eisenberg - 2000 - as missões jesuíticas e o pensamento político moderno

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] OSÉ EISENB ERG ,. I c O I SBD-FFLCH-USP 1111111111111111111111111111111111111111 303741 Belo Horizont e Editora UFMG 2000

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Eisenberg - 2000 - As Missões Jesuíticas e o Pensamento Político Moderno

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  • ] OS EISENB ERG

    ,. I

    A~ MI~~Oc~ JC~UITICA~ c O I

    ~cN~AMcNTO ~OliTICO MODc~NO cNCONT~O~ CUlTU~AI~, AYcNTU~A~ H~ICA~

    SBD-FFLCH-USP

    1111111111111111111111111111111111111111 303741

    Belo Horizonte Editora UFMG

    2000

  • A G R A D E c M E N T O S

    Este livro uma verso traduzida e revisada de minha tese de doutoramento em Cincia Poltica, defendida na City University of New York (EUA), em abril de 1998. Agradeo aos professores Marshall Berman, Kenneth Paul Erickson e Ralph Della Cava, membros da banca examinadora, os comen-trios e crticas que muito ajudaram na reviso do texto. Com os meus orientadores Melvin Richter e David Kettler tenho uma dvida ainda maior. A eles sou grato pelas leituras rigo-rosas e pela dedicao.

    Devo ao amigo Joo Feres Jr. um agradecimento especial pelos debates constantes e pelo desafio da traduo do manuscrito original.

    Muitos outros amigos e colegas me apoiaram e contriburam para a realizao deste livro. Entre eles, agradeo ao amigo Simon Middleton, pela companhia de um historiador e, em especial, pela semana de trabalho coletivo nas nossas respectivas teses em Londres; aos interlocutores e amigos Steve James, Roland Marden, Peter Bratsis e Andrew Lawrence, pelos momentos descontrados em que se dispuseram a discutir as minhas idias; e a Heloisa Starling, pelo apoio desde o meu retorno ao Brasil.

    Finalmente, registro tambm o apoio logstico e financeiro de diversas instituies: o programa de Ph.D. em Cincia Poltica da City University of New York (CUNY), o Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), o Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI) em Roma, a Biblioteca Nacional e o Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa, a Woodrow Wilson Foundation e o Departamento de Cincia Poltica da UFMG.

    A dvida maior, porm, com Zena, Rosa, e, em especial, com a Vi. No haveria livro nem autor sem o carinho dessas pessoas.

  • s u

    CAPTULO

    CAPTULO II

    CAPTULO III

    CAPTULO IV

    M R

    NOTA DO AUTOR

    INTRODUO

    NOSTER MODUS PROCEDEND!

    A Companhia de jesus: uma Anlise In stit ucional A Instituio Epistolar Jesutica

    OS ENCONTROS DO NOVO MUNDO O CASO BRASILEIHO

    A fundao das Misses no Hrasil A Palavra A Cura Para Alm da Palavra e da Cura'

    A REfORMA DAS MISSES

    o

    li

    13

    27

    31 46

    59 61 65 76 85

    89 O Dilogo sobre a Converso do Gentio 9 2 O Pla11o Civilizador I 09 Medo e Consentimento no Estado de Natureza 116

    A ESCRAV IDO VOLU NTRIA DOS NDIOS I 2 5 A Implantao da Heformct e o Crescimento da Compan hia de Jesus no Brasil I 2 7 A justificao da Escravid o no Direito Natu ral Tomista O Debate Caxa uersus lVbrep,a O Co nceito Subjetivo de Direito

    CONCLUS O NOTAS

    135 139 158

    I(7

    173

  • BI BLI OG RAFIA 191

    Al' f:N DI CES 217

    1. Tabela Crono lgica: os jcsuu s, as 1\l isses e o Direito Na tur:d To mista 21 7

    2. Di logo sobre a C011\'ers~ o do Ge ntio d o 1'. Ma nu e l d a Nbrega 2 22

    3. Pla no Civi lizador: Carta d o 1'. Man ue l da Nbrega ao 1'. :VIigucl de Torres, Lisboa 2 3 8

    4. Respos tas do P. Manuel da Nb rega ao P. Q uircio Caxa, Baa 24 7

    N o T A D o A u T o R

    As seguinte s abreviaes so utilizadas p a ra as fontes prim-rias usadas nes te li vro :

    MI3II-45

    Lus.32

    Bras.5

    AN-33

    Monumenta Brasiliae, quatro volumes, editado por Se rafim Leite , S.J, Monumenta Historica Societatis Iesu , 1938-1950. MBII- 45 indi c a volume II , ca rta nmero 45.

    Ma nuscritos elo Archivum Ro manum Societatis Jesu (ARSI). Livros conte ndo cartas de Portugal ( Lusitania). O nmero indica o volume do livro. Manu scritos elo Archivum Ro manum Societatis Jesu (ARSI) . Livros contendo ca rta s elo Brasil. O nme ro indica o volume do li v ro.

    Anchieta, Jos de. Cm1as, Informaes, Fragmentos Histric os e Sermes (1554-1594). Alcntara Machado (Ecl.), Civilizao Bras il e ira S.A., Rio de Jane iro, 1933. O nmero indica o nmero da carta.

  • N T R o D u o

    Em 1556, q uando Manuel da N brcga reto rnou a Bahia para en contrar-se co m Mem de S, o esq uadro do novo governador-geral do Brasil ainda no havia chegado Col nia. Doente c ca nsado da viage m, N brcga decidiu esperar pe la chegada de Mem de S em uma misso jesutica nas imediaes da capita l da Co l nia, um luga r chamado Rio Ve rmelho . L , enquanto descansava , ps-se a escreve r um di logo socrtico discutindo os dile mas enfrentados p e lo e mpreendimento jesutico de co nve rso do gentio. J havia uma dcada qu e os padres d a Co mpanhia de Jesus tinham chegado Colnia , e, quela altu ra, Nbrega encontrava-se pessimista com relao ao sucesso de sua misso. Mas a expe ri ncia dos ltimos an os em So Vi cente, e m companhia do hbil miss io nrio Jos de Anchieta , serviu de inspirao para reformar o empreendi-mento d a con ve rso do gentio. O di logo q ue N brega escrevia em Rio Vermelho visava justificar teologicamente aquel a reforma e , ao defronta r-se co m os princpios da doutrin a tomista, q ue orientava a teo log ia jesuta, encontrou uma maneira de explicar aos seus su perio res como a sua idia conformava q ueles princpios.

    Restava agora convencer as autoridades seculares da Coroa Portuguesa a part iciparem daquela reforma . Pro ib ido anteri or-mente de comuni ca r-se diretame nte com a Coroa , Nbrega escreve um a ca rta a se u superio r e m Po rtu ga l, na esperana de que e la fosse mostrada s a uto ridades secul ares Nela

    . '

    explica como o rganizar uma nova institu i o missionria, a Aldeia , e como deveria funcionar: os papis q ue deveriam ser des e mpe nh ad os pelos padres da Com panhia e pelas autoridades co lo ni ais , a proteo qu e seri a dada aos ndios contra os ataq ues dos colonos , e a polc ia cri st (termo qu e naquela poca de notava o co njunto de cos tumes mo rais dos cri stos e urop eus) q ue se ria ensinada aos ndios .

  • O plano da reforma vingou, e diversas Aldeias foram institudas na Bahia e em outras misses da Colnia. Com isso, o grau de proteo aos ndios contra as investidas escravagistas dos colonos aumenwu ; mas alguns anos mais tarde , um jovem jesuta recm-chegado Colnia desafiou Nbrega com um problema jurdico no qu al ele ainda no havia pensado: e se os ndios quisessem vender a sua liberdade e tornarem-se escravos dos colonos? Poderiam os nativos fazer uma opo pela servido voluntria? No debate sobre a questo, o jovem jesuta defende este direito dos ndios com um argumento simples porm ousado: os ndios so donos da sua liberdade, e p odem vend-la, se assim o desejarem. Nenhum telogo tomista havia apresentado este argumento at ento; dcadas mais tarde, porm, ele se tornaria uma das principais contribuies da teoria poltica jesutica s fundaes do pensamento poltico moderno.

    Assim como os dominicanos, os jesutas eram parte integrante da seconda scholastica, um movimento teolgico quinhentista que visava o aggiornamento da teologia de So Toms de Aquino para enfrentar os desafios da Reforma Protestante. Diferente dos dominicanos, no entanto, os telogos jesutas da Pennsula Ibrica ousaram reinterpretar o tomismo, levando-os a realizar algumas das mais importantes mudanas conceituais na teologia moral e no pensamento poltico-tomista.

    Desta maneira , este livro tentar mostrar que as misses jesuticas do Novo Mundo formam o contexto histrico e intelectual do desenvolvimento do pensamento poltico-jesutico do incio da era moderna. Nos trs documentos mencionados anteriormente, v-se que uma primeira gerao de missionrios no Brasil buscava definir novas estratgias de justificao que os permitissem adaptar e alterar a doutrina religiosa na qual haviam sido educados para os fins prticos de seu empreendimento no Novo Mundo. Estas estratgias de justificao, veremos, j continham as mudanas conceituais mais tarde sistematizadas por telogos na Europa.

    A metodologia contextualista desta obra tem como principal referncia os escritos de Quentin Skinner e ].G.A. Pocock. Essa nova abordagem vem se tornando largamente aceita como um meio efetivo de se estudar idias no contexto histrico e retrico em que foram produzidas. De acordo com Skinner e Pocock , textos tericos so escritos por pessoas movidas por

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    intenes, e a produo de novas idias deve portanto ser compreendida como um ato comunicativo atravs do qual o auror se dirige a uma audincia, em um determinado contexto que , ao mesmo tempo, histrico e lingstico. O resultado desta premissa um contextualismo focado no carter pragmtico de teorias e conceitos, dando nfase conexo entre as linguagens da poltica de um determinado perodo histrico e as mudanas conceituais que so sistematizadas nas doutrinas tericas emergentes naquele perodo. 1

    Muitos crticos argumentam que o mtodo de Skinner e Pocock apresenta srias limitaes para a compreenso do surgimento de idias em seus contextos histricos. Em uma coletnea organizada por James Tully, o mtodo de Skinner criticado por no especificar qual a relao existente entre os fatos polticos do contexto histrico estudado e os tratados tericos que emergem naquele perodo. As crticas mais contundentes, porm, vm daqueles que condenam Skinner por desviar o debate metodolgico da discusso sobre os problemas concretos de se escrever uma "histria das idias em seu contexto" para as questes mais remotas relativas teoria dos aros de fala. Skinner remete ao conceito de ato de fala elaborado por John Austin para argumentar que cada proferimento um lugar potencial para a ocorrncia de uma mudana conceituai. Se por um lado a tentativa de Skinner de fundamentar sua abordagem neo-historicista, atravs de uma apropriao da filosofia da linguagem de Austin, tem criado mais problemas do que solues para o entendimento da sua posio metodolgica- especialmente em um contexto intelectual de historiadores das idias pouco familiarizados com a filosofia da linguagem contempornea -, por outro, isso no significa que as questes levantadas pelo autor sejam de todo irrelevantes . Se quisermos discorrer sobre a maneira como conceitos polticos se transformam, precisamos funda-mentar a abordagem em uma interpretao sistemtica do uso da linguagem em contextos pragmticos. 2

