efetividade do direito à educação no pós cf/88 - patrícia ribeiro

90
Patrícia Ribeiro Vieira EFETIVIDADE DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO PÓS CF/88: ELEMENTOS FILOSÓFICOS E CONTEXTUAIS

Upload: trinhdiep

Post on 09-Jan-2017

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

Patrícia Ribeiro Vieira

EFETIVIDADE DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO PÓS CF/88:

ELEMENTOS FILOSÓFICOS E CONTEXTUAIS

Page 2: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro
Page 3: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

PATRÍCIA RIBEIRO VIEIRA

EFETIVIDADE DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO PÓS CF/88:

ELEMENTOS FILOSÓFICOS E CONTEXTUAIS

BrasíliaCentro Universitário de Brasília

2013

Page 4: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

VIEIRA, Patrícia Ribeiro.

Aspectos da efetividade do direito à educação no pós CF/88: elementos filosóficos e contextuais./ Patrícia Ribeiro Vieira. Brasília, 2011.

90 p.

ISBN 978-85-61990-26-8

Dissertação (Mestrado) - Centro Universitário de Brasília, 2011.Programa de Mestrado em Direito. Orientador: Prof. Dr. Frederico Augusto Barbosa da Silva.

1. Direito à educação. 2. Efetividade. 3. Elementos filosóficos e contextuais.. I. Título. II. Da Silva, Frederico Augusto Barbosa (Orientador).

CDD 340

Page 5: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

A Deus, Alegria e Força - Vida

A Jorge, Hilda e Lyane, Meus queridos, Sangue do meu sangue.

Aos famintos por justiça, Fraternos irmãos.

Page 6: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro
Page 7: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

7

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 9

CAPÍTULO 1 DESENVOLVIMENTO E LIBERDADE ........................................................................... 11

1.1 Aspectos teóricos do desenvolvimento como liberdade. ............................................121.2 Preocupação com a liberdade na tradição liberal. .......................................................26

1.2.1 O aspecto negativo e positivo da liberdade. ...........................................................271.2.2 O sujeito livre na concepção de justiça do liberalismo político. .........................32

1.3 Considerações. ....................................................................................................................35

CAPÍTULO 2 ASPECTOS RELACIONADOS À ESFERA PÚBLICA E AO DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL. .................................................................................................. 37

2.1 Tradição brasileira e políticas sociais. ............................................................................372.1.1 A igualdade. ..................................................................................................................382.1.2 Configuração da esfera pública. ...............................................................................39

2.2 Políticas sociais e educacionais no Brasil. .....................................................................442.2.1 Políticas sociais. ............................................................................................................452.2.2 Políticas educacionais. ................................................................................................492.2.3 Políticas educacionais e Constituição Federal de 1988. .......................................552.3 Direito a educação no pós CF/88. ...............................................................................57

2.4 Considerações ....................................................................................................................62

CAPÍTULO 3 EFETIVIDADE DO DIREITO A EDUCAÇÃO. ............................................................... 64

3.2 Dados estatísticos. ............................................................................................................663.2.1 Relatório nacional de acompanhamento dos “objetivos de desenvolvimento

do milênio” – ODM e aspectos afins. .....................................................................68

CONCLUSÃO ....................................................................................................................... 82

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 86

Page 8: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro
Page 9: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

9

INTRODUÇÃO

A liberdade de uma pessoa pode ser vista sob distintos recortes ou enfoques, o enfoque abordado neste trabalho é o de formação de capacidades. É importante considerar o indivíduo em sua potencialidade de ser sujeito, portanto, de se expressar na esfera pública. Ademais, deve ser possível conciliar o crescimento econômico com a expansão das liberdades individuais. Este argumento, que reconhece por um lado a grande opulência global e de outro a extrema pobreza e desigualdade de certas regiões é motivador da teoria do desenvolvimento como liberdade.

A renda é importante, mas não é um fim em si mesmo. A renda é um meio para as liberdades substanciais. O desenvolvimento centra-se na eliminação de privações de liberdades substanciais, de forma que é necessário eliminar as privações de liberdade que tendem a limitar as escolhas e as oportunidades do exercício da condição de agente pelas pessoas. O objetivo do desenvolvimento é a liberdade humana em geral. As liberdades são os meios principais e os fins primordiais do desenvolvimento.

As liberdades podem ser concebidas em termos instrumentais e substantivos. Existem encadeamentos empíricos e causais entre as distintas formas de liberdades. As oportunidades econômicas, liberdades políticas, poderes sociais e condições habilitadoras como boa saúde, educação básica e incentivo e aperfeiçoamento de iniciativas são fatores que influenciam o que as pessoas conseguem realizar positivamente. Assim, partindo da compreensão de que a riqueza é um meio para a realização de liberdades, adotou-se a teoria do desenvolvimento como liberdade, visto que responde a questões relacionadas à necessidade da superação de fatores sociais aliadas ao crescimento econômico.

Apesar da teoria do desenvolvimento como liberdade ter sido formulada por um indiano, Amartya Kumar Sen, sendo portanto uma teoria estrangeira, a teoria seniana parte da preocupação fática com a fome endêmica, extrema pobreza, falta flagrante de liberdade e persistência de regimes autoritários em um cenário mundial de nível de riqueza sem precedentes. Portanto, preocupações que se aproximam do contexto brasileiro, o que torna a teoria potencialmente útil para pensar-se as dificuldades relacionadas à efetividade do direito à educação na seara nacional.

Ademais, a teoria seniana permite um diálogo com elementos próprios da tradição liberal, de caráter eminentemente individualista, com tradições de cunho holista, como é o caso da tradição indiana e brasileira. Dessa forma, considerando que tal teoria propõe uma revisão interna do liberalismo, é possível ampliar tal diálogo, nele inserindo a tradição brasileira.

A educação é um dos fatores que colabora para o desenvolvimento, nesse sentido, o objeto deste estudo é compreender a efetividade do direito à educação no período posterior à promulgação da Constituição Federal de 1988. Assim, toma-se por base a compreensão da educação como um fator que colabora para a formação de liberdades substantivas e instrumentais, sendo um elemento de proveito individual e social. Tal perspectiva, por sua vez, pressupõe uma concepção de indivíduo como agente, portanto, que mantém uma postura atuante na sociedade, sendo predisposto a usufruir das oportunidades.

Assim, o olhar sobre liberdade e políticas sociais educacionais ganha significado com base na mirada sobre a tradição brasileira. Em termos distintos, propõe-se analisar os pontos de semelhança e distanciamento entre a liberdade sob o enfoque da tradição liberal e a liberdade sob o enfoque da tradição brasileira, a fim de interpretar sobre a configuração da igualdade e da cooperação social na esfera social brasileira.

Page 10: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

10

Tendo por base tais pressupostos é preciso compreender como ocorre a dinâmica educacional na seara brasileira, bem como a realidade com a qual se defronta o desafio educacional no pós - CF/88. Para aproximar-se teoricamente deste ponto, alguns elementos relativos às políticas sociais em uma perspectiva ampla são abordados, bem como relativos à trajetória histórica da política educacional. Os elementos que emergem dessa análise são importantes na medida em que situa o leitor quanto à configuração da estrutura educacional e social no período anterior à promulgação da CF/88.

O trabalho é estruturado em três grandes partes. Por meio da primeira parte propõe-se trazer aspectos filosóficos para embasar a reflexão sobre a relação entre educação e liberdade, entretanto, a ênfase está posta sobre a configuração da liberdade em três perspectivas, quais sejam: i) a perspectiva do desenvolvimento como liberdade; ii) aspectos do delineamento político da liberdade e iii) uma concepção de justiça, que revela elementos para a reflexão da liberdade conforme a tradição liberal e traz elementos para dialogar com a tradição brasileira.

O segundo momento do trabalho é estruturado a fim de aproximar-se das políticas educacionais de forma contextualizada. Com esse intuito, o segundo capítulo também é subdividido em três partes, a saber: i) aspectos da tradição brasileira, que compreende a questão da igualdade e da configuração da esfera pública; ii) características das políticas sociais e educacionais de forma ampla, a fim de situar o leitor para a análise posterior, e iii) direito à educação no pós CF/88. Assim, o segundo capítulo permite um diálogo com a tradição liberal, a fim de evidenciar quais as características da tradição brasileira, e posteriormente adentrar nas políticas educacional nacionais de forma contextualizada. Em outros termos, para adentrar na política educacional são evidenciados certos aspectos que concorrem para a conformação de tal política, visto que são inerentes à esfera pública brasileira.

O terceiro capítulo visa adentrar à análise da efetividade do direito à educação no pós CF/88. Para tanto, propõe uma estrutura compreendida em duas etapas. A primeira em prol do delineamento do conceito de efetividade do direito, de forma que o conceito em si não é discutido, apenas proposto. A segunda etapa diz respeito aos dados estatísticos relativos à seara educacional no período posterior à CF/88.

Através dos dados estatísticos será feita reflexão a respeito da efetividade do direito à educação. A análise é feita a partir de indicadores relativos ao cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – ODM. A meta nacional visa garantir que até 2015, todas as crianças, de todas as regiões do país, independentemente de cor/raça e sexo, concluam o ensino fundamental. Outro aspecto a ser ressaltado diz respeito ao analfabetismo no período que sucedeu a promulgação da Constituição Federal de 1988, a fim de delinear os avanços e os limites da efetividade do direito à educação no Brasil.

Page 11: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

11

CAPÍTULO 1 DESENVOLVIMENTO E LIBERDADE

A compreensão do conceito de desenvolvimento passa por uma série de fatores que podem estar ligados a aspectos econômicos e a aspectos sociais. Existem diversas concepções de desenvolvimento e a que será adotada neste trabalho leva em consideração fatores de ordem social como conducentes ao crescimento econômico. Nessa linha, optou-se por explorar a concepção de desenvolvimento como liberdade, que elege a liberdade como meio e fim do desenvolvimento, sendo este o fator de mensuração.

A formação de liberdade é o principal objetivo do desenvolvimento como liberdade. As atividades econômicas, sociais e políticas devem ser analisadas de forma integrada a fim de prestar-se atenção aos encadeamentos empíricos e causais. O foco está sobre a eliminação dos fatores que privam a liberdade do indivíduo, limitando sua condição de agente.

A riqueza é considerada importante, apesar de não ser tida como um fim em si mesma. O aumento de riquezas geralmente colabora para o aumento de liberdades substantivas. Entretanto, trata-se de uma relação limitada, de forma que o desenvolvimento que possui por objetivo a formação de liberdades, além de considerar importante a desobstrução do gozo de liberdades relacionadas à riqueza, concebe o ser humano com uma maior amplitude, pois considera o aspecto volitivo e a condição de agente dos indivíduos.

Portanto, a concepção da liberdade é tanto instrumental quanto substantiva. O aspecto substancial da liberdade diz respeito à privação de recursos, de acesso a estrutura de saúde pública, a serviços públicos, a assistência social. Assim, está-se falando de oportunidades econômicas, boa saúde, educação básica, ações contra a pobreza, etc. O aspecto instrumental se refere a liberdades políticas e civis, a participação social, política e econômica. Portanto, representa o meio do desenvolvimento, que pressupõe o indivíduo investido do papel de agente. Nesse sentido, o exercício da liberdade possui influência sobre as disposições institucionais que proporcionam oportunidades, ou seja, colabora para um círculo virtuoso da formação de liberdades.

Dessa forma, existe uma inter-relação entre as liberdades, pois um determinado tipo de liberdade pode colaborar para a promoção de outro, de forma que tanto os direitos, como as oportunidades e os intitulamentos possuem relação entre si. Um aspecto importante diz respeito à participação democrática, ou seja, uma liberdade instrumental, que além de possuir valor em si mesma, pode ser vista sob o aspecto da potencialidade de sua utilização ao colaborar para sanar questões de cunho social e político. Portanto, a respeito da criação de valores e normas, vai possuir um caráter constitutivo.

Não somente as liberdades instrumentais colaboram para a formação de liberdades substantivas, como estas colaboram para a expansão entre si. Esse é o típico caso em que o preparo social, portanto, bons níveis de alfabetização e educação básica e serviços de saúde que colaboram para o aproveitamento de oportunidades econômicas pela população.

Em relação à questão educacional, dois aspectos são, inicialmente, destacáveis, quais sejam, a questão legislativa e do financiamento à educação. Trata-se de dois aspectos importantes para estruturar o sistema educacional de um país, de forma que sua conjugação pode facilitar, incentivar e impor a necessidade de adquirir educação, de forma a aumentar o nível de escolaridade da população. Entretanto, tendo em consideração que existe um

Page 12: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

12

encadeamento empírico entre as liberdades instrumentais e substantivas, a educação influencia e é influenciada pelas mesmas, de forma que ambos os fatores acima mencionados, apesar de fundamentais para estruturar o sistema de ensino, não são suficientes. Admite-se, de antemão, que se trata de dois aspectos importantes e relativamente sanados no período pós CF/88, de forma que o nó crítico no sistema educacional vai residir sobre elementos diversos, como será visto.

Quando o indivíduo é situado em relação ao mercado, é importante concebê-lo para além da teoria do capital humano, portanto, a valorização do indivíduo não deve estar restrita ao capital de produção. Essa perspectiva é criticável por considerar a riqueza como um valor em si mesmo, desconsiderando o fim de expandir as liberdades humanas.

A organização do primeiro capítulo do trabalho será feita em dois momentos, o primeiro momento está adstrito ao conceito de desenvolvimento como liberdade, enquanto o segundo momento trará algumas preocupações com a liberdade na tradição liberal, a fim de subsidiar a reflexão, que será feita nas partes seguintes do trabalho sobre aspectos da tradição brasileira e a educação no pós Constituição de 1988, bem como sua relação com aspectos do desenvolvimento e liberdade no Brasil. Dessa forma, passa-se a ao primeiro ponto, o conceito de desenvolvimento como liberdade.

1.1 Aspectos teóricos do desenvolvimento como liberdade.

O termo desenvolvimento pode adquirir algumas concepções. Existe a concepção de desenvolvimento estritamente ligada ao crescimento econômico e sua forma de mensuração ocorre, primordialmente, pelo aumento do Produto Interno Bruto - PIB. Neste trabalho, o conceito de desenvolvimento que se adota é o de desenvolvimento como liberdade, formulada por Amartya Kumar Sen1. Esse conceito propõe o entendimento de que a formação de liberdades representa os meios e os fins do desenvolvimento, o que, leva em conta fatores de ordem social e econômica.

O conceito de desenvolvimento como liberdade considera a educação, objeto deste trabalho, como um dos fatores que colabora para o desenvolvimento. Assim, será feito o esforço de leitura sobre o direito à educação no Brasil, especificamente no pós Constituição de 1988 – CF/88, a partir da ótica da formação de liberdades.

Os aspectos fáticos que motivaram a elaboração teórica seniana dizem respeito à fome endêmica, extrema pobreza, falta flagrante de liberdade e persistência de regimes autoritários ante o nível de riqueza sem precedentes encontrados no mundo, bem como à instalação da democracia em grande parte dos sistemas políticos além da facilidade de circulação de informação atual.

Apesar de ser uma teoria de desenvolvimento estrangeira, sua formulação possui por base preocupações que não se distanciam das existentes no cenário nacional. Tais preocupações, existentes em outras partes do mundo, expressam-se de forma significativa no Brasil, delineando algumas questões da esfera pública brasileira. O aspecto da inclusão ou exclusão, como exemplo de recorte na perspectiva do desenvolvimento, possui movimentos similares em diversas partes do mundo, revelando que em um processo de desenvolvimento

1 SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Ademais, existem contribuições teóricas do mesmo autor em obras distintas que serão elucidadas para uma melhor compreensão do corpo da teoria do desenvolvimento como liberdade.

Page 13: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

13

podem ser geradas condições de inclusão social paralelas à de exclusão social.2 Portanto, determinadas características possuem movimento comum sobre distintos espaços geográficos, o que autoriza o esforço reflexivo de desenvolvimento como liberdade para o Brasil.

Nesse sentido, é importante salientar que as características da formulação teórica de Sen, no sentido de que ele vai tratar com elementos pensados na concepção da tradição liberal, tentando adequá-los à realidade da Índia. Portanto, o autor trabalha com a reorganização de elementos típicos de uma sociedade individualista com a finalidade de pensar uma sociedade holista, portanto, que se preocupa com o todo.

A compreensão de desenvolvimento traz o enfoque da reciprocidade na relação entre indivíduo, na condição de agente, como será visto adiante, e o Estado. Nessa linha de pensamento, existe uma complementaridade entre a condição de agente e as disposições sociais, de forma a priorizar a necessidade do reconhecimento simultâneo da centralidade da liberdade individual e da interferência das influências sociais no grau e alcance da liberdade individual. Portanto, a liberdade individual é concebida como um comprometimento social, sendo este o prisma básico do desenvolvimento como liberdade.

A abordagem básica, liberdade individual em prol do comprometimento social, nada mais é que a transição do individualismo para o holismo3, pregando-se não uma societas, ou seja, associação pura e simples das pessoas, mas uma universitas, corpo social como um todo em que os homens vivos nada mais são do que as partes. A partir de elementos que configuraram o individualismo e a concepção restrita de crescimento econômico concebe-se uma perspectiva de organização holista dos indivíduos. É o que ocorre quando um economista indiano, originário, portanto, de uma cultura de raiz eminentemente holista, propõe-se a pensar os aspectos teóricos da organização política e econômica na tradição liberal, com ênfase na superação das opulências.4

O desenvolvimento como liberdade concebe a eliminação das privações de liberdade, visto que a ausência de liberdade limita o exercício da condição de agente pelas pessoas. O desenvolvimento é compreendido pela possibilidade de escolha ante a reais oportunidades. Assim, toma-se como ponto de partida a liberdade identificada como o principal objetivo do desenvolvimento tendo em consideração os encadeamentos empíricos e causais, sendo este, por sua vez, o norte de formulação de políticas públicas. Levar em consideração os encadeamentos empíricos e causais demanda uma análise integrada das atividades econômicas, sociais e políticas, e, portanto envolve uma gama variada de instituições e as possíveis formas de condições de agente relacionadas de forma interativa. 2 POCHMANN, Marcio, AMORIN, Ricardo (orgs). Atlas da exclusão social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2003, p. 9.3 O individualismo é a perspectiva em que o indivíduo é concebido como ser moral, sendo este o padrão de avaliação

das instituições, enquanto no holismo, o indivíduo é tido em relação ao coletivo, sendo esse o seu horizonte. A res-peito ver: DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio e Janeiro: Rocco, 1985.

4 Pode-se salientar que existem outras abordagens que visam atingir objetivo semelhante ao proposto por SEN uti-lizando-se de meios distintos. Enquanto SEN compreende o crescimento econômico como uma perspectiva a ser mantida, existe a abordagem do decrescimento econômico, de Serge Latouche, que em face de todos os malefí-cios advindos da valoração do indivíduo como ser moral e não mais em relação à coletividade e do crescimento econômico estrito, propõe o deslocamento do fator econômico da parte superior da pirâmide para a base, com ênfase em fatores ecológicos, dada a finitude dos recursos do globo terrestre, enquanto SEN propõe o deslocamento dos elementos que formam a base da pirâmide para o topo, enaltecendo questões de ordem social que possuem valor por si próprias. Assim, pela riqueza da abordagem de SEN e também por sua aceitabilidade e existência de tentativa de mensuração e propagação por intermédio de indicadores estatísticos, opta-se pela abordagem de desenvolvimento como liberdade. Outro elemento considerado como importante na escolha da teoria foi o tratamento que esta con-fere à educação, relacionando-a ao desenvolvimento e à formação de capacidades individuais. Assim concebe-se a educação como fator de ordem individual e social na perspectiva de compromisso individual com o coletivo.

Page 14: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

14

Para adentrar na seara das políticas educacionais no Brasil é importante considerar, ainda, outro aspecto, que diz respeito à tradição nacional na concepção de liberdade com base em dois de seus pilares: o tipo de individualismo e o tipo de cooperação social. Isso ocorre tendo em vista a relação existente entre tais elementos e a configuração de uma sociedade de estrutura paternalista, com reflexos nas políticas sociais e, por conseguinte, na política educacional. 5

Uma compreensão inicial da perspectiva da formação de liberdades pelo desenvolvimento reside na discussão seniana sobre igualdade6, que considera errônea a oposição entre a concentração na liberdade e rendas versus padrões distributivos de rendas, no exercício de compreensão da igualdade, pois não são alternativos. A igualdade admite a liberdade dentre seus campos de aplicação, bem como a liberdade também admite a igualdade. Dessa forma, trata-se de duas características de campos reciprocamente permeáveis.

Em outros termos, pensar a liberdade significa ter em consideração que as comparações interpessoais, necessárias para pensar-se em termos de igualdade, devem levar em conta os recursos e bens primários, mas não somente. Ao colocar-se como norte a liberdade, deve-se levar em consideração a capacidade, esta compreendida como conjunto de vetores de funcionamento, que reflete a liberdade de uma pessoa de levar um tipo de vida ou outro, portanto, possuindo liberdade de escolher dentre tipos distintos de vida possíveis. Assim, a abordagem seniana postula a possibilidade de levar-se em consideração além das variáveis como bens primários, rendas ou renda real, o conjunto capacitário.

Por outro lado, a liberdade e bem-estar podem conflitar, sendo plausível a liberdade da condição de agente crescer enquanto o bem estar realizado diminui. O que à primeira vista pode parecer um absurdo torna-se reflexo de uma tomada de decisão do agente quando inserido no processo de escolha. Ocorre que o nível de bem estar não é necessariamente o único norte dentre as oportunidades valorizadas por uma pessoa. Outro aspecto também a ser considerado é que dado o aumento demasiado de alternativas, torna-se desvantajoso gastar tempo e esforço na realização de escolhas que seria preferível não fazer. Dessa forma, é possível ter uma boa motivação para não ter de fazer uma série de escolhas indesejadas.

A estrutura da igualdade pode ser dimensionada a partir de três aspectos. O primeiro diz respeito à valorização da igualdade em algum espaço visto como particularmente importante, pois delineia o que seria uma igualdade basal, sendo a igualdade um requisito substantivo e substancial. Dessa forma, a lacuna que decorre ao se colocar o foco primário da análise da (des)igualdade tendo a renda como base comparativa reside não somente no fato de que é apenas um dos meios para se atingir o fim a que se visa, como também de que existem variações interpessoais que permeiam a relação entre meios e os diversos fins. Portanto, na mensuração da desigualdade recomenda-se evitar o equívoco de conferir trato simétrico às rendas de todas as pessoas sem atentar-se, também, às possíveis dificuldades de algumas pessoas para converter a renda em bem-estar e liberdade.

Adequando a análise da pobreza à interpretação acima, para ser possível pensar a caracterização da mesma, não é suficiente a propositura de uma linha divisória que tome por base o nível de renda. A falha está em proceder o exercício de agregação, a fim de identificar os pobres e posteriormente derivar um índice global de pobreza, desconsiderando a distância da margem da linha da pobreza, ou hiato de renda. Portanto, ao traçar-se uma

5 Para fins didáticos, este Segundo ponto será abordado no próximo capítulo do trabalho. 6 SEN, Amartya Kumar. Desigualdade reexaminada. 2ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2008.

Page 15: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

15

linha da pobreza, não se leva em consideração a análise intergrupal em suas disparidades, tanto de renda como de capacidades7.

A exigência de objetividade a que se busca responder não implica, necessariamente, em invariância social, bem como que a existência de variações sociais também pressupõe que se convencionem os tipos de privação grave. As variações interpessoais, por sua vez, evidenciam que a questão está posta sobre transformar mercadorias em funcionamentos. Dessa forma, a pobreza constitui-se ante à deficiência de capacidades básicas para alcançar certos níveis minimamente aceitáveis, em outras palavras, incapacidade de buscar o bem-estar dado o lapso de recurso econômicos. Portanto, a inadequação da renda não é devidamente expressa se restrita ao parâmetro estabelecido pela linha da pobreza, pois deve estar adstrita aos níveis específicos de capacidade do indivíduo, sendo este o parâmetro de mensuração. Assim, quando a liberdade é posta em destaque, impede-se o tratamento igualitário entre recursos e liberdades.8

O segundo aspecto do dimensionamento da estrutura da igualdade se dá a partir da fixação de conteúdo e sua correspondência a determinado espaço, para tanto, demanda-se um exercício de discriminação substantiva, e não somente formal, pois as exigências de igualdade se aplicam a partir de cada contexto. Portanto, para postular-se a igualdade, é preciso levar em consideração a pluralidade de espaços em que serão apreciados a diversidade individual, compreendendo o que os indivíduos propõe-se a buscar.9

O terceiro ponto diz respeito à diversidade de contexto, pois existem diferentes diagnósticos quanto aos objetos que possuem valor, tendo em vista que em determinado contexto podem existir visões diferentes sobre o que seja a obtenção de vantagem individual. Nesse sentido, é possível atribuir distintos pesos a opções valorativas conforme cada contexto específico, tento em vista que atribuir o padrão de escolha valorativa de um local a outro pode não ser apropriado pela configuração distinta da igualdade basal.

Isso ocorre não somente quando da comparação entre locais, mas também existem variações interpessoais e intergrupais quanto a características próprias. Nesse sentido, a ética da igualdade precisa levar em consideração as diversidades generalizadas, ou seja, a pluralidade das variáveis focais. A desigualdade de renda é uma análise que colabora para a compreensão da desigualdade, mas é falha na compreensão da magnitude da desigualdade real de oportunidades. Isso ocorre por existirem outros fatores importantes e das variações interpessoais na relação entre meios e os variáveis fins. Portanto, a abordagem da desigualdade de renda falha ao desconsiderar as dificuldades que existem entre as pessoas para a conversão de renda em bem-estar e liberdade.

7 Neste ponto ressalta-se que a teoria de Sen possui, a princípio, uma formulação que permite pensar comunidades configuradas de forma distinta da sociedade massas, a exemplo das comunidades tradicionais, que mesmo com baixís-sima renda, têm qualidade de vida. Esse enfoque é possível dada a concepção de liberdade. Entretanto, é necessário pensar se isso se faria necessário, uma vez que a preocupação seniana parte do pressuposto da indignação dos liberais ocidentais. Em outras palavras, apesar da teoria do desenvolvimento como liberdade se utilizar de uma cláusula de fechamento aberta e, portanto, estar predisposta a levar em consideração novas ponderações que colaborem para a formação de liberdades, é preciso ter em mente os motivos que levariam a uma comunidade tradicional se socorrer da teoria seniana para solucionar alguma questão interna, uma vez que, a princípio, questões como extrema pobreza, desigualdade e exclusão social, por exemplo, não encontram lugar na estrutura dessas comunidades.

8 É válido destacar que “nenhum estudo sério sobre a desigualdade que sirva ao raciocínio prático e à ação pode igno-rar a necessidade de desconsiderar uma grande parte de nosso imenso domínio de diversidades. A pergunta em cada contexto é: quais são as diversidades significativas neste contexto?” In SEN, op. cit, 2008, p. 185.

9 Nesse sentido, SEN salienta: “a adequação relativa dos diferentes espaços depende, em última instância, da motivação subjacente ao exercício de avaliação da desigualdade. A desigualdade é medida para algum propósito, e a escolha do espaço bem como a seleção de medidas particulares da desigualdade nesse espaço teriam de ser feitas à luz desse propósito”. In SEN, op. cit, 2008, p. 147.

Page 16: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

16

Aplicando esta premissa teórica para o contexto brasileiro, existe um estudo que realizou uma agregação de índices para pensar-se em termos de exclusão/inclusão social tomando por base as localidades. Tal estudo resultou no Indicador da Exclusão Social no Brasil, pensado na forma de Atlas. A pergunta básica para a construção do Atlas foi: “qual o grau de desigualdade social entre as diferentes regiões brasileiras?”10 Apesar da questão posta ser um pouco mais abrangente, os resultados de tal estudo, permitiram, em brevíssima síntese, evidenciar as seguintes características:

As regiões Norte e Nordeste são historicamente conhecidas por possuírem municípios com tais características (problema de exclusão social). Nessas localidades, diferentemente das regiões Sul e Sudeste, a vulnerabilidade social, de origem antiga, reflete-se hoje, entre outros aspectos, por um acesso muito restrito à educação, à alimentação, ao mercado de trabalho e ou outros mecanismos de geração de emprego e renda. Tal dinâmica parece consolidar o quadro histórico de exclusão social local.

Em contrapartida, as regiões Sul e Sudeste, na maioria das vezes, abrigam municípios que, pelo Índice de Exclusão Social, não poderiam ser classificados como excluídos. No entanto, suas realidades sociais internas, principalmente nos mais populosos, são de grande desigualdade. Esse quadro parece ter se agravado a partir dos anos 1990 com a adoção de políticas econômicas de corte liberal. Identifica-se uma forma nova e peculiar de exclusão social nesses grandes centros urbanos: ali, um grande número de indivíduos, apesar de escolarizados, de terem experiência de assalariamento formal e possuírem famílias pouco numerosas, encontra-se em situação de desemprego e insuficiência de renda. 11

10 A forma de construção do Atlas foi a seguinte: “Em primeiro lugar definiram-se três grandes temas que configuram os componentes de exclusão/inclusão social ou de risco de exclusão/inclusão social. O primeiro deles foi chamado Padrão de vida digno, no qual a preocupação foi observar, por meio de três indicadores, as possibilidades de bem-estar material da população dos municípios. Para isso, utilizaram-se como indicadores: a) a porcentagem de ‘chefes de família pobres’ no município; b) a quantidade de trabalhadores com emprego formal sobre a população em idade ativa; c) uma proxi do índice de desigualdade de renda, calculado pela razão entre a quantidade de chefes de família que ganham acima de dez salários mínimos sobre o número de chefes de família que ganham abaixo disso. Esse indica-dores, em conjunto, além de permitirem uma aproximação das possibilidades de consumo das famílias nos distintos municípios brasileiros, ainda possibilitam contornar dois problemas que ocorrem na apuração do IDH tradicional: a impossibilidade de checar a distribuição de renda dentro da unidade escolhida (no caso município) e a situação do mercado de trabalho.

