caminhar para aleacutem dos mitosrdquo eacute substituiacuteda por outra indagaccedilatildeo ldquose a ciecircncia pode explicar o propoacutesito das coisasrdquo pergunta essa adaptada e constante do proacuteprio texto copiado de Gleiser (2010)

Assim o propoacutesito da atividade natildeo foi considerado e o uacutenico criteacuterio atendido foi o uso de texto de apoio O que se revela nessas condiccedilotildees eacute mais do que a natildeo inserccedilatildeo do autor na atividade mas principalmente o abrir matildeo de ser autor

Para Bakhtin (1992) haacute uma distinccedilatildeo entre autor-pessoa e autor-criador sendo que no primeiro caso se trata do escritor eno segundo da funccedilatildeo esteacutetica que materializa as relaccedilotildees de valor entre a obra e o autor Eacute importante abrir uma ressalva no sentido de se observar que as anaacutelises de Bakthin sempre se referiram ao estudo do texto literaacuterio Contudo em ldquoPara uma filosofia do atordquo (sd) Bakhtin considera que

O momento que o pensamento teoacuterico discursivo (nas ciecircncias naturais e na filosofia) a descriccedilatildeo-exposiccedilatildeo histoacuterica e a intuiccedilatildeo esteacutetica tecircm em comum [hellip] eacute este todas as atividades estabelecem uma cisatildeo entre o conteuacutedo ou sentido de um dado ato-atividade e a realidade histoacuterica do seu serhellip (p 19)

Tal anaacutelise mostra que existem aspectos que permitem aproximaccedilatildeo entre as escritas mesmo que de estilos diferentes As anaacutelises deste trabalho consideram que mesmo nos estu-dos cientiacuteficos e nos trabalhos acadecircmicos pode-se discutir o autor-pessoa e o autor-criador

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A partir dessa compreensatildeo entendemos que eacute possiacutevel encontrar trabalhos que satildeo coacutepias ou paraacutefrases no sentido de agregarem muito pouco como trabalhos em que se evidencia todo um processo de construccedilatildeo criaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo de um dizer e um saber de forma dialoacutegica interdiscursiva e criativa Nesse caso entatildeo a funccedilatildeo esteacutetica discutida pelo autor seraacute interpretada aqui como a singularidade que eacute imanente e que constitui o texto acadecircmico

Quanto ao texto 19 podemos afirmar sim que existiu uma produccedilatildeo que foi feita uma escolha de tema que foi escolhido um texto de apoio que foram escolhidos trechos a serem copiados Contudo natildeo existiu autoria no sentido do estabelecimento da singularidade da obra da mesma forma que o texto natildeo refratou valores que partem de uma posiccedilatildeo axioloacutegica (BAKHTIN 1992)

Para Faraco (2010) a funccedilatildeo esteacutetica ou a singularidade nos textos acadecircmicos sustenta e daacute corpo agrave obra e permite refratar o universo social escolhido Nessa situaccedilatildeo o autor-criador torna-se veiacuteculo das vozes escolhidas recortando e refratando falas alheias e reordenando-as em um ato de apropriaccedilatildeo no qual a mesma realidade torna-se refratante

Eacute certo que o autor-pessoa ao fazer escolhas evidencia uma posiccedilatildeo axioloacutegica Contudo ao natildeo se apropriar dela essa posiccedilatildeo axioloacutegica natildeo se concretiza frente a essas escolhas natildeo permitido transpor valores de uma esfera social para uma esfera pessoal e responsiva

O ato de escrever ou tornar-se autor-criador de um texto deve voltar-se como argumenta Sobral (2010) para a compreensatildeo do ato ser concreto ativo durativo intencional envolvendo o aspecto responsivo de sua accedilatildeo A responsividade para esse autor envolve um compromisso eacutetico do agente

Pode-se dizer entatildeo que o texto 19 natildeo envolveu criaccedilatildeo posiccedilatildeo axioloacutegica responsividade e que as vozes escolhidas natildeo se tornaram refratantes saindo do espaccedilo do universo autoral Assim a anaacutelise desse texto seraacute considerada dessa forma global natildeo havendo sentido o detalhamento de cada um dos aspectos analisados para os outros textos

41 Citaccedilatildeo das fontes

Quanto agrave citaccedilatildeo das fontes de apoio nenhum dos nove textos produzidos indicou as fontes dos textos utilizados Eacute importante abrir um espaccedilo para essa discussatildeo pois a disciplina em questatildeo trata do conhecimento cientiacutefico e da importacircncia de serem citadas fontes consultadas Os alunos satildeo orientados para entender que mesmo utilizando informaccedilotildees ideias e concepccedilotildees de outros autores com palavras proacuteprias ainda assim a autoria das informaccedilotildees ideias e concepccedilotildees satildeo do autor lido e as fontes consultadas devem ser mencionadas O que se percebe eacute que no momento da produccedilatildeo velhos haacutebitos solidificados resistem cruelmente agraves novas orientaccedilotildees Eacute preciso muito mais do que apenas orientaccedilotildees e informaccedilotildees

Tal fato chama algumas consideraccedilotildees Primeiramente a partir da experiecircncia da pesquisadora eacute constatado que eacute proacuteprio de alguns jovens escritores fazerem coacutepia literal das fontes consultadas sem explicitar sua origem em um ato apropriativo totalmente

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irresponsivo como jaacute analisado na seccedilatildeo anterior Contudo todos os outros textos envolvem um ato de criaccedilatildeo em que as vozes alheias se transformam em vozes proacuteprias refratando uma realidade social de forma responsiva

O que se observa nessa situaccedilatildeo eacute outro fenocircmeno tambeacutem comum Entre os escritores iniciantes e natildeo acadecircmicos existe a compreensatildeo de que eu digo as palavras do outro com minhas palavras e elas se tornam minhas Se por um lado existe um equiacutevoco entre o uso da palavra e ser o autor ou responsaacutevel pela informaccedilatildeo tambeacutem se vecirc por outro lado a assunccedilatildeo ao ato criador

No primeiro caso trata-se de uma regra acadecircmica que envolve o respeito e a consideraccedilatildeo (por meio da citaccedilatildeo de autoria) aos resultados alcanccedilados por meio de trabalho loacutegico ou empiacuterico Assim natildeo se trata de a palavra veiculada ser deste ou daquele autor mas de a informaccedilatildeo ser fruto do trabalho autoral Mas eacute importante tambeacutem considerar a segunda situaccedilatildeo quando a natildeo citaccedilatildeo das fontes utilizadas reflete uma apropriaccedilatildeo dos textos e a transformaccedilatildeo deste em discurso proacuteprio Neste caso percebe-se uma reivindicaccedilatildeo do ato de autoria e uma accedilatildeo criativa

Haacute um uacuteltimo aspecto a ser analisado nessa questatildeo que eacute o fato de os alunos terem sido orientados quanto agrave escrita acadecircmica e saberem das regras da citaccedilatildeo O natildeo uso desse expediente pode ser indicativo de ldquovelhos haacutebitosrdquo

Na concepccedilatildeo de Bourdieu (2008 p 21-22) habitus (disposiccedilotildees) eacute um ldquo[hellip] princiacutepio gerador e unificador que reproduz as caracteriacutesticas intriacutensecas e relacionais de uma posiccedilatildeo em um estilo de vida uniacutevoco [hellip]rdquo sendo que essas disposiccedilotildees satildeo adquiridas segundo Bonnewitz (2003) durante o processo de socializaccedilatildeo O indiviacuteduo interioriza mecanismos sociais e educacionais que geram comportamentos e valores aprendidos como oacutebvios e naturais Assim aprendemos e automatizamos comportamentos valores e conhecimentos

O habitus sempre estaacute integrando novos valores ajustando e adaptando estes aos valores antigos Contudo ldquoexiste uma ineacutercia (ou hysteresis) do habitus cuja tendecircncia espontacircnea [hellip] consiste em perpetuar estruturas correspondentes agraves suas condiccedilotildees de produccedilatildeordquo (BORDIEU 2001 p 196) Ou como define Sampaio (2009 p39) ldquotendecircncia do habitus a permanecer no indiviacuteduo ao longo do tempo mesmo que as condiccedilotildees objetivas que o produziram e que estatildeo nele refletidas tenham se alteradordquo A hysteresis pode ser justamente o que se vecirc em comportamentos linguiacutesticos que se mantecircm apesar das orientaccedilotildees educacionais contraacuterias

Essas consideraccedilotildees tambeacutem abrem espaccedilo para a questatildeo do que se produz na escola uma vez que o respeito agrave fonte de informaccedilatildeo eacute um procedimento que cabe ser cultivado em instacircncias anteriores ao grau universitaacuterio Para Freitas (1994) a concepccedilatildeo sociointeracionista considera que via de regra a escola ensina a crianccedila a escrever mas natildeo a dizer e sim a repetir Na escola muitas vezes o aluno eacute abstrato e as atividades satildeo esteacutereis e descontextualizadas Nesse contexto trabalhar com as informaccedilotildees de terceiros de maneira a manter sua autoria faz parte de uma dialogicidade que precisa ser mais estimulada no ensino baacutesico

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42 Composiccedilatildeo autoral dos textos

Levando em conta que a intertextualidade2 natildeo eacute medida apenas pela citaccedilatildeo do autor pudemos constatar que 625 dos textos fizeram uso dessas fontes (desconsiderando o texto 19) e em apenas um caso em situaccedilatildeo especiacutefica observamos o uso de informaccedilatildeo de texto de apoio de maneira equivocada apresentando uma compreensatildeo contraacuteria agrave colocada pelo autor

Quanto agrave questatildeo da interdiscursividade no que se refere ao uso de informaccedilotildees de sala de aula observamos que 75 das produccedilotildees fizeram uso dessas informaccedilotildees Muitas questotildees controversas relativas agrave pesquisa social discutidas durante o semestre foram consideradas nas produccedilotildees destacando uma apropriaccedilatildeo do dizer alheio na proacutepria autoria

Quanto ao uso de opiniatildeo proacutepria apoiada em senso comum pudemos observar que 75 dos textos fizeram uso desse expediente O uso de opiniatildeo proacutepria ou de senso comum nesses casosocorreu a partir das fontes de apoio sem que os autores se desviassem do tema

Analisando os criteacuterios concernentes ao universo autoral de forma integrada constatamos que do total dos textos 375 fizeram uso de todos os aspectos de forma integrada ou seja dos textos de apoiodas informaccedilotildees de sala de aula e de elaboraccedilotildees proacuteprias Aleacutem disso 6255 fizeram uso de informaccedilotildees de sala de aula e elaboraccedilotildees proacuteprias e 50 fizeram uso de textos de apoio e elaboraccedilotildees proacuteprias tambeacutem de forma integrada

O que se destaca eacute que aleacutem de um percentual elevado quanto ao uso de fontes de apoio 75 dos textos fazem uso de elaboraccedilotildees proacuteprias de forma integrada com os textos de apoio e com as discussotildees de sala de aula sem desviar-se do tema proposto Isso nos remete diretamente agrave questatildeo da autoria no sentido do autor-criador de Bakhtin (1992) Todos esses textos discutem sobre a ciecircncia seu funcionamento seus progressos mas cada um a partir de uma particularidade

Lecirc-se sobre a contribuiccedilatildeo da ciecircncia para nossas vidas sobre a importacircncia daqueles que questionam a realidade sobre os mitos e sua ligaccedilatildeo com o surgimento da ciecircncia assim como sua relaccedilatildeo com verdades cristalizadas e as fragilidades da ciecircncia O que se percebe eacute a relaccedilatildeo de valor que cada autor atribui ao tema

Para Bakhtin (1988b) eacute a relaccedilatildeo de valor ou a posiccedilatildeo socioaxioloacutegica que daacute forccedila ao autor para a composiccedilatildeo do todo No processo de se tornar autor-criador transforma-se a realidade vivida e diferentes valores sociais em novos valores Assim torna-se possiacutevel um mesmo tema a partir das mesmas leituras originar discursos tatildeo variados Essa eacute a materialidade verbal das posiccedilotildees socioaxioloacutegicas

2 No criteacuterio de anaacutelise ldquocomposiccedilatildeo autoralrdquo foram levados em conta criteacuterios de plurivocidade destacados em itaacutelico

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Nesse processo percebe-se tanto a realidade refratada a partir das vozes sociais e a linguagem alheia quando todos discutem o mito a ciecircncia quanto tambeacutem a posiccedilatildeo refratante que reordena e interpreta cada qual agrave sua maneira Nesse caminho percebe-se uma refraccedilatildeo ou seja a visatildeo dos autores a partir dos valores que carregam

43 Manutenccedilatildeo do tema proposto

Quanto agrave manutenccedilatildeo do tema proposto constatamos que 75 dos textos natildeo apresentam desvios do propoacutesito do tema Esse fato eacute indicativo de que a proposta foi entendida a pergunta desencadeadora levada em conta e foram feitas associaccedilotildees entre a proposta a pergunta e o arquivo Nesse sentido todas as leituras realizadas caminharam na direccedilatildeo da interpretaccedilatildeo

Quanto a essa questatildeo conforme jaacute discutido Pecirccheux (1997) considera que para muitos profissionais da leitura como catalogadores arquivistas escrivatildees copistas contiacutenuos da leitura enfim pessoas que trabalham com a organizaccedilatildeo de textos ou historiadores eacute negada a praacutetica da proacutepria leitura ou da leitura espontacircnea impondo um apagamento do sujeito leitor Assim eacute dado a uns o direito de produzir leituras originais e a outros a obrigaccedilatildeo da reproduccedilatildeo anocircnima Esse divoacutercio cultural entre o literaacuterio e o cientiacutefico gera uma divisatildeo social do trabalho da leitura

Contudo esse ato poliacutetico inscrito na relaccedilatildeo que se deteacutem com a accedilatildeo da leitura natildeo eacute uma questatildeo apenas dos profissionais e literatos mas tambeacutem da escola Esta a partir de tarefas esteacutereis e sem sentido que satildeo desencadeadas magicamente sem motivaccedilatildeo concreta descontextualizadas e sem um propoacutesito que oriente sua leitura ou produccedilatildeo tambeacutem caminha para a inserccedilatildeo do aluno apenas na esfera da leitura literal Aleacutem disso a preocupaccedilatildeo primeira da escola como coloca Pecirccheux (1997) eacute a manutenccedilatildeo de uma assepsia na construccedilatildeo da linguagem procurando sempre ambiguidades buscando sempre o sentido legiacutetimo da palavra das expressotildees e dos enunciados negando ao sujeito o espaccedilo de sua proacutepria construccedilatildeo tolhendo a criaccedilatildeo

O autor natildeo nega a importacircncia da linguagem culta ou convencional poreacutem ela tem que ser alcanccedilada a partir do texto ou seja o texto deve vir antes das regras e estas serviratildeo agravequele A escola ao contraacuterio ensina a regra para que o texto jaacute surja perfeito como se existisse nas palavras de Pecirccheux (1997) uma semacircntica universal

A questatildeo da leitura interpretativa eacute crucial para a formaccedilatildeo da identidade do arquivo Eacute fundamental considerar que os trecircs textos de apoio foram discutidos em sala de aula pela professora e pesquisadora foram feitos trabalhos individuais a partir de cada um dos textos e antes da produccedilatildeo assim como no momento da coleta dos dados o grupo como um todo discutiu o conteuacutedo do arquivo Cada um desses momentos trouxe informaccedilotildees e apoio ao autor No entanto o arquivo entendido como um conjunto de documentos sobre uma determinada questatildeo apresenta uma identidade peculiar para cada um dos autores O material pode ser o mesmo mas seu proacuteprio registro jaacute eacute marcado por preferecircncias pessoais nuanccedilas que apontam

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significados proacuteprios cores indicativas de tendecircncias jaacute na escolha e interpretaccedilatildeo das vozes ou de seu entrecruzamento

Feitas as anaacutelises quanto agrave citaccedilatildeo das fontes a composiccedilatildeo autoral e a manutenccedilatildeo do tema vale destacarmos que apenas um texto natildeo fez uso de qualquer base de informaccedilatildeo dos textos da mesma forma que natildeo teve sucesso quanto agrave manutenccedilatildeo do tema proposto Aleacutem desse texto outro tambeacutem fez uso de elaboraccedilotildees proacuteprias mas apresentando desvios do propoacutesito do texto

Nessas situaccedilotildees as opiniotildees baseadas no senso comum foram usadas apenas como recurso de retoacuterica superficialmente e sem uma ligaccedilatildeo direta com a questatildeo proposta denotando uma natildeo apropriaccedilatildeo dos textos de apoio ou das discussotildees de sala de aula e provavelmente uma leitura literal

5 Consideraccedilotildees finais

O interesse primeiro deste estudo foi o de observar a constituiccedilatildeo do universo autoral de alunos ingressantes no ensino superior a partir da leitura interpretativa e da formaccedilatildeo de arquivos

Na maioria dos casos os alunos conseguiram se manter no tema utilizando uma linguagem proacutepria e utilizando as fontes de apoio A manutenccedilatildeo do tema foi considerada indicaccedilatildeo de que tanto a tarefa quanto o conteuacutedo dos vaacuterios arquivos foram tornados proacuteprios o que envolve um ato de interpretaccedilatildeo Isso implica o movimento do sujeito na direccedilatildeo da constituiccedilatildeo dos sentidos do dizer

A formaccedilatildeo de um campo de conhecimento alimentado pelas discussotildees de sala de aula (interdiscursividade) assim como pelos textos estudados durante o semestre (intertextualidade) permitiram a formaccedilatildeo de arquivo responsaacutevel pelo ter o que dizer e pela constituiccedilatildeo da dialogia estabelecida no espaccedilo do texto

O que se pode observar eacute que a maioria dos textos produzidos tem autoria e pertence ao universo autoral de seus produtores uma vez que transformaram o dizer alheio em dizer proacuteprio assumindo um posicionamento axioloacutegico e com responsividade Tal resultado adquire relevacircncia pelo fato de esses alunos serem iniciantes frequentes do 1ordm semestre de um curso universitaacuterio e participarem de uma pesquisa que solicitava a produccedilatildeo de texto sobre um tema que eacute novo e com conceitos complexos

Frequentemente em nossa accedilatildeo educativa sentimos inseguranccedila quanto ao real aprendizado de nossos alunos ou agrave profundidade alcanccedilada Constatamos nessa investigaccedilatildeo a apropriaccedilatildeo de conceitos e conteuacutedos como resultado de um trabalho de formaccedilatildeo de arquivo

Assim pode-se dizer que o conhecimento eacute algo que se constroacutei ao longo do tempo e em meio a muitos discursos e textos Eacute a possibilidade de entrar em contato com um conhecimento de maneira variada com uma diversidade de textos que permitem sua compreensatildeo

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Dois aspectos servem de alerta a partir dessas consideraccedilotildees Primeiro a condiccedilatildeo de ensino que se institui no 3ordm grau Natildeo se trata apenas da condiccedilatildeo de chegada de nossos alunos mas tambeacutem da urgecircncia que se estabelece com vistas agrave melhoria de vida com a obtenccedilatildeo de um diploma Nesse sentido os fins prejudicam os meios A experiecircncia de sala de aula nos mostra que os alunos jaacute entram querendo aprender somente aquilo de que iratildeo fazer uso como se o campo profissional fosse assim tatildeo reduzido como se o desenvolvimento de um conhecimento capacidade ou habilidade natildeo solicitasse outros recursos natildeo tatildeo diretamente implicados

Cabe destacar ainda que o mercado tem se ampliado aprofundado e diversificado dentro da mesma aacuterea solicitando cada vez mais formaccedilatildeo do profissional em um curto espaccedilo de tempo Diante dessas exigecircncias a formaccedilatildeo e os conteuacutedos passam a ser acelerados e as possiblidades de se trabalhar a formaccedilatildeo de arquivo com isso reduzem-se

O segundo aspecto refere-se agrave qualidade da escrita dos autores Natildeo foram objeto de anaacutelise deste estudo questotildees gramaticais de coerecircncia e de coesatildeo Destacamos nessa direccedilatildeo que todos os trabalhos sem exceccedilatildeo apresentaram vaacuterias falhas que via de regra exigiram um esforccedilo analiacutetico no sentido de relevaacute-las para que o campo dialoacutegico entre produtor e leitor pudesse se estabelecer e se observassem os motivos dos dizeres Contudo haacute que se ressaltar tambeacutem que os desvios observados natildeo apagaram ou invalidaram a constituiccedilatildeo do universo autoral

Tal fato deve ser considerado com cautela pois via de regra nossos alunos escrevem com inconsistecircncias como jaacute colocado no iniacutecio deste trabalho Satildeo produccedilotildees marcadas por falta de loacutegica de fluecircncia de linearidade no discurso com falhas e truncamentos Essas caracteriacutesticas se mantecircm mesmo em trabalhos escritos que permitem aos alunos fazer ediccedilatildeo

Essas caracteriacutesticas ou inconsistecircncias acabam turvando nosso olhar e natildeo permitem que enxerguemos as qualidades do texto que existem apesar dos erros Aleacutem disso as inconsistecircncias encontradas tambeacutem geram equiacutevocos no sentido de acreditarmos que o conteuacutedo os conceitos e as ideias natildeo foram apreendidos o que nem sempre eacute possiacutevel afirmar

Em tais circunstacircncias cabe ressaltar o grande meacuterito da pesquisa-accedilatildeo cujos resultados beneficiam de imediato e de forma direta ao pesquisador e ao grupo pesquisado Nossa accedilatildeo pedagoacutegica nem sempre privilegia um olhar mais direcionado ou o estabelecimento de controles que permitam observaccedilatildeo de minuacutecias que se evidenciam geralmente em situaccedilotildees empiacutericas Condiccedilotildees natildeo tatildeo favoraacuteveis do dia a dia acabam orientando nossos discursos para o senso comum e geram ansiedade diante da falta de respostas para as nossas duacutevidas Aleacutem disso a pesquisa-accedilatildeo entre outros aspectos permite que fragilidades revelem suas possibilidades

Eacute justamente na direccedilatildeo da constituiccedilatildeo de um espaccedilo interativo da pesquisa-accedilatildeo que podemos criar paralelos com a linguagem que segundo Bakhtin (1970 apud BARROS 1994) eacute dialoacutegica o que nos leva a considerar natildeo um sujeito que produz e um sujeito que interpreta mas um espaccedilo de interlocuccedilatildeo verbal

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Recebido em 27102017

Aceito em 15112017

Terezinha Maia Martincowski

Doutora em Educaccedilatildeo pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Psicoacuteloga Escolar e Educacional Professora universitaacuteria na aacuterea de Educaccedilatildeo cowski91gmailcom

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eISSN 22376844polifonia

ldquoMito biograacuteficordquo e ldquoficccedilatildeo familiarrdquo em Borges e Calvino

ldquoBiographical Mythrdquo and ldquoFamily Fictionrdquo in Borges and Calvino

ldquoMito biograacuteficordquo y ldquoficcioacuten familiarrdquo en Borges y Calvino

Maria Elisa Rodrigues MoreiraUniversidade Federal de Mato Grosso

ResumoNeste artigo abordo alguns textos de caraacuteter autobiograacutefico dos escritores Jorge Luis Borges e Italo Calvino com o objetivo de refletir sobre as formas pelas quais nesses textos memoacuteria e ficccedilatildeo satildeo articuladas de forma a constituir ou alimentar uma espeacutecie de ldquoficccedilatildeo familiarrdquo que contribui para a instituiccedilatildeo de um ldquomito biograacuteficordquo que se pode associar aos dois escritores para recuperarmos expressotildees utilizadas por Beatriz Sarlo e Ricardo Piglia em seus estudos dedicados agrave obra de Jorge Luis Borges Essa ficccedilatildeo familiar propotildee uma genealogia que aproxima tanto Borges quanto Calvino do universo da palavra escrita e do mundo dos livros reforccedilando a literatura como o ldquodestinordquo previsiacutevel (se natildeo o uacutenico possiacutevel) de suas vidasPalavras-chave Ficccedilatildeo familiar mito biograacutefico literatura

AbstractIn this article I will discuss a few texts of autobiographical character written by Jorge Luis Borges and Italo Calvino with the purpose to reflect on the ways in which in these texts memory and fiction are articulated to constitute or nurture a kind of ldquofamily fictionrdquo that contributes to the establishment of a ldquobiographical mythrdquo which can be associated to the aforementioned writers in order to recover expressions used by Beatriz Sarlo and Ricardo Piglia in their studies dedicated to the work of Jorge Luis Borges This ldquofamily fictionrdquo proposes a genealogy that approximates Borges and Calvino to the universe of words and the world of books reinforcing literature as the predictable ldquodestinyrdquo (if not the only possible one) of their livesKeywords Family fiction Biographical myth Literature

ResumenEn este artiacuteculo desarrollo un abordaje de algunos textos de caraacutecter autobiograacutefico de los escritores Jorge Luis Borges e Italo Calvino con el propoacutesito de reflexionar acerca de las formas por las cuales en esos textos memoria y ficcioacuten se articulan con tal de constituir o alimentar una especie de ldquoficcioacuten familiarrdquo que aporta a la institucioacuten de un ldquomito biograacuteficordquo que se puede asociar a los dos escritores seguacuten expresiones usadas por Beatriz Sarlo y Ricardo Piglia en sus estudios dedicados a la obra de Jorge Luis Borges Esa ficcioacuten familiar propone una genealogiacutea que acerca tanto Borges como Calvino al universo de la palabra escrita y al mundo de los libros poniendo de relieve la literatura como el ldquodestinordquo previsible (quizaacutes el uacutenico posible) de sus vidasPalabras clave Ficcioacuten familiar mito biograacutefico literatura

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As questotildees relativas agrave memoacuteria perpassam como jaacute o apontaram diversos estudos as obras ficcionais de Jorge Luis Borges e de Italo Calvino contos como ldquoFunes o memoriosordquo(2007c) de autoria do argentino e ldquoA memoacuteria do mundordquo(2001) do italiano apenas para citar dois exemplos satildeo referecircncias claacutessicas dessa perspectiva de leitura de suas obras No entanto ainda que menos estudados pela criacutetica os textos de caraacuteter autobiograacutefico de ambos os escritores satildeo tambeacutem um rico material para se refletir sobre a relaccedilatildeo entre memoacuteria e ficccedilatildeo e indicam o uso de estrateacutegias narrativas similares entre os dois escritores de um lado nesses textos se pode perceber a construccedilatildeo de uma espeacutecie de ldquoficccedilatildeo familiarrdquo conforme expressatildeo utilizada por Ricardo Piglia em ldquoIdeologiacutea y ficcioacuten en Borgesrdquo (1979) por meio da qual tanto o escritor argentino quanto o italiano se vinculam a uma genealogia que os aproxima de alguma maneira do universo dos livros de outro essa ficccedilatildeo familiar serve para fomentar um ldquomito biograacuteficordquo para retomarmos aqui expressatildeo de Beatriz Sarlo cunhada em Jorge Luis Borges um escritor na periferia (2008) que cerca as produccedilotildees borgiana e calviniana mito este que faz da literatura o uacutenico ldquodestinordquo possiacutevel de vidas que se desenvolvem como as deles

Vale destacar que aqui entendemos o biograacutefico e o ficcional atinentes seja agrave expressatildeo ldquoficccedilatildeo familiarrdquo seja agrave expressatildeo ldquomito biograacuteficordquo em chave aproximativa agrave proposta por Juan Joseacute Saer em seu texto ldquoO conceito de ficccedilatildeordquo escrito em 1989 no qual o escritor assim se manifesta

A primeira exigecircncia da biografia a veracidade atributo pretensamente cientiacutefico eacute nada mais do que o constructo retoacuterico de um gecircnero literaacuterio natildeo menos convencional do que as trecircs unidades da trageacutedia claacutessica ou o desmascaramento do assassino nas uacuteltimas paacuteginas do romance policial A negaccedilatildeo escrupulosa do elemento fictiacutecio natildeo eacute um criteacuterio de verdade visto que o proacuteprio conceito de verdade eacute incerto e sua definiccedilatildeo integra elementos diacutespares e ateacute contraditoacuterios [hellip] Portanto podemos afirmar que a verdade natildeo eacute necessariamente o contraacuterio da ficccedilatildeo e que quando optamos pela praacutetica da ficccedilatildeo natildeo o fazemos com o propoacutesito turvo de tergiversar a verdade [hellip] Ao ir em direccedilatildeo ao natildeo verificaacutevel a ficccedilatildeo multiplica ao infinito as possibilidades de tratamento Natildeo nega uma suposta realidade objetiva ao contraacuterio submerge-se em sua turbulecircncia desdenhando a atitude ingecircnua que consiste em pretender saber de antematildeo como essa realidade se conforma (SAER 2012 p 1-3)

Eacute portanto como uma espeacutecie de potencializaccedilatildeo das possibilidades biograacuteficas que se aponta aqui o recurso dos escritores agrave ficccedilatildeo como elemento complexificador de suas vidas e do papel que nelas ocupa a narrativa literaacuteria Se a ficccedilatildeo eacute um ldquotratamento especiacutefico do mundordquo (SAER 2012 p 3) parece-me ser o mais adequado para se pensar as biografias de Borges e Calvino autores cuja relaccedilatildeo com o mundo se dava no mais das vezes entrecortada pela ficccedilatildeo Eacute a refletir sobre essa questatildeo que me dedicarei ao longo deste texto tomando como obras centrais o Ensaio autobiograacutefico de Borges (2009) e O caminho de San Giovanni de Calvino (2000a)

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O viacutenculo com a palavra escrita e a preocupaccedilatildeo com o conhecimento comeccedilam muito cedo na vida dos dois escritores e marcam consideravelmente sua praacutetica criativa e criacutetica levando-os a uma incessante busca pela construccedilatildeo de um saber que reconhecem impossiacutevel ser totalizante Essa busca resulta na extrema mobilidade e na multiplicidade do universo poeacutetico dos autores que transitam entre temaacuteticas e estilos diversificados mesclados em produccedilotildees narrativas poeacuteticas e ensaiacutesticas que se mostram confluentes e coerentes ao desbordar as fronteiras dos gecircneros discursivos e ao fazer transitar duacutevidas hipoacuteteses e saberes muacuteltiplos Criacutetica e ficccedilatildeo andam juntas e se interpolam na tessitura de narrativas que satildeo permanente e simultaneamente uma forma de reflexatildeo

Ricardo Piglia em ldquoIdeologiacutea y ficcioacuten en Borgesrdquo argumenta que a ficccedilatildeo de Borges eacute acompanhada por uma espeacutecie de narrativa genealoacutegica que diz da origem e da proacutepria possibilidade de formaccedilatildeo da escritura borgiana fundada na trajetoacuteria de reconhecimento pelo autor de que pertence a uma dupla linhagem ndash familiar e intelectual a linhagem da histoacuteria e a linhagem da literatura recontadas por Borges por meio de uma ldquoficccedilatildeo familiarrdquo de um lado a famiacutelia da matildee que remonta agrave histoacuteria argentina aos seus guerreiros e fundadores de outro a famiacutelia paterna de origem inglesa remetendo agrave tradiccedilatildeo intelectual e literaacuteria Conforme Piglia

Eacute esta oposiccedilatildeo ideoloacutegica a que eacute obrigada em Borges a tomar a forma de uma tradiccedilatildeo familiar A ficccedilatildeo dessa dupla linhagem lhe permite integrar todas as diferenccedilas fazendo ressaltar simultaneamente o caraacuteter antagocircnico das contradiccedilotildees mas tambeacutem sua harmonia O uacutenico ponto de encontro desse sistema de oposiccedilotildees eacute certamente o mesmo Borges ou melhor os textos de Borges (PIGLIA 1979 p 4 Traduccedilatildeo do autor)

Eacute essa genealogia literaacuteria que conduz conforme Beatriz Sarlo (2008) o ldquomito biograacuteficordquo em torno de Jorge Luis Borges o qual se funda na apropriaccedilatildeo que o escritor argentino faz da literatura Nessa perspectiva a ldquoficccedilatildeo familiarrdquo marca o ldquoensaio autobiograacuteficordquo (BORGES 2009) ditado em inglecircs por Borges a seu tradutor Norman Thomas di Giovanni no iniacutecio de 1970 Nele ambas as linhagens satildeo retomadas e o escritor apresenta-se como herdeiro tanto de uma memoacuteria histoacuterica quanto de uma memoacuteria literaacuteria Interessa-me particularmente essa genealogia literaacuteria a qual precisa ser sempre considerada tendo-se em vista sua constituiccedilatildeo mediante o signo do duplo ou seja uma genealogia que eacute tanto familiar privada (a memoacuteria)quanto social puacuteblica (a biblioteca) Como ressalta Piglia em lugar de excluir as inuacutemeras contradiccedilotildees que marcam essa duplicidade Borges as manteacutem fazendo delas elementos constitutivos de sua escritura ldquoA memoacuteria e a biblioteca representam as propriedades a partir das quais se escreve poreacutem esses dois espaccedilos de acumulaccedilatildeo satildeo ao mesmo tempo o lugar mesmo da ficccedilatildeo em Borgesrdquo (PIGLIA 1979 p 6 traduccedilatildeo minha)

Sob esse prisma procuro aproximar a essa dupla chave de leitura da obra de Borges proposta por Ricardo Piglia pautada pelas linhagens familiarhistoacuterica e literaacuteriaintelectual a perspectiva de uma obra fraturada conforme proposta por Beatriz Sarlo

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(2008) cuja rachadura seria originaacuteria de uma tensatildeo insistente entre o nacional (familiar) e o cosmopolita (literaacuterio) Sarlo indica que eacute nesse lugar tensionado nesse espaccedilo entre duas margens que Borges constitui seu pensamento e sua literatura e que qualquer leitura que se faccedila da produccedilatildeo borgiana a partir de apenas um desses polos ainda que perfeitamente possiacutevel resultaraacute numa perda significativa

Conquanto a reflexatildeo sobre o ensaio como gecircnero particular de escrita e de organizaccedilatildeo do pensamento fuja ao escopo deste texto parece-me relevante destacar a escolha de Borges pelo tiacutetulo de seu livro autobiograacutefico no original inglecircs An Autobiographical Essay (Ensaio autobiograacutefico na traduccedilatildeo brasileira) A pesquisadora uruguaia Lisa Block de Behar que jaacute dedicou livros e artigos agrave obra do escritor argentino afirma que com esse tiacutetulo Borges faz circular em torno do texto os vaacuterios sentidos que se condensam no termo ensaio

Natildeo recordo outros autores que tenham apresentado sua autobiografia como um ldquoensaiordquo tampouco recordo que Borges tenha designado como autobiograacuteficos outros de seus textos aleacutem da alusatildeo a alguma lembranccedila de suas leituras ou agrave intensidade poeacutetica de algum instante de intimidade privada (BEHAR 1999 Traduccedilatildeo do autor)

Ela lamenta ainda que a traduccedilatildeo da obra para a liacutengua espanhola natildeo mantenha o tiacutetulo original

Com efeito o tiacutetulo em espanhol apenas o apresenta como uma sucinta Autobiografia sem explicar qualquer razatildeo para a omissatildeo de uma parte substancial da denominaccedilatildeo em inglecircs suspendendo o enfrentamento que por justapor dois nomes geneacutericos como um soacute impugna a ambos (BEHAR 1999 Traduccedilatildeo do autor)

Esse ldquoensaio de biografiardquo assim que jaacute nasce marcado pelo signo do hiacutebrido destaca a importacircncia dos livros na infacircncia de Borges e no ambiente familiar em que ele cresceu O escritor afirma que ldquouma tradiccedilatildeo literaacuteria percorria a famiacutelia de [s]eu pairdquo (BORGES 2009 p 18) destacando o fato de que Fanny Haslam sua avoacute paterna inglesa ndash responsaacutevel pelo conhecimento de inglecircs que Borges adquiriu desde cedo ndash ldquoera uma grande leitorardquo (p 12) e dizendo a respeito de seu pai ter sido ldquoele quem me revelou o poder da poesia o fato de as palavras serem natildeo apenas um meio de comunicaccedilatildeo mas tambeacutem siacutembolos maacutegicos e muacutesicardquo (p 13) Seu pai Jorge Guillermo Borges escreveu um romance sua matildee Leonor Acevedo com quem Borges viveu por quase toda a vida apoacutes a morte do marido dedicou-se agrave traduccedilatildeo de obras literaacuterias

Nesse mesmo texto Borges se apresenta ainda como ldquoum homem de livrosrdquo (p 16) e destaca a importacircncia da biblioteca do pai em sua vida

Se tivesse de indicar o evento principal de minha vida diria que eacute a biblioteca de meu pai Na realidade creio nunca ter saiacutedo dessa biblioteca Eacute como se ainda a estivesse vendo Ocupava todo um aposento com estantes envidraccediladas e devia conter milhares de volumes Como era

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muito miacuteope esqueci-me da maioria dos rostos dessa eacutepoca (quando penso em meu avocirc Acevedo talvez esteja pensando em sua fotografia) mas ainda lembro com nitidez as gravuras em accedilo da Chambersrsquos Encyclopaedia e da Britannica (BORGES 2009 p 16)

O escritor continua enumerando as diversas obras que leu a partir dessa biblioteca Embora longa a citaccedilatildeo justifica-se tanto por traccedilar a importacircncia emblemaacutetica da biblioteca na vida do escritor desde a infacircncia como por apresentar-se como uma lista das leituras que o marcaram nesse periacuteodo como uma espeacutecie de inventaacuterio de sua heteroacuteclita histoacuteria de aproximaccedilatildeo com a literatura como uma sinalizaccedilatildeo das questotildees que marcaram sua obra posterior ou seja como um elemento conformador do mito biograacutefico que o leva a se tornar um ldquohomem de livrosrdquo

O primeiro romance que li inteiro foi Huckleberry Finn Depois vieram Roughing It e Flush Days in California Tambeacutem li os livros do capitatildeo Marryat Os primeiros homens na Lua de Wells Poe uma ediccedilatildeo da obra de Longfellow em um volume A ilha do tesouro Dickens Dom Quixote Tom Brown na escola os contos de fadas de Grimm Lewis Carroll As aventuras de mr Verdant Green (livro agora esquecido) As mil e uma noites de Burton A obra de Burton ndash infestada de coisas entatildeo consideradas obscenidades ndash foi-me proibida e tive de lecirc-la agraves escondidas no terraccedilo Mas nessa altura estava tatildeo emocionado pela magia do livro que natildeo percebi em absoluto as partes censuraacuteveis e li os contos sem me dar conta de nenhum outro significado Todos os livros que acabo de mencionar eu os li em inglecircs Quando mais tarde li Dom Quixote na versatildeo original pareceu-me uma traduccedilatildeo ruim Ainda lembro aqueles volumes vermelhos com letras impressas em ouro da ediccedilatildeo Garnier Em algum momento a biblioteca de meu pai fragmentou-se e quando li o Quixote em outra ediccedilatildeo tive a sensaccedilatildeo de que natildeo era o verdadeiro Quixote Mais tarde fiz com que um amigo me conseguisse a ediccedilatildeo Garnier com as mesmas gravuras em accedilo as mesmas notas de rodapeacute e tambeacutem as mesmas erratas Para mim todas essas coisas fazem parte do livro considero esse o verdadeiro Quixote (BORGES 2009 p 16-17)

Podemos traccedilar nessa lista de memoacuterias de leitura percursos que as relacionam agraves obras borgianas de modo que eacute como se aiacute na biblioteca paterna estivesse indicado o futuro escritor de sucesso internacional que Borges jaacute era quando escreveu essas paacuteginas autobiograacuteficas Nesse rol encontram-se os verbetes enciclopeacutedicos retrabalhados em Manual de Zoologiacutea Fantaacutestica (BORGES e GUERRERO 2001) e O livro dos seres imaginaacuterios (BORGES e GUERRERO 2007) Richard Burton e as questotildees pertinentes agrave traduccedilatildeo sobre as quais o autor reflete em ldquoProblemas de la traduccioacuten (el oficio de traducir)rdquo (BORGES 1999b) ldquoLas dos maneras de traducirrdquo (BORGES 1926) e ldquoAs versotildees homeacutericasrdquo (BORGES 2008) o ldquoverdadeirordquo Quixote de ldquoPierre Menard autor do Quixoterdquo (BORGES 2007b) A biblioteca paterna parece funcionar assim como uma forccedila centriacutefuga da qual decorre a maioria dos temas que iratildeo compor seu repertoacuterio de produccedilatildeo seja ele narrativo poeacutetico ou ensaiacutestico

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Em espanhol li muitos dos livros de Eduardo Gutieacuterrez sobre bandidos e foragidos argentinos ndash sobretudo Juan Moreira ndash bem como seu Siluetas militares que conteacutem um vigoroso relato da morte do coronel Borges Minha matildee proibiu-me a leitura do Martiacuten Fierro pois o considerava um livro indicado apenas para rufiotildees e colegiais e que aleacutem disso nada tinha a ver com os verdadeiros gauchos Esse tambeacutem eu li agraves escondidas A opiniatildeo de minha matildee baseava-se no fato de que Hernaacutendez apoiara Rosas e portanto era inimigo de nossos antepassados unitaacuterios Li ainda o Facundo de Sarmiento e vaacuterios livros sobre mitologia grega e depois escandinava A poesia chegou-me atraveacutes do inglecircs Shelley Keats FitzGerald e Swinburne esses grandes favoritos de meu pai que ele podia citar extensamente e muitas vezes o fazia (BORGES 2009 p 17)

Genealogia literaacuteria traccedilada a posteriori num movimento como o postulado pelo escritor em ldquoKafka e seus precursoresrdquo (BORGES 2007a) a lista borgiana ndash que poderia estender-se ao infinito ndash embaralha as influecircncias e deixa antever o gosto pelas burlas demarcando ldquoum entrelugar linguiacutestico e literaacuteriordquo (OLMOS 2008 p 13) e indicando uma biblioteca a ser resgatada ndash mesmo que essa biblioteca paterna talvez nunca tenha existido tal qual narrada

Ainda rememorando a biblioteca familiar o escritor afirma ldquoSempre cheguei agraves coisas depois de encontraacute-las nos livrosrdquo (BORGES 2009 p 20) Esse comentaacuterio como destaca Ana Ceciacutelia Olmos diz de um aspecto fundamental da poeacutetica de Borges a leitura como ldquoinstacircncia fundadora de sua escriturardquo como uma experiecircncia de vida tatildeo importante quanto qualquer outra Ela indica a rasura constante praticada pelo escritor entre o que adveacutem de uma imaginaccedilatildeo literaacuteria e o que decorre de uma experiecircncia do mundo sensiacutevel situaccedilotildees por ele aproximadas e vivenciadas sob a mesma oacutetica ldquoUm escritor que assumiu o livro como elemento vital deu agrave leitura o status de extensatildeo da experiecircncia e transformou a biblioteca no seu habitatrdquo (OLMOS 2008 p 8) Como jaacute havia afirmado Maurice Blanchot Borges era um ldquohomem essencialmente literaacuteriordquo com o que se quer dizer que estava ldquosempre pronto para compreender segundo o modo que a literatura autorizardquo (BLANCHOT 1999 p 74 traduccedilatildeo minha)

Nascido em Buenos Aires em 1899 Borges mudou-se com a famiacutelia para a Europa em 1914 laacute vivendo por nove anos a viagem decorrente da busca por tratamento para a perda de visatildeo de seu pai prolongou-se devido agrave eclosatildeo da Primeira Guerra Mundial Ao longo desse periacuteodo ele concluiu em Genebra os estudos de niacutevel meacutedio e aproximou-se do Ultraiacutesmo movimento de vanguarda que conheceu na Espanha e que influenciou suas primeiras obras poeacuteticas Afirmou tambeacutem sua proximidade com a palavra escrita tornando-se um leitor fervoroso tanto de literatura quanto de filosofia e publicando seus primeiros textos em perioacutedicos europeus expandiu assim os limites de sua biblioteca familiar convertida entatildeo numa ldquobiblioteca peregrinardquo

A expressatildeo ldquobiblioteca peregrinardquo foi cunhada por Ana Ceciacutelia Olmos que ao traccedilar um ldquoretrato do artistardquo em seu Por que ler Borges (2008) elabora um panorama biograacutefico do autor que tem na presenccedila da biblioteca em sua vida o principal referencial Esse

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ldquoimperfeito bibliotecaacuteriordquo ndash alusatildeo direta ao texto ldquoA Biblioteca de Babelrdquo ndash eacute apresentado por meio de quatro bibliotecas a ldquobiblioteca familiarrdquo correspondente ao tempo da infacircncia e da formaccedilatildeo de Jorge Luis Borges influenciados fortemente pela biblioteca paterna a ldquobiblioteca peregrinardquo referente ao periacuteodo em que Borges viveu na Europa com sua famiacutelia e no qual ampliou seus referenciais literaacuterios a ldquobiblioteca crepuscularrdquo que diz do momento de seu retorno a Buenos Aires e de sua produccedilatildeo anterior ao amplo reconhecimento de puacuteblico e criacutetica e a ldquobiblioteca da consagraccedilatildeordquo correspondente agrave eacutepoca de suas produccedilotildees de maior sucesso aos precircmios literaacuterios e ao prestiacutegio internacional

No periacuteodo europeu a biblioteca de seu pai ampliava-se incorporando autores textos e idiomas distintos ndash o latim de Virgiacutelio o francecircs de Baudelaire Paul Verlaine Victor Hugo e Eacutemile Zola o alematildeo de Heine Nietzsche Schopenhauer ndash e novos escritores de idiomas jaacute conhecidos como o inglecircs e o espanhol ndash Thomas de Quincey Chesterton Quevedo Goacutengora Miguel de Unamuno Essa biblioteca peregrina marcava assim uma formaccedilatildeo literaacuteria cosmopolita e ao mesmo tempo a inserccedilatildeo ldquoperifeacutericardquo do autor que o levava a transitar pelas diversas tradiccedilotildees literaacuterias assumindo-as e subvertendo-as com a marca de seu lugar nacional

Ambas as bibliotecas familiar e peregrina apresentam-se assim como emblemas de uma escritura que se constroacutei a partir do diaacutelogo nem sempre paciacutefico entre o centro e a margem em decorrecircncia de um olhar que soacute eacute possiacutevel desse lugar ex-cecircntrico

[] sua obra eacute perturbada pela tensatildeo entre a mistura e a nostalgia por uma literatura europeia que um latino-americano natildeo pode nunca viver integralmente como natureza original Apesar da perfeita felicidade do estilo a obra de Borges traz uma rachadura em seu centro desloca-se na crista de vaacuterias culturas que se tocam (ou se repelem) em suas periferias Borges desestabiliza as grandes tradiccedilotildees ocidentais bem como aquelas que conheceu do Oriente cruzando-as (no sentido de caminhos que se cruzam mas tambeacutem no de raccedilas que se misturam) no espaccedilo rio-pratense (SARLO 2008 p 17)

Os conflitos culturais histoacutericos e geograacuteficos que marcam essa tensatildeo ficam ainda mais evidentes quando do retorno do autor agrave Argentina em 1921 Borges redescobriu naquele momento um paiacutes muito diferente daquele que havia deixado A Buenos Aires que encontrou era apenas um rastro da cidade de sua infacircncia passando por mudanccedilas vertiginosas ele voltou para uma cidade em pleno desenvolvimento com um movimento cultural e literaacuterio efervescente uma cidade que incorporava a modernidade em seu sentido mais amplo

Foi nessa nova Buenos Aires que se constituiacutea na interface entre o novo e o que persistia que Borges e outros renomados escritores passaram a atuar ativamente mobilizando seu cenaacuterio cultural Em 1921 fundaram a revista mural Prisma e em 1922 a revista Proa (WOODALL 1999 VACCARO 2006) Em 1923 Borges publicou seu primeiro livro de poemas Fervor de Buenos Aires no qual essa tensatildeo entre a cidade da memoacuteria e a cidade em movimento pode ser considerada o eixo principal A partir de entatildeo manteve

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ateacute sua morte um intenso ritmo de produccedilatildeo colaborou com diversas revistas literaacuterias e suplementos culturais (nos quais publicou ensaios contos e poemas) organizou antologias traduziu romances e escreveu prefaacutecios a vaacuterias obras aleacutem de ter ministrado inuacutemeras conferecircncias Jaacute em seus primeiros textos eacute possiacutevel perceber a ironia o humor e o deslocamento como estrateacutegias para a reflexatildeo sobre a literatura e a cultura (ainda que posteriormente ele tenha vindo a negar a importacircncia desses escritos como os publicados em Inquisiciones de 1925)

O mito biograacutefico continua a se constituir para aleacutem da ficccedilatildeo familiar ganhando importacircncia aiacute uma segunda genealogia traccedilada pelo autor relativa agrave cegueira e agrave biblioteca Foi em 1938 que os livros passaram a cercar Borges tambeacutem profissionalmente seu primeiro emprego regular foi na Biblioteca Municipal Miguel Caneacute da qual foi primeiro assistente durante cerca de nove anos Sobre essa biblioteca ele afirmou

Agora eu deveria ter deixado essa biblioteca ndash era um ambiente assaz mediacuteocre ndash mas continuei trabalhando Natildeo sei se a palavra ldquotrabalhandordquo eacute exata eacuteramos acho uns cinquenta funcionaacuterios e nos designaram um trabalho que tinha que ser lento [] Bom e entatildeo o que acontecia Nosso trabalho era feito em digamos meia hora ou em 45 minutos e depois sobrava o restante das seis horas que eram dedicadas a conversas sobre futebol ndash tema que ignoro profundamente ndash ou fofocas ou por que natildeo contos ldquopicantesrdquo Agora eu me escondia porque tinha encontrado uma estranha ocupaccedilatildeo ler os livros da biblioteca Eu devo a esses nove anos o conhecimento da obra de Leacuteon Bloy de Paul Claudel voltei a ler os seis volumes de Decliacutenio e queda do Impeacuterio Romano de Gibbon e conheci livros dos quais natildeo tinha notiacutecia De maneira que aproveitei o tempo (BORGES e FERRARI 2009 p 56-57)

Na deacutecada de 1940 Borges lanccedilou seus mais famosos livros de contos que lhe valeram o reconhecimento internacional e deram iniacutecio a uma seacuterie de precircmios literaacuterios e tiacutetulos acadecircmicos honoriacuteficos de todas as partes do mundo Ficccedilotildees de 1944 e O Aleph de 1949 Paralelamente ao sucesso como escritor adveacutem tambeacutem a cegueira outra ldquotradiccedilatildeo familiarrdquo que acometera seu pai e iria progressivamente retirar sua visatildeo em 1955 jaacute estava quase completamente cego Os livros entretanto natildeo deixavam de cercaacute-lo foi nomeado nesse ano diretor da Biblioteca Nacional da Argentina

Na conferecircncia ldquoA cegueirardquo publicada no livro Sete noites Borges traccedila a aproximaccedilatildeo entre sua genealogia familiar e sua genealogia bibliotecaacuteria tendo como ponto de uniatildeo a cegueira Num primeiro momento associa a Biblioteca agraves leituras da infacircncia quando a frequentava acompanhado do pai

Fui nomeado diretor da biblioteca e voltei agravequela casa da rua Meacutexico no bairro de Montserrat no Sul de que guardava tantas recordaccedilotildees Eu jamais havia sonhado com a possibilidade de ser diretor da Biblioteca Tinha recordaccedilotildees de outra ordem Ia com meu pai agrave noite (BORGES 2011 p 199)

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Depois associa o fato agrave sua cegueira

Pouco a pouco fui compreendendo a estranha ironia dos fatos Eu sempre imaginara o Paraiacuteso como tendo o aspecto de uma biblioteca Outras pessoas pensam num jardim outras talvez pensem num palaacutecio Laacute estava eu Era de alguma maneira o centro de 900 mil volumes em diversos idiomas Comprovei que mal conseguia decifrar as capas e as lombadas Entatildeo escrevi o ldquoPoema dos donsrdquo que comeccedila por ldquoNingueacutem rebaixe a laacutegrima ou rejeite esta declaraccedilatildeo da maestria de Deus que com magniacutefica ironia deu-me a um soacute tempo os livros e a noiterdquo Esses dois dons que se contradizem os muitos livros e a noite a incapacidade de lecirc-los (BORGES 2011 p 200)

Por fim traccedila a ligaccedilatildeo entre a biblioteca e a cegueira criando uma genealogia de bibliotecaacuterios cegos que passaram pela Biblioteca Nacional da Argentina

Imaginei que Groussac era o autor do poema porque Groussac tambeacutem foi diretor da Biblioteca e tambeacutem cego Groussac foi mais corajoso que eu guardou silecircncio Mas pensei que sem duacutevida havia momentos em que nossas vidas coincidiam jaacute que noacutes dois chegaacuteramos agrave cegueira e noacutes dois amaacutevamos os livros []Na eacutepoca eu ignorava que a Biblioteca tivera outro diretor Joseacute Maacutermol que tambeacutem foi cego Aqui aparece o nuacutemero trecircs que fecha as coisas Dois eacute uma mera coincidecircncia trecircs uma confirmaccedilatildeo []Temos assim trecircs pessoas que receberam igual destino (BORGES 2011 p 201-202)

O ldquodestinordquo confirmava assim o mito biograacutefico Borges permaneceu como diretor da Biblioteca Nacional ateacute se aposentar em 1973 Paralelamente agrave sua entrada no paraiacuteso pelo qual tomava as bibliotecas ao longo da deacutecada de 1940 iniciara-se tambeacutem o viacutenculo de Borges com o ramo editorial no qual se projetou como antologista na editora Emececirc A palavra escrita era sua estrateacutegia de accedilatildeo intervenccedilatildeo e colocaccedilatildeo no mundo escrevia prefaacutecios criacutetica e roteiros de cinema organizava e dirigia coleccedilotildees literaacuterias produzia ensaios para diversos perioacutedicos e ainda se arriscou em um conjunto de milongas posteriormente musicadas por Astor Piazzolla (Para as seis cordas) aleacutem disso dava conferecircncias sobre literatura por todo o mundo concedeu inuacutemeras entrevistas e tinha sob sua responsabilidade caacutetedras acadecircmicas

Essa multiplicidade de textos e esse voraz apetite pela leitura fazem da obra de Borges uma vasta biblioteca um territoacuterio livresco em que a tradiccedilatildeo eacute rememorada e recriada constantemente em que o sonho a realidade e a imaginaccedilatildeo se imbricam de maneira contiacutenua e em que o saber se constroacutei a partir do diaacutelogo entre a ficccedilatildeo e a reflexatildeo em suas mais variadas formas de apariccedilatildeo

Ainda que diferenciadas em vaacuterios aspectos a vida e as obras de Borges e Calvino aproximam-se por esse viacutenculo com a palavra escrita pela presenccedila insistente das figuras do livro e da biblioteca bem como por uma produccedilatildeo textual que constantemente coloca em questatildeo o proacuteprio fazer literaacuterio como pensar por meio

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da ficccedilatildeo como produzir saberes que se instituem no bojo da narrativa e com os recursos desta num cenaacuterio em que predomina a valorizaccedilatildeo da ciecircncia como uacutenico discurso vaacutelido para o conhecimento

A relaccedilatildeo entre literatura e ciecircncia construiacuteda por Calvino pode ser lida a exemplo de Borges a partir de um ldquomito biograacuteficordquo de uma ldquoficccedilatildeo familiarrdquo Luca Baranelli e Ernesto Ferrero ao traccedilarem em Album Calvino (2003) uma biografia do autor afirmam que ele trazia em seu ldquocoacutedigo geneacuteticordquo uma mentalidade cientiacutefica seu pai Mario Calvino era um agrocircnomo de San Remo que passou alguns anos no Meacutexico (onde dirigiu a Estaccedilatildeo Experimental de Agricultura) e em Cuba sua matildee Eva Mameli foi a primeira mulher a ocupar uma caacutetedra de Botacircnica em uma universidade italiana Esse mito biograacutefico eacute entretanto marcado por uma dupla mirada o gosto pelas oposiccedilotildees binaacuterias e dicotomias que se desdobra e ramifica Jean Starobinski no prefaacutecio aos romances e contos de Calvino destaca que desde os primeiros textos do escritor italiano eacute possiacutevel perceber sua predileccedilatildeo pelas antiacuteteses pelas oposiccedilotildees binaacuterias e pelas dicotomias mas que essas duplas opostas nunca se apresentam de maneira simeacutetrica ou equilibrada nas oposiccedilotildees calvinianas prevalecem a tensatildeo a dissimetria e a instabilidade situaccedilotildees de potencialidade criadora (STAROBINSKI 2003)

Num primeiro movimento opotildeem-se a ciecircncia-paixatildeo do pai e a ciecircncia-ordem da matildee Para o pai a ciecircncia era um universo dominante pautado por uma relaccedilatildeo de afeto excessiva que ocupava toda a vida uacutenico espaccedilo no qual o homem poderia existir

O caminho de meu pai tambeacutem levava longe Do mundo ele via somente as plantas e o que tivesse relaccedilatildeo com plantas e de cada planta dizia em voz alta o nome no latim absurdo dos botacircnicos e o lugar de procedecircncia ndash sua paixatildeo fora a vida toda conhecer e aclimatar plantas exoacuteticas ndash e o nome vulgar se houvesse em espanhol ou inglecircs ou em nosso dialeto e nesse nomear as plantas punha a paixatildeo de estar dilapidando um universo sem fim de se aventurar a cada vez ateacute as fronteiras extremas de uma genealogia vegetal e em cada ramo ou folha ou nervura abrir para si um caminho como que fluvial na linfa na rede que cobre a verde terra [] porque esta era sua paixatildeo ndash a primeira sim a primeira ou seja a uacuteltima a forma extrema de sua paixatildeo uacutenica conhecer cultivar caccedilar insistir persistir de todas as maneiras nesse bosque selvagem no universo natildeo antropomorfo diante do qual (e somente aiacute) o homem era homem [] (CALVINO 2000b p 19-20)

Para a matildee se a ciecircncia era tambeacutem o uacutenico universo possiacutevel assumia uma forma diferente aquela do rigor e da ordem na qual natildeo havia espaccedilo para qualquer transbordamento

Que a vida tambeacutem fosse desperdiacutecio isso minha matildee natildeo admitia ndash ou seja que tambeacutem fosse paixatildeo Por isso nunca saiacutea do jardim etiquetado planta a planta da casa forrada de buganviacutelias do escritoacuterio com o microscoacutepio debaixo da redoma de vidro e os herbaacuterios Sem incertezas ordeira transformava as paixotildees em deveres e deles vivia (CALVINO 2000b p 26)

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Num segundo momento a contraposiccedilatildeo se estabelece entre a ciecircncia dos pais e a literatura do filho entre a integraccedilatildeo com a natureza dos primeiros e a ligaccedilatildeo com o humano do segundo mas aqui jaacute ressalta um desequiliacutebrio uma dissimetria um movimento que ao mesmo tempo em que afasta aproxima ndash a ciecircncia que instaura a diferenccedila com os pais vai marcar sua proacutepria produccedilatildeo e a paixatildeo que distancia pais e filhos pelos objetos de desejo aproxima-os pelo modo de olhar

Vocecircs hatildeo de compreender quanto nossos caminhos divergiam o de meu pai e o meu Mas e eu Afinal que caminho eu buscava senatildeo o mesmo de meu pai cavado na densidatildeo de outra estranheza no supramundo (ou inferno) humano O que buscava com o olhar pelos aacutetrios mal iluminados da noite (a sombra de uma mulher agraves vezes desaparecia ali) senatildeo a porta entreaberta a tela do cinema a ser atravessada a paacutegina a ser virada que introduz num mundo em que todas as palavras e figuras pudessem se tornar reais presentes experiecircncia minha natildeo mais o eco de um eco de um eco (CALVINO 2000b p 21)

Mas o que movia meu pai a cada manhatilde pelo caminho de San Giovanni acima ndash e a mim abaixo pelo meu caminho ndash mais que o dever de proprietaacuterio laborioso ou o desprendimento de inovador de meacutetodos agriacutecolas ndash e o que movia a mim mais que as definiccedilotildees daqueles deveres que aos poucos iria me impor ndash era paixatildeo feroz dor de existir ndash o que mais podia nos impelir ele a subir pragais e bosques eu a me entranhar num labirinto de muros e papeacuteis escritos ndash confronto desesperado com o que resta fora de noacutes desperdiacutecio de si em oposiccedilatildeo ao desperdiacutecio geral do mundo (CALVINO 2000b p 26)

Essa ficccedilatildeo familiar se amalgama em Calvino na paixatildeo pela literatura na vida que eacute atravessada pela palavra escrita pela narrativa na conexatildeo com o mundo que se estabelece por meio dela

E eu Eu acreditava ter outros pensamentos O que era a natureza Ervas plantas lugares verdes animais Eu vivia no meio daquilo e queria estar em outro lugar Diante da natureza permanecia indiferente reservado por vezes hostil E natildeo sabia que eu tambeacutem estava buscando uma relaccedilatildeo talvez mais afortunada que a de meu pai uma relaccedilatildeo que a literatura acabaria me dando devolvendo significado a tudo e de repente cada coisa se tornaria verdadeira e tangiacutevel e possuiacutevel e perfeita cada coisa daquele mundo jaacute perdido (CALVINO 2000b p 37)

Tais citaccedilotildees ainda que um tanto extensas satildeo importantes para que identifiquemos nesses ldquoexerciacutecios de memoacuteriardquo postumamente publicados a construccedilatildeo de um mito biograacutefico estreitamente vinculado agrave literatura e agrave visatildeo de mundo que lhe eacute antagocircnica a ciecircncia traccedilos que se apresentam de modo indeleacutevel na obra calviniana O proacuteprio Calvino destaca que esse ambiente estreitamente vinculado agrave pesquisa e ao desenvolvimento cientiacutefico ndash e como veremos agrave frente tambeacutem agrave poliacutetica ndash teve grande influecircncia em sua formaccedilatildeo dando-se a partir dele sua aproximaccedilatildeo com as narrativas com a literatura

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depois da leitura aos 12 ou 13 anos de O livro da selva de Rudyard Kipling obra na qual afirma ter tido ldquoo primeiro verdadeiro prazer da leiturardquo (CALVINO apud BARANELLI e FERRERO 2003 p 43 Traduccedilatildeo do autor) com o cinema sobre o qual chega a afirmar ldquoo cinema era o mundo para mimrdquo (CALVINO 2000c p 41)

Eacute interessante observar que alguns dos motivos que Calvino destaca para seu interesse absoluto pelo cinema em meados da deacutecada de 1930 podem ser pensados como indiacutecios de seu viacutenculo com a narrativa e com questotildees que se coloca sobre a relaccedilatildeo entre o ldquomundo es-critordquo e o ldquomundo natildeo escritordquo ele se sentia encantado com ldquoo contraste entre duas dimensotildees temporais diferentes dentro e fora do filmerdquo ldquoa descontinuidade entre os dois mundosrdquo ldquoa suspensatildeo do tempordquo no periacuteodo de duraccedilatildeo da peliacutecula (CALVINO 2000c p 44)

O cinema apresentava-se entatildeo ndash e conforme seus exerciacutecios de rememoraccedilatildeo o cinema ao qual se refere era o cinema americano da eacutepoca ndash como uma das maneiras de identificar e colocar em praacutetica o que Starobinski aponta como um problema que Calvino se propocircs insistentemente ao longo de toda sua obra o olhar distanciado o intervir sobre o mundo a partir do vislumbre de sua forma o qual soacute eacute possiacutevel atraveacutes de ldquolo sguardo dallrsquoaltordquo do olhar de cima Diante da tela do cinema o mundo apresentava-se como um Outro quase absolutamente distinto (apesar de alguns pontos de contato com o mundo real) do qual era possiacutevel perceber os traccedilos pela distacircncia do qual era possiacutevel apreender a inexauriacutevel superfiacutecie ainda que pelo vieacutes da suspensatildeo

Mas entatildeo o que tinha sido o cinema nesse contexto para mim Diria a distacircncia Ele respondia a uma necessidade de distacircncia de dilataccedilatildeo dos limites do real de ver se abrindo ao meu redor dimensotildees incomensuraacuteveis abstratas como entidades geomeacutetricas mas tambeacutem concretas absolutamente repletas de caras e situaccedilotildees e ambientes que com o mundo da experiecircncia direta estabeleciam uma rede proacutepria (e abstrata) de relaccedilotildees (CALVINO 2000c p 56)

O fascismo no entanto interrompe essa proximidade com o cinema atraveacutes da proibiccedilatildeo do cinema americano na Itaacutelia pouco antes da eclosatildeo da Segunda Guerra Mundial e facilita a passagem do escritor italiano para ldquoo mundo do papel escrito que em algumas de suas margens eacute fronteiriccedilo ao mundo do celuloiderdquo (CALVINO 2000c p 56) A passagem ao papel eacute marcada pelo desejo de buscar novamente ldquoo prazer da leitura provado com Kiplingrdquo (CALVINO apud BARANELLI e FERRERO 2003 p 43 Traduccedilatildeo do autor) Mas suas primeiras manifestaccedilotildees criativas realizam-se atraveacutes do desenho ndash em especial do humor presente nas charges e caricaturas publicadas em 1940 no perioacutedico milanecircs Bertoldo ndash e de algumas peccedilas teatrais das quais persistem em especial os tiacutetulos registrados em sua correspondecircncia

O princiacutepio da deacutecada de 1940 eacute marcado pelo iniacutecio dos estudos universitaacuterios e da produccedilatildeo literaacuteria assim como pelo envolvimento com o PCI o Partido Comunista Italiano no cenaacuterio de guerra que se desenrola Calvino inicia os estudos universitaacuterios na Faculdade de Agronomia de Turim em 1941 periacuteodo em que produziraacute uma seacuterie de pequenos contos interrompidos por seu envolvimento com os partigiani e pela clandestinidade na resistecircncia

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ao fascismo Apoacutes a Libertaccedilatildeo reafirma sua adesatildeo ao PCI e inicia um viacutenculo sem volta com o universo literaacuterio quando se mudou para Turim ao teacutermino da guerra partigiana matriculou-se na Faculdade de Letras e passou a frequentar a editora Einaudi que ao longo desse periacuteodo funcionava como bem mais que uma editora ndash era o local de confluecircncia da intelectualidade de esquerda espaccedilo no qual filoacutesofos historiadores escritores e literatos travavam contiacutenuas discussotildees acerca das tendecircncias poliacuteticas e ideoloacutegicas de entatildeo Pouco depois comeccedilou a prestar serviccedilos para a proacutepria editora trabalhando em vaacuterios setores ateacute 1983 ano em que dela se desvinculou redigiu notas publicitaacuterias dirigiu entre 1952 e 1959 o Notiziario Einaudi um perioacutedico mensal (posteriormente trimestral) de informaccedilatildeo cultural fundou e dirigiu ao lado de Elio Vittorini a revista de literatura Il Menabograve dirigiu coleccedilotildees de literatura diversas e como editor escreveu cerca de cinco mil cartas em que discute e analisa trabalhos de inuacutemeros autores

O envolvimento com a literatura desde os anos 1940 mostrou-se profundo e irreversiacutevel Calvino escreveu inuacutemeros ensaios e textos ficcionais participou de grupos literaacuterios e culturais produziu peccedilas de teatro e musicais Tornou-se um escritor que se interrogava continuamente tanto sobre seu proacuteprio trabalho e sobre as estrateacutegias e escolhas a ele inerentes quanto sobre as possibilidades de existecircncia do ser humano no mundo Explorando a accedilatildeo poliacutetica impliacutecita na narrativa no trabalho da escritura e na proacutepria literatura fez do campo literaacuterio um hiacutebrido no qual confluem o homem praacutetico e o homem contemplativo a ciecircncia e a ficccedilatildeo o poeacutetico e o poliacutetico propriamente dito

Se no caso de Borges sempre foi expliacutecito o desejo de natildeo fazer da literatura campo de disputas poliacuteticas (ainda que isso natildeo o tenha impedido de manifestar com clareza suas posturas) a relaccedilatildeo de Italo Calvino com a poliacutetica estrita mostrou-se mais complexa em especial no princiacutepio de sua produccedilatildeo ficcional No iniacutecio da deacutecada de 1940 ele se envolveu diretamente com o movimento de resistecircncia ao fascismo que avanccedilava sobre a Itaacutelia unindo-se agrave Brigada Garibaldi e militando ativamente na guerra partigiana Apesar da breve duraccedilatildeo cronoloacutegica esse envolvimento teve grande intensidade e foi determinante em sua formaccedilatildeo humana e poliacutetica refletindo-se em sua obra a Resistecircncia Italiana eacute o tema de seu primeiro livro A trilha dos ninhos de aranha (CALVINO 2004) publicado em 1947 e de diversos contos do mesmo periacuteodo

Nos primeiros anos poacutes-resistecircncia eacute assim principalmente por meio de uma narrativa de temaacutetica poliacutetica que o autor estabelece sua atuaccedilatildeo neste campo inclusive colaborando em diversos jornais e perioacutedicos comunistas No entanto seu envolvimento com a poliacutetica tornou-se mais conflituoso a partir dos desdobramentos da conjuntura italiana e essa tensatildeo acabou resultando em seu desvinculamento em 1957 do Partido Comunista Nesse sentido eacute esclarecedora sua resposta em entrevista concedida em 1956 agrave questatildeo ldquoAcredita que os literatos devem participar da vida poliacutetica Como Qual sua tendecircncia poliacuteticardquo

Acredito que quem tem de participar da poliacutetica satildeo os homens E os literatos na medida em que satildeo homens Creio que a consciecircncia ciacutevica e moral deva ter influecircncia primeiro sobre o homem e depois tambeacutem

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sobre o escritor Eacute um caminho longo mas natildeo haacute outro E acredito que o escritor tem de manter em aberto um discurso que em suas implicaccedilotildees natildeo pode deixar de ser tambeacutem poliacutetico [] Da poliacutetica e da literatura participo de maneiras diferentes conforme minhas atitudes mas ambas me interessam como um mesmo discurso sobre o gecircnero humano (CALVINO 2006 p 26-27)

Nesse contexto o envolvimento com o projeto de pesquisa para compilaccedilatildeo e ldquotraduccedilatildeordquo de narrativas tradicionais da Itaacutelia para publicaccedilatildeo do livro Faacutebulas italianas inicia-se em 1954 e aprofunda a relaccedilatildeo do autor com um universo fantaacutestico e fabular que jaacute se fazia perceptiacutevel em sua obra ndash deixando traccedilos inconfundiacuteveis em textos como os que compotildeem a trilogia Os nossos antepassados O visconde partido ao meio O baratildeo nas aacutervores e O cavaleiro inexistente reunidos em volume uacutenico em 1960ndash aleacutem de tornar mais veementes reflexotildees sobre a oralidade e a originalidade das narrativas sobre a ldquoinsaciabilidade de versotildees e de variantesrdquo que marca a ldquoinfinita variedade e infinita repeticcedilatildeordquo que caracterizam essas histoacuterias (CALVINO 1995 p 13) Aleacutem disso ali tambeacutem germinavam as questotildees sobre a liacutengua italiana e seu viacutenculo particular com a escrita sobre um mundo viacutevido e em perpeacutetuo movimento que se cristalizava textualmente temas que habitaratildeo diversas de suas produccedilotildees ensaiacutesticas dentre as quais destacamos ldquoItaliano uma liacutengua entre as outrasrdquo (CALVINO 2009b) e ldquoMondo scritto e mondo non scrittordquo (CALVINO 2002a)

Eacute tambeacutem no uacuteltimo livro da trilogia O cavaleiro inexistente publicado em 1959 que Calvino comeccedila a explicitar a reflexatildeo sobre a literatura como tema narrativo de suas ficccedilotildees num movimento que desborda as fronteiras entre o ensaio e a criaccedilatildeo ali se delineia um pensamento sobre a linguagem sobre a escrita e sobre a posiccedilatildeo desta relativamente ao que ele viria a chamar de ldquomundo natildeo escritordquo O livro narra a histoacuteria de Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez um nome pomposo para algueacutem que natildeo existe Agilulfo natildeo passa de uma armadura branca brilhante e vazia com a qual Calvino aprofunda a discussatildeo filosoacutefica sobre o homem contemporacircneo que perpassa a trilogia encerrando o ciclo com esse personagem denominado inexistente desde o tiacutetulo da obra e que ao fim da narrativa perde ateacute mesmo sua condiccedilatildeo de impossibilidade

No escopo desse movimento de pensar e produzir literatura a mudanccedila para Paris na deacutecada de 1960 (mais especificamente em 1967) possibilita sua aproximaccedilatildeo com o Oulipo (Ouvroir de Litteacuterature Potentielle) e leva sua obra a novas ramificaccedilotildees e desdobramentos Do contato com o grupo matemaacutetico-literaacuterio que propunha a produccedilatildeo textual a partir do uso de contraintes de restriccedilotildees autoimpostas outros elementos integram-se agrave literatura de Calvino como o jogo matemaacutetico e a combinatoacuteria claramente observaacuteveis nas narrativas de O castelo dos destinos cruzados de 1969 As cidades invisiacuteveis de 1972 e Se um viajante numa noite de inverno de 1979

Como articular o pensamento de uma ideia com a narrativa dessa mesma ideia ou para usar a expressatildeo de Jean Starobinski como ldquopensarerdquo e ldquoraccontarerdquo num mesmo

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movimento determinada questatildeo seja ela filosoacutefica cientiacutefica ou literaacuteria Essa me parece a grande questatildeo que se dissemina ao longo de toda a obra de Calvino e que nela se institui a partir da dupla mirada agrave qual me referi anteriormente que mescla a literatura e a ciecircncia originada de sua ldquoficccedilatildeo familiarrdquo e essencial na construccedilatildeo de seu ldquomito biograacuteficordquo Eacute na busca de respostas a essa indagaccedilatildeo que a obra calviniana inventa caminhos ndash que se bifurcam que se entrecruzam que se entrelaccedilam ndash que permitem a instauraccedilatildeo de uma diferenccedila no seio da tradiccedilatildeo percursos que colocam em tracircnsito o centro e a margem que deslocam os saberes e se abrem para um pensamento pautado pela complexidade tal qual abordada por Edgar Morin (2002 2007) Eacute justamente esse percurso que permite que o Calvino ldquoteoacutericordquo seja apontado por Starobinski como um ldquoteoacuterico ambidestrordquo que se apresenta tanto nas ldquolezionirdquo quanto nos ldquoraccontirdquo diluindo assim as fronteiras que cerceiam o espaccedilo da produccedilatildeo do conhecimento e o desvinculam das formas narrativas e ficcionais

[] a postura cientiacutefica e aquela poeacutetica coincidem ambas satildeo posturas de pesquisa e ao mesmo tempo de planejamento de descoberta e de invenccedilatildeo A postura poliacutetica tambeacutem (em sentido lato isto eacute do fazer histoacuteria cultural e civil) O caminho para tornar una a cultura de nosso tempo de outro modo tatildeo divergente em seus discursos especiacuteficos estaacute justamente nessa postura comum (CALVINO 2009a p 103)

A diversidade de viacutenculos com a palavra que se pode perceber tanto em Borges quanto em Calvino ndash que exercem de maneira relacional vaacuterias outras atividades narrativas aleacutem da produccedilatildeo ficcional como a atuaccedilatildeo na aacuterea editorial a traduccedilatildeo a escrita ensaiacutestica a produccedilatildeo jornaliacutestica as conferecircncias aulas e entrevistas a reflexatildeo sobre ciecircncia natureza e filosofia a participaccedilatildeo em grupos artiacutestico-literaacuterios ndash e que tem sua origem e seu lastro nesse ldquomito biograacuteficordquo que procurei aqui brevemente indicar contribui para a transformaccedilatildeo de suas obras em uma rede e indica a biblioteca como possiacutevel metaacutefora para sua concepccedilatildeo de literatura uma biblioteca tecida pelo desejo do uso da narrativa como motor do pensamento

Nesse sentido aproximar suas estrateacutegias narrativas de construccedilatildeo biograacutefica agravequelas de sua produccedilatildeo ficcional nos possibilita concluir que em ambos a biblioteca pode ser tomada natildeo apenas como objeto e temaacutetica mas tambeacutem como um meacutetodo de composiccedilatildeo literaacuteria eles produzem suas vidas e suas obras como se compusessem uma ldquocoleccedilatildeo de livrosrdquo na qual os mais diversos textos se confrontam no estabelecimento de um novo texto que os releia e os rediga afinal ldquoOs livros satildeo feitos para serem muitos um livro uacutenico tem sentido apenas quando se junta a outros livros quando segue e precede outros livrosrdquo (CALVINO 2002b p 127 traduccedilatildeo nossa) ldquoUm livro eacute uma coisa entre as coisas um volume perdido entre os volumes que povoam o indiferente universo ateacute que ele encontra seu leitorrdquo (BORGES 1999a p 519)Em Borges e Calvino escritores jaacute aproximados por muitos pesquisadores em razatildeo de suas obras literaacuterias acredito que encontramos outros pontos de contato a ficccedilatildeo

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familiar o mito biograacutefico e a biblioteca os quais podem ser tomados como locus de construccedilatildeo e subversatildeo dos saberes como espaccedilo de memoacuteria e de esquecimento da tradiccedilatildeo e do conhecimento como figuras sobre as quais se assenta certa ldquoidentidaderdquo entre os escritores

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BORGES J L A cegueira In BORGES J L Borges oral amp Sete noites Trad Heloisa Jahn Satildeo Paulo Companhia das Letras 2011 p 197-214

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CALVINO I O caminho de San Giovanni Trad Roberta Barni Satildeo Paulo Companhia das Letras 2000a

CALVINO I O caminho de San Giovanni In CALVINO I O caminho de San Giovanni Trad Roberta Barni Satildeo Paulo Companhia das Letras 2000b p 15-38

CALVINO I Autobiografia de um espectador In CALVINO I O caminho de San Giovanni Trad Roberta Barni Satildeo Paulo Companhia das Letras 2000c p 39-64

CALVINO I A memoacuteria do mundo In CALVINO I Um general na biblioteca Traduccedilatildeo de Rosa Freire DrsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001 p 127-133

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CALVINO I A trilha dos ninhos de aranha Trad Roberta Barni Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004

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Recebido em 23102017

Aceito em 20122017

Maria Elisa Rodrigues Moreira

Doutora em Estudos Literaacuterios ndash Literatura Comparada mestre em Estudos Literaacuterios ndash Teoria da Literatura e bacharel em Comunicaccedilatildeo Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Atualmente eacute professora visitante junto ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Autora dos livros Saber narrativo proposta para leitura de Italo Calvino (Tradiccedilatildeo Planalto 2007) e Coleccedilatildeo arquivo biblioteca a literatura de Borges e Calvino (Clock-T 2016) elisarmoreiragmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Sobre o amor e a incapacidade de amarOn Love and the Incapacity to Love

Sobre el amor y la incapacidad de amar

Dionei MathiasUniversidade Federal de Santa Maria

Resumo

Em muitos textos de Elfriede Jelinek a ausecircncia de amor representa uma caracteriacutestica central na interaccedilatildeo das personagens Isso vale especialmente para o seu romance Die Klavierspielerin (A Pianista) cujo enredo trata do triacircngulo formado por matildee filha e um jovem aluno que negociam signos de amor em busca de uma narrativa de identidade em consonacircncia com seus valores e projetos pessoais Para refletir sobre essa questatildeo o presente artigo estaacute dividido em duas partes Primeiramente discutem-se algumas ideias sobre o conceito de amor a fim de estabelecer uma base teoacuterica ndash sem ambicionar uma definiccedilatildeo exaustiva ndash que permita analisar esse discurso no texto ficcional Na segunda parte a anaacutelise foca no texto literaacuterio com o objetivo de compreender a dinacircmica do amor materno (2) do corpo ao mesmo tempo rebelde e domesticado (3) a busca por espaccedilos iacutentimos natildeo controlados (4) e por fim a imaginaccedilatildeo do futuro como elemento do amor (5) Palavras-Chave Elfriede Jelinek A pianista amor

Abstract

In many texts written by Elfriede Jelinek the absence of love represents a key element in the way characters interact This applies especially to the novel Die Klavierspielerin (The Piano Player) whose plot is about the triangle formed by mother daughter and a young student who trade in signs of love in search of an identity narrative in line with their values and personal projects In order to discuss this question this article is divided into two parts Firstly there is a discussion about some ideas on the concept of love ndash without any ambition for an exhaustive definition ndash trying to establish a theoretical basis which might allow its examination in the fictional text In the second part the focus is on the plot aiming to understand (2) the dynamics of maternal love (3) the insubordinate and docile body (4) the search for unsurveilled private spaces and finally (5) the imagination of future as an element of love Keywords Elfriede Jelinek The Piano Player Love

Resumen

En muchos textos de Elfriede Jelinek la ausencia del amor representa una caracteriacutestica fundamental en la interaccioacuten de los personajes Eso puede decirse especialmente de la novela Die Klavierspielerin (La pianista) cuya trama presenta un triaacutengulo entre madre hija y un joven estudiante que negocian signos de amor en buacutesqueda de una narracioacuten de identidad en

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consonancia con sus valores y sus proyectos personales Para discutir esa cuestioacuten este artiacuteculo estaacute dividido en dos partes Primeramente se introducen algunas ideas sobre el concepto de amor con la finalidad de establecer una base teoacuterica que permita analizar ese concepto en el texto ficcional En la segunda parte el anaacutelisis pasaraacute al texto literario con el objetivo de comprender la dinaacutemica del amor materno (2) del cuerpo a la vez rebelde y domesticado (3) la buacutesqueda por espacios iacutentimos no controlados (4) y por fin la imaginacioacuten del futuro como elemento del amor (5) Palabras clave Elfriede Jelinek La pianista amor

1 Introduccedilatildeo ou tentativa sobre o amor

A tentativa de definir o amor representa um exerciacutecio que perpassa a histoacuteria Talvez nenhuma outra emoccedilatildeo tenha inspirado tantos pensadores a encontrar imagens que pudessem captar e abarcar toda a dimensatildeo desse excerto de realidade que transforma a visatildeo de mundo do sujeito O escopo e o conteuacutedo daquilo que constitui o amor se tornam semanticamente nebulosos pois cada indiviacuteduo colora sua interpretaccedilatildeo de realidade com impressotildees pessoais que por sua vez estatildeo inseridas em moldes culturais especiacuteficos determinando igualmente a formaccedilatildeo de sentido (HANSEN 2003 MUumlLLER-FUNK 2006) Para tentar dar conta desse fenocircmeno eacute possiacutevel aproximar-se de sua descriccedilatildeo interpretando-o como sistema (LUHMANN 1994) como resultado de um processo de civilizaccedilatildeo (ELIAS 2007) como conjunto socialmente reconhecido de discursos ou normas (DEMMERLING LANDWEER 2007 p 128) Nesses modelos a diversidade de sensaccedilotildees fiacutesicas e aniacutemicas no primeiro momento desordenada acaba sendo condensada pelo sujeito transformando o emaranhado caoacutetico numa interpretaccedilatildeo concatenada a fim de que possa ser narrada e transmitida para outros membros do espaccedilo social A narraccedilatildeo do amor equivale a uma organizaccedilatildeo discursiva portanto tambeacutem estaacute perpassada de ideologias e de elementos de cunho histoacuterico

A cultura ou melhor os discursos que regem as normas de comportamento accedilatildeo e construccedilatildeo de identidade definem em grande parte as formas de conceber e realizar a experiecircncia do amor A concepccedilatildeo e expressatildeo do desejo a encenaccedilatildeo iacutentima e social da paixatildeo ou mesmo a configuraccedilatildeo do amor filial dentro do microcosmo familiar satildeo praacuteticas historicamente condicionadas pelos paracircmetros acordados num determinado espaccedilo social e grupo cultural Talvez os instintos eroacuteticos e de proteccedilatildeo apresentem muitas semelhanccedilas se comparados a suas concretizaccedilotildees primordiais poreacutem o modo como eles adentram a simbolizaccedilatildeo da consciecircncia e como satildeo exteriorizados na praacutetica da interaccedilatildeo social se transformam conforme o horizonte de ideias que marca as fronteiras do pensaacutevel na respectiva eacutepoca O discurso ficcional se apropria ndash consciente ou inconscientemente ndash desse ideaacuterio e o metamorfoseia em experiecircncia esteacutetica reproduzindo os modelos vigentes ou questionando sua propriedade para as imposiccedilotildees da existecircncia

Os limiares do conscientemente pensaacutevel se impotildeem especialmente no que concerne agrave concepccedilatildeo do amor como fenocircmeno inscrito no corpo ou seja amor como desejo ou necessidade de satisfaccedilatildeo eroacutetica Para a Psicanaacutelise toda forma de amor nada mais eacute

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que reflexo de pulsotildees libidinais (DEMMERLING LANDWEER 2007 p 128) daiacute toda accedilatildeo e interaccedilatildeo do sujeito no fundo terem por objetivo satisfazer as demandas do corpo Vivendo em sociedade poreacutem e imerso numa rede de signos culturais o sujeito eacute impelido a narrar essas necessidades de forma que sejam admissiacuteveis no espaccedilo social em que circula Disso resultam diversas tessituras culturais que prescrevem em forma de rituais as inuacutemeras modalidades de aproximaccedilatildeo do corpo desejado de exposiccedilatildeo do desejo e de concretizaccedilatildeo das acircnsias da libido Toda forma de intercacircmbio fiacutesico ndash entre pais e filhos entre amigos ou irmatildeos entre amantes hetero ou homossexuais ndash encontra-se em grande parte preacute-definida pelas malhas discursivas da cultura As possibilidades de satisfaccedilatildeo eroacutetica natildeo satildeo as mesmas Existem diferenccedilas oacutebvias em sociedades factualmente poacutes-modernas ou arraigadas em modelos tradicionais no interior ou em grandes centros metropolitanos no mundo assim chamado ocidental ou islacircmico A libido natildeo deixa de ser menos imperativa a despeito do ambiente restritivo Cabe ao sujeito encontrar meios de satisfazer suas demandas fiacutesicas dentro dos limites do pensaacutevel e factiacutevel

Ao mais tardar com Foucault (1978 1999 2005) sabe-se que toda sociedade manteacutem dispositivos para vigiar e disciplinar os corpos inseridos nos diferentes campos de poder Esses instrumentos de vigilacircncia e disciplina em suas funccedilotildees diversas e onipresentes valem especialmente para as concepccedilotildees e exteriorizaccedilotildees da libido Dependendo do grau de poder que o sujeito deteacutem ou ao qual visa ele tem de controlar seus iacutempetos corporais a fim de encenar e impor sua autoridade ou superioridade perante outros membros Dessa dinacircmica provecircm diferentes modos de interagir com o proacuteprio corpo Indiviacuteduos menos ambiciosos no tocante agrave ascensatildeo da hierarquia social ou menos riacutegidos quanto a preceitos impostos por interpretaccedilotildees religiosas conservadoras acabam tendo maior espaccedilo para imaginar suas necessidades e idear estrateacutegias de se esquivarem do controle social

Ao lado das imposiccedilotildees do corpo a maacutescara do amor tambeacutem encobre outros elementos essenciais para o desenvolvimento existencial a saber o anseio pela construccedilatildeo de uma identidade pessoal Essa narraccedilatildeo do si passa incondicionalmente pelo entrelaccedilamento com outros textos identitaacuterios porquanto necessita a atenccedilatildeo do outro a fim de encenar-se e legitimar sua autoimagem (DEMMERLING LANDWEER 2007 p 139) Na interaccedilatildeo com o outro surgem os signos que compotildeem a tessitura da identidade pois no processo de negociaccedilatildeo a imagem projetada adquire concretude quando outros membros da interaccedilatildeo validam seu teor de sentido (LEVITA 2002 MEAD 1992 ZIMA 2000) Isso se revela especialmente importante nos relacionamentos mais iacutentimos uma vez que representam os palcos de interaccedilatildeo primordiais e de maior constacircncia Assim o relacionamento entre pais e filhos ou entre casais encerra uma relevacircncia maior justamente porque as pessoas envolvidas e sobretudo seus juiacutezos sobre os signos postos em circulaccedilatildeo tecircm uma repercussatildeo mais intensa e prolongada para a autoimagem do indiviacuteduo Nesse espaccedilo iacutentimo o amor se transforma numa praacutetica de negociaccedilatildeo de signos na qual se possibilita ao sujeito experimentar diferentes modalidades de autorrepresentaccedilatildeo para que desse modo encontre a narraccedilatildeo que mais lhe conveacutem A aceitaccedilatildeo surge aqui como elemento

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indispensaacutevel para a formaccedilatildeo de uma ambiecircncia confiaacutevel em que todos possam encenar sua proacutepria alteridade (TENHOUTEN 2009 p 52)

Por meio da aceitaccedilatildeo do outro incluindo suas maacuteculas e admissatildeo de maacuteculas proacuteprias cria-se uma narraccedilatildeo solidaacuteria e interessada Nela os membros que a compotildeem ensaiam em suas interaccedilotildees diaacuterias caminhos de sintonia pelos quais buscam ir ao encontro do horizonte de necessidades que o comportamento alheio revela Entre intuiccedilatildeo e expressatildeo delineiam-se espaccedilos comuns nos quais se inscrevem paracircmetros que dispotildeem a cada qual a possibilidade de medrar conforme seus anseios aniacutemicos Dessa forma o amor se transforma num pacto microssocial cujo ecircxito depende em grande parte da profundidade dos conhecimentos que cada membro deteacutem sobre os projetos de identidade que afloram agrave superfiacutecie das interaccedilotildees

O ecircxito nessa empresa depende em grande parte do relacionamento que o indiviacuteduo tem consigo mesmo (FROMM 1984 HUumlLSHOFF 2006) Antes de imergir na narraccedilatildeo alheia ele tem de obter clareza sobre sua proacutepria posiccedilatildeo no espaccedilo social a fim de mobilizar um conjunto de instrumentos que lhe permitam emergir de sua realidade idiossincraacutetica para de fato tomar conhecimentos das tessituras que o circundam Somente com uma autoestima bem desenvolvida e profundamente arraigada na concepccedilatildeo de mundo e interpretaccedilatildeo de realidade ele logra adentrar numa narraccedilatildeo de amor sem capitular perante a percepccedilatildeo inevitaacutevel e inexoraacutevel de fraquezas e imperfeiccedilotildees Logo o amor representa tambeacutem um confronto de realidades ao aproximar os universos aniacutemicos dos membros que participam desse jogo

Com um entrelaccedilamento cada vez mais intricado ndash logo com uma aproximaccedilatildeo de horizontes maior ndash desponta simultaneamente uma necessidade mais concreta de proximidade e de construccedilatildeo de uma narraccedilatildeo duradoura que condense as linhas dispersas e transforme emoccedilotildees incipientes em fenocircmenos articulados e materializados na consciecircncia do sujeito Nesse estaacutegio manifestam-se os primeiros projetos de identidade que preveem o outro como parte irrenunciaacutevel do futuro A orientaccedilatildeo teleoloacutegica por conseguinte estaacute estreitamente atrelada agrave presenccedila de pessoas significativas na materializaccedilatildeo da vida iacutentima em especial para casais e famiacutelias em seus mais diversos formatos (USSEL 1979 SWAAN 1989 HANTEL-QUITMANN 2002) A narraccedilatildeo do amor portanto encerra um espraiamento no espaccedilo iacutentimo e na linha do tempo assimilando com seu desenvolvimento elementos narrativos cada vez mais complexos e intricados o que forccedila os membros desse enredo a buscarem ininterruptamente pela atualizaccedilatildeo dos sentidos que compotildeem suas emoccedilotildees

Com base nas diferentes teorias abordadas queremos definir o amor para o presente artigo como narrativa organizada por uma instacircncia pessoal em que as forccedilas libidinosas do corpo subordinadas agraves regras da cultura e agraves malhas de poder se manifestam e satildeo enfeixadas numa narraccedilatildeo O amor portanto natildeo resulta isoladamente da libido do poder da cultura ou da identidade pessoal O amor assim parece resulta da forma como esses diferentes fatores satildeo organizados numa histoacuteria pensaacutevel e narraacutevel com base na negociaccedilatildeo interessada de sentidos entre dois partidos A narraccedilatildeo do amor surge a

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partir de um pacto de dedicaccedilatildeo exclusiva (entre pais e filhos num casal) que possibilita a inclusatildeo da outra parte na narraccedilatildeo de identidade do sujeito (encenaccedilatildeo social com proteccedilatildeo e pertencimento) e que permite satisfazer as necessidades do corpo (obtenccedilatildeo de atenccedilatildeo dedicaccedilatildeo emocional ou prazer eroacutetico) Isso significa que o amor como entendido aqui implica exclusividade corporeidade narratibilidade e a garantia de que o sujeito narrador possa imaginar a presenccedila da pessoa amada num espaccedilo de tempo prolongado (em princiacutepio por toda a vida)

Em muitos romances de Elfriede Jelinek as personagens procuram por narraccedilotildees de amor Estas contudo raramente tecircm ecircxito uma vez que os participantes envolvidos na negociaccedilatildeo dessa narrativa acabam transformando o outro em objeto produzindo narrativas unilaterais que natildeo preveem as necessidades e os sentidos da outra parte A tese que queremos desenvolver com base no romance Die Klavierspielerin (A Pianista) (2011) dessa autora eacute que as personagens alimentam um desejo intenso por amor mas se mostram incapazes de desenvolvecirc-lo Para isso o foco de anaacutelise recairaacute sobre a dinacircmica do amor materno (2) o corpo ao mesmo tempo rebelde e domesticado (3) a busca por espaccedilos iacutentimos natildeo controlados (4) e por fim a imaginaccedilatildeo do futuro como elemento do amor (5)

2 O amor materno

Os relacionamentos que compotildeem a vida iacutentima da professora de piano no romance A pianista satildeo no miacutenimo problemaacuteticos Para Hoffmann (2003 p 112) concretizaccedilotildees de carecircncia no sentido de falta e insuficiecircncia Dividida entre as imposiccedilotildees maternas e as incursotildees de seu aluno Klemmer ela natildeo suporta a dor incisiva implicada na incerteza sobre sua situaccedilatildeo Ao evitar que um processo de reflexatildeo se materialize nos limites de sua consciecircncia ela proiacutebe uma anaacutelise criacutetica de sua narraccedilatildeo pessoal impedindo com isso uma revisatildeo que possibilite novos percursos identitaacuterios A despeito desses medos no entanto Erika busca por alternativas concebiacuteveis dentro das limitaccedilotildees que a caracterizam A primeira limitaccedilatildeo e talvez a mais incisiva eacute tambeacutem seu principal relacionamento ateacute a chegada de Klemmer Trata-se dos sentimentos que alimenta pela matildee O conjunto de accedilotildees e interaccedilotildees entre as duas mulheres certamente pode ser interpretado como uma tentativa de instaurar uma narraccedilatildeo de amor Interessante neste contexto eacute a imagem que se concretiza a partir do comportamento que ambas trazem agrave tona

O amor da senhora Kohut estaacute longe de ser desinteressado e incondicional disposto a renunciar agrave proacutepria felicidade em prol dos anseios filiais Embora ela tente encenar-se por meio de inquisiccedilotildees preocupadas como matildee aflita e engajada um olhar aleacutem da superfiacutecie de seu comportamento rapidamente revela que essa encenaccedilatildeo natildeo passa de um instrumento discursivo do qual lanccedila matildeo para melhor alcanccedilar seus objetivos Por traacutes da fachada socialmente imposta e estrategicamente melhor manejaacutevel ela encobre uma interpretaccedilatildeo de realidade imersa numa visatildeo autoritaacuteria e intransigente de mundo A partir dessa concepccedilatildeo a matildee representa o princiacutepio instaurador de leis e

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realidades agraves quais a filha deve submeter-se candidamente O dispecircndio de atenccedilatildeo e carinho logo de interesse pela existecircncia de Erika depende em grande parte do grau de submissatildeo por parte desta Qualquer indiacutecio de questionamento ou subversatildeo das leis estabelecidas com rigor e detalhe pela senhora Kohut para todos os movimentos no espaccedilo social implica medidas repressivas para garantir o bom funcionamento de seu estado e a harmonia caseira

A necessidade dessa supervisatildeo significa que sua narraccedilatildeo de amor carece de um elemento central e indispensaacutevel que eacute a confianccedila Sem esse voto de credibilidade nenhum dos membros envolvidos pode de fato encontrar ou criar espaccedilos nos quais tenha a oportunidade de ensaiar projetos de identidade que condigam com seus anseios iacutentimos Para garantir a seguranccedila de seu espaccedilo particular poreacutem a matildee estaacute convencida da necessidade de vigiar os movimentos da filha Por conseguinte grande parte de suas accedilotildees tem por fito idear novas estrateacutegias que potencializem a eficiecircncia de sua malha de controle e ao mesmo tempo criar uma seacuterie de medidas para disciplinar a filha de modo que esta conforme seus atos aos desejos maternos

Dentre as estrateacutegias que emprega com predileccedilatildeo figura o papel da viacutetima Por meio dessa encenaccedilatildeo a matildee logra permanecer no espaccedilo de Erika em forma de peso na consciecircncia forccedilando a filha de maneira sutil a experimentar remorsos de diversos graus de incisatildeo Com o desconforto fiacutesico causado por essa sensaccedilatildeo a filha acaba retornando para os muros maternos sem juntar a energia necessaacuteria para romper o cerco discursivo Alegando fraqueza ou perigos iminentes de morte a matildee obteacutem as informaccedilotildees de que necessita para estar presente mesmo permanecendo em casa Para isso telefona para Erika durante suas aulas ou ateacute mesmo quando esta frequenta um cafeacute pretextando preocupaccedilatildeo e desejo de saber onde estaacute para que num caso extremo possa contataacute-la imediatamente Ateacute certo ponto a encenaccedilatildeo materna se ateacutem agraves prescriccedilotildees sociais no tocante ao comportamento esperado pois sua afliccedilatildeo agrave primeira vista estaacute arraigada num iacutempeto de preocupaccedilatildeo logo num movimento desprendido de si e afincado na filha Essa preocupaccedilatildeo desmesurada facilmente poderia ser confundida com um amor altruiacutesta e incondicional materno que por vezes oblitera os limites aos quais a prole tem direito sem dar-se conta de seu comportamento inadequado

Essa encenaccedilatildeo no entanto nada mais eacute que um instrumento facilmente manejaacutevel do qual a senhora Kohut lanccedila matildeo a fim de garantir o apoio social para seu comportamento e a fim de melhor manipular sua filha Sua preocupaccedilatildeo lhe permite vigiar Erika sem conflitos de legitimaccedilatildeo uma vez que sua imiscuiccedilatildeo jaacute estaacute prevista em seu papel social A vigilacircncia se revela de tal modo eficaz que a matildee logra disciplinar o corpo da professora de piano induzindo-o a obedecer sem antes refletir sobre os acontecimentos que o levam a tal reaccedilatildeo Esse condicionamento do corpo tem lugar quando Erika por exemplo em sua infacircncia executa ininterruptamente os exerciacutecios de piano tendo o fustigo materno como companheiro inseparaacutevel ou tambeacutem mais tarde ao final do romance quando desesperada e existencialmente aniquilada retorna tal qual um autocircmato aos braccedilos protetores que a esperam em casa Para obter ecircxito nesse processo de domesticaccedilatildeo do

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corpo alheio a matildee natildeo hesita em por em risco a felicidade da filha Admoestando-a sobre a necessidade de comprar a casa proacutepria instilando-lhe a ambiccedilatildeo por sucesso profissional e posiccedilatildeo social e advertindo-a sem treacutegua sobre as desvantagens de um companheiro masculino a matildee lhe inscreve nas entranhas o que tem de fazer e o que deve deixar de maneira que a carne reage automaticamente sem dar atenccedilatildeo aos proacuteprios anseios Estes obviamente natildeo deixam de manifestar-se poreacutem sua materializaccedilatildeo acaba sendo reprimida pelo policiamento eacutetico em forma de remorsos que surgem tatildeo logo a matildee desempenhe o papel da viacutetima

3 Matildee filha e o corpo rebelde domesticado

Dentro desse regime fechado de vigilacircncia maacutexima figuram igualmente momentos de insurreiccedilatildeo nos quais Erika tenta desvencilhar-se do aparato autoritaacuterio que a monitora dia e noite Com tal fim ela lanccedila matildeo de uma violecircncia desesperada e sobretudo grotesca para conquistar pequenas ilhas de liberdade Seu ecircxito contudo eacute demasiado limitado e no fundo desesperanccedilado

A filha volta e estaacute quase chorando de tatildeo nervosa Xinga a matildee de malvada e canalha e ao mesmo tempo espera que logo a matildee se reconcilie com ela Com um beijo afetuoso A matildee pragueja que a matildeo de Erika caia por ter batido na matildee e lhe ter arrancado os cabelos Erika soluccedila cada vez mais alto porque agora sente pena da mamatildee que se sacrifica ateacute os ossos e os cabelos De tudo o que Erika faz contra a matildee ela logo se arrepende porque ama sua matildee que jaacute a conhece desde a mais tenra infacircncia Por fim como era de se esperar Erika quer reconciliar-se e chora amargamente E a matildee se retrata com prazer natildeo pode estar verdadeiramente brava com a filha Agora vou eacute passar um cafeacute para noacutes e vamos tomaacute-lo juntas Durante o lanche Erika tem ainda mais pena da matildee e os uacuteltimos resquiacutecios de sua raiva se dissolvem no bolo (JELINEK 2011 p 15)

Percebe-se a oscilaccedilatildeo que caracteriza o comportamento de Erika Por um lado revela um alto potencial agressivo que natildeo titubeia em materializar seu oacutedio por outro lado o mecanismo de retenccedilatildeo automaticamente se impotildee despertando seu arrependimento O mesmo braccedilo que se levanta para esbofetear perde seu arco de forccedila tatildeo logo o maquinaacuterio da contriccedilatildeo envia seus sinais Nesse embate a imagem da viacutetima materna se sobrepotildee agrave ideia de tirania de modo que o amor que senhora Kohut aparentemente tem pela filha acaba sobrepondo-se no conflito discursivo que tem lugar no inconsciente de Erika

Esse conflito que em seu princiacutepio conteacutem um potencial muito grande de extensatildeo da complexidade e de alargamento daquilo que se entende por amor perde sua energia com a inabilidade de ambas as mulheres de suportarem a dor implicada numa discussatildeo atrelada agrave necessidade de construir espaccedilos iacutentimos pessoais livres de controle e vigilacircncia Essa dor poreacutem lhes figura excessivamente incisiva para amealharem a energia demandada para transporem os muros que escudam o prazer da autonomia

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Em seu lugar optam por um silenciamento do conflito assim Erika derrama laacutegrimas conforme seu amestramento e a matildee transige uma vez que sua autoridade jaacute natildeo se encontra mais ameaccedilada O lanche final com bolo e cafeacute nada mais representa que um precircmio distribuiacutedo por parte da instacircncia materna pela submissatildeo filial ou seja o corpo aprende nesse exerciacutecio de condicionamento que com sua anuecircncia seraacute recompensado com docinhos Desse quadro grotesco eacute possiacutevel depreender uma tentativa infantilizada de harmonizaccedilatildeo A harmonia contudo permanece superficial pois os conflitos que motivaram o embate continuam sem soluccedilatildeo e permanecem silenciados Para a narraccedilatildeo do amor isso implica uma base bastante fraacutegil pois se utiliza de imagens e tessituras narrativas cujo teor rapidamente revela sua vacuidade

Se a matildee vigia e disciplina todos os movimentos da filha e natildeo lhe permite desenvolver ensaios de autonomia consequentemente tem de haver alguma motivaccedilatildeo que a impede de alcanccedilar composiccedilotildees mais complexas de amor em sua proacutepria vida pessoal Contudo nem a senhora Kohut nem Erika se permitem uma reflexatildeo sobre o comportamento arbitraacuterio autoritaacuterio e sufocante da matildee O que se encena satildeo os emaranhados reflexivos que a matildee compulsivamente delineia para esquivar-se dos medos que ameaccedilam sua estabilidade

Hoje agrave noite na frente da televisatildeo ela natildeo vai dizer nenhuma palavra a Erika E se for falar algo ela vai explicar a Erika que tudo o que uma matildee faz eacute motivado pelo amor Vai confessar seu amor por Erika e desculpar com esse amor qualquer erro que possa ter cometido E nesse contexto vai citar Deus e outros prepostos que tambeacutem tinham o amor em alta consideraccedilatildeo poreacutem nunca o amor egoiacutesta que estaacute germinando nessa jovem Como castigo a matildee natildeo vai desperdiccedilar uma palavra sequer nem a favor nem contra o filme (JELINEK 2011 p 238)

Seu foco se concentra quase exclusivamente em como garantir a obediecircncia de Erika Nisso projeta toda uma argumentaccedilatildeo acerca do amor aduzindo autoridades que corroborem sua linha de pensamento e forcem Erika a subordinar-se ao jugo da tradiccedilatildeo Esse comportamento tiacutepico e factualmente reiterativo revela no entanto que evita pensar o amor independentemente da presenccedila de sua filha Por conseguinte toda sua construccedilatildeo de identidade estaacute arraigada numa narraccedilatildeo que demanda a atenccedilatildeo completa e ininterrupta de Erika Tatildeo logo esta tenta se desvencilhar do cerco a senhora Kohut pressente um vazio que lhe indica a estrutura instaacutevel de sua narraccedilatildeo pessoal Como ela natildeo suporta a dor causada pelo pensamento sobre a possibilidade de um amor pessoal eroacutetico proacuteprio ela tem de erradicar tambeacutem de Erika quaisquer indiacutecios que pudessem levaacute-la a esse desejo Assim natildeo lhe resta outra coisa senatildeo satanizar o homem que deseja conquistar a atenccedilatildeo da filha Este tendo ecircxito a matildee teria que idear um projeto de narraccedilatildeo identitaacuteria que abdicasse da filha o que a ela parece impossiacutevel Ou seja o amor narrado pela matildee em forma de afliccedilatildeo cuidado e atenccedilatildeo na verdade representa uma carecircncia identitaacuteria irresoluta um conflito de autoaceitaccedilatildeo diante dos obstaacuteculos impostos pela existecircncia Entre

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dor e autoengano a senhora Kohut projeta na filha uma realidade para ela sofriacutevel mas negadora e indiferente agraves necessidades da filha

Essa negaccedilatildeo se revela de forma conspiacutecua numa cena grotesca de pseudossexualidade O encontro entre matildee e filha num primeiro momento aparenta ter o formato de uma brincadeira levada um tanto temeraacuteria por passar dos limites Contudo a matildee natildeo tarda em intuir que os gestos da filha tecircm um teor de sentido muito mais abrangente do que assumira inicialmente A despeito dessas intuiccedilotildees ela procura por interpretaccedilotildees alternativas que condigam com sua visatildeo e ordenaccedilatildeo de mundo para evitar um confronto com o indesejado levantando a hipoacutetese de loucura ou embriaguez As incursotildees incessantes da filha a forccedilam natildeo somente a defender-se fisicamente mas tambeacutem e com mais premecircncia a conceber a sexualidade inerente aos gestos Paradoxalmente ao mesmo tempo que o comportamento de Erika a assusta os gestos da filha lhe sugerem que esta deseja sua atenccedilatildeo e seu amor ldquoDe repente se sente desejada Uma das condiccedilotildees fundamentais para o amor eacute sentir-se valorizado porque um outro nos solicita e nos daacute precedecircnciardquo (JELINEK 2011 p 264) No tumulto da aproximaccedilatildeo eroacutetica a matildee se alegra ao constatar que sua filha natildeo dissipa suas emoccedilotildees com homens cujos planos natildeo confluem com seus projetos Esse movimento se revela especialmente importante pois sinaliza o quatildeo imersa a senhora Kohut se encontra em seu mundo autoritaacuterio e egoiacutesta um mundo no qual ela reina e sua filha obedece

A solidez dessa construccedilatildeo de realidade se fragmenta quando Erika passa a utilizar-se do corpo materno como objeto de prazer eroacutetico desconstruindo dessa forma toda a complexa distribuiccedilatildeo de signos ldquoE a carne velha eacute a que mais se cansa Essa carne natildeo eacute considerada como matildee mas simplesmente como carne Erika arranca pedaccedilos da carne da matildee com os dentes Ela beija e beija Beija a matildee como uma selvagemrdquo (JELINEK 2011 p 265) Nessa interaccedilatildeo Erika desconsidera os papeacuteis sociais e as possiacuteveis sanccedilotildees quando de sua inobservacircncia permitindo que seu corpo e suas necessidades tenham prioridade absoluta a despeito dos tabus violados e tatildeo profundamente inscritos em sua interpretaccedilatildeo de realidade Ela busca de forma desesperada e desenfreada a proximidade que lhe fora negada ateacute entatildeo pelas diversas estrateacutegias de vigilacircncia e disciplina que a matildee lhe impusera Para silenciar o corpo e obliterar as palavras irreversivelmente instauradoras de realidade a matildee denomina o inominaacutevel uma ldquonojeirardquo ignominiosa O desprezo e a vergonha implicados nesse movimento pretendem salvar a situaccedilatildeo eliminando da interpretaccedilatildeo de realidade elementos sofisticadamente reprimidos A cena culmina com a visatildeo do inexistente