    Um outro problema do mtodo proposto por Skinner e Pocock est na aplicao que fazem dele. Em suas obras de histria do pensamento poltico, Skinner limita-se a analisar os grandiloqentes tratados sistemticos de autores de um cnone expandido do pensamento poltico moderno. Mais meticuloso que Skinner, Pocock apresenta uma distino

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  • entre textos polticos primrios e secundrios, evitando assim a confuso entre o discurso prtico de atares em encruzilhadas polticas da hist ri a social, c o discurs o sistematizado de tericos escrevendo doutrina poltica. Por m, como Skinner, Pocock acaba d and o pouca ateno aos textos secundrios em seus trabalhos ele histria do pensamento poltico, priori-zando os "grandes" tratados consagrados pela tradio. l Outros pesquisadores tambm tm produzido judiciosas monografias sobre a histria do pensamento poltico, assim como boas anlises da histria de conceitos especficos o u da obra de determinados autores. Na produo resul tante desta nova abordagem metodolgica, no entanto, a transformao de instituies sociais -a principal chave para a compreenso de mudanas na vida poltica das sociedades mode rnas - c a transformao na justificao dessas instituies - o ponto crucial para a compreenso da transformao conceituai operada por atorcs polticos - so linhas paralelas que se encontram na participao efctiva de determ inados tericos nos eventos polticos de seu tempo. A narrat iva se desenrola em retrospectiva da histria de vida do autor cm questo, e as mudanas conceituais sistematizadas em se us textos so interpretadas como arroubos criativos, frutos da inteno autoral, atravs dos quais o autor reOete sobre os aconteci-mentos ao seu redor e escreve nas linguage ns polticas de sua poca. No acidental a preferncia de Skinner, Pocock e seus seguidores pelo estudo do republicanismo do incio da idade moderna pois, afinal, esses autores republicanos eram, ao mesmo tempo, tericos e agentes engajados na poltica de seu tempo.

    Partimos da hiptese metodolgica de que a histria das linguagens da teoria poltica moderna , encadeada na sistema-tizao doutrinria daqueles autores que vieram a constituir o cnone do pensamento poltico , no capaz de explicar, sozinha, como mudanas conceituai s oco rrem e porque determinadas idias adquirem proeminncia. necessrio entendermos como conceitos so descartados ou modificados antes de serem inco rporados por teorias po lticas e sistemati-zados em doutrina. Ao agir no interior de certos contextos institucionais, atares polticos so obrigados a explicar o porqu de suas aes, os seus motivos e, nesse processo, acabam por just ifica r o abandono de teo rias es tabelecidas

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    ou, s vezes, a adapta o das mesmas aos problemas prticos uc enfrentam. Se aceitamos o postulado da abordagem de

    ;kinncr c Pocock de que teorias devem ser entendidas como prticas sociais, e~t~o temos que estudar as conexes ~ntre estas teorias e as pratlcas chscurs1vas onde mudanas conce1tuaJs cfetivamentc ocorrem, quais sejam, prticas de justificao de agentes polticos. preciso, portanto , distinguir o pensamento poltico sistemtico das prticas discursivas que mobilizam teorias para justificar aes c decises .

    ~!udana co nce itu a i deve ser entend ida como o resultad o altamente imaginativo do processo pelo qual agentes polticos tent a m reso lve r os problemas que e ncon tram ao tentarem entender c tra nsfo mar o mundo ao seu redor ... Teorias , po r outro lado , devem se r entendidas como te ntati vas racionais e intencionais de se resolver proble mas prticos e especulativos gerados por opinies polticas, aes e prticas. i

    Agentes polticos raramente podem permanecer calados, o que faz da produo de justificaes um a atividadc comple-mentar necess ria sua ao. Alis, p odemos di ze r que este imperativo da justificao o que diferencia a ao poltica de outros tipos de ao social. s vezes, estas justificaes no passam de desculpas grosseiras que mal dissimulam os interesses do agente; outras vezes, por m, a justificao pode assumir formas mais sofisticadas, como, por exemplo, mximas adaptadas de a lguma viso de mundo moral ou religiosa.

    Como observa o crtico literrio Kenneth Burke, as unidades de toda prtica de justificao so motivos atribudos pelos atores s suas aes.

    As formas bsicas elo pensamento ... , de acordo com a natureza do mundo necessa riamente experimentada por todos os homens, so me lho r obse rvadas no ato de a tribuio de mo tivos . Essas fo rmas de pensamento podem ser utili zadas de maneira profunda ou superficial, na ve rdade ou na mentira. Elas podem ser encontradas tanto em sofisticadas est ru turas metafsicas como cm julgamentos morais, na poesia e na fico, nos tratados cientficos e na filosofia poltica, nas notc ias dos jornais e nos mexeri cos do dia-a-dia 5

    f No h como negar que a criatividade de tericos uma onte Importante de mudanas conceituais nas lin guagens da

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  • teoria poltica; mas muitas vezes estas mudanas j ocorreram nas prticas de justificao de agentes polticos, e ao autor que escreve um tratado de teoria poltica cabe somente sistematiz-las na forma de doutrina coerente. A produo de teoria poltica deve ser entendida, portanto, dentro do contexto das linguagens de justificao articuladas por agentes que viveram antes e durante o prprio tempo de vida do autor. Freqentemente, novas maneiras de se falar de poltica nascem nesse nvel intermedirio de reflexo e, se queremos explicar mudanas conceituais, no p o demos estudar nica e exclusivamente as obras dos tericos ilustres e suas sistemticas teorias polticas.6

    Ao analisar as justificaes polticas e teolgicas contidas nas cartas da primeira gerao de missionrios jesutas no Brasil (1549-1610) , este livro busca estabelecer um novo conjunto de investigaes histricas proporcionadas pelo uso dessa inovao metodolgica. A interpretao das idias desses missionrios, no contexto prtico de estratgias de justificao em que estiveram envolvidos, revela uma interessante conexo com as bases de teorias subseqentemente importantes, refinadas e sistematizadas pelos telogos da Companhia de Jesus em universidades europias.

    Restringimo-nos aqui a duas mudanas conceituais de crucial importncia para a compreenso das fundaes do pensa-mento poltico moderno. A primeira corresponde justificao da legitimidade do poder poltico pelo consentimento. Elemento central das teorias jusnaturalistas do contratualismo, a legiti-mao da autoridade pelo consentimento j a parece em obras de padres dominicanos da primeira metade do sculo XVI como Francisco de Vitoria. Com Thomas Hobbes, no incio do sculo XVII, esta teoria ganha um novo contorno quando o autor britnico outorga ao sentimento do medo um papel central na produo do consentimento que legitima a autori-dade. Como veremos, no entanto , antes de Hobbes , telogos da Companhia de Jesus - em particula r, o telogo espanhol Juan de Mari a na - j haviam introduzido esta mudana conceituai em seus tratados de direito natural. Mostraremos neste livro que antes mesmo do telogo jesuta Juan de Mariana ter sistematizado essa idia em seu De Rege et Regi bus Institutione (1599), os missionrios no Brasil j a haviam formulado para justificar a reforma proposta por Nbrega e sua nova forma de governo (dominium) sobre os ndios do Novo Mundo.

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    j\ssim como Mariana faria dcadas mais tarde, os missionrios jesutas do Brasil definiram o consentimento dos governados, gerado pelo medo , como a fonte de legitimidade do poder dos governantes.

    A segunda mudana conceituai que ser analisada neste livro o surgimento do conceito de dire ito subjetivo. No jusnaturalismo medieval, direitos (ius) eram interpretados como um conjunto de atributos da condio humana, resultantes da graa divina que eram, por esse motivo, inalienveis. No jusnaturalismo do sculo XVII, no entanto, especialmente a partir de Hugo Grotius, o conceito de direito sofre uma transformao cujas origens tambm p o de m ser atribudas a um telogo da Companhia de Jesus, Lus d e Molina. De maneira anloga primeira mudana descrita acima, os missio-nrios jesutas no Brasil articularam esse conceito muito antes de Lus de Molina t-lo incorporado ao seu famoso tratado de direito natural, De Iustitia et Jure 0592-1593). Visando a justificao da escravizao voluntria dos ndios, os missio-nrios substituram a interpretao dominicana do direito natural - segundo a qual direitos naturais so ddivas divinas inalienveis - pelo conceito de direito subjetivo, definindo-o

    c~mo uma faculdade humana (facultas) que a pessoa pode alienar segundo a sua vontade. 7

    A origem dessas duas mudanas conceituais usualmente a~ibuda a rupturas filosficas mais gerais, ou ainda, mas nao menos abstratamente, a correlaes entre interesses s.ociais e tendncias polticas. Contrrio a esse tipo de genera-lizaes o me' t d d

    , o o emprega o nesse estudo aborda prticas concretas em contextos institucionais determinados para

    demo~strar a gnese histrica das mudanas conceituais na empreitada catequizadora dos jesutas no Novo Mundo. Para tanto ser nec ' C _' essano pnmetro entendermos porque os jesutas

    ~ nao outras ordens religiosas com empreendimentos missio-nanos no N M d )

    I, . ovo un o perpetraram tais mudanas na teoria

    po lttca tomist c -d a. omo veremos no Capitulo I a especificidade 0 empreendin t - '

    "n 1en o JeSuita era aquilo que e les chamavam de osso modo d e d " d prud~ . proce er , uma ialtica e ntre obedincia e

    es . ~neta resultante dos elementos voluntarsticos da doutrina Plrltua] de In . d L I s . . este cto e oyo a. Do ponto de vtsta Institucional

    modo de proced . , . . l. ' con er JeSuttico tmp tcava na comunicao stanre entre os - -mtss10nanos JeSuttas espalhados por todo

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  • o mundo c seus supe ri o res, algo somen te possvel atravs de uma prolfi ca e peridi ca circulao de cartas regulada pela "institui o e pistolar", o principal inst rumento dos jesutas para a organizao c controle das ati vidades da o rdem . Foi no seio dessa in stituio epistolar qu e os jesutas fo rmularam justificativas para suas estratgias missionrias c suas atividades polticas, e nela testemunhamos as mudanas conceituais que sero aqui analisadas.

    No Captulo II, discutiremos o contexto sc io-histrico que originou as novas prticas de justificao dos missionrios no Brasil, ou seja, os "encontros do Novo Mund o". Especialmente a partir de 1992 , com a comemorao do quinto centenrio da primeira viagem de Colombo ao continente, esta expresso vem ganhando no to ri edade , substituindo p a lav ra s como "descoberta" e ''conqu ista ", denotando assim uma certa simetria e intercmbio cu ltural entre os agentes envo lvidos naqueles evcntos.9 Por m, a maio r parte elos estudos sobre os encontros culturais entre jes utas e nativos elo Novo Mundo analisa as misses elo sculo XVII, em especial as famosas reducciones paraguaias. Grandes comunidades de ndios Guarani, gover-nados por padres jesutas segundo um sistema poltico e econmico peculiar, as reduccones tm s ido erroneamente identificadas por muitos como "democrticas" o u "comunistas". At mesmo a uto res distantes ela temtica jesutica como Marx e Bakunin no escapa ram a esta mi stificao das misses jesuticas no Paraguai. 10 Mas ainda que houvesse algo de raro na concepo poltica das reducciones paraguaias, elas no eram nem d emoc rticas, nem comunistas . O sistema de governo naqu eles povoados aproximava-se mais a um pater-nalismo benevo le nte, e o sistema econm ico, mesmo que organizado p ara o benefcio dos nativos, no e ra baseado na propriedade coletiva, pois o ttul o el e propriedade era da Igreja e no elos ndios.

