einstein - o universo além da física

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ESPECIAL | NOVEMBRO/08 - JANEIRO/09 O UNIVERSO ALÉM DA FÍSICA 01_Especial einstein_1aCAPA.indd 1 01_Especial einstein_1aCAPA.indd 1 28.01.09 11:50:53 28.01.09 11:50:53

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Suplemento com reportagens entre Novembro/08 e Janeiro/09

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Page 1: Einstein - O Universo além da física

ESPECIAL | NOVEMBRO/08 - JANEIRO/09

O UNIVERSO ALÉM DA FÍSICA

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Page 2: Einstein - O Universo além da física

1.

2.

3.

4.

5.

8.

6.

7.

[na capa]

1. Jovem Einstein

antes da mudança da

família para a Itália

2. Einstein declara

sua oposição à

bomba atômica

e à corrida

armamentista entre

os EUA e a União

Soviética em uma

entrevista coletiva

em Princeton

3. Einstein na casa

do físico Paul

Ehrenfest, 1920.

Em seu colo, Paul

Ehrenfest Jr.

4. Einstein e

Niels Bohr

5. Einstein de

bicicleta na casa de

Ben Meyer em Santa

Barbara, 1933

6. Einstein com

sua mulher, Elsa

7. Einstein em 1921

8. Einstein e

Hendrik Antoon

Lorentz, 1921

FOTOS 2, 3, 4, 6, 7 E 8 WIKIMEDIA COMMONS; 1 REPRODUÇÃO MARCIA MINILLO; 5 ARQUIVOS DO INSTITUTO DE TECNOLOGIA DA CALIFÓRNIA/INSTITUTO SANGARI/DESENHO LAURA DAVIÑA

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Page 3: Einstein - O Universo além da física

EINSTEIN REVISITADO

Albert Einstein foi analisado, examinado e debatido de mui-tas maneiras entre 11 de outubro e 14 de dezembro de 2008 no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. A revolução que o genial cientista produziu na física no começo do século XX e o poderoso impacto de suas teorias no conhecimento científi co em geral, tanto quanto os passos concretos apa-rentemente incoerentes que o conduziram a uma biografi a de raro brilho e os ecos de suas criações intelectuais em variados campos das artes e das humanidades, foram crite-riosamente esquadrinhados por respeitados pesquisadores em 26 palestras organizadas por Pesquisa FAPESP. Essas falas compuseram a programação cultural paralela da exposi-ção Einstein, organizada pelo Instituto Sangari no pavilhão Engenheiro Armando de Arruda Pereira, e constituíram a base de três suplementos especiais publicados pela revista nas edições de novembro e dezembro de 2008 e janeiro de 2009. Agora todos os textos dos suplementos, reunidos na presente publicação especial de Pesquisa FAPESP, aparecem reordenados de modo a permitir aos leitores um percurso com maior organicidade, primeiro, pelo trabalho do físico propriamente, em seguida, por outras facetas laboriosas de Einstein, como a do inventor de pequenos aparelhos e engenhocas e, por último, pelo lugar que o trabalho desse cientista ocupa no conhecimento e na cultura – mais cla-ramente estabelecido pelas relações de suas proposições com muitas outras, contemporâneas, e vindas de variados campos teóricos.

Sobre a exposição Einstein, diga-se, antes de mais nada, que ela foi vista por 145 mil pessoas, entre 24 de setembro e 14 de dezembro de 2008 (a Revolução genômica, mostra anterior montada pelo Instituto Sangari, atraiu 150 mil pessoas do fi nal de fevereiro a meados de julho de 2008). É sem sombra de dúvida um belo resultado num país em que exposições científi cas e visitas a museus de ciência não estão ainda na agenda normal da maior parte da população, reconhece o diretor científi co do instituto e coordenador científi co da mostra, Marcelo Knobel. Concebida original-mente no Museu de História Natural de Nova York, mas com um importante acréscimo de conteúdo de seus orga-nizadores brasileiros, a exposição visivelmente fascinou pessoas de todas as idades, em especial nas instalações mais interativas, como a “teia de luz” e a “máquina do tempo”. Na primeira, propunha-se ao visitante o desafi o de atravessar uma sala cortada por feixes de luz sem tocá-los, seguindo a brincadeira contida numa frase de Einstein: “E se corrêsse-mos com um raio de luz?” Na segunda, ao fornecer a data de seu nascimento, o visitante podia observar em vários relógios, num grande painel, que idade teria se desde então estivesse viajando em diferentes frações da velocidade da luz (como seríamos tão mais novos se estivéssemos nos deslocando quase à velocidade da luz...).

Quanto às palestras da programação cultural – “a alma desse tipo de exposição, porque permite o contato direto do público com os especialistas e estimula o debate sobre a ciência na sociedade” –, elas tiveram um público muitas vezes mais modesto: 859 assistentes, ao todo, em 18 datas diferentes, o que dá uma média de quase 48 pessoas por sessão (nas palestras da Revolução genômica, também or-ganizadas por Pesquisa FAPESP, o público total estimado foi de 1.100 pessoas para 26 diferentes datas, ou seja, pouco mais de 42 por sessão). Consideradas todas as fortes barrei-ras culturais à afl uência a esse tipo de programa, admita--se, como Knobel, que “foi um bom público”. No entanto, “ainda não se conseguiu um horário adequado para que as palestras ligadas a temas científi cos possam competir com outras atividades”, pondera esse professor titular do Instituto de Física Gleb Wataghin e coordenador do mes-trado de Divulgação Científi ca e Cultura da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). As palestras da exposição Einstein, do mesmo modo que ocorrera com as da Revolução genômica, foram programadas para as tardes de sábado e fi nal das manhãs de domingo, e, entre centenas, às vezes milhares de frequentadores do parque, não eram tantos assim os que se dispunham a trocar atividades externas, especialmente em dias ensolarados, por um mergulho em densas refl exões sobre ciência numa sala fechada – mas foram o bastante para estimular especialistas brasileiros e estrangeiros a apresentar com vigor suas ideias e debatê-las, às vezes acaloradamente, com o público.

Na verdade, há muito a fazer além de descobrir os melho-res horários para o público e os melhores atalhos para sensi-bilizar os editores dos guias de fi m de semana para palestras, debates e exposições científi cas. “Acho que há um trabalho lento e longo a ser feito, ampliando também a sensibilidade das novas mídias, dos blogs, para esses eventos e assim bata-lhando para que criem raízes em nossa cultura”, diz Marcelo Knobel. Enquanto se vai fazendo isso, é animador saber que Pesquisa FAPESP recebeu de docentes e pesquisadores 145 solicitações de envio de DVDs com a íntegra de todas as pa-lestras apresentadas no ciclo Einstein, o que faz supor que a fi lmagem desses eventos, longe de se encerrar no próprio registro, tem um claro desdobramento educativo, talvez de prazo mais longo do que podemos imaginar. E é também animador perceber que das 80 mil a 90 mil visitas mensais que o site da revista recebe, um percentual muito signifi cativo de visitantes se detém nos vídeos de alguns minutos que re-sumem as palestras. Com as imagens e palavras ditas por um meio audiovisual ou com o registro escrito das ideias, Pesquisa FAPESP procura juntar-se ao esforço de muitos para ampliar a cultura científi ca ainda escassa na sociedade brasileira.

A exposição de um cientista singular ajuda a expandir a cultura científi ca

Mariluce Moura

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4 ■ FEVEREIRO DE 2009 ■ ESPECIAL EINSTEIN

1EINSTEIN, O FÍSICO

6 Um difícil legado Carlos Escobar

8 A luz e a matéria Luiz Davidovich

11 Paternidade encobertaSilvio Chibeni

12 Misteriosa aceleraçãoGary Steigman

14 Para além da fi cçãoGeorge Matsas

16 Sutis conexõesCarmen Prado

2EINSTEIN, MÚLTIPLAS FACES

18 As patentes do inventorNelson Studart

21 Um Einstein nos hospitaisRoberto Covolan

23 A substância indescritívelRoberto de Andrade Martins

27 Persistência e ousadiaCarlos Alberto dos Santos

30 Um cientista nos trópicosAlfredo Tolmasquim

32 O dossiê do FBIOlival Freire

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3EINSTEIN, CONHECIMENTO E CULTURA

34 Mudança de visãoPeter Schulz

36 Filósofo a toda prova Michel Paty

39 Reencontros no campoPablo Mariconda

40 O relativo se espraia Mauro Almeida

42 Produzindo “Einsteins”Antônio Augusto Videira

43 Zonas alheias à cronologiaMartín Cammarota

44 Memórias duradourasLino de Macedo

46 As reinvenções do ontem e do amanhã Edgar de Decca

47 As representações da simultaneidade Arthur Miller

50 A duração do espetáculoSérgio de Carvalho

51 Viagem vertiginosa Rubens Machado Júnior

52 Um charme discreto Maria Cristina Abdalla

54 Encontros na fronteiraJosé Luiz Goldfarb

55 Combate quixotesco Yurij Castelfranchi

57 Gostos e desgostos Cássio Leite Vieira

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6 ■ FEVEREIRO DE 2009 ■ ESPECIAL EINSTEIN

UM DIFÍCIL LEGADO CARLOS ESCOBAR

Físico da Unicamp mostra como

Einstein construiu seus conceitos

Uma das características notáveis de Albert Einstein é a liberdade, ressaltou Carlos Escobar, físico e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) ao abrir a apresentação “O difícil legado de Einstein” e o ciclo de palestras promovido pela revista Pesquisa FAPESP em paralelo à exposição Einstein. As palestras dele e de Peter Schulz (página 34), também físico e professor da Unicamp, no dia 11 de outubro, contaram com a mediação do jor-nalista Marcelo Leite, que lançou o livro Ciência – Use com cuidado, segundo volume da coleção Meio de Cultura (Editora da Unicamp), após as apresentações.

Mesmo pensando com liberdade, Einstein não chegou sozinho aos conceitos que criaram novos rumos para a física. Ele se apoiou na obra de outros cientistas, como o físico e matemático italiano Galileu Galilei, que Escobar chamou de “um dos pais da física”, por ter iniciado a cons-trução do pensamento científi co moderno. “O cientista de hoje se afastou do cuidado literário da apresentação das ideias”, alertou Escobar. Quatro séculos atrás, Galileu fez as primeiras observações das luas de Júpiter e das mon-tanhas da Lua e as apresentou com esmero em um livro que pode ser lido com prazer ainda hoje, O mensageiro das estrelas.

“Era óbvio que o que Galileu via não era o que os an-tigos pensavam”, observou Escobar. “Não era o perfeito.” Galileu é chamado de pai da ciência moderna e do método experimental justamente por “ter confrontado teorias com resultados experimentais e condições sob controle”. Foi Galileu quem detectou um princípio unifi cador das leis do Universo: as leis da natureza que valem nas imediações da Terra valem também em qualquer outro lugar.

O físico inglês Isaac Newton, que também ajudaria a embasar o trabalho de Einstein, completou a revolução galileana ao propor novos métodos matemáticos que davam mais precisão aos conceitos de espaço e tempo. Depois o físico escocês James Clerk Maxwell unifi cou a eletricidade, o magnetismo e a óptica em uma só força, o eletromagnetismo. Maxwell morreu aos 48 anos e não pôde avançar nas implicações mais profundas das quatro equações que criou, mostrando como cargas elétricas produzem campos elétricos, como a corrente elétrica produz campo magnético e como variações de campo magnético formam campos elétricos. Einstein, porém, percebeu que o eletromagnetismo, a força que explicava esses fenômenos, começava a mudar também os con-

EINSTEIN, O FÍSICO

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Escobar: revendo a história

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LOceitos de espaço e de tempo, abalando profundamente o

Universo mecânico de Newton. “Para Newton, não havia campos de força”, contou Es-

cobar. Newton se sentia incomodado com essa limitação conceitual, mas não conseguiu avançar. Einstein seguiu adiante, entre outras razões, porque amava a liberdade, “a qualidade mais importante do ser humano”, dizia. Escobar mostrou uma foto de Einstein já cinquentão e pediu para a plateia atenta e ampla, de cerca de 90 pessoas, observar o mesmo olhar amigo da liberdade que já expressava quando era menino e desde cedo incomodava alguns professores.

Einstein selecionou da obra de Newton o que lhe servia. “Para Newton, o tempo fl uía de modo igual para todos os observadores”, disse Escobar. “Einstein não gostava de tempo e espaço absolutos, ele os queira dinâmicos!” Com esse propósito, começou a trabalhar experiências mentais que se assemelhavam ao que Galileu já havia feito, ao ima-ginar um barco em movimento no mar tranquilo. Ele se perguntava onde cairia uma pequena bola que um marujo soltasse do alto do mastro. Os pensadores antigos diriam que a bola cairia para trás do pé do mastro, em direção à popa, mas na verdade a bola cai ao pé do mastro, como se o barco estivesse parado.

Quem primeiro chegou perto do conceito de rela-tividade, que explica esses fenômenos, porém, não foi Einstein, mas o físico e matemático francês Henri Poin-caré. Poincaré lançou o conceito de relatividade no início do século XX, ao afi rmar que o observador não é capaz de perceber se está em movimento sem olhar para fo-ra. O caminho foi o mesmo de Galileu: as experiências de pensamento ou, em alemão, Gedankenexperimente. “Einstein era um mestre das experiências mentais, que mostravam as contradições com os quadros teóricos, que aos poucos ele abandonava. A primeira ele fez aos 16 anos, perseguindo um feixe de luz, como um surfi sta seguindo uma onda”, comentou Escobar. De acordo com os conceitos tradicionais da época, ele veria fenômenos – ondas eletromagnéticas – que oscilam no tempo, mas não no espaço, em contradição com os conceitos de Maxwell sobre eletromagnetismo. “Maxwell afi rmava que, se um campo eletromagnético varia no tempo, deveria variar também no espaço.” Como resultado, em 1905 Einstein apresentou a teoria da relatividade especial, mostrando o que Poincaré e o físico holandês Hendrik Lorenz não haviam visto: a simultaneidade – o próprio tempo – de-pende do observador.

“Einstein disse então que estava pronto para atacar a segunda coisa de que não gostava na teoria de Newton, o espaço absoluto, sobre o qual não se podia atuar”, disse Escobar. A empreitada lhe consumiu muita energia e muito tempo, mais do que qualquer outra anterior. O matemático lituano Hermann Minkowski também contribuiu, não só ensinando matemática a Einstein na Escola Politécnica de Zurique, como também oferecendo conceitos novos sobre espaço.

Depois de estudar e pensar muito, Einstein uniu duas entidades físicas antes tratadas separadamente, o espaço e o tempo, em uma só, o espaçotempo. “Em 1907, ele contou que teve o pensamento mais feliz da sua vida, imaginando-se em queda livre do teto da casa e soltando chaves e bolinhas que tinha no bolso e fi cavam ao lado dele. Assim, ele conseguia anular o campo gravitacional”, disse Escobar. “A geometria do espaçotempo, ele con-cluiu, deveria ser local, curva e capaz de anular o campo gravitacional.” Essa era a resposta a perguntas que ele havia feito 17 anos antes e lhe custara, como disse Escobar, “longos momentos de desespero”. Einstein, porém, não acalentou apenas a angústia – e de 1907 a 1915 escreveu 67 trabalhos científi cos.

Em 1913, um amigo e colega de Einstein, o matemáti-co Marcel Grossmann, recomendou a ele que estudasse o trabalho de livre-docência de outro matemático alemão, Georg Riemann, sobre espaços em dimensões generali-zadas. “Riemann já dizia, 70 anos antes, que geometria é física, e física é geometria”, lembrou Escobar. “Einstein concluiu então que matéria e energia dizem ao espaçotem-po como se curvar e o espaçotempo diz à matéria e à luz como se propagar.” Esse raciocínio implicava que não havia gravidade, mas espaçotempo, que determina a massa. Era

O difícil legado de Einstein

Carlos Ourívio Escobar, físico e professor titular do Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), membro recém--eleito da Academia Brasileira de Ciências (ABC)

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8 ■ FEVEREIRO DE 2009 ■ ESPECIAL EINSTEIN

Além de ter formulado a teoria da relatividade, Albert Eins-tein investigou durante muitos anos as propriedades da luz. A conclusão a que chegou, de que a luz poderia se comportar como se fosse um corpúsculo, ajudou a embasar a então nascente física quântica, mas contrariava os pressupostos da física clássica, segundo a qual a luz era tão-somente onda. Isso o incomodava profundamente. “Havia vários confl i-tos de Einstein com a teoria que ele ajudou a criar”, disse o físico Luiz Davidovich, professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na palestra do dia 7 de dezembro, “Einstein, a luz e a matéria”.

Davidovich apresentou inicialmente Pierre Laplace (1749-1827), matemático francês que reforçou o determi-nismo da física clássica com raciocínios como este: “Uma

inteligência que em determinado instante pu-desse conhecer todas as forças que governam o mundo natural, que pudesse conhecer as posições respectivas das entidades que o com-põem e que fosse capaz de analisar todas essas informações teria como abranger em uma única fórmula os movimentos dos maiores corpos do Universo e dos seus menores átomos. Para essa inteligência, nada seria incerto. Tanto o passa-do quanto o futuro estariam presentes aos seus

olhos”. Como o futuro poderia ser conhecido desde que o passado fosse conhecido, não havia espaço para incertezas que logo começariam a brotar.

uma forma de explicar o desvio da luz por corpos de massa elevada, como os buracos negros e galáxias massivas. “Os corpos massivos curvam o espaçotempo, forçando a luz a seguir uma trajetória curva”, disse Escobar. Esse fenô-meno, conhecido como lentes gravitacionais, é hoje uma ferramenta indispensável para estudar objetos celestes, por permitirem análise da curvatura da trajetória da luz.

“É notável em Einstein o pensamento intuitivo, o uso de imagens, os experimentos mentais e a simplicidade baseada na matemática”, comentou Escobar. “Os traba-lhos que ele publicou em 1905 podem e devem ser lidos por qualquer estudante de graduação em física.” Escobar ressaltou a dimensão moral de Einstein citando o poeta grego Yannis Ritsos, que dizia: “A verdadeira estatura do homem é medida com o metro da liberdade”.

Mesmo antes de se tornar uma celebridade mundial em 1919, quando um eclipse observado em Sobral, no Ceará, confi rmou a teoria da relatividade geral, Einstein não se escondeu, lembrou Escobar. Einstein logo percebeu que poderia usar seu prestígio científi co contra injustiças sociais, como em manifesto contra a guerra, que ele assi-nou em 1917. Mais tarde, em 1954, em uma palestra ao receber um prêmio sobre direitos humanos em Chicago, comentou que “os direitos humanos não estavam escritos nas estrelas, cabe aos homens construí-los”.

“Nenhuma biografi a lembra que Einstein era socialista”, observou Escobar, que mostrou a página inicial de um artigo publicado em maio de 1949 da revista norte-americana

Monthly Review em que Einstein, o autor desse trabalho, de-fendia o socialismo. Em outro artigo, chamou o racismo de “a doença mais profunda da sociedade dos Estados Unidos”. Escobar lembrou que hoje ainda existe discriminação racial não só nos Estados Unidos, mas em todo o mundo.

• Carlos Fioravanti

A LUZ E A MATÉRIA LUIZ DAVIDOVICH

Físico descreve os conflitos de Einstein

com a física quântica, que ele ajudou a criar

Einstein, a luz e a matéria

Luiz Davidovich, físico e professor titular do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC), da Academia de Ciências do Mundo em Desenvolvimento (TWAS) e da National Academy of Sciences (NAS, Esta dos Unidos)

Lentes gravitacionais: legado de Einstein NA

SA

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Até o início do século XX as partículas atômicas eram caracterizadas por sua posição e velocidade, e a luz era apenas onda, com propriedades já bem estabelecidas. As leis do eletromagnetismo criadas pelo físico escocês James Clerk Maxwell relacionavam a frequência de oscilação – a cor da luz – com a velocidade da luz e o comprimento de onda. “A luz que atinge nossos olhos, se vibra muito, trans-mite a cor violeta; se vibra menos, transmite o vermelho”, exemplifi cou Davidovich. Também já era conhecido, ele lembrou, o fenômeno de interferência de ondas como as provocadas por duas pedras atiradas em um lago. “Quando o máximo de uma onda encontra o mínimo de outra, as ondas se anulam; quando dois máximos ou dois mínimos se encontram, se reforçam.”

O resultado dessas afi rmações é que no fi nal do século XIX os cientistas pensavam que não haveria mais nada a fazer na física; tudo parecia resolvido. Davidovich lembrou de um comentário do físico irlandês William Thomson (1824-1907), mais tarde conhecido como Lord Kelvin: “A física é um céu azul com pequenas nuvens no horizonte”. As pequenas nuvens representavam os problemas ainda abertos, que talvez pudessem ser resolvidos com técnicas matemáticas mais refi nadas. “Mas de repente as peque-nas nuvens no horizonte se juntaram e formaram uma imensa tempestade”, disse Davidovich. Os dois principais causadores dessa tempestade foram o físico alemão Max Planck, que publicou um estudo em 1900 mostrando que a produção de luz por um corpo aquecido, como um forno de uma siderúrgica, se dava através de pacotes de energia, e Einstein, que afi rmou em um artigo de 1905 que a luz poderia se comportar como se fosse constituída de cor-púsculos chamados fótons.

Einstein hesitante O físico inglês Thomas Young já havia estudado bastante a luz e a caracterizado como fenômeno ondulatório em um dos experimentos que fez em 1800: a luz passava por fendas e formava regiões claras e escuras sobre uma super-fície colocada depois das fendas, mas essas interferências

desapareciam quando ele cobria uma das fendas. “Essa experiência explica a reticência de Einstein em dizer que a luz era constituída de corpúsculos”, comentou Davido-vich. Mesmo hesitante, Einstein estudou intensamente a luz nos anos seguintes e em 1909 publicou um artigo em que mostrava, com base em argumentos estatísticos, que as fl utuações de energia de radiação tinham um caráter ambíguo, exibindo características de partícula e de onda. “Notem a visão de longo alcance de Einstein, que disse que deveria haver uma teoria que juntasse esses dois aspectos da luz como onda e partícula”, ressaltou.

Em 1911, no I Congresso de Solvay, que reuniu os prin-cipais físicos do mundo em Bruxelas, na Bélgica, Einstein, o mais jovem dos participantes, insistiu no conceito pro-visório de quanta, que apresentava a luz como pacotes de energia, emitida em pequenas quantidades a cada vez, e colidia com “as consequências experimentalmente verifi -cadas da teoria ondulatória”, nas palavras do próprio físico alemão. Mesmo resistente à teoria quântica que começava a emergir, Einstein continuou a estudar a absorção e a emissão da luz.

Por fi m, em um trabalho publicado em 1919, demons-trou teoricamente que havia duas maneiras distintas de um átomo passar de um estado com maior energia para um de menor energia emitindo radiação: ele pode emitir um fóton espontaneamente ou então, se estimulado por um fóton, emitir outro fóton idêntico ao que estimulou a emissão. “Nesse caso, da emissão estimulada, chega um fóton e saem dois fótons idênticos”, sintetizou Davidovich. “Os físicos estavam tão obcecados em entender a natureza que não viam aplicação nessa descoberta.” Só em 1960, 43 anos depois, valendo-se desse conceito sobre a emissão de radiação, o físico norte-americano Theodore Maiman construiu o primeiro aparelho emissor de raios laser.

Einstein continuava resistente às suas próprias con-clusões de que, no processo de emissão espontânea, seria impossível determinar o instante e a direção em que o áto-mo liberaria o fóton. Em uma carta que enviou em 1920 a um amigo, o físico dinamarquês Niels Bohr, Einstein

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Davidovich: a luz no horizonte

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declarou que “fi caria muito infeliz se tivesse que renun-ciar à causalidade completa”. “Os resultados entravam em choque com o determinismo da física clássica”, observou Davidovich. Poucos anos depois outro físico, o fran-cês Louis de Broglie, propôs que não só a luz, mas tam-bém partículas elementares da matéria como elétrons e prótons poderiam compor-tar-se como ondas.

Aos poucos o determinis-mo de Laplace era enfraque-cido e a ideia de que átomos e fótons pudessem se compor-tar como onda ou partículas ganhava força. “Onda não é

mais um ente físico, como uma onda de água, mas um ente abstrato, que descreve uma probabilidade”, disse o físico da UFRJ. “Se essa ideia é difícil para nós hoje, imaginem naquela época.” Einstein não se conformava e, em outra carta a um amigo, o físico alemão Max Born, reconheceu que a mecânica quântica se impunha, embora, para ele, não fosse a última palavra. Seu argumento: “Deus não joga dados”. Pouco depois, em 1927, o físico alemão Wer-ner Heisenberg anunciou o que se tornaria conhecido como princípio da incerteza de Heisenberg, que refor-çava o desconforto de Einstein: era impossível conhecer com precisão a velocidade e a posição de uma partícula ao mesmo tempo: aumentar a precisão de uma variável implica reduzir a de outra. A determinação precisa da posição ou do momento envolve experimentos diferentes e complementares. Da mesma forma, a luz comporta-se como onda ou como partícula dependendo do experimen-to que a examina. “Heisenberg dizia que só havia sentido falar da posição de uma partícula dentro de um contexto experimental projetado para medir essa posição”, disse Davidovich. “Fora desse contexto, a posição não teria uma realidade física.”

Em uma reportagem publicada em 3 de maio de 1935 o jornal norte-americano The New York Times destacou que Einstein atacava a teoria quântica, chamando-a de “incompleta, embora correta”, em um artigo que seria publicado duas semanas depois na revista Physical Re-view com outros dois físicos, o russo Boris Podolsky e o norte-americano Nathan Rosen. Os três examinavam um fenômeno do mundo quântico conhecido como emara-nhamento, considerando duas partículas que se separam após uma colisão e para as quais, segundo a física quântica, é possível conhecer apenas a soma de suas velocidades e a diferença de posição entre elas, mas nem a velocidade nem a posição de cada uma individualmente. “Em um estado

emaranhado, o conhecimento global não implica conhe-cimento individual das partículas”, disse Davidovich para a plateia, que tranquilizou em seguida: “Se não entendem, podem fi car tranquilos. Estão em excelente companhia. Ninguém entende direito”.

“Einstein, Podolski e Rosen argumentaram que, me-dindo a posição ou a velocidade de uma das partículas, poderíamos inferir a posição ou velocidade da outra, mes-mo estando distante, a partir do conhecimento da soma das velocidades e da diferença de posições”, comentou o físico do Rio. “Assim, a posição e a velocidade dessa ou-tra partícula deveriam ter uma realidade física, pois essas quantidades poderiam ser determinadas sem interagir diretamente com essa partícula. Desenvolvimentos poste-riores da física quântica mostraram, no entanto, que de fato não se pode atribuir uma realidade física simultaneamente à posição e à velocidade de uma partícula.”