O segundo tema segue as recomendações do IPEA e da Fundação João Pinheiro (Definição e metodologia de cálculo dos indicadores e índices de desenvolvimento humano e condições de vida. Rio de Janeiro: IPEA, 1999) para quan-tificar a participação da população no legado técnico-cultural da sociedade. Para isso apurou-se o tema Conhecimento por meio dos indicadores “anos de estudo do chefe de família” e “alfabetização da população acima de cinco anos de idade”.

O terceiro e último tema foi inspirado na investigação realizada pela Fundação SEADE e pelo Mapa de exclusão/inclu-são social. A partir do índice de Vulnerabilidade Juvenil, foi possível identificar peças importantes para a construção de um indicador mais amplo, que levasse em conta o risco da população mais jovem envolver-se em ações criminosas. Por isso foi criado o tema Risco juvenil que, por meio dos indicadores ‘participação de jovens de 0 a 19 anos na popu-lação’ e da taxa ‘homicídios por 100 mil habitantes’, busca captar a realidade caótica e, por vezes, desesperançada em que vivem os jovens mais carentes do país”. In POCHMANN, Marcio, AMORIN, Ricardo (orgs). Atlas da exclusão social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2003, p. 16-17.

De forma sintetizada, o Índice de Padrão de vida digno é composto por: i) índice de Pobreza, ii) índice de Emprego e iii) índice de Desigualdade. O Índice de Conhecimento pelo i) índice de Anos de estudo e ii) Índice de Alfabetização. E o Índice do Risco Juvenil pelo i) Índice de Concentração de Jovens e ii) Índice de violência. A síntese desses três componentes formam o Índice de Exclusão Social.

11 POCHMANN, op. cit.2003, p. 73.

Page 17: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

17

Diante do estudo que analisou uma série de variáveis para pensar a exclusão/inclusão social no Brasil, foi possível visualizar a multiplicidade de características que compõem a dinâmica da igualdade, tomando por base, essencialmente, a delimitação geográfica e a diversidade de contexto. O elemento ressaltado por Sen na reflexão sobre o estabelecimento sobre linha da pobreza parece não ter sido objeto de reflexão no estudo citado. Entretanto, trouxe elementos reflexivos importantes na base de formulação teórica do índice, pois se propôs a pensar aspectos práticos para a implementação de políticas sociais regionais/locais. Por esta leitura não se contempla a abordagem do IES mas, vale registrar que tal índice é capaz de subsidiar uma reflexão mais adequada sobre a linha da pobreza. 12 Ademais, também é interessante salientar que as características regionais apreendidas pelo IES são sensíveis às estatísticas educacionais, pois, como será possível ver no terceiro capítulo, as regiões norte e nordeste possuem os piores resultados estatísticos em termos educacionais.

Ademais, o Índice de Exclusão Social – IES, possui pontos em comum com o Índice de Desenvolvimento Humano – IDH, que foi uma das contribuições da teoria do desenvolvimento como liberdade. A metodologia de apuração do IDH é parcialmente utilizada no IES, entretanto, busca ser mais amplo por meio de um estudo maior do número de variáveis relevantes.13

Tendo em consideração que o fator de mensuração é importante à própria propagação de determinada concepção de desenvolvimento, a elaboração do IDH teve por objetivo oferecer um contraponto à utilização de um indicador mais restrito, a saber, o Produto Interno Bruto – PIB – per capita, que considera apenas a dimensão econômica do desenvolvimento. O IDH leva em consideração, além do PIB per capita, corrigido pelo poder de compra em cada país, a longevidade e a educação. A longevidade é mensurada pela expectativa de vida ao nascer. A educação, por sua vez, é calculada com base no índice do analfabetismo e pela taxa de matrícula em todos os níveis de ensino. As três dimensões possuem a mesma importância no índice, que possui variação de zero a um.14.12 Aspecto que não é o objeto do presente trabalho, mas tangencia o estudo. Nesse sentido, é válido ressaltar que a iden-

tificação geográfica das desigualdades importa na identificação de um conjunto de características específicas das lo-calidades que colaboram para a configuração desta determinada situação. A partir da identificação desse conjunto de características é possível pensar no desempenho relativo dos indivíduos, e assim, delimitando sua esfera de atuação, torna-se viável considerar as características interpessoais, e qual o nível de rendas em paralelo às suas capacidades, para que o nível basal seja alcançado. Essa explanação teórica, ainda que viável, é um exercício teórico simplificado ante a complexidade da realidade. Não obstante, pode ser um caminho percorrível.

13 POCHMANN, op. cit, 2003, p. 20. Ademais, o autor salienta que “índices que utilizam metodologia semelhante ao IDH não têm ambição de definir uma linha demarcatória entre incluídos e excluídos. Trata-se de um indicador com-parativo das condições sociais nas diferentes unidades estabelecidas pelo estudo. Tal fato, na verdade, veio favorecer a construção do atlas, posto que o objetivo aqui é apenas apresentar, por meio de mapas, a situação de disparidade entre as diferentes regiões do país. Com isso, aquelas regiões que necessitam de ações prioritárias para que a qualidade de vida da população seja elevada tornam-se evidentes”.

14 (...) Criado por Mahbub ul Haq com a colaboração do economista indiano Amartya Sen, ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 1998, o IDH pretende ser uma medida geral, sintética, do desenvolvimento humano. Não abrange todos os aspectos de desenvolvimento e não é uma representação da “felicidade” das pessoas, nem indica “o melhor lugar no mundo para se viver”.

“Devo reconhecer que não via no início muito mérito no IDH em si, embora tivesse tido o privilégio de ajudar a idealizá-lo. A princípio, demonstrei bastante ceticismo ao criador doRelatório de Desenvolvimento Humano, Mahbub ul Haq, sobre a tentativa de focalizar, em um índice bruto deste tipo - apenas um número -, a realidade complexa do desenvolvimento e da privação humanos. (...) Mas, após a primeira hesitação, Mahbub convenceu-se de que a hegemonia do PIB (índice demasiadamente utilizado e valorizado que ele queria su-plantar) não seria quebrada por nenhum conjunto de tabelas. As pessoas olhariam para elas com respeito, disse ele, mas quando chegasse a hora de utilizar uma medida sucinta de desenvolvimento, recorreriam ao pouco atraente PIB, pois apesar de bruto era conveniente. (...) Devo admitir que Mahbub entendeu isso muito bem. E estou muito contente por não termos conseguido desviá-lo de sua busca por uma medida crua. Mediante a utilização habilidosa do poder de atração do IDH, Mahbub conseguiu que os leitores se interessassem pela grande categoria de tabelas sistemáticas e pelas análises críticas detalhadas que fazem parte do Relatório de Desenvolvimento Humano.”

Page 18: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

18

O IDH tornou-se referência mundial. Foi publicado pela primeira vez em 1990 e recalculado sobre anos anteriores, a saber, a partir de 1975. Trata-se do índice base utilizado para a fixação dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas – ODM. Tem sido utilizado pelo governo e para fazer o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal – IDH-M, disponível em Atlas próprio.

Os ODM servem de parâmetro para pensar a educação no Brasil e há relatório anual de acompanhamento. Foi firmado no ano 2000 por 191 chefes de Estado. O documento estabeleceu metas para 2015 a partir da proposta de inserção dos direitos humanos sob a perspectiva do desenvolvimento. Para educação, foi estabelecida a meta de “garantir que até 2015 todas as crianças, meninos e meninas, concluam o nível primário de ensino”. Essa meta se subdivide em meta 3, designada pelas Nações Unidas, e meta 3A, formulada pelo Brasil. Meta 3: “garantir que, até 2015, as crianças de todos os países, de ambos os sexos, terminem um ciclo completo de ensino”. Meta 3A: “garantir que até 2015, todas as crianças, de todas as regiões do país, independentemente de cor/raça e sexo, concluam o ensino fundamental.”15 16 Como o presente estudo tem por objetivo abordar o direito à educação, a educação fundamental é um de seus componentes.

Retornando à base teórica de Sen, ao adentrar-se no aspecto da liberdade, percebe-se que esta pode ser concebida no aspecto instrumental e substantivo. A liberdade substantiva17 pode ser violada de algumas formas, o que por vezes ocorre pela pobreza econômica – escassez de recursos – que priva as pessoas de uma alimentação adequada, da obtenção de remédios ou de vestimentas apropriadas, bem como do acesso à água tratada e saneamento básico. Outras vezes, a carência de serviços públicos e assistência social é fator de privação de liberdade substantivas, outras a negação de liberdade políticas e civis em regimes autoritários e ante restrições impostas à liberdade de participação social, política e econômica da sociedade.

As liberdades são tanto os fins primordiais do desenvolvimento como os meios principais, portanto a razão avaliatória e de eficácia. Os meios dizem respeito às avaliações empíricas relevantes, que reforçam mutuamente as liberdades e que são condicionadas pelas oportunidades reais que viabilizam o desfrute das liberdades reais. Tais oportunidades são econômicas, liberdades políticas, poderes sociais e condições habilitadoras, como boa saúde, educação básica e incentivo e aperfeiçoamento de iniciativas. O exercício das liberdades das pessoas também vai influenciar as disposições institucionais que proporcionam as oportunidades, o que demonstra a reciprocidade de influências entre o caráter instrumental e constitutivo das liberdades, portanto, do investimento nas pessoas sob o papel de agente.

Dessa forma, existem alguns tipos de liberdades: i) liberdades políticas, liberdade e expressão e eleições livres, contribuem para a promoção da segurança econômica; ii) oportunidades sociais, serviços de saúde e educação, facilitam a participação econômica; iii) facilidades econômicas, oportunidades de participação no comércio e na produção. Elas podem auxiliar gerar a abundância individual e recursos públicos para os serviços sociais.

Amartya Sen, Prêmio Nobel da Economia em 1998, no prefácio do RDH de 1999. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/idh/>. Acesso em 27 jan 2011.

15 Objetivos de desenvolvimento do milênio. Relatório Nacional de acompanhamento. IPEA: Brasília, 2010. 16 Destaca-se que tal perspectiva de igualdade assemelha-se ao conceito de igualdade complexa, citada por Maria Del

Carmen Feijóo, ao tratar da insuficiência do modelo igualitário sarmientista na Argentina. FEIJOÓ, Maria del Car-men. Argentina: equidad social y eduación en los ’90. IIPE – UNESCO: Buenos Aires, 2002. p. 16

17 “As liberdades substantivas incluem capacidades elementares como, por exemplo ter condições de evitar privações como a fome, a subnutrição, a morbidez evitável e a morte prematura, bem como as liberdades associadas a saber ler e fazer cálculos aritméticos, ter participação política e liberdade de expressão etc”. In SEN, op cit,.2000, p. 55.

Page 19: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

19

O fornecimento de oportunidades sociais adequadas confere a possibilidade dos indivíduos construírem seus próprios destinos e colaborar para a construção de outros.

Como foi visto, a riqueza não é o fim que se busca, sendo um elemento que serve em proveito de outras coisas. O desejo por riquezas é um elemento justificável, pois elas, em regra, geram mais liberdade para levar o tipo de vida que se tem razão para valorizar, portanto é útil para a realização de liberdades substantivas. Entretanto, também é importante reconhecer que a natureza dessa relação é restrita. Assim, a concepção de desenvolvimento é eminentemente limitada quando se restringe à acumulação de riqueza e do crescimento do PIB e outras variáveis relacionadas à renda. O desenvolvimento pode se relacionar com a melhora da vida e da liberdade que se desfruta. Sob este argumento, Sen observa que a expansão das liberdades que se tem razão para valorizar não só torna a vida mais rica e desimpedida, como também viabiliza a formação do ser de forma mais completa, ao colocar em prática as volições pessoais, a interação e influência sobre o mundo em que vive.

Ademais, o enfoque da liberdade não importa na delimitação de um critério de desenvolvimento único e preciso que sirva de parâmetro de avaliação do desenvolvimento de diversas experiências. Isso se justifica pela heterogeneidade dos componentes distintos da liberdade e pela própria riqueza de perspectiva que o sistema de participação democrática pode gerar.

Existe uma discussão sobre o potencial da liberdade de participação e dissensão política ser ou não instrumento que leva ao desenvolvimento, que pode ser claramente percebida na discussão suscitada pela “tese de Lee”, que será analisada à frente. Mas, ainda, cabe destacar que esta é uma relação constitutiva do desenvolvimento e que é indiferente à riqueza de uma determinada pessoa, pois mesmo que o indivíduo seja rico, se for impedido de participar das decisões públicas ele está sendo privado de algo que possui motivos para valorizar.

Há, ainda, uma diferença entre a importância intrínseca da liberdade humana e da eficácia instrumental das diversas formas pelas quais a liberdade se expressa. O papel instrumental da liberdade está relacionado aos encadeamentos empíricos, portanto, ao fato de que diferentes tipos de liberdades são inter-relacionadas, pois um tipo pode contribuir para a promoção de outros tipos. Assim, pressupõe que existe uma relação entre os diferentes tipos de direitos, oportunidades e intitulamentos18.

As liberdades instrumentais podem ser classificadas em cinco tipos: 1) liberdades políticas. 2) facilidades econômicas, 3) oportunidades sociais, 4) garantias de transparência e 5) segurança protetora. As liberdades políticas dizem respeito à escolha do governante e dos princípios sobre os quais será conduzido o governo, à possibilidade de fiscalizar e criticar as

18 “A palavra entitlement, conforme usada por Sen neste contexto, requer o batismo de um novo termo em português; será traduzida como ‘intitulamento’, originado do mesmo verbo latino (intitulare) que o termo em inglês. Entitlement está sendo empregado por Amartya Sen com um significado muito específico, explicitado claramente em seu livro escrito em coautora com Jean Drèze, Hunger and public action (1989): ‘O entitlement de uma pessoa é representado pelo conjunto de pactos alternativos de bens que podem ser adquiridos mediante o uso dos vários canais legais da aqui-sição facultados a essa pessoa. Em uma economia de mercado com propriedade privada, o conjunto do entitlement de uma pessoa é determinado pelo pacote original de bens que ela possui (denominado de ‘dotação’) e pelos vários pacotes alternativos que ela pode adquiri, começando com cada dotação inicial, por meio de comércio e produção (denominado seu ‘entitlement de troca’). Uma pessoa passa fome quando seu entitlement não inclui, no conjunto [que ´formado pelos pacotes alternativos de bens que ela pode adquirir], nenhum pacote de bens que contenha uma quan-tidade adequada de alimento’. No contexto da análise da fome, o termo entitlement é usado distintivamente: ‘A noção de entitlement neste contexto não deve ser confundida com ideais normativas sobre quem poderia ‘moralmente ter o direito’ [be ‘morally entitled’] a quê. A referência diz respeito, isto sim, àquilo que a lei garante e apóia’.” SEN, op. cit. 2000, p. 57.

Page 20: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

20

autoridades, bem como de ter liberdade de expressão política, não ter censura na imprensa, de escolha de partidos políticos, etc. Dessa forma, tratam-se dos direitos políticos em seu sentido mais abrangente dentro da democracia.

As facilidades econômicas dizem respeito ao intitulamento econômico da população, desta utilizar os recursos econômicos da forma que melhor lhes aprouverem. Um fator relevante é a questão distributiva. As oportunidades sociais dizem respeito às disposições que a sociedade estabelece nas áreas de educação, saúde, por exemplo, e que possuem influência sobre a liberdade substantiva, tanto no aspecto da esfera privada do indivíduo, como em sua interação coletiva. Por sua vez, as garantias de transparência dizem respeito à confiança e sinceridade das relações e transações, e possuem importância na inibição da corrupção, irresponsabilidade financeira e transações ilícitas. Finalmente, a segurança protetora diz respeito à rede de segurança social, portanto a questões institucionais permanentes, como proteção ao desemprego, assistência social, distribuição de alimentos, etc.

Uma forma de visualizar a complementaridade entre as liberdades instrumentais é observando sua influência sobre o crescimento econômico, tanto no aumento de rendas privadas, como na possibilidade de o Estado financiar a seguridade social e ter uma intervenção governamental ativa, portanto, expansão dos serviços sociais. Outra forma de visualizar é perceber que a criação de oportunidades sociais pode contribuir para o desenvolvimento econômico, como foi o caso da educação básica no Japão. Esse é um exemplo em que a expansão do desenvolvimento humano precedeu o econômico e habilitou um melhor aproveitamento da expansão econômica. 19

Dada o caráter reflexo das múltiplas liberdades que colaboram umas com as outras e que assim vêm a colaborar para o desenvolvimento, surge necessidade do desenvolvimento e manutenção de uma pluralidade de instituições, que podem incorporar iniciativas privadas e públicas, sem perder de vista o papel central da liberdade. Nessa compreensão a relação entre Estado e sociedade resulta no fortalecimento das capacidades humanas.

A questão de pensar a liberdade no papel central da atuação estatal e privada de forma a configurar o desenvolvimento, envolve refletir sobre os requisitos para tal avaliação, portanto, quais os princípios e suas respectivas bases informacionais. Existem algumas perspectivas que podem ser adotadas para pensar as bases informacionais, uma delas seria o utilitarismo. O utilitarismo possui por base informacional o somatório das utilidades dos estados das coisas. Leva-se em consideração o bem-estar de cada pessoa, expresso no prazer ou felicidade, o que torna imprecisas análises interpessoais. A abordagem utilitarista pode ser vislumbrada em três diferentes componentes, quais sejam o consequencialismo, o welfarismo e o ranking pela soma.

O consequencialismo parte da premissa de tomada de decisão conforme o resultado a ser gerado. O welfarismo direciona a tomada de decisão conforme a utilidade nos respectivos Estados. O ranking pela soma pressupõe a soma das utilidades de diferentes pessoas, sem levar em consideração o caráter distributivo, portanto, o grau de desigualdade é

19 Destaca-se: “Talvez o impacto mais importante do tipo de êxito alcançado pelas economias do Leste Asiático,a começar pelo Japão, seja ter solapado totalmente esse preconceito tácito. Essas econômicas buscaram comparativa-mente mais cedo a expansão em massa da educação e, mais tarde, também dos serviços de saúde, e o fizeram, em muitos casos, antes de romper os grilhões da pobreza generalizada. E colheram o que semearam. De fato (...) a priori-dade dada ao desenvolvimento dos recursos humanos aplica-se particularmente à história inicial do desenvolvimento econômico japonês, principiando com a era Meiji (1868-1911), e esse enfoque não se intensificou com a afluência econômica à medida que o Japão alcançou mais riqueza e muito mais fartura”. In SEN, op. cit. 2000, p. 63.

Page 21: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

21

ignorado. A soma dos três componentes representa a fórmula utilitarista clássica que resume a julgar cada escolha a partir da soma total de utilidades geradas por meio dessa escolha. Nesse sentido, uma situação não é considerada justiça quando ocorre perda agregada de utilidade tomando por base o que poderia ter sido obtido.

A abordagem utilitarista possui limitação quanto ao aspecto distributivo, bem como por desconsiderar os direitos, as liberdades e outras vinculações à questão da felicidade, entretanto, traz colaborações teóricas pelo fato de atentar para o bem-estar e considerar os resultados de forma integral.

Uma alternativa para tratar da relação entre rendas e recursos versus bem-estar e liberdade é conferir enfoque sobre a realidade, sobre como as pessoas conseguem de fato viver. Portanto, sobre os pressupostos de configuração da liberdade para exercer o processo de escolha do modo de vida que valoriza. Tal abordagem pode ser justificada ante a relatividade da configuração da necessidade conforme a sociedade/localidade em que o indivíduo encontra-se inserido, de forma que o enfoque passa a estar posto sobre a liberdade que o bem gera e não sobre o bem em si mesmo, bem como as características pessoais relevantes que determinam a conversão de tais bens primários sobre a capacidade de a pessoa promover seus objetivos. Dessa forma, ter-se-ia em consideração além do valor do conjunto de opções oferecidas pelos bens, o valor real, assim o valor de uso da oportunidade. Ademais, Sen afirma:

A liberdade refletida no conjunto capacitário pode ser usada também de outros modos, já que o valor de um conjunto não tem necessariamente de ser identificado com o valor do melhor elemento – ou do elemento escolhido – desse conjunto. É possível atribuir importância a ter oportunidades que não são aproveitadas. Essa é uma direção natural a seguir se o processo pelo qual os resultados são gerados tem uma importância própria. De fato, “escolher” por si só pode ser considerado um funcionamento valioso, e obter um x quando não há alternativa pode, sensatamente, ser distinguido de escolher x quando existem algumas alternativas substanciais. Jejuar não é a mesma coisa que ser forçado a passar fome. Ter a opção de comer faz com que jejuar seja o que é: escolher não comer quando se poderia ter comido. 20

A partir da abordagem do conjunto capacitário é possível ponderar o grau de liberdade do indivíduo com base no leque, maior ou menor, de escolhas. Enfocando, portanto, a própria afirmação do indivíduo diante da pluralidade de opções, o que revela de pronto, qualquer escassez do meio em detrimento da liberdade individual.

A pobreza de renda e pobreza de capacidades, embora sejam duas perspectivas distintas, possuem relação. Renda é um meio importante para a obtenção de capacidades e o aumento de capacidades21 de uma pessoa tende a aumentar sua produtividade e renda. Dessa forma, a educação básica e saúde, apesar de relacionarem-se diretamente ao aumento de qualidade de vida, colaboram para o aumento de potencial de o indivíduo auferir renda e desvincular-se da pobreza de rendas. O que revela que o maior alcance da educação básica e

20 SEN, op. cit, 2000. p. 96.21 “Sen no define al desarrollo en base a la renta (...) sino por la capacidad que tienen las personas de transformar esa renta en aquello que

ellas consideran necesario para llevar la vida que quieren llevar. El desarrollo se basa en la libertad justamente porque esta permite a los individuos aumentar las capacidades que les permitan vivir de la forma en que quieran vivir, los cual es, según Sen, el objetivo de alcanzar un mayor desarrollo.” In: EDO, María. Amartya Sen y el desarrollo como libertad: la viabilidad de una alternativa a las estrategias de promoción del desarrollo. Argentina: Universidad Torcuato di Tella, 2002. p. 21.

Page 22: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

22

serviços de saúde aumenta a probabilidade dos potencialmente pobres22 tenham uma chance maior de superar a penúria.

A fim de corroborar tal perspectiva, Sen cita um trabalho que realizou em co-autoria com Jean Drèze sobre as reformas econômicas ocorridas na Índia. A base social adequada, consolidada sobre altos níveis de alfabetização e educação básica, serviços gerais de saúde satisfatórios, reformas agrárias realizadas, entre outros elementos, conferiu sustento para a difusão de oportunidades econômicas. A isto, denominou de “preparo social”.

A região de Kerala é citada como exemplo de onde a redução de pobreza de renda foi mais rápida do que em qualquer outro Estado da Índia, apesar de ter sido prejudicada por uma desconfiança quanto à expansão econômica, de forma a adotar políticas antimercado, o que ocasionou índices sofríveis de crescimento econômico. Tal fato ocorreu ante a possibilidade de redução de pobreza de alguns estados por meio do crescimento econômico elevado, como foi o caso de Punjab, enquanto em Kerala a redução ocorreu principalmente pela grande expansão da educação básica, serviços de saúde e distribuição equitativa de terras. Dessa forma, o impacto do crescimento econômico depende de como seus frutos são aproveitados

Apesar de existirem relações entre os dois tipos de pobreza apontados, parte-se da premissa de que a redução da pobreza não pode, em si, ser a motivação suprema de políticas de combate à pobreza, a fim de não limitar-se a tal perspectiva, pois isso seria correr o perigo de confundir os fins com os meios.

O que se confirma quando se volta os olhos ao exemplo de Kerala.23 Dessa forma, podemos perceber a importância do investimento em educação por parte do Estado. A educação, uma vez que seus benefícios ultrapassam o ganho individual, pode ser definida como bem semi-público24 por conter um componente de bem público, uma vez que uma expansão geral da educação e alfabetização em uma região pode favorecer a mudança social,25 bem com o progresso econômico que beneficia também outras pessoas. O papel do Estado é fundamental na expansão da educação básica de forma notável em todo o mundo. Um dos fatores que colabora para a expansão da estrutura educacional é o financiamento estatal.

O gasto público com educação é um fator importante para estruturar o sistema de ensino, tendo em vista que o aporte de recursos pode facilitar e incentivar o aumento do nível educacional da população. Ademais, o aspecto legislativo também colabora para tanto, de forma que viabiliza impor a necessidade de adquirir educação por esse meio. A questão do gasto e a questão legislativa, apesar de importantes, não são suficientes para pensar a

22 Para fins de esclarecimento, com a expressão potencialmente pobres, Sen refere-se a indivíduos que não possuem uma situação favorável à formação de capacidades e aquisição de riquezas, ou seja, acumulam potencialmente a po-breza de rendas e de capacidades.

23 A tese defendida por Sen é a de que o desenvolvimento deve ser visto como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam. Ela contrasta com visões mais restritas, como as que identificam desenvolvimento como crescimento do PIB, aumento de renda per capita, industrialização, avanço tecnológico ou modernização. Es-ses cinco elementos são obviamente importantíssimos como meios de expandir as liberdades. Mas as liberdades são essencialmente determinadas por saúde, educação e direitos civis. In: MENEZES, Roberto Goulart. RIBEIRO, Cláu-dio Oliveira. Políticas públicas pobreza e desigualdade no Brasil: apontamentos a partir do enfoque analítico de Am-artya Sen. p. 49. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index. php/fass/article/view/3937/2974 >. Acesso em 26maio. 2010.

24 “Dados os benefícios da educação básica compartilhados pela comunidade, que podem transcender os ganhos da pessoa que está recebendo a educação, a educação básica pode conter também um componente de bem público (e pode ser vista como um bem semi-público)”. In: SEN, op. cit, 2000. p. 15425 Até mesmo a redução da fecundidade e da mortalidade

Page 23: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

23

educação como um pilar de desenvolvimento do país, pois, como prega Sen, as liberdades são inter-relacionadas, e assim como contribuem para a expansão recíproca, podem possuir um aspecto negativo, dificultando a expansão de liberdades quando forem diagnosticadas pela atrofia. Em outras palavras, é importante ter sempre à vista o encadeamento empírico entre as liberdades, tendo em vista que o fator educacional, por exemplo, influencia e é influenciado por liberdades substantivas e procedimentais distintas.

Outra forma de expansão de liberdades que possui influência sobre as liberdades substantivas é liberdade procedimental relacionada à participação democrática. A democracia possui repercussão sobre o desenvolvimento. Nesse ponto, não obstante exista um embate apresentado em alguns países sobre a priorização da eliminação da pobreza e miséria versus a garantia da liberdade política e direitos civis, sob o argumento que os segundos seriam de pouco ou nenhuma utilidade para os pobres. Entretanto, tal perspectiva não é a mais adequada de visualizar a força das necessidades econômicas ou compreender a relevância das liberdades políticas.

O enfoque deve estar sobre as inter-relações das liberdades políticas e a compreensão e satisfação de necessidades econômicas, tratando-se de uma relação instrumental e constitutiva. A relação entre governo autoritário e supressão de direitos políticos e civis com o incentivo do desenvolvimento econômico, não possui base empírica comprobatória, ao revés, existe uma relação de cunho positivo. Ademais, tanto a liberdade política como a substantiva possuem importância própria, e não há justificativa para que os pobres abram mão dos direitos políticos e democráticos em prol das necessidades econômicas.

O aspecto substantivo da relação entre liberdade política e desenvolvimento econômico reside na colaboração oferecida para o levantamento e para a resolução de problemas sociais e políticos. A participação democrática, por sua vez, é vista sob o aspecto da potencialidade de uso, pois não é uma solução automática para todos os problemas, mas a utilização do potencial oferecido é que surtirá efeitos positivos para o tratamento de problemas. Portanto, a importância da participação política reside em três aspectos, que é sua importância intrínseca, sua contribuição instrumental, bem como seu papel construtivo na criação de valores e normas.

Outro aspecto, para além da implantação formal do regime do sistema político, é sua realização e penetração na cultura local, regional ou nacional. Nesse sentido, são notáveis as dificuldades de consolidação da democracia. Um exemplo é o estudo que trata da política das políticas públicas em países de baixa institucionalidade, portanto, de marcante fragilidade institucional. 26

Dessa forma, a criação de capacidades dialoga com o aprimoramento do desenvolvimento de fatores de ordem social, pois ambos tornam-se mais transparentes, o que, por consequência, aumenta a possibilidade de permeabilidade de um pelo outro, ocorrendo um fortalecimento mútuo. Trata-se da premissa que a troca é, por regra, enriquecedora, o que pressupõe não mais o nível de subordinação, mas de relacionamento. Tal raciocínio é aplicável ao considerar o posicionamento do lucro em relação à orientação da educação.