    Os motivos des ta mitificao das misses jesuticas no Paraguai so, na maioria das vezes, anlises mal concebidas que no conseguem capturar o objeto em seu contexto histrico, qual seja, as experi ncias anteriores dos jesutas no Novo Mundo, em particular a experi ncia das misses no Brasil do sculo XVI. Situadas neste contexto, as instituies polticas adoradas nas reducciones adquire m o aspecto de um dese nvolvimento histrico coerente, sem o colorido extico produzido por sucessivas mitificaes.

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    veremos tambm no Captulo II, que os encontros do Novo rundo levaram os jesutas no Brasil a escreve r etnografias ~obre 0 ndio Tupi, com a finalidad e de justi fica rem suas r:ticas missio n rias . Nessas etnografias os padres descrevem

    :. co nverso dos nativos c os vrios problemas qu e cercavam ,~s l empreitada. Os Jesu tas contam que as maneiras mais es., eficazes de se avanar na persuaso dos ndi os so o apren-dizado de sua lngua e a cura de suas doenas. Mas, para a decepo dos missionrios, os ndios pareciam rapidamente retornar aos se us costumes pagos c esquecer a nova religio adquirida. O fracasso dos primeiros esforos de catequizao dos jesutas se deve s experincias histri cas que moldaram a institucio nali zao das misses no Novo Mundo. Na busca de novas manei ras de converter os pagos atravs da persuaso, Manuel da Nbrega e se us colegas acaba ram por realizar uma polmica reforma do empreendimento missionrio, que precisava ser cu idadosamente justificada, tanto perante os seus superiores jesutas como tambm perante a Coroa Portu-guesa. Anteci p and o o modelo das reducciones paraguaias, o novo plano elos jesutas previa que os ndios seriam forados a viver de acordo com a cultura crist para subseqentemente serem persuad idos a se converterem re ligio ele Cristo. Foi no esforo de justificar esta reforma que Nbrega c seus colegas realizaram as du as mudanas conceituais aqui analisadas.

    O Cap tulo III discute essa reforma das misses e sua principal conseqncia terica: o dese nvolvimento de uma teoria do consentimento gerado p elo medo como fundao legtima do poder poltico (dominum). Essa mudana conceituai foi efetuada p o r Manuel da Nbrega c m do is textos escritos na segunda metade ela dcada de 1550. No Dilogo Sobre a Converso do Gentio (1556-1557), escrito por Nbrega em Rio Vermelho, o jesuta discute a condio natural dos ndios Tupi e o pape l da p o lcia crist na converso dos pagos. Sua investigao teolgica e etnogrfica a respeito das perspectivas de converso dos Tupi o levaram a buscar est ratgias mais eficazes para a conve rso daqueles pagos. Naquele Dilogo, Nbrega prod uz uma justificao teolgica para a reforma por ele proposta.

    . Urna vez justificadas, essas estratgias deram origem mais Importante instituio missionria dos jesutas. Em um documento que fico u conh ecido como Plano Civilizador(l558), Nbrega

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  • prope a form ao de uma nova institUJao, as Aldeias, que abrigariam um grande nmero de ndios que tivessem consen-tido em se subme te r ao governo d os jesutas e m troca de proteo contra as agresses dos colonos. No mundo colonial espanhol, a travs da encom ienda, Bartolo me u de las Casas e os dominicanos haviam encontrado uma maneira de conciliar o interesse d os co lo nos no trabalho dos ndios e a determi-nao papal na bula Sublimus Dei (15 37), segundo a qual todos os nativos do Novo Mundo eram home ns livres: os ndios passariam a vende r sua mo-de-obra aos colon os. No sistema das Aldeias, esse problema foi resolvido de outra maneira. Segundo Nbrega, os ndios que se recusassem a entrar nas Aldeias poderia m se r escravizados pe los colonos a travs de uma guerra justa movida pelas autoridades colo niais . Para Nbrega , a ameaa de violncia justame nte ap licada no significava coero; pelo contrrio, d izia ele, os ndios "consentiro por medo".

    Essa justificao poltica para as Alde ias desenvolvida por Nbrega, no s tornou-se o modelo para as misses jesuticas lideradas por Jos de Acosta em Juli, no Peru, e, mais tarde, para as reducciones do Paraguai, como tambm deu origem a uma fundamentao do poder poltico (dominium) pelo medo e consentime nto dos governados , que seria ma is tarde desen-volvida teorica me nte pelo telogo jesuta Jua n de Mariana, no seu De Rege. 11 Toms de Aquino j h avia a rgumentado que o consentime nto e ra uma possvel causa ma terial da autori-dade poltica (dominium). Os autores dominicanos do sculo XVI, entre eles o ilustre Francisco de Vitoria , fo ra m mais longe e proclamaram o consentimento uma causa efic ie nte da auto-ridade poltica. Mariana, contudo, ass im como Nbrega, distancia-se a inda mais da doutrina aristotlica e da inter-pretao dominica na da filosofia de So To ms. De acordo com Mariana, os ho me ns naturais consentiam e m e ntrar pa ra a sociedade poltica d evido ao medo. Esse consentimento gerado atravs do medo, e no d a n atureza, e ra a fonte legtima d a autoridade soberana.

    Se a primeira mudana conceitua i operada pela teoria poltica jesuti ca foi uma substitui o d e conceitos - o consentim e nto gerado pelo medo ocupa o lugar da natureza na justifica o da autoridade poltica-, a segunda mudana conceituai efe tu ada pelos missionri os da Companhia de

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    Jesus transformou o signifi~ado do conceito de direito (ius). conforme veremos no Capitulo IV, a InStitucionalizao das misses e a implementao do s istema de Ald e ias foram acompanhadas do apa recimento de uma nova gerao d e missio nrios jesutas, que estava mais inte ressada e m trabalhar nas esco las jes uti cas das cidades da Colnia (e em educar os colonos leigos) do que em converter ndios. Essa nova atitude transparece em um o utro documento, o debate travado por Nbrega e Quircio Caxa, em 1567, a respeito da escravido voluntria. Membro da nova gerao de missionrios jesutas, Caxa demonstra um certo arrefecimento do fervor missionrio e constri u ma justificao para os argumentos dos colonos em pro l d a escrav ido voluntria, j que muitas vezes estes diziam que os ndios escravizados por e les havia m vendido sua liberdade por livre e espontnea vontade. De acordo com a interpretao de Caxa, os ndios poderiam vender sua liberdade se fossem maiores de 21 a nos, porque a liberdade um direito (ius) que a pessoa possui como uma propriedade (dominium) . Ao argumentar desta maneira, Caxa acaba por alterar o sentido d o conceito de dire ito (ius) na doutrina tomista, antecipando a interpretao subjetiva deste conceito, elaborada d cadas mais tarde pelo telogo jesuta Lus de Molina, em seu De lustitia et Jure.

    Em suma, es te livro tem como objetivo explicar como e porque estas duas mudanas conceitua is, introduzidas pelos telogos jesutas no pensamento poltico tomista do sculo XVI tiveram orige m nas re flexes contidas nas ca rtas dos missio~ nrios s.obre o empreendimento de conve rso do gentio. Ainda

    q~e haJa uma vasta literatura sobre as cartas jesuticas do seculo XVI so .

    , poucos os autores que se mte ressaram por est.a agenda . As judiciosas interpretaes antropo lgicas de Lu1z Felipe 13a ~t N ] h . e a eves e Rona d Rammelli ab rira m novos N onzontes compreenso do impacto cultural dos encontros do

    ovo Mundo mas . , , pa1a estes autores, o Importante localizar

    umda matriz cultura l originria e fundame do processo coloni-za or sem u n -e ~ I a p reocupaao com o cotidian o da interao

    ntre Jesutas e N h . de nativos. a 1Stonograf1a mais antiga, de Simo d Va~c~nce l os a Serafim Leite, temos um re lato detalhado

    0 cotidiano d -an . 1. , . as missoes, sem, no entanto, empreender uma a Ise cntica d . I do N a matnz cu rural que emerge dos e ncontros

    ovo Mundo. Neste estudo, combinaremos essas duas

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  • preocupaes dive rgentes c iremos um pouco aiC:m, cnfocar:do os encontros do Novo Mundo sob a perspectiva da transfor-ma;io hist ri ca da produ 5o intelectual dos jesutas no Brasil. Procurare mos, assim , avanar alm do imagin rio colo ni zador dos miss io n ri os do scul o XVI em prol de uma reflexo centrada nos textos por e les escritos ao longo da experincia cotidiana daqueles cncontros. 12

    O primeiro autor a demonstrar certa preocupao com essa agenda foi Srgio Buarquc de Hobnda , mas e le d maior relevncia aos mot ivos ednicos contidos nas ca rtas dos jesutas e acaba por tratar a teoria poltica de maneira ancilar, limitando-se a comen tar brevemente a doutrina do direito natural tomista que serv ia ele justifica tiva para as misses. Ao deparar-se com o dilogo e ntre Caxa e Nbrega , por exemplo, Buarque de Holanda conclui apressadamente que os argumentos de Caxa eram de escassa importncia , pois todas as questes que envolviam a "conquista" do Novo Mundo j haviam sido resolvidas pelos dominicanos nos debates travados na Espanha cm meados do sc ulo XVI. Mais recentemente, Joo Adolfo Hansen estabelece importantes conexes entre os debates sob re o conceito de "brbaro" travados por mi ss ionrios e te logos espanhis e as discusses s imil a res travadas por missi o nri os jes uta s no Brasil. No caso particular deste debate , no e ntant o, as principais inovaes tericas j haviam de fato sido feitas por dominicanos no Novo Mundo, como Bartolomeu de las Casas. O que procuraremos mostrar nesta obra que vrios problemas de teoria poltica co ntinuavam pendentes na poca cm que os primeiros missio nrios jesutas chegaram ao Brasil, e que muitas destas questes so tratadas

    d l . I~ 13 nas cartas escritas pelos membros a Compan 11a na co onra. A anlise empreendida neste estudo levar em conta no

    somente o contedo desses debates, mas tambm, para o seu desenvolvime nto, as tcnicas argumentativas empregadas , o arcabouo terico q ue co ntextu alizava a questo c os espaos institucionais disponveis na estrutura da Companhia de Jesus. Tal esforo requer, como veremos, uma anlise detalhada dos textos escritos pelos missionrios jesutas, o que s vezes resultar em lo ngas citaes de trechos daq ueles textos e uma leitura dificult ada pela grafia c pelas expresses idiomticas peculiares s lnguas ve rnculas do sculo XVI. Para facilitar 0 acompanhamento desta leitura incluire mos, na forma de

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    ,1 ndice a este li vro os trs prin cipa is documentos dos '~ssionrios JCS utas analisados neste cstudo .14 Acreditamos J11 I. . ' . . . '

    ue esta ateno ao ( rscurso Jesuitrco permllrra mostrar que ;s mi sses jes uti cas brasileiras do scul o XVI fo ram um espa o co ncreto de re fle xo sobre as questes polticas que mobili zavam os tericos do comeo da era moderna.