Einstein dedicou-se também ao estudo da matéria. Seus trabalhos nessa área, publicados entre 1907 e 1911, mostraram novas propriedades térmicas dos sólidos. Em 1925 Einstein caracterizou teoricamente um novo esta-do da matéria, o chamado condensado Bose-Einstein, em que todos os átomos estão no estado de mais baixa energia. Esses trabalhos permitiram a construção de lasers de átomos, análogos ao laser de luz criado por Maiman. “A física quântica, apesar de seus aspectos contraintuiti-vos, teve um profundo impacto em nosso quotidiano”, ressaltou Davidovich. O laser, lembrou ele, é usado como base para tratamentos de pele, correção de visão e CDs. A ressonância magnética nuclear, outra aplicação da física quântica, facilita a observação do cérebro humano em funcionamento. Outras aplicações incluem os transisto-res, que deram origem aos computadores modernos, e os relógios atômicos, com uma precisão de um segundo em 10 milhões de anos.

Hoje a física quântica, que Einstein morreu sem aceitar, cobre fenômenos envolvendo distâncias que diferem de 60 ordens de grandeza (cada ordem de grandeza equivale a um fator 10). Serve para estudar fenômenos que vão de uma escala de 10-35 metros, como as supercordas, es-truturas elementares hipotéticas do Universo, até 1.026 metros, como o mapa de fl utuações da radiação térmica de micro-ondas do Universo. Para dizer que em boa parte a física quântica ainda é misteriosa, Davidovich valeu-se de um comentário de Niels Bohr: “Quem não fi ca chocado com a física quântica não a entendeu”. O físico da UFRJ en-cerrou a apresentação com o seguinte comentário: “Parece estranho e parece estranho e parece muito estranho; mas de repente não parece mais estranho, e não conseguimos entender o que fez parecer tão estranho para começar”. Dessa vez a frase não era de um cientista, mas da escritora norte-americana Gertrude Stein sobre a arte moderna do início do século XX.

• Carlos Fioravanti

Conhecimento

global não

implica

conhecimento

individual

das partículas.

Se não

entendem,

podem fi car

tranquilos.

Ninguém entende

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Chibeni: justiça à mecânica quântica

PATERNIDADE ENCOBERTASILVIO CHIBENI

Professor da Unicamp apresenta Einstein

como um dos pais da mecânica quântica

savam e deu o pulo para explicar a relatividade geral, que tem a ver com gravitação. “Nesse caso a contribuição dele foi mais individual, quase tudo dependeu dele.”

Em termos de ideias originais, a contribuição de Einstein também foi decisiva na criação do segundo dos grandes pilares da física contem-porânea, a mecânica quântica, cuja formulação fi nal foi proposta em meados da década 1920 por dois físicos independentemente: o alemão

Werner Heisenberg e o austríaco Erwin Schrödinger. Fo-ram esses nomes que entraram para a história da ciência mais fortemente associados à mecânica quântica, mas foi o trabalho precursor de outro alemão que estabeleceu os fundamentos da teoria. “Há pouca dúvida de que sem a contribuição de Einstein esse desenvolvimento importante na física teria demorado muito mais para acontecer”, disse o fi lósofo paulista.

QuantizaçãoEle explica que é comum considerar-se que a física quân-tica nasceu em um artigo publicado por Max Planck em 1900, em que propôs uma fórmula na qual considerava que o processo de produção de luz fosse quantizado – em pacotes em vez de gradual. Mas na verdade a quantiza-ção só foi proposta como um aspecto físico real em 1905, num trabalho em que Einstein explicou como elétrons se desprendem de placas metálicas sobre as quais incide luz, um fenômeno conhecido como efeito fotoelétrico. Para dar conta das observações desse fenômeno feitas no fi nal do século XIX, o físico alemão propôs que a luz tinha uma natureza granular: o que atinge o metal são peque-nos pacotes de luz. Uma proposta revolucionária diante da teoria sedimentada, até aquele momento, de que a luz tinha natureza ondulatória. Só dez anos depois o norte-americano Robert Andrews Millikan conseguiu mostrar, com uma série de experimentos, que a equação proposta por Einstein para descrever aspectos quantitativos do fe-nômeno estava correta.

A ideia dos quanta de luz foi muito contestada entre os físicos – e continuou contestada mesmo depois que Einstein ganhou o Prêmio Nobel em 1921. “Einstein foi solitário na defesa dessa perspectiva durante muito tempo.”

Chibeni mostrou que a quantização de propriedades físicas também foi aplicada por Einstein na explicação de diversos outros fenômenos. Em 1905 ele usou a teoria para

Da perspectiva de um físico fi lósofo – ou um fi lósofo da física – o pensamento de Einstein ganha ainda mais profundidade. Na palestra “As contribuições e críticas de Einstein à física quântica”, no dia 8 de novembro, Silvio Chibeni, do Departamento de Filosofi a da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mostrou que a con-tribuição do renomado físico alemão vai muito além da teoria da relatividade com que o público leigo o identifi ca. Ele não só foi pioneiro em formular os princípios da mecânica quântica, como também buscou melhorá-los discutindo as limitações da teoria.

Como boa parte dos avanços científi cos, a teoria da relatividade foi formulada de maneira incremental por vários pesquisadores que trabalhavam no problema. “A relatividade restrita era algo que já estava mais ou menos no ar, na época. A contribuição de Einstein foi princi-palmente no sentido de fechar esse conhecimento, de dar uma fi nalização e sobretudo um enfoque fi losófi co diferente, que modifi cou a forma pela qual os assuntos estavam sendo discutidos”, contou Chibeni. Mas a partir daí o cientista alemão passou adiante do que outros pen-

As contribuições e críticas de Einstein à física quântica

Silvio Seno Chibeni, físico e professor livre-docente do Instituto de Filosofi a e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp

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explicar o curioso fenômeno do movimento browniano, que tinha sido descrito a partir de como grãos de pólen se movem num fl uido. A confi rmação experimental de suas equações nos anos subsequentes foi fator decisivo para que a teoria dos átomos fosse defi nitivamente aceita. Usan-do os mesmos princípios teóricos, em 1906 ele explicou certas anomalias no comportamento de sólidos a baixas temperaturas. Em 1924 adotou e desenvolveu a proposta de uma estatística quântica, feita pelo então desconhecido físico indiano Satyendra Bose. E por fi m apoiou, nessa mesma época, a ideia bizarra – porém fundamental para a mecânica quântica – das “ondas de matéria”, formulada pelo jovem Louis de Broglie.

Mas o próprio Enstein não fi cou completamente con-vencido com todo esse trabalho precursor. Quando a teo-ria fi nal foi formulada, ele se tornou, até o fi m da vida, o seu principal crítico. Embora achasse a teoria correta, afi rmava que ela era incompleta. “Um indício dessa in-completude é que as predições quânticas em geral têm um caráter probabilístico e, em geral, não especifi cam algumas propriedades dos objetos individuais”, explicou Chibeni. Fazendo uma comparação, é como se alguém informasse a média de idade de um grupo de pessoas, mas não a idade de cada uma. O mais importante argumento apresentado por Einstein para a tese da incompletude da mecânica quântica foi publicado em 1935, em colabora-ção com Boris Podolsky e Nathan Rosen. Eles estudaram certos pares de objetos que foram criados juntos e com-partilham propriedades físicas, mesmo se transportados para locais distantes. Se a mecânica quântica estivesse completa, qualquer ação sobre um deles afetaria instanta-neamente o outro. “Para Einstein isso era inaceitável, por violar aquilo que ele chamava de princípio da localidade

ou princípio da ação local, segundo o qual as ações físi-cas não podem ser instantâneas e atingir imediatamente objetos remotos no espaço.”

Seguindo essa linha de pensamento – que logo foi considerada dissidente pela comunidade dos físicos –, em 1952, o norte-americano David Bohm, que na época estava no Brasil, trabalhando na Universidade de São Paulo, conseguiu formular uma teoria mais completa que a mecânica quântica. Ironicamente, porém, sua pro-posta tinha um aspecto indesejável: justamente violava o princípio da localidade. “Quando esse fato foi notado, naturalmente surgiu a questão de saber se essa ‘não-lo-calidade’ seria uma particularidade da teoria de Bohm ou, ao contrário, uma propriedade intrínseca de qualquer teoria mais completa que a mecânica quântica”, disse Chibeni. A resposta foi dada pelo escocês John Bell, que em 1964 provou que qualquer teoria completa e local viola certas predições estatísticas da mecânica quântica. De acordo com o fi lósofo da Unicamp, essas predições foram inequivocamente confi rmadas em diversos expe-rimentos realizados desde então.

Esses resultados teóricos e experimentais tiveram co-mo ponto de partida as críticas de Einstein, que apontou rumos de investigação, o que deixa claro que mesmo cri-ticando ele contribuiu de maneira extremamente positiva – mesmo que a teoria tenha seguido um rumo contrário ao que ele imaginava. “Ele não viveu para ver que suas críticas à mecânica quântica desembocaram num resul-tado que ele detestaria, ou seja, para completar a teoria quântica é preciso abrir mão da localidade”, concluiu o fi lósofo da Unicamp.

• Maria Guimarães

MISTERIOSA ACELERAÇÃOGARY STEIGMAN

A desestruturação completa de galáxias

é um possível destino do Universo

O Universo pode ter um fi nal melancólico, tornando-se mais escuro e solitário, ou mais dramático, com a de-sestruturação de átomos, estrelas e galáxias, entre outras possibilidades apresentadas pelo físico norte-americano Gary Steigman no dia 16 de novembro ao longo da pa-lestra intitulada “O mistério do Universo em aceleração”. Ao apresentar Steigman, pesquisador da Universidade Estadual de Ohio, Estados Unidos, que ajudou a eluci-dar a formação de elementos químicos mais leves como

hidrogênio e hélio logo após o surgimento do Universo, o físico e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Rogério Rosenfeld lembrou: “Nossas concepções do Universo mu-dam com o tempo, em consequência de novos instrumentos e de novas teorias”.

As últimas grandes descobertas sobre o que Rosenfeld chamou de “comportamento inespe-rado” do Universo emergiram em 1998, contra-riando as evidências sobre a possível expansão

contínua do Universo, acumuladas nos 30 anos anteriores. “Pensava-se que a velocidade de expansão do Universo se reduzisse, em movimento desacelerado. Mas as evidências contrariaram as previsões e mostraram um Universo em expansão acelerada”, comentou Rosenfeld. Steigman abriu a palestra mostrando justamente a capa da revista Science de 18 de dezembro de 1998 que apresentava o trabalho sobre o Universo em aceleração como o grande salto cien-tífi co daquele ano.

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Gary Steigman: Universo em constante mudança

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O mistério do Universo em aceleração

Gary Steigman, físico e professor da Universidade Estadual de Ohio, Estados Unidos

“À medida que o Univer-so se expande, torna-se mais frio, mais diluído e as on-das eletromagnéticas, mais longas”, contou Steigman, apoiado principalmente nos trabalhos de Albert Einstein. A teoria da gravitação de Einstein, conhecida como relatividade geral, generaliza a teoria de gravitação pro-posta pelo físico inglês Isaac Newton. Para ambos, a gra-vidade era “a força que de-termina a história e o futuro do Universo, além de manter a Terra na órbita ao redor do Sol”, lembrou Steigman.

Einstein pensou inicial-mente que o Universo seria estático, sem nenhuma ex-

pansão. Para obter um Universo estático, o cientista ale-mão introduziu em suas equações a chamada constante cosmológica. Mais tarde, com a descoberta da expansão do Universo, considerou um erro a introdução da cons-tante cosmológica. No entanto, justamente essa constante é que poderia explicar a expansão acelerada do Universo. Ou seja, Einstein estava certo. A energia do vácuo, uma variável apresentada pela mecânica quântica, uma vertente da física que emergia no início do século passado, também apontava para a aceleração do Universo. “Para a mecânica quântica”, disse Steigman, “o vácuo não é vazio, mas o estado da matéria com menor energia”.

Steigman olhou também para o passado do Universo, formado há cerca de 14 bilhões de anos e hoje com apro-ximadamente 1 bilhão de galáxias, cada uma com centenas de bilhões de estrelas. Em seguida, explorou detidamente o signifi cado das expansões desaceleradas ou aceleradas do Universo. “Se a expansão desacelera, a gravidade é força atrativa”, disse. “Quanto maior a densidade (dos objetos), mais forte é a gravidade. E quanto mais rápida a expansão, maior a separação.” Ele apresentou dois cenários possíveis, ambos para daqui a dezenas de bilhões de anos. No pri-meiro, a expansão é que pode ganhar, como resultado da densidade menor. No segundo, a gravidade é que ganha, reduzindo a taxa de separação entre as galáxias, e o Uni-verso para de expandir. “A expansão do Universo pode desacelerar sob infl uência da gravidade.”

Energia escuraNos últimos anos os físicos acrescentaram outro elemento para prever o futuro do Universo: a energia escura, um fl uido ainda pouco conhecido, mas abundante no Uni-verso. “Combinando constante cosmológica, energia do vácuo e energia escura, as galáxias podem se separar ainda mais rapidamente”, comentou Steigman. Em uma série de gráfi cos ele examinou as diversas possibilidades. Outra, a de expansão desacelerada, implica um Universo mais den-so, além de mais jovem que os hoje estimados 14 bilhões de anos. Aplicada isoladamente, a constante cosmológica aponta para um Universo em expansão acelerada e também mais velho que os 14 bilhões de anos. Mais recentemente os físicos começaram a trabalhar também com a radiação de fundo, que representa sutis fl utuações na temperatura do Universo.

Steigman contou que os físicos medem as distâncias entre galáxias e inferem sobre a expansão do Universo por meio do brilho dos objetos celestes. “Quanto mais brilhan-tes, mais próximos; quanto mais tênues, mais distantes.” Os padrões de luminosidade mais usados são as supernovas, raras explosões de estrelas que podem ser mais brilhantes que toda uma galáxia. Em março de 1997, depois de anos observando e comparando a mesma região do céu, os fí-

Nossas

concepções

do Universo

mudam

com o

tempo, em

consequência

de novos

instrumentos

e de novas

teorias

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PARA ALÉM DA FICÇÃOGEORGE MATSAS

Equações de Einstein permitiram supor

a existência de buracos negros

Pouco depois de ter completado 76 anos, Albert Einstein morreu em 18 de abril de 1955 em Princeton, nos Estados Unidos. Deixou o mundo possivelmente duvidando da existência de um dos objetos celestes mais fascinantes e misteriosos hoje conhecidos pela astrofísica: os buracos negros. Ironicamente, a presença de corpos extremamente densos e compactos, dotados de um campo gravitacional descomunal capaz de atrair toda a matéria ao seu redor, inclusive a luz, estava codifi cada na teoria da relatividade geral, formulada por Einstein em 1915. “Tanto quanto eu saiba, Einstein morreu não acreditando que buracos negros existiriam na natureza”, disse George Matsas, professor do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Pau-lista (Unesp), na palestra do dia 23 de novembro intitulada “Buracos negros: rompendo os limites da fi cção”, mesmo nome do livro que escreveu ao lado de Daniel Vanzella, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) de São Carlos. Ao que tudo indica, o gênio, nesse caso, estava errado. Embora não haja ainda provas diretas da existência de buracos negros, surgiram, a partir dos anos 1960, evidências observacionais consistentes de que esses grandes sugadouros de matéria não são apenas frutos de cálculos matemáticos ou da imaginação de físicos. “Hoje é impossível falar em astrofísica sem considerar a

existência dos buracos negros. A ciência moder-na superou a fi cção e isso é maravilhoso.”

Matsas deu uma pequena aula sobre buracos negros. Explicou o que eles são, como se formam e qual a infl uência que exercem sobre corpos vizi-nhos no Cosmos. Como o nome indica, buracos negros não emitem luz e não podem ser vistos de forma direta. Sua presença é inferida pelas perturbações que sua enorme força gravitacio-nal provoca na vizinhança. O físico tranquilizou

a plateia. Disse que não há risco de se produzir um buraco negro no Sistema Solar – a massa do Sol não permite que, ao morrer, ele vire um buraco negro – ou na Terra devido a algum acidente. “Experimentos realizados em aceleradores de partículas como o Large Hadron Collider (LHC), do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern), em Genebra, não têm condições de criar buracos negros capazes de destruir a Terra. Aliás é muito improvável que venham a ser criados buracos negros no LHC.” Tipicamente os buracos negros se

Matsas: a ciência moderna superou a ficção

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Buracos negros: rompendo os limites da fi cção

George Emanuel Avraam Matsas, físico e professor titular do Instituto de Física Teórica (IFT) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), coautor, com Daniel Vanzella, de Buracos negros: rompendo os limites da fi cção (Vieira e Lent)

sicos encontraram a supernova, a SN 1994D, afastando-se tenuamente, “como uma luz na estrada”, comparou Steig-man. Seu comportamento só poderia ser explicado por meio da expansão acelerada do Universo.

“Com a expansão do Universo, as galáxias desaparece-rão do campo de visão e o Universo será mais frio, mais escuro e mais vazio, um lugar muito solitário”, sintetizou Steigman. “Se a taxa de expansão aumentar com o tempo,

os átomos, as estrelas e as galáxias vão se separar violenta-mente.” Neste caso a Terra explode, o Sol se desfaz, tudo se desfaz; restariam apenas partículas subatômicas dispersas, sem nenhuma coesão ou energia: é o Big Rip (literalmente, Grande Rasgo). O que acontecerá? “Só o tempo dirá”, disse Steigman. “Mas será o fi m, não outro começo.”

• Carlos Fioravanti

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formam a partir da morte de estrelas com massas enormes. O que faz uma estrela se manter estável é o equilíbrio entre duas forças opostas: uma que exerce pressão de dentro para fora do astro (o processo de fusão nuclear a partir da qual há geração da luz que vemos) e outra de sentido contrário (a gravidade). Quando acaba o combustível que sustenta a fusão nuclear, basicamente o hidrogênio e outros elementos leves, a força gravitacional passa a prevalecer. “A estrela então começa a colapsar”, afi rmou.

Muitos mistériosEm estrelas grandes com massas de umas dez vezes a do Sol ou mais, o resultado desse desequilíbrio provoca uma enorme explosão denominada supernova. O evento ca-taclísmico expele grande parte da massa da estrela. Se a estrela tiver umas 30 vezes a massa do Sol, após a explosão a fração restante de matéria se concentra numa região de densidade infi nita, com um descomunal campo gravita-cional, onde, de acordo com a relatividade de Einstein, a curvatura do espaço-tempo é infi nita (ou seja, a noção de tempo e espaço não existe mais). Essa região é denominada singularidade. É o coração do buraco negro. A circunferên-cia que determina os limites do buraco negro recebe o no-me de horizonte de eventos. Qualquer tipo de matéria ou energia que entre no horizonte de eventos, como um barco que cai num redemoinho, é sugado pelo buraco negro. “As mesmas equações de Einstein que usamos para garantir o funcionamento do GPS são empregadas para estudar o interior dos buracos negros”, comentou Matsas.

A primeira evidência científi ca mais confi ável da pre-sença de buracos negros no Universo data de 1964 (e até hoje é estudada). Nesse ano, os astrofísicos começaram a observar uma estrela gigante, de 30 massas solares, da constelação de Cisne, que parecia orbitar em torno do nada, ou melhor, de uma fonte de raios X invisível a olho

nu. A melhor explicação para a formação desse aparente sistema binário é a presença de um buraco negro, o Cygnus-X1, com massa equivalente a dez sóis, na vizinhança da estrela. Acredita-se que o buraco negro esteja engolindo paulatinamente a massa da estrela e crie, fora de seus limi-tes, mas em torno de si, um disco de acréscimo de matéria. Uma das assinaturas físicas desse processo é a emissão de raios X ainda antes de a matéria ser engolida pelo buraco negro. Com o auxílio de potentes equipamentos enviados ao espaço pelo homem, como o telescópio Hubble (que opera no espectro da luz visível) e sobretudo o Observa-tório de Raios X Chandra, lançado pela Nasa em 1999, os astrofísicos passaram a contar com meios mais efi cazes de observar indiretamente os efeitos causados (provavelmen-te) pela presença desses sugadores de matéria em algumas regiões do Universo.

Hoje os astrofísicos afi rmam que há vários tipos de bu-raco negro, inclusive no centro de muitas galáxias, como a nossa Via Láctea. “Uma parte signifi cativa da matéria de uma galáxia, talvez até 1%, está na forma de um buraco negro”, disse Matsas. Há muitos mistérios ainda em torno desses objetos invisíveis que sugam matéria. Em 1974, o famoso físico inglês Stephen Hawking propôs que os bura-cos negros emitem uma forma de radiação que pode levar à sua evaporação. Essa teoria, ainda não comprovada, é hoje conhecida como efeito Hawking. Alguns pesquisa-dores acreditam que o estudo dos buracos negros levará a uma melhor compreensão das relações entre o espaço e o tempo e possa ser importante para formular a teoria da gravitação quântica, que fundiria os preceitos da mêcanica quântica com a relatividade geral de Einstein. “Os buracos negros podem ser a porta de entrada para compreender a gravitação quântica”, disse Matsas.

• Marcos Pivetta

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Ilustração de buraco negro: matéria sugada

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Movimento browniano, fractais e caos têm tudo a ver, embora cada um desses conceitos da física pareça des-conectado e de difícil entendimento para leigos. O pri-meiro conceito vem do início do século XIX. Os fractais só aparecem com esse nome em meados da década de 1970. E a teoria do caos passou a receber atenção maior apenas no fi nal do século XX. “O tempo da ciência não é um tempo com passado, presente e futuro muito bem defi nidos porque, para que as ideias fl oresçam, ou as-sumam um signifi cado, precisam estar num contexto, e este muda, mudando a percepção que temos delas”, disse a pesquisadora Carmen Pimentel Prado, professora do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), durante a palestra “Movimento browniano, caos e frac-tais”, no dia 22 de novembro. A palestra tentou mostrar que os três conceitos estão ligados, e entendê-los não é tão difícil assim.

Albert Einstein descreveu o movimento browniano em um dos quatro famosos artigos de 1905. Antes dele, outros

cientistas já haviam tentado explicar o movi-mento incessante de partículas em meio líquido (no caso, grãos de pólen), observadas no micros-cópio pelo botânico escocês Robert Brown em 1827. Quase 80 anos depois, Einstein teve êxi-to: tratava-se da consequência dos choques das moléculas do fl uido com as partículas de pólen, uma evidência experimental da existência dos átomos. Mas por que se levou tanto tempo para descrever um simples movimento? “Na mecâni-

ca clássica, bem conhecida já antes de Einstein, o conceito de velocidade instantânea é fundamental para descrever os movimentos”, disse Carmen. “Ocorre que não existe velocidade instantânea no movimento browniano. Não dá para descrever sua trajetória com as técnicas, as teorias e a matemática que fi zeram o sucesso da mecânica clássica e que permitiram e permitem até hoje descrever quase todos os outros movimentos a nossa volta, do movimento de um trem à órbita dos planetas, que são contínuos, e têm uma velocidade bem defi nida.” Einstein, observa a professora, percebeu isso: viu que o conceito-chave para a descrição desse tipo de movimento eram as fl utuações da posição e criou uma equação específi ca para isso, unindo conceitos de estatística com argumentos de mecânica.

A trajetória de um movimento browniano é um exem-plo real de um tipo de curva que já tinha sido proposto por matemáticos bem antes de Einstein, uma curva sem tan-gentes em nenhum ponto (tangente é uma linha reta que toca num único ponto de uma curva). “Ou seja, a trajetória de um movimento browniano é o que hoje chamamos de fractal, algo que se pensava existir apenas na imaginação criativa de alguns matemáticos, mas que para surpresa de muitos está presente na natureza.” O nome fractal só foi criado em 1975 pelo francês Benoît Mandelbrot, para descrever curvas com esse tipo de propriedade. Fractal vem do grego fractus, que signifi ca quebrado, fracionado, representa uma curva contínua, mas inteiramente quebra-da. É nada mais do que um objeto geométrico, como um cubo, um cone, um paralelepípedo, um losango, mas com uma dimensão fracionária. Carmen mostrou o que isso signifi ca e como essa dimensão pode ser calculada.

Sistemas dinâmicosA professora explicou ainda durante a palestra como é gerado o belo conjunto de Mandelbrot, que está ligado tanto com a ideia de fractal como com a arte. “Para fazer essas fi guras bonitas, que encontramos hoje aos montes na internet, temos de imaginar cores e pensar não só nas equações, mas nas atividades visuais”, contou. “Os astrônomos fazem isso muitas vezes quando colorem as fi guras e imagens interplanetárias e os biólogos também, quando põem corantes diferentes nas células que foto-grafam.” O conjunto de Mandelbrot é um dos fractais mais famosos e estudados, porque é uma das primeiras obras de arte geradas por computador, e Mandelbrot Carmen: conceitos ligados

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SUTIS CONEXÕESCARMEN PRADO

Física da USP relaciona movimento

browniano, fractais e teoria do caos

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Exemplo de fractal

Movimento browniano, caos e fractais

Carmen Pimentel Cintra do Prado, física e professora associada do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP)

popularizou várias ideias suas em cima desse conjunto (ver imagem acima). Esse trabalho do cientista francês contém a ideia central do conceito de fractal e refl ete a difi culdade conceitual que estava por trás da descrição do movimento browniano.

A pesquisadora explicou rapidamente ainda o que a teo-ria do caos tem a ver com os fractais. “Foram as descobertas da teoria do caos que trouxeram à baila e deram importância ao conceito de fractal de novo, no fi nal do século XX”, disse. Normalmente, usamos a palavra caos como sinônimo de bagunça. Em física, o termo tem um signifi cado bem preciso. Um sistema caótico não é tão desorganizado assim. “Existem várias causas para a imprevisibilidade, caos é o nome de uma delas. Sistemas caóticos são sistemas dinâmicos que

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têm uma regra de evolução temporal bem defi nida e ainda assim se tornam imprevisíveis com o tempo.”

Na verdade, foi preciso esperar o fi nal do século XX para que essas relações da matemática e da física, com a arte, viessem à tona, porque muitos desses estudos só po-dem ser feitos com computador – são inalcançáveis com o cálculo à mão. “Foi preciso o desenvolvimento da com-putação, de um conjunto de técnicas de simulação, para que fosse possível um acúmulo de dados, de observações, que permitissem desenvolver essas teorias.” Os sistemas caóticos estão relacionados com processos não-lineares. Muitos desses processos já haviam sido objeto de pesqui-sa, por exemplo, de economistas, de biólogos e de várias outras áreas diferentes da física. “A física talvez tenha sido a última área da ciência a realmente se debruçar sobre o problema do caos, da irregularidade e não-linearidade das coisas”, observou Carmen. “Existe uma forma de represen-tar todos os movimentos em um diagrama, e quando um movimento caótico é representado dessa forma a fi gura que se forma é um fractal.”