Por um instante a filha pode observar os pelos pubianos da matildee jaacute ralos e finos que fecham por baixo a gorda barriga materna E isso lhe ofereceu uma vista incomum Ateacute entatildeo a matildee sempre mantinha esses pelos pubianos sob fecho rigoroso Enquanto lutava a filha olhou de propoacutesito para a camisola da matildee para finalmente poder enxergar esses pelos dos quais ela sabia o tempo todo eles tecircm que estar ali Infelizmente a iluminaccedilatildeo era muito deficiente Erika descobriu deliberadamente sua matildee para poder ver tudo tudo mesmo A matildee tentou se defender disso

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Em vatildeo Erika eacute mais forte do que sua matildee jaacute meio exaurida se pensarmos em termos estritamente corporais A filha joga na cara da matildee o que acabou de ver E a matildee permanece em silecircncio para fazer o visto natildeo visto (JELINEK 2011 p 265)

Essa cena revela que existe um tema na casa da famiacutelia Kohut jamais abordado e hermeticamente trancafiado nos calabouccedilos do inconsciente a saber o corpo e suas demandas eroacuteticas Dispositivos indumentaacuterios disciplina vigilacircncia e por fim silecircncio representam diferentes estrateacutegias para calar as entranhas Estas acabam tumultuando a narraccedilatildeo de realidade minuciosamente tecida pela senhora Kohut Elas tambeacutem descentralizam a narraccedilatildeo de amor porquanto demonstram de forma mais incisiva e terminante que as palavras autoritaacuterias da matildee que a negociaccedilatildeo de signos iacutentimos estaacute restrita ao conscientemente sofriacutevel excluindo todo tipo de maacuteculas que natildeo se subordinam agrave imagem desejada Com a identidade fragmentada e a autoaceitaccedilatildeo bastante limitada prefere-se negar a presenccedila do corpo comprometendo desse modo a complexidade da narraccedilatildeo do amor Esta no tocante ao relacionamento entre a matildee e a filha somente existe como instrumento de imposiccedilatildeo ou como maquinaacuterio de repressatildeo impedindo uma tessitura mais complexa que desbrave caminhos desconhecidos

4 Desbravamento de espaccedilos iacutentimos natildeo controlados

Diante desse cenaacuterio no qual a matildee se impotildee ininterruptamente Erika tem de travar uma luta acirrada para conquistar pequenos espaccedilos de intimidade onde possa desenvolver seus anseios e criar redes narrativas libertas dos dispositivos maternos Trata-se de espaccedilos nos quais possa inserir-se sem ser constantemente vigiada e disciplinada tendo a oportunidade de atentar para seus desejos e aceitar suas maacuteculas Com tal espaccedilo em princiacutepio ela delinearia algumas coordenadas essenciais dentre as quais a narraccedilatildeo de amor pudesse medrar Importante salientar que a matildee procura obliterar todos os signos de desejo da mente forccediladamente pura de sua filha dispondo um crivo de percepccedilatildeo que mal permite que esta tenha condiccedilotildees de idear imagens que natildeo tenham passado pelo maquinaacuterio de censura instituiacutedo pela senhora Kohut A presenccedila do corpo alheio no entanto desperta em Erika movimentos que natildeo consegue ordenar tampouco reprimir Assim a presenccedila de seu primo num episoacutedio de sua adolescecircncia lhe indica a existecircncia de experiecircncias que vatildeo aleacutem do condicionamento musical ferrenho arbitrado pela matildee Ao contraacuterio dela o rapaz dispotildee de um corpo fincado na natureza sem embaraccedilos que impeccedilam seu desenvolvimento Quando este inicia uma brincadeira que envolve um contato corporal bastante intenso Erika praticamente fica paralisada perante o desconhecido que se desvela diante de seus olhos Sem desejar e ao mesmo tempo incapaz de reprimir seus impulsos ela toca o sexo de seu primo boquiaberta e arrebatada como se fosse um presente de natal ldquoFoi contra a vontade dela O garotinho natildeo sabe que desencadeou uma avalanche de pedras em sua prima Ela natildeo para de olhar [hellip] Esse instante deve permanecer por favor Eacute tatildeo lindordquo (JELINEK 2011 p 53) As palavras de

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Fausto agraves quais aludem as uacuteltimas frases caracterizam ironicamente a intensidade dessa experiecircncia que transforma a consciecircncia de Erika dado que se apercebe provavelmente pela primeira vez das necessidades de seu corpo Natildeo haacute duacutevidas a utilizaccedilatildeo dessa citaccedilatildeo como em muitas outras situaccedilotildees eacute tambeacutem irocircnica mas natildeo somente Existe um desejo na realidade dessa personagem que ela tragicamente natildeo consegue articular ou natildeo tem o espaccedilo para deixar crescer A ironia no niacutevel estrutural e o ridiacuteculo no niacutevel do conteuacutedo natildeo negam a humanidade e a legitimidade do desejo O que se encena aqui eacute um corpo que natildeo sabe se articular e com essa insuficiecircncia se vecirc arremessado inexoravelmente agrave infelicidade concretizada justamente na ausecircncia de amor Nessa e em muitas das citaccedilotildees subsequentes haacute algo de ciacutenico e traacutegico O cinismo proveacutem de uma voz narrativa que eacute tudo menos imparcial A tragicidade se constitui diante das implicaccedilotildees que essas informaccedilotildees tecircm para a concretizaccedilatildeo existencial da personagem

O conflito pessoal desencadeado por essa experiecircncia reside na impossibilidade de harmonizar o condicionamento materno com as premecircncias corporais que se materializam de forma cada vez mais intensa Desse modo Erika se encontra impossibilitada de criar um espaccedilo no qual natildeo tenha que romper com a matildee nem que impeccedila a presenccedila de uma figura masculina para dar iniacutecio a sua narraccedilatildeo pessoal de amor O resultado desse embate eacute a procura por ambientes nos quais possa neutralizar os movimentos contraditoacuterios que a assolam Logo Erika natildeo tarda em localizar casas eroacuteticas ou melhor sex shops situados nos subuacuterbios de Viena e redutos de elementos embrutecidos para dar reacutedeas soltas agrave sua necessidade de ao menos ver o corpo alheio sem mecanismos de controle Nessa praacutetica de voyeurismo num lugar conspicuamente distante do espaccedilo social no qual constroacutei sua identidade Erika pode confortavelmente manter seu papel social de mulher culta e superior sem precisar assimilar as maacuteculas que poderiam minorar sua superfiacutecie de encenaccedilatildeo O voyeurismo parece representar um acordo num primeiro momento aceitaacutevel e animicamente suportaacutevel harmonizando ateacute certo grau desejos pessoais e ditames maternos No entanto o prazer que ela depreende dessa praacutetica rapidamente se vecirc acossado pelos riscos em que incorre quando abandona as coordenadas socialmente encenaacuteveis Assim ao inveacutes de encontrar um espaccedilo neutralizado ela se defronta com um novo conflito comportando movimentos excludentes mas igualmente prementes para sua realizaccedilatildeo pessoal

Acresce que surgem elementos que fogem de seu domiacutenio Muito embora condicionada a manter tudo sob seu rigoroso controle Erika se apercebe que nesses exerciacutecios de desbravamento do desconhecido despontam sentidos que emergem de seu interior sem passar pela triagem disciplinadora Em analogia a seu primeiro encontro com seu primo a visatildeo do outro nesse espaccedilo obscuro a impele a aproximar-se do corpo alheio desencadeando processos de autoconhecimento

Erika olha atentamente Natildeo para aprender Nada nela se mexe Mas ainda ela eacute obrigada a olhar Para seu proacuteprio prazer Cada vez que ela quer ir embora alguma coisa que vem laacute de cima faz sua cabeccedila bem penteada voltar-se energicamente para a janelinha e ela eacute obrigada a continuar

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olhando O torno sobre o qual a linda mulher estaacute sentada gira em ciacuterculos Erika natildeo tem culpa Simplesmente eacute obrigada a olhar Ele eacute um tabu para si mesma Natildeo pode tocar-se (JELINEK 2011 p 66)

Por um lado seu proacuteprio corpo se rebela natildeo obedecendo agrave ordem social de abandonar o lugar e voltar ao seio daquilo que considera respeitaacutevel o que aponta certa sintonia Por outro lado esse mesmo corpo lhe figura como um objeto tamanhamente estranho que envolto por uma aura do intocaacutevel e impenetraacutevel parece natildeo lhe pertencer Ao evitar o toque Erika perde a oportunidade de conhecer a si mesma e tecer novas filigranas de sentidos esquivando-se por conseguinte de defrontar a complexidade que reside em seu corpo O maquinaacuterio da disciplina estaacute inscrito de tal forma em suas entranhas que natildeo logra romper a redoma que encobre seu corpo

Todo esse episoacutedio em torno do voyeurismo encerra uma seacuterie de implicaccedilotildees para sua narraccedilatildeo de amor Ao procurar um lugar social e pessoalmente distante para satisfazer seus anseios ela evita integrar os signos produzidos nesse contexto em sua narraccedilatildeo de identidade Ou seja haacute tessituras identitaacuterias que satildeo importantes para seu corpo poreacutem impassiacuteveis de serem integradas em sua representaccedilatildeo social A disciplina e a vigilacircncia continuam imperando de forma recocircndita pois suas visitas permanecem anocircnimas e realizadas agraves escondidas O prazer que experimenta na verdade eacute o prazer encenado pelo outro natildeo o seu porquanto o proacuteprio corpo continua intocado Com isso ela se esquiva tambeacutem de um movimento de proximidade no qual dois seres negociam seus signos aceitando maacuteculas e rupturas

O elemento central que impede o iniacutecio de uma narraccedilatildeo de amor reside na autoaceitaccedilatildeo Sem aceitar suas necessidades por motivos externos no mais das vezes socialmente estipulados pela voz autoritaacuteria da matildee Erika se encontra impedida de iniciar uma narraccedilatildeo que inclui a presenccedila do outro pois este automaticamente tem de confrontaacute-la com as contradiccedilotildees que caracterizam sua identidade A dor implicada na resoluccedilatildeo desses conflitos no entanto eacute tamanha que Erika prefere renunciar ao amor a obter clareza acerca dos paradoxos imbricados em seu comportamento

ldquoErika eacute um aparelho compacto em forma humanardquo (JELINEK 2011 p 62) Essa frase usada pela voz narrativa para caracterizar a professora de piano procede em vaacuterios sentidos Ela age como um autocircmato perante os desiacutegnios maternos e se comporta como se seu corpo natildeo tivesse vontades proacuteprias A despeito de frequentar casas eroacuteticas deleitar-se com filmes pornograacuteficos ou perambular pelo famoso parque Prater a altas horas da noite agrave procura de casais copulando seu prazer na verdade permanece sempre superficial e pertencente a outro Dessa forma sua satisfaccedilatildeo resulta quase sempre de uma experiecircncia raacutepida e contingente evitando uma condensaccedilatildeo narrativa com projeccedilotildees para o futuro Tanto a narraccedilatildeo do amor como a da identidade necessitam do futuro como linha temporal imaginaacuteria para desenvolver tessituras duradouras Erika no entanto permanece fincada no agora esquivando-se de projetar ou ao menos imaginar um relacionamento que natildeo tenha o caraacuteter de algo provisoacuterio necessaacuterio mas natildeo propriamente desejado

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5 O amor como aurora do futuro

O fato de optar por relacionamentos contingentes em si natildeo parece ser tatildeo problemaacutetico quanto o fato de natildeo refletir sobre seu comportamento pois isso corrobora mais uma vez que seus atos satildeo frutos de imposiccedilotildees (corporais) natildeo de seu livre-arbiacutetrio Essa ausecircncia de reflexatildeo sobre suas accedilotildees e os sentimentos de culpa que a acompanham em suas incursotildees patenteiam o excesso de dor que se encobre por traacutes do silecircncio Essa mesma dor a forccedila a agir tal qual um autocircmato impossibilitando narraccedilotildees que vatildeo aleacutem das demarcaccedilotildees predispostas Assim quando Klemmer daacute iniacutecio a suas primeiras tentativas de aproximaccedilatildeo Erika reage com um profundo mal-estar

Erika sente-se cada vez mais repelida Ela gostaria que ele jaacute tivesse ido embora Ele que leve a matildeo dele consigo Fora Ele se tornou um terriacutevel desafio da vida pra ela Erika e ela soacute costuma aceitar os desafios da interpretaccedilatildeo fiel Por fim eles avistam a parada do bonde A cobertura de fibra de vidro iluminada com um banquinho embaixo eacute tranquilizadora [hellip] Erika estaacute aterrorizada Ela quer que essa aproximaccedilatildeo acabe de uma vez por todas e que esse supliacutecio termine O bonde estaacute chegando Logo ela vai conversar com a matildee sobre o que se passou quando Herr Klemmer jaacute estiver longe Primeiro ele tem quer ir embora Depois ele vai se tornar assunto da conversa Natildeo vai incomodar mais do que passar uma pena na pele (JELINEK 2011 p 94)

Esse mal-estar resulta em primeiro lugar dos signos com os quais Erika se vecirc confrontada e que na verdade deseja reprimir A presenccedila de um homem interessado nela como mulher no espaccedilo social no qual circula e em que encena sua identidade a forccedila a rever sua narraccedilatildeo pessoal1 O confronto por conseguinte requer a revisatildeo de determinadas tessituras especialmente no tocante ao corpo o que evitava em suas escapadelas anocircnimas O testemunho de outras pessoas a impede de negar os acontecimentos e suprimi-los de sua autorrepresentaccedilatildeo logo a instauraccedilatildeo de sentidos que irradiam desse encontro a desconcertam imensamente Contudo o que transforma o encontro num supliacutecio aterrorizando-a de modo a desejar o sumiccedilo imediato desse homem reside no conflito interior que a avassala Assim o desejo ndash inarticulado e impassiacutevel de materializaccedilatildeo perante o maquinaacuterio de vigilacircncia implantado pela matildee ndash de aventurar-se pelos meandros de uma narraccedilatildeo pessoal que permita a presenccedila de uma figura masculina se contrapotildee ao conforto e agrave harmonia meticulosamente estabelecidos

1 O problema seria bem mais simples se ambos Erika e Klemmer fossem duas carnes coisificadas agrave procura do equiliacutebrio libidinal numa troca capitalista e anti-humana de mercadorias ou bem mais simples numa animalizaccedilatildeo que exclui repercussotildees identitaacuterias O conflito reside justamente no desejo por amor que a personagem Erika indica em seu comportamento mas do qual natildeo consegue dar conta Inscrito nesse desejo encontra-se o anseio por um humanismo que na realidade se revela incapaz de conciliar as demandas do corpo e as necessidades da identidade humana mas que nem por isso deixa de existir

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pela matriarca O choque entre essas duas possibilidades de conformaccedilatildeo de realidade a imobiliza especialmente pela necessidade de uma tomada de decisatildeo

O segundo aspecto que produz seu mal-estar ndash atrelado tambeacutem ao processo de deliberaccedilatildeo ndash proveacutem de uma possiacutevel projeccedilatildeo de futuro Com as incursotildees de Klemmer o futuro se impotildee de forma demasiado intensa porquanto entreabre outras possibilidades de narraccedilatildeo pessoal Se no primeiro movimento o conflito residia na produccedilatildeo imediata de signos instaurados por novas visotildees do si no segundo esses signos surgem como possiacuteveis figuraccedilotildees do futuro O agora retrocede para permitir que o devir adentre o primeiro plano Com isso outros elementos se tornam relevantes especialmente no que concerne agrave narraccedilatildeo de amor e de identidade Os elementos circunstanciais como a parada do bonde ou a conversa posterior com a matildee enfatizam o conforto que experimenta com rituais estabelecidos e previsiacuteveis Isso vale igualmente para a imagem da interpretaccedilatildeo fiel das obras pois tambeacutem nesse exerciacutecio as coordenadas dos processos cognitivos estatildeo predispostas demandando do sujeito somente que se atenha aos caminhos inscritos na obra Ateacute mesmo seu desprezo inicial indicando seu desejo que Klemmer se distancie nada mais representa que um ritual bem delineado a fim de impedir que o desconhecido irrompa no agora A sensaccedilatildeo posterior ndash uma pena deslizando pela pele ndash representa a uacutenica espoacutertula destinada ao corpo de forma comedida e jaacute domesticada A imaginaccedilatildeo do futuro pois implica para Erika um desafio existencial que naquele momento ainda lhe figura como insuportaacutevel pois lhe exige que revise sua construccedilatildeo de identidade e que permita a presenccedila da alteridade para iniciar uma narraccedilatildeo de amor

Klemmer no entanto obstina-se em conquistar sua atenccedilatildeo e para tanto estaacute disposto a investir toda sua energia a fim de romper as barreiras construiacutedas pela professora de piano Enquanto Erika se mostra inquieta perante suas incursotildees desejando nada mais intensamente que retornar ao conforto ritualmente demarcado pelo som do aparelho televiso Klemmer procura desconcertaacute-la com o fito de aperfeiccediloar suas teacutecnicas de seduccedilatildeo Para Klemmer Erika se reduz a um objeto de estudo interessante mas definitivamente passageiro para Erika o aluno se transforma ndash a despeito de seu medo de admitir seus desejos para si mesma ndash numa possibilidade de futuro Logo o tempo volta a perpassar sua narraccedilatildeo indicando sua importacircncia para a concepccedilatildeo de identidade e amor O interesse do aluno desencadeia um processo no qual Erika comeccedila a imaginar linhas alternativas de futuro inserindo nelas narraccedilotildees que preveem a presenccedila de uma figura masculina e a afirmaccedilatildeo de seu corpo

A decadecircncia de Erika bate agrave porta com dedos aacutegeis Doenccedilas mal definidas perturbaccedilotildees vasculares nas pernas ataques de reumatismo inflamaccedilotildees nas juntas alastram-se nela (Doenccedilas como essas satildeo poucas vezes conhecidas pelas crianccedilas E Erika tambeacutem natildeo as conhecia ateacute entatildeo) Klemmer que parece um folheto de propaganda do saudaacutevel esporte da canoagem mede sua professora como se quisesse mandar embrulhaacute-la imediatamente e levaacute-la ou comecirc-la ali mesmo de peacute na loja Talvez esse seja o uacuteltimo a me desejar pensa Erika enfurecida e logo eu estarei morta com apenas trinta e cinco

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anos pensa com raiva Eacute melhor embarcar logo nessa porque depois que eu morrer natildeo vou ouvir cheirar nem sentir o gosto de mais nada (JELINEK 2011 p 132)

A passagem do tempo e suas marcas indeleacuteveis nos signos do corpo a impelem a percepccedilotildees que antes evitara Com a deterioraccedilatildeo do corpo suas chances de satisfazer suas necessidades fiacutesicas se tornam cada vez menores Diante desse cenaacuterio a visatildeo do jovem que a deseja lhe figura como uacuteltima chance natildeo somente quanto a uma possiacutevel narraccedilatildeo de amor mas sobretudo no que concerne a uma construccedilatildeo alternativa de futuro Essa imaginaccedilatildeo contudo tem seu iniacutecio com uma contraposiccedilatildeo muito intensa do capital fiacutesico que os dois provaacuteveis parceiros ostentam Erika por um lado apresenta um corpo em princiacutepio de ldquoruiacutenardquo enquanto Klemmer na flor da idade pode jactar-se de elasticidade e vigor Essa contraposiccedilatildeo estaacute igualmente inscrita no movimento de percepccedilatildeo Erika transcreve o desejo corporal em imagens socialmente inocentes ndash o lanche para o gaacuteudio dos sentidos natildeo deseja consumir entre as quatro paredes mas no cafeacute tamanha a fome ndash enquanto a percepccedilatildeo de Klemmer recai sobre o imediatismo juvenil que natildeo suporta a delonga tampouco considera o momento apoacutes a satisfaccedilatildeo Erika se encontra imersa numa interpretaccedilatildeo de realidade imbuiacuteda de esperanccedila logo natildeo se daacute conta da incongruecircncia que tal relacionamento traz consigo e da impossibilidade da construccedilatildeo de uma narrativa de amor que transcenda o momento

Embora Klemmer natildeo poupe esforccedilos para conquistar a confianccedila da professora suas tentativas de aproximaccedilatildeo natildeo passam de exerciacutecios com o objetivo de comprovar sua destreza e capacidade de manipulaccedilatildeo Assim a imperfeiccedilatildeo da mulher a torna desejaacutevel por franquear-lhe caminhos aos quais natildeo teria acesso se Erika ostentasse uma beleza que o desconcertasse A percepccedilatildeo detalhada do corpo da professora incluindo a identificaccedilatildeo de maacuteculas que minoram seu capital fiacutesico por conseguinte natildeo representa aceitaccedilatildeo do outro em sua integridade senatildeo um mecanismo que impotildee ao outro sua inferioridade Desse modo Klemmer lanccedila matildeo de um aparato por meio do qual pretende vigiar e sobretudo disciplinar Erika Sua juventude e beleza fiacutesica servem de instrumento para legitimar a distribuiccedilatildeo de poder ao mesmo tempo que forccedilam o corpo da professora a curvar-se diante da chance que o aluno supostamente representa Ciente dessa discrepacircncia e de possiacuteveis implicaccedilotildees favoraacuteveis para seus interesses Klemmer se engaja para alcanccedilar seus objetivos

O projeto de identidade de Klemmer natildeo prevecirc a presenccedila de Erika numa escala de tempo mais prolongada jaacute que a paixatildeo que reclama e encena natildeo passa da categoria de objeto Com a coisificaccedilatildeo de Erika a narraccedilatildeo de amor se transforma em narraccedilatildeo de jogo no qual a competitividade se patenteia como algo elementar Klemmer admitidamente natildeo tem predileccedilatildeo por derrotas logo o tempo de jogo que se dispocircs para vencer o adversaacuterio segue padrotildees racionalizados usando toda sorte de teacutecnicas para desconcertar Erika e fazecirc-la curvar-se a seus desejos Nisso ele natildeo divisa a pessoa com suas narraccedilotildees pessoais e projetos de futuro mas somente uma superfiacutecie de projeccedilatildeo cuja funcionalidade natildeo hesita em reduzir para servir-lhe de objeto de prazer e diversatildeo

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Ao contraacuterio dele Erika sim comeccedila a divagar imaginando possibilidades de futuro comum ldquoMecanicamente Erika executa a parte do piano bastante simples Seus pensamentos se dirigem para longe para uma viagem de estudos de piano em companhia de aluno Klemmer Soacute ela ele um quartinho de hotel e o amorrdquo (JELINEK 2011 p 183) Os sonhos em meio a sua encenaccedilatildeo social e profissional imediatamente se rompem perante as lembranccedilas impositivas da matildee mas representam exerciacutecios narrativos soacutelidos que desenvolvem alternativas Embora o tom irocircnico inerente agraves imagens um tanto piegas seja gritante ele encobre um projeto de identidade e de amor em forma de esperanccedila Mais tarde Erika ateacute mesmo se imagina como noiva numa cena em que harmoniza todos os antagonismos O grau de seriedade que Erika atribui a esses projetos se evidencia no momento em que pretende revelar a Klemmer seus verdadeiros desejos confiando cega e plenamente no amor de seu aluno

Renuncia agrave sua proacutepria vontade Essa vontade que ateacute aqui foi sempre propriedade da matildee agora eacute passada para Walter Klemmer como numa corrida de revezamento com bastatildeo Ela se inclina para traacutes e espera para ver o que seraacute decidido a seu respeito Abre matildeo de sua liberdade mas impotildee uma condiccedilatildeo Erika Kohut usa seu amor para que esse jovem se torne seu senhor Quanto mais poder ele tiver sobre ela mais ele se tornaraacute uma criatura agrave disposiccedilatildeo das vontades de Erika Klemmer seraacute escravizado por ela por exemplo se eles forem juntos a Ramsau para passear pelas montanhas E ao mesmo tempo ele vai imaginar que eacute o senhor de Erika Eacute para isso que Erika vai usar seu amor (JELINEK 2011 p 234)

Desejosa de transformar a imaginaccedilatildeo de seu futuro Erika adota um movimento duplo Por um lado ela aparentemente estaacute disposta a obliterar seu projeto de identidade para conformar-se plenamente aos desejos de Klemmer substituindo a matildee como fonte de signos e interpretaccedilotildees de realidade Por outro lado ela natildeo abdica de sua autonomia ao utilizar-se do discurso de submissatildeo como instrumento para alcanccedilar seus objetivos pessoais Esse comportamento contraditoacuterio acaba desconcertando Klemmer que natildeo espera outro tipo de accedilatildeo senatildeo sua completa submissatildeo Quando Erika lhe entrega a carta em que descreve com minuacutecias seus desejos eroacuteticos Klemmer se vecirc confrontado com uma mulher que estaacute longe de ser o objeto de seu prazer egoiacutesta e tirano Ao contraacuterio Erika mostra que possui uma visatildeo muito clara e concreta daquilo que deseja e necessita Com isso a encenaccedilatildeo de identidade machista autoritaacuteria e condescendente de Klemmer sofre uma fragmentaccedilatildeo que abala completamente seu autoentendimento Desconcertado o aluno natildeo sabe como reagir desacreditando da seriedade daquilo que a carta sugere Ele precisa imputar infantilidade aos atos da professora a fim de proteger sua identidade paternalista Seu grau de perturbaccedilatildeo fica ainda mais evidente quando mais tarde incapaz de uma ereccedilatildeo se encontra diante de Erika disposta a satisfazer seus desejos Para salvar sua imagem ele natildeo hesita em ferir a dignidade de Erika assegurando dessa forma sua superioridade pois natildeo logra

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encenar o ldquomacho desvairadordquo para o qual o corpo da mulher natildeo passa de um objeto de prazer a seu dispor

As cenas que seguem a revelaccedilatildeo dos desejos de Erika narram em grande parte o complexo processo de reestruturaccedilatildeo de identidade no qual Klemmer se vecirc inesperadamente arremessado Assim seu passeio pelo parque com a cena grotesca em que tenta assassinar os flamingos quando se masturba em frente agrave casa da famiacutelia Kohut ou por fim quando utilizando-se de violecircncia se apodera do corpo de Erika violentando-a para aparentemente satisfazer os desejos desta Klemmer na verdade estaacute tentando dar conta da realidade Essa realidade desfaz sua narraccedilatildeo de identidade paternalista e machista forccedilando-o a perceber a complexidade da mulher que o confronta com seus anseios Ele tem de reconstruir sua imagem com signos indesejados e rever sua narraccedilatildeo haja vista que esta se vecirc indubitavelmente questionada pelo comportamento de Erika Para Klemmer Erika se limita a uma superfiacutecie sem narraccedilotildees proacuteprias para a projeccedilatildeo de seus desejos portanto um instrumento de consumo raacutepido e temporalmente limitado

Para Erika o relacionamento com Klemmer tem conotaccedilotildees completamente diferentes Embora ela tambeacutem alimente desejos de instrumentalizaacute-lo para seus fins o grau de seriedade que aplica a essa empresa eacute muito maior Ao aproximar-se de Klemmer Erika precisa esquivar-se do maquinaacuterio disciplinador e vigilante da matildee e refazer seu projeto de identidade em diversos aspectos comeccedilando por sua encenaccedilatildeo social que incluiria a presenccedila do aluno em sua narraccedilatildeo passando por uma linha divisoacuteria no seu relacionamento com a matildee e terminando com uma nova percepccedilatildeo de seu corpo Erika enumera seus desejos e expotildee suas maacuteculas sem reservas evidenciando portanto que estaacute disposta a construir um espaccedilo iacutentimo proacuteprio Ao descobrir que a narraccedilatildeo de amor de Klemmer natildeo passa de um discurso sem conteuacutedo sua imaginaccedilatildeo de futuro desvanece desta vez de modo inexoraacutevel especialmente perante o dispecircndio de energia destinado a esse projeto Seu desejo de mataacute-lo a facadas representa uma tentativa de salvar desta vez sua dignidade pessoal e sua configuraccedilatildeo teleoloacutegica A decisatildeo de ferir-se a si mesma por fim revela seu desejo de aniquilar sua identidade uma vez que somente a obliteraccedilatildeo completa dos signos pode minorar a dor que experimenta diante da indiferenccedila que a circunda Embora doloroso o momento encerra para Erika uma grande chance de expansatildeo de sua complexidade aniacutemica se ela optasse por desvencilhar-se do cordatildeo sufocante que a prende a sua matildee e se estivesse disposta a suportar de forma independente todas as dimensotildees do sofrimento que a avassalam naquele momento Erika no entanto retorna para casa a fim de buscar o conforto materno conhecido A professora de piano desenvolve tessituras que poderiam materializar uma narraccedilatildeo de amor essa tessitura no entanto se revela demasiado fraacutegil para resultar em algo concreto duradouro e projetado com uma perspectiva de futuro Tragicamente sua narraccedilatildeo pessoal se caracteriza pela conspiacutecua ausecircncia de amor

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6 Consideraccedilotildees finais

A representaccedilatildeo do amor mostra como as figuras se apropriam de diferentes discursos para encenarem aquilo que consideram corresponder ao sentimento de amor Este serve de chave para uma seacuterie de representaccedilotildees que de fato estatildeo muito distantes do fenocircmeno do amor compreendido como narraccedilatildeo densa compartilhada por duas pessoas e projetado numa linha de futuro comum Os diversos conflitos internos que atribulam a estabilidade aniacutemica das personagens as impelem a procurar no invoacutelucro ldquoamorrdquo um caminho para dar conta do excesso ou ao menos representar aquilo que natildeo desejam processar conscientemente

A narraccedilatildeo do amor se revela parcial e tributaacuteria de outras motivaccedilotildees Assim a senhora Kohut matildee da professora de piano encena-se de acordo com expectativas sociais incorporando o papel da matildee preocupada aflita e protetora para desse modo apropriar-se e controlar a vida iacutentima de sua filha O amor se patenteia como instrumento de uma visatildeo autoritaacuteria que natildeo tolera questionamentos Para potencializar sua eficaacutecia ela natildeo hesita em utilizar-se da culpa como estrateacutegia discursiva para dominar e domesticar o corpo da filha Por traacutes dessa narraccedilatildeo impositiva encobre-se a incapacidade de construir uma identidade pessoal autocircnoma e independente da subserviecircncia filial Incapaz de processar conscientemente seus proacuteprios anseios carnais a matildee exige da filha que tambeacutem ela reprima todo indiacutecio do indiziacutevel O amor materno eacute uma narraccedilatildeo fracassada fruto da incapacidade de suportar a dor de suas proacuteprias insuficiecircncias

Socializada dessa forma Erika aprende bem cedo a negar as necessidades do corpo excluindo-o de sua autorrepresentaccedilatildeo o que para a criaccedilatildeo de um espaccedilo iacutentimo se revela como enorme barreira As premecircncias do corpo contudo natildeo se calam de forma que Erika se vecirc forccedilada a procurar espaccedilos em que possa libertar-se do controle materno para apaziguar as demandas corporais Esse espaccedilo ela o encontra em estabelecimentos eroacuteticos situados nos subuacuterbios de Viena Longe do acircmbito em que normalmente circula e se encena socialmente ela pode ver o corpo alheio deleitando-se com prazeres eroacuteticos sem a necessidade de integrar esses signos em sua identidade Suas escapadelas no entanto natildeo a ajudam a conhecer seu proacuteprio corpo nem a construir relacionamentos estaacuteveis Pelo contraacuterio as experiecircncias contingentes completamente desligadas de sua realidade social impedem uma projeccedilatildeo no futuro obstruindo a criaccedilatildeo de uma base soacutelida para o surgimento do amor

Com o interesse repentino de seu aluno Klemmer o amor comeccedila a concretizar-se em sua interpretaccedilatildeo de realidade Afeita a rituais a professora se intimida com a alteridade do amor que desponta inesperadamente A despeito de seus medos e suas insuficiecircncias Erika se mostra disposta a rever sua narraccedilatildeo e incluir o amor em suas redes significativas Para isso mostra e admite suas fraquezas dispondo-se a incluir o aluno em sua narraccedilatildeo de identidade desligar-se dos jugos maternos e aceitar a alteridade do corpo A falta de seriedade por parte de Klemmer contudo natildeo permite que o amor medre deixando para traacutes uma mulher ainda mais fragmentada

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Para Klemmer Erika se limita a um objeto de estudo com o qual pretende aprimorar suas habilidades amorosas A percepccedilatildeo das fraquezas da mulher que o defronta natildeo serve como base para construccedilatildeo de um projeto comum embasado na confianccedila mas como instrumento do qual se utiliza para impor seus caprichos Ao coisificaacute-la ele elide sua identidade e ignora a dignidade da professora Quando se apercebe que ela tem seus desejos proacuteprios e um grau de reflexatildeo e autodomiacutenio muito maior que o esperado Klemmer vecirc sua encenaccedilatildeo de identidade em risco uma vez que jaacute natildeo pode mais se representar como o macho possuidor Diante desse perigo ele a abandona natildeo sem antes mostrar que o amor que supostamente sentia natildeo passava de um instrumento para enredaacute-la Nos trecircs casos o amor constantemente invocado se revela com narraccedilatildeo insuficiente e demasiado vaacutecua

O que essas diferentes narrativas de amor tecircm em comum eacute um caraacuteter polifocircnico Nisso o amor em si como foi definido no iniacutecio deste artigo apresenta uma natureza plural em que vaacuterias fontes de sentido se manifestam formando um grupo de vozes a ser enfeixado de modo subjetivamente harmocircnico Ao mesmo tempo o amor que de fato se concretiza no romance analisado se revela polifocircnico pois natildeo haacute confluecircncia de interesses mas sim uma instrumentalizaccedilatildeo da narrativa do amor para outros fins Isto eacute a voz que se materializa por meio do discurso do amor na verdade persegue um objetivo diferente daquele articulado superficialmente O que resta satildeo personagens fracassadas e incapazes de amar

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Recebido em 22102017

Aceito em 17112017

Dionei Mathias

Doutor em Letras pela Universidade de Hamburgo (Alemanha) e pela Universidade Federal do Paranaacute (UFPR) Professor do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade Federal de Santa Maria ndash RS dioneimathiasgmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Marcel ProustHonoreacute de Balzac a Meacutelange de uma Narratividade

Marcel Proust Honoreacute de Balzac the Meacutelange of Narrativity

Marcel ProustHonoreacute de Balzac la Meacutelange de una Narratividad

Aguinaldo Joseacute GonccedilalvesUniversidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Goiaacutes

Resumo

Ao nos propormos a apresentar este artigo elegemos como tema as relaccedilotildees entre criacutetica e invenccedilatildeo A metodologia consiste em abordagem comparativa entre o pensamento criacutetico de Marcel Proust e o meacutetodo biograacutefico de Sainte-Beuve com implicaccedilotildees sobre procedimentos inventivos de Honoreacute de Balzac e Gustave Flaubert O objetivo eacute mostrar o modo como Marcel Proust constroacutei seu pensamento criacutetico e ao criticar os equiacutevocos de Sainte-Beuve acaba questionando o modo referencial de Balzac e a construccedilatildeo da literariedade em Flaubert O resultado da anaacutelise mostra a profundidade literaacuteria e ensaiacutestica de Proust contribuindo para a compreensatildeo da literatura e das artes Palavras-chave Balzac Proust Sainte-Beuve

Abstract

By proposing this present article we chose as its theme the relationship between criticism and invention The methodology consists of a comparative approach between Marcel Proustrsquos critical thinking and the Sainte-Beuversquos biographical method with implications on Honoreacute de Balzacrsquos and Gustave Flaubertrsquos inventive procedures The goal is to show how Marcel Proust builds his critical thinking and by criticizing Sainte-Beuversquos he ends up questioning Balzacrsquos referential mode and the construction of literariness in Flaubert The result shows the depth of Proustrsquos literature and essays contributing to the understanding of literature and artsKeywords Balzac Proust Sainte-Beuve

Resumen

El objeto de este artiacuteculo son las relaciones entre criacutetica e invencioacuten La metodologiacutea consiste en un enfoque comparativo entre el pensamiento criacutetico de Marcel Proust y el meacutetodo biograacutefico de Sainte-Beuve con implicaciones sobre procedimientos inventivos de Honoreacute de Balzac y Gustave Flaubert El objetivo es mostrar el modo como Proust construye su pensamiento

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criacutetico y al criticar las posiciones de Sainte-Beuve cuestiona el apego referencial de Balzac y la construccioacuten de la literariedad en Flaubert El resultado del anaacutelisis muestra la profundidad literaria y ensayiacutestica de Proust contribuyendo a la comprensioacuten de la literatura y de las artesPalabras clave Balzac Proust Sainte-Beuve

1 Introduccedilatildeo

Este artigo tem como proposiccedilatildeo acompanhar o movimento do pensamento do escritor francecircs Marcel Proust (1871-1922) no primeiro dececircnio do seacuteculo XX poucos anos de iniciar a escritura da grande obra Em Busca do Tempo Perdido (1908-1909 a 1922) Foi nesse periacuteodo que o escritor se investiu de coragem e competecircncia criacutetica para escrever a obra Contre Sainte-Beuve (1988) posicionando-se a respeito do meacutetodo de uma criacutetica biograacutefica Ao realizar esse trabalho Marcel Proust elenca grandes autores mdash Nerval Baudelaire Balzac e Flaubert mdash que teriam sido criticados e algumas vezes desdenhados ou diminuiacutedos por Sainte-Beuve (1804-1869) Mediante a incocircmoda posiccedilatildeo de Marcel Proust em razatildeo daquilo que considera equiacutevocos de Sainte-Beuve desenvolveu-se uma leitura por meio da qual se instaura um procedimento comparativo entre os dois de um lado a criacutetica sustentada na relaccedilatildeo entre o autor sua vida seus haacutebitos e sua obra por outro lado uma criacutetica em favor dos procedimentos intriacutensecos agrave obra Entretanto ao focalizar as questotildees levantadas por Sainte-Beuve sobre Honoreacute de Balzac e Gustave Flaubert Proust (1899 p 131-8) estabelece uma outra abordagem comparativa agora independente da criacutetica de Sainte-Beuve qual seja analisar os estilos dos dois autores deitando luz sobre aspectos decisivos no processo de realizaccedilatildeo literaacuteria Dentre eles a relaccedilatildeo entre literatura e realidade nuanccedilas de estilo que segundo Proust fazem a diferenccedila entre a literatura meramente formadora de quadros de eacutepoca e aquela que transcende a referencialidade exatamente por transformar tais quadros em signos plurais que determinam o discurso artiacutestico Por isso esperamos o maacuteximo de clareza na realizaccedilatildeo deste artigo mas natildeo a esperada clareza das questotildees discutidas Muitas vezes elas ficam num entrecruzar entre sombra e luz outras vezes nem isso temos quando a noite se fecha e precisamos esperar o dia seguinte para clarear as imagens Diante disso devemos ressaltar a relevacircncia do meacutetodo comparativo como forma de melhor elucidar o pensamento criacutetico que por consequecircncia mais nos aproxima da literatura

2 Proust precursor de Balzac e de Flaubert

Se os movimentos do pensamento criacutetico e inventivo da poesia do seacuteculo XIX criaram uma verdadeira saga de vivificaccedilatildeo do poeacutetico e das transmutaccedilotildees de linguagem atingindo o apogeu com o Simbolismo francecircs sobretudo com Baudelaire Mallarmeacute Rimbaud e Valeacutery (este atingindo seu auge jaacute no seacuteculo XX) menos intenso natildeo foi o movimento que se desenvolveu com a narrativa Entretanto com este gecircnero os obstaacuteculos se impuseram com maior intransigecircncia Como assinalamos na introduccedilatildeo a proposiccedilatildeo criacutetica deste artigo analisa o movimento que se instaura

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entre o pensamento criacutetico-inventivo do escritor francecircs Marcel Proust (1871-1922) seu estilo seus fundamentos e sua visatildeo sobre a obra do criador de A Comeacutedia Humana (18341) Honoreacute de Balzac (1799-1850)

O texto trilharaacute pelos negaceios do leitor Marcel Proust em relaccedilatildeo agrave sua criacutetica ao meacutetodo de Sainte-Beuve O delineamento deste artigo portanto caminha pelos meandros das narratividades de dois nomes da literatura mundial e em especial da literatura francesa Na verdade o que se daacute no ritmo ondulante de Marcel Proust eacute um exerciacutecio criacutetico instigante para o estudo das artes e da Literatura por meio seja de suas consideraccedilotildees mais transparentes sobre o (natildeo) estilo de Balzac seja pela forma com que Proust se vale dos ingredientes existentes na obra daquele autor para fermentar e edificar sua obra principal A obra literaacuteria de um autor considerado iacutentegro nas partes constitutivas de seu discurso denuncia uma espeacutecie de harmonia entre os ingredientes da execuccedilatildeo no conjunto de sua produccedilatildeo que depois de composta se torna um corpo fechado no qual reside certa incorporeidade impossiacutevel de ser desconstruiacuteda

A obra que temos na mira do pensamento eacute a do escritor francecircs Marcel Proust assim como os desdobramentos expressivos de sua poeacutetica A narrativa proustiana eacute composta de mais de trecircs mil paacuteginas que se sequenciam como um moto perpeacutetuo constituiacutedo de sete partes cada uma formando um volume com um tiacutetulo distinto mas que se amalgama num soacute corpo denominado Em Busca do Tempo Perdido Para Proust o ponto nevraacutelgico para a reflexatildeo sobre literatura sempre foi o estilo

Entretanto naquele momento histoacuterico o processo de discussatildeo de estilo ao pensar o processo inventivo de qualquer escritor passava obrigatoriamente pelas marcas criacuteticas de uma figura social e literaacuteria no mundo da criaccedilatildeo e no mundo da criacutetica que acabou se impondo com todas as forccedilas no pensamento intelectual de meados do seacuteculo XIX Trata-se de Charles Augustin Sainte-Beuve (1804-1869) Como escritor ele realizou uma obra muito extensa atuando em vaacuterios gecircneros como a poesia e a narrativa Entretanto seu trabalho artiacutestico natildeo conseguiu o sucesso almejado ao contraacuterio foi renegado e desconsiderado como obra O meacutetodo criacutetico de Sainte-Beuve quer se impor tomando por princiacutepio o fato de que a obra de um escritor seria primeiramente todo um reflexo de sua vida e se poderia explicar por ela este meacutetodo se estabelece sobre a busca do intento poeacutetico do autor (intencionalismo) e sobre suas qualidades pessoais (biografismo)

A criacutetica biograacutefica foi assim instituiacuteda e influenciou sobremaneira a produccedilatildeo literaacuteria da segunda metade do seacuteculo XIX especialmente na Franccedila O curioso eacute que mesmo com a morte desse pensador em 1869 seus fundamentos criacuteticos se mantiveram inexoraacuteveis e com intensificada interferecircncia no pensamento inventivo de escritores que nasceram apoacutes este momento Depois de tantos anos agrave mercecirc desse tipo de pensamento criacutetico tomado como base por alguns escritores famosos que alimentaram essas turvas noccedilotildees sobre invenccedilatildeo e criacutetica literaacuteria tais como Vitor Hugo e outros ldquoaliadosrdquo do autoritarismo de Sainte-

1 Refiro-me ao ano em que Balzac teria encontrado o tiacutetulo definitivo para o conjunto drsquoA Comeacutedia Humana

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Beuve iniciaram-se as manifestaccedilotildees desfavoraacuteveis a esse ideal criacutetico Mediante a vigorosa e ateacute violenta posiccedilatildeo do biografismo criacutetico com sombras de influecircncia do Positivismo e do Determinismo as raiacutezes jaacute estavam se alastrando por todos os lados e deitando influecircncia nas manifestaccedilotildees artiacutesticas quiccedilaacute sobre um certo Realismo e com certeza sobre o Naturalismo Para iniciar um combate a Sainte-Beuve as forccedilas criacuteticas tinham de possuir uma natildeo apenas contraacuteria mas operante e inteligente forma de reaccedilatildeo E ela se iniciaria com Marcel Proust o qual mesmo bastante jovem apresentava uma arguta consciecircncia intelectual e de seus atos Com seu ensaio Contre-Sainte-Beuve (1988) foi o primeiro a contestar a visatildeo criacutetica desse

Aleacutem de Marcel Proust a Escola Formalista Russa bem como os criacuteticos Robert Curtius e Leo Sptizer com seus projetos teoacutericos advindos da Filologia e da Estiliacutestica (CURTIUS 1923 SPITZER 1955) deram continuidade aos fundamentos voltados para o texto opondo-se aos ditames do Biografismo Apesar de toda a reaccedilatildeo dessas linhas determinantes do juiacutezo criacutetico sobre a literatura e sua realidade textual de quando em quando a tendecircncia ao biografismo volta sorrateiramente

De extensa obra criacutetica poucos trabalhos de Sainte-Beuve parecem ter contribuiacutedo para os estudos culturais franceses Dentre eles destacam-se seus estudos sobre Chateaubriand (1996) O que ficou como registro criacutetico a respeito de Sainte-Beuve foi sua visatildeo equivocada sobre os autores e as obras que analisava e avaliava Como criacutetico elevou os mediacuteocres que se perderam nos desvatildeos dos estudos literaacuterios e diminuiu os melhores chegando a desdenhar alguns deles Sua obra criacutetica reunida e publicada num periacuteodo de trinta anos (1851-1881) denominada Causeries du lundi [Conversas de segunda-feira] (1953) reuacutene por volta de dezesseis tiacutetulos sendo que cada tiacutetulo apresenta muitos volumes Eacute necessaacuterio reabilitaacute-lo aqui para que se compreendam determinados passos da evoluccedilatildeo da criacutetica europeia e por que natildeo mundial sobretudo se temos Marcel Proust como nosso guia nesse percurso histoacuterico-esteacutetico O modo como o escritor francecircs leu Sainte-Beuve e sua criacutetica biograacutefica eacute fundamental para que passemos a compreender a maneira como Honoreacute de Balzac se insere nesse painel

3 Nas malhas da criacutetica inventiva ou do ensaio ficcional de Marcel Proust

A obra Em Busca do Tempo Perdido foi resultado de intensivo movimento criacutetico incluindo obras de seus contemporacircneos e da tradiccedilatildeo realizando exerciacutecios ficcionais e criacuteticos crocircnicas e pastiches preacutevios treinamentos romanescos (como Jean Santeuil (1982) e outros procedimentos que pudessem contribuir na construccedilatildeo de sua epopeia liacuterica

Como jaacute assinalei metaforicamente em produccedilatildeo anterior2 se Jean Santeuil representa a larva na evoluccedilatildeo da futura borboleta a obra criacutetica Contre Sainte-Beuve eacute a crisaacutelida (ou

2 Trata-se da apresentaccedilatildeo ao livro Contre Sainte-Beuve intitulada ldquoO processo holometaboacutelico de Marcel Proustrdquo (GONCcedilALVES 1988)

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casulo) Colocando-lhe lentes de aumento o que se nota eacute um texto anfiacutebio de representaccedilatildeo capital no processo evolutivo do estilo de Proust Esta obra funciona como anaacutefora e como cataacutefora no processo inventivo desse artista O movimento anafoacuterico se daacute natildeo soacute agrave criacutetica de Sainte-Beuve mas agrave de Taine e de outros que dominaram o tom criacutetico do seacuteculo XIX Quanto ao movimento catafoacuterico este sim regeu o procedimento propriamente inovador de Proust e representa a sua imersatildeo no fluxo da linguagem e do pensamento em busca de uma realizaccedilatildeo criadora A nossa atenccedilatildeo deve recair sobre a preposiccedilatildeo contre e avaliaacute-la dentro de paracircmetros cautelosos Ela atua como vaacutelvula e como reaccedilatildeo Se por um lado significa o incocircmodo por outro representa impulsatildeo Assim este quase-ensaio ou este exerciacutecio-anfiacutebio deixa de possuir o sentido linear do ldquocontrardquo para significar uma praacutetica ldquoa favorrdquo da arte literaacuteria de Proust Eacute assim que a amplitude desta criaccedilatildeo-reaccedilatildeo eacute muito grande se analisarmos a sua importacircncia no painel criacutetico ou no seu duplo movimento o que eacute a arte e o que eacute a criacutetica

Manifestando-se no conjunto de sua produccedilatildeo literaacuteria a resposta de Proust agrave criacutetica do seacuteculo XIX adquire em certos momentos uma natureza quase didaacutetica Numa das passagens de Jean Santeuil a criacutetica do retrato literaacuterio de caraacuteter biograacutefico defendido por Sainte-Beuve assume dimensatildeo irocircnica na pena de Proust Trata-se da parte IV capiacutetulo I em que Jean conhece o ldquogenial escritorrdquo Traves ao passar alguns dias em Reacuteveillon Depois de atentar para a presenccedila de Traves de extrair elementos de sua personalidade apoacutes conversar com ele e recolher aspectos de sua vida Jean percebe que tudo isso ou nada disso conseguia explicar ou prolongar o estranho fasciacutenio o mundo uacutenico para aonde ele Traves transportava-nos desde as primeiras paacuteginas de um de seus livros e no qual sem duacutevida vivia quando ele proacuteprio o trabalhava fabricando-o agrave medida que escrevia e tendo jaacute vagamente desenrolado diante dele em sonhos singulares a mateacuteria preciosa ainda informe como uma via-laacutectea da qual devia ser pouco a pouco tecida (PROUST 1982 p 246) Os movimentos que se estabelecem entre a vida de um autor e a obra que fabrica se comparam para Proust a uma janela que se abre para um quarto vazio Eacute a via-laacutectea nebulosa e informe que se enformaraacute de signos marcados pelo estilo a que vimos aludindo

Mais profuso no gecircnero narrativo em que os temas da vida e as referecircncias satildeo mais notoacuterios consegue elevar esse gecircnero agrave condiccedilatildeo de uma praacutetica conferindo-lhe uma autonomia que mais que refletir resgata a essecircncia das coisas num processo de emergecircncia da proacutepria arte numa espeacutecie de remissatildeo contiacutenua de um a outro sistema O signo da arte eacute o grande referencial da narrativa de Proust Para isso foi necessaacuterio um exerciacutecio de realizaccedilatildeo marcado por procedimentos de perfuraccedilatildeo da camada da mateacuteria seja da realidade seja da linguagem O que chamamos processo de metamorfose em Proust eacute na verdade um processo de traduccedilatildeo mimeacutetica da proacutepria linguagem ou um defrontar-se com a mateacuteria-prima da representaccedilatildeo que eacute o signo Como em Mallarmeacute a obra de Proust potildee em pauta a relaccedilatildeo dialeacutetica entre o Signo e a Realidade Ao buscar a natureza da ldquoliacutenguardquo da poesia eou da literatura tambeacutem o discurso proustiano ldquodesrealizardquo a funccedilatildeo normativa da ldquoliacutenguardquo dos comunicados mobiliza a necessaacuteria relaccedilatildeo entre significante e significado aleacutem de recuperar ou

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nomear (indiretamente) aquilo que era apenas nebuloso no pensamento e no espiacuterito Esse exerciacutecio de mimesis da proacutepria linguagem tem como resultado a tensatildeo do limite extremo em que se opera a transubstancializaccedilatildeo da realidade referencializada para a realidade referencializaacutevel da obra O que se denominam ldquoiluminaccedilotildeesrdquo em Proust eacute o que o proacuteprio autor denominou ldquomemoacuteria involuntaacuteriardquo Satildeo formas de criaccedilatildeo ou de traduccedilatildeo da nebulosidade do espiacuterito Por tudo isso reler Ilusotildees Perdidas (2011) de Balzac depois de ter lido Em Busca do Tempo Perdido de Marcel Proust consistiu num exerciacutecio no miacutenimo surpreendente

Havia lido algumas obras de Balzac haacute muitos anos e o que me ficava na memoacuteria era a sequecircncia de figuras humanas que pareciam natildeo se caracterizar como personagens com todas elas se parecendo seja pela conjunccedilatildeo nas relaccedilotildees seja por disjunccedilatildeo que denunciava tramas possiacuteveis mas dentro sempre da mesma estrutura num tom sequenciado de efabulaccedilatildeo Ao ler e analisar Contre Sainte-Beuve fez-se necessaacuteria a releitura de Ilusotildees Perdidas e daiacute todas as vagas estranhezas de minha memoacuteria voltaram e ganharam sentido Aquelas figuras se amontoavam na minha memoacuteria em outras obras que compunham A Comeacutedia Humana sempre marcadas pelo teor alegoacuterico das personagens muitas vezes caricatural Assim quem me conduziu a Balzac foi o pensamento criacutetico-analiacutetico de Marcel Proust as razotildees encetam para uma seacuterie de elementos todos eles voltados para a questatildeo do estilo e da representaccedilatildeo literaacuteria Esse fenocircmeno criacutetico eacute em si decisivo a obra criacutetica e narrativa de Proust tornou-se precursora da obra de Balzac

A leitura equivocada que Sainte-Beuve realiza de alguns de seus contemporacircneos a propoacutesito dos melhores deles muitas vezes indivisa determinadas relaccedilotildees ou determinados autores ou obras mas por outro lado acabou por provocar os acircnimos daqueles que iniciariam uma reaccedilatildeo contra a criacutetica biograacutefica e com isso uma revisatildeo de determinados autores mitificados pelo puacuteblico e pela criacutetica Foi o caso de Balzac e Flaubert Como se natildeo houvesse uma intenccedilatildeo criacutetica declarada ao falar de um Proust sempre se reporta ao outro Esse meacutetodo mostrou-se fundamental para que nosso olhar se mova como pecircndulo para um e outro estilo para uma e outra visatildeo sobre literatura O futuro criador de Em Busca do Tempo Perdido se volta contra Sainte-Beuve quando este critica Balzac Ao mesmo tempo ao realizar suas consideraccedilotildees criacuteticas acaba por aproximar a visatildeo do autor de A Comeacutedia Humana daquela do autor de Madame Bovary (FLAUBERT 2011) A atraccedilatildeo do criacutetico Marcel Proust pelo estilo de Flaubert intesifica sua negaccedilatildeo de um possiacutevel estilo em Balzac e isso se manifesta em vaacuterios sentidos Ele cria uma metaacutefora para se referir ao discurso do autor de A Educaccedilatildeo Sentimental (FLAUBERT 2015) a qual eacute chamada por ele de esteira rolante (PROUST 1994) Com essa imagem ele se reporta agrave articulaccedilatildeo interna da linguagem aos arranjos das categorias de cada meio expressivo na busca da ampliaccedilatildeo de seus limites ndash traccedilo condutor da modernidade ndash que geram uma forccedila diferente uma convulsatildeo das formas que exige do receptor uma postura mental distinta Satildeo obras estruturalmente dinacircmicas e tematicamente estaacuteticas que como resultado geram novas relaccedilotildees distintas e muito mais intensas que aquelas dos modelos tradicionais

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Nos anos que precederam ao iniacutecio da grande escritura muitos estudos ou muitas leituras foram realizadas por Proust acompanhadas de pequenos textos ou comentaacuterios que redigia agrave luz desse exerciacutecio laboratorial Esse universo construiacutedo lhe serviria como fragmentos de sua experiecircncia como palimpsestos inventivos dos quais Proust elegeu aqueles que foram determinantes na formaccedilatildeo da narrativa francesa e de seu juiacutezo criacutetico pois essas duas vertentes sempre caminharam como uma soacute coisa para esse grande escritor A esteira rolante utilizada para metaforizar a narrativa de Flaubert caberia em certa medida para caracterizar o proacuteprio estilo proustiano Vale neste contexto citar uma assertiva de E R Curtius

A primeira leitura de Proust produz uma impressatildeo estranha mescla de encantamento e de confusatildeo Sentimo-nos envolvidos pela abundacircncia de materiais em aparente desordem extraviado num estilo prolixo e sinuoso em cujo ritmo natildeo se descobre nenhuma lei sente-se de uma vez atraiacutedo como que pelo timbre de uma muacutesica nova cuja harmonia natildeo se consegue analisar atraiacutedo a um universo de seduccedilatildeo tatildeo original que qualquer um se abandona em seus feiticcedilos (CURTIUS 1923 p 14-15)

Muito tem se esforccedilado a criacutetica em busca do ldquotempo de Proustrdquo entretanto muito se tem errado buscando esse tempo na vida do escritor nos seus haacutebitos nos lugares que frequentava bem como nas suas idiossincrasias Aleacutem da incongruecircncia de tais procedimentos criacuteticos pode-se considerar de extrema ironia que alguns criacuteticos se valham em pleno seacuteculo XXI de meacutetodos similares agravequeles utilizados por Sainte-Beuve para analisar uma obra que surgiu pela negaccedilatildeo do referido meacutetodo Todos esses elementos fazem parte do material utilizado por Proust em sua moenda inventiva mas assim como outros ingredientes tudo foi metamorfoseado na sua obra em ldquoneblinadas metaacuteforasrdquo fontes de sua ldquoprecisatildeordquo A respeito de Flaubert Proust ainda ressalta a sua isenccedilatildeo no modo de narrar e de descrever assinalando que esse procedimento permite ao autor ir cada vez mais ao encontro do narrador e natildeo do ser histoacuterico Flaubert

Diriacuteamos em espelho que o que mais interessa para os estudos proustianos e nisso consiste toda a sua busca criacutetica eacute liberar-se cada vez mais daquilo que natildeo eacute Proust tornando-se cada vez mais narrador no espaccedilo do discurso ficcional metafoacuterico preciso Faz bem Curtius ao advertir que devemos interpretar essas posiccedilotildees de Proust no sentido de que a verdadeira criacutetica tende a descobrir os elementos formais da alma de um autor e natildeo suas opiniotildees nem seus sentimentos Tender agrave descoberta dos elementos formais da alma de um autor significa mergulhar nos elementos internos da obra no seu estilo pactuando-se o maacuteximo possiacutevel com a metaacutefora do discurso artiacutestico para que seja viaacutevel uma vez recebida que ela seja bem percebida

Nesse modo de ver o estilo de Flaubert Proust indicia ou ateacute mesmo aponta para elementos criacuteticos determinantes na obra de Balzac Um dos elementos determinantes eacute mostrado por Proust da seguinte maneira comentando aspectos da vida de Balzac de suas minudecircncias mundanas comentadas e assinaladas pelo proacuteprio Balzac em cartas

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agrave sua irmatilde seus interesses financeiros sua visatildeo de casamentos arranjados a relevacircncia de conviver na sociedade parisiense de abrir os salotildees para a sociedade de se mostrar ao lado de uma mulher de prestiacutegio entre outros faz ver Proust como tudo isso estaacute retratado em sua obra Em todas elas sobretudo em Ilusotildees Perdidas sua obra maior os dados mundanos em todas as suas referecircncias plurais satildeo praticamente transportados para a obra Aleacutem de tudo isso suas ideias suas frases feitas seu humor aacutecido sua visatildeo pessoal da condiccedilatildeo humana entram para sua obra com a mesma indiscriminaccedilatildeo

A criacutetica de Proust agrave visatildeo de Balzac se daacute pela comparaccedilatildeo que realiza com a construccedilatildeo da narrativa de Flaubert para quem como assinala a realidade da obra estaacute na proacutepria obra para ele o autor de A Educaccedilatildeo Sentimental sabe muito bem separar a vida do autor de sua obra como segundo Proust deve ocorrer para que se tenha um resultado propriamente artiacutestico capaz de realizar uma efetiva leitura do homem no mundo e de suas relaccedilotildees natildeo apenas sociais mas tambeacutem consigo mesmo Dentro dessa mesma base de consideraccedilotildees criacuteticas no ziguezaguear da percepccedilatildeo e fina anaacutelise proustiana ocorre nos discursos dos dois romancistas Balzac e Flaubert um movimento distintivo e ainda mais detidamente estiliacutestico que na verdade revela o modo de ver o mundo pelo escritor Trata-se da questatildeo da vulgaridade em Balzac

A questatildeo da vulgaridade foi muito discutida na obra desse autor seja quanto aos temas tratados seja na forma da utilizaccedilatildeo da linguagem tanto nas palavras quanto no tom de articulaccedilatildeo discursiva E nesse sentido tambeacutem criticou e vilipendiou Sainte-Beuve o autor de Ilusotildees Perdidas Essa vulgaridade sobretudo no sentido temaacutetico tambeacutem foi apontada na obra de Flaubert principalmente em Madame Bovary Proust com feiccedilotildees de teoacuterico da literatura mas se valendo da pena do criacutetico que estava se transformando em autor num movimento de metamorfose que nos lembra processos alquiacutemicos examina as diferenccedilas entre o tratamento da vulgaridade em Balzac e em Flaubert Para ele coisa que natildeo ocorre em Flaubert uma representaccedilatildeo da vulgaridade eacute construiacuteda na obra de Balzac sem que haja uma transcriaccedilatildeo efetiva daquela vivenciada pelo autor ou por qualquer outro ser humano Balzac apesar de tratar de assuntos tatildeo interessantes geradores de um caraacuteter polecircmico que o celebrizou por tantos anos deixa agrave margem aquele processo que Antonio Candido (1993 p 30-4) chama de ldquodesfazer e refazer a realidade pela linguagemrdquo Algumas peculiaridades em Balzac ganham dupla qualificaccedilatildeo O seu descritivismo exemplar em alguns momentos traz consigo sua outra face torna-se esvaziado a natildeo ser como parte das milhares de caricaturas que constroacutei Junto com as descriccedilotildees que satildeo retratos diretos da vida real e que natildeo atingem a dimensatildeo do discurso literaacuterio surgem possibilidades surpreendentes de uma invenccedilatildeo natildeo concluiacuteda

Um dos ingredientes reaproveitados por Proust eacute o universo das artes plaacutesticas que surge de maneira intensa na obra de Balzac dentro daquele mesmo espiacuterito de descriccedilatildeo Honoreacute de Balzac constitui caso excepcional de escritor gerando incocircmodos na massa criacutetica de sua eacutepoca e mais ainda na criacutetica posterior razatildeo pela qual natildeo se pode emparedar a sua obra aos paradigmas do Romantismo mais vale consideraacute-lo como um iniciador precoce do Realismo

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Cremos que esse extenso focirclego atingiu de certa forma os maiores e mais notaacuteveis do seacuteculo XIX (Eacutemile Zola Charles Dickens Dostoievsky e Marcel Proust) e fascinou o puacuteblico embevecido por suas ideias suas frases de impacto e sua ciacutetrica forma de ironizar os valores sociais e morais de toda a primeira metade daquele seacuteculo A mulher de trinta anos Eugegravene Grandet O Pai Goriot Ilusotildees Perdidas estatildeo dentre os mais lidos e os mais comentados da grande saga balzaquiana Dizer seu nome passou a ser sinocircnimo de denuacutencia problemas de dinheiro da usura da hipocrisia familiar da constituiccedilatildeo dos verdadeiros poderes da Franccedila liberal burguesa e indiretamente do universo dos operaacuterios e camponeses Exalta-se nesse escritor sua enorme capacidade de trabalho sobretudo pelas emergentes necessidades de resoluccedilatildeo de suas diacutevidas permanentes

Dado curioso e digno de anaacutelise eacute o modo como sua obra foi tatildeo amplamente recepcionada O protagonista de Ilusotildees Perdidas Lucien de Rubempreacute sua saga em Paris suas buscas e fracassos sua fome de ascensatildeo e de prestiacutegio em todos os niacuteveis sociais e ainda querendo se impor como poeta todas essas marcas estatildeo no proacuteprio Honoreacute de Balzac que se representa na obra construiacuteda Ele se torna catalisador numa espeacutecie de ldquorelatoacuterio rascunhordquo da humanidade Quando a criacutetica o considera o mais relevante escritor do romantismo francecircs as coisas parecem ficar extremamente nubladas para quem pensa literatura Natildeo se trata aqui de um caminho criacutetico ou de uma teoria que possa conduzir a uma visatildeo aacutecida do escritor Eacute fato que Balzac realizou em pleno iniacutecio do seacuteculo XIX um trabalho sui generis como massa referencial levantou temas ou ldquoassuntosrdquo de grande interesse da sociedade da eacutepoca e mesmo de eacutepocas futuras passando seu trabalho a alimentar possibilidades de sentido por manter os mesmos personagens em todos os romances

Por outro lado natildeo apenas a vulgaridade mas qualquer outro tema mundano ou natildeo ganha em Flaubert outro patamar de realidade e dentro disso ele emerge como o grande criador do romance moderno em que a isenccedilatildeo do autor e a autonomia do narrador alcanccedilam dimensotildees determinantes Nesse posicionamento construtivo a vida do autor bem como suas relaccedilotildees pessoais com assuntos mundanos deixa de existir para Flaubert para ceder agrave obra mediada pela linguagem que jaacute natildeo pertence ao que denominamos semioacutetica I Com Flaubert passamos para uma segunda semioacutetica que pode ser entendida como Liacutengua II Nessa busca de aproximaccedilotildees as condiccedilotildees reais dos procedimentos artiacutesticos acabam por estabelecer convergecircncias mais acentuadas entre a obra de Gustave Flaubert e a obra de Marcel Proust do que das obras desses dois artistas em relaccedilatildeo a Honoreacute de Balzac Dentre as convergecircncias entre os dois escritores Proust e Flaubert uma se destaca o fato de ambos produzirem o que Paul Valeacutery (1999) denominaria uma obra claacutessica por trazerem no seu proacuteprio plano de fabricaccedilatildeo um criacutetico Ambos conferem agraves suas obras a devida autonomia enquanto tal e nisso estaacute impliacutecita a isenccedilatildeo da vida do autor em relaccedilatildeo agrave obra Entretanto a invenccedilatildeo proustiana natildeo se limita agraves questotildees criacuteticas engendradas pelo autor de Madame Bovary e de A Educaccedilatildeo Sentimental mas se estende e se engasta em outras obras fundamentais sobretudo da narrativa do seacuteculo XIX

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Eacute nesse movimento criativo que se insere o contraponto do discurso que ora se inventa em oposiccedilatildeo ao referencial balzaquiano Trata-se da estranha relaccedilatildeo entre a narrativa de Em busca do tempo perdido e procedimentos utilizados pelo autor de A Condiccedilatildeo Humana Dizemos ldquoestranha relaccedilatildeordquo devido a uma seacuterie de elementos que nos instigam a buscar no pensamento criacutetico e inventivo de Proust sorrateiras estrateacutegias de construccedilatildeo que se manifestam dentro de um estilo peculiar elementos que desvelam ter sido Proust um exiacutemio leitor de Balzac Proust assinala em Balzac o estilo de retratista da sociedade com traccedilos fortes e de tintas coloridas extraindo daquele estilo o que nele natildeo se manifestou O que se pode depreender desse processo eacute que longe de se poder considerar a obra maior de Balzac como uma grande obra literaacuteria ateacute porque se trata de uma obra com falta de literariedade a sua ldquoestrutura oacutesseardquo foi percebida por Proust que ldquona calada da noiterdquo se valeu de maneira brilhante dessa estrutura

Ao comentar fato que ocupa grande parte do ensaio sobre o caraacuteter inovador do uso do preteacuterito imperfeito pela narrativa flaubertiana Proust diz o seguinte ldquoPortanto esse imperfeito tatildeo novo na literatura muda inteiramente o aspecto das coisas e dos seres como uma lacircmpada que tenha sido deslocada agrave chegada em uma nova casa a antiga quando estaacute quase vazia e que se estaacute em plena mudanccedilardquo (PROUST 1994 p71)

Essa ideia capta o verdadeiro sentido da relaccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e modernidade referindo-se a uma evoluccedilatildeo do estilo A nova casa (modernidade) e a antiga satildeo a mesma e completamente outras quando marcadas pela poccedilatildeo metamorfoseante e mantenedora do signo do estranhamento da refraccedilatildeo artiacutestica capaz de mobilizar os elementos cristalizados As formas artiacutesticas de invenccedilatildeo satildeo princiacutepios composicionais ou brechas que desvelam o olho cliacutenico do Homem feito artista radar captador dos retalhos da realidade Ao dizermos retalhos da realidade pensamos nas condiccedilotildees baacutesicas sem as quais nenhum trabalho artiacutestico pode se concretizar Este consiste na consciecircncia de uma meta a atingir que parte da superaccedilatildeo das linhas de superfiacutecie da realidade ldquodetrito da experiecircnciardquo para Proust representado pelos signos emblemaacuteticos cadaverizados pela convenccedilatildeo O trabalho ficcional de Marcel Proust evolui num processo de metamorfose inventiva primeiro de captaccedilatildeo depois de destruiccedilatildeo e finalmente de remontagem ou traduccedilatildeo da realidade essencial Seu princiacutepio de composiccedilatildeo conduzido pela intraduziacutevel busca da Forma do Tempo faz-se forma espacial profusa enquanto movimento enlaccedilado nos entrecruzados noacutes das veredas da linguagem Este trabalho do artista de buscar sob a mateacuteria sob a experiecircncia sob as palavras algo diferente eacute exatamente o inverso do que a todo instante quando vivemos alheados de noacutes realizam por sua vez o amor-proacuteprio a paixatildeo a inteligecircncia e o haacutebito amontoando sobre as nossas impressotildees mas para de noacutes esconder as nomenclaturas os objetivos praacuteticos a que erradamente chamamos vida (PROUST 1970 p 142) A busca sob e natildeo sobre constitui um universo que transcende a ele proacuteprio por ir o maacuteximo possiacutevel agraves profundezas do verdadeiro eu Dizendo assim tentando driblar a palavra-chave que define esta obra uma poeacutetica no sentido de elevaccedilatildeo da potecircncia da linguagem sem atributos possuindo portanto a mais rigorosa precisatildeo Eacute correto afirmar que Em busca

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do tempo perdido eacute a histoacuteria de uma escritura pois que traz nela mesma essa histoacuteria Esta histoacuteria eacute o esteacuteril pretexto que vai deixando para amanhatilde sempre numa posiccedilatildeo de adiamento uma possiacutevel obra literaacuteria

4 A profundidade criacutetica e literaacuteria de Proust agrave guisa de consideraccedilotildees finais

Apesar da consideraacutevel distacircncia entre Ilusotildees perdidas e Em busca do tempo perdido entretanto vale notar que nos dois tiacutetulos resiste a ideia de perda Contudo em Balzac essa ideia estaacute imediatamente ligada ao temaacuterio referencial de sua obra fantasiado pelo signo ldquoilusotildeesrdquo e marcado semanticamente pelo processo de degenerescecircncia causada pelas perdas e pela impossibilidade de atingir os propoacutesitos da vida Em Proust em que a mateacuteria de vida eacute transformada em mito da linguagem tudo caminha pelo sentido oposto e encontra no tempo da arte o espaccedilo sensiacutevel para dizer com Juacutelia Kristeva (1994) a respeito do autor em questatildeo

Nessa forma de suspensatildeo do tempo cronoloacutegico para a vivecircncia da esfera miacutetica por meio da arte ocorre como diriam os mitoacutelogos a eterna reiniciaccedilatildeo As multiacuteplices relaccedilotildees das linhas de superfiacutecie da realidade mudam alteram-se a cada instante O tempo prossegue inexoravelmente e o uacutenico meio de estancaacute-lo eacute integrar-se a ele eacute habitaacute-lo Mas habitaacute-lo implica espacializaacute-lo colocando-lhe reacutedeas atraveacutes de finas agulhas com linhas tecircnues fabricaccedilatildeo do tecido ou da rede da proacutepria vida Esse gesto de criar coincide com o gesto de viver indissolubilidade apreendida e empreendida no exerciacutecio de profunda identidade do ser que acaba sendo de extremo alheamento Para a realizaccedilatildeo desse movimento o escritor deve descobrir que a realizaccedilatildeo artiacutestica consiste no produto de um outro eu que natildeo aquele das vicissitudes mundanas dos haacutebitos e dos sentimentos pessoais ldquoDentro da perda da memoacuteriardquo3 deu-se iniacutecio agrave emersatildeo do novo universo e uma outra viagem se inaugurou Nela o roteiro jaacute natildeo eacute mais delimitado pois isto significaria a submissatildeo agrave proacutepria dimensatildeo cronoloacutegica da existecircncia

A busca do eu profundo equivale ao exerciacutecio do narrador ao pocircr em praacutetica as suas iluminaccedilotildees ou as iluminaccedilotildees da memoacuteria involuntaacuteria para recriar as experiecircncias da vida num trabalho de arte Eacute este o fio condutor desta viagem O acaso assessorado pela inteligecircncia compotildee o trabalho de criaccedilatildeo Mais importante que recordar pela memoacuteria voluntaacuteria eacute estarem os cinco sentidos despertos disponiacuteveis aguccedilados e integrados para a composiccedilatildeo associativa dos fluxos da realidade literaacuteria O olho deste artista viu na tradiccedilatildeo atraveacutes de formas de reaccedilatildeo caminhos possiacuteveis para se iniciar esta viagem sem retorno composta de meandros circulares em busca de um retrato sem moldura Este retrato teria como modelo primeiramente a experiecircncia que se transforma em

3 A metaacutefora discursiva se reporta ao poema de Joatildeo Cabral de Melo Neto publicado em Pedra do sono (1999)

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escritura e teria como imagem um outro retrato Antes que esse retrato pudesse ser fixado a imagem se estilhaccedilou no campo perdido da linguagem e retratou-se em signos que se movimentam em infinitas direccedilotildees Tornou-se um campo blindado propenso a metamorfoses tornou-se a poccedilatildeo dialeacutetica entre a arte e a vida Natildeo consiste numa inferecircncia indeterminada o fato de julgarmos o texto de Marcel Proust um grande ensaio ficcional Trata-se de um fenocircmeno iacutempar na literatura Evidentemente os recursos de metalinguagem determinam a literatura moderna Num capiacutetulo memoraacutevel denominado ldquoLiteratura e Metalinguagemrdquo contido na obra Criacutetica e Verdade (1982) Roland Barthes discute esse traccedilo da literatura que se inicia nos meados do seacuteculo XIX e se prolonga durante o seacuteculo XX Para ele durante seacuteculos nossos escritores natildeo imaginavam que fosse possiacutevel considerar a literatura como uma linguagem submetida como qualquer outra linguagem agrave distinccedilatildeo loacutegica

A literatura nunca refletia sobre si mesma (agraves vezes sobre suas figuras mas nunca sobre seu ser) nunca se dividia em objeto ao mesmo tempo olhante e olhado em suma ela falava mas natildeo se falava Mais tarde provavelmente com os primeiros abalos da boa consciecircncia burguesa a literatura comeccedilou a sentir-se dupla ao mesmo tempo objeto e olhar sobre esse objeto fala e fala dessa fala literatura-objeto e metaliteratura Eis quais foram grosso modo as fases desse desenvolvimento primeiramente uma consciecircncia artesanal da fabricaccedilatildeo literaacuteria levada ateacute o escruacutepulo doloroso ao tormento do impossiacutevel (Flaubert) depois a vontade heroacuteica de confundir numa mesma substacircncia escrita a literatura e o pensamento da literatura (Mallarmeacute) depois a esperanccedila de chegar a escapar da tautologia literaacuteria deixando sempre por assim dizer a literatura para o dia seguinte declarando longamente que se vai escrever e fazendo dessa declaraccedilatildeo a proacutepria literatura (Proust) em seguida o processo da boa-feacute literaacuteria multiplicando voluntariamente sistematicamente ateacute o infinito os sentidos da palavra-objeto sem nunca se deter num significado uniacutevoco (surrealismo) inversamente afinal rarefazendo esses sentidos a ponto de esperar obter um estar-ali da linguagem literaacuteria uma espeacutecie de brancura da escritura (mas natildeo uma inocecircncia) penso aqui na obra de Robbe-Grillet (BARTHES 1982 p 27-28)

Ao aludir ao caso de Proust Barthes se refere a uma estrateacutegia criativa que evidentemente eacute de profunda significaccedilatildeo no contexto da obra Entretanto como denuncia a citaccedilatildeo do proacuteprio escritor haacute no interior da ldquoficccedilatildeordquo proustiana uma espeacutecie de mesclagem em que o ldquoliteraacuteriordquo se conjuga ao ldquocriacuteticordquo e a ldquonarrativardquo se articula ao ldquodissertativordquo Eacute sabido que esta caracteriacutestica determina o trabalho de todo grande artista Entretanto no seu caso tal fenocircmeno adquiriu uma feiccedilatildeo proacutepria uma vez que a tentativa de ser criacutetico e apenas criacutetico eacute lograda em funccedilatildeo de uma invenccedilatildeo ou traduccedilatildeo criacutetica que eacute sua proacutepria obra ficcional Consagrou a vida inteira para tentar compreender e resolver parte das questotildees que o dominaram Compreenderiacuteamos assim quais as afinidades secretas as metamorfoses necessaacuterias existentes entre a vida de um escritor e sua obra entre a realidade e a arte ou antes como pensaacutevamos entatildeo entre as aparecircncias

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de vida e a proacutepria realidade que dela fazia um fundamento soacutelido e que a arte resgatou (PROUST 1982 p 29)

Essas consideraccedilotildees de Proust presentes em Jean Santeuil obra produzida entre 1895 e 1900 mantiveram-se em toda a sua criaccedilatildeo futura Ao penetrarmos em seu universo o que se percebe eacute que Jean Santeuil eacute muito mais que um esboccedilo ficcional Escrito em terceira pessoa na sua maior parte apresenta agraves vezes uma estranha mudanccedila de foco narrativo passando para a primeira Por este e por outros motivos Jean Santeuil acaba apresentando procedimentos tatildeo especiacuteficos que seu caraacuteter inacabado se torna no miacutenimo questionaacutevel Penso aqui em Charles Baudelaire que ao analisar a pintura de Camille Corot apoacutes revelar expliacutecita indignaccedilatildeo frente agrave incompreensatildeo do puacuteblico romacircntico mostra as especificidades dos quadros de Corot e as diferenccedilas entre eles e os de outros pintores inclusive os de Eugegravene Delacroix (BAUDELAIRE 1976) Analisa a diferenccedila entre um quadro feito e um quadro acabado Para Baudelaire em geral uma obra que eacute feita natildeo eacute acabada e uma obra completamente acabada natildeo eacute totalmente feita Eacute certo que Jean Santeuil eacute obra abandonada por Proust por consideraacute-la apenas um exerciacutecio eacute certo tambeacutem que eacute esta estrutura moacutevel que a torna relevante Isso acentua sua natureza dialoacutegica fenocircmeno que determinaraacute toda a evoluccedilatildeo de Em busca do tempo perdido Realizada neste periacuteodo precedente oito anos antes de Contre Sainte-Beuve Jean Santeuil consiste num dos mais notaacuteveis exerciacutecios de traduccedilatildeo criativa que aleacutem de nos fornecer subsiacutedios para a compreensatildeo da maacutequina de fabricaccedilatildeo proustiana eacute em si um universo autocircnomo marcado pela articulaccedilatildeo dos retalhos ou dos fragmentos que determinam o teor metoniacutemico da elaboraccedilatildeo ficcional de Marcel Proust

O trabalho artiacutestico-literaacuterio de Marcel Proust apresenta peculiaridades de vaacuterias naturezas todas elas entretanto repousam sobre uma uacutenica questatildeo realizar para investigar e modular para cumprir aquilo que tatildeo somente a arte pode conquistar o resgate do tempo infindo e a suspensatildeo do tempo cronoloacutegico para que seja possiacutevel recuperar a instacircncia atemporal da vida

Esse sistema criacutetico-inventivo soacute seria possiacutevel de ser realizado como o fez o pensador francecircs com o olho direito mirando cuidadosamente a tradiccedilatildeo e o olho esquerdo cravado sobre o presente no mapa da invenccedilatildeo e buscando cumprir com profundo prazer e ao mesmo tempo com aacuterduo trabalho o peacuteriplo de uma experiecircncia desconstruiacuteda

Por fim conveacutem dizer ainda que o olhar de Marcel Proust para a obra de Balzac exige muita cautela e observaccedilatildeo nos miacutenimos elementos que ele aponta valendo-se de seu singular modo de ler e de ver por entrelinhas fundamentais para que se vaacute recuperando o ldquotempo de Proustrdquo nos interstiacutecios de sua produccedilatildeo Haacute que se vasculhar em ciacuterculos as suas palavras Por um lado defende criticamente Balzac mediante as colocaccedilotildees de Sainte-Beuve assim como defendeu outros autores vociferados pelo criador da criacutetica biograacutefica na segunda metade do seacuteculo XIX Por outro lado os seus comentaacuterios comparativos entre Gustave Flaubert e Honoreacute de Balzac fazem com que revejamos os passos de composiccedilatildeo do famoso autor de Ilusotildees Perdidas Esse movimento criacutetico nos deixa como estudiosos e como criacuteticos literaacuterios um tanto

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ensimesmados diante de algumas incocircmodas questotildees que procuramos deslindar agrave medida que avanccedilamos na abordagem deste artigo objetivando mostrar por meio do trabalho literaacuterio e ensaiacutestico de Marcel Proust sua contribuiccedilatildeo para o entendimento dos processos da literatura e das artes

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Recebido em 25 de marccedilo de 2017

Aceito em 30 de setembro de 2017

Aguinaldo Joseacute Gonccedilalves

Livre-docecircncia pela UNESP (1997) Doutorado em Letras (Teoria Literaacuteria e Literatura Comparada) pela USP (1988) Tem publicaccedilotildees na interface de literatura e outros sistemas semioacuteticos Professor titular da UNESP e PUC de Goiaacutes atuando nos cursos de Mestrado e Doutorado nessas instituiccedilotildees agnusfenixgmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Acerca da ekphrasis numa passagem do Clarimundo de Joatildeo de Barros cena de pictoacuterico heroiacutesmo

On Ekphrasis in an Excerpt from Clarimundo by Joatildeo de Barros A Scene of Pictorial Heroism

Sobre la ekphrasis en un paso del Clarimundo de Joatildeo de Barros escena de pictoacuterico heroiacutesmo

Flaacutevio Antocircnio Fernandes Reis Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Resumo

No artigo tratamos de um procedimento discursivo a ekphrasis na leitura de uma passagem da Primeira Parte da crocircnica do imperador Clarimundo donde os reis de Portugal descendem narrativa de cavalaria publicada por Joatildeo de Barros em 1522 e dedicada ao priacutencipe e depois rei D Joatildeo III Trata-se da primeira narrativa cavaleiresca com mateacuteria paacutetria publicada em Portugal obra essa que teve algumas reimpressotildees e reediccedilotildees dos seacuteculos XVI ao seacuteculo XX Dada a pouca atenccedilatildeo dispensada a este livro nosso artigo apresenta-o na sua primeira parte Em seguida tratamos do que seja a ekphrasis ou sua acepccedilatildeo latina a descriptio segundo alguns estudos recentes e em tratados antigos como o de Hermoacutegenes Aftocircnio e o anocircnimo dirigido a Herecircnio Por fim nosso objetivo foi analisar a ekphrasis composta no episoacutedio da ldquoFloresta Encantadardquo do Clarimundo observando como a cena compotildee-se com fins retoacutericos de persuadir pelo ldquomaravilhosordquo da cena e pela forccedila dos argumentos dado o caraacuteter de quem diz e as circunstacircncias de enunciaccedilatildeo compostos na ficccedilatildeo de Joatildeo de Barros Palavras-chave Joatildeo de Barros Clarimundo Ekphrasis

Abstract

In this article we propose the study of a discursive procedure ekphrasis in the reading of an excerpt from ldquoda Primeira parte da Croacutenica do Imperador Clarimundo donde os Reis de Portugal descendemrdquo a chivalric narration published by Joatildeo de Barros in 1522 and dedicated to the prince and later king D Joatildeo III This was the first chivalric narrative published in Portugal and was reprinted from the sixteenth century to the twentieth century In the first part the article presents the book by Joatildeo Barros Next we speak of ekphrasis or its Latin meaning descriptio according to some recent studies and according to ancient treatises like that by Hermoacutegenes Aftocircnio and the anonymous ldquoRhetoric to Herecircniordquo Finally our objective was to analyze the ekphrasis in the episode of the ldquoFloresta Encantadardquo from Clarimundo observing how the scene is composed for rhetorical purposes of persuading by the ldquomarvelousrdquo taking into account who speaks and the utterance circumstances in the fiction by Joatildeo de BarrosKeywordsJoatildeo de Barros Clarimundo Ekphrasis

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Resumen

En este artiacuteculo se propone el estudio de un procedimiento discursivo ekphrasis en la lectura de un pasaje del ldquoda Primeira Parte Croacutenica do Imperador Clarimundo Donde os Reis de Portugal descendemrdquo una narracioacuten de caballeriacutea publicado por Joatildeo de Barros en 1522 y dedicado al priacutencipe y maacutes tarde rey D Joatildeo III Es la primera narrativa caballeresca publicada en Portugal una obra que tuvo algunas reimpresiones del siglo XVI al siglo XX En la primera parte el artiacuteculo presenta el libro de Joatildeo Barros A continuacioacuten hablamos de la ekphrasis o su significado latino descriptio seguacuten algunos estudios recientes y seguacuten tratados antiguos como el de Hermoacutegenes Aftocircnio y la anoacutenima Retoacuterica a Herecircnio Por uacuteltimo nuestro objetivo fue analizar la ekphrasis compuesto en el episodio del ldquoFloresta Encantadardquo por Clarimundo observando coacutemo la escena se compone con fines retoacutericos de persuadir por el ldquomaravilhosordquo teniendo en cuenta que habla y las circunstancias de la enunciacioacuten compuesto en la ficcioacuten de Joatildeo de BarrosPalabras clave Joatildeo de Barros Clarimundo Ekphrasis

1 Introduccedilatildeo a primeira narrativa de cavalaria portuguesa com mateacuteria lusitana

A Prymera parte da cronica do emperador Clarimundo donde os reys de Portugal desccedilendem publicada nas prensas lisboetas de Germatildeo de Galharde em 1522 compotildee-se de trecircs livros natildeo acabados e ditos ldquoprimeira parterdquo em consonacircncia com a dinacircmica comum das maacutequinas cavaleirescas dos ldquoamadizesrdquo e dos ldquopalmeirinsrdquo No entanto se as relaccedilotildees entre as narrativas cavaleirescas figuram como emaranhado de parentescos discursivos concebidos com invenccedilatildeo comum de imitaccedilatildeo a genealogia que o Clarimundo propotildee o ressalva genericamente o especifica como ldquodonde os Reys de Portugal desccedilendemrdquo figurando mateacuteria ateacute entatildeo incomum nas letras ibeacutericas mas reconhecida nas letras antigas mais precisamente na Eneida de Virgiacutelio e emulada no encocircmio da Casa drsquoEste presente no Orlando Furioso de Ariosto1

1 Acerca da abordagem retoacuterico-poeacutetica desse estudo entendem-se as doutrinas retoacutericas e poeacuteticas como saberes comuns herdados e atualizados dos antigos para o ldquofermoso fablarrdquo conforme Alfonso de Cartagena na dedicatoacuteria da Retorica dirigida a D Duarte no seacuteculo XV Aniacutebal Pinto de Castro no conhecido estudo Retoacuterica e teorizaccedilatildeo literaacuteria em Portugal do Humanismo ao Neoclassicismo (2008) mostra o vigor dos preceitos retoacutericos e poeacuteticos sobretudo a difusatildeo dos preceitos de Ciacutecero e Quintiliano nas praacuteticas letradas portuguesas dos seacuteculos XV e XVI Nesse sentido a Oraccedilatildeo de Sapiecircncia proferida por D Pedro de Menezes na abertura dos trabalhos letivos do Estudo Geral de Lisboa de 1504 eacute bastante eloquente ldquoDas artes a primeira que se me mostra a mais formosa elegante e conveniente esta eacute a Retoacuterica Com efeito enquanto preceitua assim se chama mas enquanto executa com ordem e propriedade o que preceituou chama-se Oratoacuteria disciplina sem a qual toda a doutrina toda a ciecircncia embora tendo olhos ouvidos e liacutengua andaria cega surda e mudardquo(Cf D Pedro de Menezes Oraccedilatildeo proferida no Estudo Geral de Lisboa Texto latino presente na ediccedilatildeo de Miguel Pinto de Menezes Lisboa Centro de Estudos de Psicologia e de Histoacuteria da Filosofia anexo agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1994 p 96 ldquoQuarum prima se mihi offert illa veluti formosiacutessima decentissima elegantissima quaedam virgo quae rethorica est Sic enim dum praecipit appellatur cum vero ea quae praecepit distincte apteque exequitur oratoacuteria sine qua omnis doctrina omnis scientia habens oacuteculos aures linguam caeca surda muta ambulatrdquo)

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Joatildeo de Barros moccedilo de cacircmara do priacutencipe D Joatildeo futuro D Joatildeo III humanista latinado aproximou a narrativa extensa das batalhas de cavaleiros do Amadis e do Orlando aos ensinamentos e agrave elocuccedilatildeo da eacutepica antiga operando com o caraacuteter misto proacuteprio da narrativa de aventuras e batalhas entre cavaleiros2 A aparente transparecircncia da operaccedilatildeo esconde um emaranhado disperso de construccedilatildeo narrativa conjugada a procedimentos retoacutericos e poeacuteticos de longa duraccedilatildeo nas letras europeias e a ensinamentos de virtudes morais dirigidas aos priacutencipes e seus conselheiros aspectos esses que tornam inadequados o julgamento apressado da obra em questatildeo Ademais a publicaccedilatildeo impressa do Clarimundo denota a relevacircncia do livro salvaguardada nos tipos moacuteveis com boa qualidade das manchas impressas e dedicada a D Joatildeo III por meio de proacutelogos um ao priacutencipe e outro ao rei O ornamento das letras capitais e a moldura do ldquoProacutelogo sobre a trasladaccedilatildeo da primeira parterdquo convecircm agrave mateacuteria elevada do livro ornamentaccedilatildeo floral selva organizada na qual se entrevecirc entre ramos ordenados Cupido figuraccedilotildees de bestas paacutessaros e floraccedilotildees simetricamente dispostos como moldura que enaltece a figuraccedilatildeo daquele a que se atribui como o ancestral mais recuado da Casa Real portuguesa Nessa paacutegina de rosto na editio princeps figura o imperador Clarimundo no centro da composiccedilatildeo e na raiz de uma aacutervore genealoacutegica em cujos ramos ordenam-se os reis portugueses ateacute D Joatildeo III O cavaleiro traz as insiacutegnias de imperador bizantino a coroa fechada o orbe ou globus cruciger e o escudo no qual figura a aacuteguia bifronte iconografia do poder imperial e cristatildeo sobre o Ocidente e o Oriente A justaposiccedilatildeo dos reis o esquematismo proacuteprio da aacutervore genealoacutegica pressupotildeem a memoacuteria do modelo preteacuterito e a legitimidade do moderno pela antiguidade ancestral memoacuteria essa que se salvaguarda na ldquocrocircnica do imperador Clarimundordquo modo pelo qual a obra passou a ser conhecida a partir das ediccedilotildees setecentistas

Mais a Prymera parte da cronica do emperador Clarimundo eacute o uacutenico livro de batalhas e aventuras de cavaleiros com mateacuteria aacuteulica impresso em portuguecircs na primeira metade do seacuteculo XVI3 Embora sejam conhecidas as inuacutemeras objeccedilotildees aos livros de cavalaria seja pelos aspectos de construccedilatildeo mista seja pelas mateacuterias mal quistas pelos letrados religiosos a narrativa de Barros obteve uma segunda impressatildeo ainda no reinado de D Joatildeo III em 1555 Ateacute entatildeo ainda se manteve a eloquente portada o que natildeo eacute o caso da publicaccedilatildeo seiscentista do livro realizada por Antoacutenio Alvarez em 1601 na qual se figuram outros valores para o caraacuteter de Clarimundo Nessa ediccedilatildeo

2 Cf ALMEIDA Isabel Orlando Furioso em livros portugueses de cavalaria pistas de investigaccedilatildeo In Revista eHumanista vol 8 2007 O estudo de Isabel Almeida demonstra os efeitos imitativos operados entre o Clarimundo de Joatildeo de Barros e o Orlando Furioso de Aristo repassando sobretudo imagens e construccedilotildees cenograacuteficas

3 DIAacuteZ-TOLEDO Aureacutelio Vargas Os livros de cavalaria renascentistas nas histoacuterias da literatura portuguesa Peniacutensula Revista de Estudos Ibeacutericos n 3 2006 p 239 Ver tambeacutem excelente livro do prof Aureacutelio intitulado Os livros de cavalarias portugueses dos seacuteculos XVI ndash XVIII Lisboa Pearlbooks 2012 p 17

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seiscentista a aacutervore genealoacutegica anterior eacute substituiacuteda pela estampa de um cavaleiro rei pronto para a batalha tendo agrave frente uma mesquita Essa figuraccedilatildeo imita a portada da ediccedilatildeo quinhentista do Amadis de Gaula impressa em Veneza no ano de 1533 Com isso o Clarimundo ldquomata-turcosrdquo bastante notoacuterio na narrativa sobrepotildee-se agravequela imagem do imperador de Constantinopla e assim impotildee-se na representaccedilatildeo do rei natildeo a gloacuteria do trono bizantino mas o valor de cruzado cristatildeo os merecimentos da ldquoguerra justardquo contra o infiel

Embora o apelo das estampas se diferencie o cotejo dos textos mostra que se tratou apenas de outra impressatildeo do texto quinhentista com pequenas atualizaccedilotildees graacuteficas e linguiacutesticas Nada mais O mesmo natildeo se pode dizer acerca da ediccedilatildeo de 1742 na qual se baseiam as leituras mais recentes respectivamente 1791 1843 e 1953 essa uacuteltima a mais conhecida do grande puacuteblico a cargo do professor Marques Braga e editada pela coleccedilatildeo Claacutessicos Saacute da Costa Acompanha a ediccedilatildeo setecentista a Vida de Joatildeo de Barros composta pelo letrado seiscentista Manuel Severim de Faria4 Uma vida segundo os preceitos antigos do gecircnero encomiaacutestica com o fim de mostrar os merecimentos do historiador que o tornavam apto para o serviccedilo da monarquia catoacutelica portuguesa Antes de tudo conveacutem observar que a ediccedilatildeo de 1742 altera bastante a elocuccedilatildeo da editio princeps desfazendo-lhe o caraacuteter parcial de ldquoPrymera parterdquo e intitulando-a de Chronica do emperador Clarimundo donde os reis de Portugal descendem tirada da linguagem ungara em a nossa Portugueza dirigida ao Esclarecido priacutencipe D Joatildeo Filho do muy Poderoso Rey D Manoel primeiro deste nome Para tanto emenda-lhe um capiacutetulo final que mesmo natildeo aparecendo na taacutebua de capiacutetulos encontra-se no volume terceiro como cap XXVIII no qual narra-se a morte honrosa de Clarimundo mantendo-se afinado com o decoro da personagem e com a elocuccedilatildeo de Joatildeo de Barros Ademais para o editor setecentista a genealogia proposta por Barros na falta de partes que a continuem resolve-se na chegada do filho de Clarimundo ndash D Sancho ndash agrave Peniacutensula a continuaccedilatildeo seria a histoacuteria dos reis que tantos cronistas fizeram Para isso o desfecho apoacutecrifo narra a viagem maravilhosa de D Sancho filho do imperador de Constantinopla Clarimundo e da imperatriz Clarinda em terras ibeacutericas ldquoDe como o priacutencipe D Sancho e seus primos foram levados a Espanha e de como foram feitos reis e da morte do imperador Clarimundordquo5 As modificaccedilotildees dessa ediccedilatildeo estatildeo em consonacircncia com fins eacuteticos e poliacuteticos proacuteprios do discurso da histoacuteria que se mantecircm numa longa duraccedilatildeo nas composiccedilotildees do gecircnero nos seacuteculos XVI XVII e XVIII

4 FARIA Manuel Severim de Discursos varios poliacuteticos por Manoel Severim de Faria Chantre amp Conego na Santa Secirc de Euora Em Euora impressos por Manoel Carvalho impressor da Vniversidade 1624 Cf tambeacutem excelente artigo de Luis Cristiano de Andrade Os preceitos da memoacuteria Manuel Severim de Faria inventor de autoridades lusas In Histoacuterias e perspectivas Uberlacircndia 34 janjun 2006 107-137

5 Cf Croacutenica do emperador Clarimundo op cit p 299 e seguintes O pastiche como o chama Isabel Almeida foi acrescentado no seacuteculo XVIII e deu unidade agrave obra alterando-a drasticamente no seu aspecto de inacabada ou parcialmente publicada

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O exemplar da editio princeps impressa em 1522 que pertence agrave Biblioteca Nacional de Madrid encontra-se em muito bom estado de conservaccedilatildeo6 Trata-se de um impresso elegante legiacutevel com portada na qual estampa-se a figura de Clarimundo e a genealogia dos reis portugueses desde D Sancho e D Henrique ateacute D Joatildeo III Saiu das prensas de Germatildeo de Galharde impressor francecircs radicado em Portugal e que mais publicou obras no seacuteculo XVI em terras lusitanas depois de Joatildeo de Barreira Entre 1509 e 1561 imprimiu em Lisboa e em Coimbra nas prensas do Mosteiro de Santa Cruz usando na maioria dos livros caracteres goacuteticos Seus emblemas tipograacuteficos trazem a esfera armilar o escudo de armas reais e um grifo no timbre Galharde imprimiu outras narrativas de aventuras de cavaleiros como as trecircs partes do Florando de Inglaterra impressas em 15457

No caso do Clarimundo as manchas trazem tipos em letra goacutetica menor cada capiacutetulo eacute introduzido por uma letra ornamentada e os foacutelios satildeo enumerados nos versos do lado direito superior da paacutegina com nuacutemeros romanos A obra compotildee-se pela ldquoTavoadardquo dos trecircs livros por dois proacutelogos ldquoProacutelogo feyto depoys desta obra imprensardquo dirigido ao rei D Joatildeo III e um ldquoProacutelogo sobre a trasladaccedilam da primeira parte da cronica do emperador Clarimundordquo dedicado ao priacutencipe D Joatildeo a ldquoConcordanccedilia que o trasladador faz antre dous cronistas sobre a vinda de dom Anrique nestes reynos despanha e sobre sua genealogiardquo por 114 capiacutetulos divididos em trecircs livros o libro primeiro do foacutelio III ao LIII do capiacutetulos I ao XXXIIII (sic) (34 capiacutetulos) o libro segundo do foacutelio LIII ao CXXIII r do capiacutetulo XXXV ao LXXVIII (43 capiacutetulos) e o libro terccedileyro do foacutelio CXXIII r ao CLXXVI do cap LXXIX ao CXIIII (35 capiacutetulos)8 Haacute um evidente equiliacutebrio na extensatildeo dos capiacutetulos ordenados em trecircs livros o livro primeiro trata da famiacutelia do nascimento da criaccedilatildeo da sagraccedilatildeo do heroacutei como cavaleiro de vaacuterias batalhas entre elas o embate com os gigantes Learco e Pantafasul para libertar a rainha Briaina que reconhece em Belifonte seu filho Clarimundo O primeiro livro conclui-se com a chegada e os combates da Ilha Perfeita Nesse livro a personagem central Clarimundo tem outros nomes de acordo com as circunstacircncias que enfrenta nomeando-se como ldquoBelifonterdquo e ldquoCavaleiro das

6 Prymeira parte da croacutenica do emperador Clarimundo donde os Reys de Portugal desccedilendem de Joatildeo de Barros Lisboa Germatildeo de Galharde 1522 Biblioteca Nacional de Madrid (R-11-727) Haacute um exemplar da segunda impressatildeo de 1555 na Biblioteca do Paccedilo Ducal de Vila Viccedilosa As outras ediccedilotildees satildeo 1601 Clarimundo Lisboa Antoacutenio Alvarez a custa de Andreacute Lopes e outra a custa de Hieroacutenimo Lopes 1742 Chronica do Emperador Clarimundo Lisboa Na Officina de Francisco da Sylva 1791 Chronica do emperador Clarimundo donde os reis de portugal descendem tirada da linguagem ungara em a nossa Lisboa Officina de Joao Antonio da Silva Desta ediccedilatildeo haacute um exemplar na biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da USP 1953 Croacutenica do imperador Clarimundo Com pref e notas do prof Marques Braga Lisboa Saacute da Costa

7 Cf Aureacutelio Vargas Diacuteaz-Toledo Os romances de cavalaria portugueses na sua versatildeo impressa In Os livros de cavalarias portugueses dos seacuteculos XVI ndash XVIII Lisboa Pearlbooks 2012 p 47 Este livro eacute um bem realizado manual que situa as publicaccedilotildees de cavalaria portuguesas tanto os impressos quanto manuscritos servindo de importante guia para os futuros estudiosos

8 No apecircndice final encontra-se um cotejo entre a ldquotavoadardquo de capiacutetulos da editio princeps (reimpressatildeo de 1555 e a editada de 1601) e as ediccedilotildees de 1742 (base das posteriores)

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Laacutegrimas Tristesrdquo O livro segundo trata dos amores do cavaleiro os feitos em armas os episoacutedios de corte sobretudo em Constantinopla Nesse livro ocorre a aventura na qual Clarimundo encantado pelo ldquovaso do esquecimentordquo um tipo de bebida maacutegica eacute acometido por certa loucura e se nomeia ldquoCavaleiro Descuidadordquo respondendo agravequeles com quem fala por meio de versos rimados O terceiro livro trata das profecias do Saacutebio Fanimor sobre os reis de Portugal prenunciando sobretudo os embates entre cristatildeos e mouros recorrentes entre os reis lusitanos

O exemplar da editio princeps utilizado eacute coacutepia digital do livro que pertenceu agrave biblioteca de Pascual de Gayangos ceacutelebre estudioso ibeacuterico de narrativas de cavalarias Ademais eacute curioso que a narrativa de Joatildeo de Barros compartilhe a mesma encadernaccedilatildeo que o livro Espelho de Cristina de Cristine de Pisan impresso em 1518 a mando da Rainha velha D Leonor Embora sejam dois impressores diferentes Germatildeo de Galharde e Herman de Campos e as obras estampadas com quatro anos de distacircncia a encadernaccedilatildeo com os livros geminados natildeo parece compor uma compilaccedilatildeo desatada de obras mas reunir em volume uacutenico obras de gecircnero semelhante ou seja obras de ensinamento moral numa as excelecircncias e virtudes do priacutencipe figuradas no caraacuteter do Clarimundo noutra as virtudes das princesas das mulheres burguesas e das religiosas9

2 O objeto de estudo o episoacutedio da Floresta Encantada cena de pictoacuterico heroiacutesmo

Aleacutem da importacircncia histoacuterica da narrativa cavaleiresca de Joatildeo de Barros o livro compotildee-se como mencionamos como obra dirigida agrave cabeccedila do reino realizada com o esmero que as obras dedicadas aos priacutencipes e reis costumavam receber Assim de imediato podemos destacar o uso apurado da liacutengua portuguesa quinhentista e imitando obras da Antiguidade Latina sobretudo a prosa latina de Suetocircnio propor em liacutengua vernaacutecula a narrativa de batalhas e feitos de cavaleiros com ornamentos e arranjos de linguagem que bem avivam nos leitores os efeitos da mateacuteria narrada Natildeo devemos perder de vista que se trata de obra realizada para a leitura puacuteblica havendo portanto uma ordenaccedilatildeo discursiva que bem atende a esse costume Ademais antes de passarmos ao objeto deste estudo vale atentarmos para o elogio que Eduardo Lourenccedilo confere ao Clarimundo de Joatildeo de Barros destacando justamente os aspectos de primor no uso da linguagem na obra

9 Colofatildeo do impresso do Espelho de Cristina (1518 sn) ldquoPor mandado da muyto esclarecida reyna dona lyanor molher do poderoso e muy manifico rey dotilde juan segundo de portugal Acabouse el libro intitulado das tres virtudes no qual se cotildetem muytas profeytosas doutrinas y saludables exemplos assy pera as generosas y grandes donas como pera as outras de qualquer estado o condiccediliom que sejam E poderam enelle de prender como se ham de regir e governar no regimento de suas casas fazendas y homrras Impresso em ha muy nobre y sempre leal cibdade de lixboa por herman de campos Imprimidor y bomardeyro do rey nosso senhor cotilde gracia y privilegio de su alteza Anno de nostra salvaccedilammdyxviiiannosaxxdias do mes de juniordquo

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Se haacute um livro admiravelmente escrito nesses comeccedilos do seacuteculo XVI () eacute bem esta a primeira obra daquele que se tornaraacute o modelo da nossa grande prosa nobre clara grave e ao mesmo tempo corrente do seacuteculo de Quinhentos Com ele a Idade Meacutedia da nossa liacutengua ainda tatildeo sensiacutevel em Gil Vicente termina e entramos na planiacutecie suave aberta da assimilaccedilatildeo fecunda dos grandes autores claacutessicos que serviraacute de modelo escrito mas tambeacutem de modelo de pensar a nossa melhor prosa do seacuteculo XVI (LOURENCcedilO 1999 p 36)

Feito este proecircmio passamos a tratar daquilo que pretendemos mostrar mais detidamente O verbo ldquomostrarrdquo eacute propositalmente utilizado aqui jaacute que nosso intento eacute falar de demonstraccedilatildeo de figuraccedilatildeo de ekphrasis traduzida pelos latinos como descriptio utilizada como procedimento retoacuterico com fim na enargeia termo da preceituaccedilatildeo retoacuterica antiga que significa exatamente ldquocolocar diante dos olhosrdquo Tratamos de um episoacutedio miraculoso da narrativa de Joatildeo de Barros no qual a ekphrasis opera discursivamente para a produccedilatildeo de efeitos tal como soacutei acontecer com o uso desse artificio textual dizemos logo do efeito para depois atermo-nos no artifiacutecio colocar diante do olhos para ensinar preceito moral colocar diante dos olhos para compor caracteres Antes da cena passemos a algumas breviacutessimas consideraccedilotildees acerca da ekphrasis por alguns estudiosos recentes e na preceptiva de alguns retores antigos e depois vejamos o episoacutedio da narrativa de Joatildeo de Barros em questatildeo

A ekphrasis associa-se a teacutecnicas de amplificaccedilatildeo de toacutepicas narrativas nos diversos gecircneros retoacutericos (HANSEN 2006 p 85) ou como propotildee Barbara Cassin em verbete dedicado ao conceito ldquoeacute uma construccedilatildeo de frases que esgota seu objeto e designa terminologicamente as descriccedilotildees minuciosas e completas que se datildeo de obras de arterdquo10 Segundo os Progymnasmata (Exerciacutecios preparatoacuterios) de Hermoacutegenes a ekphrasis traduzida como ldquodescriccedilatildeordquo consiste em ldquoum enunciado que apresenta em detalhe como dizem os teoacutericos que tem a evidecircncia (enargeia) e que coloca sob os olhos o que ele mostrardquo (HERMOGEacuteNE 1997 p 148) Michel Patillon no estudo introdutoacuterio da ediccedilatildeo francesa da preceptiva de Hermoacutegenes cita um estudo de Zanger o ldquoEnargeia in the ancient Criticism of Poetryrdquo no qual realiza-se uma proposta de siacutentese dos fins a que se propotildee a enargeia ldquoA evidecircncia do estilo eacute sua capacidade de oferecer uma representaccedilatildeo

10 Baacuterbara Cassin em ldquoLrsquolaquo ekphrasis raquo du mot au motrdquo apresenta uma siacutentese do que teria sido o artificio da ekprasis ou descriptio latina tratando da formulaccedilatildeo e do funcionamento na composiccedilatildeo discursiva do termo bem como obras diversas da Antiguidade grega e latina que se valeram do recurso da ekphrasis sendo o ldquoEscudo de Aquilesrdquo uma das mais ceacutelebres realizaccedilotildees da figura ldquoLrsquo ekphrasis [ἔκϕρασις] (sur phrazugrave [ϕράζω] faire comprendre expliquer et ek [ἐκ] jusqursquoau bout) est une mise en phrases qui egravepuise son objet et degravesigne terminologiquement les descriptions minutieuses et compleumltes qursquoon donne des oeuvres drsquoartrdquo Disponiacutevel em In lthttprobertbvdepcompublicvepPages_HTML$DESCRIPTION1HTMgt Acesso em novembro de 2017