    Dos encontros c ulturais com os ndios emergiram as aventuras te ri cas empreendidas pelos mi ss ionrios, ansiosos que estavam po r novas formas de just ificar as reformas da doutrina to mista q ue lhes pareciam necessrias para o sucesso na converso do genti o. Desenvo lvimentos cruciais para a constru o d o jus naturali s mo mo d erno dos tomistas ela Pennsula Ib rica, estas aventuras te ricas co nstituem tambm os primeiros traos de um pensame nto poltico brasileiro e, certamente, ampliam a nossa compreenso da gnese de importantes co nce itos sistemati zados posteriormente na Europa. Some nte esforos sucessivos e ac umulativos deste tipo podem fornecer as bases necessrias para uma compreenso adequada da s fu ndaes do pensamento po lti co moderno c do papel qu e id ias desenvolvidas no mundo colo nial tiveram para a sua histria .

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  • c A p T u L o

    NO~rf~ MODU~ r~OCfDfNDI Ao refletirmos sobre as transformaes e rupturas da

    teologia crist no sculo XVI, a Reforma Protestante o primeiro evento que surge em nosso pensamento. Marcos de uma transformao radical da religiosidade crist, os movi-mentos religiosos liderados por Lutero, Calvino e Zwingli pro-vocaram uma vasta reorganizao da devoo crist no velho continente. Mas a nossa compreenso daquelas transformaes e rupturas ficaria incompleta, no entanto, se alm daqueles movimentos de ciso, no analisssemos tambm os movi-mentos de reforma da religiosidade crist que ocorreram dentro da prpria Igreja Catlica. Isto , ainda que os movimentos de ruptura conhecidos como a Reforma Protestante sejam o marco fundamental daquele perodo, outros movimentos religiosos do sculo XVI desempenharam um papel to importante quanto a Reforma, e a nica diferena entre estes e aqueles movimentos o fato de que uns escolheram romper com o Vaticano, enquanto outros procuraram reformar o cristia-nismo sem romper com a instituio centrada em Roma.

    Nossa jornada comea em um importante captulo da histria do cristianismo no sculo XVI, freqentemente negligenciado por historiadores do pensamento poltico do incio da era moderna: a gnese da Companhia de Jesus e o impacto daquilo que os seguidores de Incio de Loyola chamavam de "nosso modo de proceder" (noster modus procedendi) sobre os rumos do movimento tomista conhecido como a seconda scholastica. Entre os movimentos de reforma do sculo XVI, que optaram por permanecer sob a liderana papal, o mais importante foi sem dvida o dos jesutas, tendo um profundo impacto sobre as reformas do Conclio de Trento e na resposta dos catlicos ao protestantismo.

    A histria da Companhia de Jesus, assim como suas principais contribuies reforma da cristandade no perodo

  • quinhentista, est intimamente ligada biografia de seu fundador e lder espiritual, Incio de Loyola. Em 1521, quando o cavaleiro Ifiigo de Ofiez y Loyola foi ferido defendendo a Castilha contra os franceses em Pamplona, ele retirou-se para o castelo de Loyola para se recuperar. Como l no havia nenhum dos livros de cavalaria que costumava ler, comeou ento a leitura de dois livros religiosos que lhe foram dados no castelo: a Vita Christi de Ludolfo da Saxnia e uma verso castelhana do Fios Sanctorum, sobre a vida dos santos e escrito por Jacobus de Voragine. Foi assim que Incio descobriu sua vocao religiosa:

    Porque, lendo a vida de Nosso Senhor e dos Santos, parava a pensar, raciocinando consigo: "E se eu realizasse isto que fez S. Francisco? e isto que fez S. Domingos?" Assim discorria por muitos assuntos que achava bons, propondo sempre a si mesmo empresas dificultosas e grandes: quando as propunha, lhe parecia encontrar em si facilidade para execut-las. Mas todo o seu discorrer era falar consigo: "S. Domingos fez isto; pois eu hei de faz-lo. S. Francisco fez isto; pois eu hei de faz-lo!" 1

    Enquanto se recuperava, Incio decidiu que gostaria de seguir os passos de So Domingos e So Francisco, mesmo que ainda no soubesse explicar por que queria faz-lo. Sua vontade estava determinada a imitar os santos ainda que sua razo o inclinasse para a vida terrestre e os livros de cavalaria. Embora esses pensamentos tivessem perdurado por um longo tempo, Incio relata em sua autobiografia que havia uma diferena:

    ... quando pensava nos assuntos do mundo, tinha muito prazer; mas, quando, depois de cansado, os deixava, achava-se seco e descontente. Ao contrrio, quando pensava em ir a Jerusalm descalo, em no comer seno verduras, em imitar todos os mais rigores que via nos Santos, no se consolava s quando se detinha em tais pensamentos, mas ainda, depois de os deixar, ficava contente e alegre ... Assim veio pouco a pouco a conhecer a diversidade dos espritos que o moviam, um do demnio e outro de Deus. 2

    Incio decidiu fazer uma peregrinao at Jerusalm. Sua primeira parada foi o mosteiro beneditino em Montserrat, na Catalunia, onde o cavaleiro confessou a sua deciso vocacional

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    a um padre. Sob a orientao de um mestre de novios, seguiu a rotina de confisses prescritas pelo diretor do mosteiro, o abade Garcia de Cisneros, anotando todos os seus pecados antes de confess-los ao seu mestre. Pouco tempo depois, Incio deu todas as suas roupas a um mendigo e saiu de Montserrat com apenas um cajado. Receoso de ser reco-nhecido no caminho principal que levava a Barcelona, no qual o cavaleiro Ifiigo j havia passado muitas vezes, o peregrino decidiu fazer uma parada em Manresa, que ficava fora da rota. Poucos dias aps a sua chegada, espalhou-se o boato, no pequeno vilarejo, de que Incio era um nobre que tinha se desfeito de todos os seus bens para se tornar um devoto. Gradualmente, Incio comeou a se dedicar populao carente do vilarejo e, descobrindo que tinha um grande prazer naquelas aes caridosas, acabou passando ali todo o ano de 1522. Foi durante essa estadia que leu pela primeira vez o Imitatio Christi de Thomas Kempis, um livro que viria marcar a sua interpretao do cristianismo. Foi tambm em Manresa que Incio comeou a escrever os Exerccios Espirituais, um livro de exerccios de devoo religiosa inspirado no mtodo do abade Cisneros que ele tinha conhecido em Montserrat.

    No ano que se seguiu, o devoto decidiu deixar Montserrat e continuar a sua peregrinao. No caminho, ensinava seus Exerccios Espirituais aos fiis, chegando finalmente emJerusalm no outono de 1523. Na Terra Santa, Incio descobriu que a salvao requeria mais do que exerccios para a alma. Sua experincia de converso para a vida religiosa havia lhe ensinado o valor daquele mtodo de devoo crist, mas Incio ainda buscava uma maneira de agir no mundo e ajudar outros fiis a salvarem suas almas: "Depois que o peregrino entendeu ser vontade de Deus no continuar em Jerusalm, veio sempre pensando consigo o que faria. Por fim se inclinava mais a estudar algum tempo para ajudar as almas e determi-nava ir a Barcelona."3

    Em 1524 chegou a Barcelona, onde por dois anos estudou latim. Seus professores sugeriram ento que ele fosse estudar na Universidade de Alcal. O cardeal Ximenes de Cisneros tio do abade Cisneros de Montserrat, tinha transformado ~ universidade em um centro de inspirao erasmiana, e o ambiente humanista de Alcal contribuiu menos para os estudos de Incio do que para a sua reputao. Ao chegar em Alcal,

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  • ele iniciou a divulgao de seus Exerccios Espirituais, e rapidamente comeou a se espalhar pela cidade o boato de que ele e seus seguidores eram alumbrados. Movimento religioso popular em Castilha, os alumbrados pregavam a unio espiritual com Deus atravs da iluminao da alma e oraes mentais em silncio, um mtodo com alguma seme-lhana quele proposto por Incio nos Exerccios Espirituais. Os alumbrados estavam sendo perseguidos pela Igreja que considerava a religiosidade introspectiva e o carisma de suas lideranas uma ameaa ao dogma prevalecente de que somente os sacramentos e a Igreja podiam mediar a devoo. Os rumores da associao de Incio ao movimento resultaram no seu encarceramento por quarenta e dois dias. Processado pela Inquisio, Incio foi absolvido, mas quela altura j havia decidido abandonar Alcal pela universidade mais tradicional, localizada em Salamanca.

    Controlada pelos dominicanos, a Universidade de Salamanca tambm se mostrou um ambiente hostil a Incio. Enquanto a Universidade de Alcal articulava uma interpretao erasmiana do cristianismo, um tanto controversa naquela poca, os dominicanos de Salamanca praticavam uma nova forma de escolasticismo centrado na exegese da Summa Teolgica de So Toms de Aquino; o principal telogo dominicano do sculo XVI, Francisco de Vitoria, havia chegado a Salamanca vindo de Paris, um ano antes de Incio l chegar, em 1527. Os professores de Salamanca tambm desconfiaram das atividades "extracurriculares" de Incio. Aprisionado mais uma vez, apenas duas semanas aps sua chegada, novamente Incio foi absolvido pela Inquisio. Desta vez, porm, ele decidiu abandonar o clima hostil da Pennsula Ibrica e ir a Paris para continuar seus estudos.

    Incio chegou a Paris em fevereiro de 1528 e l viveu at 1535. Em um primeiro momento, estudou no College de Montaigu, na Rue St. Jacques, um antigo centro humanista onde Erasmo, Calvino e o prprio Francisco de Vitoria haviam estudado no incio do sculo. Quando Incio comeou seus estudos no College, porm, este j era controlado por padres dominicanos que crescentemente utilizavam, em seus cursos de teologia, a Summa de Toms de Aquino ao invs do texto mais tradicional, as Sentenas de Pedro Lombarda. Um ano depois, transferiu-se para o College de St. Barb para obter o ttulo de mestre. St. Barb era um dos locais onde as idias nominalistas,

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    originalmente desenvolvidas em Louvain no sculo anterior tinham sobrevivido; muito provvel que Incio tenha entrad~ em ~ont~to com _a obra de Jean Gerson, o principal telogo nomma!tsta do seculo XIV, durante a sua estadia em St. Barb. Naquela poca, muitos acreditavam que o Jmitatio Christi de Thomas Kempis tinha sido escrito por Gerson. Essas idias nominalistas tinham sobrevivido em St. Barb primordialmente po: causa da iniciativa de Diogo de Gouveia, o diretor portu-gues daquela escola que havia estudado em Louvain. Foi Gouveia, alis, .qu~.m pediu ao rei Joo III de Portugal que estabelecesse cmquenta bolsas anuais para que estudantes

    port~gueses freqentassem o College de St. Barb ; um dos bolsistas naquela escola , quando Incio l chegou era Francisco Xavier. '

    Em Paris, Incio conheceu no somente Xavier mas todo o ncl~o que mais tarde fundaria a Companhia de Jesus. Incio quena retornar a Jerusalm, e em 1535 convenceu Xavier e seus outros companheiros a irem terra prometida e l se empenhar.em em quaisquer atividades que o Papa conside-rasse pertmente. Antes de o grupo partir para Jerusalm, no entanto, a Inquisio de Paris tambm processou Incio por causa de seus Exerccios Espirituais. Irritado, ele foge para a Espanha, mas no sem ter combinado com seus companheiros de se encontrarem em Veneza, de onde partiriam para Jerusalm. To~ou ~m barco de Barcelona a Gnova, chegando a Veneza e~ pne1r~ de 1536, enquanto seus companheiros partiram a pe de P~ns, chegando cidade italiana um ano depois. o g_rup.o d1sp~rsou-se pela regio de Veneza para aguardar 0 termmo do mverno; nas cidades onde se instalaram, buscavam recr~tar outros devotos para a viagem. Combinaram que, se alguem l~es perguntasse de que organizao faziam parte, respondenam que eram da "Companhia de Jesus" sendo Cristo seu nico superior. Enquanto isso, Incio viajaria' a Roma para mostrar ao Papa uma verso da Frmula do Instituto, o docu-mento fundador da ordem jesutica.