• Fabrício Marques

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AS PATENTES DO INVENTORNELSON STUDART

Pesquisador de São Carlos apresenta detalhes

pouco conhecidos da vida do físico alemão

Todo mundo já ouviu falar que o trabalho teórico de Albert Einstein mudou radicalmente a compreensão do Universo. Mas poucos sabem que o pesquisador alemão, ícone da ciên cia no século XX, também se interessava por tecnolo-gia. E que nem sempre se saía tão bem nessa área.

O físico Nelson Studart, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), falou desse e de outros aspectos pouco conhecidos da vida do criador da teoria da relatividade na palestra “Einstein inventor”, no domingo 12 de outubro no pavilhão Armando de Arruda Pereira, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. “Passa-se a imagem de Einstein apenas como uma pessoa genial, que mudou a concepção de espaço e tempo e deu outras importantes contribuições à física”, disse Studart. “Mas ele era absolutamente normal e gostava de outras coisas, inclusive ligadas à tecnologia.”

Einstein foi também inventor, projetista, perito judi-cial e consultor de empresas. Entre 1928 e 1934 registrou em sete países (Alemanha, Áustria, França, Grã-Bretanha, Hungria, Estados Unidos e Suíça) 21 pedidos de patentes de aparelhos que havia ao menos em parte projetado.

O ambiente familiar certamente ajudou. Seu pai, Her-mann, e o tio Jakob eram sócios em uma indústria de equipamentos para instalações hidráulicas e de gás, e em 1885 fundaram a Elektrotechnische Fabrik Jakob Einstein und Cie, empresa na área de engenharia elétrica que fa-bricava lâmpadas, medidores de eletricidade e geradores para eletrifi cação urbana. A fábrica prosperava e poderia ter se tornado um gigante da indústria elétrica alemã não fosse um revés. Em 1893 os irmãos Einstein investiram pesadamente em uma concorrência para a eletrifi cação do centro de Munique – e perderam. Sem o contrato, faliram e partiram em busca de projetos menos lucrativos na Itália. No ano seguinte abriram em Pávia com um engenheiro italiano de sobrenome Garrone a Offi cine Elettromecca-niche Nazionali Einstein Garrone.

Aos 15 anos Albert abandonou a escola antes de con-cluir o segundo grau e foi para Pávia, onde acompa-nhou por um tempo as atividades na fábrica da família, inclusive solucionando problemas técnicos. Certa vez seu tio disse a um assistente: “Veja você, enquanto eu e meus engenheiros-assistentes quebramos a cabeça por dias, este jovem chega e resolve o negócio todo em um mero quarto de hora. Isso é muito fantástico para meu sobrinho. Ele ainda vai longe”. Infelizmente não se sabe qual problema ele sanou.

EINSTEIN, MÚLTIPLAS FACES

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Studart: diante de um outro EinsteinM

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OAs experiências que Albert Einstein viveria na Suíça a partir de 1896 seriam determinantes para sua carreira de cientista e inventor. Reprovado no exame de línguas para ingresso na Escola Politécnica de Zurique, Einstein foi aconselhado pelo diretor da instituição a concluir o segundo grau em uma escola suíça, o que lhe daria acesso à universidade. Avesso à rigidez do sistema de ensino alemão, adaptou-se bem ao ambiente liberal da escola em Aarau, seguidora do modelo de ensino do educador suíço Johann Heinrich Pestalozzi, que valorizava a imaginação visual. “Essa habilidade foi importante na carreira de Einstein no escritório de patentes e nos seus pensamentos abstratos, como ele reconheceria mais tarde”, contou Studart. Foi o período estudantil de que Einstein mais gostou, segundo o físico da UFSCar. “Pudera. Ele morava na casa de um dos professores, cuja fi lha namorava”, disse.

Einstein teve seu primeiro contato direto com inven-ções no período em que trabalhou no Escritório Federal Suíço de Patentes, em Berna, de 1902 a 1909. “Foi uma verdadeira bênção para mim trabalhar na formulação fi -nal de patentes tecnológicas. Isso me forçou a pensar em muitas facetas e me estimulou de modo signifi cativo o pensamento físico”, deixaria registrado. “Na verdade, os experimentos mentais que seriam sua abordagem preferida na formulação de teorias físicas não eram tão distantes da análise intelectual de uma invenção”, disse Studart.

Quase nada se sabe sobre as invenções que avaliou em Berna, uma vez que os registros eram destruídos 18 anos após a concessão das patentes. Só um foi preservado – o pe-dido de patente de um coletor de corrente alternada depo-sitado pela companhia berlinense Allgemeine Elektrizitats-Gesellshaft (AEG) – porque o projeto se tornou motivo de disputa judicial. “Apesar da carência de informações, os biógrafos de Einstein acreditam que o físico trabalhasse com patentes de tecnologia elétrica”, disse Studart.

A maquininhaFoi nessa área, aliás, que fez sua primeira e única tentativa de projetar um equipamento para testar uma explicação teórica que havia proposto. O aparelho que chamou de maschinchen – maquininha, em alemão – era um equipamento de indução eletrostática destinado a amplifi car quantidades pequenas de cargas elétricas e tornar possível avaliá-las. Com a maquini-nha, esperava medir o chamado movimento browniano de cargas elétricas, deslocamento aleatório de partículas em um fl uido, observado pela primeira vez em 1827, em grãos de pólen, pelo botânico escocês Robert Brown.

Como não sabia como construir a maquininha, cujo princípio de funcionamento descreveu em um artigo de 1908 na Physikalische Zeitschrift, Einstein pediu para os irmãos Paul e Conrad Habitch que a desenvolvessem. O projeto foi patenteado e poucas unidades produzidas. Mas o invento não obteve sucesso comercial, uma vez que era menos efi ciente do que outros equipamentos semelhantes. “Einstein solicitou que seu nome não fosse incluído no pedido de patente”, disse Studart. “Hoje restam apenas três exemplares desse aparelho em museus.”

No papel de inventor e consultor Einstein viveu uma das passagens mais obscuras de sua carreira, pouco co-nhecida até mesmo dos físicos. Antes de revelar ao mundo seu caráter pacifi sta, participou de um projeto militar para auxiliar o governo alemão durante a Primeira Guerra Mundial. Segundo o biógrafo Albrecht Fölsing, um antigo assistente de Einstein na Universidade de Zurique, Ludwig Hopf, teria feito o físico alemão se interessar por questões relacionadas à física do voo. Outro biógrafo, Carl Seelig, afi rmou que Einstein foi um dos poucos acadêmicos que atendeu ao convite da Sociedade de Transportes Aéreos (Luftverkehrsgesellschaft ou LVG) para contribuir no aperfeiçoamento técnico da força aérea alemã.

Em 1916 Einstein publicou um artigo sobre a teoria elementar das ondas da água e do voo, em que apresen-tava interpretação hoje considerada incorreta para expli-car a sustentação da asa de avião. A partir daquele ano o governo alemão convidou cientistas a participarem de projetos que pudessem ajudar o país a vencer a Primeira Guerra Mundial. Possivelmente por considerar bom para a publicidade dos negócios, Arthur Müller, fundador da LVG, contratou Einstein como consultor da empresa. “A partir de seu artigo pode-se inferir que o conhecimento de Einstein sobre aerodinâmica era equivalente ao dos

Einstein inventor

Nelson Studart Filho, físico e professor titular do Departamento de Física da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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membros da Sociedade Aeronáutica da Grã-Bretanha nos anos 1870”, afi rmou Studart.

Ainda assim o físico alemão projetou uma asa que fi cou conhecida como corcunda de gato, pela semelhança que tinha com o dorso curvado para cima de um felino que se espreguiça. Nos testes práticos, a corcunda de gato se revelou um fracasso – só se saiu melhor do que um dos 99 modelos de asa testados no período. Esse projeto só se tornaria conhecido 40 anos mais tarde com a publicação da carta que o piloto Paul Ehrhardt, chefe do departamento experimental de projetos da LVG, escreveu em 1954 para Albert Einstein, relatando detalhes do teste.

Como Einstein, à época da Primeira Guerra já um cientista conhecido que se manifestava contra o combate entre os povos, conseguiu trabalhar em um projeto militar? Studart buscou a resposta a essa pergunta nos escritos de biógrafos do físico alemão, que recebia parte de seu salário do banqueiro alemão Leopold Koppel, criador em 1916 da Fundação Kaiser Wilhelm para as Ciências da Engenharia Militar. “Einstein não encontrou problemas de cons ciência em lidar com essa dicotomia. Segundo Fölsing, ele encarava essas contradições sorridente ou as ignorava”, afi rmou Studart.

A asa de avião não foi o único projeto de cunho militar em que Einstein esteve envolvido. Em 1915, o físico foi intimado a testemunhar em uma disputa judicial entre o norte-americano Elmer Sperry e o alemão Hermann Hu-bertus Anschütz-Kaempfe. Anos antes, Anschütz-Kaempfe havia projetado a primeira bússola giroscópica, uma espé-cie de pião que roda a velocidades muito altas no centro de um conjunto de argolas articuladas e interconectadas. Calibrada com o polo Norte geográfi co da Terra – e não com o polo magnético como as bússolas antigas –, a bús-sola giroscópica se tornaria fundamental para a orientação

Bússola giroscópica: fundamental para a orientação de navios e aviões

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de navios e aeronaves. Atento a essas aplicações, Sperry aperfeiçoou a bússola giroscópica com auxílio da Marinha norte-americana para usá-la em navios, que passavam a apresentar uma gigantesca estrutura metálica, comprome-tendo o funcionamento das bússolas magnéticas.

De bússola a câmera fotográfi caNo tribunal Einstein depôs a favor de Anschütz-Kaempfe, de cuja empresa mais tarde se tornaria consultor. O físico alemão se tornou um especialista em tecnologia de bússo-las giroscópicas e chegou inclusive a contribuir para uma das patentes de Anschütz-Kaempfe – a patente 394.667, de 22 de fevereiro de 1922, pela qual recebeu royalties até 1938. Einstein projetou uma armadura no interior da qual um meio eletromagnético fazia a bússola giroscópica funcionar sem atrito. “Esse sistema equipou navios e submarinos de muitas esquadras, exceto a inglesa”, explicou Studart.

Em 1920 Einstein encontrou um brilhante físico húngaro, estudante de doutorado na Universidade de Berlim: Leo Szilard, mais tarde conhecido por convencer em 1939 seu amigo e professor a escrever para o presi-dente norte-americano Franklin Roosevelt, alertando sobre a possibilidade de os alemães construírem a bomba atômica. Com Szilard, Einstein produziu várias paten-tes de refrigeradores domésticos, as geladeiras, pouco comuns no início do século XX. “Há muita especulação sobre como a colaboração começou”, disse Studart. Al-guns biógrafos dizem que eles tiveram a ideia de criar um sistema de refrigeração que não envolvesse partes mecânicas móveis depois de lerem a notícia da morte de uma família por envenenamento por gases tóxicos que haviam vazado por falhas na vedação. Mas há quem diga que estavam preocupados com o barulho que o re-frigerador europeu fazia.

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UM EINSTEIN NOS HOSPITAISROBERTO COVOLAN

Trabalhos publicados em 1905

ganharam aplicações práticas

Os pesquisadores não raro reagem com desagrado quan-do lhes perguntam para que servem suas teorias ou tra-balhos científi cos. Para a maior parte deles, a ciência é a busca pelo conhecimento e se justifi ca como tal. “Há uma pressão da sociedade para que os investimentos em

Refrigerador de Einstein-Szilard: sem partes mecânicas móveis

Nos refrigeradores, o compressor submete o gás refrigerante à pressão, tornando-o líquido e liberando calor para o ambiente. Quando esse líquido se expande, torna-se mais frio e pode absorver o calor do gabinete. Einstein e Szilard usaram um conceito diferente – mas não original, segundo Studart – para criar um sistema de refrigeração em que a chama de um gás provoca a absorção e liberação da substância refrigerante a partir de uma solução química. Em dezembro de 1927 a fabri-cante de refrigeradores Platen-Munters, uma divisão da Electrolux, comprou a patente dos físicos por US$ 750. “Ambas as partes consideraram um bom negócio”, disse Studart. “Mas nos arquivos da Electrolux consta que foi muito barato.” A empresa nunca produziu o tal refrige-rador, que foi montado experimentalmente em 1978 por Andrew Delano durante seu doutorado no Instituto de Tecnologia da Geórgia, nos Estados Unidos, e aparente-mente funcionou.

A dupla projetou ainda uma bomba eletromagnética para substituir o compressor dos refrigeradores. Sob ação de um campo magnético, um metal líquido se move e funciona como pistão para comprimir o gás refrigerante. Em 1928 a AEG construiu um protótipo, exibido em uma feira em Leipzig. Mas a geladeira era barulhenta e era pre-ciso desenvolver estratégias para lidar com a oxidação dos metais. A substituição dos gases refrigerantes tóxicos por um gás não-tóxico, o fréon, levou os refrigeradores com compressor mecânico a dominar o mercado.

A última patente registrada por Einstein foi uma câme-ra fotográfi ca autoajustável à intensidade da luz, projetada em parceria com o médico Gustav Bucky. A câmera fun-cionava com base no efeito fotoelétrico – a capacidade da luz de arrancar partículas de carga negativa (elétrons) de um material –, explicado por Einstein em 1905 e que lhe rendeu o Nobel em 1921. Não se sabe se foi construída.

Se Einstein teve uma produção considerável de inven-tos, por que se ouve falar tão pouco deles? Segundo Studart,

por duas razões. A primeira é que a qualidade de suas in-venções esteve infi nitamente aquém da de suas realizações teóricas na física. O segundo motivo, em especial no que diz respeito aos projetos militares, é que após a morte do físico em 1955 Helen Dukas, sua secretária no Instituto de Estudos Avançados de Princeton, nos Estados Unidos, e os curadores de seu espólio ajudaram a formar uma carcaça de proteção em torno da personalidade de Einstein.

• Ricardo Zorzetto

pesquisa retornem para essa mesma socieda-de – e esse é um anseio legítimo –, mas, por outro lado, não há razão para se ter ansiedade a esse respeito”, disse o físico Roberto Covolan, da Universidade Estadual de Campinas (Uni-camp). “Muitas vezes, pesquisas teóricas que buscam esclarecer problemas fundamentais acabam, no seu devido tempo, conduzindo a aplicações extremamente interessantes.” Os trabalhos de Albert Einstein fornecem alguns

excelentes exemplos. Covolan falou na palestra “Im-pactos da obra de Einstein no campo da física médica”, do dia 15 de novembro, sobre aplicações hoje usadas correntemente que derivaram de quatro famosos artigos publicados em 1905.

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O primeiro trabalho que Einstein publicou naquele ano, em março, tem o título Sobre um ponto de vista heurístico referente à produção e conversão da luz, no qual ofereceu uma explicação para o efeito fotoelétrico. A ideia de que a luz interage com a matéria por meio de quanta – pacotes de energia – não era exatamente nova. Em 1900, o físico alemão Max Planck havia proposto essa tese em um artigo que originou a mecânica quân-tica. Einstein foi além. Disse que a luz não só interage com a matéria como se propaga na forma de pacotes de energia, características quânticas inerentes à natureza da luz. A teoria estabelecida até então era de que a luz se comportava como uma onda eletromagnética. Einstein usou a ideia de Planck sobre os quanta para explicar o efeito fotoelétrico, que consistia em arrancar elétrons de uma placa de metal quando se incidia um tipo de luz particular sobre ela. “É um fenômeno trivial hoje, usado em qualquer célula fotoelétrica”, lembrou Covo-lan, pesquisador do Grupo de Neurofísica do Instituto de Física da Unicamp.

O segundo artigo de 1905, de maio, foi sobre o fe-nômeno chamado movimento browniano, observado pelo botânico inglês Robert Brown em 1827. Einstein desenvolveu nesse artigo equações que permitiam a de-terminação do número de Avogadro, fundamental para teorias que indicavam a existência dos átomos. Coube a Einstein desenvolver equações que demonstraram, de fato, a existência do átomo. “Esse estudo foi extrema-mente interessante porque conseguiu dar evidências adi-

Técnicas

modernas

que permitem

fazer imagens

do interior

do corpo se

baseiam em

conceitos da

física quântica

e da teoria da

relatividade

cionais de que a matéria é constituída de átomos”, explicou.

O terceiro artigo, de junho, é o mais famoso porque trata da teoria da relatividade restrita (ou especial). “Ainda hoje é difícil aceitar que o trans-curso do tempo dependa do estado de movimento de alguém”, disse. “Temos um sentimento de que tempo, assim como espa-ço, é algo absoluto, como dizia o conceito criado por Isaac Newton.” No entanto Einstein mostrou que tan-to tempo quanto espaço são grandezas relativas –

dependendo do estado de movimento do observador, o tempo pode passar mais devagar ou mais rápido.

O último trabalho que publicou naquele ano, em setembro, traz a expressão E = mc² (energia é igual à massa vezes velocidade da luz ao quadrado), que mostra a equivalência entre energia e matéria: matéria pode se transformar em energia e energia em matéria.

Covolan relacionou esses trabalhos com aspectos li-gados à física médica e à neurociência. Físico médico é aquele que faz uma interface entre física e medicina em algumas áreas, como radioterapia, medicina nuclear, radiologia, radiodiagnóstico e ressonância magnética – todas elas lidam com partículas subatômicas. “O campo de conhecimento que trata do tema é a física quântica e a teoria da relatividade.” A descoberta do efeito fotoelé-trico, por exemplo, tem hoje aplicações na radioterapia. “A radioterapia usada contra tumores funciona quase essencialmente com base nesse efeito”, disse. O tratamento consiste em provocar a morte das células cancerígenas e evitar o desenvolvimento do tumor.

Os trabalhos de Einstein também levaram ao de-senvolvimento de técnicas de neuroimagem. Existem equipamentos que fazem imagens funcionais do cérebro, que permitem ver as regiões que estão ativas quando se executa alguma função. É possível fazer isso por meio de aparelho de ressonância magnética, de tomografi a por emissão de pósitrons e magnetoencefalografi a. Os três

Covolan: aplicações práticas surgem a seu tempo

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Impactos da obra de Einstein no campo da física médica

Roberto José Maria Covolan, físico e professor associado do Instituto de Física da Unicamp

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A SUBSTÂNCIA INDESCRITÍVELROBERTO DE ANDRADE MARTINS

Cientista alemão renegou para depois admitir

a importância do éter para a física

Algum tempo antes de publicar seu artigo sobre a teoria da relatividade especial, em 1905, Albert Einstein adotou uma postura diferente da maioria dos cientistas de sua época. Os físicos acreditavam na existência do éter, uma substância invisível e desconhecida, que preencheria todos os espaços onde não houvesse matéria. Essa hipótese era importante para explicar fenômenos físicos. Einstein, no entanto, preferiu seguir a posição fi losófi ca segundo a qual não se deveria utilizar na ciência nada que não pudesse ser observado ou medido – ele rejeita, assim, a hipótese da existência do éter. Depois de publicar, em 1915, sua teoria da relatividade geral em que usou o conceito de espaçotempo, ele é questionado por um colega: não seria o espaçotempo o mesmo que éter? “Em uma conferência famosa, cinco anos depois, Einstein admite, sem rodeios, que um espaço sem éter é impensável”, explicou o físico, historiador e fi lósofo da ciência Roberto de Andrade Mar-tins, do Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Martins falou no ciclo de palestras dentro da expo-sição Einstein, no pavilhão Armando de Arruda Pereira, no Parque do Ibirapuera, no dia 18 de outubro. Seu tema foi “Espaço, tempo e éter na teoria da relatividade”. Antes de chegar a Einstein e seus trabalhos mais célebres, o his-

equipamentos são diferentes do ponto de vista de seu funcionamento físico. “Mas em todos eles está embuti-do muito de física quântica e de teoria da relatividade, porque tratam de partículas subatômicas”, lembrou Covolan.

Uma aplicação importante que está sendo investi-gada é tentar ver como as partes do cérebro se comuni-cam por meio de imagens por tensor de difusão, capa-zes de mostrar o direcionamento das fi bras nervosas do cérebro. Já há técnicas para fazer imagens que mostram as fi bras nervosas graças ao conhecimento que se tem do movimento browniano das partículas – movimento de difusão que as partículas fazem quando estão em meio líquido. As moléculas de água também fazem isso, mas, quando estão dentro de fi bras nervosas, elas se difundem em uma direção preferencial – a da fi bra. Essa técnica permite ver os feixes de fi bras nervosas e como eles conectam diferentes regiões do cérebro. “Se-

ria muito bom se o neurocirurgião soubesse como as coisas estão organizadas dentro da cabeça do paciente antes de operar.”

Covolan contou, por fi m, sobre a tomografi a óptica funcional, algo também recente, que se baseia no conceito de fótons. “A ideia é que podemos fazer difundir luz laser dentro da cabeça das pessoas; a luz atravessa a calota craniana, passa por dentro do cérebro e é coletada um pouco mais adiante”, explicou. Essa luz pode ser analisada, dando informações do que acontece naquela região do cérebro. A potência do laser usado é baixíssima e não causa problemas. Para chegar a isso se usa uma teoria de simulação com computador para a qual o conceito de fóton é fundamental. “É mais um exemplo de um conceito teórico e revolucionário que pode ser usado de modo prático”, concluiu.

• Ricardo Zorzetto

toriador explicou que os conceitos de espaço e tempo – diferentes do espaçotempo usado na relatividade geral – são discutidos desde a An-tiguidade. No século XVII eles ganharam espe-cial importância graças ao físico e matemático inglês Isaac Newton (1643-1727), que defendeu a existência de espaço e tempo absolutos – essa última palavra signifi cando alguma coisa que não depende de nenhuma outra.

“Dentro da concepção de Newton, se o Universo fosse congelado o tempo continuaria a existir”, disse Martins. É algo que fl ui, que está passando, e que não depende de nenhuma outra coisa e, por isso, o tempo não pararia junto com o congelamento do Universo. É o tempo absoluto. O mesmo valeria para o espaço absoluto, que não se moveria jamais. As coisas sim se moveriam pelo espaço, o palco onde tudo aconteceria. “Mesmo se pudéssemos retirar tudo o que existe no Universo, esse espaço continuaria a existir para Newton.” Para o inglês também existiria um tempo relativo e um espaço relativo. O primeiro dependeria dos acontecimentos e se poderia medir por meio de movimentos, seja os que ocorrem no relógio, seja o movimento celeste, como a variação entre dia e noite. Já o espaço relativo seria determinado pelas relações entre os objetos.

Martins lembrou que esses são conceitos metafísicos, ou seja, algo que não pode ser observado. Outros cientistas

Espaço, tempo e éter na teoria da relatividade

Roberto de Andrade Martins, físico e professor do Instituto de Física da Unicamp

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Martins: explicação de conceitos que construíram a física M

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e fi lósofos, como o alemão Gottfried Leibniz (1646-1716), discordaram profundamente de Newton e propuseram outras ideias. “Independentemente das discussões mais fi losófi cas, Newton achava importante essa conceituação de espaço e tempo absolutos como algo fundamental para poder construir e pensar a física, a mecânica, a astronomia”, afi rmou o historiador da Unicamp. A maioria dos físicos aceitou esses conceitos.

No decorrer do século XIX continuou-se a aceitar a con-cepção de Newton, mas foi adicionada a ela outra hipóte-se. Trata-se do conceito de éter. “Uma substância material preen cheria o espaço, inclusive o espaço entre os planetas, entre as estrelas, em todo lugar onde parecia que não havia matéria haveria éter”, disse Martins. O éter já havia sido proposto na Antiguidade – Aristóteles defendeu sua existên-cia. No século XIX, porém, ele se tornou um conceito físico importante, usado para explicar as forças eletromagnéticas e a propagação da luz pelo espaço. A ideia que predominou, a partir de 1820, é de que a luz era uma forma de onda transmitida pelo éter. “Se a luz é uma onda, ela tem de ser uma onda de alguma coisa que está vibrando, oscilando e transmitindo ondas. Isso seria o éter”, explicou.

O mesmo valia para as forças eletromagnéticas. Mi-chael Faraday (1791-1867), grande estudioso desses

fenômenos, acreditava que uma carga elétrica ou um ímã não exerceriam forças diretamente sobre outro ímã quando distantes. Se há dois ímãs separados, eles não po-dem saber da existência um do outro porque não têm sentidos. Faraday desenvol-veu a ideia de que havia al-guma coisa física prendendo os ímãs, que também seria uma forma de éter. Uma carga magnética ou um ímã provocariam em volta de si uma perturbação do éter, que se espalharia e atingiria outro corpo, produzindo forças nele. “Essa é uma ideia que soa estranha porque não foi conservada na física que aprendemos hoje”, lembrou Martins. Mas os grandes fí-sicos do século XIX, como James Maxwell (1831-1879), tinham certeza de que o éter existia e era parte importan-te da teoria desenvolvida por eles. “Atual mente falamos de campo elétrico e campo magnético como algo abs-

trato, mas para Maxwell o campo elétrico é uma modi-fi cação do éter, produzido por cargas elétricas que agem sobre outras cargas elétricas.”

Novas ideiasPara a mecânica newtoniana seria impossível detectar movimentos como o de translação ou o de deslocamento em linha reta com velocidade constante através do espaço absoluto. Martins afi rmou que isso continuava válido no século XIX, mas a crença na existência de um éter mudou a situação. Ora, o espaço não estava mais vazio, ele tinha algo físico. Que tal tentar medir os efeitos do movimento da Terra ou de outros objetos através do éter? Aparente-mente poderia ser feito. Se a Terra estivesse se deslocando em meio ao éter, deveria ser possível medir esse deslo-camento de alguma forma, com instrumentos. Alguns físicos tentaram fazer isso – inclusive Maxwell –, mas não obtiveram sucesso. “Depois de algum tempo, no fi nal do século XIX começou-se a suspeitar que seria impossível fazer essa medição”, contou o historiador.

No início do século XX o francês Henri Poincaré (1854-1912) trouxe outras ideias. Disse que existe um princípio da relatividade – ele usa esse nome – que nos impede de observar uma velocidade que não seja entre corpos ma-

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teriais. Isto é, não podemos observar movimentos em relação ao éter. Esse no-vo conceito trouxe sérios problemas para os físicos da época, que tentavam en-caixar todas as ideias físicas em equações matemáticas. “Na última década do sé-culo XIX, Poincaré, o ho-landês Hendrik Lorentz (1853-1928), o irlandês Jo-seph Larmor (1857-1942) e o alemão Woldemar Voigt (1850-1919), entre ou-tros, estavam procurando um modo de conciliar o eletromagnetismo com o princípio da relatividade, essa impossibilidade de se medir a velocidade em rela-ção ao éter”, disse Martins.