Aproveitamos o ensejo e indicamos ao leitor o execelente artigo de Aacutelvaro Cardoso Gomes intitulado ldquoUm mimese da cultura (um estudo da figura retoacuterica da Ekprasis) In Revista de Letras Satildeo Paulo v54 n2 p123-144 juldez 2014

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viva do objeto que se propotildee a colocaacute-lo diante dos olhos do auditoacuterio Isso obteacutem-se essencialmente pela acumulaccedilatildeo de detalhes e o emprego de imagensrdquo (HERMOGEacuteNE 1997 p 49) Aleacutem disso com Hermoacutegenes aprendemos que os objetos a serem descritos pertencem a uma lista bem ampla ldquoas descriccedilotildees satildeo feitas de personagens de accedilotildees de circunstacircncias de lugares de tempos etcrdquo Por exemplo Libanos orador do seacuteculo IV descreve combates em terra uma pintura na sala do conselho festas a embriaguez a primavera um porto um jardim uma caccedila uma batalha naval um leatildeo abocanhando um cervo Hera Heacutercules a destruiccedilatildeo de Troia Polixena assassinada por Neoptoacutelemo Prometeu Medeacuteia a Quimera Palas Ajax a Fortuna etc um panegiacuterico a beleza Outro exemplo Aftocircnio o ceacutelebre preceptista da segunda sofiacutestica preceitua para a descriccedilatildeo de pessoa ndash dita prosopografia ndash que comece pelo alto na cabeccedila e siga em direccedilatildeo ao peacutes Para os fatos comeccedila a descriccedilatildeo pelo que precedeu em direccedilatildeo ao ocorrido Como nos lembra Joatildeo Adolfo Hansen a ekphrasis relaciona-se diretamente com passagens iniciais da poeacutetica e da retoacuterica aristoteacutelica quando ambas defendem que tanto historiadores quanto poetas devem compor com verossimilhanccedila isto eacute aristotelicamente verossiacutemil eacute aquilo que se toma por verdadeiro pela maioria ou pelos mais saacutebios Nesse sentido o verossiacutemil define-se como uma relaccedilatildeo entre discursos e a verificaccedilatildeo de coerecircncia entre um e outro como condiccedilatildeo de aceitaccedilatildeo

Uma das autoridades antigas mais ceacutelebres de ekphrasis eacute Filoacutestrato de Lemos e seus Eikones (Descricotildees) obra antiga grega na qual propotildee-se a descriccedilatildeo de cenas quadros pinturas que existem discursivamente e que se colocam diante dos olhos pela habilidade letrada de Filoacutestrato Para menores delongas na Rhetorica ad Herennium uma das mais acessadas na histoacuteria dos discursos a Descriptio eacute tratada na parte sobre os ornamentos de sentenccedila e deixando de lado os exemplos que didaticamente apresenta destaco duas acepccedilotildees entatildeo divulgadas ldquoa descriccedilatildeo conteacutem uma exposiccedilatildeo perspiacutecua clara e grave das consequecircncias das accedilotildees (coisas)rdquo11 e os efeitos da descriccedilatildeo segundo a preceptiva satildeo ldquoCom esse gecircnero de ornamento pode-se suscitar indignaccedilatildeo ou misericoacuterdia quando todas as consequecircncias reunidas se exprimem brevemente num discurso perspiacutecuordquo Faz-se necessaacuterio atentar para um detalhe apenas colocando-o diante dos nossos olhos um termo que aparece ao iniacutecio e ao fim das consideraccedilotildees sobre a descriptio termo latino de ekprasis eacute o adjetivo perspicuus a um em vernaacuteculo com sentido de claro liacutempido evidente manifesto

Na diegese da narrativa a ekphrasis instaura uma pausa das accedilotildees para a contemplaccedilatildeo de uma figura Cessam os movimentos das accedilotildees para o repouso do olhar que mira as formas as pedras os metais as cores as dimensotildees os gestos as linhas os contornos etc que aparentemente instauram outra natureza discursiva no entanto o aparente corte do fluxo narrativo desfaz-se ao notar-se a conexatildeo entre as partes Isto eacute a descriccedilatildeo estaacute em funccedilatildeo da narraccedilatildeo funcionando-lhe como artifiacutecio que compotildee caracteres e efetuam paixotildees

11 A traduccedilatildeo inglesa da Loeb Classical Library ldquoVivid Description is the name for the figure which contains a clear lucid and impressive exposition of the consequences of an actrdquo (op cit p 357)

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Muito haveria ainda para ser dito acerca da ekfrasis e do seu efeito principal de enargeia sobretudo acerca de seu aspecto retoacuterico mais imediato a persuasatildeo decorrente da amplificaccedilatildeo que produz mas para o que se pretende aqui jaacute eacute o suficiente Para mais sugerimos nas Descriccedilotildees de Filoacutestrato o artigo ldquoCategorias epidiacuteticas da ekphrasisrdquo citado o capiacutetulo da Arte Retoacuterica de Hermoacutegenes sobre as ldquoDescriccedilotildeesrdquo e destaco a ceacutelebre obra de Antoine Du Verdier intitulada La prosopographie ou description des personnes insignes enrichie de plusieurs effigies e reduite en quatre livres publicada em 1583

Passemos agora agrave leitura da cena de Clarimundo que pretendemos analisar Nosso fim eacute observar como a narrativa de Barros vale-se da ldquopausardquo das accedilotildees resultante da descriccedilatildeo de um monumento no qual se datildeo eventos miraculosos dentro da poeacutetica das narrativas de cavaleiros O episoacutedio da ldquoFloresta Encantadardquo produz-se pelo artifiacutecio da ekphrasis ou descriptio colocando diante dos olhos do leitor um minucioso quadro que se constitui tanto do cenaacuterio como de figuras centrais como a cabeccedila esculpida de ouro que fala com Clarimundo

Episoacutedio da Floresta Encantada

() e chegando ao mais baixo e escuro lugar daquele vale viu um corucheacuteu que seria da altura de trinta braccedilas coberto de pedra negra e leonado com extremos de pardo e sustinha-se sobre quatro colunas de metal de quinze braccedilas e da grossura necessaacuteria para tamanho peso as quais era lavradas ao buril de histoacuterias antigas e debaixo desse corucheacuteu estava uma sepultura agrave maneira de essa que tinha cinquenta degraus de pedra negra e nos cantos da quadra estavam estas quatro alimaacuterias feitas de metal que a sustinham sobre si um leatildeo um tigre um touro e um grifo feitos tatildeo artificiosamente e com tal espiacuterito e agudeza nos olhos e em todas as outras feiccedilotildees que enganavam a vista para os temer e natildeo para folgar de os olhar E cada alimaacuteria destas tinha entre as matildeos um ciacuterio negro que ardia sem se consumir tatildeo altos que chegavam agrave maior altura daquela essa Nos outros cantos da quadra que o derradeiro degrau fazia estava em cada um uma imagem de gigante armado com todas as suas armas somente a cabeccedila descoberta porque no rosto mostrava maior ferocidade que nas armas que lho podiam cobrir e tinham suas bisarmas nas matildeos para defender a subida No estrado de todo acima estava uma imagem de mulher feita de prata assentada em uma cadeira real e na cabeccedila tinha uma coroa de ouro a modo de imperatriz mostrando grande acatamento e nas matildeos um cofre de barro que tinha os fechos de ouro e na cinta estava a chave dele (BARROS 1953 vol II p 202-203)

Os elementos da descriccedilatildeo evidenciam-se na pintura de formas objetos alturas volumes ornamentos cores pedras arquitetura etc Elementos esses que compotildee o quadro no qual se cristaliza a narrativa e se emoldura a accedilatildeo de que participa Clarimundo e seu interlocutor miraculoso essa descriccedilatildeo introduz uma das cenas mais marcantes de tantas que o Clarimundo conteacutem depois de enfrentar as estaacutetuas de pedra guardiatildes de um edifiacutecio tumular (essa) que por maravilha se tornaram animadas e tentam-no impedir a entrada no mausoleacuteu Clarimundo toma a chave presente da cinta da estaacutetua de prata e

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abre certa arca de barro ali depositada Nela encontra-se a cabeccedila de um rei feita de ouro ldquocom uma coroa de pedraria de grande preccedilordquo Para espanto e maravilha como o proacuteprio narrador ressalta a cabeccedila comeccedila a falar e o seu discurso justifica toda a amplificaccedilatildeo que o texto compotildee em torno de si A narrativa na fala da cabeccedila suspende seu curso e daacute ao rei a primeira voz em discurso direto apresentando os lamentos de um monarca de vida atormentada pelas injusticcedilas feitas no exerciacutecio do poder

Todas as noites tanto que me recolhia em minha cacircmara dos negoacutecios do dia vinha alma de meu pai que era passado deste mundo e com umas vergas de ferro me accediloutava tatildeo cruelmente que me parecia natildeo poder chegar agrave manhatilde segundo me deixava atormentado poreacutem tanto que se partia de mim ficava livre daquela dor (BARROS 1953 vol II p 206)

O filho (cuja cabeccedila de ouro conversava com Clarimundo) recebia as visitas noturnas do pai rei jaacute falecido e de quem recebera o trono e deste uacuteltimo sofria tormentos porque herdara natildeo apenas as riquezas do reino mas vieram tambeacutem com elas as injusticcedilas desmandos assassinatos e usurpaccedilotildees O descanso do pai se daria com os fracassos do filho com a perda da heranccedila maldita de um reinado que se fizera tiracircnico Na diegese da narrativa Clarimundo estava predestinado a encontrar aquela sepultura e ouvir da cabeccedila de ouro os vaticiacutenios sobre as gloacuterias da sua prole de digniacutessimos reis Aquela cabeccedila encantada a partir do encontro com Clarimundo dispotildee-se agrave conversaccedilatildeo com cavaleiros que lhe sejam merecedores em bondade das armas para os quais revelaraacute as coisas futuras A fala da personagem miraculosa a escultura falante expotildee na formulaccedilatildeo de seu discurso o enaltecimento da linhagem de Clarimundo amplificando os merecimentos da descendecircncia do cavaleiro huacutengaro e por decorrecircncia da Casa Real portuguesa Mais o reforccedilo dos conselhos de pareneacutetica reacutegia centrais na narrativa datildeo-se nos lamentos acerca do destino dos monarcas viciosos o supliacutecio post mortem do agente e o tormento em vida do herdeiro penalizado pela derrota fatal A ekphrasis do tuacutemulo da Floresta encantada apoacutes a passagem de Clarimundo converte-se numa ldquoArca da sabedoriardquo e potildee agrave frente dos olhos a grandeza de um monumentum (no sentido latino de ldquoaquilo que se deve lembrarrdquo) que enaltece os saberes necessaacuterio dirigido aos priacutencipes reis e fidalgos em geral ligados ao comando do reino o destino daqueles que praticam injusticcedila e tirania na conduccedilatildeo da coisa puacuteblica Como se realiza de modo recorrente na narrativa de Joatildeo de Barros as cenas maravilhosas de aventuras e batalhas satildeo sucedidas por aconselhamentos e demonstraccedilotildees de saberes eacuteticos concernentes agrave excelecircncia do poder Nesse sentido a ficccedilatildeo (no sentido de fictio de imagem e figura) do Clarimundo corrobora ou melhor alinha-se agrave ceacutelebre maacutexima horaciana preconizada na Carta aos Pisotildees a chamada Arte poeacutetica de Horaacutecio que ao deleite se siga o ensinamento e no caso ensinamento poliacutetico de extrema relevacircncia numa ordem monaacuterquica de poder

O ensinamento proposto evidencia-se nas sentenccedilas da narrativa nessa passagem entrelaccedila-se a vida e a morte o terreno e o aleacutem ou melhor a praacutetica terrena e o castigo vindouro e como lembra Isabel de Almeida ldquoa responsabilidade de pensamento e actos

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reacutegios em foco no exemplordquo Seguindo o raciociacutenio de Almeida e pensando no caso especiacutefico dessa passagem o ensinamento preconizado diz respeito agrave distinccedilatildeo entre governo e tirania entre a conquista insana de comarcotildees e a guerra justa aquela que se embate com o inimigo infiel sobretudo o turco

Ademais no que diz respeito agrave construccedilatildeo retoacuterica da cena torna-se bastante eloquente e decoroso atribuir a uma aacuteurea cabeccedila de imperador todo o discurso que ouvimos e mais numa anaacutelise do episoacutedio em relaccedilatildeo agrave totalidade da narrativa evidenciam-se as provaacuteveis fontes de invenccedilatildeo da representaccedilatildeo Devemos lembrar que no canto VI Eneias encontra-se em Cumes e pede agrave Sibila um uacuteltimo encontro com seu falecido pai Anquises Para tanto Eneias desceria ao mundo dos mortos encontraacute-lo-ia e ouviria dele tal como vemos na cena do Clarimundo os vaticiacutenios sobre sua elevada ascendecircncia

Cessa Anquises a Eneias e a SibilaTraz ao mais basto da ruidosa turbaUm combro toma donde a extensa filaDivise dos que vecircm e a todos possaOs traccedilos discernir Entatildeo prossegueldquoEia a gloacuteria que os Daacuterdanos esperaDo iacutetalo tronco os descendentes nossosQue a fama ilustraratildeo dos seus maioresHei de explicar-te e aprenderaacutes teus fadosNotas proacuteximo agrave luz por sorte um jovemSe arrima em hasta pura agraves auras mistoLatino sangue surgiraacute primeiroO teu postremo Siacutelvio nome albanoQue a ti longevo pariraacute nas selvasTarde Laviacutenia rei de reis estiacutepitePor quem seremos de Alba inda senhores (VIRGILIO 2008 versos 771-786)

A longa jornada de Eneias pelo mundo dos mortos estaacute para a descriccedilatildeo e as aventuras de Clarimundo ao penetrar na sepultura encantada seguindo por uma escada guardada por grandes estaacutetuas de pedra que a defendiam dos intrusos Do mesmo modo ouvimos o vaticiacutenio e os ensinamentos sobre as virtudes de rei da boca de figuras autorizadas para tais dizeres pelo caraacuteter que apresentam na narrativa um rei do passado representado numa cabeccedila de ouro que maravilhosamente fala como um monumento loquaz que ldquofaz lembrarrdquo o infortuacutenio de um reino malfadado pela injusticcedila e pelos viacutecios No entanto em meio a tantas penas e desconcertos a cabeccedila exorta ao futuro imperador de Greacutecia as virtudes necessaacuterias agrave cabeccedila do reino - o rei

Outra fonte verossiacutemil de invenccedilatildeo encontra-se no Orlando Furioso de Ariosto No canto III Bradamante encontra-se numa capela na qual lhe aparece uma figura ldquovem descalccedila traz soltas vestimentas E grenhas e por nome a cumprimentardquo Bradamante eacute guiada a uma entrada uma gruta

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Santa e antiga eacute esta gruta e quem a fezConstruir foi Merlim o saacutebio magoQue aqui (teraacutes ouvido isso talvez)Caiu no engano da Dama do LagoSeu corpo haacute muito em poacute jaacute se desfezE jaz neste sepulcro onde ele pagoDe dar ouvidos agravequela mulherVivo deitou-se e morto estaacute a jazer (ARIOSTO 2002 p 94)

A imitaccedilatildeo parece verossiacutemil pelos procedimentos de composiccedilatildeo estando as cinzas de Merlim para a cabeccedila de ouro do imperador ambos finados por causa de seus enganos e no mundo dos mortos expiam sua condiccedilatildeo pela profecia e pelo ensinamento Vejamos um pouco mais do canto III do Orlando Furioso de Ariosto as profecias de Merlim sobre a ascendecircncia de Bradamante e Ruggiero

Tatildeo logo Bradamante dos umbraisSe aproxima da fuacutenebre capelaCom voz sonora dos restos mortaisO espiacuterito vivente diz a ela- Que a Fortuna te ajude sempre maisOacute casta e nobiliacutessima donzelaCujo seio traraacute o germe fecundoDa gente a que honraratildeo Itaacutelia e o mundo (ARIOSTO 2002 p 96)

A pena de Ariosto compotildee uma genealogia elevada para a Casa DrsquoEste a quem se dedica o Orlando elogiando-a pela elevaccedilatildeo dos seus primeiros pais e descrevendo-lhe os ilustres filhos e seus feitos A imitaccedilatildeo de Joatildeo de Barros compartilha dos mesmos procedimentos de elogio pela elevaccedilatildeo da genealogia no entanto daacute soluccedilotildees diferentes e de certo modo eficientes no que diz respeito ao deleite do leitor isto eacute a cena da ldquoFloresta Encantadardquo como ocorre em vaacuterios outros episoacutedios do Clarimundo satildeo prenuacutencios dos vaticiacutenios da Torre de Sintra episoacutedio central na narrativa de Barros12 Com isso constitui-se uma unidade e uma evidenciaccedilatildeo do momento no qual se confirmam os merecimentos de Clarimundo e pela proacutepria disposiccedilatildeo narrativa anunciam e preparam as profecias de Fanimor

12 O episoacutedio da torre de Sintra eacute a cena mais lembrada do Clarimundo na sua remissatildeo criacutetica breve apresentada em geral nos manuais de histoacuteria da literatura portuguesa Esse episoacutedio apresenta Clarimundo em terras portuguesas e na companhia de Fanimor um mago que protege o priacutencipe em toda a narrativa e que no alto da torre de Sintra vaticina em oitavas rimas toda a descendecircncia heroica do priacutencipe Clarimundo Na ediccedilatildeo de Marques Braga estaacute no capiacutetulo IV do livro III intitulado ldquoComo partidos os moradores de Sintra quisera Clarimundo ir ao castelo de Torres Vedras mas foi desviado por Fanimor E das grandes profecias que profetizou acerca das coisas de Portugalrdquo

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A leitura do discurso transcrito atribuiacutedo ao imperador condenado remete-nos a uma provaacutevel fonte da filosofia moral cristatilde preconizada por Joatildeo de Barros Trata-se do capiacutetulo XXIV do quinto livro da Cidade de Deus de Santo Agostinho no qual se apresentam as virtudes que garantem a felicidade dos imperadores cristatildeos

Nem noacutes chamamos felizes a alguns imperadores cristatildeos laacute porque reinaram por muito tempo e legaram apoacutes uma plaacutecida morte o impeacuterio aos filhos ou domaram os inimigos da Repuacuteblica ou conseguiram prevenir e reprimir cidadatildeos que contra si se rebelaram Estas e outras daacutedivas ou consolaccedilotildees desta vida atribulada tambeacutem certos adoradores dos democircnios mereceram recebecirc-las sem pertencerem como aqueles pertencem ao reino de Deus ndash e Deus assim o decidiu na sua misericoacuterdia para que os que nrsquoEle creem natildeo as desejassem como se elas fossem o Bem Supremo (AGOSTINHO 2006 p 541)

A doutrina moral desta passagem eacute anaacuteloga agrave representaccedilatildeo do discurso da cabeccedila de ouro indicando o inferno e as tormentas eternas como fim daqueles que ao contraacuterio do que vimos desejam as conquistas mundanas em si mesmas movidos pela ambiccedilatildeo viciosa Para Agostinho o imperador cristatildeo feliz governa com justiccedila natildeo se orgulha com elogios e se lembra de que eacute homem submete seu poder agrave majestade de Deus a fim de dilatar ao maacuteximo seu culto teme a Deus ama-o e teme-o satildeo lentos a punir e prontos a perdoar exercem a vinganccedila pela obrigaccedilatildeo de protegerem a repuacuteblica e natildeo para cevarem os seus oacutedios contra os inimigos concedem o perdatildeo na esperanccedila da emenda compensam as medidas severas com a brandura da misericoacuterdia e a largueza dos benefiacutecios preferem dominar em si as paixotildees a quaisquer povos e tudo isso em amor agrave felicidade eterna e natildeo agrave gloacuteria terrena A construccedilatildeo do caraacuteter heroico de Clarimundo daacute-se pela sucessatildeo de suas accedilotildees nas diversas circunstacircncias enfrentadas o que se evidencia em episoacutedios como a aventura da ldquoFloresta Encantadardquo o episoacutedio da ldquoIlha Perfeitardquo a aventura nos domiacutenios da maga Arpinda a fidelidade ao amor de Clarinda Assim o caraacuteter da personagem Clarimundo confirma em palavras e feitos os prenuacutencios do mago Fanimor e endossam modelos reacutegios preconizados em obras autorizadas sobre a figura do rei e do priacutencipe excelentes

Voltando ao discurso da estaacutetua conveacutem observar alguns elementos de sua constituiccedilatildeo natildeo apenas por seus argumentos de filosofia moral mas tambeacutem pelos artifiacutecios elocutivos utilizados Precede agrave revelaccedilatildeo da estaacutetua falante um trecho entre parecircnteses que enaltece ao leitor em forma de digressatildeo a ldquomaravilhardquo daquele momento ldquooh cousa maravilhosa de crer e espantosa para cometer se outras de tanta admiraccedilatildeo natildeo tiveacuteramos vistordquo O proecircmio do discurso seguinte utiliza-se de toacutepicas de captatio benevolentiae nesse caso com fins agrave piedade jaacute que se procede por construccedilotildees argumentativas antiteacuteticas que num primeiro membro revela o poder a gloacuteria a sabedoria os domiacutenios sobre os ceacuteus e as terras para logo em seguida apoacutes uma digressatildeo acerca da fraqueza de tudo que eacute humano e terreno revelarem-se os termos antagocircnicos ao poder agrave gloacuteria e agrave sabedoria quais sejam a tormenta

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o fracasso e a morte O cerne de toda a argumentaccedilatildeo encontra-se na descriccedilatildeo de um sonho no qual se revela a causa da perdiccedilatildeo dos reis a injusticcedila e a tirania Viacutecios estes que condenam agraves tormentas eternas no inferno Todo o pathos desta cena sobretudo na descriccedilatildeo do sonho serve como recurso retoacuterico de evidenciaccedilatildeo da seccedilatildeo posterior do episoacutedio que traz o elogio da luta contra os turcos um dos pontos centrais deste capiacutetulo e do Clarimundo

E no te[m]poacute q[ue] a nobre cavalaria de Greacutecia desfalleccediler q[ue] sera quatildedo se nam achar neste impeacuterio que[m] suba o primeiro degrao desta minha sepoltura entam sera por seus pecados tomado e posuydo dos Turcos Entrando per elle como os baacuterbaros entraratilde na feroz Espanha q[ua]ndo dom Rodrygo o derradeyro rey dos Godos a perdeo E assi tatilde bem como os reys Portugueses q[ue] de ty am de proceder lanccedilaram [de] suas terras a esta danada seyta e entraratilde nas partes Dafrica e Asia regando od catildepos cotilde o sangue desta barbara Ge[n]te (Prymera parte da crocircnica livro II fol XCIII)

Eacute interessante notar a proeminecircncia da guerra contra os mouros na gloacuteria futura da profecia e mais do que isso notar o artifiacutecio retoacuterico de associaccedilatildeo por equivalecircncia das investidas dos Turcos e as investidas baacuterbaras registradas nas crocircnicas ibeacutericas desde o seacuteculo XIII Com isso a narrativa fabulosa apresenta-se como crocircnica como histoacuteria na qual realiza-se a propaganda contra os inimigos da feacute Aleacutem disso haacute um artifiacutecio retoacuterico no argumento que lhe confere paradoxalmente o sentido de elogio na fala da cabeccedila de ouro as profecias acerca dos reis portugueses destacam-lhes as vitoacuterias futuras sobre os infieacuteis mencionados como a ldquobaacuterbara genterdquo a ldquodanada seitardquo a ldquomaacute geraccedilatildeordquo cujo sucesso proveacutem da decadecircncia da cavalaria e dos seus valores aos pecados e erros do Ocidente Nesse sentido sugere-se que a accedilatildeo portuguesa seraacute o antiacutedoto contra a decadecircncia da luta contra os infieacuteis Com isso as conquistas portuguesas recebem jaacute no Clarimundo a justificativa que as valorizaram tais como a cristianizaccedilatildeo da Aacutefrica e da Aacutesia e o aniquilamento dos inimigos da feacute ldquoregando os campos com o seu sanguerdquo

Ademais tanto no que diz respeito agrave ordenaccedilatildeo dos capiacutetulos como na disposiccedilatildeo das accedilotildees do nascimento de Clarimundo e sua coroaccedilatildeo como imperador de Constantinopla o episoacutedio da ldquoFloresta Encantadardquo ocorre num momento central da narrativa ou seja Clarimundo eacute reconhecido como priacutencipe herdeiro do trono da Constantinopla manteacutem-se casto e fiel agrave Clarinda que tambeacutem lhe retribui o amor jaacute conquistou a Ilha Perfeita na qual demonstrou por feitos maravilhosos todos os seus merecimentos como cavaleiro e priacutencipe Assim a cena da ldquoFloresta Encantadardquo a descriccedilatildeo do lugar e dos seres miraculosos que nele estatildeo envolvidos essa descriccedilatildeo coloca diante dos olhos do leitor natildeo apenas as imagens que conferem maravilhamento e deleite mas tambeacutem doutrinas poliacuteticas e religiosas quinhentistas que se pretende preconizar aos leitores e sobretudo agravequele leitor primordial da narrativa de Joatildeo de Barros o rei e seus iacutentimos

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HERMOGEgraveNE Lrsquoart Rhetorique Traduction franccedilaise inteacutegrale introduction et notes par Michel Patillon Lussaud Lrsquoage drsquohomme 1997

LOURENCcedilO Eduardo Mitologia da Saudade Satildeo Paulo Companhia das Letras 1999

MENEZES D Pedro Oraccedilatildeo proferida no Estudo Geral de Lisboa Texto latino presente na ediccedilatildeo de Miguel Pinto de Menezes Lisboa Centro de Estudos de Psicologia e de Histoacuteria da Filosofia anexo agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1994

Recebido em 12052017

Aceito em 25092017

Flaacutevio Antocircnio Fernandes Reis

Mestre e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de Satildeo Paulo Docente do Departamento de Estudos Linguiacutesticos e Literaacuterios e do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Memoacuteria Sociedade e Linguagem (CAPES nota 5) ambos da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) flavuspgmailcom

Entrevista

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eISSN 22376844polifonia

Literatura e Ensino Entrevista com Joseacute Augusto Cardoso Bernardes

Por Marinete Luzia Francisca de Souza

JOSEacute AUGUSTO CARDOSO BERNARDES (1958) eacute Professor Catedraacutetico na Faculdade de Letras de Coimbra e membro do Centro de Literatura Portuguesa Foi codiretor de Biblos Enciclopeacutedia Verbo das Literaturas de Liacutengua Portuguesa (1995-2005) Eacute Diretor da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (desde 2011) e consultor para o Programa Liacutengua Portuguesa da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian (desde 2013) Foi Membro do Conselho Nacional de Educaccedilatildeo entre 2011 e 2016

De entre as obras que publicou destacam-se O Bucolismo Portuguecircs (1988) Saacutetira e Lirismo em Gil Vicente (1996) Histoacuteria Criacutetica da Literatura

Portuguesa Humanismo e Renascimento (1999)1 Revisotildees de Gil Vicente (2003) A Literatura no Ensino Secundaacuterio (2004) Miguel Torga e a melancolia de Portugal (2006) Gil Vicente (2008) A Literatura e o Ensino de Portuguecircs (2013)2 A Biblioteca da Universidade Permanecircncia e metamorfoses (2015) Camotildees nos prelos de Portugal e da Europa 1563-2000 (2015)3

Para aleacutem de ter publicado estudos sobre Gil Vicente e Luiacutes de Camotildees como foi visto vem se dedicando aos problemas da investigaccedilatildeo e do ensino das Humanidades tema dessa entrevista

Entrevista

Polifonia ndash Considerando as investigaccedilotildees que vem sendo realizadas sobre o ensino de literatura nos niacuteveis Fundamental e Meacutedio (Secundaacuterio) como analisaria a evoluccedilatildeo dos estudos nesta aacuterea

Bernardes ndash Ao longo de vaacuterias deacutecadas nas universidades portuguesas os estudos so-bre o ensino da literatura foram considerados como aacuterea marginal

1 Com Direccedilatildeo de Carlos Reis2 Em colaboraccedilatildeo com Rui Afonso Mateus3 Em colaboraccedilatildeo com Ana Migueis e Carla Ferreira

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O desprezo sobranceiro que recaiacutea sobre domiacutenio do conhecimento tem duas explicaccedilotildees principais a desconfianccedila suscitada pelas ciecircncias da educaccedilatildeo em geral que alguns entatildeo consideravam desprovidas de suficiente base epistemoloacutegica e a proclamaccedilatildeo de primazia que provinha das aacutereas de investigaccedilatildeo mais estabelecidas e convencionais Basta lembrarmos que os estudos literaacuterios se mostravam abertos a colaboraccedilotildees interdisciplinares com a linguiacutestica (concebida nos seus diferentes ramos) com a esteacutetica ou com a histoacuteria mas enjeitavam ocupar-se da adequaccedilatildeo do seu saber agraves diferentes realidades escolares

Eu proacuteprio testemunhei muitos sinais dessa desconfianccedila Nos anos 80 ou 90 do seacuteculo passado na minha Faculdade de Letras (Universidade de Coimbra) natildeo era faacutecil incluir um pequeno moacutedulo que fosse destinado a problematizar a forma como se poderia ensinar Camotildees ou Gil Vicente O fundamento para esta exclusatildeo era o de que o conhecimento adquirido pela via da pesquisa se bastava a si proacuteprio

As tarefas de adequaccedilatildeo eram reconhecidas mas eram tidas como ldquofaacuteceisrdquo e competiam estritamente aos professores dos diferentes niacuteveis Prevalecia a ideia de que saber em causa carecia apenas de regulaccedilatildeo cientiacutefica (assegurada pelas universidades) A sua transmissatildeo deveria fazer-se de maneira uniforme exclusivamente sustentada pela preparaccedilatildeo e motivaccedilatildeo de professores e alunos Era ainda suposto que uns e outros reagissem da mesma forma agrave transmissatildeo dos conhecimentos independentemente das suas circunstacircncias socioculturais

Pouco a pouco estes pressupostos foram sendo objeto de questionaccedilatildeo Tal sucedia por via teoacuterica desde logo

Mas foi sobretudo pelo confronto com a praacutetica que se foi descobrindo que o cenaacuterio escolar mudara muito A democratizaccedilatildeo do acesso agrave Escola por parte das nossas crianccedilas e adolescentes (que em Portugal se situa atualmente nos 18 anos ou no 12ordm ano) contribuiu para que as turmas se tornassem comunidades cada vez mais heterogeacuteneas Ensinar qualquer mateacuteria tornou-se assim mais difiacutecil envolvendo requisitos como dinamismo flexibilidade adaptaccedilatildeo de meacutetodos reconversatildeo de objetivos etc

Polifonia ndash O que pensa sobre o ensino de literaturas dos Paiacuteses de Liacutengua Portuguesa em detrimento das literaturas ditas nacionais

Bernardes ndash O ensino da literatura nacional teve e continua a ter um efeito identitaacuterio muito forte Ler os mesmos livros num determinado espaccedilo e ao longo de sucessivas geraccedilotildees constroacutei memoacuteria coletiva e reforccedila viacutenculos Natildeo podemos esquecer que foi esse o principal fundamento para a escolarizaccedilatildeo da literatura que na Europa teve lugar a partir das trecircs uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Hoje poreacutem a ideia de comunidade alargou-se deixando de estar limitada ao acircmbito poliacutetico Um adolescente portuguecircs brasileiro ou angolano deve ser educado com bases de cidadania poliacutetica Isso natildeo impede poreacutem o alargamento a outros contextos envolvendo o que poderiacuteamos chamar a Cidadania linguiacutestica e cultural

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Nesse sentido aplaudindo uma proposta concreta formulada haacute dois anos em Coimbra pelo Professor Viacutetor Aguiar e Silva sou favoraacutevel a compromissos que possibilitem a entrada de autores brasileiros e africanos no cacircnone escolar portuguecircs Essa entrada pode fazer-se de muitas maneiras Natildeo me parece necessaacuterio desde logo que haja uma substituiccedilatildeo de uns autores por outros

Defendo nomeadamente que o conhecimento dos textos literaacuterios na Escola deve ser de natureza antoloacutegica e natildeo tatildeo intensiva como eacute hoje Em Portugal com 14 anos um aluno pode andar dois meses a falar do Auto da Barca do inferno e outros dois de Os Lusiacuteadas Acho que se trata de um tempo excessivo e potencialmente saturante

Com uma visatildeo mais panoracircmica destinada a estimular a curiosidade do aluno haveria lugar para mais autores e mais textos uns e outros tomados como estiacutemulo agrave leitura e natildeo tanto como objeto de estudo minucioso e totalizante

Polifonia ndash Se por um lado as humanidades vecircm sendo colocadas de lado por outro a escrita e leitura satildeo fatores de inserccedilatildeo ou discriminaccedilatildeo social O que diria sobre esse tema

Bernardes ndash Como qualquer outra atividade humana a leitura e a escrita podem servir a propoacutesitos discriminatoacuterios Mas isso natildeo significa que em si mesmas essas praacuteticas devam ser vistas com suspeiccedilatildeo ou relutacircncia Pelo contraacuterio ler e escrever em patamares elevados de sensibilidade e consciecircncia criacutetica constituem instrumentos insubstituiacuteveis de promoccedilatildeo de qualquer ser humano Haacute que lutar por que todos tenham acesso a esses instrumentos O caminho soacute pode ser o da democratizaccedilatildeo metoacutedica exigente e esperanccedilosa Haacute ainda muitos seres humanos sem aacutegua potaacutevel eletricidade ou alimentaccedilatildeo e isso eacute inaceitaacutevel Como eacute inaceitaacutevel que haja seres humanos incapazes de tirar proveito das grandes realizaccedilotildees teacutecnicas e artiacutesticas da espeacutecie A leitura e a escrita situam-se neste uacuteltimo acircmbito

Verifico que ciclicamente existe a tentaccedilatildeo de eliminar dos Programas aquilo que eacute difiacutecil os textos literaacuterios e filosoacuteficos por exemplo Assim se teriam em devida consideraccedilatildeo as especiais dificuldades que alguns alunos socialmente desfavorecidos costumam sentir quando na Escola lidam com esses textos pela primeira vez

Ora em meu entendimento o raciociacutenio deve ser justamente o oposto Se essas crianccedilas natildeo tecircm outra possibilidade de conhecer esses textos e de deles tirar o devido partido tem que ser a Escola a cumprir esse papel compensatoacuterio Isso coloca nos professores uma responsabilidade acrescida que comeccedila na motivaccedilatildeo e termina na avaliaccedilatildeo Mas natildeo existe outra maneira de cumprir esse imperativo social

Polifonia ndash Haacute no mundo de Liacutengua Portuguesa uma dicotomia entre as literaturas escritas canocircnicas e as literaturas orais indiacutegenas (casos dos paiacuteses africanos do Brasil e Timor Leste) em sua maioria intercultural O que proporia para essa divisatildeo

Bernardes ndash Tambeacutem nesse plano sou a favor de compromissos e equiliacutebrios ditados pela sen-satez e pelas condiccedilotildees especiacuteficas que se verificam em cada situaccedilatildeo

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Natildeo faz nenhum sentido separar radicalmente os dois tipos de produccedilatildeo literaacuteria numa loacutegica de disputa Eacute nocivo ignorar as literaturas ditas indiacutegenas sob qualquer pretexto E eacute igualmente negativo privar seja quem for do acesso ao contacto com as obras mais lidas e conhecidas do cacircnone (ocidental e oriental) Mais do que dicotomia tem que haver espaccedilo e estiacutemulo para conhecer ambas Ambas ajudam a crescer em espiacuterito de abertura e toleracircncia

Polifonia ndash Qual sua opiniatildeo sobre as adaptaccedilotildees de textos claacutessicos para a sala de aula

Bernardes ndash O ideal seria que as adaptaccedilotildees pudessem servir como introduccedilatildeo ao texto original Muitas vezes se diz que a adaptaccedilatildeo eacute faacutecil e o original eacute difiacutecil Julgo no entanto que existem maneiras mais ou menos adequadas de apresentar esses mesmos textos ditos difiacuteceis Tudo estaacute nos objetivos que pretendemos alcanccedilar Olhando para a forma como os programas tratam certos autores no ensino baacutesico e secundaacuterio (reporto-me mais uma vez ao que sucede em Portugal) fico com a ideia de que seria possiacutevel uma aproximaccedilatildeo menos convencional e mais ajustada agraves necessidades dos alunos

Em minha opiniatildeo a necessidade maior eacute sempre a de formar o gosto dos alunos tornando-os leitores assiacuteduos curiosos e preparados O pior que se pode fazer com a literatura na Escola eacute criar a ideia de que os livros satildeo para serem lidos uma soacute vez e ateacute agrave exaustatildeo

Costumo dizer que a pior reaccedilatildeo que podemos ouvir de um aluno a propoacutesito de um determinado texto eacute a que se traduz pelas consabidas palavras ldquoJaacute deirdquo Um texto nunca estaacute verdadeiramente dado Ao longo das aulas o professor deve abrir alguns caminhos mas permitindo que o aluno fique com vontade de continuar a caminhar por trilhos novos e que em alguns casos satildeo soacute seus

Polifonia ndash Em alguns paiacuteses o acesso ao texto literaacuterio se daacute preferencialmente por meio do livro didaacutetico (que apresenta fragmentos de textos) ou dos textos recomendados pelo Exame Nacional (ENEM no caso do Brasil) ou pelos programas curriculares instituiacutedos pelo governo O que proporia para superar essa barreira na formaccedilatildeo de leitores

Bernardes ndash Natildeo conheccedilo suficientemente a realidade brasileira para me pronunciar sobre ela em concreto No que diz respeito agrave realidade portuguesa julgo que os manuais escolares tecircm melhorado bastante nos uacuteltimos anos Qualquer manual carece hoje de certificaccedilatildeo legal concedida por uma instituiccedilatildeo de ensino superior Esse requisito levou as editoras a ter mais cuidado na escolha das equipas que concebem os livros

De uma forma geral pode dizer-se que em Portugal os manuais escolares de Portuguecircs reuacutenem condiccedilotildees para funcionarem como estiacutemulo agrave leitura Satildeo bastante cuidados do ponto de vista graacutefico apoiam-se em investigaccedilatildeo consolidada tecircm em conta as expetativas e as criacuteticas de professores e alunos

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Ainda assim parece-me que existe bastante caminho para percorrer Dou um exemplo Natildeo me parece bem que os manuais possam conter obras integrais O Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente que se lecirc no 9ordm ano de escolaridade quando o aluno tem cerca de 14 anos ou o conto A Aboacutebada de Alexandre Herculano que faz parte do Programa do 11ordm ano figuram integralmente nos manuais Nem sempre surgem bem anotados e explicados o que eacute compreensiacutevel

Do meu ponto de vista seria preferiacutevel que o aluno fosse encorajado a aproximar-se de uma ediccedilatildeo didaacutetica publicada em volume separado a cargo de um especialista Quem estuda continuadamente um determinado autor sabe alertar-nos melhor para os significados escondidos dos textos Seria no entanto ldquoobrigatoacuteriordquo que o dito estudioso natildeo esquecesse nunca que os seus destinataacuterios concretos (os alunos e mesmo os professores) dispensam divagaccedilotildees complicadas em termos de discurso Necessitam sobretudo de explicaccedilotildees pacientes e claras Vejo nesta praacutetica uma outra vantagem para aleacutem de permitir um aproveitamento diferente dos textos em causa esta estrateacutegia permitiria que o aluno frequentasse a biblioteca ou pensasse em formar a sua proacutepria coleccedilatildeo de livros Por uacuteltimo lendo os textos em volumes separados o aluno dar-se-ia conta de que Gil Vicente ou Alexandre Herculano natildeo escreveram os textos diretamente para nenhum manual Assisto com muita apreensatildeo a uma desqualificaccedilatildeo do livro enquanto objeto no pressuposto erradiacutessimo de que se trata de um objeto anacroacutenico e sem futuro Posso entender que esta ideia circule com tracircnsito faacutecil em determinados meios Basta lembrarmo-nos da promoccedilatildeo publicitaacuteria que envolve os produtos digitais em oposiccedilatildeo ao livro Custa-me a aceitar que a Escola natildeo tenha em relaccedilatildeo a essa propaganda uma atitude mais distante e ponderada Tanto mais quanto se sabe que quando falamos de tecnologia digital falamos de instrumentos que eacute necessaacuterio usar com cautela sob todos os pontos de vista

Polifonia ndash O senhor considera que o ensino de obras de autores dos diversos paiacuteses de Liacutengua Portuguesa configura para aleacutem de um alargamento dos horizontes culturais do estudante a afirmaccedilatildeo de uma ldquocomunidade imaginadardquo no sentido que Benedict Anderson atribui agrave expressatildeo em torno da CPLP

Bernardes ndash Tal como referi na resposta agrave pergunta nordm 2 entendo que haveria conveniecircncia poliacutetica e fundamento cultural para a integraccedilatildeo nos programas de Portuguecircs de obras feitas e publicadas em diferentes paiacuteses Parece-me inclusivamente que o criteacuterio linguiacutestico e cultural natildeo eacute suficiente

Acho que em algum momento um aluno portuguecircs deveria ter notiacutecia da existecircncia de livros como a Divina Comeacutedia o Dom Quixote ou o Rei Lear Isso natildeo significa repito que passasse um mecircs a estudar cada um destes livros Mas ningueacutem deveria abandonar a escolaridade obrigatoacuteria sem ter a noccedilatildeo de que a literatura eacute uma atividade que define e transforma a espeacutecie humana muito para aleacutem da diversidade dos tempos e das liacutenguas

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Polifonia ndash Ainda sobre a literatura do poacutes-independecircncia como vecirc a literatura brasileira desse periacuteodo que foi ao mesmo tempo poacutes-independente e imperial (jaacute que o Brasil passou de colocircnia a ldquoBrasil Impeacuteriordquo conforme desejo Dom Pedro II) Como articular essa antiacutetese em sala de aula

Bernardes ndash Parece-me que seja a que niacutevel for a literatura natildeo deve ser separada das circunstacircncias histoacuterico-culturais em que nasce e eacute depois recebida O conhecimento dos contextos proporciona informaccedilatildeo preciosa Sem duacutevida que conhecemos melhor o Portugal do seacuteculo XIX atraveacutes da leitura de Eccedila e de Camilo Castelo Branco ou o Brasil da mesma eacutepoca atraveacutes dos livros de Machado de Assis O mesmo sucede com determinados lugares Alguns escritores tecircm o condatildeo de nos revelar regiotildees ou cidades que de outro modo natildeo conseguiriacuteamos compreender com tanta profundidade e sob tantos acircngulos Existe uma Lisboa de Eccedila de Queiroacutes outra de Fernando Pessoa e inda outra de Joseacute Saramago por exemplo Tal como existe um Rio de Janeiro de Machado que natildeo conheceriacuteamos tatildeo bem sem ter lido os seus contos e os seus romances

E no entanto sendo um defensor da valorizaccedilatildeo dos contextos no ensino da literatura natildeo me parece bem que se acentue demasiado esse viacutenculo As obras literaacuterias como a arte em geral conservam a marca da circunstacircncia em que inspiram e das referecircncias temporais e espaciais que incorporam Do mesmo modo eacute sabido que natildeo satildeo neutras sob o ponto de vista poliacutetico Ainda assim detecircm uma vasta margem de autonomia que conveacutem explorar nas aulas mais e melhor

Deixar a literatura respirar fazendo avultar aquilo que nela existe de livre em relaccedilatildeo agrave histoacuteria parece-me um desiderato cada vez mais necessaacuterio

Polifonia ndash Ao longo de sua estada na academia suas pesquisas tecircm se voltado dentre outras sobretudo para Gil Vicente Poderia expor o que pondera sobre a atualidade deste autor e seu ensino

Bernardes ndash Ensinar literatura eacute sempre um desafio grande Podemos muitas vezes ser tomados pelo pensamento de que estamos a insistir em mateacuterias que interessam cada vez a menos gente Essa sensaccedilatildeo pode ainda tornar-se mais viva quando se trata de autores que escreveram haacute muito tempo

Eacute o caso de Gil Vicente ou de Camotildees Quando se aproxima pela primeira vez de textos vicentinos por exemplo o aluno evidencia uma grande sensaccedilatildeo de estranheza Haacute palavras que jaacute natildeo ditas por ningueacutem nem sequer se encontram nos dicionaacuterios E isto apesar de o Portuguecircs ser uma liacutengua muito mais estaacutevel do que outras liacutenguas europeias

Mas tambeacutem existem barreiras importantes sob o ponto de vista dos valores Depois de ter destacado a importacircncia esteacutetica e histoacuterico-cultural de Gil Vicente natildeo eacute faacutecil explicar a um aluno de 14 anos que lecirc a Barca do Inferno que um judeu tenha ido para o inferno por motivos exclusivamente religiosos por exemplo Perante essa dificuldade muitos professores gostariam que essa e outras cenas natildeo existissem na peccedila

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Quando deparamos com uma situaccedilatildeo deste tipo natildeo temos outra forma seacuteria de lidar com o problema senatildeo tentar compreendecirc-lo agrave luz das circunstacircncias histoacutericas Eacute uacutetil lembrar aos alunos que a Humanidade natildeo pensou e agiu sempre da mesma forma Os procedimentos de alteridade devem ser explicados e encorajados Apreciar um autor natildeo significa necessariamente aprovar todos os aspetos da sua mensagem O papel da Escola deve ser mesmo o de ajudar a compreender e natildeo tanto a aplaudir ou a reprovar A Escola deve ensinar que concordar e discordar natildeo podem ser atos baacutesicos pulsionais e definitivos Trata-se de atos essenciais agrave vida ciacutevica mas que requerem sensibilidade e informaccedilatildeo segura A interpretaccedilatildeo de textos literaacuterios constitui um excelente treino para cultivar essa atitude

Poder escutar os autores de outras eacutepocas equivale a um privileacutegio enorme Significa de algum modo escutar a voz dos mortos E isso deve ocorrer em clima de toleracircncia e de consciecircncia relativamente ao pensamento e aos valores de quem nos fala a partir de outros tempos Tambeacutem sob esse ponto de vista o ensino da literatura pode e deve ser um exerciacutecio de atenccedilatildeo aberta e qualificada ao que o outro tem para nos dizer

Polifonia ndash Por gentileza faccedila suas consideraccedilotildees gerais sobre o tema

Bernardes ndash A Literatura globalmente considerada eacute um dos produtos mais nobres e identificadores da espeacutecie humana Nela convergem atributos tatildeo diferentes como a criatividade o domiacutenio da liacutengua oral e escrita o ordenamento da memoacuteria a capacidade de construir utopias e de criticar realidades

Enquanto discurso essencial e complexo a literatura convida a um entendimento especial que mobiliza a sensibilidade e o conhecimento Ensinar literatura eacute por isso e desde logo treinar essas duas componentes essenciais

Uma sociedade livre e democraacutetica tem tudo a ganhar com a presenccedila da literatura na Escola

A exclusatildeo ou a menorizaccedilatildeo dos conteuacutedos literaacuterios dos programas escolares conduziria a uma situaccedilatildeo de injusta desigualdade Nessa eventualidade o contacto com os livros de poesia ou de narrativa ficaria limitado aos jovens nascidos em ambiente familiar favorecido Soacute esses poderiam desfrutar do sortileacutegio de um poema Os outros aqueles muitos que natildeo ouvem falar de poesia em casa se natildeo tiverem com ela um bom encontro na Escola ficaratildeo privados de um encontro que pode e deve ser transformador

Ensinar literatura serve por isso os ideais de uma sociedade democraacutetica e livre

Do ponto de vista pessoal o contacto com os textos literaacuterios cumpre vaacuterios desiacutegnios importantes a educaccedilatildeo do gosto e para o gosto a maturaccedilatildeo do espiacuterito criacutetico que recorre a fundamentos a expressatildeo da sensibilidade atraveacutes do discurso oral e escrito

Haacute decerto bons motivos para que a literatura continue nos programas de Portuguecircs com os ajustamentos que os tempos novos justificam Eacute certo que muitas coisas se ensinam atraveacutes dela mas para aleacutem disso eu estou genuinamente convencido de que outras natildeo se conseguem ensinar sem ela

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Marinete Luzia Francisca de Souza

Docente do Curso de Graduaccedilatildeo em Letras ndash campus do Meacutedio Araguaia e do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Estudos de Linguagem ndash campus Cuiabaacute da Universidade Federal de Mato Grosso marineteluzia2gmailcom

eISSN 22376844polifonia

UFMT

PERIOacuteDICO CIENTIacuteFICO POLIFONIA

EDITAL DE CHAMADA DE ARTIGOS 2018

ESTUDOS LINGUIacuteSTICOS ndash VOL 25 N 37

ESTUDOS LITERAacuteRIOS ndash VOL 25 N 40

ISSN 22376844 versatildeo eletrocircnica

PERIOacuteDICO ARTICULADO AOPROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM

Universidade Federal de Mato GrossoInstituto de Linguagens

Pesquisadores doutores brasileiros e estrangeiros poderatildeo enviar seus trabalhos ineacuteditos artigos resenhas entrevistas voltados agraves aacutereas de estudos linguiacutesticos e literaacuterios para publicaccedilatildeo no perioacutedico cientiacutefico Polifonia em 2018 mediante avaliaccedilatildeo cega por pares e aprovaccedilatildeo No caso de trabalhos em coautoria sendo um dos autores doutor os demais poderatildeo ser mestres graduandos etc quando da submissatildeo

A partir desta chamada textos literaacuterios poemas e contos poderatildeo ser submetidos agrave avaliaccedilatildeo por especialistas das respectivas aacutereas com vistas agrave possiacutevel publicaccedilatildeo no perioacutedico

Objetivando atender a demanda de acessibilidade agrave produccedilatildeo do conhecimento o perioacutedico Polifonia estaacute sendo constituiacutedo tambeacutem com viacutedeos contendo os resumos dos artigos traduzidos em Liacutengua Brasileira de Sinais (LIBRAS) iniciativa que favorece a inclusatildeo da comunidade surda na produccedilatildeo circulaccedilatildeo e recepccedilatildeo dos textos veiculados e a consolidaccedilatildeo do multilinguismo do perioacutedico A traduccedilatildeo e a preparaccedilatildeo dos viacutedeos com resumos em LIBRAS estatildeo sob a responsabilidade da equipe editorial

No perioacutedico Polifonia tambeacutem satildeo publicados artigos produzidos em LIBRAS e documentados em viacutedeo devendo estes obrigatoriamente ser apresentados na forma escrita em Liacutengua Portuguesa e revisados por um profissional O artigo na modalidade

Polifonia - Chamada de Artigos

grafocecircntrica tem como justificativa a partilha dos saberes cientiacuteficos com a comunidade de pesquisadores e demais interessados que em sua maioria natildeo tem conhecimento da LIBRAS A preparaccedilatildeo dos viacutedeos deveraacute seguir as normas dispostas neste edital

ESTUDOS LINGUIacuteSTICOS ndash vol 25 n 37

DOSSIEcirc DIVERSIDADES EM LINGUIacuteSTICA

Chamada aberta para artigos na aacuterea de Linguiacutestica sem delimitaccedilatildeo teoacuterica ou aacuterea dentro deste campo de estudos A proposta eacute contemplar diversas publicaccedilotildees que abordem o objeto da Linguiacutestica ou seja as liacutenguaslinguagem em suas multifacetadas caracteriacutesticas Palavras-chave Linguiacutestica diversidade correntes teoacutericas

OrganizadoresFlaacutevia Girardo Botelho Borges (Universidade Federal de Mato Grosso)Zaacuteira Bonfante dos Santos (Universidade Federal do Espiacuterito Santo)

Prazo para encaminhamento 25 de janeiro de 2018Publicaccedilatildeo abril2018

ESTUDOS LITERAacuteRIOS ndash vol 25 n 40

DOSSIEcirc LITERATURA E INTERMEDIALIDADE

A letra eacute sempre uma instacircncia ambiacutegua a meio do caminho entre o descarnado som e o corpoacutereo traccedilo graacutefico Se tal ambivalecircncia nos escapa na maioria das interaccedilotildees por meio da liacutengua na poesia a cintilaccedilatildeo entre o focircnico e o visual ndash os principais dois canais da experiecircncia humana no mundo ndash ganha novas dimensotildees na medida em que o a poesia (e a literatura por extensatildeo) eacute a instacircncia por excelecircncia do riacutetmico e da imaginaccedilatildeo (aqui entendida na polissemia do termo) Do conceito de imagem poeacutetica agrave possibilidade de perceber a imagem como poesia multiplicam-se os regimes semioacuteticos e as dimensotildees fenomenoloacutegicas que podem confluir na imaginaccedilatildeo literaacuteria literatura e pintura literatura e cinema literatura e fotografia entre tantos outros diaacutelogos intermidiaacuteticos que tomem como ponto de inflexatildeo a visualidade artiacutestica no literaacuterio Nesse contexto interessam agrave presente chamada artigos que versem sobre a literatura sob perspectivas de intertextualidade intermedialidade remediatizaccedilatildeo iconicidade ekphrasis vanguardas e experimentalismos interartesPalavras-chave Literatura intermedialidade visualidade diaacutelogos intersemioacuteticos

OrganizadoresViniacutecius Carvalho Pereira (Universidade Federal de Mato Grosso)Joana Matos Frias (Universidade do Porto)

Prazo para encaminhamento 30 de marccedilo de 2018Publicaccedilatildeo dezembro2018

Artigos das aacutereas de estudos linguiacutesticos e literaacuterios que natildeo apresentem temaacuteticas relativas aos dossiecircs poderatildeo ser aceitos para publicaccedilatildeo na seccedilatildeo OUTROS LUGARES Poemas e contos aceitos seratildeo publicados na seccedilatildeo NEOFONIAS

Polifonia - Chamada de Artigos

Instruccedilotildees aos autores para publicaccedilatildeo de artigos no perioacutedico Polifonia

Os trabalhos deveratildeo ser submetidos por meio do Sistema de Editoraccedilatildeo Eletrocircnico de Revistas (SEER) do perioacutedico Polifonia Para a primeira submissatildeo eacute necessaacuterio fazer o cadastro no Sistema como autor por meio do link httpperiodicoscientificosufmtbrojsindexphppolifoniauserregister

ATENCcedilAtildeO Ao preencher o cadastro inserir obrigatoriamente um breve curriacuteculo no campo especiacutefico informando instituiccedilatildeo de origem cargos acadecircmicos se o artigo resulta de projeto de pesquisa se eacute financiado entre outras informaccedilotildees consideradas relevantes e que tenham relaccedilatildeo com o conteuacutedo do artigo

Apoacutes o cadastro o usuaacuterio estaraacute habilitado para submeter seu artigo acessando o link httpperiodicoscientificosufmtbrojsindexphppolifoniaauthorsubmit1

Duacutevidas polifoniaufmtbr ou atendimentoeditorasustentavelgmailcom

O conteuacutedo dos artigos eacute da inteira responsabilidade de seus autores

Formataccedilatildeo dos artigos e resenhas

Artigos e resenhas devem ser submetidos em formato doc em paacutegina tamanho A4 com tiacutetulo sem o nome do(s) autor(es) para garantir a avaliaccedilatildeo agraves cegas A identificaccedilatildeo do autor seraacute feita no momento da submissatildeo por meio do preenchimento do devido campo no Sistema (SEER)

Artigos e resenhas deveratildeo ser adequados agraves normas da ABNT e ao novo acordo ortograacutefico bem como agraves instruccedilotildees aos autores previstas neste edital antes da submissatildeo podendo ser desconsiderados se natildeo atenderem a essas condiccedilotildees

Dimensotildees o artigo deveraacute ter de 12 a 15 paacuteginas (incluindo as referecircncias) a resenha deveraacute ter de 03 a 05 paacuteginas Fonte Times New Roman tamanho 12 espaccedilo entre linhas 15

Tiacutetulo em portuguecircs inglecircs e espanhol fonte Times New Roman tamanho 16 alinhado agrave direita

Apoacutes o aceite do artigo ou da resenha na revisatildeo final colocar nome do(s) autor(es) com as iniciais maiuacutesculas dois espaccedilos abaixo do tiacutetulo Abaixo do(s) nome(s) colocar a(s) instituiccedilatildeo(otildees) agrave(s) qual(is) se vincula(m) por extenso

Resumo

A palavra ldquoresumordquo deveraacute ser colocada com a inicial maiuacutescula acima do conteuacutedo do resumo centralizada

Polifonia - Chamada de Artigos

Para a preparaccedilatildeo do resumo miacutenimo de 100 e maacuteximo de 250 palavras espaccedilo 10 fonte Times New Roman tamanho10 O resumo deveraacute ser conciso claro coeso e completo apresentando tema da pesquisa principais objetivos metodologia utilizada principais descobertas do estudo principais conclusotildees

Natildeo inserir nomes de autores e datas no resumo Natildeo colocar o artigo como sujeito personificado Ex ldquoeste artigo refleterdquo ldquoeste artigo desenvolverdquo Ao inveacutes usar 1ordf ou 3ordf pessoa Ex ldquoNeste artigo faremosrdquo

Palavras-chave

Expressatildeo escrita com inicial maiuacutescula apoacutes o resumo Deveratildeo ser escritas trecircs palavras-chave em letras minuacutesculas separadas por viacutergula e encerradas por ponto final

O resumo e as palavras-chave deveratildeo constar em portuguecircs inglecircs e espanhol e seguir as mesmas normas

Dar dois espaccedilos apoacutes as palavras-chave antes do tiacutetulo das seccedilotildees Dar um espaccedilo de 15 antes e depois de cada tiacutetulo das seccedilotildees e subseccedilotildees

ATENCcedilAtildeO as resenhas natildeo deveratildeo ter resumopalavras-chave

Tiacutetulos das seccedilotildees e subseccedilotildees

Numeradas fonte Times New Roman tamanho14 primeira letra maiuacutescula e demais minuacutesculas Caso o tiacutetulo seja longo com mais de uma linha colocar espaccedilo 10 entre essas linhas

Caso haja necessidade de destacar algum termo no texto e palavras estrangeiras fazecirc-lo apenas em itaacutelico Palavras expressotildees retiradas de textos teoacutericos e literaacuterios e usadas nas anaacutelises etc deveratildeo ser colocadas entre aspas

O artigo deveraacute ter introduccedilatildeo desenvolvimento (seccedilotildees e subseccedilotildees) consideraccedilotildees finais e referecircncias

Tabelas e quadros

O conteuacutedo deve ser colocado em fonte Times New Roman tamanho10 espaccedilo simples Legendas fonte Times New Roman tamanho10 espaccedilo simples imediatamente abaixo do elemento que referecircncia

Citaccedilotildees

Com mais de trecircs linhas deveratildeo ser recuadas em 4 cm da margem esquerda Times New Roman alinhamento justificado espaccedilo 10 fonte 10 sem itaacutelico sem aspas seguida da indicaccedilatildeo bibliograacutefica Ex (CHAUI 2002 p 57)

Polifonia - Chamada de Artigos

Citaccedilatildeo com ateacute trecircs linhas

Sem recuo no proacuteprio corpo do texto entre aspas seguida da indicaccedilatildeo bibliograacutefica (CHAUI 2002 p 57)

Citaccedilotildees em outras liacutenguas

1 De fragmentos teoacutericos o autor poderaacute fazer a traduccedilatildeo no proacuteprio corpo do texto seguida da referecircncia bibliograacutefica e da observaccedilatildeo ldquoTraduccedilatildeo nossardquo Ex (FESTINO 2008 p 12 Traduccedilatildeo nossa)

2 Poderaacute tambeacutem caso queira colocar o fragmento na liacutengua original em rodapeacute com a expressatildeo Cf o trecho original e inserir o texto entre aspas

3 De fragmentos literaacuterios o autor poderaacute fazer a traduccedilatildeo no proacuteprio corpo do texto seguida da referecircncia bibliograacutefica e da observaccedilatildeo ldquoTraduccedilatildeo nossardquo

Ex (CONRAD 1994 p 22-24 Traduccedilatildeo nossa) O autor obrigatoriamente deveraacute colocar o fragmento na liacutengua original em rodapeacute com a expressatildeo Cf o trecho original e inserir o texto entre aspas

Notas explicativas

Evitar notas de rodapeacute Se muito necessaacuterias colocaacute-las ao final da paacutegina Referecircncias bibliograacuteficas devem ser apresentadas no proacuteprio texto Ex (ANDRADE 1980 p 7)

Referecircncias

Usar soacute a palavra ldquoReferecircnciasrdquo (soacute a inicial maiuacutescula) Devem ser apresentadas nas referecircncias somente as obras que foram efetivamente citadas no texto Quando citados no corpo do texto os tiacutetulos das obras devem ser colocados em itaacutelico Cada referecircncia deve ser formatada em espaccedilo entre linhas 10 Colocar espaccedilo 10 entre uma referecircncia e outra

Para referecircncias de entrevistas consultar a ABNTNBR 10520 Informaccedilatildeo e documentaccedilatildeo ndash citaccedilotildees em documentos ndash apresentaccedilatildeo Rio de Janeiro 2002b

As Referecircncias devem ser dispostas em ordem alfabeacutetica ao final do texto seguindo a NBR 6023

Polifonia - Chamada de Artigos

Alguns casos de maior ocorrecircncia

LIVRO

GOMES LGFF Novela e sociedade no Brasil Niteroacutei EdUFF 1998

Quando necessaacuterio acrescentam-se elementos complementares agrave referecircncia para melhor identificar o documento

GOMES LGFF Novela e sociedade no Brasil Niteroacutei EdUFF 1998 (Coleccedilatildeo Antropologia e Poliacutetica 15) ISBN 85-228-0268-8

ARTIGO EM PERIOacuteDICO

ANDREacute RML LACERDA PO O catildeo e o homem no romance Los perros hambrientos de Ciro Alegria Polifonia Cuiabaacute n 20 p151-173 2009

CAPIacuteTULO DE LIVRO

SANTAELLA L A criacutetica das miacutedias na entrada do seacuteculo 21 In PRADO J L A (Org) Criacutetica das praacuteticas midiaacuteticas da sociedade de massa agraves ciberculturas Satildeo Paulo Hacker Editores 2002 p 44-56

TRABALHO APRESENTADO EM EVENTO

BRAYNER A R A MEDEIROS CB Incorporaccedilatildeo do tempo em SGDB orientado a objetos In SIMPOacuteSIO BRASILEIRO DE BANCO DE DADOS 9 1994 Satildeo Paulo Anais Satildeo Paulo USP 1994 p16-29

DISSERTACcedilAtildeO OU TESE

COX M IPJe est unmot drsquoordre escritas em torno de sujeito linguagem e educaccedilatildeo 1989 196f Tese (Doutorado em Educaccedilatildeo) ndash Universidade Estadual de Campinas Campinas SP 1989

DALATE S A escritura do silecircncio uma poeacutetica do olhar em Wlademir Dias Pino 1997 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras) ndash Faculdade de Ciecircncias e Letras Universidade Estadual de Satildeo Paulo Assis SP 1997

DOCUMENTO COM AUTORIA DE ENTIDADE

BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil) Relatoacuterio da Diretoria-Geral 1984 Rio de Janeiro 1985 40p

OBRAS CONSULTADAS ON LINE colocar informaccedilotildees sobre o endereccedilo eletrocircnico apresentado entre os sinais ltgt precedido da expressatildeo ldquoDisponiacutevel emrdquo e a data de acesso ao documento precedida da expressatildeo ldquoAcesso emrdquo opcionalmente acrescida dos dados referentes a hora minutos e segundos Exemplos

ALVES C Navio negreiro (1869) Virtual Books 2000 Disponiacutevel em lthttpvirtualbooksterracombrfreebookportNavio_Negreirohtmgt Acesso em 10 jan2002

Polifonia - Chamada de Artigos

Obs haacute necessidade de colocar o ano Se natildeo houver coloca-se um provaacutevel [193]ou apenas o seacuteculo [19]

RIBEIRO PSG Adoccedilatildeo agrave brasileira uma anaacutelise soacuteciojuriacutedica Dataveni Satildeo Paulo ano 3 n18 ago1998 Disponiacutevel em lthttpwwwdataveniainfbrframeartightml gt Acesso em 10 set 1998

Satildeo permitidas imagens No caso de fotografias deve-se anexar o nome do fotoacutegrafo e autorizaccedilatildeo dele para publicaccedilatildeo aleacutem da autorizaccedilatildeo das pessoas fotografadas

Normas para a preparaccedilatildeo dos trabalhos em viacutedeo (libras)

1 Na modalidade viacutedeo natildeo haacute necessidade de apresentar uma traduccedilatildeo integral do texto escrito O autor tem autonomia para apresentar o seu trabalho utilizando como recurso linguiacutestico a sua liacutengua materna a estrutura linguiacutestica e gramatical da LIBRAS

2 Os viacutedeos poderatildeo ser gravados pelo autor ou por terceiros

3 Os viacutedeos natildeo poderatildeo apresentar propagandas de instituiccedilotildees produtos eventos e outros As filmagens deveratildeo ser feitas com fundo exclusivamente verde

4 Caso a pesquisa tenha mais de um autor todos poderatildeo compor o viacutedeo

5 A vestimenta de quem faraacute a apresentaccedilatildeo deveraacute ser obrigatoriamente de cor que tenha contraste com a tonalidade da sua pele e tambeacutem deveraacute ser monocromaacutetica

6 Dado o seu caraacuteter cientiacutefico a filmagem deveraacute contemplar o acircngulo da cabeccedila ateacute a cintura do apresentador

7 Ao final da gravaccedilatildeo natildeo haacute necessidade de apresentar as referecircncias bibliograacuteficas pois estas jaacute estaratildeo constando no texto escrito

  • Polifonia Cuiabaacute-MT v 24 nordm 36 (jul-dez 2017)
  • Sumaacuterio
  • Apresentaccedilatildeo
  • Dossiecirc Estaacutegios Supervisionados em Literatura Literatura nos Estaacutegios Supervisionados
    • Autor e leitor identidades do professor de Literatura em formaccedilatildeo ndash experiecircncias com o estaacutegio supervisionado em Letras
      • Ana Creacutelia Penha Dias
      • Andreacute Luiacutes Mouratildeo de Uzecircda
      • Maria Coelho Araripe de Paula Gomes
        • Leituras de ldquoA flor e a naacuteuseardquo de Carlos Drummond de Andrade em praacuteticas de Estaacutegio Supervisionadoem Liacutengua Portuguesa
          • Diogo dos Santos Souza
          • Eliana Kefalaacutes de Oliveira
            • Cenas da formaccedilatildeo de professores de liacutengua e literatura no curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ)
              • Marcos Scheffel
                • Estaacutegio supervisionado em Letras da UFGD mediando leituras e formando leitores
                  • Alexandra Santos Pinheiro
                    • O Estaacutegio Supervisionado em Letras no vieacutes administrativo-pedagoacutegico
                      • Flaacutevia Girardo Botelho Borges
                        • Estaacutegio Supervisionado em Literatura um relato de experiecircncia na UTFPR ndash Curitiba
                          • Mirelle Mussi Giri
                          • Alice Atsuko Matsuda
                              • Outros lugares
                                • Interdiscursividade e intertextualidade a constituiccedilatildeo dos sentidos do dizer no universo autoral
                                  • Terezinha Maia Martincowski
                                    • ldquoMito biograacuteficordquo e ldquoficccedilatildeo familiarrdquo em Borges e Calvino
                                      • Maria Elisa Rodrigues Moreira
                                        • Sobre o amor e a incapacidade de amar
                                          • Dionei Mathias
                                            • Marcel ProustHonoreacute de Balzac a Meacutelange de uma Narratividade
                                              • Aguinaldo Joseacute Gonccedilalves
                                                • Acerca da ekphrasis numa passagem do Clarimundo de Joatildeo de Barros cena de pictoacuterico heroiacutesmo
                                                  • Flaacutevio Antocircnio Fernandes Reis
                                                      • Entrevista
                                                        • Literatura e Ensino Entrevista com Joseacute Augusto Cardoso Bernardes
                                                          • Por Marinete Luzia Francisca de Souza
                                                              • EDITAL DE CHAMADA DE ARTIGOS 2018
Page 4: eISSN 22376844 polifonia

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSOAv Fernando Correcirca da Costa 2367Bairro Boa Esperanccedila ndash Campus Universitaacuterio Gabriel Novis NevesCEP 78060-900 ndash Cuiabaacute-MT ndash Brasil

POLIFONIAPerioacutedico do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos de Linguagem ndash MestradoInstituto de Linguagens ndash Piso 2 sala 42Universidade Federal de Mato Grosso Cuiabaacute-MT ndash BrasilFones 0XX 65 36158418Endereccedilo eletrocircnico httpperiodicoscientificosufmtbrojsindexphppolifoniaE-mail polifoniaufmtbr

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)

P767 Polifonia Estudos literaacuterios[recurso eletrocircnico] ndash v 24

nordm 36 (jul-dez 2017) ndash Cuiabaacute UFMT Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Estudos de Linguagem 2017 195 p

Semestral

Modo de acesso internet

lthtppwwwperiodicoscientificosufmtbrpolifoniagt

ISSN 22376844

Estudos literaacuterios ndash Perioacutedicos I Universidade Federal de

Mato Grosso Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Estudos de

Linguagem

CDU ndash 81rsquo1

Os autores satildeo expressamente responsaacuteveis pelo conteuacutedo dos

respectivos trabalhos publicados neste perioacutedico

Pareceristas deste nuacutemero

Aacutegueda Ap da Cruz Borges (UFMT)

Aacutelvaro Cardoso Gomes (USPUNISA)

Antonio Marcos Pereira (UFBA)

Arnaldo Franco Jr (UNESP)

Benedito Antunes (UNESP)

Camila da Silva Alavarce (UFU)

Camila David Dalvi (IFES - Piuacutema)

Camila Figueiredo (UFMG)

Ceacutelia Maria Domingues da Rocha Reis (UFMT)

Claacuteudia Cristina Maia (CEFET-MG)

Claacuteudia Maria Ceneviva Nigro (UNESP)

Danglei de Castro Pereira (UnB)

Danilo Silva (UFMT)

Eni Freitas e Souza (UFU)

Fernanda Ribeiro (UNIFAL)

Flaacutevio Pereira Camargo (UFG)

Franceli Ap da Silva Mello (UFMT)

Gustavo Cerqueira Guimaratildees (UFMG)

Lindinalva Zagoto Fernandes (UFMT)

Madalena Aparecida Machado (UNEMAT)

Maria Alzira Leite (UniRitter)

Maria do Rosaacuterio Alves Pereira(CEFET-MG)

Maria Elisa Rodrigues Moreira (UFMT)

Maria Fernanda Alvito Pereira de Souza Oliveira (UFRJ)

Maria Tereza de Almeida Lima (UNIPTAN)

Marinete Luzia Francisca de Souza (UFMT)

Maacuterio Ceacutezar Silva Leite (UFMT)

Mauriacutecio Guilherme Silva Jr (UNIBH-Fapemig)

Osvaldo Copertino Duarte (UNIR)

Paulo Seacutergio Nolasco dos Santos (UFGD)

Renata Rocha Ribeiro (UFG)

Rosane Maria Cardoso (UNISC)

Rosacircngela Fachel(URI)

Simone de Jesus Padilha (UFMT)

Vanessa Fabiacuteola Silva de Faria (UNEMAT)

Viniacutecius Carvalho Pereira (UFMT)

eISSN 22376844polifonia

Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo 8

Dossiecirc 12

Estaacutegios Supervisionados em Literatura Literatura nos Estaacutegios Supervisionados 12

Autor e leitor identidades do professor de Literatura em formaccedilatildeo ndash experiecircncias com o estaacutegio supervisionado em Letras 13

Ana Creacutelia Penha Dias

Andreacute Luiacutes Mouratildeo de Uzecircda

Maria Coelho Araripe de Paula Gomes

Leituras de ldquoA flor e a naacuteuseardquo de Carlos Drummond de Andrade em praacuteticas de Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa 28

Diogo dos Santos Souza

Eliana Kefalaacutes de Oliveira

Cenas da formaccedilatildeo de professores de liacutengua e literatura no Curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) 41

Marcos Scheffel

Estaacutegio supervisionado em Letras da UFGD mediando leituras e formando leitores 54

Alexandra Santos Pinheiro

O Estaacutegio Supervisionado em Letras no vieacutes administrativo-pedagoacutegico 67

Flaacutevia Girardo Botelho Borges

Estaacutegio Supervisionado em Literatura um relato de experiecircncia na UTFPR ndash Curitiba 78

Mirelle Mussi Giri

Alice Atsuko Matsuda

Outros lugares 94

Interdiscursividade e intertextualidade a constituiccedilatildeo dos sentidos do dizer no universo autoral 95

Terezinha Maia Martincowski

ldquoMito biograacuteficordquo e ldquoficccedilatildeo familiarrdquo em Borges e Calvino 111

Maria Elisa Rodrigues Moreira

Sobre o amor e a incapacidade de amar 129

Dionei Mathias

Marcel ProustHonoreacute de Balzac a Meacutelange de uma Narratividade 149

Aguinaldo Joseacute Gonccedilalves

Acerca da ekphrasis numa passagem do Clarimundo de Joatildeo de Barros cena de pictoacuterico heroiacutesmo 164

Flaacutevio Antocircnio Fernandes Reis

Entrevista 180

Literatura e Ensino Entrevista com Joseacute Augusto Cardoso Bernardes 181

Por Marinete Luzia Francisca de Souza

Edital de Chamada de Artigos 2018 189

8

eISSN 22376844polifonia

Polifonia Cuiabaacute-MT v 24 n 36 p 8-11 jul-dez 2017

Apresentaccedilatildeo

Dossiecirc Estaacutegios Supervisionados em Literatura Literatura nos

Estaacutegios Supervisionados

Os dossiecircs do perioacutedico Polifonia tecircm sido propostos objetivando colocar em circulaccedilatildeo tanto pesquisas de aacutereas consolidadas que jaacute contam com um corpo teoacuterico consideraacutevel inserido nas matrizes curriculares como temas polecircmicos questotildees nascentes que precisam de espaccedilos efetivos de discussatildeo e de apresentaccedilatildeo de experiecircncias realizadas em andamento e em perspectiva na busca de alinhar teorias e procedimentos para a construccedilatildeo de um arcabouccedilo de informaccedilotildees diretoras e conformes agraves necessidades dessas matrizes Tal eacute a situaccedilatildeo do dossiecirc organizado para este nuacutemero 36 do perioacutedico Polifonia aacuterea de Estudos Literaacuterios ndash Estaacutegios Supervisionados em Literatura Literatura nos Estaacutegios Supervisionados

O Estaacutegio Supervisionado eacute um componente curricular exigido legalmente para as licenciaturas colocando-se no acircmbito da matriz curricular como o meio que oportuniza ao licenciando contato mais direto com seu futuro campo profissional Se vislumbrado na esfera das Letras o Estaacutegio Supervisionado em Literatura foi implementado tardiamente em relaccedilatildeo ao Estaacutegio em Liacutengua Portuguesa embora os cursos de Letras apresentem carga horaacuteria equitativa para os estudos linguiacutesticos e para os literaacuterios Esse dado revela a particularidade de docentes do ensino superior desta aacuterea implicarem-se menos em questotildees didaacuteticas mais nos estudos do texto literaacuterio e de suas circunstacircncias

Atualmente em razatildeo das mudanccedilas curriculares no ensino puacuteblico o Estaacutegio Supervisionado tem sido realizado no ensino meacutediono contexto da disciplina de Liacutengua Portuguesa (no ensino fundamental isso jaacute era praacutetica antiga) exceccedilatildeo feita ao ensino privado coleacutegios de aplicaccedilatildeo entre unidades educacionais especiacuteficas Ocupando esse lugar alcanccedilado tambeacutem por dificuldades internas agrave proacutepria aacutereaseraacute preciso repensar as bases metodoloacutegicas nas quais a Literatura como aacuterea artiacutestica e de conhecimento se assenta para a manutenccedilatildeo de sua autonomia evitando constituir-se agrave custa de procedimentos alheios agrave sua natureza eacute preciso encontrar o seu proacuteprio caminho suas estrateacutegias consoantes com seus objetos Daiacute a importacircncia que assume este nuacutemero 36 do perioacutedico Polifonia oferecendo agrave comunidade cientiacutefica nesse tempo de reestruturaccedilatildeo curricular material bibliograacutefico contendo discussotildees que envolvem problemas e alternativas apresentadas por profissionais da aacuterea

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Polifonia Cuiabaacute-MT v 24 n 36 p 8-11 jul-dez 2017

Foi estimulante entatildeo receber artigos de colegas de instituiccedilotildees de ensino superior do paiacutes puacuteblicas e particulares tratando de atividades de Estaacutegio Supervisionado em Literatura e ressalte-se de disciplina afim como Didaacutetica e Praacutetica de Ensino de Portuguecircs e Literaturas apresentando vivecircncias efetivas (e afetivas) realizadas com graduandos em unidades educacionais parceiras a partir de onde conhecem observam questionam o que estaacute posto estudam planejam e desenvolvem atividades compotildeem os relatos avaliam a funcionalidade e dificuldade das experiecircncias apontam soluccedilotildees ou apresentam discussotildees com base na experiecircncia adquirida pelos anos de trabalho Em todos os casos apresentam comprometimento poliacutetico com a aacuterea

Em coerecircncia com esse estado de coisas da leitura atenta dos artigos voltados ao dossiecirc avultou um eixo temaacutetico predominante a questatildeo autoral na formaccedilatildeo do professor de Letras tomado como criteacuterio para ordenar os artigos do dossiecirc

Os trecircs primeiros artigos promovem a discussatildeo da praacutetica autoral docente da escrita autoral da elaboraccedilatildeo criacutetica a partir da experimentaccedilatildeo literaacuteria com base em projetos desenvolvidos No primeiro Autor e leitor identidades do professor de Literatura em formaccedilatildeo ndash experiecircncias com o estaacutegio supervisionado em Letras Ana Creacutelia Penha Dias Andreacute Luiacutes Mouratildeo de Uzecircda e Maria Coelho Araripe de Paula Gomes apontam a necessidade de construir bases para que o Estaacutegio em Literatura se decirc de maneira adequada agrave formaccedilatildeo do licenciando na realidade de ensino-aprendizagem na escola por meio de accedilotildees que promovam autonomia sobre o seu fazer docente e mudanccedilas na realidade da escola e da proacutepria universidade pela revisatildeo dos curriacuteculos a fim de alcanccedilar uma didaacutetica que efetivamente coopere com o ensino baacutesico Dentre as conclusotildees abstraiacutedas das atividades de Estaacutegio realizadas no Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio de Janeiro ressaltam a fragilidade na formaccedilatildeo do estudante de Letras como leitor literaacuterio o que levou agrave consideraccedilatildeo de que deve haver um protagonismo de professor texto e leitor nas aulas de literatura

Diogo dos Santos Souza e Eliana Kefalaacutes de Oliveira constroem seu artigo Leituras de ldquoA flor e a naacuteuseardquo de Carlos Drummond de Andrade em praacuteticas de Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa com base em uma oficina de leitura de poesia realizada por estagiaacuterios observando e atribuindo um vieacutes subjetivo e criacutetico aos mecanismos que eles empregam na experimentaccedilatildeo do texto literaacuterio defendendo endossados por argumento de autoridade que tais experiecircncias analiacuteticas datildeo condiccedilotildees de edificaccedilatildeo de um discurso criacutetico sobre o texto literaacuterio natildeo devendo a teoria e a criacutetica literaacuterias serem estudadas de maneira estratificada e aprioriacutestica na formaccedilatildeo do leitor Nesse sentido defendem o exerciacutecio criacutetico sobre as obras literaacuterias no diaacutelogo com os estudantes cabendo agrave criacutetica o papel de incitar dar indiacutecios para diferentes modos de compreensatildeo das obras em apreccedilo

Marcos Scheffel em Cenas na formaccedilatildeo de liacutengua e literatura no curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com base em suas experiecircncias didaacuteticas e em um projeto de leitura indica criticamente o descompromisso do curso de Letras mais preocupado em formar pesquisadores que profissionais para atuarem na educaccedilatildeo

10

Polifonia Cuiabaacute-MT v 24 n 36 p 8-11 jul-dez 2017

baacutesica o que ocorre sobretudo com a aacuterea da Literatura desenvolvida com estudos teoacutericos para anaacutelise e interpretaccedilatildeo de textos com grau de dificuldade que restringe o acesso de leitores com a imposiccedilatildeo de leituras sem discussatildeo de criteacuterios de seleccedilatildeo etc Satildeo questotildees que apontam para dificuldades de formaccedilatildeo de leitores nas escolas Daiacute se deduz o motivo de a literatura estar em ldquoextinccedilatildeo na escolardquo os inuacutemeros obstaacuteculos para a formaccedilatildeo de leitores com estudantes que chegam aos cursos de Letras sem esse perfil e encontram uma universidade que se exime dessa responsabilidade

Os artigos seguintes trazem consideraccedilotildees sobre Estaacutegio que se desenvolvem a partir de reflexotildees sobre letramento em diferentes linhas

Em Estaacutegio supervisionado em Letras da UFGD mediando leituras e formando leitores Alexandra Santos Pinheiro afirma a necessidade de levar o graduando por meio do Estaacutegio Supervisionado a refletir sobre o curso de Letras o conhecimento adquirido a importacircncia equiparada de conteuacutedos e metodologias as proacuteprias restriccedilotildees e as do curso perante as condiccedilotildees que encontraraacute no campo de trabalho Discute as dificuldades dos graduandos na elaboraccedilatildeo de planos de aula para a regecircncia relativas agrave fundamentaccedilatildeo teoacuterica e ao baixo repertoacuterio de leituraso que restringe a seleccedilatildeo na montagem das atividades dos planos Abordando o letramento literaacuterio afirma a necessidade de defesa da literatura nas praacuteticas curriculares da funccedilatildeo do professor de estimular o encontro dos alunos com a literatura mesmo com a dificuldade de acesso aos livros e a disputa comas opccedilotildees tecnoloacutegicas e de laborar com as potencialidades dos textos a fim de que estes ganhem sentido e conhecimento garantindo a formaccedilatildeo do cidadatildeo

Em O Estaacutegio Supervisionado em Letras no vieacutes administrativo-pedagoacutegico Flaacutevia Girardo Botelho Borges procede agrave anaacutelise da formaccedilatildeo de professores integrando a perspectiva da administraccedilatildeo escolar agrave pedagoacutegica considerando inviaacutevel segmentar professor e contexto de atuaccedilatildeo Nesse senso advoga a necessidade de fomentar nas licenciaturas experiecircncias de graduandos com as circunstacircncias de seu campo profis-sional ponto em que ressalta o tema do artigo o Estaacutegio Supervisionado em Letras parametrizado no Projeto Pedagoacutegico em vigecircncia no Curso de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso e nas praacuteticas de letramento Aponta para as muacuteltiplas dificulda-des de realizaccedilatildeo do Estaacutegio que em conexatildeo com as poliacuteticas puacuteblicas com o curriacuteculo pedagoacutegico e com as condiccedilotildees apresentadas pela escola vatildeo compondo a ldquoidentidade docenterdquo numa das fundamentaccedilotildees apresentadas como ldquoum espaccedilo de construccedilatildeo de maneiras de ser e de estar na profissatildeordquo Mediante esse quadro a autora apresenta dire-cionamentos estabelecidos apoacutes discussatildeo com o Colegiado do curso para contribuir para a realizaccedilatildeo do Estaacutegio de maneira mais favoraacutevel ressaltando a importacircncia do trabalho coeso entre professores alunos coordenaccedilatildeo de curso e oacutergatildeo colegiado

Encerrando o dossiecirc em Estaacutegio supervisionado em literatura relato de experiecircncia na UTFPRndash Curitiba Mirelle Mussi Giri e Alice Atsuko Matsuda discorrem sobre o modo como se processa o trabalho com o Estaacutegio Supervisionado em Literatura na Universidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute no acircmbito do qual apresentam uma experiecircncia de observaccedilatildeo e regecircncia realizada por uma dupla de alunas no ensino

11

Polifonia Cuiabaacute-MT v 24 n 36 p 8-11 jul-dez 2017

baacutesico Natildeo obstante as dificuldades concluem que o modo de conduccedilatildeo do Estaacutegio integrando aspectos teoacutericos como estudos criacuteticos e reflexivos de textos e documentos oficiais que fundamentam e direcionam o ensino de literatura e praacuteticos promove a capacitaccedilatildeo discente e desenvolve as competecircncias e habilidades para o exerciacutecio da docecircncia realizando os objetivos propostos no Projeto Pedagoacutegico

Em acordo com a poliacutetica do perioacutedico Polifonia apresentamos aleacutem do dossiecirc a seccedilatildeo Outros lugares contendo artigos de temaacuteticas variadas

A seccedilatildeo se inicia com o artigo Interdiscursividade e intertextualidade a constitui-ccedilatildeo dos sentidos do dizer no universo autoral de Terezinha Maia Martincowski no qual ela discute com base em projeto realizado com graduandos do 1ordm ano de cursos dife-rentes reunidos em disciplina que trata da introduccedilatildeo ao conhecimento do campo da pesquisa em educaccedilatildeo o modo como se compotildee o universo autoral a partir da leitura interpretativa formaccedilatildeo de arquivos e produccedilatildeo escrita

Em ldquoMito biograacuteficordquo e ldquoficccedilatildeo familiarrdquo em Borges e Calvino Maria Elisa Rodrigues Moreira abre as generosas bibliotecas dos celebrados autores para refletir a partir des-tas e de uma genealogia afetiva sobre o processo de construccedilatildeo das personas autorais desses escritores

A operaccedilatildeo narrativa a partir do afeto eacute tambeacutem a tocircnica do artigo ldquoSobre o amor e a incapacidade de amarrdquo no qual Dionei Mathias reflete tomando por base o romance A Pianista de Elfriede Jelinek sobre o desejo de amor (em suas mais variadas formas) e a incapacidade de seu pleno desenvolvimento pelas personagens da escritora austriacuteaca

Por seu turno em Marcel ProustHonoreacute de Balzac a Meacutelange de uma Narratividade Aguinaldo Joseacute Gonccedilalves parte do posicionamento contraacuterio ao meacutetodo biograacutefico de Saint-Beuve afirmado por Proust que para sua argumentaccedilatildeo reflete sobre a relaccedilatildeo vidaobra em Honoreacute de Balzac e Gustave Flaubert para afirmar a importacircncia do pensamento criacutetico e inventivo da narrativa proustiana que coloca em relaccedilatildeo de proximidade a ficccedilatildeo e o ensaio

Encerra esta seccedilatildeo o artigo Acerca da ekphrasis numa passagem do Clarimundo de Joatildeo de Barros cena de pictoacuterico heroiacutesmo no qual Flaacutevio Antonio Fernandes Reis tanto apresenta ao leitor essa novela de cavalaria ainda pouco pesquisada quanto constroacutei aprofundado percurso pela conformaccedilatildeo de um pensamento a respeito da ekphrasis para entatildeo analisar como o episoacutedio da ldquoFloresta Encantadardquo se constitui com base nesse ldquocolocar diante dos olhos do leitorrdquo o cenaacuterio e as figuras centrais da obra

Na seccedilatildeo Entrevista Marinete Luzia Francisca de Souza conversa com o Prof Dr Joseacute Augusto Bernardes docente da Universidade de Coimbra acerca das condiccedilotildees do ensino de literatura no niacutevel baacutesico e superior em Portugal da evoluccedilatildeo histoacuterica da possibilidade de inserccedilatildeo de obras de outras culturas na matriz curricular e dos paracircmetros de obras antigas no ensino contemporacircneo entre outros temas

Desejamos a todos uma boa leitura

Ceacutelia Maria Domingues da Rocha ReisMaria Elisa Rodrigues Moreira

Organizadoras

DossiecircEstaacutegios Supervisionados em Literatura

Literatura nos Estaacutegios Supervisionados

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eISSN 22376844polifonia

Autor e leitor identidades do professor de Literatura em formaccedilatildeo ndash experiecircncias com o

estaacutegio supervisionado em LetrasAuthor and Reader Pre-service Literature Teacherrsquos Identities

ndash Experiences with Supervised Internship in the Letras Program

Autor y lector Identidades del profesor de Literatura en formacioacuten ndash experiencias con las praacutecticas supervisadas en Letras

Ana Creacutelia Penha Dias Universidade Federal do Rio de Janeiro

Andreacute Luiacutes Mouratildeo de UzecircdaColeacutegio de Aplicaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Maria Coelho Araripe de Paula GomesColeacutegio de Aplicaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo

No painel educacional brasileiro o estaacutegio supervisionado reflete questotildees de lacuna da formaccedilatildeo inicial e de antecipaccedilatildeo dos problemas da profissatildeo docente Neste cenaacuterio professores regentes de estaacutegio precisam atuar tambeacutem na formaccedilatildeo dos licenciandos e no trato com a literatura eacute necessaacuterio potencializar a dimensatildeo de leitor literaacuterio e de autor das praacuteticas pedagoacutegicas que seratildeo realizadas Este artigo traz reflexotildees acerca dessa experiecircncia com formaccedilatildeo de futuros professores de Literatura e propotildee alguns caminhos para pensar a relaccedilatildeo do licenciando com a leitura literaacuteria e com a ocupaccedilatildeo de um espaccedilo de autoria de seus trabalhos na escola Para isso seratildeo apresentados relatos de duas experiecircncias com estaacutegio supervisionado em Letras no Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio de JaneiroPalavras-chave Estaacutegio supervisionado ensino de Literatura formaccedilatildeo de professores

Abstract

In the Brazilian educational context the supervised internship reflects questions about the lack of initial education and the anticipation of problems related toa teacherrsquos job In this scenario internship supervisors must also act in the training of pre-service teachers and regarding literature they have to enhance the roles of teachers as literary readers and authors of pedagogical practices This article reflects on an experience in the education of future Literature teachers and proposes some ways to think about the relation among prospective teachers reading literature

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and the appropriation of an authorship space at school To do so we will present reports of two experiences of supervised internship in the Letras Program at the Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da Universidade Federal do Rio de Janeiro Keywords Supervised internship teaching literature teacherrsquos education

Resumen

En el panorama educativo brasilentildeo el periodo de praacutecticas supervisadas refleja cuestiones de vaciacuteos em la formacioacuten inicial y de anticipacioacuten de los problemas de la profesioacuten docente En este escenario los tutores de la supervisioacuten necesitan actuar tambieacuten em la formacioacuten de los alumnos del grado y respecto al tratamiento de la literatura es necesario potenciar la dimensioacuten del lector literario y del autor de las praacutecticas pedagoacutegicas que se realizaraacuten Este artiacuteculo refleja acerca de esa experiencia con la formacioacuten de futuros profesores de Literatura y propone algunos caminos para pensar la relacioacuten del alumno em formacioacuten com la lectura literaria y com la ocupacioacuten de um espacio de autoriacutea de sus trabajos em la escuela Asiacute se presenta la discusioacuten a traveacutes del relato de dos experiencias referentes a praacutecticas supervisadas em Letras realizadas em el Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo de la Universidade Federal do Rio de JaneiroPalabras clave Formacioacuten supervisada ensentildeanza de la literatura formacioacuten docente

Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensinaCora Coralina

Introduccedilatildeo

O estaacutegio supervisionado dos cursos de licenciatura vive muitas vezes a antecipaccedilatildeo da precarizaccedilatildeo com o qual a futuro profissional teraacute que lidar Agrave parte dessa realidade muito frequente precisamos refletir sobre quais seriam as bases para a realizaccedilatildeo de uma experiecircncia condizente com a necessidade da formaccedilatildeo inicial na aacuterea em situaccedilotildees reais de aprendizagem em que o diaacutelogo teoria-praacutetica se faccedila como discurso de construccedilatildeo de saberes entre a universidade e a escola entre licenciando professor regente e professor da Praacutetica de Ensino Isto eacute adentrar a escola durante o estaacutegio se por um lado potildee um grande desafio em relaccedilatildeo ao reconhecimento da realidade educacional brasileira em especial da rede puacuteblica de ensino por outro precisa oportunizar a participaccedilatildeo do licenciando em accedilotildees de construccedilatildeo coletiva que visem agrave mudanccedila do quadro de precariedade convocando neles no momento inicial de formaccedilatildeo atitude de sujeito diante da condiccedilatildeo de professor O cenaacuterio atual no Brasil exige uma formaccedilatildeo de luta pela manutenccedilatildeo do direito agrave educaccedilatildeo puacuteblica e essa necessidade eacute anterior a qualquer especificidade curricular paralelamente as questotildees curriculares demandam muito num tempo em que imposiccedilotildees de uniformizaccedilatildeo de curriacuteculo sem o necessaacuterio debate tambeacutem convocam o olhar para a formaccedilatildeo especiacutefica

Neste artigo pretendemos fazer uma reflexatildeo acerca da formaccedilatildeo em Letras do ponto de vista do estaacutegio supervisionado natildeo soacute do que significa construir com o licenciando

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em niacutevel macro uma praacutetica pedagoacutegica que seja ao mesmo tempo uma experiecircncia em que ele se forma como professor mas tambeacutem o lugar em que ele crie com os professores regentes e no diaacutelogo com estudantes novos saberes que propiciem transformaccedilotildees necessaacuterias agrave educaccedilatildeo baacutesica Em niacutevel mais especiacutefico procuramos entender como esse percurso na escola pode ser para o estudante da licenciatura tambeacutem um espaccedilo privilegiado de sua formaccedilatildeo como leitor literaacuterio

1 Professor de Liacutengua Portuguesa Apecircndice Literatura

Iniciando nossas reflexotildees buscaremos nos aproximar de alguns conceitos pertinentes agrave discussatildeo proposta Quando tratamos de curriacuteculo na realidade brasileira remetemos nossos esforccedilos constantemente ao rol de conteuacutedos a serem desenvolvidos em sala de aula e natildeo a um orientador poliacutetico-pedagoacutegico-filosoacutefico de nossas praacuteticas Pensando em conteuacutedo e formaccedilatildeo mais uma vez nos confrontamos com uma realidade que em geral natildeo eacute muito generosa nem em seus propoacutesitos nem nos resultados pensando curriacuteculo como lista de conteuacutedos essa realidade escolar costuma conceber formaccedilatildeo como transmissatildeo de conteuacutedos quase sempre de forma unilateral Um curriacuteculo organizado em disciplinas que segmentam o conhecimento e o concebem como gama conteudiacutestica colocaraacute a literatura em um lugar de apecircndice nas aulas de Liacutengua Portuguesa Antes de avanccedilar precisamos esclarecer que natildeo haacute aqui a defesa de separaccedilatildeo entre ensino de Liacutengua Portuguesa e Literatura no Ensino Fundamental Colocamos em discussatildeo o espaccedilo da literatura num curriacuteculo em que ela natildeo eacute disciplina numa concepccedilatildeo em que o curriacuteculo se organiza em eixos de aacutereas de conhecimento que se organiza em torno de conteuacutedo O lugar da literatura nessa loacutegica eacute o de algo supeacuterfluo ao qual o estudante pode ter acesso esporaacutedico e que pode servir a propoacutesitos linguiacutesticos apenas na maioria das praacuteticas

A escola brasileira quase sempre traz um retrato muito fragmentado da formaccedilatildeo literaacuteria e a formaccedilatildeo inicial ndash em Pedagogia para os professores das seacuteries iniciais e em Letras para os do Ensino Fundamental II e Ensino Meacutedio ndash natildeo tem conseguido estabelecer relaccedilotildees profundas entre os lugares de ser leitor e ser leitor especializado e esse descompasso se reflete na Educaccedilatildeo Baacutesica direcionando o professor para principalmente um dos dois caminhos reproduzir o discurso elitizado da Literatura como um conhecimento acessiacutevel a poucos ou repetir o ensino que recebeu na escola quando estudante realidade jaacute denunciada desde a deacutecada de 1970 por autores como Ligia Chiappini e Osman Lins dentre outros e revisitada mais contemporaneamente por Todorov e Compagnon

A manutenccedilatildeo na universidade de uma estrutura curricular que subtrai os espaccedilos de relaccedilatildeo mais aprofundada com a licenciatura em que a formaccedilatildeo para a docecircncia assume lugar desprivilegiado coloca ao encargo do estaacutegio supervisionado uma tarefa para aleacutem de orientaccedilatildeo de estaacutegio que eacute a de oferecer a bagagem de conteuacutedo com a qual o licenciando teraacute que lidar para planejar sua aula e colocaacute-la em praacutetica em situaccedilatildeo real de ensino-aprendizagem Portanto natildeo se trata apenas de pensar como precisa acontecer a transposiccedilatildeo didaacutetica mas muitas vezes de apresentar o conteuacutedo que compotildee o programa escolar

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Em realidades que se constituem como exceccedilatildeo no painel educacional brasileiro como as escolas federais e especialmente os Coleacutegios de Aplicaccedilatildeo os professores regentes dispotildeem de mais tempo para esse tipo de atuaccedilatildeo Entretanto essa natildeo eacute a realidade da maioria das escolas e na ausecircncia de amparo agraves lacunas da formaccedilatildeo os licenciandos podem tender agrave repeticcedilatildeo de praacuteticas que nem sempre se arvoram a uma formaccedilatildeo mais complexa e criacutetica dos estudantes da Educaccedilatildeo Baacutesica

Na reproduccedilatildeo de um ciclo em que se privilegia a metalinguagem e a memorizaccedilatildeo dos conteuacutedos para responder a instrumentos de avaliaccedilatildeo ndash quase sempre externa e de ampla abrangecircncia ndash encontramos a Literatura em encruzilhada de propoacutesitos de ensino diferentes mas complementares em sua pouca eficaacutecia para formar leitores um lugar do texto como mais um gecircnero do discurso a ser utilizado para fins de compreensatildeo em torno da forma ou como pretexto para praacuteticas de estudos linguiacutesticos Em ambos os casos a experiecircncia esteacutetica de diaacutelogo entre leitor e texto desaparece em detrimento de uma abordagem superficial O trabalho do estaacutegio supervisionado portanto estaacute tambeacutem no lugar de formaccedilatildeo inicial do licenciando e no caso do futuro professor de Literatura vem responder tambeacutem por leituras e reflexotildees que foram subtraiacutedas dele desde a escola baacutesica em que foi estudante

2 Consideraccedilotildees acerca da atuaccedilatildeo do professor-autor experiecircncias com a produccedilatildeo de material didaacutetico no Estaacutegio Supervisionado em Letras

Tecer consideraccedilotildees sobre a formaccedilatildeo inicial de professores junto ao estaacutegio supervisionado passa necessariamente pela reflexatildeo poliacutetica da praacutetica docente Educar como jaacute lembrava Paulo Freire (2011) implica tomar uma posiccedilatildeo com relaccedilatildeo ao mundo O educador portanto natildeo eacute ndash nem pode ser ndash um agente neutro mas compromissado com um determinado posicionamento poliacutetico Tomando como princiacutepio o engajamento com o mundo deve o professor em formaccedilatildeo assumir-se enquanto agente de transformaccedilatildeo social alinhavado a um discurso ideoloacutegico e que como tal precisa encontrar modos de agir que o coloquem na posiccedilatildeo autoral de suas proacuteprias praacuteticas saberes e fazeres docentes

Nesses termos partimos para a reflexatildeo da atuaccedilatildeo do professor-autor que entende a construccedilatildeo do seu curriacuteculo no cotidiano da sala de aula a partir da diversidade de saberes e experiecircncias compartilhadas pelos seus estudantes e na multiplicidade de realidades de mundo em que seus estudantes se encontram em vias de construccedilatildeo (OLIVEIRA 2013) Considerando-se a especificidade das disciplinas de Liacutengua Portuguesa e Literatura a centralidade do texto que dinamiza o andamento da aula nos confronta diariamente com a posiccedilatildeo da escolha seja de temaacuteticas de gecircneros textuais de autores de recortes os quais satildeo por noacutes selecionados para este ou aquele fim conforme a dinacircmica disposta em cada turma com seu perfil singular de alunado e as situaccedilotildees cotidianas proacuteprias da praacutetica pedagoacutegica

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O estaacutegio curricular supervisionado propicia para a maioria dos graduandos nas mais variadas aacutereas de licenciatura a primeira oportunidade de retornar agrave sala de aula natildeo mais na posiccedilatildeo de estudante Considere-se entretanto a particularidade deste lugar que ainda natildeo eacute o de professor Antes cabe-lhe a posiccedilatildeo ambivalente de um professor-estudante que com curiosidade observa desse entrelugar a postura dos alunos e do professor o que lhe possi-bilita vislumbrar a situaccedilatildeo da sala de aula de modo privilegiado tomando ora o ponto de vista do professor ora o do aluno Esta singularidade de percepccedilatildeo daacute-lhe a oportunidade de entender a dinacircmica da ldquododiscecircnciardquo (FREIRE 1996 p89) da maneira mais potente possiacutevel primeiro passo a ser destacado na construccedilatildeo da sua identidade como professor-autor

O conceito da ldquododiscecircnciardquo compreende a mutualidade da construccedilatildeo do conhecimento de maneira natildeo hieraacuterquica entre professores e estudantes em uma relaccedilatildeo horizontalizada no compartilhamento dos saberes Eacute ela a base para que o professor construa seu projeto didaacutetico metodoloacutegico e curricular de modo mais adequado agrave realidade de seu alunado Quando afirmamos que o curriacuteculo se constroacutei no cotidiano partimos justamente de uma concepccedilatildeo de educaccedilatildeo ldquododiscenterdquo para explorar as abordagens e estrateacutegias de ensino adequadas agrave realidade de nossas salas de aula Mediante o perfil de uma turma cujos alunos se tratam de maneira agressiva entre si a tiacutetulo de exemplo eacute papel do professor trabalhar o tema do respeito o que pode ser feito pela seleccedilatildeo de textos com os quais poderaacute mobilizar discussotildees com os estudantes ou ainda promover atividades em grupo que trabalhem o espiacuterito da colaboraccedilatildeo em vez da competitividade quando no caso de turmas que disputem entre si as melhores notas

Essa praacutetica pedagoacutegica soacute nos eacute possiacutevel quando temos a liberdade autoral de construirmos os nossos proacuteprios curriacuteculos cotidianamente em nossas aulas Natildeo quer isso dizer que o professor seleciona conteuacutedos curriculares a seu bel-prazer escolhendo os que lhe apetecem por gosto pessoal e excluindo aqueles que julga serem menos interessantes ou desgostosos para si ndash argumento a que defensores da uniformizaccedilatildeo do ensino por bases curriculares ou do polecircmico e inconstitucional projeto de lei ldquoEscola sem partidordquo recorrem para falsamente promover uma educaccedilatildeo ldquoequilibradardquo e ldquoneutrardquo para todos equalizando os ldquoniacuteveisrdquo de conhecimento entre os estudantes de uma mesma seacuterieano Na realidade o que se propotildee e defende aqui eacute a articulaccedilatildeo dos conteuacutedos curriculares agraves circunstacircncias impostas na espontaneidade do labor pedagoacutegico entendendo a formaccedilatildeo educacional de nossos estudantes para muito aleacutem do conteuacutedo curricular explorado pelas mais diferentes disciplinas

Na falsa defesa por um equiliacutebrio equacircnime do que eacute ensinado nas vaacuterias escolas puacuteblicas no cenaacuterio nacional (desconsiderando-se as diferenccedilas de realidade entre uma escola de zona rural ou urbana de realidades sociais diacutespares como de bairros nobres e de bairros de periferia ou ainda as particularidades de uma comunidade ribeirinha quilombola ou sertaneja) estrateacutegias de uniformizaccedilatildeo vecircm sendo aplicadas ao longo da histoacuteria da educaccedilatildeo brasileira Para aleacutem dos documentos oficiais que visam agrave isonomia e uniformidade do curriacuteculo tais como a necessaacuteria Lei de Diretrizes e Bases de 1996 os Paracircmetros Curriculares Nacionais de 1998 e a Base Nacional Curricular Comum que

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vem sendo (re)formulada nesse momento para aleacutem da nova proposta de Ensino Meacutedio imposta pelo atual governo federal destacamos para este trabalho os programas voltados para a produccedilatildeo e distribuiccedilatildeo de livros e materiais didaacuteticos enquanto limitadores de uma praacutetica efetivamente autoral na atividade profissional docente

Haacute que se problematizar o papel do livro didaacutetico como instrumento de mediaccedilatildeo da praacutetica pedagoacutegica Natildeo se trata de defendermos aqui a extinccedilatildeo do livro didaacutetico ou reduzirmos a sua importacircncia para a praacutetica das tarefas pedagoacutegicas mais comuns como a leitura de textos sistematizaccedilatildeo de conteuacutedos e de conceitos importantes e a realizaccedilatildeo de atividades e exerciacutecios de fixaccedilatildeo sobre os temas abordados em cada unidadecapiacutetulo Ao contraacuterio haacute que se valorizar a iniciativa de programas como o Programa Nacional do Livro Didaacutetico (PNLD) por exemplo pela accedilatildeo de distribuiccedilatildeo de livros didaacuteticos gratuitamente para as escolas puacuteblicas de todas as regiotildees do paiacutes que em muito contribuiu para a democratizaccedilatildeo da educaccedilatildeo puacuteblica No entanto eacute importante questionarmos sobre a centralidade ocupada pelo livro didaacutetico e materiais apostilados em nossas aulas cujo projeto curricular eacute pensado por terceiros retirando muitas vezes a autoria do trabalho docente a ser desenvolvido com nossas turmas

Tambeacutem natildeo podemos perder de vista a exploraccedilatildeo mercadoloacutegica movimentada pelo programa que mobiliza a maior parcela de lucro de grandes empresas do ramo editorial fazendo da educaccedilatildeo um negoacutecio rentaacutevel e a serviccedilo do capital Quando o interesse envolvido visa ao lucro e natildeo de fato ao aprimoramento do ensino e da aprendizagem dos estudantes da rede puacuteblica natildeo espanta que alguns desses materiais mesmo que passando pelo crivo e criteacuterio dos avaliadores do PNLD apresentem propostas pouco inovadoras para nossos estudantes

Quando a reduccedilatildeo de nossa atuaccedilatildeo docente se pauta centralmente pela aplicaccedilatildeo dos materiais didaacuteticos distribuiacutedos pelos programas governamentais de educaccedilatildeo estamos diante de grande perigo Programas de ensino por apostilamento como o promovido pela Secretaria Municipal do Rio de Janeiro reduzem o trabalho docente ao cumprimento das unidades do material distribuiacutedo e sua execuccedilatildeo ou natildeo eacute aferida por avaliaccedilotildees elaboradas e aplicadas pela Secretaria bimestralmente O mesmo era verificado com as afericcedilotildees promovidas ateacute 2015 pela Secretaria Estadual de Educaccedilatildeo do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ) como o Sistema de Avaliaccedilatildeo do Estado do Rio de Janeiro (SAERJ) no mesmo objetivo de monitoraccedilatildeo do cumprimento ou natildeo dos conteuacutedos curriculares

Para aleacutem disso natildeo eacute possiacutevel dissociar a promoccedilatildeo de tais metodologias de ensino agrave baixa remuneraccedilatildeo profissional dos docentes que com frequecircncia veem-se obrigados a acumular mais de uma matriacutecula no serviccedilo puacuteblico muitas vezes somada(s) agrave contrataccedilatildeo na rede privada de ensino em que a extensa carga horaacuteria reduz o tempo laboral para a organizaccedilatildeo e o planejamento das atividades Na busca por um padratildeo salarial razoaacutevel em detrimento de uma carga horaacuteria tatildeo extensa recorrer a tais materiais apostilados prontos acaba sendo visto como um facilitador do trabalho jaacute tatildeo precarizado

Incorre em grande risco o profissional que acaba por se adequar a tal situaccedilatildeo sem pensar em alternativas a essa loacutegica predominante Vecirc-se na realidade apartado do

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caraacuteter mais intelectual de nossa atividade docente uma vez que natildeo planeja de forma autocircnoma suas proacuteprias aulas natildeo seleciona os textos com os quais deseja trabalhar e tampouco mobiliza os exerciacutecios de maneira reflexiva e dirigida agraves questotildees pedagoacutegicas exigidas pelas especificidades de seu alunado Em outras palavras o docente deixa de atuar como um professor-autor e passa agrave condiccedilatildeo de professor-instrutor tutor de um trabalho pensado por terceiros e apartado da realidade cotidiana de sua sala de aula Diferentemente do que pregam os defensores do PL Escola sem Partido (PL 867 2015) o professor que se alinha a este projeto educacional cumprindo rigorosamente os requisitos postulados por programas educacionais como os citados anteriormente (pelo que muitas vezes satildeo premiados) natildeo eacute um profissional ldquoneutrordquo que meramente cumpre com sua tarefa de transmissor de conhecimento mas trabalha agrave disposiccedilatildeo da loacutegica dominante da meritocracia e do capital