    A COMPANHIA DE JESUS: UMA ANLISE INSTITUCIONAL

    F.un~a.da. e.m 27 de setembro de 1540 pela bula papal Regzmmt mtlttantis ecclesiae, a Companhia de Jesus era uma

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  • ordem religiosa com fins pastorais. Como definido na Formula, a ordem foi institu da "para o aperfeioamento das almas na vida e na do utrina crists , e para a propagao da f" .4 Os jesutas queriam ag ir no mundo pe la ca rid ade: enquanto estivessem praticando suas obras ca ridosas nos hospitais , prises e escolas, os membros da nova ordem estariam sempre em uma misso, propagando a f, convertendo os infiis e punindo os hereges. O principal ob jet ivo da ordem era persuadir cristos, he reges e pagos a viverem uma vida reta, guiada pela moral crist e pela luz divina. Para que esta agenda missionria pudesse ser eficientemente cumprida , a Frmula determinava a eliminao dos cantos sacros prescritos a todas as outras ordens religiosas, e que vinculava os devotos aos monastrios. Este to m anti-monstico da Frmula causou reaes negativas na Cria Papal, onde diversos cardeais -e em especial cardeal Caraffa , um membro da ordem dos teatinos que mais tarde se tornou o papa Paulo IV - eram contra a fundao da nova ordem. Outros, como o cardeal Gasparo Contarini , no entanto, asseguraram a aprovao da nova ordem.

    A Companhia de Jesus rapidame nte se tornou um dos principais movimentos de reforma religiosa sob a bandeira papista, tendo sido uma das ordens ma is importantes na formulao da resposta ao Protestantismo produzida durante o Conclio de Trento. Expressa pela primeira vez nos Exerccios

    .. Espirituais de Incio de Loyola, a nova interpretao do cristia-nismo dos jesutas era centrada naquilo que e les chamavam

    . "o nosso modo de proceder" (noster modus procedendi). Este modo de proceder jesutico definia o ethos institucional_ da ordem. Seus membros acreditavam que a adoo de um mesmo "modo de proceder" e ra o que os fazi a "jesutas" .5 Enquanto os conceitos explicitados na Frmula e que orientavam a Co mpanhia de Jesus - caridade, obedincia, pobreza e liberdade do monasticismo - eram herdados de organizaes religiosas precedentes, a especificidade da organizao jesutica residia naquele "modo de proceder", uma interpretao moral e institucional da vocao dos irmos. Do ponto de vista moral, os jes utas buscavam a santificao pessoal atravs do mtodo disciplinar prescrito por Incio de Loyola em seus Exerccios Espirituais. Do ponto d e vista institucional, os jesutas procuravam se engajar em atividades apostlicas d e

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    converso, as qua is eram orientadas pelo preceito soteriolgico tomista de que o trabalho de caridade contribui para a salvao da alma. 6

    Este duplo objetivo da doutrin a de Inc io de Loyola -sa ntificao pessoal e atividade apost li ca - teve origem no ideal mendicante inventado pelos franci scanos, mais tard e adorado pelos dominicanos. Contudo, enquanto a abordagem mendicante devoo era baseada na recluso monstica , obedincia s normas e participao nas atividades monacais (oraes, jejum, boas obras, cantos sacros c estudos), a proposta de Incio de Loyola livrava o devoto da instituio monstica . Incio de Loyola queria substituir o monasticismo das ordens mendicantes por um mtodo introspectivo de santificao, ati ngido pelo devoto de mane ira privada , atravs da prtica de exerccios de orao. Os dominicanos acreditavam que a santificao pessoal exigia a mediao da instituio monstica. Para Incio de Loyola , entretanto , o devoto atingia sozinho a santi ficao, exercitando sua alma na esfera privada e preparando-a para receber a infuso da Graa. Quando decidiu criar uma instituio que levasse em frente seu projeto religioso, Incio de Loyola transformou o mtodo de santi-ficao pessoal prescrito nos Exerccios Espirituais em um mtodo para a boa administrao da Compa nhia de Jesus.

    Os Exerccios Espirituais eram o produto de uma destilao do processo de converso do prprio Incio de Loyola, de cavaleiro a devoto. Alguns de se us co legas chegaram ao extremo de sugerir que "o todo da vida da Companhia est contido em germe e expresso na histria de Incio". 7 Tratando exerccios espirituais de maneira anloga a exerccios fsicos, como correr e anda r, Incio de Loyola defi ne se us propsitos de como "preparar e dispor p ara tirar de si todas as afeies desordenadas, e, afastando-as, procurar e encontrar a vontade de Deus, na disposio da prpria vida para o bem da mesma pessoa".8 Fortemente influenciado pelo movimento religioso flamengo conh ecido como a devotio moderna, cujo principal texto era o Im itatio Christi de Thomas Kempis que Incio de Loyola havia lido em Manresa, o jesuta tambm adotou como ponto focal de sua obra as meditaes solitrias sobre a vida d e Cristo. 9 Mas do ponto de vista fo rmal, o livro que mais influenc iou os Exerccios Espirituais foi o Livro de Exerccios para a Vida Espiritual (1515) , escrito pelo abade

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  • Cisneros. Tambm influenciado pela devotio moderna, Cisneros foi um dos primeiros a organizar um manual de devoo em torno de exerccios de orao dirios. Assim como para a devotio moderna, o conceito de santificao pessoal esposado por Incio de Loyola e Cisneros era baseado em exerccios prticos (exertitium) que buscavam a purificao do corao (puritas cordis). Segundo Incio de Loyola, a alma que se converte para a vida santa aquela que est pronta para receber a Graa, e a erradicao do pecado da alma um processo similar converso. A alma comea o processo em estado de desolao: "Chamo de desolao exatamente o contrrio ... como obscuridade da lama, perturbao, incitao a coisas baixas e terrenas, inquietao proveniente de vrias agitaes e tentaes ... achando-se a alma toda preguiosa, tbia, triste e como separada do seu Criador e Senhor." E gradualmente atinge o estado de consolao: " . . . chamo consolao a todo aumento de esperana, f e caridade, e a toda alegria interior que eleva e atrai a alma para as coisas celestiais e para sua salvao .. . "10

    O livro de Incio de Loyola, contudo, tambm continha novidades em relao ao modelo de espiritualidade defendido pela devotio moderna de Kempis. Enquanto o movimento flamengo instrua a contemplao solitria do devoto, Incio de Loyola preferiu seguir Cisneros e colocar em seu manual , instrues prticas tanto para o exercitante quanto para aquele que dirige a prtica dos exerccios. Na primeira parte dos Exerccios Espirituais, nas "Explanaes Introdutrias", Incio de Loyola define a relao entre diretor e exercitante. O diretor no deveria transmitir qualquer conhecimento substantivo para o novio, mas apenas gui-lo atravs dos exerccios. Havia, segundo Loyola, um meio-termo entre o entusiasmo cego e a ignorncia extrema que cabia ao exercitante encontrar. O papel do diretor era manter o exercitante o mais prximo possvel desse meio-termo aristotlico.

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    O que d os Exerccios no deve induzir quem os recebe a escolher o estado de pobreza ou a fazer alguma promessa , de preferncia a outra, nem a escolher um estado ou gnero de vida em lugar do outro (. .. ) durante os Exerccios, quando o exercitante busca a vontade divina , mais conveniente e muiro melhor que o Criador e Senhor se comunique por si mesmo a quem lhe todo dedicado , atraindo-o ao seu amor e louvor, e dispondo-o a seguir pelo caminho em que O poder servir

    melhor no futuro . Assim aquele que da' os E , . -1 . ' xerctctos nao se vo te nem tncline a uma parte ou a outra, mas se mantenha no

    m~to, como o fi~l duma balana, deixando agir diretamente 0 Cnador com a cnatura, e a criatura com seu Criador e Senhor. ti

    O exercitante s aprender atravs de seu dilogo com De.us,_ ~ o papel do diretor, portanto, apenas 0 de indicar a tra)eto:Ia daquele aprendizado . Sua interveno no deve ser corretiv~ ~em prescritiva, mas no mximo inquisitiva ou consolatona. A propedutica mstica dos Exerccios Espirituais de L~yo.la prescre;e; portanto, que o diretor seja um guia

    terape~t~co, u_m medico da alma do exercitante, monitorando a admmistraao dos exerccios com a finalidade de

    ' d d curar o esp~nto o evoto: se o paciente se desvia da terapia prescrita o diretor ~ adverte e mostra-lhe o caminho correto; se 0 novi~

    par~~e nao estar sendo afetado pelo tratamento, 0 diretor venfica se ele est tomando os "remdi'os" nec - s

    . essanos. e 0 exercitante demonstra progresso e comea a dar sinais d t " 1 d e es ar conso_a o e com grande fervor", que 0 diretor "previna-o

    para . n.ao fazer promessa nem voto algum inconsiderado e precipitado". 12

    O des.enho institucional da estrutura hierrquica da Con:~anh~a de Jesus espelhava a propedutica dos Exerccios Espm~u~zs_ e veio a ser consolidado com a publicao das Constttuzoes da Companhia de jesus, em 1558-1559 S d a c - . . . egun o

    oncepao maciana da ordem expressa naquele documento o papel dos~ s~periores dentro da instituio seria similar a~ papel terapeutico do diretor nos Exerccios Espirituais.

    . .. que seja dotado de grande inteligncia e juzo, para que no lhe fa!te esr~. dom nem nas questes especulativas, nem nas questoes prattcas que ocorrerem. A cincia de ce t b

    , . , r o, em necessana. a quem tem tantos homens instrudos a seu cargo. ~?davta, amda. mats necessrias lhe so a prudncia e a expe-n~ncta nas _c?tsas espirituais e interiores, para discernir os d1versos esptntos, para dar conselho e remdio a tantas pessoas em seus problemas espirituais.t'

    da Na ve~dade,. o.s superiores jesutas viriam a exercer vrias d s fun~e~ ongmalmente conferidas por Loyola ao diretor . os exeret.cios. Eles deveriam guiar os irmos das casas jesu-

    ticas, ouvir-lhes a confisso e ajud-los a tomar decises corretas quando envolvidos em suas atividades religiosas.

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  • A transformao do conceito inaciano de obedincia, contido nos Exerccios Espirituais, em um conceito jesutico de obedincia institucional tambm exerceu um papel impor-tante na consolidao da organizao jesutica. Por terem sido escritos somente um ano aps o acidente de batalha que levou Loyola a abandonar sua carreira militar, os Exerccios Espiritu~~s reproduzem muito da mentalidade medieval das ordens mili-tares, particularmente no tocante obedincia Igreja . Da mesma maneira que os templrios e os hospitalrios, os jesutas no princpio se viam como "soldados" de Cristo, e, conse-qentemente, soldados de Seu vigrio na terra, o Sumo Pontfice .