Adentrando em outro aspecto, existe uma contraposição entre a perspectiva da capacidade humana e do capital humano27. A perspectiva do capital humano atribui relevância

26 A respeito ver: TORRES, Pedro Medellín. La política de las políticas públicas: propuesta teórica y metodológica para el estúdio de las políticas públicas en países de frágil institucionalidad. Santiago de Chile: CEPAL, Jul./2004.

27 Destaca-se que a abordagem da teoria do capital humano feita aqui não é exaustiva, pois o objetivo restringe-se a mostrar seu núcleo de proposição teórica. Para uma abordagem mais apurada ver: IOSCHPE, Gustavo. A ignorância

Page 24: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

24

à educação na medida em que esta guarda relação com o aumento de produtividade humana que, por sua vez, colabora com o processo de expansão econômica.28 Dessa forma, apesar de o ser humano situar-se de forma central nessa teoria, o direcionamento oferecido reside na atuação dos seres humanos para aumentar as possibilidades de produção. Por sua vez, a perspectiva da capacidade humana confere destaque à liberdade substantiva, ou seja, no potencial de se levar a vida que as pessoas possuem razão para valorizar.

Tendo em consideração as duas teorias, nota-se que a primeira situa a valorização do humano, antes, em sua contribuição para o aumento da produção ou obtenção de um melhor preço no mercado e, depois, no enriquecimento direto da vida do humano, por exemplo, tornando uma pessoa bem nutrida e sadia. Portanto, a valorização das qualidades humanas na teoria do capital humano é utilizada a título de capital na produção.29 É certo que essa visão é mais restrita de capital humano, e insere-se na perspectiva mais abrangente da capacidade humana, ou seja, o fito de expansão de mercado e maior obtenção de renda é considerado na teoria da capacidade humana, de forma indireta e na medida em que colabora para a expansão de capacidades.

Portanto, no delineamento do desenvolvimento como liberdade, tem-se em conta o uso do conceito de capital humano como uma abordagem enriquecedora, que carece de suplementação, pois as pessoas são a finalidade de todo o processo, e não meramente meios de produção. Sen tece critica à teoria do capital humano da seguinte forma:

O reconhecimento do papel das qualidades humanas na promoção e sustentação do crescimento econômico – ainda que importantíssimo – nada nos diz sobre a razão de se buscar o crescimento econômico antes de tudo. Se, em vez disso, o enfoque for, em última análise, sobre a expansão da liberdade humana para levar o tipo de vida que as pessoas com razão valorizam, então o papel do crescimento econômico na expansão dessas oportunidades tem de estar integrado à concepção mais fundamental do processo de desenvolvimento como a expansão da capacidade humana para levar uma vida mais livre e mais digna de ser vivida.30

A perspectiva do capital humano seria apenas uma das abordagens pertinentes à perspectiva da capacidade humana, pois, uma compreensão mais integral das capacidades humanas orienta-se por três fundamentos: 1) sua relevância direta para o bem-estar e a liberdade das pessoas; 2) seu papel indireto, influenciando a mudança social; e 3) seu papel indireto, influenciando a produção econômica. Diante do exposto foram abordadas grande parte das características essenciais da teoria do desenvolvimento como liberdade, que se relacionam ao objeto do estudo.

Do que foi visto até aqui, é possível afirmar que a concepção de desenvolvimento como liberdade concebe o indivíduo em relação à sociedade, existindo uma complementaridade entre a condição de agente e as disposições sociais. Portanto, é um esforço de transcender o individualismo para atingir o holismo, em outros termos, para ser possível ter por horizonte de formulação teórica, o todo social.

custa um mundo: o valor da educação no desenvolvimento do Brasil. São Paulo: Francis, 2004. 28 “Na análise econômica contemporânea, a ênfase passou, em grande medida, de ver a acumulação de capital primor-

dialmente em termos físicos a vê-la como um processo no qual a qualidade produtiva dos seres humanos tem uma participação integral”. In SEN, op. cit, 2000, p. 331.

29 Segundo o autor: do modo como se emprega o capital físico.30 SEN, op. cit, 2000, p. 334.

Page 25: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

25

A compreensão basilar da igualdade e liberdade leva em consideração características próprias do agente, que não estão restritas somente à aferição de renda, mas estão relacionadas ao conjunto capacitário. Nesse sentido é feita uma crítica à tradicional linha da pobreza, que toma por base o nível de renda como marco divisório, pois tal agregação desconsidera o hiato de renda abaixo dessa linha, de forma que tanto em renda como em capacidades, são desconsideradas as disparidades da análise intergrupal. A adequação da renda não se relaciona, unicamente, à delimitação de uma linha externamente fixada, mas ao que seria adequado à pessoa, a fim de viabilizar que sejam gerados níveis específicos de capacidade.

A pluralidade de espaços também é um fator relevante para pensar a (des)igualdade, tendo em vista que atribuir o padrão de escolha valorativa de um local a outro pode não ser apropriado pela configuração distinta na igualdade basal. Outro fator que merece igual destaque é a pluralidade das variáveis focais, conforme variações interpessoais e intergrupais.

A compreensão da igualdade nos termos senianos ainda não pode ser adequadamente no contexto nacional. No entanto, já existe um esforço nesse sentido, que se traduz na construção do Índice de Exclusão Social - IES. A reflexão viabilizada pelos resultados do IES demonstram a importância do recorte regional para estabelecer parâmetros de igualdade, ou inclusão, como pretendido. Como salientado, a identificação geográfica das desigualdades importa na identificação de um conjunto de características específicas das localidades que colaboram para a configuração desta determinada situação. Este é um dos elementos da perspectiva de igualdade seniana.

Dentre os resultados trazidos pelo IES, o acesso à educação, bem como à alimentação, ao mercado de trabalho aparecem como fatores que colaboram para o quadro de exclusão social dos municípios das regiões Norte e Nordeste em relação às demais. Entretanto, nas regiões Sul e Sudeste, existe um nível considerável de desigualdade intra região.

Retornando à formulação teórica, foi possível ver que a teoria de desenvolvimento como liberdade parte da premissa de que o crescimento econômico tem de estar relacionado à melhoria de qualidade de vida e ao aumento das liberdades que são desfrutadas, sendo o papel do aumento das riquezas estritamente vinculado ao aumento de liberdades; de forma que estas não podem ser vistas apartadas daquelas no direcionamento31 de políticas públicas. Os exemplos claros são os das políticas públicas da saúde e da educação, visto que são fatores sociais que colaboram para aumentar o nível de qualidade de vida e a preparar a população para aproveitar32 o crescimento econômico.

Assim, a relação entre pobreza de rendas e pobreza de capacidades ocorre na medida em que “o aumento das capacidades humanas tende a andar junto com a expansão das produtividades e do poder de auferir renda”.33 Destaca-se que a redução de pobreza de capacidades está relacionada de forma indireta à redução da pobreza de renda e de forma direta ao aumento da qualidade de vida.

Conforme a concepção de que “a riqueza evidentemente não é o bem que estamos buscando, sendo ela meramente útil e em proveito de alguma outra coisa”,34 torna-31 Ou formulação.32 Nos termos da teoria seniana.33 SEN, op. cit., 2000. p. 114.34 Aristóteles em Ética a Nicômaco: “The Nicomachean ethics, ed. rev. trad. D. Ross, Oxford University Press, 1980,

livro I, seção 5, p. 7.”In: SEN, op. cit., p. 28.

Page 26: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

26

se nítida a distinção entre o crescimento econômico que tem por foco o aumento do produto per capita e o desenvolvimento econômico, ou desenvolvimento como liberdade, que visa a uma concentração mais fundamental na expansão da liberdade humana. Esta se baseia na formação de capacidades, em outras palavras, na possibilidade dos indivíduos alcançarem o que possuem razão para valorizar, sendo a liberdade de escolha, o ponto para valorar a aquisição do nível de renda.

Em relação à questão da formação de capital humano, existem críticas quanto a inserção do ser humano, meramente, como um meio de produção para o mercado de forma a deslocar o posicionamento do primeiro em relação ao segundo. Portanto, apesar de considerar de grande utilidade a perspectiva do capital humano, é considerada apenas como uma abordagem útil e não se estando restrito a ela. Dessa forma, está nítida a rejeição do desenvolvimento restrito ao crescimento econômico, bem como o papel central que a liberdade desempenha no desenvolvimento.

Antes de adentrar no diálogo com a tradição brasileira e na análise do direito à educação no período pós CF/88 no Brasil, serão tecidas, de forma sucinta, algumas questões relativas à preocupação com a liberdade na tradição liberal. É importante salientar que a teoria do desenvolvimento como liberdade parte de elementos típicos da tradição liberal para pensar o todo social em países como a Índia. Essa reorganização dos elementos da tradição liberal, portanto, de um cultura eminentemente individualista, é que permite que a teoria seniana seja proveitosa para pensar em uma cultura holista, como a indiana e brasileira. Dessa forma, no próximo ponto serão tecidos alguns elementos da tradição liberal e posteriormente, no segundo capítulo, serão tratadas certas características da tradição brasileira.

1.2 Preocupação com a liberdade na tradição liberal.

Pensar a liberdade como fator central do desenvolvimento, demanda uma reflexão complementar sobre pontos centrais que permeiam a discussão sobre liberdade na tradição liberal, vez que é essa a tradição que se toma como ponto de partida na formulação de desenvolvimento como liberdade. Contudo, não se pode trazer tal reflexão de forma apartada do contexto nacional.

É sob essa perspectiva que será realizada a análise do direito à educação no pós CF/88. Assim, por se estar pensando em um direito na seara nacional, é importante salientar aspectos próprios do contexto brasileiro. Portanto, nesse segundo momento do primeiro capítulo, será realizada uma reflexão sobre algumas preocupações com a liberdade na tradição liberal, para posteriormente adentrar-se a aspectos típicos da tradição nacional em diálogo com o direito à educação.

A fim de destacar a questão da liberdade na tradição liberal serão abordados elementos que colaboram para tal reflexão. A discussão centra-se inicialmente sobre a concepção positiva e negativa da liberdade de Isaiah Berlin e sobre como pensar a liberdade na concepção de justiça no liberalismo político de John Rawls, teorias que dialogam com a seniana. Assim, na abordagem de ambas as teorias, será feito um esforço dialético com a teoria do desenvolvimento como liberdade.

Tais características podem ou não se relacionar com a tradição brasileira, tendo em vista que a importação de conceitos por vezes demanda uma releitura buscando a conformidade com características próprias de determinada tradição e cultura, bem como

Page 27: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

27

pode salientar aspectos que precisam ser renovados em prol de uma maior efetividade de determinado direito, o que pode ser trazido para o caso da educação.

Nessa linha de pensamento, está-se buscando planificar as bases em que o direito à educação pode ser pensado, tanto em termos de política pública que colabora para o desenvolvimento como liberdade, como em termos de direito que precisa ser efetivado em um contexto específico que possui determinada tradição de liberdade. A compreensão da educação no Brasil não está limitada a ambos os aspectos, pois ainda existem outros olhares possíveis, a exemplo do olhar pedagógico, mas isso fugiria à opção realizada para a abordagem.

1.2.1 O aspecto negativo e positivo da liberdade.

Existem elementos da liberdade na tradição liberal que podem ser visualizados a partir da abordagem de dois conceitos, o de liberdade positiva e de liberdade negativa35. Para tratar tais concepções parte-se do que pode ser denominado como a questão central da política, a saber, a obediência e a coerção, bem como do pressuposto de que, quando se organiza a sociedade partindo do consenso sobre os fins, existe a transformação dos problemas políticos e morais, em sua totalidade, a questões tecnológicas, sendo possível substituir o governo das pessoas pela administração das coisas.

O sentido negativo da liberdade, área de livre atuação de um homem dada a não obstrução pelos outros, possui sentido político e econômico indissociáveis. A indignação dos liberais ocidentais repousa sobre a conquista da liberdade, pois a conquista desta por uma minoria ocorreu a partir da exploração ou, ao menos, evitando que uma imensa maioria a desfrutasse. Assim, repousa-se a indignação sobre a instituição dos direitos fundamentais sem a respectiva condição material de usufruto.

Nesse sentido, de pouco ou nada adianta a proteção oferecida somente sob a égide dos direitos fundamentais de primeira geração, pois seria zombar da condição humana oferecer direitos políticos e proteção contra a intervenção do Estado sem oferecer, ao mesmo tempo, condições materiais para tanto. Portanto, dialogando com a teoria seniana, vislumbra-se a violação da liberdade, na acepção ampla do termo, pela pobreza econômica que impede a efetiva participação da vida política,36 bem como pelo impedimento de participação na vida política que repercute nas condições materiais, como no exemplo da tese de Lee. Nesse sentido, reforça-se o pressuposto dos encadeamentos empíricos e inter-relacional entre as liberdades de cunho instrumental e substantivo.

Quanto aos regimes de governo, a princípio, não existe, incompatibilidade entre a liberdade individual e alguns tipos de autocracia ou ausência de autogoverno, pois a liberdade não se liga do ponto de vista lógico, com a democracia ou o autogoverno, apesar deste, em geral, poder oferecer garantias à preservação das liberdades civis melhor que outros regimes.37

35 A abordagem desses termos seguirá a linha desenvolvida por Isaiah Berlin em “Dois conceitos de liberdade”, Estu-dos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

36 A abordagem seniana de liberdade compreende a possibilidade de violação da liberdade de algumas formas, por vezes pela pobreza econômica, portanto, escassez de recursos, que priva as pessoas de uma alimentação adequada, da obtenção de remédios ou de vestimentas apropriadas, bem como do acesso à água tratada e saneamento básico. Out-ras vezes, a carência de serviços públicos e assistência social é fator de privação de liberdades substantivas, outras a negação de liberdades políticas e civis em regimes autoritários e ante a restrições impostas à liberdade de participação social, política e econômica da sociedade.

37 Neste ponto surge uma contradição falaciosa entre a teoria de SEN e de Berlin, conforme será abordado à frente.

Page 28: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

28

A lógica da liberdade positiva não reside na liberdade própria de fazer ou ser algo, mas na ideia de ser governado por alguém, portanto, de ser representado por alguém que compartilhe de mesmos interesses na esfera pública. Corresponde à aspiração do indivíduo ser seu próprio senhor, concebendo metas e políticas próprias e realizando-as, o que decorre da racionalidade como elemento diferencial do indivíduo. Entretanto, considerando que a liberdade pode ser medida pelo simples fato do indivíduo acreditar que o é, basta que se manipule a definição de homem e de liberdade, que se torna viável impor o julgo da escravidão na acepção negativa sob o manto da liberdade na acepção positiva. É o que ocorre no uso da coerção em prol do verdadeiro eu, ou seja, a partir da distinção entre o eu ideal e o eu empírico, sendo este movido por toda sorte de paixões e carente de disciplina.

Essa personificação monstruosa, que consiste em igualar o que X escolheria se fosse algo que não é, ou pelo menos que ainda não é, com o que X realmente procura e escolhe, está no âmago de todas as teorias políticas de auto-realização.38

A essencialidade da liberdade está na auto-afirmação do indivíduo de forma que ninguém pode compeli-lo a ser feliz à sua maneira, o que faz do paternalismo o maior despotismo imaginável, visto que trata os homens como se não fossem livres, e sim como um material humano modelável conforme o propósito livremente adotado pelo reformador benévolo. Toda forma de ingerência, controle de pensamento e condicionamento nega a liberdade do homem, visto que exclui do gozo individual a liberdade de escolha e, por conseguinte, os valores supremos dos homens.

Uma das características históricas da política educacional brasileira, como será visto no segundo capítulo, é o traço essencial do paternalismo. Isso ocorre tendo em vista que o paternalismo é um elemento cultural que conforma a esfera pública nacional e possui repercussão em diversos âmbitos das políticas sociais brasileiras.

A partir desta conclusão, surgem-se dois pontos de intersecção importantes com a abordagem seniana. O primeiro diz respeito à tese de Lee, ou, nos termos de Berlin, do paternalismo39. Em ambas formulações existe a rejeição da substituição da vontade do indivíduo, pois se considera a expressão da vontade individual como elemento importante por si próprio.

O segundo ponto diz respeito a um aprofundamento trazido por Sen, o que pode aparentar uma possível contradição entre ambas teorias, ou mesmo uma contradição falaciosa. Veja-se, ao pensar a questão do controle e da liberdade efetiva, em desenvolvimento como liberdade afirma-se que “na medida em que os instrumentos de controle são sistematicamente exercidos seguindo o que eu escolheria e precisamente por essa razão, minha liberdade efetiva não está comprometida, embora minha liberdade como controle possa estar limitada ou ausente”.40 Assim, admite-se que a análise da liberdade não está adstrita necessariamente aos instrumentos de controle, de forma que há a possibilidade de considerar a liberdade pensada também em situações em que se admite escolhas contrafactuais, ou seja, escolhas realizadas a partir do que as pessoas escolheriam.

Dessa forma, rejeita-se fazer uma vinculação necessária entre liberdade e controle em prol da análise das liberdades desfrutadas. O exemplo que é oferecido relaciona-38 BERLIN, op. cit, p. 239.39 Apesar de existirem diferenças próprias da abordagem, aqui a ênfase está posta sobre o ponto comum entre elas, qual

seja, a ausência de poder de escolha do indivíduo no plano político, por ausência de meios instrumentais para tanto.40 SEN, op. cit, 2008, p. 113.

Page 29: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

29

se com ao controle de epidemias, que por vezes não é passível de ser feito dentro do controle pessoal. Assim, o fato de eliminar coisas desamadas, utilizando de políticas públicas de forma a dar às pessoas o que elas supostamente queiram, é passível de ser bem aceito e importar no aumento de liberdade dessas mesmas pessoas. Não obstante os instrumentos de controle não estarem nas mãos da maioria das pessoas, não há o comprometimento da importância do acréscimo da liberdade efetiva que as pessoas possuem para viver do modo que elegeriam.

Do que foi possível ver até então, Berlin exclui a liberdade quando há o controle, ou substituição de escolhas, por mãos alheias, de forma que não é possível a delegação de tal escolha. Isso ocorre porque a discussão de Berlin não está essencialmente voltada para questões basais, da forma que Sen o está. Portanto, a discussão direciona-se para a liberdade política estritamente, sendo essa a diferença crucial, pois enquanto um autor debruça-se sobre os contornos políticos da liberdade, apesar de admitir sua face econômica, o outro autor compreende a liberdade na densidade material da discussão de base do desenvolvimento. Feitas tais distinções, conclui-se que são tratamentos distintos conferidos a esferas distintas, sem desconsiderar que uma é pressuposto da outra. 41

Para elucidar a questão e trazer a reflexão para a esfera compreensiva do direito, pode-se refletir sobre a concepção de gerações de direitos fundamentais. Essencialmente, não há a possibilidade de desfrutar da liberdade assegurada em uma geração de direitos fundamentais de forma apartada de outra geração. Não seria admissível pensar na ausência de controle pessoal sobre as liberdades referidas na primeira geração de direitos, entretanto na segunda e terceira geração seria admissível.

Nesse sentido, tão crucial é a distinção entre o horizonte a que se dirige a perspectiva de controle de cada autor, sua abrangência e restrição, que Sen ousa afirmar que “quando Isaiah Berlin fala da ‘liberdade, de um homem ou um povo, para escolher viver como desejam’, o ponto a que faz referência direta é a capacidade de escolher viver como se deseja e não o mecanismo de controle”. 42 Dessa forma, por relacionarem-se a objetos distintos acabam por dissociarem seus sentidos por completo. Portanto, por direcionarem-se a gerações distintas de direitos não chegam a ter ponto de intersecção.

Corroborando com a discussão, é salientar a distinção do eu em dois. Esta fica clara quando observadas as duas formas históricas principais que a aspiração de ser guiado pelo eu verdadeiro tem assumido. A primeira dessas formas é a abnegação em prol da independência, que se assemelha à retirada para a cidadela interior, em que o indivíduo decide matar desejos que não podem ser alcançados, de forma que mata em si tudo o que pode sujeitá-lo à escravidão e por meio dessa retirada estratégica, nada externo o pode abalar.43 Entretanto, a abnegação dificilmente será entendida como aumento de liberdade, pois tendo em vista a insegurança do mundo exterior, a libertação total somente seria conferida pela morte. A segunda é a auto-realização ou a auto-identificação plena com um princípio ou ideal específico para atingir o mesmo fim.

41 Ademais, considera-se que a ausência de escolhas contrafactuais torna inviável a administração de certas situações, como é o caso do controle de pragas. Em outras palavras, se todas as situações demandassem expressa anuência de todos, estar-se-ia instalando o caos na administração da coisa pública.

42 SEN, op. cit, 2008, p. 116.43 Todo isolacionismo, toda autarquia econômica, toda forma de autonomia tem em si algo dessa atitude. Elimino os

obstáculos de meu caminho abandonando o caminho; retiro-me para minha própria seita, minha própria economia planejada, meu próprio território deliberadamente isolado, onde não é preciso escutar as vozes do exterior e onde as forças externas não produzem nenhum efeito. Essa é uma forma da busca pela segurança; mas tem sido igualmente chamada de busca pela liberdade ou independência pessoal ou nacional. BERLIN, op. cit., p. 251.

Page 30: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

30

Outro método para alcançar a liberdade seria o uso da razão crítica, pois esta oferece a compreensão do necessário e do contingente, de forma que o conhecimento traz liberdade ao preservar o indivíduo da frustração de tentar o impossível, e não trazendo mais liberdades de escolha. Dessa forma, a concepção do racionalismo não é a ausência de obstáculos, mas a noção de direção e controle próprios. Este ponto pode se assemelhar à perspectiva de capacidade de Sen, pois seria o desenvolvimento de uma habilidade do indivíduo e à possibilidade de realização de escolhas a partir do a pessoa que tem razão para valorizar. Para os homens se tornarem racionais é necessário obedecer ao homem racional e submeterem-se à educação. A coerção seria justificada tendo em vista a compreensão futura que traria. Entretanto, tal argumento pode ser utilizado por ditadores, tiranos em busca de uma justificação moral, ou mesmo ascética, para sua conduta.

Quando o enfoque repousa sobre a sociabilidade do indivíduo, surge a dúvida sobre como evitar a colisão das vontades individuais e, por conseguinte onde estaria a fronteira entre direitos idênticos. Tem-se a alternativa de conferir a solução à racionalidade, pois se oferecida a solução racional e verdadeira, dado que não existe incompatibilidade entre duas verdades, não haveria colisão e por conseguinte a coerção passaria a ser desnecessária44. O desejo de dominar já não estaria presente, pois ele é irracional. Assim, a coerção em prol do todo harmonioso seria justificável e deixaria de se configurar como coerção, pois quando se força os eus empíricos a se adaptar aos padrões corretos não resta configurada a tirania, tendo vista que se trata de libertação.

Outra questão que se relaciona à liberdade é a busca por status decorrente da sociabilidade do indivíduo, ante o desejo de reconhecimento como fonte independente de atividade humana e não submissão a alguma fonte de poder. Nesse sentido, o despotismo do paternalismo seria um insulto à autodeterminação pessoal e do reconhecimento alheio. O desejo por status seria uma forma híbrida de liberdade, negativa e positiva, pois se relaciona tanto à ausência de interferência de outros governos, à área de autoridade, quanto à identificação do governo como algo próprio, que se relaciona ao indivíduo ou que o indivíduo se relaciona a. Dessa forma, as lutas pela liberdade são comumente direcionadas em prol do direito de ser governado por si mesmo ou por seus representantes, e as revoluções, não obstante reivindiquem ser o partido da verdadeira liberdade, tratam-na como um meio de conquista de poder e autoridade por determinado grupo, sem levar em consideração a variedade das necessidades humanas básicas, tampouco as escolhas viáveis para trilhar um caminho que conduza a seu oposto.

A perspectiva do desenvolvimento como liberdade olharia para o desejo por status, bem como da sociabilidade sob o enfoque do todo social. Em outras palavras, a partir da contribuição que o indivíduo pode dar ao meio quando ele consegue realizar capacidades. Assim, sua interação social não estaria adstrita a desejos egoístas, mas à condição de agente.

Conforme a concepção dos pais do liberalismo, Stuart Mill e Benjamin Constant, a causa real da opressão reside na acumulação do próprio poder, independentemente do grupo que o possui, de forma que a autoridade ilimitada atribuída a qualquer pessoa possui o fardo de viabilizar a destruição de alguém45. Demanda-se o máximo grau de não-interferência compatível com as demandas mínimas da vida social.

44 Uma outra opção diz respeito à limitação da liberdade por outros fatores, como, por exemplo, pela justiça, conforme a abordagem de John Rawls, que será vista à frente.

45 A concepção de indivíduos a partir de sua condição de agente, a partir de um processo de expansão de liberdades, pode ser considerada uma resposta à preocupação dos pais do liberalismo. Pois entende-se está-se diante de uma multipolarização do poder quando se arquiteta uma plano de distribuição e expansão de liberdades.

Page 31: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

31

Assim, dois princípios seriam necessários. O primeiro refere-se à impossibilidade de se ter um poder absoluto, pois o caráter de absoluto repousaria somente sobre os direitos, a fim de ser possível a recusa a ter um comportamento desumano. Pelo segundo, pleiteia-se a existência de fronteiras traçadas de modo não-artificial que tornam os homens invioláveis. Tais fronteiras relacionam-se a regras aceitas por um longo lapso temporal, de forma que já incorporaram a cultura da normalidade humana, servindo de parâmetro para avaliar a sanidade de um comportamento humano. Tais regras estariam relacionadas ao reconhecimento da validade moral sem depender de leis, pensadas como absolutas em relação à imposição da vontade alheia.

Em relação à crença de que existe uma solução final, uma compatibilidade entre todos os valores positivos, repousa uma crítica, pois esta, mais do que qualquer outra, por várias vezes é responsável pela morte de indivíduos nos altares dos grandes ideais históricos. O monismo e a crença em um único critério trazem certa satisfação ao intelecto e às emoções humanas, mas não existe uma garantia de harmonia no mundo em que nos encontramos, e sim o confronto de fins supremos e reivindicações absolutas, e que a realização de uns envolve o sacrifício de outros. Logo, uma característica inerente à condição humana é a necessidade de escolher entre reivindicações absolutas. Dessa forma, a liberdade de escolha passa a ser um fim em si mesmo e não um estado transitório de parcial entendimento.

A liberdade, por sua vez, não é o único critério dominante da ação social, mesmo nas sociedades mais liberais, pois recebe freios conforme valores morais, bem como de reivindicações de outros valores, como a igualdade, a justiça, a felicidade, a segurança ou a ordem pública. Dessa forma, o pluralismo com dose de liberdade na acepção negativa vem a ser mais verdadeiro e humano do que uma grande estrutura disciplinada e autoritária baseada no autodomínio positivo, pois reconhece a multiplicidade das metas humanas e não limita os homens em nome de algum ideal. O desejo de validade eterna de valores ou céu objetivo pode não passar de um desejo infantil, ademais a distinção de um homem civilizado do bárbaro está em admitir a relatividade de nossas convicções e ainda sim defendê-las.

Existe congruência entre ambas as perspectivas expostas até então. Conceber a liberdade do agente a partir dos fins que escolhe, portanto que possui razão para escolher coaduna-se com a liberdade na acepção negativa numa perspectiva pluralista, portanto, que admite a escolha de diversos fins por parte do agente. Em mesmo sentido, considerando que as duas teorias tratadas consideram as questões materiais de usufruto da liberdade como indispensáveis, cada um com sua perspectiva ênfase, é possível visualizar a complementaridade entre as duas.

Depois de levantados os elementos que configuram tal delineamento de liberdade, pretende-se agregar outra abordagem a fim de inserir novos elementos para elucidar, sob enfoque distinto, as preocupações com a liberdade abordada sob a ótica da tradição liberal. A liberdade será pensada, então, sobre as bases da concepção de justiça como equidade, em que são utilizados critérios para se pensar a aceitabilidade das características das posições que o indivíduo pode ocupar na sociedade. O esforço para a compreensão da liberdade nesse ponto será um pouco mais árduo, visto que há uma rotação do ponto de vista. Em outras palavras, enquanto neste ponto a liberdade foi pensada com foco na liberdade negativa e positiva, a reflexão seguinte sobre a liberdade ocorre a partir do fator ponderador da justiça.

Page 32: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

32

1.2.2 O sujeito livre na concepção de justiça do liberalismo político.

Pensar a liberdade a partir da justiça como equidade confere a possibilidade de realizar um salto direto para a reflexão do direito à educação. De forma simples é cabível perguntar se seriam congruentes com tal teoria, níveis de educação que tocam o analfabetismo e impedem níveis mínimos de participação democrática. Portanto, se seriam aceitáveis níveis de educação que eliminam a capacidade de desfrutar liberdades substantivas e procedimentais. No entanto, apesar de ser direta tal relação, para fins do trabalho, seria adiantar em demasiado a reflexão.

Nesse momento, cabe trazer à discussão a dinâmica do liberalismo político de John Rawls e os pressupostos da tradição com a qual dialoga, visto que as diferenças que possui em relação à tradição brasileira é útil à reflexão da realidade nacional, sob o enfoque do desenvolvimento como liberdade. Ademais, não se pretende conferir aspectos valorativos às diferentes tradições, apenas salientar suas características e reflexos para pensar a política educacional nacional.