“É isso que vai dar origem ao que chamamos de teoria da relatividade especial, que não tinha esse nome no início.”

O historiador chama a atenção para o fato de a teo-ria ser um trabalho coletivo, embora o nome de Einstein esteja mais associado a ela depois da publicação de seu estudo, em 1905. “Se por acaso Einstein tivesse morri-do e não publicado o artigo sobre a relatividade especial, ainda assim ela teria surgido porque havia várias outras pessoas trabalhando na mesma direção, seria apenas uma questão de tempo.” As equações básicas dessa teoria, por exemplo, são as chamadas “transformações de Lorentz”, feitas antes de Einstein publicar seu artigo. A conclusão de todos os pesquisadores que contribuíram para a relati-vidade especial é de que não se podia medir a velocidade de nenhum corpo em relação ao éter. No entanto, isso não signifi cava a negação da existência do éter. Segundo escreveu Poincaré, na verdade não interessava se o éter realmente existia; o importante é que tudo aconteceria como se ele existisse e essa hipótese era adequada para a explicação dos fenômenos.

“Do grupo de cientistas que desenvolveram a teoria da relatividade especial, Einstein tinha uma posição dife-rente”, relatou Martins. Ele seguia basicamente a posição fi losófi ca do austríaco Ernst Mach (1838-1916), segundo a qual não se deveria utilizar na ciência nada que não pudesse ser observado ou medido. Mach já havia atacado diretamente o espaço e o tempo absolutos de Newton porque não preenchiam esses requisitos. Einstein adere à crítica do austríaco ao éter e rejeita seu uso na física porque não se poderiam medir suas propriedades. “Essa atitude não quis dizer que Einstein provou que o éter não existe”, alertou Martins. “Ele utilizou um princípio fi losó-fi co, empirista, para afi rmar apenas que não devemos usar

o conceito de éter na ciência.” A rigor, ninguém poderia provar que o éter não existe.

Anos depois, quando Einstein começou a trabalhar na teoria da relatividade geral – e não da relatividade especial, tratada até aqui –, ele utilizou o conceito de espaçotempo (como se fosse uma só palavra, diferente do espaço e tempo de Newton) criado pelo matemático lituano Hermann Minkowski (1864-1909), que havia sido seu professor. O espaçotempo de Minkowski era principalmente uma ferramenta matemática. Ele mostrou que era possível tra-balhar matematicamente o tempo como sendo uma quarta dimensão análoga às três dimensões do espaço e que isso determinava relações matemáticas entre eles. “Na aborda-gem de Minkowski, as transformações de Lorentz – que são na verdade as equações mais importantes da relatividade especial – saem dessa interpretação de que o espaço e o tempo são partes de uma entidade mais complicada, que é o espaçotempo”, explicou o professor da Unicamp.

É com essa ferramenta, o espaçotempo, que Eins-tein construiu a teoria da relatividade geral, que serve

A teoria

da relatividade

especial foi

um trabalho

coletivo,

embora

Einstein esteja

mais associado

a ela depois

da publicação

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Poincaré: autor do princípio da relatividade

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Einstein e Lorentz na Holanda: reconhecimento

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para estudar fenôme-nos gravitacionais de sistemas acelerados, que estão sendo em-purrados com alguma aceleração ou que es-tão girando. Mas, an-tes de erguer sua nova teoria, o físico alemão teve de aprender mais matemática. Max Abraham (1875-1922), um matemático ale-mão importante, co-meçou a introduzir no estudo da relatividade o cálculo diferencial absoluto, ou cálculo tensorial, que permite

trabalhar as relações entre espaço e tempo para qualquer referencial. Einstein, que não gostou desse ferramental por considerá-lo excessivamente complicado, pediu ajuda para seu velho amigo Marcel Grossmann (1878-1936) para aprender a usar os cálculos de Abraham. “É interes-sante vermos alguém tão famoso admitir suas fraquezas. Ele precisou de ajuda para entender a matemática que utilizou depois para desenvolver a teoria da relatividade geral”, observou Martins.

Espaço curvoQuando Einstein tratou da relatividade especial, o espaço era plano, chato, como na geometria euclidiana. Mas na relatividade geral o espaçotempo se encurva e isso produz efeitos importantes: ele passa a ter propriedades matemáticas e físicas especiais por ser curvo. Essas cur-vaturas são produzidas pela presença ou proximidade de matéria e energia que geram deformações. “Nessa teoria, o Sol não atrai os planetas, ele produz uma deforma-ção no espaçotempo e os planetas, ao se moverem nesse espaçotempo curvo, são obrigados a seguir trajetórias especiais”, explicou Martins. Eles, os planetas, sentem a deformação do espaçotempo, não a atração do Sol. “Há aí uma grande semelhança entre o modo como a relatividade geral se relaciona com a gravitação e o éter do eletromagnetismo.”

Um amigo de Einstein, Paul Ehrenfest (1880-1933), que tinha cidadania holandesa, viu algo familiar na re-latividade geral e escreveu uma carta para ele em 1918 com uma questão intrigante. Na teoria da relatividade especial Einstein decidiu ignorar o conceito de éter. Mas na relatividade geral ele traz o éter com um novo nome – o espaçotempo seria esse novo éter. Einstein dá uma resposta a Ehrenfest em uma conferência na Holanda, em 1920, que se tornou famosa, publicada na forma de um livro com o título Éter e a teoria da relatividade. Nela Eins-

tein diz: “De acordo com a teoria da relatividade geral, um espaço sem éter é impensável; porque em um espaço assim não haveria propagação da luz, nem possibilidade de padrões de espaço e de tempo (réguas e relógios), nem intervalos de espaçotempo, no sentido físico”.

A desconfi ança de Ehrenfest era real. Basicamente, Einstein mudou. Ele disse que o éter que havia rejeitado – o de Lorentz – é um pouco diferente daquele que ele estava aceitando. “Penso que podemos dizer que o éter da teoria da relatividade geral é o resultado do éter de Lorentz, relativizado”, afi rmou o físico alemão. “Embora Einstein tenha assumido isso, a maior parte dos físicos atuais diz que não há éter porque Einstein negou o éter em anos anteriores”, disse Martins. “Essa parte da história não costuma ser contada.”

• Neldson MarcolinÉter e a teoria da relatividade, de 1920

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PERSISTÊNCIA E OUSADIACARLOS ALBERTO DOS SANTOS

Professor da Federal do Rio Grande do Sul

desfaz mitos sobre o ganhador do Nobel

Santos: os caminhos do gênio até 1905

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Albert Einstein eletrizou o mundo acadêmico ao publicar quatro artigos científi cos revolucionários no ano de 1905, quando tinha apenas 26 anos de idade. Explicou o efeito fotoelétrico, que lhe renderia o Nobel de Física de 1921, e o movimento browniano, que constitui uma evidência experimental da existência dos átomos. Detalhou o conceito de relatividade restrita, estabelecendo uma relação entre os conceitos de tempo e distância; e deduziu a famosa equação relacionando massa e energia E = mc2. As atividades do cien-tista nos anos que antecederam a publicação dos artigos e os mitos criados sobre os primórdios de sua vida acadêmica foram o mote da palestra “A preparação de Einstein para seu ano miraculoso”, proferida por Carlos Alberto dos Santos, professor aposentado do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), colunista da revista Ciência Hoje e autor da fi cção O plágio de Einstein (editora WS). A apresentação de Santos foi realizada na manhã do dia 19 de outubro, no pavilhão Armando de Arruda Pereira, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo.

Com base em informações obtidas de fontes primárias, como notas autobiográfi cas, cadernos escolares, cartas para a mulher, Mileva Maric, e para o amigo Michele Besso, textos e anotações reunidos em 29 volumes publicados pela Universidade de Princeton, além de fontes secundá-rias, como duas biografi as de Einstein, Santos desmontou um conjunto de falsas ideias que, vez por outra, aparecem associadas ao gênio da física. Uma delas reza que Eins-tein talvez não tenha sido assim um “einstein” e que suas teorias revolucionárias acabariam propostas por outros pesquisadores da época se ele não tivesse existido. Santos mostrou, ao contrário, que Einstein exibia na infância e na adolescência sinais de um brilhantismo incomum para crianças ou jovens de sua época e seu meio. Aos 5 anos recebeu do pai uma bússola de bolso e inferiu que a agulha apontava sempre para um mesmo lugar porque havia alguma força exterior a atrair a agulha. “Uma pessoa

com 4 ou 5 anos imaginar que existe uma ação externa é algo extraordinário”, disse Santos. Na idade adulta, descreveria a “impressão profunda e duradoura” desta experiência. Aos 10 anos, ga-nhou de um tio engenheiro um livro de geome-tria e deduziu sozinho o teorema de Pitágoras. “Quando chegou a hora de aprender na escola, ele viu que o teorema de Pitágoras era aquilo que ele tinha pensado quando viu o livrinho que o tio lhe havia dado”, afi rma o professor. Aos 17 anos fez uma pergunta que desconcertou um

professor da escola que frequentava em Aarau, na Suíça: o que aconteceria se ele caminhasse do lado de uma onda eletromagnética com a velocidade próxima da velocidade da luz. “Aquilo não era coisa que se tratasse no ensino médio. O pobre do professor, obviamente, não soube dizer nada. Esse problema ele resolveu dez anos mais tarde com o artigo da relatividade”, disse Santos.

Outro mito, esse bastante disseminado, reza que Eins-tein foi um mau aluno. Decerto, diz Carlos Alberto dos Santos, o jovem Einstein não se encaixava no estereótipo do aluno aplicado. Exasperavam-no a rigidez escolar e a sen-sação de que poderia aprender mais com os livros do que nas salas de aula, afi rmou o professor. “Mas, quando que-ria, ele sabia ser um aluno brilhante”, diz Santos. Einstein detestava tanto a escola de ensino médio que frequentava na Alemanha que simplesmente a abandonou. “No meio do ano, foi para casa sem terminar o segundo grau. Tinha 15 para 16 anos. Ele conseguiu que um médico amigo da família desse um atestado dizendo que estava com estafa e precisava descansar. Assim ele justifi cou a saída dele lá para o diretor do colégio. Ao mesmo tempo conseguiu que um professor de matemática – e vejam como esse sujeito premeditava as coisas – assinasse uma carta dizendo que

A preparação de Einstein para o seu ano miraculoso

Carlos Alberto dos Santos, físico e professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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Boletim: como a escala se inverteu, notas parecem baixas

ele era uma criança prodígio, que sabia muita matemática. E o professor deu. Havia professores que odiavam Einstein porque ele tinha um jeito arrogante. E tinha professores que gostavam dele. Poucos, mas tinha”, diz Carlos Alberto dos Santos. Em casa começou a se preparar para se sub-meter aos exames de ingresso numa faculdade – não era necessário ter o ensino médio completo, mas, nesse caso, exigia-se que o candidato fi zesse uma série de provas. “Pa-ra se aquecer, ele escreveu seu primeiro artigo científi co, sobre investigação do estado do éter no campo magnético. Havia um monte de erros, mas o fato importante é que ele já pensava nesse tipo de problema aos 15 anos. E tinha o peito de escrever”, disse o professor Santos.

Biógrafos enganadosA ideia de que Einstein era mau aluno também é fomentada pelo fato de ele ter sido reprovado no exame de ingresso da Escola Politécnica de Zurique, a Eidgenössische Technische Hochschule (ETH). De fato, ele fracassou em sua primeira tentativa de entrar na instituição, mas Carlos Alberto dos Santos chama a atenção para um conjunto de circunstân-cias que marcaram o malogro. Aos 16 anos, Einstein nem sequer tinha idade sufi ciente para participar do exame. Só conseguiu abrir um precedente ao apresentar a carta do professor de matemática que o tratava como superdotado, além de um pedido de um infl uente amigo de sua família, sócio de um banco em Zurique. Há várias versões sobre

seu mau desempenho: alguns biógrafos di-zem que ele foi muito mal no exame oral de francês, que conhecia apenas sofrivelmente, outros afi rmam que o problema foi a prova de biologia ou de interpretação linguística. Mas o desempenho de Einstein nos exames de física levou um professor da disciplina na universidade, Heinrich Friedrich Weber, a convidar o jovem estudante a frequentar suas aulas como aluno ouvinte, privilégio proibido pela instituição. A banca sugeriu que ele tentasse de novo no exame seguinte – quando efetivamente ingressou na esco-la – e que, nesse meio tempo, concluísse o ensino médio que, entediado, Einstein havia abandonado. Matriculado na escola de Aa-rau, fi nalmente se sentiu estimulado e viveu um período tranquilo de estudos. Também colaborou com o mito do mau aluno o bo-letim de Einstein em Aarau. No ano letivo de 1895 a 1896, suas notas são quase todas muito baixas, ao contrário do ano letivo se-guinte, de 1896 a 1897, quando alcançam o teto máximo em várias disciplinas. Santos explicou que os biógrafos de Einstein fo-ram enganados pelos números. As notas são díspares porque, no primeiro ano, a escala vai de 6 (nota mínima) a 1 (nota máxima),

invertendo-se a regra no ano seguinte. O que parecia um desempenho sofrível era, na verdade, um resultado alta-mente satisfatório. “A maior prova disso é a nota de Einstein nas aulas de violino, que tocava muito bem. Foi de 1 a 2 no primeiro ano e de 5 a 6 no segundo”, afi rma. O desempenho de Einstein na ETH foi irregular. Não gostava de anotar as aulas e pedia emprestado os cadernos do colega Marcel Grossmann – que se tornaria um cosmólogo famoso – antes de fazer as provas. “Einstein achava os professores muito atrasados. Ele detestava, por exemplo, que eles dessem a aula lendo livros. Além disso, nenhum professor tratava da literatura contemporânea e ele já a conhecia na época. Ele abandonava as aulas e ia para o laboratório. Ou fi cava lendo os conteúdos que os professores não davam. Praticamente toda a física que ele aprendeu na ETH vem dessas anota-ções e das leituras pessoais que ele fez”, diz Santos. “É falsa a ideia de que Einstein fosse um mau aluno. Mas relapso e arrogante ele era.”

A arrogância custaria caro ao futuro gênio da física. Ele teve grande difi culdade em arranjar um professor pa-ra assinar como orientador a sua tese de doutoramento na ETH. Aquele professor Weber que o convidara para assistir suas aulas como ouvinte pegou birra de Einstein. “Naquela época, os professores exigiam que os alunos lhes chamassem de Herr professor. Mas Einstein, não sei se por ingenuidade ou por maldade, chamava-o apenas Herr Weber. Isso era insuportável para o professor”, diz

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Santos. A rixa entre aluno e professor chegou a tal ponto que Einstein passou a enxergar a mão invisível de Weber em todos os nãos que recebeu quando procurava emprego ao fi nal do curso. “Einstein era uma pessoa completamen-te desconhecida, o que pode explicar sua difi culdade de conseguir emprego. Mas ele achava que era Weber quem desaconselhava os potenciais contratantes e atrapalhava a vida dele. Em cartas para a mulher Mileva ele declara a intenção de se vingar de Weber. Imagine ele, com 20 e poucos anos, dizendo isso de um professor que era o chefe do departamento”, disse Santos. Aos 70 anos, quando es-creve suas Notas autobiográfi cas e relembra os tempos de ETH, Einstein cita vários professores, mas não reserva uma menção sequer a Heinrich Friedrich Weber. “Ele deletou o nome do Weber de sua história”, afi rmou o palestrante.

OutsiderEinstein vez por outra também é citado como um plagiador, por copiar em seus primeiros trabalhos informações de outros autores sem dar o necessário crédito. Carlos Alberto dos Santos diz que isso, de fato, aconteceu, mas explica por que Einstein às vezes não dava referência. “Ele não citava porque não teve orientação para fazer isso. Era quase um menino quando escrevia aquilo. Um menino genial que não tinha orientação. Ele era meio um outsider mesmo”, afi rma. “Fazia tudo sozinho e seu trabalho não tem um padrão acadêmico como a gente conhece hoje. Ele escreveu coisas que [Hendrick] Lorentz já tinha dito, que [Jules Henri] Poincaré já tinha dito. Ele fez sua tese sozinho e depois teve difi culdade em arrumar um supervisor para assinar a tese. Mas a ciência é assim, a gente faz ciência em cima de coisas já feitas. Quem faz ciência sabe disso”, afi rma.

Um quarto mito propõe que Einstein, em 1905, teve uma tempestade criativa, razão pela qual saiu escrevendo os artigos que mudaram os rumos da física. “Isso é muito ruim do ponto de vista pedagógico, didático, porque passa a ideia para as crianças de que você não precisa estudar. Se você for bom, do dia para a noite parece que tudo cai do céu”, afi rma o professor. Carlos Alberto dos Santos mostrou que o jovem pesquisador já vinha trabalhando nos temas dos artigos desde muito tempo antes e que eles já aparecem em alguns dos cinco trabalhos que Einstein publicou em anos anteriores. Em dezembro de 1901, por exemplo, ele escreveu uma carta à colega de universidade e futura mulher, Mileva, dizendo: “Estou muito ocupado com uma teoria eletrodinâmica dos corpos em movimento, que promete ser um trabalho de importância capital”. Era o embrião do artigo sobre relatividade restrita (ou espe-cial). “Ele deve ter se engasgado por conta da matemática e a coisa se arrastou. Por isso, só publicou em 1905”, diz o professor Santos.

Nessa fase, Einstein foi morar em Berna e enfrentou as difi culdades de arrumar emprego. “Ele dava aula particular ali, ia dois meses para uma escola, depois dois meses para outra. Passou uma vida difi cílima. Um amigo dos tempos

de adolescência que o visitou em 1902 escreveu que estava muito impressionado, porque achava que Einstein ia mor-rer de fome. Alguns biógrafos acreditam que os problemas estomacais de que Einstein sofreria bem mais tarde resul-tam do período que ele passou em Berna. Ele se alimentava de café com salsicha”, disse o professor. A sorte muda em junho de 1902, quando Einstein consegue um emprego no escritório de patentes de Berna e se reúne com a mulher, Mileva, e seus principais amigos, Michele Besso e Conrad Habicht. “Como estão todos juntos, cessam as cartas nesse período. Claro que ele mentiu para arrumar o emprego. Era preciso ter noções de engenharia para analisar as patentes e ele disse que sabia. Na verdade, não sabia, mas aprendia rápido. Chegava ao escritório e fazia tudo rapidinho e no resto do dia trabalhava nas contas dele. E conseguiu em-prego para Michele Besso porque o queria por perto. O Michele o ajudava a fazer os cálculos”, diz Santos. De acordo com o professor, a preparação para o ano miraculoso foi uma grande caminhada. “Não foi obra de uma divindade. Einstein preparou-se desde os 16 anos para escrever aquilo. Podia ter abandonado a física porque não tinha emprego, mas seguiu em frente. Não era de se submeter a regras, mas trabalhava como um touro. Assim chegou a seu ano miraculoso”, afi rma. “Se os mitos sobre Einstein fossem reais, os trabalhos de 1905 provavelmente não teriam existido”, completa o professor Carlos Alberto dos Santos.

• Fabrício Marques

O adolescente Einstein, quando vivia na Itália

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Tolmasquim: anúncio de 1919 foi grande evento de mídia

UM CIENTISTA NOS TRÓPICOSALFREDO TOLMASQUIM

Humor de Einstein foi se alterando

durante a viagem à América do Sul

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A comprovação da teoria geral da relatividade na cidade de Sobral, no Ceará, e na ilha de Príncipe, no golfo da Guiné, em 1919, fez mais pela fama de Albert Einstein do que todos os artigos revolucionários publicados entre 1905 e 1916. O resultado foi anunciado por pesquisadores ingleses em uma sessão solene da Academia de Ciências de Londres e noticiado como de grande importância para a ciência primeiramente no jornal The Times e depois pela imprensa de todo o mundo. “Foi um dos primeiros grandes eventos de mídia no século XX”, contou o pesquisador em história da ciência e diretor do Museu de Astronomia e Ciências Afi ns (Mast), Alfredo Tiomno Tolmasquim. Ao se tornar uma celebridade mundial, o cientista alemão começou a viajar pelo mundo para divulgar suas ideias científi cas, receber homenagens e defender o pacifi smo e o sionismo. “Foi dentro deste contexto que ele visitou o Brasil, em 1925.” Tolmasquim falou no Parque do Ibira-puera na agenda cultural paralela à exposição Einstein, com o tema “Um cientista nos trópicos: a viagem de Einstein à América do Sul”, no dia 9 de novembro.

Para entender melhor as motivações do cientista em visitar países sem muita expressão em um lugar distante, Tolmasquim lembrou que o reconhecimento pelos artigos de 1905 ocorreu muito lentamente. Foi apenas em 1914, aos 35 anos, que ele recebeu e aceitou um convite atraente para trabalhar na Universidade de Berlim: não precisaria

dar aulas, apenas seminários e palestras. O salário era confortável e incluía uma vaga na Academia Prussiana de Ciências e a diretoria do instituto de física que viria a ser criado. Quando pensou que fi nalmente teria tempo e tranquilidade fi nanceira para trabalhar, quatro meses depois que chegou a Berlim eclodiu a Primeira Guerra Mundial e, pela primeira vez, Einstein começou a se envolver em questões políticas.

Os intelectuais e cientistas da época se enga-jaram diretamente na polêmica sobre o confl ito. “Para os não-alemães existiam duas Alemanhas: a do Kaiser, beli-gerante, e a da ilustração, do conhecimento, da cultura, da ciência”, contou o diretor do Mast. Os principais cientistas e intelectuais alemães reagiram a essa posição e fi zeram o “Manifesto dos 93”, em que diziam que a Alemanha era uma só, a do Kaiser. Ocorre que Einstein não assinou o manifesto porque acreditava que os cientistas não deveriam se envolver na questão. Para ele, ciência e cultura teriam de estar acima das fronteiras nacionais. Essa posição o levou a escrever um contramanifesto, conclamando “os bons europeus” a se unirem contra a guerra, algo imediatamente considerado uma espécie de ato de traição. Foi nesse período que Einstein assumiu de vez o pacifi smo e passou a apoiar o sionismo, movimento de criação de um Estado judaico na Palestina.

Personalidade mundialMesmo com o envolvimento político, ele continuou dando palestras e trabalhando na teoria geral da relatividade, que publicou em 1916. Uma das ideias básicas da teoria diz que um corpo de grande massa, como o Sol, deforma o espaço em torno de si e qualquer objeto que passar na região vai seguir essa deformação, inclusive a luz. Como se poderia comprovar a hipótese? Observando a luz de uma estrela passando perto do Sol. “Você olha a luz da estrela perto do Sol, depois olha a luz da estrela longe do Sol e vê se houve alguma mudança”, explicou Tolmasquim. A única maneira de fazer a observação seria no momento do eclipse do Sol – quando a Lua encobre a luz solar e é possível ver as estrelas que estão próximas. No artigo de 1916 Einstein previu qual seria a defl exão da luz de uma estrela próxima calculando pela massa do Sol. Para fazer a comprovação da teoria saíram as duas expedições britânicas, para o Ceará e para o golfo da Guiné, na África, que comprovaram a defl exão prevista pelo físico.

Um cientista nos trópicos: a viagem de Einstein à América do Sul

Alfredo Tiomno Tolmasquim, graduado em engenharia química, diretor e pesquisador titular do Museu de Astronomia e Ciências Afi ns (Mast) do Rio de Janeiro, autor de Einstein: o viajante da relatividade na América do Sul (Vieira e Lent)

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No centro de todas essas questões, Einstein pensou em ir embora para outro país e deixar as polêmicas para trás, mas foi convencido por alguns colegas a fi car – a Alemanha, afi nal, era o centro da física no mundo. “Foi naquele momento que ele decidiu começar a se manifestar com mais ênfase e usar sua voz para divulgar suas ideias científi cas e pacifi stas”, disse Tolmasquim. Passou, então, a dar muitas palestras, não só divulgando a relatividade e a nova física, como interagin-do com os cientistas. Foi a Holanda, Noruega, Dinamarca, Tchecoslováquia, Áustria, Estados Unidos, Inglaterra, França, Japão, Palestina e, em 1925, Argentina, Uruguai e Brasil.

A viagem começa pela Argentina, na época um país muito diferente do Brasil, então extremamente agrário. A Universidade do Rio de Janeiro, a primeira do Brasil, havia sido criada em 1922. Na Argentina, porém, existiam cinco universidades no mesmo ano, além de alguma pesquisa em física. Havia também a presença relativamente alta e organizada de imigrantes alemães. Eles criaram a Institui-ción Cultural Argentino-Germana, que reunia cientistas alemães e argentinos interessados na ciência e cultura germânicas. Um dos objetivos era trazer pesquisadores importantes para dar palestras e um dos primeiros nomes citados foi o de Einstein. Mas o convite não se concretizou de imediato porque existia entre seus integrantes a mesma divergência no âmbito da instituição que já ocorrera na Alemanha sobre as posições políticas de Einstein.

Outra instituição cultural, a Associação Hebraica da Argentina, também tinha o objetivo de trazer judeus emi-nentes em artes e ciências. Ao tentar contatar o cientista, descobriu-se que ele só aceitava convites feitos por insti-tuições científi cas para evitar que sua imagem fosse usada de uma forma ou de outra. A Associação Hebraica sugeriu, então, que a Universidade de Buenos Aires fi zesse o convite, colocaram dinheiro à disposição para ajudar nos custos

e, em dezembro de 1923, seguiu uma carta para Berlim. Einstein disse que aceitava, mas apenas em 1925.

O Brasil entrou na história por iniciativa também da Associação Hebraica. Os líderes da comunidade judaica da Argentina alertaram os líderes no Uruguai, Brasil e Chile sugerindo que aproveitassem a visita de Einstein à América do Sul para convidá-lo a ir aos seus países. No Rio de Janeiro, o rabino Isaiah Raffalovich, líder judeu local, conseguiu que a Escola Politécnica o convidasse. “A carta para Einstein não saiu da universidade, mas foi feita pelo próprio rabino em nome de Paulo de Frontin, na época diretor da Escola Politécnica, e do diretor da Faculdade de Medicina, Aloysio de Castro”, contou Tolmasquim. O cien-tista alemão também aceitou vir ao Brasil e ao Uruguai.