    Para em tudo acertar, devemos estar sempre dispostos a crer que 0 que nos parece branco negro, se assim o ~etermina a Igreja hierrquica; persuadidos de que entre Cnsto ~oss~ Senhor - o Esposo - e a Igreja - sua Esposa - nao ha seno um mesmo Esprito, que nos governa e dirige para a salvao das nossas almas.' 4

    Esse preceito de obedincia cega Igreja traduzido na Frmula em um conceito novo: alm dos tradicionais votos de pobreza, castidade e obedincia, os jesutas acrescentavam um voto especial de obedincia direta ao Papa. De acordo com a Frmula:

    ... alm daquele vnculo comum dos trs votos, com este fim nos liguemos por um voto especial, pelo qual os Pontfices ao tempo existentes mandarem, para proveito das almas e propa-gao da f. E assim fiquemos obrigados, quanto estiver na nossa mo, a ir sem demora para qualquer regio aonde nos quiserem mandar, sem qualquer subterfgio ou escusa, quer nos enviem para entre os turcos ou outros infiis, que hab1tam mesmo que seja as regies que chamam ndias, quer para entr~ hereges ou cismticos, quer ainda para junto de quaisquer fiis.''

    O 'Malley argumenta que esse voto no era, de fato, para o Papa ou mesmo a respeito dele, mas sim um voto para Deus de comprometimento total com a atividade missionria. 16 Atravs dele os membros da ordem juravam, a Deus, conduzir as

    miss~es para onde for que o Papa os mandasse . Ao contrrio do voto de admisso das ordens monsticas medievais, ele era um voto de mobilidade e no de enclausuramento. Os

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    jesu~as prometiam no criar laos permanentes em qualquer localidade e estar disposio para levar adiante as boas obras aonde quer que as autoridades assim 0 desejassem.

    Alm de mobilidade, esse voto de obedincia direta ao papa permitia que os membros da ordem desfrutassem de um alto grau de autonomia em relao ao poder temporal dos reis cristos . Por deverem obedincia apenas ao Papa e aos seus superiores da hierarquia da ordem, os jesutas colocavam-se fora da jurisdio das autoridades religiosas locais. Esse voto especial de obedincia direta ao Papa era a principal diferena entre as concepes jesutica e dominicana de obedincia . Os dominicanos eram forados a obedecer ao clero secular inclusive s autoridades eclesisticas locais. Ao se colocare~ sob a tutela papal, sem intermediaes, os jesutas conside-ravam-se livres de obrigaes para com essas autoridades.'7

    Porm, a experincia dos primeiros anos de administrao das ati~~da~es internacionais da ordem mostrou a Loyola que a obed1enC1a cega no era o melhor meio de se conduzir sua instituio religiosa. Em 1553, ele revisou seu conceito de obedincia em uma carta que escreveu para os irmos da escola jesutica de Coimbra, a qual ficou conhecida como "Carta sobre a Obedincia":

    Portanto, ns no podemos dizer que a obedincia requer somente a execuo do comando e o desejo de se sentir bem por c~usa ?isso, pois ela tambm requer que o julgamento veja as co1sas a maneira que so ordenadas pelo Superior, desse modo .. . , o entendimento da pessoa pode ser melhor movido pela Vontade.' 8

    A obedincia cega pregada nos Exerccios Espirituais era de p td d - . ouca ut1 1 a e no contexto de rap1do desenvolvimento mstitucional no qual a ordem se via inserida, j em 1553. O fervor missionrio dos irmos da ordem - estivessem eles no Oriente, na Amrica ou dispersos pela Europa - dependia de sua crena na virtude de suas prprias decises e da aceitao dos comandos de seus superiores, como se esses fossem o ~:oduto. de s~a prpria deliberao. Em outras palavras, como

    ~o hav1a me1os materiais de controle da atividade missionria ?'s~ersa por rinces to distantes, era necessrio que os trma os ac~Ita.ssem .aquelas ordens como se fossem produtos de sua propna deliberao consciente.

    37

  • -----

    As misses dependiam daquele conceito novo de obedincia m e Loyola o formalizou, portanto, nas para prosperare ,

    Constituies jesuticas.

    _ d e cumpre a ordem dada; H obedincia de execuao, quan o s b d quer a

    obedincia de vontqa~:le q~~~d~a~~~~~~b~~~:ci: ~~eentendi-mesma coisa que a h estar bem mandado mento quando sente como ele, e a c a . d h-

    . , da A obedincia imperfeita quan o a aquilo _quemsaes :;~ h~ conformidade de querer e sentir entre execuao,

    9 quem manda e quem obedece. 1

    - L yola a inclinao Percebam nesta passagem como, para o , . do devoto de cegamente obedecer s ordens de seus ~u~~nor_es , ouca valia se no for temperada por sua me ~~a~o epadrae cpompreender as razes que justificam aquela oble dt_encta.

    b d oA . Loyo a tnsere a -o do conceito de o e tencta, Em sua revts b d ortanto o aspecto do consentimento daquele q_ue o e ec~. ~ roduo desse consentimento, dessa manetra, requena qu~ os superiores justificassem racionalment~ suas ordens, ara ue os irmos pudessem entender as raz~es ~e estarem ~bed~cendo. Por outro lado, os irmos tambem tmh~m que

    esclarecer as razes pelas quais havi~m sidob~~~:~~1~de:Si~: tTdade e da justia das ordens . Asstm, a o . ~~~espcie de ceconstmo da deciso dos su~en~~esd q~~ or sua vez s era possvel atravs do exame eta a o

    ;r umento 'apresentado pela autoridade, alg~ total~e~te es~anho aceitao passiva prescrita pelo concetto monastteo de obedincia das ordens medievais.

    O destaque que as prticas de justificao gozav~~ n_o "modo de proceder" jesutico fazia com que a obe~tAen~ta tivesse, portanto, que ser comdp~emen~ad: ~~~~:r~a e;ac:;~ tanto da parte daqueles que ao or en .

    d I t por seu turno requena daqueles que recebem or ens. s o, . . ', . . lzacional da Companhta mclutsse mstt-que a estrutura organ

    tut oes ue ensinassem os irmos a ser p~udente~ .. Asstm q "t de obedincia o concetto Jesutttco de como o concet o ' . . .

    rudncia tambm teve origem nos Exerccios Esptr~:ua_ts. p I 's do exame dirio de sua consetencta, Segundo Loyo a, atrave . d o exercitante aprende a discernir entre os ~ovtn1~~~~~osep:L;~ alma, que provm de Deus, daqueles que sao J~oto fa . a uma . . . o de Deus Loyola recomenda que o e tntmtg

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    contabilidade diria de seus pecados, anotando todas as opor-tunidades em que agiu de maneira incorreta ou pecaminosa. A lembrana do pecado por meio dessa contabilidade tinha a funo de penitncia.

    Esta idia de penitncia atravs da lembrana do pecado no era originalmente inaciana, nem tampouco rara naquele tempo. A principal instituio da Igreja associada com a penitncia, o confessionrio, estava passando por uma revi-talizao nos primeiros sculos da idade moderna. Manuais de confisso eram freqentemente usados pelas escolas religiosas europias para fins de treinamento de futuros confessores. Tendo surgido na Europa medieval, a prtica da confisso tinha como finalidades principais a terapia do pecador, o julgamento dos pecados e a conseqente punio.

    Loyola incorporou a idia de penitncia s Constituies jesuticas e prescreveu confisses peridicas a todos os membros da ordem. Em consonncia com o conjunto da literatura produzida sobre o tema ao final da idade mdia, Loyola tambm deu importncia aos aspectos teraputicos e consolatrios desse sacramento. O confessor deveria "s vezes encorajar o confessando com palavras brandas, como as de um pai, outras vezes, corrig-lo e repreend-lo como um juiz, ou ainda, quando necessrio, aplicar-lhe remdios como um mdico". 2 Como um juiz, o jesuta deveria desenvolver seu discernimento moral e aprender a distribuir penitncias; como um pai, ele deveria desenvolver um sentido de responsabilidade moral e saber quando perdoar; por fim, como um mdico, ele deveria demonstrar conhecimentos prticos que contribussem para a cura da alma do paciente.

    O exame de conscincia e a contabilidade diria dos pecados, segundo Loyola, no substituam a confisso mas a comple-mentavam, permitindo que os jesutas exercitassem a penitncia no interregno entre duas confisses. O confessando deveria sempre buscar a virtude da humildade que provm da consci-entizao do pecado, seja atravs do exame de conscincia e da contabilidade dos pecados ou da confisso a um padre.

    A importncia dada por Loyola penitncia e confisso teve conseqncias importantes para a organizao da ordem. A mais importante foi, sem dvida, a criao de um curso de estudos de casos de conscincia, que passou a integrar o currculo da educao jesutica. Nesses cursos , os irmos eram

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  • L

    instrudos na arte da casustica c aprendiam tambm o ofcio de confessor. As aulas do curso consistiam em anlises de casos reais ou hipotticos, onde a aplicao dos dogmas vigentes na Igreja era problemtica c, no raro, contraditria.

    Esse ensinamento era realizado atravs da casustica, um mtodo complexo de treinamento dos irmos na virtude da prudncia. Seu principal propsito era garantir que eles pudessem exercer funes religiosas de autoridade, de maneira virtuosa e eficaz, tais como a confisso dos leigos e o desem-penho, cm postos superiores, da hierarquia jesutica. A casus-tica inclua o estudo da retrica e da persuaso, o exerccio da razo prtica e o desenvolvimento da capacidade de tomar "decises corretas". Ela era baseada, portanto, em uma tica de procedimentos que visava conferir um carter virtuoso e consistente s decises tomadas pelos irmos. 21

    A casustica jesutica tambm se originou dos Exerccios Espirituais, mais precisamente, da discusso de Loyola sobre o exame das mais importantes escolhas que uma pessoa faz durante sua vida, como por exemplo, escolher entre o casa-mento ou o sacerdcio. Na primeira semana, o exercitante deveria aprender o sentimento do medo c desenvolver a virtude da obedincia. Na segunda semana, deveria desen-volver a virtude da esperana. Antes, porm, do incio da terceira semana, Incio de Loyola introduz o exercitante a um mtodo de se fazer "eleies". Enquanto a teologia medieval organizava o caminho da devoo em trs partes - as vias purgativa, iluminativa e unitiva - nos Exerccios Espirituais este caminho composto de quatro semanas. No modelo tripartite medieval, a razo acompanha a devoo atravs de uma dialtica composta de um comeo, um meio e um fim; a estrutura do texto de Loyola, no entanto, binria: nas duas primeiras semanas, o exercitante toma conhecimento das condies para se fazer uma boa escolha; nas duas ltimas ele conhece as conseqncias daquela escolha. Entre a segunda e a terceira semana, h o vcuo crucial, isto , a liberdade do devoto ao buscar a boa escolha. Roland Barthes 0976), em sua anlise do pensamento inaciano, compara este mtodo de se fazer boas escolhas arte mntica dos gregos, onde primeiramente se formula uma pergunta aos deuses e depois se busca decifrar a resposta. Loyola, entretanto, substitui a pergunta clssica da arte mntica (o que fazer?) por uma pergunta mais dramtica: fao isto ou aquilo?