Essas consideraccedilotildees foram pensadas e discutidas com estudantes da licenciatura em Letras do oitavo periacuteodo que foram alocados no Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da UFRJ para a realizaccedilatildeo de seu estaacutegio curricular supervisionado acompanhando turmas de seacutetimo ano do Ensino Fundamental nos anos de 2013 2014 e 2015 Aleacutem de acompanharem as turmas na observaccedilatildeo os graduandos participaram ativamente na construccedilatildeo e planejamento das aulas com encontros de orientaccedilatildeo semanal quando o material didaacutetico elaborado pelo professor orientador a ser aplicado agraves turmas era compartilhado com os estagiaacuterios Nesses encontros de orientaccedilatildeo guiados pelas discussotildees de Chiappini (2005) Lajolo (1996) e Marcuschi (2008) discutimos a respeito da praacutetica docente autoral de diferentes metodologias e recursos didaacuteticos a serem explorados em sala de aula aleacutem da praacutetica de produccedilatildeo de exerciacutecios explorando habilidades e competecircncias (RUEacute 2009)

Dessas trocas de experiecircncias o envolvimento com a praacutetica de produccedilatildeo de material didaacutetico ganhou forccedila e interesse dos estagiaacuterios o que acabou por mobilizar a criaccedilatildeo do projeto de ensino ldquoFichas complementares ndash o que eacute para que serve como se fazrdquo pequena oficina de produccedilatildeo de material didaacutetico complementar e de reforccedilo escolar para os estudantes O projeto ainda embrionaacuterio no ano de 2013 iniciou-se com a coparticipaccedilatildeo dos licenciandos que contribuiacuteram com textos e exerciacutecios aplicados em sala e posteriormente por eles corrigidos em aula Para tanto as experiecircncias leitoras de cada estagiaacuterio foram compartilhadas em nossos encontros de orientaccedilatildeo criando entre o grupo uma coletacircnea de textos literaacuterios e natildeo literaacuterios que dialogavam com o programa e poderiam ser aplicados agraves turmas Com base na seleccedilatildeo de algumas das leituras trazidas os licenciandos exploraram aspectos de anaacutelise importantes para serem alcanccedilados por estudantes e ensaiaram alguns exerciacutecios de interpretaccedilatildeo Aleacutem disso articularam os conteuacutedos curriculares de literatura gramaacutetica e produccedilatildeo textual previstos no programa curricular do seriado elaborado pelo Setor de Liacutengua Portuguesa do CAp UFRJ aos materiais que produziram sob supervisatildeo do professor orientador

A criaccedilatildeo do projeto ainda em andamento veio em virtude da grande quantidade de materiais e exerciacutecios de altiacutessima qualidade que foram elaborados pelos licenciandos

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mas que natildeo poderiam ser todos aplicados nas aulas por natildeo haver tempo haacutebil para tanto no decorrer do ano letivo Daiacute surgiu a ideia de criaccedilatildeo de uma pequena oficina de produccedilatildeo de material didaacutetico agrave distacircncia Em uma pasta de compartilhamento online os estudantes da licenciatura compartilhavam diferentes textos entre si sobre os quais elaboravam exerciacutecios e questotildees e contribuiacuteam com sugestotildees para melhor aprimoramento Tambeacutem agrave distacircncia o professor supervisionava o trabalho com sugestotildees e criacuteticas e indicava quando da aplicabilidade dos exerciacutecios aos estudantes O problema com a falta de tempo para teste de aplicabilidade dos materiais foi resolvido com a criaccedilatildeo de pastas com exerciacutecios ldquoextrasrdquo que poderiam ser resolvidos em casa pelos estudantes como fixaccedilatildeo e reforccedilo escolar posteriormente corrigidos pelos autores de cada ficha

Esse material denominado como ldquofichas complementaresrdquo foi disposto em pastas coloridas deixadas na sala de aula atualizadas semanalmente e exploradas pelos alunos da turma na descoberta de novos textos e exerciacutecios Muitas delas inclusive eram pensadas diretamente para alguns alunos especiacuteficos que apresentavam dificuldades de aprendizagem no campo da leitura ou da escrita por exemplo ndash o que demonstrou a percepccedilatildeo e sensibilidade dos professores em formaccedilatildeo para a importacircncia de uma praacutetica docente autoral Aleacutem disso a escolha dos textos e dos temas abordados eram associados diretamente a situaccedilotildees vividas no cotidiano do trabalho pedagoacutegico para o que muito contribuiu a praacutetica da produccedilatildeo textual explorada pelas fichas que os levava a refletir criticamente sobre temas que consideraacutevamos importantes de serem discutidos Como forma de estimular o interesse para recorrerem agraves pastas e resolverem os exerciacutecios pontos extras somados agraves avaliaccedilotildees foram dados ndash o que contribuiacutea consequentemente para a preparaccedilatildeo e estudos para as provas e testes Com significativo desempenho dos estudantes nas avaliaccedilotildees em decorrecircncia do preparo os pontos ldquobocircnusrdquo logo acabaram se mostrando desnecessaacuterios

Ao final do estaacutegio curricular quando os licenciandos assumem a regecircncia da turma por dois tempos seguidos os resultados alcanccedilaram niacuteveis de satisfaccedilatildeo muito acima do desejado Natildeo soacute criaram seus planos de aula de forma totalmente autoral com a produccedilatildeo de seus proacuteprios materiais e incrementando-os com recursos didaacuteticos diversificados como projeccedilatildeo de slides viacutedeos muacutesicas etc como ainda tinham um grande entrosamento com os estudantes que ao longo do ano letivo receberam o suporte e a atenccedilatildeo dos estagiaacuterios por meio da resoluccedilatildeo e correccedilatildeo atenciosa das fichas complementares desenvolvidas para eles O projeto aprimorado nos anos seguintes ganhou grande repercussatildeo e inclusive contou com a apresentaccedilatildeo de relatos de experiecircncia por parte do professor orientador e dos licenciandos em eventos acadecircmicos como o Encontro Nacional de Ensino e Aprendizagem de Liacutengua e Literatura (ENEALL-UFRJ) em novembro de 2014 e o Congresso Nacional de Ensino de Liacutengua Portuguesa (CONELP-UERJ) em julho de 2016 e seguiraacute contribuindo para a atividade autoral dos professores em formaccedilatildeo inicial em sintonia com uma verdadeira praacutetica educativa emancipatoacuteria

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3 A dimensatildeo do professor leitor experiecircncias com a leitura literaacuteria no Estaacutegio Supervisionado em Letras

A perspectiva autoral defendida neste artigo como fundamento do qual emergem os fios que tecem a identidade docente caminho plural e sempre inacabado pode-se desdobrar na dimensatildeo do professor e da professora autores de seus proacuteprios materiais de trabalho como jaacute visto bem como se apresenta numa outra dimensatildeo a princiacutepio oacutebvia quando pensamos no futuro docente de liacutengua portuguesa e literatura mas que na praacutetica perde o caraacuteter de obviedade para se materializar numa questatildeo complexa a dimensatildeo do professor leitor

A escola entendida aqui como lugar de feitura e partilha de saberes constroacutei-se por vezes num movimento contraacuterio de silenciamento dos sujeitos imediatamente envolvidos no processo de ensino-aprendizagem o estudante visto e avaliado muitas vezes pela falta e natildeo pela sua potecircncia e o proacuteprio professor limitado a um sistema que natildeo lhe permite a elaboraccedilatildeo da autoria e da percepccedilatildeo de si no exerciacutecio de seu ofiacutecio Este sistema no entanto natildeo se encerra na escola baacutesica mas prossegue (ou se inicia) no ensino superior cuja predominacircncia de uma visatildeo hieraacuterquica na construccedilatildeo dos saberes pela via de um discurso da autoridade gera profundos abismos na relaccedilatildeo do estudante de Letras com a literatura A universidade fundamentalmente um lugar de experimentaccedilatildeo e pesquisa natildeo raro termina por privilegiar a reproduccedilatildeo de teorias e reflexotildees jaacute referendadas no meio acadecircmico abrindo de fato poucas brechas para a construccedilatildeo de um saber emancipatoacuterio e criativo Em especial no caso do estudante de Letras em seu contato com o texto literaacuterio o processo de silenciamento eacute reforccedilado por essas ldquovozesrdquo que falam sobre o texto mas que pouco contribuem para que seja ouvida a voz do leitor Apropriando-se do par ldquoexperiecircnciasentidordquo defendido por Larrosa (2002) haacute nas instituiccedilotildees formais de ensino pouco espaccedilo para o saber da experiecircncia entendida aqui como um saber que me passa (Cf LARROSA 2002) ou seja algo do mundo que atravessa o sujeito e o afeta modificando-o e modificando tambeacutem o mundo natildeo apenas pelo racional mas pelo sensiacutevel Desse modo estudantes formados por uma escola baacutesica que silencia ingressam na universidade para se formarem docentes numa instituiccedilatildeo que tambeacutem tem como praacutetica o silenciamento atraveacutes de um estiacutemulo agrave leitura de admiraccedilatildeo que atende ao aspecto racional poreacutem fragiliza a dimensatildeo do afeto tatildeo cara no processo de formaccedilatildeo do leitor literaacuterio

Diante dessa pobreza da experiecircncia alguns desafios satildeo colocados para o licenciando de Letras no momento em que se inicia o estaacutegio supervisionado Eacute muito comum que logo nos primeiros encontros com o professor regente o licenciando manifeste o desejo por realizar sua regecircncia em algum conteuacutedo de liacutengua portuguesa afirmando natildeo ter muito contato ou ateacute mesmo apreccedilo pela literatura Ora como trabalhar o texto literaacuterio com estudantes do Ensino Fundamental II e Ensino Meacutedio na perspectiva da formaccedilatildeo do leitor sem ter o futuro docente de fato experimentado essa dimensatildeo subjetiva do contato com o texto Como transgredir a leitura de admiraccedilatildeo leitura de comentaacuterios para a leitura literaacuteria como experiecircncia ldquoA confrontaccedilatildeo do leitor consigo mesmo eacute uma

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das dimensotildees maiores da leiturardquo afirma Jouve (2002 p 61) e a escassez deste confronto gera leitores pouco iacutentimos do texto literaacuterio e de si afinal ldquoa atitude de se perceber a si mesmo num processo do qual participa eacute um momento central da experiecircncia esteacuteticardquo (ISER 1996 apud JOUVE 2002 p 61) A literatura portanto contribui para um saber sobre si a partir do outro e eacute justamente no retorno agrave escola agora na condiccedilatildeo de licenciandos que ao refletirem sobre seu fazer docente iratildeo experimentar o confronto

A orientaccedilatildeo eacute um dos espaccedilos mais importantes do processo de estaacutegio supervisionado Aleacutem de ser institucionalmente o momento em que se vai refletir e discutir sobre as vivecircncias do licenciando nas aulas elaborar tarefas materiais preparar e analisar as coparticipaccedilotildees ela acaba por tornar-se muitas vezes um espaccedilo de troca de experiecircncias em que as lacunas e os anseios do futuro professor vecircm agrave tona quando deparado com a dimensatildeo praacutetica de sua profissatildeo A dificuldade de realizar a transposiccedilatildeo didaacutetica o pouco acuacutemulo de reflexatildeo sobre a identidade docente e as proacuteprias lacunas da formaccedilatildeo se revelam no estaacutegio cabendo ao professor regente a sensibilidade de perceber as demandas singulares de cada grupo de estagiaacuterios ampliando as accedilotildees a serem elaboradas na orientaccedilatildeo

Neste percurso foi possiacutevel perceber que dentre todas as lacunas possiacuteveis na formaccedilatildeo do estudante de Letras a do leitor literaacuterio era uma das mais recorrentes Ausecircncia de leituras-chave fragilidades na interpretaccedilatildeo e anaacutelise dos textos dificuldades ateacute mesmo na leitura oral de contos e poemas enfim todas estas precariedades geraram novas demandas para o momento da orientaccedilatildeo que passou a ser tambeacutem um lugar da experimentaccedilatildeo literaacuteria na tentativa de romper o silecircncio desses futuros professores diante da literatura Sendo assim iniciamos uma rotina de leitura e interpretaccedilatildeo partilhada dos textos literaacuterios que comporiam as aulas O objetivo era dar contorno agrave identidade do professor-leitor em suas variadas perspectivas o que lecirc para si o que lecirc para o aluno o que lecirc com o aluno

O relato selecionado para este artigo diz respeito ao trabalho realizado ao longo de trecircs anos em turmas do 9ordm ano do EF II do CAp UFRJ O Coleacutegio de aplicaccedilatildeo da UFRJ possui em seu curriacuteculo do segundo segmento do fundamental um trabalho com Literatura na perspectiva da formaccedilatildeo do leitor literaacuterio O trabalho eacute prioritariamente desenvolvido a partir de temaacuteticas divididas e pensadas para cada seacuterie cabendo ao 9deg ano dentre outros temas o trabalho com o fantaacutestico Para isso optamos por elaborar coletivamente uma coletacircnea de contos composta por sugestotildees do professor em conjunto com as leituras que os proacuteprios licenciandos traziam de sua bagagem A etapa de seleccedilatildeo de textos para uma turma jaacute trouxe dificuldades para os estagiaacuterios na medida em que muitos natildeo se sentiam seguros em suas escolhas A seleccedilatildeo de textos natildeo eacute neutra assim como a docecircncia natildeo o eacute Ela implica tomada de posiccedilatildeo atitude poliacutetica diante do curriacuteculo diante do mundo Mas para que essas escolhas possam ser feitas eacute preciso que o professor se sinta rico em experiecircncias de leitura A fim de colaborar com este processo cada conto trazido era lido de forma partilhada na orientaccedilatildeo e cabia ao licenciando responsaacutevel a leitura em voz alta do texto Assim aleacutem de haver uma troca e um amadurecimento a respeito

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dos criteacuterios que nos fariam escolher ou natildeo aquele texto para aquela determinada seacuterie era possiacutevel experimentar uma atividade ainda pouco explorada no cotidiano das aulas a leitura oral o lugar do professor que lecirc para seus alunos e que atraveacutes de sua leitura traz agrave tona imagens e constroacutei pontes entre o estudante e o texto

Finalizada a coletacircnea era preciso que os licenciados elaborassem um plano de aula a partir de um dos contos selecionados Surgem daiacute novas dificuldades que esbarram tanto em um desconhecimento ndash totalmente esperado ndash a respeito do que seria um plano de aula quanto ndash e daiacute voltamos para as lacunas da formaccedilatildeo ndash em uma ignoracircncia frente aos saberes a serem explorados diante de um texto literaacuterio A dificuldade em compreender na praacutetica a literatura como uma forma autocircnoma de conhecimento sobre o mundo ndash ldquoA literatura assume muitos saberesrdquo jaacute dizia Barthes (2007 p 17) ndash dotada de suas proacuteprias leis gerava planos de trabalho que subjugavam o texto literaacuterio a interpretaccedilotildees psicoloacutegicas socioloacutegicas etc ou ateacute mesmo a leituras que davam grande ecircnfase agrave biografia do autor e ao periacuteodo histoacuterico da obra Em outras palavras a dimensatildeo subjetiva e o trabalho com o simboacutelico se perdiam em meio a um dizer sobre o texto que pouco colabora para o engajamento e o viacutenculo afetivo do leitor Assim o processo de refeitura desses planos de aula envolveu o (re)encontro do professor-leitor com aquele texto experimentando ele proacuteprio um atravessamento pelo texto literaacuterio nas suas diferentes camadas mas a princiacutepio sem qualquer premissa teoacuterica Importante ressaltar que natildeo se estaacute aqui abrindo matildeo do professor como um leitor especializado poreacutem estamos defendendo que pensar as aulas de literatura como um lugar de encontro e promoccedilatildeo de experiecircncias esteacuteticas com o texto significa que todos os envolvidos no processo (professor-texto-aluno) devem se sentir protagonistas da experiecircncia

Pensar resultados em um processo de formaccedilatildeo que como dissemos no iniacutecio estaacute sempre por se fazer pode parecer incoerente no entanto a partilha de um relato de trabalho demanda de noacutes capacidade de amarrar certas pontas traccedilar reflexotildees que contribuam para o pensamento sobre nosso objeto de pesquisa ou seja as identidades do professor de liacutengua e literatura Neste sentido eacute preciso afirmar os ecircxitos que o trabalho cotidiano com a leitura literaacuteria gerou na formaccedilatildeo dos futuros professores Licenciandos que fariam sua regecircncia em algum toacutepico de Liacutengua Portuguesa por a princiacutepio sentirem-se mais confortaacuteveis com o conteuacutedo engajaram-se de tal forma no trabalho com a literatura que trocaram seus temas de aula Assim as turmas de 9ordm ano do EF II ao longo desses trecircs anos encontraram-se com Mia Couto Edgar Allan Poe Julio Cortaacutezar Murilo Rubiatildeo Lygia Fagundes Telles entre tantos outros Presenciar licenciandos desejosos de ler com seus alunos mais seguros no trato com o texto literaacuterio eacute realizar o direito agrave literatura defendido por Candido (2011) em sua dimensatildeo do direito humano ao conhecimento e agrave produccedilatildeo artiacutestica do homem ao longo do tempo Esse direito para se estender ao aluno precisa chegar de fato ao professor e para isso na contramatildeo da desumanizaccedilatildeo do trabalho pedagoacutegico eacute preciso forjar espaccedilos para a experiecircncia esteacutetica que ensina nas brechas e promove possibilidades de uma relaccedilatildeo criativa e emancipatoacuteria com o saber

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Consideraccedilotildees finais

A epiacutegrafe que abriu esse artigo de Cora Coralina (2007 p 27) tira do lugar comum a oposiccedilatildeo entre os pares ldquotransferir x ensinarrdquo e ldquosaber x aprenderrdquo Paulo Freire (2011 p92) ao referir-se agrave praacutetica de uma ldquoeducaccedilatildeo bancaacuteriardquo pontuava muito bem essa distinccedilatildeo de modo que o conhecimento natildeo se faz pela transferecircncia e acuacutemulo de saberes mas pela experiecircncia subjetiva do ensinar e aprender No poema de Cora Coralina essa dimensatildeo eacute abarcada poreacutem em uma perspectiva natildeo dialeacutetica o que transfere o que sabe eacute tatildeo feliz quanto o que aprende o que ensina Contudo os saberes transferidos de que trata em seu poema natildeo estatildeo na loacutegica da relaccedilatildeo ensino-aprendizagem mas no que eacute transmitido de geraccedilatildeo para geraccedilatildeo pela cultura oral e pela praacutetica natildeo pela teoria Estaria proacuteximo do que Manoel de Barros chamou de saber por ldquoignoratildeccedilasrdquo (2016 p 5) o que se sabe sem nunca ter precisado aprender o que nos eacute instintivo por natureza Jaacute na relaccedilatildeo de ensino-aprendizagem estaacute em cena a praacutetica da dodiscecircncia em uma relaccedilatildeo horizontal tanto aprende o que ensina quanto ensina o que aprende Essa troca de experiecircncias que eacute pura subjetividade subverte a ordem da verticalidade entre um detentor do saber que transfere para o ignorante aquilo que este deve conhecer

O momento da praacutetica de ensino e do estaacutegio supervisionado abarca essa dupla relaccedilatildeo entre ldquotransferir o que se saberdquo e ldquoaprender o que se ensinardquo dentro da perspectiva abordada por Cora Coralina isto eacute de forma natildeo dialeacutetica Natildeo se ldquoensinardquo ou se ldquoaprenderdquo a ser professor mas muito se aprende ensinando que certos saberes satildeo pela praacutetica e pela troca de experiecircncia transpassados trocados e desenvolvidos pelo proacuteprio fazer pedagoacutegico in loco Assim nesse trabalho tentamos abarcar justamente essas duas dimensotildees ao focarmos na construccedilatildeo de identidades de professores autores e leitores durante o estaacutegio docente de estudantes da licenciatura em Letras da UFRJ

A questatildeo curricular foi ponto de partida de nossa discussatildeo para entender o contexto de formaccedilatildeo docente inicial os curriacuteculos dos cursos de licenciatura em Letras estatildeo apartados da realidade dos curriacuteculos de Liacutengua Portuguesa e Literatura no Ensino Baacutesico encontrados na sala de aula e em poucos momentos a pesquisa nas aacutereas de Liacutengua e Literatura convergem para se repensar abordagens e estrateacutegias de transposiccedilatildeo didaacutetica do que haacute de mais avanccedilado nas discussotildees acadecircmicas para dentro da escola Aleacutem disso a cisatildeo entre ldquoliacutengua x literaturardquo no curriacuteculo acaba por segmentar o conhecimento em toacutepicos curriculares a serem cumpridos por cada aacuterea sem entender que o diaacutelogo entre ambas eacute fundamental para a compreensatildeo de um ensino de liacutengua e literatura natildeo utilitaacuterio que natildeo esteja apenas a serviccedilo da ldquoboa escritardquo ou da ldquoboa leiturardquo mas da formaccedilatildeo de um aluno leitor e autor criacutetico e reflexivo sobre a sua linguagem e sua atuaccedilatildeo social e referencial no mundo Nessa linha o ensino literaacuterio eacute primordial posto que propicia formas de ler e imaginar o mundo em muacuteltiplas potencialidades Ocorre contudo o oposto a literatura vista como mais um gecircnero textual a ser reconhecido pelo ldquobom leitorrdquo que natildeo se trata do ldquoleitor de mundordquo de que fala Freire (2011 p95) entra como apecircndice nas aulas de Liacutengua Portuguesa

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Contribuem de forma significativa para a imutabilidade dessa realidade as condiccedilotildees de trabalho do professor do Ensino Baacutesico com carga horaacuteria em sala de aula exaustiva sem tempo e estiacutemulo para a atualizaccedilatildeo e a formaccedilatildeo continuada sem tempo para a preparaccedilatildeo de suas aulas e produccedilatildeo de seu proacuteprio material didaacutetico vecirc-se enredado agrave obrigatoriedade de cumprimento de uma base curricular comum que vai de encontro a uma praacutetica pedagoacutegica emancipatoacuteria excluindo-se as diversidades de realidades e contextos e a construccedilatildeo de um curriacuteculo que se decirc no cotidiano Assim eacute retirada do professor toda a sua dimensatildeo intelectual e potencialmente criativa posto que se reduz agrave figura de instrutor mediador e reprodutor de um curriacuteculo pensado por terceiros ao aplicar manuais apostilados e livros didaacuteticos reducionistas de nosso trabalho

Por fim haacute que se pensar na dimensatildeo do professor-autor perpassada pela dimensatildeo do professor-leitor que assume a subjetividade de seu repertoacuterio de leituras sem contudo abrir matildeo de seu lugar de leitor especialista e de professor que escuta as leituras de seus estudantes de modo a amparar com a criacutetica necessaacuteria e ampliar o repertoacuterio de sentidos do texto literaacuterio lido em sala de aula

Referecircncias

BARROS Manoel de O livro das ignoratildeccedilas Rio de Janeiro Alfaguara 2016

BARTHES R Aula Traduccedilatildeo e posfaacutecio de Leila Perrone-Moiseacutes Satildeo Paulo Cultrix 2007

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CHIAPPINI L Reinvenccedilatildeo da catedral liacutengua literatura comunicaccedilatildeo ndash novas tecnologias e poliacuteticas de ensino Satildeo Paulo Cortez Editora 2005

COMPAGNON Antoine Literatura para quecirc Belo Horizonte Editora UFMG 2009

CORALINA Cora Vinteacutem de cobre meias confissotildees de Aninha 9ed Satildeo Paulo Global 2007

DALVI M A REZENDE N JOVER-FALEIROS R (Org) Leitura de literatura na escola Satildeo Paulo Paraacutebola 2013

FREIRE P A importacircncia do ato de ler em trecircs artigos que se completam Satildeo Paulo Cortez Editora 2011

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JOUVE V A leitura Traduccedilatildeo Brigitte Hervot Satildeo Paulo Ed UNESP 2002

LAJOLO M Livro didaacutetico um (quase) manual de usuaacuterio Em aberto Brasiacutelia ano 16 n 69 p 3-9 janmar 1996

LARROSA J Notas sobre a experiecircncia e o saber de experiecircncia Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 19 p 20-28 2002

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LINS Osman Do ideal e da gloacuteria problemas inculturais brasileiros Satildeo Paulo Summus 1977

MARCUSCHI L A Produccedilatildeo textual anaacutelise de gecircneros e compreensatildeo Satildeo Paulo Paraacutebola Editorial 2008

OLIVEIRA I B de Curriacuteculo e processos de aprendizagem ensino Poliacuteticas praacuteticas Educacionais Cotidianas Curriacuteculo sem Fronteiras n 3 p 375-391 2013

PARAcircMETROS CURRICULARES NACIONAIS Ensino Meacutedio ndash MEC 2000

PARAcircMETROS CURRICULARES NACIONAIS liacutengua portuguesa ndash terceiro e quarto ciclos do ensino fundamentalSecretaria de Educaccedilatildeo Fundamental Brasiacutelia MEC SEF 1998

PL 8672015 Inclui entre as Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional o ldquoPrograma Escola sem Partidordquo httpwwwcamaragovbrsilegintegras1317168pdf Capturado em 11082017

RUEacute J As competecircncias na sala de aula a atividade como eixo do seu desenvolvimento In ARANTES Valeacuteria Amorim (Org) Educaccedilatildeo e competecircncias pontos e contrapontos Satildeo Paulo Summus Editorial 2009 p 52-57

TODOROV Tzvetan A literatura em perigo Rio de Janeiro Difel 2010

Recebido em 30 de abril de 2017

Aceito em 27 de agosto de 2017

Ana Creacutelia Penha Dias

Possui graduaccedilatildeo em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1994) especializaccedilatildeo em literatura infantil e juvenil (1999) mestrado (2003) e doutorado (2008) em Letras (Letras Vernaacuteculas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Atualmente eacute professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro Tem experiecircncia na aacuterea de Letras com ecircnfase em Literatura Brasileira atuando principalmente nos seguintes temas literatura infantil literatura brasileira literatura e ensino e formaccedilatildeo do leitor literaacuterio Eacute liacuteder do grupo de pesquisa Literatura e Educaccedilatildeo literaacuteria (dgpcnpqbrdgpespelhogrupo5906903233650588) e membro do GT da Anpoll Literatura e Ensino anacreliagmailcom

Andreacute Luiacutes Mouratildeo de Uzecircda

Bacharel e licenciado em Letras com habilitaccedilatildeo em Liacutengua Portuguesa e suas respectivas literaturas pela UFRJ bacharel em Museologia pela UNIRIO Mestre em Ciecircncia da Literatura pela UFRJ Eacute professor do Ensino Baacutesico Teacutecnico e Tecnoloacutegico do Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da UFRJ Pesquisador do grupo de pesquisa Literatura e Educaccedilatildeo Literaacuteria (dgpcnpqbrdgpespelhogrupo5906903233650588) coordenador do projeto de pesquisa Medecircra ndash Mediaccedilotildees do Literaacuterio e integrante do Nuacutecleo Interdisciplinar de Estudos Carnavalescos (NIEC) Foi membro do corpo editorial da Revista Foacuterum de Literatura Brasileira Contemporacircnea junto ao Departamento de Letras Vernaacuteculas da Faculdade de Letras ndash UFRJ e do corpo editorial do perioacutedico Revista Eletrocircnica Jovem Museologia da Escola de Museologia da UNIRIO andreuzedagmailcom

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Maria Coelho Araripe de Paula Gomes

Mestre em Literatura Brasileira pela UFRJ (2015) possui especializaccedilatildeo em Literatura Infanto-Juvenil (2010) e graduaccedilatildeo em Letras pela Universidade Federal Fluminense (2006) onde atuou na aacuterea de Literatura Brasileira Moderna e Literatura Portuguesa Iniciou os estudos de Artes Cecircnicas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (2017) Pertence ao quadro efetivo docente do Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da UFRJ no setor de Liacutengua Portuguesa e desenvolve trabalho artiacutestico como atriz e contadora de histoacuterias desde 2008 com o Grupo Mosaicos ndash Teatro Muacutesica Histoacuterias Integra o grupo de pesquisa Literatura e Educaccedilatildeo Literaacuteria (dgpcnpqbrdgpespelhogrupo5906903233650588) umamaria84gmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Leituras de ldquoA flor e a naacuteuseardquo de Carlos Drummond de Andrade em praacuteticas de Estaacutegio

Supervisionado em Liacutengua Portuguesa Readings of ldquoThe Flower and the Nauseardquo by Carlos

Drummond de Andrade in an Internship in Portuguese Language Teaching

Lecturas de ldquoA flor e a naacuteusearaquo de Carlos Drummond de Andradeen praacutecticas de Pasantiacutea de Intervencioacuten en Lengua

Portuguesa

Diogo dos Santos SouzaUniversidade Federal de AlagoasInstituto Federal de Alagoas

Eliana Kefalaacutes de OliveiraUniversidade Federal de Alagoas

ResumoO contato entre o leitor e palavra literaacuteria eacute uma experiecircncia complexa que no contexto da sala de aula demanda do professor o planejamento de estrateacutegias de leitura e preparo de abordagens do texto que o transformem num objeto significativo para o estudante O objetivo do presente artigo eacute apresentar o relato de uma oficina de leitura sobre o poema ldquoA flor e a naacuteuseardquo de Carlos Drummond de Andrade realizada por alunos da disciplina Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa 2 que teve como foco a teoria e praacutetica do ensino de Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas Atraveacutes da elaboraccedilatildeo e execuccedilatildeo da oficina os estudantes estagiaacuterios notaram que as ldquoinquietudesrdquo do metapoema escolhido poderiam se transformar em caminhos de produccedilatildeo de sentidos variados tornando a sala de aula um lugar tambeacutem de encontro com o inesperado Isto posto concluiu-se que na exploraccedilatildeo da leitura literaacuteria as lacunas os vazios e as indeterminaccedilotildees geradas pelo poema tornam-se elementos que poderiam compor um convite ao leitor a jogar com o texto e com os seus modos de leitura Palavras-chave Poesia Ensino Carlos Drummond

AbstractThe contact between the reader and the literary word is a complex experience that in the context of the classroom requires that teachers plan reading strategies and prepare approaches to the text that make it a significant object for students The purpose of this article is to present the report of a reading class on the poem ldquoThe flower and the nauseardquo by Carlos Drummond de Andrade carried out by students of the Internship in Portuguese Language 2 course at the

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Faculty of Arts of the Federal University of Alagoas The focus of this course is theory and practice of teaching Literature Throughout the preparation and development of the class the students noticed that the ldquodisquietnessesrdquo of the chosen metapoem could lead to varied meanings making the classroom a place where the unexpected is met Therefore in the exploration of literary reading the gaps voids and indeterminacies generated by the poem become elements that can compose an invitation for the reader to play with the text and with its modes of readingKey-words Poetry Teaching Carlos Drummond

ResumenEl contacto entre el lector y la palabra literaria es una experiencia compleja que en el contexto del aula demanda del profesor la planificacioacuten de estrategias de lectura y preparacioacuten de enfoques con el texto que lo transformen en un objeto significativo para el estudiante El objetivo del presente artiacuteculo es presentar el relato de una clase de lectura sobre el poema ldquoA flor e a naacuteuseardquo de Carlos Drummond de Andrade realizada por alumnos de la asignatura de la Pasantiacutea de Intervencioacuten en la Lengua Portuguesa 2 que tuvo como foco la teoriacutea y praacutectica de la ensentildeanza de Literatura de la Facultad de Letras de la Universidad Federal de Alagoas A traveacutes de la elaboracioacuten y ejecucioacuten de la leccioacuten los estudiantes pasantes notaron que las ldquoinquietudesrdquo del metapoema elegido podriacutean transformarse en caminos de produccioacuten de sentidos variados lo que convierte el aula en un lugar tambieacuten de encuentro con lo inesperado En este sentido se concluye que en la exploracioacuten de la lectura literaria los huecos los vaciacuteos e indeterminaciones generadas por el poema se convierten en elementos que podriacutean constituirse en una invitacioacuten al lector a jugar con el texto y con sus modos de lecturaPalabras clave Poesiacutea Ensentildeanza Carlos Drummond de Andrade

1 Introduccedilatildeo

No ensino de literatura um dos desafios prementes eacute o estabelecimento do contato efetivo com o texto literaacuterio em especial com a poesia de modo a atrair o aluno para a malha de significaccedilotildees e para a pluralidade de sentidos dos poemas O presente trabalho1 tem o intuito de analisar uma praacutetica de ensino de literatura realizada por estudantes do Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa 22 na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) momento destinado ao estudo de praacuteticas e metodologias de leitura na sala de aula

Foram feitas anaacutelises de diaacuterios de campo da oficina de leitura literaacuteria aplicada em uma turma do primeiro ano do Ensino Meacutedio do Coleacutegio da Poliacutecia Militar Tiradentes

1 A discussatildeo que propomos apresentar neste artigo corresponde a um recorte da dissertaccedilatildeo ldquoUm eu todo retorcido no jogo de leitura de lsquoA flor e a naacuteusearsquo de Carlos Drummond de Andrade metapoesia e ensinordquo apresentada no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras e Linguiacutestica (PPGLL) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) em marccedilo de 2015 de autoria de Diogo dos Santos Souza e orientaccedilatildeo de Eliana Kefalaacutes Oliveira

2 Os aacuteudios das aulas foram gravados atraveacutes de celular e posteriormente transcritos por Diogo dos Santos Souza sendo ainda utilizados nos diaacuterios de campo aqui analisados escritos por esse mesmo autor

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situado em MaceioacuteAlagoas O professor3 e os discentes estagiaacuterios da disciplina Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa 2 planejaram uma praacutetica realizada em dezembro de 2014 de leitura literaacuteria com base no poema ldquoA flor e a naacuteuseardquo texto que pertence ao livro A rosa do povo (1942) de Carlos Drummond de Andrade Observamos nesse contato entre o poema os estagiaacuterios e os leitores da educaccedilatildeo baacutesica as formas como o texto literaacuterio foi levado para a sala de aula bem como os traccedilos metapoeacuteticos que foram abordados pelos estagiaacuterios em diaacutelogo com os estudantes analisando tambeacutem as inquietudes dessa experiecircncia de trabalho

Interessa-nos portanto pensar que este trabalho fruto de um diaacutelogo com a poesia de Carlos Drummond de Andrade pode contribuir para a forma como o leitor vecirc natildeo somente a metapoesia do autor de ldquosete facesrdquo como tambeacutem a metapoesia de uma forma geral atrelada agrave formaccedilatildeo do leitor Para a nossa surpresa ainda parece ser um tanto incipiente de acordo com os levantamentos bibliograacuteficos realizados a quantidade de trabalhos que se ocupam em estudar as propriedades que caracterizam o discurso metapoeacutetico Essa zona aparenta ser minimizada ainda mais quando relacionamos essa temaacutetica a uma proposta de leitura que visa descobrir novos modos de construir o encontro entre o texto e o leitor

De modo geral procura-se refletir sobre de que maneira a poesia que fala de si proacutepria pode ser transformada num convite agrave leitura num convite que joga brinca e provoca o leitor a entrar nas veredas do acaso do inesperado do mundo literaacuterio

2 Leituras de ldquoA flor e a naacuteuseardquo

Na realizaccedilatildeo da oficina de leitura um trio de estagiaacuterios foi encaminhado para uma turma do 1ordm ano do Ensino Meacutedio com a incumbecircncia de levar uma proposta de leitura do poema ldquoA flor e naacuteuseardquo apontando caminhos de leitura que pudessem indicar os aspectos metapoeacuteticos da poesia de A rosa do povo

Em um primeiro momento da atividade na sala de aula a estagiaacuteria 1 pede para que cada aluno diga o seu nome e cite a ldquoexperiecircncia literaacuteriardquo que teve seja com poema ou qualquer outro gecircnero lido Em seguida a estagiaacuteria 1 explica a complexa posiccedilatildeo de Carlos Drummond no momento de sua produccedilatildeo poeacutetica frente agrave ditadura

[] ou vocecirc se colocava contra ou a favor Carlos Drummond se colocou contra o momento em que a censura estava presente no Brasil As pessoas tinham que seguir aquele padratildeo Como ficavam as pessoas que eram contra o sistema Os artistas tinham que se manifestar de alguma forma4

3 A disciplina de Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa foi ministrada no segundo semestre letivo de 2014 por Diogo dos Santos Souza que atuou como professor voluntaacuterio na ocasiatildeo

4 Todas as referecircncias a passagens dos momentos da aula mencionada competem ao Diaacuterio de Campo da aula do dia 8 de dezembro de 2014

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Observa-se aqui a escolha de antecipar informaccedilotildees relacionadas ao contexto histoacuterico antes de trabalhar a interpretaccedilatildeo do texto A estagiaacuteria destaca que alguns artistas encontravam caminhos menos expliacutecitos para expor o seu pensamento numa espeacutecie de indicaccedilatildeo da atmosfera do poema que seraacute lido Ela tambeacutem pergunta se todos jaacute ouviram falar sobre as figuras de linguagem especificamente a metaacutefora

Prosseguindo esse momento inicial realizou-se a leitura do metapoema objeto de estudo da aula

Preso agrave minha classe e a algumas roupasvou de branco pela rua cinzentaMelancolias mercadorias espreitam-meDevo seguir ateacute o enjooPosso sem armas revoltar-me

Olhos sujos no reloacutegio da torreNatildeo o tempo natildeo chegou de completa justiccedilaO tempo eacute ainda de fezes maus poemas alucinaccedilotildees e esperaO tempo pobre o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse

Em vatildeo me tento explicar os muros satildeo surdosSob a pele das palavras haacute cifras e coacutedigosO sol consola os doentes e natildeo os renovaAs coisas Que tristes satildeo as coisas consideradas sem ecircnfase

Vomitar este teacutedio sobre a cidadeQuarenta anos e nenhum problemaresolvido sequer colocadoNenhuma carta escrita nem recebidaTodos os homens voltam para casaEstatildeo menos livres mas levam jornaise soletram o mundo sabendo que o perdem

Crimes da terra como perdoaacute-losTomei parte em muitos outros escondiAlguns achei belos foram publicadosCrimes suaves que ajudam a viverRaccedilatildeo diaacuteria de erro distribuiacuteda em casaOs ferozes padeiros do malOs ferozes leiteiros do mal

Pocircr fogo em tudo inclusive em mimAo menino de 1918 chamavam anarquistaPoreacutem meu oacutedio eacute o melhor de mimCom ele me salvoe dou a poucos uma esperanccedila miacutenima

Uma flor nasceu na ruaPassem de longe bondes ocircnibus rio de accedilo do traacutefego Uma flor ainda desbotada ilude a poliacutecia rompe o asfaltoFaccedilam completo silecircncio paralisem os negoacutecios garanto que uma flor nasceu

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Sua cor natildeo se percebe Suas peacutetalas natildeo se abremSeu nome natildeo estaacute nos livros Eacute feiaMas eacute realmente uma flor

Sento-me no chatildeo da capital do paiacutes agraves cinco horas da tardee lentamente passo a matildeo nessa forma inseguraDo lado das montanhas nuvens maciccedilas avolumam-sePequenos pontos brancos movem-se no mar galinhas em pacircnico

Eacute feia Mas eacute uma flor Furou o asfalto o teacutedioo nojo e o oacutedio(ANDRADE 2003 p118-119)

Continuando a aula a estagiaacuteria 1 explica o que eacute metapoema ldquoeacute quando um poema fala sobre o proacuteprio poemardquo Essa definiccedilatildeo (talvez um tanto generalizante) torna-se a referecircncia inicial agrave autorreflexividade literaacuteria apresentada na aula Na primeira leitura de ldquoA flor e a naacuteuseardquo o estagiaacuterio 2 pede para que os alunos sublinhem os elementos que fazem o texto ser literaacuterio O estagiaacuterio lecirc o poema e faz o seguinte comentaacuterio ao teacutermino da leitura ldquoagraves vezes ele (sujeito liacuterico) natildeo fala umas coisas sem sentido Ou seraacute que haacute sentido Haacute metaacuteforas nesse textordquo Ainda que a expressatildeo ldquocoisas sem sentidordquo seja questionaacutevel por associar a literatura ao natildeo inteligiacutevel essas primeiras indicaccedilotildees de possiacuteveis olhares para o poema que satildeo lanccediladas para a turma acabam por ganhar um tom provocador pois ao assumir que pode ou natildeo haver ldquocoisas sem sentidordquo nos versos lidos os alunos atentam-se para o inapreensiacutevel e para o que espera ser interpretado pelo leitor Pode-se observar essas ldquocoisas sem sentidordquo atraveacutes da ausecircncia de conexatildeo por exemplo entre a sexta e a seacutetima estrofe o que evidenciaria um eu liacuterico que natildeo se expressa na esteira de uma linearidade angustiando-se nesse espaccedilo em que a flor ainda natildeo nasceu Eacute como se o sujeito liacuterico incomodado pudesse tirar aqueles leitores em diaacutelogos de suas zonas de conforto permitindo que o eu todo retorcido quisesse contaminar as experiecircncias de interpretaccedilatildeo dos proacuteprios leitores Candido (1965 p83) em ldquoInquietudes na poesia de Drummondrdquo diz que ldquoo eu torto do poeta eacute igualmente uma subjetividade de todos ou de muitos no mundo tortordquo Nesse caminho essa noccedilatildeo de ldquotorccedilatildeordquo proposta por Candido foi apropriada no desenvolvimento da leitura da obra de Carlos Drummond de Andrade

O estagiaacuterio 2 na tentativa de explorar possibilidades de leitura para o tiacutetulo do poema pergunta ldquoO que tem a ver vomitar o teacutedio com o tiacutetulo do textordquo Os alunos respondem que esse ldquoteacutediordquo se relaciona com a naacuteusea sendo a flor ldquouma coisa boa e a naacuteusea natildeordquo Nesse contexto o estagiaacuterio 2 segue com uma nova pergunta ldquoSeraacute que o cheiro da flor causou naacuteusea e ele vomitourdquo A turma natildeo concorda talvez por causa da identificaccedilatildeo feita pelos alunos da antiacutetese ldquoflor e naacuteuseardquo O aluno Gustavo5 afirma ldquoa naacuteusea eu acho que eacute relacionada como se fosse a expulsatildeo da vida que natildeo abre caminhos sei laacuterdquo

5 Fizemos a opccedilatildeo de resguardar a identidade de cada interlocutor utilizando nomes fictiacutecios para cada um deles

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Poderiacuteamos pensar a partir da fala desse estudante que a naacuteusea do eu liacuterico se trataria de uma espeacutecie de exiacutelio do seio social em que vive proacuteximo da escrita literaacuteria que estaacute sendo gestada Desse modo o estado nauseante elemento que compotildee a imagem de ldquoum eu todo retorcidordquo proporciona a compreensatildeo da atmosfera metapoeacutetica um indiviacuteduo que sofre ao estar distante da poesia sentindo-se exilado

Ainda na leitura do iniacutecio do texto o estagiaacuterio 2 lecirc o verso inicial ldquoPreso a minha classe e algumas roupasrdquo Em seguida ele pergunta agrave turma o que esse verso pode significar O aluno Everaldo afirma que ldquoas roupas satildeo as aparecircncias que cada classe tinhardquo apontando para a reflexatildeo de uma possiacutevel prisatildeo nas aparecircncias ao padratildeo social seguido Assim a leitura do texto encaminha-se para a compreensatildeo de que alguns versos de Drummond se aproximam de uma expressatildeo de um estado de opressatildeo do indiviacuteduo

Eacute interessante observar que as experiecircncias analiacuteticas de contato com a obra literaacuteria na sala de aula em um espaccedilo dialoacutegico permitem construir coletivamente um discurso criacutetico sobre o texto Pinheiro (2006) em ldquoTeoria da literatura criacutetica literaacuteria e ensinordquo relativiza e revisita o lugar da criacutetica na formaccedilatildeo escolar do leitor literaacuterio Para esse autor a teoria literaacuteria e a criacutetica natildeo devem ser tomadas de modo cristalizado e a priori no trabalho com a leitura na sala de aula Segundo Pinheiro (2006 p 116) a criacutetica pode iluminar e instigar a anaacutelise ou dar ldquopistas para uma compreensatildeo novardquo mas defende-se principalmente o exerciacutecio criacutetico sobre o texto literaacuterio na interlocuccedilatildeo com os estudantes ldquoos alunos devidamente estimuladosmotivados poderiam realizar alguns exerciacutecios de criacuteticardquo (PINHEIRO 2006 p120)

Consideramos que esse exerciacutecio de interpretaccedilatildeo do texto literaacuterio em sala de aula pode ampliar nas pesquisas acadecircmicas o alcance das experiecircncias vividas pois o que desponta na interlocuccedilatildeo e no contato com o texto literaacuterio permite compor (ou ateacute contrapor) sentidos se colocados lado a lado com algumas perspectivas criacuteticas

O modo como a histoacuteria enquanto campo do conhecimento transforma-se em proble-ma esteacutetico eacute uma questatildeo complexa para a criacutetica posto que o enigma do poeta eacute tambeacutem enigma para o criacutetico (como o eacute para qualquer leitor) que lida com a razatildeo dessa incoacutegnita que natildeo se desata Por isso eacute preciso refazer por dentro o trajeto das curvas da aporia (ARRIGUCCI 2005 p 104) Isto eacute as inquietudes do texto no caso do poema de Drummond reforccedilam a intensidade da interrogaccedilatildeo e dos natildeo ditos na propensatildeo agrave reinvenccedilatildeo dos sentidos para a qual o texto aponta Essa situaccedilatildeo transposta para a aula de literatura tambeacutem eacute complexa jaacute que o professor pode ldquotraduzirrdquo esse enigma do texto de forma que o fundo histoacuterico e as ca-tegorias esteacuteticas tatildeo prementes natildeo sejam o eixo preponderante ou cristalizador de anaacutelise

Analisando o verso ldquovou de branco pela rua cinzentardquo o aluno Hugo vecirc uma alusatildeo agrave transparecircncia ldquoA rua cinzenta impossibilita o sujeito de se expressar ou entatildeo todos satildeo iguais e ele eacute o diferenterdquo Assim o eu liacuterico que se apresenta no poema pode ser lido como algueacutem singular que se faz distinto possivelmente ao fazer esse movimento de aproximaccedilatildeo com a escrita literaacuteria

Adiantando a discussatildeo sobre a metapoesia o estagiaacuterio 2 indaga ldquoQual seria a forma de ele se revoltar sem armas ndash Escrevendo Percebam que o poeta estaacute falando

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de poesiardquo Sob essa perspectiva a visatildeo da metapoesia jaacute eacute transposta ndash de antematildeo pelo estagiaacuterio ndash para a voz do sujeito liacuterico O verso ldquoPosso sem armas revoltar-merdquo aparenta ser uma chave de leitura do discurso metalinguiacutestico dada previamente pelo estagiaacuterio (que talvez pudesse ter instigado a questatildeo mais do que exposto sua anaacutelise) Vale destacar tambeacutem que essa pergunta eacute feita logo na primeira estrofe provocando o leitor a entrar nesse universo em que a palavra se reveste como praacutetica social Outra pergunta eacute feita pelo estagiaacuterio 2 ldquoSe ligarmos isso ao momento da histoacuteria e da poliacutetica o que encontraremosrdquo A ditadura eacute a resposta de alguns alunos Por fim o estagiaacuterio pergunta ldquoQual foi o meacutetodo que o poeta achou para se expressarrdquo Os alunos respondem (como previsto na pergunta e resposta dadas pelo estagiaacuterio) que foi a escrita Apoacutes a discussatildeo do poema a turma passou acompreender que a escrita literaacuteria era um aspecto central no poema

Pensar na ideia do texto literaacuterio como fuga eacute entrar no percurso do sujeito liacuterico de ldquoA flor e a naacuteuseardquo que se vecirc preso no iniacutecio do poema e aos poucos vai se libertando ao se aproximar do espaccedilo de nascimento da poesia Eacute possiacutevel tambeacutem compreender a abordagem acima do poema exposta pelo estagiaacuterio 2 como um modo de representar o eu poeacutetico que ao ser associado a uma atmosfera de refuacutegio aparece um tanto retido retorcido os muros que o rodeiam natildeo o escutam exilando-o

A partir desse exerciacutecio analiacutetico do estagiaacuterio poder-se-ia ateacute pontuar que essa prisatildeo diz respeito ao exiacutelio do mundo ficcional tendo em vista que esse poema trata da busca do encontro da voz liacuterica com a sua proacutepria poesia Vale destacar que sendo metaacutefora para um possiacutevel isolamento os muros enunciados na terceira estrofe (ldquoEm vatildeo me tento explicar os muros satildeo surdosrdquo) bloqueiam a tentativa de saiacuteda caso que exprime dessa maneira a solidatildeo existencial de um mundo em que o indiviacuteduo natildeo eacute ouvido aparentando estar num lugar inoacutespito A dor do enclausuramento eacute tatildeo intensa que nem o sol luz preciosa para aqueles que estatildeo privados de ser livres renova-o apesar de ainda ser um consolo (ldquoO sol consola os doentes e natildeo os renovardquo) Visto que os muros ldquosatildeo surdosrdquo o caminho eacute tentar ldquofurar o asfaltordquo ndash o bloqueio metafoacuterico da liberdade ndash atraveacutes da flor pois seraacute ela a voz que se faraacute ouvida na sociedade

Dando prosseguimento agrave interlocuccedilatildeo analiacutetica na leitura da quinta estrofe o estagiaacuterio 2 pergunta ldquoO que seriam os lsquocrimes da terrarsquordquo O aluno Jian responde que esses crimes poderiam ser notiacutecias da ditadura e o estagiaacuterio refuta que provavelmente natildeo asserccedilatildeo que talvez pudesse ter sido melhor revisitada ateacute que ponto o termo ldquocrimes da terrardquo natildeo teria um ponto de contato com a questatildeo da ditadura Natildeo seria apressado demais abrir matildeo desse olhar interpretativo Natildeo seria ele uma pista para um olhar mais abrangente sobre a expressatildeo ldquocrimes da terrardquo

Outro verso entra na discussatildeo ldquoO que o eu liacuterico disse que era canto de libertaccedilatildeordquo O estagiaacuterio 2 responde ldquoA escrita na forma de poemardquo Assim uma aluna complementa ldquoe alguns desses poemas foram publicados pois estes eram o modo de fuga do sistemardquo Essa observaccedilatildeo da aluna ilumina outro ponto do poema natildeo basta somente escrever o texto ele precisa ser publicado nascer para o seu leitor tal como aparece mais ao final do

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poema em sua antepenuacuteltima estrofe o ldquonome que natildeo estaacute nos livrosrdquo mas ele comeccedila a se fazer perceber quando nasce no asfalto Assim como Octavio Paz notou no texto ldquoPoesia e Histoacuteriardquo (2012 p 191) ldquoo poema ser de palavras vai aleacutem das palavras e a histoacuteria natildeo esgota o sentido do poema poreacutem o poema natildeo teria sentido ndash nem sequer existecircncia ndash sem a histoacuteria sem a comunidade que o alimenta e agrave qual alimentardquo Ou seja o que ldquonatildeo estaacute no livrordquo expresso verbalmente faz-se poesia pois a literatura se constroacutei no olhar do leitor em modos de olhar para asfaltos (imaginados ou vistos) que produzem sentidos e reatualizam o poema atraveacutes do diaacutelogo de distintos contextos de circulaccedilatildeo Logo podemos afirmar que a conexatildeo com o extratextual se daacute pela concretude (seja ela da imaginaccedilatildeo ou da experiecircncia ldquorealrdquo)

Seria possiacutevel pensar tambeacutem talvez a partir da observaccedilatildeo analiacutetica acima apresentada por essa aluna que o poema seria uma espeacutecie de linha de fuga de desvio de um sistema opressor E ao ser publicado ao ser aberto para o leitor poderia permitir que o proacuteprio leitor fosse convidado a esse modo de evasatildeo um escape feito de palavras que abre brechas dentro de um sistema que restringe a libertaccedilatildeo

Vale observar que no material didaacutetico elaborado pelos estagiaacuterios houve uma breve contextualizaccedilatildeo sobre o livro mencionado para que a turma entrasse em contato com a atmosfera do espaccedilo de publicaccedilatildeo do poema analisado Depois dessa apresentaccedilatildeo da obra ao retomar a leitura do poema o estagiaacuterio pergunta ldquoPor que a rosa estaacute desbotadardquo Jian responde ldquoela ainda estaacute despercebidardquo Outro aluno comenta ldquoaiacute eu acho que ele estaacute se referindo ao tiacutetulo do livro A rosa do povordquo Interessante notar aqui que com o pouco que foi discutido sobre a atmosfera desse livro os leitores conseguiram nessa situaccedilatildeo de abertura ao diaacutelogo no contato com o poema fazer uma ligaccedilatildeo entre o desbotar da rosa e o tiacutetulo do conjunto dos poemas a que ldquoA flor e a naacuteuseardquo pertence

Talvez atraveacutes dessas anaacutelises dos alunos despontadas no ato da leitura possamos ter condiccedilotildees de refletir sobre esse eu que se contorcena tessitura do proacuteprio poema de modo que suas palavras brotem em meio agrave aspereza do asfalto como ldquorosa desbotadardquo uma rosa ldquodespercebidardquo segundo Jian No verso discutido o nascimento da flor feia sem cor eacute tatildeo vulgar que sequer estaacute classificado nos livros Perceber a rosa eacute a urgecircncia de algo novo algo que surge para romper a naacuteusea Essa poesia que se coloca agrave frente na caminhada por uma conquista social estaacute ao lado da metaacutefora da flor como nascimento de uma nova forma de viver que desabrocha no cerne do discurso literaacuterio uma forma disfarccedilada que passa conforme nota o aluno ldquodespercebidardquo de modo a poder perscrutar caminhos furtivos Os alunos os estagiaacuterios (e os pesquisadores) voltam-se para as lacunas que o poema abre proporcionando elas mesmas um encontro que tambeacutem eacute furtivo

Na relaccedilatildeo texto-leitor assim como nas relaccedilotildees interpessoais segundo Iser (1979) uma das bases da interlocuccedilatildeo estaacute no que natildeo nos eacute dado isto eacute natildeo compreendemos totalmente o outro porque somos incapazes de experimentar a experiecircncia do outro ndash ldquonegatividade da experiecircnciardquo para Iser (1979 p 87) e essa incapacidade nos impulsiona a agir instaura a necessidade da interpretaccedilatildeo Diferentemente das relaccedilotildees interpessoais o texto natildeo pode nos responder de imediato (como poderia

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o outro nos responder em uma conversa) o que na leitura literaacuteria redobra a negatividade da experiecircncia Para Iser (1979 p 88) eacute essa ldquocarecircncia que impulsiona uma relaccedilatildeordquo Essa carecircncia eacute dada pelo texto literaacuterio como lacunas pontos de indeterminaccedilatildeo Esses vazios presentes no poema de Drummond provocam-nos a preenchecirc-los mas como eles nunca se completam a experiecircncia da leitura literaacuteria e da anaacutelise se abrem em infinitas possibilidades Dessa experiecircncia emergem entatildeo incocircmodos duacutevidas curiosidades olhares giros de sentidos que despontam talvez como uma flor no meio de um asfalto

A aluna Sylvia ao analisar os versos que falam da flor

Uma flor nasceu na rua[]Uma flor ainda desbotada ilude a poliacutecia rompe o asfalto[]

Sua cor natildeo se percebe Suas peacutetalas natildeo se abrem[]

daacute segmento agrave discussatildeo comentando o seguinte ldquoeacute como se tivesse uma capa que a escondesse para que natildeo seja percebida pela poliacuteciardquo Nesse comentaacuterio haacute um retorno do contexto histoacuterico como elemento constante no processo de construccedilatildeo literaacuteria Jaacute Hugo destoa desse plano ao afirmar que ldquohaacute um conteuacutedo dentro dela mas que eacute protegido pela capardquo Essa ideia de proteccedilatildeo natildeo nos leva a pensar na resistecircncia do texto literaacuterio Eacute como se esse conteuacutedo ldquosob cifras e coacutedigosrdquo se preservasse guiado pela consciecircncia de hostilidade agrave poesia que estaacute envolta no poema em anaacutelise

A discussatildeo toma um outro rumo quando um aluno pergunta ldquoa flor faz referecircncia a uma pessoa anocircnima ou ao livro A rosa do povordquo A turma concorda que eacute ao livro e uma aluna expotildee o seu ponto de vista ldquoEssa questatildeo da cor das peacutetalas e o nome que natildeo estaacute no livro deve ser eacute referente ao que o senhor falou em mudar a capa tentar se esconderrdquo Apesar da discordacircncia da turma pensamos que eacute possiacutevel atraveacutes da fala do aluno rastrear um traccedilo de uma interpretaccedilatildeo possiacutevel A questatildeo do anonimato ou dessa voz furtiva eacute um aspecto presente na voz do sujeito liacuterico desde o iniacutecio do poema e que aparentemente dissolve-se quando entoa o grito de anunciaccedilatildeo do nascimento da flor Ainda podemos destacar que essa ideia de anonimato ndash ou de uma voz disfarccedilada possibilitada pela ldquocapardquo poeacutetica (apontada pela aluna) ndash pode corresponder ao sujeito liacuterico que se mascara que se dobra que se torce que se forja ao natildeo tentar se mostrar Assim eacute possiacutevel pensar que a flor aleacutem de furar o asfalto perfurou esse anonimato do eu liacuterico um rompimento protegido pelas artimanhas poeacuteticas na medida em que o poema nasce sob essa ldquocapardquo dada pelos siacutembolos poeacuteticos tais como o da flor penetrando o asfalto

Logo eacute possiacutevel recuperar a leitura do aluno redirecionando-a para essa relaccedilatildeo entre indiviacuteduo anocircnimo e nascimento da flor Sobre a coloraccedilatildeo da flor mencionada

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pela aluna haacute um retorno agrave questatildeo do ldquotentar se esconderrdquo que pode tambeacutem ser lido como uma metaacutefora para a proacutepria construccedilatildeo literaacuteria do texto posto que o siacutembolo da flor se constitui aos poucos Tal fato pode ecoar na leitura de poesia quando a observamos como um processo que natildeo se entrega de imediato ao leitor pois eacute um processo de conquista que se apresenta em pequenas doses tal como a flor

No final da anaacutelise inesperadamente um aluno pergunta ldquopor que galinhas em pacircnicordquo O estagiaacuterio 2 responde ldquoisso eacute uma pergunta que eu faccedilo para vocecircrdquo O aluno natildeo responde Eacute interessante ressaltar essa forma como a aula eacute concluiacuteda com um verso transformado numa pergunta deixando um lugar para o inacabado para o suspense do ato de ler pois a cada entrada no texto novas perguntas emergem Dessa maneira o poema pode ser percebido como uma indagaccedilatildeo formal e conceitual aspectos que foram comentados com a turma de estudantes O estagiaacuterio 2 sugeriu que os alunos pensassem atraveacutes das lacunas desse verso nas propriedades plurissignificativas do signo poeacutetico na palavra como um espaccedilo que guarda mais perguntas do que respostas

Poder-se-ia aqui especular sobre esse fato de termos mais perguntas do que respostas na leitura literaacuteria o que de alguma maneira evidencia que o discurso literaacuterio eacute um espaccedilo de constante interrogaccedilatildeo sendo esta uma constataccedilatildeo que nos ratifica a percepccedilatildeo de que haacute na leitura um jogo e o leitor eacute seduzido e provocado por essas indeterminaccedilotildees do texto tal como pontua Iser (1999 p 107) ldquoo jogo ultrapassa o que eacute e se volta para o que natildeo eacute ou ainda natildeo eacuterdquo

A compreensatildeo da leitura literaacuteria como jogo sob a perspectiva iseriana mostra-a como uma travessia de fronteiras em que o leitor se move junto com o texto em que seu horizonte de leitura eacute colocado na esteira de um constante deslocamento Nesse contexto o eu todo retorcido que se expressa em ldquoA flor e a naacuteuseardquo pode nos sugerir a pensar essa questatildeo ao se aproximar num plano metapoeacutetico dos dados histoacutericos reconfigurando essa relaccedilatildeo ao trazer uma reflexatildeo da presenccedila da poesia no seio social do sujeito liacuterico que se inquieta

Retomando o que jaacute foi dito podemos considerar que a forma como o sujeito liacuterico anuncia o nascer da flor sugere uma carga liacuterica cecircnica aos versos como se estes testemunhassem natildeo somente o desabrochar da flor como tambeacutem presenciassem o eu retorcido se reerguendo por meio do signo da flor uma flor desbotada

Quando observamos os estagiaacuterios e os alunos associando a linguagem poeacutetica a um ldquodisfarcerdquo a uma ldquocapardquo que permite uma ldquofugardquo um ldquorefuacutegiordquo ou ainda um ldquocrimerdquo pode-se entrever aiacute uma espeacutecie de tensionamento entre o texto e o contexto histoacuterico com o qual o poema dialoga Percebe-se assim nas reflexotildees tecidas em aula uma articulaccedilatildeo entre o metapoema e o mundo extratextual Alguns aspectos apontados pela criacutetica despontam de modo singular na anaacutelise coletiva do poema que emergiu na sala de aula sem necessariamente terem sido expostas a priori caracteriacutesticas do poema anunciadas por criacuteticos renomados Eacute nesse sentido que o ensino de literatura pode se tornar um exerciacutecio criacutetico

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Vale a pena notar que na anaacutelise feita em sala de aula os alunos apontaram tanto para o desabrochar da flor quanto para a sua caracteriacutestica desbotada o que lhe daria uma apa-recircncia despercebida Ao relacionarem a produccedilatildeo do poema agrave imagem da flor perceben-do-o como uma espeacutecie de disfarce e de via de ldquofugardquo algumas anaacutelises que emergiram na interlocuccedilatildeo com o poema ressaltam a ligaccedilatildeo do metapoema como o seu possiacutevel efeito esteacutetico A linha de fuga dada por esse sujeito liacuterico retorcido e mascarado parece ser revi-sitada pelo leitor que se abre diante do ldquodesafiordquo (como afirmara Hugo no decorrer da aula) proposto pelas ldquocapasrdquo da palavra poeacutetica No entanto trata-se de um desafio tortuoso cujo efeito eacute o da ldquonaacuteuseardquo da repulsa ou como comentou o aluno Gustavo de uma repulsa que ldquopode estar relacionada ao sentimento do indiviacuteduo de expulsatildeo da proacutepria vidardquo Trata-se pois de um eu liacuterico cuja faceta eacute a do sujeito nauseado embrulhado retorcido um sujeito insatisfeito incomodado inquieto

Eacute valido abordar aqui a fala da aluna Karolina ao notar que a flor pode ser a representaccedilatildeo de uma ldquoatitude filosoacuteficardquo desdobrando um dos principais siacutembolos do poema lido como um objeto que instiga a reflexatildeo o questionamento Seguindo o pensamento de ldquopergunta e curiosidaderdquo apontada pela aluna eacute possiacutevel observar uma interlocuccedilatildeo entre a ldquoatitude filosoacuteficardquo e a noccedilatildeo de ldquoiacutendice reflexivordquo uma espeacutecie de ldquoglossaacuterio poeacuteticordquo de temas presentes na poesia de Drummond sugerida por Wisnik (2005) De acordo com o autor os versos drummondianos pertencem a uma conjuntura da qual ao mesmo tempo que se faz parte tambeacutem se exclui indicando para o ldquo(natildeo) lugarrdquo de sua poeacutetica Esse ldquo(natildeo) lugarrdquo possivelmente estaacute expresso em ldquoA flor e a naacuteuseardquo quando pensamos no espaccedilo atiacutepico em que a flor nasce como se estivesse em luta com o proacuteprio local ao qual pertence mas que a exclui Nesse sentido pode-se ler a flor como uma ldquoatitude filosoacuteficardquo pois atraveacutes de seu nascimento e constituiccedilatildeo o texto joga com o leitor ao manter a interrogaccedilatildeo as lacunas em relaccedilatildeo a esse ldquo(natildeo) lugarrdquo da poesia Assim nessas possibilidades de leituras incertas que se camuflam a metaacutefora da flor pode ser estendida para esse olhar que instiga a pergunta a curiosidade dialogando com a discussatildeo do jogo da leitura e recuperando a atmosfera metapoeacutetica do texto ao considerar o siacutembolo da palavra como uma atitude mais direcionada para perguntas do que para respostas

Talvez aqui seja importante voltar para o texto ldquoInquietudes na poesia de Drummondrdquo de Antonio Candido (1965 p 87) em que uma fala do autor faz uma interlocuccedilatildeo direta com o que pudemos constatar no desenvolvimento de nossa discussatildeo ldquoao longo da obra de Drummond natildeo observamos uma certeza esteacutetica nem mesmo a esperanccedila disto poreacutem a duacutevida a procura o debate A sua poesia eacute em boa parte uma indagaccedilatildeo sobre o problema da poesiardquo Portanto construir uma metodologia de leitura literaacuteria para a poesia drummondiana eacute se colocar nesse exerciacutecio de interrogaccedilatildeo em que o texto literaacuterio tal qual visto por Hugo eacute um desafio

O encerramento desta atividade ocorreu com a autoavaliaccedilatildeo da disciplina Estaacutegio Supervisionado em Liacutengua Portuguesa 2 momento em que os estagiaacuterios apresentaram o seu olhar sobre a experiecircncia de leitura em sala de aula As estagiaacuterias e o estagiaacuterio da oficina de leitura jaacute tinham um percurso pela leitura literaacuteria em sala de aula atraveacutes da

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participaccedilatildeo do Programa Institucional de Iniciaccedilatildeo agrave Docecircncia (PIBID)6 e da colaboraccedilatildeo no Programa de Apoio agraves Escolas Puacuteblicas do Estado de Alagoas (PAESPE)7 projeto do curso de Engenharia Civil da Universidade Federal de Alagoas em parceria com o grupo de bolsistas do Programa de Educaccedilatildeo Tutorial (PET) da Faculdade de Letras

De acordo com os estagiaacuterios foi possiacutevel aprofundar o conhecimento da praacutetica do ensino de literatura em especial ao focar todo o momento da oficina de leitura em um uacutenico poema de Carlos Drummond de Andrade Esse exerciacutecio contribuiu para que esses estudantes se aprofundassem nas variadas ldquofacesrdquo ldquocifrasrdquo e ldquocoacutedigosrdquo da poeacutetica drummondiana

Aleacutem disso os estagiaacuterios comentaram que se sentiram surpresos com o raacutepido acompanhamento da leitura dos poemas que a turma fez adiantando ateacute mais de uma vez comentaacuterios que ainda estavam por vir nas falas das estagiaacuterias

3 Algumas conclusotildees

Vale a pena frisar que as experiecircncias de leitura dos versos metapoeacuteticos de Drummond tanto nas praacuteticas pedagoacutegicas quanto nos caminhos analiacuteticos que viemos trilhando por meio desses diaacutelogos transformou e inquietou a nossa visatildeo sobre as particularidades da poeacutetica do autor e sobre a complexidade do trabalho com a poesia na formaccedilatildeo do leitor A leitura do metapoema em sala de aula eacute por vezes tortuosa difiacutecil de ser conduzida mas parece sempre ser um convite um convite a uma transgressatildeo a uma conquista aquela de uma flor desabrochando em pleno asfalto Natildeo caberia no trabalho com um poema tatildeo inquieto uma metodologia prescritiva informativa O texto desabrocha se o leitor entra em seu jogo aceita seus desafios

O signo da flor essa flor desbotada que rompe o asfalto parece reverberar em noacutes leitores a coragem para abrir fissuras em nossas certezas convidando-nos para o desafio e para o disfarce do jogo do texto um desafio que pode provocar naacuteuseas fugas crimes abrindo refuacutegios em um eu todo retorcido O caminho percorrido pela flor aparenta se tornar um caminho seguido tambeacutem pelo leitor que busca entender a naacuteusea que acompanha

6 O PIBID eacute uma iniciativa para o aperfeiccediloamento e a valorizaccedilatildeo da formaccedilatildeo de professores para a educaccedilatildeo baacutesica O programa concede bolsas a alunos de licenciatura participantes de projetos de iniciaccedilatildeo agrave docecircncia desenvolvidos por Instituiccedilotildees de Educaccedilatildeo Superior (IES) em parceria com escolas de educaccedilatildeo baacutesica da rede puacuteblica de ensino Os projetos devem promover a inserccedilatildeo dos estudantes no contexto das escolas puacuteblicas desde o iniacutecio da sua formaccedilatildeo acadecircmica para que desenvolvam atividades didaacutetico-pedagoacutegicas sob orientaccedilatildeo de um docente da licenciatura e de um professor da escola

7 O PAESPE eacute um projeto que pretende dar subsiacutedios para que os estudantes de escolas puacuteblicas do Estado de Alagoas tenham mais condiccedilotildees de prestar os exames de vestibular ao concluir a educaccedilatildeo baacutesica O programa tambeacutem visa trazer os alunos para o conviacutevio da rotina da Universidade uma vez que as aulas satildeo realizadas na proacutepria Universidade campus AC Simotildees Todas as aacutereas do conhecimento satildeo contempladas pelo Paespe que conta com colaboradores (professores instrutores) de variados cursos da UFAL

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esse eu que se torce e que figura o ambiente do nascimento da flor Assim compreendemos a leitura de poesia como um convite para esse jogo de incertezas ao lado da palavra O verso ldquouma flor nasceu na ruardquo ressoa em noacutes leitores como um lirismo que pulsa que vibra ao anunciar uma vida que nasce seja ela flor seja ela palavra seja ela

Referecircncias

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Recebido em 24 de abril de 2017

Aceito em 16 de outubro de 2017

Diogo dos Santos Souza

Doutorando em Estudos Literaacuterios (2015) pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras e Linguiacutestica da Universidade Federal de Alagoas Mestre em Estudos Literaacuterios (2015) e Graduado em Letras Portuguecircs pela mesma Instituiccedilatildeo Graduando em Pedagogia pela Universidade Estaacutecio de Saacute (2017) Atualmente eacute docente do Instituto Federal de Alagoas campus Piranhas diogosansouzagmailcom

Eliane Kefalaacutes Oliveira

Doutora em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (2009) com doutorado sanduiacuteche na Universidade de Barcelona Mestre em Educaccedilatildeo (na aacuterea de Educaccedilatildeo Conhecimento Linguagem e Artes) pela Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade Estadual de Campinas (2003) graduada em Licenciatura e Bacharelado em Letras pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (1996) Atualmente eacute docente da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas llycaoliveiragmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Cenas da formaccedilatildeo de professores de liacutengua e literatura no Curso de Letras da Universidade

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)Aspects of Teacher Training in Language and Literature at the

Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ)

Escenas de formacioacuten de profesores de lengua y literatura en el curso de Letras de la Universidad Federal de

Riacuteo de Janeiro (UFRJ)

Marcos ScheffelUniversidade Federal do Rio de Janeiro

ResumoCom base na minha atuaccedilatildeo como professor de Didaacutetica e Praacutetica de Ensino de Portuguecircs e Literaturas na UFRJ e em estudos sobre a mudanccedila do perfil dos alunos de graduaccedilatildeo aponto alguns problemas relacionados agrave formaccedilatildeo de professores num curso marcado pela valorizaccedilatildeo da formaccedilatildeo do pesquisador em detrimento da formaccedilatildeo do professor Nesse contexto as questotildees ligadas ao ensino ficam delegadas agraves disciplinas ofertadas pela Faculdade de Educaccedilatildeo que ainda guardam um caraacuteter final de complemento da formaccedilatildeo A constataccedilatildeo da ausecircncia de discussotildees teoacutericas sobre o ensino de literatura eacute comprovada por meio de vaacuterios relatos escritos dos estudantes quando do ingresso na disciplina de Didaacutetica de Portuguecircs e Literaturas Esses mesmos relatos tambeacutem trazem importantes informaccedilotildees sobre a mudanccedila do perfil dos estudantes da Faculdade de Letras da UFRJ que hoje satildeo em sua maioria moradores da periferia do Rio de Janeiro e oriundos de famiacutelias com pouca escolaridade Em meio a essa realidade complexa parecia importante recompor as trajetoacuterias singulares desses jovens leitores e futuros professores Foi nesse momento que o contato com o livro Os jovens e a leitura (2008) da pesquisadora francesa Michegravele Petit possibilitou pocircr em cena vaacuterias percepccedilotildees da leitura Segundo Petit a leitura pode tanto contribuir para gerar identidades complexas objetivo que deve ser perseguido pelos formadores de leitores como pode gerar problemas identitaacuterios como o sentimento de achar a sua cultura de origem inferior As principais conclusotildees deste trabalho apontam para a necessidade de as licenciaturas em Letras reverem suas praacuteticas de formaccedilatildeo de leitores nos proacuteprios cursosPalavras-chave Formaccedilatildeo de professores ensino de literatura leitura

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AbstractAs a professor of Teaching Practices in Portuguese language and Brazilian Literature at the Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ) and based on studies on the changes of the profile of undergraduate students in this paper I point out some problems related to teacher training in a major that emphasizes the teaching of theoretical research rather than teacher training In this context the issues related to teaching are left to the courses offered by the Faculty of Education which still holds to the character of being a mere final appendix to the majorin language and literature The lack of theoretical discussions about the teaching of literature is evidenced by many reports written by the students when they begin the Teaching Practices in Portuguese Language and Brazilian Literaturecourse These reports also bring important information about the changes in the studentsrsquo profiles in the Faculty of Languages of UFRJ mdashtoday they are mostly residents of the outskirts of Rio de Janeiro and come from families with little schooling In this complex reality it was important to recompose the unique trajectories of these young readers and future teachers At this moment the contact with the book Os jovens e a leitura (2008) by the French researcher Michegravele Petit made it possible to reflect on several views about the act of reading According to Petit reading can both contribute to generating complex identities an objective that should be pursued in the formation of readers as it can generate identity problems such as the feeling of regarding their family culture as inferior The main conclusions of this study point to the need for undergraduate degree programs to review their practices in the developmentof teachers-readersKey-words Teacher development teaching literature reading

ResumenBasado en mi trabajo de profesor de Didaacutectica y Praacutectica de Portugueacutes y Literaturas de la UFRJ y en estudios sobre el cambio del perfil de los alumnos de graduacioacuten trato de sentildealar algunos problemas relacionados con la formacioacuten de profesores en un curso marcado por la valoracioacuten de la formacioacuten en investigacioacuten en detrimento a la del profesor En este contexto los temas relacionados con la ensentildeanza se delegan a las asignaturas que se ofrecen por la Facultad de Educacioacuten que auacuten conservan un caraacutecter final de complemento de la formacioacuten Se ha comprobado la ausencia de discusiones teoacutericas sobre la ensentildeanza de la literatura por medio de diversos relatos escritos por los estudiantes al entrar en la asignatura de Didaacutectica de Portugueacutes y Literaturas Estos mismos relatos tambieacuten proporcionan informacioacuten importante sobre el cambio en el perfil de los estudiantes de la Facultad de Letras de la UFRJ que hoy son en su mayoriacutea residentes en las periferias de Riacuteo de Janeiro y de familias que tienen bajo nivel de escolaridad En medio de esta compleja realidad pareciacutea importante reconstituir las trayectorias singulares de estos joacutevenes lectores y futuros profesores Fue entonces que el contacto con el libro Os jovens e a leitura (2008) de la investigadora francesa Michegravele Petit hizo posible poner en escena diversas percepciones de la lectura Seguacuten Petit la lectura tanto puede contribuir para generar identidades complejas objetivo que los formadores de lectores deben perseguir como tambieacuten generar problemas identitarios tales como el sentimiento de que su cultura de origen es inferior Las principales conclusiones de este estudio apuntan hacia la necesidad de los Cursos de Letras poner en tela de juicio sus praacutecticas de formacioacuten de lectores en el propio CursoPalabras clave Formacioacuten de profesores ensentildeanza de literatura lectura

Introduccedilatildeo

No segundo semestre de 2016 cada um dos meus trinta alunos de Didaacutetica e Praacutetica de Ensino de Portuguecircs e Literatura do Curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro ganhou um exemplar do livro Cenas da vida brasileira

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(2010) de Marques Rebelo Os trinta exemplares do livro foram adquiridos de um projeto do governo do estado do Rio de Janeiro chamado ldquoMais Leiturardquo que tem trecircs estandes fixos (Bangu Satildeo Gonccedilalo e Niteroacutei) onde satildeo vendidos livros a dois trecircs ou quatro reais

O livro de Marques Rebelo foi publicado pela primeira vez em 1951 mas sua origem remonta agrave colaboraccedilatildeo do autor entre abril de 1941 e agosto de 1943 para a revista Cultura Poliacutetica do Departamento de Imprensa do Estado Novo getulista Rebelo responsaacutevel pela seccedilatildeo ldquoQuadros e costumes do Centro-Sulrdquo1 produziu um conjunto significativo de crocircnicas sobre cidades de vaacuterios estados brasileiros As cenas registradas nessas crocircnicas estatildeo em suiacutete ou seja todas elas tratam de temas semelhantes formando uma espeacutecie de arte mural que revela um paiacutes seduzido pelos discursos modernizadores mas ainda preso a antigas estruturas Deve-se destacar ainda a linguagem carregada de lirismo e criticismo de Rebelo que recorta pequenos instantacircneos do cotidiano como no registro sobre a cidade de Carmo do Rio Verde (GO)

ldquoA sulfanilamida nas peritonitesrdquo ldquoA vitamina B-1rdquo ldquoEacute preciso cultivar a sua personalidaderdquo ldquoQuem foi o autor dos Direitos do homemrdquo ldquoQuem fez o papel de Scarlet OrsquoHara no filme E o vento levourdquo ldquoA batalha de Salamina foi na Guerra Europeiardquo ldquoSeraacute liacutecito o lucrordquo ndash os uacuteltimos caixeiros-viajantes nos seus guarda-poacutes com monogramas bordados cansam-se de se ilustrar nas paacuteginas da Readerrsquos Digest Na solidatildeo do trem dentro da noite a tristeza desamparada dos meus pensamentos Por toda parte o mesmo subalimentaccedilatildeo tuberculose siacutefilis maleita devastaccedilatildeo de florestas religiatildeo denso analfabetismo casamento indissoluacutevel luacutegubre mortalidade infantil falta de recursos desalento E natildeo sei o que doacutei mais fundo ndash natildeo saber se os coraccedilotildees satildeo tatildeo bons que suportam tudo se satildeo miseraacuteveis que natildeo tecircm consciecircncia da sua desgraccedila E por vezes brasas que a locomotiva joga luzem como uma chuva de ouro que as trevas logo apagam (REBELO 2010 p92)

Na raacutepida cena o cronista-passageiro observa com desalento para dentro e para fora do trem Do lado de dentro os caixeiros-viajantes se ldquoilustramrdquo com as informaccedilotildees banais de uma revista bastante popular na eacutepoca2 Do lado de fora o cenaacuterio de pobreza do interior do Brasil mostra que o paiacutes estaacute fadado ao atraso eterno No entanto as faiscaccedilotildees das brasas da locomotiva parecem indicar alguma esperanccedila no meio desse cenaacuterio tenebroso

1 Graciliano Ramos escreveu na seccedilatildeo ldquoQuadros e costumes do Nordesterdquo Houve tambeacutem uma seccedilatildeo dedicada ao Norte com crocircnicas do romancista Dalciacutedio Jurandir Eacute interessante observar que todos eles eram criacuteticos do regime getulista mas colaboraram para uma revista de propaganda do governo

2 A Readerrsquos Digest ndash conhecida no Brasil como Seleccedilotildees ndash comeccedilou a circular em 1922 nos Estados Unidos No nosso paiacutes o iniacutecio de sua circulaccedilatildeo tambeacutem data de 1922 sendo uma traduccedilatildeo da ediccedilatildeo norte-americana e trazendo a mesma variedade de assuntos sauacutede anedotas conhecimentos gerais biografias e uma seccedilatildeo literaacuteria com o livro do mecircs

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Ao disponibilizar o livro de Rebelo para os alunos tinha como objetivos

1 Divulgar um projeto de leitura desenvolvido no estado do Rio de Janeiro que pode fornecer materiais de qualidade para eles como futuros professores

2 Por em accedilatildeo um projeto de leitura na aula de Didaacutetica

3 Articular a leitura de Cenas da vida brasileira com as teorias sobre a leitura literaacuteria indicada neste trabalho que costumamos ver na disciplina Didaacutetica I

4 Motivar os licenciandos a escrever sobre a experiecircncia do estaacutegio por meio de uma linguagem que tambeacutem possa ser liacuterica criacutetica e principalmente autoral (rompendo com a escrita burocraacutetica dos relatoacuterios entregues ao final do estaacutegio)

Como se trata de um projeto ainda em andamento (a escrita por parte dos estagiaacuterios de Letras) as seccedilotildees seguintes deste artigo tecircm por objetivo fornecer algumas cenas da Didaacutetica e Praacutetica de Ensino de Portuguecircs e Literatura ndash focando em maior grau na Literatura ndash do ponto de vista do professor orientador de estaacutegio que procura criar nos futuros professores um grau de reflexibilidade sobre teorias e praacuteticas da sala de aula em campos de estaacutegio bastante heterogecircneos Satildeo raacutepidas cenas dos percursos formativos com que se deparam os estudantes de Letras que em breve iratildeo formar leitores de literatura na educaccedilatildeo baacutesica Mas antes disso eacute necessaacuterio apresentar um raacutepido perfil desses estudantes

1 Da periferia agrave casa da indiferente Minerva3

Desde o iniacutecio de minha atividade com professor de Didaacutetica na UFRJ em 2013 costumo fazer um levantamento do perfil social da turma por meio de um questionaacuterio situacional Satildeo questotildees relevantes para saber um pouco do histoacuterico familiar (grau de escolaridade) da relaccedilatildeo com a leitura e com a escola e tambeacutem como o ensino de liacutengua e literatura foi ou natildeo problematizado ao longo da licenciatura em Letras

O que se percebe sobre o background familiar eacute que a maior parte deles faz parte da primeira geraccedilatildeo que concluiraacute um curso superior na famiacutelia4 A maioria desses licenciandos passou pela escola puacuteblica sendo raros os que estudaram unicamente em escolas particulares Esse perfil social eacute fruto das poliacuteticas inclusivas do uacuteltimo dececircnio e tem promovido na universidade algo parecido com o que ocorreu a partir da metade do seacuteculo passado na escola baacutesica brasileira ou seja uma mudanccedila radical no perfil do alunado Foi nesse momento que muitas praacuteticas da escola ndash pensemos nas questotildees

3 Faccedilo alusatildeo aqui ao siacutembolo da UFRJ que traz a imagem de Minerva ndash a deusa romana das artes do comeacutercio e da sabedoria

4 Gabriela Rodella (2013) fez um importante levantamento do background familiar dos estudantes de Letras da USP que comprova este histoacuterico familiar social A UFRJ ainda natildeo tem um estudo desta natureza sobre os alunos de Letras mas os relatos dos estudantes que passam pela Didaacutetica e Praacutetica de Ensino apontam para semelhanccedilas do perfil do alunado

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linguiacutesticas ndash comeccedilaram a ser postas em xeque Aquele ensino voltado para um setor meacutedio de nossa sociedade natildeo fazia sentido para esses novos estudantes A liacutengua que era falada na escola natildeo era a mesma liacutengua que eles traziam de casa

Apesar de mudanccedilas tatildeo visiacuteveis a Minerva parece indiferente Ela quer seguir a sua tradiccedilatildeo de formaccedilatildeo de pesquisadores mesmo tendo ciecircncia que esses estudantes procuraram a universidade tendo em vista a carreira de professores da educaccedilatildeo baacutesica Pautada na sua forte cultura bacharelesca chamada muitas vezes de identidade do curso esta licenciatura ignora que ldquoOs cursos de licenciatura tecircm um papel fundamental na socializaccedilatildeo profissional e na construccedilatildeo da identidade dos professoresrdquo (MARLI 2012 p3) Essa pouca preocupaccedilatildeo com as questotildees relacionadas agrave educaccedilatildeo baacutesica estaacute mais acentuada justamente no ensino de literatura como se pode perceber nas seguintes respostas dadas ao questionaacuterio situacional5

Existe mais preocupaccedilatildeo por parte dos professores de gramaacutetica linguiacutestica Os professores de literatura para aleacutem do curriacuteculo no que vem depois da faculdade (Estudante 1)

Apenas nas disciplinas de liacutengua portuguesa (variaccedilatildeo morfologia morfossintaxe etc) Nas mateacuterias de literatura ou se apresenta o curso de forma panoracircmica ou pensamos a literatura criticamente como pesquisadores da aacuterea de literatura mais voltados para a academia do que para o ensino (Estudante 2)

Este curso [variaccedilatildeo linguiacutestica] foi fundamental para que eu me tornasse uma professora consciente No caso das literaturas natildeo sinto a mesma coisa Se natildeo tivesse participado do Pibid penso que natildeo teria tido qualquer oportunidade de refletir melhor acerca da literatura na escola baacutesica (Estudante 3)

A maioria das cadeiras de literatura focaliza mais no plano teoacuterico dificilmente em como levar essa teoria para a sala de aula (Estudante 4)

As respostas desses estudantes apontam para um vaacutecuo nas discussotildees sobre o ensino de literatura na educaccedilatildeo baacutesica ateacute praticamente o final do curso Um ou outro afirma ter cursado uma disciplina optativa sobre ensino de literatura que eacute bastante disputada e por essa razatildeo natildeo consegue dar conta da demanda de treze habilitaccedilotildees6 Em contrapartida vemos que disciplinas ligadas agrave liacutengua portuguesa e agrave linguiacutestica tematizam o ensino de liacutengua desconstroem conceitos equivocados

5 A questatildeo proposta eacute a seguinte ldquoAteacute este momento no curso de Letras excetuando as disciplinas pedagoacutegicas houve uma preocupaccedilatildeo dos professores das demais disciplinas em discutir o ensino de liacutengua literatura produccedilatildeo textual oralidade e leitura na escola baacutesica Em quais disciplinas houve essa discussatildeo Em quais disciplinas natildeo houve nenhuma discussatildeo desse tipordquo

6 As treze habilitaccedilotildees oferecidas pela UFRJ satildeo Portuguecircs-Literaturas e Portuguecircs + outra habilitaccedilatildeo (aacuterabe alematildeo espanhol francecircs grego hebraico inglecircs japonecircs latim italiano russo e LIBRAS) Esses cursos satildeo oferecidos como bacharelado ou licenciatura

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propotildeem novas metodologias para romper com uma tradiccedilatildeo normativa de ensino Uma raacutepida anaacutelise do mercado editorial brasileiro nos livros sobre ensino de liacutengua e literatura seria suficiente para constatar que a maioria dos estudos eacute da aacuterea de liacutengua7

Haacute uma forte tradiccedilatildeo beletrista por traacutes desse gesto de ignorar a escola por parte dos professores que ensinam literaturateoria da literatura em grandes universidades As leituras complexas promovidas pelos professores universitaacuterios e o forte aparato teoacuterico para se ler um poema por exemplo apontam unicamente para a leitura como algo feito para poucos Como tal a literatura passa a ser vista como algo impossiacutevel de ser levado para a escola Ela eacute um objeto de culto e de admiraccedilatildeo para esses futuros professores

Pode-se pensar que assim como os estudantes da educaccedilatildeo baacutesica dividem sua identidade leitora ndash dando para a escola as respostas esperadas quanto agraves obras indicadas e acionando seus direitos de leitor fora de sala ndash esses futuros professores tambeacutem tenham uma relaccedilatildeo complexa e mal resolvida com a literatura obras lidas unicamente por obrigaccedilatildeo de modo fragmentaacuterio com pouco espaccedilo para a subjetividade e com base em seleccedilotildees promovidas pelos professores sem que haja qualquer tipo de problematizaccedilatildeo sobre os criteacuterios de escolha Todas essas praacuteticas repetidas do iniacutecio ao fim da licenciatura tecircm uma forte tendecircncia de serem replicadas em escala menor na educaccedilatildeo baacutesica Por sua vez competecircncias essenciais para formar leitores em qualquer niacutevel de ensino natildeo satildeo postas em praacutetica como a busca por dar sentido ao que estaacute sendo lido a leitura de obras na integralidade ndash levando-se em conta a materialidade dos livros a abertura para interpretaccedilotildees subjetivas implicadas e a discussatildeo dos criteacuterios de escolha seleccedilatildeo das obras

Outro ponto problemaacutetico na formaccedilatildeo desses futuros professores estaacute ligado aos curriacuteculos dessas licenciaturas extensos universalistas sem a possibilidade da construccedilatildeo de trajetoacuterias diferenciadas e com a ausecircncia de temaacuteticas oacutebvias como o lugar da literatura infantil e infanto-juvenil como afirmou Angela Kleiman (2017) durante o IV Encontro de Ensino e Aprendizagem em Liacutenguas e Literaturas

Eacute preciso enfrentar o problema das Licenciaturas em Letras que natildeo se assumem como tal nas quais ndash via de regra ndash sequer haacute disciplinas obrigatoacuterias de um campo como a leitura Literatura Infantil Literatura Juvenil Leitura Ensino de Leitura Letramento Literaacuterio Ensino da Literatura e Formaccedilatildeo de Leitores

Quanto agrave literatura infanto-juvenil nos deparamos com uma questatildeo matemaacutetica se estamos formando futuros professores para atuarem na educaccedilatildeo baacutesica temos de considerar que haacute uma maior possibilidade de esses profissionais atuarem do sexto ao nono ano (quatro seacuteries) do que no ensino meacutedio (trecircs seacuteries) Apesar da obviedade matemaacutetica a produccedilatildeo literaacuteria para crianccedilas e jovens figura no curriacuteculo desses professores como disciplina optativa ndash isso num curso com uma carga horaacuteria elevada que daacute pouca margem para escolhas

7 Natildeo problematizaremos aqui os fatores que levam o ensino de liacutengua materna na educaccedilatildeo baacutesica a ter mudado tatildeo pouco nas uacuteltimas deacutecadas apesar de uma discussatildeo teoacuterica tatildeo profiacutecua

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Cumprindo apenas os requisitos obrigatoacuterios o estudante dessa licenciatura seraacute professor sem conhecer absolutamente nada da produccedilatildeo para crianccedilas e jovens podendo optar se iraacute ou natildeo pensar no ensino de literatura na escola Ele teraacute dificuldade para se colocar do lado dos leitores em formaccedilatildeo Ele teraacute dificuldade para pensar nas suas escolhas para a sala de aula Ele natildeo teraacute construiacutedo criteacuterios que baseiem suas escolhas (faixa etaacuteria interesses aprendizagens literaacuterias possiacuteveis etc) e estaraacute longe de entender que ldquoum bom corpus nem sempre eacute formado pelas melhores obras Esse corpus deve ser composto por livros com diferentes graus de dificuldade Reforccedilar a autoimagem positiva de leitores e natildeo desestimulaacute-lardquo (COLOMER 2007 p113)

Diante desse cenaacuterio natildeo eacute de se estranhar que a literatura seja um objeto em extinccedilatildeo nas praacuteticas escolares Natildeo eacute de se estranhar que a formaccedilatildeo de leitores na escola encontre tantas barreiras Natildeo eacute de se estranhar que ainda recebamos nos cursos de Letras alunos que raramente leram literatura na escola ndash satildeo inuacutemeros relatos da ausecircncia completa da indicaccedilatildeo de livros ou entatildeo de praacuteticas de leitura anacrocircnicas e pouco efetivas (fichas de leitura resumos provas historiografia literaacuteria no lugar da literatura) Depois o que assistimos eacute o velho choro sobre o leite derramado os estudantes de Letras natildeo leem (como se a universidade natildeo tivesse nada a ver com isso) Mas eacute justamente a percepccedilatildeo desse quadro amplo e complexo no qual estamos inseridos que tem norteado algumas reflexotildees teoacutericas voltadas para a construccedilatildeo da imagem desses jovens como leitores e principalmente como formadores de futuros leitores

2 As liccedilotildees de Michegravele Petit em Os jovens e a leitura

Foi por meio de minha atuaccedilatildeo na Didaacutetica e na Praacutetica de Ensino de Portuguecircs e Literatura que conheci a obra de Michegravele Petit Ao terminar de ler Os jovens e a leitura (2008) estava convencido de que se tratava de um livro essencial para se pensar na formaccedilatildeo de identidades leitoras e de que muito do que estava escrito ali ndash falando dos jovens da periferia francesa (muitos imigrantes ou descendentes de imigrantes) ndash tocaria fundo nestes jovens estudantes de Letras em sua maioria moradores das periferias do Rio de Janeiro e de cidades vizinhas

Em pouco tempo como professor da UFRJ tinha ouvido muito sobre a trajetoacuteria deles como leitores Os relatos eram muacuteltiplos incentivos familiares versus falta de incentivo acesso a livros em situaccedilotildees variadas versus ausecircncia total de contato praacuteticas escolares que os aproximaram da leitura versus um sentido burocraacutetico da leitura escolar bibliotecas escolares bem estruturadas e com pessoas preocupadas em promover encontros significativos (raros casos) versus bibliotecas e acervos fechados a sete chaves ou bibliotecas que eram depoacutesitos de livros didaacuteticos (a maioria das vezes)

Um caso que me chamou especial atenccedilatildeo se referia ao extinto projeto ldquoLiteratura em Minha Casardquo que durou entre 2001 e 2004 e que era uma das accedilotildees do Programa Nacional da Biblioteca Escolar (PNBE) Na paacutegina do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo (FNDE) aparece a seguinte descriccedilatildeo do projeto

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Denominado ldquoLiteratura em Minha Casardquo o acervo foi composto por seis coleccedilotildees diferentes cada uma com cinco tiacutetulos poesia de autor brasileiro conto novela claacutessico da literatura universal e peccedila teatral Pela primeira vez as coleccedilotildees foram entregues aos alunos para levarem para casa A ideia do programa foi incentivar a leitura e a troca dos livros entre os alunos aleacutem de permitir agrave famiacutelia do estudante a opccedilatildeo de leitura em casa As escolas tambeacutem receberam quatro acervos para sua biblioteca8

Este projeto visava a oportunizar um contato com obras literaacuterias para crianccedilas e jovens que muitas vezes natildeo tinham acesso a livros Assim de maneira proposital natildeo havia uma orientaccedilatildeo pedagoacutegica para a ldquoutilizaccedilatildeordquo desses livros que deveriam ser somente fornecidos aos estudantes Tratava-se de uma experiecircncia de leitura ligada agrave fruiccedilatildeo ndash forma de leitura preconizada nos documentos oficiais mas de difiacutecil implantaccedilatildeo nas rotinas de sala de aula em razatildeo do caraacuteter utilitaacuterio da leitura A questatildeo eacute que para os professores e gestores escolares natildeo estavam claros os reais objetivos do projeto Aleacutem disso a distribuiccedilatildeo desses materiais natildeo foi feita conforme o planejado (um kit com cinco livros para cada aluno) ou os kits sequer foram distribuiacutedos ficando na biblioteca da escola

Apesar de todos os problemas e da curta duraccedilatildeo do ldquoLiteratura em Minha Casardquo pude encontrar alguns estudantes de Letras que se lembravam de terem recebido livros do programa A maioria apontava uma experiecircncia positiva e conseguia descrever alguns livros que haviam recebido naquela eacutepoca (haacute mais de dez anos) como se pode perceber no depoimento do licenciando

A coleccedilatildeo ldquoLiteratura em Minha Casardquo teve importante papel na minha formaccedilatildeo como leitor primeiro porque me deu acesso a grandes claacutessicos da literatura universal como A Iliacuteada e Os miseraacuteveis adaptados para um puacuteblico infanto-juvenil o que natildeo soacute me permitiu o contato com essas e outras obras como estimulou o meu interesse em conhecer mais tarde as suas versotildees originais Aleacutem disso a coleccedilatildeo por ser distribuiacuteda gratuitamente nas escolas da rede puacuteblica contemplou alunos que como eu natildeo dispunham de uma biblioteca em casa e tampouco poder aquisitivo para a compra de livros Os livros da coleccedilatildeo eram lidos e trocados entre os amigos eram comentados e o mais importante de tudo vinham como uma espeacutecie de presente tiacutenhamos total liberdade para administrar a leitura conforme nossa vontade podiacuteamos ateacute mesmo exercer a vontade de natildeo ler o que muitos evidentemente faziam Contudo tiacutenhamos uma porta aberta agrave nossa frente pronta para ser explorada (Estudante 6)

No entanto houve um comentaacuterio negativo de uma aluna que se lembrava de ter recebido os livros e de ter ficado frustrada por natildeo dar conta das leituras e por natildeo ter tido naquele momento o apoio de professores para esclarecer suas duacutevidas Diante dos

8 Disponiacutevel em lthttpwwwfndegovbrprogramasbiblioteca-da-escolabiblioteca-da-escola-historicogtAcesso em 20 abr 2017

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livros recebidos ela se sentiu incapaz e esse sentimento de incapacidade fragilizou sua identidade leitora Jaacute outra aluna relatou que na escola onde estudava foi criado um momento durante os intervalos ndash nos moldes de raacutedio da escola ndash para que os estudantes compartilhassem as impressotildees sobre os livros que estavam lendo e que isso foi decisivo na sua formaccedilatildeo como leitora

Essas trajetoacuterias tatildeo diferenciadas apontam para aquilo que Michegravele Petit (2008) tambeacutem percebeu entre os jovens da periferia francesa O contato com a leitura os significados a ela atribuiacutedos e as relaccedilotildees com o livro como objeto podiam variar muito Havia muitos riscos relacionados agrave leitura A leitura podia favorecer o desenvolvimento de identidades mais abertas e plurais ou podia contribuir para o rompimento com a cultura de origem Antigos preconceitos vinham agrave tona como aqueles que viam na leitura uma atividade burguesa para pessoas desocupadas

Por tudo isso ficou evidente que o livro de Petit deveria constar da ementa da disciplina de Didaacutetica e que deveria ser uma leitura norteadora em nossas discussotildees O desafio era saber o quanto aqueles estudantes de Letras conseguiriam relacionar as trajetoacuterias dos jovens leitores franceses das periferias agraves suas proacuteprias trajetoacuterias de leitores e tambeacutem que diferenccedilas eles perceberiam por exemplo no fato de aquela pesquisa ter se concentrado em jovens que frequentavam as bibliotecas dos subuacuterbios de Paris quando no Brasil poucos bairros perifeacutericos tecircm bibliotecas

Como forma de dimensionar o papel de tais espaccedilos houve uma visita agrave Biblioteca Parque Estadual do Rio de Janeiro (BPE) que remete ao modelo das bibliotecas colombianas constituindo-se num espaccedilo de conviacutevio e de experiecircncias culturais variadas (filmes cursos teatro) aleacutem de um acervo composto por livros novos e diversificados A BPE estaacute localizada numa regiatildeo estrateacutegica do Rio nas proximidades da Central do Brasil ndash ponto de passagem dos transportes puacuteblicos suburbanos (ocircnibus trem metrocirc vans)

A primeira dessas visitas foi realizada com as turmas de Didaacutetica I no segundo semestre de 2014 e coincidiu com uma interessante exposiccedilatildeo intitulada ldquoBiblioteca de grifos Wally Salomatildeordquo que trazia grandes cartazes reproduzindo paacuteginas dos livros da biblioteca do poeta com sublinhados anotaccedilotildees poemas etc Era o gesto de um autor ldquomarginalrdquo escrevendo agraves margens dos livros Muitos desses cartazes continuam ateacute hoje expostos na Biblioteca e acabaram por se incorporar ao visual do espaccedilo9

Quanto agraves leituras promovidas naquele semestre havia o pressuposto de fazecirc-los lembrar de um gesto leitor simples escolher um livro Por isso foram indicadas trecircs obras que tratavam do ensino de literatura Aleacutem do livro de Michegravele Petit foram indicados Leitura de literatura na escola (DALVI M A REZENDE N L JOVER-FALEIROS R 2013) e Leitura subjetiva e ensino de literatura (ROUXEL A LANGLADE G REZENDE N L 2013) Foram

9 A Biblioteca Parque Estadual atualmente natildeo estaacute funcionando por conta da natildeo renovaccedilatildeo do contrato da empresa responsaacutevel por sua administraccedilatildeo Ela funcionou ateacute o final de 2016 com recursos do municiacutepio A mesma situaccedilatildeo se repete em outros espaccedilos culturais da cidade que foram fechados em decorrecircncia ldquoda crise do estadordquo

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fornecidos aos estudantes alguns elementos paratextuais daqueles livros capas iacutendices informaccedilotildees sobre os autores Estando de posse desses materiais caberia a eles escolher que livro gostariam de ler ao longo do semestre e comentar sobre os motivos da escolha

Eacute um gesto simples Muito simples mas poderoso A possibilidade de escolher um livro mesmo que seja uma escolha direcionada com livros preacute-definidos pelo professor cria um viacutenculo um comprometimento com aquela leitura Poreacutem apesar de ser um gesto simples nenhum estudante se lembrava de ter escolhido um livro para leitura durante sua vida escolar ndash incluindo a passagem pela universidade O uso de elementos paratextuais para justificar a escolha de um livro ndash algo normal entre leitores ndash tambeacutem nunca havia sido posto em praacutetica

Ao longo do semestre procurei garantir as condiccedilotildees de oferta dos livros indicando sites para compra e pedindo ao livreiro da universidade que encomendasse exemplares das obras indicadas Esse foi um momento de aprendizagem jaacute que alguns natildeo conheciam o Estante Virtual ou ainda natildeo tinham comprado um livro on-line enquanto outros jaacute conheciam essas possibilidades

Os livros foram apresentados pelos estudantes ao final da disciplina mas ao longo do semestre os comentaacuterios surgiam a toda hora Nos dias das apresentaccedilotildees pude presenciar situaccedilotildees que denotavam o grau de envolvimento deles com a atividade livros marcados com bandeirolas sublinhados frases anotadas nos cadernos falas desenvoltas sobre as obras exemplos que se relacionavam agraves suas trajetoacuterias de leitores E um detalhe importante nenhum aluno havia xerocado o livro Todos falavam com o livro em matildeos

Contudo a constataccedilatildeo mais importante apontava para um grande problema que pode ser assim resumido os conflitos vivenciados por aqueles jovens das periferias francesas no contato com a cultura oficial eram semelhantes aos conflitos que eles vivenciavam no curso de Letras na cidade do Rio de Janeiro Eles tambeacutem viviam entre duas culturas a sua de origem (perifeacuterica suburbana pouco letrada) e aquela oferecida pelo curso de Letras com um peso grande numa tradiccedilatildeo literaacuteria (branca elitista beletrista) O sucesso no curso dependia muitas vezes de um rompimento com sua cultura de origem colocada num segundo plano Em lugar da ruptura o que se esperava ali era na verdade que esses jovens e futuros professores conseguissem ao longo do curso compor uma identidade complexa em construccedilatildeo percebendo que ldquoa leitura na realidade eacute uma promessa de natildeo pertencer somente a um pequeno ciacuterculordquo (PETIT 2008 p96)

Consideraccedilotildees finais

A atuaccedilatildeo como professor de liacutengua portuguesa e literatura na escola de educaccedilatildeo baacutesica requer profissionais capazes de em linhas gerais 1) formar leitores na escola 2) fazer com que crianccedilas e jovens escrevam com desenvoltura diversos gecircneros textuais 3) levar crianccedilas e jovens a refletirem sobre usos linguiacutesticos sobre a adequaccedilatildeo de linguagem em diferentes contextos Por outro lado devemos pensar que muitos licenciandos em Letras que estudaram em escolas puacuteblicas do Rio de Janeiro tiveram aulas de liacutengua

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portuguesa e literatura que podem ser sintetizadas da seguinte forma 1) ausecircncia de leituras ou quando muito informaccedilotildees enciclopeacutedicas sobre autores e obras 2) uma escrita voltada unicamente para a praacutetica de gecircneros escolares como a dissertaccedilatildeo 3) ensino normativo da liacutengua enfatizando-se a nomenclatura gramatical

O ensino de liacutengua literatura e produccedilatildeo textual deveria ser percebido de uma maneira articulada pois a separaccedilatildeo desses conteuacutedos em disciplinas (Gramaacutetica Redaccedilatildeo e Literatura) traz para o ambiente escolar uma divisatildeo especializaccedilatildeo que pouco contribui para o aluno da educaccedilatildeo baacutesica Trata-se de uma pedagogia da fragmentaccedilatildeo que delega ao aluno nesse caso da educaccedilatildeo baacutesica a tarefa de juntar as peccedilas qual eacute a relaccedilatildeo das oraccedilotildees subordinadas com a obra de Graciliano Ramos Qual eacute a relaccedilatildeo de tudo isso com a uacuteltima proposta de produccedilatildeo textual do professor de Redaccedilatildeo

Tal pedagogia da fragmentaccedilatildeo encontra amplo espaccedilo nas licenciaturas Desde cedo os estudantes das graduaccedilotildees se veem obrigados a se especializarem para conseguirem bolsas de iniciaccedilatildeo cientiacutefica ou para depois atuarem nas escolas como professores de determinada aacuterea liacutengua literatura ou redaccedilatildeo10 Na contramatildeo de tudo isso as teorias sobre o ensino da liacutengua mostram que eacute impossiacutevel discutir aspectos gramaticais fora do texto que o ensino da literatura pode ser mais produtivo quando articulado com a escrita e que a escrita literaacuteria pode levar a um entendimento melhor dos mecanismos utilizados nas obras literaacuterias (BUNZEN 2006 MARCUSCHI 2008 ANTUNES 2009 GERALDI 2014)

Pede-se ao estudante de Letras que entenda esse quadro complexo do ensino de liacutengua portuguesa literatura e produccedilatildeo textual no Brasil quando esse natildeo eacute o foco do curso que ele faz quando em seu proacuteprio curso natildeo haacute momentos de diaacutelogos e trocas entre essas ldquodiferentesrdquo aacutereas

Some-se a isso a divisatildeo arbitraacuteria entre as disciplinas que satildeo propriamente do Curso de Letras ndash revestidas de prestiacutegio ndash e as disciplinas oferecidas pela Faculdade de Educaccedilatildeo muitas vezes desvalorizadas ou postas em segundo plano Atente-se para o fato de que essa separaccedilatildeo eacute marcada inclusive no plano geograacutefico a Faculdade de Letras na Ilha do Fundatildeo (Zona Norte da cidade) a Faculdade de Educaccedilatildeo na Praia Vermelha (Zona Sul da cidade) Para marcar melhor essa fragmentaccedilatildeo eacute preciso lembrar que o Coleacutegio de Aplicaccedilatildeo da UFRJ tambeacutem estaacute localizado na Zona Sul da cidade numa das regiotildees de mais difiacutecil acesso para os moradores da Zona Norte nas proximidades da Lagoa Rodrigo de Freitas

Tudo isso parece apontar para uma necessidade imperiosa de se rever a articulaccedilatildeo entre teorias e praacuteticas pois como jaacute apontava Joatildeo Wanderley Geraldi num verdadeiro claacutessico do ensino de liacutengua literatura e redaccedilatildeo

Qualquer proposta metodoloacutegica eacute a articulaccedilatildeo de uma concepccedilatildeo de mundo e de educaccedilatildeo ndash e por isso uma concepccedilatildeo de ato poliacutetico ndash e

10 Essa divisatildeo eacute ainda vivenciada em muitas escolas puacuteblicas do Rio de Janeiro que possuem um professor para cada ldquoaacutereardquo A cultura acadecircmica tambeacutem estimula essa fragmentaccedilatildeo por meio da precoce ldquoespecializaccedilatildeo do graduandordquo que adere a uma linha de pesquisa de liacutengua ou de literatura e verbaliza isso ao dizer ldquoeu sou da liacutenguardquo ldquoeu sou da literaturardquo

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uma concepccedilatildeo epistemoloacutegica do objeto de reflexatildeo ndash no nosso caso a linguagem ndash com as atividades desenvolvidas em sala de aula (GERALDI 2011 p128)