John Rawls trata de questões essenciais para pensar a liberdade do sujeito. Tanto em Uma teoria da justiça quanto em Liberalismo político46, o campo de liberdade do sujeito será descrito a partir da concepção de justiça, fundamento da estrutura básica da sociedade.47 A liberdade das pessoas reside na possibilidade de pleitear, de forma válida, pretensões em nome de suas próprias metas fundamentais, como o de desenvolver faculdades morais, quando da definição dos princípios de justiça.

A liberdade que se reconhece nas pessoas, é o que as fazem, também, responsáveis pelos fins que propõem. Assegurado um aparato institucional justo e os meios imprescindíveis para realizar uma concepção de bem, os cidadãos ajustam e restringem suas metas ao que razoavelmente podem esperar no âmbito em que se desenvolvem.48

Existe uma busca pela coerência da atuação do indivíduo, apesar da mesma poder ser inatingível, permanecendo a possibilidade de revisão de pensamento quanto à concepção de bem.49 Assim, postula-se a liberdade individual para o indivíduo orientar-se conforme a concepção que considere mais adequada.

A concepção de sujeito descrita em Uma teoria da justiça vai ser mantida na abordagem posterior da justiça em Liberalismo político, sendo que a mudança essencial de uma obra a outra reside na distinção entre filosofia moral e filosofia política, uma resposta à ausência de consenso entre os cidadãos de uma democracia sobre uma doutrina. Portanto, nada além da própria aceitação do pluralismo de ideias em uma mesma sociedade. O liberalismo pressupõe, em termos de propósitos políticos, uma pluralidade de doutrinas compreensivas,

46 Obra posterior à Teoria da Justiça, que teve a intenção de redirecionar alguns pontos.47 Como bem salientou Berlin, a justiça é um dos elementos que limita a liberdade, ou, em outros termos, delineia a

liberdade.48 MUNNÉ, Guillermo J. Principios de Justiça y derechos sociales de prestación. Tese de doutorado. Orientador: Eu-

sebio Fernández Garcia. Madrid: Universidade Calos III. p. 7. Versão original: “La libertad que se reconoce en las personas, es lo que las hace, también, responsables por los fines que se proponen. Asegurado un trasfondo institucio-nal justo y los medios imprescindibles para realizar una concepción del bien, los ciudadanos ajustan y restringen sus metas a lo que razonablemente pueden esperar en el ámbito en que se desenvuelven”.

49 MUNNÉ, Guillermo J. op. cit. p. 7.

Page 33: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

33

não obstante incompatíveis entre si. Trata-se do resultado natural do exercício da razão humana sob a égide de instituições livres de um regime constitucional democrático.50

A resposta conferida por Rawls à justiça como imparcialidade, sob a visão do pluralismo de doutrinas compreensivas razoáveis, responde à preocupação de Berlin quanto à liberdade do indivíduo de não ser coagido a perseguir fins alheios, dada sua plena faculdade de conceber os fins que almeja alcançar. Rawls, em o Liberalismo político, não postula a concepção de um único fim para todos os cidadãos, a justiça passa a estar baseada no consenso sobreposto. Assim, a partir da ideia de razão pública, a justiça está fundamentada por todas as doutrinas abrangentes sem estar restrita a nenhum delas, o que é viabilizado por uma base pública de justificação razoável sobre as questões políticas fundamentais.51

Dessa forma, Rawls, como Berlin, entende que a coerção seria inafastável se concebida uma única doutrina para guiar uma sociedade, pois o exercício da liberdade enseja sua diferenciação interna. Portanto o exercício da liberdade restaria prejudicado. Entretanto, em Rawls permanece o fato da opressão, tendo em vista que existe um núcleo central substantivo a que se refere a multiplicidade de doutrinas.

Se traçado um paralelo com a teoria do desenvolvimento como liberdade, seria possível identificar esse exercício, de aceitar pluralidades de fins diversos a partir de escolhas pessoais. No entanto, o balizamento essencial da pluralidade de doutrinas é importante para a ponderação das necessidades basais dos indivíduos. Nessa linha de pensamento, a distinção fundamental entre as doutrinas são reveladas, pois o horizonte do desenvolvimento como liberdade são os pressupostos materiais da liberdade individual, enquanto no liberalismo político é delineamento do espaço no convívio político das pessoas, o que, de forma reflexa, tangencia aspectos materiais de liberdade individual, dado o encadeamento lógico entre as liberdades substantivas e instrumentais.

Outros elementos importantes para pensar o indivíduo residem na racionalidade e na razoabilidade, esta compreendida como um elemento de cooperação social, de reciprocidade social, está vinculada à capacidade de ter um sentimento de justiça, fazendo jus aos termos equitativo de cooperação, enquanto aquela se relaciona à aspiração das pessoas realizarem suas faculdades morais e garantir a promoção da concepção pessoal do bem.52

A racionalidade só é exigida do sujeito quando necessário e não o tempo todo, portanto, trata-se de uma condição necessária, mas não suficiente, tendo em vista que não é instrumentalizada para lidar com aspectos culturais e societários. A racionalidade encontra-se submetida ao critério do diálogo. Trata-se de um aspecto metodológico não presente nas suposições teóricas, mas sim na estrutura argumentativa, de forma que os juízos relevantes vão ser somente o seu e o do seu leitor. A base do diálogo vai ser a ideia de razoabilidade, um teste para a descrição da posição original, de forma que o critério auto-crítico referenciado do liberalismo político situa-se no diálogo entre as formulações da situação inicial e os julgamentos intuitivos do leitor.53

A posição original do indivíduo é uma situação inicial de contrato e possui por característica principal o véu da ignorância, o que restringe o acesso às informações básicas da sociedade, de sua estrutura basilar, sem saber características inerentes a determinado 50 Rawls op. cit., p. 11-12.51 Ibidem. p. 14.52 MUNNÉ, Guillermo J. op. cit. p. 8.53 ABREU, Luiz Eduardo de Lacerda. Qual o sentido de Rawls para nós?. Revista de Informação Legislativa, v. 43, p.

149-173, 2006. p. 152-3.

Page 34: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

34

posicionamento dentro da sociedade. Este é o ponto de partida que habilita o indivíduo a decidir os princípios da estrutura normativa da sociedade, a fim de garantir seus interesses da melhor maneira possível. 54

Dessa forma, ao indivíduo corresponde às implicações substantivas da justiça procedimental a fim de garantir a todos a possibilidade de escolha quanto aos princípios da justiça livres de influências que poderiam “distorcer a igualdade fundamental entre todos”. Portanto, a posição original e do véu da ignorância etc. são instrumentos que permitem, pelo menos no plano do pensamento, a emergência da igualdade substantiva dos cidadãos como o parâmetro de construção do político, considerando que os próprios argumentos sobre o que seria potencialmente justo em uma sociedade acaba por revelar, em alguma medida, as próprias injustiças dela.55

É interesse anotar, inicialmente, que Rawls compreende a sociedade, como uma sociedade bem ordenada, que está sob a regência do modelo democrático e se coloca em conformidade com os princípios da justiça. A sociedade bem ordenada está relacionada a uma cultura pública em que os cidadãos compreendem de forma adequada o que significa um sistema equitativo de cooperação, partindo do pressuposto que as pessoas são livres e iguais. A sociedade, nesta cultura pública, é, de fato, regulada por uma concepção de justiça que é partilhada publicamente. A concepção pública de justiça política vai nortear a definição de elementos constitucionais essenciais, resultando nos primeiros princípios de justiça. Tais princípios, por sua vez, vai influenciar sobre o estabelecimento de bens primários, consistentes em direitos fundamentais, segundo uma interpretação da linguagem constitucional nacional, que oportunizem o gozo da liberdade política.

A concepção política de justiça de Rawls resolve-se na igualdade de oportunidades. Dessa forma, concentra-se sobre a distribuição de bens primários, que compreende direitos, liberdades e oportunidades, renda e riqueza, bem como as bases sociais da auto-estima. Essa abordagem distingue-se da seniana no sentido de que a abordagem da justiça com base na formação de liberdades, a avaliação das pretensões individuais não se baseiam na posse das pessoas de recursos ou bens primários, mas nas liberdades que as pessoas possuem para escolher a vida que possui razão para valorizar.

A crítica sobre a igualdade baseada na igualdade de oportunidades a partir da distribuição igual de bens primários reside nas variações interpessoais. Isso implica dizer que uma pessoa que detém uma maior quantidade de bens primários, por possuir determinada deficiência pode ter menos capacidade, que uma pessoa que tem posse de uma quantidade menor de bens primários, mas é livre de mesma deficiência.56 Assim, como abordado anteriormente, o exame da igualdade demanda abordagem mais amiúde sobre a capacidade de conversão de bens a nível basal, de forma que a pessoa seja livre de privações de diversas origens.

Assim, Rawls propõe pensar a sociedade em bases de transparência das posições que cada um possivelmente ocuparia na sociedade, trazendo à tona, de forma paulatina, o caráter de informação da organização social como um todo. A isso, acresce o aspecto da incerteza da posição que cada um ocupará. A combinação de tais elementos foi realizada no intuito de construir solidariedade entre os membros de determinada sociedade.

54 ABREU, op. cit., p. 151.55 Ibidem. p. 155-160.56 SEN, op. cit., 2008, p. 136.

Page 35: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

35

Dessa forma, buscou-se trazer algumas reflexões sobre a liberdade pensada na tradição liberal, enfocando um cerne comum de atenção sob propostas diferentes de abordagem. Portanto, uma vez traçados os principais pontos da reflexão da liberdade na tradição liberal, urge aprofundar em mais um aspecto e mais que breve adentrar no objeto deste trabalho, a efetividade do direito à educação no pós CF/88.

1.3 Considerações.

As preocupações comuns explícitas nas três abordagens residem na indignação dos liberais ocidentais sobre a conquista da liberdade feita a partir da exploração ou obstaculização que uma imensa maioria a desfrutasse. Assim, está-se diante de perspectivas que buscam a eliminação das privações de liberdade, em um cenário de opulência mundial paralelamente à predominância da democracia nos regimes políticos e à facilidade de circulação de informação atual.

Ao que tange a possibilidade do indivíduo escolher o próprio fim, em outros termos, valorizar o que possui razão para valorizar e ter sua forma de pensar como colaboração no meio social, este ponto representa um ponto em comum nas três elaborações teóricas abordadas. É o que se observa da refutação da tese de Lee e do paternalismo, bem como da pregação em prol da pluralidade de doutrinas abrangentes cujo ponto de equilíbrio é o consenso sobreposto, grande salto do liberalismo político em relação à teoria da justiça.

A questão educacional possui um enfoque diferenciado nas três teorias. Em Rawls, a educação não emerge como questão relevante, mas também não é incongruente com o próprio raciocínio da teoria que é tendente à igualdade de oportunidades, o que faz do fator educacional um aspecto inerente à própria concepção de justiça. Em Berlin, a educação aparece em dois momentos, de forma implícita e explícita respectivamente. O direito a educação aparece inicialmente como decorrência da garantia de gozo dos direitos fundamentais de primeira geração, visto que indispensáveis para tanto. Em Sen, a educação aparece como fator que colabora para o preparo social e é compreendida como bem semi-público, indispensável à formação de liberdades e, assim, ao desenvolvimento como liberdade. Também se pode considerar que aparece de forma indireta no que toca à participação política, sendo uma face e um pressuposto desta.

Em um sentido mais compreensivo, tanto a teoria da justiça como a concepção da liberdade em seus aspectos positivos e negativos, focalizam, respectivamente, a liberdade em seu aspecto material a partir do elemento discursivo da justiça e do elemento da obediência e da coerção, em um plano político formal da ordenação social. O desenvolvimento como liberdade, por sua vez, compreende tais aspectos relacionados a dois aspectos de nível eminentemente material, configurados no desenvolvimento do país e no nível basal individual.

Portanto, em desenvolvimento como liberdade existe a apropriação de elementos discursivos próprios da liberdade na tradição liberal com ênfase não somente em aspectos ponderadores da liberdade em nível instrumental e formal, mas com a penetração do fator econômico por grande parte das reivindicações de liberdade.

Uma questão própria da abordagem do desenvolvimento é a possibilidade de sua mensuração por índices. Ao que foi visto até então, percebe-se que existe uma forma muito simples de mensurar a perspectiva estrita do crescimento econômico em oposição à

Page 36: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

36

complexidade de mensurar o desenvolvimento como liberdade sem negligenciar a riqueza da abordagem.

Para mensurar a perspectiva estrita do crescimento econômico, o PIB revela-se suficiente, enquanto para medir o desenvolvimento como liberdade, existe o IDH, que fala ao abordar a complexidade da teoria que o sustenta. O IES pode, por sua vez, ser reconhecido como índice complementar que se alinha às especificidades da teoria mencionada, inclusive partilhando parcialmente da metodologia do IDH. E, apesar desse esforço expressivo na construção de índices adequados ainda existe a dificuldade de chegar-se à mensuração própria do nível basal, em substituição à mensuração pela linha da pobreza, uma das preocupações elementares da teoria seniana.

No entanto, como salientado, o IES permite identificar níveis de exclusão/inclusão a partir de uma maior gama de fatores mensuráveis, internamente e externamente a determinada região, resultando em um conjunto de características locais/regionais. A partir da identificação desse conjunto de características é possível pensar no desempenho relativo dos indivíduos, e assim, delimitando sua esfera de atuação, torna-se viável considerar as características interpessoais, e qual o nível de rendas em paralelo às capacidades, para que o nível basal seja alcançado. Essa explanação teórica, ainda que viável, é um exercício teórico simplificado ante a complexidade da realidade. Não obstante, pode ser um caminho percorrível57.

Diante do exposto, uma vez traçados os principais pontos da reflexão da liberdade na tradição liberal, bem como três de seus enfoques, que visam apresentar possíveis soluções para superar determinados obstáculos, urge, em um segundo momento, compreender alguns aspectos da tradição brasileira e posteriormente, no terceiro capítulo, abordar o objeto deste trabalho, a efetividade do direito à educação no Brasil após a CF/88.

57 Este não é o objeto do trabalho, portanto não se irá avançar sobre ele.

Page 37: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

37

CAPÍTULO 2

ASPECTOS RELACIONADOS À ESFERA PÚBLICA E AO DIREITO À

EDUCAÇÃO NO BRASIL.

A teoria do desenvolvimento como liberdade analisada no capítulo anterior dialoga tanto com a liberdade concebida na tradição liberal quanto com a concepção de liberdade na tradição brasileira. Em outras palavras, busca reorganizar os elementos conformadores da tradição liberal para adequá-los a uma tradição de cunho holista, e em países que possuem problemas acentuados como a desigualdade, a pobreza de rendas, a estratificação social, paternalismo, etc. Portanto, trata-se de um enfoque sobre o possível manejo de elementos de uma realidade social a fim de pensar o desenvolvimento do país a partir da formação de liberdades.

Assim, neste segundo capítulo do estudo, pretende-se trazer a discussão para a questão da liberdade no Brasil. Inicialmente, será abordada a liberdade na tradição brasileira em diálogo com a tradição em que Rawls situa-se. Mas isso, somente no que tange um aspecto da concepção de igualdade. O intuito do diálogo com Rawls é trazer à luz a distinção das tradições, para ter-se um delineamento de alguns aspectos importantes da tradição brasileira.

Em seguida, será feita uma breve situação de questões da esfera pública brasileira, a fim de verificar como as políticas brasileiras de educação são delineadas pela ideia da liberdade. Será realizado um esforço para compreender questões da liberdade na tradição brasileira em diálogo com as políticas públicas, em específico, as políticas educacionais.

O período que segue à promulgação da Constituição Federal de 1988 – CF/88 – deve ser analisado a partir do que contexto em que emergiu. Serão apresentadas algumas características das políticas sociais que antecederam a vinda da CF/88, para posteriormente adentrar-se aos aspectos dogmáticos do direito à educação.

A pretensão deste segundo capítulo do trabalho é compreender certos aspectos das políticas públicas sociais, em específico, educacional, em relação com o delineamento da liberdade feito no capítulo anterior para verificar como elas se expressam e se chegam a expressar-se em termos de análise dos dados da situação concreta. Em outros termos, por meio da construção teórica do segundo e, posteriormente, do terceiro capítulo, pretende-se saber o que irá sobressair-se a partir do confronto teórico com as informações depreendidas dos índices estatísticos disponíveis pelos órgãos oficiais, em termos educacionais.

2.1 Tradição brasileira e políticas sociais.

A tradição brasileira será analisada a partir de duas manifestações peculiares. A primeira reside na igualdade. Alguns aspectos históricos que tangenciam a concepção brasileira de igualdade dizem respeito ao aquinhoamento desigual devido às desigualdades interpessoais e a adstrição das regras de cooperação social à subordinação individual ao grupo. A cooperação social foi formada a partir da dependência do indivíduo em relação ao grupo, existindo a subordinação do primeiro em relação ao segundo. Em outras palavras, dois pontos serão analisados para ser possível pensar a igualdade no Brasil, que diz respeito ao tipo de individualismo e ao fundamento das regras de cooperação social.

Page 38: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

38

A segunda manifestação peculiar diz respeito à configuração da esfera pública. Nesse sentido, um aspecto que passou a ser reproduzido na cultura brasileira e que teve origem na estrutura da sociedade colonial é a indefinição entre espaço público e privado que marca o relacionamento entre Estado e sociedade. Diante do exposto, passa-se a analisar ambos os aspectos.

2.1.1 A igualdade.

A igualdade na tradição brasileira possui características próprias, típicas de uma sociedade holista. Não obstante, é possível estabelecer um diálogo com a tradição que a teoria de John Rawls pressupõe, com um objetivo muito específico, qual seja, salientar suas diferenças. Conforme observado no capítulo anterior, as regras de cooperação social em Rawls são organizadas por meio de um equilíbrio reflexivo, em que existe um consenso sobreposto, de forma que os indivíduos não são submetidos a fins alheios, possuindo a faculdade de conceber os fins que desejam alcançar.

É importante destacar dois aspectos que vão ocasionar estranheza dessa doutrina quando confrontado com caso brasileiro, qual seja, o tipo de individualismo que se encontra na justiça como equidade, bem como o fundamento das regras de cooperação social. Em relação às regras de cooperação social no Brasil, esta emerge não de indivíduos caracterizados a partir de atributos como a igualdade, liberdade e racionalidade, como seria o caso da tradição de Rawls, mas a partir de participação em um determinado grupo.

A questão da cooperação por meio do pertencimento a um grupo, como família e outros grupos, como corporações, instituição de trabalho, posição social, vizinhança, etc, de forma que tal cooperação passa a ter a linguagem das relações pessoais, portanto, ocorre a partir da caracterização do indivíduo como amigo, vez que este também é um aliado.

Nessa perspectiva, é possível afirmar que a cooperação social está adstrita à subordinação individual ao grupo. A tradição que segue Rawls pode ser compreendida sob um prisma reverso ao do brasileiro, tendo em vista que, na primeira, inexiste contradição entre os interesses do indivíduo e o bem público, e que o conflito entre ambos vem a favorecer o estabelecimento de regras de cooperação social que decorrem da razão, de forma que não existe a prevalência do grupo em relação ao indivíduo quando ocorre uma contradição de interesses.58

Outro aspecto de destaque, que coloca sob ressalva a subsunção da doutrina de Rawls ao caso brasileiro, é o tipo de individualismo a que se refere. Rawls faz alusão ao individualismo clássico cuja origem é a Europa, com base empirista e racionalista, enquanto o individualismo nacional possui matriz ibérica. Neste caso, o individualismo nacional pode ser visualizado sob o aspecto retributivo como ponto de partida para se pensar a (des)igualdade. A título de exemplo, vale ressaltar que em Oração aos Moços, de Rui Barbosa, é feita a seguinte afirmação:

A regra da igualdade não consiste senão em aquinhoar desigualmente os desiguais, na medida em que desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar

58 ABREU, op. cit., p. 160-1.

Page 39: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

39

com desigualdade a iguais, ou desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo não dar a cada um na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem.

Esta blasfêmia contra a razão e a fé, contra a civilização e a humanidade, é a filosofia da miséria, proclamada em nome dos direitos do trabalho; e, executada, não faria senão inaugurar, em vez da supremacia do trabalho, a organização da miséria.59

Assim, o sentido que o termo desigualdade adquire na abordagem de Rui Barbosa possui a conotação de perversão à igualdade, portanto, dotadas de atributos negativos e relacionados à incapacidade, o que justifica a estratificação social, portanto, a hierarquia. Assim, existe uma delimitação da igualdade, visto que “a igualdade só existe entre aqueles que possuem o mesmo valor: uma igualdade derivada da diferença e da hierarquia e contida nelas portanto”.60

Não obstante atualmente a percepção de igualdade ser distinta da percebida por Rui Barbosa, a exemplo da própria Constituição Federal de 1988, portanto, posterior à afirmação acima, o relato revela que existe uma tradição que parte da convicção determinista de desigualdades. Dessa forma, é possível, atualmente, atribuir um interpretação distinta, e ousa-se dizer, mais apropriada à solução de tratamento de iguais e desiguais, que passa pela utilização do critério da equidade, portanto uma igualdade horizontal e vertical.

A partir dessa base interpretativa é possível compreender a igualdade sob aspectos distintos daqueles afirmados na tradição retratada por Barbosa, visto que o individualismo e as regras de cooperação social configuram-se sob outra lógica. Assim, pensar em termos de pluralidade a partir de um individualismo cujas características possuam repercussões inclusivas e não exclusivas, partindo de um conceito de distribuição equânime de oportunidades aos sujeitos sociais. Contudo, isso significa o próprio salto entre tradições.

Outras questões também podem ser abordadas para corroborar entendimentos expostos por essa linha. Um breve olhar sobre as políticas sociais no Brasil revelam aspectos não muito díspares do relatados no ponto anterior, de forma que será ferramenta para avançar sobre outros pontos para confirmar a conclusão que se objetivou neste tópico. Em outras palavras, a utilidade de abordar a configuração da esfera social e das características das políticas sociais no Brasil está em confirmar a conclusão a que se chegou acima.

2.1.2 Configuração da esfera pública.

A breve reflexão sobre igualdade foi útil para pensar que existe uma herança da interpretação do conceito de igualdade que se distancia da interpretação atual. Enquanto a anterior concebia o aspecto retributivo para responder à questão da igualdade, o segundo utiliza-se do critério da equidade para responder a demandas de igualdade vertical e horizontal.

Para continuar pensando sobre a tradição brasileira, é importante salientar alguns aspectos culturais que herdamos da estrutura colonial. Em outras palavras, o que ganhou

59 BARBOSA, Rui. Oração aos moços. [S. l.]: Virtual Books, 2000. Disponível em: <http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/didaticos/Oracao_aos _Mocos.htm>, p. 19. Acesso em 26 jan 2011.

60 ABREU, op. cit., p. 163.

Page 40: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

40

forma em nossa cultura e que perdura até hoje. Alguns aspectos foram bem expressos na reflexão sobre igualdade. Neste momento se propõe pensar brevemente a organização da estrutura da sociedade colonial, bem como aspectos da burocracia estatal e o sistema de graças e mercês. Portanto, serão três pontos a serem analisados.

A estrutura da sociedade colonial organizava-se a partir de um princípio básico de inclusão ou exclusão, utilizando-se do princípio da pureza de sangue. Os cristãos-novos eram os considerados impuros, portanto, os negros, ainda que livres, os índios em certas medidas e os diversos tipos de mestiços. Tal critério era utilizado em relação à ocupação de cargos, ao recebimento de títulos de nobreza, etc. O princípio da pureza de sangue foi extinto por meio da Carta-lei em 1773, sem extinguir o preconceito.

Ademais, havia a organização da estrutura social conforme a valorização desigual das diferentes atividades. A atividade que recebia o maior prestígio era a de senhor de engenho, um título bastante aspirado. Outros postos de honra eram ocupados pela elite de traficantes, grandes proprietários rurais e comerciantes voltados para o comércio exterior. A organização das honrarias na sociedade colonial era estimulada essencialmente por dois critérios, o de pureza de sangue e pelo critério de relevância econômica. Ademais, destaca-se que o tipo de atividade econômica à época não demandava, a princípio, algum grau de escolarização, tendo em vista que se baseada especificamente no comércio de escravos e produção de commodities. 61

Outro aspecto peculiar do Brasil, a ser considerado preliminarmente, porque se fala neste ponto ainda em termos de características da colonização, é a penetração do Estado, ou melhor, da organização administrativa lusa no Brasil, considerando os obstáculos advindos da distância da Metrópole e da extensão territorial. Destaca-se:

O Estado foi estendendo seu alcance ao longo do tempo, diríamos melhor ao longo dos séculos, sendo mais presente nas regiões que eram o núcleo fundamental da economia de exportação. Até meados do século XVII, a ação das autoridades somente se exerceu com eficácia na sede do governo-geral e das capitanias à sua volta. Nas outras regiões predominaram as ordens religiosas, especialmente a dos jesuítas, considerada um Estado dentro do Estado, ou os grandes proprietários rurais e apresadores de índios. 62

Em outros termos, é possível neste ponto já identificar fatores de formação nacional, a existência de dois Estados. O Estado burocrático, organizado pela possibilidade de alinhamento com as orientações da Metrópole e o Estado dentro do Estado marcado pela organização social liderada por autoridades religiosas, grandes proprietários e apresadores de índios.

61 “Na cúpula da pirâmide social da população livre, ao lado da elite de traficantes, ficavam os grandes proprietários rurais e os comerciantes voltados para o comércio externo. Este era um quadro típico do litoral do Nordeste e mais tarde do Rio de Janeiro. Desempenhando um papel estratégico na vida da Colônia, os grandes comerciantes não foram incluídos na discriminação imposta em teria a sua atividade. Ao contrário, descreveram uma curva de ascen-são social e política a partir de meados do século XVI. Participaram cada vez mais das Câmaras e irmandades de prestígio e ocuparam postos elevados nas milícias. Entre os dois setores de cúpula, houve pontos de aproximação e de rivalidade. De um lado, eles constituíam em conjuntas forças socialmente dominantes da Colônia, diante da massa de escravos e homens livres de condição inferior. A ascensão econômica dos comerciantes facilitou seu ingresso na elite colonial. Por meio do casamento e da compra de terras, muitos comerciantes se tornaram também senhores de engenho no Nordeste, a ponto de borrar, às vezes, a distinção entre os dois setores”. In FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 2010, p. 34.

62 Ibidem, p. 37.

Page 41: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

41

Existe uma indefinição entre espaço público e privado que marca o relacionamento entre Estado e sociedade. “Se, por um lado, o Estado é penetrado por interesses particulares, por outro, sua ação não tem limites claros, decorrentes de garantias individuais dos cidadãos”. Assim, tanto a escolha dos homens que compõe a máquina estatal ocorre dentre os homens leais ao rei, quanto a máquina estatal sofre influência dos setores dominantes na sociedade em busca de graças dos governantes em prol da família ou rede familiar da classe dominante, formada tanto por laços de sangue como por padrinhos e afilhados, protegidos e amigos. Decorrência desse movimento é um governo exercido a partir de critérios de lealdade, e não a partir de critérios de impessoalidade e respeito à lei. 63

Tais aspectos são importantes por fazerem referência a fatores que posteriormente vão compor a esfera social brasileira, possuindo implicações quanto à própria formação da liberdade e cidadania. A cidadania no Brasil possui traços específicos da colonização portuguesa, que herdou, por bem dizer, o sistema de graças e mercês, advindo de um alto grau de solidariedade interna dos grupos, formando uma barreira de refração a interesse exteriores.

A graça – do rei, mas também dos particulares, já que se tratava de uma virtude geral – criava, assim, uma rede de pactos, de expectativas fundadas (fundatae intentiones) e de quase direitos que organizava a sociedade tanto com as regras gerais de direito estrito; ou talvez mesmo mais, dada a hierarquia entre um dever que nasce de uma virtude moral e o que nasce apenas da lei.64

Essa foi a matriz de um sistema político que foi se distanciando do centro e se tornando impenetrável, pois “muito mais do que um jogo dos privilégios e das mercês, a distância e o isolamento em relação à cultura política cosmopolita também criam um campo de manobra política autônomo para os poderosos e para as corporações locais, absolutamente desconhecido na metrópole”.65

Assim, a formação do poder político brasileiro ocorreu a partir da formação de uma cultura que sustentava o sistema de “graças e mercês”, contribuindo para a integração real de uma classe, “assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus membros e distinguindo-os das outras classes66”.

A configuração de redes locais de poder social trouxe implicações para a formação institucional do país, na medida em que o sistema de graças e mercês foi utilizado como um meio de estruturação política e institucional. Essa característica incorporou-se à cultura nacional e ganhou autonomia cultural, podendo ser observada ao longo da história. A título de exemplo, pode-se observar o comportamento da burguesia nacional na fase de industrialização do país67. Tratava-se de uma burguesia marcada por um alto grau de

63 FAUSTO, op. cit.,, p. 38.

64 HESPANHA, Antônio Manuel. HESPANHA, Antônio Manuel. Porque é que foi “portuguesa” a expansão portu-guesa? ou O revisionismo dos trópicos. In: Conferência proferida na sessão de abertura do Colóquio “O espaço atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades”, org. pelo CHAM-FCSH-UNL/IICT, Lisboa, 2 a 5 de Novembro de 2005. Disponível em: < http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/antonio_manuel_hespanha.pdf>. Acesso em 22 mar 2010. p. 8.