Estado de espíritoEinstein desembarcou no Rio no dia 21 de março, fi cou apenas um dia e embarcou para Buenos Aires, onde che-gou dia 24. Um mês depois foi para Montevidéu, fi cou uma semana e, em seguida, voltou ao Rio para fi car mais uma semana. “Ele escreveu suas impressões em um diário de viagem que indica como seu estado de espírito foi se alterando durante a estadia na América do Sul”, disse o pesquisador. “No primeiro dia achou tudo maravilhoso, mas na volta para a Alemanha, quase dois meses depois, não suportava mais o calor, a comida e as homenagens.” Uma das primeiras anotações quando ele chega ao Rio, antes de ir para a Argentina, é: “O Jardim Botânico, bem como a fl ora de modo geral, supera o sonho das mil e uma noites. Tudo vive e cresce a olhos vistos por assim dizer. Deliciosa mistura étnica nas ruas: português, índio, negro, com todos os cruzamentos. Espontâneos como plantas, subjugados pelo calor. Experiência fantástica! Indescritível abundância de impressões em poucas horas”.

Palestra no Clube de Engenharia, no Rio: gente demais, calor e barulho

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existissem ou teriam sido bastante diferentes”, comentou o historiador.

Judeu alemão discriminado em seu país, Einstein migrou em 1933 para os Estados Uni-dos, quando foi contratado pela Universidade de Princeton. Alguns anos depois, em 1940, ob-teve a cidadania norte-americana, ato que teve grande signifi cado político naqueles tempos de guerra: um dos alemães mais ilustres do século XX adotando um novo país e jurando sua ban-

deira. Como cidadão americano, suas posições políticas se tornaram ainda mais incisivas: ele não poderia se calar numa sociedade em que linchamentos de negros eram corriqueiros e aconteceram até os anos 1960. E chega a adotar uma retórica americana para expor suas opiniões: “Todos que aprendem pela primeira vez ou têm notícia pela primeira vez desse estado de coisas numa idade mais madura sentem não só a injustiça, mas a desmoralização dos princípios dos fundadores dos Estados Unidos, o prin-cípio em que todos os homens são criados iguais”, disse num manifesto à Liga Urbana Nacional em 1946.

Para Freire, uma boa ilustração da atitude de Einstein é a amizade que ele manteve com negros norte-americanos que tinham posição de destaque na defesa dos direitos civis dos negros. Um deles era o historiador W.E.B. Du Bois, fundador da National Association for the Advancement

O DOSSIÊ DO FBIOLIVAL FREIRE

Historiador da ciência apresenta um ativista

contra as disparidades raciais nos EUA

Ícone cultural do século XX, Albert Einstein não é só co-nhecido por suas contribuições à física. Ele também adotou posturas políticas claras como ser pacifi sta e se recusar a apoiar a Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial. Na Segunda, ele chegou a defender que as nações democráticas deveriam se armar para enfrentar a ameaça nazista. Mas foi de uma faceta menos conhecida que Olival Freire, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), tratou na palestra “O dossiê Einstein no FBI: a documentação de sua luta pelos direitos civis”, no dia 25 de outubro: a de opositor da segregação racial nos Estados Unidos.

Apesar de só ter vindo à tona em 2002, quando o jor-nalista Fred Jerome publicou o livro The Einstein fi le, os dados em que ele se baseou são públicos e estão disponí-veis no site do FBI. A abundante documentação em que o jornalista norte-americano se apoiou é resultado da investigação conduzida por Edgar Hoover, “diretor quase eterno do FBI”, que pretendia expulsar do país uma das maiores personalidades da ciência por sua suposta espio-nagem a favor da extinta União Soviética, portanto uma atitude antiamericana. O processo só foi arquivado quando o cientista, doente, foi hospitalizado de maneira quase irreversível, acabando com os planos de Hoover. “Imagi-nem vocês se ele tivesse obtido sucesso [...]. A história e a própria exposição a que nós estamos assistindo talvez não

Semanas depois, sozinho, sem muitos interlocutores científi cos, assediado pela imprensa, participando de inú-meros eventos, solenidades e discursos, o humor dele foi mudando sensivelmente. “A palestra que deu no Clube de Engenharia do Rio, por exemplo, foi uma catástrofe.” O público era composto de militares e diplomatas com as es-posas e fi lhos. O calor era grande, a sala estava superlotada e a janela teve de ser aberta. Piorou, porque havia o barulho da rua. Einstein deu a palestra em francês e desenhou uma série de fórmulas no quadro. Depois escreveu no diário: “Compreensão impossível a começar pela acústica. Pouco sentido científi co. Eu sou um tipo de elefante branco para os outros, eles para mim uns tolos”. Na segunda palestra na Escola Politécnica, apesar do grande número de pessoas, restringiram a entrada e o evento foi mais agradável.

Na terceira e última palestra dada no Rio de Janeiro, na Academia Brasileira de Ciências (ABC), houve algo di-

ferente: um artigo específi co escrito por ele especialmente para a ocasião. Naquele momento, no Brasil, a teoria da relatividade ainda provocava muita curiosidade entre os poucos cientistas e intelectuais. Mas, para Einstein, em 1925, sua teoria já estava estabelecida e o que o interessava eram as questões relacionadas à constituição da luz, sobre a qual ainda havia debates no meio científi co europeu. Ele escreveu o artigo “Observações sobre a situação atual da teoria da luz” em alemão, em papel timbrado do Hotel Glória, onde ele se hospedou, com a data de 7 de maio de 1925, e pos-teriormente publicado no primeiro número da revista da Academia Brasileira de Ciências, em abril de 1926. O texto original, deixado no Brasil para ser traduzido, foi achado por Tolmasquim, que tratou de divulgá-lo em congressos de história da ciência nos anos 1990.

• Neldson Marcolin

O dossiê Einstein no FBI: a documentação de sua luta pelos direitos civis

Olival Freire Júnior, físico e professor associado do Instituto de Física da Universidade Federal da Bahia (UFBA)

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Einstein recebe a cidadania americana em 1940

Olival Freire: antirracismo ativo revelado

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LOof Colored People, associação que o físico alemão foi con-

vidado a integrar – e aceitou. Em texto para a revista que Du Bois editava, Einstein condenou o racismo e defendeu a necessidade de a minoria negra unir-se contra a opressão da classe dominante que os tratava como inferiores. Mas seu ato mais marcante nessa amizade foi se propor a tes-temunhar a seu favor quando Du Bois foi processado por acusação de ser ligado ao Partido Comunista. Era 1951 e o cientista ativista já estava com a saúde bem debilitada, mas acabou não precisando ir ao tribunal. “Quando o ad-vogado de defesa anunciou que Du Bois tinha uma única testemunha de defesa que era o cientista Albert Einstein, o juiz pediu a suspensão da sessão e, quando voltou, disse que o caso estava arquivado”, contou Freire.

Homenagem mútuaEmbora avesso a homenagens e honrarias das quais recu-sou várias, Einstein aceitou o título de doutor honorário pela Universidade Lincoln em 1946. O motivo da exce-ção era condizente com sua militância: se tratava de uma universidade pequena na Pensilvânia que se propunha a educar homens negros que não seriam aceitos em ou-tras universidades. “A separação das raças [...] não é uma doen ça das pessoas de cor, mas uma doença dos brancos”, disse em seu discurso em que aceitou a homenagem. “Não pretendo me calar a esse respeito.”

Não se calou. Há inúmeros registros de cartas escritas a autoridades e manifestações diversas de apoio por esse cientista que não só mantinha amizade com negros, mas visitava esses amigos na rua de Princeton em que viviam segregados. Numa sociedade em que brancos não costuma-vam cumprimentar negros, muito menos se sentar perto deles, Freire mostrou alguns depoimentos marcantes de pessoas sem projeção política que eram excluídas da socie-dade pela cor de sua pele, como o de uma mulher negra: “Eu ia frequentemente com a minha mãe para a cozinha do Instituto de Estudos Avançados onde Einstein trabalhava.

Ele vinha sempre na hora do almoço. Ele era tão simpático! Eu lembro de andar pelo instituto com Einstein, e também ia ao seu escritório. Eu tinha 6 anos na época”.

Mesmo que os registros fossem públicos no site do FBI, demorou para que essa faceta viesse à tona. Para Freire há duas razões. “A primeira é que a imagem pública de Einstein e a dimensão do seu combate à segregação racial refl etiam a difi culdade que os Estados Unidos tinham, e eu diria que ainda têm, de lidar com o seu próprio passado.” No dia em que falou no Ibirapuera, 25 de outubro, poucos dias antes das eleições norte-americanas, o físico-historiador baiano chamou a atenção para o fantasma que pairava sobre a vi-tória projetada de Barack Obama: 2% ou 3% do eleitorado poderia mudar para o lado republicano na última hora pelo simples motivo de o candidato democrata ser negro.

A segunda razão apontada por Freire é que a Univer-sidade de Princeton, onde Einstein trabalhava, é (e já era) uma das mais renomadas do país. Mas está sediada numa pequena cidade onde a segregação racial era acentuada. Era exatamente a universidade para onde os jovens do Sul, região conhecida por sua inclinação racista, se enca-minhavam não só pela qualidade do ensino, mas por ali estarem protegidos de conviver com raças por eles con-sideradas inferiores. “Essa faceta de Einstein, portanto, é incômoda não só para a imagem e para o modo que os Estados Unidos lidam com sua história recente, mas ela é especialmente incômoda para a história da própria Uni-versidade de Princeton”, disse o historiador. Ele festeja o fato de terem sido jornalistas americanos a trazer à tona o lado antirracista de uma das maiores personalidades do século XX, dando maior impacto à revelação.

• Maria Guimarães

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MUDANÇA DE VISÃO PETER SCHULZ

As crenças de uma época podem

barrar ideias novas

Logo ao abrir a apresentação “Mudando o modo de ver o mundo: indivíduos e Zeitkontext ou como o movimento browniano modifi cou o modo de fazer ciência”, no dia 11 de outubro, o físico da Unicamp Peter Schulz observou que o uso de um termo em alemão seria, como ele próprio dis-se, “uma pequena pedanteria”, embora útil para valorizar o contexto de uma época e não apenas o de um indivíduo. Schulz, que se considera historiador amador, contou em seguida de um comerciante e cientista holandês, Anton van Leeuwenhoek, que construiu um microscópio e foi o primeiro ser humano a observar microrganismos.

Na segunda metade do século XVII, Leeuwenhoek des-cobriu a impressionante diversidade de seres microscópi-cos que viviam no interior da boca de uma pessoa qualquer. Esses minúsculos seres, porém, como ele também notou, desapareciam após alguns goles de café quente. “Por que, apesar dessas evidências, a teoria dos germes só veio com Pasteur, dois séculos mais tarde?”, indagou Schulz. “No século XVII, as coisas que não podiam ser vistas não me-reciam ser estudadas.” Esse desdém partia não de fanáticos, ele destacou, mas da própria comunidade científi ca.

Também com um microscópio, o botânico escocês Robert Brown observou partículas de pólen dançando. Ele escreveu um estudo de 25 páginas, A brief account of mi-croscopical observation, mas esse novo problema científi co recebeu pouca atenção por 80 anos, embora outros cien-tistas, como o químico escocês Thomas Graham, tivessem observado o mesmo fenômeno. Foi Graham quem cunhou o termo coloide para designar as misturas heterogêneas formadas por partículas em agitação contínua mais ou menos intensa, como no café, na geleia ou na atmosfera. Não foi o bastante, porém, para despertar o interesse de outros cientistas.

Einstein, lembrou Schulz, retomou um tema próximo ao movimento browniano, o tamanho de uma molécula, em sua tese de doutorado; mais tarde ele construiu uma

EINSTEIN, CONHECIMENTO E CULTURA

Mudando o modo de ver o mundo: indivíduos e Zeitkontext ou como o movimento browniano modifi cou o modo de fazer ciência

Peter Alexander Bleinroth Schulz, físico e professor associado do Instituto de Física da Unicamp

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Schulz: pólen, coloides e cubismo

teoria para o movimento bro-wniano, publicada em 1905.

No início do século XX nem todos os cientistas acei-tavam o conceito de átomos. Alguns até o rejeitavam. É o caso do químico alemão Wolfgang Ostwald, colega de Einstein, que afi rmou: “Jamais poderemos, por definição, comprovar a existência de átomos”. Schulz contou que em 1901 o pai de Ostwald re-cusou um emprego a Einstein por discordar de suas ideias. “Essa antipatia”, comentou o físico da Unicamp, “mostra que mesmo mentes audacio-sas podem ser obstruídas por preconceitos fi losófi cos”.

Mais tarde, um físico francês, Jean Perrin, por meio

de observações no microscópio, comprovou as ideias de Einstein sobre o tamanho das partículas e a agitação das moléculas. Perrin desenhou em papel quadriculado a traje-tória de uma partícula de poeira e demonstrou a existência de átomos. O antes dogmático Wolfgang Ostwald mudou de ideia e em 1915 ele já acreditava em átomos a ponto de escrever um livro intitulado O mundo das dimensões esquecidas. Surgia assim, fi nalmente, a ciência dos coloides, que em poucos anos levou a descobertas reconhecidas com três prêmios Nobel.

A nova ciência motivou também pesquisas interdiscipli-nares em busca de aplicações dos coloides na medicina ou

na biologia. Não avançou muito, porém, porque a indústria dos polímeros atropelou a incipiente indústria dos coloides. “Durante a Segunda Guerra Mundial, meias de náilon como estas”, disse Schulz mostrando a foto de uma mulher sentada em uma calçada arrumando as meias de náilon, “era o sonho de consumo”. O contexto favorável à interdisciplinaridade só viria na segunda metade do século XX.

O imperativo culturalUm físico norte-americano, Philip Warren Anderson, ajudou a construir uma nova perspectiva para os coloides não só por meio de seus estudos sobre sistemas físicos desordenados, como também ao apresentar uma ideia que Schulz retomou: “O todo é mais do que a soma das partes. É diferente”. Schulz mostrou em seguida uma pintura com frutas e legumes formando um rosto, de autoria de um artista do Renascimento italiano, Giusep-pe Archimboldo. “Não é natureza-morta, é um retrato”, acentuou o físico da Unicamp. Anderson ajudou a criar um contexto de época favorável – um Zeitkontext – e a mostrar que os chamados problemas emergentes da ciência não poderiam ser explicados apenas pelas leis fundamentais da física: a biologia, por exemplo, não se-ria apenas uma aplicação da física, mas um campo de pesquisa com regras próprias.

Nos anos 1970, ele disse, as partículas coloidais ganham o nome de nanopartículas e começam a ser estudadas por grupos de pesquisadores de áreas diferentes, que procuram resolver grandes problemas. Uma trajetória análoga mar-cou a mecânica quântica, que, lembrou Schulz, só avançou na década de 1920 na Alemanha “porque o pessoal estava cansado do determinismo clássico e probabilístico” – de outro modo, de um mundo sem surpresas.

Schulz comentou que é o imperativo cultural, a seu ver, que explica “certas coisas que as pessoas querem que acon-

Um químico

alemão, colega

de Einstein,

assegurava

que jamais

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comprovar

a existência

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Depois

ele mudou

de ideia

Sem abdicar da liberdade: olhar de menino

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36 ■ FEVEREIRO DE 2009 ■ ESPECIAL EINSTEIN

Einstein foi um cientista com estilo, dono de uma singu-laridade poderosa que, nos primeiros anos do século XX, lhe permitiu fazer dialogar dialeticamente três campos teóricos aparentemente inconciliáveis da física – mecâni-ca, termodinâmica e eletromagnetismo –, para sobre isso criar suas próprias e novas teorias. Einstein foi também um consciente, arguto e bem preparado pensador da ciên-cia até o fi m da vida, e não um ingênuo que se aventurava a fi losofar sem base sólida quando refl etia sobre seu fazer científi co. Foi a força dessa dupla face do mais importante físico do século passado que emergiu da densa palestra do fi lósofo francês Michel Paty, diretor de pesquisa emérito do Centro Nacional de Pesquisa Científi ca (CNRS), no domingo 14 de dezembro, no Parque do Ibirapuera. Ao situar o lugar especial de Einstein na construção huma-na de mundos pela via do conhecimento, a fala de Paty encerrou com grande propriedade o ciclo de palestras sobre o físico alemão organizado por Pesquisa FAPESP, paralelamente à exposição científi ca trazida ao Brasil pelo Instituto Sangari e aqui coordenada por Marcelo Knobel, professor de física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Na verdade, o tema proposto por Paty – “Einstein, o físico e o fi lósofo” – é um de seus objetos de estudo há muito tempo e, recentemente, foi publicado no Brasil, pela Estação Liberdade, um trabalho de 1997, Einstein (traduzido por Mário Laranjeira, do original francês Albert Einstein ou la création scientifi que du monde), em que ele aborda a persona-gem nessa dupla dimensão. Registre-se, aliás, que o próprio Paty, cujo currículo inclui uma já longa colaboração com o

Brasil, da qual faz parte a condição de professor visitante da Universidade de São Paulo (USP) em algumas ocasiões, a mais recente delas de 2004 a 2006, é fi lósofo e físico. Doutorou-se em ambos os campos e circula à vontade entre eles.

Michel Paty começou por investir contra as fantasias mais recorrentes sobre Einstein, inca-pazes todas de traduzir para o público o signifi -cado da obra desse homem-chave do século XX, sejam elas “a de um demiurgo que teria aberto as

portas do mundo do futuro, desconhecido e inquietante”, a de um cientista extravagante, “longe da vida cotidiana e da maneira comum do pensar”, ou ainda a de alguém apartado do mundo do pensamento, mais vinculado a uma ciência que é só “prosaica transformação de formas materiais, longe do mundo das ideias”.

Para ele, o que permite “compreender, captar alguma coisa de essencial, encontrar um sentido profundo na obra realizada, sem que seja necessário dominá-la inteiramente nem, é claro, reinventá-la”, é seguir o pensamento do cien-tista em seu trabalho de pesquisa. “Mesmo parcial e limi-tado, esse apanhado de sua obra participa da intelecção do mundo que esta realiza”, disse. Se o mais incompreensível é, como mais ou menos dizia Einstein, que o mundo seja inteligível, para Paty, vê-se que ele realmente o é, quando se avança nos caminhos do conhecimento, pelas pegadas do grande físico, e admira-se o mundo a se abrir pelo trabalho do pensamento. “Dois aspectos aqui são notáveis: trata-se de trabalho do pensamento, e este cria, por assim dizer, formas novas de representação (dos fenômenos, do mundo) que atravessam a escuridão e nos fazem ver mais claramente, mais longe, mais profundamente”, ressaltou.

Einstein, o físico e o fi lósofo

Michel Paty, diretor de pesquisa emérito no Centre National de la Recherche Scientifi que, França, e autor de Einstein (Estação Liberdade)

FILÓSOFO A TODA PROVA MICHEL PATY

Análise da obra de Einstein revela

sua dimensão filosófica

teçam”. Em um cartão-postal do início do século passado, no exemplo que ele mostrou, as pessoas já se imaginavam conversando enquanto viam as imagens delas próprias em uma tela, como hoje no Skype. “Aposto muito no diálogo entre arte e ciência”, comentou.

Em seguida, ele mostrou Les demoiselles de Avignon, um quadro do pintor espanhol Pablo Picasso que permite leituras variadas, de acordo com a perspectiva espacial adotada. “Arthur Miller [físico norte-americano e um dos próximos palestrantes] diz que arte e ciência modifi cam a visão de espaço e de tempo”, lembrou Schulz (ver na página 47 a síntese da apresentação de Arthur Miller).

No fi nal, ao longo de um animado debate com a pla-teia, Schulz detalhou o que havia exposto lembrando que muitas vezes ideias novas avançam com difi culdade não só em razão de crenças e expectativas sociais, mas tam-bém por razões concretas, a exemplo da defi ciência de equipamentos. Os estudos sobre coloides avançaram mais livremente depois da Segunda Guerra Mundial, quando os microscópios eletrônicos começaram a ser usados e com a construção de uma ideia mais clara de interdisci-plinaridade.

• Carlos Fioravanti

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Paty: Einstein usava a filosofia para refletir sobre a ciência

Michel Paty ofereceu ao público um resumo de Einstein como o grande fí-sico, dos maiores do século XX, que revolucionou sua ciência “pela teoria da rela-tividade geral ou teoria re-lativista da gravitação, pelas perspectivas oferecidas pela possibilidade de pensar uma cosmologia física, pelos pas-sos decisivos que conseguiu no conhecimento da matéria elementar (átomos, radiação, física quântica)”. Acrescen-tou que esses avanços deci-sivos relativos à matéria nas suas várias escalas ergueram “as colunas da física e da cos-mologia contemporânea”, de tal modo que mudou de forma fundamental concei-tos pelos quais se pensa o mundo, “tais como o espaço, o tempo, a massa, a energia, o campo etc.”.

Como essas transfor-mações e ideias inovadoras vieram à luz através do pen-samento humano, neste caso particular, através de Eins-tein? Foi procurando res-ponder a essa interrogação que Michel Paty enfatizou o que é, para ele, o “estilo” próprio de Einstein em sua

maneira de pesquisar, “diretamente ligado com seu pen-samento a respeito da matéria, do mundo e da capacidade do intelecto em aproximar-se, por suas representações con-ceituais e teóricas, desta realidade, e de torná-la inteligível”. De certa maneira, observou, apesar de seu caráter singular e excepcional, o processo de pensamento do cientista Eins-tein nos permite relacionar “ao vivo” três aspectos muito diferentes, raramente considerados de forma conjunta, mas indissociáveis, da possibilidade da ciência e da sua invenção: “A realidade material exterior ao pensamento, o pensamento simbólico e criativo guiado pela exigência racional de inteligibilidade e a fi losofi a como perspectiva de conjunto e como momento refl exivo da apreensão in-telectual do mundo”.

Para fornecer indícios daquilo que denominou o estilo de Einstein, Paty destacou que “se deve a ele a reunião dos conceitos de massa e de energia no conceito único de massa-energia, assim como avanços do mesmo porte no conhecimento da matéria que carrega essa massa-energia,

tais como o caráter discreto (quântico) da energia da radia-ção, a ligação da massa-energia com o campo da gravitação e a relação deste último à estrutura do espaço-tempo”. Ou seja, as contribuições de Einstein tornaram clara a depen-dência mútua desses conceitos físicos antes concebidos separadamente, ao mesmo tempo em que indicaram difi -culdades fundamentais para se considerar conjuntamente esses conceitos e as teorias físicas correspondentes. Dessa forma, destacou Paty, “o pensamento físico de Einstein se revela simultaneamente construtivo e crítico. E se inscreve, de fato, num pensamento da matéria que é tanto científi co – físico – quanto fi losófi co”. Einstein mobiliza essas duas dimensões, tomando-as como distintas que são, para fazer o mundo inteligível, segundo a visão de Michel Paty.

O estilo EinsteinA partir dessa interpretação foi que o fi lósofo, na sessão de encerramento do ciclo de palestras, procurou caracterizar o estilo do trabalho de pesquisa do cientista, vinculado a seu pensamento propriamente físico, vinculado à matéria, e, em seguida, relembrar as concepções mais gerais de Einstein sobre o conhecimento da matéria, em diálogo com outras ciências, a biologia em especial. Nessa segunda parte, Einstein realizou, segundo Paty, “uma refl exão sobre a relação entre as ciências e desenvolveu um pensamento fi losófi co em seu sentido próprio sobre a matéria e sobre o conhecimento”.

No esforço para caracterizar o estilo de trabalho do cientista, o palestrante observou que as primeiras con-

O estilo de

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tribuições de Einstein à física ocorreram quando se de-batiam intensamente, nos primeiros anos do século XX, os méritos das várias abordagens teóricas e conceituais da matéria – as da mecânica clássica, originada no século XVII, da termodinâmica, que se constituíra com vigor na metade do século XIX, e do eletromagnetismo, mais recente. Einstein, longe da tentação tão comum na época de reduzir a descrição do conjunto dos fenômenos físicos a uma só das teorias disponíveis, considerando uma delas mais fundamental que as demais, partia da constatação, em suas pesquisas, exatamente dessa pluralidade teórica que lhe permitia tomar cada uma e ir se virando, avançando na perspectiva de uma teoria unifi cada, dado que a matéria é una na perspectiva da física, “mas sem tentar obrigar as várias teorias a serem uma antes do tempo”.

Michel Paty falou sobre o que Einstein tomou de cada teoria. E a respeito da mecânica, por exemplo, ciência do movimento dos corpos, disse que ele a aceitava, primeiro, por sua possibilidade de ser expressada com o uso do cál-culo diferencial integral, ou seja, por sua possibilidade ana-lítica, algo fundamental para todos os físicos e, em segundo lugar, por ter identifi cado um princípio de relatividade em relação aos movimentos da inércia, que irá depois genera-lizar e usar em todos os seus trabalhos. No texto escrito de sua palestra, que em muitos momentos abandonou, dada a premência do tempo, Paty observou que “a respeito da

Michel Paty: filósofo e físico

mecânica, Einstein foi devedor das lições críticas de Ernst Mach sobre os conceitos absolutos de espaço e tempo, que lhe serviram de premissa para a teoria da relatividade res-trita, e também sobre a relação necessária entre a massa de inércia de um corpo (concebida como seu ‘coefi ciente de aceleração’) e os outros corpos presentes no espaço, que ele batiza de princípio de Mach e que foi, alguns anos mais tarde, um dos pontos de partida de sua teoria da relatividade geral e de sua cosmologia física”. Tudo isso fundamenta a afi rmação do fi lósofo francês de que “Einstein não aban-donou a mecânica, ele a reformou”.

A criação científi caPaty foi examinando de modo similar e com múltiplos exemplos como Einstein reformou também a termodi-nâmica e o eletromagnetismo, em sua busca por tornar o mundo inteligível dentro das representações da física. Uma busca, em seu entendimento, sempre construtora de teorias e sempre crítica, que torna inaceitável a ideia de um Einstein jovem, empirista, e um Einstein velho, crítico.

Entre as muitas conclusões que apresentou ao público sobre o cientista e o fi lósofo que conviveram em Eins-tein, Paty afi rmou que, “de maneira explícita, a fi losofi a é convocada por Einstein quando se trata, para ele, de refl etir sobre sua ciência. Pois as respostas da ciência têm implicações fi losófi cas e informam as grandes questões da fi losofi a – Einstein era consciente disso”. Entretanto, a mais instigante de suas afi rmações em relação ao lado fi losófi co do cientista foi observar que essa dimensão é óbvia no pensamento de Einstein “pelas raízes profundas de suas interrogações sobre a física, isto é, sobre a descrição, por representação conceitual e teórica, do mundo material”. Trata-se, assim, de uma fi losofi a na prática, “na atitude prática do físico como pensador”.

Se a isso se juntar a afi rmação de Paty, ainda quando falava sobre o estilo singular do cientista, a respeito de como Einstein tratava de assegurar o caráter físico mes-mo dos conceitos, apertando sua inserção na teoria de tal maneira que eles terminassem sendo determinados pela estrutura dessa teoria, que por sua vez tinha que ser estreitamente adequada aos elementos do mundo físico que ele buscava representar, algo mais se entenderá sobre a originalidade de Einstein.