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    Segundo Loyola, h trs modos de se fazer uma boa escolha. rimciro quando Deus guia a vontade do devoto, de modo

    op - d - . . I I que sua alma na o po e senao segurr o camm 10 ~raac o _po~ Ele. Nesse caso, contudo, a boa escolha do exercrtante nao e

    "lt'lt11ente uma escolha, pois Deus move sua alma na direo ex .. ' correta a despeito de sua prpria vontade.

    o segundo modo "aquele em que a alma recebe muita luz e conhecimento pela experincia de consolaes c desolaes, e pela experincia do discernimento dos vrios espritos" Y A dificuldade nesse caso, adverte Loyola, que 0 inimigo age de diferentes maneiras sobre espritos distintos. Quando uma pessoa est vivendo em pecado, o inimigo fomenta seus prazeres e deleites sensuais. Deus, pelo contrrio, provoca e instiga sua conscincia atravs da razo. Se no primeiro modo o exercitante descobre a vontade de Deus atravs de algum sinal e deve somente aceitar aquela vontade como se fosse a sua, no segundo modo, o exercitante no pode confiar inteiramente em sua razo, pois quando uma pessoa est se livrando de seus pecados c se elevando ao bom servio de Deus, o inimigo morde, faz-lhe triste e lhe coloca obstculos, turvando seu entendimento com falsas razes. O exercitante deve ento alcanar um grau mais elevado de entendimento, de onde possa discernir as razes verdadeiras das falsas. 23

    Nos dois primeiros modos, portanto, o mtodo para a boa escolha prescrito por Loyola requer a participao ativa de Deus. No primeiro caso, sem qualquer participao racional do exercitante, Deus move sua vontade. No segundo caso, Deus move a alma do pecador, primeiro pela provocao do desolado e depois pela consolao de sua alma atravs da synderesis voluntatis, que nos ajuda a distinguir entre as razes boas e ms.

    O terceiro modo de se fazer uma boa escolha acontece, segundo Loyola, quando a alma se encontra em um "tempo tranqilo": "Chamo tempo tranqilo quele em que a alma no agitada por diversos espritos, e usa suas potncias naturais livre e tranqilamente." 24 Enquanto no segundo modo o exercitante precisava apenas distinguir os movimentos de sua alma causados por Deus ou por Seu inimigo, no "tempo tranqilo" (terceiro modo), a alma no influenciada por qualquer esprito, requerendo assim que o exercitante use

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  • livremente seus poderes naturais para conseguir fazer uma boa escolha.

    Segundo Incio de Loyola, h duas maneiras de se efetuar esse tipo de escolha. Na primeira, o devoto coloca a escolha em frente de si, e a contempla sob a perspectiva dos fins para os quais ele veio ao mundo, quais sejam, louvar a Deus e salvar a prpria alma. Ele deve sentir-se indiferente escolha, e pedir a Deus que mova sua vontade. Ele deve ento contemplar as vantagens e desvantagens que aquela escolha trar para a glria de Deus, e examinar "para que lado mais se inclina a razo". O devoto deve evitar a interferncia dos sentidos, deliberar racionalmente sobre a matria e apresentar sua escolha a Deus, esperando assim que Ele confirme a virtude de sua escolha atravs de algum sinal. 25

    Na segunda maneira de se fazer boas escolhas em um "tempo tranqilo" o exercitante examina trs situaes hipotticas. Primeiro, ele deve imaginar um homem, que nunca tenha visto ou com quem nunca tenha falado, e, desejando somente o seu bem, contemplar o que lhe vai dizer, de modo que sua escolha seja para a glria de Deus e para a perfeio de sua alma. Segundo, o exercitante deve se imaginar beira da morte, e examinar qual seria sua deciso nesse momento em que o interesse prprio conta muito pouco. Terceiro, o exer-citante deve se imaginar no dia do juzo final, e pensar qual seria sua deciso naquela situao. 26

    A primeira maneira de se fazer escolhas em tempos tranqilos requeria que o devoto usasse sua razo para inferir qual escolha seria a mais virtuosa em termos da glria divina. A segunda era usada quando o exercitante no podia intuir a inteno divina com relao quele assunto, nem tampouco deduzir uma resposta da lgica da Sua criao. O devoto ento se coloca em trs diferentes posies hipotticas nas quais no h interesse prprio: anonimidade, morte e julgamento final.

    Esse mtodo de se fazer boas escolhas, devemos notar, no um elogio radical ao livre arbtrio e sua capacidade de fazer escolhas desimpedidas, sejam elas boas ou ruins, mas sim um distanciamento racional do objeto da escolha com a finalidade de se distinguir a melhor opo, em termos da vocao religiosa, entre duas escolhas virtuosas que tm o

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    mesmo valor. Esse distanciamento em relao ao objeto da escolha um movimento caracteristicamente moderno na tica exibido sculos depois, por exemplo, por Adam Smith no se~ conceito de espectador imparcial. O procedimento da tica inaciana no se aplica, contudo, aos casos onde a pessoa deve escolher se comete ou no um pecado. Pois, de acordo com o segundo modo de escolha, se a ao de fato um pecado, ela s pode ter sido provocada pelo inimigo e, portanto, no h de fato uma opo a no ser negar tal ao. O mtodo de escolha de Loyola funciona somente quando a escolha em questo diz respeito a opes que so intrinsica-mente boas.

    Apesar desse mtodo ser baseado na disposio hierrquica dos trs modos descritos acima, Loyola e seus colegas consi-deravam o primeiro modo uma raridade, pois a iluminao inequvoca da alma de uma pessoa por parte de Deus , por si s, um fato milagroso. Os primeiros jesutas, portanto, davam maior importncia, como diz O'Malley, ao segundo modo. Esse modo, por seu turno, tambm exigia um certo grau de interveno divina, pois para chegar escolha certa o devoto deveria saber encontrar qual a opo preferida por Deus. O que deveria fazer o devoto quando a autoria de seus pensamentos e aes no lhe era claramente determinvel?

    Enquanto o mtodo para se fazer boas escolhas apresentado por Loyola nos Exerccios Espirituais fora desenhado para auxiliar em escolhas religiosas de cunho vocacional, a ttica do distanciamento recomendada no terceiro modo tornou-se um mtodo de exerccio da razo prtica atravs do qual os jesutas empregavam sua prudncia. Como veremos, mesmo que os jesutas acreditassem que o segundo modo fosse o melhor, em ltima instncia, o terceiro mtodo se tornou o mais til para os contextos em que os irmos missionrios encontravam-se em suas atividades institucionais: isolados, sem qualquer comunicao com seus superiores da ordem. Nesse "tempo tranqilo", os jesutas s podiam contar com seus poderes naturais. Atravs do terceiro modo de se fazer boas escolhas, os jesutas conciliavam clculos de utilidade com a hierarquia crist dos fins. O terceiro modo tornou-se dessa maneira, o ncleo ao redor do qual o conceito d~ prudncia jesutico se desenvolveu nos primeiros vinte anos de existncia da Companhia de Jesus.

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  • Se na "Carta sobre a Obedincia" Loyola trata da questo da obedincia aos comandos dos superiores, nas Constituies ele apresenta formalmente as normas que devem ser o~ed~cidas, deixando assim claramente demarcado o espao propno para o exerccio da prudncia jesutica. As Constituies so o texto onde o conceito de prudncia jesutico se encontra melhor desenvolvido. Na Frmula do Instituto, Loyola j havia determi-nado que suas instrues fossem sistematizadas na forma de um detalhado conjunto de regras que guiassem a organizao e 0 funcionamento da ordem religiosa. As Constituies continham aquelas instrues de como obedecer, como ser ~rud_e_nte e como organizar as misses, as escolas e as casas JeSU!tlcas.

    Apesar de dominicanos, teatinos, capuchinhos e franciscanos terem todos produzido documentos intitulados "Constituies", esses textos no continham os detalhados aspectos de orga-nizao institucional das Constituies jesuticas. Apesar do mesmo nome, os textos contemporneos das Constituies jesuticas assemelhavam-se mais com manuais de reg:as ~a Idade Mdia dotados de um texto sucinto e de aphcaao muito genri~a. A organizao institucional da ordem domi-nicana, por exemplo, foi desenvolvida a partir da abordagem mendicante dos franciscanos. Sua originalidade residia na adaptao da vida monstica aos afazeres administrativos dos frades, principalmente ao ensino da doutrina crist. Na Segunda Distino (1228) os dominicanos criaram uma estrutura hierarquizada de governo e um sistema de representa~ baseado no princpio democrtico da eleio. A ordem fo1 dividida em provncias e essas provncias em freguesias priorais. Apesar do estabelecimento de uma estrutura organizacional que compelia os frades dominicanos a obedecerem a seus superiores, o aspecto confederado de seu sistema hierrq~i.co representativo acabava por dispersar o controle pelas vanas provncias e freguesias. Isso fazia com que a vida nas, c~sas dos dominicanos ainda retivesse muitas das caractenstlcas das formas monsticas precedentes. Como nota Hinnebusch, com o passar dos anos o aspecto monstico da vida dos dominicanos acabou por deteriorar os aspectos democrticos de sua organizao, transformando a ordem, particularmente

    ' . 27 aps 1500, em uma estrutura quase-monarq01ca. Loyola explicitamente tomou emprestado passagens inteiras

    das Constituies dominicanas para a composio de sua obra

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    de mesmo nome.28 Contudo, enquanto os dominicanos ficaram presos aos princpios monsticos de sua ordem, Incio de Loyola livrou os jesutas de qualquer desses deveres. Em contraste com os dominicanos, cuja organizao confederativa era estruturada sobre normas e obedincia cega aos superiores da ordem, a ordem jesutica tinha uma longa e detalhada lista de normas, que supostamente permitia a seus membros, dispersos pelo mundo, agir sem ter que esperar pela chegada de ordens provindas de seus superiores na Europa. Enquanto o fulcro da instituio dominicana era a dialtica entre as poucas normas escritas que obrigavam os frades e os muitos comandos nascidos da hierarquia da ordem, no ncleo da organizao jesutica residia a dialtica entre as muitas normas contidas nas Constituies e os comandos que esporadica-mente chegavam aos missionrios espalhados pelos quatro cantos do mundo. Os dominicanos promoviam a obedincia cega s ordens dos superiores, enquanto os jesutas davam maior importncia prudncia que os irmos deveriam saber aplicar ao adaptar as inmeras regras de sua instituio s prticas em que se engajavam.

    Ao converter a atividade apostlica em um empreendimento missionrio coletivo, organizado, e internacional, Loyola usou este conceito religioso de prudncia como meio de diminuir a dependncia dos jesutas de mtodos puramente exegticos para a formulao de normas, como era o caso da derivao racional de normas a partir da lei natural praticada pelos dominicanos. Enquanto estes aplicavam normas e usavam sua estrutura confederativa para produzir procedimentos de tomada de deciso autnoma, os jesutas buscavam adapt-las e usavam seu esprito de tolerncia para decidir quando perdoar violaes dessas normas. 29

    O mtodo de raciocnio prtico empregado pelos jesutas no treinamento de seus colegas era constitudo, portanto, de dois conceitos bsicos: adaptao de normas e tolerncia das violaes que no fossem extremamente ofensivas. Esses eram os dois treinamentos bsicos recebidos pelos alunos nas aulas de casos de conscincia e se tornaram o ncleo da casustica jesutica que se desenvolveu nas dcadas subseqentes. Sua influncia porm ultrapassava o estudo dos casos de conscincia e se refletia na organizao institucional da ordem como um todo. Especialmente durante a fase de desenvolvimento

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  • institucional da Companhia de Jesus (1547-1559), os jesutas espalhados por todo o globo eram freqentemente forados a produzir e adaptar normas para regular o funcionamento de suas casas, escolas e misses. Isso porque, antes da promulgao das Constituies em 1558, as nicas normas vigentes na Companhia eram aquelas contidas na Frmula do Instituto. Durante essa fase de consolidao da Companhia de Jesus, muitas das normas que regulavam as atividades dos jesutas foram produzidas localmente e justificadas por aqueles que as produziram por meio do envio peridico de cartas. 30 Esta correspondncia da ordem circulava em dois sentidos, da hierarquia na Europa s provncias em todo o mundo, e dessas provncias para as autoridades eclesisticas europias. Foi nessa correspondncia que o "modo de proceder" da ordem deu origem a uma srie de prticas justificadoras que mais tarde seriam sistematizadas e dariam origem a uma teoria poltica jesutica.