65 HESPANHA, op. cit. p. 21.66 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 12ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. p. 10.67 Um movimento que ocorreu cronologicamente à frente da narrativa presente, mas que serve para corroborar a per-

spectiva em questão.

Page 42: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

42

solidariedade interna, cujo poder possuía penetração no quadro organizativo institucional do Estado e que não se dispunha a se conformar a uma política de planejamento econômico.68

Nesse sentido, não houve o desfazimento da ideia matriz de solidariedade, qual seja, a proteção em redes, também concebível pelo formato de “graças e mercês”, sendo possível observar que tal característica perdurou em momentos distintos do momento de sua concepção.

Ademais, no momento de consolidação do Estado nacional era perceptível a ausência de cidadania. Se for levada em consideração a concepção de liberdade dos antigos e dos modernos, em que a primeira diz respeito à participação individual direta na polis, enquanto a segunda ocorre por meio da representação política, há quem defenda que no Brasil não foi possível visualizar o delineamento da cidadania.69

A concepção de liberdade dos antigos e dos modernos foi defendida em 1819 no Athénée Royal de Paris por Benjamin Constant, em uma conferência intitulada “De La Liberté dês Anciens Comparée à celle dês Modernes”. A ênfase estava posta sobre a liberdade que convinha aos novos tempos em oposição a um tipo de liberdade que não era mais adequada aos tempos modernos. Dessa forma, criticava-se a liberdade defendida por filósofos – Mably e Rousseau – e pelos jacobinos, caracterizada pela possibilidade de participação coletiva no governo e na soberania. Assim, havia a possibilidade de tomada de decisão das questões Republicanas em praça pública, sendo a liberdade do homem público. Tal era a formatação das repúblicas antigas de Atenas. Para Benjamin Constant partilhava o fundamento para a incompatibilidade entre a liberdade antiga e o mundo moderno era o desenvolvimento do comércio e da indústria.

A liberdade dos modernos era caracterizada pela participação política por meio da representação, passando a ser uma participação indireta. O tempo e o interesse das pessoas já estavam desviados ao desenvolvimento do comércio e indústria, dessa forma, a prioridade do tempo que dispunham não era mais para dedicar-se à deliberação em praça pública. Os interesses estavam postos na felicidade pessoal e no interesse individual. Dessa forma, a função da liberdade política estava creditada a assegurar a liberdade civil. Ademais, a oposição desses dois tipos de liberdade reflete diretamente sobre a organização política da sociedade.

A preponderância da liberdade dos modernos no Brasil esteve relacionada à própria formação do Estado nacional. A inserção na vida política ocorria via Estado70, portanto, a ênfase não reside na afirmação dos direitos dos cidadãos. Tendo em vista que a virtude cidadã era sobrepujada pelas oportunidades de enriquecimento, e consequente acentuação de desigualdade social, a participação política ocorria não pela representação dos interesses particulares, mas pela adequação dos interesses desses ao de outros, que eram caracterizados como interesses públicos. Nesse sentido, a apropriação do público pelo privado trouxe uma torção representativa, bem como uma torção na preocupação com o bem público. 68 Os grupos de empresários nestes países empreenderam uma campanha de acordo com isto na qual demandavam, e

apoiavam, a coordenação central de políticas econômicas ao mesmo tempo em que lutavam vigorosamente contra toda medida que pudesse dar aos planejadores qualquer tipo de poder real sobre suas decisões de investimento. In CHIBBER, Vivek. ¿Revivir el Estado desarrollista? El mito de la “Burguesía Nacional”. Disponível em <http://www.scielo.org.ar/scielo. php?pid=S185137272008000200001 &script=sci_arttext>, p. 7.

69 CARVALHO, José Murilo de. Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, p. 83.

70 “Bacharéis desempregados, militares insatisfeitos com os baixos salários e com minguados orçamentos, operários do Estado em busca de uma legislação social, migrantes urbanos em busca de emprego, todos acabavam olhando para o Estado como porto de salvação”. In CARVALHO, op. cit., p. 96.

Page 43: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

43

Restou nítida a oposição entre vantagem econômica pessoal e o exercício da cidadania, o que ocorria não somente em terras brasileiras, havia exemplos71 que confirmassem a oposição entre homem econômico e patriotismo, cidadania e cultura.

A caracterização da esfera pública nacional, revela uma formação do povo brasileiro era de origem comunitária e a solidariedade estava adstrita ao grupo de amigos e família. De forma que não estava presente o exercício da cidadania e havia dependência do Estado. Existia a adequação do povo à política nacional, sob um enfoque paternalista. Preponderando o paternalismo, acreditou-se na necessidade do Estado modernizar o país.72 A modernidade brasileira estava desprovida da iniciativa individual nos moldes anglo-saxônicos e a fraternidade da tradição popular nacional não encontrava lugar na mesma. Dessa forma, o que existia não era uma cidadania, mas uma estadania, conforme salienta Carvalho:

A relação do Estado com o indivíduo era uma combinação de repressão e paternalismo. Não gerava cidadania, no máxima criava a estadania, a incorporação ao sistema político pelo envolvimento na malha crescente da burocracia estatal. Deturpava-se ao mesmo tempo, a boa modernidade e a boa tradição. 73

A estadania, combinação de repressão e paternalismo, possibilita conferir outro olhar para a tradição brasileira, e compreender a cidadania brasileira em sintonia com os aspectos salientados anteriormente. Dessa forma, observa-se a formação da tradição nacional por vias distintas da pressuposta por Rawls ou Berlin. O diálogo com tal tradição vai ser possível pela modulação que Sen proporciona ao pensar a adequação de aspectos da tradição liberal, com ênfase no individualismo, para uma tradição assentada no holismo, como é o caso da tradição brasileira.

Até agora, falou-se sobre duas manifestações peculiares na tradição brasileira. A primeira, relativa à igualdade e a segunda, à configuração da esfera social. Ambas as perspectivas não passam da manifestação da mesma face observada sob prismas diferentes. A igualdade na tradição brasileira possui aspectos próprios. Inicialmente, um de seus aspectos diz respeito à forma da cooperação social, que se caracteriza por meio do pertencimento a um grupo, e assim, à subordinação individual a um grupo. O interesse coletivo superpõe-se ao individual e, portanto, a contradição entre o caráter individual e coletivo assume uma feição de subordinação, por tratar-se de uma insurgência contra o grupo e não de um elemento novo que possa colaborar para o próprio grupo.

O tipo de individualismo brasileiro, de matriz ibérica, concebe a retribuição a determinada atividade e/ou indivíduo a partir do critério da (des)igualdade. Nas palavras de Rui Barbosa, de “aquinhoar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam”74, de forma que a igualdade é pervertida, colaborando para a manutenção das desigualdades.

71 “Na França, Montesquieu e, sobretudo, Mably viam como condição para a virtude cívica certa igualdade social. Ma-bly achava que apenas a Suíça possuía tal condição, estando os Estados Unidos já corrompidos pela desigualdade. Jefferson o mais ‘antigo’ dos foundig fathers, tinha também dúvidas quanto às possibilidades da vigência da virtude re-publicana nos Estados Unidos devido ao avanço do comércio e da indústria, fontes de corrupção”. In CARVALHO, op. cit.,p. 97.

72 Era o programa da modernização conservadora assumido plenamente pelo regime surgido após 1930, no qual os militares e os técnicos tiveram grande participação. In CARVALHO, op. cit., p. 126.

73 CARVALHO, op. cit., p. 127.74 BARBOSA, Rui. Oração aos moços. [S. l.]: Virtual Books, 2000. Disponível em: <http://virtualbooks.terra.com.br/

freebook/didaticos/Oracao_aos _Mocos.htm>, p. 19. Acesso em 26 jan 2011.

Page 44: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

44

Essa compreensão de cooperação social, bem como de individualismo, nada mais é do que um elemento cultural estruturante da esfera social que possui raízes comuns à estrutura colonial da sociedade brasileira, que pode ser percebido tanto na estruturação da sociedade a partir do princípio básico da exclusão, como pela valorização desigual das diferentes atividades.

O princípio básico da exclusão ocorria inicialmente por meio do critério de sangue, sendo este um critério de solidariedade interna, ou de cooperação social de forma incipiente. Tal princípio, por sua vez, possui afinidade com o mecanismo de sociabilidade oriundo do sistema de graças e mercês. Em todos existe a inclusão por meio da exclusão, em outros termos, o reconhecimento do indivíduo face ao não reconhecimento de outros indivíduos alheios à relação que se pretende firmar por algum interesse específico. A valorização desigual das diferentes atividades se estrutura por tal princípio. Portanto, um reconhecimento interno e comunicação direta entre os membros, consolidado por meio da distinção.

Tal estruturação de distinção, ou formação de redes locais, ou cooperação social por meio da subordinação do indivíduo ao coletivo, possuiu repercussão na própria consolidação do Estado burocrático. Assim, o Estado esteve poroso a ponto de ser penetrado por interesses particulares. Tal aspecto possui implicações negativas para a configuração da cidadania, de forma que o espírito cívico restou prejudicado em favor da origem estrutural comunitária nacional.

Ademais, um aspecto muito importante para a compreensão das políticas sociais em si, é o paternalismo. Como visto, a cidadania brasileira parte de uma combinação de repressão e paternalismo. A repressão é um instrumento necessário para manter o tipo de individualismo ibérico, qual seja, a sobrepujança do coletivo em detrimento do indivíduo. A cultura do paternalismo vai poder ser observada quando da análise das políticas educacionais, vez que este é um fator marcante em sua trajetória de modificações.

Antes de adentrar propriamente nas políticas educacionais, será feita brevíssima caracterização das políticas sociais no Brasil, conforme suas vertentes históricas, a fim de situar as políticas educacionais no movimento geral das políticas sociais.

2.2 Políticas sociais e educacionais no Brasil.

A fim de contextualizar as políticas direcionadas à estrutura do sistema educacional brasileiro, será feito breve apanhado das nuances das políticas sociais no Estado brasileiro. Esse breve apanhado possui por finalidade contextualizar o sistema educacional brasileiro no pós CF/88, evitando-se que seja realizada a análise do direito sobre a educação de forma atemporal e descontextualizada, o que protege o trabalho de tomar para si argumentos e críticas descabidos à educação no Brasil. Em outros termos, pretende-se compreender o direito à educação no Brasil tomando por base seus possíveis avanços ou retrocessos.

Para compreender o percurso das políticas educacionais no Brasil é importante compreender o movimento geral das políticas sociais, visto que indissociável delas. Parcela dessa ênfase pode ser atribuído ao reconhecimento da importância da educação nas teorias de desenvolvimento, tanto nas que são adstritas ao crescimento econômico, por meio da teoria do capital humano, quanto, posteriormente, nas que compreendem a educação como fator que colabora para o desenvolvimento

Page 45: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

45

2.2.1 Políticas sociais.

Inicialmente é importante situar as políticas sociais sob a ótica da organização do Estado. O Estado pode ser compreendido a partir de seus aspectos sociais, jurídicos e políticos. Segundo Dallari75, A face social relaciona-se à formação do Estado e ao seu desenvolvimento fundado por fatores sócio-econômicos. A face jurídica relaciona-se ao Estado enquanto ordem jurídica e na política emerge a questão das variedades de finalidades em face dos diversos sistemas de cultura.

Os aspectos jurídicos do Estado são indissociáveis de seu conteúdo político, de forma que existe uma reciprocidade de influências entre ambos. O poder político pode ser entendido como o poder social projetado no Estado, que trata da relação em que os homens pretendem influenciar o comportamento do Estado, por meio da obtenção de seu controle.

O caráter do Estado é dinâmico e suas atividades ligam-se a justificativas e objetivos, sendo assim, estabelecidos os meios. O exercício do poder do Estado não se limita ao jogo de normas, ao revés, finalidades e regras são utilizadas para atingir determinadas finalidades pelos que possuem o direito de exercer o poder estatal. Ademais, o aspecto jurídico do Estado sofre fortes influências do poder político e social, nesse sentido cabe apontar que “a natureza específica de um regime político determina, de maneira crucial, a estruturação das políticas públicas”.76

Tanto a política como as políticas públicas possuem relação com o poder social. O conceito de política, por se relacionar ao poder em geral, é mais amplo, enquanto as políticas públicas se relacionam a soluções específicas de como manejar os assuntos públicos. Nesse sentido, “a política pública em seu sentido mais amplo tende a conformar, tanto as propostas de políticas públicas, como aquelas que se concretizam. Quem quer o governo, quer políticas públicas”. 77

As políticas públicas estão inseridas no contexto amplo da política e, não obstante ambas se relacionarem ao poder social, são restritas a soluções específicas para assuntos públicos. Para a construção do raciocínio que fundamenta o entendimento sobre políticas públicas é preciso ter em consideração a influência da realidade de cada sociedade em seu formato concreto, bem como que o estágio de maturidade social “contribuirá, ou não, para a estabilidade e eficácia das políticas, para o grau de participação dos grupos interessados, para a limpidez dos procedimentos de decisão”. 78

Ante a reciprocidade de influências entre a face política e jurídica do Estado, existe, no âmbito do direito público, especialmente, a penetração de valores e da dinâmica da

75 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 127-128 e segs. 76 Versão original: “la naturaleza específica de un régimen político determina, de manera crucial, la estructuración de las

políticas públicas”. In TORRES, Pedro Medellín. La política de las políticas públicas: propuesta teórica y metodológi-ca para el estúdio de las políticas públicas en países de frágil institucionalidad. CEPAL: Santiago de Chile, Julio de 2004. p. 5.

77 Versão original: “La política en su sentido más amplio tiende a conformar, tanto las propuestas de políticas públicas, como aquellas que se concretan. Quien quiere el governo, quiere políticas públicas”. In PARADA, Eugenio Lahera. Política y políticas públicas. p. 67 a 95. In FERRAREZI, Elisabete. SARAVIA, Enrique. Brasília:ENAP, 2006. p. 67

78 SARAVIA, Enrique. Introdução à teoria da política pública. In FERRAREZI, Elisabete; SARAVIA, Enrique. Políti-cas Públicas: coletânea. Brasília: ENAP, 2006. p. 32

Page 46: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

46

política.79 De fato, o quadro institucional em que se insere uma política80 é assentado sobre o direito, devendo realizar-se conforme o princípio da legalidade.81

À política compete vislumbrar o modelo, contemplar os interesses em questão, arbitrado conflitos, de acordo com a distribuição do poder, além de equacionar a questão do tempo, distribuindo as expectativas de resultados entre curto, médio e longo prazos.

Ao direito cabe conferir expressão formal e vinculativa a esse propósito, transformando-o em leis, normas de execução, dispositivos fiscais, enfim, conformando o conjunto institucional por meio do qual opera a política e se realiza seu plano de ação. 82

O esforço jurídico para a compreensão do conceito de política pública pode ser considerado uma guinada em sentido oposto a uma das consequências do processo de colonização, que é o legalismo, uma condição essencial da cultura.83 O que ocorre tendo em vista que a cultura latina possui uma perspectiva jurídica baseada na forma de estruturação dos sistemas estatais, que ocorreu por meio do legalismo. “Os conquistadores espanhóis e portugueses levavam nas suas naus os textos das leis que deviam aplicar nas terras que iriam descobrir.” 84 Isso deu origem à visão que confere destaque ao enfoque da parte estática do Estado por abordar prioritariamente o estudo das normas e estruturas organizadoras da atividade estatal, o que acaba por ocorrer em detrimento do estudo das realidades inerentes às estruturas públicas.

Nesse sentido, é importante ter em mente uma relação de complementaridade, pois “a perspectiva da política pública integra adequadamente a dimensão jurídica e esta se auxilia nos insumos que as análises da política pública lhe provêm”. 85

As democracias evoluídas fazem da observância de normas jurídicas abstratas e impessoais e do respeito aos direitos dos outros o fundamento básico da convivência social. Mas uma análise que só leve em consideração a perspectiva jurídica seria limitada e insuficiente para compreender a riqueza e diversidade das variáveis que compõem o universo do fenômeno estatal, nas suas relações com a vida nacional e internacional. 86 .

A tendência legalista também é observada quando se volta os olhos para a seara educacional. Assim, propõe-se abordar a política educacional a partir de suas características históricas, de seus pressupostos sociais, da perspectiva legalista e adentrando a aspectos estatísticos. Tais elementos nada mais oferecem do que uma tentativa de enfocar o direito à educação no Brasil por meio de uma perspectiva compreensiva e sistêmica.

79 BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. p. 1-49. In BUCCI, Maria Paula Dallari. (org) Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p 1.

80 Ressalte que BUCCI ao tratar do termo “política” faz referência ao termo policy, que se refere a programas governa-mentais, e não a politics, que se refere à atividade política em sentido amplo. Ibidem. p. 11.

81 Idem. p. 37.82 Idemp. 37.83 SARAVIA, op. cit., p. 2184 Ibidem p. 20-2185 SARAVIA, op. cit., p. 27. 86 Ibidem p. 27.

Page 47: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

47

A fim de entender a relação entre os conceitos explicitados e a realidade brasileira87, é importante trazer o contexto do texto jurídico que é a atual fonte de reivindicações de implementação de políticas públicas, bem como a breve trajetória das políticas sociais nacionais, na medida em que clarificam algumas características sobre as políticas educacionais.

As políticas sociais no Brasil podem ser caracterizadas a partir de três vertentes históricas. A primeira, situada historicamente na República Velha, tratou-se uma política social de cunho coorporativo. A segunda, após 1930, possui raízes na tradição caritária e filantrópica em atenção a certas situações de pobreza. Na terceira, consolidada somente em 1988, com a nova Constituição, as políticas sociais visam afirmar os direitos sociais. Ressalte-se, ainda, a essas três fases pode-se juntar “um conjunto de intervenções sociais do governo federal ancoradas em sistemas de remuneração de fundos públicos”, ocorridos na década de 60.88 A utilização de fundos públicos com início antes da Constituição de 1988, assume um papel importante na organização das receitas vinculadas na seara educacional no pós CF/88.

A década de 1930, período em que se dava a construção do Estado nacional de forma centralizada e com a industrialização forte, marcou a consolidação da ação social a partir da condição de trabalhador, em resposta à questão apresentada pela pobreza operária, mantendo fora da ação de proteção social as populações que se situavam fora da participação do processo de acumulação. Portanto, a proteção social oferecida inseria-se no projeto de bem-estar social, que por sua vez, fundamentava-se no desenvolvimento da produção econômica nacional e na ampliação do assalariamento, portanto, no período que se estendeu até 1980, a proteção às populações vulneráveis foi “orientada na forma de uma gestão filantrópica da pobreza, realizada predominantemente por instituições privadas que contavam com o apoio de financiamento público”. 89 Esta orientação possui características eminentemente relacionadas à tradição brasileira, como assinalado anteriormente a partir da afirmação de Rui Barbosa, também se relacionam com as características intrínsecas ao Estado welfarista, que não visa romper com o condão das desigualdades sociais, mas apenas evitar a ruptura social.

A década de 1960 foi marco, não obstante as oscilações decorrentes das trajetórias políticas do país, na proteção social, que foi sendo ampliada para um maior contingente populacional, portanto, demandou o aumento do aporte de recursos públicos com serviços e benefícios sociais. Assim, “dedicada inicialmente apenas a poucas categorias de trabalhadores urbanos, a proteção social brasileira chega a 2009, apesar de seus limites, amparando uma massa constituída por milhões de cidadãos”.90

Os Estados de Bem-Estar, não obstante as diferentes análises de causas de emergência, possuíram a finalidade de organizar sistemas de garantias legais, a fim de realizar, “fora da esfera privada, o acesso a bens e serviços que assegurem a proteção social do indivíduo em face de alguns riscos e vulnerabilidades sociais”. Neste âmbito estão ações que visam proteger dos vulnerabilidades sociais, doença, velhice, morte e desemprego, bem

87 Onde os conceitos podem aparecer de forma implícita.88 CARDOSO JR., José Celso. JACCOUD, Luciana. Políticas sociais no Brasil: Organização, abrangência e tensões da

ação estatal. p. 181 – 260. In JACCOUD, Luciana Barros. SILVA, Frederico Augusto Barbosa da. Questão social e políticas sociais no Brasil contemporâneo. Brasília: IPEA, 2005, p. 181.

89 CARDOSO JR., op. cit., p. 190. 90 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA. O Brasil em 4 décadas. Texto para discussão nº 1500. Brasília,

IPEA: 2010, p. 72. .

Page 48: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

48

como da pobreza, caracterizadas por programas de mínimos sociais, e de garantia de acesso aos serviços de saúde e educação. 91

A consolidação do Estado de Bem-Estar Social ocorreu dada a ineficácia de outras formas de regulação da questão social, tais como soluções por meio do mercado, moralização, ações de solidariedade ou movimentos revolucionários, o que resultou no fortalecimento da solução da proteção social via Estado. 92

Tal processo foi acompanhado pela emergência de uma esfera diferenciada de intervenção estatal – a social –, distinta das esferas econômica e política. De fato, o avanço do processo de legitimação da participação do indivíduo pobre no espaço político e a reprodução da pobreza no âmbito das relações econômicas, em que pese a progressão na produção de riquezas, permitiu a ampliação do campo de ação social do Estado por meio de políticas sociais.

(...) A cidadania, expandida tanto em termos políticos como em termos sociais, permitiu a construção de um novo paradigma para a organização da proteção social: os direitos sociais. 93

O modelo de Welfare State adotado pelo Brasil para corrigir distorções do mercado, em sentido complementar e não substitutivo, configurou-se sob a forma de um sistema meritocrático, um modelo conservador de política social. O mérito era aferido no interior da estrutura produtiva e relacionava-se à posição ocupacional e de renda. Tal sistema foi construído a partir das décadas de 1920 e 1930 e teve vigência até os anos 1980 e era limitado por fatores relacionados à base contributiva, estreita devido a baixos salários; níveis de qualidades insuficientes diante do subfinanciamento; tendência à assistencialização das políticas sociais e sobrecarga da demanda ante à não inserção de um terço da população no mercado formal e necessidade dos demais da assistência do Estado. Tais fatores limitavam a alteração da estrutura de oportunidades em prol de uma maior igualdade nas condições básicas da vida por intermédio das políticas públicas. 94 A formação dos sistemas de proteção social é delineado conforme as trajetórias de cada país, bem como seus embates políticos e demandas sociais. Nesse sentido, salienta Castro:

Um sistema nacional de políticas sociais apresenta complexos esquemas de distribuição e redistribuição de renda, aplicando significativas parcelas do produto interno bruto (PIB) em ações e programas sociais. Mediante uma intricada rede de tributos, transferências e provisão de bens e serviços, recursos são distribuídos e redistribuídos em múltilos sentidos, entre ricos e pobres, entre jovens e idosos, entre famílias com e sem crianças, entre saudáveis e doentes. Em sua trajetória histórica, cada sociedade incorpora o reconhecimento de determinados riscos sociais e de igualdades desejáveis. Tais processos constituem, em cada país, sistemas de proteção e promoção social com mais ou menos abrangência, mas que são dinâmicos, estando na maior parte do tempo em construção ou em reforma. 95

91 CARDOSO JR., op. cit., p. 183. 92 Ibidem p. 187. 93 Idem, p. 187. 94 CASTRO, Jorge Abrahão de. RIBEIRO, José Aparecido Carlos. As políticas sociais e a constituição de 1988: conquis-

tas e desafios. In Políticas Sociais: acompanhamento e análise - Vinte Anos da Constituição Federal. Brasília: IPEA, 2009. p.23.

95 CASTRO, op. cit. 2009, p.22.

Page 49: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

49

Em seus traços gerais, o processo de construção da intervenção social junto aos pobres organizou-se em larga medida por meio de um aparato assistencial de origem privada, o qual contava com apoio estatal no campo do financiamento direto e indireto. A consolidação de um eixo de políticas públicas no campo da proteção social, ocorrida somente após a Constituição de 1988, é, assim, herdeira de uma ampla tradição de subsidiariedade, ajuda e filantropia, em função da qual deverá se instituir. 96

Do que foi visto até então, é possível compreender que a configuração da esfera social brasileira possui uma matriz de reprodução de interesses particulares sobre os interesses públicos. Tais regras de socialização se reproduziram e ganharam espaço na formação do público e do político, faces do Estado que se inter-relacionam. Compreender essa reciprocidade de influências prepara o campo para interpretar-se as políticas públicas nacionais e as normas relativas ao direito à educação, pois como salientado anteriormente, o aspecto jurídico do Estado sofre fortes influências do poder político e social.97 O direito à educação não escapa a tais influências, é o que será visto adiante.

2.2.2 Políticas educacionais.

A política educacional possui nuances particulares nos contexto das políticas sociais em geral. Até a promulgação da Constituição Federal de 1988 – CF/88, já haviam passados 319 anos de história de sistema público de ensino. Resta saber qual foi a herança deixada à CF/88, em outras palavras, qual o contexto educacional que ela se propôs a lidar. Para compreender algumas características do sistema educacional deixadas como herança, será feita um breve apontamento sobre aspectos da história da educação. 98

A educação pública no Brasil se inicia pela atuação do Marquês de Pombal, (1669-1782), primeiro ministro de Portugal, ao sancionar o Alvará régio de 28.6.1759, que determinou tanto a expulsão dos Jesuítas do Brasil e de Portugal, como reformou os estudos menores99, introduzindo a escola pública sob seus domínios.100 Tal Alvará foi omisso quanto à regulamentação das escolas de primeiras letras, o que retardou a reforma para 1772, época em que foi regulamentada a instrução primária e secundário leiga e gratuita. Pela Lei de 6 de novembro de 1772 foi criado o imposto chamado subsídio Literário, dessa forma o povo passou pagar pela manutenção do ensino público. Ao fim do século XVII, a situação do ensino público era um fracasso, tendo em vista a incapacidade de substituir as escolas tidas por bem organizadas da Companhia de Jesus

A primeira fase do financiamento da educação no Brasil, a fase “terceirizada” era caracterizada pela delegação do Estado aos jesuítas. A segunda fase se iniciou com a expulsão

96 CARDOSO JR., op. cit, p. 190. 97 Seria possível pesquisar em outro estudo, inclusive, se a divisão entre as faces do Estado não são estabelecidas apenas

para fins didáticos, ante à nítida fluidez e interferência de forças entre as estruturas de suas faces.98 A perspectiva aqui adotada é a fornecida pela historiadora Maria Luiza Marcílio, em História da escola em São Paulo

e no Brasil. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Instituto Fernand Braudel, 2005.99 Denominação adotada à época. Refere-se ao ”ensino de ler, escrever, contar e da doutrina cristã, mais um ano de

filosofia, ética, retórica para os alunos que se destinavam aos estudos maiores ou para a Universidade de Coimbra. As meninas ficaram de fora, sem escola pública. No Reino só em 1802 haveria as primeiras aulas femininas, com as recém-chegadas Irmãs de Caridade francesas”.

100 “As reformas pombalinas, no campo da instrução pública, constituem expressão do iluminismo português, que foi essencialmente reformista, e da política mercantilista e fisiocrata, também substantivada por Pomba. O seu espírito não era revolucionário, nem anti-histórico, nem irreligioso, como o francês, mas essencialmente nacionalista e hu-manista”. In MARCÍLIO, op. cit, p. 18.

Page 50: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

50

dos jesuítas. Foi caracterizado pelo encargo da responsabilidade às Câmaras Municipais e aos governos Estaduais por meio de dotações orçamentárias. O terceiro período teve início com o advento da Constituição Federal de 1934, em que se introduziu o princípio da vinculação de um percentual da renda proveniente de impostos para o financiamento da educação.101

A primeira discussão das bases da educação nacional ocorreu na Constituinte de 1823, assim, o tema de debate na Assembleia Constituinte foi a difusão da escolarização aos excluídos, tais como, mulheres, negros e índios. Portanto, a Constituição de 1824, assegurou no artigo 179 a instrução primária gratuita para todos os cidadãos.

Além da relevante instituição do ensino fundamental público primário gratuito com a Carta Outorgada de 1824, outra mudança efetiva veio com a Lei Geral do Ensino de 1827 e o Ato Adicional de 1834. A partir daí foram criadas as Assembleias provinciais e para elas transferidas a responsabilidade pelo ensino primário e secundário, bem como a formação dos quadros docentes. A organização do ensino superior restou vinculada à administração nacional. Em relação à organização escolar no município, esta ficou neutra.

Os dois primeiros cursos jurídicos brasileiros foram estabelecidos, também, pela Lei Geral de Ensino, em São Paulo e Olinda, e posteriormente o de Olinda foi transferido para Recife. Ambos os cursos tornaram-se os fornecedores de quadros superiores para a monarquia. É interessante notar que a criação de um curso superior influi sobre a organização do ensino secundário, pois gera uma demanda a ser suprida. No caso brasileiro, o conhecimento exigido para a admissão nos cursos102 demandou a criação de um colégio específico, o Colégio das Artes.

Por sua vez, o ensino secundário foi modelado à forma do preparatório o que gerou uma ampliação de tal ensino, com o fito exclusivo de preparar os alunos para o exame dos cursos jurídicos. Assim, o ensino secundário restou consolidado sob a forma de aulas avulsas e fragmentárias, visto que a finalidade era o ingresso no ensino superior.