O último credo fi losófi co de Einstein, que ele próprio referia à fi losofi a de Kant, disse Paty, é que o mundo real, exterior ao pensamento, existe, e o pensamento humano pode, por seu próprio exercício, a ele aceder, porque o mundo pode se tornar inteligível, mas sem a física e sem as ciências em geral isso não seria realizável. Einstein fala em criação científi ca e não vê paradoxo na expressão. “Ele indica que não há um caminho lógico que leve diretamente da experiência do mundo à sua representação e, sob esse aspecto, o pensamento é livre e, portanto, criador.”

• Mariluce Moura

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Mariconda: entre o físico alemão e o italiano

da noção de tempo está intimamente ligada a uma nova concepção da natureza, que é vista como composta por regularidades imanentes às ligações observáveis entre os acontecimen-tos. Essas regularidades podem ser matemati-camente expressas e adquirem o estatuto de leis eternas, presentes em todas as transformações observáveis na natureza.

Na concepção de tempo físico introduzida por Galileu, o termo tempo designa, na ver-

dade, um movimento físico, uma sequência de eventos físicos tomada como padrão de medida de tempo. Essa peculiaridade faz com que os instrumentos desenvolvidos para medir o tempo, os relógios, devam estar constan-temente em movimento uniforme, sem aceleração. Os ponteiros de um relógio, por exemplo, devem percorrer um dado espaço fi xo a um intervalo de tempo sempre regular. “Galileu marca o início da cronometria”, disse Mariconda. Einstein dá um passo além na defi nição do tempo. Para ele, além de grandeza física, o tempo é uma dimensão do espaço natural. “Vocês podem ver, principal-mente na parte relativa ao tempo da exposição Einstein, a dilatação e contração da dimensão temporal proposta pelo físico alemão”, afi rmou.

Para estabelecer a relação entre as ideias de Galileu e Einstein sobre a questão da relatividade do movimento, Mariconda retrocedeu ainda mais no tempo e recorreu às teses do polonês Nicolau Copérnico (1473-1543). No século XVI, ao apresentar a sua hipótese do duplo movi-mento da Terra (rotação e translação), Copérnico introduz o chamado princípio da relatividade óptica do movimento, que determina três situações possíveis na relação entre o observador e o objeto observado: o movimento pode ser

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De Galileu a Einstein: do tempo da física ao tempo vivido

Pablo Rubén Mariconda, fi lósofo e professor titular da Faculdade de Filosofi a, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

REENCONTROS NO CAMPOPABLO MARICONDA

Filósofo da USP diz que Einstein

desenvolveu as ideias de Galileu

Na palestra intitulada “De Galileu a Einstein: do tempo da física ao tempo vivido”, o fi lósofo Pablo Mariconda, da Universidade de São Paulo (USP), traçou um paralelo entre as ideias de Galileu Galilei (1564-1642) e Albert Einstein. Segundo o pesquisador, o trabalho de Einstein, embora revolucionário, não promoveu uma ruptura em relação às teses de Galileu Galilei, mas um desenvolvi-mento do pensamento do cientista italiano, que vive-ra quase três séculos antes do gênio alemão. “Einstein aprofunda a constituição do observador científi co, que, cada vez mais, se separa do observador comum”, disse o fi lósofo, que fez a apresentação no dia 1° de novembro.

Mariconda comparou especifi camente as ideias de Ga-lileu e de Einstein sobre duas questões fundamentais da física: o tempo físico (e a organização espaço-temporal dos eventos naturais) e a ideia de relatividade do movimento (e de sua caracterização físico-matemática). “Esses dois aspectos, presentes no pensamento de Galileu, convergem em um sentido preciso para a concepção relativista de Einstein”, disse o fi lósofo da USP.

No início do século XVII, Galileu foi o primeiro a in-troduzir na física o conceito de que o tempo é uma gran-deza mensurável, ligada à determinação matemática do movimento. Fez isso por meio da chamada lei da queda dos corpos, segundo a qual a distância percorrida pelos corpos em queda livre é proporcional ao quadrado do tempo decorrido. Estabeleceu-se, assim, uma relação en-tre o espaço e o tempo. Com essa lei Galileu modifi cou a própria signifi cação do conceito de tempo e criou o que se entende, desde então, como o tempo físico. “Isso abriu a possibilidade do desenvolvimento de uma cronologia centrada na natureza, diferentemente da cronologia me-dieval ou renascentista que se centrava no homem e nos seus afazeres”, comentou Mariconda. “Galileu introduz o tempo físico para além daquilo que poderíamos cha-mar de tempo social.” Essa modifi cação na signifi cação

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Mesmo que a maior parte das pessoas não entenda a fí-sica de Albert Einstein, Mauro Almeida mostrou que a terminologia entrou para o vocabulário popular. “A ideia de abolição de um espaço e um tempo absolutos pela teo-ria da relatividade teve um efeito extremamente forte na visão de mundo, na visão das sociedades e, em particular, entre os antropólogos que estudavam outros modos de vida”, contou o antropólogo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) no dia 25 de outubro, na palestra “O tempo nas sociedades humanas: o impacto das ideias de Einstein”. É essa leitura, de que tudo é relativo, que ele chama de relativismo pop.

O mundo relativístico foi descrito pelo historiador Paul Johnson, que afi rmou no livro Tempos modernos, de 1983, que o mundo moderno nasceu no Brasil. Foi em 1919,

quando as fotografi as de um eclipse solar feitas na África Ocidental e em Sobral, no Brasil, com-provaram a teoria da relatividade geral. Foi um momento de grande impacto para a ciência, mas sobretudo para a sociedade, que passou a ver tudo como relativo: não havia mais tempo e es paço, bem e mal, conhecimentos nem valores. Pode parecer exagero, mas para Almeida a infl uên cia foi mesmo grande e chegou à antropologia pro-fi ssional, em publicações a partir de 1920.

Almeida mostrou que alguns antropólogos não esca-param da divulgação errônea da teoria da relatividade. De acordo com a física, observadores em diferentes sistemas de referência descrevem o mundo de maneira diferente, medindo distâncias e tempos de forma distinta, mas as leis da natureza serão sempre as mesmas e todos medirão da mesma maneira a velocidade da luz. Bem diferente do que prega a visão pop, que só reteve a ideia de que diferentes observadores veem fenômenos diferentes, mas concluiu disso que não existem leis válidas para todos. “O relativismo pop é uma espécie de niilismo”, resume Almeida. Aplicado à antropologia, esse conceito leva à ideia de que cada so-ciedade tem seus princípios e eles são incompatíveis entre si, como se cada grupo humano fosse um mundo isolado dos demais sem constantes que os unissem.

O início da etnografi a moderna, segundo ele, coincidiu com a comprovação da teoria da relatividade. A partir dos anos 1920, antropólogos passaram a viajar mundo afora para estudar diferentes sociedades e tentar comprovar a ideia de que diferentes povos teriam sistemas equivalentes de vida. Aquilo que Almeida descreve como o experimento de Sobral da antropologia aconteceu numa aldeia da ilha de Nova Guiné, em que o antropólogo polonês Bronislaw

O RELATIVO SE ESPRAIA MAURO ALMEIDA

A leitura popular das ideias do

cientista alemão resultou num equívoco

O tempo nas sociedades humanasMauro William Barbosa de Almeida, antropólogo e professor-doutor do Instituto de Filosofi a e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp

produzido pelo observador, pela própria coisa observada ou por ambos. “Esse princípio chama a atenção para a relatividade do conceito de movimento e de repouso em relação ao observador”, explicou o fi lósofo.

Movimento e repousoGalileu aprofunda essa concepção na direção da relativi-dade mecânica, segundo a qual o movimento e o repouso são estados relativos e complementares dos corpos: um só pode ser defi nido em relação ao outro. Ou seja, o movi-mento só pode ser caracterizado em função dos corpos que não participam desse movimento. “Segundo Galileu, o movimento é totalmente extrínseco à natureza das coisas”, disse. “Ele é defi nido como uma simples modifi cação das relações espaço-temporais entre as coisas.” De acordo com as ideias do cientista italiano, dois corpos animados pelo mesmo movimento estão em repouso entre si e, ao mesmo tempo, em movimento em relação a todos os outros corpos que estão fora desse movimento comum.

O princípio da relatividade de Galileu possui uma im-portante consequência experimental: um observador situa-do no interior de um sistema em movimento não consegue defi nir se esse sistema mecânico está em repouso ou em mo-vimento uniforme. Galileu, portanto, mostra as diferenças entre um observador interno e outro externo a um sistema em movimento. “A relatividade einsteiniana aprofunda essa perspectiva”, comentou Mariconda. Einstein muda de ma-neira muito peculiar a posição do observador em seus ex-perimentos de pensamento. O físico imagina, por exemplo, o que aconteceria se fosse possível postar um observador se movendo à velocidade da luz (300 mil quilômetros por segundo). Uma das consequências dos estudos de Einstein é demolir a noção de que há um tempo absoluto, como dizia Isaac Newton. Para um observador em movimento na velo-cidade da luz, o tempo passa mais lentamente do que para as demais pessoas, segundo a relatividade de Einstein.

• Marcos Pivetta

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Almeida: relativismo pop influenciou ciências humanas

Malinowski procurou mos-trar que a sociedade que estu-dou funciona tão bem quanto a nossa, mas com instituições e costumes diferentes.

Mas foi o linguista Benja-min Lee Whorf quem propôs um princípio que chamou de princípio da relatividade linguística ou princípio da relatividade cultural, em que a percepção dos fenômenos por uma sociedade depen-de da estrutura linguística que adota. O exemplo maior apresentado por ele eram os hopis, uma tribo indígena norte-americana que per-cebe o tempo e o espaço de

maneira completamente diferente da visão ocidental mo-derna – não há antes, agora e depois –, algo que estaria embutido na linguagem deles. “Einstein, coitado, estava alimentando uma visão liberada de antropólogos que se sentiam perfeitamente à vontade para dizer que os povos primitivos estavam além do pensamento ocidental mo-derno. Encontravam-se, de certa maneira, com as ideias mais avançadas da física.”

Relativismo antropológicoE a ideia se estendia para usos e costumes. A norte-ameri-cana Margaret Mead catalogou papéis sociais em diferentes sociedades da Nova Guiné, que vivem isoladas umas das outras por montanhas íngremes. Conforme a cultura lo-cal, marido e mulher podiam ambos desempenhar papéis femininos, ou masculinos ou adotar comportamentos invertidos em relação ao esperado. E nos Estados Unidos tudo seria relativo: tudo o que se pode imaginar acontece, vale tudo. A ideia era usar outras culturas como exemplos de tolerância e convivência com os quais norte-americanos deveriam aprender.

Essa moda levou, disse Almeida, a um beco-sem-saída em que no fi nal do século XX a antropologia fi cou desacre-ditada. “Como se não fosse capaz de fazer juízo nenhum e recusar-se àquilo que seria obrigação do cientista, que é de alguma maneira subsidiar a ação e a conduta.” O papel moderador do antropólogo foi discutido numa polêmica recente sobre infanticídio em indígenas: grupos religio-sos acusaram antropólogos de omissão, pois deveriam intervir impedindo essa prática, para alguns comparável ao aborto.

Almeida também apresentou exceções ao relativismo antropológico que expôs em sua palestra. Claude Lévi-Strauss, o antropólogo francês que está completando 100 anos de idade e fez seu experimento etnográfi co no Brasil nos anos 1930, foi infl uenciado por uma teoria da rela-

tividade mais próxima daquela formulada por Einstein. Ele fez uma análise mais refi nada do que a de Margaret Mead, separando as relações sociais em categorias, como relações conjugais, entre gerações ou entre irmãos. Com isso, pôde concluir que, embora haja diferenças profundas em como as sociedades funcionam, elas compartilham princípios comuns: as relações entre consanguíneos, por exemplo, são acompanhadas por atitudes opostas às das relações de afi nidade.

Mais recentemente, os indígenas brasileiros têm sido estudados pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Cas-tro, que desenvolveu o que chamou de perspectivismo ameríndio. Essa concepção diz que sujeitos humanos e não-humanos apreendem o mundo a partir de pontos de vista distintos – os animais, por exemplo, se veriam como gente, conforme a visão de mundo dos índios: para uma onça, uma pessoa é uma presa. “A forma que cada espécie ocupa é, no fundo, um envoltório; é uma espécie de roupa da qual você pode entrar e sair”, explicou. Os índios dizem que essas roupas são como referenciais; ao adotar a roupa dos animais, nos vemos como humanos. Só os xamãs conseguem transitar entre os diferentes corpos e trazer para as pessoas os efeitos de mudar a perspecti-va. O perspectivismo indígena sugere um humanismo generalizado. “A lição desse humanismo é que nós, que acreditamos que apenas nós somos humanos, somos os verdadeiros animais.” Ao tratarmos animais como presas, nos comportamos também como animais.

Mudam as interpretações, mas, sem querer, Einstein até hoje permeia áreas do conhecimento para as quais provavelmente nunca imaginou contribuir.

• Maria Guimarães

A ideia de

abolição de

um espaço

e um tempo

absolutos

pela teoria da

relatividade

teve um efeito

extremamente

forte entre

antropólogos

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duas frases do físico que sintetizam essa visão não-utilitarista da educação: “Não basta ensinar ao homem uma especialidade, porque assim ele se tornará uma máquina utilizável, mas não uma personalidade” e “Os excessos do sistema de com-petição e de especialização prematura assassinam o espírito e impossibilitam qualquer vida cultural e chegam a suprimir os progressos nas ciências do futuro”. O gênio alemão também achava que a educação das pessoas tinha de privilegiar a noção

de prestação de serviços para a comunidade e servir de base para a formação de um pensamento independente.

O pesquisador da Uerj afi rmou que as teses de Eins-tein sobre educação são diametralmente opostas às ideias dominantes no ensino atual. “Nossos cursos são cada vez mais especializados e as pessoas estão sempre preocupadas com diplomas que vão lhes permitir obter um emprego”, comentou Videira. “As ideias de Einstein são bonitas, mas infelizmente muito pouco praticadas.” Einstein achava que a educação deveria auxiliar o ser humano a atingir sua plenitude, que deveria ser formada por múltiplas compe-tências. “Em vez de nos preocuparmos com as excelências no sentido de sermos sempre os melhores, de tirarmos sempre 10, seria melhor tirarmos várias notas 7 desde que esses 7 pudessem estabelecer uma sólida personalidade”, explicou o fi lósofo.

Aula socráticaCom exceção do início da carreira, quando exerceu de forma intensiva a função de professor, Einstein nunca deu muitas aulas, muito menos aulas formais. Mas o físico gostava de interagir com estudantes e assistentes. Só era avesso a dar aulas meramente expositivas, como faziam

É possível produzir um Einstein? Algumas refl exões sobre Einstein e a educação

Antônio Augusto Passos Videira, fi lósofo, professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e pesquisador visitante no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF)

Videira: seres harmoniosos

Na palestra “É possível produzir um Einstein? Algumas refl exões sobre Einstein e a educação”, o fi lósofo Antônio Augusto Videira, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), falou da visão do físico alemão sobre a educação. Einstein era contra o ensino voltado a formar especialistas e acreditava que a educação deveria se preocupar em forjar seres harmoniosos, com múltiplas habilidades, a serviço de sua comunidade. “Infelizmente, muito pouco do que Eins-tein defendeu para a educação é aplicado hoje”, afi rmou o fi lósofo, na apresentação feita em 1° de novembro.

Videira disse que a visão de Einstein sobre educação foi infl uenciada pela experiência pessoal do físico. Duran-te a infância e a juventude, Einstein morou em diferentes cidades alemãs e mesmo no exterior – na Itália e depois na Suíça, onde estudou na Escola Politécnica de Zurique –, e essas mudanças frequentes fi zeram com que ele entrasse em contato com distintas culturas. Embora fosse judeu, Einstein chegou até a ter aula numa escola católica num período da infância. “Seu pensamento sobre educação é extraído da-quilo que ele aprendeu nesses diversos contextos culturais, sociais e pedagógicos”, afi rmou o fi lósofo da Uerj.

Para o físico alemão, as pessoas deveriam ser respon-sáveis por sua própria formação, e não apenas depender da instrução formal. Einstein, por exemplo, sempre leu muito, tendo entrado em contato com as ideias de físicos e fi lósofos, como Immanuel Kant e David Hume, ainda antes da adolescência. Isso não quer dizer que o físico fosse simplesmente um defensor do autodidatismo. Einstein não era contra o ensino formal ou o professor, mas a favor de que os alunos de uma escola ou universidade se sentissem envolvidos em seu processo de formação.

Einstein acreditava que não era necessário ser especia-lista em ensino para falar sobre educação. “Ele sempre foi contra a ideia de que a educação tem como principal obje-tivo formar especialistas”, afi rmou Videira. O fílósofo citou

PRODUZINDO “EINSTEINS”ANTÔNIO AUGUSTO VIDEIRA

Filósofo da Uerj comenta as ideias

do físico alemão sobre educação

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os professores catedráticos, e também não era favorável a submeter os alunos a um excesso de provas e testes. Videira comentou que um assistente de Einstein dizia que o gênio gostava de dar aulas ao estilo de Sócrates, o antigo fi lósofo grego, privilegiando o diálogo e a troca de informações entre o mestre e os alunos.

Antes de terminar a palestra, Videira respondeu à ques-tão, em parte retórica, se é possível produzir um Einstein. “Acho que podemos responder de duas maneiras: com um sim e com um não”, disse o pesquisador. O não foi justifi cado pelo fato de ser impossível, a seu ver, produzir um gênio, algo “infabricável”. O sim mereceu outro tipo

de explicação. “Se estivermos preocupados em fazer com que as pessoas se sintam responsáveis e satisfeitas com a sua própria formação, nesse caso acho que sim. Acho que podemos produzir não apenas um, mas muitos Einsteins”, ponderou. O fi lósofo encerrou a apresentação com mais uma citação do físico sobre ensino: “Parece que a reputação científi ca e as qualidades pessoais nem sempre caminham lado a lado; para mim uma pessoa harmoniosa é mais válida do que o mais sofi sticado criador de fórmulas ou inventor de sistemas”.

• Marcos Pivetta

ZONAS ALHEIAS À CRONOLOGIAMARTÍN CAMMAROTA

Neurocientista relaciona memória

com o tempo proposto pelo físico

Para tentar compreender as ideias e as teorias de Albert Einstein, como o conceito de tempo, é preciso utilizar a memória porque ela é quem dá a nossa noção de tempo. Nossas memórias nos dizem que hoje é hoje, amanhã é amanhã, que virá outro dia, e que há uma continuida-de temporal. A forma como interpretamos o mundo está intimamente relacionada com a ideia de que o tempo é absoluto e tem a ver com o modo como interagimos e entendemos tudo o que nos rodeia. “Por isso é tão difícil para nós, leigos em física, compreendermos a teoria da relatividade”, explicou o neurocientista argentino Mar-tín Cammarota, pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e estudioso do funcionamento da memória, durante a palestra “O tempo e a memória”, no dia 15 de novembro.

Cammarota disse que Einstein não desenvolveu nenhum conceito teórico que tivesse uma aplicação direta na biologia teórica e na neurologia da memória. Mas, ainda assim, é possível traçar uma analogia entre o físico alemão, tempo e memória. Antes de se aprofundar no tema, o pesquisa-dor argentino defi niu os termos aprendizado e memória.

“Aprendizado, na sua defi nição neurobiológica, é uma modifi cação ou alteração relativamente permanente”, disse. Ele enfatizou que essa alte-ração comportamental não é absoluta: é relati-vamente permanente no comportamento real ou potencial, que ocorre como consequência de uma experiência.

“O aprendizado é algo que nos permite regis-trar o passar do tempo, e a memória é o registro desse aprendizado que fi ca em algum lugar do

nosso cérebro e que nos diz que o tempo passou, entre outras coisas.” Dizendo de outra maneira: o aprendizado é um pro-cesso que não dá para se observar, embora se possa observar o produto desse processo. E o produto do aprendizado é uma unidade de informação que se refere ao passado.

“Já a memória é o que nos permite manter durante um breve espaço de tempo o passado vivo no presente; é uma unidade psíquica de informação, uma representação do passado”, disse Cammarota. A defi nição de memória está acompanhada de três fases nas quais o processamento de informação se divide: codifi cação, armazenamento e expressão. Para entender isso, existe a eletrofi siologia, ramo da fi siologia ou da neurofi siologia que se encarrega de estudar os fenômenos elétricos que ocorrem no cérebro e respondem a certas regras preditas pela mecânica quântica.

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Cammarota: compreensão do tempo

O tempo e a memória

Martín Pablo Cammarota, biólogo e professor adjunto do Instituto de Pesquisas Biomédicas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS)

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Representação artística do cérebro, por Fritz Kahn

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tempo que dura, dado que ela é um registro temporal de um fato passado. A primeira é a memória sensorial. O melhor exemplo para entendê-la é quando se fecham os olhos e, durante um momento, ainda é possível per-ceber o ambiente, como se os olhos estivessem abertos. Há também a memória de curta duração, utilizada, por exemplo, para lembrar o número do telefone da pizzaria escrito no ímã de geladeira. “Lemos o número no ímã e vamos até o telefone para fazer o pedido. Se esquecemos de pedir o refrigerante temos de voltar à geladeira e rever o número para ligar”, disse, para exemplifi car como é essa memória.

Por último, há as memórias de longa duração. “É a me-mória que tenho da minha mãe, de Buenos Aires, do meu apartamento. São aquelas que perduram durante o tempo”, contou. Ele ressalta que utiliza a palavra “perdurar” numa acepção corriqueira, em razão de as memórias serem re-lativas (ou subjetivas) e não permanentes (ou objetivas). “A memória de cada um de nós sobre esta palestra não vai ser a mesma porque somos todos diferentes uns dos outros, não passamos pelas mesmas situações e também porque não estamos sentados no mesmo lugar.” Ela não é permanente no tempo e muda constantemente, ainda que boa parte das pessoas acredite que seja completamente fi el à circunstância original. Tanto a memória sensorial como a de curta duração e a de longa duração englobam, dentro delas, vários subtipos de memórias.

“Se hoje podemos falar sobre o tempo e nos perguntar se ele é absoluto, relativo ou se existe ou não, é porque possuímos memória”, afi rmou. São elas que nos dão conti-nuidade e, por isso, identidade. “Percebemos o tempo como algo contínuo em que parece fl uir em uma única direção.” Essa noção biológica do tempo condiciona nossa forma de interpretar o mundo que nos rodeia.

• Ricardo Zorzetto

Como os conceitos de tempo, distância e velocidade desen-volvem-se em nível psicológico? Essa questão foi proposta em 1928 por Albert Einstein a Jean Piaget (1896-1980), quando o pai da relatividade presidia cursos de fi loso-fi a e psicologia em Davos, na Suíça, e o jovem psicólogo suíço, já então conhecido por suas pesquisas no campo

MEMÓRIAS DURADOURASLINO DE MACEDO

Gênio da física inspirou estudos de

Piaget sobre o tempo para as crianças

De acordo com Cammarota, a mecânica quântica e alguns preceitos da teoria da relatividade restrita (ou especial) são usados na eletrofi siologia, por exemplo, para entender como o cérebro codifi ca a informação.

As fases da memóriaA primeira dessas fases da memória, a codifi cação, indica que antes que a informação possa ser aprendida e transfor-mada em memória tem que ser percebida e processada. As informações são então traduzidas em impulsos elétricos. Depois são armazenadas e, fi nalmente, expressas de alguma forma. “Nós só sabemos que sabemos alguma coisa quan-do nos lembramos dessa coisa. E, se não lembramos, não sabemos que sabemos”, disse. “Esse é um paradoxo muito interessante para nós, estudiosos da memória.”

O pesquisador falou então sobre o tempo, algo im-portante para a memória, classifi cada de acordo com o

da inteligência e do desenvolvimento infantil, amadurecia temas científi cos para investigar. A provocação de Einstein infl uenciaria 15 anos mais tarde uma das obras mais conhecidas de Piaget, A noção de tempo na criança, em que o pesquisador explora os signifi cados do tempo e como as crianças os compreendem. Esse pano de fundo inspirou a palestra “Piaget, Einstein e a noção de tempo na criança”, proferida por Lino de Macedo, professor de psicologia do desenvol-

vimento do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), na manhã do dia 22 de novembro.

Macedo deu início à palestra relembrando as palavras fi nais de Piaget no seu livro: “O tempo relativista de Eins-tein expressa um princípio válido da formação do tempo físico e psicológico desde a gênese do tempo nas crianças de

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ainda é pequena, não tem a percepção do envelhecimento. “As crianças acham que os cachorros não envelhecem. Eles morrem, fi cam doentes, mas não envelhecem. Também acham que as árvores não têm idade. Por quê? Porque elas não crescem mais”, exemplifi ca. A noção dos efeitos da passagem do tempo vai sendo construída e, na pré- -adolescência, as respostas já se assemelham às dos adultos. Piaget perguntou: “Quem é mais velho: você ou sua mãe?”. Resposta: “Minha mãe”. “E quando você for um homem?”, indagou. “Ah, é sempre a mesma diferença”, disse a criança. “Então não é verdade que todos os homens velhos têm a mesma idade?”. Resposta: “Isso depende de quando eles tiverem nascido, há velhos de 50, 60...”. O professor ob-servou: “Considerem que isso foi na década de 1940. Hoje nós diríamos: há velhos de 80, 90, 100 anos”.

O tempo da criançaCrianças de até 2 anos de idade não têm memória – falta-lhes a linguagem para fazer os registros. Nessa fase, observa o professor, o tempo da criança é o tempo das ações. “As crianças têm ações, ações sensório-motoras, ações sim-bólicas. O problema da criança é como coordenar mo-vimentos, a sucessão, a duração, a simultaneidade, como ordenar os acontecimentos”, disse. “O tempo da criança é o tempo do presente. Ela não conhece o passado, não conhece o futuro e não precisa deles. Ela precisa do pre-sente, da presença. É um tempo ocupado, denso, pleno, descontínuo, porque a criança dorme, se cansa, a mãe vai lá e tira ela da brincadeira, daquela magia, daquela felicidade, daquela ocupação, aquilo que é puro prazer e alegria. Esse tempo vivido como presente tem essas qualidades: pleno, descontínuo, fi nito, não refém de um passado ou de um futuro”, afi rma o professor.

O conceito é bem diferente do chamado tempo opera-tório, que é o tempo das crianças mais velhas e dos adultos. “O tempo torna-se reversível enquanto forma, porque presente, passado e futuro são recortes relativos e variáveis de uma mesma coisa”, explicou.