Ora essa afirmativa que pode beirar a obviedade ndashpropostas metodoloacutegicas articulam escolhas poliacuteticas ndash publicada haacute mais de trinta anos num livro voltado para professores de educaccedilatildeo baacutesica ganha contornos dramaacuteticos de atualidade no contexto que vivenciamos de formaccedilatildeo de professores de Letras A natildeo percepccedilatildeo das realidades desses jovens que chegam agrave universidade para se tornarem professores e a ausecircncia de tentativa de formaacute-los leitores numa clave complexa tecircm levado agrave repeticcedilatildeo de praacuteticas de escrita e leitura contraditoacuterias com a ideia libertadora e democraacutetica que deveria permear as relaccedilotildees entre teoria e praacutetica na universidade

Todas essas questotildees soacute podem ser pensadas num quadro mais complexo de formaccedilatildeo de professores Talvez o proacuteprio nome Letras que eacute dado para este curso aponte para uma direccedilatildeo diferente daquela que seria a de um curso que se preocupasse em formar professores para atuarem na educaccedilatildeo baacutesica Talvez essa palavra traga mesmo um forte conteuacutedo elitista ligado ao ensino da literatura como algo para poucos11

Referecircncias

ANTUNES I Liacutengua texto e ensino ndash outra escola possiacutevel Satildeo Paulo Paraacutebola 2009

BUNZEN C MENDONCcedilA M Portuguecircs no ensino meacutedio e a formaccedilatildeo do professor Satildeo Paulo Paraacutebola 2006

CULTURA POLIacuteTICA (Revista mensal de Estudos Brasileiros) Rio de Janeiro Departamento de Imprensa e Propaganda Ano 1 a 3 (1941-1943) Disponiacutevel em httpcpdocfgvbr

COLOMER T Andar entre livros a leitura literaacuteria na escola Satildeo Paulo Global 2007

DALVI M A REZENDE N L JOVER-FALEIROS R (Org) Leitura de literatura na escola Satildeo Paulo Paraacutebola 2013

GERALDI J W et al O texto na sala de aula 5ed Satildeo Paulo Aacutetica 2011

KLEIMAN Angela Letramento identidade e formaccedilatildeo do professor Rio de Janeiro IV Encontro de Ensino e Aprendizagem em Liacutenguas e Literaturas 2017 (palestra)

11 Este ano de 2017 foi marcado por uma seacuterie de movimentos em torno da reforma curricular do Curso de Letras da UFRJ Muitas dessas questotildees foram discutidas no I Congresso Interno da Faculdade de Letras e nas reuniotildees do Nuacutecleo Docente Estruturante Acredito que houve um grande avanccedilo nas discussotildees e um maior entendimento da necessidade da universidade aproximar-se da escola de educaccedilatildeo baacutesica reconhecendo nela o locus de formaccedilatildeo de uma cultura profissional Neste sentido a universidade estaacute em processo de construccedilatildeo de um complexo de formaccedilatildeo com o a contribuiccedilatildeo do professor Antoacutenio Noacutevoa (Universidade de Coimbra) que visa criar uma relaccedilatildeo mais estreita com as redes de ensino Nem tudo eacute penumbra haacute muitas faiscaccedilotildees de esperanccedila

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MARCUSCHI L A Produccedilatildeo textual anaacutelise de gecircneros e compreensatildeo Satildeo Paulo Paraacutebola 2008

ANDREacute Marli O trabalho docente do professor formador e as praacuteticas curriculares da licenciatura na voz dos estudantes In SANTOS Luciacuteola Liciacutenio de Castro Paixatildeo FAVACHO Andreacute Maacutercio Picanccedilo (orgs) Poliacuteticas e praacuteticas curriculares desafios contemporacircneos Curitiba CRV 2012 (p35-49)

PETIT M Os jovens e a leitura uma nova perspectiva Satildeo Paulo Editora 34 2008

REBELO M Cenas da vida brasileira 2ed Rio de Janeiro Joseacute Olympio 2010

RODELLA Gabriela O professor de portuguecircs e a literatura ndash relaccedilotildees entre formaccedilatildeo haacutebitos de leitura e praacuteticas de ensino Satildeo Paulo Alameda 2013

ROUXEL A LANGLADE G REZENDE N L (Org) Leitura subjetiva e ensino de literatura Satildeo Paulo Alameda 2013

Recebido em 29 de abril de 2017

Aceito em 23 de outubro de 2017

Marcos Scheffel

Professor de Didaacutetica e Praacutetica de Ensino de Portuguecircs e Literatura da UFRJ desde 2013 Doutor em Teoria Literaacuteria pela Universidade Federal de Santa Catarina (2011) Atuou na educaccedilatildeo baacutesica em Santa Catarina entre 2000 e 2008 marcosscheffel53gmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Estaacutegio supervisionado em Letras da UFGD mediando leituras e formando leitores

Supervised Internship in Letras at UFGD Mediating Readings and Forming Readers

Praacutecticas supervisadas en Letras de la UFGD mediando lecturas y formando lectores

Alexandra Santos Pinheiro Universidade Federal da Grande Dourados

Resumo

No presente artigo analisamos o Estaacutegio Supervisionado em Literatura pela perspectiva da formaccedilatildeo de leitores Apoacutes apresentarmos o regimento que norteia o componente curricular no curso de Letras refletimos sobre a dificuldade demonstrada pelos estagiaacuterios de proporem planos de intervenccedilatildeo que visem a formaccedilatildeo de leitores da educaccedilatildeo baacutesica Identificamos nesta dificuldade duas questotildees relevantes a pouca relaccedilatildeo estabelecida ao longo da graduaccedilatildeo com as disciplinas voltadas ao texto literaacuterio e a falta de graduandos que se constituam como leitores Palavras-chave Literatura Estaacutegio leitores

Abstract

In the present article we analyze the Supervised Internship in Literature from the perspective of the formation of readers After presenting the regiment that guides this course in the Letras undergraduate program we reflect on the difficulty the interns have to propose intervention plans that aim at the formation of readers within school education In this difficulty we identified two important issues the low commitment tounder graduate courses focused on the literary text and the lack of graduates who are readers themselves Keywords Literature Internship readers

Resumen

En este trabajo se analiza las praacutecticas supervisadas en la literatura desde la perspectiva de la formacioacuten de lectores Tras la presentacioacuten del regimiento que guiacutea el componente curricular en el curso de Letras se reflexiona sobre la dificultad de los alumnos para proponer planes de accioacuten destinados a la formacioacuten de los lectores de la educacioacuten baacutesica Se identifican en esta dificultad dos cuestiones importantes la poca relacioacuten que se establece a lo largo de la graduacioacuten con cursos orientados al texto literario y la falta de alumnos en formacioacuten que constituyan en lectores Palabras clave Literatura Praacutecticas lectores

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1 Palavras iniciais

Na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) o Estaacutegio de Literatura e de Liacutengua Portuguesa eacute pautado por um Regulamento de Estaacutegio (2009) normas que regem a praacutetica de estaacutegio nas duas habilitaccedilotildees do curso de Letras da Faculdade de Artes e Letras (FACALE) dessa universidade Literatura e Inglecircs como liacutengua estrangeira Com base nas normas os alunos propotildeem um plano de aulas Nestes planos os professores orientadores de Estaacutegio Supervisionado de Liacutengua Portuguesa e de Literatura priorizam um trabalho que envolva ensino pesquisa e extensatildeo As orientaccedilotildees em sala de aula a investigaccedilatildeo do funcionamento das instituiccedilotildees escolares de Ensino Fundamental e Meacutedio e a reflexatildeo sobre as observaccedilotildees e regecircncias resultam na elaboraccedilatildeo dos planos No processo de elaboraccedilatildeo os acadecircmicos satildeo orientados a pensar a partir da concepccedilatildeo teoacuterica dos gecircneros textuais que para Bakhtin (2000 p 279) eacute ldquoum enunciado de natureza histoacuterica sociointeracional ideoloacutegica e linguiacutesticardquo E acrescenta ldquoa utilizaccedilatildeo da liacutengua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e uacutenicos que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humanardquo (BAKHTIN 2000 p 279)

Acreditamos ser o estaacutegio para muitos graduandos1 o responsaacutevel por lhes apresentar a realidade escolar e por incutir-lhes o sentimento de que os conhecimentos adquiridos ao longo da graduaccedilatildeo natildeo satildeo suficientes para o exerciacutecio docente mostrando-lhe assim a necessidade de constante pesquisa

Selma Pimenta (2006) constata um fato que muitas vezes pode ser percebido nos cursos de licenciatura do ensino superior Conforme a autora os estagiaacuterios ficam confusos durante a regecircncia porque percebem que os conteuacutedos aprendidos durante o curso natildeo condizem com a realidade da sala de aula dos niacuteveis de ensino Fundamental e Meacutedio Se pensarmos no curso de licenciatura em Letras quantos graduados diante de sua primeira experiecircncia profissional sentem-se perdidos diante dos conteuacutedos a serem ministrados A carga horaacuteria destinada ao estudo da linguiacutestica natildeo lhes daacute subsiacutedios para trabalhar com alunos que muitas vezes chegam ao final do Ensino Fundamental ou mesmo do Ensino Meacutedio sem as capacidades necessaacuterias para estruturar um texto escrito com o miacutenimo de coerecircncia e coesatildeo E o que dizer das aulas de Teoria Literaacuteria Como ler com os educandos do Ensino Meacutedio as obras de Machado de Assis Guimaratildees Rosa Joatildeo Cabral de Melo Neto cacircnones que no discurso dos professores de teoria literaacuteria pareciam tatildeo inteligiacuteveis mas que para a maioria dos ldquoleitoresrdquo satildeo incompreensiacuteveis

O Estaacutegio Supervisionado precisaria possibilitar essa reflexatildeo Deveria representar o momento em que o acadecircmico pensaria o curso de Letras o conhecimento alcanccedilado e as limitaccedilotildees dele (graduando) e de seu curso diante da realidade que o espera do lado de fora da Universidade O Estaacutegio deveria oferecer ao futuro licenciado a oportunidade de

1 Muitos graduandos natildeo podem participar do Programa de Bolsa de Incentivo agrave Docecircncia (PIBID) que existe desde 2009 oferecendo ao aluno oportunidade de muitas horas de atividades nas escolas devido agrave necessidade de trabalhar para sustentar ou contribuir com o sustento de suas famiacutelias

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compreender que o conteuacutedo teoacuterico do curso eacute tatildeo importante quanto pensar a melhor metodologia para desenvolver com os seus futuros alunos em quaisquer niacuteveis

Em nossa instituiccedilatildeo aleacutem da Lei Federal que parametriza os estaacutegios em niacutevel nacional nordm 117882008 de 25092008 temos a Resoluccedilatildeo nordm 118 - CEPEC de 13092007 Delineadas as leis que nortearamnorteiam o estaacutegio no Brasil ficam as questotildees como ele deve ser feito Como fazer e para quecirc Pensando nas questotildees metodoloacutegicas na UFGD como na maioria das licenciaturas a disciplina de Estaacutegio Supervisionado eacute ministrada nos dois uacuteltimos anos do curso No 3deg ano faz-se o estaacutegio de observaccedilatildeo e no 4deg ano o estaacutegio de regecircncia ambos no Ensino Fundamental e Meacutedio Em geral para o cumprimento das atividades e obtenccedilatildeo de uma meacutedia final satisfatoacuteria o estudante precisa

a assistir a uma quantidade X de aulas em escolas dos ensinos fundamental e meacutedio2

b escolher um tema a ser aprofundado teoacuterico-metodologicamente numa sala de aula do ensino baacutesico

c construir planos de aula para a regecircncia Neste plano os graduandos devem apoiando-se nas teorias linguiacutesticas e literaacuterias estudadas durante o curso explicitar a metodologia referencial teoacuterico justificativa objetivos e avaliaccedilatildeo

d participar de seminaacuterios e discussotildees durante o ano letivo para levantamento de problemas observados em sala de aula e suas possiacuteveis intervenccedilotildees

e entregar relatoacuterio de estaacutegio que em siacutentese vai mostrar o percurso do estudante em todas as atividades elencadas

Para o Estaacutegio Supervisionado em Literatura I satildeo previstas a observaccedilatildeo e a regecircncia no Ensino Fundamental do 6ordm ao 9ordm ano e para o Estaacutegio Supervisionado em Literatura II a observaccedilatildeo e a regecircncia no Ensino Meacutedio Nas reformulaccedilotildees jaacute feitas no projeto poliacutetico pedagoacutegico como ementa temos

a reflexotildees teoacuterico-metodoloacutegicas acerca do Estaacutegio Supervisionado e do ensino de literatura nos uacuteltimos anos do Ensino Fundamental visando agrave formaccedilatildeo do profissional de Letras

b Usos de tecnologia na educaccedilatildeo

c Normas e legislaccedilatildeo

No plano de aula o estudante deve apresentar um problema de ensino voltado para a mediaccedilatildeo do texto literaacuterio Deve o estudante basear-se no referencial teoacuterico que o guiaraacute durante o desenvolvimento do plano numa determinada realidade escolar e especificar a

2 Pela norma que regulamenta o estaacutegio supervisionado a Comissatildeo de Estaacutegio (COES) acordou nos seguintes termos a carga horaacuteria para o estaacutegio Liacutengua Portuguesa ndash 20 horas no Ensino Fundamental e 20 horas no Ensino Meacutedio Liacutengua Inglesa ndash 20 horas no Ensino Fundamental ou no Ensino Meacutedio eou em escolas de idiomas Literatura ndash 20 horas no Ensino Fundamental eou no Ensino Meacutedio

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metodologia seus objetivos e a que conclusatildeo pretende chegar Na praacutetica acumulamos a cada ano as dificuldades de muitos graduandos em propor e executar uma atividade de formaccedilatildeo de leitores ou de mediaccedilatildeo de leitura Os obstaacuteculos se fossem apenas relacionados agrave fundamentaccedilatildeo teoacuterica seriam compreensiacuteveis poreacutem eles se refletem tambeacutem na escolha dos textos literaacuterios Nos debates em classe a maioria admite natildeo assumir a praacutetica da leitura e reconhece que lhes falta repertoacuterio de obras literaacuterias para iniciar a preparaccedilatildeo de uma aula que objetive a mediaccedilatildeo da leitura Os limites apresentados infelizmente acompanham alguns dos graduandos em seu percurso profissional que continuaraacute marcado como veremos a seguir pela ausecircncia da praacutetica de leitura literaacuteria

2 Estaacutegio e ensino de literatura entre a teoria e a praacutetica

Se no Brasil o Letramento eacute definido como ldquoEstado ou condiccedilatildeo de quem natildeo apenas sabe ler e escrever mas cultiva e exerce as praacuteticas sociais que usam a escritardquo (SOARES 2007 p 17) o letramento literaacuterio seria visto entatildeo como estado ou condiccedilatildeo de quem natildeo apenas eacute capaz de ler poesia prosa ou drama mas dele se apropria efetivamente por meio da experiecircncia esteacutetica Sempre que possiacutevel dialogamos com Barthes (1980) para quem o texto literaacuterio eacute ldquoum monumentordquo capaz de incorporar as demais imagens Abramovich trabalha na mesma direccedilatildeo e afirma

Eacute atraveacutes duma histoacuteria que se podem descobrir outros lugares outros tempos outros jeitos de agir e de ser outra eacutetica outra oacutetica Eacute ficar sabendo Histoacuteria Geografia Filosofia Poliacutetica Sociologia sem precisar saber o nome disso tudo e muito menos achar que tem cara de aula (ABRAMOVICH 1995 p 17)

Tanto o discurso de Barthes quanto o de Abramovich contribuem para a defesa da literatura e da formaccedilatildeo de leitores Depoimentos como o do filoacutesofo Sartre amparam esses argumentos Sartre rememora sua infacircncia camponesa ele que nunca mexeu na terra nem jogou pedras nos passarinhos Contudo para o autor os livros foram seus passarinhos seus ninhos animais de estimaccedilatildeo

As densas lembranccedilas e o doce contra-senso das crianccedilas camponesas em vatildeo os procuraria em mim Nunca fucei a terra nem procurei ninhos natildeo colecionei plantas nem joguei pedras nos passarinhos No entanto os livros foram meus passarinhos e meus ninhos meus animais de estimaccedilatildeo meu estaacutebulo e meu campo (SARTRE 1993 apud SANTIAGO 1978 p 23)3

3 Cf o trecho original ldquoLes souvenirs touffus et la douce deacuteraison des enfances paysannes en vain les chercherais-je en moi Je nrsquoai jamais gratteacute la terre ni quecircteacute des nids je nrsquoai pasher boriseacute ni lanceacute des Pierre sauxois e aux Mais les libre sonteacuteteacute me sois e aux et mes nids mes becirctes domestiques moneacutetable et ma campagnerdquo

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Nesse sentido percebemos que eacute preciso quando se coloca a literatura e seu ensino em pauta defender o seu espaccedilo nas praacuteticas escolares e assegurar a sua importacircncia para a formaccedilatildeo integral do cidadatildeo Principalmente em realidades como a enfrentada pelo estado do Mato Grosso do Sul que no ano de 2017 excluiu a literatura do curriacuteculo do ensino meacutedio sob o pretexto de que ela seria incorporada pela disciplina de Liacutengua Portuguesa Ao longo da experiecircncia com projetos de Formaccedilatildeo Continuada de professores temos percebido que no ambiente escolar as praacuteticas pedagoacutegicas do ensino de literatura colaboram para um processo que estaacute longe de formar leitores As praacuteticas escolares de muitos professores privilegiam o fragmento literaacuterio o recorte de um texto literaacuterio feito por algueacutem e natildeo o livro Desta forma os fragmentos literaacuterios presentes nos livros didaacuteticos tiram da escola o livro que congrega autor e obra sociedade e mundo representado cultura e economia Aleacutem disso hoje o livro tambeacutem concorre com os meios de comunicaccedilatildeo e com as tecnologias na aacuterea da informaacutetica que alguns pesquisadores vatildeo apontar como obstaacuteculos a serem vencidos no processo de formaccedilatildeo de leitores literaacuterios

Autores decididos a amenizar os problemas da (natildeo) leitura indicam aos professores atividades de praacutetica de leitura ensinam como selecionar os livros explicam sobre a psicologia que norteia a faixa etaacuteria de cada aluno Mas apesar de tudo a ldquocriserdquo ainda persiste e eacute tema recorrente nas mesas de debate de eventos locais regionais nacionais e internacionais a exemplo do Congresso de Leitura do Brasil (COLE)4 Nos documentos oficiais como nas Orientaccedilotildees Curriculares (2006) assegura-se a presenccedila do texto literaacuterio nos Ensinos Fundamental e Meacutedio Eacute possiacutevel perceber nesses textos oficiais que existe uma dimensatildeo do que poderia ser melhorado em sala de aula

No Ensino Fundamental (principalmente da 5ordf agrave 8ordf seacuterie) caracteriza-se por uma formaccedilatildeo menos sistemaacutetica e mais aberta do ponto de vista das escolhas na qual se misturam livros que indistintamente denominamos ldquoliteratura infanto-juvenilrdquo a outros que fazem parte da literatura dita ldquocanocircnicardquo legitimada pela tradiccedilatildeo escolar inflexatildeo que quando acontece se daacute sobretudo nos uacuteltimos anos desse segmento (7ordf ou 8ordf seacuterie) (BRASIL 2006 p 46)

Se no Ensino Fundamental vai predominar a liberdade de escolha e a leitura de fruiccedilatildeo no Meacutedio

constata-se um decliacutenio da experiecircncia de leitura de textos ficcionais seja de livros da literatura infanto-juvenil seja de alguns poucos autores representativos da literatura brasileira selecionados que aos poucos cede lugar agrave histoacuteria da Literatura e seus estilos (BRASIL 2006 p57)

Ao longo do documento natildeo se identifica o conceito de leitura que deveria nortear o ensino de literatura A nosso ver seria interessante observar que o ato de ler eacute um processo

4 Todos os anais das ediccedilotildees do COLE podem ser acessados em httpalborgbranais-cole

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trabalhoso que exige ldquoesforccedilo treino capacitaccedilatildeo e acumulaccedilatildeordquo como explicita Ricardo Azevedo (2004 p 34) Eni Orlandi (2006 p 23) pela perspectiva da Anaacutelise do Discurso define a leitura como ldquocompreensatildeo natildeo apenas decodificaccedilatildeordquo A leitura seria o momento criacutetico da construccedilatildeo do texto um processo de interaccedilatildeo verbal que faz desencadear a assimilaccedilatildeo dos sentidos O leitor por sua vez seria aquele que consegue atribuir sentido a um diversificado nuacutemero de textos Eacute leitor aquele que devido agrave familiaridade com a escrita consegue diferenciar os tipos de gecircneros literaacuterios e natildeo literaacuterios e os motivos que o levam a escolher uma leitura em detrimento da outra

Portanto para que a leitura seja inserida como uma forma de aproveitar o tempo livre ou seja para que seja vista como lazer faz-se necessaacuterio que o indiviacuteduo se torne um leitor e esse processo como se vecirc exige esforccedilo e dedicaccedilatildeo Eacute necessaacuterio saber por que lemos precisamos atribuir sentido ao que lemos e isso exige praacutetica treino acuacutemulo de informaccedilatildeo raciociacutenio A arte literaacuteria deveria fazer parte do ambiente familiar e escolar desde os primeiros meses de vida Essa afirmaccedilatildeo pode parecer utoacutepica mas natildeo eacute Ela estaacute fundamentada em um referencial teoacuterico que permite acreditar que a democratizaccedilatildeo do ensino exigiria um repensar sobre nossa histoacuteria socioeconocircmica de exclusatildeo A leitura literaacuteria oferece meios de enxergar a realidade por outro prisma ela cria possibilidades para si e para o ambiente que a cerca Entretanto a desigualdade econocircmica dificulta a criaccedilatildeo de um ambiente de leitura mostrando que a literatura a situaccedilatildeo socioeconocircmica e as praacuteticas culturais devem ser pensadas de forma indissociada

Se antes a exclusatildeo referia-se principalmente agrave dificuldade do acesso ao livro hoje a tecnologia eacute apontada como uma ldquovilatilderdquo do ensino de literatura

De um lado os tecnoacutefilos veem a tecnificaccedilatildeo do literaacuterio como algo inevitaacutevel diante do qual todos devem se curvar sem resistecircncia Do outro haacute os que desconfiam do novo suporte com medo de que o texto literaacuterio apresentado na tela perca a aura da Literatura (FREITAS 2003 p 156)

Alberto Manguel (1997) lembra que uma nova tecnologia natildeo destroacutei a que lhe antecede Afirma que o surgimento da imprensa acompanhado por negativas previsotildees natildeo erradicou o gosto pelo texto impresso Ele tambeacutem observou que ao mesmo tempo em que os livros se tornavam de faacutecil acesso e mais gente aprendia a ler mais pessoas tambeacutem aprendiam a escrever Em relaccedilatildeo agrave literatura e agrave internet Maria Teresa de Assunccedilatildeo Freitas lembra que

O mundo da Internet natildeo se constitui neste espaccedilo como condiccedilotildees de oferecer a um simples toque no teclado amplos e variados acervos aos seus usuaacuterios Diante dessa multiplicidade de oferta a escolha pessoal natildeo eacute o iniacutecio do processo de navegaccedilatildeo pelos mares da Literatura (FREITAS 2003 p 169)

Essa citaccedilatildeo acende dois questionamentos Por um lado qual o puacuteblico escolar que navega via internet ldquopelos mares da Literaturardquo As salas de tecnologia instaladas

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na maioria das escolas puacuteblicas brasileiras natildeo satildeo suficientes para atender a grande quantidade de alunos de cada instituiccedilatildeo escolar Por outro percebemos no diaacutelogo com os professores que diante do computador a maioria dos alunos natildeo demonstra familiaridade com a tecnologia exigindo do docente grande malabarismo para desenvolver as atividades propostas

Desta forma a presenccedila do livro e da tecnologia vai depender da concepccedilatildeo pedagoacutegica do professor geralmente o principal mediador entre a leitura literaacuteria e o educando Ao professor cabe explorar as potencialidades desse tipo de texto criando as condiccedilotildees para que o encontro do aluno com a literatura culmine em uma busca plena de sentido na leitura do texto literaacuterio Por essa perspectiva tem-se o ensino da literatura pautado no Letramento ou seja na busca do conhecimento a partir do texto literaacuterio pelo proacuteprio aluno e no cotidiano social em que todos estatildeo inseridos O problema como mencionado anteriormente eacute que quando o educador atua em sala ele muitas vezes baseia-se nos fragmentos literaacuterios encontrados nos livros didaacuteticos e na siacutentese das caracteriacutesticas literaacuterias na qual determinado autor e obra estatildeo inseridos5 Aleacutem de priorizar fragmentos literaacuterios muitos docentes desprezam as vivecircncias sociais de seus educandos em geral telespectadores de seacuteries como Malhaccedilatildeo6 dentre outras

Alunos que entendem da constituiccedilatildeo dos personagens e que portanto fazem a sua seleccedilatildeo pessoal dos filmes mais marcantes Eacute a partir dessa vivecircncia que o texto literaacuterio da tradiccedilatildeo canocircnica ou popular deveria ser inserido em sala de aula

Para chegar a essa concepccedilatildeo de ensino de literatura seria necessaacuterio principalmente a presenccedila de professores leitores Ao enfocar a importacircncia do professor para a formaccedilatildeo de leitores literaacuterios natildeo desejamos atribuir somente a ele a responsabilidade por despertar nos educandos o prazer pela leitura literaacuteria Eacute sabido que essa eacute uma questatildeo no Brasil comprometida pela desigualdade social pelo preccedilo dos livros dentre outros fatores Consequentemente a maioria dos alunos de escolas puacuteblicas teraacute os primeiros contatos com livros na escola o que torna significativo o papel desse mediador Da mesma forma que se constata essa realidade percebe-se nos cursos de formaccedilatildeo continuada (e no uacuteltimo ano da graduaccedilatildeo em Letras) que raramente o professor de Liacutengua Portuguesa e de Literatura lembra-se do uacuteltimo livro literaacuterio lido na iacutentegra Quando perguntamos aos mediadores e aos futuros mediadores da leitura literaacuteria o que eacute literatura como selecionam o texto a ser discutido como acontecem suas aulas de Literatura e qual o uacuteltimo livro que leram ou que estatildeo lendo geralmente instaura-se um certo constrangimento

5 Os trabalhos orientados na graduaccedilatildeo e no mestrado sustentam a afirmaccedilatildeo Para aprofundamento no tema sugerimos Leitoras de Best-sellers o que determina suas escolhas dissertaccedilatildeo de mestrado defendida por Mayara Regina Pereira Dau em 2012 pela Universidade Federal da Grande Dourados Literatura e Memoacuteria a formaccedilatildeo de leitoras no Ensino de Jovens e Adultos dissertaccedilatildeo de mestrado defendida por Iva Carla Aveline Teixeira dos Santos em 2017 pela Universidade Federal da Grande Dourados

6 Uma seacuterie televisiva produzida pela Rede Globo desde 1995 ateacute o presente momento

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A maioria escolhe a partir da orientaccedilatildeo do livro didaacutetico natildeo aborda a literatura produzida em seu estado ou cidade e natildeo dialoga com a Academia de Letras de seu municiacutepio Os acadecircmicos escritores da cidade poderiam ser convidados para participar das aulas do professor explicando aos alunos o processo de escrita de um texto literaacuterio e da produccedilatildeo de um livro por exemplo Acerca do que leem raramente uma leitura literaacuteria eacute citada A maioria quando estaacute lendo indica livros classificados como autoajuda A preferecircncia por este tipo de literatura indica pontos importantes o preccedilo a sintaxe e o vocabulaacuterio desses livros satildeo geralmente mais acessiacuteveis

Outro aspecto impressionante refere-se ao diaacutelogo entre a graduaccedilatildeo e a praacutetica docente Salientamos nos cursos de formaccedilatildeo continuada a importacircncia de utilizar o conhecimento da teoria literaacuteria para ensinar a ler literatura e a necessidade de instigar o educando a perceber os elementos que marcam os gecircneros literaacuterios e como esses elementos se relacionam no texto

Nesse momento fica expliacutecito que a maioria natildeo consegue se lembrar das aulas de teoria recebidas ao longo da trajetoacuteria universitaacuteria especialmente na graduaccedilatildeo em Letras Ao inveacutes de questionar-se a maioria prefere afirmar que a deficiecircncia natildeo estaacute em saber (ou natildeo) a teoria que marca cada gecircnero mas na falta de interesse dos educandos Afirmam que natildeo haacute como incentivaacute-los a gostar de ficccedilatildeo Todavia satildeo esses mesmos jovens que alimentam a audiecircncia das seacuteries para adolescentes O que satildeo essas seacuteries Satildeo ficccedilotildees enredos pautados em personagens que correspondem aos aspectos fiacutesicos e psicoloacutegicos dos jovens que acompanham as accedilotildees Tambeacutem se trata de uma ficccedilatildeo marcada por temas claacutessicos como amor traiccedilatildeo o bem e o mal acrescidos de temas modernos como a questatildeo do consumismo e da violecircncia urbana Munido de conhecimento teoacuterico o professor teria pouca dificuldade para mostrar a esses educandos tidos como desinteressados pela leitura literaacuteria como a praacutetica social e familiar e as escolhas dos programas que assistem na TV afirmam o contraacuterio

Tal reflexatildeo gera novo impasse como formar professores leitores O professor deveria perceber que a praacutetica de leitura soacute pode ser atingida a partir de uma reflexatildeo pautada num referencial teoacuterico sustentado pela importacircncia da literatura para a formaccedilatildeo social psicoloacutegica e cognitiva do cidadatildeo por outro lado deveria ter uma praacutetica docente sustentada por pesquisa Assumimos o respeito pelos graduandos e pelos docentes que encontramos nas formaccedilotildees continuadas Por isso eacute impossiacutevel deixar de indagar com uma jornada de trabalho de 40 horas semanais como assumir a postura de professor leitor e pesquisador Eacute preciso dar condiccedilotildees para que o trabalho do professor possa ser mais significativo

Feitas tais ponderaccedilotildees eacute preciso pensar entatildeo em como proporcionar condiccedilotildees para que se tenha professores-leitores e pesquisadores Aleacutem das condiccedilotildees estruturais de trabalho (salaacuterio carga horaacuteria) partimos do pressuposto de que um curso de licenciatura por mais estruturado que seja natildeo forma integralmente um professor Uma vez que a formaccedilatildeo eacute um processo contiacutenuo o processo de preparaccedilatildeo para o iniacutecio da carreira docente natildeo absorve toda a dinacircmica necessaacuteria para a efetiva formaccedilatildeo desses

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profissionais Na realidade independentemente do niacutevel em que lecione o professor faz parte de um grupo de profissionais que deve se atualizar constantemente

Os egressos dos cursos de Letras e de outras licenciaturas contam com os cursos de formaccedilatildeo continuada ofertados em projetos de extensatildeo Nada mais justo uma vez que ao se deparar com a dinacircmica da praacutetica os novos (e os mais velhos tambeacutem) educadores sentem-se desorientados e angustiados Nesse sentido os cursos de formaccedilatildeo continuada possibilitam apreender as dificuldades teoacuterico-metodoloacutegicas da praacutetica dos professores da Educaccedilatildeo Baacutesica Assim sem o engajamento de professores leitores tambeacutem se torna difiacutecil explicar que o letramento literaacuterio deve partir das praacuteticas de leitura dos alunos (novelas filmes diaacuterios desenhos animados) para leituras mais elaboradas que exigem um esforccedilo maior de interpretaccedilatildeo

As escolas satildeo instituiccedilotildees agraves quais a sociedade delega a responsabilidade de prover as novas geraccedilotildees das habilidades conhecimentos crenccedilas valores e atitudes consideradas essenciais agrave formaccedilatildeo de qualquer cidadatildeo Mas com base nas pesquisas de Kleiman (20012003) Rojo (2006) Soares (2003) eacute possiacutevel afirmar que a relaccedilatildeo entre escola e letramento eacute complexa Haacute uma espeacutecie de ldquocontrolerdquo da escola ao inveacutes de expansatildeo de praacuteticas sociais O letramento escolar eacute insuficiente para medir e avaliar as habilidades de leitura e de escrita Em paiacuteses como o Brasil o funcionamento inconsistente e discriminatoacuterio da sociedade gera padrotildees muacuteltiplos e diferenciados de aquisiccedilatildeo do letramento

Desse modo tendo ciecircncia deste tipo de letramento efetuado nas escolas seria significativo avanccedilar para praacuteticas sociais que marcam a vida dos sujeitos envolvidos Entendemos assim que o docentediscente inserido em praacuteticas de leituraescrita de gecircneros diversos que circulam socialmente (da esfera literaacuteria e natildeo literaacuteria como sugerem os Paracircmetros Curriculares Nacionais ndash PCN 1998) deve ser considerado uma pessoa letrada Em se tratando do letramento literaacuterio fixamos a importacircncia de pensar em vaacuterias questotildees o acesso aos livros a formaccedilatildeo de professores a valorizaccedilatildeo do livro dentro da famiacutelia e a questatildeo da tecnologia para citar apenas as que foram abordadas ao longo desse debate Diante de uma sociedade tecnoloacutegica com importantes descobertas cientiacuteficas em que o indiviacuteduo desde muito cedo tem acesso agrave internet e a partir dela ouve muacutesica joga assiste a filmes conhece lugares e pessoas por que insistir na literatura (no livro literaacuterio) Por que se empenhar para que nossos alunos (e noacutes tambeacutem) tenhamos na obra literaacuteria uma opccedilatildeo para o prazer para o conhecimento e para a formaccedilatildeo subjetiva e social E por que insistir na afirmaccedilatildeo de que no Brasil se lecirc pouco

Regina Zilberman (1982) mostra algumas contradiccedilotildees em relaccedilatildeo agrave chamada crise de leitura De acordo com sua pesquisa nos anos 1970 quando iniciaram efetivamente as reflexotildees sobre a (natildeo) leitura acontecia o crescimento da populaccedilatildeo urbana decorrente da oferta de trabalho nas induacutestrias Esse aumento da populaccedilatildeo por sua vez exigiu uma reformulaccedilatildeo da estrutura escolar devido agrave ampliaccedilatildeo do nuacutemero de alunos Assim dentre as novas propostas da reforma de ensino instituiacuteda nesse periacuteodo o texto literaacuterio ganhou destaque em sala de aula as editoras passaram a investir na publicaccedilatildeo de obras infantis e um elevado nuacutemero de livros passou a circular nos acervos escolares

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Em 2009 de acordo com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo (FNDE) 236 milhotildees de estudantes das seacuteries finais do Ensino Fundamental foram beneficiados com o programa de distribuiccedilatildeo de livros literaacuterios Vale ressaltar que os acervos foram compostos por tiacutetulos de poemas contos crocircnicas teatro texto de tradiccedilatildeo popular romance memoacuteria diaacuterio biografia ensaio histoacuterias em quadrinhos e obras claacutessicas7

O apontamento histoacuterico apresentado e os nuacutemeros indicados pelo FNDE demonstram que aparentemente natildeo haacute lugar para a chamada crise de leitura De acordo com Zilberman (1982) a contradiccedilatildeo instalava-se na recusa agrave leitura O puacuteblico leitor em potencial natildeo demonstrava interesse pela leitura das obras literaacuterias Essa recusa infelizmente ainda eacute a motivaccedilatildeo para o debate acerca do ensino de literatura A diferenccedila eacute que ao debate satildeo acrescidos outros (natildeo) leitores os professores e a famiacutelia Talvez se deva pensar que a (natildeo) leitura eacute uma questatildeo que natildeo perpassa apenas a questatildeo pedagoacutegica pois se assim fosse a diversidade de obras que ensina a ldquoensinar a lerrdquo jaacute a teria solucionado A histoacuteria da leitura demonstra que esse assunto envolve poder poliacutetico poder econocircmico e poder social

3 Em busca de conclusotildees

Quando tratam da linguagem os Paracircmetros Curriculares Nacionais (1997) demonstram a interdisciplinaridade que a envolve lembrando que vaacuterias aacutereas do conhecimento buscam na linguagem o suporte para seus objetos de estudo De acordo com os Paracircmetros a linguagem soacute pode ser estudada em sua interaccedilatildeo social soacute existe enquanto expressatildeo comunicativa entre os sujeitos O efetivo ensino de literatura pode atender a essa expectativa A literatura eacute por natureza interdisciplinar estaacute inserida em um tempo e eacute escrita a partir de um enfoque histoacuterico social e poliacutetico A literatura tambeacutem eacute a prova de que a linguagem soacute existe enquanto interaccedilatildeo social pois eacute escrita por algueacutem que deseja ser compreendido pelo outro sem a relaccedilatildeo entre autor texto e leitor natildeo haacute literatura Mesmo compreendendo que os Paracircmetros natildeo satildeo (e natildeo pretendem ser) a soluccedilatildeo definitiva para o problema do ensino de literatura e para a crise da leitura sentimos falta de um maior destaque agrave literatura e agrave sua importacircncia para a formaccedilatildeo do sujeito social e eacutetico

Regina Zilberman e Liacutegia Cadematori Magalhatildees (1987 p 12) tambeacutem apontam contradiccedilotildees encontradas nos Paracircmetros Para as autoras por exemplo a ecircnfase dada ao ensino da liacutengua como um meio para melhorar a qualidade da produccedilatildeo linguiacutestica ldquopoderia significar uma ruptura com o ensino tradicionalrdquo mas um olhar atento de acordo com as autoras pode conduzir o ensino da liacutengua caso se prenda em demasia agrave meta de oferecer ldquoum conjunto de atividades que possibilitem ao aluno desenvolver o domiacutenio da

7 Disponiacutevel em httpwwwfndegovbrhomeindexjsparquivo=biblioteca_escolahtml Uacuteltimo acesso em marccedilo de 2017

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expressatildeo oral e escrita em situaccedilotildees de uso puacuteblico da linguagemrdquo ao antigo ensino de retoacuterica com uma concepccedilatildeo apenas pragmaacutetica e utilitaacuteria da liacutengua

Mas seria ingenuidade afirmar que alguns professores resumam a aula de Liacutengua Portuguesa ao estudo da gramaacutetica da redaccedilatildeo e de interpretaccedilatildeo de textos apenas pelo pouco comprometimento com a leitura Acreditamos que da mesma forma que a leitura estaacute presa a uma histoacuteria de censura e de equiacutevocos o ensino de literatura estaacute comprometido pela estrutura curricular dos cursos de Letras pelo natildeo comprometimento de alguns docentes dos ensinos fundamental e meacutedio com a leitura pelos salaacuterios desestimulantes dos educadores pela injusta distribuiccedilatildeo de renda praticada no Brasil dentre outros fatores

Assim o momento do estaacutegio deveria representar uma alternativa dentro do tema da formaccedilatildeo do profissional da educaccedilatildeo para se discutira responsabilidade de formar leitores Trata-se de um espaccedilo de discussatildeo de alternativas teoacuterico-metodoloacutegicas para sua praacutetica docente A democratizaccedilatildeo da leitura literaacuteria soacute seraacute representativa quando os mediadores se tornarem leitores e responsaacuteveis pelo exerciacutecio de sua praacutetica docente Acreditamos que a leitura seja um dos instrumentos mais significativos para a formaccedilatildeo do cidadatildeo Todavia a praacutetica precisa ser acompanhada a partir de um referencial teoacuterico-metodoloacutegico que permita ao estudante estabelecer relaccedilatildeo entre o texto e o leitor contemplando sua subjetividade e seu meio social Aleacutem disso como afirmam teoacutericos como Cosson (2006) Soares (2007) e Orlandi (2006) faz-se necessaacuterio oferecer ao leitor em formaccedilatildeo mecanismos para que ele consiga perceber a intertextualidade o ponto de vista do autor a origem do texto a contextualizaccedilatildeo do material impresso dentre outros elementos que permitam a transformaccedilatildeo do sujeito e em consequecircncia a ressignificaccedilatildeo do meio que o cerca

Diante do exposto trabalhar questotildees do Letramento pode contribuir para que a praacutetica dos docentes seja redimensionada para projetos que promovam efetivamente o Letramento (social escolar literaacuterio) A partir do processo de Letramento eacute possiacutevel melhorar o desempenho de nossos educandos ao mesmo tempo em que se permite aos educadores a ressignificaccedilatildeo de sua praacutetica Entretanto soacute eacute possiacutevel o trabalho pela perspectiva do letramento literaacuterio quando se desperta no docente que ainda natildeo se encontrou com o livro o desejo de principiar a praacutetica da leitura Assim fica acertada a teia que sustenta o ensino de literatura poliacuteticas puacuteblicas professor leitor leitura de texto e natildeo de fragmento diaacutelogo entre o texto escolar e as praacuteticas de leitura literaacuteria dos estudantes

Por fim cabe novamente ao professor orientador de estaacutegio (re)iniciar os contatosacordosconversas com os acadecircmicos A uniatildeo entre teoria e praacutetica deve nortear o ensino de literatura na educaccedilatildeo Qual a visatildeo que os acadecircmicos tiveram da realidade escolar Seu discurso dialogou com a teoria e a praacutetica docente O acadecircmico mostrou-se criacutetico diante de suas constataccedilotildees A anaacutelise da intervenccedilatildeo promovida durante o estaacutegio de literatura ofereceraacute as respostas a essas indagaccedilotildees que por sua vez satildeo permeadas por debates maiores o lugar do ensino da linguagem nesses niacuteveis

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escolares a noccedilatildeo de leitor leitura escrita gecircneros textuais literatura e formaccedilatildeo de professor O resultado desta reflexatildeo poderaacute culminar em docentes conscientes de seu papel na mediaccedilatildeo do texto literaacuterio

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BRASIL Ministeacuterio da Educaccedilatildeo e do Desporto Secretaria de Educaccedilatildeo BaacutesicaMinisteacuterio da Educaccedilatildeo Secretaria da Educaccedilatildeo Meacutedia e Tecnoloacutegica PCN+ Ensino Meacutedio orientaccedilotildees educacionais complementares aos Paracircmetros Curriculares NacionaisBrasiacutelia MEC 2002

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Recebido em 28 de marccedilo de 2017

Aceito em 29 de julho de 2017

Alexandra Santos Pinheiro

Doutora em Teoria e Histoacuteria Literaacuteria pela Universidade Estadual de Campinas (2007) e poacutes doutora pela Univerisdad de Jaeacuten (2012-2013) Eacute professora associada da UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados onde atua como professora da graduaccedilatildeo e do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Liacuteder do grupo de pesquisa Nuacutecleo de Estudos Literaacuterios e Culturais Atua na Formaccedilatildeo Continuada de Professores com ecircnfase no Letramento Literaacuterio Atualmente eacute tutora do Pet-Letras-UFGD alexandrasantospinheiroyahoocombr

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eISSN 22376844polifonia

O Estaacutegio Supervisionado em Letras no vieacutes administrativo-pedagoacutegico

The Teaching Internship Component of Portuguese Major Programs from a Managerial-Pedagogical Perspective

La pasantiacutea supervisada en Letras desde la perspectiva administrativa-pedagoacutegica

Flaacutevia Girardo Botelho Borges Universidade Federal de Mato Grosso

Resumo

A disciplina de Estaacutegio Supervisionado em Letras Liacutengua Portuguesa e Literaturaconfigura-se como uma das mais importantes na formaccedilatildeo do aluno como docente pois integra em sua realizaccedilatildeo componentes teoacutericos e praacuteticos da atuaccedilatildeo como professor em contextos reais de vivecircncia pedagoacutegica Neste sentido neste artigo analisaremos do ponto de vista administrativo-pedagoacutegico o componente curricular Estaacutegio Supervisionado no curso de Letrasda Universidade Federal de Mato Grosso fundamentando-nos teoricamente em autores da aacuterea da Educaccedilatildeo da Formaccedilatildeo e Saberes Docentes e da Linguiacutestica dentro da perspectiva dos Letramentos para apontar propostas para atenuar algumas situaccedilotildees que podem comprometer a formaccedilatildeo integral do aluno de Letras Palavras-chave Estaacutegio Supervisionado Letras Formaccedilatildeo Docente

Abstract

The discipline of Teaching Internship in Portuguese and Literature Major Programs is one of the most important in the formation of the student as a teacher because it integrates theoretical and practical components of acting as teacher in real contexts of pedagogical experience In this sense in this article we will analyze from the administrative and pedagogical point of view the curricular component Supervised Stage in the Portuguese and Literature Major Programsof the Federal University of Mato Grosso theoretically based on authors from the areas of Education Training and Teaching Knowledge and Linguistics within the perspective of Literacies so as suggest proposals to attenuate some situations that may compromise the integral formation of the studentsKeywords Teaching internship Portuguese and Literature Major Programs Teacher Training

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Resumen

La asignatura de Praacutecticas Supervisadas en Letras Lengua Portuguesa y Literatura aparece como una de las maacutes importantes en la formacioacuten del estudiante como docente ya que integra en su realizacioacuten componentes teoacutericos y praacutecticos de la actuacioacuten como profesoren contextos reales de experiencia pedagoacutegica En este sentido en este artiacuteculo se analiza desde el punto de vista administrativo y pedagoacutegico el componente curricular Praacutecticas Supervisadas enel curso de Letras de la Universidad Federal de Mato Grosso en teoriacutea basaacutendose en autores del aacuterea de Educacioacuten Formacioacuten y Saberes Docentes y de Linguumliacutestica e nel enfoque de Alfabetizacioacuten para sentildealar propuestas para aliviar algunas situaciones que pueden comprometer la formacioacuten integral de los estudiantes de LetrasPalabras clave Praacutecticas Supervisadas Letras Formacioacuten Docente

1 Introduccedilatildeo

O processo de formaccedilatildeo docente abrange desde o conhecimento dos conteuacutedos teoacutericos da profissatildeo ateacute o conhecimento do contexto escolar com a dinacircmica que envolve e caracteriza este cenaacuterio No sentido de que os contextos educacionais perpassados pela linguagem estatildeo sempre em mudanccedila adequando-se aos novos sujeitos aos saberes aos falares e aos acontecimentos quando se pensa em educaccedilatildeo escolar pensa-se em mudanccedila crise e projetos

Ao se analisar a formaccedilatildeo docente do ponto de vista da administraccedilatildeo escolar torna-se inescapaacutevel aderir ao vieacutes pedagoacutegico visto que natildeo haacute como separar o professor de seu contexto de atuaccedilatildeo e por assim dizendo de todas as imbricaccedilotildees que este contexto traz agrave tona ou deixa imersas como a quantidade de legislaccedilatildeo que permeia o trabalho docente a crise da profissionalizaccedilatildeo e o proacuteprio sistema educacional brasileiro

Colocando dessa maneira os profissionais que atuam na formaccedilatildeo docente dos cursos de licenciatura devem potencializar as atividades e situaccedilotildees que privilegiem a experiecircncia do aluno de graduaccedilatildeo com os contextos de sua profissatildeo e neste ponto destacamos o tema deste artigo o Estaacutegio Supervisionado em Letras

No momento soacutecio-histoacuterico que compartilhamos em que resoluccedilotildees do Conselho Nacional de Educaccedilatildeo estatildeo sendo aprovadas moldando e programando nossas atividades docentes em que Projetos Pedagoacutegicos de Curso doravante PPC estatildeo sendo reformulados dadas as exigecircncias das proacuteprias universidades no caso deste estudo a Resoluccedilatildeo CONSEPE 118 de 2014 que estabelece prazo para novos projetos pedagoacutegicos de curso estamos de acordo com Tardif (2014) quando este aponta que os conhecimentos profissionais devem ser modelados e voltados agrave soluccedilatildeo de situaccedilotildees problemaacuteticas concretas sendo a graduaccedilatildeo o momento em que os discentes tecircm a oportunidade de se aproximarem da aacuterea de atuaccedilatildeo pretendida e a disciplina de Estaacutegio uma das mais apropriadas para esta aproximaccedilatildeo

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2 O Estaacutegio Supervisionado como Componente Curricular

A formaccedilatildeo de professores eacute um tema amplamente pesquisado por diversas aacutereas do conhecimento dada a existecircncia de cursos de licenciatura que por lei exigem a praacutetica de estaacutegio supervisionado

De acordo com o Parecer CNECP1 nordm 28 aprovado em outubro de 2001 os cursos de licenciatura organizados em torno da formaccedilatildeo docente dedicam 400 horas de sua carga total para a disciplina de Estaacutegio ou no plural disciplinas de Estaacutegio como acontece no curso sobre o qual desenvolveremos nossos apontamentos neste artigo

O curso de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso prevecirc em seu plano pedagoacutegico quatro disciplinas que compotildeem o componente curricular Estaacutegio em Licenciatura Cada uma dessas disciplinas totaliza 100h de atividades que envolvem a parte teoacuterica e praacutetica dos saberes escolares sendo em grande parte desenvolvida nas escolas parceiras

No entanto apesar de somarem 400 horas como previsto e exigido pela legislaccedilatildeo vigente os alunos ainda apresentam ao final desse quantitativo de horas dificuldades para pensar planejar e executar uma aula Isto eacute haacute dificuldade tanto para se relacionar o conteuacutedo teoacuterico agraves praacuteticas em sala de aula quanto para conseguir lidar com os saberes escolares que vatildeo muito aleacutem da sala de aula

Algumas hipoacuteteses surgem agrave medida em que se observa o estaacutegio do ponto de vista administrativo-pedagoacutegico como adificuldade de execuccedilatildeo da disciplina conforme prevista no PPC de Letras (2009) UFMT campus Cuiabaacute em relaccedilatildeo agrave quantidade de documentos que precisam ser preenchidos a dificuldade em encontrar escolas parceiras a questatildeo do horaacuterio para execuccedilatildeo da regecircncia entre outras

Assim neste artigo refletiremos sobre as dificuldades encontradas na execuccedilatildeo das disciplinas de Estaacutegio no curso de licenciatura em Letras Portuguecircs e Literatura Eacute importante frisar que nossas ponderaccedilotildees partem do ponto de vista administrativo-pedagoacutegico e deste lugar mostraremos alguns encaminhamentos que possam amenizar as dificuldades

21 O Estaacutegio Supervisionado

O Estaacutegio Supervisionado eacute definido no PPC de Letras (2009 p 151) como um ldquocomponente curricular obrigatoacuterio do curso de Letras e se caracteriza pelo exerciacutecio preacute-profissional do aluno junto a instituiccedilotildees credenciadas da rede puacuteblica ou da rede particular de ensinordquo Eacute uma disciplina que ocorre a partir da metade do curso de Letras em duas etapas dois estaacutegios supervisionados em Liacutengua Portuguesa e dois em

1 Mesmo havendo uma CNE mais recente a respeito do Estaacutegio Supervisionado nas Licenciaturas o PPC de LetrasUFMT data de 2009 utilizando entatildeo as legislaccedilotildees da eacutepoca de sua aprovaccedilatildeo

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Literatura jaacute que a licenciatura da qual tratamos habilita os discentes para atuarem no campo educacional de liacutengua materna e literaturas portuguesa e brasileira As 100 horas correspondentes a cada estaacutegio abarcam orientaccedilatildeo estudo planejamento e atuaccedilatildeo na escola nos niacuteveis de ensino fundamental (Estaacutegios I) e meacutedio (Estaacutegios II)

Segundo o PPC haacute duas formas de se realizar o estaacutegio sendo a primeira

estaacutegio efetuado nas escolas de ensino fundamental e meacutedio do municiacutepio de Cuiabaacute ou Vaacuterzea Grande em que o aluno seraacute inserido dentro da instituiccedilatildeo educacional com vistas a um contato com a realidade escolar agrave participaccedilatildeo efetiva na vida da comunidade escolar em seus diversos aspectos quer sejam pedagoacutegicos teacutecnicos eou sociais Na segunda forma o estaacutegio curricular estaacute vinculado ao desenvolvimento de projetos para a comunidade nas diversas aacutereas que compotildeem as habilitaccedilotildees correspondentes Nestes casos o estaacutegio ocorre na proacutepria UFMT ou em local oferecido pela comunidade solicitante assumindo a forma de atividades de extensatildeo eou pesquisa (PPC 2009 p 150-1)

Como disciplina apresenta os objetivos

I Aproximar a teoria e praacutetica conformando exerciacutecio de anaacutelise aplicaccedilatildeo e criacutetica dos pressupostos teoacutericos e instrumentos metodoloacutegicos que caracterizam a formaccedilatildeo do profissional de Letras II Permitir o contato direto do estagiaacuterio com a realidade educacional brasileira sua histoacuteria suas caracteriacutesticas seus problemas e seus desafios III Confrontar o aluno com situaccedilotildees de exerciacutecio preacute-profissional que lhe permitam a exploraccedilatildeo e a experimentaccedilatildeo das estrateacutegias de transformaccedilatildeo e de melhoria de suas competecircncias e habilidades IV Provar a realizaccedilatildeo das competecircncias e habilidades exigidas na praacutetica profissional e exigiacuteveis dos professores especialmente quanto agrave regecircncia V Formar no estagiaacuterio a disposiccedilatildeo para a pesquisa bibliograacutefica e de campo como estrateacutegias pedagoacutegicas de resoluccedilatildeo de problemas VI Estimular o respeito agrave diferenccedila e o apreccedilo agrave toleracircncia e problematizar accedilotildees a partir da situaccedilatildeo concreta do estagiaacuterio em sala de aula VII Propiciar o desenvolvimento pelo aluno do conjunto de competecircncias e habilidades que venham a caracterizaacute-lo em seu papel de agente da transformaccedilatildeo social (PPC 2009 p 152)

Em termos teoacutericos o estaacutegio eacute entendido por noacutes como uma praacutetica de letramento acadecircmico-profissional Concordamos com Tardiff e Lessard (2008) quando estes apontam que o estaacutegio se constitui em diversas praacuteticas de letramento a partir de um trabalho coletivo interativo voltado para aprendizagens situadas forjado cotidianamente pela possibilidade da ressignificaccedilatildeo profissional

Os teoacutericos do letramento como Barton Hamilton e Ivanic (2000) definem-no como um conjunto de praacuteticas sociais historicamente situadas que envolvem a linguagem em diversas modalidades Os agentes de letramento neste contexto satildeo os alunos-estagiaacuterios que ao vivenciarem na escola as dinacircmicas da atividade docente experienciam as relaccedilotildees assimeacutetricas de trabalho como certos atravessamentos da coordenaccedilatildeo escolar

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sobre o planejamento pedagoacutegico do professor assim como as situaccedilotildees imprevisiacuteveis que atravessam o planejamento docente aulas encurtadas por conta de ensaios para festas falta de aacutegua ou energia eleacutetrica ou mesmo de materiais para o trabalho docente

Todos esses fatores colaboram para que as atividades de estaacutegio sejam mais significativas tanto positiva quanto negativamente que as outras atividades pedagoacutegicas do curso de graduaccedilatildeo Os docentes em formaccedilatildeo ao vivenciarem situaccedilotildees como as mencionadas anteriormente durante o estaacutegio precisam se readequar replanejar de maneira raacutepida e eficiente para conseguirem cumprir carga horaacuteria por exemplo Haacute durante esse percurso ldquonovos modelos de conhecer novos modelos de ensinar e portanto novos modelos de formaccedilatildeo de professoresrdquo (SILVA e ASSIS 2010 p 176)

A construccedilatildeo dos sentidos do que eacute se tornar professor somada agraves poliacuteticas puacuteblicas ao curriacuteculo pedagoacutegico agrave realidade escolar e agrave inexperiecircncia profissional perpassam as atividades de estaacutegio de maneira indeleacutevel A experiecircncia de planejamento de aula escolha das metodologias do vieacutes teoacuterico para apresentaccedilatildeo dos conteuacutedos textos e atividades comeccedilam a compor a identidade docente e a estas se somam a responsabilidade por estes saberes e como construiacute-los com o grupo de alunos Por este processo perpassam as poliacuteticas puacuteblicas e o curriacuteculo escolar como realidades que precisam ser incorporadas agraves praacuteticas do Estaacutegio

Outro ponto que torna o estaacutegio supervisionado um momento excepcional da construccedilatildeo docente eacute a contraposiccedilatildeo acadecircmica entre a universidade e a escola puacuteblica O cenaacuterio educacional puacuteblico ainda mostra-se preso a estruturas arcaicas e a saberes linguiacutesticos ultrapassados sem considerar a natildeo presenccedila das tecnologias na sala de aula o que dificulta algumas praacuteticas docentes pautadas nas miacutedias O aluno-estagiaacuterio tem por sua vez que elaborar sua intervenccedilatildeo considerando natildeo apenas o seu desejo de construir saberes pautados na poacutes-modernidade mas tambeacutem adequados agrave realidade e dinacircmicas escolares

O compromisso da Universidade neste quesito talvez seja um dos grandes obstaacuteculos ao sucesso do estaacutegio supervisionado na escola puacuteblica Haacute na realidade em que me espelho um generalizado desacircnimo da escola puacuteblica em receber os alunos-estagiaacuterios Isso se deve em parte agrave Universidade e natildeo aos alunos ou agrave escola Explicando melhor os alunos-estagiaacuterios vatildeo agrave escola desenvolvem seus projetos individuais utilizam o tempo e o espaccedilo da comunidade escolar poreacutem ao terminarem sua experiecircncia vatildeo embora Nada deixam agrave escola a troca natildeo eacute favoraacutevel para a escola Entendemos que os conhecimentos construiacutedos durante a regecircncia (10 a 20 horas) podem ser estaacuteveis e duradouros poreacutem ainda natildeo satildeo suficientes para configurar uma boa oportunidade para a escola puacuteblica

Talvez o fato de haver um certo descontentamento seja devido ao lugar entre dois mundos em que a disciplina de estaacutegio se encontra tanto na escola na Universidade para os alunos-estagiaacuterios e professores-orientadores Para Reichmann (2015 p 29) a disciplina acadecircmica de estaacutegio apresenta ldquouma especificidade singular pois estaacute situada no mundo da academia mas se estende e abrange o mundo do trabalho constitui um lsquoentrelugarrsquo socioprofissional em movimento lsquona fronteirarsquordquo

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O entrelugar eacute ocupado pelo aluno-estagiaacuterio que nos bancos da universidade eacute aluno na sala de aula da escola puacuteblica eacute professor e no planejamento da disciplina eacute estagiaacuterio Natildeo haacute uma uacutenica identidade para o sujeito aluno-estagiaacuterio e mais importante para a sua construccedilatildeo como docente para a identidade do professor

Compactuamos com Noacutevoa (1995 p 16) quando este afirma que ldquoa identidade natildeo eacute um dado adquirido natildeo eacute uma propriedade natildeo eacute um produto A identidade eacute um lugar de lutas e de conflitos eacute um espaccedilo de construccedilatildeo de maneiras de ser e de estar na profissatildeordquo E esse processo identitaacuterio comeccedila a se delinear durante a disciplina de estaacutegio supervisionado quando o aluno se torna por alguns momentos o professor e depois volta a ser aluno natildeo mais o mesmo mas modificado construiacutedo e desconstruiacutedo pela experiecircncia didaacutetica pelos saberes escolares pela interaccedilatildeo com e na sala de aula

3 Retrato do Estaacutegio normas prescriccedilotildees e dificuldades

Como disciplina acadecircmica o estaacutegio supervisionado apresenta um roteiro de normas resoluccedilotildees orientaccedilotildees em suma documentos oficiais que modelam a disci-plina dos quais o aluno-estagiaacuterio precisa saber conhecer estudar Esses documentos abrangem tanto a educaccedilatildeo em niacutevel nacional como a Lei 9394 de Diretrizes e Bases para a Educaccedilatildeo Nacional a Lei 11788 que trata dos estaacutegios em territoacuterio nacional a Resoluccedilatildeo CNE01 sobre as diretrizes curriculares nacionais para a formaccedilatildeo de professo-res a Resoluccedilatildeo CNE02 que trata dos cursos de licenciatura no Brasil sua duraccedilatildeo e car-ga horaacuteria os documentos nacionais como os Paracircmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Linguagens estadual como as Orientaccedilotildees Curriculares do Estado de Mato GrossoLinguagens e acadecircmico em documentos universitaacuterios como a Resoluccedilatildeo CONSEPE nordm 117 (2009) que dispotildee sobre o Regulamento Geral de Estaacutegio da Universidade Federal de Mato Grosso o Projeto Pedagoacutegico de Curso e o Regulamento do Estaacutegio Supervisionado

Em geral todos esses documentos versam sobre a necessidade de a disciplina de estaacutegio supervisionado estar articulada com o restante do curso de Letras no caso e a dimensatildeo praacutetica que transcende o estaacutegio e promove a articulaccedilatildeo das diferentes praacuteticas numa perspectiva interdisciplinar

No entanto as prescriccedilotildees incidem sobre o estaacutegio supervisionado e seus envolvidos gerando acima de tudo burocracia e trabalho administrativo Aleacutem de lidar com os docu-mentos oficiais o professor-orientador de estaacutegio e o aluno ainda precisam preencher uma seacuterie de formulaacuterios para atuar na escola receptora do processo de estaacutegio Por exemplo a composiccedilatildeo do cumprimento da carga horaacuteria de Estaacutegio Supervisionado de Ensino na ins-tituiccedilatildeo concedente deve ser feita pelo preenchimento de uma Ficha Geral de Estaacutegio com indicaccedilatildeo da data horaacuterio e tema da atividade desenvolvida sendo que estas devem estar assinadas pelo profissional responsaacutevel e ser carimbadas e assinadas pelo diretor da insti-tuiccedilatildeo concedente do estaacutegio Para a coordenaccedilatildeo de curso aleacutem de acompanhar e orien-tar a documentaccedilatildeo tambeacutem eacute exigida a produccedilatildeo de ofiacutecios para cada aluno-estagiaacuterio aleacutem dos Termos de Convecircnio ou Termos de Parceria Seguro do discente etc

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Em termos gerais o PPC de Letras apresenta a divisatildeo das tarefas das partes envolvidas no Estaacutegio como sendo

Art 09 - As atividades de Estaacutegio Supervisionado de Ensino satildeo Coordenadas pela Coordenaccedilatildeo do Curso e pelos professores-supervisores sect 1ordm Compete agrave Coordenaccedilatildeo do Curso de Letras I Indicar os professores-supervisores de Estaacutegio Supervisionado de ensino II Definir o horaacuterio e o local das sessotildees semanais de supervisatildeo sect 2ordm Compete ao Professor-supervisor de estaacutegio I Imprimir e distribuir as cartas de apresentaccedilatildeo dos estagiaacuterios II Credenciar as Instituiccedilotildees concedentes de Estaacutegio III Arquivar os documentos relativos ao Estaacutegio IV Encaminhar agrave Coordenaccedilatildeo do Curso de Letras relatoacuterio anual das atividades de estaacutegio desenvolvidas pelos alunos de Letras V Elaborar com o supervisionado o plano de trabalho seus conteuacutedos suas etapas de desenvolvimento e calendaacuterio de atividades observados os prazos designados no calendaacuterio de Estaacutegio e os horaacuterios definidos pela Coordenaccedilatildeo do Curso VI Atender os seus supervisionados nas sessotildees semanais de supervisatildeo registrando anotaccedilotildees sobre o desenvolvimento do trabalho VII Orientar e acompanhar a elaboraccedilatildeo e a execuccedilatildeo do Projeto de intervenccedilatildeo sob sua supervisatildeo VIII Orientar e acompanhar a elaboraccedilatildeo do Relatoacuterio de Estaacutegio sob sua supervisatildeo IX Auxiliar o aluno na preparaccedilatildeo da intervenccedilatildeo X Avaliar as atividades e atribuir notas aos alunos sob sua supervisatildeo (PPC 2009 p 155-56 grifo nosso)

Em termos locais as disciplinas de estaacutegio supervisionado estatildeo localizadas a partir da segunda metade do curso e suas ementas abordam a atividade de leitura na escola o trabalho com o texto ndash escolha compreensatildeo vocabulaacuterio e interpretaccedilatildeo a leitura no ensino fundamental a teoria da literatura e a leitura na escola a atividade de produccedilatildeo de texto na escola a finalidade a proposta a correccedilatildeo a atividade de anaacutelise linguiacutestica a epilinguiacutestica e a metalinguiacutestica observaccedilatildeo de aulas de leitura no ciclo fundamental as atividades docentes planejamento execuccedilatildeo e avaliaccedilatildeo preparo de plano de aula e material didaacutetico e por fim o periacuteodo de Observaccedilatildeo Regecircncia e Relatoacuterio De acordo com as poliacuteticas de estaacutegio do PPC de Letras as atividades de estaacutegio para contemplarem a ementa devem ser cumpridas a) na instituiccedilatildeo concedente de estaacutegio em atividades de observaccedilatildeo participaccedilatildeo e regecircncia b) nas sessotildees semanais de supervisatildeo c) em atividades extraclasse relacionadas agrave preparaccedilatildeo da intervenccedilatildeo e agrave anaacutelise de seus resultados d) em outras atividades relacionadas ao Estaacutegio

Esse modelo de estaacutegio segundo o qual o curso de Letras hoje estaacute estruturado reserva para o final do curso de forma concentrada a grande parte das atividades de praacutetica docente sendo que nestas o aluno-estagiaacuterio precisaraacute entrelaccedilar a teoria e a praacutetica construiacutedas durante a sua formaccedilatildeo no curso de licenciatura Este entrelaccedilamento requer do aluno-estagiaacuterio certa maturidade intelectual e profissional para entender o noacute e o desatar do noacute que se desenreda nessa relaccedilatildeo Eacute interessante apontar que o aluno sujeito deste processo encontra-se no momento em que o caraacuteter profissionalizante da docecircncia vem sendo questionado tentando-se ldquoreformular e renovar os fundamentos

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epistemoloacutegicos do ofiacutecio de professor e de educador assim como da formaccedilatildeo para o magisteacuteriordquo (TARDIFF 2014 p 250)

Neste sentido eacute importante ressaltar a relaccedilatildeo entre os saberes docentes construiacutedos nos cursos de licenciatura e a atividade praacutetica de docecircncia Tardiff (2014) questiona

que relaccedilotildees deveriam existir entre os saberes profissionais e os conhecimentos universitaacuterios e entre os professores do ensino baacutesico e os professores universitaacuterios (pesquisadores ou formadores) no que diz respeito agrave profissionalizaccedilatildeo do ensino e agrave formaccedilatildeo de professores (TARDIFF 2014 p 246)

Dos pontos de vista administrativo e pedagoacutegico o arranjo entre matriz curricular ementa e horaacuterios de disciplina pode provocar a fragmentaccedilatildeo dos saberes da disciplina de estaacutegio supervisionado da forma como estaacute atualmente colocada em Letras visto que natildeo haacute um entrelaccedilamento entre os conteuacutedos desenvolvidos nas disciplinas O foco do estaacutegio que eacute a observaccedilatildeo e praacutetica pedagoacutegica muitas vezes pode se perder dada a quantidade de documentaccedilatildeo necessaacuteria agrave sua realizaccedilatildeo e estudo Aleacutem disso natildeo haacute um rol de escolas conveniadas com a universidade para que se faccedila o contato e a proposta de estaacutegio Os professores deste componente curricular e a coordenaccedilatildeo de ensino precisam buscar as escolas oferecer a proposta e se sujeitar aos horaacuterios e condiccedilotildees ofertadas

Natildeo eacute uma negociaccedilatildeo faacutecil e suave Haacute diversos momentos de tensatildeo principalmente em relaccedilatildeo ao horaacuterio da realizaccedilatildeo do estaacutegio visto que prevemos estaacutegio supervisionado no ensino fundamental e oferecemos o curso noturno de Letras Assim atualmente natildeo haacute escolas de ensino fundamental no periacuteodo noturno restando ao aluno-estagiaacuterio realizar sua observaccedilatildeo e regecircncia no contraturno durante o qual muitas vezes este aluno exerce atividade profissional remunerada Por diversos momentos o professor-orientador do estaacutegio precisa ir a diversas escolas de ensino baacutesico em Cuiabaacute para acompanhar as duplas de estaacutegio em horaacuterios que natildeo correspondem ao horaacuterio da sua disciplina na grade curricular do curso de Letras

Observando essas dificuldades o Colegiado do Curso de Letras elaborou um documento ainda na forma de minuta com sugestotildees a respeito do Estaacutegio supervisionado Este documento aborda a questatildeo pedagoacutegica poreacutem vai aleacutem fornecendo sugestotildees que podem amenizar as dificuldades e otimizar as relaccedilotildees de tempo e carga horaacuteria

4 Alguns apontamentos para um novo percurso

Em relaccedilatildeo agraves dificuldades apontadas e vivenciadas pelo grupo de docentes e coordenaccedilatildeo de curso o Colegiado dos Cursos de Letras a partir de diversas reuniotildees desde 2014 vem elaborando uma proposta com uma seacuterie de recomendaccedilotildees para que fossem incorporadas nas reformulaccedilotildees dos PPC dos cursos envolvidos (Letras e Literatura Letras e Inglecircs Letras e Francecircs e Letras e Espanhol) sobre o Componente Curricular ldquoEstaacutegio Supervisionadordquo

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Entre essas recomendaccedilotildees parte-se do entendimento de que o componente curricular ldquoEstaacutegio Supervisionadordquo deva ser tratado como disciplina podendo ser criada subturma em caso de nuacutemero de alunos superior a 15 alunos o que possibilitaria ao professor-orientador de Estaacutegio melhores condiccedilotildees de acompanhamento de seus alunos-estagiaacuterios

Sobre a relaccedilatildeo com a escola acolhedora do Estaacutegio a proposta do Colegiado em consonacircncia com a Resoluccedilatildeo CNE nordm 02 de 01052015 eacute a de que o Estaacutegio Supervisionado seja realizado em direta colaboraccedilatildeo com as instituiccedilotildees credenciadas da Educaccedilatildeo Baacutesica e que esse compromisso seja explicitado no texto do PPC e no Regulamento de Estaacutegio Supervisionado do Curso de Letras Ainda sugere-se que os Cursos de Letras desenvolvam projetos de formaccedilatildeo continuada junto aos professores das instituiccedilotildees de educaccedilatildeo baacutesica acolhedoras como contrapartida agrave realizaccedilatildeo do Estaacutegio Supervisionado nas referidas escolas

Para atender a essa demanda e tentar minimizar uma das dificuldades sugere-se tambeacutem que seja feito um cadastramento de escolas interessadas em estabelecer parceria na realizaccedilatildeo do Estaacutegio Supervisionado dos alunos dos Cursos de Letras da UFMT e dos professores supervisores interessados em acompanhar os estagiaacuterios dos Cursos de Letras em suas escolas

Apoacutes o cadastramento das escolas os coordenadores dos Cursos de Letras e os professores responsaacuteveis pelas disciplinas de Estaacutegio Supervisionado podem convidar os Coordenadores das instituiccedilotildees cadastradas para lhes apresentar o novo PPC e explicar como o Estaacutegio Supervisionado seria desenvolvido Ainda como sugestatildeo poder-se-ia estabelecer criteacuterios para a escolha das escolas parceiras tais como localizaccedilatildeo e nuacutemero de salas de modo a permitir aos alunos maior agilidade no deslocamento e permanecircncia durante todo o estaacutegio em uma mesma instituiccedilatildeo

Em relaccedilatildeo ao aporte pedagoacutegico do estaacutegio supervisionado o Colegiado dos Cursos de Letras sugere que o PPC insira a possibilidade de desenvolvimento de projetos interdisciplinares nas praacuteticas de uma das disciplinas de Estaacutegio Supervisionado preferencialmente no uacuteltimo semestre do curso quando o aluno jaacute estiver mais familiarizado com o contexto escolar e com diferentes abordagens de ensino de liacutenguas Nesse caso faz-se necessaacuterio explicar no PCC a(s) concepccedilatildeo (otildees) de interdisciplinaridade que iraacute (atildeo) orientar os projetos

Aconselha-se ainda que a observaccedilatildeo do contexto escolar seja feita no Estaacutegio Supervisionado I em tronco comum agraves duas liacutenguas Jaacute os projetos interdisciplinares podem ser desenvolvidos nas disciplinas de Estaacutegio Supervisionado IV das duas liacutenguas de forma colaborativa com alunos da mesma escola

Em relaccedilatildeo agrave divisatildeo das horas das atividades que compotildeem as disciplinas de Estaacutegio Supervisionado o Colegiado sugeriu que as 100 horas do Estaacutegio fossem divididas em 10 horas para Observaccedilatildeo 20 horas para Planejamento 20 horas para Elaboraccedilatildeo de material didaacutetico 30 horas para Regecircncia e 20 horas para Avaliaccedilatildeo sendo essa divisatildeo baseada nas experiecircncias anteriores

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Sobre a documentaccedilatildeo em atendimento ao art 17 da Resoluccedilatildeo CONSEPE nordm 117 de 11 de agosto de 2009 o Colegiado sugere que seja inserido no PPC que os planos de estaacutegio sejam submetidos ao Colegiado dos Cursos de Letras para anaacutelise e aprovaccedilatildeo Ainda sugere-se que seja utilizada a nomenclatura ldquoprofessor-orientadorrdquo para o professor ministrante da disciplina de Estaacutegio Supervisionado e ldquoprofessor-supervisorrdquo para o professor da escola que recebe e acompanha os alunos estagiaacuterios na escola

5 Consideraccedilotildees Finais

As atividades do Estaacutegio Supervisionado satildeo fundamentais para a formaccedilatildeo docente dos licenciados em Letras No sentido de fortalecer esse componente curricular eacute necessaacuterio fortalecer a relaccedilatildeo entre a escola de educaccedilatildeo baacutesica e a universidade No entanto mais que isso eacute necessaacuterio fortalecer o professor-orientador do estaacutegio otimizando suas atribuiccedilotildees burocraacuteticas para que ele possa desenvolver com plenitude a orientaccedilatildeo pedagoacutegica aos alunos-estagiaacuterios Portanto eacute fundamental que haja uma aproximaccedilatildeo das relaccedilotildees entre professores alunos coordenaccedilatildeo de curso e oacutergatildeo colegiado para que o Estaacutegio se desenvolva de maneira integrada entre estas instacircncias

Observando o contexto de dificuldades este artigo apresentou algumas propostas que os Colegiados dos Cursos de Letras ofereceram no momento de reformulaccedilatildeo dos cursos de graduaccedilatildeo na tentativa de melhorar o andamento da disciplina de estaacutegio supervisionado para os sujeitos envolvidos dentro e fora da universidade

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PROJETO PEDAGOacuteGICO DE CURSO ndash LETRAS PORTUGUEcircS E LITERATURA Disponiacutevel em httpsistemasufmtbrufmtppcPlanoPedagogicoDownload117 Acesso em marccedilo de 2017

REICHMANN Carla L Letras e letramentos ndash escrita situada identidade e trabalho docente no estaacutegio supervisionado Campinas SP Mercado de Letras 2015

SILVA Jane Q e ASSIS Juliana A ldquoGecircneros na formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo do professor de liacutengua materna o que ainda eacute preciso dizer e fazer a propoacutesito dessa relaccedilatildeordquo In SERRANI Silvana (Orgs) Letramento discurso e trabalho docente Vinhedo Belo Horizonte 2010 p 172-181

TARDIFF Maurice Saberes docentes e formaccedilatildeo profissional Petroacutepolis RJ Editora Vozes 2014

______ LESSARD Claude O trabalho docente elementos para uma teoria de docecircncia como profissatildeo de interaccedilotildees humanas Petroacutepolis RJ Editora Vozes 2008

Recebido em 30 de abril de 2017

Aceito em 27 de junho de 2017

Flaacutevia Girardo Botelho Borges

Eacute doutora em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Pernambuco coordenadora do PIBID Letras - Portuguecircs e professora do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Estudos da Linguagem do Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso Tem experiecircncia na aacuterea de Linguiacutestica atuando principalmente nos seguintes temas letramentos linguagem e tecnologia formaccedilatildeo de professores portuguecircs como liacutengua adicional e morfossintaxe flavia2bgmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Estaacutegio Supervisionado em Literatura um relato de experiecircncia na UTFPR ndash CuritibaSupervised Literature Teaching Practicum an experience

report from UTFPR ndash Curitiba

Praacutectica Supervisada en Literatura um relato de experiencia en la UTFPR ndash Curitiba

Mirelle Mussi Giri Universidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute

Alice Atsuko MatsudaUniversidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute

Resumo

Neste artigo relatamos a partir de um caso praacutetico o processo formativo do professor de literatura em liacutengua portuguesa no curso de Licenciatura em Letras PortuguecircsInglecircs da Universidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute (UTFPR) campus Curitiba Para tanto descrevemos a partir de documentos oficiais como se daacute a formaccedilatildeo do professor de literatura na disciplina de Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio em Liacutengua Portuguesa II apresentamos brevemente as concepccedilotildees teoacutericas baacutesicas sobre as quais essa formaccedilatildeo se constroacutei e relatamos o estaacutegio realizado por uma dupla de discentes De modo a atingir esses objetivos adotamos para a elaboraccedilatildeo deste artigo de natureza descritiva a pesquisa bibliograacutefica e documental Como resultado verificamos que a disciplina mescla questotildees conceituais e praacuteticas que privilegiam uma formaccedilatildeo criacutetico-reflexiva a partir da leitura dirigida de textos teoacutericos e documentos oficiais no que diz respeito ao ensino de literatura Observamos que o processo formativo possibilitado aos discentes preocupa-se em dar uma base de conhecimento cidadatilde e que embora essa formaccedilatildeo docente envolva contextos adversos oportuniza desenvolvimento das competecircncias e habilidades profissionais necessaacuterias ao futuro docente exercendo seu papel como educador e na formaccedilatildeo cidadatilde dos discentes colaborando na transformaccedilatildeo da sociedade para que seja justa e igualitaacuteriaPalavras-chave Formaccedilatildeo docente ensino de literatura estaacutegio supervisionado

Abstract

In this article we report based on a practical case how the pre-service Portuguese literature teacher education is developed in the undergraduate Modern Languages major of the Federal University of Technology (UTFPR) campus Curitiba In order to do so we describe based on official documents how the pre-service Portuguese literature teacher education happens in the

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course Supervised Teaching Practicum in Portuguese Language II we briefly present the basic theoretical conceptions on which this practicum is built and report the practical experience had by a pair of students To achieve these goals we did a bibliographic and documentary research to write this descriptive article As a result we observed that the course combines theoretical and practical concepts that favor a critical-reflexive education based on the reading of theoretical texts and official documents regarding Portuguese literature teaching We observed that the training process students underwent is concerned with providing citizen knowledge and that although this teacher education involves adverse contexts it allows the development of professional skills necessary for the future teacher to exercise his role as an educator for citizenzhip collaborating in the transformation of society so that it becomes fair and egalitarianKeywords Teacher education literature teaching supervised teaching practicum

Resumen

En este artiacuteculo reportamos coacutemo se desarrolla a partir de un caso praacutectico el proceso de formacioacuten del profesor de literatura en lengua portuguesa en la Licenciatura en Lengua Moderna PortugueacutesIngleacutes de la Universidad Tecnoloacutegica Federal de Paranaacute (UTFPR) campus Curitiba Para tanto describimos a partir de documentos oficiales coacutemo es la formacioacuten de un profesor de literatura en la asignatura de praacutectica supervisada en Lengua Portuguesa II presentamos brevemente los conceptos teoacutericos baacutesicos sobre los cuales esta formacioacuten se construye y reportamos la praacutectica cumplida por dos estudiantes Para lograr estos objetivos hemos adoptado para la elaboracioacuten de este artiacuteculo de naturaleza descriptiva la investigacioacuten bibliograacutefica y documental Como resultado observamos que la disciplina mezcla aspectos conceptuales y praacutecticos que privilegian una formacioacuten criacutetico-reflexiva a partir de la lectura dirigida de textos teoacutericos y documentos oficiales con respecto a la ensentildeanza de la literatura Se observa que el proceso formativo posibilitado a los discentes se preocupa en dar una base de conocimiento ciudadana y que aunque esa formacioacuten docente involucra contextos adversos oportuniza el desarrollo de las competencias y habilidades profesionales necesarias para el futuro docente ejerciendo su papel como educador y en la formacioacuten ciudadana de los discentes colaborando en la transformacioacuten de la sociedad para que sea justa e igualitariaPalabras clave La formacioacuten del profesorado ensentildeanza de la literatura praacutecticas supervisadas

1 Introduccedilatildeo

As sociedades atuais vivenciam uma aproximaccedilatildeo em niacuteveis sem precedentes em virtude de um crescente processo de diluiccedilatildeo de fronteiras conhecido por globalizaccedilatildeo As novas dinacircmicas globais dela resultantes estimulam trocas intercacircmbios e fluxos de toda sorte cujos impactos satildeo percebidos natildeo somente na economia e na poliacutetica mas tambeacutem no modo de vida e na cultura das pessoas provocando profundas mudanccedilas em todos os aspectos da vida contemporacircnea Como resultado as sociedades se tornam mais criacuteticas e exigentes diante da imensa variedade e disponibilidade de informaccedilotildees e conhecimento que circulam Isso demanda que elas se adequem a essa nova realidade de modo a assegurar sua relevacircncia e distinccedilatildeo em um ambiente cada vez mais competitivo e integrado (LIMA FILHO 2004 ARCHANJO 2015)

Similarmente os professores tambeacutem precisam se adequar especialmente diante da ampliaccedilatildeo do acesso dos sujeitos agrave informaccedilatildeo e agrave participaccedilatildeo na era do conhecimento

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globalizado Faz-se necessaacuterio portanto que o professor em formaccedilatildeo desenvolva novas competecircncias domine novos saberes revista-se de novas responsabilidades sociais e tome consciecircncia sobre o mundo em que estaacute inserido capacitando-se para trabalhar em contextos dinacircmicos e desafiadores dessa nova realidade (VOLPI 2008ARCHANJO 2015)

Considerando que a Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Brasileira (LDB) publicada sob o nordm 9394 em 20 de dezembro de 1996 estabelece que a finalidade da educaccedilatildeo baacutesica deve ser a de promover a plena formaccedilatildeo do educando para que ele possa exercer sua cidadania e progredir no trabalho e nos estudos o processo formativo do professor pautado a partir dessa premissa deve ser desenvolver de forma criacutetica e reflexiva para tornaacute-lo elemento estrateacutegico de estiacutemulo agrave formaccedilatildeo de seus alunos (BRASIL 1996 VOLPI 2008)

O objetivo eacute formar o professor para que ele consiga enfrentar os desafios das raacutepidas transformaccedilotildees sociais e do mercado de trabalho ser capaz de elaborar novas estrateacutegias buscar novos rumos para a compreensatildeo e a resoluccedilatildeo dos problemas com que porventura se depare em sua docecircncia como problemas de evasatildeo indisciplina desinteresse pelos estudos e preparar seus alunos para exercer direitos e deveres desenvolver consciecircncia criacutetica e tornaacute-los instrumento de transformaccedilatildeo social (VOLPI 2008)

Essa tarefa eacute incumbida inicialmente agraves instituiccedilotildees de ensino superior responsaacuteveis por dar ao futuro docente o aparato para que ele consiga articular os conhecimentos teoacutericos baacutesicos agraves atividades praacuteticas e pedagoacutegicas Essas instituiccedilotildees tecircm autonomia para elaborar seus proacuteprios curriacuteculos contanto que respeitem os princiacutepios fundamentos e procedimentos que orientam os processos formativos do professor no paiacutes (BRASIL 1996 BRASIL 2001)

A partir desse contexto objetivamos relatar neste artigo como se desenvolve com base em um caso praacutetico a formaccedilatildeo do professor de literatura em liacutengua portuguesa na disciplina Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio em Liacutengua Portuguesa II do curso de Licenciatura em Letras PortuguecircsInglecircs da Universidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute campus Curitiba Para tanto propomos como objetivos especiacuteficos descrever a partir de documentos oficiais como se daacute a formaccedilatildeo na disciplina Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio em Liacutengua Portuguesa II apresentar brevemente as concepccedilotildees teoacutericas baacutesicas sobre as quais essa formaccedilatildeo se constroacutei e apresentar alguns dados do estaacutegio realizado por uma dupla de discentes regularmente matriculadas na disciplina no segundo semestre de 2015

Com o intuito de atingir os objetivos aqui traccedilados adotamos para a elaboraccedilatildeo deste artigo de natureza descritiva a pesquisa bibliograacutefica e documental

2 O processo formativo do professor de literatura na UTFPR ndash Curitiba

O processo formativo do professor de literatura em liacutengua portuguesa na Licenciatura em Letras PortuguecircsInglecircs da UTFPR se pauta no disposto em seu Projeto Pedagoacutegico (2011) que revela que o uso da liacutengua portuguesa pelos estudantes brasileiros eacute fonte de grande preocupaccedilatildeo pela sua capacidade insatisfatoacuteria de ler e interpretar textos

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simples (UTFPR 2011) ldquoNo Pisa 2015 5099 dos estudantes ficaram abaixo do niacutevel 21 de proficiecircncia A meacutedia de desempenho foi de 407 pontos Eacute a segunda queda consecutiva na aacuterea de leitura desde 2009rdquo (MORENO 2016 p 1) Para reverter esse quadro os cursos de Letras em consonacircncia com a LDB devem promover uma formaccedilatildeo qualificada e comprometida com a transformaccedilatildeo da realidade e do sistema educacional do paiacutes

O Projeto Pedagoacutegico estabelece as habilidades e competecircncias baacutesicas necessaacuterias ao futuro professor as quais devem ser colocadas em praacutetica no que diz respeito ao ensino de literatura em liacutengua portuguesa na disciplina Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio em Liacutengua Portuguesa II Seu objetivo geral eacute complementar o ensino e a aprendizagem adaptando o estudante psicoloacutegica e socialmente agrave sua futura atividade profissional bem como seu treinamento para facilitar sua futura absorccedilatildeo pelo mercado de trabalho e a orientaccedilatildeo na escolha de sua especializaccedilatildeo profissional

Em consonacircncia com esse objetivo a disciplina ofertada no sexto periacuteodo da licenciatura conta com 135h de carga total de atividades praacuteticas em que o discente frequenta 64h de aulas teoacutericas 59h realiza leituras anaacutelises e discussotildees de textos basilares de fundamentaccedilatildeo teoacuterica para o ensino de literatura elabora projeto de estaacutegio quatro planos de aula e relatoacuterio de estaacutegio realiza 8h de observaccedilatildeo e ministra 4h de regecircncia desenvolvida em uma instituiccedilatildeo de ensino baacutesico no semestre Prioriza tambeacutem o estudo e a reflexatildeo sobre textos teoacutericos e documentos que regem a educaccedilatildeo em acircmbitos estadual e nacional Esse estudo cotejado com atividades praacuteticas objetiva construir o conhecimento sobre o processo de ensinoaprendizagem de forma contextualizada e reflexiva (UTFPR 2011)

Para tanto a disciplina eacute dividida em duas fases Primeiramente leitura e discussatildeo em sala de aula de textos teoacutericos ndash ldquoA literatura e a formaccedilatildeo do homemrdquo (CANDIDO 1972) ldquoO direito agrave literaturardquo (CANDIDO 1995) ldquoTeoria da esteacutetica da recepccedilatildeordquo (ZAPPONE 2005) Meacutetodo recepcional (AGUIAR BORDINI 1993) e ldquoTecendo a aula de portuguecircsrdquo (MATSUDA 2008) ndash que fundamentam posteriormente a segunda fase de aplicaccedilatildeo do conhecimento construiacutedo nas escolas formadoras (UTFPR 2011)

Quanto ao trabalho com a leitura primeiro toacutepico de discussatildeo as Diretrizes Curriculares da Educaccedilatildeo Baacutesica do Paranaacute estabelecem que ela deve ser dialoacutegica e interlocutiva ou seja o leitor deve dialogar com o texto o autor e as circunstacircncias de produccedilatildeo e trazer o contexto da leitura para a atualidade Essa dinacircmica promoveria a construccedilatildeo de um leitor participativo que infere e interveacutem tornando-se coautor e apto a ler textos mais complexos O papel do professor nesse contexto eacute o de mediador que instiga o aluno e o auxilia durante a sua interpretaccedilatildeo (PARANAacute 2008)

O segundo toacutepico trata da noccedilatildeo de literatura entendida por Antonio Candido como um direito baacutesico que natildeo deve ser negado a ningueacutem Segundo ele a literatura

1 Estudantes com baixo desempenho satildeo aqueles que natildeo alcanccedilam o niacutevel 2 considerado o miacutenimo aceitaacutevel deproficiecircncia em Leitura No niacutevel 2 pede-se ao estudante que identifique a ideia principal de um texto compreenda relaccedilotildees ou deduza significado impliacutecito em uma informaccedilatildeo natildeo expliacutecita Disponiacutevel em httpswwwoecdorgpisapisaproductspisainfocus48488426pdf

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desempenha ao menos trecircs funccedilotildees essenciais para a formaccedilatildeo humana ndash psicoloacutegica formativa e de conhecimento do mundo e do ser ndash e alega que natildeo a trabalhar em sala poderia afetar a formaccedilatildeo do leitor como cidadatildeo criacutetico (CANDIDO 1972 1995)

Sequencialmente outro toacutepico estudado eacute a teoria da esteacutetica da recepccedilatildeo Segundo Zappone (2005) o texto deixaria de ser mera construccedilatildeo linguiacutestica que transmite as ideias de seu produtor e passaria a ser uma construccedilatildeo esteacutetica com lacunas que datildeo margem para que o leitor possa refletir e atribuir-lhe sentido desempenhando um papel fundamental no processo de leitura como coautor valorizando a figura do leitor

O penuacuteltimo toacutepico estudado eacute o meacutetodo recepcional (AGUIAR BORDINI 1993) metodologia de ensino que trabalha com textos progressivamente mais complexos em etapas

bull determinaccedilatildeo do horizonte de expectativas verificaccedilatildeo do niacutevel de maturidade do aluno enquanto leitor para prever estrateacutegias de ruptura e de transformaccedilatildeo

bull atendimento do horizonte de expectativa introduccedilatildeo de textos que satisfaccedilam agraves expectativas dos alunos para que eles se sintam confortaacuteveis durante a leitura e as atividades

bull ruptura do horizonte de expectativa introduccedilatildeo de textos e atividades mais complexas de modo a abalar as certezas e os costumes dos alunos

bull questionamento do horizonte de expectativa comparaccedilatildeo dos textos trabalhados nas etapas anteriores para proporcionar aos alunos momentos de reflexatildeo descobertas e construccedilatildeo de novos sentidos

bull ampliaccedilatildeo do horizonte de expectativa introduccedilatildeo de textos de maior focirclego e ainda mais complexos para proporcionar aos alunos uma maior tomada de consciecircncia acerca de suas conquistas intelectuais recentes obtidas por meio da literatura

O resultado da aplicaccedilatildeo dessas cinco etapas eacute a formaccedilatildeo de um leitor proficiente que buscaraacute novos textos de maior focirclego condizentes agrave sua nova condiccedilatildeo de leitor e ao seu novo horizonte de expectativas (AGUIAR BORDINI 1993)

Por fim o uacuteltimo toacutepico discutido eacute a experiecircncia de leitura em uma turma de oitavo ano do ensino fundamental (atual nono ano) durante um ano letivo (MATSUDA 2008) O objetivo eacute mostrar aos discentes como aplicar os vaacuterios ciclos das etapas do meacutetodo recepcional e que o final de um ciclo de cinco etapas ldquoeacute o iniacutecio de uma nova aplicaccedilatildeo do meacutetodo que evolui em espiral sempre permitindo aos alunos uma postura mais consciente com relaccedilatildeo agrave literatura e agrave vidardquo (AGUIAR BORDINI 1993 p 91)

Finda a primeira fase daacute-se iniacutecio agrave realizaccedilatildeo do estaacutegio pelos discentes que trabalham em duplas Essa fase eacute composta pelas seguintes etapas observaccedilatildeo de no miacutenimo de 8 horasaula na escola formadora para conhecer seu puacuteblico tomar consciecircncia de suas dificuldades limitaccedilotildees e potencialidades e levantar as necessidades da turma em que as duplas realizaratildeo as regecircncias elaboraccedilatildeo e finalizaccedilatildeo juntamente com o professor formador e o professor orientador de estaacutegio do projeto de estaacutegio e de quatro planos

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de aula realizaccedilatildeo de 4 horasaula de regecircncia avaliaccedilatildeo pelo professor orientador e orientaccedilatildeo por parte do professor da disciplina para a produccedilatildeo do relatoacuterio final reportando as atividades desenvolvidas durante o estaacutegio (UTFPR 2011)

3 Relato da experiecircncia de estaacutegio

De forma a ilustrar como a segunda fase da disciplina se desenvolve na praacutetica apresentaremos a seguir alguns dados da experiecircncia de uma dupla de alunas regularmente matriculada na disciplina de Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio em Liacutengua Portuguesa II no segundo semestre de 2015 a partir do relatoacuterio da discente Mirelle Mussi Giri (2015)

As observaccedilotildees e regecircncias foram realizadas na unidade concedente de estaacutegio Coleacutegio Estadual Guaiacutera ndash Ensino Fundamental e Meacutedio cujo puacuteblico eacute composto principalmente por estudantes oriundos de famiacutelias trabalhadoras de baixa a meacutedia renda O estaacutegio foi executado junto agrave turma B do 2ordm ano do Ensino Meacutedio periacuteodo matutino durante as aulas da disciplina de Liacutengua Portuguesa aos 32 alunos regularmente matriculados cujas idades variavam entre 15 e 17 anos A carga horaacuteria de observaccedilatildeo na escola foi de 8 horasaula e ocorreu ao longo de trecircs semanas entre os meses de setembro e outubro de 2015

Durante o periacuteodo de observaccedilatildeo as estagiaacuterias foram apresentadas agrave equipe pedagoacutegica aos professores formadores e agrave turma com a qual estagiariam oportunidade em que tambeacutem conheceram as dependecircncias da escola e receberam as orientaccedilotildees gerais para a realizaccedilatildeo do estaacutegio Em seguida elas deram iniacutecio agraves observaccedilotildees em sala de aula

O material didaacutetico adotado para a disciplina era na ocasiatildeo o livro Portuguecircs ndash Linguagens de William Roberto Cereja cujas atividades foram a base principal do trabalho com os conteuacutedos linguiacutesticos e literaacuterios desenvolvidos Durante o periacuteodo de observaccedilatildeo os toacutepicos trabalhados foram pronomes demonstrativos e os movimentos literaacuterios Realismo e Naturalismo Aleacutem das atividades propostas no livro as aulas contaram ainda com atividades elaboradas pela professora revisotildees e atividades avaliativas com e sem consulta ao material

As estagiaacuterias observaram que embora a professora formadora recorresse direta e quase mecanicamente ao material didaacutetico durante a maior parte do tempo ela conseguiu demonstrar tiacutemidas tentativas de tornar suas aulas mais dinacircmicas e de se aproximar de seus alunos propondo leituras mais interativas e a organizaccedilatildeo das carteiras em ciacuterculo para quebrar a monotonia da aula A professora recomendou tambeacutem a leitura da obra Senhora de Joseacute de Alencar momento em que exaltou o prazer da leitura e a sua contribuiccedilatildeo para o desenvolvimento do aluno natildeo soacute como leitor mas tambeacutem como ser humano

Dentre as iniciativas observadas que estabeleceram mais engajamento por parte dos alunos destacou-se a exibiccedilatildeo de um viacutedeo para contextualizar o tema literaacuterio em

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estudo A iniciativa promoveu uma intensa e positiva reaccedilatildeo dos estudantes que durante toda a atividade teceram comentaacuterios riram e participaram ativamente Isso demonstrou que a atividade atendeu plenamente aos seus horizontes de expectativas e que seria uma oacutetima opccedilatildeo de atividade durante as regecircncias que seriam ministradas mais adiante

No que diz respeito agrave dinacircmica em sala as estagiaacuterias observaram que a professora formadora gastava muito tempo tentando acalmar seus alunos que eram em sua maioria agitados indisciplinados e pouco participativos agravando a tensatildeo na relaccedilatildeo professor-aluno Observaram ainda serem muito frequentes por parte da professora reclamaccedilotildees em relaccedilatildeo ao uso do celular o que diminuiacutea ainda mais o tempo de trabalho com o conteuacutedo Notaram tambeacutem que a professora frequentemente induzia seus alunos a determinadas interpretaccedilotildees sem abrir espaccedilo para que eles pudessem tecer suas proacuteprias inferecircncias

Ao longo do periacuteodo de observaccedilatildeo as estagiaacuterias se reuniram com a professora formadora a fim de discutir possiacuteveis temas que pudessem ser trabalhados durante as regecircncias Foi acordado entatildeo que elas trabalhariam com a escola literaacuteria simbolista por esse ser um tema pouco caro agrave professora e que a temaacutetica a ser trabalhada ficaria a cargo delas

Na uacuteltima observaccedilatildeo as estagiaacuterias aplicaram ao final da aula um questionaacuterio escrito aos educandos para pesquisar seus gostos de leitura O intuito foi conhecer melhor a realidade escolar em que elas estavam inseridas averiguar o niacutevel de maturidade do aluno como leitor e determinar seu horizonte de expectativas

Aleacutem de fazer um levantamento da idade meacutedia do puacuteblico alvo o questionaacuterio tambeacutem contemplou questotildees cujos objetivos eram verificar se os familiares dos alunos eram leitores assiacuteduos ou natildeo e se auxiliavam na sua formaccedilatildeo enquanto leitores Nesse quesito as estagiaacuterias constataram que a escola era a grande responsaacutevel por formaacute-los leitores Ao averiguar se houve estiacutemulo agrave leitura e consequentemente agrave formaccedilatildeo do leitor descobriram que mesmo natildeo sendo leitores assiacuteduos em sua maioria boa parte dos paisresponsaacuteveis leram para eles quando crianccedilas e procuraram incentivar o gosto pela leitura Ao verificar com que frequecircncia liam textos de seu interesse os dados revelaram uma turma dividida 381 raramente ou nunca lia por fruiccedilatildeo e 381 frequentemente lia livros de seu proacuteprio interesse Ao indagar as preferecircncias de suporte textual os dados indicaram que 428 dos alunos apreciavam ler textos online ao passo que 239 preferia livros impressos

Findo o periacuteodo de observaccedilatildeo as estagiaacuterias concluiacuteram que a turma ainda que heterogecircnea correspondia ao perfil padratildeo daquela comunidade escolar Ademais revelaram ser perceptiacutevel o desinteresse dos alunos pelas aulas de Liacutengua Portuguesa e de Literatura Observaram tambeacutem que embora parte da turma apresentasse haacutebitos de leitura mais refinados a outra ainda estava em processo de formaccedilatildeo As discentes tambeacutem perceberam que os alunos participavam mais durante as aulas cujos conteuacutedos eram os literaacuterios Concluiacuteram portanto que o ensino de literatura deveria ser articulado com o ensino de liacutengua de modo a proporcionar aulas mais prazerosas e proveitosas para os educandos

A partir do contexto escolar apresentado e considerando as reflexotildees teoacutericas construiacutedas na primeira etapa da disciplina as estagiaacuterias elaboraram o Projeto de Estaacutegio

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fundamentado no meacutetodo recepcional adotado pela disciplina a partir do proposto pelas Diretrizes Curriculares da Educaccedilatildeo Baacutesica do Paranaacute como sugestatildeo de trabalho para o ensino de literatura na Educaccedilatildeo Baacutesica De acordo com esse documento haacute estudos que indicam que se o professor aplicar sistematicamente essa metodologia formaraacute um aluno leitor muito mais criacutetico e competente (PARANAacute 2008)

O objetivo geral do Projeto intitulado A temaacutetica da morte sob a perspectiva da Escola Simbolista foi contextualizar o Simbolismo brasileiro a partir do tema da morte sendo o fio condutor do Projeto A temaacutetica foi desenvolvida a partir de textos contemporacircneos e simbolistas2 os quais embasaram os estudos comparativos e as reflexotildees desenvolvidas Os contos e poemas analisados foram ldquoVenha ver o pocircr-do-sol e outros contosrdquo (TELLES 1995) ldquoIsmaacuteliardquo ldquoHatildeo de chorar por ela os cinamomosrdquo e ldquoCantem outros a clara cor virenterdquo (GUIMARAENS 1985) ldquoVelhordquo ldquoIronia de Laacutegrimasrdquo ldquoA morterdquo e ldquoVisatildeo da morterdquo (SOUSA 1982) Os recursos utilizados para fomentar as discussotildees incluiacuteram desde reproduccedilatildeo de pinturas curta-metragem conto e poemas os quais possuiacuteam a temaacutetica estudada como denominador comum de modo a identificar suas peculiaridades esteacuteticas de forma mais assertiva

As estagiaacuterias elaboraram entatildeo sob orientaccedilatildeo do professor orientador quatro planos de aula fundamentados nas etapas do meacutetodo recepcional de modo a contemplar uma progressatildeo coerente ao longo das aulas Os planos contavam tambeacutem com os procedimentos e os recursos didaacuteticos que seriam utilizados a avaliaccedilatildeo da aprendizagem e o tempo planejado para cada uma das atividades das aulas A etapa de observaccedilatildeo das aulas do professor formador serviu para determinar os horizontes de expectativas dos alunos primeira etapa do meacutetodo recepcional e elaborar o projeto de estaacutegio e os planos de aula

As regecircncias ministradas nos dias 05 e 13 de novembro de 2015 respectivamente foram conduzidas pelas estagiaacuterias de forma intercalada em turnos dentro de uma

2 Os textos utilizados nas aulas de regecircncia como reproduccedilatildeo de pinturas curta-metragem conto e poemas foram os seguintes A Morte do Avarento Disponiacutevel em lt httpsptwikipediaorgwikiMorte_do_Avarentogt Acesso em 031115 Morte da Virgem Disponiacutevel em lthttpvirusdaartenetcaravaggio-a-morte-da-virgemgt Acesso em 031115 Morte de Lucreacutecia Disponiacutevel em httpwwwacervodigitalunespbrbitstreamunesp1797591Mestres20do20Renascimento20CCBB 20pt1 Acesso em 031115 O Uacuteltimo Tamoyo Disponiacutevel em httpsptwikipediaorgwikiRodolfo_Amoedogt Acesso em 031115 Anjo da Morte Disponiacutevel em lthttpscommonswikimediaorgwikiFileEvelyn_De_Morgan_-_Angel_of_Deathjpggt Acesso em 031115 A Morte de Marat Disponiacutevel em lthttpestoriasdahistoria12blogspotcombr201305analise-da-obra-morte-de-marat-dehtmlgt Acesso em 031115 Anjo da Morte Disponiacutevel em lt httpeducacaoglobocomliteraturaassuntomovimentos-literariosromantismo-segunda-geracaohtmlgt Acesso em 031115 A Senhora e a Morte Curta-metragem Disponiacutevel emlthttpswwwyoutubecomwatchv=5SYTkquhhwUamphd=1gt Acesso em 031115 TELLES Lygia Fagundes Venha ver o pocircr-do-sol amp outros contos 10 ed Satildeo Paulo SP Aacutetica 1995 Poemas de Cruz e Souza Disponiacutevel em lthttpwwwcasadobruxocombrpoesiaccruzhtmgt Acesso em 27112015 Poemas de Alphonsus de Guimaraens Disponiacutevel emhttpwwwavozdapoesiacombrobras_lerphpobra_id=7211amppoeta_id=328 Acesso em 27112015

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mesma aula e promoveram constantes debates orais que demandaram a participaccedilatildeo e a ativaccedilatildeo dos conhecimentos preacutevios dos alunos A participaccedilatildeo deles foi satisfatoacuteria ultrapassando as expectativas ao contraacuterio do percebido durante as observaccedilotildees

A primeira aula regida no dia 05 de novembro de 2015 correspondeu agrave etapa de atendimento do horizonte de expectativas Nessa aula cujo objetivo era discutir refletir e comparar a temaacutetica da morte sob uma perspectiva atual e geral bem como ler analisar e relacionar textos de diferentes gecircneros acerca da temaacutetica morte representativos ou natildeo da escola simbolista brasileira a estagiaacuteria pediu primeiramente que os alunos organizassem suas carteiras em semi-ciacuterculo entendida pelos aplicadores do meacutetodo e tambeacutem pela professora da disciplina de Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio de Liacutengua Portuguesa II como a disposiccedilatildeo adequada para se trabalhar em sala de aula Ela entatildeo distribuiu aos alunos folhas em branco para que escrevessem seus nomes e os deixassem agrave vista na parte frontal de suas carteiras para facilitar a comunicaccedilatildeo Em seguida a estagiaacuteria se apresentou aos alunos e explicou como o trabalho seria desenvolvido

Como intuito de atender ao horizonte de expectativas dos alunos a estagiaacuteria solicitou que eles se organizassem em trios para analisar a reproduccedilatildeo impressa de algumas pinturas Cada trio recebeu uma reproduccedilatildeo e precisou discutir os sentimentos que elas provocavam que adjetivos usariam para descrevecirc-las e quais os temas retratados Em seguida cada trio foi convidado a compartilhar suas consideraccedilotildees com o grande grupo A estagiaacuteria por sua vez informou-lhes o tiacutetulo a autoria e a data das pinturas e mediou as discussotildees

O processo de trabalho do meacutetodo recepcional de ensino de literatura ldquoapoacuteia-se no debate constante em todas as suas formas oral e escrito consigo mesmo com os colegas com o professor e com os membros da comunidaderdquo (AGUIAR BORDINI 1988 86) A postura do professor eacute ser mediador da leitura auxiliar e instigar o seu aluno a ser participativo de modo a estabelecer um diaacutelogo com o texto e coautoraacute-lo conforme sugere as Diretrizes Curriculares da Educaccedilatildeo Baacutesica do Paranaacute (PARANAacute 2008) que embasa a disciplina de Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio de Liacutengua Portuguesa II em anaacutelise A leitura precisar ser desenvolvida de forma dialoacutegica e interlocutiva

Em seguida a estagiaacuteria exibiu um curta-metragem de 2009 A Senhora e a morte de Javier Recio Garciacutea e propocircs a discussatildeo de algumas questotildees Na sequecircncia ela destacou que a morte poderia ser representada de diversas maneiras e perguntou aos alunos quais imagens seriam mais recorrentes na atualidade Por fim o toacutepico debatido em aula foi sintetizado e a estagiaacuteria conectou o tema da aula com o que seria abordado na aula seguinte

A segunda regecircncia correspondeu agrave etapa de ruptura do horizonte de expectativas e objetivou analisar e interpretar no gecircnero conto a temaacutetica da morte e seus siacutembolos mais representativos no texto No iniacutecio da aula a estagiaacuteria explicou resumidamente o tema e as atividades que seriam desenvolvidas e distribuiu coacutepias do conto ldquoVenha ver o pocircr do solrdquo de Lygia Fagundes Telles (1970)

Antes da leitura do texto a estagiaacuteria perguntou aos alunos se eles conheciam a autora e os instigou a refletir acerca do tiacutetulo do conto para traccedilar qual relaccedilatildeo poderia

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haver entre ele e a temaacutetica em estudo Convidou entatildeo os alunos aleatoriamente a participarem da atividade Nesse momento a estagiaacuteria talvez por nervosismo desatenccedilatildeo eou inexperiecircncia solicitou que cada um dos alunos lesse partes do texto em voz alta ao inveacutes de pedir que alguns voluntaacuterios fizessem a leitura dramatizada ou a proacutepria estagiaacuteria fizesse a leitura de forma dramatizada com entonaccedilatildeo e os alunos acompanhassem a leitura conforme estava previsto no plano de aula

O fato de um dos alunos quase ao final da leitura ter pedido permissatildeo para finalizaacute-la sem dar oportunidade para que os demais que ainda natildeo tivessem lido participassem indicou que os diferentes niacuteveis de proficiecircncia leitora da turma identificados pela lentidatildeo e dificuldade de alguns e oacutetima desenvoltura de outros perturbaram os leitores mais proficientes ainda que essa diferenccedila natildeo tenha afetado o objetivo da atividade No entanto demonstrou que a leitura em voz alta pelos alunos de trechos de textos muitas vezes com objetivo apenas de eles ficarem atentos mais por questatildeo de disciplina natildeo resulta na compreensatildeo e interesse ao texto que estaacute sendo lido