    A INSTITUIO EPISTOLAR JESUTICA Tengo esperimentado las cartas de los Hermanos ser un pan de mucha sustancia y un fuego que mucho calienta a los friorentos,

    y causar mucho nimo y confiana a los desconfiados, e tienen otras muchas virtudes ... Vos en s ta, Padre mo, quanto es por

    la mi parte hallarys mucha frialdad, mas si ella vos esfriare, calentarvos a la virtud de la obediencia que me la mand

    escrevir. (Ir. Pera Correia, carta ao Ir. Brs Loureno, 18 de julho 1554)

    Objeto de inmeras reconstrues histricas desde o sculo XVII, quando Simo de Vasconcelos publicou a Crnica da Companhia de jesus no Estado do Brasil (1662), as cartas jesuticas so uma das principais portas de entrada dos histo-riadores ao cotidiano do Brasil quinhentista. Em um primeiro momento, historiadores da prpria Companhia de Jesus, como Vasconcelos, utilizaram-se delas para glorificar o empreendi-mento missionrio descrito naquelas cartas.

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    Hei de escrever a heroica misso, que emprehendero os Filhos da Companhia, a fim de conquistar o poder do inferno, senhoreado por seis mil e tantos annos do vasto imperio da

    Gentilidade Brasilica. Hei de contar os feitos ilustres d'estes religiosos Vares, as regies que descobriro, as campanhas que talro, as empresas que accommetero, as victorias que alcancro, as naes que sujeitro, e a reputao que adquiriro as armas espirituaes Portuguesas do Esquadro, ou Companhia de ]esus. 31

    Gradualmente, no entanto, narrativas eptcas sobre o herosmo e o martrio dos jesutas foram sendo substitudas por uma competente historiografia das misses, sendo que a histria em dez volumes escrita por Serafim Leite em meados deste sculo continua sendo a mais importante referncia sobre o tema. 32 Outros estudos mais recentes das misses jesuticas fazem contribuies siginificativas sua compreenso, a maioria convergindo em uma preocupao antropolgica com o aspecto simblico-cultural da dominao dos jesutas sobre os ndios. 33 O que une todas estas interpretaes das cartas jesuticas o fato de serem usadas como um veculo para a compreenso de inmeros aspectos da histria das atividades missionrias dos irmos e de sua interao com os nativos do Novo Mundo. O valor das cartas jesuticas enquanto fonte histrica incontestvel, mas alm de serem instrumentos para desvendar narrativas do Brasil colonial, estas cartas so tambm importantes eventos daquelas narrativas, expresses de um conjunto de prticas discursivas formatadas por uma instituio religiosa e por formas retricas do nicio da era moderna.

    O uso da correspondncia escrita havia sofrido um espantoso aumento na Europa do incio da idade moderna, em conse-qncia de vrios fatores, entre eles: a diminuio do analfa-betismo, o progresso da economia de trocas comerciais, as exploraes ultramarinas e a expanso geogrfica de organi-zaes seculares e religiosas. O meio de comunicao mais prtico entre pessoas separadas por grandes distncias era, obviamente, a escrita. A expanso da demanda por meios de comunicao escrita forou uma expressiva melhora nos servios postais europeus. Enquanto na Idade Mdia o servio de correio ficava a cargo das cortes, guildas e univer-sidades, no incio da idade moderna, banqueiros e comerciantes comearam a estabelecer seus prprios servios. Mesmo que a instituio do correio nacional s tenha sido estabelecida no sculo XIX, servios de correio confiveis eram usados amplamente pelos letrados europeus j no sculo XVI.

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  • A instituio epistolar desenvolvida pelos jesutas nos primeiros anos de sua ordem religiosa era centrada na redao peridica de correspondncia, atravs da qual os irmos prestavam contas e pediam ajuda para suas atividades de campo. Os jesutas criaram instrumentos que garantiam a conformidade de suas prticas missionrias s normas institucionais. Contudo, naquele tempo pr-burocrtico, a prestao de contas no correspondia estritamente eficincia institucional, mas sim demonstrao do uso da prudncia e da obedincia nas prticas relatadas atravs das missivas.

    Do perodo de 1549 a 1610, mais de seiscentas cartas foram enviadas, das misses no Brasil para Portugal e para o resto da Europa, numa mdia de dez cartas por ano, escritas por mais de cem missionrios. Aproximadamente quatrocentas dessas cartas foram preservadas. Deste total, a metade foi escrita por irmos que viviam nas vilas de So Vicente e Bahia. O restante da correspondncia partiu dos povoados costeiros de Pernambuco, Ilhus, Porto Seguro, Rio de janeiro e Esprito Santo.34 A freqncia dessa correspondncia, na maioria das vezes, no era determinada pelo mpeto dos jesutas de se comunicar com a Europa, ou pelas normas que regulavam a periodicidade da redao de cartas na Companhia de jesus, mas sim pela disponibilidade e freqncia das partidas dos navios e pelo longo tempo da viagem transatlntica. No era raro que uma missiva demorasse mais de um ano para ir do Brasil Europa. Alm da viagem martima, havia o transporte terrestre da correspondncia, tanto no Brasil quanto na Europa. Um ciclo completo de troca de correspondncia que inclusse uma primeira carta enviada Europa, sua rplica e uma trplica poderia demorar mais de meia dcada para ser completada.35

    A Companhia de jesus era uma empresa internacional no somente no tocante destinao de suas atividades missionrias mas tambm com relao origem de seus membros. Os jesutas que vieram ao Brasil provinham de dife-rentes regies europias e falavam lnguas diversas. A maioria era fluente em portugus ou espanhol, mas muitos falavam outras lnguas europias como italiano, galego e catalo. Alguns sabiam ler latim mas no conheciam suficientemente a lngua a ponto de escrev-la. Cnscio desses problemas, Incio de Loyola ordenou que todas as cartas fossem escritas em lnguas

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    modernas. O fato de que a grande maioria dos jesutas falava lnguas neolatinas obviamente facilitou bastante a implemen-tao e o sucesso dessa medida.

    Embora a redao de cartas no fosse necessariamente a principal atividade dos jesutas no Brasil , ela era de extrema importncia. As cartas eram escritas com muito cuidado, algumas delas excedendo quarenta pginas manuscritas. Para os missionrios, aquela era a nica via de comunicao com pessoas que tinham algum interesse em suas atividades pastorais. As cartas que chegavam da Europa, por sua vez, no raro causavam comoo entre os jesutas do Brasil; assim tambm longos perodos sem notcias eram causa de desconsolo e frustrao entre os irmos. A chegada de uma carta jesutica era seguida de sua leitura em voz alta para todos os irmos. Essas sesses de leitura constituam ocasies especiais na vida dos missionrios na colnia, s vezes durando toda a madrugada.

    ... segundo mi estimativa, seran dos oras despus de la media noche quando por casa entr el que traya [las cartas]; no caban los Hermnanos de comtentamiento y plazer, viendo lo mucho que e] Seii.or se dignava de obrar en sus criaturas por medio de los de la Compaii.ia en tantas y tan diversas partes dei mundo. De ay hasta la maii.ana, no ava quien pudiese dormir porque lueguo e! Padre Provincial comen a leer las cartas ... 36

    . A. ins,ti~ui~o ~~istolar e:a a espinha dorsal da empresa,,\ missionana JeSuitica no seculo XVI. Esse era o meio dei

    1i comunicao institucional da ordem, contendo todos os . relatos dos acontecimentos nas casas jesuticas e as notcias \ da colnia em geral. Mesmo silncios e omisses nas cartas contam algo a respeito da atividade jesutica, aquilo que no deveria ser dito ou que precisava ser ocultado. Atravs das cartas, os missionrios prestavam contas e pediam auxlio para o aperfeioamento de seu ministrio. Contudo, as prticas institucionais eram controladas apenas at um certo ponto, pois um controle burocrtico estrito das atividades acabaria por cercear o desenvolvimento da instituio, ento em fase emergente.

    Em 1547, o secretrio perene da ordem, p. Juan de Palanco, expediu uma longa circular para todos os membros explicando

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  • as vinte razes pelas quais os jesutas deveriam manter uma correspondncia diligente. Suas razes podem ser classificadas em trs grupos: (1) a redao de cartas contribua para o bem interno da Companhia porque promovia a unio dos coraes dos irmos e ajudava o governo da ordem; (2) a correspondncia produzia o bem externo da Companhia pois ajudava a atrair novos membros e permitia que pessoas de fora da instituio pudessem saber de seu trabalho e contribuir com ele de alguma maneira; e (3) a redao das cartas promovia o bem privado do correspondente, pois o conhecimento das atividades dos outros membros tornava a vocao mais slida e o ministrio mais humilde e diligenteY O tom exortativo da circular de Palanco mostra a grande importncia que os superiores da ordem atribuam rotina da troca de correspondncia entre os jesutas. Todos os membros, sem exceo, deveriam se convencer da importncia de escrever regularmente a seus superiores.

    Imediatamente aps a fundao da Companhia de Jesus, foi institudo um hebdomadrio com a finalidade de escrever semanalmente a todos os membros da ordem sobre as questes mais importantes relativas instituio. Essa comunicao semanal era redigida em Roma por um assistente do General da Companhia. O posto passou por vrias mos at ser transferido para Francisco Xavier, que ficou na condio de redator por um longo tempo. Com a extenso da atividade missionria para a sia e Amrica, a partir de 1540, a troca de correspondncia tornou-se crucial administrao interna da ordem. As atividades nas casas da Europa podiam ser moni-toradas diretamente atravs de visitas, mas o mesmo no era possvel no caso das misses do alm-mar. A necessidade de superviso daquelas atividades missionrias levou os jesutas a estabelecerem a obrigatoriedade da comunicao epistolar peridica para todos os membros da ordem. Ademais, a reproduo e expanso das atividades missionrias jesuticas dependiam tambm da publicidade de seus feitos para alm dos limites da Companhia, buscando assim o reconhecimento daqueles que lhes prestavam ajuda poltica e financeira: o papado e os reis catlicos europeus.

    Algumas cartas eram escritas com o intuito explcito de serem lidas por um pblico amplo, o que criou a necessidade adicional de controlar a informao que era tornada pblica.

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    Em 1541, Incio de Loyola instituiu a hijuela: a partir de ento, os jesutas escreveriam cartas narrando somente as notcias edificantes de suas misses, anotando os problemas institu-cionais em uma folha separada, que ficou conhecida como hijuela. 38 A metade das mais de seiscentas cartas escritas no perodo so hijuelas; a outra metade, composta por cartas que poderiam circular fora da ordem, ficaram conhecidas como cartas (ou relatos) edificantes.

    Nos primeiros anos da nova ordem religiosa, muitas das normas regulando a atividade epistolar dos jesutas foram estabelecidas na prpria correspondncia entre os irmos, mas uma estrutura definitiva para esta atividade