Lino de Macedo encerrou sua palestra falando de Eins-tein. Lembrou que o físico criticava a educação precoce – o tempo futuro que rouba o tempo presente das crianças. “Estamos fazendo isso com nossos alunos”, disse o profes-sor. “O estresse infantil hoje é terrível. As crianças não têm tempo para ser crianças, porque somos comprometidos, no melhor dos sentidos, com uma educação precoce, para o bem delas daqui a 20, 30 anos. E o bem delas aqui, agora? Os métodos competitivos de ensino encarnam esse tempo do resultado premente, o tempo do deadline, o tempo

Piaget, Einstein e a noção de tempo na criança

Lino de Macedo, graduado em pedagogia, professor titular do Instituto de Psicologia da USP

tenra idade”. O professor propôs a discussão de problemas sobre a questão do tempo na perspectiva das crianças estu-dadas por Piaget. “Perguntaram para Piaget quem nasceu antes: o ovo ou a galinha? Sabe o que ele respondeu? O pintinho. Não foi a galinha porque a galinha dependia do ovo. Não foi o ovo porque o ovo dependia da galinha. Foi o pintinho. Quando nasce uma criança é o mundo que recomeça. Nesse sentido, somos fi lhos de uma criança, não pais. Antes de nós, vieram as crianças. As crianças nasceram antes e portanto são mais velhas do que nós, caso se pense como referência o ponto de partida. Nós morremos. As crianças são eternas”, afi rmou o professor.

Piaget testou a percepção infantil para uma série de perguntas sobre o tempo, a distância e a velocidade e con-cluiu que tais conceitos não estão presentes na mente da criança, mas exigem uma construção. A criança de 2 a 6 anos, por exemplo, faz sua avaliação com base no momento presente. Depois começa a levar em conta outros fatores, como o ponto de partida. Só mais tarde vai dominar esses conceitos. “Piaget perguntou a uma criança pequena: ‘Sua mãe nasceu antes ou depois de você?’. Ela respondeu: ‘Não me lembro mais’. Claro que ela não pode se lembrar. A mãe nasceu tanto tempo depois, não é?”, afi rmou Macedo.

Crianças um pouco mais velhas já buscam respostas mais elaboradas. “A cada ano você fi ca mais velho?”, inda-gou Piaget. Resposta da criança: “Não, eu fi co mais novo”. Outra pergunta: “Quando você for moço, qual será a idade da sua irmã?”. A resposta: “Igual à minha”. “Um dia vocês vão ter a mesma idade ou não chegarão nunca a isso?” Resposta: “Eu vou fi car maior que ela porque os homens são maiores do que as mulheres, aí eu vou ser mais velho”. Segundo Lino de Macedo, a referência da criança sobre o tempo é o tamanho, o crescimento em estatura. Como

Macedo: crianças até 2 anos não têm memória

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do ‘cheguei antes’, do ‘ganhei mais’, do ‘faturei’”, disse o professor da USP.

O gênio da física, afi rma Macedo, criticava o tempo ex-terno dominando o tempo interno. “Aquele tempo externo que, pelo medo, pela força, pela violência, pela autorida-de artifi cial ou pela ameaça conseguia as coisas”, defi niu. “Quando a gente entra na exposição Einstein, quem nos recebe não é a imagem de um Prêmio Nobel ou do maior cientista do século XX. O que vemos é um homem rindo,

andando de bicicleta, juvenil. Aprender tem a ver com felicidade, com satisfação. A questão do conhecimento como alegria e felicidade, a questão da paz como um di-reito humano e como uma necessidade humana para criar, para inventar, para experimentar, para descobrir, isso só é possível se pudermos não ser apenas reféns do futuro e do passado”, concluiu.

• Fabrício Marques

Até a época do cientista inglês Isaac Newton (1643-1727), os fi lósofos si tuavam a noção de tempo como uma dimen-são da natureza, algo objetivo, pertencente ao Universo. Posteriormente, surgiram concepções que o defi niam em termos menos ligados ao mundo natural. Ao longo de grande parte da história, o tempo foi, portanto, ora enca-rado como uma defi nição objetiva, ora como uma criação amparada em conceitos mais subjetivos.

Hoje, com o surgimento de teorias formuladas após o impacto dos trabalhos revolucionários de Albert Einstein sobre os conceitos de espaço e tempo, a questão é vista por outro prisma, uma espécie de terceira via. “Acredita-se que o tempo não é objetivo, nem subjetivo. O homem e a natureza estão mais integrados do que dissociados”, disse Edgar de Decca, historiador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “O tempo é uma experiência social, resultado do desenvolvimento da linguagem, que é uma capacidade exclusivamente humana e permite criar representações das coisas.” O pesquisador fez uma apresentação sobre o tema “O tempo na história” no dia 13 de dezembro.

Por meio da linguagem, o homem (e não a natureza) pro-duz sistemas de medida e de representação do tempo, como o calendário. “O tempo se torna abstrato, de difícil percepção, e é

sempre defi nido em função da comparação de uma coisa com outra”, explicou o historiador. A palavra amanhã, por exemplo, é carregada de sentido tem-poral, que pode ser captado apenas pelos seres hu-manos. Qualquer pessoa sabe que amanhã é o dia que vai surgir depois que a noite de hoje se dissipar. Depois de explicitar a noção corrente de tempo, De Decca falou das diversas formas como certas sociedades do passado encararam a questão.

Na antiga Grécia coexistiam duas noções de tempo. Havia o tempo da natureza, visto como circular e permeado da ideia do eterno retorno.

O homem nascia, crescia, vivia e morria – antes de voltar à Terra e repetir o ciclo. Imortais, os deuses também tinham um tempo circular, mas eterno, absoluto, sem princípio, meio e fi m. As divindidades eram eternas porque nunca eram esquecidas. Não é à toa que Mnemosine, a deusa da memória, ocupava lugar de destaque no Panteão. O tempo

O tempo na história

Edgar Salvadori de Decca, historiador e professor titular do Instituto de Filosofi a e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp

De Decca: o tempo hoje é uma experiência social

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AS REINVENÇÕES DO ONTEM

E DO AMANHÃ EDGAR DE DECCA

Historiador comenta as noções de tempo

que prevaleceram da Antiguidade até hoje

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absoluto era o tempo da memória. No século V a.C, com o advento da história nas cidades gregas, os seres não- -divinos também adquiriram a capacidade de ser sempre lembrados e, portanto, eternos. “O homem passou a ter memória”, comentou.

Na Idade Média, dois conceitos de tempo, um profano e outro sagrado, se impunham em ambientes distintos. Nas cidades, o ritmo da vida era ditado pelo tempo do comércio, da acumulação de riqueza. No meio urbano, tempo era dinheiro. “O burguês aproveitou bem o tempo se acordou com uma moeda e foi dormir com dez”, disse o historiador. A Igreja condenava o tempo das cidades. Nos mosteiros reinava a noção do tempo religioso, quase parado. Era o tempo das rezas, dos terços, das homilias.

A despeito da crítica dos religiosos, os habitantes do Ocidente moderno começaram a organizar o tempo em função das tarefas a serem feitas. Medir as horas necessárias para desempenhar uma tarefa tornou-se uma necessidade. O controle do tempo de trabalho dos operários se estabeleceu e surgiram as primeiras greves. Com o advento do relógio mecânico, o homem separou defi nitivamente o conceito de tempo da natureza. “Passamos a ser homens do tempo”, disse. Outra consequência foi a total laicização do tempo e a perda de infl uência da Igreja sobre essa questão.

A eclosão de revoluções, como a francesa (1789) e, mais tarde, a russa (1917), sedimentou a ideia de que as

sociedades eram resultado do tempo histórico vivido e também de expectativas futuras. Afi nal, uma revolução pode ser entendida, no mundo moderno, como uma ace-leração do tempo da história. Alterações que demorariam muito a ocorrer ganham forma mais rapidamente em períodos revolucionários. O surgimento de fi losofi as do progresso, como o marxismo e o positivismo, no fi nal do século XIX se encaixa nesse contexto, em que o homem acredita ser o senhor do tempo. “O homem toma o tempo em sua mão e a história passa a ser também a capacidade de construir o futuro”, afi rmou De Decca. “Ele acredita que pode fazer a história acelerar, e não apenas viver a sua aceleração.”

O ritmo inexorável do tempo do progresso humano, que conduziria à sociedade perfeita, pode ser ilustrado por slogans, como o célebre “tudo que é sólido se desmancha no ar”, cunhado por Karl Marx no Manifesto comunista. O historiador não fez um balanço positivo de toda essa aceleração do tempo na sociedade moderna. Disse que, no estertor do século XX, utopias pregavam o fi m da his-tória e o progresso havia produzido catástrofes (como o aquecimento global) e miséria no planeta. “Vamos dar um tempo para fugir de toda essa loucura?”, perguntou De Decca no encerramento da palestra.

• Marcos Pivetta

AS REPRESENTAÇÕES

DA SIMULTANEIDADE ARTHUR MILLER

Filósofo da ciência norte-americano compara

a ciência de Einstein e a arte de Picasso

À primeira vista parece difícil estabelecer paralelos entre Einstein e Picasso – não, entretanto, para Arthur Miller, autor entre outros livros de Einstein, Picasso: space, ti-me and the beauty that causes havoc (Basic Books, 2001). Porque se para o senso comum nada faria convergir essas duas personagens, afora talvez o fato de terem ambos sido grandes faróis a iluminar a construção do conhecimento e da cultura no século XX, e mais a coincidência de terem vivido cada um o seu período de mais intensa criatividade entre 1902 e 1909, para Miller isso é apenas um ponto de partida que lhe permite relacionar estreitamente o percur-so criativo daqueles que defi ne como o cientista e o artista mais importantes do século passado. “Sempre achei intri-gante esse fato de ambos terem produzido seus trabalhos

mais importantes na mesma época: em 1905 Einstein descobriu a relatividade especial e em 1907 Picasso pintou Les demoiselles d’Avignon. Trata-se de uma coincidência ou o quê? Decidi que a melhor maneira de tratar isso seria escre-vendo uma biografi a paralela de ambos”, disse em sua palestra no Ibirapuera, na programação paralela da exposição sobre Einstein, no domin-go, 29 de novembro.

O físico norte-americano que vive há muitos anos na Inglaterra e é professor emérito de his-tória e fi losofi a da ciência no University College

London encontra novos paralelos nas carreiras das duas brilhantes personagens examinando, entre outras vias, como esses homens tocados pelo tsunami intelectual que nos primeiros anos de 1900 sacudia a Europa, à maneira de uma nova Renascença, valeram-se simultaneamente

Como Einstein e Picasso inventaram o século XX

Arthur Ira Miller, professor emérito de história e fi losofi a da ciência do University College London, autor de Einstein, Picasso: space, time, and the beauty that causes havoc (Basic Books)

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da geometria, da tecnologia, da ciência e da estética para realizar seu poderoso trabalho criativo e com ele produ-zir infl exões defi nitivas nos rumos da ciência e da arte contemporâneas.

Segundo Miller, no clima de excitação intelectual daquele período, “questionavam-se os posicionamentos acadêmicos, as convenções burguesas, formas de arte – pintura, música, arquitetura, literatura – e conhecimentos científi cos, especialmente em relação ao modo como eram vistos o espaço e o tempo”. E Einstein e Picasso, na faixa entre 20 e 30 anos, “razoavelmente desconhecidos, pobres e prontos para se meter em encrencas”, sofreram grandes infl uências dessas marcas dominantes do período.

“Tanto Einstein quanto Picasso trabalharam com os mesmos problemas, o da natureza do espaço e do tempo e o da representação da simultaneidade – temporal, para o primeiro, espacial, para o segundo –, que resultaram na descoberta de uma nova estética minimalista para o cientista e na geometrização do desenho e da pintura para o artista.” E aos olhos de Miller isso comprova que todos os grandes trabalhos artísticos e científi cos sempre convo-cam o conhecimento de disciplinas díspares e, mais ain-da, permitem esfumar nos momentos mais intensamente criativos as fronteiras entre ciência e arte. “Pude notar isso estudando o trabalho de algumas pessoas, os de Einstein e Picasso em especial”, observou.

Os vários episódios da vida e da produção intelectual de cada uma de suas personagens, apresentados de forma inter-calada na palestra, iam ajudando Miller a evidenciar para a plateia a sua tese de que os resultados brilhantes obtidos por Einstein e Picasso, cada um em seu campo, devem muito à ênfase que ambos davam à concepção daquilo que queriam fazer ou desvendar, em lugar de privilegiar a observação.

Miller lembrou que nos anos vividos em Berna, de 1902 a 1905, Einstein tinha com amigos um pequeno grupo

de estudos, a chamada Academia Olímpia, que era fonte permanente de estímulo intelectual. Como tantos físicos ligados a universidades, ele, em seu modesto trabalho no escritório de patentes da Suíça, também se preocupava com questões referentes à natureza da luz. “O que, então, separou Einstein dos outros físicos?”, interrogou. “Nada havia que indicasse o que ocorreria em 1905.” Em paralelo, Picasso, ao retornar a Paris em 1904, com o talento já reconheci-do por vanguardistas como André Salmon, Max Jacob e Guillaume Apollinaire, que diziam formar “Banda Picasso”, experimentou até 1909, baseado em seu pequeno ateliê em Montmartre, instalado no Bateau-Lavoir, um prédio caindo aos pedaços, “o período mais criativo de sua vida” – e bastante movimentado com amigos e amigas. Pergunta de Arthur Miller: “O que diferenciava Picasso dos outros artistas, em particular de André Derain, o melhor aluno de Matisse?”. E um comentário para completar: “Todos esperavam que seria Derain quem romperia os padrões e traria um conceito radicalmente novo à arte”.

Com a questão sobre Picasso temporariamente posta a descansar, Miller propôs uma resposta à interrogação sobre a singularidade de Einstein ante outros físicos. “De março a junho de 1905, Einstein trouxe um novo conceito para a ciên-cia, de certo modo infl uenciado por questões estéticas. Em oito semanas, escreveu seus três artigos que modifi cariam o rumo da ciência e das nações, um dos quais foi o artigo sobre a relatividade, no qual utilizou a mesma estética minimalista que experimentara no primeiro artigo da série”, resumiu. Neste, Einstein propôs que seria necessário em relação a certos fenômenos, em vez de adotar a distinção formal que a ciência estabelecia entre ondas e partículas, considerar apenas um elemento, neste caso, o quantum de luz.

Movimento relativoEssa forma ou essa estética e, especialmente, suas consi-derações sobre dínamos elétricos iriam representar uma contribuição fundamental à teoria da relatividade. Nas pa-lavras de Miller: “Todos sabiam que os dínamos funciona-vam, eles estavam no coração da Revolução Industrial, mas ninguém realmente sabia por que funcionavam – essa não parecia uma questão importante, mas para Einstein era”. E ele valeu-se de sua intuição para expressar um problema complexo por meio de uma forma de pensar extremamente visual: em vez de considerar o problema de forma compli-cada – o movimento de rotação de um ímã em relação a um condutor –, “fez uma demonstração bastante simples do que chamamos de indução eletromagnética, a essência dos dínamos elétricos, ou seja, um processo que provoca a geração de energia elétrica em um condutor que está em movimento com relação a um ímã”.

Ora, da forma como a teoria eletromagnética era inter-pretada em 1905, entendia-se que observadores próximos do ímã ou do condutor dariam explicações radicalmente diferentes para o fenômeno de geração de corrente. “Para Einstein isso era estranho, dado que se estava ante um úni-

Miller: olhar arguto sobre os dois gênios

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de vivre, de Henri Matisse”. E vários ele-mentos vão entrar nas refl exões de Picasso sobre o que fazer: por exemplo, escultu-ras ibéricas primitivas vistas no Museu do Louvre, nas quais o intrigou o fato de o artista representar o que sabia e não o que percebia. Movido por isso, o artista se afas-tou de Paris para Besòs, nos arredores de Barcelona, e “teve uma grande inspiração de uma nova forma de arte, que nascia da fusão da arte conceitual francesa com a arte ibérica primitiva”. Um tanto inspira-do em Cèzanne, isolado, trabalhando em ritmo frenético, indiferente aos comentá-rios de amigos, ele iniciou provavelmente em março de 1907 a série sobre bordéis e concluiu no fi m deste ano a pintura mais famosa da série, Les demoiselles d’Avignon. Uma demoiselle com rosto egípcio, duas com traços ibéricos, uma quarta muito mais geométrica que as demais, represen-tada simultaneamente de frente e de perfi l, de muitas formas essa “é a fusão presente na arte de Picasso”. Arthur Miller disse acreditar que “ao entendermos a repre-sentação dos rostos nesse quadro veremos como Picasso descobriu uma nova estéti-ca, que é a da redução das representações a formas geométricas, o que se tornou a principal característica do cubismo”.

Miller apresentou Henri Poincaré como um denomina-dor comum entre Einstein e Picasso e especulou a respeito da infl uência do cientista francês sobre Einstein no traba-lho que levou à defi nição do tempo e da simultaneidade como grandezas relativas. “Todos os cientistas estavam confusos a respeito do modo como a luz se propaga no espaço e de como percebemos seus efeitos. Mas Einstein, deixando a percepção de lado e partindo para a con-cepção, afi rmou que a luz se propaga no espaço em uma velocidade constante, ponto de vista que trouxe consequências enormes.”

No jogo contínuo entre suas duas persona-gens, Miller observou em seguida que Picasso, traba-lhando com Les demoiselles d’Avignon, tinha inquieta-ções muito semelhantes às de cientistas trabalhando na fronteira do conheci-mento. Ele estava no epi-centro do debate sobre re-

Pablo Picasso, Les demoiselles d’Avignon, 1907

co efeito – a corrente medida – que poderia ser relacionado a uma única causa: o movimento relativo. As duas explica-ções seriam redundantes.” Mais adiante ele descobriria ser impossível a existência de dois distintos pontos de vista, ideia que não seria estética. “Como podemos constatar lo-go no início do artigo sobre a relatividade, ele entendia que isso levava a assimetrias que não eram inerentes ao fenô-meno em si. Em sua opinião, havia somente um ponto de vista e os observadores eram equivalentes uns aos outros. Ao revelar essa falta de simetria, Einstein descobriu uma lei universal da natureza e o princípio da relatividade.” Miller, depois de lembrar que se pensava equivocadamente que esse princípio não funcionaria para teorias eletromagnéti-cas, ainda que funcionasse muito bem para fenômenos mecânicos, observou que não devemos nos perguntar por que na verdade funciona para todos os sistemas: “Einstein chegou a essa estética minimalista através da ênfase na concepção e não na observação”, ressaltou.

De volta ao artista, Miller observou que Picasso, que acreditava não serem tão bons nem tão vanguardistas os seus trabalhos, “também estava caminhando para um no-vo estilo de pintura que enfatizava a concepção e não a observação. Também estava interessado em novas formas estéticas, especialmente as da pintura de André Derain, com sua nova concepção de arte, e as da obra Le bonheur

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“A duração do espetáculo teatral se relaciona com o que os atores estão fazendo no palco uns em relação aos ou-tros, o que os atores fazem em relação à luz, à música, ao cenário... Ou seja, essa organização dos elementos da cena defi ne a passagem do tempo e a experiência no teatro, mas isso se dá sempre na forma de trânsito com o público.” Foi assim que Sérgio de Carvalho, diretor do grupo de teatro Companhia do Latão e professor da Universidade de São Paulo (USP), armou a cena no dia 8 de novembro para demonstrar como o tempo no teatro é relativo e multidi-mensional, na palestra “O tempo no teatro”.

Com uma presença de palco durante a palestra que não deixou dúvidas quanto à sua ocupação principal, Sérgio de Carvalho mostrou que no teatro há vários tempos – e que o tempo da peça pode ser desconexo com o da fi cção. “Porque uma peça que dura duas horas ou três horas ou quatro horas no palco pode contar uma fi cção que dura anos”, disse. Buscar maneiras de representar momentos desconexos, indicar a passagem do tempo e se reportar ao passado são desafi os nada banais que o dramaturgo enfren-ta. E que são diferentes em cada momento da história.

O teatrólogo contou que a discussão sobre o tempo foi proeminente no meio teatral no início do século XX, a mes-ma época em que Einstein publicava as teorias que mudavam

O tempo no teatro

Sérgio Ricardo de Carvalho Santos, graduado em jornalismo e professor-doutor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

A DURAÇÃO DO ESPETÁCULOSÉRGIO DE CARVALHO

Tempo do teatro é relativo e tem

representação diferente conforme a época

a física. “O teatro estava procurando um tempo não empírico, um espaço-tempo diferente, o tem-po do sonho, o tempo da história, tempos diversos do tempo dos indivíduos que se relacionam.”

A grande dúvida era como representar o pas-sado no presente – uma discussão típica da era do drama, que dominou o século XIX, em que a ação se desenvolvia em um presente contínuo, sempre em busca do futuro. “A peça começa, você vê duas pessoas se relacionando e se pergunta o que vai

acontecer no futuro imediato delas.” Mas por que o teatro não poderia saltar adiante, voltar para a infância... Ou seja, apre-sentar um tempo não-contínuo, como fazem os romances? Não é uma limitação do teatro em si, mas uma característica que defi ne o drama, que ainda hoje domina os palcos. “O drama é a forma literária do teatro que concentrou o olhar sobre relações entre indivíduos”, disse Carvalho, contrastando a outros momentos e outras escolas teatrais, como o teatro grego, que cultivava focos mais diversos e chegava à escala atemporal dos deuses. Mas a forma dramática se instalou e é ao que estamos habituados ainda hoje.

Um dramaturgo que tentou subverter o tempo, mas ainda dentro dos moldes do drama, foi o norueguês Henrik Ibsen. Já perto do fi nal da vida, em 1896, ele queria representar o

Carvalho: tempo no teatro suscita reflexão

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presentação versus abstração e queria encontrar soluções estéticas novas. Todos os desenvolvimentos tecnológicos da época, o avião, o telégrafo, o automóvel, mudando a concepção de tempo e espaço, as “brincadeiras” dos fotó-grafos, desenvolvimentos científi cos como a radiografi a que traziam mais à cena a ambiguidade da visão, os novos conceitos matemáticos e geométricos, como os poliedros complexos, os debates sobre as quatro dimensões, tudo en-trava no caldo que Picasso cozinhava em busca de soluções estéticas e emerge com toda a força no quadro citado.

Miller ainda discorreu longamente, com riqueza de exemplos, sobre sua ideia de quanto a concepção foi de-terminante nos passos de suas duas personagens. “O que é inspirador na história de Einstein e de Picasso”, disse ao fi nal, “é sua determinação e perseverança. Eles chegaram a resultados intelectuais notáveis em condições que levariam outros ao desespero. Sem exageros, podemos dizer que a arte moderna é Picasso e a ciência moderna é Einstein”.

• Mariluce Moura

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Inventado em 1895, o cinema entrou no século XX recorren-do à noção de tempo de artes mais antigas, como a música e o teatro. Aos poucos, ao longo dos últimos cem anos, criou sua própria linguagem e tornou-se capaz de expressar dife-rentes pontos de vista. Ao dominar as técnicas de edição das imagens em movimento, a sétima arte adquiriu meios de fazer o espectador viajar no tempo e no espaço. “Os fi lmes são um material rico para estudar a história das cidades do século XX”, disse Rubens Machado Júnior, professor da Es-

teatro, dois tempos”, contou. Muito da liberdade – e da falta dela – vem do palco: como ele se organiza, como se divide, e da cenografi a. Características que mudaram muito ao longo da história do teatro, desde as apresentações de rua até os palcos com cenários elaborados. Tempo e espaço dependem um do outro, relação que volta a esbarrar nos conceitos da física.

Dos anos 1960 para cá a discussão se tornou ainda mais drástica, com uma tentativa de desconstruir o tem-po da fi cção. Um exemplo foi uma peça do grupo Living Theater que, em 1960, mostrava alguns homens sentados no palco de um teatrinho em Nova York. Eles se injetavam uma droga e ouviam música, nada acontecia. “O problema do tempo e da ação foi todo deslocado para a plateia”, analisou Carvalho.

Nos anos 1970 o norte-americano Bob Wilson come-çou a fazer peças cada vez mais longas. Uma apresentação de seu grupo pode durar 24 horas, e um ator demorar duas horas para atravessar o palco. “Talvez fosse muito chato, mas quem viu percebeu que esse jogo do trabalho do ator com aquelas imagens que estavam sendo proje-tadas no palco criava um completo distúrbio perceptivo no espectador, quase uma sensação de perda de referência espaço-temporal radical.”

Para ele, pensar o tempo no teatro é extremamente com-plexo porque é uma conjugação do espetáculo com o que esse espetáculo projeta. Conjuga o ponto de vista da fi cção, da imaginação, o tempo do público e o momento histórico no qual a ação e a narração se inserem. E cada época tentou reinventar o teatro renovando essas relações que se dão sempre no nível do espaço e do tempo conjugadamente.

• Maria Guimarães

passado e escreveu uma peça chamada John Gabriel Borkman, em que uma mulher chega à casa de uma amiga e percebe que ela praticamente não sai de casa e no sótão mora um homem que não sai dali há oito anos. “Você começa a ver que é uma peça meio sombria, o homem fi ca lá marcando o tempo, como um bicho enjaulado.” Para Carvalho, essa peça em que as pessoas já não têm presente puro é soturna e estranha, porque algo não funciona em pôr o passado no tempo presente sem sair do drama. Porque as personagens sem vida no presente são de certa forma fantasmas.

Outros temposMas nem sempre houve esse cárcere do presente. Duzentos anos antes, nas peças do inglês William Shakespeare o tempo e o espaço eram descontínuos. Nelas, cenas conse-cutivas em diferentes pontos do palco não necessariamente seguiam o tempo da narração. A interpretação funcionava de uma maneira hoje impensável, em que as personagens também atuavam como narradores, anunciando direta-mente ao público o que fi zeram fora da ação do palco e quanto tempo passou. “Um homem pode representar uma mulher, um gesto representar um exército; o que você vê é diferente do que você imagina.” O diretor da Compa-nhia do Latão deixou bem claro como nos afastamos dessa forma de narrativa com um exemplo bem corriqueiro. “Imagine como você reagiria estranhamente se visse na novela das 8 uma personagem dizer assim, para a câmera: ‘Vou representar uma mulher’. Você acharia esquisito. Eu acharia esquisito uma personagem estar conversando com a namorada e de repente olhar para a câmera e falar ‘É uma louca, mas tem método’.”

“Antes do período dramático não havia problema ne-nhum em pôr no mesmo quadro duas coisas, dentro do

VIAGEM VERTIGINOSA RUBENS MACHADO JÚNIOR

Professor de história do cinema explica como

os filmes exploram a questão do tempo

cola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), na palestra “O tempo no cinema”, feita no dia 13 de dezembro passado.