Em seguida a estagiaacuteria perguntou aos alunos quais foram as suas primeiras impressotildees acerca da histoacuteria dividiu-os em pequenos grupos e entregou a cada um deles sete imagens impressas obtidas de outras fontes de elementos presentes no conto que representavam a morte (chave fechadura nova portinhola enferrujada folhas secas cemiteacuterio abandonado catacumba e pocircr do sol) Explicou na sequecircncia que eles deveriam relacionaacute-las agrave temaacutetica da morte procurando perceber o que havia de estranho identificar em que momento as imagens apareceram no conto e qual sua importacircncia na histoacuteria refletindo sobre a sua influecircncia no desfecho Terminada a discussatildeo a estagiaacuteria convidou os grupos a irem agrave frente da sala para apresentar suas anaacutelises Os alunos entretanto mostraram-se resistentes agrave exposiccedilatildeo preferindo compartilhaacute-las de suas carteiras Ao fim da aula ela os orientou acerca da tarefa de casa que consistiu em trazer por escrito a anaacutelise feita em sala

A estagiaacuteria percebeu que a atividade teria sido mais produtiva se houvesse mais tempo para discussatildeo uma vez que segundo ela em uma aula de apenas 45 minutos natildeo seria possiacutevel promover uma reflexatildeo com mais profundidade

Nas regecircncias realizadas no dia 13 de novembro a classe estava mais vazia e de acordo com o relatoacuterio em anaacutelise isso influenciou na dinacircmica das atividades pois alguns dos alunos mais participativos natildeo estavam presentes Os alunos que estavam em sala por sua vez pouco se voluntariaram a participar das atividades e se mostraram menos interessados em comparaccedilatildeo agraves duas regecircncias anteriores Haacute que se considerar entretanto que essa apatia dos alunos tambeacutem pode ter sido fruto de uma dificuldade enfrentada pela estagiaacuteria em promover outras formas de estiacutemulos agrave sua participaccedilatildeo

Trata-se de uma situaccedilatildeo que eacute desafiadora natildeo soacute para professores em formaccedilatildeo mas tambeacutem para aqueles com muitos anos de experiecircncia na carreira docente a exemplo da professora formadora da turma que durante o periacuteodo de observaccedilatildeo das estagiaacuterias demonstrou ter dificuldade em lidar com os alunos e fazecirc-los participarem e se concentrarem mais

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O objetivo da terceira regecircncia que correspondeu agrave etapa de questionamento do horizonte de expectativas foi comparar os textos trabalhados nas etapas anteriores de modo a refletir sobre as simbologias e aspectos mais representativos da temaacutetica morte No iniacutecio da aula a estagiaacuteria orientou os alunos quanto agraves regras para a participaccedilatildeo oral durante as atividades Na sequecircncia retomou brevemente o conteuacutedo trabalhado na semana anterior

A estagiaacuteria entatildeo exibiu novamente o curta-metragem para que os alunos relembrassem a temaacutetica da produccedilatildeo e observassem como o tema da morte foi construiacutedo por meio de siacutembolos Em seguida entregou aos alunos um quadro comparativo e propocircs o seu preenchimento de forma conjunta

Os alunos contrapuseram o curta-metragem ao conto e observaram em que aspectos se aproximavam e se distanciavam considerando os elementos literaacuterios presentes em relaccedilatildeo agrave temaacutetica da morte (elementos simboacutelicos cores personagens ambienteespaccedilo cliacutemax suspense e linguagem) Durante a discussatildeo dos elementos simboacutelicos a estagiaacuteria pediu que cada grupo compartilhasse sua anaacutelise ndash a qual eles ficaram incumbidos de fazer em casa ndash para os demais alunos Entretanto apenas um grupo fez a liccedilatildeo Ainda que os demais tenham improvisado uma fala os alunos tiveram um bom desempenho e conseguiram fazer as inferecircncias necessaacuterias para a realizaccedilatildeo da atividade Por fim a estagiaacuteria recolheu os quadros comparativos e os entregou para a professora formadora de modo que ela pudesse a seu criteacuterio usaacute-los como forma de avaliaccedilatildeo da aprendizagem de seus alunos

A estagiaacuteria finalizou a aula reforccedilando que os siacutembolos presentes no curta-metragem e no conto que sugerem a morte e um clima de misteacuterio aparecem de forma mais preponderante na escola simbolista tema que foi desenvolvido na aula seguinte

A quarta e uacuteltima regecircncia correspondeu agrave etapa de ampliaccedilatildeo do horizonte de expectativas e objetivou apreciar textos simbolistas refletir sobre os aspectos fundamentais que os caracterizam e apurar a visatildeo criacutetica do aluno acerca da morte e do Simbolismo

Primeiramente a estagiaacuteria distribuiu aos alunos o poema ldquoIsmaacuteliardquo de Alphonsus de Guimaraens e pediu que eles acompanhassem seus versos em um viacutedeo musicalizado Ela observou contudo que os poucos alunos que estavam em sala naquele momento tiveram dificuldade para acompanhar os versos em virtude do barulho dos colegas nos corredores mesmo apoacutes ela pedir o silecircncio e a colaboraccedilatildeo de todos eles Ela tambeacutem percebeu que eles ainda estavam preocupados em terminar a atividade comparativa iniciada na aula anterior para poderem entregaacute-la para a professora formadora que a avaliaria o que tumultuou um pouco o iniacutecio da aula mesmo apoacutes ela assegurar agravequeles que natildeo conseguiram terminar que eles poderiam entregaacute-la em um momento posterior a ser combinado com a professora formadora

Em seguida foi analisado o poema em seus aspectos formais e de conteuacutedo A estagiaacuteria fez uma breve contextualizaccedilatildeo do periacuteodo literaacuterio simbolista e elencou suas principais caracteriacutesticas formais e histoacutericas Ela pediu entatildeo que os alunos abrissem seus livros didaacuteticos para a leitura de um texto e de um quadro comparativo Logo apoacutes

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distribuiu diferentes poemas para que eles em duplas analisassem-nos Os alunos puderam se embasar nas seguintes questotildees qual o tema tratado nesse poema De que maneira ele eacute abordado Quais elementos simboacutelicos presentes O que esses elementos representamO que pode ser observado quanto agrave estrutura formal do poema Quais satildeo as caracteriacutesticas simbolistas presentes

Os grupos entatildeo apresentaram oralmente suas conclusotildees momento em que a estagiaacuteria mediou e fez comentaacuterios relativos agrave discussatildeo Por fim ela recapitulou brevemente tudo que foi estudado ao longo das regecircncias e agradeceu ao grupo e agrave professora formadora pela participaccedilatildeo e compreensatildeo durante todo o processo

A partir do exposto pode-se verificar que as estagiaacuterias conseguiram finalizar o ciclo de etapas proposto na segunda fase da disciplina de realizaccedilatildeo do estaacutegio a qual se embasou na construccedilatildeo teoacuterica construiacuteda na etapa anterior Elas observaram a turma na escola formadora durante 8 horasaula e conseguiram conhecer seu puacuteblico por meio de um levantamento de suas necessidades dificuldades limitaccedilotildees e potencialidades Elaboraram entatildeo o Projeto de Estaacutegio conduziram cada uma regecircncias com duraccedilatildeo de 2 horasaula e produziram individualmente os relatoacuterios finais reportando as atividades

No que diz respeito agraves regecircncias a dupla conseguiu aplicar todas as cinco etapas do meacutetodo recepcional de forma progressiva e ter noccedilatildeo da sua aplicaccedilatildeo a partir da proposiccedilatildeo de atividades originais e dinacircmicas que aproximaram as estagiaacuterias dos alunos Conseguiu tambeacutem contextualizar o Simbolismo brasileiro a partir da temaacutetica da morte e fomentar discussotildees de modo a colaborar para a formaccedilatildeo de um alunoleitor de acordo com a premissa estabelecida pelas Diretrizes Curriculares da Educaccedilatildeo Baacutesica do Paranaacute Isso confirmou que a escolha do meacutetodo recepcional para o ensino de literatura sugerido pelo documento foi acertada

Dentre as iniciativas observadas durante a aplicaccedilatildeo do meacutetodo recepcional que foram bem-sucedidas destaca-se a determinaccedilatildeo do horizonte de expectativas cujo levantamento e anaacutelise foram adequados para compreender natildeo soacute algumas condiccedilotildees da realidade escolar e das necessidades do grupo e seu niacutevel de maturidade ao ler e interpretar os textos mas tambeacutem o tipo de atividades e recursos que poderiam envolvecirc-los e engajaacute-los mais durante as aulas

Ademais cabe sublinhar que a dupla conseguiu ainda atender o horizonte de expectativa dos alunos ao propor atividades em que eles se sentissem confortaacuteveis como a exibiccedilatildeo do curta-metragem romper com as expectativas deles ao fazecirc-los articularem novas ideias e informaccedilotildees por meio da proposiccedilatildeo da leitura da anaacutelise e da discussatildeo do conto sob a temaacutetica morte questionar suas expectativas ao propor a comparaccedilatildeo dos textos trabalhados nas etapas anteriores ampliando a capacidade de os alunos fazerem inferecircncias e ampliar seus horizontes de expectativas ao introduzir poemas para fazecirc-los dialogar com os textos simbolistas de forma dialoacutegica e interlocutiva apurar sua visatildeo criacutetica acerca da morte e da escola literaacuteria simbolista e tomar consciecircncia das novas perspectivas intelectuais construiacutedas

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Dentre os desafios observados destaca-se primeiramente a heterogeneidade da turma especialmente no que diz respeito agrave proficiecircncia leitora A praacutetica confirmou os dados levantados pelas estagiaacuterias durante a primeira etapa do meacutetodo recepcional momento em que descobriram que a maioria natildeo era leitor assiacuteduo e nem lia por fruiccedilatildeo Esse aspecto ficou perceptiacutevel durante a atividade de leitura do conto momento em que todo o grupo percebeu eou confirmou os diferentes niacuteveis existentes entre eles causando mal-estar em alguns

Outro desafio enfrentado foi uma das estagiaacuterias incorrer em um momento pontual no mesmo erro da professora formadora ao induzir os alunos a determinadas interpretaccedilotildees sem abrir espaccedilo para que eles pudessem tecer suas proacuteprias inferecircncias Acreditamos que isso ocorreu pela inexperiecircncia da estagiaacuteria na administraccedilatildeo do tempo e da turma durante a execuccedilatildeo das atividades especialmente ao se considerar que os alunos eram em sua maioria agitados e indisciplinados Outra possiacutevel razatildeo diz respeito agrave carga horaacuteria dedicada agraves regecircncias que talvez natildeo tenha sido suficiente para um desenvolvimento mais aprofundado das leituras atividades e reflexotildees propostas em cada uma das etapas do meacutetodo recepcional fazendo com que o estaacutegio tivesse sua efetividade limitada levando-nos a avaliar a necessidade de ampliar a carga horaacuteria das regecircncias nos estaacutegios

Por fim salienta-se que as estagiaacuterias conseguiram dentro das possibilidades vivenciar uma relaccedilatildeo dialeacutetica entre teoria e praacutetica profissional e as dificuldades e desafios envolvidos durante o processo de ensinoaprendizagem Conseguiram tambeacutem compreender aspectos da realidade escolar em que estavam inseridas e proporcionar aulas prazerosas aos educandos por meio de um trabalho com a literatura buscando compreender mais profundamente o modo como se daacute o processo de formaccedilatildeo sempre tendo em mente a formaccedilatildeo de um alunoleitor criacutetico e competente

4 Consideraccedilotildees finais

Neste artigo relatamos a partir de um caso praacutetico como se daacute a formaccedilatildeo do professor de literatura em liacutengua portuguesa na disciplina de Estaacutegio Curricular Obrigatoacuterio em Liacutengua Portuguesa II do curso de Licenciatura em Letras PortuguecircsInglecircs da UTFPR-Curitiba Para tanto descrevemos como se daacute essa formaccedilatildeo e apresentamos brevemente as concepccedilotildees teoacutericas baacutesicas sobre as quais ela se constroacutei bem como o estaacutegio realizado por uma dupla de estagiaacuterias regularmente matriculadas na disciplina no segundo semestre de 2015

Como resultado verificamos que a disciplina mescla questotildees conceituais e praacuteticas que embasam a capacitaccedilatildeo do discente para a realizaccedilatildeo dos objetivos propostos no Projeto Pedagoacutegico do curso Observamos tambeacutem que a ementa da disciplina privilegia um estudo criacutetico-reflexivo promovido a partir da leitura dirigida de textos teoacutericos e documentos oficiais que fundamentam e norteiam a praacutetica e o ensino de literatura

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Entendemos que o processo formativo priorizado no curso eacute aquele que desenvolve as competecircncias e as habilidades profissionais necessaacuterias para um mercado de trabalho voltado essencialmente para a formaccedilatildeo cidadatilde entendimento construiacutedo a partir da anaacutelise dos documentos que norteiam a formaccedilatildeo em foco Entendemos tambeacutem que se trata de uma formaccedilatildeo que oferece ao futuro professor as ferramentas necessaacuterias para que use o espaccedilo de sua aula para permitir que seu aluno da educaccedilatildeo baacutesica da rede puacuteblica progrida em seus estudos trabalho e como ser humano o que justifica a sugestatildeo pelos documentos que embasam a formaccedilatildeo da aplicaccedilatildeo do meacutetodo recepcional para esse fim

Depreendemos similarmente que o processo formativo oportunizado na UTFPR-Curitiba viabiliza um contato mais proacuteximo com a realidade profissional e com a reflexatildeo envolvida no processo de ensinoaprendizagem de literatura Eacute pois o momento em que o discente comeccedila a aplicar os aspectos teoacutericos formativos em um ambiente controlado para poder refletir sobre cada passo dado e sentir-se mais seguro para a praacutetica docente fora da academia

Ademais compreendemos que as estagiaacuterias conseguiram se apropriar do conhecimento propiciado pela relaccedilatildeo dialeacutetica estabelecida entre teoria e praacutetica ao empregar o conhecimento teoacuterico construiacutedo na primeira fase da disciplina durante a etapa de realizaccedilatildeo do estaacutegio ainda que tenham enfrentado dificuldades pontuais Aplicaram pois todas as etapas do meacutetodo recepcional durante as regecircncias contextualizaram a temaacutetica literaacuteria e fomentaram discussotildees com o objetivo de contribuir para a formaccedilatildeo de um alunoleitor maduro criacutetico e competente

Entendemos tambeacutem que as estagiaacuterias vivenciaram um processo de ensinoaprendizagem uacutenico e privilegiado A dupla teve a oportunidade natildeo somente de aplicar os conhecimentos teoacutericos na praacutetica mas tambeacutem de compreender e avaliar o espaccedilo social em que o professor estaacute inserido de se apropriar de conhecimentos complementares que contribuiratildeo para o futuro exerciacutecio da sua profissatildeo e de buscar soluccedilotildees diante das situaccedilotildees desafiadoras que ocorreram dentro da sala de aula

Ponderamos entretanto que em virtude de as 4 horasaula dedicadas agraves regecircncias aparentemente natildeo terem sido suficientes para o desenvolvimento mais aprofundado das leituras atividades e reflexotildees propostas nas etapas do meacutetodo recepcional seria interessante que o curso reconsiderasse a carga horaacuteria aumentando-a de modo a proporcionar ao futuro professor um maior contato e entendimento dos contextos dinacircmicos em que iraacute atuar

Por fim entendemos que a formaccedilatildeo oportunizada pelo curso ainda que desafiada por contextos tais como aqueles observados na escola formadora onde o estaacutegio ocorreu desenvolve as competecircncias e habilidades necessaacuterias ao futuro professor para atuar em contextos dinacircmicos e colaborar para a formaccedilatildeo cidadatilde de seus alunos impactando as sociedades positivamente

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Recebido em 28 de abril de 2017

Aceito em 10 de novembro de 2017

Mirelle Mussi Giri

Licenciada em Letras PortuguecircsInglecircs pela Universidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute campus Curitiba e em Direito pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute mirellemussihotmailcom

Alice Atsuko Matsuda

Mestre em Letras ndash Literatura e Ensino ndash pela Universidade Estadual Paulista ldquoJulio de Mesquita Filhordquo Doutora em Letras ndash Estudos Literaacuterios pela Universidade Estadual de Londrina Professora Titular Adjunta IV e Docente Permanente do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos de Linguagens da Universidade Tecnoloacutegica Federal do Paranaacute Atualmente encontra-se em Estaacutegio Poacutes-doutoral no Programa de Poacutes-doutoramento em Materialidades da Literatura pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra com auxiacutelio da Capes alicemutfpredubr

Outros lugares

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eISSN 22376844polifonia

Interdiscursividade e intertextualidade a constituiccedilatildeo dos sentidos do dizer no universo autoral

Interdiscursivity and Intertextuality The Constitution of Meanings in the Authorial Universe

Interdiscursividad e intertextualidad La constitucioacuten de los sentidos Del decir en el universo de la autoriacutea

Terezinha Maia Martincowski

Resumo

Neste estudo procuramos discutir a constituiccedilatildeo do universo autoral de jovens universitaacuterios a partir da leitura interpretativa e da formaccedilatildeo de arquivos entendendo que produzimos a partir do uso de textos e argumentos que habitam nossos arquivos A partir dessa compreensatildeo o objetivo da presente pesquisa foi o de analisar o processo de escrita com autoria A anaacutelise da produccedilatildeo foi orientada para a busca da plurivocidade a partir da interdiscursividade e da intertextualidade observando se as ideias principais de textos e de discussotildees trabalhadas em sala de aula satildeo consideradas na produccedilatildeo escrita A maioria manteve-se no tema indicando tanto apropriaccedilatildeo da tarefa como atitude interpretativa das leituras e constituiccedilatildeo dos sentidos do dizer e tambeacutem apresentou textos produzidos com autoria transformando o dizer alheio em dizer proacuteprio assumindo posicionamento axioloacutegico e responsividadePalavras-chave Constituiccedilatildeo autoral ensino superior interdiscursividadeintertextualidade

Abstract

In this study we discuss the constitution of the authorial universe of young university students by means of the interpretive reading and the formation of archives understanding that we produce through the use of texts and arguments that lie in our archives The objective of this research was to analyze the process of authorial writing The analysis of the production was aimed at the search for plurivocity interdiscursivity and intertextuality observing if the main ideas of texts and of discussions held in class are considered in the written production The great majority attained to the subject indicating appropriation of the task as an interpretative attitude towards the readings and as a constitution of meanings Most also presented texts produced with authorship transforming the saying of others into their own words assuming axiological positioning and responsivenessKeywords Authorial constitution higher education interdiscursivityintertextuality

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Resumen

En este estudio tratamos de discutir la constitucioacuten del universo autoral de joacutevenes universitarios a partir de la lectura interpretativa y de la formacioacuten de archivos entendiendo que producimos a partir del uso de textos y argumentos que habitan nuestros archivos A partir de esa comprensioacuten el objetivo de la presente investigacioacuten fue el de analizar el proceso de escritura con autoriacutea El anaacutelisis de la produccioacuten se orientoacute hacia la buacutesqueda de la plurivocidad a partir de la interdiscursividad y de la intertextualidad observando si las ideas principales de textos y de discusiones trabajadas en el aula se consideran en la produccioacuten escrita La gran mayoriacutea se mantuvo en el tema indicando tanto apropiacioacuten de la tarea como actitud interpretativa de las lecturas y constitucioacuten de los sentidos del decir y tambieacuten presentoacute textos producidos con autoriacutea transformando el decir ajeno en decir propio asumiendo posicionamiento axioloacutegico y responsividadPalabras clave Constitucioacuten autoral ensentildeanza superior interdiscursividadintertextualidad

1 Introduccedilatildeo

O grau universitaacuterio eacute um passo de muita importacircncia na vida dos jovens Entretanto de maneira geral os universitaacuterios tecircm enfrentado dificuldades em sua formaccedilatildeo acadecircmica Uma das questotildees que gera dificuldades entre os alunos iniciantes eacute que nem sempre o ensino superior tem condiccedilotildees de acolher os anseios desses jovens no sentido de aproximaccedilatildeo entre os conteuacutedos veiculados nos bancos escolares e a visatildeo da accedilatildeo profissional utilitarista e pragmaacutetica que eles tecircm Tal fato acaba resultando na desidealizaccedilatildeo ou na ruptura de um ideal como considera Millan et al (1991)

Aleacutem do fato de o conteuacutedo geralmente natildeo atender agraves expectativas do aluno iniciante muitos satildeo os que encontram dificuldades na internalizaccedilatildeo desses conhecimentos Isso ocorre natildeo apenas em decorrecircncia de a formaccedilatildeo anterior trazer lacunas mas tambeacutem devido ao fato de os conteuacutedos serem totalmente novos e principalmente pela necessidade de adaptaccedilatildeo a uma nova metodologia de aprendizagem e pela solicitaccedilatildeo de atividades curriculares que caminham na direccedilatildeo de uma formaccedilatildeo de sujeito autocircnomo

Essas dificuldades satildeo perfeitamente visualizadas pelo corpo de docentes universitaacuterios quando percebem a luta que seus alunos enfrentam com textos acadecircmicos quanto agrave compreensatildeo interpretaccedilatildeo expressatildeo oral produccedilatildeo escrita entre outros aspectos Nesse cenaacuterio os professores discutem como dar conta dessas dificuldades juntamente com todo o conteuacutedo programaacutetico e demais compromissos de formaccedilatildeo E os alunos reclamam que os textos acadecircmicos satildeo muito difiacuteceis e que a linguagem dos professores eacute complicada

Na base desse conflito encontram-se textos dos alunos que apresentam falta de coesatildeo de coerecircncia de sentido de clareza de encadeamento de adequabilidade a uma linguagem escrita e para o outro ideias truncadas lacunas quebras de estrutura falta de linearidade no discurso etc Uma produccedilatildeo escrita de forma tatildeo confusa pode evidenciar tambeacutem entre outros aspectos a falta de compreensatildeo das leituras feitas

Sampaio (2009) analisa a questatildeo da produccedilatildeo escrita de nossos alunos ao discutir a atuaccedilatildeo linguiacutestica de estagiaacuterios do curso de Letras de uma Universidade Federal Para a autora os alunos apresentam dificuldades no ensino da liacutengua escrita natildeo por questotildees

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didaacuteticas mas porque eles proacuteprios natildeo sabem escrever A partir de um referencial bourdieusiano essa falta de domiacutenio da liacutengua eacute considerada pela autora como resultado da hysteresis (NOGUEIRA NOGUEIRA 2004 p 55 apud SAMPAIO 2009 p39) ou seja ao longo de nossas relaccedilotildees vamos adquirindo viacutecios e haacutebitos arraigados que natildeo se alteram mesmo que as condiccedilotildees de uso sejam outras Eacute importante destacar que essas dificuldades satildeo encontradas mesmo em cursos de grande distinccedilatildeo no meio educacional como o de Letras e em universidades puacuteblicas como no caso citado acima

A partir de nosso interesse em analisar o desempenho de alunos iniciantes de gradu-accedilatildeo quanto agrave sua produccedilatildeo escrita em situaccedilotildees especiacuteficas faz-se mister discutirmos questotildees relativas agrave leitura agrave interpretaccedilatildeo e agrave produccedilatildeo de textos com o intuito de pro-blematizar e abrir espaccedilo para reflexatildeo sobre essas dificuldades que parecem ser uma tocircni-ca dos anos iniciais da graduaccedilatildeo senatildeo de todo o percurso acadecircmico de muitos alunos

2 Universo autoral

As discussotildees feitas por Paciacutefico (2002) mostram uma estreita relaccedilatildeo entre leitura interpretaccedilatildeo e produccedilatildeo de textos O entrelaccedilamento desses trecircs fatores eacute o que permite segundo Bakhtin (19921988a 1988b) a constituiccedilatildeo do autor ou da autoria que envolve uma posiccedilatildeo axioloacutegica e que engendra uma relaccedilatildeo de valor materializada no texto pelos objetos discursivos O autor a partir do interdiscurso e do intertexto deve apresentar uma postura que reflete e refrata esses valores

O estreitamento entre os aspectos de leitura interpretaccedilatildeo e produccedilatildeo eacute considerado por Paciacutefico (2002) a partir da relaccedilatildeo existente entre o texto argumentativo e a autoria As caracteriacutesticas desse tipo de texto solicitam que o produtor do texto sustente um ponto de vista a respeito do objeto de discurso Assim o sujeito deve assumir a responsabilidade pelo seu dizer de forma a apresentar argumentos persuasivos com intuito de defender seu ponto de vista

Eacute esse movimento que vai permitir segundo a autora que o produtor aleacutem de assumir a responsabilidade pelo dizer tambeacutem faccedila isso a partir de uma perspectiva histoacuterica dos sentidos controlando os pontos de fuga ou seja mantendo-se fiel agrave discussatildeo Contudo esse niacutevel de argumentaccedilatildeo tambeacutem depende de uma accedilatildeo interpretativa

Para a produccedilatildeo de um texto argumentativo devemos considerar a constituiccedilatildeo da autoria a partir da assunccedilatildeo da responsabilidade pelo dizer o que depende por sua vez de uma accedilatildeo de interpretaccedilatildeo pois o domiacutenio da argumentaccedilatildeo envolve a construccedilatildeo dos sentidos que vatildeo surgindo a partir da interpretaccedilatildeo do autor

Entretanto Paciacutefico (2002) destaca que na accedilatildeo da leitura a grande maioria dos leitores soacute atinge o niacutevel do inteligiacutevel sem uma accedilatildeo interpretativa de fato A etapa final que vem a ser a interpretaccedilatildeo depende de um movimento soacutecio-histoacuterico de construccedilatildeo de sentidos que segundo a Anaacutelise do Discurso estaacute ligada ao sujeito agrave histoacuteria e agrave ideologia Esse movimento eacute necessaacuterio uma vez que o sentido nunca estaacute pronto e eacute dependente da interpretaccedilatildeo do sujeito

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Nesse processo Paciacutefico (2002) destaca outra noccedilatildeo importante que eacute a de movimento do sujeito No niacutevel inteligiacutevel observamos a falta de movimento do sujeito-leitor por conta de uma atitude de leitura parafraacutestica que apenas reproduz transformando o sujeito em uma focircrma-leitor Quanto agrave leitura interpretativa percebemos o movimento de busca e construccedilatildeo de sentidos Tal atitude permite o controle da dispersatildeo e a superaccedilatildeo de equiacutevocos

Essa separaccedilatildeo entre a leitura parafraacutestica e a leitura interpretativa eacute constatada desde a Idade Meacutedia quando a necessidade da eacutepoca de geraccedilatildeo de memoacuteria obrigava muitos a gestos incansavelmente repetitivos de reproduccedilatildeo Assim aqueles que tinham a obrigaccedilatildeo da praacutetica de leitura e coacutepia a serviccedilo de interesses de terceiros acabavam se submetendo a gestos de silenciamento e renuacutencia de autoria e originalidade Pecircucheux (1997) entrelaccedila essa discussatildeo com a perspectiva de divisatildeo social do trabalho de leitura em uma relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo poliacutetica

Para a constituiccedilatildeo do universo autoral aleacutem da interpretaccedilatildeo torna-se necessaacuterio discutirmos tambeacutem a questatildeo de arquivo que segundo Pecircucheux (1997) eacute o campo de documentos pertinentes e disponiacuteveis sobre uma questatildeo e que se constitui em fonte de consulta para vaacuterias accedilotildees Quando nos comunicamos utilizamos informaccedilotildees que estatildeo registradas nesses arquivos Contudo a formaccedilatildeo desses arquivos eacute feita a partir de um espaccedilo de acolhimento das vaacuterias vozes que permeiam nosso meio tornando-as nossas vozes Esse eacute o espaccedilo da interdiscursividade e da intertextualidade

Nessa linha pretendemos neste estudo entender o processo da interdiscursividade a partir de Bakhtin (1988a) para quem tudo o que eacute dito e expresso natildeo pertence somente ao falante narrador autor ou sujeito discursivo Desde que nascemos aprendemos sobre o mundo a partir das relaccedilotildees das ideias e da fala dos outros que atribuem significado aos fatos fenocircmenos relaccedilotildees e objetos do mundo

Outra caracteriacutestica que tambeacutem compotildee as produccedilotildees eacute o diaacutelogo entre os muitos textos ou a intertextualidade Segundo Koch e Travaglia (1991) as relaccedilotildees estabelecidas no interior de um texto remetem a outros textos pois os textos de um mesmo campo de conhecimento ou mesmo de outras aacutereas eacutepocas ou culturas dialogam uns com os outros Quanto a esse aspecto Blikstein (1994 p 45) destaca que [hellip] ldquoo discurso seja qual for nunca eacute totalmente autocircnomo [hellip] o discurso natildeo eacute falado por uma uacutenica voz mas por muitas vozes geradoras de textos que se entrecruzam no tempo e no espaccedilordquo [hellip]

Entretanto deve-se considerar que o texto embora constituiacutedo a partir da interdiscursividade e da intertextualidade portanto sendo dialoacutegico pode deixar entrever as muitas vozes que o compotildeem (polifonia) ou apagaacute-las silenciaacute-las em um texto monofocircnico (BARROS 1994) A partir do movimento ou natildeo das vaacuterias vozes o proacuteprio texto passa a ser entendido como algo aleacutem de um objeto de comunicaccedilatildeo para conforme Barros (1994) transformar-se em objeto de significaccedilatildeo pois se constitui a partir dos sentidos que se cruzam transitam e se enredam Texto eacute um processo de construccedilatildeo reproduccedilatildeo e transformaccedilatildeo desses sentidos

Quando produzimos algo fazemos uso de autores argumentos ideias ou nos valemos de teorias teses pesquisas que habitam nossos arquivos e que se tornam fonte de ajuda

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nesse caminho Fiorin (1994) considera que texto eacute a unidade da manifestaccedilatildeo ou o lugar desse interdiscurso

Essa relaccedilatildeo de acolhimento das vaacuterias vozes tambeacutem ocorre com grande intensidade no meio escolar O conhecimento apropriado pelos alunos acontece a partir da relaccedilatildeo estabelecida com a fala dos professores e os dizeres dos livros O mundo se expressa pelas vaacuterias vozes que nesse espaccedilo circulam e se aprende por meio da interdiscursividade incorporando internalizando inclusive pelas vozes que tambeacutem decidimos silenciar (LEMOS 1994 BRAIT 1994)

O que destacamos aqui eacute o espaccedilo de dialogia que existe em uma accedilatildeo de constituiccedilatildeo de um universo autoral Primeiramente a interpretaccedilatildeo vai depender do conhecimento que temos sobre a questatildeo Conforme expotildee Paciacutefico (2002) a interpretaccedilatildeo tambeacutem depende de um aparato teoacuterico que por sua vez depende do interdiscurso e do acesso a arquivos e da proacutepria interaccedilatildeo verbal com os arquivos que possuiacutemos ou seja com o outro enquanto fonte de nossos dados

A preocupaccedilatildeo com o processo de escrita de nossos alunos universitaacuterios tambeacutem deve caminhar nessa direccedilatildeo ou seja da constituiccedilatildeo de autor de seus textos Os textos acadecircmicos devem ser entendidos como dialoacutegicos pois satildeo o resultado da composiccedilatildeo do confronto e das trocas ocorridas entre muitas vozes acadecircmicas contemporacircneas ou natildeo

Essas constataccedilotildees nos levam a sempre acompanhar nossos alunos nessa constituiccedilatildeo de um universo autoral a partir da formaccedilatildeo de arquivo de um trabalho interpretativo e da consideraccedilatildeo da interdiscursividade e da intertextualidade Natildeo se trata apenas de compreender e apreender conteuacutedos e conceitos especiacuteficos uma vez que mesmo estes requerem que o aluno se aproprie deles tornando-os proacuteprios

A partir dessas preocupaccedilotildees inserem-se os objetivos deste estudo quais sejam de desenvolver atividades com textos que permitam a formaccedilatildeo de arquivos de forma a constituir o sujeito-inteacuterprete sujeito-produtor e sujeito-autor assim como utilizar a pesquisa-accedilatildeo como forma de analisar expor interpretar e interromper ou transpor limites sociais

De forma geral espera-se contribuir para o desenvolvimento do conhecimento sobre a integraccedilatildeo dos alunos iniciantes ao conhecimento veiculado no universo acadecircmico assim como para as praacuteticas educativas inserindo o aluno em um processo dinacircmico de aprendizagem

3 Metodologia

Quanto aos procedimentos escolhidos para a investigaccedilatildeo o presente estudo orientou-se especificamente pela pesquisa-accedilatildeo que segundo Andreacute (2001) eacute uma teacutecnica que envolve uma proposta praacutetica de implementaccedilatildeo ou redimensionamento de algo No caso do presente estudo os resultados apoiaram implementaccedilatildeo de atividades no segundo periacuteodo letivo do mesmo ano

O maior envolvimento com esse eixo metodoloacutegico daacute-se pelo interesse investigativo da pesquisa estar voltado para a proacutepria experiecircncia vivida pelo professor envolvendo

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reflexatildeo e transformaccedilatildeo dentro de um processo sistematizado Segundo Pereira (2002) e Zeichner (2002) Kurt Lewin um dos fundadores da pesquisa-accedilatildeo defendia que o conhecimento deveria ser criado a partir da soluccedilatildeo de problemas em situaccedilotildees concretas de vida

Nessa mesma direccedilatildeo Thiollent (2002) destaca que o principal objetivo da pesquisa-accedilatildeo eacute proporcionar aos pesquisadores e grupos participantes caminhos que permitam respostas mais eficazes aos problemas coletivos e situaccedilotildees vividas Jaacute Kemmis e Wilkinson (2002) consideram a importacircncia da pesquisa-accedilatildeo por conta de sua proposta de ajuda agraves pessoas a investigarem e a mudarem suas realidades sociais e educacionais por meio de mudanccedilas de algumas das praacuteticas que constituem suas realidades vividas

31 Sobre os sujeitos da pesquisa

Os participantes deste estudo satildeo estudantes do 1ordm ano de graduaccedilatildeo de um Centro Universitaacuterio (Fundaccedilatildeo regional) de uma cidade do interior do estado de Satildeo Paulo dos cursos de licenciatura em Fiacutesica Quiacutemica Matemaacutetica Biologia Pedagogia e Educaccedilatildeo Fiacutesica O trabalho1foi desenvolvido em uma disciplina que trata da introduccedilatildeo ao conhecimento do campo da pesquisa em educaccedilatildeo no primeiro semestre do primeiro ano Os dados foram colhidos ao final do primeiro semestre

Eacute importante tambeacutem destacar que costumeiramente ao final do periacuteodo os alunos jaacute concluiacuteram seus trabalhos e provas o que imprime um clima de recesso nas atividades principalmente porque muitos deles satildeo de cidades vizinhas e retornam a elas Isso acabou interferindo na quantidade de alunos envolvidos O nuacutemero de alunos interessados em participar da pesquisa no momento do convite e da veiculaccedilatildeo das informaccedilotildees dos trabalhos foi superior a vinte sendo que destes compareceram nove alunos no momento da coleta de dados

32 Procedimentos metodoloacutegicos

Logo no iniacutecio do semestre foram solicitados aos alunos trabalhos constantes do programa da disciplina jaacute com o objetivo tambeacutem de preparativo para a coleta de dados Trecircs textos em especiacutefico de Alves (1996) Cortella (1998) e Gleiser (2010) foram preparados e trabalhados em sala de aula com a intenccedilatildeo de formaccedilatildeo de arquivo no sentido do conceito de Pecircuchex (1997) permitindo a formaccedilatildeo de conhecimento do assunto e tornando o tema familiar

No final do semestre no momento da coleta de dados foi solicitada uma produccedilatildeo escrita que pudesse ser discutida a partir das informaccedilotildees e conteuacutedos veiculados nos textos

1 O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitecirc de Eacutetica e Pesquisa da Instituiccedilatildeo tendo sido inscrito no CONEP sob o nuacutemero FR 332139

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supracitados Como tema desencadeador que permitisse a interlocuccedilatildeo dessas trecircs leituras foi proposta a seguinte pergunta ldquoComo a ciecircncia pode caminhar para aleacutem dos mitosrdquo

33 Criteacuterios de anaacutelise

As anaacutelises quanto ao Universo Autoral estatildeo inseridas na dimensatildeo da busca da plurivocidade a partir da interdiscursividade e da intertextualidade compreendendo-se esses processos a partir da formaccedilatildeo de arquivo e da compreensatildeo (interpretaccedilatildeo) dos textos lidos e das discussotildees de sala de aula O que orientou esse foco de anaacutelise foi a intenccedilatildeo investigativa de observar se as ideias principais dos textos de apoio e das discussotildees de sala de aula satildeo consideradas na produccedilatildeo escrita dos alunos

Natildeo se teve o propoacutesito de discutir neste estudo estilos de linguagem ou adequaccedilatildeo linguiacutestica Entendemos que os alunos estavam iniciando um curso em que as exigecircncias concernentes agrave linguagem acadecircmica ainda natildeo haviam sido consideradas e aleacutem disso havia o propoacutesito de permitir que o aluno produzisse um texto mais independente de regras riacutegidas como incentivo ao universo autoral

Ao serem analisados os dados os criteacuterios de plurivocidade (intertextualidade e interdiscursividade) foram tabulados da seguinte forma

I ndash Citaccedilatildeo das fontesIIndash Composiccedilatildeo autoral dos textosIII ndash Manutenccedilatildeo do tema propostoPara que a questatildeo da interpretaccedilatildeo pudesse ser observada foi tomado o cuidado

de apresentar a questatildeo desencadeadora e alertar para o uso de fontes de apoio sem explicaccedilotildees conceituais

4 Resultados e discussatildeo dos dados

As anaacutelises que se inserem no bojo desta pesquisa procuram um ponto de equiliacutebrio que como destaca Freitas (1994) natildeo reduza seus dados agraves consideraccedilotildees de um objetivismo abstrato com consideraccedilotildees cientiacuteficas ou generalizaccedilotildees que procuram certezas cristalizadas Tampouco se persegue um subjetivismo ao desencarnar individualismos que perdem seu sentido na relaccedilatildeo com o outro

Haacute que se levar em conta que a linguagem eacute fruto de um contexto e as ideias nela contidas satildeo social e culturalmente marcadas Conforme a mesma autora essas duas perspectivas o subjetivismo e o objetivismo quando tratadas individualmente acabam fragmentando a linguagem por natildeo considerar que ela se origina e se concretiza somente no contexto real de sua enunciaccedilatildeo Todo enunciado eacute organizado e adquire sentido a partir do meio social e das condiccedilotildees postas para sua enunciaccedilatildeo

Assim a preocupaccedilatildeo principal eacute levar em conta o dinamismo e o movimento que envolve uma produccedilatildeo qual seja o contexto o sujeito a histoacuteria e a motivaccedilatildeo A partir dessas consideraccedilotildees os dados apontam a seguinte configuraccedilatildeo

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Quadro 01 ndash Dados gerais dos textos

TEXTOS CITACcedilAtildeO DA FONTE

COMPOSICcedilAtildeO AUTORAL DOS TEXTOSMANUTENCcedilAtildeO DO TEMA PROPOSTOTEXTOS DE

APOIOSALAAULA

ELABORACcedilOtildeES PROacutePRIAS

03 X x X x

04 X x X x

19 X

20 X x X x

22 X x

23 x X x

33 X X x

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37 x X x

Fonte Elaboraccedilatildeo proacutepria

Inicialmente eacute importante considerar que o texto 19 faz uso exclusivo de coacutepia de trechos de um dos textos de apoio com muito poucas adaptaccedilotildees para o contexto desta anaacutelise O texto sequer apresenta uma linha de argumentaccedilatildeo que possa permitir um encadeamento entre os trechos copiados Trata-se apenas de uma colcha de retalhos cujos mosaicos natildeo se encaixam A questatildeo desencadeadora da atividade ldquocomo a ciecircncia pode caminhar para aleacutem dos mitosrdquo eacute substituiacuteda por outra indagaccedilatildeo ldquose a ciecircncia pode explicar o propoacutesito das coisasrdquo pergunta essa adaptada e constante do proacuteprio texto copiado de Gleiser (2010)

Assim o propoacutesito da atividade natildeo foi considerado e o uacutenico criteacuterio atendido foi o uso de texto de apoio O que se revela nessas condiccedilotildees eacute mais do que a natildeo inserccedilatildeo do autor na atividade mas principalmente o abrir matildeo de ser autor

Para Bakhtin (1992) haacute uma distinccedilatildeo entre autor-pessoa e autor-criador sendo que no primeiro caso se trata do escritor eno segundo da funccedilatildeo esteacutetica que materializa as relaccedilotildees de valor entre a obra e o autor Eacute importante abrir uma ressalva no sentido de se observar que as anaacutelises de Bakthin sempre se referiram ao estudo do texto literaacuterio Contudo em ldquoPara uma filosofia do atordquo (sd) Bakhtin considera que

O momento que o pensamento teoacuterico discursivo (nas ciecircncias naturais e na filosofia) a descriccedilatildeo-exposiccedilatildeo histoacuterica e a intuiccedilatildeo esteacutetica tecircm em comum [hellip] eacute este todas as atividades estabelecem uma cisatildeo entre o conteuacutedo ou sentido de um dado ato-atividade e a realidade histoacuterica do seu serhellip (p 19)

Tal anaacutelise mostra que existem aspectos que permitem aproximaccedilatildeo entre as escritas mesmo que de estilos diferentes As anaacutelises deste trabalho consideram que mesmo nos estu-dos cientiacuteficos e nos trabalhos acadecircmicos pode-se discutir o autor-pessoa e o autor-criador

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A partir dessa compreensatildeo entendemos que eacute possiacutevel encontrar trabalhos que satildeo coacutepias ou paraacutefrases no sentido de agregarem muito pouco como trabalhos em que se evidencia todo um processo de construccedilatildeo criaccedilatildeo e apropriaccedilatildeo de um dizer e um saber de forma dialoacutegica interdiscursiva e criativa Nesse caso entatildeo a funccedilatildeo esteacutetica discutida pelo autor seraacute interpretada aqui como a singularidade que eacute imanente e que constitui o texto acadecircmico

Quanto ao texto 19 podemos afirmar sim que existiu uma produccedilatildeo que foi feita uma escolha de tema que foi escolhido um texto de apoio que foram escolhidos trechos a serem copiados Contudo natildeo existiu autoria no sentido do estabelecimento da singularidade da obra da mesma forma que o texto natildeo refratou valores que partem de uma posiccedilatildeo axioloacutegica (BAKHTIN 1992)

Para Faraco (2010) a funccedilatildeo esteacutetica ou a singularidade nos textos acadecircmicos sustenta e daacute corpo agrave obra e permite refratar o universo social escolhido Nessa situaccedilatildeo o autor-criador torna-se veiacuteculo das vozes escolhidas recortando e refratando falas alheias e reordenando-as em um ato de apropriaccedilatildeo no qual a mesma realidade torna-se refratante

Eacute certo que o autor-pessoa ao fazer escolhas evidencia uma posiccedilatildeo axioloacutegica Contudo ao natildeo se apropriar dela essa posiccedilatildeo axioloacutegica natildeo se concretiza frente a essas escolhas natildeo permitido transpor valores de uma esfera social para uma esfera pessoal e responsiva

O ato de escrever ou tornar-se autor-criador de um texto deve voltar-se como argumenta Sobral (2010) para a compreensatildeo do ato ser concreto ativo durativo intencional envolvendo o aspecto responsivo de sua accedilatildeo A responsividade para esse autor envolve um compromisso eacutetico do agente

Pode-se dizer entatildeo que o texto 19 natildeo envolveu criaccedilatildeo posiccedilatildeo axioloacutegica responsividade e que as vozes escolhidas natildeo se tornaram refratantes saindo do espaccedilo do universo autoral Assim a anaacutelise desse texto seraacute considerada dessa forma global natildeo havendo sentido o detalhamento de cada um dos aspectos analisados para os outros textos

41 Citaccedilatildeo das fontes

Quanto agrave citaccedilatildeo das fontes de apoio nenhum dos nove textos produzidos indicou as fontes dos textos utilizados Eacute importante abrir um espaccedilo para essa discussatildeo pois a disciplina em questatildeo trata do conhecimento cientiacutefico e da importacircncia de serem citadas fontes consultadas Os alunos satildeo orientados para entender que mesmo utilizando informaccedilotildees ideias e concepccedilotildees de outros autores com palavras proacuteprias ainda assim a autoria das informaccedilotildees ideias e concepccedilotildees satildeo do autor lido e as fontes consultadas devem ser mencionadas O que se percebe eacute que no momento da produccedilatildeo velhos haacutebitos solidificados resistem cruelmente agraves novas orientaccedilotildees Eacute preciso muito mais do que apenas orientaccedilotildees e informaccedilotildees

Tal fato chama algumas consideraccedilotildees Primeiramente a partir da experiecircncia da pesquisadora eacute constatado que eacute proacuteprio de alguns jovens escritores fazerem coacutepia literal das fontes consultadas sem explicitar sua origem em um ato apropriativo totalmente

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irresponsivo como jaacute analisado na seccedilatildeo anterior Contudo todos os outros textos envolvem um ato de criaccedilatildeo em que as vozes alheias se transformam em vozes proacuteprias refratando uma realidade social de forma responsiva

O que se observa nessa situaccedilatildeo eacute outro fenocircmeno tambeacutem comum Entre os escritores iniciantes e natildeo acadecircmicos existe a compreensatildeo de que eu digo as palavras do outro com minhas palavras e elas se tornam minhas Se por um lado existe um equiacutevoco entre o uso da palavra e ser o autor ou responsaacutevel pela informaccedilatildeo tambeacutem se vecirc por outro lado a assunccedilatildeo ao ato criador

No primeiro caso trata-se de uma regra acadecircmica que envolve o respeito e a consideraccedilatildeo (por meio da citaccedilatildeo de autoria) aos resultados alcanccedilados por meio de trabalho loacutegico ou empiacuterico Assim natildeo se trata de a palavra veiculada ser deste ou daquele autor mas de a informaccedilatildeo ser fruto do trabalho autoral Mas eacute importante tambeacutem considerar a segunda situaccedilatildeo quando a natildeo citaccedilatildeo das fontes utilizadas reflete uma apropriaccedilatildeo dos textos e a transformaccedilatildeo deste em discurso proacuteprio Neste caso percebe-se uma reivindicaccedilatildeo do ato de autoria e uma accedilatildeo criativa

Haacute um uacuteltimo aspecto a ser analisado nessa questatildeo que eacute o fato de os alunos terem sido orientados quanto agrave escrita acadecircmica e saberem das regras da citaccedilatildeo O natildeo uso desse expediente pode ser indicativo de ldquovelhos haacutebitosrdquo

Na concepccedilatildeo de Bourdieu (2008 p 21-22) habitus (disposiccedilotildees) eacute um ldquo[hellip] princiacutepio gerador e unificador que reproduz as caracteriacutesticas intriacutensecas e relacionais de uma posiccedilatildeo em um estilo de vida uniacutevoco [hellip]rdquo sendo que essas disposiccedilotildees satildeo adquiridas segundo Bonnewitz (2003) durante o processo de socializaccedilatildeo O indiviacuteduo interioriza mecanismos sociais e educacionais que geram comportamentos e valores aprendidos como oacutebvios e naturais Assim aprendemos e automatizamos comportamentos valores e conhecimentos

O habitus sempre estaacute integrando novos valores ajustando e adaptando estes aos valores antigos Contudo ldquoexiste uma ineacutercia (ou hysteresis) do habitus cuja tendecircncia espontacircnea [hellip] consiste em perpetuar estruturas correspondentes agraves suas condiccedilotildees de produccedilatildeordquo (BORDIEU 2001 p 196) Ou como define Sampaio (2009 p39) ldquotendecircncia do habitus a permanecer no indiviacuteduo ao longo do tempo mesmo que as condiccedilotildees objetivas que o produziram e que estatildeo nele refletidas tenham se alteradordquo A hysteresis pode ser justamente o que se vecirc em comportamentos linguiacutesticos que se mantecircm apesar das orientaccedilotildees educacionais contraacuterias

Essas consideraccedilotildees tambeacutem abrem espaccedilo para a questatildeo do que se produz na escola uma vez que o respeito agrave fonte de informaccedilatildeo eacute um procedimento que cabe ser cultivado em instacircncias anteriores ao grau universitaacuterio Para Freitas (1994) a concepccedilatildeo sociointeracionista considera que via de regra a escola ensina a crianccedila a escrever mas natildeo a dizer e sim a repetir Na escola muitas vezes o aluno eacute abstrato e as atividades satildeo esteacutereis e descontextualizadas Nesse contexto trabalhar com as informaccedilotildees de terceiros de maneira a manter sua autoria faz parte de uma dialogicidade que precisa ser mais estimulada no ensino baacutesico

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42 Composiccedilatildeo autoral dos textos

Levando em conta que a intertextualidade2 natildeo eacute medida apenas pela citaccedilatildeo do autor pudemos constatar que 625 dos textos fizeram uso dessas fontes (desconsiderando o texto 19) e em apenas um caso em situaccedilatildeo especiacutefica observamos o uso de informaccedilatildeo de texto de apoio de maneira equivocada apresentando uma compreensatildeo contraacuteria agrave colocada pelo autor

Quanto agrave questatildeo da interdiscursividade no que se refere ao uso de informaccedilotildees de sala de aula observamos que 75 das produccedilotildees fizeram uso dessas informaccedilotildees Muitas questotildees controversas relativas agrave pesquisa social discutidas durante o semestre foram consideradas nas produccedilotildees destacando uma apropriaccedilatildeo do dizer alheio na proacutepria autoria

Quanto ao uso de opiniatildeo proacutepria apoiada em senso comum pudemos observar que 75 dos textos fizeram uso desse expediente O uso de opiniatildeo proacutepria ou de senso comum nesses casosocorreu a partir das fontes de apoio sem que os autores se desviassem do tema

Analisando os criteacuterios concernentes ao universo autoral de forma integrada constatamos que do total dos textos 375 fizeram uso de todos os aspectos de forma integrada ou seja dos textos de apoiodas informaccedilotildees de sala de aula e de elaboraccedilotildees proacuteprias Aleacutem disso 6255 fizeram uso de informaccedilotildees de sala de aula e elaboraccedilotildees proacuteprias e 50 fizeram uso de textos de apoio e elaboraccedilotildees proacuteprias tambeacutem de forma integrada

O que se destaca eacute que aleacutem de um percentual elevado quanto ao uso de fontes de apoio 75 dos textos fazem uso de elaboraccedilotildees proacuteprias de forma integrada com os textos de apoio e com as discussotildees de sala de aula sem desviar-se do tema proposto Isso nos remete diretamente agrave questatildeo da autoria no sentido do autor-criador de Bakhtin (1992) Todos esses textos discutem sobre a ciecircncia seu funcionamento seus progressos mas cada um a partir de uma particularidade

Lecirc-se sobre a contribuiccedilatildeo da ciecircncia para nossas vidas sobre a importacircncia daqueles que questionam a realidade sobre os mitos e sua ligaccedilatildeo com o surgimento da ciecircncia assim como sua relaccedilatildeo com verdades cristalizadas e as fragilidades da ciecircncia O que se percebe eacute a relaccedilatildeo de valor que cada autor atribui ao tema

Para Bakhtin (1988b) eacute a relaccedilatildeo de valor ou a posiccedilatildeo socioaxioloacutegica que daacute forccedila ao autor para a composiccedilatildeo do todo No processo de se tornar autor-criador transforma-se a realidade vivida e diferentes valores sociais em novos valores Assim torna-se possiacutevel um mesmo tema a partir das mesmas leituras originar discursos tatildeo variados Essa eacute a materialidade verbal das posiccedilotildees socioaxioloacutegicas

2 No criteacuterio de anaacutelise ldquocomposiccedilatildeo autoralrdquo foram levados em conta criteacuterios de plurivocidade destacados em itaacutelico

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Nesse processo percebe-se tanto a realidade refratada a partir das vozes sociais e a linguagem alheia quando todos discutem o mito a ciecircncia quanto tambeacutem a posiccedilatildeo refratante que reordena e interpreta cada qual agrave sua maneira Nesse caminho percebe-se uma refraccedilatildeo ou seja a visatildeo dos autores a partir dos valores que carregam

43 Manutenccedilatildeo do tema proposto

Quanto agrave manutenccedilatildeo do tema proposto constatamos que 75 dos textos natildeo apresentam desvios do propoacutesito do tema Esse fato eacute indicativo de que a proposta foi entendida a pergunta desencadeadora levada em conta e foram feitas associaccedilotildees entre a proposta a pergunta e o arquivo Nesse sentido todas as leituras realizadas caminharam na direccedilatildeo da interpretaccedilatildeo

Quanto a essa questatildeo conforme jaacute discutido Pecirccheux (1997) considera que para muitos profissionais da leitura como catalogadores arquivistas escrivatildees copistas contiacutenuos da leitura enfim pessoas que trabalham com a organizaccedilatildeo de textos ou historiadores eacute negada a praacutetica da proacutepria leitura ou da leitura espontacircnea impondo um apagamento do sujeito leitor Assim eacute dado a uns o direito de produzir leituras originais e a outros a obrigaccedilatildeo da reproduccedilatildeo anocircnima Esse divoacutercio cultural entre o literaacuterio e o cientiacutefico gera uma divisatildeo social do trabalho da leitura

Contudo esse ato poliacutetico inscrito na relaccedilatildeo que se deteacutem com a accedilatildeo da leitura natildeo eacute uma questatildeo apenas dos profissionais e literatos mas tambeacutem da escola Esta a partir de tarefas esteacutereis e sem sentido que satildeo desencadeadas magicamente sem motivaccedilatildeo concreta descontextualizadas e sem um propoacutesito que oriente sua leitura ou produccedilatildeo tambeacutem caminha para a inserccedilatildeo do aluno apenas na esfera da leitura literal Aleacutem disso a preocupaccedilatildeo primeira da escola como coloca Pecirccheux (1997) eacute a manutenccedilatildeo de uma assepsia na construccedilatildeo da linguagem procurando sempre ambiguidades buscando sempre o sentido legiacutetimo da palavra das expressotildees e dos enunciados negando ao sujeito o espaccedilo de sua proacutepria construccedilatildeo tolhendo a criaccedilatildeo

O autor natildeo nega a importacircncia da linguagem culta ou convencional poreacutem ela tem que ser alcanccedilada a partir do texto ou seja o texto deve vir antes das regras e estas serviratildeo agravequele A escola ao contraacuterio ensina a regra para que o texto jaacute surja perfeito como se existisse nas palavras de Pecirccheux (1997) uma semacircntica universal

A questatildeo da leitura interpretativa eacute crucial para a formaccedilatildeo da identidade do arquivo Eacute fundamental considerar que os trecircs textos de apoio foram discutidos em sala de aula pela professora e pesquisadora foram feitos trabalhos individuais a partir de cada um dos textos e antes da produccedilatildeo assim como no momento da coleta dos dados o grupo como um todo discutiu o conteuacutedo do arquivo Cada um desses momentos trouxe informaccedilotildees e apoio ao autor No entanto o arquivo entendido como um conjunto de documentos sobre uma determinada questatildeo apresenta uma identidade peculiar para cada um dos autores O material pode ser o mesmo mas seu proacuteprio registro jaacute eacute marcado por preferecircncias pessoais nuanccedilas que apontam

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significados proacuteprios cores indicativas de tendecircncias jaacute na escolha e interpretaccedilatildeo das vozes ou de seu entrecruzamento

Feitas as anaacutelises quanto agrave citaccedilatildeo das fontes a composiccedilatildeo autoral e a manutenccedilatildeo do tema vale destacarmos que apenas um texto natildeo fez uso de qualquer base de informaccedilatildeo dos textos da mesma forma que natildeo teve sucesso quanto agrave manutenccedilatildeo do tema proposto Aleacutem desse texto outro tambeacutem fez uso de elaboraccedilotildees proacuteprias mas apresentando desvios do propoacutesito do texto

Nessas situaccedilotildees as opiniotildees baseadas no senso comum foram usadas apenas como recurso de retoacuterica superficialmente e sem uma ligaccedilatildeo direta com a questatildeo proposta denotando uma natildeo apropriaccedilatildeo dos textos de apoio ou das discussotildees de sala de aula e provavelmente uma leitura literal

5 Consideraccedilotildees finais

O interesse primeiro deste estudo foi o de observar a constituiccedilatildeo do universo autoral de alunos ingressantes no ensino superior a partir da leitura interpretativa e da formaccedilatildeo de arquivos

Na maioria dos casos os alunos conseguiram se manter no tema utilizando uma linguagem proacutepria e utilizando as fontes de apoio A manutenccedilatildeo do tema foi considerada indicaccedilatildeo de que tanto a tarefa quanto o conteuacutedo dos vaacuterios arquivos foram tornados proacuteprios o que envolve um ato de interpretaccedilatildeo Isso implica o movimento do sujeito na direccedilatildeo da constituiccedilatildeo dos sentidos do dizer

A formaccedilatildeo de um campo de conhecimento alimentado pelas discussotildees de sala de aula (interdiscursividade) assim como pelos textos estudados durante o semestre (intertextualidade) permitiram a formaccedilatildeo de arquivo responsaacutevel pelo ter o que dizer e pela constituiccedilatildeo da dialogia estabelecida no espaccedilo do texto

O que se pode observar eacute que a maioria dos textos produzidos tem autoria e pertence ao universo autoral de seus produtores uma vez que transformaram o dizer alheio em dizer proacuteprio assumindo um posicionamento axioloacutegico e com responsividade Tal resultado adquire relevacircncia pelo fato de esses alunos serem iniciantes frequentes do 1ordm semestre de um curso universitaacuterio e participarem de uma pesquisa que solicitava a produccedilatildeo de texto sobre um tema que eacute novo e com conceitos complexos

Frequentemente em nossa accedilatildeo educativa sentimos inseguranccedila quanto ao real aprendizado de nossos alunos ou agrave profundidade alcanccedilada Constatamos nessa investigaccedilatildeo a apropriaccedilatildeo de conceitos e conteuacutedos como resultado de um trabalho de formaccedilatildeo de arquivo

Assim pode-se dizer que o conhecimento eacute algo que se constroacutei ao longo do tempo e em meio a muitos discursos e textos Eacute a possibilidade de entrar em contato com um conhecimento de maneira variada com uma diversidade de textos que permitem sua compreensatildeo

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Dois aspectos servem de alerta a partir dessas consideraccedilotildees Primeiro a condiccedilatildeo de ensino que se institui no 3ordm grau Natildeo se trata apenas da condiccedilatildeo de chegada de nossos alunos mas tambeacutem da urgecircncia que se estabelece com vistas agrave melhoria de vida com a obtenccedilatildeo de um diploma Nesse sentido os fins prejudicam os meios A experiecircncia de sala de aula nos mostra que os alunos jaacute entram querendo aprender somente aquilo de que iratildeo fazer uso como se o campo profissional fosse assim tatildeo reduzido como se o desenvolvimento de um conhecimento capacidade ou habilidade natildeo solicitasse outros recursos natildeo tatildeo diretamente implicados

Cabe destacar ainda que o mercado tem se ampliado aprofundado e diversificado dentro da mesma aacuterea solicitando cada vez mais formaccedilatildeo do profissional em um curto espaccedilo de tempo Diante dessas exigecircncias a formaccedilatildeo e os conteuacutedos passam a ser acelerados e as possiblidades de se trabalhar a formaccedilatildeo de arquivo com isso reduzem-se

O segundo aspecto refere-se agrave qualidade da escrita dos autores Natildeo foram objeto de anaacutelise deste estudo questotildees gramaticais de coerecircncia e de coesatildeo Destacamos nessa direccedilatildeo que todos os trabalhos sem exceccedilatildeo apresentaram vaacuterias falhas que via de regra exigiram um esforccedilo analiacutetico no sentido de relevaacute-las para que o campo dialoacutegico entre produtor e leitor pudesse se estabelecer e se observassem os motivos dos dizeres Contudo haacute que se ressaltar tambeacutem que os desvios observados natildeo apagaram ou invalidaram a constituiccedilatildeo do universo autoral

Tal fato deve ser considerado com cautela pois via de regra nossos alunos escrevem com inconsistecircncias como jaacute colocado no iniacutecio deste trabalho Satildeo produccedilotildees marcadas por falta de loacutegica de fluecircncia de linearidade no discurso com falhas e truncamentos Essas caracteriacutesticas se mantecircm mesmo em trabalhos escritos que permitem aos alunos fazer ediccedilatildeo

Essas caracteriacutesticas ou inconsistecircncias acabam turvando nosso olhar e natildeo permitem que enxerguemos as qualidades do texto que existem apesar dos erros Aleacutem disso as inconsistecircncias encontradas tambeacutem geram equiacutevocos no sentido de acreditarmos que o conteuacutedo os conceitos e as ideias natildeo foram apreendidos o que nem sempre eacute possiacutevel afirmar

Em tais circunstacircncias cabe ressaltar o grande meacuterito da pesquisa-accedilatildeo cujos resultados beneficiam de imediato e de forma direta ao pesquisador e ao grupo pesquisado Nossa accedilatildeo pedagoacutegica nem sempre privilegia um olhar mais direcionado ou o estabelecimento de controles que permitam observaccedilatildeo de minuacutecias que se evidenciam geralmente em situaccedilotildees empiacutericas Condiccedilotildees natildeo tatildeo favoraacuteveis do dia a dia acabam orientando nossos discursos para o senso comum e geram ansiedade diante da falta de respostas para as nossas duacutevidas Aleacutem disso a pesquisa-accedilatildeo entre outros aspectos permite que fragilidades revelem suas possibilidades

Eacute justamente na direccedilatildeo da constituiccedilatildeo de um espaccedilo interativo da pesquisa-accedilatildeo que podemos criar paralelos com a linguagem que segundo Bakhtin (1970 apud BARROS 1994) eacute dialoacutegica o que nos leva a considerar natildeo um sujeito que produz e um sujeito que interpreta mas um espaccedilo de interlocuccedilatildeo verbal

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Recebido em 27102017

Aceito em 15112017

Terezinha Maia Martincowski

Doutora em Educaccedilatildeo pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Psicoacuteloga Escolar e Educacional Professora universitaacuteria na aacuterea de Educaccedilatildeo cowski91gmailcom

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eISSN 22376844polifonia

ldquoMito biograacuteficordquo e ldquoficccedilatildeo familiarrdquo em Borges e Calvino

ldquoBiographical Mythrdquo and ldquoFamily Fictionrdquo in Borges and Calvino

ldquoMito biograacuteficordquo y ldquoficcioacuten familiarrdquo en Borges y Calvino

Maria Elisa Rodrigues MoreiraUniversidade Federal de Mato Grosso

ResumoNeste artigo abordo alguns textos de caraacuteter autobiograacutefico dos escritores Jorge Luis Borges e Italo Calvino com o objetivo de refletir sobre as formas pelas quais nesses textos memoacuteria e ficccedilatildeo satildeo articuladas de forma a constituir ou alimentar uma espeacutecie de ldquoficccedilatildeo familiarrdquo que contribui para a instituiccedilatildeo de um ldquomito biograacuteficordquo que se pode associar aos dois escritores para recuperarmos expressotildees utilizadas por Beatriz Sarlo e Ricardo Piglia em seus estudos dedicados agrave obra de Jorge Luis Borges Essa ficccedilatildeo familiar propotildee uma genealogia que aproxima tanto Borges quanto Calvino do universo da palavra escrita e do mundo dos livros reforccedilando a literatura como o ldquodestinordquo previsiacutevel (se natildeo o uacutenico possiacutevel) de suas vidasPalavras-chave Ficccedilatildeo familiar mito biograacutefico literatura

AbstractIn this article I will discuss a few texts of autobiographical character written by Jorge Luis Borges and Italo Calvino with the purpose to reflect on the ways in which in these texts memory and fiction are articulated to constitute or nurture a kind of ldquofamily fictionrdquo that contributes to the establishment of a ldquobiographical mythrdquo which can be associated to the aforementioned writers in order to recover expressions used by Beatriz Sarlo and Ricardo Piglia in their studies dedicated to the work of Jorge Luis Borges This ldquofamily fictionrdquo proposes a genealogy that approximates Borges and Calvino to the universe of words and the world of books reinforcing literature as the predictable ldquodestinyrdquo (if not the only possible one) of their livesKeywords Family fiction Biographical myth Literature

ResumenEn este artiacuteculo desarrollo un abordaje de algunos textos de caraacutecter autobiograacutefico de los escritores Jorge Luis Borges e Italo Calvino con el propoacutesito de reflexionar acerca de las formas por las cuales en esos textos memoria y ficcioacuten se articulan con tal de constituir o alimentar una especie de ldquoficcioacuten familiarrdquo que aporta a la institucioacuten de un ldquomito biograacuteficordquo que se puede asociar a los dos escritores seguacuten expresiones usadas por Beatriz Sarlo y Ricardo Piglia en sus estudios dedicados a la obra de Jorge Luis Borges Esa ficcioacuten familiar propone una genealogiacutea que acerca tanto Borges como Calvino al universo de la palabra escrita y al mundo de los libros poniendo de relieve la literatura como el ldquodestinordquo previsible (quizaacutes el uacutenico posible) de sus vidasPalabras clave Ficcioacuten familiar mito biograacutefico literatura

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As questotildees relativas agrave memoacuteria perpassam como jaacute o apontaram diversos estudos as obras ficcionais de Jorge Luis Borges e de Italo Calvino contos como ldquoFunes o memoriosordquo(2007c) de autoria do argentino e ldquoA memoacuteria do mundordquo(2001) do italiano apenas para citar dois exemplos satildeo referecircncias claacutessicas dessa perspectiva de leitura de suas obras No entanto ainda que menos estudados pela criacutetica os textos de caraacuteter autobiograacutefico de ambos os escritores satildeo tambeacutem um rico material para se refletir sobre a relaccedilatildeo entre memoacuteria e ficccedilatildeo e indicam o uso de estrateacutegias narrativas similares entre os dois escritores de um lado nesses textos se pode perceber a construccedilatildeo de uma espeacutecie de ldquoficccedilatildeo familiarrdquo conforme expressatildeo utilizada por Ricardo Piglia em ldquoIdeologiacutea y ficcioacuten en Borgesrdquo (1979) por meio da qual tanto o escritor argentino quanto o italiano se vinculam a uma genealogia que os aproxima de alguma maneira do universo dos livros de outro essa ficccedilatildeo familiar serve para fomentar um ldquomito biograacuteficordquo para retomarmos aqui expressatildeo de Beatriz Sarlo cunhada em Jorge Luis Borges um escritor na periferia (2008) que cerca as produccedilotildees borgiana e calviniana mito este que faz da literatura o uacutenico ldquodestinordquo possiacutevel de vidas que se desenvolvem como as deles

Vale destacar que aqui entendemos o biograacutefico e o ficcional atinentes seja agrave expressatildeo ldquoficccedilatildeo familiarrdquo seja agrave expressatildeo ldquomito biograacuteficordquo em chave aproximativa agrave proposta por Juan Joseacute Saer em seu texto ldquoO conceito de ficccedilatildeordquo escrito em 1989 no qual o escritor assim se manifesta

A primeira exigecircncia da biografia a veracidade atributo pretensamente cientiacutefico eacute nada mais do que o constructo retoacuterico de um gecircnero literaacuterio natildeo menos convencional do que as trecircs unidades da trageacutedia claacutessica ou o desmascaramento do assassino nas uacuteltimas paacuteginas do romance policial A negaccedilatildeo escrupulosa do elemento fictiacutecio natildeo eacute um criteacuterio de verdade visto que o proacuteprio conceito de verdade eacute incerto e sua definiccedilatildeo integra elementos diacutespares e ateacute contraditoacuterios [hellip] Portanto podemos afirmar que a verdade natildeo eacute necessariamente o contraacuterio da ficccedilatildeo e que quando optamos pela praacutetica da ficccedilatildeo natildeo o fazemos com o propoacutesito turvo de tergiversar a verdade [hellip] Ao ir em direccedilatildeo ao natildeo verificaacutevel a ficccedilatildeo multiplica ao infinito as possibilidades de tratamento Natildeo nega uma suposta realidade objetiva ao contraacuterio submerge-se em sua turbulecircncia desdenhando a atitude ingecircnua que consiste em pretender saber de antematildeo como essa realidade se conforma (SAER 2012 p 1-3)

Eacute portanto como uma espeacutecie de potencializaccedilatildeo das possibilidades biograacuteficas que se aponta aqui o recurso dos escritores agrave ficccedilatildeo como elemento complexificador de suas vidas e do papel que nelas ocupa a narrativa literaacuteria Se a ficccedilatildeo eacute um ldquotratamento especiacutefico do mundordquo (SAER 2012 p 3) parece-me ser o mais adequado para se pensar as biografias de Borges e Calvino autores cuja relaccedilatildeo com o mundo se dava no mais das vezes entrecortada pela ficccedilatildeo Eacute a refletir sobre essa questatildeo que me dedicarei ao longo deste texto tomando como obras centrais o Ensaio autobiograacutefico de Borges (2009) e O caminho de San Giovanni de Calvino (2000a)

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O viacutenculo com a palavra escrita e a preocupaccedilatildeo com o conhecimento comeccedilam muito cedo na vida dos dois escritores e marcam consideravelmente sua praacutetica criativa e criacutetica levando-os a uma incessante busca pela construccedilatildeo de um saber que reconhecem impossiacutevel ser totalizante Essa busca resulta na extrema mobilidade e na multiplicidade do universo poeacutetico dos autores que transitam entre temaacuteticas e estilos diversificados mesclados em produccedilotildees narrativas poeacuteticas e ensaiacutesticas que se mostram confluentes e coerentes ao desbordar as fronteiras dos gecircneros discursivos e ao fazer transitar duacutevidas hipoacuteteses e saberes muacuteltiplos Criacutetica e ficccedilatildeo andam juntas e se interpolam na tessitura de narrativas que satildeo permanente e simultaneamente uma forma de reflexatildeo

Ricardo Piglia em ldquoIdeologiacutea y ficcioacuten en Borgesrdquo argumenta que a ficccedilatildeo de Borges eacute acompanhada por uma espeacutecie de narrativa genealoacutegica que diz da origem e da proacutepria possibilidade de formaccedilatildeo da escritura borgiana fundada na trajetoacuteria de reconhecimento pelo autor de que pertence a uma dupla linhagem ndash familiar e intelectual a linhagem da histoacuteria e a linhagem da literatura recontadas por Borges por meio de uma ldquoficccedilatildeo familiarrdquo de um lado a famiacutelia da matildee que remonta agrave histoacuteria argentina aos seus guerreiros e fundadores de outro a famiacutelia paterna de origem inglesa remetendo agrave tradiccedilatildeo intelectual e literaacuteria Conforme Piglia

Eacute esta oposiccedilatildeo ideoloacutegica a que eacute obrigada em Borges a tomar a forma de uma tradiccedilatildeo familiar A ficccedilatildeo dessa dupla linhagem lhe permite integrar todas as diferenccedilas fazendo ressaltar simultaneamente o caraacuteter antagocircnico das contradiccedilotildees mas tambeacutem sua harmonia O uacutenico ponto de encontro desse sistema de oposiccedilotildees eacute certamente o mesmo Borges ou melhor os textos de Borges (PIGLIA 1979 p 4 Traduccedilatildeo do autor)

Eacute essa genealogia literaacuteria que conduz conforme Beatriz Sarlo (2008) o ldquomito biograacuteficordquo em torno de Jorge Luis Borges o qual se funda na apropriaccedilatildeo que o escritor argentino faz da literatura Nessa perspectiva a ldquoficccedilatildeo familiarrdquo marca o ldquoensaio autobiograacuteficordquo (BORGES 2009) ditado em inglecircs por Borges a seu tradutor Norman Thomas di Giovanni no iniacutecio de 1970 Nele ambas as linhagens satildeo retomadas e o escritor apresenta-se como herdeiro tanto de uma memoacuteria histoacuterica quanto de uma memoacuteria literaacuteria Interessa-me particularmente essa genealogia literaacuteria a qual precisa ser sempre considerada tendo-se em vista sua constituiccedilatildeo mediante o signo do duplo ou seja uma genealogia que eacute tanto familiar privada (a memoacuteria)quanto social puacuteblica (a biblioteca) Como ressalta Piglia em lugar de excluir as inuacutemeras contradiccedilotildees que marcam essa duplicidade Borges as manteacutem fazendo delas elementos constitutivos de sua escritura ldquoA memoacuteria e a biblioteca representam as propriedades a partir das quais se escreve poreacutem esses dois espaccedilos de acumulaccedilatildeo satildeo ao mesmo tempo o lugar mesmo da ficccedilatildeo em Borgesrdquo (PIGLIA 1979 p 6 traduccedilatildeo minha)

Sob esse prisma procuro aproximar a essa dupla chave de leitura da obra de Borges proposta por Ricardo Piglia pautada pelas linhagens familiarhistoacuterica e literaacuteriaintelectual a perspectiva de uma obra fraturada conforme proposta por Beatriz Sarlo

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(2008) cuja rachadura seria originaacuteria de uma tensatildeo insistente entre o nacional (familiar) e o cosmopolita (literaacuterio) Sarlo indica que eacute nesse lugar tensionado nesse espaccedilo entre duas margens que Borges constitui seu pensamento e sua literatura e que qualquer leitura que se faccedila da produccedilatildeo borgiana a partir de apenas um desses polos ainda que perfeitamente possiacutevel resultaraacute numa perda significativa

Conquanto a reflexatildeo sobre o ensaio como gecircnero particular de escrita e de organizaccedilatildeo do pensamento fuja ao escopo deste texto parece-me relevante destacar a escolha de Borges pelo tiacutetulo de seu livro autobiograacutefico no original inglecircs An Autobiographical Essay (Ensaio autobiograacutefico na traduccedilatildeo brasileira) A pesquisadora uruguaia Lisa Block de Behar que jaacute dedicou livros e artigos agrave obra do escritor argentino afirma que com esse tiacutetulo Borges faz circular em torno do texto os vaacuterios sentidos que se condensam no termo ensaio

Natildeo recordo outros autores que tenham apresentado sua autobiografia como um ldquoensaiordquo tampouco recordo que Borges tenha designado como autobiograacuteficos outros de seus textos aleacutem da alusatildeo a alguma lembranccedila de suas leituras ou agrave intensidade poeacutetica de algum instante de intimidade privada (BEHAR 1999 Traduccedilatildeo do autor)

Ela lamenta ainda que a traduccedilatildeo da obra para a liacutengua espanhola natildeo mantenha o tiacutetulo original

Com efeito o tiacutetulo em espanhol apenas o apresenta como uma sucinta Autobiografia sem explicar qualquer razatildeo para a omissatildeo de uma parte substancial da denominaccedilatildeo em inglecircs suspendendo o enfrentamento que por justapor dois nomes geneacutericos como um soacute impugna a ambos (BEHAR 1999 Traduccedilatildeo do autor)

Esse ldquoensaio de biografiardquo assim que jaacute nasce marcado pelo signo do hiacutebrido destaca a importacircncia dos livros na infacircncia de Borges e no ambiente familiar em que ele cresceu O escritor afirma que ldquouma tradiccedilatildeo literaacuteria percorria a famiacutelia de [s]eu pairdquo (BORGES 2009 p 18) destacando o fato de que Fanny Haslam sua avoacute paterna inglesa ndash responsaacutevel pelo conhecimento de inglecircs que Borges adquiriu desde cedo ndash ldquoera uma grande leitorardquo (p 12) e dizendo a respeito de seu pai ter sido ldquoele quem me revelou o poder da poesia o fato de as palavras serem natildeo apenas um meio de comunicaccedilatildeo mas tambeacutem siacutembolos maacutegicos e muacutesicardquo (p 13) Seu pai Jorge Guillermo Borges escreveu um romance sua matildee Leonor Acevedo com quem Borges viveu por quase toda a vida apoacutes a morte do marido dedicou-se agrave traduccedilatildeo de obras literaacuterias

Nesse mesmo texto Borges se apresenta ainda como ldquoum homem de livrosrdquo (p 16) e destaca a importacircncia da biblioteca do pai em sua vida

Se tivesse de indicar o evento principal de minha vida diria que eacute a biblioteca de meu pai Na realidade creio nunca ter saiacutedo dessa biblioteca Eacute como se ainda a estivesse vendo Ocupava todo um aposento com estantes envidraccediladas e devia conter milhares de volumes Como era

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muito miacuteope esqueci-me da maioria dos rostos dessa eacutepoca (quando penso em meu avocirc Acevedo talvez esteja pensando em sua fotografia) mas ainda lembro com nitidez as gravuras em accedilo da Chambersrsquos Encyclopaedia e da Britannica (BORGES 2009 p 16)

O escritor continua enumerando as diversas obras que leu a partir dessa biblioteca Embora longa a citaccedilatildeo justifica-se tanto por traccedilar a importacircncia emblemaacutetica da biblioteca na vida do escritor desde a infacircncia como por apresentar-se como uma lista das leituras que o marcaram nesse periacuteodo como uma espeacutecie de inventaacuterio de sua heteroacuteclita histoacuteria de aproximaccedilatildeo com a literatura como uma sinalizaccedilatildeo das questotildees que marcaram sua obra posterior ou seja como um elemento conformador do mito biograacutefico que o leva a se tornar um ldquohomem de livrosrdquo

O primeiro romance que li inteiro foi Huckleberry Finn Depois vieram Roughing It e Flush Days in California Tambeacutem li os livros do capitatildeo Marryat Os primeiros homens na Lua de Wells Poe uma ediccedilatildeo da obra de Longfellow em um volume A ilha do tesouro Dickens Dom Quixote Tom Brown na escola os contos de fadas de Grimm Lewis Carroll As aventuras de mr Verdant Green (livro agora esquecido) As mil e uma noites de Burton A obra de Burton ndash infestada de coisas entatildeo consideradas obscenidades ndash foi-me proibida e tive de lecirc-la agraves escondidas no terraccedilo Mas nessa altura estava tatildeo emocionado pela magia do livro que natildeo percebi em absoluto as partes censuraacuteveis e li os contos sem me dar conta de nenhum outro significado Todos os livros que acabo de mencionar eu os li em inglecircs Quando mais tarde li Dom Quixote na versatildeo original pareceu-me uma traduccedilatildeo ruim Ainda lembro aqueles volumes vermelhos com letras impressas em ouro da ediccedilatildeo Garnier Em algum momento a biblioteca de meu pai fragmentou-se e quando li o Quixote em outra ediccedilatildeo tive a sensaccedilatildeo de que natildeo era o verdadeiro Quixote Mais tarde fiz com que um amigo me conseguisse a ediccedilatildeo Garnier com as mesmas gravuras em accedilo as mesmas notas de rodapeacute e tambeacutem as mesmas erratas Para mim todas essas coisas fazem parte do livro considero esse o verdadeiro Quixote (BORGES 2009 p 16-17)

Podemos traccedilar nessa lista de memoacuterias de leitura percursos que as relacionam agraves obras borgianas de modo que eacute como se aiacute na biblioteca paterna estivesse indicado o futuro escritor de sucesso internacional que Borges jaacute era quando escreveu essas paacuteginas autobiograacuteficas Nesse rol encontram-se os verbetes enciclopeacutedicos retrabalhados em Manual de Zoologiacutea Fantaacutestica (BORGES e GUERRERO 2001) e O livro dos seres imaginaacuterios (BORGES e GUERRERO 2007) Richard Burton e as questotildees pertinentes agrave traduccedilatildeo sobre as quais o autor reflete em ldquoProblemas de la traduccioacuten (el oficio de traducir)rdquo (BORGES 1999b) ldquoLas dos maneras de traducirrdquo (BORGES 1926) e ldquoAs versotildees homeacutericasrdquo (BORGES 2008) o ldquoverdadeirordquo Quixote de ldquoPierre Menard autor do Quixoterdquo (BORGES 2007b) A biblioteca paterna parece funcionar assim como uma forccedila centriacutefuga da qual decorre a maioria dos temas que iratildeo compor seu repertoacuterio de produccedilatildeo seja ele narrativo poeacutetico ou ensaiacutestico

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Em espanhol li muitos dos livros de Eduardo Gutieacuterrez sobre bandidos e foragidos argentinos ndash sobretudo Juan Moreira ndash bem como seu Siluetas militares que conteacutem um vigoroso relato da morte do coronel Borges Minha matildee proibiu-me a leitura do Martiacuten Fierro pois o considerava um livro indicado apenas para rufiotildees e colegiais e que aleacutem disso nada tinha a ver com os verdadeiros gauchos Esse tambeacutem eu li agraves escondidas A opiniatildeo de minha matildee baseava-se no fato de que Hernaacutendez apoiara Rosas e portanto era inimigo de nossos antepassados unitaacuterios Li ainda o Facundo de Sarmiento e vaacuterios livros sobre mitologia grega e depois escandinava A poesia chegou-me atraveacutes do inglecircs Shelley Keats FitzGerald e Swinburne esses grandes favoritos de meu pai que ele podia citar extensamente e muitas vezes o fazia (BORGES 2009 p 17)

Genealogia literaacuteria traccedilada a posteriori num movimento como o postulado pelo escritor em ldquoKafka e seus precursoresrdquo (BORGES 2007a) a lista borgiana ndash que poderia estender-se ao infinito ndash embaralha as influecircncias e deixa antever o gosto pelas burlas demarcando ldquoum entrelugar linguiacutestico e literaacuteriordquo (OLMOS 2008 p 13) e indicando uma biblioteca a ser resgatada ndash mesmo que essa biblioteca paterna talvez nunca tenha existido tal qual narrada

Ainda rememorando a biblioteca familiar o escritor afirma ldquoSempre cheguei agraves coisas depois de encontraacute-las nos livrosrdquo (BORGES 2009 p 20) Esse comentaacuterio como destaca Ana Ceciacutelia Olmos diz de um aspecto fundamental da poeacutetica de Borges a leitura como ldquoinstacircncia fundadora de sua escriturardquo como uma experiecircncia de vida tatildeo importante quanto qualquer outra Ela indica a rasura constante praticada pelo escritor entre o que adveacutem de uma imaginaccedilatildeo literaacuteria e o que decorre de uma experiecircncia do mundo sensiacutevel situaccedilotildees por ele aproximadas e vivenciadas sob a mesma oacutetica ldquoUm escritor que assumiu o livro como elemento vital deu agrave leitura o status de extensatildeo da experiecircncia e transformou a biblioteca no seu habitatrdquo (OLMOS 2008 p 8) Como jaacute havia afirmado Maurice Blanchot Borges era um ldquohomem essencialmente literaacuteriordquo com o que se quer dizer que estava ldquosempre pronto para compreender segundo o modo que a literatura autorizardquo (BLANCHOT 1999 p 74 traduccedilatildeo minha)

Nascido em Buenos Aires em 1899 Borges mudou-se com a famiacutelia para a Europa em 1914 laacute vivendo por nove anos a viagem decorrente da busca por tratamento para a perda de visatildeo de seu pai prolongou-se devido agrave eclosatildeo da Primeira Guerra Mundial Ao longo desse periacuteodo ele concluiu em Genebra os estudos de niacutevel meacutedio e aproximou-se do Ultraiacutesmo movimento de vanguarda que conheceu na Espanha e que influenciou suas primeiras obras poeacuteticas Afirmou tambeacutem sua proximidade com a palavra escrita tornando-se um leitor fervoroso tanto de literatura quanto de filosofia e publicando seus primeiros textos em perioacutedicos europeus expandiu assim os limites de sua biblioteca familiar convertida entatildeo numa ldquobiblioteca peregrinardquo

A expressatildeo ldquobiblioteca peregrinardquo foi cunhada por Ana Ceciacutelia Olmos que ao traccedilar um ldquoretrato do artistardquo em seu Por que ler Borges (2008) elabora um panorama biograacutefico do autor que tem na presenccedila da biblioteca em sua vida o principal referencial Esse

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ldquoimperfeito bibliotecaacuteriordquo ndash alusatildeo direta ao texto ldquoA Biblioteca de Babelrdquo ndash eacute apresentado por meio de quatro bibliotecas a ldquobiblioteca familiarrdquo correspondente ao tempo da infacircncia e da formaccedilatildeo de Jorge Luis Borges influenciados fortemente pela biblioteca paterna a ldquobiblioteca peregrinardquo referente ao periacuteodo em que Borges viveu na Europa com sua famiacutelia e no qual ampliou seus referenciais literaacuterios a ldquobiblioteca crepuscularrdquo que diz do momento de seu retorno a Buenos Aires e de sua produccedilatildeo anterior ao amplo reconhecimento de puacuteblico e criacutetica e a ldquobiblioteca da consagraccedilatildeordquo correspondente agrave eacutepoca de suas produccedilotildees de maior sucesso aos precircmios literaacuterios e ao prestiacutegio internacional

No periacuteodo europeu a biblioteca de seu pai ampliava-se incorporando autores textos e idiomas distintos ndash o latim de Virgiacutelio o francecircs de Baudelaire Paul Verlaine Victor Hugo e Eacutemile Zola o alematildeo de Heine Nietzsche Schopenhauer ndash e novos escritores de idiomas jaacute conhecidos como o inglecircs e o espanhol ndash Thomas de Quincey Chesterton Quevedo Goacutengora Miguel de Unamuno Essa biblioteca peregrina marcava assim uma formaccedilatildeo literaacuteria cosmopolita e ao mesmo tempo a inserccedilatildeo ldquoperifeacutericardquo do autor que o levava a transitar pelas diversas tradiccedilotildees literaacuterias assumindo-as e subvertendo-as com a marca de seu lugar nacional

Ambas as bibliotecas familiar e peregrina apresentam-se assim como emblemas de uma escritura que se constroacutei a partir do diaacutelogo nem sempre paciacutefico entre o centro e a margem em decorrecircncia de um olhar que soacute eacute possiacutevel desse lugar ex-cecircntrico

[] sua obra eacute perturbada pela tensatildeo entre a mistura e a nostalgia por uma literatura europeia que um latino-americano natildeo pode nunca viver integralmente como natureza original Apesar da perfeita felicidade do estilo a obra de Borges traz uma rachadura em seu centro desloca-se na crista de vaacuterias culturas que se tocam (ou se repelem) em suas periferias Borges desestabiliza as grandes tradiccedilotildees ocidentais bem como aquelas que conheceu do Oriente cruzando-as (no sentido de caminhos que se cruzam mas tambeacutem no de raccedilas que se misturam) no espaccedilo rio-pratense (SARLO 2008 p 17)

Os conflitos culturais histoacutericos e geograacuteficos que marcam essa tensatildeo ficam ainda mais evidentes quando do retorno do autor agrave Argentina em 1921 Borges redescobriu naquele momento um paiacutes muito diferente daquele que havia deixado A Buenos Aires que encontrou era apenas um rastro da cidade de sua infacircncia passando por mudanccedilas vertiginosas ele voltou para uma cidade em pleno desenvolvimento com um movimento cultural e literaacuterio efervescente uma cidade que incorporava a modernidade em seu sentido mais amplo

Foi nessa nova Buenos Aires que se constituiacutea na interface entre o novo e o que persistia que Borges e outros renomados escritores passaram a atuar ativamente mobilizando seu cenaacuterio cultural Em 1921 fundaram a revista mural Prisma e em 1922 a revista Proa (WOODALL 1999 VACCARO 2006) Em 1923 Borges publicou seu primeiro livro de poemas Fervor de Buenos Aires no qual essa tensatildeo entre a cidade da memoacuteria e a cidade em movimento pode ser considerada o eixo principal A partir de entatildeo manteve

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ateacute sua morte um intenso ritmo de produccedilatildeo colaborou com diversas revistas literaacuterias e suplementos culturais (nos quais publicou ensaios contos e poemas) organizou antologias traduziu romances e escreveu prefaacutecios a vaacuterias obras aleacutem de ter ministrado inuacutemeras conferecircncias Jaacute em seus primeiros textos eacute possiacutevel perceber a ironia o humor e o deslocamento como estrateacutegias para a reflexatildeo sobre a literatura e a cultura (ainda que posteriormente ele tenha vindo a negar a importacircncia desses escritos como os publicados em Inquisiciones de 1925)

O mito biograacutefico continua a se constituir para aleacutem da ficccedilatildeo familiar ganhando importacircncia aiacute uma segunda genealogia traccedilada pelo autor relativa agrave cegueira e agrave biblioteca Foi em 1938 que os livros passaram a cercar Borges tambeacutem profissionalmente seu primeiro emprego regular foi na Biblioteca Municipal Miguel Caneacute da qual foi primeiro assistente durante cerca de nove anos Sobre essa biblioteca ele afirmou

Agora eu deveria ter deixado essa biblioteca ndash era um ambiente assaz mediacuteocre ndash mas continuei trabalhando Natildeo sei se a palavra ldquotrabalhandordquo eacute exata eacuteramos acho uns cinquenta funcionaacuterios e nos designaram um trabalho que tinha que ser lento [] Bom e entatildeo o que acontecia Nosso trabalho era feito em digamos meia hora ou em 45 minutos e depois sobrava o restante das seis horas que eram dedicadas a conversas sobre futebol ndash tema que ignoro profundamente ndash ou fofocas ou por que natildeo contos ldquopicantesrdquo Agora eu me escondia porque tinha encontrado uma estranha ocupaccedilatildeo ler os livros da biblioteca Eu devo a esses nove anos o conhecimento da obra de Leacuteon Bloy de Paul Claudel voltei a ler os seis volumes de Decliacutenio e queda do Impeacuterio Romano de Gibbon e conheci livros dos quais natildeo tinha notiacutecia De maneira que aproveitei o tempo (BORGES e FERRARI 2009 p 56-57)

Na deacutecada de 1940 Borges lanccedilou seus mais famosos livros de contos que lhe valeram o reconhecimento internacional e deram iniacutecio a uma seacuterie de precircmios literaacuterios e tiacutetulos acadecircmicos honoriacuteficos de todas as partes do mundo Ficccedilotildees de 1944 e O Aleph de 1949 Paralelamente ao sucesso como escritor adveacutem tambeacutem a cegueira outra ldquotradiccedilatildeo familiarrdquo que acometera seu pai e iria progressivamente retirar sua visatildeo em 1955 jaacute estava quase completamente cego Os livros entretanto natildeo deixavam de cercaacute-lo foi nomeado nesse ano diretor da Biblioteca Nacional da Argentina

Na conferecircncia ldquoA cegueirardquo publicada no livro Sete noites Borges traccedila a aproximaccedilatildeo entre sua genealogia familiar e sua genealogia bibliotecaacuteria tendo como ponto de uniatildeo a cegueira Num primeiro momento associa a Biblioteca agraves leituras da infacircncia quando a frequentava acompanhado do pai

Fui nomeado diretor da biblioteca e voltei agravequela casa da rua Meacutexico no bairro de Montserrat no Sul de que guardava tantas recordaccedilotildees Eu jamais havia sonhado com a possibilidade de ser diretor da Biblioteca Tinha recordaccedilotildees de outra ordem Ia com meu pai agrave noite (BORGES 2011 p 199)

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Depois associa o fato agrave sua cegueira

Pouco a pouco fui compreendendo a estranha ironia dos fatos Eu sempre imaginara o Paraiacuteso como tendo o aspecto de uma biblioteca Outras pessoas pensam num jardim outras talvez pensem num palaacutecio Laacute estava eu Era de alguma maneira o centro de 900 mil volumes em diversos idiomas Comprovei que mal conseguia decifrar as capas e as lombadas Entatildeo escrevi o ldquoPoema dos donsrdquo que comeccedila por ldquoNingueacutem rebaixe a laacutegrima ou rejeite esta declaraccedilatildeo da maestria de Deus que com magniacutefica ironia deu-me a um soacute tempo os livros e a noiterdquo Esses dois dons que se contradizem os muitos livros e a noite a incapacidade de lecirc-los (BORGES 2011 p 200)

Por fim traccedila a ligaccedilatildeo entre a biblioteca e a cegueira criando uma genealogia de bibliotecaacuterios cegos que passaram pela Biblioteca Nacional da Argentina

Imaginei que Groussac era o autor do poema porque Groussac tambeacutem foi diretor da Biblioteca e tambeacutem cego Groussac foi mais corajoso que eu guardou silecircncio Mas pensei que sem duacutevida havia momentos em que nossas vidas coincidiam jaacute que noacutes dois chegaacuteramos agrave cegueira e noacutes dois amaacutevamos os livros []Na eacutepoca eu ignorava que a Biblioteca tivera outro diretor Joseacute Maacutermol que tambeacutem foi cego Aqui aparece o nuacutemero trecircs que fecha as coisas Dois eacute uma mera coincidecircncia trecircs uma confirmaccedilatildeo []Temos assim trecircs pessoas que receberam igual destino (BORGES 2011 p 201-202)

O ldquodestinordquo confirmava assim o mito biograacutefico Borges permaneceu como diretor da Biblioteca Nacional ateacute se aposentar em 1973 Paralelamente agrave sua entrada no paraiacuteso pelo qual tomava as bibliotecas ao longo da deacutecada de 1940 iniciara-se tambeacutem o viacutenculo de Borges com o ramo editorial no qual se projetou como antologista na editora Emececirc A palavra escrita era sua estrateacutegia de accedilatildeo intervenccedilatildeo e colocaccedilatildeo no mundo escrevia prefaacutecios criacutetica e roteiros de cinema organizava e dirigia coleccedilotildees literaacuterias produzia ensaios para diversos perioacutedicos e ainda se arriscou em um conjunto de milongas posteriormente musicadas por Astor Piazzolla (Para as seis cordas) aleacutem disso dava conferecircncias sobre literatura por todo o mundo concedeu inuacutemeras entrevistas e tinha sob sua responsabilidade caacutetedras acadecircmicas

Essa multiplicidade de textos e esse voraz apetite pela leitura fazem da obra de Borges uma vasta biblioteca um territoacuterio livresco em que a tradiccedilatildeo eacute rememorada e recriada constantemente em que o sonho a realidade e a imaginaccedilatildeo se imbricam de maneira contiacutenua e em que o saber se constroacutei a partir do diaacutelogo entre a ficccedilatildeo e a reflexatildeo em suas mais variadas formas de apariccedilatildeo

Ainda que diferenciadas em vaacuterios aspectos a vida e as obras de Borges e Calvino aproximam-se por esse viacutenculo com a palavra escrita pela presenccedila insistente das figuras do livro e da biblioteca bem como por uma produccedilatildeo textual que constantemente coloca em questatildeo o proacuteprio fazer literaacuterio como pensar por meio

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da ficccedilatildeo como produzir saberes que se instituem no bojo da narrativa e com os recursos desta num cenaacuterio em que predomina a valorizaccedilatildeo da ciecircncia como uacutenico discurso vaacutelido para o conhecimento

A relaccedilatildeo entre literatura e ciecircncia construiacuteda por Calvino pode ser lida a exemplo de Borges a partir de um ldquomito biograacuteficordquo de uma ldquoficccedilatildeo familiarrdquo Luca Baranelli e Ernesto Ferrero ao traccedilarem em Album Calvino (2003) uma biografia do autor afirmam que ele trazia em seu ldquocoacutedigo geneacuteticordquo uma mentalidade cientiacutefica seu pai Mario Calvino era um agrocircnomo de San Remo que passou alguns anos no Meacutexico (onde dirigiu a Estaccedilatildeo Experimental de Agricultura) e em Cuba sua matildee Eva Mameli foi a primeira mulher a ocupar uma caacutetedra de Botacircnica em uma universidade italiana Esse mito biograacutefico eacute entretanto marcado por uma dupla mirada o gosto pelas oposiccedilotildees binaacuterias e dicotomias que se desdobra e ramifica Jean Starobinski no prefaacutecio aos romances e contos de Calvino destaca que desde os primeiros textos do escritor italiano eacute possiacutevel perceber sua predileccedilatildeo pelas antiacuteteses pelas oposiccedilotildees binaacuterias e pelas dicotomias mas que essas duplas opostas nunca se apresentam de maneira simeacutetrica ou equilibrada nas oposiccedilotildees calvinianas prevalecem a tensatildeo a dissimetria e a instabilidade situaccedilotildees de potencialidade criadora (STAROBINSKI 2003)

Num primeiro movimento opotildeem-se a ciecircncia-paixatildeo do pai e a ciecircncia-ordem da matildee Para o pai a ciecircncia era um universo dominante pautado por uma relaccedilatildeo de afeto excessiva que ocupava toda a vida uacutenico espaccedilo no qual o homem poderia existir

O caminho de meu pai tambeacutem levava longe Do mundo ele via somente as plantas e o que tivesse relaccedilatildeo com plantas e de cada planta dizia em voz alta o nome no latim absurdo dos botacircnicos e o lugar de procedecircncia ndash sua paixatildeo fora a vida toda conhecer e aclimatar plantas exoacuteticas ndash e o nome vulgar se houvesse em espanhol ou inglecircs ou em nosso dialeto e nesse nomear as plantas punha a paixatildeo de estar dilapidando um universo sem fim de se aventurar a cada vez ateacute as fronteiras extremas de uma genealogia vegetal e em cada ramo ou folha ou nervura abrir para si um caminho como que fluvial na linfa na rede que cobre a verde terra [] porque esta era sua paixatildeo ndash a primeira sim a primeira ou seja a uacuteltima a forma extrema de sua paixatildeo uacutenica conhecer cultivar caccedilar insistir persistir de todas as maneiras nesse bosque selvagem no universo natildeo antropomorfo diante do qual (e somente aiacute) o homem era homem [] (CALVINO 2000b p 19-20)

Para a matildee se a ciecircncia era tambeacutem o uacutenico universo possiacutevel assumia uma forma diferente aquela do rigor e da ordem na qual natildeo havia espaccedilo para qualquer transbordamento

Que a vida tambeacutem fosse desperdiacutecio isso minha matildee natildeo admitia ndash ou seja que tambeacutem fosse paixatildeo Por isso nunca saiacutea do jardim etiquetado planta a planta da casa forrada de buganviacutelias do escritoacuterio com o microscoacutepio debaixo da redoma de vidro e os herbaacuterios Sem incertezas ordeira transformava as paixotildees em deveres e deles vivia (CALVINO 2000b p 26)

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Num segundo momento a contraposiccedilatildeo se estabelece entre a ciecircncia dos pais e a literatura do filho entre a integraccedilatildeo com a natureza dos primeiros e a ligaccedilatildeo com o humano do segundo mas aqui jaacute ressalta um desequiliacutebrio uma dissimetria um movimento que ao mesmo tempo em que afasta aproxima ndash a ciecircncia que instaura a diferenccedila com os pais vai marcar sua proacutepria produccedilatildeo e a paixatildeo que distancia pais e filhos pelos objetos de desejo aproxima-os pelo modo de olhar

Vocecircs hatildeo de compreender quanto nossos caminhos divergiam o de meu pai e o meu Mas e eu Afinal que caminho eu buscava senatildeo o mesmo de meu pai cavado na densidatildeo de outra estranheza no supramundo (ou inferno) humano O que buscava com o olhar pelos aacutetrios mal iluminados da noite (a sombra de uma mulher agraves vezes desaparecia ali) senatildeo a porta entreaberta a tela do cinema a ser atravessada a paacutegina a ser virada que introduz num mundo em que todas as palavras e figuras pudessem se tornar reais presentes experiecircncia minha natildeo mais o eco de um eco de um eco (CALVINO 2000b p 21)

Mas o que movia meu pai a cada manhatilde pelo caminho de San Giovanni acima ndash e a mim abaixo pelo meu caminho ndash mais que o dever de proprietaacuterio laborioso ou o desprendimento de inovador de meacutetodos agriacutecolas ndash e o que movia a mim mais que as definiccedilotildees daqueles deveres que aos poucos iria me impor ndash era paixatildeo feroz dor de existir ndash o que mais podia nos impelir ele a subir pragais e bosques eu a me entranhar num labirinto de muros e papeacuteis escritos ndash confronto desesperado com o que resta fora de noacutes desperdiacutecio de si em oposiccedilatildeo ao desperdiacutecio geral do mundo (CALVINO 2000b p 26)

Essa ficccedilatildeo familiar se amalgama em Calvino na paixatildeo pela literatura na vida que eacute atravessada pela palavra escrita pela narrativa na conexatildeo com o mundo que se estabelece por meio dela

E eu Eu acreditava ter outros pensamentos O que era a natureza Ervas plantas lugares verdes animais Eu vivia no meio daquilo e queria estar em outro lugar Diante da natureza permanecia indiferente reservado por vezes hostil E natildeo sabia que eu tambeacutem estava buscando uma relaccedilatildeo talvez mais afortunada que a de meu pai uma relaccedilatildeo que a literatura acabaria me dando devolvendo significado a tudo e de repente cada coisa se tornaria verdadeira e tangiacutevel e possuiacutevel e perfeita cada coisa daquele mundo jaacute perdido (CALVINO 2000b p 37)

Tais citaccedilotildees ainda que um tanto extensas satildeo importantes para que identifiquemos nesses ldquoexerciacutecios de memoacuteriardquo postumamente publicados a construccedilatildeo de um mito biograacutefico estreitamente vinculado agrave literatura e agrave visatildeo de mundo que lhe eacute antagocircnica a ciecircncia traccedilos que se apresentam de modo indeleacutevel na obra calviniana O proacuteprio Calvino destaca que esse ambiente estreitamente vinculado agrave pesquisa e ao desenvolvimento cientiacutefico ndash e como veremos agrave frente tambeacutem agrave poliacutetica ndash teve grande influecircncia em sua formaccedilatildeo dando-se a partir dele sua aproximaccedilatildeo com as narrativas com a literatura

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depois da leitura aos 12 ou 13 anos de O livro da selva de Rudyard Kipling obra na qual afirma ter tido ldquoo primeiro verdadeiro prazer da leiturardquo (CALVINO apud BARANELLI e FERRERO 2003 p 43 Traduccedilatildeo do autor) com o cinema sobre o qual chega a afirmar ldquoo cinema era o mundo para mimrdquo (CALVINO 2000c p 41)

Eacute interessante observar que alguns dos motivos que Calvino destaca para seu interesse absoluto pelo cinema em meados da deacutecada de 1930 podem ser pensados como indiacutecios de seu viacutenculo com a narrativa e com questotildees que se coloca sobre a relaccedilatildeo entre o ldquomundo es-critordquo e o ldquomundo natildeo escritordquo ele se sentia encantado com ldquoo contraste entre duas dimensotildees temporais diferentes dentro e fora do filmerdquo ldquoa descontinuidade entre os dois mundosrdquo ldquoa suspensatildeo do tempordquo no periacuteodo de duraccedilatildeo da peliacutecula (CALVINO 2000c p 44)

O cinema apresentava-se entatildeo ndash e conforme seus exerciacutecios de rememoraccedilatildeo o cinema ao qual se refere era o cinema americano da eacutepoca ndash como uma das maneiras de identificar e colocar em praacutetica o que Starobinski aponta como um problema que Calvino se propocircs insistentemente ao longo de toda sua obra o olhar distanciado o intervir sobre o mundo a partir do vislumbre de sua forma o qual soacute eacute possiacutevel atraveacutes de ldquolo sguardo dallrsquoaltordquo do olhar de cima Diante da tela do cinema o mundo apresentava-se como um Outro quase absolutamente distinto (apesar de alguns pontos de contato com o mundo real) do qual era possiacutevel perceber os traccedilos pela distacircncia do qual era possiacutevel apreender a inexauriacutevel superfiacutecie ainda que pelo vieacutes da suspensatildeo

Mas entatildeo o que tinha sido o cinema nesse contexto para mim Diria a distacircncia Ele respondia a uma necessidade de distacircncia de dilataccedilatildeo dos limites do real de ver se abrindo ao meu redor dimensotildees incomensuraacuteveis abstratas como entidades geomeacutetricas mas tambeacutem concretas absolutamente repletas de caras e situaccedilotildees e ambientes que com o mundo da experiecircncia direta estabeleciam uma rede proacutepria (e abstrata) de relaccedilotildees (CALVINO 2000c p 56)

O fascismo no entanto interrompe essa proximidade com o cinema atraveacutes da proibiccedilatildeo do cinema americano na Itaacutelia pouco antes da eclosatildeo da Segunda Guerra Mundial e facilita a passagem do escritor italiano para ldquoo mundo do papel escrito que em algumas de suas margens eacute fronteiriccedilo ao mundo do celuloiderdquo (CALVINO 2000c p 56) A passagem ao papel eacute marcada pelo desejo de buscar novamente ldquoo prazer da leitura provado com Kiplingrdquo (CALVINO apud BARANELLI e FERRERO 2003 p 43 Traduccedilatildeo do autor) Mas suas primeiras manifestaccedilotildees criativas realizam-se atraveacutes do desenho ndash em especial do humor presente nas charges e caricaturas publicadas em 1940 no perioacutedico milanecircs Bertoldo ndash e de algumas peccedilas teatrais das quais persistem em especial os tiacutetulos registrados em sua correspondecircncia

O princiacutepio da deacutecada de 1940 eacute marcado pelo iniacutecio dos estudos universitaacuterios e da produccedilatildeo literaacuteria assim como pelo envolvimento com o PCI o Partido Comunista Italiano no cenaacuterio de guerra que se desenrola Calvino inicia os estudos universitaacuterios na Faculdade de Agronomia de Turim em 1941 periacuteodo em que produziraacute uma seacuterie de pequenos contos interrompidos por seu envolvimento com os partigiani e pela clandestinidade na resistecircncia

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ao fascismo Apoacutes a Libertaccedilatildeo reafirma sua adesatildeo ao PCI e inicia um viacutenculo sem volta com o universo literaacuterio quando se mudou para Turim ao teacutermino da guerra partigiana matriculou-se na Faculdade de Letras e passou a frequentar a editora Einaudi que ao longo desse periacuteodo funcionava como bem mais que uma editora ndash era o local de confluecircncia da intelectualidade de esquerda espaccedilo no qual filoacutesofos historiadores escritores e literatos travavam contiacutenuas discussotildees acerca das tendecircncias poliacuteticas e ideoloacutegicas de entatildeo Pouco depois comeccedilou a prestar serviccedilos para a proacutepria editora trabalhando em vaacuterios setores ateacute 1983 ano em que dela se desvinculou redigiu notas publicitaacuterias dirigiu entre 1952 e 1959 o Notiziario Einaudi um perioacutedico mensal (posteriormente trimestral) de informaccedilatildeo cultural fundou e dirigiu ao lado de Elio Vittorini a revista de literatura Il Menabograve dirigiu coleccedilotildees de literatura diversas e como editor escreveu cerca de cinco mil cartas em que discute e analisa trabalhos de inuacutemeros autores

O envolvimento com a literatura desde os anos 1940 mostrou-se profundo e irreversiacutevel Calvino escreveu inuacutemeros ensaios e textos ficcionais participou de grupos literaacuterios e culturais produziu peccedilas de teatro e musicais Tornou-se um escritor que se interrogava continuamente tanto sobre seu proacuteprio trabalho e sobre as estrateacutegias e escolhas a ele inerentes quanto sobre as possibilidades de existecircncia do ser humano no mundo Explorando a accedilatildeo poliacutetica impliacutecita na narrativa no trabalho da escritura e na proacutepria literatura fez do campo literaacuterio um hiacutebrido no qual confluem o homem praacutetico e o homem contemplativo a ciecircncia e a ficccedilatildeo o poeacutetico e o poliacutetico propriamente dito

Se no caso de Borges sempre foi expliacutecito o desejo de natildeo fazer da literatura campo de disputas poliacuteticas (ainda que isso natildeo o tenha impedido de manifestar com clareza suas posturas) a relaccedilatildeo de Italo Calvino com a poliacutetica estrita mostrou-se mais complexa em especial no princiacutepio de sua produccedilatildeo ficcional No iniacutecio da deacutecada de 1940 ele se envolveu diretamente com o movimento de resistecircncia ao fascismo que avanccedilava sobre a Itaacutelia unindo-se agrave Brigada Garibaldi e militando ativamente na guerra partigiana Apesar da breve duraccedilatildeo cronoloacutegica esse envolvimento teve grande intensidade e foi determinante em sua formaccedilatildeo humana e poliacutetica refletindo-se em sua obra a Resistecircncia Italiana eacute o tema de seu primeiro livro A trilha dos ninhos de aranha (CALVINO 2004) publicado em 1947 e de diversos contos do mesmo periacuteodo

Nos primeiros anos poacutes-resistecircncia eacute assim principalmente por meio de uma narrativa de temaacutetica poliacutetica que o autor estabelece sua atuaccedilatildeo neste campo inclusive colaborando em diversos jornais e perioacutedicos comunistas No entanto seu envolvimento com a poliacutetica tornou-se mais conflituoso a partir dos desdobramentos da conjuntura italiana e essa tensatildeo acabou resultando em seu desvinculamento em 1957 do Partido Comunista Nesse sentido eacute esclarecedora sua resposta em entrevista concedida em 1956 agrave questatildeo ldquoAcredita que os literatos devem participar da vida poliacutetica Como Qual sua tendecircncia poliacuteticardquo