O formato inicial do sistema educacional brasileiro desfavoreceu a uma formação de uma unidade orgânica, tendo em vista a postura do governo da União que, ao descentralizar a educação, exonerou-se de organizar a educação em bases uniformes e nacionais, o que também era agravado pela imposição de obstáculos das condições econômicas, sociais e culturais ao estabelecimento e concretização de uma política nacional de educação. Dessa forma, a educação não ascendeu ao aspecto da uniformidade, restando fragmentária e envolvida pelas características do presidente em exercício. Cada presidente normalmente se dispunha a efetuar uma reforma no ensino, o que veio a colaborar para o caos no setor.

A política de descentralização em relação ao ensino primário e secundário teve vez no período compreendido entre Ato Adicional de 1834 até os anos 1930. Ademais, não obstante a ausência de sistematização do ensino, foi realizado um esforço em todas as províncias para aumentar o número de aulas de primeiras letras, em conformidade com o preceito educacional previstos na Constituição e Lei Geral de 1827.

As mudanças mais profundas na seara educacional ocorreram a partir de 1870, tendo em vista que o Brasil, na condição de colônia, foi privado de uma construção de um

101 PINTO, José Marcelino de Rezende. Financiamento da educação no Brasil: da vinculação constitucional à construção de uma escola com padrões mínimos de qualidade. Linhas Críticas, vol. 11 nº. 20, jan/jun. 2005, p. 93.

102 Além do requisito de possuir 15 anos completos, exigia-se “a aprovação em exame de língua francesa, gramática la-tina, retórica, filosofia racional e moral e geometria. Mais tarde aumentaram o número de matérias”. In MARCÍLIO, op. cit. p. 48.

Page 51: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

51

sistema de ensino popular, emergindo para a independência num quadro de preponderante iletramento em todas as classes.

O Brasil passou por uma série de reformas educacionais, possuindo uma história marcada, principalmente, por dois aspectos: (i) tradição do uso da legislação como instrumento de transplante de instituições educacionais e (ii) tentativa de transplantação de ideias e de instituições europeias e norte-americanas. Assim, a lei foi o instrumento utilizado para a reforma do ensino, e solução de problemas na seara educacional, com o respectivo transplante de instituições educacionais.

As principais reformas legislativas infraconstitucionais, compreendidas no período de 1759 a 1996, somam 21, além da ocorrida no período colonial, foram nove no período do império (1838, 1854, 1855, 1857, 1862, 1870, 1876, 1878 e 1881). Após a proclamação da República ocorreram 11 grandes reformas, (1890, 1901, 1911, 1915, 1925, 1931, 1942, 1961, 1971, 1982 e 1996). Portanto, realmente observa-se que o sistema de ensino sempre era objeto de reforma em períodos relativamente curtos, variando de dois a dezenove anos, sendo que no período colonial, as reformas ocorriam em um menor espaço de tempo.

Avançando sobre as reformas constitucionais, a Proclamação da República trouxe novidades, havia um clima cultural novo, essencialmente marcado pelo escolanovismo, crença de que a verdadeira formação do novo homem esta relacionada a determinadas formulações doutrinárias sobre a escolarização, bem como de que a disseminação da educação escolar, junto à multiplicação das instituições escolares. Foi criado o Ministério da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, em 1890103, e concebida uma reforma geral do ensino primário ao superior, que passava pelo profissional, artístico e outros, bem como o Regulamento da Instrução Primária e Secundária.

A Constituição Republicana, em 1891, manteve a descentralização da educação primária, sendo que a secundária e superior atrelavam-se ao poder central, o que se revelou como óbice à articulação vertical e horizontal entre os níveis de ensino, assim como a montagem de um plano nacional de educação. Entretanto, em 1901, com o Código das Instituições Federais do Ensino Superior e Secundário, em 1901, Decreto nº 3.890, de 1º de janeiro, uniformizou-se o ensino Posteriormente, com a Reforma Rivadávia de 1911, instituída pelo Decreto nº 8.659, Lei Orgânica do Ensino Superior e do Fundamental, o vestibular foi instituído como única instância obrigatória de verificação do ensino. o que culminou na multiplicação de faculdades a fim de distribuir diplomas, bem como na burla ao ensino secundário em prol da “caça ao diploma por uma clientela ávida de ascensão social ou pouco disposta a qualquer esforço sério para justificar suas posições herdadas”, o que resultou no desvirtuamento do campo de ensino. 104

Diante de tais efeitos colaterais, a Reforma Rivadávia Correia veio a ser substituída pelo Decreto 11.530, de 18 de março de 1915, conhecida como Reforma Carlos Maximiliano, que foi caracterizada como liberal e realista. Nela constava a previsão de criação da Universidade do Rio de Janeiro por meio de reunião de escolas superiores já existentes, a Politécnica e a Medicina, que veio a incorporar a Faculdade Livre de Direito. Ademais, restaurou os exames preparatórios para os não matriculados em escola oficial e manteve os exames para admissão nas escolas superiores.

103 Teve por gestor o ministro Benjamin Constant Botelho de Magalhães, que era ministro da Defesa, e havia feito uma série de mudanças na Escola Militar, de inspiração positivista. In MARCÍLIO, op. cit, p. 131.

104 MARCÍLIO, op. cit, p. 135.

Page 52: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

52

O ensino secundário era essencialmente marcado pela concepção de Estado-cartório, dada a função do Estado em atribuir validade formal aos certificados que viabilizassem o acesso ao ensino superior. A educação de nível secundário estava entregue à iniciativa privada, e assim, seu acesso era restrito. Assim, a dificuldade marcante do sistema de ensino no período que durou até os anos 1930, foi a fragilidade do ensino secundário dada a priorização do mero acesso ao ensino superior, bem como pela paupérrima estatização dessa etapa de ensino.

O século XX pode ser considerado como a Era da Escola no país. Nesse período foram montados novos tipos e novos arranjos de escolas, foram erguidos prédios escolares e uma nova concepção de ensino de forma integrada desde o jardim-de-infância até a universidade, sentido vertical, e também no sentido horizontal, que compreende o geográfico e sociológico.

É interessante perceber que na década de 1920 viu-se a emergência de duas políticas sociais que acompanharam as políticas de seguro e assistência social, a de saúde105 e educação. Nesse sentido, foram criados os Ministérios de Educação e Saúde Pública com vistas a responder novas demandas sociais paralelas ao projeto de construção nacional, bem como de afirmação de responsabilidade do Estado face às condições de vida populacional. Em relação à educação, campo mais antigo da ação social do Estado no Brasil, desde a Constituição de 1891 o ensino primário é obrigatório, tendo sido estruturado um sistema nacional após 1930 e apenas em 1961, com a Lei de Diretrizes e Bases – LDB – ocorrerá uma real expansão de tal sistema.

O período que tem início em 1930, em termos educacionais, possui uma relação indissociável do contexto de inserção internacional do País. O período foi marcado pelos reflexos da crise econômica de 1929, que demandaram adaptações do país. Em 1931, no governo de Getúlio Vargas, foi criado o Ministério da Educação e Saúde, que precedeu à reorganização do ensino superior, secundário e comercial.

Com o advento da Constituição Federal de 1934, algumas mudanças foram introduzidas, resultantes de frutos de debates que a antecederam, e foram na seara da responsabilidade de União em fixar uma política nacional em matéria educacional nacional, competência privativa; coordenação e fiscalização em toda a seara nacional; a educação foi proclamada direito de todos; gratuidade do ensino religioso de frequência facultativa106; manutenção do ensino secundário e superior no Distrito Federal e exercer ação supletiva onde fosse necessário. Os Estados ficaram incumbidos de, por meio de seus órgãos executivos e Conselhos Estaduais de Educação, organizar e manter seus sistemas educativos107.Em relação ao financiamento, ficou estabelecido que a aplicação mínima de renda resultante de impostos em 10% para União e Municípios e 20% para os Estados e Distrito Federal. 108

105 A política de saúde, a partir da década de 1930 e durante os cinqüenta anos que se seguiram, desenvolveu-se em dois diferentes níveis de intervenção. Enquanto avançava a ação estatal na implementação de políticas de combate a en-demias e serviços de natureza preventiva, baseada no conceito de interdependência social no que se refere à doença transmissível, o acesso ao tra- tamento médico-hospitalar era garantido apenas para os trabalhadores do setor formal da economia, cobertos pelo sistema previdenciário. Não obstante a am- pliação da cobertura do sistema previden-ciário observada na década de 1970, e a conseqüente expansão no acesso aos serviços médico-hospitalares, é somente na década de 1980 que a saúde se converte em um direito do cidadão, passando a poder ser analisada, em conjunto com a política de educação fundamental, enquanto uma política universal, de caráter permanente, reconhecida como direito social vinculado à cidadania. In CARDOSO JR., op. cit., p. 190.

106 Cedendo à pressão da Igreja. 107 Ademais, houve a vinculação orçamentária que será vista em quadro próprio adiante. 108 Art 156 - A União e os Municípios aplicarão nunca menos de dez por cento, e os Estados e o Distrito Federal nunca

Page 53: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

53

Em termos de ensino superior foi incentivada a criação de universidades. Assim, em 1935 criou-se a Universidade do Distrito Federal109, em 1938 da Universidade do Rio de Janeiro foi transformada em Universidade do Brasil. De forma que, com quatro séculos de atraso, houve a primeira universidade brasileira. Assim, foi implantado um sistema de formação regular de professores secundários em nível universitário, por meio da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, então criadas. Sendo este o setor que teve maior crescimento, cuja importância estava em preparar professores para o ensino secundário, reformado em 1934110, e superior, que passam por um processo de implantação. Em 1935, já se contava com 15 universidades.

A Constituição Federal de 1937 representou um retrocesso, vez que a educação deixou de ser dever do Estado, sendo sua ação supletiva, e de direito para todos, a educação passou a ser um dever e direito natural dos pais. A gratuidade do ensino ficou restrita aos alunos que não pudessem colaborar com a caixa escolar. O ensino foi orientado conforme o aporte financeiro do aluno. Houve ampliação do ensino profissionalizante e técnico, sendo estabelecida uma cooperação entre a indústria e o Estado, de forma que a primeira estava obrigada a criar escolas de aprendizes destinadas aos filhos de seus operários, enquanto os ricos proveriam seus estudos no sistema público ou particular.

A Constituição de 1946 deu ensejo a um período democrático e liberal no Brasil e retomou alguns princípios estatuídos na Constituição de 1934. Em termos educacionais foi retomada a concepção de educação como direito de todos, bem como a gratuidade e obrigatoriedade do ensino primário. Quanto ao ensino secundário, sua gratuidade estava adstrita ao lapso de recurso. Assim, retomou a vinculação dos impostos para o financiamento da educação como direito de todos, a distinção entre a rede pública e privada, bem como repôs em termos federativos a autonomia dos estados na organização do ensino. 111

A fase que teve início com a Constituição de 1967112, concebeu a educação sob a regra da unidade nacional de forma conjunta com a doutrina da segurança nacional, sendo

menos de vinte por cento, da renda resultante dos impostos na manutenção e no desenvolvimento dos sistemas edu-cativos.Ademais, por meio do art. 157 estabelecia-se a seguinte vinculação de receitas:

Art. 157 - A União, os Estados e o Distrito Federal reservarão uma parte de seus patrimônios territoriais para a for-mação dos respectivos fundos de educação.

§1º - As sobras das dotações orçamentárias, acrescidas de doações, percentagens sobre o produto de vendas de terras públicas, taxas especiais e outros recursos financeiros constituirão, na União, nos Estados e nos Municípios, esses fundos especiais, que serão aplicados exclusivamente em obras educativas determinadas em lei.

§2º - Parte dos mesmos fundos se aplicará em auxílio a alunos necessitados, mediante fornecimento gratuito de ma-terial escolar, bolsas de estudo, assistência alimentar, dentária e médica, e para vilegiaturas.

109 O que ocorreu com a reunião de cinco escolas pré-existentes e com uma Faculdade de Filosofia e Letras igual-mente com papel aglutinador.

110 Foi votada a Reforma de Francisco Campos – Decreto 19.890, de 18 de abril de 1931 e Decreto 21.241 de 14 de abril de 1934 -, reorganizando o ensino secundário. Foram estabelecidos definitivamente o currículo seriado, a frequência obrigatória, dois ciclos, um fundamental, de cinco anos, e outro complementar, de dois anos, e a exigência de habili-tação no curso secundário para o ingresso no ensino superior. Mas não passou de uma reforma parcial, deixando à margem o ensino primário e normal e os vários ramos do ensino médio profissional, salvo o comercial. In Marcílio, op. cit, p. 145.

111 CURY, Carlos Roberto Jamil. Estado e políticas de financiamento em educação. Educação e Sociedade – revista de ciência da educação. Campinas, v.28, n100-Especial, outubro 2007, p. 837.

112 Art 65 - O orçamento anual dividir-se-á em corrente e de capital e compreenderá obrigatoriamente as despesas e receitas relativas a todos os Poderes, órgãos e fundos, tanto da Administração Direta quanto da Indireta, excluídas apenas as entidades que não recebam subvenções ou transferências à conta do orçamento.

§ 3º - Ressalvados os impostos únicos e as disposições desta Constituição e de leis complementares, nenhum tributo terá a sua arrecadação vinculada a determinado órgão, fundo ou despesa. A lei poderá, todavia, instituir tributos cuja arrecadação constitua receita do orçamento de capital, vedada sua aplicação no custeio de despesas correntes.

Page 54: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

54

produzidos instrumentos rígidos de controle na educação. A educação passou a ser tratada como área prioritária dada sua relevância para o crescimento do país. No que tange aos recursos, deixou-se de falar em termos de vinculação de impostos para o financiamento da educação escolar, passou a falar apenas de assistência técnica-financeira da União para com os Estados. Tal alteração de norte organizativo ocorreu em nome do planejamento de orçamentos plurianuais, da teoria do capital humano, bem como da racionalização de recursos. 113

Ainda na vigência da Carta Constitucional de 1967 entra em vigor a EC nº. 24 de 1º de dezembro de 1983114, de autoria do então Senador João Calmon que após reiteradas tentativas logra êxito em restabelecer a vinculação115, vindo a ser regulamentada em 1985 através da Lei nº. 7.438. A referida Emenda “estabeleceu um patamar mínimo compulsório de gastos em educação mediante a vinculação de no mínimo 25% das receitas dos estados e municípios e de 18% das receitas da União” 116.

A expansão que a educação sofreu no período da Ditadura Militar, teve início no ensino médio, e posteriormente no ensino superior dada a pressão para expansão de vagas nessa área. Em relação à educação primária e secundário, procedeu a integração vertical, ou seja, excluiu o exame de passagem de um para o outro, o que se revelou positivo. O período de 21 anos que se estendeu até janeiro de 1985, pode ser caracterizado pela “repressão, privatização do ensino, institucionalização do ensino profissionalizante, tecnicismo pedagógico, confusa legislação educacional, autoritarismo e forte centralização”. 117 Ademais, houve a desestruturação da formação dos professores, para ensino fundamental e médio, com a extinção das Escolas Normais e desestruturação das Faculdades de Filosofia.

Percebe-se, de antemão, a completa desestrutura do sistema educacional de acordo com as oscilações políticas, a começar pela expulsão dos jesuítas sem o compromisso de implantar um sistema de ensino público de qualidade e com a devido abrangência. A carência organizativa do sistema de ensino se reproduziu ao longo da história, gerando, por seguidas vezes, um déficit não abarcável pelas normas que surgiam para reestruturar o direito à educação. Nesse sentido, a regras insculpidas na CF/88 e legislação infraconstitucional a partir desse marco, nada mais são do que um esforço legislativo lançado sobre um débito educacional secular. Dessa forma, passa-se à contextualização da CF/88.

113 CURY, op. cit., p. 837-8.114 Emenda Constitucional nº 24 de 1º de dezembro de 1983. Estabelece a obrigatoriedade de aplicação anual, pela

União, de nunca menos de treze por cento, e pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, de, no mínimo, vinte e cinco por cento da renda resultante dos impostos, na manutenção e desenvolvimento do ensino.Artigo único. O artigo 176 da Constituição Federal passa a vigorar com o acréscimo do seguinte parágrafo:“§ 4º - Anualmente, a União aplicará nunca menos de treze por cento, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, na manutenção e desenvolvimento do ensino

115 FERNANDES, Francisco das Chagas Fernandes. (Secretário de Educação Básica do Ministério da Educação, repre-sentante do Ministério da Educação) Redefinição da política de financiamento da educação básica. , p. 25 In Seminários region-ais e setoriais de Educação e Cultura: Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb. Plano Nacional de Cultura – PNC. Centro de Documentação e Informação. Coordenação de Publicações. Brasília, 2006.

116 MARCÍLIO, op. cit. p. 154. 117 “Como se sabe, os chamados direitos humanos de primeira geração, os direitos individuais, consistem em direitos de

liberdade, isto é, direitos cujo exercício pelo cidadão requer que o Estado e os concidadãos se abstenham de turbar”. BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. p. 1-49. In BUCCI, op. cit., p. 3.

Page 55: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

55

2.2.3 Políticas educacionais e Constituição Federal de 1988.

À época da promulgação da Constituição Federal de 1988 - CF/88, predominava a linha de pensamento em prol do Estado mínimo, oriundo de uma vertente liberal conservadora, no entanto, foram estabelecidos direitos fundamentais no texto constitucional que demandavam para além da abstenção da invasão do Estado na esfera privada118, ou seja, ganharam lugar na CF/88 os direitos sociais119, que demandam prestações positivas120 e possuem o propósito de “promover maior igualdade na participação dos cidadãos no desenvolvimento econômico do país”.121 Dessa forma, foi consolidado o Estado sob a vertente social.122

O projeto de reforma constitucional foi marcado pelo processo de organização da sociedade civil na luta pela redemocratização, ocorrido a partir dos anos 1970, marcado por mudanças na agenda de cunho político, econômico e sociais que visava à restauração do Estado democrático de direito e a reordenação do sistema nacional de políticas sociais sob o enfoque redistributivista de proteção social. 123

Em desfavor desse movimento, pesava a crise econômica que o país atravessava e o pensamento predominante no cenário internacional a favor do Estado mínimo, que pesava pela “desconstrução de políticas sociais abrangentes e universais”.124 Por viés semelhante existe a crítica à inflação de direitos, o que impediria da Constituição caber no PIB.125

Entretanto, é importante ter em consideração que cada Constituição possui a marca de uma composição política e histórica específica, sendo “expressão de uma dada composição social e política e espelha tanto as tensões existentes no seio dessa sociedade, como os espaços e mecanismos concebidos para a harmonização desses conflitos”.126 Nesse sentido, a CF/88 é do tipo dirigente e possui regras relativas à política educacional brasileira, inclusive com a previsão de vinculação de receitas para a educação, o que não foi inovação da mencionada Constituição.

Ademais, é salientar que o aporte de recursos a uma política pública possui relação com o compromisso que a instância governamental possui com determinada política social, é interessante visualizarmos a vinculação de receitas à educação nos ordenamentos constitucionais brasileiros na seguinte tabela127:

118 Destaca-se que a primeira constituição a ter direitos fundamentais positivados em seu texto foi a de 1934. 119 Sobre liberdade positiva e negativa, ver: “Dois conceitos de liberdade” in BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humani-

dade: uma antologia de ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.120 CASTRO, op. cit., 2009. p.19.121 Sobre as características que deram ensejo à origem do Estado social, ver: CASTEL, Robert. As metamorfoses da

questão social: uma crônica do salário. Tradução de Iraci D. Poleti. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. 122 CASTRO, op. cit., 2009. p. 27.123 Ibidem. p. 27.124 A existência desta crítica é apontada em BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. p.

1-49. In BUCCI, op. cit., p. 4. 125 BUCCI, op. cit., p. 20.126 TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE SÃO PAULO. Manual Básico de Aplicação de Recursos no Ensino

2007. São Paulo: Imprensa Oficial, 2007. p. 11.127 Alterou os arts. 34, 208, 211 e 212 do texto constitucional e, art. 60 do ADCT.

Page 56: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

56

UNIÃO ESTADOS MUNICÍPIOS

Constituição Federal de 1934 (*) 10% 20% 10%

Constituição Federal de 1937

Constituição Federal de 1946 (*) 10% 20% 20%

Constituição Federal de 1967

Emenda Constitucional 1/69 (**)

Emenda Constitucional 1/83 (*) 13% 25% 25%

Constituição Federal de 1988 (*) 18% 25% (***) 25%

(*) base de cálculo: receita de impostos.(**) base de cálculo: receita tributária.(***) Mínimo – valor maior pode ser destinado. Ex.: Estado de São Paulo – Constituição Estadual, artigo 255: 30%.

Observa-se que a vinculação de receitas ao sistema educacional oscila entre as Constituições brasileiras. Dentre todas as vinculações até então realizadas, não houve nenhuma que atingiu os percentuais estabelecidos na CF/88. Isso ocorre face à disposição em concretizar o direito fundamental à educação de que se encarregou a CF/88. A positivação de uma série de direitos fundamentais no corpo do texto constitucional pode ter afinidade com o Paternalismo, ou mesmo, com a tentativa de recuperação de anos de falta de cuidado social. Não obstante, em termos educacionais, isso significa um avanço para a estrutura da educação no país.

Tais avanços devem ser sensíveis a nível estatístico. E é o que se buscará mensurar no próximo capítulo, ao se tratar da efetividade do direito à educação. Entretanto, antes de adentrar-se nesse tópico é imprescindível conhecer as normas constitucionais que norteiam o direito educacional brasileiro. Após o delineamento do quadro normativo constitucional será possível pensar em termos de efetividade desse direito, bem como compreender os avanços e limites da política educacional no pós CF/88.

Como foi visto até agora, a educação passou por uma série de estruturações e desestruturações ao longo da história nacional. O modelo educacional por vezes se via esgotado e alvo de severas críticas, entretanto, tais críticas tinham a oportunidade de resvalar sobre o modelo em análise, ante a impossibilidade de se recuperar por meio de uma reforma legislativa atrasos seculares em termos educacionais.

Dessa forma, a breve situação história do sistema de ensino brasileiro não possui por função outra que trazer ao leitor a compreensão da desestrutura histórica que a Constituinte de 1988 teve de enfrentar. Com isso, pretende-se situar a análise dos resultados das políticas públicas educacionais com um olhar menos severo, pois o débito educacional possui raízes seculares no país.

Ademais, como toda política pública, a política educacional possui a penetração de valores próprios da cultura política do país, portanto, é carregada dos valores inerentes à esfera pública, em termos de (des)igualdade e cooperação social. É, certamente, infiltrada pelo sistema de solidariedade interna além de se colocar a serviço da reprodução de padrões excludentes.

Page 57: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

57

Nesse contexto, está lançado o desafio das políticas educacionais no pós CF/88. Um primeiro aspecto já pode ser observado, o avanço feito em termos de previsão de vinculação de receitas. Nesse campo, a CF/88, em seu artigo 60 do ADCT, que trata da vinculação de receitas, passou por três reformas em dezoito anos. Tais mudanças refletem tanto o rápido esgotamento das normas referentes às políticas públicas educacionais, uma vez que as metas determinadas foram atingdas, como o esforço em suprir lacunas deficitárias históricas nessa seara. Os demais aspectos normativos constitucionais serão postos a seguir.

2.3 Direito a educação no pós CF/88.

O direito à educação é alvo constante de reformas na história legislativa. Um dos motivos possíveis pode residir na provisoriedade e consequente esgotamento das regras contidas nos dispositivos que são introduzidos no ordenamento. Tal fator pode advir da própria dinâmica necessária à organização do sistema educacional, portanto, a provisoriedade das normas não é fator unicamente de demérito, mas de mérito organizativo e, inclusive, de compromisso político com essa seara.

Tendo em vista que o fator educacional colabora para a formação de liberdades substantivas, o delineamento e a dinâmica das políticas educacionais, por consequência, vão possuir repercussão sobre a formação de liberdades. Considerando que o objeto de pesquisa deste trabalho está adstrito à efetividade do direito à educação no período posterior à promulgação da Constituição de 1988, serão trazidos os elementos que configuram tal direito na seara constitucional.

Nesse sentido, a ordem educacional instaurada pela Constituição Federal de 1988 passou por três momentos. Inicialmente, conforme sua redação original, posteriormente conforme a redação da Emenda Constitucional n º14/96128 e, por fim, conforme o texto da Emenda Constitucional nº 53/06129.A abordagem aqui proposta não se propõe a aprofundar nas respectivas mudanças, mas apenas de tratar as normas inscritas atualmente no ordenamento constitucional brasileiro e salientar as alterações quando indispensável. Destaca-se que existe uma vasta produção legislativa sobre o direito à educação na seara infraconstitucional, cuja análise foge ao objeto deste trabalho.

A educação está prevista no ordenamento constitucional como direito fundamental de natureza social, art. 6º. O Título reservado à Ordem Social vai tratá-lo mais detalhadamente nos arts. 205 a 214, estabelecendo parâmetros para a concretização desse direito. Além da previsão constitucional, há o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº 9.394/96 -, o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069/90 -, o Plano Nacional de Educação – Lei nº 10.172/2001.130 A fim de tornar viável o tratamento do direito à educação, em termos de efetividade, partindo do diálogo com desenvolvimento como liberdade, optou-se por restringir a abordagem legislativa à seara constitucional.131

128 Conferiu nova redação aos artigos 7 º, 23, 30, 206, 208, 211 e 212 do texto constitucional e art. 60 do ADCT. 129 Sobre a LDB ver: CURY, Carlos Roberto Jamil. A educação básica como direito. Cadernos de Pequisa, v. 38, n. 134,

p. 293-303, maio/ago. 2008.130 A respeito, ver publicação do IPEA: Políticas sociais – acompanhamento e análise – nº 16. IPEA: Brasília, 2008.131 DUARTE, Clarice Seixas. A educação como um direito fundamental de natureza social. Educação e Sociedade,

Campinas, vol. 28, n. 100 – Especial, p. 691-713, out. 2007, p. 694.

Page 58: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

58

Ao adentrar na esfera constitucional, cumpre situar a educação como direito fundamental social sob a ótica dos parâmetros constitucionais. O art. 1º da CF/88 dispõe que o Brasil é um Estado democrático de direito, tendo por fundamento a cidadania, a dignidade da pessoa humana, o pluralismo político, incisos II, III e V. Ainda, restou consagrado o princípio da soberania popular no parágrafo único, do mencionado artigo. Dentre os objetivos da República está a busca por uma sociedade livre, justa e solidária, inciso I, a garantia do desenvolvimento nacional, inciso II, a erradicação da pobreza e a marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, inciso III, e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, inciso IV. Destaca-se que é tal a relevância dos direitos fundamentais por serem a fonte legitimadora e razão de ser do próprio sistema jurídico.

Dados esses valores, a forma de concretização dos direitos fundamentais deve estar de acordo tanto com os fundamentos da República quanto com os objetivos. A realização de tais direitos, no Estado social de direito, se dá por meio de políticas públicas. Estas são o objeto, por excelência, dos direitos sociais. Sobre direitos sociais, Duarte afirma:

(...) constituem o grande eixo orientador da atividade estatal, o que pressupõe a reorganização dos poderes em torno da função planejadora, tendo em vista a coordenação de sua função para a criação de sistemas públicos de saúde, educação, previdência social etc.”. 132

Saliente-se que o §1º do art. 5º da CF/88 dispôs que “as normas definidores dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”, o que refuta o caráter de normas programáticas aos direitos sociais, não obstante a falta de consenso sobre o alcance do dispositivo. Ademais, no caso de tratados ou convenções de direitos humanos em que o Brasil seja parte, estes passam a integrar o ordenamento jurídico brasileiro. Por força do disposto no art. 5º, §§ 2º e 3º, caso tais tratados e convenções sejam aprovados conforme o procedimento para a aprovação de emendas constitucionais serão equivalentes a estas.

Em relação à titularidade, objeto e alcance do direito à educação à luz da Constituição Federal de 1988, tem-se que a proteção ao direito à educação possui uma esfera não restrita à esfera individual, mas adstrita à coletiva, pois se trata de um bem comum, pois representa a continuidade do modo de vida que se escolheu por preservar. De forma que sua titularidade também não deve estar restrita ao indivíduo, abrangendo os interesses de grupos de pessoas indeterminadas ou de difícil determinação, como é o caso de futuras gerações, que possui direito ao acesso às tradições públicas, preserváveis pela ação educacional. Assim, apesar de poder falar-se em apropriação privada dos benefícios do direito à educação, este não pode ser compreendido de forma desvinculada da dimensão coletiva e difusa,133 o que o caracteriza como um bem semi-público. 134

O art. 205 da Constituição Federal estabelece que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família, devendo ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, em vistas ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Note-se, portanto, não ser dever atribuído exclusivamente ao Estado, mas, também, à família, bem como deve ser realizada com a colaboração da sociedade. Sua prestação é gratuita e obrigatória aos que se encontram e não se encontram em idade própria.

132 Ibidem, p. 698.133 Conceito de Amartya Kumar Sen em “Desenvolvimento como liberdade”. 134 Art. 208, caput e incisos I a VII.

Page 59: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

59

Ademais, a concepção constitucional considera que a educação não se refere, somente, à mera transmissão de conhecimento. Envolve a formação moral e profissional, o pleno desenvolvimento das capacidades intelectuais da pessoa, o preparo para o exercício da democracia.