Muitos cineastas e teóricos contribuíram para a formação da linguagem cinematográfi ca. Diretor do longa-metragem racista O nasci-mento de uma nação, D.W. Griffi th foi um dos pais da gramática do cinema já na década de 1910. Criou a montagem paralela, técnica que propicia a sensação de suspense ao explorar a

noção de simultaneidade entre dois eventos que ocorrem em locais diferentes. Nos anos 1920, o russo Serguei Ei-senstein, autor do famoso fi lme O encouraçado Potemkin, criou a chamada montagem dialética. O recurso era usado para estabelecer o confl ito entre imagens antagônicas mostradas em sequência. Contemporâneo de Eisenstein, o cineasta russo Dziga Vertov, propositor do cinema-olho (em que a câmera é pensada como extensão do corpo humano), passou a defender a ideia de que a linguagem

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nhecer até o anoitecer. A fi ta, que serviu de inspiração para produções semelhantes rodadas em parte do globo (inclusive em São Paulo), é editada de forma a criar a sensação de que o ritmo da cidade oscila com o passar das horas. “No fi nal da tarde tudo fi ca mais dinâmico no fi lme”, afi rmou Machado. Antes de terminar o expediente de trabalho, a intensa mobilidade urbana cria a sensação de vertigem. O turbilhão humano e das máquinas na cidade em movimento culmina com o suicídio de uma pessoa que se joga de uma ponte.

A segunda corrente cinematográfi ca mencionada pelo professor da USP foi o neorrealismo, surgido após a Se-gunda Guerra Mundial. Em fi lmes italianos como Roma, cidade aberta (1945) e Stromboli (1950), ambos de Roberto Rossellini, ou A noite (1961), de Michelangelo Antonioni, o tempo começa a se tornar arrastado, parado, em razão de os diretores usarem poucos cortes e planos longos em suas narrativas. “Esse cinema não explica muito o que ocorre na frente das câmeras”, comentou Machado. “Há mais difi culdade de fruição e se desenvolve certa ambigui-dade nesses fi lmes.” O professor da USP disse que a escola realista voltou a ganhar força nos últimos 20 anos.

• Marcos Pivetta

As partículas elementares, também conhecidas como suba tômicas, que participam da formação dos átomos e consequentemente de toda matéria do Universo, tor-naram-se recentemente famosas com a inauguração, em setembro de 2007, do maior laboratório do planeta, o Lar-ge Hadron Collider (LHC), o acelerador de partículas do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern) instalado na fronteira da Suíça com a França, evento que teve ampla cobertura da imprensa mundial. Um assunto que ganhou

Machado Júnior: filmes para estudar as cidades

O tempo no cinema

Rubens Luís Ribeiro Machado Júnior, graduado em arquitetura e urbanismo, pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e professor titular da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

do cinema deveria se libertar da infl uência das outras artes. Em 1929, Vertov lançou a fi ta experimental Um homem com uma câmera em que mostra a vida urbana nas cidades da então nova União Soviética.

O cinema pode trabalhar a questão do tempo de ma-neiras muito distintas. Para exemplifi car algumas des-sas possibilidades, Machado falou de dois movimentos importantes na história dessa arte. Citou os fi lmes que exploraram o cotidiano das grandes cidades, mais ou menos na linha de Um homem com uma câmera. No documentário Berlim, sinfonia de uma cidade (1927), de Walter Ruttmann, as situações típicas da metrópole alemã são mostradas ao longo de um dia, desde o ama-

importância também para o ensino médio no estado de São Paulo por estar, a partir de 2008, na grade do currículo escolar, como comentou a professora Maria Cristina Abdalla, do Instituto de Física Teórica (IFT) da Universidade Esta-dual Paulista (Unesp), no início da palestra “O discreto charme das partículas elementares”, no dia 29 de novembro. Ela falou da necessidade de atualização dos professores de física desse segmento educacional e de dois trabalhos de

divulgação científi ca que ela desenvolveu e vem a calhar nesse momento de expansão das partículas como tema escolar e midiático.

O primeiro foi o livro O discreto charme das partículas elementares lançado em 2006, que daria o nome e inspiração para um fi lme fi naliza-do em 2008. “O livro foi produzido pela Editora Unesp em 2006 e teve

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UM CHARME DISCRETO MARIA CRISTINA ABDALLA

Partículas elementares tornam-se personagens

de livro e filme de divulgação da ciência

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Maria Cristina: tema escolar e midiático

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fi nanciamento da FAPESP e apoio da reitoria da univer-sidade que foram fundamentais para a publicação e para a contratação de um cartunista profi ssional, o que se tor-nou um diferencial em termos editoriais”, disse Cristina. As ilustrações são de Sergio Kon, que fez desenhos para cada partícula, como elétrons, fótons, os mais conhecidos, e demais membros dos grupos dos quarks, dos léptons e dos bósons formadores do modelo padrão que explica a dinâmica e as características das partículas. “Foram horas e horas dizendo para o Kon: ‘Eu quero todos os léptons alados, porque eles são partículas leves’; ‘Eu quero o glúon com dois olhos grandes, porque um olho vai grudar com um quark e o outro vai grudar com outro quark”, diz Cris-tina. “Então, elas estão decodifi cadas nos desenhos com as características e propriedades de cada uma.”

No livro, a pesquisadora descreve todas as partículas contando a história de cada uma. “Nosso objetivo é enten-der a estrutura da matéria a partir de uma gota de água, chegando ao núcleo dos átomos e mostrando que o próton ou o nêutron não são partículas elementares porque existe uma estrutura por trás deles”, disse Cristina. Ela começa a descrever as partículas pelo elétron que foi identifi cado em 1897 e percorre 103 anos de história, até o ano 2000, quando a última partícula do modelo padrão foi identifi ca-da, que é o neutrino tau. “Conto também que o elétron foi descoberto pelo inglês John Joseph Thomson e, em 1906, ele ganhou o Prêmio Nobel pela descoberta.”

O discreto charme das partículas elementares

Maria Cristina Batoni Abdalla Ribeiro, física e professora livre-docente do Instituto de Física Teórica da Unesp, autora de O discreto charme das partículas elementares (Ed. Unesp)

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Elétrons em torno de um próton e o fóton em forma de floco de luz (abaixo)

O fóton foi a segunda partícula elementar a ser desco-berta. Ela foi predita por Albert Einstein na sua teoria so-bre o efeito fotoelétrico – na verdade ele ganhou o Prêmio Nobel por esse trabalho e não pela teoria da relatividade. No livro, o fóton é um fl oquinho de luz porque ele é um quantum (pacote) de energia luminosa. A verifi cação ex-perimental do fóton foi dada em 1923 por Arthur Comp-ton. Em 1927, ele também ganhou o Prêmio Nobel. “Foi o primeiro americano a ganhar um Nobel e depois disso eles tomaram gosto pela coisa”, disse Cristina.

O mesmo fl oquinho de luz representante do fóton tam-bém aparece no fi lme O discreto charme das partículas elemen-tares, que teve o roteiro baseado no livro. Na história, ele con-tracena com um aluno do ensino médio chamado Rafael, que interage com partículas subatômicas como fótons, elétrons, bósons, glúons e neutrinos num mundo virtual, junto com a melhor amiga de sua classe e mais dois professores, além de um apresentador de TV, vivido pelo ator Marcelo Tas. O fi lme estreou na TV Cultura no dia 10 de novembro de 2008, Dia Internacional da Ciência para a Paz e o Desenvolvimento. Ele foi apresentado à plateia no Ibirapuera e pode ser assistido pela internet no site www.tvcultura.com.br/particulas.

A proposta do fi lme partiu de produtores da TV Cul-tura, e a professora Cristina solicitou e recebeu apoio fi -nanceiro por meio de um Edital de Projetos de Divulga-ção Científi ca do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi co e Tecnológico (CNPq) para a produção. Depois de muitas pesquisas e discussões sobre a forma do fi lme, que poderia ser um documentário, por exemplo, optou-se por uma proposta que atingisse a linguagem do público que iria começar a receber esse tipo de matéria na grade es-colar do ensino médio. Tanto o fi lme como o livro servem para uma melhor compreensão das partículas subatômicas por esse público e principalmente para os professores.

• Marcos de Oliveira

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Albert Einstein e Mario Schenberg nas fronteiras da ciência no século XX

José Luiz Goldfarb, físico, historiador da ciência e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, autor de Voar também é com os homens – O pensamento de Mário Schenberg (Edusp)

Entre as pessoas mais admiradas por Albert Einstein estava o físico brasileiro Mário Schenberg. Segundo uma possível lista elaborada pelo famoso pai da teoria da relatividade, ele foi considerado um dos dez cientistas mais representativos na ciência do século XX. “Nós não temos comprovação dessa lista, não há documentos, o que sabemos é que Schen-berg não trabalhou com Einstein, eles se conheceram na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, durante um período de estudos do brasileiro em que Einstein te-ria fi cado muito impressionado com Schenberg”, disse o professor José Luiz Goldfarb, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, no dia 29 de novembro, na palestra “Albert Einstein e Mário Schenberg nas fronteiras da ciên cia no século XX”. “Em determinado momento após essa visita, não sabemos exatamente quando, alguém pediu para Einstein fazer uma lista de dez pessoas, dez inteligên-cias, e Schenberg estaria nessa lista. A partir daí surgiu essa história, essa lenda”, diz Goldfarb. “As salas de Einstein e de Schenberg eram pró ximas e às vezes eles se encontravam por ali”, lembrou Goldfarb, um estudioso da vida e obra do físico brasileiro, sobre quem publicou o livro Voar tam-bém é com os homens – O pensamento de Mário Schenberg” (Edusp, 1993).

Na sua trajetória científi ca, Schenberg interagiu com muitos pesquisadores que deram contribuições importantes para a física. Trabalhou, por exemplo, em Roma, na Itália,

ENCONTROS NA FRONTEIRA JOSÉ LUIZ GOLDFARB

Historiador conta a trajetória de físico brasileiro

admirado pelo cientista alemão

com Enrico Fermi, ganhador do Prêmio Nobel de Física de 1938, e com George Gamow, um russo naturalizado norte-americano, na Universidade de Washington, nos Estados Unidos, responsá-vel pelos estudos que resultaram na teoria so-bre a grande explosão da criação do Universo, o Big Bang. Atingir esse patamar representou um grande salto para esse pernambucano nascido no Recife, em 1914, que queria estudar na Euro-pa, mas não conseguiu logo de início porque a

situação fi nanceira de seu pai não permitia. Ele foi para o Rio de Janeiro, mas em 1930 voltou para o Recife e entrou na Escola de Engenharia, devido à crise de 1929. Em 1934, ano da fundação da Universidade de São Paulo (USP), se transferiu para a Escola Politécnica da universidade paulista, onde se formou em 1935. Licenciou-se em ciências mate-máticas no ano seguinte e logo foi trabalhar na Faculdade de Filosofi a, Ciências e Letras da USP, no Departamento de Física. Saiu do Brasil em 1938 para a Europa em uma viagem de estudos fi nanciada pelo governo paulista que durou nove meses.

Nos estudos com Fermi, em Roma, ele menciona a possível existência do neutrino, uma partícula subatô-mica. “O neutrino era absolutamente uma hipótese, uma partícula que apenas nos anos 1960 é que vai ser obser-vada, mas ela fazia parte do contexto teórico pincelado por Schenberg na Europa”, diz Goldfarb. Naquele mesmo ano, muito intuitivo, ele volta rápido ao Brasil, por ser judeu, antes do início da Segunda Guerra Mundial que estava por começar. Aqui ele concorre e consegue uma bolsa da Fundação Guggenheim dos Estados Unidos para trabalhar na Universidade de Washington para onde se transfere em 1939. Lá trabalha na equipe de Gamow, que havia conhecido em São Paulo. Schenberg começou então seus estudos sobre astrofísica, área em que acon-tece sua maior contribuição à ciência. É o efeito Urca, chamado erroneamente de Ultra Rapid Catastrophe em sites e enciclopédias. “Eles tinham dados empíricos sobre supernovas que eram observadas e que não batiam com a teoria existente sobre a constituição de estrelas. Schen-berg, numa conversa com Gamow, disse que não se estava levando em conta a emissão de neutrinos. Gamow põe a mão na cabeça – essa é a descrição literal de Schenberg – e diz: ‘Essa é a solução’”, lembrou Goldfarb. A emissão de neutrinos esfria o centro da estrela e produz um colapso

Schenberg: físico,

político e crítico

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parte da intelectualidade das décadas de 1930 e 1940 que se engajava no movimento social – e foi eleito duas vezes deputado estadual em São Paulo. “Política para ele era a possibilidade de as pessoas se organizarem e terem uma direção, uma bandeira, para poderem realizar o que querem, desenvolvendo suas possibilidades. Com o golpe militar de 1964, ele foi cassado, preso e aposentado da USP pelo Ato Institucional nº 5, uma situação revertida em 1979, com a anistia. Segundo Goldfarb, ele era um comunista peculiar porque teve grandes desentendimentos com o líder do par-tido, Luís Carlos Prestes, além de, na arte, apoiar tendências completamente diferentes do realismo socialista da ex-União Soviética. Schenberg também era muito interessado por religião. “Ele dizia que a religião tem um fundo de coisas que não entendemos mas que ainda vamos entender”, lembra Goldfarb. “Ele ia à umbanda, à sinagoga, à igreja.” No fi nal da vida aproximou-se do budismo. Schenberg morreu em São Paulo, em novembro de 1990, aos 76 anos de idade.

• Marcos de Oliveira

Goldfarb: estudioso da vida e da obra de Schenberg

e uma expansão na parte mais externa do astro. “Eles elaboraram e recalcularam a teoria e esse efeito passou a fazer parte do estudo das estrelas até hoje.”

Gamow chama o efeito de Urca porque ele e sua esposa encontraram Schenberg no Rio de Janeiro e depois seguiram para o então cassino da Urca. “Lá a esposa de Gamow só perdeu dinheiro e então ele brincou: ‘A energia some no interior da estrela por causa da emissão dos neutrinos igual ao dinheiro da minha mulher que sumia naquela roleta no cassino da Urca’. Daí o nome”, disse Gold farb. No Brasil, entre o fi nal dos anos de 1950 e começo da década de 1960, o brasileiro foi fundador e chefe do Departamento de Ma-teriais e Mecânica do Instituto de Física da USP e teve um papel de incentivador da física do estado sólido, embora não fosse sua área. “Schenberg falava que a nova revolução viria da física dos materiais com silício, cristais, que poste-riormente resultou nessa sociedade da informação, e não na física nuclear como muitos acreditavam”, disse Goldfarb.

Arte e políticaSchenberg participa de muitas contribuições à física do século XX. “Ele acha ou às vezes indica soluções. O poeta Haroldo de Campos o chamava ‘Leonardesco’, em refe-rência a Leonardo da Vinci, porque ele tinha uma carac-terística semelhante à do artista italiano. Às vezes, achava que já resolvera o problema e passava a trabalhar em outra questão como Da Vinci fazia com pinturas que não ter-minara.” O aspecto multifacetado presente no italiano também foi marca registrada de Schenberg. Além da física, o pernambucano trilhou outros caminhos, como crítico de arte, área em que cultivou muitas amizades. “Ele dizia que não era crítico, mas acabou se tornando um estudioso e, nos estudos que fi z, acabei encontrando resenhas ao longo de 40 anos, de 1944 a 1984”, lembra Goldfarb.

Aliado à física e às artes, Schenberg também tinha um profundo interesse por política e fi losofi a. Ele era fi liado ao Partido Comunista Brasileiro – caminho de grande

A luta de Einstein contra a mecânica quântica, teoria cien-tífi ca que ele ajudou a construir, durou 30 anos. O jornalis-ta científi co Yurij Castelfranchi, físico com doutorado em sociologia, falou sobre esse aspecto que ele considera pouco conhecido na apresentação “Quando Einstein falhou: a luta

contra os moinhos de vento quânticos”, no dia 6 de dezembro. O título da palestra foi tirado de uma carta enviada ao físico alemão pelo seu ami-go Michele Besso, um engenheiro suíço-italiano, que dizia: “O senhor Einstein é como o cavaleiro Dom Quixote – o Cavaleiro Dom Quixote de La Einstein – que está começando uma batalha contra os malvados quanta”.

A participação do físico alemão na construção da mecânica quântica é inegável. “Ele foi um dos

primeiros a dizer que a luz, além de ser uma onda, também era feita de partículas, os fótons”, disse Castelfranchi. “Foi uma contribuição importante e revolucionária, que lhe deu o Prêmio Nobel em 1921.” Então por que Einstein dedicou a segunda metade da vida, depois de já ser famoso mun-

COMBATE QUIXOTESCO YURIJ CASTELFRANCHI

Jornalista explica a resistência

do cientista alemão à mecânica quântica

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algo sem forma, sem trajetória e que só podiam ser trata-dos como nuvens de probabilidade”, disse Castelfranchi. Foram muitos os adversários de Einstein nessa luta. Um deles é o físico alemão Werner Heisenberg, que criou o princípio da indeterminação, ou seja, que é impossível conhecer simultaneamente, com absoluta precisão, os movimentos e a posição de uma partícula. O outro é o físico dinamarquês Niels Bohr, um dos fundadores da teoria atômica e amigo de Einstein, mas a vida inteira um oponente intelectual. Einstein defendia a ideia de que devia existir uma maneira de investigar e detalhar o comportamento das partículas. Bohr, ao contrário, ar-gumentava que não tinha sentido atribuir uma trajetória aos quanta, os fótons de luz, porque nesses experimentos eles não se comportavam como partículas.

ParadoxosO teatro mais famoso dessas brigas era o Congresso de Solvay, um dos encontros mais importantes de física, rea-lizado desde 1911. No de 1927, em Bruxelas, na Bélgica, Einstein recusou-se a falar da física atômica e manteve-se calado durante o congresso. Mas no café da manhã ele sempre lançava desafi os aos físicos mais novos, interessados em mecânica quântica, dizendo que tinha inventado um novo experimento mental. “Ele conseguia levar a teoria dos físicos quânticos a paradoxos absurdos”, disse Cas-telfranchi. Bohr fi cava calado, mas prestava atenção e se desesperava porque percebia que as objeções de Einstein eram pertinentes. Durante o dia inteiro ele pensava sobre o experimento. No jantar, o dinamarquês dizia: “Pensei sobre as objeções de Einstein, que pareciam realmente seriíssimas, mas ele estava errado”.

Em 1930, mais uma vez o Congresso de Solvay foi palco dos embates entre os dois físicos. O cientista alemão lançou um novo desafi o para Bohr, complicadíssimo, que consistia em saber quanto tempo um fóton de luz de-morava a sair de uma caixa que tinha dentro um relógio. Pelo experimento mental de Einstein, parecia que a teoria quântica era absolutamente incoerente. Uma testemunha que estava no congresso relatou: “Bohr não encontrou a solução na hora e passou a tarde inteira extremamente infeliz, indo de um lado para o outro conversar com todos os jovens físicos, tentando convencê-los de que Einstein estava errado, mas ele não sabia demonstrar como”, contou Castelfranchi. Após uma noite insone, Bohr conseguiu uma resposta utilizando a própria teoria da relatividade geral formulada por Einstein: “Esse seu

Castelfranchi: brigas intelectuais

Quando Einstein falhou: a luta contra os moinhos de vento quânticos

Yurij Castelfranchi, físico e pesquisador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp

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dialmente pelas teorias da relatividade especial e geral, a lutar contra uma parte da física que ele ajudou a cons-truir? “O problema estava na interpretação que os grandes físicos contemporâneos a ele davam ao funcionamento do mundo atômico e subatômi-co”, explicou. Um experimen-to da física clássica conhecido como dupla fenda, adaptado para a então chamada física quântica, deu início a discus-sões e contestações de ambas as partes na década de 1920. Nesse experimento acontecia algo surpreendente: os elé-trons pareciam comportar-se como partículas – com uma trajetória defi nida – quando sua posição era observada e

medida por meio de instrumentos. Mas pareciam compor-tar-se como ondas, passando ao mesmo tempo por uma fenda e por outra, quando se media apenas a posição fi nal onde apareciam numa tela.

O ponto central da discórdia entre os físicos era o comportamento de partículas como elétrons. “Einstein podia aceitar que elas se comportavam como ondas e que então as coisas se misturavam, mas ele não podia acreditar que os átomos tinham que ser imaginados como

Os físicos

Heisenberg

e Niels Bohr

foram os

principais

oponentes

intelectuais

de Einstein

nas discussões

sobre a

mecânica

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GOSTOS E DESGOSTOS CÁSSIO LEITE VIEIRA

Aversão ao militarismo e paixão pela música

são alguns traços da personalidade de Einstein

A grande difi culdade de Einstein para aprender idiomas, como francês e grego, apesar de ser um excelente aluno em outras disciplinas, a aversão demonstrada precocemente pelo militarismo alemão e suas manifestações, o apego pela irmã mais nova, Maja, e o carinho com que tratava as crianças são traços da personalidade do físico alemão. O físico e jornalista da revista Ciência Hoje, Cássio Leite Vieira, falou sobre “Os gostos e desgostos de Einstein” na apresentação do dia 6 de dezembro e traçou um painel da vida do físico alemão, iniciado com a famosa imagem em que ele mostra a língua. A pose irreverente foi uma resposta a um pedido de um fotógrafo feito em 1951, no dia do seu aniversário de 72 anos. Einstein gostou tanto da fotografi a que pediu cópias para o autor e passou a mandá-las autografadas para os amigos.

Vieira mostrou imagens de várias fases da vida do físico contrapondo gostos e desgostos, entre elas a fotografi a mais

relógio e sua caixa não vão funcionar, porque na hora em que a luz sair a caixa vai se mover e o tempo vai passar um pouquinho mais devagar. Fazendo todas as contas, você vai ver que é exatamente como nós, físicos quânticos, dizemos”. Essas brigas intelectuais são alguns exemplos da luta de Einstein sobre os fundamentos do que é a ciência, porque para ele a ciência não podia lidar só com probabilidades.

Hoje a física que se estuda é a da relatividade de um lado e a quântica de outro. As críticas que o cientista alemão fez não conseguiram modifi car substancialmente a teoria da física atômica. Einstein não conseguiu explicar o mundo microscópico coerentemente com a teoria da relatividade, assim como a física quântica também não explicou a curva-tura do espaço-tempo com uma teoria coerente e unitária. “Einstein não perdeu de todo”, concluiu Castelfranchi.

• Dinorah Ereno

antiga conhecida do cientista, ainda criança ao lado de sua irmã, Maja, dois anos mais nova. “Segundo a irmã, que depois escreveu uma bio-grafi a muito interessante sobre ele, sua brinca-deira preferida era construir castelos de cartas.” Dos pais, herdou o gosto pelos cálculos e pela música. O pai gostava muito de matemática e a mãe tocava piano. Desde criança ela o incenti-vou a tocar violino, instrumento pelo qual teve grande paixão durante toda a vida, assim como

por Mozart, seu compositor preferido. Também precoce-mente, Einstein demonstrou não gostar de militares. Du-rante um desfi le, disse: “Como é que alguém pode crescer

Leite: entre Mozart e castelos de cartas

Werner Heisenberg e Einstein no início

dos anos 1920: trabalho coletivo

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Os gostos e desgostos de Einstein

Cássio Leite Vieira, físico e jornalista, autor de Einstein, o reformulador do Universo (Odysseus)

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e virar uma pessoa assim, mecânica, sem alma?”. Além de construir castelos de cartas, observar os bichinhos e as plantas do jardim, ele também tinha grandes explosões de raiva. “Sua irmã dizia que nessas ocasiões ele fi cava com a bochecha muito vermelha e o nariz amarelo”, relatou Viei-ra. Quando adulto, essas explosões se repetiram em pelo menos duas circunstâncias. “Em 1920, em Berlim, quando o movimento nazista começava a sua ascensão, físicos que haviam aderido ao nazismo criticavam em jornais a física de Einstein, em parte por ser muito inovadora e em parte porque ele era judeu”, disse. Quando via essas críticas, ele rasgava e jogava o jornal no chão.

Um desses ataques, presenciado por um físico famoso, amigo e colaborador, ocorreu em meados da década de 1930, ao receber a resposta de uma revista científi ca pa-ra publicação de um artigo que havia escrito sobre ondas gravitacionais. “Nunca, até aquele momento, um trabalho

Einstein com outros músicos de Princeton em novembro de 1933

de Einstein havia passado pelo chamado parecer técnico por pares”, explicou Vieira. A resposta da revista, de que seria necessária a revisão de alguns pontos, foi recebida com palavrões. Einstein, inconformado, rasgou o trabalho e jogou os pedaços na lata do lixo. “O pior de tudo é que o amigo dizia que o parecer técnico sobre o artigo tinha fundamento, porque realmente havia pontos falhos”, com-pletou Vieira.

Einstein adorava crianças, que lhe escreviam muitas cartas. Em uma delas, uma criança diz: “Eu e meu pai vamos construir um foguete para ir a Marte ou Vênus. Queremos que o senhor vá porque precisamos de um bom cientista, que saiba guiar o foguete”. Em outra, uma suges-tão: “Tenho 6 anos, vi sua foto e quem sabe o senhor não fi caria melhor com um corte de cabelos?”.

• Dinorah Ereno

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[na contracapa]

Manuscrito de Einstein

CRÉDITO: THE HEBREW UNIVERSITY OF JERUSALEM

CELSO LAFERPRESIDENTE

JOSÉ ARANA VARELAVICE-PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR

CELSO LAFER, EDUARDO MOACYR KRIEGER, HORÁCIO LAFER PIVA, JACOBUS CORNELIS VOORWALD, JOSÉ ARANA VARELA, JOSÉ DE SOUZA MARTINS, JOSÉ TADEU JORGE, LUIZ GONZAGA BELLUZZO, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

RICARDO RENZO BRENTANIDIRETOR PRESIDENTE

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZDIRETOR CIENTÍFICO

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLERDIRETOR ADMINISTRATIVO

Especial

COORDENAÇÃO CIENTÍFICALUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS

EDIÇÃOMARILUCE MOURA E CARLOS FIORAVANTI

PROJETO E ORGANIZAÇÃOCARLOS FIORAVANTI, MARCELO KNOBEL E MARIA GUIMARÃES

TEXTOCARLOS FIORAVANTI, DINORAH ERENO, FABRÍCIO MARQUES, MARCOS DE OLIVEIRA, MARCOS PIVETTA, MARIA GUIMARÃES, MARILUCE MOURA, NELDSON MARCOLIN, RICARDO ZORZETTO

REVISÃO MÁRCIO DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO

ARTEMAYUMI OKUYAMA (EDIÇÃO) MARIA CECILIA FELLI E JÚLIA CHEREM RODRIGUES

FOTOSMARCIA MINILLO

GESTÃO DO PROJETOPAULA ILIADIS

PRODUÇÃOLETÍCIA KONISHI E RAFAEL PAIÃO

VÍDEOSDIANA ZATZ E FREDERICO ARELARO

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

ISSN 1519-8774

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