Acredito que quem tem de participar da poliacutetica satildeo os homens E os literatos na medida em que satildeo homens Creio que a consciecircncia ciacutevica e moral deva ter influecircncia primeiro sobre o homem e depois tambeacutem

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sobre o escritor Eacute um caminho longo mas natildeo haacute outro E acredito que o escritor tem de manter em aberto um discurso que em suas implicaccedilotildees natildeo pode deixar de ser tambeacutem poliacutetico [] Da poliacutetica e da literatura participo de maneiras diferentes conforme minhas atitudes mas ambas me interessam como um mesmo discurso sobre o gecircnero humano (CALVINO 2006 p 26-27)

Nesse contexto o envolvimento com o projeto de pesquisa para compilaccedilatildeo e ldquotraduccedilatildeordquo de narrativas tradicionais da Itaacutelia para publicaccedilatildeo do livro Faacutebulas italianas inicia-se em 1954 e aprofunda a relaccedilatildeo do autor com um universo fantaacutestico e fabular que jaacute se fazia perceptiacutevel em sua obra ndash deixando traccedilos inconfundiacuteveis em textos como os que compotildeem a trilogia Os nossos antepassados O visconde partido ao meio O baratildeo nas aacutervores e O cavaleiro inexistente reunidos em volume uacutenico em 1960ndash aleacutem de tornar mais veementes reflexotildees sobre a oralidade e a originalidade das narrativas sobre a ldquoinsaciabilidade de versotildees e de variantesrdquo que marca a ldquoinfinita variedade e infinita repeticcedilatildeordquo que caracterizam essas histoacuterias (CALVINO 1995 p 13) Aleacutem disso ali tambeacutem germinavam as questotildees sobre a liacutengua italiana e seu viacutenculo particular com a escrita sobre um mundo viacutevido e em perpeacutetuo movimento que se cristalizava textualmente temas que habitaratildeo diversas de suas produccedilotildees ensaiacutesticas dentre as quais destacamos ldquoItaliano uma liacutengua entre as outrasrdquo (CALVINO 2009b) e ldquoMondo scritto e mondo non scrittordquo (CALVINO 2002a)

Eacute tambeacutem no uacuteltimo livro da trilogia O cavaleiro inexistente publicado em 1959 que Calvino comeccedila a explicitar a reflexatildeo sobre a literatura como tema narrativo de suas ficccedilotildees num movimento que desborda as fronteiras entre o ensaio e a criaccedilatildeo ali se delineia um pensamento sobre a linguagem sobre a escrita e sobre a posiccedilatildeo desta relativamente ao que ele viria a chamar de ldquomundo natildeo escritordquo O livro narra a histoacuteria de Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez um nome pomposo para algueacutem que natildeo existe Agilulfo natildeo passa de uma armadura branca brilhante e vazia com a qual Calvino aprofunda a discussatildeo filosoacutefica sobre o homem contemporacircneo que perpassa a trilogia encerrando o ciclo com esse personagem denominado inexistente desde o tiacutetulo da obra e que ao fim da narrativa perde ateacute mesmo sua condiccedilatildeo de impossibilidade

No escopo desse movimento de pensar e produzir literatura a mudanccedila para Paris na deacutecada de 1960 (mais especificamente em 1967) possibilita sua aproximaccedilatildeo com o Oulipo (Ouvroir de Litteacuterature Potentielle) e leva sua obra a novas ramificaccedilotildees e desdobramentos Do contato com o grupo matemaacutetico-literaacuterio que propunha a produccedilatildeo textual a partir do uso de contraintes de restriccedilotildees autoimpostas outros elementos integram-se agrave literatura de Calvino como o jogo matemaacutetico e a combinatoacuteria claramente observaacuteveis nas narrativas de O castelo dos destinos cruzados de 1969 As cidades invisiacuteveis de 1972 e Se um viajante numa noite de inverno de 1979

Como articular o pensamento de uma ideia com a narrativa dessa mesma ideia ou para usar a expressatildeo de Jean Starobinski como ldquopensarerdquo e ldquoraccontarerdquo num mesmo

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movimento determinada questatildeo seja ela filosoacutefica cientiacutefica ou literaacuteria Essa me parece a grande questatildeo que se dissemina ao longo de toda a obra de Calvino e que nela se institui a partir da dupla mirada agrave qual me referi anteriormente que mescla a literatura e a ciecircncia originada de sua ldquoficccedilatildeo familiarrdquo e essencial na construccedilatildeo de seu ldquomito biograacuteficordquo Eacute na busca de respostas a essa indagaccedilatildeo que a obra calviniana inventa caminhos ndash que se bifurcam que se entrecruzam que se entrelaccedilam ndash que permitem a instauraccedilatildeo de uma diferenccedila no seio da tradiccedilatildeo percursos que colocam em tracircnsito o centro e a margem que deslocam os saberes e se abrem para um pensamento pautado pela complexidade tal qual abordada por Edgar Morin (2002 2007) Eacute justamente esse percurso que permite que o Calvino ldquoteoacutericordquo seja apontado por Starobinski como um ldquoteoacuterico ambidestrordquo que se apresenta tanto nas ldquolezionirdquo quanto nos ldquoraccontirdquo diluindo assim as fronteiras que cerceiam o espaccedilo da produccedilatildeo do conhecimento e o desvinculam das formas narrativas e ficcionais

[] a postura cientiacutefica e aquela poeacutetica coincidem ambas satildeo posturas de pesquisa e ao mesmo tempo de planejamento de descoberta e de invenccedilatildeo A postura poliacutetica tambeacutem (em sentido lato isto eacute do fazer histoacuteria cultural e civil) O caminho para tornar una a cultura de nosso tempo de outro modo tatildeo divergente em seus discursos especiacuteficos estaacute justamente nessa postura comum (CALVINO 2009a p 103)

A diversidade de viacutenculos com a palavra que se pode perceber tanto em Borges quanto em Calvino ndash que exercem de maneira relacional vaacuterias outras atividades narrativas aleacutem da produccedilatildeo ficcional como a atuaccedilatildeo na aacuterea editorial a traduccedilatildeo a escrita ensaiacutestica a produccedilatildeo jornaliacutestica as conferecircncias aulas e entrevistas a reflexatildeo sobre ciecircncia natureza e filosofia a participaccedilatildeo em grupos artiacutestico-literaacuterios ndash e que tem sua origem e seu lastro nesse ldquomito biograacuteficordquo que procurei aqui brevemente indicar contribui para a transformaccedilatildeo de suas obras em uma rede e indica a biblioteca como possiacutevel metaacutefora para sua concepccedilatildeo de literatura uma biblioteca tecida pelo desejo do uso da narrativa como motor do pensamento

Nesse sentido aproximar suas estrateacutegias narrativas de construccedilatildeo biograacutefica agravequelas de sua produccedilatildeo ficcional nos possibilita concluir que em ambos a biblioteca pode ser tomada natildeo apenas como objeto e temaacutetica mas tambeacutem como um meacutetodo de composiccedilatildeo literaacuteria eles produzem suas vidas e suas obras como se compusessem uma ldquocoleccedilatildeo de livrosrdquo na qual os mais diversos textos se confrontam no estabelecimento de um novo texto que os releia e os rediga afinal ldquoOs livros satildeo feitos para serem muitos um livro uacutenico tem sentido apenas quando se junta a outros livros quando segue e precede outros livrosrdquo (CALVINO 2002b p 127 traduccedilatildeo nossa) ldquoUm livro eacute uma coisa entre as coisas um volume perdido entre os volumes que povoam o indiferente universo ateacute que ele encontra seu leitorrdquo (BORGES 1999a p 519)Em Borges e Calvino escritores jaacute aproximados por muitos pesquisadores em razatildeo de suas obras literaacuterias acredito que encontramos outros pontos de contato a ficccedilatildeo

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familiar o mito biograacutefico e a biblioteca os quais podem ser tomados como locus de construccedilatildeo e subversatildeo dos saberes como espaccedilo de memoacuteria e de esquecimento da tradiccedilatildeo e do conhecimento como figuras sobre as quais se assenta certa ldquoidentidaderdquo entre os escritores

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CALVINO I O caminho de San Giovanni In CALVINO I O caminho de San Giovanni Trad Roberta Barni Satildeo Paulo Companhia das Letras 2000b p 15-38

CALVINO I Autobiografia de um espectador In CALVINO I O caminho de San Giovanni Trad Roberta Barni Satildeo Paulo Companhia das Letras 2000c p 39-64

CALVINO I A memoacuteria do mundo In CALVINO I Um general na biblioteca Traduccedilatildeo de Rosa Freire DrsquoAguiar Satildeo Paulo Companhia das Letras 2001 p 127-133

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CALVINO I A trilha dos ninhos de aranha Trad Roberta Barni Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004

CALVINO I Questionaacuterio de 1956 In CALVINO I Eremita em Paris paacuteginas autobiograacuteficas Trad Roberta Barni Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 p 21-29

CALVINO I O desafio ao labirinto In CALVINO I Assunto encerrado discurso sobre literatura e sociedade Trad Roberta Barni Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009a p 100-117

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Recebido em 23102017

Aceito em 20122017

Maria Elisa Rodrigues Moreira

Doutora em Estudos Literaacuterios ndash Literatura Comparada mestre em Estudos Literaacuterios ndash Teoria da Literatura e bacharel em Comunicaccedilatildeo Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Atualmente eacute professora visitante junto ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Autora dos livros Saber narrativo proposta para leitura de Italo Calvino (Tradiccedilatildeo Planalto 2007) e Coleccedilatildeo arquivo biblioteca a literatura de Borges e Calvino (Clock-T 2016) elisarmoreiragmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Sobre o amor e a incapacidade de amarOn Love and the Incapacity to Love

Sobre el amor y la incapacidad de amar

Dionei MathiasUniversidade Federal de Santa Maria

Resumo

Em muitos textos de Elfriede Jelinek a ausecircncia de amor representa uma caracteriacutestica central na interaccedilatildeo das personagens Isso vale especialmente para o seu romance Die Klavierspielerin (A Pianista) cujo enredo trata do triacircngulo formado por matildee filha e um jovem aluno que negociam signos de amor em busca de uma narrativa de identidade em consonacircncia com seus valores e projetos pessoais Para refletir sobre essa questatildeo o presente artigo estaacute dividido em duas partes Primeiramente discutem-se algumas ideias sobre o conceito de amor a fim de estabelecer uma base teoacuterica ndash sem ambicionar uma definiccedilatildeo exaustiva ndash que permita analisar esse discurso no texto ficcional Na segunda parte a anaacutelise foca no texto literaacuterio com o objetivo de compreender a dinacircmica do amor materno (2) do corpo ao mesmo tempo rebelde e domesticado (3) a busca por espaccedilos iacutentimos natildeo controlados (4) e por fim a imaginaccedilatildeo do futuro como elemento do amor (5) Palavras-Chave Elfriede Jelinek A pianista amor

Abstract

In many texts written by Elfriede Jelinek the absence of love represents a key element in the way characters interact This applies especially to the novel Die Klavierspielerin (The Piano Player) whose plot is about the triangle formed by mother daughter and a young student who trade in signs of love in search of an identity narrative in line with their values and personal projects In order to discuss this question this article is divided into two parts Firstly there is a discussion about some ideas on the concept of love ndash without any ambition for an exhaustive definition ndash trying to establish a theoretical basis which might allow its examination in the fictional text In the second part the focus is on the plot aiming to understand (2) the dynamics of maternal love (3) the insubordinate and docile body (4) the search for unsurveilled private spaces and finally (5) the imagination of future as an element of love Keywords Elfriede Jelinek The Piano Player Love

Resumen

En muchos textos de Elfriede Jelinek la ausencia del amor representa una caracteriacutestica fundamental en la interaccioacuten de los personajes Eso puede decirse especialmente de la novela Die Klavierspielerin (La pianista) cuya trama presenta un triaacutengulo entre madre hija y un joven estudiante que negocian signos de amor en buacutesqueda de una narracioacuten de identidad en

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consonancia con sus valores y sus proyectos personales Para discutir esa cuestioacuten este artiacuteculo estaacute dividido en dos partes Primeramente se introducen algunas ideas sobre el concepto de amor con la finalidad de establecer una base teoacuterica que permita analizar ese concepto en el texto ficcional En la segunda parte el anaacutelisis pasaraacute al texto literario con el objetivo de comprender la dinaacutemica del amor materno (2) del cuerpo a la vez rebelde y domesticado (3) la buacutesqueda por espacios iacutentimos no controlados (4) y por fin la imaginacioacuten del futuro como elemento del amor (5) Palabras clave Elfriede Jelinek La pianista amor

1 Introduccedilatildeo ou tentativa sobre o amor

A tentativa de definir o amor representa um exerciacutecio que perpassa a histoacuteria Talvez nenhuma outra emoccedilatildeo tenha inspirado tantos pensadores a encontrar imagens que pudessem captar e abarcar toda a dimensatildeo desse excerto de realidade que transforma a visatildeo de mundo do sujeito O escopo e o conteuacutedo daquilo que constitui o amor se tornam semanticamente nebulosos pois cada indiviacuteduo colora sua interpretaccedilatildeo de realidade com impressotildees pessoais que por sua vez estatildeo inseridas em moldes culturais especiacuteficos determinando igualmente a formaccedilatildeo de sentido (HANSEN 2003 MUumlLLER-FUNK 2006) Para tentar dar conta desse fenocircmeno eacute possiacutevel aproximar-se de sua descriccedilatildeo interpretando-o como sistema (LUHMANN 1994) como resultado de um processo de civilizaccedilatildeo (ELIAS 2007) como conjunto socialmente reconhecido de discursos ou normas (DEMMERLING LANDWEER 2007 p 128) Nesses modelos a diversidade de sensaccedilotildees fiacutesicas e aniacutemicas no primeiro momento desordenada acaba sendo condensada pelo sujeito transformando o emaranhado caoacutetico numa interpretaccedilatildeo concatenada a fim de que possa ser narrada e transmitida para outros membros do espaccedilo social A narraccedilatildeo do amor equivale a uma organizaccedilatildeo discursiva portanto tambeacutem estaacute perpassada de ideologias e de elementos de cunho histoacuterico

A cultura ou melhor os discursos que regem as normas de comportamento accedilatildeo e construccedilatildeo de identidade definem em grande parte as formas de conceber e realizar a experiecircncia do amor A concepccedilatildeo e expressatildeo do desejo a encenaccedilatildeo iacutentima e social da paixatildeo ou mesmo a configuraccedilatildeo do amor filial dentro do microcosmo familiar satildeo praacuteticas historicamente condicionadas pelos paracircmetros acordados num determinado espaccedilo social e grupo cultural Talvez os instintos eroacuteticos e de proteccedilatildeo apresentem muitas semelhanccedilas se comparados a suas concretizaccedilotildees primordiais poreacutem o modo como eles adentram a simbolizaccedilatildeo da consciecircncia e como satildeo exteriorizados na praacutetica da interaccedilatildeo social se transformam conforme o horizonte de ideias que marca as fronteiras do pensaacutevel na respectiva eacutepoca O discurso ficcional se apropria ndash consciente ou inconscientemente ndash desse ideaacuterio e o metamorfoseia em experiecircncia esteacutetica reproduzindo os modelos vigentes ou questionando sua propriedade para as imposiccedilotildees da existecircncia

Os limiares do conscientemente pensaacutevel se impotildeem especialmente no que concerne agrave concepccedilatildeo do amor como fenocircmeno inscrito no corpo ou seja amor como desejo ou necessidade de satisfaccedilatildeo eroacutetica Para a Psicanaacutelise toda forma de amor nada mais eacute

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que reflexo de pulsotildees libidinais (DEMMERLING LANDWEER 2007 p 128) daiacute toda accedilatildeo e interaccedilatildeo do sujeito no fundo terem por objetivo satisfazer as demandas do corpo Vivendo em sociedade poreacutem e imerso numa rede de signos culturais o sujeito eacute impelido a narrar essas necessidades de forma que sejam admissiacuteveis no espaccedilo social em que circula Disso resultam diversas tessituras culturais que prescrevem em forma de rituais as inuacutemeras modalidades de aproximaccedilatildeo do corpo desejado de exposiccedilatildeo do desejo e de concretizaccedilatildeo das acircnsias da libido Toda forma de intercacircmbio fiacutesico ndash entre pais e filhos entre amigos ou irmatildeos entre amantes hetero ou homossexuais ndash encontra-se em grande parte preacute-definida pelas malhas discursivas da cultura As possibilidades de satisfaccedilatildeo eroacutetica natildeo satildeo as mesmas Existem diferenccedilas oacutebvias em sociedades factualmente poacutes-modernas ou arraigadas em modelos tradicionais no interior ou em grandes centros metropolitanos no mundo assim chamado ocidental ou islacircmico A libido natildeo deixa de ser menos imperativa a despeito do ambiente restritivo Cabe ao sujeito encontrar meios de satisfazer suas demandas fiacutesicas dentro dos limites do pensaacutevel e factiacutevel

Ao mais tardar com Foucault (1978 1999 2005) sabe-se que toda sociedade manteacutem dispositivos para vigiar e disciplinar os corpos inseridos nos diferentes campos de poder Esses instrumentos de vigilacircncia e disciplina em suas funccedilotildees diversas e onipresentes valem especialmente para as concepccedilotildees e exteriorizaccedilotildees da libido Dependendo do grau de poder que o sujeito deteacutem ou ao qual visa ele tem de controlar seus iacutempetos corporais a fim de encenar e impor sua autoridade ou superioridade perante outros membros Dessa dinacircmica provecircm diferentes modos de interagir com o proacuteprio corpo Indiviacuteduos menos ambiciosos no tocante agrave ascensatildeo da hierarquia social ou menos riacutegidos quanto a preceitos impostos por interpretaccedilotildees religiosas conservadoras acabam tendo maior espaccedilo para imaginar suas necessidades e idear estrateacutegias de se esquivarem do controle social

Ao lado das imposiccedilotildees do corpo a maacutescara do amor tambeacutem encobre outros elementos essenciais para o desenvolvimento existencial a saber o anseio pela construccedilatildeo de uma identidade pessoal Essa narraccedilatildeo do si passa incondicionalmente pelo entrelaccedilamento com outros textos identitaacuterios porquanto necessita a atenccedilatildeo do outro a fim de encenar-se e legitimar sua autoimagem (DEMMERLING LANDWEER 2007 p 139) Na interaccedilatildeo com o outro surgem os signos que compotildeem a tessitura da identidade pois no processo de negociaccedilatildeo a imagem projetada adquire concretude quando outros membros da interaccedilatildeo validam seu teor de sentido (LEVITA 2002 MEAD 1992 ZIMA 2000) Isso se revela especialmente importante nos relacionamentos mais iacutentimos uma vez que representam os palcos de interaccedilatildeo primordiais e de maior constacircncia Assim o relacionamento entre pais e filhos ou entre casais encerra uma relevacircncia maior justamente porque as pessoas envolvidas e sobretudo seus juiacutezos sobre os signos postos em circulaccedilatildeo tecircm uma repercussatildeo mais intensa e prolongada para a autoimagem do indiviacuteduo Nesse espaccedilo iacutentimo o amor se transforma numa praacutetica de negociaccedilatildeo de signos na qual se possibilita ao sujeito experimentar diferentes modalidades de autorrepresentaccedilatildeo para que desse modo encontre a narraccedilatildeo que mais lhe conveacutem A aceitaccedilatildeo surge aqui como elemento

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indispensaacutevel para a formaccedilatildeo de uma ambiecircncia confiaacutevel em que todos possam encenar sua proacutepria alteridade (TENHOUTEN 2009 p 52)

Por meio da aceitaccedilatildeo do outro incluindo suas maacuteculas e admissatildeo de maacuteculas proacuteprias cria-se uma narraccedilatildeo solidaacuteria e interessada Nela os membros que a compotildeem ensaiam em suas interaccedilotildees diaacuterias caminhos de sintonia pelos quais buscam ir ao encontro do horizonte de necessidades que o comportamento alheio revela Entre intuiccedilatildeo e expressatildeo delineiam-se espaccedilos comuns nos quais se inscrevem paracircmetros que dispotildeem a cada qual a possibilidade de medrar conforme seus anseios aniacutemicos Dessa forma o amor se transforma num pacto microssocial cujo ecircxito depende em grande parte da profundidade dos conhecimentos que cada membro deteacutem sobre os projetos de identidade que afloram agrave superfiacutecie das interaccedilotildees

O ecircxito nessa empresa depende em grande parte do relacionamento que o indiviacuteduo tem consigo mesmo (FROMM 1984 HUumlLSHOFF 2006) Antes de imergir na narraccedilatildeo alheia ele tem de obter clareza sobre sua proacutepria posiccedilatildeo no espaccedilo social a fim de mobilizar um conjunto de instrumentos que lhe permitam emergir de sua realidade idiossincraacutetica para de fato tomar conhecimentos das tessituras que o circundam Somente com uma autoestima bem desenvolvida e profundamente arraigada na concepccedilatildeo de mundo e interpretaccedilatildeo de realidade ele logra adentrar numa narraccedilatildeo de amor sem capitular perante a percepccedilatildeo inevitaacutevel e inexoraacutevel de fraquezas e imperfeiccedilotildees Logo o amor representa tambeacutem um confronto de realidades ao aproximar os universos aniacutemicos dos membros que participam desse jogo

Com um entrelaccedilamento cada vez mais intricado ndash logo com uma aproximaccedilatildeo de horizontes maior ndash desponta simultaneamente uma necessidade mais concreta de proximidade e de construccedilatildeo de uma narraccedilatildeo duradoura que condense as linhas dispersas e transforme emoccedilotildees incipientes em fenocircmenos articulados e materializados na consciecircncia do sujeito Nesse estaacutegio manifestam-se os primeiros projetos de identidade que preveem o outro como parte irrenunciaacutevel do futuro A orientaccedilatildeo teleoloacutegica por conseguinte estaacute estreitamente atrelada agrave presenccedila de pessoas significativas na materializaccedilatildeo da vida iacutentima em especial para casais e famiacutelias em seus mais diversos formatos (USSEL 1979 SWAAN 1989 HANTEL-QUITMANN 2002) A narraccedilatildeo do amor portanto encerra um espraiamento no espaccedilo iacutentimo e na linha do tempo assimilando com seu desenvolvimento elementos narrativos cada vez mais complexos e intricados o que forccedila os membros desse enredo a buscarem ininterruptamente pela atualizaccedilatildeo dos sentidos que compotildeem suas emoccedilotildees

Com base nas diferentes teorias abordadas queremos definir o amor para o presente artigo como narrativa organizada por uma instacircncia pessoal em que as forccedilas libidinosas do corpo subordinadas agraves regras da cultura e agraves malhas de poder se manifestam e satildeo enfeixadas numa narraccedilatildeo O amor portanto natildeo resulta isoladamente da libido do poder da cultura ou da identidade pessoal O amor assim parece resulta da forma como esses diferentes fatores satildeo organizados numa histoacuteria pensaacutevel e narraacutevel com base na negociaccedilatildeo interessada de sentidos entre dois partidos A narraccedilatildeo do amor surge a

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partir de um pacto de dedicaccedilatildeo exclusiva (entre pais e filhos num casal) que possibilita a inclusatildeo da outra parte na narraccedilatildeo de identidade do sujeito (encenaccedilatildeo social com proteccedilatildeo e pertencimento) e que permite satisfazer as necessidades do corpo (obtenccedilatildeo de atenccedilatildeo dedicaccedilatildeo emocional ou prazer eroacutetico) Isso significa que o amor como entendido aqui implica exclusividade corporeidade narratibilidade e a garantia de que o sujeito narrador possa imaginar a presenccedila da pessoa amada num espaccedilo de tempo prolongado (em princiacutepio por toda a vida)

Em muitos romances de Elfriede Jelinek as personagens procuram por narraccedilotildees de amor Estas contudo raramente tecircm ecircxito uma vez que os participantes envolvidos na negociaccedilatildeo dessa narrativa acabam transformando o outro em objeto produzindo narrativas unilaterais que natildeo preveem as necessidades e os sentidos da outra parte A tese que queremos desenvolver com base no romance Die Klavierspielerin (A Pianista) (2011) dessa autora eacute que as personagens alimentam um desejo intenso por amor mas se mostram incapazes de desenvolvecirc-lo Para isso o foco de anaacutelise recairaacute sobre a dinacircmica do amor materno (2) o corpo ao mesmo tempo rebelde e domesticado (3) a busca por espaccedilos iacutentimos natildeo controlados (4) e por fim a imaginaccedilatildeo do futuro como elemento do amor (5)

2 O amor materno

Os relacionamentos que compotildeem a vida iacutentima da professora de piano no romance A pianista satildeo no miacutenimo problemaacuteticos Para Hoffmann (2003 p 112) concretizaccedilotildees de carecircncia no sentido de falta e insuficiecircncia Dividida entre as imposiccedilotildees maternas e as incursotildees de seu aluno Klemmer ela natildeo suporta a dor incisiva implicada na incerteza sobre sua situaccedilatildeo Ao evitar que um processo de reflexatildeo se materialize nos limites de sua consciecircncia ela proiacutebe uma anaacutelise criacutetica de sua narraccedilatildeo pessoal impedindo com isso uma revisatildeo que possibilite novos percursos identitaacuterios A despeito desses medos no entanto Erika busca por alternativas concebiacuteveis dentro das limitaccedilotildees que a caracterizam A primeira limitaccedilatildeo e talvez a mais incisiva eacute tambeacutem seu principal relacionamento ateacute a chegada de Klemmer Trata-se dos sentimentos que alimenta pela matildee O conjunto de accedilotildees e interaccedilotildees entre as duas mulheres certamente pode ser interpretado como uma tentativa de instaurar uma narraccedilatildeo de amor Interessante neste contexto eacute a imagem que se concretiza a partir do comportamento que ambas trazem agrave tona

O amor da senhora Kohut estaacute longe de ser desinteressado e incondicional disposto a renunciar agrave proacutepria felicidade em prol dos anseios filiais Embora ela tente encenar-se por meio de inquisiccedilotildees preocupadas como matildee aflita e engajada um olhar aleacutem da superfiacutecie de seu comportamento rapidamente revela que essa encenaccedilatildeo natildeo passa de um instrumento discursivo do qual lanccedila matildeo para melhor alcanccedilar seus objetivos Por traacutes da fachada socialmente imposta e estrategicamente melhor manejaacutevel ela encobre uma interpretaccedilatildeo de realidade imersa numa visatildeo autoritaacuteria e intransigente de mundo A partir dessa concepccedilatildeo a matildee representa o princiacutepio instaurador de leis e

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realidades agraves quais a filha deve submeter-se candidamente O dispecircndio de atenccedilatildeo e carinho logo de interesse pela existecircncia de Erika depende em grande parte do grau de submissatildeo por parte desta Qualquer indiacutecio de questionamento ou subversatildeo das leis estabelecidas com rigor e detalhe pela senhora Kohut para todos os movimentos no espaccedilo social implica medidas repressivas para garantir o bom funcionamento de seu estado e a harmonia caseira

A necessidade dessa supervisatildeo significa que sua narraccedilatildeo de amor carece de um elemento central e indispensaacutevel que eacute a confianccedila Sem esse voto de credibilidade nenhum dos membros envolvidos pode de fato encontrar ou criar espaccedilos nos quais tenha a oportunidade de ensaiar projetos de identidade que condigam com seus anseios iacutentimos Para garantir a seguranccedila de seu espaccedilo particular poreacutem a matildee estaacute convencida da necessidade de vigiar os movimentos da filha Por conseguinte grande parte de suas accedilotildees tem por fito idear novas estrateacutegias que potencializem a eficiecircncia de sua malha de controle e ao mesmo tempo criar uma seacuterie de medidas para disciplinar a filha de modo que esta conforme seus atos aos desejos maternos

Dentre as estrateacutegias que emprega com predileccedilatildeo figura o papel da viacutetima Por meio dessa encenaccedilatildeo a matildee logra permanecer no espaccedilo de Erika em forma de peso na consciecircncia forccedilando a filha de maneira sutil a experimentar remorsos de diversos graus de incisatildeo Com o desconforto fiacutesico causado por essa sensaccedilatildeo a filha acaba retornando para os muros maternos sem juntar a energia necessaacuteria para romper o cerco discursivo Alegando fraqueza ou perigos iminentes de morte a matildee obteacutem as informaccedilotildees de que necessita para estar presente mesmo permanecendo em casa Para isso telefona para Erika durante suas aulas ou ateacute mesmo quando esta frequenta um cafeacute pretextando preocupaccedilatildeo e desejo de saber onde estaacute para que num caso extremo possa contataacute-la imediatamente Ateacute certo ponto a encenaccedilatildeo materna se ateacutem agraves prescriccedilotildees sociais no tocante ao comportamento esperado pois sua afliccedilatildeo agrave primeira vista estaacute arraigada num iacutempeto de preocupaccedilatildeo logo num movimento desprendido de si e afincado na filha Essa preocupaccedilatildeo desmesurada facilmente poderia ser confundida com um amor altruiacutesta e incondicional materno que por vezes oblitera os limites aos quais a prole tem direito sem dar-se conta de seu comportamento inadequado

Essa encenaccedilatildeo no entanto nada mais eacute que um instrumento facilmente manejaacutevel do qual a senhora Kohut lanccedila matildeo a fim de garantir o apoio social para seu comportamento e a fim de melhor manipular sua filha Sua preocupaccedilatildeo lhe permite vigiar Erika sem conflitos de legitimaccedilatildeo uma vez que sua imiscuiccedilatildeo jaacute estaacute prevista em seu papel social A vigilacircncia se revela de tal modo eficaz que a matildee logra disciplinar o corpo da professora de piano induzindo-o a obedecer sem antes refletir sobre os acontecimentos que o levam a tal reaccedilatildeo Esse condicionamento do corpo tem lugar quando Erika por exemplo em sua infacircncia executa ininterruptamente os exerciacutecios de piano tendo o fustigo materno como companheiro inseparaacutevel ou tambeacutem mais tarde ao final do romance quando desesperada e existencialmente aniquilada retorna tal qual um autocircmato aos braccedilos protetores que a esperam em casa Para obter ecircxito nesse processo de domesticaccedilatildeo do

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corpo alheio a matildee natildeo hesita em por em risco a felicidade da filha Admoestando-a sobre a necessidade de comprar a casa proacutepria instilando-lhe a ambiccedilatildeo por sucesso profissional e posiccedilatildeo social e advertindo-a sem treacutegua sobre as desvantagens de um companheiro masculino a matildee lhe inscreve nas entranhas o que tem de fazer e o que deve deixar de maneira que a carne reage automaticamente sem dar atenccedilatildeo aos proacuteprios anseios Estes obviamente natildeo deixam de manifestar-se poreacutem sua materializaccedilatildeo acaba sendo reprimida pelo policiamento eacutetico em forma de remorsos que surgem tatildeo logo a matildee desempenhe o papel da viacutetima

3 Matildee filha e o corpo rebelde domesticado

Dentro desse regime fechado de vigilacircncia maacutexima figuram igualmente momentos de insurreiccedilatildeo nos quais Erika tenta desvencilhar-se do aparato autoritaacuterio que a monitora dia e noite Com tal fim ela lanccedila matildeo de uma violecircncia desesperada e sobretudo grotesca para conquistar pequenas ilhas de liberdade Seu ecircxito contudo eacute demasiado limitado e no fundo desesperanccedilado

A filha volta e estaacute quase chorando de tatildeo nervosa Xinga a matildee de malvada e canalha e ao mesmo tempo espera que logo a matildee se reconcilie com ela Com um beijo afetuoso A matildee pragueja que a matildeo de Erika caia por ter batido na matildee e lhe ter arrancado os cabelos Erika soluccedila cada vez mais alto porque agora sente pena da mamatildee que se sacrifica ateacute os ossos e os cabelos De tudo o que Erika faz contra a matildee ela logo se arrepende porque ama sua matildee que jaacute a conhece desde a mais tenra infacircncia Por fim como era de se esperar Erika quer reconciliar-se e chora amargamente E a matildee se retrata com prazer natildeo pode estar verdadeiramente brava com a filha Agora vou eacute passar um cafeacute para noacutes e vamos tomaacute-lo juntas Durante o lanche Erika tem ainda mais pena da matildee e os uacuteltimos resquiacutecios de sua raiva se dissolvem no bolo (JELINEK 2011 p 15)

Percebe-se a oscilaccedilatildeo que caracteriza o comportamento de Erika Por um lado revela um alto potencial agressivo que natildeo titubeia em materializar seu oacutedio por outro lado o mecanismo de retenccedilatildeo automaticamente se impotildee despertando seu arrependimento O mesmo braccedilo que se levanta para esbofetear perde seu arco de forccedila tatildeo logo o maquinaacuterio da contriccedilatildeo envia seus sinais Nesse embate a imagem da viacutetima materna se sobrepotildee agrave ideia de tirania de modo que o amor que senhora Kohut aparentemente tem pela filha acaba sobrepondo-se no conflito discursivo que tem lugar no inconsciente de Erika

Esse conflito que em seu princiacutepio conteacutem um potencial muito grande de extensatildeo da complexidade e de alargamento daquilo que se entende por amor perde sua energia com a inabilidade de ambas as mulheres de suportarem a dor implicada numa discussatildeo atrelada agrave necessidade de construir espaccedilos iacutentimos pessoais livres de controle e vigilacircncia Essa dor poreacutem lhes figura excessivamente incisiva para amealharem a energia demandada para transporem os muros que escudam o prazer da autonomia

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Em seu lugar optam por um silenciamento do conflito assim Erika derrama laacutegrimas conforme seu amestramento e a matildee transige uma vez que sua autoridade jaacute natildeo se encontra mais ameaccedilada O lanche final com bolo e cafeacute nada mais representa que um precircmio distribuiacutedo por parte da instacircncia materna pela submissatildeo filial ou seja o corpo aprende nesse exerciacutecio de condicionamento que com sua anuecircncia seraacute recompensado com docinhos Desse quadro grotesco eacute possiacutevel depreender uma tentativa infantilizada de harmonizaccedilatildeo A harmonia contudo permanece superficial pois os conflitos que motivaram o embate continuam sem soluccedilatildeo e permanecem silenciados Para a narraccedilatildeo do amor isso implica uma base bastante fraacutegil pois se utiliza de imagens e tessituras narrativas cujo teor rapidamente revela sua vacuidade

Se a matildee vigia e disciplina todos os movimentos da filha e natildeo lhe permite desenvolver ensaios de autonomia consequentemente tem de haver alguma motivaccedilatildeo que a impede de alcanccedilar composiccedilotildees mais complexas de amor em sua proacutepria vida pessoal Contudo nem a senhora Kohut nem Erika se permitem uma reflexatildeo sobre o comportamento arbitraacuterio autoritaacuterio e sufocante da matildee O que se encena satildeo os emaranhados reflexivos que a matildee compulsivamente delineia para esquivar-se dos medos que ameaccedilam sua estabilidade

Hoje agrave noite na frente da televisatildeo ela natildeo vai dizer nenhuma palavra a Erika E se for falar algo ela vai explicar a Erika que tudo o que uma matildee faz eacute motivado pelo amor Vai confessar seu amor por Erika e desculpar com esse amor qualquer erro que possa ter cometido E nesse contexto vai citar Deus e outros prepostos que tambeacutem tinham o amor em alta consideraccedilatildeo poreacutem nunca o amor egoiacutesta que estaacute germinando nessa jovem Como castigo a matildee natildeo vai desperdiccedilar uma palavra sequer nem a favor nem contra o filme (JELINEK 2011 p 238)

Seu foco se concentra quase exclusivamente em como garantir a obediecircncia de Erika Nisso projeta toda uma argumentaccedilatildeo acerca do amor aduzindo autoridades que corroborem sua linha de pensamento e forcem Erika a subordinar-se ao jugo da tradiccedilatildeo Esse comportamento tiacutepico e factualmente reiterativo revela no entanto que evita pensar o amor independentemente da presenccedila de sua filha Por conseguinte toda sua construccedilatildeo de identidade estaacute arraigada numa narraccedilatildeo que demanda a atenccedilatildeo completa e ininterrupta de Erika Tatildeo logo esta tenta se desvencilhar do cerco a senhora Kohut pressente um vazio que lhe indica a estrutura instaacutevel de sua narraccedilatildeo pessoal Como ela natildeo suporta a dor causada pelo pensamento sobre a possibilidade de um amor pessoal eroacutetico proacuteprio ela tem de erradicar tambeacutem de Erika quaisquer indiacutecios que pudessem levaacute-la a esse desejo Assim natildeo lhe resta outra coisa senatildeo satanizar o homem que deseja conquistar a atenccedilatildeo da filha Este tendo ecircxito a matildee teria que idear um projeto de narraccedilatildeo identitaacuteria que abdicasse da filha o que a ela parece impossiacutevel Ou seja o amor narrado pela matildee em forma de afliccedilatildeo cuidado e atenccedilatildeo na verdade representa uma carecircncia identitaacuteria irresoluta um conflito de autoaceitaccedilatildeo diante dos obstaacuteculos impostos pela existecircncia Entre

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dor e autoengano a senhora Kohut projeta na filha uma realidade para ela sofriacutevel mas negadora e indiferente agraves necessidades da filha

Essa negaccedilatildeo se revela de forma conspiacutecua numa cena grotesca de pseudossexualidade O encontro entre matildee e filha num primeiro momento aparenta ter o formato de uma brincadeira levada um tanto temeraacuteria por passar dos limites Contudo a matildee natildeo tarda em intuir que os gestos da filha tecircm um teor de sentido muito mais abrangente do que assumira inicialmente A despeito dessas intuiccedilotildees ela procura por interpretaccedilotildees alternativas que condigam com sua visatildeo e ordenaccedilatildeo de mundo para evitar um confronto com o indesejado levantando a hipoacutetese de loucura ou embriaguez As incursotildees incessantes da filha a forccedilam natildeo somente a defender-se fisicamente mas tambeacutem e com mais premecircncia a conceber a sexualidade inerente aos gestos Paradoxalmente ao mesmo tempo que o comportamento de Erika a assusta os gestos da filha lhe sugerem que esta deseja sua atenccedilatildeo e seu amor ldquoDe repente se sente desejada Uma das condiccedilotildees fundamentais para o amor eacute sentir-se valorizado porque um outro nos solicita e nos daacute precedecircnciardquo (JELINEK 2011 p 264) No tumulto da aproximaccedilatildeo eroacutetica a matildee se alegra ao constatar que sua filha natildeo dissipa suas emoccedilotildees com homens cujos planos natildeo confluem com seus projetos Esse movimento se revela especialmente importante pois sinaliza o quatildeo imersa a senhora Kohut se encontra em seu mundo autoritaacuterio e egoiacutesta um mundo no qual ela reina e sua filha obedece

A solidez dessa construccedilatildeo de realidade se fragmenta quando Erika passa a utilizar-se do corpo materno como objeto de prazer eroacutetico desconstruindo dessa forma toda a complexa distribuiccedilatildeo de signos ldquoE a carne velha eacute a que mais se cansa Essa carne natildeo eacute considerada como matildee mas simplesmente como carne Erika arranca pedaccedilos da carne da matildee com os dentes Ela beija e beija Beija a matildee como uma selvagemrdquo (JELINEK 2011 p 265) Nessa interaccedilatildeo Erika desconsidera os papeacuteis sociais e as possiacuteveis sanccedilotildees quando de sua inobservacircncia permitindo que seu corpo e suas necessidades tenham prioridade absoluta a despeito dos tabus violados e tatildeo profundamente inscritos em sua interpretaccedilatildeo de realidade Ela busca de forma desesperada e desenfreada a proximidade que lhe fora negada ateacute entatildeo pelas diversas estrateacutegias de vigilacircncia e disciplina que a matildee lhe impusera Para silenciar o corpo e obliterar as palavras irreversivelmente instauradoras de realidade a matildee denomina o inominaacutevel uma ldquonojeirardquo ignominiosa O desprezo e a vergonha implicados nesse movimento pretendem salvar a situaccedilatildeo eliminando da interpretaccedilatildeo de realidade elementos sofisticadamente reprimidos A cena culmina com a visatildeo do inexistente

Por um instante a filha pode observar os pelos pubianos da matildee jaacute ralos e finos que fecham por baixo a gorda barriga materna E isso lhe ofereceu uma vista incomum Ateacute entatildeo a matildee sempre mantinha esses pelos pubianos sob fecho rigoroso Enquanto lutava a filha olhou de propoacutesito para a camisola da matildee para finalmente poder enxergar esses pelos dos quais ela sabia o tempo todo eles tecircm que estar ali Infelizmente a iluminaccedilatildeo era muito deficiente Erika descobriu deliberadamente sua matildee para poder ver tudo tudo mesmo A matildee tentou se defender disso

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Em vatildeo Erika eacute mais forte do que sua matildee jaacute meio exaurida se pensarmos em termos estritamente corporais A filha joga na cara da matildee o que acabou de ver E a matildee permanece em silecircncio para fazer o visto natildeo visto (JELINEK 2011 p 265)

Essa cena revela que existe um tema na casa da famiacutelia Kohut jamais abordado e hermeticamente trancafiado nos calabouccedilos do inconsciente a saber o corpo e suas demandas eroacuteticas Dispositivos indumentaacuterios disciplina vigilacircncia e por fim silecircncio representam diferentes estrateacutegias para calar as entranhas Estas acabam tumultuando a narraccedilatildeo de realidade minuciosamente tecida pela senhora Kohut Elas tambeacutem descentralizam a narraccedilatildeo de amor porquanto demonstram de forma mais incisiva e terminante que as palavras autoritaacuterias da matildee que a negociaccedilatildeo de signos iacutentimos estaacute restrita ao conscientemente sofriacutevel excluindo todo tipo de maacuteculas que natildeo se subordinam agrave imagem desejada Com a identidade fragmentada e a autoaceitaccedilatildeo bastante limitada prefere-se negar a presenccedila do corpo comprometendo desse modo a complexidade da narraccedilatildeo do amor Esta no tocante ao relacionamento entre a matildee e a filha somente existe como instrumento de imposiccedilatildeo ou como maquinaacuterio de repressatildeo impedindo uma tessitura mais complexa que desbrave caminhos desconhecidos

4 Desbravamento de espaccedilos iacutentimos natildeo controlados

Diante desse cenaacuterio no qual a matildee se impotildee ininterruptamente Erika tem de travar uma luta acirrada para conquistar pequenos espaccedilos de intimidade onde possa desenvolver seus anseios e criar redes narrativas libertas dos dispositivos maternos Trata-se de espaccedilos nos quais possa inserir-se sem ser constantemente vigiada e disciplinada tendo a oportunidade de atentar para seus desejos e aceitar suas maacuteculas Com tal espaccedilo em princiacutepio ela delinearia algumas coordenadas essenciais dentre as quais a narraccedilatildeo de amor pudesse medrar Importante salientar que a matildee procura obliterar todos os signos de desejo da mente forccediladamente pura de sua filha dispondo um crivo de percepccedilatildeo que mal permite que esta tenha condiccedilotildees de idear imagens que natildeo tenham passado pelo maquinaacuterio de censura instituiacutedo pela senhora Kohut A presenccedila do corpo alheio no entanto desperta em Erika movimentos que natildeo consegue ordenar tampouco reprimir Assim a presenccedila de seu primo num episoacutedio de sua adolescecircncia lhe indica a existecircncia de experiecircncias que vatildeo aleacutem do condicionamento musical ferrenho arbitrado pela matildee Ao contraacuterio dela o rapaz dispotildee de um corpo fincado na natureza sem embaraccedilos que impeccedilam seu desenvolvimento Quando este inicia uma brincadeira que envolve um contato corporal bastante intenso Erika praticamente fica paralisada perante o desconhecido que se desvela diante de seus olhos Sem desejar e ao mesmo tempo incapaz de reprimir seus impulsos ela toca o sexo de seu primo boquiaberta e arrebatada como se fosse um presente de natal ldquoFoi contra a vontade dela O garotinho natildeo sabe que desencadeou uma avalanche de pedras em sua prima Ela natildeo para de olhar [hellip] Esse instante deve permanecer por favor Eacute tatildeo lindordquo (JELINEK 2011 p 53) As palavras de

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Fausto agraves quais aludem as uacuteltimas frases caracterizam ironicamente a intensidade dessa experiecircncia que transforma a consciecircncia de Erika dado que se apercebe provavelmente pela primeira vez das necessidades de seu corpo Natildeo haacute duacutevidas a utilizaccedilatildeo dessa citaccedilatildeo como em muitas outras situaccedilotildees eacute tambeacutem irocircnica mas natildeo somente Existe um desejo na realidade dessa personagem que ela tragicamente natildeo consegue articular ou natildeo tem o espaccedilo para deixar crescer A ironia no niacutevel estrutural e o ridiacuteculo no niacutevel do conteuacutedo natildeo negam a humanidade e a legitimidade do desejo O que se encena aqui eacute um corpo que natildeo sabe se articular e com essa insuficiecircncia se vecirc arremessado inexoravelmente agrave infelicidade concretizada justamente na ausecircncia de amor Nessa e em muitas das citaccedilotildees subsequentes haacute algo de ciacutenico e traacutegico O cinismo proveacutem de uma voz narrativa que eacute tudo menos imparcial A tragicidade se constitui diante das implicaccedilotildees que essas informaccedilotildees tecircm para a concretizaccedilatildeo existencial da personagem

O conflito pessoal desencadeado por essa experiecircncia reside na impossibilidade de harmonizar o condicionamento materno com as premecircncias corporais que se materializam de forma cada vez mais intensa Desse modo Erika se encontra impossibilitada de criar um espaccedilo no qual natildeo tenha que romper com a matildee nem que impeccedila a presenccedila de uma figura masculina para dar iniacutecio a sua narraccedilatildeo pessoal de amor O resultado desse embate eacute a procura por ambientes nos quais possa neutralizar os movimentos contraditoacuterios que a assolam Logo Erika natildeo tarda em localizar casas eroacuteticas ou melhor sex shops situados nos subuacuterbios de Viena e redutos de elementos embrutecidos para dar reacutedeas soltas agrave sua necessidade de ao menos ver o corpo alheio sem mecanismos de controle Nessa praacutetica de voyeurismo num lugar conspicuamente distante do espaccedilo social no qual constroacutei sua identidade Erika pode confortavelmente manter seu papel social de mulher culta e superior sem precisar assimilar as maacuteculas que poderiam minorar sua superfiacutecie de encenaccedilatildeo O voyeurismo parece representar um acordo num primeiro momento aceitaacutevel e animicamente suportaacutevel harmonizando ateacute certo grau desejos pessoais e ditames maternos No entanto o prazer que ela depreende dessa praacutetica rapidamente se vecirc acossado pelos riscos em que incorre quando abandona as coordenadas socialmente encenaacuteveis Assim ao inveacutes de encontrar um espaccedilo neutralizado ela se defronta com um novo conflito comportando movimentos excludentes mas igualmente prementes para sua realizaccedilatildeo pessoal

Acresce que surgem elementos que fogem de seu domiacutenio Muito embora condicionada a manter tudo sob seu rigoroso controle Erika se apercebe que nesses exerciacutecios de desbravamento do desconhecido despontam sentidos que emergem de seu interior sem passar pela triagem disciplinadora Em analogia a seu primeiro encontro com seu primo a visatildeo do outro nesse espaccedilo obscuro a impele a aproximar-se do corpo alheio desencadeando processos de autoconhecimento

Erika olha atentamente Natildeo para aprender Nada nela se mexe Mas ainda ela eacute obrigada a olhar Para seu proacuteprio prazer Cada vez que ela quer ir embora alguma coisa que vem laacute de cima faz sua cabeccedila bem penteada voltar-se energicamente para a janelinha e ela eacute obrigada a continuar

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olhando O torno sobre o qual a linda mulher estaacute sentada gira em ciacuterculos Erika natildeo tem culpa Simplesmente eacute obrigada a olhar Ele eacute um tabu para si mesma Natildeo pode tocar-se (JELINEK 2011 p 66)

Por um lado seu proacuteprio corpo se rebela natildeo obedecendo agrave ordem social de abandonar o lugar e voltar ao seio daquilo que considera respeitaacutevel o que aponta certa sintonia Por outro lado esse mesmo corpo lhe figura como um objeto tamanhamente estranho que envolto por uma aura do intocaacutevel e impenetraacutevel parece natildeo lhe pertencer Ao evitar o toque Erika perde a oportunidade de conhecer a si mesma e tecer novas filigranas de sentidos esquivando-se por conseguinte de defrontar a complexidade que reside em seu corpo O maquinaacuterio da disciplina estaacute inscrito de tal forma em suas entranhas que natildeo logra romper a redoma que encobre seu corpo

Todo esse episoacutedio em torno do voyeurismo encerra uma seacuterie de implicaccedilotildees para sua narraccedilatildeo de amor Ao procurar um lugar social e pessoalmente distante para satisfazer seus anseios ela evita integrar os signos produzidos nesse contexto em sua narraccedilatildeo de identidade Ou seja haacute tessituras identitaacuterias que satildeo importantes para seu corpo poreacutem impassiacuteveis de serem integradas em sua representaccedilatildeo social A disciplina e a vigilacircncia continuam imperando de forma recocircndita pois suas visitas permanecem anocircnimas e realizadas agraves escondidas O prazer que experimenta na verdade eacute o prazer encenado pelo outro natildeo o seu porquanto o proacuteprio corpo continua intocado Com isso ela se esquiva tambeacutem de um movimento de proximidade no qual dois seres negociam seus signos aceitando maacuteculas e rupturas

O elemento central que impede o iniacutecio de uma narraccedilatildeo de amor reside na autoaceitaccedilatildeo Sem aceitar suas necessidades por motivos externos no mais das vezes socialmente estipulados pela voz autoritaacuteria da matildee Erika se encontra impedida de iniciar uma narraccedilatildeo que inclui a presenccedila do outro pois este automaticamente tem de confrontaacute-la com as contradiccedilotildees que caracterizam sua identidade A dor implicada na resoluccedilatildeo desses conflitos no entanto eacute tamanha que Erika prefere renunciar ao amor a obter clareza acerca dos paradoxos imbricados em seu comportamento

ldquoErika eacute um aparelho compacto em forma humanardquo (JELINEK 2011 p 62) Essa frase usada pela voz narrativa para caracterizar a professora de piano procede em vaacuterios sentidos Ela age como um autocircmato perante os desiacutegnios maternos e se comporta como se seu corpo natildeo tivesse vontades proacuteprias A despeito de frequentar casas eroacuteticas deleitar-se com filmes pornograacuteficos ou perambular pelo famoso parque Prater a altas horas da noite agrave procura de casais copulando seu prazer na verdade permanece sempre superficial e pertencente a outro Dessa forma sua satisfaccedilatildeo resulta quase sempre de uma experiecircncia raacutepida e contingente evitando uma condensaccedilatildeo narrativa com projeccedilotildees para o futuro Tanto a narraccedilatildeo do amor como a da identidade necessitam do futuro como linha temporal imaginaacuteria para desenvolver tessituras duradouras Erika no entanto permanece fincada no agora esquivando-se de projetar ou ao menos imaginar um relacionamento que natildeo tenha o caraacuteter de algo provisoacuterio necessaacuterio mas natildeo propriamente desejado

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5 O amor como aurora do futuro

O fato de optar por relacionamentos contingentes em si natildeo parece ser tatildeo problemaacutetico quanto o fato de natildeo refletir sobre seu comportamento pois isso corrobora mais uma vez que seus atos satildeo frutos de imposiccedilotildees (corporais) natildeo de seu livre-arbiacutetrio Essa ausecircncia de reflexatildeo sobre suas accedilotildees e os sentimentos de culpa que a acompanham em suas incursotildees patenteiam o excesso de dor que se encobre por traacutes do silecircncio Essa mesma dor a forccedila a agir tal qual um autocircmato impossibilitando narraccedilotildees que vatildeo aleacutem das demarcaccedilotildees predispostas Assim quando Klemmer daacute iniacutecio a suas primeiras tentativas de aproximaccedilatildeo Erika reage com um profundo mal-estar

Erika sente-se cada vez mais repelida Ela gostaria que ele jaacute tivesse ido embora Ele que leve a matildeo dele consigo Fora Ele se tornou um terriacutevel desafio da vida pra ela Erika e ela soacute costuma aceitar os desafios da interpretaccedilatildeo fiel Por fim eles avistam a parada do bonde A cobertura de fibra de vidro iluminada com um banquinho embaixo eacute tranquilizadora [hellip] Erika estaacute aterrorizada Ela quer que essa aproximaccedilatildeo acabe de uma vez por todas e que esse supliacutecio termine O bonde estaacute chegando Logo ela vai conversar com a matildee sobre o que se passou quando Herr Klemmer jaacute estiver longe Primeiro ele tem quer ir embora Depois ele vai se tornar assunto da conversa Natildeo vai incomodar mais do que passar uma pena na pele (JELINEK 2011 p 94)

Esse mal-estar resulta em primeiro lugar dos signos com os quais Erika se vecirc confrontada e que na verdade deseja reprimir A presenccedila de um homem interessado nela como mulher no espaccedilo social no qual circula e em que encena sua identidade a forccedila a rever sua narraccedilatildeo pessoal1 O confronto por conseguinte requer a revisatildeo de determinadas tessituras especialmente no tocante ao corpo o que evitava em suas escapadelas anocircnimas O testemunho de outras pessoas a impede de negar os acontecimentos e suprimi-los de sua autorrepresentaccedilatildeo logo a instauraccedilatildeo de sentidos que irradiam desse encontro a desconcertam imensamente Contudo o que transforma o encontro num supliacutecio aterrorizando-a de modo a desejar o sumiccedilo imediato desse homem reside no conflito interior que a avassala Assim o desejo ndash inarticulado e impassiacutevel de materializaccedilatildeo perante o maquinaacuterio de vigilacircncia implantado pela matildee ndash de aventurar-se pelos meandros de uma narraccedilatildeo pessoal que permita a presenccedila de uma figura masculina se contrapotildee ao conforto e agrave harmonia meticulosamente estabelecidos

1 O problema seria bem mais simples se ambos Erika e Klemmer fossem duas carnes coisificadas agrave procura do equiliacutebrio libidinal numa troca capitalista e anti-humana de mercadorias ou bem mais simples numa animalizaccedilatildeo que exclui repercussotildees identitaacuterias O conflito reside justamente no desejo por amor que a personagem Erika indica em seu comportamento mas do qual natildeo consegue dar conta Inscrito nesse desejo encontra-se o anseio por um humanismo que na realidade se revela incapaz de conciliar as demandas do corpo e as necessidades da identidade humana mas que nem por isso deixa de existir

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pela matriarca O choque entre essas duas possibilidades de conformaccedilatildeo de realidade a imobiliza especialmente pela necessidade de uma tomada de decisatildeo

O segundo aspecto que produz seu mal-estar ndash atrelado tambeacutem ao processo de deliberaccedilatildeo ndash proveacutem de uma possiacutevel projeccedilatildeo de futuro Com as incursotildees de Klemmer o futuro se impotildee de forma demasiado intensa porquanto entreabre outras possibilidades de narraccedilatildeo pessoal Se no primeiro movimento o conflito residia na produccedilatildeo imediata de signos instaurados por novas visotildees do si no segundo esses signos surgem como possiacuteveis figuraccedilotildees do futuro O agora retrocede para permitir que o devir adentre o primeiro plano Com isso outros elementos se tornam relevantes especialmente no que concerne agrave narraccedilatildeo de amor e de identidade Os elementos circunstanciais como a parada do bonde ou a conversa posterior com a matildee enfatizam o conforto que experimenta com rituais estabelecidos e previsiacuteveis Isso vale igualmente para a imagem da interpretaccedilatildeo fiel das obras pois tambeacutem nesse exerciacutecio as coordenadas dos processos cognitivos estatildeo predispostas demandando do sujeito somente que se atenha aos caminhos inscritos na obra Ateacute mesmo seu desprezo inicial indicando seu desejo que Klemmer se distancie nada mais representa que um ritual bem delineado a fim de impedir que o desconhecido irrompa no agora A sensaccedilatildeo posterior ndash uma pena deslizando pela pele ndash representa a uacutenica espoacutertula destinada ao corpo de forma comedida e jaacute domesticada A imaginaccedilatildeo do futuro pois implica para Erika um desafio existencial que naquele momento ainda lhe figura como insuportaacutevel pois lhe exige que revise sua construccedilatildeo de identidade e que permita a presenccedila da alteridade para iniciar uma narraccedilatildeo de amor

Klemmer no entanto obstina-se em conquistar sua atenccedilatildeo e para tanto estaacute disposto a investir toda sua energia a fim de romper as barreiras construiacutedas pela professora de piano Enquanto Erika se mostra inquieta perante suas incursotildees desejando nada mais intensamente que retornar ao conforto ritualmente demarcado pelo som do aparelho televiso Klemmer procura desconcertaacute-la com o fito de aperfeiccediloar suas teacutecnicas de seduccedilatildeo Para Klemmer Erika se reduz a um objeto de estudo interessante mas definitivamente passageiro para Erika o aluno se transforma ndash a despeito de seu medo de admitir seus desejos para si mesma ndash numa possibilidade de futuro Logo o tempo volta a perpassar sua narraccedilatildeo indicando sua importacircncia para a concepccedilatildeo de identidade e amor O interesse do aluno desencadeia um processo no qual Erika comeccedila a imaginar linhas alternativas de futuro inserindo nelas narraccedilotildees que preveem a presenccedila de uma figura masculina e a afirmaccedilatildeo de seu corpo

A decadecircncia de Erika bate agrave porta com dedos aacutegeis Doenccedilas mal definidas perturbaccedilotildees vasculares nas pernas ataques de reumatismo inflamaccedilotildees nas juntas alastram-se nela (Doenccedilas como essas satildeo poucas vezes conhecidas pelas crianccedilas E Erika tambeacutem natildeo as conhecia ateacute entatildeo) Klemmer que parece um folheto de propaganda do saudaacutevel esporte da canoagem mede sua professora como se quisesse mandar embrulhaacute-la imediatamente e levaacute-la ou comecirc-la ali mesmo de peacute na loja Talvez esse seja o uacuteltimo a me desejar pensa Erika enfurecida e logo eu estarei morta com apenas trinta e cinco

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anos pensa com raiva Eacute melhor embarcar logo nessa porque depois que eu morrer natildeo vou ouvir cheirar nem sentir o gosto de mais nada (JELINEK 2011 p 132)

A passagem do tempo e suas marcas indeleacuteveis nos signos do corpo a impelem a percepccedilotildees que antes evitara Com a deterioraccedilatildeo do corpo suas chances de satisfazer suas necessidades fiacutesicas se tornam cada vez menores Diante desse cenaacuterio a visatildeo do jovem que a deseja lhe figura como uacuteltima chance natildeo somente quanto a uma possiacutevel narraccedilatildeo de amor mas sobretudo no que concerne a uma construccedilatildeo alternativa de futuro Essa imaginaccedilatildeo contudo tem seu iniacutecio com uma contraposiccedilatildeo muito intensa do capital fiacutesico que os dois provaacuteveis parceiros ostentam Erika por um lado apresenta um corpo em princiacutepio de ldquoruiacutenardquo enquanto Klemmer na flor da idade pode jactar-se de elasticidade e vigor Essa contraposiccedilatildeo estaacute igualmente inscrita no movimento de percepccedilatildeo Erika transcreve o desejo corporal em imagens socialmente inocentes ndash o lanche para o gaacuteudio dos sentidos natildeo deseja consumir entre as quatro paredes mas no cafeacute tamanha a fome ndash enquanto a percepccedilatildeo de Klemmer recai sobre o imediatismo juvenil que natildeo suporta a delonga tampouco considera o momento apoacutes a satisfaccedilatildeo Erika se encontra imersa numa interpretaccedilatildeo de realidade imbuiacuteda de esperanccedila logo natildeo se daacute conta da incongruecircncia que tal relacionamento traz consigo e da impossibilidade da construccedilatildeo de uma narrativa de amor que transcenda o momento

Embora Klemmer natildeo poupe esforccedilos para conquistar a confianccedila da professora suas tentativas de aproximaccedilatildeo natildeo passam de exerciacutecios com o objetivo de comprovar sua destreza e capacidade de manipulaccedilatildeo Assim a imperfeiccedilatildeo da mulher a torna desejaacutevel por franquear-lhe caminhos aos quais natildeo teria acesso se Erika ostentasse uma beleza que o desconcertasse A percepccedilatildeo detalhada do corpo da professora incluindo a identificaccedilatildeo de maacuteculas que minoram seu capital fiacutesico por conseguinte natildeo representa aceitaccedilatildeo do outro em sua integridade senatildeo um mecanismo que impotildee ao outro sua inferioridade Desse modo Klemmer lanccedila matildeo de um aparato por meio do qual pretende vigiar e sobretudo disciplinar Erika Sua juventude e beleza fiacutesica servem de instrumento para legitimar a distribuiccedilatildeo de poder ao mesmo tempo que forccedilam o corpo da professora a curvar-se diante da chance que o aluno supostamente representa Ciente dessa discrepacircncia e de possiacuteveis implicaccedilotildees favoraacuteveis para seus interesses Klemmer se engaja para alcanccedilar seus objetivos

O projeto de identidade de Klemmer natildeo prevecirc a presenccedila de Erika numa escala de tempo mais prolongada jaacute que a paixatildeo que reclama e encena natildeo passa da categoria de objeto Com a coisificaccedilatildeo de Erika a narraccedilatildeo de amor se transforma em narraccedilatildeo de jogo no qual a competitividade se patenteia como algo elementar Klemmer admitidamente natildeo tem predileccedilatildeo por derrotas logo o tempo de jogo que se dispocircs para vencer o adversaacuterio segue padrotildees racionalizados usando toda sorte de teacutecnicas para desconcertar Erika e fazecirc-la curvar-se a seus desejos Nisso ele natildeo divisa a pessoa com suas narraccedilotildees pessoais e projetos de futuro mas somente uma superfiacutecie de projeccedilatildeo cuja funcionalidade natildeo hesita em reduzir para servir-lhe de objeto de prazer e diversatildeo

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Ao contraacuterio dele Erika sim comeccedila a divagar imaginando possibilidades de futuro comum ldquoMecanicamente Erika executa a parte do piano bastante simples Seus pensamentos se dirigem para longe para uma viagem de estudos de piano em companhia de aluno Klemmer Soacute ela ele um quartinho de hotel e o amorrdquo (JELINEK 2011 p 183) Os sonhos em meio a sua encenaccedilatildeo social e profissional imediatamente se rompem perante as lembranccedilas impositivas da matildee mas representam exerciacutecios narrativos soacutelidos que desenvolvem alternativas Embora o tom irocircnico inerente agraves imagens um tanto piegas seja gritante ele encobre um projeto de identidade e de amor em forma de esperanccedila Mais tarde Erika ateacute mesmo se imagina como noiva numa cena em que harmoniza todos os antagonismos O grau de seriedade que Erika atribui a esses projetos se evidencia no momento em que pretende revelar a Klemmer seus verdadeiros desejos confiando cega e plenamente no amor de seu aluno

Renuncia agrave sua proacutepria vontade Essa vontade que ateacute aqui foi sempre propriedade da matildee agora eacute passada para Walter Klemmer como numa corrida de revezamento com bastatildeo Ela se inclina para traacutes e espera para ver o que seraacute decidido a seu respeito Abre matildeo de sua liberdade mas impotildee uma condiccedilatildeo Erika Kohut usa seu amor para que esse jovem se torne seu senhor Quanto mais poder ele tiver sobre ela mais ele se tornaraacute uma criatura agrave disposiccedilatildeo das vontades de Erika Klemmer seraacute escravizado por ela por exemplo se eles forem juntos a Ramsau para passear pelas montanhas E ao mesmo tempo ele vai imaginar que eacute o senhor de Erika Eacute para isso que Erika vai usar seu amor (JELINEK 2011 p 234)

Desejosa de transformar a imaginaccedilatildeo de seu futuro Erika adota um movimento duplo Por um lado ela aparentemente estaacute disposta a obliterar seu projeto de identidade para conformar-se plenamente aos desejos de Klemmer substituindo a matildee como fonte de signos e interpretaccedilotildees de realidade Por outro lado ela natildeo abdica de sua autonomia ao utilizar-se do discurso de submissatildeo como instrumento para alcanccedilar seus objetivos pessoais Esse comportamento contraditoacuterio acaba desconcertando Klemmer que natildeo espera outro tipo de accedilatildeo senatildeo sua completa submissatildeo Quando Erika lhe entrega a carta em que descreve com minuacutecias seus desejos eroacuteticos Klemmer se vecirc confrontado com uma mulher que estaacute longe de ser o objeto de seu prazer egoiacutesta e tirano Ao contraacuterio Erika mostra que possui uma visatildeo muito clara e concreta daquilo que deseja e necessita Com isso a encenaccedilatildeo de identidade machista autoritaacuteria e condescendente de Klemmer sofre uma fragmentaccedilatildeo que abala completamente seu autoentendimento Desconcertado o aluno natildeo sabe como reagir desacreditando da seriedade daquilo que a carta sugere Ele precisa imputar infantilidade aos atos da professora a fim de proteger sua identidade paternalista Seu grau de perturbaccedilatildeo fica ainda mais evidente quando mais tarde incapaz de uma ereccedilatildeo se encontra diante de Erika disposta a satisfazer seus desejos Para salvar sua imagem ele natildeo hesita em ferir a dignidade de Erika assegurando dessa forma sua superioridade pois natildeo logra

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encenar o ldquomacho desvairadordquo para o qual o corpo da mulher natildeo passa de um objeto de prazer a seu dispor

As cenas que seguem a revelaccedilatildeo dos desejos de Erika narram em grande parte o complexo processo de reestruturaccedilatildeo de identidade no qual Klemmer se vecirc inesperadamente arremessado Assim seu passeio pelo parque com a cena grotesca em que tenta assassinar os flamingos quando se masturba em frente agrave casa da famiacutelia Kohut ou por fim quando utilizando-se de violecircncia se apodera do corpo de Erika violentando-a para aparentemente satisfazer os desejos desta Klemmer na verdade estaacute tentando dar conta da realidade Essa realidade desfaz sua narraccedilatildeo de identidade paternalista e machista forccedilando-o a perceber a complexidade da mulher que o confronta com seus anseios Ele tem de reconstruir sua imagem com signos indesejados e rever sua narraccedilatildeo haja vista que esta se vecirc indubitavelmente questionada pelo comportamento de Erika Para Klemmer Erika se limita a uma superfiacutecie sem narraccedilotildees proacuteprias para a projeccedilatildeo de seus desejos portanto um instrumento de consumo raacutepido e temporalmente limitado

Para Erika o relacionamento com Klemmer tem conotaccedilotildees completamente diferentes Embora ela tambeacutem alimente desejos de instrumentalizaacute-lo para seus fins o grau de seriedade que aplica a essa empresa eacute muito maior Ao aproximar-se de Klemmer Erika precisa esquivar-se do maquinaacuterio disciplinador e vigilante da matildee e refazer seu projeto de identidade em diversos aspectos comeccedilando por sua encenaccedilatildeo social que incluiria a presenccedila do aluno em sua narraccedilatildeo passando por uma linha divisoacuteria no seu relacionamento com a matildee e terminando com uma nova percepccedilatildeo de seu corpo Erika enumera seus desejos e expotildee suas maacuteculas sem reservas evidenciando portanto que estaacute disposta a construir um espaccedilo iacutentimo proacuteprio Ao descobrir que a narraccedilatildeo de amor de Klemmer natildeo passa de um discurso sem conteuacutedo sua imaginaccedilatildeo de futuro desvanece desta vez de modo inexoraacutevel especialmente perante o dispecircndio de energia destinado a esse projeto Seu desejo de mataacute-lo a facadas representa uma tentativa de salvar desta vez sua dignidade pessoal e sua configuraccedilatildeo teleoloacutegica A decisatildeo de ferir-se a si mesma por fim revela seu desejo de aniquilar sua identidade uma vez que somente a obliteraccedilatildeo completa dos signos pode minorar a dor que experimenta diante da indiferenccedila que a circunda Embora doloroso o momento encerra para Erika uma grande chance de expansatildeo de sua complexidade aniacutemica se ela optasse por desvencilhar-se do cordatildeo sufocante que a prende a sua matildee e se estivesse disposta a suportar de forma independente todas as dimensotildees do sofrimento que a avassalam naquele momento Erika no entanto retorna para casa a fim de buscar o conforto materno conhecido A professora de piano desenvolve tessituras que poderiam materializar uma narraccedilatildeo de amor essa tessitura no entanto se revela demasiado fraacutegil para resultar em algo concreto duradouro e projetado com uma perspectiva de futuro Tragicamente sua narraccedilatildeo pessoal se caracteriza pela conspiacutecua ausecircncia de amor

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6 Consideraccedilotildees finais

A representaccedilatildeo do amor mostra como as figuras se apropriam de diferentes discursos para encenarem aquilo que consideram corresponder ao sentimento de amor Este serve de chave para uma seacuterie de representaccedilotildees que de fato estatildeo muito distantes do fenocircmeno do amor compreendido como narraccedilatildeo densa compartilhada por duas pessoas e projetado numa linha de futuro comum Os diversos conflitos internos que atribulam a estabilidade aniacutemica das personagens as impelem a procurar no invoacutelucro ldquoamorrdquo um caminho para dar conta do excesso ou ao menos representar aquilo que natildeo desejam processar conscientemente

A narraccedilatildeo do amor se revela parcial e tributaacuteria de outras motivaccedilotildees Assim a senhora Kohut matildee da professora de piano encena-se de acordo com expectativas sociais incorporando o papel da matildee preocupada aflita e protetora para desse modo apropriar-se e controlar a vida iacutentima de sua filha O amor se patenteia como instrumento de uma visatildeo autoritaacuteria que natildeo tolera questionamentos Para potencializar sua eficaacutecia ela natildeo hesita em utilizar-se da culpa como estrateacutegia discursiva para dominar e domesticar o corpo da filha Por traacutes dessa narraccedilatildeo impositiva encobre-se a incapacidade de construir uma identidade pessoal autocircnoma e independente da subserviecircncia filial Incapaz de processar conscientemente seus proacuteprios anseios carnais a matildee exige da filha que tambeacutem ela reprima todo indiacutecio do indiziacutevel O amor materno eacute uma narraccedilatildeo fracassada fruto da incapacidade de suportar a dor de suas proacuteprias insuficiecircncias

Socializada dessa forma Erika aprende bem cedo a negar as necessidades do corpo excluindo-o de sua autorrepresentaccedilatildeo o que para a criaccedilatildeo de um espaccedilo iacutentimo se revela como enorme barreira As premecircncias do corpo contudo natildeo se calam de forma que Erika se vecirc forccedilada a procurar espaccedilos em que possa libertar-se do controle materno para apaziguar as demandas corporais Esse espaccedilo ela o encontra em estabelecimentos eroacuteticos situados nos subuacuterbios de Viena Longe do acircmbito em que normalmente circula e se encena socialmente ela pode ver o corpo alheio deleitando-se com prazeres eroacuteticos sem a necessidade de integrar esses signos em sua identidade Suas escapadelas no entanto natildeo a ajudam a conhecer seu proacuteprio corpo nem a construir relacionamentos estaacuteveis Pelo contraacuterio as experiecircncias contingentes completamente desligadas de sua realidade social impedem uma projeccedilatildeo no futuro obstruindo a criaccedilatildeo de uma base soacutelida para o surgimento do amor

Com o interesse repentino de seu aluno Klemmer o amor comeccedila a concretizar-se em sua interpretaccedilatildeo de realidade Afeita a rituais a professora se intimida com a alteridade do amor que desponta inesperadamente A despeito de seus medos e suas insuficiecircncias Erika se mostra disposta a rever sua narraccedilatildeo e incluir o amor em suas redes significativas Para isso mostra e admite suas fraquezas dispondo-se a incluir o aluno em sua narraccedilatildeo de identidade desligar-se dos jugos maternos e aceitar a alteridade do corpo A falta de seriedade por parte de Klemmer contudo natildeo permite que o amor medre deixando para traacutes uma mulher ainda mais fragmentada

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Para Klemmer Erika se limita a um objeto de estudo com o qual pretende aprimorar suas habilidades amorosas A percepccedilatildeo das fraquezas da mulher que o defronta natildeo serve como base para construccedilatildeo de um projeto comum embasado na confianccedila mas como instrumento do qual se utiliza para impor seus caprichos Ao coisificaacute-la ele elide sua identidade e ignora a dignidade da professora Quando se apercebe que ela tem seus desejos proacuteprios e um grau de reflexatildeo e autodomiacutenio muito maior que o esperado Klemmer vecirc sua encenaccedilatildeo de identidade em risco uma vez que jaacute natildeo pode mais se representar como o macho possuidor Diante desse perigo ele a abandona natildeo sem antes mostrar que o amor que supostamente sentia natildeo passava de um instrumento para enredaacute-la Nos trecircs casos o amor constantemente invocado se revela com narraccedilatildeo insuficiente e demasiado vaacutecua

O que essas diferentes narrativas de amor tecircm em comum eacute um caraacuteter polifocircnico Nisso o amor em si como foi definido no iniacutecio deste artigo apresenta uma natureza plural em que vaacuterias fontes de sentido se manifestam formando um grupo de vozes a ser enfeixado de modo subjetivamente harmocircnico Ao mesmo tempo o amor que de fato se concretiza no romance analisado se revela polifocircnico pois natildeo haacute confluecircncia de interesses mas sim uma instrumentalizaccedilatildeo da narrativa do amor para outros fins Isto eacute a voz que se materializa por meio do discurso do amor na verdade persegue um objetivo diferente daquele articulado superficialmente O que resta satildeo personagens fracassadas e incapazes de amar

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Recebido em 22102017

Aceito em 17112017

Dionei Mathias

Doutor em Letras pela Universidade de Hamburgo (Alemanha) e pela Universidade Federal do Paranaacute (UFPR) Professor do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade Federal de Santa Maria ndash RS dioneimathiasgmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Marcel ProustHonoreacute de Balzac a Meacutelange de uma Narratividade

Marcel Proust Honoreacute de Balzac the Meacutelange of Narrativity

Marcel ProustHonoreacute de Balzac la Meacutelange de una Narratividad

Aguinaldo Joseacute GonccedilalvesUniversidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Goiaacutes

Resumo

Ao nos propormos a apresentar este artigo elegemos como tema as relaccedilotildees entre criacutetica e invenccedilatildeo A metodologia consiste em abordagem comparativa entre o pensamento criacutetico de Marcel Proust e o meacutetodo biograacutefico de Sainte-Beuve com implicaccedilotildees sobre procedimentos inventivos de Honoreacute de Balzac e Gustave Flaubert O objetivo eacute mostrar o modo como Marcel Proust constroacutei seu pensamento criacutetico e ao criticar os equiacutevocos de Sainte-Beuve acaba questionando o modo referencial de Balzac e a construccedilatildeo da literariedade em Flaubert O resultado da anaacutelise mostra a profundidade literaacuteria e ensaiacutestica de Proust contribuindo para a compreensatildeo da literatura e das artes Palavras-chave Balzac Proust Sainte-Beuve

Abstract

By proposing this present article we chose as its theme the relationship between criticism and invention The methodology consists of a comparative approach between Marcel Proustrsquos critical thinking and the Sainte-Beuversquos biographical method with implications on Honoreacute de Balzacrsquos and Gustave Flaubertrsquos inventive procedures The goal is to show how Marcel Proust builds his critical thinking and by criticizing Sainte-Beuversquos he ends up questioning Balzacrsquos referential mode and the construction of literariness in Flaubert The result shows the depth of Proustrsquos literature and essays contributing to the understanding of literature and artsKeywords Balzac Proust Sainte-Beuve

Resumen

El objeto de este artiacuteculo son las relaciones entre criacutetica e invencioacuten La metodologiacutea consiste en un enfoque comparativo entre el pensamiento criacutetico de Marcel Proust y el meacutetodo biograacutefico de Sainte-Beuve con implicaciones sobre procedimientos inventivos de Honoreacute de Balzac y Gustave Flaubert El objetivo es mostrar el modo como Proust construye su pensamiento

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criacutetico y al criticar las posiciones de Sainte-Beuve cuestiona el apego referencial de Balzac y la construccioacuten de la literariedad en Flaubert El resultado del anaacutelisis muestra la profundidad literaria y ensayiacutestica de Proust contribuyendo a la comprensioacuten de la literatura y de las artesPalabras clave Balzac Proust Sainte-Beuve

1 Introduccedilatildeo

Este artigo tem como proposiccedilatildeo acompanhar o movimento do pensamento do escritor francecircs Marcel Proust (1871-1922) no primeiro dececircnio do seacuteculo XX poucos anos de iniciar a escritura da grande obra Em Busca do Tempo Perdido (1908-1909 a 1922) Foi nesse periacuteodo que o escritor se investiu de coragem e competecircncia criacutetica para escrever a obra Contre Sainte-Beuve (1988) posicionando-se a respeito do meacutetodo de uma criacutetica biograacutefica Ao realizar esse trabalho Marcel Proust elenca grandes autores mdash Nerval Baudelaire Balzac e Flaubert mdash que teriam sido criticados e algumas vezes desdenhados ou diminuiacutedos por Sainte-Beuve (1804-1869) Mediante a incocircmoda posiccedilatildeo de Marcel Proust em razatildeo daquilo que considera equiacutevocos de Sainte-Beuve desenvolveu-se uma leitura por meio da qual se instaura um procedimento comparativo entre os dois de um lado a criacutetica sustentada na relaccedilatildeo entre o autor sua vida seus haacutebitos e sua obra por outro lado uma criacutetica em favor dos procedimentos intriacutensecos agrave obra Entretanto ao focalizar as questotildees levantadas por Sainte-Beuve sobre Honoreacute de Balzac e Gustave Flaubert Proust (1899 p 131-8) estabelece uma outra abordagem comparativa agora independente da criacutetica de Sainte-Beuve qual seja analisar os estilos dos dois autores deitando luz sobre aspectos decisivos no processo de realizaccedilatildeo literaacuteria Dentre eles a relaccedilatildeo entre literatura e realidade nuanccedilas de estilo que segundo Proust fazem a diferenccedila entre a literatura meramente formadora de quadros de eacutepoca e aquela que transcende a referencialidade exatamente por transformar tais quadros em signos plurais que determinam o discurso artiacutestico Por isso esperamos o maacuteximo de clareza na realizaccedilatildeo deste artigo mas natildeo a esperada clareza das questotildees discutidas Muitas vezes elas ficam num entrecruzar entre sombra e luz outras vezes nem isso temos quando a noite se fecha e precisamos esperar o dia seguinte para clarear as imagens Diante disso devemos ressaltar a relevacircncia do meacutetodo comparativo como forma de melhor elucidar o pensamento criacutetico que por consequecircncia mais nos aproxima da literatura

2 Proust precursor de Balzac e de Flaubert

Se os movimentos do pensamento criacutetico e inventivo da poesia do seacuteculo XIX criaram uma verdadeira saga de vivificaccedilatildeo do poeacutetico e das transmutaccedilotildees de linguagem atingindo o apogeu com o Simbolismo francecircs sobretudo com Baudelaire Mallarmeacute Rimbaud e Valeacutery (este atingindo seu auge jaacute no seacuteculo XX) menos intenso natildeo foi o movimento que se desenvolveu com a narrativa Entretanto com este gecircnero os obstaacuteculos se impuseram com maior intransigecircncia Como assinalamos na introduccedilatildeo a proposiccedilatildeo criacutetica deste artigo analisa o movimento que se instaura

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entre o pensamento criacutetico-inventivo do escritor francecircs Marcel Proust (1871-1922) seu estilo seus fundamentos e sua visatildeo sobre a obra do criador de A Comeacutedia Humana (18341) Honoreacute de Balzac (1799-1850)

O texto trilharaacute pelos negaceios do leitor Marcel Proust em relaccedilatildeo agrave sua criacutetica ao meacutetodo de Sainte-Beuve O delineamento deste artigo portanto caminha pelos meandros das narratividades de dois nomes da literatura mundial e em especial da literatura francesa Na verdade o que se daacute no ritmo ondulante de Marcel Proust eacute um exerciacutecio criacutetico instigante para o estudo das artes e da Literatura por meio seja de suas consideraccedilotildees mais transparentes sobre o (natildeo) estilo de Balzac seja pela forma com que Proust se vale dos ingredientes existentes na obra daquele autor para fermentar e edificar sua obra principal A obra literaacuteria de um autor considerado iacutentegro nas partes constitutivas de seu discurso denuncia uma espeacutecie de harmonia entre os ingredientes da execuccedilatildeo no conjunto de sua produccedilatildeo que depois de composta se torna um corpo fechado no qual reside certa incorporeidade impossiacutevel de ser desconstruiacuteda

A obra que temos na mira do pensamento eacute a do escritor francecircs Marcel Proust assim como os desdobramentos expressivos de sua poeacutetica A narrativa proustiana eacute composta de mais de trecircs mil paacuteginas que se sequenciam como um moto perpeacutetuo constituiacutedo de sete partes cada uma formando um volume com um tiacutetulo distinto mas que se amalgama num soacute corpo denominado Em Busca do Tempo Perdido Para Proust o ponto nevraacutelgico para a reflexatildeo sobre literatura sempre foi o estilo

Entretanto naquele momento histoacuterico o processo de discussatildeo de estilo ao pensar o processo inventivo de qualquer escritor passava obrigatoriamente pelas marcas criacuteticas de uma figura social e literaacuteria no mundo da criaccedilatildeo e no mundo da criacutetica que acabou se impondo com todas as forccedilas no pensamento intelectual de meados do seacuteculo XIX Trata-se de Charles Augustin Sainte-Beuve (1804-1869) Como escritor ele realizou uma obra muito extensa atuando em vaacuterios gecircneros como a poesia e a narrativa Entretanto seu trabalho artiacutestico natildeo conseguiu o sucesso almejado ao contraacuterio foi renegado e desconsiderado como obra O meacutetodo criacutetico de Sainte-Beuve quer se impor tomando por princiacutepio o fato de que a obra de um escritor seria primeiramente todo um reflexo de sua vida e se poderia explicar por ela este meacutetodo se estabelece sobre a busca do intento poeacutetico do autor (intencionalismo) e sobre suas qualidades pessoais (biografismo)

A criacutetica biograacutefica foi assim instituiacuteda e influenciou sobremaneira a produccedilatildeo literaacuteria da segunda metade do seacuteculo XIX especialmente na Franccedila O curioso eacute que mesmo com a morte desse pensador em 1869 seus fundamentos criacuteticos se mantiveram inexoraacuteveis e com intensificada interferecircncia no pensamento inventivo de escritores que nasceram apoacutes este momento Depois de tantos anos agrave mercecirc desse tipo de pensamento criacutetico tomado como base por alguns escritores famosos que alimentaram essas turvas noccedilotildees sobre invenccedilatildeo e criacutetica literaacuteria tais como Vitor Hugo e outros ldquoaliadosrdquo do autoritarismo de Sainte-

1 Refiro-me ao ano em que Balzac teria encontrado o tiacutetulo definitivo para o conjunto drsquoA Comeacutedia Humana

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Beuve iniciaram-se as manifestaccedilotildees desfavoraacuteveis a esse ideal criacutetico Mediante a vigorosa e ateacute violenta posiccedilatildeo do biografismo criacutetico com sombras de influecircncia do Positivismo e do Determinismo as raiacutezes jaacute estavam se alastrando por todos os lados e deitando influecircncia nas manifestaccedilotildees artiacutesticas quiccedilaacute sobre um certo Realismo e com certeza sobre o Naturalismo Para iniciar um combate a Sainte-Beuve as forccedilas criacuteticas tinham de possuir uma natildeo apenas contraacuteria mas operante e inteligente forma de reaccedilatildeo E ela se iniciaria com Marcel Proust o qual mesmo bastante jovem apresentava uma arguta consciecircncia intelectual e de seus atos Com seu ensaio Contre-Sainte-Beuve (1988) foi o primeiro a contestar a visatildeo criacutetica desse

Aleacutem de Marcel Proust a Escola Formalista Russa bem como os criacuteticos Robert Curtius e Leo Sptizer com seus projetos teoacutericos advindos da Filologia e da Estiliacutestica (CURTIUS 1923 SPITZER 1955) deram continuidade aos fundamentos voltados para o texto opondo-se aos ditames do Biografismo Apesar de toda a reaccedilatildeo dessas linhas determinantes do juiacutezo criacutetico sobre a literatura e sua realidade textual de quando em quando a tendecircncia ao biografismo volta sorrateiramente

De extensa obra criacutetica poucos trabalhos de Sainte-Beuve parecem ter contribuiacutedo para os estudos culturais franceses Dentre eles destacam-se seus estudos sobre Chateaubriand (1996) O que ficou como registro criacutetico a respeito de Sainte-Beuve foi sua visatildeo equivocada sobre os autores e as obras que analisava e avaliava Como criacutetico elevou os mediacuteocres que se perderam nos desvatildeos dos estudos literaacuterios e diminuiu os melhores chegando a desdenhar alguns deles Sua obra criacutetica reunida e publicada num periacuteodo de trinta anos (1851-1881) denominada Causeries du lundi [Conversas de segunda-feira] (1953) reuacutene por volta de dezesseis tiacutetulos sendo que cada tiacutetulo apresenta muitos volumes Eacute necessaacuterio reabilitaacute-lo aqui para que se compreendam determinados passos da evoluccedilatildeo da criacutetica europeia e por que natildeo mundial sobretudo se temos Marcel Proust como nosso guia nesse percurso histoacuterico-esteacutetico O modo como o escritor francecircs leu Sainte-Beuve e sua criacutetica biograacutefica eacute fundamental para que passemos a compreender a maneira como Honoreacute de Balzac se insere nesse painel

3 Nas malhas da criacutetica inventiva ou do ensaio ficcional de Marcel Proust

A obra Em Busca do Tempo Perdido foi resultado de intensivo movimento criacutetico incluindo obras de seus contemporacircneos e da tradiccedilatildeo realizando exerciacutecios ficcionais e criacuteticos crocircnicas e pastiches preacutevios treinamentos romanescos (como Jean Santeuil (1982) e outros procedimentos que pudessem contribuir na construccedilatildeo de sua epopeia liacuterica

Como jaacute assinalei metaforicamente em produccedilatildeo anterior2 se Jean Santeuil representa a larva na evoluccedilatildeo da futura borboleta a obra criacutetica Contre Sainte-Beuve eacute a crisaacutelida (ou

2 Trata-se da apresentaccedilatildeo ao livro Contre Sainte-Beuve intitulada ldquoO processo holometaboacutelico de Marcel Proustrdquo (GONCcedilALVES 1988)

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casulo) Colocando-lhe lentes de aumento o que se nota eacute um texto anfiacutebio de representaccedilatildeo capital no processo evolutivo do estilo de Proust Esta obra funciona como anaacutefora e como cataacutefora no processo inventivo desse artista O movimento anafoacuterico se daacute natildeo soacute agrave criacutetica de Sainte-Beuve mas agrave de Taine e de outros que dominaram o tom criacutetico do seacuteculo XIX Quanto ao movimento catafoacuterico este sim regeu o procedimento propriamente inovador de Proust e representa a sua imersatildeo no fluxo da linguagem e do pensamento em busca de uma realizaccedilatildeo criadora A nossa atenccedilatildeo deve recair sobre a preposiccedilatildeo contre e avaliaacute-la dentro de paracircmetros cautelosos Ela atua como vaacutelvula e como reaccedilatildeo Se por um lado significa o incocircmodo por outro representa impulsatildeo Assim este quase-ensaio ou este exerciacutecio-anfiacutebio deixa de possuir o sentido linear do ldquocontrardquo para significar uma praacutetica ldquoa favorrdquo da arte literaacuteria de Proust Eacute assim que a amplitude desta criaccedilatildeo-reaccedilatildeo eacute muito grande se analisarmos a sua importacircncia no painel criacutetico ou no seu duplo movimento o que eacute a arte e o que eacute a criacutetica

Manifestando-se no conjunto de sua produccedilatildeo literaacuteria a resposta de Proust agrave criacutetica do seacuteculo XIX adquire em certos momentos uma natureza quase didaacutetica Numa das passagens de Jean Santeuil a criacutetica do retrato literaacuterio de caraacuteter biograacutefico defendido por Sainte-Beuve assume dimensatildeo irocircnica na pena de Proust Trata-se da parte IV capiacutetulo I em que Jean conhece o ldquogenial escritorrdquo Traves ao passar alguns dias em Reacuteveillon Depois de atentar para a presenccedila de Traves de extrair elementos de sua personalidade apoacutes conversar com ele e recolher aspectos de sua vida Jean percebe que tudo isso ou nada disso conseguia explicar ou prolongar o estranho fasciacutenio o mundo uacutenico para aonde ele Traves transportava-nos desde as primeiras paacuteginas de um de seus livros e no qual sem duacutevida vivia quando ele proacuteprio o trabalhava fabricando-o agrave medida que escrevia e tendo jaacute vagamente desenrolado diante dele em sonhos singulares a mateacuteria preciosa ainda informe como uma via-laacutectea da qual devia ser pouco a pouco tecida (PROUST 1982 p 246) Os movimentos que se estabelecem entre a vida de um autor e a obra que fabrica se comparam para Proust a uma janela que se abre para um quarto vazio Eacute a via-laacutectea nebulosa e informe que se enformaraacute de signos marcados pelo estilo a que vimos aludindo

Mais profuso no gecircnero narrativo em que os temas da vida e as referecircncias satildeo mais notoacuterios consegue elevar esse gecircnero agrave condiccedilatildeo de uma praacutetica conferindo-lhe uma autonomia que mais que refletir resgata a essecircncia das coisas num processo de emergecircncia da proacutepria arte numa espeacutecie de remissatildeo contiacutenua de um a outro sistema O signo da arte eacute o grande referencial da narrativa de Proust Para isso foi necessaacuterio um exerciacutecio de realizaccedilatildeo marcado por procedimentos de perfuraccedilatildeo da camada da mateacuteria seja da realidade seja da linguagem O que chamamos processo de metamorfose em Proust eacute na verdade um processo de traduccedilatildeo mimeacutetica da proacutepria linguagem ou um defrontar-se com a mateacuteria-prima da representaccedilatildeo que eacute o signo Como em Mallarmeacute a obra de Proust potildee em pauta a relaccedilatildeo dialeacutetica entre o Signo e a Realidade Ao buscar a natureza da ldquoliacutenguardquo da poesia eou da literatura tambeacutem o discurso proustiano ldquodesrealizardquo a funccedilatildeo normativa da ldquoliacutenguardquo dos comunicados mobiliza a necessaacuteria relaccedilatildeo entre significante e significado aleacutem de recuperar ou

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nomear (indiretamente) aquilo que era apenas nebuloso no pensamento e no espiacuterito Esse exerciacutecio de mimesis da proacutepria linguagem tem como resultado a tensatildeo do limite extremo em que se opera a transubstancializaccedilatildeo da realidade referencializada para a realidade referencializaacutevel da obra O que se denominam ldquoiluminaccedilotildeesrdquo em Proust eacute o que o proacuteprio autor denominou ldquomemoacuteria involuntaacuteriardquo Satildeo formas de criaccedilatildeo ou de traduccedilatildeo da nebulosidade do espiacuterito Por tudo isso reler Ilusotildees Perdidas (2011) de Balzac depois de ter lido Em Busca do Tempo Perdido de Marcel Proust consistiu num exerciacutecio no miacutenimo surpreendente

Havia lido algumas obras de Balzac haacute muitos anos e o que me ficava na memoacuteria era a sequecircncia de figuras humanas que pareciam natildeo se caracterizar como personagens com todas elas se parecendo seja pela conjunccedilatildeo nas relaccedilotildees seja por disjunccedilatildeo que denunciava tramas possiacuteveis mas dentro sempre da mesma estrutura num tom sequenciado de efabulaccedilatildeo Ao ler e analisar Contre Sainte-Beuve fez-se necessaacuteria a releitura de Ilusotildees Perdidas e daiacute todas as vagas estranhezas de minha memoacuteria voltaram e ganharam sentido Aquelas figuras se amontoavam na minha memoacuteria em outras obras que compunham A Comeacutedia Humana sempre marcadas pelo teor alegoacuterico das personagens muitas vezes caricatural Assim quem me conduziu a Balzac foi o pensamento criacutetico-analiacutetico de Marcel Proust as razotildees encetam para uma seacuterie de elementos todos eles voltados para a questatildeo do estilo e da representaccedilatildeo literaacuteria Esse fenocircmeno criacutetico eacute em si decisivo a obra criacutetica e narrativa de Proust tornou-se precursora da obra de Balzac

A leitura equivocada que Sainte-Beuve realiza de alguns de seus contemporacircneos a propoacutesito dos melhores deles muitas vezes indivisa determinadas relaccedilotildees ou determinados autores ou obras mas por outro lado acabou por provocar os acircnimos daqueles que iniciariam uma reaccedilatildeo contra a criacutetica biograacutefica e com isso uma revisatildeo de determinados autores mitificados pelo puacuteblico e pela criacutetica Foi o caso de Balzac e Flaubert Como se natildeo houvesse uma intenccedilatildeo criacutetica declarada ao falar de um Proust sempre se reporta ao outro Esse meacutetodo mostrou-se fundamental para que nosso olhar se mova como pecircndulo para um e outro estilo para uma e outra visatildeo sobre literatura O futuro criador de Em Busca do Tempo Perdido se volta contra Sainte-Beuve quando este critica Balzac Ao mesmo tempo ao realizar suas consideraccedilotildees criacuteticas acaba por aproximar a visatildeo do autor de A Comeacutedia Humana daquela do autor de Madame Bovary (FLAUBERT 2011) A atraccedilatildeo do criacutetico Marcel Proust pelo estilo de Flaubert intesifica sua negaccedilatildeo de um possiacutevel estilo em Balzac e isso se manifesta em vaacuterios sentidos Ele cria uma metaacutefora para se referir ao discurso do autor de A Educaccedilatildeo Sentimental (FLAUBERT 2015) a qual eacute chamada por ele de esteira rolante (PROUST 1994) Com essa imagem ele se reporta agrave articulaccedilatildeo interna da linguagem aos arranjos das categorias de cada meio expressivo na busca da ampliaccedilatildeo de seus limites ndash traccedilo condutor da modernidade ndash que geram uma forccedila diferente uma convulsatildeo das formas que exige do receptor uma postura mental distinta Satildeo obras estruturalmente dinacircmicas e tematicamente estaacuteticas que como resultado geram novas relaccedilotildees distintas e muito mais intensas que aquelas dos modelos tradicionais

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Nos anos que precederam ao iniacutecio da grande escritura muitos estudos ou muitas leituras foram realizadas por Proust acompanhadas de pequenos textos ou comentaacuterios que redigia agrave luz desse exerciacutecio laboratorial Esse universo construiacutedo lhe serviria como fragmentos de sua experiecircncia como palimpsestos inventivos dos quais Proust elegeu aqueles que foram determinantes na formaccedilatildeo da narrativa francesa e de seu juiacutezo criacutetico pois essas duas vertentes sempre caminharam como uma soacute coisa para esse grande escritor A esteira rolante utilizada para metaforizar a narrativa de Flaubert caberia em certa medida para caracterizar o proacuteprio estilo proustiano Vale neste contexto citar uma assertiva de E R Curtius

A primeira leitura de Proust produz uma impressatildeo estranha mescla de encantamento e de confusatildeo Sentimo-nos envolvidos pela abundacircncia de materiais em aparente desordem extraviado num estilo prolixo e sinuoso em cujo ritmo natildeo se descobre nenhuma lei sente-se de uma vez atraiacutedo como que pelo timbre de uma muacutesica nova cuja harmonia natildeo se consegue analisar atraiacutedo a um universo de seduccedilatildeo tatildeo original que qualquer um se abandona em seus feiticcedilos (CURTIUS 1923 p 14-15)

Muito tem se esforccedilado a criacutetica em busca do ldquotempo de Proustrdquo entretanto muito se tem errado buscando esse tempo na vida do escritor nos seus haacutebitos nos lugares que frequentava bem como nas suas idiossincrasias Aleacutem da incongruecircncia de tais procedimentos criacuteticos pode-se considerar de extrema ironia que alguns criacuteticos se valham em pleno seacuteculo XXI de meacutetodos similares agravequeles utilizados por Sainte-Beuve para analisar uma obra que surgiu pela negaccedilatildeo do referido meacutetodo Todos esses elementos fazem parte do material utilizado por Proust em sua moenda inventiva mas assim como outros ingredientes tudo foi metamorfoseado na sua obra em ldquoneblinadas metaacuteforasrdquo fontes de sua ldquoprecisatildeordquo A respeito de Flaubert Proust ainda ressalta a sua isenccedilatildeo no modo de narrar e de descrever assinalando que esse procedimento permite ao autor ir cada vez mais ao encontro do narrador e natildeo do ser histoacuterico Flaubert

Diriacuteamos em espelho que o que mais interessa para os estudos proustianos e nisso consiste toda a sua busca criacutetica eacute liberar-se cada vez mais daquilo que natildeo eacute Proust tornando-se cada vez mais narrador no espaccedilo do discurso ficcional metafoacuterico preciso Faz bem Curtius ao advertir que devemos interpretar essas posiccedilotildees de Proust no sentido de que a verdadeira criacutetica tende a descobrir os elementos formais da alma de um autor e natildeo suas opiniotildees nem seus sentimentos Tender agrave descoberta dos elementos formais da alma de um autor significa mergulhar nos elementos internos da obra no seu estilo pactuando-se o maacuteximo possiacutevel com a metaacutefora do discurso artiacutestico para que seja viaacutevel uma vez recebida que ela seja bem percebida

Nesse modo de ver o estilo de Flaubert Proust indicia ou ateacute mesmo aponta para elementos criacuteticos determinantes na obra de Balzac Um dos elementos determinantes eacute mostrado por Proust da seguinte maneira comentando aspectos da vida de Balzac de suas minudecircncias mundanas comentadas e assinaladas pelo proacuteprio Balzac em cartas

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agrave sua irmatilde seus interesses financeiros sua visatildeo de casamentos arranjados a relevacircncia de conviver na sociedade parisiense de abrir os salotildees para a sociedade de se mostrar ao lado de uma mulher de prestiacutegio entre outros faz ver Proust como tudo isso estaacute retratado em sua obra Em todas elas sobretudo em Ilusotildees Perdidas sua obra maior os dados mundanos em todas as suas referecircncias plurais satildeo praticamente transportados para a obra Aleacutem de tudo isso suas ideias suas frases feitas seu humor aacutecido sua visatildeo pessoal da condiccedilatildeo humana entram para sua obra com a mesma indiscriminaccedilatildeo

A criacutetica de Proust agrave visatildeo de Balzac se daacute pela comparaccedilatildeo que realiza com a construccedilatildeo da narrativa de Flaubert para quem como assinala a realidade da obra estaacute na proacutepria obra para ele o autor de A Educaccedilatildeo Sentimental sabe muito bem separar a vida do autor de sua obra como segundo Proust deve ocorrer para que se tenha um resultado propriamente artiacutestico capaz de realizar uma efetiva leitura do homem no mundo e de suas relaccedilotildees natildeo apenas sociais mas tambeacutem consigo mesmo Dentro dessa mesma base de consideraccedilotildees criacuteticas no ziguezaguear da percepccedilatildeo e fina anaacutelise proustiana ocorre nos discursos dos dois romancistas Balzac e Flaubert um movimento distintivo e ainda mais detidamente estiliacutestico que na verdade revela o modo de ver o mundo pelo escritor Trata-se da questatildeo da vulgaridade em Balzac

A questatildeo da vulgaridade foi muito discutida na obra desse autor seja quanto aos temas tratados seja na forma da utilizaccedilatildeo da linguagem tanto nas palavras quanto no tom de articulaccedilatildeo discursiva E nesse sentido tambeacutem criticou e vilipendiou Sainte-Beuve o autor de Ilusotildees Perdidas Essa vulgaridade sobretudo no sentido temaacutetico tambeacutem foi apontada na obra de Flaubert principalmente em Madame Bovary Proust com feiccedilotildees de teoacuterico da literatura mas se valendo da pena do criacutetico que estava se transformando em autor num movimento de metamorfose que nos lembra processos alquiacutemicos examina as diferenccedilas entre o tratamento da vulgaridade em Balzac e em Flaubert Para ele coisa que natildeo ocorre em Flaubert uma representaccedilatildeo da vulgaridade eacute construiacuteda na obra de Balzac sem que haja uma transcriaccedilatildeo efetiva daquela vivenciada pelo autor ou por qualquer outro ser humano Balzac apesar de tratar de assuntos tatildeo interessantes geradores de um caraacuteter polecircmico que o celebrizou por tantos anos deixa agrave margem aquele processo que Antonio Candido (1993 p 30-4) chama de ldquodesfazer e refazer a realidade pela linguagemrdquo Algumas peculiaridades em Balzac ganham dupla qualificaccedilatildeo O seu descritivismo exemplar em alguns momentos traz consigo sua outra face torna-se esvaziado a natildeo ser como parte das milhares de caricaturas que constroacutei Junto com as descriccedilotildees que satildeo retratos diretos da vida real e que natildeo atingem a dimensatildeo do discurso literaacuterio surgem possibilidades surpreendentes de uma invenccedilatildeo natildeo concluiacuteda

Um dos ingredientes reaproveitados por Proust eacute o universo das artes plaacutesticas que surge de maneira intensa na obra de Balzac dentro daquele mesmo espiacuterito de descriccedilatildeo Honoreacute de Balzac constitui caso excepcional de escritor gerando incocircmodos na massa criacutetica de sua eacutepoca e mais ainda na criacutetica posterior razatildeo pela qual natildeo se pode emparedar a sua obra aos paradigmas do Romantismo mais vale consideraacute-lo como um iniciador precoce do Realismo

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Cremos que esse extenso focirclego atingiu de certa forma os maiores e mais notaacuteveis do seacuteculo XIX (Eacutemile Zola Charles Dickens Dostoievsky e Marcel Proust) e fascinou o puacuteblico embevecido por suas ideias suas frases de impacto e sua ciacutetrica forma de ironizar os valores sociais e morais de toda a primeira metade daquele seacuteculo A mulher de trinta anos Eugegravene Grandet O Pai Goriot Ilusotildees Perdidas estatildeo dentre os mais lidos e os mais comentados da grande saga balzaquiana Dizer seu nome passou a ser sinocircnimo de denuacutencia problemas de dinheiro da usura da hipocrisia familiar da constituiccedilatildeo dos verdadeiros poderes da Franccedila liberal burguesa e indiretamente do universo dos operaacuterios e camponeses Exalta-se nesse escritor sua enorme capacidade de trabalho sobretudo pelas emergentes necessidades de resoluccedilatildeo de suas diacutevidas permanentes

Dado curioso e digno de anaacutelise eacute o modo como sua obra foi tatildeo amplamente recepcionada O protagonista de Ilusotildees Perdidas Lucien de Rubempreacute sua saga em Paris suas buscas e fracassos sua fome de ascensatildeo e de prestiacutegio em todos os niacuteveis sociais e ainda querendo se impor como poeta todas essas marcas estatildeo no proacuteprio Honoreacute de Balzac que se representa na obra construiacuteda Ele se torna catalisador numa espeacutecie de ldquorelatoacuterio rascunhordquo da humanidade Quando a criacutetica o considera o mais relevante escritor do romantismo francecircs as coisas parecem ficar extremamente nubladas para quem pensa literatura Natildeo se trata aqui de um caminho criacutetico ou de uma teoria que possa conduzir a uma visatildeo aacutecida do escritor Eacute fato que Balzac realizou em pleno iniacutecio do seacuteculo XIX um trabalho sui generis como massa referencial levantou temas ou ldquoassuntosrdquo de grande interesse da sociedade da eacutepoca e mesmo de eacutepocas futuras passando seu trabalho a alimentar possibilidades de sentido por manter os mesmos personagens em todos os romances

Por outro lado natildeo apenas a vulgaridade mas qualquer outro tema mundano ou natildeo ganha em Flaubert outro patamar de realidade e dentro disso ele emerge como o grande criador do romance moderno em que a isenccedilatildeo do autor e a autonomia do narrador alcanccedilam dimensotildees determinantes Nesse posicionamento construtivo a vida do autor bem como suas relaccedilotildees pessoais com assuntos mundanos deixa de existir para Flaubert para ceder agrave obra mediada pela linguagem que jaacute natildeo pertence ao que denominamos semioacutetica I Com Flaubert passamos para uma segunda semioacutetica que pode ser entendida como Liacutengua II Nessa busca de aproximaccedilotildees as condiccedilotildees reais dos procedimentos artiacutesticos acabam por estabelecer convergecircncias mais acentuadas entre a obra de Gustave Flaubert e a obra de Marcel Proust do que das obras desses dois artistas em relaccedilatildeo a Honoreacute de Balzac Dentre as convergecircncias entre os dois escritores Proust e Flaubert uma se destaca o fato de ambos produzirem o que Paul Valeacutery (1999) denominaria uma obra claacutessica por trazerem no seu proacuteprio plano de fabricaccedilatildeo um criacutetico Ambos conferem agraves suas obras a devida autonomia enquanto tal e nisso estaacute impliacutecita a isenccedilatildeo da vida do autor em relaccedilatildeo agrave obra Entretanto a invenccedilatildeo proustiana natildeo se limita agraves questotildees criacuteticas engendradas pelo autor de Madame Bovary e de A Educaccedilatildeo Sentimental mas se estende e se engasta em outras obras fundamentais sobretudo da narrativa do seacuteculo XIX

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Eacute nesse movimento criativo que se insere o contraponto do discurso que ora se inventa em oposiccedilatildeo ao referencial balzaquiano Trata-se da estranha relaccedilatildeo entre a narrativa de Em busca do tempo perdido e procedimentos utilizados pelo autor de A Condiccedilatildeo Humana Dizemos ldquoestranha relaccedilatildeordquo devido a uma seacuterie de elementos que nos instigam a buscar no pensamento criacutetico e inventivo de Proust sorrateiras estrateacutegias de construccedilatildeo que se manifestam dentro de um estilo peculiar elementos que desvelam ter sido Proust um exiacutemio leitor de Balzac Proust assinala em Balzac o estilo de retratista da sociedade com traccedilos fortes e de tintas coloridas extraindo daquele estilo o que nele natildeo se manifestou O que se pode depreender desse processo eacute que longe de se poder considerar a obra maior de Balzac como uma grande obra literaacuteria ateacute porque se trata de uma obra com falta de literariedade a sua ldquoestrutura oacutesseardquo foi percebida por Proust que ldquona calada da noiterdquo se valeu de maneira brilhante dessa estrutura

Ao comentar fato que ocupa grande parte do ensaio sobre o caraacuteter inovador do uso do preteacuterito imperfeito pela narrativa flaubertiana Proust diz o seguinte ldquoPortanto esse imperfeito tatildeo novo na literatura muda inteiramente o aspecto das coisas e dos seres como uma lacircmpada que tenha sido deslocada agrave chegada em uma nova casa a antiga quando estaacute quase vazia e que se estaacute em plena mudanccedilardquo (PROUST 1994 p71)

Essa ideia capta o verdadeiro sentido da relaccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e modernidade referindo-se a uma evoluccedilatildeo do estilo A nova casa (modernidade) e a antiga satildeo a mesma e completamente outras quando marcadas pela poccedilatildeo metamorfoseante e mantenedora do signo do estranhamento da refraccedilatildeo artiacutestica capaz de mobilizar os elementos cristalizados As formas artiacutesticas de invenccedilatildeo satildeo princiacutepios composicionais ou brechas que desvelam o olho cliacutenico do Homem feito artista radar captador dos retalhos da realidade Ao dizermos retalhos da realidade pensamos nas condiccedilotildees baacutesicas sem as quais nenhum trabalho artiacutestico pode se concretizar Este consiste na consciecircncia de uma meta a atingir que parte da superaccedilatildeo das linhas de superfiacutecie da realidade ldquodetrito da experiecircnciardquo para Proust representado pelos signos emblemaacuteticos cadaverizados pela convenccedilatildeo O trabalho ficcional de Marcel Proust evolui num processo de metamorfose inventiva primeiro de captaccedilatildeo depois de destruiccedilatildeo e finalmente de remontagem ou traduccedilatildeo da realidade essencial Seu princiacutepio de composiccedilatildeo conduzido pela intraduziacutevel busca da Forma do Tempo faz-se forma espacial profusa enquanto movimento enlaccedilado nos entrecruzados noacutes das veredas da linguagem Este trabalho do artista de buscar sob a mateacuteria sob a experiecircncia sob as palavras algo diferente eacute exatamente o inverso do que a todo instante quando vivemos alheados de noacutes realizam por sua vez o amor-proacuteprio a paixatildeo a inteligecircncia e o haacutebito amontoando sobre as nossas impressotildees mas para de noacutes esconder as nomenclaturas os objetivos praacuteticos a que erradamente chamamos vida (PROUST 1970 p 142) A busca sob e natildeo sobre constitui um universo que transcende a ele proacuteprio por ir o maacuteximo possiacutevel agraves profundezas do verdadeiro eu Dizendo assim tentando driblar a palavra-chave que define esta obra uma poeacutetica no sentido de elevaccedilatildeo da potecircncia da linguagem sem atributos possuindo portanto a mais rigorosa precisatildeo Eacute correto afirmar que Em busca