O dever do Estado com a educação será efetivado mediante: i)a garantia de educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita os que a ela não tiveram acesso na idade própria; ii) progressiva universalização do ensino médio gratuito; iii) atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino; iv) educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade; v) acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; vi) oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando; vii) atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde135.136

O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo, importando em responsabilidade da autoridade competente quando este não for oferecido pelo Poder Público.137 Portanto, é válido observar que é imprescindível estabelecer alvos prioritários de ação138 a fim de cumprir o requisito da igualdade horizontal e vertical, ou, por outra expressão, cumprir o requisito da equidade. Isso porque deve-se ter em consideração toda a discussão sobre igualdade tratada nos tópicos anteriores, tanto na teoria do desenvolvimento como liberdade como nos termos das críticas relacionadas à tradição brasileira e suas implicações para as políticas sociais.

Portanto, um aspecto que deve permear as políticas públicas é o direcionamento de seus programas no sentido da equidade, tendo em vista que o Brasil se encontra inserido no contexto dos países da América Latina, marcado pelo não alcance de dois objetivos que do desenvolvimento, saber, o crescimento e a equidade.

Além desta falha, a deterioração dos anos 80 foi seguido por um novo padrão de desenvolvimento, um afluente das novas abordagens econômicas para o crescimento progressivo, que incorpora explicitamente a qualidade e treinamento de pessoas na economia. Modelo desenvolvido por Robert Lucas, em termos do ritmo de crescimento progressivo da economia não é determinada por variáveis exógenas, mas endógeno do capital humano,

135 Teor do art. 208 da CF/88 e seus incisos. Ademais, o recenseamento dos educandos no ensino fundamental também compete ao Poder Público, devendo fazer chamada e junto ao pais zelar pela frequência dos alunos à escola. ( Art. 208, §3º).

136 Art. 208, §§1º e 2º. 137 DUARTE, Clarice Seixas. A educação como um direito fundamental de natureza social. Educação e Sociedade,

Campinas, vol. 28, n. 100 – Especial, p. 691-713, out. 2007, p. 698.138 Adicionalmente a esta insuficiencia, el deterioro de los años ‘80 fue seguido por un nuevo patrón de desarrollo, tribu-

tario de los nuevos enfoques sobre el crescimiento económico, que incorpora de manera explícita la calidad y prepara-ción de la gente en la economía. Formulado el modelo por Robert Lucas en términos de que el ritmo de crescimiento de la economia no es determinado por variables exógenas sino por variables endógenas de capital humano, las ori-entaciones internacionales y las políticas económicas de los gobiernos ponen a la educación como uno de los focos privilegiados de la agenda social. Así, el enfoque integrado del desarrollo que caracterizaría el aporte latinoamericano al debate se centra en una demanda prioritaria: que las políticas económicas enfrenten simultáneamente el problema del crecimiento y de la equidad social. En esos diseños, la equidad no sería externa o independiente sino una vari-able interviniente sin cuya consideración no es posible garantizar una crescimiento económico justo y sustentable. In FEIJOÓ, María del Carmen. Equidad social y educación en los ‘90. Instituto Internacional de Planeamiento de la Educación: Buenos Aires, 2002, p. 19.

Page 60: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

60

as orientações internacionais e as políticas econômicas dos governos coloque a educação como foco agenda social privilegiada. Assim, a abordagem integrada do desenvolvimento que caracteriza a contribuição latino-americana para o debate centra-se na procura de prioridade: a de que as políticas económicas, simultaneamente enfrentar o problema do crescimento e da equidade social. Nesses projetos, a igualdade não seria variável externa ou independente, mas uma intervenção sem cuja consideração não é possível garantir uma justa e sustentável crescimento económico progressivo..139

É salutar que, no Brasil, não obstante o início do ensino público ser datado de 1759, com a expulsão dos Jesuítas por Marquês de Pombal, existe uma herança deficitária em termos de universalização da educação, o que não ocorreu em países como a Argentina, que possui um alto índice de escolarização básica. Portanto, o desafio a que se lançaram as políticas educacionais no pós 1988, com o advento da Constituição Federal, foi tanto em termos de igualdade como de equidade, portanto, de igualdade horizontal e vertical.

O conceito de equidade é útil para abordar conceitos de diferenciação social, em outras palavras, a inexistência de iguais desigualdades, ou seja, assimetrias variando de diversas formas nos distintos subsistemas do sistema geral. Assim, surge a necessidade de conjugar um critério sistemático em prol de uma abordagem que trate cada subsistema conforme sua especificidade, ao tempo que surge a necessidade de utilizar-se de um critério sinergético segundo a maior igualdade de oportunidades em um campo pode impactar favoravelmente a igualdade de oportunidades em outros. 140

A introdução desse novo valor rompe com o princípio aristotélico denominado de equidade horizontal, de igual tratamento para os iguais, e as consequências derivadas de tal premissa, basicamente a ideia de que ao garantir condições materiais mínimas e comuns se assegura uma igual contribuição da escola aos resultados da vida adulta. A insuficiência e ineficácia da operação desse princípio foi posteriormente complementada por outro princípio, também aristotélico, de desigual tratamento aos desiguais, ou seja, equidade vertical.141

Sobre os princípios que devem nortear a oferta do ensino, o texto constitucional142 estabelece os seguintes: I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola143; II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; IV – gratuidade do ensino em estabelecimentos oficiais; V – valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com

139 CEPAL/UNESCO (1992) “La educación como eje de la transformación productiva con equidad”.140 La introducción de ese nuevo valor rompe el principio aristotélico denominado de equidad horizontal, de igual

tratamiento para los iguales, y las consecuencias derivadas de dicha premisa, básicamente la idea de que al garantizar condiciones materiales mínimas y comunes se asegura una igual contribución de la escuela a los resultados de la vida adulta. La insuficiencia e ineficacia de la operación de ese principio fue posteriormente complementada por otro principio, también aristotélico, de desigual tratamiento a los desiguales, es decir, equidad vertical. In Morduchowicz, Alejandro. Intervención estatal, incentivos y desempeño educativo. IIPE-UNESCO: Buenos Aires, 2000.

141 Art. 206 da CF/88.142 A princípio, este dispositivo não se aplica à iniciativa privada. 143 “A lei disporá sobre as categorias de trabalhadores considerados profissionais da educação básica e sobre a fixação

de prazo para a elaboração ou adequação de seus planos de carreira, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. Art. 206, parágrafo único.

Page 61: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

61

ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas; VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei; VII – garantia de padrão de qualidade; VIII – piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública144, nos termos de lei federal.

A Constituição de 1988 prevê a fixação de conteúdos mínimos para o ensino fundamental a fim de assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. Nesse sentido, o ensino religioso é de matrícula facultativa e assegura-se às comunidades indígenas que o ensino fundamental será ministrado utilizando sua língua materna e conforme processos próprios de aprendizagem.145 Em relação às universidades, bem como às instituições de pesquisa científica e tecnológica, estas gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Ademais, lhes é facultado admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros na forma da lei.146

Há a previsão do estabelecimento em lei do plano nacional de educação – PNE – , promulgado com a Lei n° 10.172/2001, que deverá ter duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas, com o objetivo de conduzir à: I – erradicação do analfabetismo; II – universalização do atendimento escolar; III – melhoria da qualidade de ensino; IV – formação para o trabalho; V – promoção humanística, científica e tecnológica do País; e V – estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto.147

A organização do sistema de ensino entre os três entes federais deve ser feita em regime de colaboração. Portanto, na organização de cada sistema de ensino os entes devem definir formas de colaboração, de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório.148 A União deve organizar o sistema federal de ensino, financiar as instituições de ensino públicas federais e exercer, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnico e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. Os Municípios devem atuar prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil, enquanto os Estados e o Distrito Federal no ensino fundamental e médio. 149

A manutenção e o desenvolvimento dos sistemas de ensino federal, estadual e municipal conta com a aplicação obrigatória da receita resultante de impostos150, por parte da União, de no mínimo dezoito por centro, e dos Estados, Distrito Federal e Municípios, de no mínimo de vinte e cinco por cento. Para fins de compor o cálculo, a receita do governo

144 Art. 210 da CF/88. A Lei nº 10.172, DE 9 DE JANEIRO DE 2001, aprovou o Plano Nacional de Educação, com duração de dez anos. Proposta de um novo plano, com vigência para o período de 2011 a 2020, encontra-se em elaboração pelo Ministério da Educação. Cf.: MEC deve finalizar proposta para Plano Nacional até julho, Disponível em: http://aprendiz.uol.com.br/content/chonichiue.mmp, acesso em 12/08/2010.

145 Art. 207 e §§.146 Art. 214 da CF/88.147 Art. 211, caput, e §4º. 148 Art. 211, §§ 1º a 3º.149 Compreendida a proveniente de transferências. 150 Art. 212 e §§.

Page 62: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

62

que transferir a parcela da arrecadação de impostos não é considerada. A distribuição dos recursos visa assegurar a prioridade ao atendimento das necessidades do ensino obrigatório, no que se refere à universalização, garantia de padrão de qualidade e equidade, nos termos do plano nacional de educação. O financiamento dos programas suplementares de alimentação e assistência à saúde deve se dar com recursos oriundos de contribuições sociais e outros recursos orçamentários. Uma fonte adicional de financiamento à educação básica pública é o salário à educação, de forma que a distribuição das cotas estaduais e municipais será proporcional ao número de alunos matriculados na educação básica e respectivas redes públicas de ensino.151

Quanto à forma de aplicação do recurso152, este será dirigido às escolas públicas, bem como às escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, desde que: I – comprovem finalidade não-lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação; e II – assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades. Ademais, poderão ser destinados recurso a bolsas de estudo para o ensino fundamental e médio, bem como às atividades de pesquisa e extensão.

2.4 Considerações

A formação das políticas sociais no Brasil, como visto, é caracterizada historicamente pela gestão filantrópica da pobreza. As características salientadas sobre a tradição brasileira, em específico, a forma de socialização pela distinção, bem como aspectos inerentes ao Estado welfarista, possuíram o condão de orientar as políticas sociais nacionais. Em outras palavras, a ação social consolidou-se a partir da condição de trabalhador, em resposta à questão advinda da pobreza operária, sem buscar romper com o status quo, apenas evitando uma possível ruptura advinda da insustentabilidade da situação dos operários.

A política educacional nacional acompanhou o movimento de expansão das políticas sociais, de forma que a época de sua maior expansão ocorreu no pós CF/88, em que coincidentemente houve o maior aporte de recursos vinculados à educação, organizados na forma de fundo financeiro. Portanto, dentre todos os períodos de avanços e retrocessos em termos de política educacional, o Brasil vive hoje no apogeu de seu sistema educacional, em termos de recursos, e de norma organizativas do referido sistema.

Entretanto, atualmente não temos uma estrutura educacional sem lacunas, como será visto adiante, e sim uma tentativa de avanço que busca saldar uma herança de 319 anos de desestrutura de ensino. Destaca-se que nesse longo período, o Brasil passou por uma série de reformas educacionais marcadas, essencialmente pela tradição do uso da legislação como instrumento de transplante de instituições educacionais e pela importação de conceitos institucionais norte-americanos e europeus. Isso ocorria dada a ausência de disposição em olhar para as demandas próprias do país, tendo a ideia pré-concebida de que o melhor a ser feito em termos de reformas educacionais situava-se no transplante de instituições estrangeiras na área da educação.

151 Art. 213.152 LOPES, Carla Patrícia Frade Nogueira. A efetividade do Direito Internacional Ambiental – O caso da cites, p. 60-1.

In BARROS-PLATIAU, Ana Flávia, VARELLA, Marcelo Dias. A efetividade do direito internacional ambiental. Bra-sília: Ed. UniCEUB, UNITAR e UnB, 2009. Para uma compreensão mais exaustiva sobre o tema, ver: BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas – limites e possibilidades da Constituição brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

Page 63: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

63

A CF/88 trouxe em seu texto normativo uma série de disposições sobre o direito à educação e positivou a política pública educacional, dada a necessidade de carregar o texto constitucional com tais elementos. Isso ocorre devido à necessidade de se assegurar em plano constitucional à política social destinada a essa área, a fim de conferir estabilidade ao sistema de ensino. A normatização da política educacional no plano constitucional decorre da característica dirigente da CF/88, que, por sua vez se constitui devido a nuances do contexto nacional, de forma que a estabilidade do ensino público demandou bases constitucionais.

O trabalho que aqui se apresenta, propõe-se a compreender a efetividade do direito à educação, por meio do diálogo entre as normas estabelecidas na Constituição de 1988 e dos resultados estatísticos da implementação das respectivas normas. Diante do exposto, a reflexão sobre efetividade do direito à educação será adstrita aos termos da norma inscrita no art. 205, caput. Dessa forma, passa-se à terceira parte do estudo, a fim de compreender os avanços e limites do direito à educação no pós CF/88, tendo em consideração os aspectos filosóficos e contextuais explicitados nos capítulos anteriores.

Page 64: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

64

CAPÍTULO 3

EFETIVIDADE DO DIREITO A EDUCAÇÃO.

A terceira parte deste trabalho visa analisar a efetividade do direito à educação no pós CF/88. Para tanto, é proposto o delineamento do conceito de efetividade, bem como em que termos a efetividade será analisada, para posteriormente adentrar na explanação dos dados estatísticos. Dessa forma, pretende-se apreender quais os efeitos da política pública educacional no pós CF/88 na seara social.

A tentativa de aferição revelará, a princípio, dois aspectos; i) os avanços em termos de estrutura do sistema educacional e ii) os limites de tal avanço. Portanto, por meio da análise da efetividade do direito à educação é possível compreender alguns resultados da dinâmica educacional. Será tomado por base os dados relativos ao relatório nacional dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – ODM, e da Pesquisa Nacional de Domicílios – PNAD, no que tange ao analfabetismo. Mas, primeiramente, passa-se à compreensão de efetividade.

É interessante notar que os dados não podem sofrer uma análise descontextualizada da trajetória histórica da educação nacional, ao revés, é possível notar que seus avanços e limites são condicionados pela defasagem em termos de equidade de determinadas categorias, como região, cor ou raça, bem como renda. Dessa forma, os aspectos históricos da trajetória das políticas sociais e educacionais expressam-se nos dados sob análise, o que, por sua vez, possui o condão de elucidar a diferença entre tradições explícita em Amartya Sen. Em outras palavras, os aspectos da tradição brasileira ressaltados no capítulo anterior serão visualizados por meio da realidade expressa nos dados estatísticos.

3.1. Conceito de efetividade.

A efetividade do direito à educação, ou a eficácia social do direito à educação, posto que é uma norma jurídica, representa tanto a aplicabilidade da norma correspondente, como sua realização no meio social objeto de regulação, promovendo a similitude entre o ser e o dever ser. Dessa forma, a efetividade está adstrita à subsunção da conduta humana à norma, em termos gerais.153

No entanto, pensando em termos de direitos sociais, cujo objeto de concretização se configura sob a forma de políticas públicas, a efetividade de tal direito estará adstrita à subsunção da situação social à política pública. Portanto, falar em efetividade do direito à educação aproxima-se estritamente em falar de efetividade da política pública educacional.154

153 Apesar de existir um discussão complexa sobre a efetividade de normas, foi feita a opção por tomar por base um conceito já posto sem discutí-lo ou rediscutí-lo, por isso fugir ao objeto do trabalho.

154 A compreensão da importância dos direitos sociais pode ser vista na proposta de Amartya Sen em “Desenvolvimento como liberdade”, que destaca o preparo social em prol de um melhor aproveitamento do crescimento econômico. Sen percebe a riqueza nos termos de Aristóteles, em que “a riqueza evidentemente não é o bem que estamos buscan-do, sendo ela meramente útil e em proveito de alguma outra coisa”. “The Nicomachean ethics, ed. rev., trad. D. Ross, Oxford University Press, 1980, livro I, seção 5, p. 7.” apud SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 28.

Page 65: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

65

Os direitos sociais155 representaram a mudança da postura estatal, de abstencionista para o enfoque prestacional,156 ampliando a estrutura de proteção social. No Brasil, a CF/88 substanciou um avanço na estrutura do sistema de proteção social157, o que teve implicações no tipo de atuação estatal para a promoção da igualdade e liberdade no país. Com a ênfase dos direitos prestacionais, as políticas públicas também ganharam destaque visto que são a forma de realização de tais direitos por excelência.

Falou-se sobre certas características das políticas públicas brasileiras no capítulo anterior, para ser possível conhecer um pouco de suas características. Neste ponto da reflexão, cabe trazer o que seria a política pública em si, portanto, de que forma ela poderia ser conceituada. BUCCI descreve política pública nos seguintes termos158:

Política pública é programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Como tipo ideal, a política deve visar a realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à consecução e o intervalo de tempo em que se separa o atingimento dos resultados.159

A fim de pensar a efetividade do direito à educação, é importante analisar tanto o cumprimento das normas dispostas no ordenamento constitucional, quanto a realização

155 BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. p. 1-49. In BUCCI, Maria Paula Dallari. (org) Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 2-3.

156 Também denominado “Sistema Brasileiro de Proteção Social (SBPS)”. In JACCOUD, Luciana Barros. SILVA, Fre-derico Augusto Barbosa da. Questão social e políticas sociais no Brasil contemporâneo. Brasília: IPEA, 2005.

157 BUCCI, Maria Paula Dallari. (org.) Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. pp. 3-47. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 39.

158 Sobre o conceito de políticas públicas não existe unanimidade. Nesse sentido também é interessante destacar o con-ceito trazido por SARAVIA, segundo o qual: “Trata-se de um fluxo de decisões públicas, orientado a manter o equilí-brio social ou a introduzir desequilíbrios destinados a modificar essa realidade. Decisões condicionadas pelo próprio fluxo e pelas reações e modificações que elas provocam no tecido social, bem como pelos valores, ideias e visões dos que adotam ou influem na decisão. É possível considerá-las como estratégias que apontam para diversos fins, todos eles, de alguma forma, desejados pelos diversos grupos que participam do processo decisório. A finalidade última de tal dinâmica – consolidação da democracia, justiça social, manutenção do poder, felicidades das pessoas – constitui elemento orientador geral das inúmeras ações que compõem determinada política. Com uma perspectiva mais op-eracional, poderíamos dizer que ela é um sistema de decisões públicas que visa a ações ou omissões, preventivas ou corretivas, destinadas a manter ou modificar a realidade de um ou vários setores da vida social, por meio da definição de objetivos e estratégias de atuação e da alocação dos recursos necessários para atingir os objetivos estabelecidos”. SARAVIA, op. cit.,. p. 29

Trata-se de um conceito elaborado para fins diversos que o de BUCCI. Esta buscou compreender o conceito de políticas pública em sua relação com o direito, enquanto SARAVIA partia da preocupação da administração pública, elaborando o conceito com elementos que fossem compreendidos nessa seara.

159 Tal recorte é semelhante, mas de certa forma ampliativo, ao realizado pelo IPEA em estudo sobre a efetivação da educação no Brasil. A saber: INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Brasil em desenvolvimento: estado, planejamento e políticas públicas. Brasília: IPEA, 2009. – Capítulo 22 do 3º volume.

Ademais, sobre o IPEA: Fundação pública vinculada à Secretaria de Assuntos Estratégicos, o IPEA fornece suporte técnico e institucional às ações governamentais – possibilitando a formulação de inúmeras políticas públicas e de programas de desenvolvimento brasileiro – e disponibiliza, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados por seus técnicos. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Brasil em desenvolvimento: estado, planejamento e políticas públicas. Brasília: IPEA, 2009. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_ content&view=article&id=239&Itemid=6>. Acesso em: 12 mai 2010.

Page 66: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

66

das mesmas normas no meio social. Para ambos os pontos, deve-se partir da indagação de se a política pública, objeto do direito à educação, é efetiva, portanto, se é apta a realizar os objetivos definidos, se existe uma seleção de prioridades, bem como a reserva dos meios necessários à consecução e o intervalo de tempo definido para atingir os resultados.

Até aqui, nessa brevíssima argumentação, tem-se dois pontos para mensurar a efetividade do direito social em questão. O primeiro é saber se existe uma política pública educacional que corresponda aos requisitos definidos acima e, por conseguinte, se eles estão sendo cumpridos. O segundo é saber se tal política pública tem sido capaz de penetrar no meio social a fim de concretizar o objetivo a que se propõe, qual seja, o direito à educação.

Em relação ao primeiro ponto, é possível falar que existe uma política pública educacional estabelecida em patamar constitucional. Tanto o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental – FUNDEF, criado pela Emenda Constitucional n° 14/96, quanto o Fundo de Educação Básica – FUNDEB, criado pela Emenda Constitucional n° 53/06, são políticas públicas com suporte constitucional. Ambas alteraram o art. 60 do ADCT a fim de vincular as receitas da educação disciplinadas na normas inscrita no art. 212 do texto constitucional. Também possuem tempo determinado para concretização e atingimento de objetivos.

Já ao que toca o segundo ponto, é necessário um olhar não puramente normativo, mas antes de tudo que consiga extrair da realidade que se expressa no meio social as transformações decorrentes da implementação da política pública educacional. Portanto, necessita-se de um instrumento para mensurar o segundo ponto da efetividade do direito à educação. Neste trabalho, foi feita a escolha de mensurar por índices, por crer que se trata da escolha mais apropriada para a espécie do trabalho em questão.

Assim, passa-se à análise dos resultados estatísticos em termos educacionais para trazer a reflexão sobre a efetividade do direito à educação, compreendendo seus avanços e limites de forma sincronizada aos avanços legislativos no patamar constitucional. Em outras palavras, a análise dos resultados estatísticos acompanha as alterações relativas ao direito à educação conforme o texto original da CF/88 e emendas constitucionais n° 14/96 e 53/06.

A compreensão de tais resultados de forma adequada demanda, ainda, que se leve em consideração a discussão teórica realizada na primeira e segunda parte do trabalho, fazendo-se um esforço interpretativo na linha das reflexões sobre desenvolvimento como liberdade e seus pressupostos, bem como em termos de formação da liberdade na tradição brasileira e suas implicações para as políticas educacionais.

3.2 Dados estatísticos.

A reflexão sobre a educação no Brasil é, antes de tudo, complexa. Isso por se tratar de um direito que possui uma trajetória histórica específica que delineia características próprias de um sistema educativo. Uma especificidade do sistema educativo brasileiro é a variação de características estruturais conforme a localização geográfica. Dessa forma, é importante que se tenha atenção ao que revela a interpretação dos dados, para ser possível identificar as características que possuem interferência ou se sobressaem na organização da estrutura educativa brasileira.

É consolidada no texto constitucional a educação como direito de todos. Dessa forma, a análise que se propõe nesse terceiro capítulo será realizada a partir desse

Page 67: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

67

preceito constitucional, inscrito no art. 205, caput, da CF/88. Entretanto, a ênfase será posta unicamente a partir do dever do Estado com a educação.

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

A fim de iniciar a análise, propõe nesse primeiro momento, compreender a efetivação do direito à educação com base nos resultados levantados pelo relatório dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – ODM. O aspecto seguinte a ser abordado tange a qualidade do ensino na educação básica e, em seguida, a fim de chegar ao que se considera um dos nós críticos do sistema educacional, que é o analfabetismo. O analfabetismo é o elemento que se situa na extremidade oposta à realização do princípio da educação como direito de todos, portanto, a faixa populacional que se encontra em situação de analfabetismo revela com nitidez a não efetividade do direito à educação. O recorte realizado parte da preocupação com a superação de algumas condicionantes da educação no Brasil160:

A começar pelo elevado índice de analfabetismo, cujas raízes remontam à escravidão e ao pouco interesse que o colonizador português conferiu à educação na colônia. Este desinteresse também implicou na chegada tardia da educação superior ao Brasil, muito tempo depois de sua implantação em diversas colônias da América hispânica. A baixa qualidade do ensino ofertado e o incipiente rendimento dos estudantes da maioria das escolas públicas brasileiras também resultam de modelo de expansão dos sistemas de ensino órfão dos necessários aportes de recursos. Além de o financiamento ser insuficiente, o que compromete em grande medida a qualidade do ensino ofertado pelos sistemas públicos, as precárias condições socioeconômicas de parcela considerável do alunado tendem a agravar seu rendimento escolar. Como decorrência de tais fatores, os processos educacionais tornam-se seletivos e excludentes, de modo que boa parte do alunado é submetida a sucessivas reprovações que, no limite, culminam com a evasão escolar definitiva.161

Dessa forma, pode-se observar que existe no Brasil uma série de condicionantes que interferem na estrutura educativa devido a posturas absenteístas em relação à educação. Como salientado anteriormente, após a expulsão dos jesuítas houve uma desestrutura do sistema de ensino sem que fosse pensada uma estrutura eficaz para substituí-la e expandi-la, o que somente veio a ocorrer ao longo da história educacional sem atentar, por vezes, às diferenças sociais que condicionavam o acesso e a permanência no sistema de ensino.

Ademais, além da dificuldade de acesso e permanência, a baixa qualidade agravava a situação do educando. Esta era condicionada, na maioria das vezes, pela ausência de um aporte razoável de recursos, o que tornava o sistema educacional sensível aos desníveis externos como também a internos, que comprometiam a própria oferta do ensino.

160 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Brasil em desenvolvimento: estado, planejamento e políticas públicas. Brasília: IPEA, 2009. p. 617.

161 A ideia de círculo/ciclo também está presente em CASTRO, Cláudio de Moura. Educação brasileira: consertos e remendos. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. p. 51: “Quem vai continuar a educar a nossa juventude é a escola que aí está com os seus professores e sua administração”.

Page 68: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

68

A organização da análise da efetivação do direito à educação segundo esses pontos permite conceber a educação de forma sistêmica e, por conseguinte, apreender os nós críticos do sistema educacional. 162 Ressalte-se que uma das principais contribuições da teoria de desenvolvimento foi a elaboração do Índice de Desenvolvimento Humano163 e sua influência na definição dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – ODM, firmado no ano 2000 por 191 chefes de Estado. O documento dessa iniciativa estabeleceu metas para 2015 a partir da proposta de inserção dos direitos humanos sob a perspectiva do desenvolvimento. Para educação, foi estabelecida a meta de “garantir que até 2015 todas as crianças, meninos e meninas, concluam o nível primário de ensino”. Essa meta se subdivide em meta 3, designada pelas Nações Unidas, e meta 3A, formulada pelo Brasil. Meta 3: “garantir que, até 2015, as crianças de todos os países, de ambos os sexos, terminem um ciclo completo de ensino”. Meta 3A: “garantir que até 2015, todas as crianças, de todas as regiões do país, independentemente de cor/raça e sexo, concluam o ensino fundamental.”164 165 Nesse sentido, passa-se à análise.

3.2.1 Relatório nacional de acompanhamento dos “objetivos de desenvolvimento do milênio” – ODM e aspectos afins.

Este ponto proprõe abordar o Relatório Nacional de Acompanhamento do ODM realizado em 2010, com dados referentes a 1992, 2005 e 2008. A meta estabelecida pelo Brasil foi de “garantir que até 2015, todas as crianças, de todas as regiões do país, independentemente de cor/raça e sexo, concluam o ensino fundamental.”166 A aferição do

162 O objetivo da elaboração do Índice de Desenvolvimento Humano é oferecer um contraponto a outro indicador muito utilizado, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita, que considera apenas a dimensão econômica do desenvol-vimento. Criado por Mahbub ul Haq com a colaboração do economista indiano Amartya Sen, ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 1998, o IDH pretende ser uma medida geral, sintética, do desenvolvimento humano. Não abrange todos os aspectos de desenvolvimento e não é uma representação da “felicidade” das pessoas, nem indica “o melhor lugar no mundo para se viver”.

Além de computar o PIB per capita, depois de corrigi-lo pelo poder de compra da moeda de cada país, o IDH também leva em conta dois outros componentes: a longevidade e a educação. Para aferir a longevidade, o indicador utiliza números de expectativa de vida ao nascer. O item educação é avaliado pelo índice de analfabetismo e pela taxa de matrícula em todos os níveis de ensino. A renda é mensurada pelo PIB per capita, em dólar PPC (paridade do poder de compra, que elimina as diferenças de custo de vida entre os países). Essas três dimensões têm a mesma importância no índice, que varia de zero a um.

Apesar de ter sido publicado pela primeira vez em 1990, o índice foi recalculado para os anos anteriores, a partir de 1975. Aos poucos, o IDH tornou-se referência mundial. É um índice-chave dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas e, no Brasil, tem sido utilizado pelo governo federal e por administraçõ Índice de Desen-volvimento Humano Municipal (IDH-M), que pode ser consultado noAtlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, um banco de dados eletrônico com informações sócio-econômicas sobre os 5.507 municípios do país, os 26 Estados e o Distrito Federal. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/idh/> . Acesso em 27 jan 2011.

163 Objetivos de desenvolvimento do milênio - ODM. Relatório Nacional de acompanhamento. IPEA: Brasília, 2010. Disponível em: <http://www.ipea. gov.br>.