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do tempo perdido eacute a histoacuteria de uma escritura pois que traz nela mesma essa histoacuteria Esta histoacuteria eacute o esteacuteril pretexto que vai deixando para amanhatilde sempre numa posiccedilatildeo de adiamento uma possiacutevel obra literaacuteria

4 A profundidade criacutetica e literaacuteria de Proust agrave guisa de consideraccedilotildees finais

Apesar da consideraacutevel distacircncia entre Ilusotildees perdidas e Em busca do tempo perdido entretanto vale notar que nos dois tiacutetulos resiste a ideia de perda Contudo em Balzac essa ideia estaacute imediatamente ligada ao temaacuterio referencial de sua obra fantasiado pelo signo ldquoilusotildeesrdquo e marcado semanticamente pelo processo de degenerescecircncia causada pelas perdas e pela impossibilidade de atingir os propoacutesitos da vida Em Proust em que a mateacuteria de vida eacute transformada em mito da linguagem tudo caminha pelo sentido oposto e encontra no tempo da arte o espaccedilo sensiacutevel para dizer com Juacutelia Kristeva (1994) a respeito do autor em questatildeo

Nessa forma de suspensatildeo do tempo cronoloacutegico para a vivecircncia da esfera miacutetica por meio da arte ocorre como diriam os mitoacutelogos a eterna reiniciaccedilatildeo As multiacuteplices relaccedilotildees das linhas de superfiacutecie da realidade mudam alteram-se a cada instante O tempo prossegue inexoravelmente e o uacutenico meio de estancaacute-lo eacute integrar-se a ele eacute habitaacute-lo Mas habitaacute-lo implica espacializaacute-lo colocando-lhe reacutedeas atraveacutes de finas agulhas com linhas tecircnues fabricaccedilatildeo do tecido ou da rede da proacutepria vida Esse gesto de criar coincide com o gesto de viver indissolubilidade apreendida e empreendida no exerciacutecio de profunda identidade do ser que acaba sendo de extremo alheamento Para a realizaccedilatildeo desse movimento o escritor deve descobrir que a realizaccedilatildeo artiacutestica consiste no produto de um outro eu que natildeo aquele das vicissitudes mundanas dos haacutebitos e dos sentimentos pessoais ldquoDentro da perda da memoacuteriardquo3 deu-se iniacutecio agrave emersatildeo do novo universo e uma outra viagem se inaugurou Nela o roteiro jaacute natildeo eacute mais delimitado pois isto significaria a submissatildeo agrave proacutepria dimensatildeo cronoloacutegica da existecircncia

A busca do eu profundo equivale ao exerciacutecio do narrador ao pocircr em praacutetica as suas iluminaccedilotildees ou as iluminaccedilotildees da memoacuteria involuntaacuteria para recriar as experiecircncias da vida num trabalho de arte Eacute este o fio condutor desta viagem O acaso assessorado pela inteligecircncia compotildee o trabalho de criaccedilatildeo Mais importante que recordar pela memoacuteria voluntaacuteria eacute estarem os cinco sentidos despertos disponiacuteveis aguccedilados e integrados para a composiccedilatildeo associativa dos fluxos da realidade literaacuteria O olho deste artista viu na tradiccedilatildeo atraveacutes de formas de reaccedilatildeo caminhos possiacuteveis para se iniciar esta viagem sem retorno composta de meandros circulares em busca de um retrato sem moldura Este retrato teria como modelo primeiramente a experiecircncia que se transforma em

3 A metaacutefora discursiva se reporta ao poema de Joatildeo Cabral de Melo Neto publicado em Pedra do sono (1999)

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escritura e teria como imagem um outro retrato Antes que esse retrato pudesse ser fixado a imagem se estilhaccedilou no campo perdido da linguagem e retratou-se em signos que se movimentam em infinitas direccedilotildees Tornou-se um campo blindado propenso a metamorfoses tornou-se a poccedilatildeo dialeacutetica entre a arte e a vida Natildeo consiste numa inferecircncia indeterminada o fato de julgarmos o texto de Marcel Proust um grande ensaio ficcional Trata-se de um fenocircmeno iacutempar na literatura Evidentemente os recursos de metalinguagem determinam a literatura moderna Num capiacutetulo memoraacutevel denominado ldquoLiteratura e Metalinguagemrdquo contido na obra Criacutetica e Verdade (1982) Roland Barthes discute esse traccedilo da literatura que se inicia nos meados do seacuteculo XIX e se prolonga durante o seacuteculo XX Para ele durante seacuteculos nossos escritores natildeo imaginavam que fosse possiacutevel considerar a literatura como uma linguagem submetida como qualquer outra linguagem agrave distinccedilatildeo loacutegica

A literatura nunca refletia sobre si mesma (agraves vezes sobre suas figuras mas nunca sobre seu ser) nunca se dividia em objeto ao mesmo tempo olhante e olhado em suma ela falava mas natildeo se falava Mais tarde provavelmente com os primeiros abalos da boa consciecircncia burguesa a literatura comeccedilou a sentir-se dupla ao mesmo tempo objeto e olhar sobre esse objeto fala e fala dessa fala literatura-objeto e metaliteratura Eis quais foram grosso modo as fases desse desenvolvimento primeiramente uma consciecircncia artesanal da fabricaccedilatildeo literaacuteria levada ateacute o escruacutepulo doloroso ao tormento do impossiacutevel (Flaubert) depois a vontade heroacuteica de confundir numa mesma substacircncia escrita a literatura e o pensamento da literatura (Mallarmeacute) depois a esperanccedila de chegar a escapar da tautologia literaacuteria deixando sempre por assim dizer a literatura para o dia seguinte declarando longamente que se vai escrever e fazendo dessa declaraccedilatildeo a proacutepria literatura (Proust) em seguida o processo da boa-feacute literaacuteria multiplicando voluntariamente sistematicamente ateacute o infinito os sentidos da palavra-objeto sem nunca se deter num significado uniacutevoco (surrealismo) inversamente afinal rarefazendo esses sentidos a ponto de esperar obter um estar-ali da linguagem literaacuteria uma espeacutecie de brancura da escritura (mas natildeo uma inocecircncia) penso aqui na obra de Robbe-Grillet (BARTHES 1982 p 27-28)

Ao aludir ao caso de Proust Barthes se refere a uma estrateacutegia criativa que evidentemente eacute de profunda significaccedilatildeo no contexto da obra Entretanto como denuncia a citaccedilatildeo do proacuteprio escritor haacute no interior da ldquoficccedilatildeordquo proustiana uma espeacutecie de mesclagem em que o ldquoliteraacuteriordquo se conjuga ao ldquocriacuteticordquo e a ldquonarrativardquo se articula ao ldquodissertativordquo Eacute sabido que esta caracteriacutestica determina o trabalho de todo grande artista Entretanto no seu caso tal fenocircmeno adquiriu uma feiccedilatildeo proacutepria uma vez que a tentativa de ser criacutetico e apenas criacutetico eacute lograda em funccedilatildeo de uma invenccedilatildeo ou traduccedilatildeo criacutetica que eacute sua proacutepria obra ficcional Consagrou a vida inteira para tentar compreender e resolver parte das questotildees que o dominaram Compreenderiacuteamos assim quais as afinidades secretas as metamorfoses necessaacuterias existentes entre a vida de um escritor e sua obra entre a realidade e a arte ou antes como pensaacutevamos entatildeo entre as aparecircncias

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de vida e a proacutepria realidade que dela fazia um fundamento soacutelido e que a arte resgatou (PROUST 1982 p 29)

Essas consideraccedilotildees de Proust presentes em Jean Santeuil obra produzida entre 1895 e 1900 mantiveram-se em toda a sua criaccedilatildeo futura Ao penetrarmos em seu universo o que se percebe eacute que Jean Santeuil eacute muito mais que um esboccedilo ficcional Escrito em terceira pessoa na sua maior parte apresenta agraves vezes uma estranha mudanccedila de foco narrativo passando para a primeira Por este e por outros motivos Jean Santeuil acaba apresentando procedimentos tatildeo especiacuteficos que seu caraacuteter inacabado se torna no miacutenimo questionaacutevel Penso aqui em Charles Baudelaire que ao analisar a pintura de Camille Corot apoacutes revelar expliacutecita indignaccedilatildeo frente agrave incompreensatildeo do puacuteblico romacircntico mostra as especificidades dos quadros de Corot e as diferenccedilas entre eles e os de outros pintores inclusive os de Eugegravene Delacroix (BAUDELAIRE 1976) Analisa a diferenccedila entre um quadro feito e um quadro acabado Para Baudelaire em geral uma obra que eacute feita natildeo eacute acabada e uma obra completamente acabada natildeo eacute totalmente feita Eacute certo que Jean Santeuil eacute obra abandonada por Proust por consideraacute-la apenas um exerciacutecio eacute certo tambeacutem que eacute esta estrutura moacutevel que a torna relevante Isso acentua sua natureza dialoacutegica fenocircmeno que determinaraacute toda a evoluccedilatildeo de Em busca do tempo perdido Realizada neste periacuteodo precedente oito anos antes de Contre Sainte-Beuve Jean Santeuil consiste num dos mais notaacuteveis exerciacutecios de traduccedilatildeo criativa que aleacutem de nos fornecer subsiacutedios para a compreensatildeo da maacutequina de fabricaccedilatildeo proustiana eacute em si um universo autocircnomo marcado pela articulaccedilatildeo dos retalhos ou dos fragmentos que determinam o teor metoniacutemico da elaboraccedilatildeo ficcional de Marcel Proust

O trabalho artiacutestico-literaacuterio de Marcel Proust apresenta peculiaridades de vaacuterias naturezas todas elas entretanto repousam sobre uma uacutenica questatildeo realizar para investigar e modular para cumprir aquilo que tatildeo somente a arte pode conquistar o resgate do tempo infindo e a suspensatildeo do tempo cronoloacutegico para que seja possiacutevel recuperar a instacircncia atemporal da vida

Esse sistema criacutetico-inventivo soacute seria possiacutevel de ser realizado como o fez o pensador francecircs com o olho direito mirando cuidadosamente a tradiccedilatildeo e o olho esquerdo cravado sobre o presente no mapa da invenccedilatildeo e buscando cumprir com profundo prazer e ao mesmo tempo com aacuterduo trabalho o peacuteriplo de uma experiecircncia desconstruiacuteda

Por fim conveacutem dizer ainda que o olhar de Marcel Proust para a obra de Balzac exige muita cautela e observaccedilatildeo nos miacutenimos elementos que ele aponta valendo-se de seu singular modo de ler e de ver por entrelinhas fundamentais para que se vaacute recuperando o ldquotempo de Proustrdquo nos interstiacutecios de sua produccedilatildeo Haacute que se vasculhar em ciacuterculos as suas palavras Por um lado defende criticamente Balzac mediante as colocaccedilotildees de Sainte-Beuve assim como defendeu outros autores vociferados pelo criador da criacutetica biograacutefica na segunda metade do seacuteculo XIX Por outro lado os seus comentaacuterios comparativos entre Gustave Flaubert e Honoreacute de Balzac fazem com que revejamos os passos de composiccedilatildeo do famoso autor de Ilusotildees Perdidas Esse movimento criacutetico nos deixa como estudiosos e como criacuteticos literaacuterios um tanto

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ensimesmados diante de algumas incocircmodas questotildees que procuramos deslindar agrave medida que avanccedilamos na abordagem deste artigo objetivando mostrar por meio do trabalho literaacuterio e ensaiacutestico de Marcel Proust sua contribuiccedilatildeo para o entendimento dos processos da literatura e das artes

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BALZAC H de Ilusotildees Perdidas Trad Rosa Freire drsquoAguiar Satildeo Paulo Penguin ClassicsCompanhia da Letras 2011

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CHATEAUBRIAND F R de Atala Rene Les aventures du dernier abencerage Paris Flammarion 1996

CURTIUS R Marcel Proust La Nouvelle Revue Franccedilaise Paris Tomo XX 1923

FLAUBERT G Madame Bovary Trad Maacuterio Laranjeira Satildeo Paulo Penguin ClassicsCompanhia das Letras 2011

FLAUBERT G A educaccedilatildeo sentimental historia de um jovem 2 ed Trad Adolfo Casais Monteiro Satildeo Paulo Nova Alexandria 2015

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GONCcedilALVES A J A propoacutesito da criacutetica de Marcel Proust In PROUST M Nas trilhas da criacutetica Satildeo Paulo Editora da Universidade de Satildeo PauloImaginaacuterio 1994

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PROUST M O tempo redescoberto Trad Luacutecia Miguel Pereira Globo Porto Alegre 1970

PROUST M Jean Santeuil Trad Fernando Py Rio de Janeiro Nova Fronteira 1982

PROUST M Contre sainte-beuve notas sobre criacutetica e literatura Trad Haroldo Ramanzini

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VALEacuteRY P Variedades Trad Maiza Martins de Siqueira Satildeo Paulo Iluminuras 1999

Recebido em 25 de marccedilo de 2017

Aceito em 30 de setembro de 2017

Aguinaldo Joseacute Gonccedilalves

Livre-docecircncia pela UNESP (1997) Doutorado em Letras (Teoria Literaacuteria e Literatura Comparada) pela USP (1988) Tem publicaccedilotildees na interface de literatura e outros sistemas semioacuteticos Professor titular da UNESP e PUC de Goiaacutes atuando nos cursos de Mestrado e Doutorado nessas instituiccedilotildees agnusfenixgmailcom

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eISSN 22376844polifonia

Acerca da ekphrasis numa passagem do Clarimundo de Joatildeo de Barros cena de pictoacuterico heroiacutesmo

On Ekphrasis in an Excerpt from Clarimundo by Joatildeo de Barros A Scene of Pictorial Heroism

Sobre la ekphrasis en un paso del Clarimundo de Joatildeo de Barros escena de pictoacuterico heroiacutesmo

Flaacutevio Antocircnio Fernandes Reis Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Resumo

No artigo tratamos de um procedimento discursivo a ekphrasis na leitura de uma passagem da Primeira Parte da crocircnica do imperador Clarimundo donde os reis de Portugal descendem narrativa de cavalaria publicada por Joatildeo de Barros em 1522 e dedicada ao priacutencipe e depois rei D Joatildeo III Trata-se da primeira narrativa cavaleiresca com mateacuteria paacutetria publicada em Portugal obra essa que teve algumas reimpressotildees e reediccedilotildees dos seacuteculos XVI ao seacuteculo XX Dada a pouca atenccedilatildeo dispensada a este livro nosso artigo apresenta-o na sua primeira parte Em seguida tratamos do que seja a ekphrasis ou sua acepccedilatildeo latina a descriptio segundo alguns estudos recentes e em tratados antigos como o de Hermoacutegenes Aftocircnio e o anocircnimo dirigido a Herecircnio Por fim nosso objetivo foi analisar a ekphrasis composta no episoacutedio da ldquoFloresta Encantadardquo do Clarimundo observando como a cena compotildee-se com fins retoacutericos de persuadir pelo ldquomaravilhosordquo da cena e pela forccedila dos argumentos dado o caraacuteter de quem diz e as circunstacircncias de enunciaccedilatildeo compostos na ficccedilatildeo de Joatildeo de Barros Palavras-chave Joatildeo de Barros Clarimundo Ekphrasis

Abstract

In this article we propose the study of a discursive procedure ekphrasis in the reading of an excerpt from ldquoda Primeira parte da Croacutenica do Imperador Clarimundo donde os Reis de Portugal descendemrdquo a chivalric narration published by Joatildeo de Barros in 1522 and dedicated to the prince and later king D Joatildeo III This was the first chivalric narrative published in Portugal and was reprinted from the sixteenth century to the twentieth century In the first part the article presents the book by Joatildeo Barros Next we speak of ekphrasis or its Latin meaning descriptio according to some recent studies and according to ancient treatises like that by Hermoacutegenes Aftocircnio and the anonymous ldquoRhetoric to Herecircniordquo Finally our objective was to analyze the ekphrasis in the episode of the ldquoFloresta Encantadardquo from Clarimundo observing how the scene is composed for rhetorical purposes of persuading by the ldquomarvelousrdquo taking into account who speaks and the utterance circumstances in the fiction by Joatildeo de BarrosKeywordsJoatildeo de Barros Clarimundo Ekphrasis

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Resumen

En este artiacuteculo se propone el estudio de un procedimiento discursivo ekphrasis en la lectura de un pasaje del ldquoda Primeira Parte Croacutenica do Imperador Clarimundo Donde os Reis de Portugal descendemrdquo una narracioacuten de caballeriacutea publicado por Joatildeo de Barros en 1522 y dedicado al priacutencipe y maacutes tarde rey D Joatildeo III Es la primera narrativa caballeresca publicada en Portugal una obra que tuvo algunas reimpresiones del siglo XVI al siglo XX En la primera parte el artiacuteculo presenta el libro de Joatildeo Barros A continuacioacuten hablamos de la ekphrasis o su significado latino descriptio seguacuten algunos estudios recientes y seguacuten tratados antiguos como el de Hermoacutegenes Aftocircnio y la anoacutenima Retoacuterica a Herecircnio Por uacuteltimo nuestro objetivo fue analizar la ekphrasis compuesto en el episodio del ldquoFloresta Encantadardquo por Clarimundo observando coacutemo la escena se compone con fines retoacutericos de persuadir por el ldquomaravilhosordquo teniendo en cuenta que habla y las circunstancias de la enunciacioacuten compuesto en la ficcioacuten de Joatildeo de BarrosPalabras clave Joatildeo de Barros Clarimundo Ekphrasis

1 Introduccedilatildeo a primeira narrativa de cavalaria portuguesa com mateacuteria lusitana

A Prymera parte da cronica do emperador Clarimundo donde os reys de Portugal desccedilendem publicada nas prensas lisboetas de Germatildeo de Galharde em 1522 compotildee-se de trecircs livros natildeo acabados e ditos ldquoprimeira parterdquo em consonacircncia com a dinacircmica comum das maacutequinas cavaleirescas dos ldquoamadizesrdquo e dos ldquopalmeirinsrdquo No entanto se as relaccedilotildees entre as narrativas cavaleirescas figuram como emaranhado de parentescos discursivos concebidos com invenccedilatildeo comum de imitaccedilatildeo a genealogia que o Clarimundo propotildee o ressalva genericamente o especifica como ldquodonde os Reys de Portugal desccedilendemrdquo figurando mateacuteria ateacute entatildeo incomum nas letras ibeacutericas mas reconhecida nas letras antigas mais precisamente na Eneida de Virgiacutelio e emulada no encocircmio da Casa drsquoEste presente no Orlando Furioso de Ariosto1

1 Acerca da abordagem retoacuterico-poeacutetica desse estudo entendem-se as doutrinas retoacutericas e poeacuteticas como saberes comuns herdados e atualizados dos antigos para o ldquofermoso fablarrdquo conforme Alfonso de Cartagena na dedicatoacuteria da Retorica dirigida a D Duarte no seacuteculo XV Aniacutebal Pinto de Castro no conhecido estudo Retoacuterica e teorizaccedilatildeo literaacuteria em Portugal do Humanismo ao Neoclassicismo (2008) mostra o vigor dos preceitos retoacutericos e poeacuteticos sobretudo a difusatildeo dos preceitos de Ciacutecero e Quintiliano nas praacuteticas letradas portuguesas dos seacuteculos XV e XVI Nesse sentido a Oraccedilatildeo de Sapiecircncia proferida por D Pedro de Menezes na abertura dos trabalhos letivos do Estudo Geral de Lisboa de 1504 eacute bastante eloquente ldquoDas artes a primeira que se me mostra a mais formosa elegante e conveniente esta eacute a Retoacuterica Com efeito enquanto preceitua assim se chama mas enquanto executa com ordem e propriedade o que preceituou chama-se Oratoacuteria disciplina sem a qual toda a doutrina toda a ciecircncia embora tendo olhos ouvidos e liacutengua andaria cega surda e mudardquo(Cf D Pedro de Menezes Oraccedilatildeo proferida no Estudo Geral de Lisboa Texto latino presente na ediccedilatildeo de Miguel Pinto de Menezes Lisboa Centro de Estudos de Psicologia e de Histoacuteria da Filosofia anexo agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1994 p 96 ldquoQuarum prima se mihi offert illa veluti formosiacutessima decentissima elegantissima quaedam virgo quae rethorica est Sic enim dum praecipit appellatur cum vero ea quae praecepit distincte apteque exequitur oratoacuteria sine qua omnis doctrina omnis scientia habens oacuteculos aures linguam caeca surda muta ambulatrdquo)

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Joatildeo de Barros moccedilo de cacircmara do priacutencipe D Joatildeo futuro D Joatildeo III humanista latinado aproximou a narrativa extensa das batalhas de cavaleiros do Amadis e do Orlando aos ensinamentos e agrave elocuccedilatildeo da eacutepica antiga operando com o caraacuteter misto proacuteprio da narrativa de aventuras e batalhas entre cavaleiros2 A aparente transparecircncia da operaccedilatildeo esconde um emaranhado disperso de construccedilatildeo narrativa conjugada a procedimentos retoacutericos e poeacuteticos de longa duraccedilatildeo nas letras europeias e a ensinamentos de virtudes morais dirigidas aos priacutencipes e seus conselheiros aspectos esses que tornam inadequados o julgamento apressado da obra em questatildeo Ademais a publicaccedilatildeo impressa do Clarimundo denota a relevacircncia do livro salvaguardada nos tipos moacuteveis com boa qualidade das manchas impressas e dedicada a D Joatildeo III por meio de proacutelogos um ao priacutencipe e outro ao rei O ornamento das letras capitais e a moldura do ldquoProacutelogo sobre a trasladaccedilatildeo da primeira parterdquo convecircm agrave mateacuteria elevada do livro ornamentaccedilatildeo floral selva organizada na qual se entrevecirc entre ramos ordenados Cupido figuraccedilotildees de bestas paacutessaros e floraccedilotildees simetricamente dispostos como moldura que enaltece a figuraccedilatildeo daquele a que se atribui como o ancestral mais recuado da Casa Real portuguesa Nessa paacutegina de rosto na editio princeps figura o imperador Clarimundo no centro da composiccedilatildeo e na raiz de uma aacutervore genealoacutegica em cujos ramos ordenam-se os reis portugueses ateacute D Joatildeo III O cavaleiro traz as insiacutegnias de imperador bizantino a coroa fechada o orbe ou globus cruciger e o escudo no qual figura a aacuteguia bifronte iconografia do poder imperial e cristatildeo sobre o Ocidente e o Oriente A justaposiccedilatildeo dos reis o esquematismo proacuteprio da aacutervore genealoacutegica pressupotildeem a memoacuteria do modelo preteacuterito e a legitimidade do moderno pela antiguidade ancestral memoacuteria essa que se salvaguarda na ldquocrocircnica do imperador Clarimundordquo modo pelo qual a obra passou a ser conhecida a partir das ediccedilotildees setecentistas

Mais a Prymera parte da cronica do emperador Clarimundo eacute o uacutenico livro de batalhas e aventuras de cavaleiros com mateacuteria aacuteulica impresso em portuguecircs na primeira metade do seacuteculo XVI3 Embora sejam conhecidas as inuacutemeras objeccedilotildees aos livros de cavalaria seja pelos aspectos de construccedilatildeo mista seja pelas mateacuterias mal quistas pelos letrados religiosos a narrativa de Barros obteve uma segunda impressatildeo ainda no reinado de D Joatildeo III em 1555 Ateacute entatildeo ainda se manteve a eloquente portada o que natildeo eacute o caso da publicaccedilatildeo seiscentista do livro realizada por Antoacutenio Alvarez em 1601 na qual se figuram outros valores para o caraacuteter de Clarimundo Nessa ediccedilatildeo

2 Cf ALMEIDA Isabel Orlando Furioso em livros portugueses de cavalaria pistas de investigaccedilatildeo In Revista eHumanista vol 8 2007 O estudo de Isabel Almeida demonstra os efeitos imitativos operados entre o Clarimundo de Joatildeo de Barros e o Orlando Furioso de Aristo repassando sobretudo imagens e construccedilotildees cenograacuteficas

3 DIAacuteZ-TOLEDO Aureacutelio Vargas Os livros de cavalaria renascentistas nas histoacuterias da literatura portuguesa Peniacutensula Revista de Estudos Ibeacutericos n 3 2006 p 239 Ver tambeacutem excelente livro do prof Aureacutelio intitulado Os livros de cavalarias portugueses dos seacuteculos XVI ndash XVIII Lisboa Pearlbooks 2012 p 17

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seiscentista a aacutervore genealoacutegica anterior eacute substituiacuteda pela estampa de um cavaleiro rei pronto para a batalha tendo agrave frente uma mesquita Essa figuraccedilatildeo imita a portada da ediccedilatildeo quinhentista do Amadis de Gaula impressa em Veneza no ano de 1533 Com isso o Clarimundo ldquomata-turcosrdquo bastante notoacuterio na narrativa sobrepotildee-se agravequela imagem do imperador de Constantinopla e assim impotildee-se na representaccedilatildeo do rei natildeo a gloacuteria do trono bizantino mas o valor de cruzado cristatildeo os merecimentos da ldquoguerra justardquo contra o infiel

Embora o apelo das estampas se diferencie o cotejo dos textos mostra que se tratou apenas de outra impressatildeo do texto quinhentista com pequenas atualizaccedilotildees graacuteficas e linguiacutesticas Nada mais O mesmo natildeo se pode dizer acerca da ediccedilatildeo de 1742 na qual se baseiam as leituras mais recentes respectivamente 1791 1843 e 1953 essa uacuteltima a mais conhecida do grande puacuteblico a cargo do professor Marques Braga e editada pela coleccedilatildeo Claacutessicos Saacute da Costa Acompanha a ediccedilatildeo setecentista a Vida de Joatildeo de Barros composta pelo letrado seiscentista Manuel Severim de Faria4 Uma vida segundo os preceitos antigos do gecircnero encomiaacutestica com o fim de mostrar os merecimentos do historiador que o tornavam apto para o serviccedilo da monarquia catoacutelica portuguesa Antes de tudo conveacutem observar que a ediccedilatildeo de 1742 altera bastante a elocuccedilatildeo da editio princeps desfazendo-lhe o caraacuteter parcial de ldquoPrymera parterdquo e intitulando-a de Chronica do emperador Clarimundo donde os reis de Portugal descendem tirada da linguagem ungara em a nossa Portugueza dirigida ao Esclarecido priacutencipe D Joatildeo Filho do muy Poderoso Rey D Manoel primeiro deste nome Para tanto emenda-lhe um capiacutetulo final que mesmo natildeo aparecendo na taacutebua de capiacutetulos encontra-se no volume terceiro como cap XXVIII no qual narra-se a morte honrosa de Clarimundo mantendo-se afinado com o decoro da personagem e com a elocuccedilatildeo de Joatildeo de Barros Ademais para o editor setecentista a genealogia proposta por Barros na falta de partes que a continuem resolve-se na chegada do filho de Clarimundo ndash D Sancho ndash agrave Peniacutensula a continuaccedilatildeo seria a histoacuteria dos reis que tantos cronistas fizeram Para isso o desfecho apoacutecrifo narra a viagem maravilhosa de D Sancho filho do imperador de Constantinopla Clarimundo e da imperatriz Clarinda em terras ibeacutericas ldquoDe como o priacutencipe D Sancho e seus primos foram levados a Espanha e de como foram feitos reis e da morte do imperador Clarimundordquo5 As modificaccedilotildees dessa ediccedilatildeo estatildeo em consonacircncia com fins eacuteticos e poliacuteticos proacuteprios do discurso da histoacuteria que se mantecircm numa longa duraccedilatildeo nas composiccedilotildees do gecircnero nos seacuteculos XVI XVII e XVIII

4 FARIA Manuel Severim de Discursos varios poliacuteticos por Manoel Severim de Faria Chantre amp Conego na Santa Secirc de Euora Em Euora impressos por Manoel Carvalho impressor da Vniversidade 1624 Cf tambeacutem excelente artigo de Luis Cristiano de Andrade Os preceitos da memoacuteria Manuel Severim de Faria inventor de autoridades lusas In Histoacuterias e perspectivas Uberlacircndia 34 janjun 2006 107-137

5 Cf Croacutenica do emperador Clarimundo op cit p 299 e seguintes O pastiche como o chama Isabel Almeida foi acrescentado no seacuteculo XVIII e deu unidade agrave obra alterando-a drasticamente no seu aspecto de inacabada ou parcialmente publicada

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O exemplar da editio princeps impressa em 1522 que pertence agrave Biblioteca Nacional de Madrid encontra-se em muito bom estado de conservaccedilatildeo6 Trata-se de um impresso elegante legiacutevel com portada na qual estampa-se a figura de Clarimundo e a genealogia dos reis portugueses desde D Sancho e D Henrique ateacute D Joatildeo III Saiu das prensas de Germatildeo de Galharde impressor francecircs radicado em Portugal e que mais publicou obras no seacuteculo XVI em terras lusitanas depois de Joatildeo de Barreira Entre 1509 e 1561 imprimiu em Lisboa e em Coimbra nas prensas do Mosteiro de Santa Cruz usando na maioria dos livros caracteres goacuteticos Seus emblemas tipograacuteficos trazem a esfera armilar o escudo de armas reais e um grifo no timbre Galharde imprimiu outras narrativas de aventuras de cavaleiros como as trecircs partes do Florando de Inglaterra impressas em 15457

No caso do Clarimundo as manchas trazem tipos em letra goacutetica menor cada capiacutetulo eacute introduzido por uma letra ornamentada e os foacutelios satildeo enumerados nos versos do lado direito superior da paacutegina com nuacutemeros romanos A obra compotildee-se pela ldquoTavoadardquo dos trecircs livros por dois proacutelogos ldquoProacutelogo feyto depoys desta obra imprensardquo dirigido ao rei D Joatildeo III e um ldquoProacutelogo sobre a trasladaccedilam da primeira parte da cronica do emperador Clarimundordquo dedicado ao priacutencipe D Joatildeo a ldquoConcordanccedilia que o trasladador faz antre dous cronistas sobre a vinda de dom Anrique nestes reynos despanha e sobre sua genealogiardquo por 114 capiacutetulos divididos em trecircs livros o libro primeiro do foacutelio III ao LIII do capiacutetulos I ao XXXIIII (sic) (34 capiacutetulos) o libro segundo do foacutelio LIII ao CXXIII r do capiacutetulo XXXV ao LXXVIII (43 capiacutetulos) e o libro terccedileyro do foacutelio CXXIII r ao CLXXVI do cap LXXIX ao CXIIII (35 capiacutetulos)8 Haacute um evidente equiliacutebrio na extensatildeo dos capiacutetulos ordenados em trecircs livros o livro primeiro trata da famiacutelia do nascimento da criaccedilatildeo da sagraccedilatildeo do heroacutei como cavaleiro de vaacuterias batalhas entre elas o embate com os gigantes Learco e Pantafasul para libertar a rainha Briaina que reconhece em Belifonte seu filho Clarimundo O primeiro livro conclui-se com a chegada e os combates da Ilha Perfeita Nesse livro a personagem central Clarimundo tem outros nomes de acordo com as circunstacircncias que enfrenta nomeando-se como ldquoBelifonterdquo e ldquoCavaleiro das

6 Prymeira parte da croacutenica do emperador Clarimundo donde os Reys de Portugal desccedilendem de Joatildeo de Barros Lisboa Germatildeo de Galharde 1522 Biblioteca Nacional de Madrid (R-11-727) Haacute um exemplar da segunda impressatildeo de 1555 na Biblioteca do Paccedilo Ducal de Vila Viccedilosa As outras ediccedilotildees satildeo 1601 Clarimundo Lisboa Antoacutenio Alvarez a custa de Andreacute Lopes e outra a custa de Hieroacutenimo Lopes 1742 Chronica do Emperador Clarimundo Lisboa Na Officina de Francisco da Sylva 1791 Chronica do emperador Clarimundo donde os reis de portugal descendem tirada da linguagem ungara em a nossa Lisboa Officina de Joao Antonio da Silva Desta ediccedilatildeo haacute um exemplar na biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da USP 1953 Croacutenica do imperador Clarimundo Com pref e notas do prof Marques Braga Lisboa Saacute da Costa

7 Cf Aureacutelio Vargas Diacuteaz-Toledo Os romances de cavalaria portugueses na sua versatildeo impressa In Os livros de cavalarias portugueses dos seacuteculos XVI ndash XVIII Lisboa Pearlbooks 2012 p 47 Este livro eacute um bem realizado manual que situa as publicaccedilotildees de cavalaria portuguesas tanto os impressos quanto manuscritos servindo de importante guia para os futuros estudiosos

8 No apecircndice final encontra-se um cotejo entre a ldquotavoadardquo de capiacutetulos da editio princeps (reimpressatildeo de 1555 e a editada de 1601) e as ediccedilotildees de 1742 (base das posteriores)

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Laacutegrimas Tristesrdquo O livro segundo trata dos amores do cavaleiro os feitos em armas os episoacutedios de corte sobretudo em Constantinopla Nesse livro ocorre a aventura na qual Clarimundo encantado pelo ldquovaso do esquecimentordquo um tipo de bebida maacutegica eacute acometido por certa loucura e se nomeia ldquoCavaleiro Descuidadordquo respondendo agravequeles com quem fala por meio de versos rimados O terceiro livro trata das profecias do Saacutebio Fanimor sobre os reis de Portugal prenunciando sobretudo os embates entre cristatildeos e mouros recorrentes entre os reis lusitanos

O exemplar da editio princeps utilizado eacute coacutepia digital do livro que pertenceu agrave biblioteca de Pascual de Gayangos ceacutelebre estudioso ibeacuterico de narrativas de cavalarias Ademais eacute curioso que a narrativa de Joatildeo de Barros compartilhe a mesma encadernaccedilatildeo que o livro Espelho de Cristina de Cristine de Pisan impresso em 1518 a mando da Rainha velha D Leonor Embora sejam dois impressores diferentes Germatildeo de Galharde e Herman de Campos e as obras estampadas com quatro anos de distacircncia a encadernaccedilatildeo com os livros geminados natildeo parece compor uma compilaccedilatildeo desatada de obras mas reunir em volume uacutenico obras de gecircnero semelhante ou seja obras de ensinamento moral numa as excelecircncias e virtudes do priacutencipe figuradas no caraacuteter do Clarimundo noutra as virtudes das princesas das mulheres burguesas e das religiosas9

2 O objeto de estudo o episoacutedio da Floresta Encantada cena de pictoacuterico heroiacutesmo

Aleacutem da importacircncia histoacuterica da narrativa cavaleiresca de Joatildeo de Barros o livro compotildee-se como mencionamos como obra dirigida agrave cabeccedila do reino realizada com o esmero que as obras dedicadas aos priacutencipes e reis costumavam receber Assim de imediato podemos destacar o uso apurado da liacutengua portuguesa quinhentista e imitando obras da Antiguidade Latina sobretudo a prosa latina de Suetocircnio propor em liacutengua vernaacutecula a narrativa de batalhas e feitos de cavaleiros com ornamentos e arranjos de linguagem que bem avivam nos leitores os efeitos da mateacuteria narrada Natildeo devemos perder de vista que se trata de obra realizada para a leitura puacuteblica havendo portanto uma ordenaccedilatildeo discursiva que bem atende a esse costume Ademais antes de passarmos ao objeto deste estudo vale atentarmos para o elogio que Eduardo Lourenccedilo confere ao Clarimundo de Joatildeo de Barros destacando justamente os aspectos de primor no uso da linguagem na obra

9 Colofatildeo do impresso do Espelho de Cristina (1518 sn) ldquoPor mandado da muyto esclarecida reyna dona lyanor molher do poderoso e muy manifico rey dotilde juan segundo de portugal Acabouse el libro intitulado das tres virtudes no qual se cotildetem muytas profeytosas doutrinas y saludables exemplos assy pera as generosas y grandes donas como pera as outras de qualquer estado o condiccediliom que sejam E poderam enelle de prender como se ham de regir e governar no regimento de suas casas fazendas y homrras Impresso em ha muy nobre y sempre leal cibdade de lixboa por herman de campos Imprimidor y bomardeyro do rey nosso senhor cotilde gracia y privilegio de su alteza Anno de nostra salvaccedilammdyxviiiannosaxxdias do mes de juniordquo

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Se haacute um livro admiravelmente escrito nesses comeccedilos do seacuteculo XVI () eacute bem esta a primeira obra daquele que se tornaraacute o modelo da nossa grande prosa nobre clara grave e ao mesmo tempo corrente do seacuteculo de Quinhentos Com ele a Idade Meacutedia da nossa liacutengua ainda tatildeo sensiacutevel em Gil Vicente termina e entramos na planiacutecie suave aberta da assimilaccedilatildeo fecunda dos grandes autores claacutessicos que serviraacute de modelo escrito mas tambeacutem de modelo de pensar a nossa melhor prosa do seacuteculo XVI (LOURENCcedilO 1999 p 36)

Feito este proecircmio passamos a tratar daquilo que pretendemos mostrar mais detidamente O verbo ldquomostrarrdquo eacute propositalmente utilizado aqui jaacute que nosso intento eacute falar de demonstraccedilatildeo de figuraccedilatildeo de ekphrasis traduzida pelos latinos como descriptio utilizada como procedimento retoacuterico com fim na enargeia termo da preceituaccedilatildeo retoacuterica antiga que significa exatamente ldquocolocar diante dos olhosrdquo Tratamos de um episoacutedio miraculoso da narrativa de Joatildeo de Barros no qual a ekphrasis opera discursivamente para a produccedilatildeo de efeitos tal como soacutei acontecer com o uso desse artificio textual dizemos logo do efeito para depois atermo-nos no artifiacutecio colocar diante do olhos para ensinar preceito moral colocar diante dos olhos para compor caracteres Antes da cena passemos a algumas breviacutessimas consideraccedilotildees acerca da ekphrasis por alguns estudiosos recentes e na preceptiva de alguns retores antigos e depois vejamos o episoacutedio da narrativa de Joatildeo de Barros em questatildeo

A ekphrasis associa-se a teacutecnicas de amplificaccedilatildeo de toacutepicas narrativas nos diversos gecircneros retoacutericos (HANSEN 2006 p 85) ou como propotildee Barbara Cassin em verbete dedicado ao conceito ldquoeacute uma construccedilatildeo de frases que esgota seu objeto e designa terminologicamente as descriccedilotildees minuciosas e completas que se datildeo de obras de arterdquo10 Segundo os Progymnasmata (Exerciacutecios preparatoacuterios) de Hermoacutegenes a ekphrasis traduzida como ldquodescriccedilatildeordquo consiste em ldquoum enunciado que apresenta em detalhe como dizem os teoacutericos que tem a evidecircncia (enargeia) e que coloca sob os olhos o que ele mostrardquo (HERMOGEacuteNE 1997 p 148) Michel Patillon no estudo introdutoacuterio da ediccedilatildeo francesa da preceptiva de Hermoacutegenes cita um estudo de Zanger o ldquoEnargeia in the ancient Criticism of Poetryrdquo no qual realiza-se uma proposta de siacutentese dos fins a que se propotildee a enargeia ldquoA evidecircncia do estilo eacute sua capacidade de oferecer uma representaccedilatildeo

10 Baacuterbara Cassin em ldquoLrsquolaquo ekphrasis raquo du mot au motrdquo apresenta uma siacutentese do que teria sido o artificio da ekprasis ou descriptio latina tratando da formulaccedilatildeo e do funcionamento na composiccedilatildeo discursiva do termo bem como obras diversas da Antiguidade grega e latina que se valeram do recurso da ekphrasis sendo o ldquoEscudo de Aquilesrdquo uma das mais ceacutelebres realizaccedilotildees da figura ldquoLrsquo ekphrasis [ἔκϕρασις] (sur phrazugrave [ϕράζω] faire comprendre expliquer et ek [ἐκ] jusqursquoau bout) est une mise en phrases qui egravepuise son objet et degravesigne terminologiquement les descriptions minutieuses et compleumltes qursquoon donne des oeuvres drsquoartrdquo Disponiacutevel em In lthttprobertbvdepcompublicvepPages_HTML$DESCRIPTION1HTMgt Acesso em novembro de 2017

Aproveitamos o ensejo e indicamos ao leitor o execelente artigo de Aacutelvaro Cardoso Gomes intitulado ldquoUm mimese da cultura (um estudo da figura retoacuterica da Ekprasis) In Revista de Letras Satildeo Paulo v54 n2 p123-144 juldez 2014

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viva do objeto que se propotildee a colocaacute-lo diante dos olhos do auditoacuterio Isso obteacutem-se essencialmente pela acumulaccedilatildeo de detalhes e o emprego de imagensrdquo (HERMOGEacuteNE 1997 p 49) Aleacutem disso com Hermoacutegenes aprendemos que os objetos a serem descritos pertencem a uma lista bem ampla ldquoas descriccedilotildees satildeo feitas de personagens de accedilotildees de circunstacircncias de lugares de tempos etcrdquo Por exemplo Libanos orador do seacuteculo IV descreve combates em terra uma pintura na sala do conselho festas a embriaguez a primavera um porto um jardim uma caccedila uma batalha naval um leatildeo abocanhando um cervo Hera Heacutercules a destruiccedilatildeo de Troia Polixena assassinada por Neoptoacutelemo Prometeu Medeacuteia a Quimera Palas Ajax a Fortuna etc um panegiacuterico a beleza Outro exemplo Aftocircnio o ceacutelebre preceptista da segunda sofiacutestica preceitua para a descriccedilatildeo de pessoa ndash dita prosopografia ndash que comece pelo alto na cabeccedila e siga em direccedilatildeo ao peacutes Para os fatos comeccedila a descriccedilatildeo pelo que precedeu em direccedilatildeo ao ocorrido Como nos lembra Joatildeo Adolfo Hansen a ekphrasis relaciona-se diretamente com passagens iniciais da poeacutetica e da retoacuterica aristoteacutelica quando ambas defendem que tanto historiadores quanto poetas devem compor com verossimilhanccedila isto eacute aristotelicamente verossiacutemil eacute aquilo que se toma por verdadeiro pela maioria ou pelos mais saacutebios Nesse sentido o verossiacutemil define-se como uma relaccedilatildeo entre discursos e a verificaccedilatildeo de coerecircncia entre um e outro como condiccedilatildeo de aceitaccedilatildeo

Uma das autoridades antigas mais ceacutelebres de ekphrasis eacute Filoacutestrato de Lemos e seus Eikones (Descricotildees) obra antiga grega na qual propotildee-se a descriccedilatildeo de cenas quadros pinturas que existem discursivamente e que se colocam diante dos olhos pela habilidade letrada de Filoacutestrato Para menores delongas na Rhetorica ad Herennium uma das mais acessadas na histoacuteria dos discursos a Descriptio eacute tratada na parte sobre os ornamentos de sentenccedila e deixando de lado os exemplos que didaticamente apresenta destaco duas acepccedilotildees entatildeo divulgadas ldquoa descriccedilatildeo conteacutem uma exposiccedilatildeo perspiacutecua clara e grave das consequecircncias das accedilotildees (coisas)rdquo11 e os efeitos da descriccedilatildeo segundo a preceptiva satildeo ldquoCom esse gecircnero de ornamento pode-se suscitar indignaccedilatildeo ou misericoacuterdia quando todas as consequecircncias reunidas se exprimem brevemente num discurso perspiacutecuordquo Faz-se necessaacuterio atentar para um detalhe apenas colocando-o diante dos nossos olhos um termo que aparece ao iniacutecio e ao fim das consideraccedilotildees sobre a descriptio termo latino de ekprasis eacute o adjetivo perspicuus a um em vernaacuteculo com sentido de claro liacutempido evidente manifesto

Na diegese da narrativa a ekphrasis instaura uma pausa das accedilotildees para a contemplaccedilatildeo de uma figura Cessam os movimentos das accedilotildees para o repouso do olhar que mira as formas as pedras os metais as cores as dimensotildees os gestos as linhas os contornos etc que aparentemente instauram outra natureza discursiva no entanto o aparente corte do fluxo narrativo desfaz-se ao notar-se a conexatildeo entre as partes Isto eacute a descriccedilatildeo estaacute em funccedilatildeo da narraccedilatildeo funcionando-lhe como artifiacutecio que compotildee caracteres e efetuam paixotildees

11 A traduccedilatildeo inglesa da Loeb Classical Library ldquoVivid Description is the name for the figure which contains a clear lucid and impressive exposition of the consequences of an actrdquo (op cit p 357)

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Muito haveria ainda para ser dito acerca da ekfrasis e do seu efeito principal de enargeia sobretudo acerca de seu aspecto retoacuterico mais imediato a persuasatildeo decorrente da amplificaccedilatildeo que produz mas para o que se pretende aqui jaacute eacute o suficiente Para mais sugerimos nas Descriccedilotildees de Filoacutestrato o artigo ldquoCategorias epidiacuteticas da ekphrasisrdquo citado o capiacutetulo da Arte Retoacuterica de Hermoacutegenes sobre as ldquoDescriccedilotildeesrdquo e destaco a ceacutelebre obra de Antoine Du Verdier intitulada La prosopographie ou description des personnes insignes enrichie de plusieurs effigies e reduite en quatre livres publicada em 1583

Passemos agora agrave leitura da cena de Clarimundo que pretendemos analisar Nosso fim eacute observar como a narrativa de Barros vale-se da ldquopausardquo das accedilotildees resultante da descriccedilatildeo de um monumento no qual se datildeo eventos miraculosos dentro da poeacutetica das narrativas de cavaleiros O episoacutedio da ldquoFloresta Encantadardquo produz-se pelo artifiacutecio da ekphrasis ou descriptio colocando diante dos olhos do leitor um minucioso quadro que se constitui tanto do cenaacuterio como de figuras centrais como a cabeccedila esculpida de ouro que fala com Clarimundo

Episoacutedio da Floresta Encantada

() e chegando ao mais baixo e escuro lugar daquele vale viu um corucheacuteu que seria da altura de trinta braccedilas coberto de pedra negra e leonado com extremos de pardo e sustinha-se sobre quatro colunas de metal de quinze braccedilas e da grossura necessaacuteria para tamanho peso as quais era lavradas ao buril de histoacuterias antigas e debaixo desse corucheacuteu estava uma sepultura agrave maneira de essa que tinha cinquenta degraus de pedra negra e nos cantos da quadra estavam estas quatro alimaacuterias feitas de metal que a sustinham sobre si um leatildeo um tigre um touro e um grifo feitos tatildeo artificiosamente e com tal espiacuterito e agudeza nos olhos e em todas as outras feiccedilotildees que enganavam a vista para os temer e natildeo para folgar de os olhar E cada alimaacuteria destas tinha entre as matildeos um ciacuterio negro que ardia sem se consumir tatildeo altos que chegavam agrave maior altura daquela essa Nos outros cantos da quadra que o derradeiro degrau fazia estava em cada um uma imagem de gigante armado com todas as suas armas somente a cabeccedila descoberta porque no rosto mostrava maior ferocidade que nas armas que lho podiam cobrir e tinham suas bisarmas nas matildeos para defender a subida No estrado de todo acima estava uma imagem de mulher feita de prata assentada em uma cadeira real e na cabeccedila tinha uma coroa de ouro a modo de imperatriz mostrando grande acatamento e nas matildeos um cofre de barro que tinha os fechos de ouro e na cinta estava a chave dele (BARROS 1953 vol II p 202-203)

Os elementos da descriccedilatildeo evidenciam-se na pintura de formas objetos alturas volumes ornamentos cores pedras arquitetura etc Elementos esses que compotildee o quadro no qual se cristaliza a narrativa e se emoldura a accedilatildeo de que participa Clarimundo e seu interlocutor miraculoso essa descriccedilatildeo introduz uma das cenas mais marcantes de tantas que o Clarimundo conteacutem depois de enfrentar as estaacutetuas de pedra guardiatildes de um edifiacutecio tumular (essa) que por maravilha se tornaram animadas e tentam-no impedir a entrada no mausoleacuteu Clarimundo toma a chave presente da cinta da estaacutetua de prata e

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abre certa arca de barro ali depositada Nela encontra-se a cabeccedila de um rei feita de ouro ldquocom uma coroa de pedraria de grande preccedilordquo Para espanto e maravilha como o proacuteprio narrador ressalta a cabeccedila comeccedila a falar e o seu discurso justifica toda a amplificaccedilatildeo que o texto compotildee em torno de si A narrativa na fala da cabeccedila suspende seu curso e daacute ao rei a primeira voz em discurso direto apresentando os lamentos de um monarca de vida atormentada pelas injusticcedilas feitas no exerciacutecio do poder

Todas as noites tanto que me recolhia em minha cacircmara dos negoacutecios do dia vinha alma de meu pai que era passado deste mundo e com umas vergas de ferro me accediloutava tatildeo cruelmente que me parecia natildeo poder chegar agrave manhatilde segundo me deixava atormentado poreacutem tanto que se partia de mim ficava livre daquela dor (BARROS 1953 vol II p 206)

O filho (cuja cabeccedila de ouro conversava com Clarimundo) recebia as visitas noturnas do pai rei jaacute falecido e de quem recebera o trono e deste uacuteltimo sofria tormentos porque herdara natildeo apenas as riquezas do reino mas vieram tambeacutem com elas as injusticcedilas desmandos assassinatos e usurpaccedilotildees O descanso do pai se daria com os fracassos do filho com a perda da heranccedila maldita de um reinado que se fizera tiracircnico Na diegese da narrativa Clarimundo estava predestinado a encontrar aquela sepultura e ouvir da cabeccedila de ouro os vaticiacutenios sobre as gloacuterias da sua prole de digniacutessimos reis Aquela cabeccedila encantada a partir do encontro com Clarimundo dispotildee-se agrave conversaccedilatildeo com cavaleiros que lhe sejam merecedores em bondade das armas para os quais revelaraacute as coisas futuras A fala da personagem miraculosa a escultura falante expotildee na formulaccedilatildeo de seu discurso o enaltecimento da linhagem de Clarimundo amplificando os merecimentos da descendecircncia do cavaleiro huacutengaro e por decorrecircncia da Casa Real portuguesa Mais o reforccedilo dos conselhos de pareneacutetica reacutegia centrais na narrativa datildeo-se nos lamentos acerca do destino dos monarcas viciosos o supliacutecio post mortem do agente e o tormento em vida do herdeiro penalizado pela derrota fatal A ekphrasis do tuacutemulo da Floresta encantada apoacutes a passagem de Clarimundo converte-se numa ldquoArca da sabedoriardquo e potildee agrave frente dos olhos a grandeza de um monumentum (no sentido latino de ldquoaquilo que se deve lembrarrdquo) que enaltece os saberes necessaacuterio dirigido aos priacutencipes reis e fidalgos em geral ligados ao comando do reino o destino daqueles que praticam injusticcedila e tirania na conduccedilatildeo da coisa puacuteblica Como se realiza de modo recorrente na narrativa de Joatildeo de Barros as cenas maravilhosas de aventuras e batalhas satildeo sucedidas por aconselhamentos e demonstraccedilotildees de saberes eacuteticos concernentes agrave excelecircncia do poder Nesse sentido a ficccedilatildeo (no sentido de fictio de imagem e figura) do Clarimundo corrobora ou melhor alinha-se agrave ceacutelebre maacutexima horaciana preconizada na Carta aos Pisotildees a chamada Arte poeacutetica de Horaacutecio que ao deleite se siga o ensinamento e no caso ensinamento poliacutetico de extrema relevacircncia numa ordem monaacuterquica de poder

O ensinamento proposto evidencia-se nas sentenccedilas da narrativa nessa passagem entrelaccedila-se a vida e a morte o terreno e o aleacutem ou melhor a praacutetica terrena e o castigo vindouro e como lembra Isabel de Almeida ldquoa responsabilidade de pensamento e actos

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reacutegios em foco no exemplordquo Seguindo o raciociacutenio de Almeida e pensando no caso especiacutefico dessa passagem o ensinamento preconizado diz respeito agrave distinccedilatildeo entre governo e tirania entre a conquista insana de comarcotildees e a guerra justa aquela que se embate com o inimigo infiel sobretudo o turco

Ademais no que diz respeito agrave construccedilatildeo retoacuterica da cena torna-se bastante eloquente e decoroso atribuir a uma aacuteurea cabeccedila de imperador todo o discurso que ouvimos e mais numa anaacutelise do episoacutedio em relaccedilatildeo agrave totalidade da narrativa evidenciam-se as provaacuteveis fontes de invenccedilatildeo da representaccedilatildeo Devemos lembrar que no canto VI Eneias encontra-se em Cumes e pede agrave Sibila um uacuteltimo encontro com seu falecido pai Anquises Para tanto Eneias desceria ao mundo dos mortos encontraacute-lo-ia e ouviria dele tal como vemos na cena do Clarimundo os vaticiacutenios sobre sua elevada ascendecircncia

Cessa Anquises a Eneias e a SibilaTraz ao mais basto da ruidosa turbaUm combro toma donde a extensa filaDivise dos que vecircm e a todos possaOs traccedilos discernir Entatildeo prossegueldquoEia a gloacuteria que os Daacuterdanos esperaDo iacutetalo tronco os descendentes nossosQue a fama ilustraratildeo dos seus maioresHei de explicar-te e aprenderaacutes teus fadosNotas proacuteximo agrave luz por sorte um jovemSe arrima em hasta pura agraves auras mistoLatino sangue surgiraacute primeiroO teu postremo Siacutelvio nome albanoQue a ti longevo pariraacute nas selvasTarde Laviacutenia rei de reis estiacutepitePor quem seremos de Alba inda senhores (VIRGILIO 2008 versos 771-786)

A longa jornada de Eneias pelo mundo dos mortos estaacute para a descriccedilatildeo e as aventuras de Clarimundo ao penetrar na sepultura encantada seguindo por uma escada guardada por grandes estaacutetuas de pedra que a defendiam dos intrusos Do mesmo modo ouvimos o vaticiacutenio e os ensinamentos sobre as virtudes de rei da boca de figuras autorizadas para tais dizeres pelo caraacuteter que apresentam na narrativa um rei do passado representado numa cabeccedila de ouro que maravilhosamente fala como um monumento loquaz que ldquofaz lembrarrdquo o infortuacutenio de um reino malfadado pela injusticcedila e pelos viacutecios No entanto em meio a tantas penas e desconcertos a cabeccedila exorta ao futuro imperador de Greacutecia as virtudes necessaacuterias agrave cabeccedila do reino - o rei

Outra fonte verossiacutemil de invenccedilatildeo encontra-se no Orlando Furioso de Ariosto No canto III Bradamante encontra-se numa capela na qual lhe aparece uma figura ldquovem descalccedila traz soltas vestimentas E grenhas e por nome a cumprimentardquo Bradamante eacute guiada a uma entrada uma gruta

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Santa e antiga eacute esta gruta e quem a fezConstruir foi Merlim o saacutebio magoQue aqui (teraacutes ouvido isso talvez)Caiu no engano da Dama do LagoSeu corpo haacute muito em poacute jaacute se desfezE jaz neste sepulcro onde ele pagoDe dar ouvidos agravequela mulherVivo deitou-se e morto estaacute a jazer (ARIOSTO 2002 p 94)

A imitaccedilatildeo parece verossiacutemil pelos procedimentos de composiccedilatildeo estando as cinzas de Merlim para a cabeccedila de ouro do imperador ambos finados por causa de seus enganos e no mundo dos mortos expiam sua condiccedilatildeo pela profecia e pelo ensinamento Vejamos um pouco mais do canto III do Orlando Furioso de Ariosto as profecias de Merlim sobre a ascendecircncia de Bradamante e Ruggiero

Tatildeo logo Bradamante dos umbraisSe aproxima da fuacutenebre capelaCom voz sonora dos restos mortaisO espiacuterito vivente diz a ela- Que a Fortuna te ajude sempre maisOacute casta e nobiliacutessima donzelaCujo seio traraacute o germe fecundoDa gente a que honraratildeo Itaacutelia e o mundo (ARIOSTO 2002 p 96)

A pena de Ariosto compotildee uma genealogia elevada para a Casa DrsquoEste a quem se dedica o Orlando elogiando-a pela elevaccedilatildeo dos seus primeiros pais e descrevendo-lhe os ilustres filhos e seus feitos A imitaccedilatildeo de Joatildeo de Barros compartilha dos mesmos procedimentos de elogio pela elevaccedilatildeo da genealogia no entanto daacute soluccedilotildees diferentes e de certo modo eficientes no que diz respeito ao deleite do leitor isto eacute a cena da ldquoFloresta Encantadardquo como ocorre em vaacuterios outros episoacutedios do Clarimundo satildeo prenuacutencios dos vaticiacutenios da Torre de Sintra episoacutedio central na narrativa de Barros12 Com isso constitui-se uma unidade e uma evidenciaccedilatildeo do momento no qual se confirmam os merecimentos de Clarimundo e pela proacutepria disposiccedilatildeo narrativa anunciam e preparam as profecias de Fanimor

12 O episoacutedio da torre de Sintra eacute a cena mais lembrada do Clarimundo na sua remissatildeo criacutetica breve apresentada em geral nos manuais de histoacuteria da literatura portuguesa Esse episoacutedio apresenta Clarimundo em terras portuguesas e na companhia de Fanimor um mago que protege o priacutencipe em toda a narrativa e que no alto da torre de Sintra vaticina em oitavas rimas toda a descendecircncia heroica do priacutencipe Clarimundo Na ediccedilatildeo de Marques Braga estaacute no capiacutetulo IV do livro III intitulado ldquoComo partidos os moradores de Sintra quisera Clarimundo ir ao castelo de Torres Vedras mas foi desviado por Fanimor E das grandes profecias que profetizou acerca das coisas de Portugalrdquo

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A leitura do discurso transcrito atribuiacutedo ao imperador condenado remete-nos a uma provaacutevel fonte da filosofia moral cristatilde preconizada por Joatildeo de Barros Trata-se do capiacutetulo XXIV do quinto livro da Cidade de Deus de Santo Agostinho no qual se apresentam as virtudes que garantem a felicidade dos imperadores cristatildeos

Nem noacutes chamamos felizes a alguns imperadores cristatildeos laacute porque reinaram por muito tempo e legaram apoacutes uma plaacutecida morte o impeacuterio aos filhos ou domaram os inimigos da Repuacuteblica ou conseguiram prevenir e reprimir cidadatildeos que contra si se rebelaram Estas e outras daacutedivas ou consolaccedilotildees desta vida atribulada tambeacutem certos adoradores dos democircnios mereceram recebecirc-las sem pertencerem como aqueles pertencem ao reino de Deus ndash e Deus assim o decidiu na sua misericoacuterdia para que os que nrsquoEle creem natildeo as desejassem como se elas fossem o Bem Supremo (AGOSTINHO 2006 p 541)

A doutrina moral desta passagem eacute anaacuteloga agrave representaccedilatildeo do discurso da cabeccedila de ouro indicando o inferno e as tormentas eternas como fim daqueles que ao contraacuterio do que vimos desejam as conquistas mundanas em si mesmas movidos pela ambiccedilatildeo viciosa Para Agostinho o imperador cristatildeo feliz governa com justiccedila natildeo se orgulha com elogios e se lembra de que eacute homem submete seu poder agrave majestade de Deus a fim de dilatar ao maacuteximo seu culto teme a Deus ama-o e teme-o satildeo lentos a punir e prontos a perdoar exercem a vinganccedila pela obrigaccedilatildeo de protegerem a repuacuteblica e natildeo para cevarem os seus oacutedios contra os inimigos concedem o perdatildeo na esperanccedila da emenda compensam as medidas severas com a brandura da misericoacuterdia e a largueza dos benefiacutecios preferem dominar em si as paixotildees a quaisquer povos e tudo isso em amor agrave felicidade eterna e natildeo agrave gloacuteria terrena A construccedilatildeo do caraacuteter heroico de Clarimundo daacute-se pela sucessatildeo de suas accedilotildees nas diversas circunstacircncias enfrentadas o que se evidencia em episoacutedios como a aventura da ldquoFloresta Encantadardquo o episoacutedio da ldquoIlha Perfeitardquo a aventura nos domiacutenios da maga Arpinda a fidelidade ao amor de Clarinda Assim o caraacuteter da personagem Clarimundo confirma em palavras e feitos os prenuacutencios do mago Fanimor e endossam modelos reacutegios preconizados em obras autorizadas sobre a figura do rei e do priacutencipe excelentes

Voltando ao discurso da estaacutetua conveacutem observar alguns elementos de sua constituiccedilatildeo natildeo apenas por seus argumentos de filosofia moral mas tambeacutem pelos artifiacutecios elocutivos utilizados Precede agrave revelaccedilatildeo da estaacutetua falante um trecho entre parecircnteses que enaltece ao leitor em forma de digressatildeo a ldquomaravilhardquo daquele momento ldquooh cousa maravilhosa de crer e espantosa para cometer se outras de tanta admiraccedilatildeo natildeo tiveacuteramos vistordquo O proecircmio do discurso seguinte utiliza-se de toacutepicas de captatio benevolentiae nesse caso com fins agrave piedade jaacute que se procede por construccedilotildees argumentativas antiteacuteticas que num primeiro membro revela o poder a gloacuteria a sabedoria os domiacutenios sobre os ceacuteus e as terras para logo em seguida apoacutes uma digressatildeo acerca da fraqueza de tudo que eacute humano e terreno revelarem-se os termos antagocircnicos ao poder agrave gloacuteria e agrave sabedoria quais sejam a tormenta

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o fracasso e a morte O cerne de toda a argumentaccedilatildeo encontra-se na descriccedilatildeo de um sonho no qual se revela a causa da perdiccedilatildeo dos reis a injusticcedila e a tirania Viacutecios estes que condenam agraves tormentas eternas no inferno Todo o pathos desta cena sobretudo na descriccedilatildeo do sonho serve como recurso retoacuterico de evidenciaccedilatildeo da seccedilatildeo posterior do episoacutedio que traz o elogio da luta contra os turcos um dos pontos centrais deste capiacutetulo e do Clarimundo

E no te[m]poacute q[ue] a nobre cavalaria de Greacutecia desfalleccediler q[ue] sera quatildedo se nam achar neste impeacuterio que[m] suba o primeiro degrao desta minha sepoltura entam sera por seus pecados tomado e posuydo dos Turcos Entrando per elle como os baacuterbaros entraratilde na feroz Espanha q[ua]ndo dom Rodrygo o derradeyro rey dos Godos a perdeo E assi tatilde bem como os reys Portugueses q[ue] de ty am de proceder lanccedilaram [de] suas terras a esta danada seyta e entraratilde nas partes Dafrica e Asia regando od catildepos cotilde o sangue desta barbara Ge[n]te (Prymera parte da crocircnica livro II fol XCIII)

Eacute interessante notar a proeminecircncia da guerra contra os mouros na gloacuteria futura da profecia e mais do que isso notar o artifiacutecio retoacuterico de associaccedilatildeo por equivalecircncia das investidas dos Turcos e as investidas baacuterbaras registradas nas crocircnicas ibeacutericas desde o seacuteculo XIII Com isso a narrativa fabulosa apresenta-se como crocircnica como histoacuteria na qual realiza-se a propaganda contra os inimigos da feacute Aleacutem disso haacute um artifiacutecio retoacuterico no argumento que lhe confere paradoxalmente o sentido de elogio na fala da cabeccedila de ouro as profecias acerca dos reis portugueses destacam-lhes as vitoacuterias futuras sobre os infieacuteis mencionados como a ldquobaacuterbara genterdquo a ldquodanada seitardquo a ldquomaacute geraccedilatildeordquo cujo sucesso proveacutem da decadecircncia da cavalaria e dos seus valores aos pecados e erros do Ocidente Nesse sentido sugere-se que a accedilatildeo portuguesa seraacute o antiacutedoto contra a decadecircncia da luta contra os infieacuteis Com isso as conquistas portuguesas recebem jaacute no Clarimundo a justificativa que as valorizaram tais como a cristianizaccedilatildeo da Aacutefrica e da Aacutesia e o aniquilamento dos inimigos da feacute ldquoregando os campos com o seu sanguerdquo

Ademais tanto no que diz respeito agrave ordenaccedilatildeo dos capiacutetulos como na disposiccedilatildeo das accedilotildees do nascimento de Clarimundo e sua coroaccedilatildeo como imperador de Constantinopla o episoacutedio da ldquoFloresta Encantadardquo ocorre num momento central da narrativa ou seja Clarimundo eacute reconhecido como priacutencipe herdeiro do trono da Constantinopla manteacutem-se casto e fiel agrave Clarinda que tambeacutem lhe retribui o amor jaacute conquistou a Ilha Perfeita na qual demonstrou por feitos maravilhosos todos os seus merecimentos como cavaleiro e priacutencipe Assim a cena da ldquoFloresta Encantadardquo a descriccedilatildeo do lugar e dos seres miraculosos que nele estatildeo envolvidos essa descriccedilatildeo coloca diante dos olhos do leitor natildeo apenas as imagens que conferem maravilhamento e deleite mas tambeacutem doutrinas poliacuteticas e religiosas quinhentistas que se pretende preconizar aos leitores e sobretudo agravequele leitor primordial da narrativa de Joatildeo de Barros o rei e seus iacutentimos

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Referecircncias

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Recebido em 12052017

Aceito em 25092017

Flaacutevio Antocircnio Fernandes Reis

Mestre e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de Satildeo Paulo Docente do Departamento de Estudos Linguiacutesticos e Literaacuterios e do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Memoacuteria Sociedade e Linguagem (CAPES nota 5) ambos da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) flavuspgmailcom

Entrevista

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eISSN 22376844polifonia

Literatura e Ensino Entrevista com Joseacute Augusto Cardoso Bernardes

Por Marinete Luzia Francisca de Souza

JOSEacute AUGUSTO CARDOSO BERNARDES (1958) eacute Professor Catedraacutetico na Faculdade de Letras de Coimbra e membro do Centro de Literatura Portuguesa Foi codiretor de Biblos Enciclopeacutedia Verbo das Literaturas de Liacutengua Portuguesa (1995-2005) Eacute Diretor da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (desde 2011) e consultor para o Programa Liacutengua Portuguesa da Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian (desde 2013) Foi Membro do Conselho Nacional de Educaccedilatildeo entre 2011 e 2016

De entre as obras que publicou destacam-se O Bucolismo Portuguecircs (1988) Saacutetira e Lirismo em Gil Vicente (1996) Histoacuteria Criacutetica da Literatura

Portuguesa Humanismo e Renascimento (1999)1 Revisotildees de Gil Vicente (2003) A Literatura no Ensino Secundaacuterio (2004) Miguel Torga e a melancolia de Portugal (2006) Gil Vicente (2008) A Literatura e o Ensino de Portuguecircs (2013)2 A Biblioteca da Universidade Permanecircncia e metamorfoses (2015) Camotildees nos prelos de Portugal e da Europa 1563-2000 (2015)3

Para aleacutem de ter publicado estudos sobre Gil Vicente e Luiacutes de Camotildees como foi visto vem se dedicando aos problemas da investigaccedilatildeo e do ensino das Humanidades tema dessa entrevista

Entrevista

Polifonia ndash Considerando as investigaccedilotildees que vem sendo realizadas sobre o ensino de literatura nos niacuteveis Fundamental e Meacutedio (Secundaacuterio) como analisaria a evoluccedilatildeo dos estudos nesta aacuterea

Bernardes ndash Ao longo de vaacuterias deacutecadas nas universidades portuguesas os estudos so-bre o ensino da literatura foram considerados como aacuterea marginal

1 Com Direccedilatildeo de Carlos Reis2 Em colaboraccedilatildeo com Rui Afonso Mateus3 Em colaboraccedilatildeo com Ana Migueis e Carla Ferreira

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O desprezo sobranceiro que recaiacutea sobre domiacutenio do conhecimento tem duas explicaccedilotildees principais a desconfianccedila suscitada pelas ciecircncias da educaccedilatildeo em geral que alguns entatildeo consideravam desprovidas de suficiente base epistemoloacutegica e a proclamaccedilatildeo de primazia que provinha das aacutereas de investigaccedilatildeo mais estabelecidas e convencionais Basta lembrarmos que os estudos literaacuterios se mostravam abertos a colaboraccedilotildees interdisciplinares com a linguiacutestica (concebida nos seus diferentes ramos) com a esteacutetica ou com a histoacuteria mas enjeitavam ocupar-se da adequaccedilatildeo do seu saber agraves diferentes realidades escolares

Eu proacuteprio testemunhei muitos sinais dessa desconfianccedila Nos anos 80 ou 90 do seacuteculo passado na minha Faculdade de Letras (Universidade de Coimbra) natildeo era faacutecil incluir um pequeno moacutedulo que fosse destinado a problematizar a forma como se poderia ensinar Camotildees ou Gil Vicente O fundamento para esta exclusatildeo era o de que o conhecimento adquirido pela via da pesquisa se bastava a si proacuteprio

As tarefas de adequaccedilatildeo eram reconhecidas mas eram tidas como ldquofaacuteceisrdquo e competiam estritamente aos professores dos diferentes niacuteveis Prevalecia a ideia de que saber em causa carecia apenas de regulaccedilatildeo cientiacutefica (assegurada pelas universidades) A sua transmissatildeo deveria fazer-se de maneira uniforme exclusivamente sustentada pela preparaccedilatildeo e motivaccedilatildeo de professores e alunos Era ainda suposto que uns e outros reagissem da mesma forma agrave transmissatildeo dos conhecimentos independentemente das suas circunstacircncias socioculturais

Pouco a pouco estes pressupostos foram sendo objeto de questionaccedilatildeo Tal sucedia por via teoacuterica desde logo

Mas foi sobretudo pelo confronto com a praacutetica que se foi descobrindo que o cenaacuterio escolar mudara muito A democratizaccedilatildeo do acesso agrave Escola por parte das nossas crianccedilas e adolescentes (que em Portugal se situa atualmente nos 18 anos ou no 12ordm ano) contribuiu para que as turmas se tornassem comunidades cada vez mais heterogeacuteneas Ensinar qualquer mateacuteria tornou-se assim mais difiacutecil envolvendo requisitos como dinamismo flexibilidade adaptaccedilatildeo de meacutetodos reconversatildeo de objetivos etc

Polifonia ndash O que pensa sobre o ensino de literaturas dos Paiacuteses de Liacutengua Portuguesa em detrimento das literaturas ditas nacionais

Bernardes ndash O ensino da literatura nacional teve e continua a ter um efeito identitaacuterio muito forte Ler os mesmos livros num determinado espaccedilo e ao longo de sucessivas geraccedilotildees constroacutei memoacuteria coletiva e reforccedila viacutenculos Natildeo podemos esquecer que foi esse o principal fundamento para a escolarizaccedilatildeo da literatura que na Europa teve lugar a partir das trecircs uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX

Hoje poreacutem a ideia de comunidade alargou-se deixando de estar limitada ao acircmbito poliacutetico Um adolescente portuguecircs brasileiro ou angolano deve ser educado com bases de cidadania poliacutetica Isso natildeo impede poreacutem o alargamento a outros contextos envolvendo o que poderiacuteamos chamar a Cidadania linguiacutestica e cultural

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Nesse sentido aplaudindo uma proposta concreta formulada haacute dois anos em Coimbra pelo Professor Viacutetor Aguiar e Silva sou favoraacutevel a compromissos que possibilitem a entrada de autores brasileiros e africanos no cacircnone escolar portuguecircs Essa entrada pode fazer-se de muitas maneiras Natildeo me parece necessaacuterio desde logo que haja uma substituiccedilatildeo de uns autores por outros

Defendo nomeadamente que o conhecimento dos textos literaacuterios na Escola deve ser de natureza antoloacutegica e natildeo tatildeo intensiva como eacute hoje Em Portugal com 14 anos um aluno pode andar dois meses a falar do Auto da Barca do inferno e outros dois de Os Lusiacuteadas Acho que se trata de um tempo excessivo e potencialmente saturante

Com uma visatildeo mais panoracircmica destinada a estimular a curiosidade do aluno haveria lugar para mais autores e mais textos uns e outros tomados como estiacutemulo agrave leitura e natildeo tanto como objeto de estudo minucioso e totalizante

Polifonia ndash Se por um lado as humanidades vecircm sendo colocadas de lado por outro a escrita e leitura satildeo fatores de inserccedilatildeo ou discriminaccedilatildeo social O que diria sobre esse tema

Bernardes ndash Como qualquer outra atividade humana a leitura e a escrita podem servir a propoacutesitos discriminatoacuterios Mas isso natildeo significa que em si mesmas essas praacuteticas devam ser vistas com suspeiccedilatildeo ou relutacircncia Pelo contraacuterio ler e escrever em patamares elevados de sensibilidade e consciecircncia criacutetica constituem instrumentos insubstituiacuteveis de promoccedilatildeo de qualquer ser humano Haacute que lutar por que todos tenham acesso a esses instrumentos O caminho soacute pode ser o da democratizaccedilatildeo metoacutedica exigente e esperanccedilosa Haacute ainda muitos seres humanos sem aacutegua potaacutevel eletricidade ou alimentaccedilatildeo e isso eacute inaceitaacutevel Como eacute inaceitaacutevel que haja seres humanos incapazes de tirar proveito das grandes realizaccedilotildees teacutecnicas e artiacutesticas da espeacutecie A leitura e a escrita situam-se neste uacuteltimo acircmbito

Verifico que ciclicamente existe a tentaccedilatildeo de eliminar dos Programas aquilo que eacute difiacutecil os textos literaacuterios e filosoacuteficos por exemplo Assim se teriam em devida consideraccedilatildeo as especiais dificuldades que alguns alunos socialmente desfavorecidos costumam sentir quando na Escola lidam com esses textos pela primeira vez

Ora em meu entendimento o raciociacutenio deve ser justamente o oposto Se essas crianccedilas natildeo tecircm outra possibilidade de conhecer esses textos e de deles tirar o devido partido tem que ser a Escola a cumprir esse papel compensatoacuterio Isso coloca nos professores uma responsabilidade acrescida que comeccedila na motivaccedilatildeo e termina na avaliaccedilatildeo Mas natildeo existe outra maneira de cumprir esse imperativo social

Polifonia ndash Haacute no mundo de Liacutengua Portuguesa uma dicotomia entre as literaturas escritas canocircnicas e as literaturas orais indiacutegenas (casos dos paiacuteses africanos do Brasil e Timor Leste) em sua maioria intercultural O que proporia para essa divisatildeo

Bernardes ndash Tambeacutem nesse plano sou a favor de compromissos e equiliacutebrios ditados pela sen-satez e pelas condiccedilotildees especiacuteficas que se verificam em cada situaccedilatildeo

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Natildeo faz nenhum sentido separar radicalmente os dois tipos de produccedilatildeo literaacuteria numa loacutegica de disputa Eacute nocivo ignorar as literaturas ditas indiacutegenas sob qualquer pretexto E eacute igualmente negativo privar seja quem for do acesso ao contacto com as obras mais lidas e conhecidas do cacircnone (ocidental e oriental) Mais do que dicotomia tem que haver espaccedilo e estiacutemulo para conhecer ambas Ambas ajudam a crescer em espiacuterito de abertura e toleracircncia

Polifonia ndash Qual sua opiniatildeo sobre as adaptaccedilotildees de textos claacutessicos para a sala de aula

Bernardes ndash O ideal seria que as adaptaccedilotildees pudessem servir como introduccedilatildeo ao texto original Muitas vezes se diz que a adaptaccedilatildeo eacute faacutecil e o original eacute difiacutecil Julgo no entanto que existem maneiras mais ou menos adequadas de apresentar esses mesmos textos ditos difiacuteceis Tudo estaacute nos objetivos que pretendemos alcanccedilar Olhando para a forma como os programas tratam certos autores no ensino baacutesico e secundaacuterio (reporto-me mais uma vez ao que sucede em Portugal) fico com a ideia de que seria possiacutevel uma aproximaccedilatildeo menos convencional e mais ajustada agraves necessidades dos alunos

Em minha opiniatildeo a necessidade maior eacute sempre a de formar o gosto dos alunos tornando-os leitores assiacuteduos curiosos e preparados O pior que se pode fazer com a literatura na Escola eacute criar a ideia de que os livros satildeo para serem lidos uma soacute vez e ateacute agrave exaustatildeo

Costumo dizer que a pior reaccedilatildeo que podemos ouvir de um aluno a propoacutesito de um determinado texto eacute a que se traduz pelas consabidas palavras ldquoJaacute deirdquo Um texto nunca estaacute verdadeiramente dado Ao longo das aulas o professor deve abrir alguns caminhos mas permitindo que o aluno fique com vontade de continuar a caminhar por trilhos novos e que em alguns casos satildeo soacute seus

Polifonia ndash Em alguns paiacuteses o acesso ao texto literaacuterio se daacute preferencialmente por meio do livro didaacutetico (que apresenta fragmentos de textos) ou dos textos recomendados pelo Exame Nacional (ENEM no caso do Brasil) ou pelos programas curriculares instituiacutedos pelo governo O que proporia para superar essa barreira na formaccedilatildeo de leitores

Bernardes ndash Natildeo conheccedilo suficientemente a realidade brasileira para me pronunciar sobre ela em concreto No que diz respeito agrave realidade portuguesa julgo que os manuais escolares tecircm melhorado bastante nos uacuteltimos anos Qualquer manual carece hoje de certificaccedilatildeo legal concedida por uma instituiccedilatildeo de ensino superior Esse requisito levou as editoras a ter mais cuidado na escolha das equipas que concebem os livros

De uma forma geral pode dizer-se que em Portugal os manuais escolares de Portuguecircs reuacutenem condiccedilotildees para funcionarem como estiacutemulo agrave leitura Satildeo bastante cuidados do ponto de vista graacutefico apoiam-se em investigaccedilatildeo consolidada tecircm em conta as expetativas e as criacuteticas de professores e alunos

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Ainda assim parece-me que existe bastante caminho para percorrer Dou um exemplo Natildeo me parece bem que os manuais possam conter obras integrais O Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente que se lecirc no 9ordm ano de escolaridade quando o aluno tem cerca de 14 anos ou o conto A Aboacutebada de Alexandre Herculano que faz parte do Programa do 11ordm ano figuram integralmente nos manuais Nem sempre surgem bem anotados e explicados o que eacute compreensiacutevel

Do meu ponto de vista seria preferiacutevel que o aluno fosse encorajado a aproximar-se de uma ediccedilatildeo didaacutetica publicada em volume separado a cargo de um especialista Quem estuda continuadamente um determinado autor sabe alertar-nos melhor para os significados escondidos dos textos Seria no entanto ldquoobrigatoacuteriordquo que o dito estudioso natildeo esquecesse nunca que os seus destinataacuterios concretos (os alunos e mesmo os professores) dispensam divagaccedilotildees complicadas em termos de discurso Necessitam sobretudo de explicaccedilotildees pacientes e claras Vejo nesta praacutetica uma outra vantagem para aleacutem de permitir um aproveitamento diferente dos textos em causa esta estrateacutegia permitiria que o aluno frequentasse a biblioteca ou pensasse em formar a sua proacutepria coleccedilatildeo de livros Por uacuteltimo lendo os textos em volumes separados o aluno dar-se-ia conta de que Gil Vicente ou Alexandre Herculano natildeo escreveram os textos diretamente para nenhum manual Assisto com muita apreensatildeo a uma desqualificaccedilatildeo do livro enquanto objeto no pressuposto erradiacutessimo de que se trata de um objeto anacroacutenico e sem futuro Posso entender que esta ideia circule com tracircnsito faacutecil em determinados meios Basta lembrarmo-nos da promoccedilatildeo publicitaacuteria que envolve os produtos digitais em oposiccedilatildeo ao livro Custa-me a aceitar que a Escola natildeo tenha em relaccedilatildeo a essa propaganda uma atitude mais distante e ponderada Tanto mais quanto se sabe que quando falamos de tecnologia digital falamos de instrumentos que eacute necessaacuterio usar com cautela sob todos os pontos de vista

Polifonia ndash O senhor considera que o ensino de obras de autores dos diversos paiacuteses de Liacutengua Portuguesa configura para aleacutem de um alargamento dos horizontes culturais do estudante a afirmaccedilatildeo de uma ldquocomunidade imaginadardquo no sentido que Benedict Anderson atribui agrave expressatildeo em torno da CPLP

Bernardes ndash Tal como referi na resposta agrave pergunta nordm 2 entendo que haveria conveniecircncia poliacutetica e fundamento cultural para a integraccedilatildeo nos programas de Portuguecircs de obras feitas e publicadas em diferentes paiacuteses Parece-me inclusivamente que o criteacuterio linguiacutestico e cultural natildeo eacute suficiente

Acho que em algum momento um aluno portuguecircs deveria ter notiacutecia da existecircncia de livros como a Divina Comeacutedia o Dom Quixote ou o Rei Lear Isso natildeo significa repito que passasse um mecircs a estudar cada um destes livros Mas ningueacutem deveria abandonar a escolaridade obrigatoacuteria sem ter a noccedilatildeo de que a literatura eacute uma atividade que define e transforma a espeacutecie humana muito para aleacutem da diversidade dos tempos e das liacutenguas

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Polifonia ndash Ainda sobre a literatura do poacutes-independecircncia como vecirc a literatura brasileira desse periacuteodo que foi ao mesmo tempo poacutes-independente e imperial (jaacute que o Brasil passou de colocircnia a ldquoBrasil Impeacuteriordquo conforme desejo Dom Pedro II) Como articular essa antiacutetese em sala de aula

Bernardes ndash Parece-me que seja a que niacutevel for a literatura natildeo deve ser separada das circunstacircncias histoacuterico-culturais em que nasce e eacute depois recebida O conhecimento dos contextos proporciona informaccedilatildeo preciosa Sem duacutevida que conhecemos melhor o Portugal do seacuteculo XIX atraveacutes da leitura de Eccedila e de Camilo Castelo Branco ou o Brasil da mesma eacutepoca atraveacutes dos livros de Machado de Assis O mesmo sucede com determinados lugares Alguns escritores tecircm o condatildeo de nos revelar regiotildees ou cidades que de outro modo natildeo conseguiriacuteamos compreender com tanta profundidade e sob tantos acircngulos Existe uma Lisboa de Eccedila de Queiroacutes outra de Fernando Pessoa e inda outra de Joseacute Saramago por exemplo Tal como existe um Rio de Janeiro de Machado que natildeo conheceriacuteamos tatildeo bem sem ter lido os seus contos e os seus romances

E no entanto sendo um defensor da valorizaccedilatildeo dos contextos no ensino da literatura natildeo me parece bem que se acentue demasiado esse viacutenculo As obras literaacuterias como a arte em geral conservam a marca da circunstacircncia em que inspiram e das referecircncias temporais e espaciais que incorporam Do mesmo modo eacute sabido que natildeo satildeo neutras sob o ponto de vista poliacutetico Ainda assim detecircm uma vasta margem de autonomia que conveacutem explorar nas aulas mais e melhor

Deixar a literatura respirar fazendo avultar aquilo que nela existe de livre em relaccedilatildeo agrave histoacuteria parece-me um desiderato cada vez mais necessaacuterio

Polifonia ndash Ao longo de sua estada na academia suas pesquisas tecircm se voltado dentre outras sobretudo para Gil Vicente Poderia expor o que pondera sobre a atualidade deste autor e seu ensino

Bernardes ndash Ensinar literatura eacute sempre um desafio grande Podemos muitas vezes ser tomados pelo pensamento de que estamos a insistir em mateacuterias que interessam cada vez a menos gente Essa sensaccedilatildeo pode ainda tornar-se mais viva quando se trata de autores que escreveram haacute muito tempo

Eacute o caso de Gil Vicente ou de Camotildees Quando se aproxima pela primeira vez de textos vicentinos por exemplo o aluno evidencia uma grande sensaccedilatildeo de estranheza Haacute palavras que jaacute natildeo ditas por ningueacutem nem sequer se encontram nos dicionaacuterios E isto apesar de o Portuguecircs ser uma liacutengua muito mais estaacutevel do que outras liacutenguas europeias

Mas tambeacutem existem barreiras importantes sob o ponto de vista dos valores Depois de ter destacado a importacircncia esteacutetica e histoacuterico-cultural de Gil Vicente natildeo eacute faacutecil explicar a um aluno de 14 anos que lecirc a Barca do Inferno que um judeu tenha ido para o inferno por motivos exclusivamente religiosos por exemplo Perante essa dificuldade muitos professores gostariam que essa e outras cenas natildeo existissem na peccedila

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Quando deparamos com uma situaccedilatildeo deste tipo natildeo temos outra forma seacuteria de lidar com o problema senatildeo tentar compreendecirc-lo agrave luz das circunstacircncias histoacutericas Eacute uacutetil lembrar aos alunos que a Humanidade natildeo pensou e agiu sempre da mesma forma Os procedimentos de alteridade devem ser explicados e encorajados Apreciar um autor natildeo significa necessariamente aprovar todos os aspetos da sua mensagem O papel da Escola deve ser mesmo o de ajudar a compreender e natildeo tanto a aplaudir ou a reprovar A Escola deve ensinar que concordar e discordar natildeo podem ser atos baacutesicos pulsionais e definitivos Trata-se de atos essenciais agrave vida ciacutevica mas que requerem sensibilidade e informaccedilatildeo segura A interpretaccedilatildeo de textos literaacuterios constitui um excelente treino para cultivar essa atitude

Poder escutar os autores de outras eacutepocas equivale a um privileacutegio enorme Significa de algum modo escutar a voz dos mortos E isso deve ocorrer em clima de toleracircncia e de consciecircncia relativamente ao pensamento e aos valores de quem nos fala a partir de outros tempos Tambeacutem sob esse ponto de vista o ensino da literatura pode e deve ser um exerciacutecio de atenccedilatildeo aberta e qualificada ao que o outro tem para nos dizer

Polifonia ndash Por gentileza faccedila suas consideraccedilotildees gerais sobre o tema

Bernardes ndash A Literatura globalmente considerada eacute um dos produtos mais nobres e identificadores da espeacutecie humana Nela convergem atributos tatildeo diferentes como a criatividade o domiacutenio da liacutengua oral e escrita o ordenamento da memoacuteria a capacidade de construir utopias e de criticar realidades

Enquanto discurso essencial e complexo a literatura convida a um entendimento especial que mobiliza a sensibilidade e o conhecimento Ensinar literatura eacute por isso e desde logo treinar essas duas componentes essenciais

Uma sociedade livre e democraacutetica tem tudo a ganhar com a presenccedila da literatura na Escola

A exclusatildeo ou a menorizaccedilatildeo dos conteuacutedos literaacuterios dos programas escolares conduziria a uma situaccedilatildeo de injusta desigualdade Nessa eventualidade o contacto com os livros de poesia ou de narrativa ficaria limitado aos jovens nascidos em ambiente familiar favorecido Soacute esses poderiam desfrutar do sortileacutegio de um poema Os outros aqueles muitos que natildeo ouvem falar de poesia em casa se natildeo tiverem com ela um bom encontro na Escola ficaratildeo privados de um encontro que pode e deve ser transformador

Ensinar literatura serve por isso os ideais de uma sociedade democraacutetica e livre

Do ponto de vista pessoal o contacto com os textos literaacuterios cumpre vaacuterios desiacutegnios importantes a educaccedilatildeo do gosto e para o gosto a maturaccedilatildeo do espiacuterito criacutetico que recorre a fundamentos a expressatildeo da sensibilidade atraveacutes do discurso oral e escrito

Haacute decerto bons motivos para que a literatura continue nos programas de Portuguecircs com os ajustamentos que os tempos novos justificam Eacute certo que muitas coisas se ensinam atraveacutes dela mas para aleacutem disso eu estou genuinamente convencido de que outras natildeo se conseguem ensinar sem ela

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Marinete Luzia Francisca de Souza

Docente do Curso de Graduaccedilatildeo em Letras ndash campus do Meacutedio Araguaia e do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Estudos de Linguagem ndash campus Cuiabaacute da Universidade Federal de Mato Grosso marineteluzia2gmailcom

eISSN 22376844polifonia

UFMT

PERIOacuteDICO CIENTIacuteFICO POLIFONIA

EDITAL DE CHAMADA DE ARTIGOS 2018

ESTUDOS LINGUIacuteSTICOS ndash VOL 25 N 37

ESTUDOS LITERAacuteRIOS ndash VOL 25 N 40

ISSN 22376844 versatildeo eletrocircnica

PERIOacuteDICO ARTICULADO AOPROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM

Universidade Federal de Mato GrossoInstituto de Linguagens

Pesquisadores doutores brasileiros e estrangeiros poderatildeo enviar seus trabalhos ineacuteditos artigos resenhas entrevistas voltados agraves aacutereas de estudos linguiacutesticos e literaacuterios para publicaccedilatildeo no perioacutedico cientiacutefico Polifonia em 2018 mediante avaliaccedilatildeo cega por pares e aprovaccedilatildeo No caso de trabalhos em coautoria sendo um dos autores doutor os demais poderatildeo ser mestres graduandos etc quando da submissatildeo

A partir desta chamada textos literaacuterios poemas e contos poderatildeo ser submetidos agrave avaliaccedilatildeo por especialistas das respectivas aacutereas com vistas agrave possiacutevel publicaccedilatildeo no perioacutedico

Objetivando atender a demanda de acessibilidade agrave produccedilatildeo do conhecimento o perioacutedico Polifonia estaacute sendo constituiacutedo tambeacutem com viacutedeos contendo os resumos dos artigos traduzidos em Liacutengua Brasileira de Sinais (LIBRAS) iniciativa que favorece a inclusatildeo da comunidade surda na produccedilatildeo circulaccedilatildeo e recepccedilatildeo dos textos veiculados e a consolidaccedilatildeo do multilinguismo do perioacutedico A traduccedilatildeo e a preparaccedilatildeo dos viacutedeos com resumos em LIBRAS estatildeo sob a responsabilidade da equipe editorial

No perioacutedico Polifonia tambeacutem satildeo publicados artigos produzidos em LIBRAS e documentados em viacutedeo devendo estes obrigatoriamente ser apresentados na forma escrita em Liacutengua Portuguesa e revisados por um profissional O artigo na modalidade

Polifonia - Chamada de Artigos

grafocecircntrica tem como justificativa a partilha dos saberes cientiacuteficos com a comunidade de pesquisadores e demais interessados que em sua maioria natildeo tem conhecimento da LIBRAS A preparaccedilatildeo dos viacutedeos deveraacute seguir as normas dispostas neste edital

ESTUDOS LINGUIacuteSTICOS ndash vol 25 n 37

DOSSIEcirc DIVERSIDADES EM LINGUIacuteSTICA

Chamada aberta para artigos na aacuterea de Linguiacutestica sem delimitaccedilatildeo teoacuterica ou aacuterea dentro deste campo de estudos A proposta eacute contemplar diversas publicaccedilotildees que abordem o objeto da Linguiacutestica ou seja as liacutenguaslinguagem em suas multifacetadas caracteriacutesticas Palavras-chave Linguiacutestica diversidade correntes teoacutericas

OrganizadoresFlaacutevia Girardo Botelho Borges (Universidade Federal de Mato Grosso)Zaacuteira Bonfante dos Santos (Universidade Federal do Espiacuterito Santo)

Prazo para encaminhamento 25 de janeiro de 2018Publicaccedilatildeo abril2018

ESTUDOS LITERAacuteRIOS ndash vol 25 n 40

DOSSIEcirc LITERATURA E INTERMEDIALIDADE

A letra eacute sempre uma instacircncia ambiacutegua a meio do caminho entre o descarnado som e o corpoacutereo traccedilo graacutefico Se tal ambivalecircncia nos escapa na maioria das interaccedilotildees por meio da liacutengua na poesia a cintilaccedilatildeo entre o focircnico e o visual ndash os principais dois canais da experiecircncia humana no mundo ndash ganha novas dimensotildees na medida em que o a poesia (e a literatura por extensatildeo) eacute a instacircncia por excelecircncia do riacutetmico e da imaginaccedilatildeo (aqui entendida na polissemia do termo) Do conceito de imagem poeacutetica agrave possibilidade de perceber a imagem como poesia multiplicam-se os regimes semioacuteticos e as dimensotildees fenomenoloacutegicas que podem confluir na imaginaccedilatildeo literaacuteria literatura e pintura literatura e cinema literatura e fotografia entre tantos outros diaacutelogos intermidiaacuteticos que tomem como ponto de inflexatildeo a visualidade artiacutestica no literaacuterio Nesse contexto interessam agrave presente chamada artigos que versem sobre a literatura sob perspectivas de intertextualidade intermedialidade remediatizaccedilatildeo iconicidade ekphrasis vanguardas e experimentalismos interartesPalavras-chave Literatura intermedialidade visualidade diaacutelogos intersemioacuteticos

OrganizadoresViniacutecius Carvalho Pereira (Universidade Federal de Mato Grosso)Joana Matos Frias (Universidade do Porto)

Prazo para encaminhamento 30 de marccedilo de 2018Publicaccedilatildeo dezembro2018

Artigos das aacutereas de estudos linguiacutesticos e literaacuterios que natildeo apresentem temaacuteticas relativas aos dossiecircs poderatildeo ser aceitos para publicaccedilatildeo na seccedilatildeo OUTROS LUGARES Poemas e contos aceitos seratildeo publicados na seccedilatildeo NEOFONIAS

Polifonia - Chamada de Artigos

Instruccedilotildees aos autores para publicaccedilatildeo de artigos no perioacutedico Polifonia

Os trabalhos deveratildeo ser submetidos por meio do Sistema de Editoraccedilatildeo Eletrocircnico de Revistas (SEER) do perioacutedico Polifonia Para a primeira submissatildeo eacute necessaacuterio fazer o cadastro no Sistema como autor por meio do link httpperiodicoscientificosufmtbrojsindexphppolifoniauserregister

ATENCcedilAtildeO Ao preencher o cadastro inserir obrigatoriamente um breve curriacuteculo no campo especiacutefico informando instituiccedilatildeo de origem cargos acadecircmicos se o artigo resulta de projeto de pesquisa se eacute financiado entre outras informaccedilotildees consideradas relevantes e que tenham relaccedilatildeo com o conteuacutedo do artigo

Apoacutes o cadastro o usuaacuterio estaraacute habilitado para submeter seu artigo acessando o link httpperiodicoscientificosufmtbrojsindexphppolifoniaauthorsubmit1

Duacutevidas polifoniaufmtbr ou atendimentoeditorasustentavelgmailcom

O conteuacutedo dos artigos eacute da inteira responsabilidade de seus autores

Formataccedilatildeo dos artigos e resenhas

Artigos e resenhas devem ser submetidos em formato doc em paacutegina tamanho A4 com tiacutetulo sem o nome do(s) autor(es) para garantir a avaliaccedilatildeo agraves cegas A identificaccedilatildeo do autor seraacute feita no momento da submissatildeo por meio do preenchimento do devido campo no Sistema (SEER)

Artigos e resenhas deveratildeo ser adequados agraves normas da ABNT e ao novo acordo ortograacutefico bem como agraves instruccedilotildees aos autores previstas neste edital antes da submissatildeo podendo ser desconsiderados se natildeo atenderem a essas condiccedilotildees

Dimensotildees o artigo deveraacute ter de 12 a 15 paacuteginas (incluindo as referecircncias) a resenha deveraacute ter de 03 a 05 paacuteginas Fonte Times New Roman tamanho 12 espaccedilo entre linhas 15

Tiacutetulo em portuguecircs inglecircs e espanhol fonte Times New Roman tamanho 16 alinhado agrave direita

Apoacutes o aceite do artigo ou da resenha na revisatildeo final colocar nome do(s) autor(es) com as iniciais maiuacutesculas dois espaccedilos abaixo do tiacutetulo Abaixo do(s) nome(s) colocar a(s) instituiccedilatildeo(otildees) agrave(s) qual(is) se vincula(m) por extenso

Resumo

A palavra ldquoresumordquo deveraacute ser colocada com a inicial maiuacutescula acima do conteuacutedo do resumo centralizada

Polifonia - Chamada de Artigos

Para a preparaccedilatildeo do resumo miacutenimo de 100 e maacuteximo de 250 palavras espaccedilo 10 fonte Times New Roman tamanho10 O resumo deveraacute ser conciso claro coeso e completo apresentando tema da pesquisa principais objetivos metodologia utilizada principais descobertas do estudo principais conclusotildees

Natildeo inserir nomes de autores e datas no resumo Natildeo colocar o artigo como sujeito personificado Ex ldquoeste artigo refleterdquo ldquoeste artigo desenvolverdquo Ao inveacutes usar 1ordf ou 3ordf pessoa Ex ldquoNeste artigo faremosrdquo

Palavras-chave

Expressatildeo escrita com inicial maiuacutescula apoacutes o resumo Deveratildeo ser escritas trecircs palavras-chave em letras minuacutesculas separadas por viacutergula e encerradas por ponto final

O resumo e as palavras-chave deveratildeo constar em portuguecircs inglecircs e espanhol e seguir as mesmas normas

Dar dois espaccedilos apoacutes as palavras-chave antes do tiacutetulo das seccedilotildees Dar um espaccedilo de 15 antes e depois de cada tiacutetulo das seccedilotildees e subseccedilotildees

ATENCcedilAtildeO as resenhas natildeo deveratildeo ter resumopalavras-chave

Tiacutetulos das seccedilotildees e subseccedilotildees

Numeradas fonte Times New Roman tamanho14 primeira letra maiuacutescula e demais minuacutesculas Caso o tiacutetulo seja longo com mais de uma linha colocar espaccedilo 10 entre essas linhas

Caso haja necessidade de destacar algum termo no texto e palavras estrangeiras fazecirc-lo apenas em itaacutelico Palavras expressotildees retiradas de textos teoacutericos e literaacuterios e usadas nas anaacutelises etc deveratildeo ser colocadas entre aspas

O artigo deveraacute ter introduccedilatildeo desenvolvimento (seccedilotildees e subseccedilotildees) consideraccedilotildees finais e referecircncias

Tabelas e quadros

O conteuacutedo deve ser colocado em fonte Times New Roman tamanho10 espaccedilo simples Legendas fonte Times New Roman tamanho10 espaccedilo simples imediatamente abaixo do elemento que referecircncia

Citaccedilotildees

Com mais de trecircs linhas deveratildeo ser recuadas em 4 cm da margem esquerda Times New Roman alinhamento justificado espaccedilo 10 fonte 10 sem itaacutelico sem aspas seguida da indicaccedilatildeo bibliograacutefica Ex (CHAUI 2002 p 57)

Polifonia - Chamada de Artigos

Citaccedilatildeo com ateacute trecircs linhas

Sem recuo no proacuteprio corpo do texto entre aspas seguida da indicaccedilatildeo bibliograacutefica (CHAUI 2002 p 57)

Citaccedilotildees em outras liacutenguas

1 De fragmentos teoacutericos o autor poderaacute fazer a traduccedilatildeo no proacuteprio corpo do texto seguida da referecircncia bibliograacutefica e da observaccedilatildeo ldquoTraduccedilatildeo nossardquo Ex (FESTINO 2008 p 12 Traduccedilatildeo nossa)

2 Poderaacute tambeacutem caso queira colocar o fragmento na liacutengua original em rodapeacute com a expressatildeo Cf o trecho original e inserir o texto entre aspas

3 De fragmentos literaacuterios o autor poderaacute fazer a traduccedilatildeo no proacuteprio corpo do texto seguida da referecircncia bibliograacutefica e da observaccedilatildeo ldquoTraduccedilatildeo nossardquo

Ex (CONRAD 1994 p 22-24 Traduccedilatildeo nossa) O autor obrigatoriamente deveraacute colocar o fragmento na liacutengua original em rodapeacute com a expressatildeo Cf o trecho original e inserir o texto entre aspas

Notas explicativas

Evitar notas de rodapeacute Se muito necessaacuterias colocaacute-las ao final da paacutegina Referecircncias bibliograacuteficas devem ser apresentadas no proacuteprio texto Ex (ANDRADE 1980 p 7)

Referecircncias

Usar soacute a palavra ldquoReferecircnciasrdquo (soacute a inicial maiuacutescula) Devem ser apresentadas nas referecircncias somente as obras que foram efetivamente citadas no texto Quando citados no corpo do texto os tiacutetulos das obras devem ser colocados em itaacutelico Cada referecircncia deve ser formatada em espaccedilo entre linhas 10 Colocar espaccedilo 10 entre uma referecircncia e outra

Para referecircncias de entrevistas consultar a ABNTNBR 10520 Informaccedilatildeo e documentaccedilatildeo ndash citaccedilotildees em documentos ndash apresentaccedilatildeo Rio de Janeiro 2002b

As Referecircncias devem ser dispostas em ordem alfabeacutetica ao final do texto seguindo a NBR 6023

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Alguns casos de maior ocorrecircncia

LIVRO

GOMES LGFF Novela e sociedade no Brasil Niteroacutei EdUFF 1998

Quando necessaacuterio acrescentam-se elementos complementares agrave referecircncia para melhor identificar o documento

GOMES LGFF Novela e sociedade no Brasil Niteroacutei EdUFF 1998 (Coleccedilatildeo Antropologia e Poliacutetica 15) ISBN 85-228-0268-8

ARTIGO EM PERIOacuteDICO

ANDREacute RML LACERDA PO O catildeo e o homem no romance Los perros hambrientos de Ciro Alegria Polifonia Cuiabaacute n 20 p151-173 2009

CAPIacuteTULO DE LIVRO

SANTAELLA L A criacutetica das miacutedias na entrada do seacuteculo 21 In PRADO J L A (Org) Criacutetica das praacuteticas midiaacuteticas da sociedade de massa agraves ciberculturas Satildeo Paulo Hacker Editores 2002 p 44-56

TRABALHO APRESENTADO EM EVENTO

BRAYNER A R A MEDEIROS CB Incorporaccedilatildeo do tempo em SGDB orientado a objetos In SIMPOacuteSIO BRASILEIRO DE BANCO DE DADOS 9 1994 Satildeo Paulo Anais Satildeo Paulo USP 1994 p16-29

DISSERTACcedilAtildeO OU TESE

COX M IPJe est unmot drsquoordre escritas em torno de sujeito linguagem e educaccedilatildeo 1989 196f Tese (Doutorado em Educaccedilatildeo) ndash Universidade Estadual de Campinas Campinas SP 1989

DALATE S A escritura do silecircncio uma poeacutetica do olhar em Wlademir Dias Pino 1997 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras) ndash Faculdade de Ciecircncias e Letras Universidade Estadual de Satildeo Paulo Assis SP 1997

DOCUMENTO COM AUTORIA DE ENTIDADE

BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil) Relatoacuterio da Diretoria-Geral 1984 Rio de Janeiro 1985 40p

OBRAS CONSULTADAS ON LINE colocar informaccedilotildees sobre o endereccedilo eletrocircnico apresentado entre os sinais ltgt precedido da expressatildeo ldquoDisponiacutevel emrdquo e a data de acesso ao documento precedida da expressatildeo ldquoAcesso emrdquo opcionalmente acrescida dos dados referentes a hora minutos e segundos Exemplos

ALVES C Navio negreiro (1869) Virtual Books 2000 Disponiacutevel em lthttpvirtualbooksterracombrfreebookportNavio_Negreirohtmgt Acesso em 10 jan2002

Polifonia - Chamada de Artigos

Obs haacute necessidade de colocar o ano Se natildeo houver coloca-se um provaacutevel [193]ou apenas o seacuteculo [19]

RIBEIRO PSG Adoccedilatildeo agrave brasileira uma anaacutelise soacuteciojuriacutedica Dataveni Satildeo Paulo ano 3 n18 ago1998 Disponiacutevel em lthttpwwwdataveniainfbrframeartightml gt Acesso em 10 set 1998

Satildeo permitidas imagens No caso de fotografias deve-se anexar o nome do fotoacutegrafo e autorizaccedilatildeo dele para publicaccedilatildeo aleacutem da autorizaccedilatildeo das pessoas fotografadas

Normas para a preparaccedilatildeo dos trabalhos em viacutedeo (libras)

1 Na modalidade viacutedeo natildeo haacute necessidade de apresentar uma traduccedilatildeo integral do texto escrito O autor tem autonomia para apresentar o seu trabalho utilizando como recurso linguiacutestico a sua liacutengua materna a estrutura linguiacutestica e gramatical da LIBRAS

2 Os viacutedeos poderatildeo ser gravados pelo autor ou por terceiros

3 Os viacutedeos natildeo poderatildeo apresentar propagandas de instituiccedilotildees produtos eventos e outros As filmagens deveratildeo ser feitas com fundo exclusivamente verde

4 Caso a pesquisa tenha mais de um autor todos poderatildeo compor o viacutedeo

5 A vestimenta de quem faraacute a apresentaccedilatildeo deveraacute ser obrigatoriamente de cor que tenha contraste com a tonalidade da sua pele e tambeacutem deveraacute ser monocromaacutetica

6 Dado o seu caraacuteter cientiacutefico a filmagem deveraacute contemplar o acircngulo da cabeccedila ateacute a cintura do apresentador

7 Ao final da gravaccedilatildeo natildeo haacute necessidade de apresentar as referecircncias bibliograacuteficas pois estas jaacute estaratildeo constando no texto escrito

  • Polifonia Cuiabaacute-MT v 24 nordm 36 (jul-dez 2017)
  • Sumaacuterio
  • Apresentaccedilatildeo
  • Dossiecirc Estaacutegios Supervisionados em Literatura Literatura nos Estaacutegios Supervisionados
    • Autor e leitor identidades do professor de Literatura em formaccedilatildeo ndash experiecircncias com o estaacutegio supervisionado em Letras
      • Ana Creacutelia Penha Dias
      • Andreacute Luiacutes Mouratildeo de Uzecircda
      • Maria Coelho Araripe de Paula Gomes
        • Leituras de ldquoA flor e a naacuteuseardquo de Carlos Drummond de Andrade em praacuteticas de Estaacutegio Supervisionadoem Liacutengua Portuguesa
          • Diogo dos Santos Souza
          • Eliana Kefalaacutes de Oliveira
            • Cenas da formaccedilatildeo de professores de liacutengua e literatura no curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ)
              • Marcos Scheffel
                • Estaacutegio supervisionado em Letras da UFGD mediando leituras e formando leitores
                  • Alexandra Santos Pinheiro
                    • O Estaacutegio Supervisionado em Letras no vieacutes administrativo-pedagoacutegico
                      • Flaacutevia Girardo Botelho Borges
                        • Estaacutegio Supervisionado em Literatura um relato de experiecircncia na UTFPR ndash Curitiba
                          • Mirelle Mussi Giri
                          • Alice Atsuko Matsuda
                              • Outros lugares
                                • Interdiscursividade e intertextualidade a constituiccedilatildeo dos sentidos do dizer no universo autoral
                                  • Terezinha Maia Martincowski
                                    • ldquoMito biograacuteficordquo e ldquoficccedilatildeo familiarrdquo em Borges e Calvino
                                      • Maria Elisa Rodrigues Moreira
                                        • Sobre o amor e a incapacidade de amar
                                          • Dionei Mathias
                                            • Marcel ProustHonoreacute de Balzac a Meacutelange de uma Narratividade
                                              • Aguinaldo Joseacute Gonccedilalves
                                                • Acerca da ekphrasis numa passagem do Clarimundo de Joatildeo de Barros cena de pictoacuterico heroiacutesmo
                                                  • Flaacutevio Antocircnio Fernandes Reis
                                                      • Entrevista
                                                        • Literatura e Ensino Entrevista com Joseacute Augusto Cardoso Bernardes
                                                          • Por Marinete Luzia Francisca de Souza
                                                              • EDITAL DE CHAMADA DE ARTIGOS 2018
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