164 Destaca-se que tal perspectiva de igualdade assemelha-se ao conceito de igualdade complexa, citada por Maria Del Carmen Feijóo, ao tratar da insuficiência do modelo igualitário sarmientista na Argentina. FEIJOÓ, Maria del Car-men. Argentina: equidad social y eduación en los ’90. IIPE – UNESCO: Buenos Aires, 2002. p. 16

165 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA - IPEA. Objetivos de desenvolvimento do milênio. Relatório Nacional de acompanhamento. IPEA: Brasília, 2010.

166 Destaca-se que o relatório de 2007 trazia sete indicadores, enquanto o de 2010 traz cinco. O indicador C tratava da “taxa média esperada e tempo médio de conclusão da 4ª e da 8ª série do ensino fundamental”. O atual indicador E correspondia ao G, enquanto o indicador E tratava do “resultado do SAEB em língua portuguesa na 4ª série do ensi-no fundamental, por redes de ensino, em escolas urbanas”, e o indicador F, dos “resultados do SAEB em matemática na 3ª série do ensino fundamental, por redes de ensino, em escolas urbanas”. Ibidem.

Ademais, a discussão sobre a mudança de indicadores não será objeto do presente artigo.

Page 69: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

69

cumprimento parcial dessa meta foi feita no Relatório de 2010167 por meio dos seguintes indicadores:

INDICADOR A: Taxa de frequência escolar líquida das pessoas de 7 a 17 anos, por grupos de idade e nível de ensino, segundo sexo e cor/raça – Brasil e grandes regiões.

INDICADOR B: Taxa de frequência líquida das pessoas de 7 a 17 anos de idade, segundo os quintos de rendimento familiar mensal per capita.

INDICADOR C: Proporção de pessoas de 11 e 12 anos que tenham concluído a 4ª série do ensino fundamental e pessoas de 18 anos que concluíram este nível de ensino.

INDICADOR D: Índice de adequação idade/anos de escolaridade, da população de 9 a 16 anos – Brasil e grandes regiões.

INDICADOR E: Taxa de alfabetização das pessoas de 15 a 24 anos de idade, segundo sexo, cor/raça e situação do domicílio – Brasil e grandes regiões.168

A partir dos resultados do primeiro indicador, foi possível constatar, no âmbito do EF, a diminuição das disparidades de acesso em todos os itens relacionados, portanto, foram reduzidas as desigualdades regionais; a desigualdade entre os sexos foi anulada no ensino fundamental – EF e acentuada na faixa etária seguinte, correspondente ao ensino médio - EM; as desigualdades de cor/raça foram sensivelmente atenuadas, bem como a de localização, rural/urbana. A seguir, a tabela com os dados referentes à taxa de escolarização líquida169:

167 IPEA, op. cit., 2010. p. 43 168 A taxa de escolarização líquida leva em consideração a adequação idade-série. É possível visualizar tais dados, extraídos da PNAD, sem o recorte temporal realizado no Relatório Nacional de

acompanhamento dos ODM. A tabela que sintetiza tais dados encontra-se em anexo. De forma que não há uma alteração substancial dos dados em 2009, de forma que venha influir no resultado da

análise dos dados. 169 Além dos dados visíveis na tabela, é possível fazer inferências a partir da relação entre os dados explicitados. Nesse

sentido, a leitura dos dados, tanto nos gráficos como nas tabelas, foi realizado de forma descritiva, ou seja, descreven-do os resultados sintetizados nas tabelas e gráficos e, também, de forma relacional, portanto, a partir das proporções verificáveis entre os dados.

Page 70: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

70

Tabela 1

Os dados sintetizados na tabela 1 revelam que existem duas regiões que estão abaixo da média nacional, quais sejam, a norte e a nordeste, enquanto as demais se encontram acima. É possível perceber que existe uma desigualdade entre a taxa de escolarização líquida entre as regiões, em desfavor das regiões que possuem um histórico de desigualdade e exclusão social. A taxa também é mais baixa na faixa populacional de cor preta e parda e que de localização rural.170

Ademais, depreende-se da análise dos dados, que houve o aumento em 87,5% dos números sintetizados no ano de 2008, em relação ao ano de 2005, ou seja, vinte e um de vinte e quatro. A diminuição da taxa de escolarização na faixa etária de 7 a 14 anos na Região Sudeste, Sul e Centro-oeste acabou colaborando para uma maior homogeneidade entre as regiões, de forma que a região mais escolarizada voltou a ser a Sudeste, pois esta sofreu queda de apenas 0,1 p.p.171 de 2005 a 2008, enquanto a sul sofreu a queda de 0,7 p. p. no mesmo período. A redução das disparidades ocorreu também devido ao crescimento da taxa de forma mais acentuada na Região Norte e Nordeste, nesta última principalmente. Dessa forma, a média nacional, que em 1992 situava-se em 81,4 e que sua formulação era composta de números díspares na ordem de 18,3 p.p. em 2008, passou a ser de 94,9172, com uma disparidade reduzida a 2,1 p. p. Em relação à taxa de escolarização na faixa etária de 15 170 Por p.p. entende-se pontos percentuais. 171 Acréscimo de 12%.172 Dada a vigência do FUNDEB, política pública direcionada para o ensino obrigatório – EF e EM – a expectativa é

de que nos próximos anos essa desigualdade seja atenuada.

Page 71: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

71

a 17 anos, os números também são positivos. A média nacional passou de 18,2 para 50,4, o que corresponde a um acréscimo de 175%.

Quanto à desigualdade entre o sexo feminino e masculino na faixa etária de 7 a 14 anos, que em 1992 era de 2,1 p. p. a favor do sexo feminino, em 2008 foi anulada, enquanto na faixa etária de 15 a 17 anos, passou de 6,2 para 14,4 p. p. no mesmo período em detrimento do sexo masculino. Este teve o crescimento de 194%, enquanto a taxa de escolarização feminina teve o crescimento de 166%, o que potencializou as desigualdades, pois para que se igualassem, a taxa de escolarização do sexo masculino teria de ter crescido 276% no período analisado.

Em relação à desigualdade entre cor/raça, observa-se que esta sofreu redução tanto no EM quanto no EF. Neste, a redução foi de 11,5 p.p. enquanto naquele foi de -0,9 p.p., de forma que, a desigualdade no EF ficou na ordem de 0,7 p.p. enquanto no EM, 18,8 p.p. Tal movimento no ensino médio ocorreu, pois a taxa de escolarização dos brancos com idade entre 15 e 17 passou de 27,1% em 1992 para 61% em 2008, enquanto a dos pardos/negros foi a 9,2% para 42,2%, em outras palavras, enquanto a escolarização dos brancos cresceu 125%, a dos pardos/negros cresceu 358,7%, entretanto, teria de ter crescido 563% a fim de que tal desigualdade fosse anulada.

Quanto à localização, no período compreendido entre 1992 e 2008, a desigualdade em torno da taxa de escolarização do EF passou de 19,7 p.p. para 0,8 p.p., portanto, 18,9 p.p., enquanto no EM a redução foi de 4 p.p. Entretanto, destaca-se que em 2005, no EF a desigualdade estava na ordem de 2,7 p.p. enquanto no EM estava na ordem de 25,7 p.p ou seja, no EM houve uma forte acentuação das desigualdades, conforme os dados de 2005, e ainda não foi recuperado o nível de desigualdade registrado em 1992, apesar de já demonstrar relativa queda.

Dessa forma, observa-se que as desigualdades já atenuadas no EF persistem no EM. Dos fatores que colaboraram para essa situação, destacam-se a disparidade da situação inicial do EM em relação ao EF e a vigência do Fundef, política pública específica para o EF.173

Retomando o relatório sobre os ODM, os resultados relativos ao indicador B, taxa de frequência líquida das pessoas de 7 a 17 anos de idade, segundo os quintos de rendimento familiar mensal per capita, pode ser visualizado no seguinte gráfico:

173 Base de cálculo: se 5,1 p. p. corresponde a 100% da desigualdade existente em 2005, 1,8 p. p. corresponde a 35,3% dessa desigualdade, dessa forma, houve a redução de 64,7%.

Page 72: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

72

Gráfico 1

A partir dos dados representados no gráfico 1, pode ser percebida uma tendência de equiparação entre os quintos de renda, de forma que a taxa de escolarização entre o 1º quinto e o 5º quinto, passou de 5,1 p.p. para 1,8 p.p. ou seja, uma redução de 64,7%.174 Tal diferença passa a ser expressiva quando analisado o EM, conforme gráfico 2:

Gráfico 2

174 IPEA, op.cit, 2010, p. 46.

Page 73: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

73

Conforme os dados do gráfico 2 foi possível perceber que as disparidades entre os quintos de renda permanecem, bem como que houve o aumento da taxa de escolarização em todos os quintos no período analisado. Observa-se que a disparidade entre os 20% mais pobres e o último extrato de renda era de 49,5 p.p., em 2005, e passou a ser de 48,9 p.p uma redução de 0,6 p.p. O crescimento da taxa de frequência no primeiro quinto foi de 32,1% e do último foi de 9,2%, de forma que a equiparação de tal taxa entre as faixas de renda demandaria um crescimento na ordem de 250,4% entre 2005 e 2008, tendo em vista que o crescimento de 1% no último quinto correspondeu a 0,719 p.p. e o primeiro quinto a 0,224 p.p; assim cada 1% de crescimento em cada quinto guardou a diferença de 0,495 p.p

É inequívoca a correlação entre renda e frequência ao ensino-médio. Pelo fato da distorção idade-série ser maior entre os estudantes de baixa renda, parcela considerável destes conclui o ensino fundamental na idade adulta, o que dificulta o ingresso e a permanência no ensino médio, tendo em vista sua necessidade de ingressar no mercado de trabalho. 175

É possível considerar que existem uma relação entre a disparidade de escolarização entre os quintos de renda e a distorção idade/anos de escolaridade que “fica evidenciada quando se constata que 84% dos jovens de 15 a 17 anos frequentavam a escola em 2008, mas apenas 50% cursavam o ensino médio.

Entre os pertencentes ao primeiro quinto de renda, a taxa de frequência líquida mantinha-se quase 21 p. p. abaixo da média nacional”. 176 Para tratar da distorção idade/anos, pode-se observar os dados referentes ao indicador D, índice de adequação idade/anos de escolaridade, da população de 9 a 16 anos – Brasil e grandes regiões.

Gráfico 3

A distorção indicada cresce ao longo do processo de escolarização, visto que 41% dos jovens de 16 anos, em 2008, encontravam-se em situação de atraso escolar. Assim, o atraso que aos 9 anos é de 14%, cresce em média 3,85% a.a.177 de idade escolar, sendo mais acentuado na passagem dos 9 para os 10 anos, 0,6 p.p.

175 IPEA, op. cit., 2010, p. 47.176 Tem por a.a.: ao ano. 177 IPEA., op. cit., 2010, p. 47.

Page 74: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

74

Gráfico 4

Se tomarmos por base a média nacional, é possível verificar que 71% dos brasileiros na faixa de população de 9 a 16 anos encontram-se em situação adequada. “Em grande medida, esse alto índice de distorção idade/série é devido às desigualdades regionais, que, por sua vez, estão diretamente relacionadas às desigualdades de renda”. 178 Observe-se que abaixo da média nacional situam-se a Região Norte e Nordeste, estando ambas a mais de 20 p. p. abaixo da Região Sul.

Não obstante tais desigualdades, houve um grande aumento da taxa de conclusão de ensino médio, é o que demonstram os dados vinculados ao indicador C, que registra a proporção de pessoas de 11 e 12 anos que tenham concluído a 4ª série do EF e pessoas de 18 anos concluíram esse nível de ensino:

Tabela 2

178 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Brasil em desenvolvimento: estado, planejamento e políticas públicas. Brasília: IPEA, 2009. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=239&Itemid=6>. p. 619.

Page 75: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

75

Percebe-se certo recuo na conclusão do EF e redução da diferença entre a conclusão do EF aos 12 e EM aos 18 anos de idade, que em 1992 era de 8,2 p.p. em favor do EF passou a ser 2,9 p.p. em favor do EM. Isso ocorreu dado o decréscimo no primeiro de 2,9 p.p. e o crescimento de 6,8 p.p. no segundo, EM.

Por fim, o indicador E refere-se à taxa de alfabetização das pessoas de 15 a 24 anos de idade, segundo sexo, cor/raça e situação do domicílio – Brasil e grandes regiões, e os dados correspondentes são apresentados na tabela 3:

Tabela 3

Percebe-se que a alfabetização entre a população de 15 a 24 anos de idade sofreu a maior redução na Região Nordeste, subiu de 80,0 para 95,7, entretanto ainda está 2,1 abaixo da média nacional em 2008, que é de 97,8. As desigualdades entre as regiões também sofreram decréscimo, na medida em que a desigualdade entre o Nordeste e o Sul que em 1992 correspondia a 16,8 passou a ser de 3,3, ou seja, redução de 13,5. A desigualdade entre o sexo feminino e masculino reduziu 1,3 de 1992 a 2008, enquanto ambos os índices de alfabetização cresceram na ordem de 5 e 8 respectivamente; entre cor/raça a desigualdade foi reduzida em mais da metade, passando de 8,8 para 4 após o crescimento na taxa de alfabetização da população branca em 3,1 e preta/parda em 11,5.

Já em relação à localização, percebe-se que houve um decréscimo da alfabetização da área rural se comparados os anos de 1992 e 2008, entretanto, por o ano de 2005 demonstrar uma queda em relação a 1992, percebe-se o crescimento de 4 de 2008 em relação a 2005. O maior crescimento da taxa de alfabetização nessa faixa populacional foi na área urbana, na ordem de 19,7 de forma a ultrapassar a da área rural.

Page 76: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

76

Dessa forma, é possível constatar que existe uma tendência de equiparação da escolarização líquida entre os quintos de renda, não obstante, no Ensino Médio, ser perceptível a relação entre a distorção idade-série e a baixa renda, também existe uma crescente distorção idade-série, em média de 3,85, conforme os dados de 2008. Outro fator que contribui para tal distorção é a região, que, por sua vez, relaciona-se às desigualdades de renda. Nesse sentido, é possível verificar a proposição de Amartya Sen quanto à relação entre pobreza de rendas e de capacidades; assim, tendo em vista que existe uma reciprocidade entre ambas as pobrezas, pode-se perceber a formação de um círculo vicioso nas regiões Norte e Nordeste.

Outro ponto a ser analisado é o analfabetismo. Este é um elemento que evidencia relações nítidas entre pobreza de renda e pobreza de capacidades, bem como outros elementos relacionados a empecilhos para que a igualdade entre indivíduos seja atingida. Em outras palavras, revela em quais pontos a desigualdade vertical, dificulta que a igualdade horizontal venha a existir. Nesse sentido, são revelados os limites à efetividade do direito à educação.

3.2.2. Analfabetismo.

O analfabetismo relaciona-se tanto às insuficientes e desiguais oportunidades de acesso e permanência na escola na idade adequada, quanto ao fracasso dos sistemas públicos de ensino que geram jovens analfabetos de forma a alimentar um círculo vicioso de má qualidade de ensino, pois geram professores despreparados.179 Além destes, pode-se observar a presença de outros dois fatores, o primeiro relacionado à desmotivação de permanência no ensino tendo em vista o baixo retorno à educação180, e o segundo, à falha na estruturação do ensino a fim de adequar-se às camadas mais pobres da população.181

A análise do analfabetismo é feita com base na taxa de analfabetismo da população de 15 ou mais anos de idade segundo categorias selecionadas, 1992-2009, sendo selecionados seis anos para compor a tabela de análise, conforme o recorte realizado para análise do acesso à educação nas tabelas 1 a 3.

Tabela 4

Faixa etária 1992 1996 1999 2003 2006 2009

15 a 17 anos 8,2 5,8 3,7 2,3 1,6 1,5

18 a 24 anos 8,8 6,7 5,4 3,8 2,8 2,1

25 a 29 anos 10,0 8,1 7,2 5,9 4,8 3,6

30 a 39 anos 12,0 10,1 9,6 8,4 7,3 6,4

40 anos + 29,2 24,8 22,8 20,0 18,0 16,5

Fonte: PNAD (IBGE)Elaboração: Disoc/IPEA – com adaptações.

Em todas as faixas etárias houve o decréscimo da taxa de analfabetismo. A faixa etária com 40 anos ou mais possui a maior taxa, apesar de ter sofrido um decréscimo 179 Para observar a relação entre educação e a perspectiva microeconômica ver IOSCHPE, Gustavo. A ignorância custa um

mundo: o valor da educação no desenvolvimento do Brasil. São Paulo: Francis, 2004. p. 152.180 CASTRO, Cláudio de Moura. Educação brasileira: consertos e remendos. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. p. 65.181 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Brasil em desenvolvimento: estado, planejamento e políticas

públicas. Brasília: IPEA, 2009. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content& view=article&id=239&Itemid=6>. Acesso em: 12 mai 2010. p. 621.

Page 77: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

77

de 56%, ou seja, o maior decréscimo dentre as demais faixas, ainda possui uma taxa maior que a soma das demais taxas, e muito acima 10,5 p.p. acima da média, que situa em 6 p.p.. Ademais, destaca-se a baixa taxa de analfabetismo nas duas primeiras faixas etárias. O cálculo do analfabetismo entre os idosos é resultado de analfabetos provenientes da faixa etária imediatamente anterior, de analfabetos que faleceram no período e de pessoas alfabetizadas no período de análise, de forma que o aumento ocorreu devido ao maior ingresso de analfabetos que a redução proporcionada pelos dois outros fatores.

Dessa forma, percebe-se que há um nó crítico na alfabetização de jovens e adultos, o que revela a insuficiência de promover a erradicação ou a diminuição do analfabetismo dessa faixa etária.182 No que toca às diferenças regionais na distribuição da taxa de analfabetismo, é possível observar:

Tabela 5

Região 1992 1996 1999 2003 2006 2009

Brasil 17,2 14,7 13,3 11,6 10,5 9,7

Norte 14,2 12,4 12,3 10,6 11,3 10,6

Nordeste 32,7 28,7 26,6 23,2 20,7 18,7

Sudeste 10,9 8,7 7,8 6,9 6,0 5,7

Sul 10,2 8,9 7,8 6,4 5,7 5,5

Centro-oeste 14,5 11,6 10,8 9,5 8,3 8,0

Fonte: PNAD (IBGE)Elaboração: Disoc/IPEA – com adaptações.

O analfabetismo da região Norte alcançou, em 2009, taxa similar a das regiões Sudeste e Sul, em 1992, enquanto que a região Nordeste mantém a maior taxa em todo o período, não obstante ter sofrido o decréscimo de 57%. Em outras palavras, se forem somadas as taxas das regiões Sul, Sudeste e Centro-oeste, encontra-se, aproximadamente, a taxa referente à região Nordeste. Nesse sentido, a diminuição das taxas não implicou em uma anulação das disparidades regionais, de forma que ainda é sensível em termos de dados. No que diz respeito à localização, verifica-se:

Tabela 6

Localização 1992 1996 1999 2003 2006 2009

Urbano Metropolitano

8,1 6,5 5,8 5,2 4,4 4,4

Rural 35,9 31,2 29,0 27,3 24,3 22,8

Fonte: PNAD (IBGE)Elaboração: Disoc/IPEA – com adaptações.

O analfabetismo teve decréscimo mais acentuado na localização Urbano Metropolitana, de 45,7%, enquanto na localização Rural foi de 36,5%. A diferença inicial entre as localizações que era de 27,8 p.p., passou a ser de 18,4 p.p., entretanto, em termos

182 IPEA, op. cit., 2009, p. 622.

Page 78: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

78

relativos passou de 343%, em 1992, para 418% em 2009. Dessa forma, a disparidade no decréscimo da taxa resultou em um acirramento das disparidades entre ambas as localidades. Também cabe analisar o analfabetismo no que toca à raça ou cor, veja-se a seguir:

Tabela 7

Raça ou Cor 1992 1996 1999 2003 2006 2009

Branca 10,6 9,4 8,3 7,1 6,6 5,9

Negra 25,7 21,8 19,8 16,9 14,7 13,4

Fonte: PNAD (IBGE)Elaboração: Disoc/IPEA – com adaptações.

A taxa de analfabetismo entre a população de raça negra, após o decréscimo de 47,9%, ainda é, em 2009, 26,4%, ou 2,8 p.p., superior que a taxa correspondente à população branca em 1992. Em outros termos, seria necessário que tal taxa tivesse sofrido o decréscimo de 58,8% para atingir à taxa da população de raça branca registrada em 1992 e de 77,1% para igualar-se à taxa de 2009. Nesse sentido, é possível concluir que persiste um disparidade significativa entre ambas as raças. Por fim, frisa-se que a taxa relativa à população negra é 135, 6% superior à da população branca, conforme registros do ano de 2009.

Ademais, importa trazer à análise o elemento renda. Portanto, a fim de apreender uma possível relação entre renda e analfabetismo, são trazidos dados referentes à taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais de idade, por categorias selecionadas, segundo os quintos de rendimento mensal familiar per capita em 2009.

Tabela 8

RegiãoQuintos de rendimento familiar per capita (%)

1º quinto 2º quinto 3º quinto 4º quinto 5º quinto

Brasil 18,1 13,4 12,8 6,7 2,0

Norte 15,1 10,8 13,4 7,1 3,1

Nordete 23,4 20,2 22,7 11,2 3,8

Sudeste 9,9 8,8 9,0 5,0 1,6

Sul 11,0 8,5 7,1 5,9 1,8

Centro-oeste 12,8 10,2 9,1 9,9 2,0

Fonte: PNAD (IBGE) – com adaptações.Observa-se que em termos de Brasil, existe uma disparidade de 16,1 p.p. entre o

1º e o 5º quinto de renda. Está-se falando que o primeiro quinto de renda possui nove vezes mais analfabetismo do que no último quinto. Em outras palavras, a taxa de analfabetismo no último quinto de renda corresponde a 11% da taxa do primeiro quinto. Tal disparidade é verificada dentre as regiões.

A região que possui em que a disparidade da taxa de analfabetismo por quintos é mais acentuada ocorre na região Centro-Oeste, seguida da região Sul, Nordeste, Sudeste e por fim, a região Norte. Portanto, não obstante a taxa de analfabetismo por quintos na região Nordeste ser superior à média nacional em todos os quintos, a disparidade interna

Page 79: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

79

entre os quintos na região é terceira menor, perdendo para a região Sudeste e Centro-Oeste. Visto de outro ângulo, apesar dessa região possuir uma taxa de analfabetismo que ultrapassa a região Norte em todos os quintos de renda, esta possui uma disparidade de taxa entre os quintos, inferior à região Norte.

Percebe-se que nas regiões Sudeste, Sul e Centro-oeste estão as menores taxa de analfabetismo se analisados o 1º e o 5º quinto de renda. Entretanto, destaca-se que na região Centro-Oeste ainda existe alta um taxa de analfabetismo até o 4º quinto, sendo que este decresce acentuadamente no 5º quinto. Dito de outra forma, a diferença entre o 4º e o 5º quinto é de 7,9 p.p., que pode ser considerada alta. Ademais, o analfabetismo no 4º quinto de renda da região Centro-Oeste só é inferior ao da região Nordeste, sendo, portanto, o segundo maior dentre as regiões.

Nesse sentido, três aspectos são destacáveis, quais sejam i) a contradição interna mediana na região Nordeste, quando comparada às demais regiões, ainda que possua as maiores taxas em todos os quintos; ii) a baixa disparidade entre os quintos da região Norte e iii) a característica peculiar da região Centro-Oeste quanto à alta disparidade interna entre o 1º e 5º quinto, se comparado às demais regiões, bem como a alta disparidade entre o 4º e o 5º quinto de renda. Outra categoria analisada dentro do recorte por quintos de renda é a localização:

Tabela 9

LocalizaçãoQuintos de rendimento familiar per capita (%)

1º quinto 2º quinto 3º quinto 4º quinto 5º quinto

Urbano 14,4 11,0 10,2 5,6 1,6

Rural 25,7 22,9 27,2 16,4 9,9

Fonte: PNAD (IBGE) – com adaptações.Nesta categoria percebe-se que existe simultaneamente uma menor disparidade

entre os quintos na localização rural e uma maior taxa de analfabetismo em todos eles, enquanto na localização urbana existe uma menor taxa de analfabetismo entre todos os quintos e uma disparidade entre o 1º e o 5º quinto de renda.

Até aqui se observou, por meio de ambas tabelas anteriores, que existe uma tendência de existe uma disparidade interna relativamente baixa nas regiões/localidades situa-se as maiores taxas de analfabetismo. Nesse sentido é possível perceber que as disparidades entre regiões tendem a manter-se entre os quintos. Outra categoria a ser analisada diz respeito à raça ou cor.

Tabela 10

Raça ou CorQuintos de rendimento familiar per capita (%)

1º quinto 2º quinto 3º quinto 4º quinto 5º quinto

Branca 13,4 10,1 9,2 5,1 1,4

Preta ou parda

19,9 15,2 15,7 8,7 3,6

Fonte: PNAD (IBGE) – com adaptações.A categoria em questão segue movimento similar ao das demais categorias. A

disparidade interna na cor branca é maior que a da cor negra, enquanto a cor negra possui taxa de analfabetismo maior em todos os quintos de renda.

Page 80: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

80

Existe uma relativa homogeneidade entre os dados supramencionados nas tabelas anteriores no que tange ao perfil interno de cada quinto de renda. Em outras palavras é possível observar um movimento interno específico do analfabetismo dentro de cada quinto de renda, de forma que cada quinto possui um delineamento próprio de características. Entretanto, a divisão por quintos revela uma tendência não absoluta, pois vem a ser permeada por questões ligadas à região, à localidade, bem como atinentes à raça/cor, revelando, em sua configuração, traços característicos de tais questões.

Em outras palavras, uma vez que se constatou dentro de cada categoria que em suas subdivisões existiu uma tendência de menor disparidade interna na faixa em que constam as maiores taxas de analfabetismo, bem como, de forma complementar, que verificou-se uma tendência de maior disparidade interna entre as faixas de menor incidência de analfabetismo, é possível concluir que as categorias analisadas interferem sensivelmente ao condicionante de renda. Os dados sintetizados nas tabelas anteriores podem ser ilustrados pelo seguinte gráfico:

Gráfico 5

Fonte: PNAD/IBGEElaboração: Disoc/IPEA

O gráfico 5 sintetiza as desigualdades mais acentuadas e que possuem matrizes históricas, quais seja, a defasagem da região nordeste em relação às demais regiões, em especial a região sul; o acentuado analfabetismo entre a população de 40 anos ou mais, ou seja, que não conseguiram serem inseridos no sistema educacional na época adequada; o acentuado analfabetismo entre a população negra, rural e entre a faixa populacional que possui o menor nível de renda.

Dessa forma é possível visualizar que existe uma disparidade da taxa de analfabetismo no Brasil conforme as categorias selecionadas. Não obstante, existir uma lenta redução do analfabetismo no Brasil. O analfabetismo, por vezes, está vinculado a “desigualdades que, historicamente, foram sempre elevadas”. Os grupos que tiveram pequenos avanços “– população da Região Nordeste, residentes de áreas rurais, e idosos, correspondem significativa parcela da população brasileira”. 183

183 CASTRO, Jorge Abrahão de; DUARTE, Bruno de Carvalho. Descentralização da educação pública no Brasil: trajetória dos

Page 81: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

81

Quanto ao perfil do analfabetismo, as seguintes características são reveladas:

i) é bem mais acentuado na população negra; ii) as regiões menos desenvolvidas, os municípios de pequeno porte e as zonas rurais apresentam os piores índices; iii) está fortemente concentrado nos segmentos de baixa renda; e iv) o percentual e a quantidade de analfabetos se ampliam nos estratos de idade mais avançada. Além disso, constatou-se que a taxa de analfabetismo dentro de uma mesma geração é pouco sensível a mudanças com o passar dos anos. Seu declínio está ocorrendo pela escolarização da população mais nova e pela própria dinâmica populacional, com a morte dos idosos analfabetos.184

Percebe-se que a conjugação dos fatores de exclusão forma um cinturão de isolamento, que o torna pouco penetrável pelo sistema educacional, conforme as características visualizadas. Também é perceptível a relação entre pobreza de rendas e pobreza de capacidades, tendo em vista a forte concentração nos segmentos de baixa renda.

3.3. Considerações

Foi possível constatar o aumento do esforço público para implementar políticas educativas e possibilitar o aumento de efetividade do art. 205 da CF/88, que dispõe que a educação é um direito de todos. A maior efetividade desse dispositivo demanda a expansão dos serviços educacionais, portanto, aumento da oportunidade de acesso, bem como uma melhoria na qualidade de ensino, combinada com demais fatores atinentes à geração de capacidades e expansão da liberdade individual, fatores fundamentais para o desenvolvimento de um país, na concepção de desenvolvimento de Amartya Sen.185

No período de 1992 a 2009, pôde-se constatar que houve expansão do acesso à educação. O investimento na ampliação da estrutura de ensino permite concluir que existe uma direção comum das preocupações governamentais e a perspectiva de desenvolvimento como liberdade. Como já mencionado, dada contribuição da educação para o desenvolvimento de um país, ou seja, seu caráter de bem semi-público186 , esta contribui para o aumento de capacidades, assim como a saúde, e é imprescindível para o aproveitamento, por parte da população, do crescimento econômico de um país.

A formação do preparo social, no entanto, sofre algumas restrições apesar do avanço da estrutura educacional, que pode ser atribuído a outros fatores de desigualdade social, como a desigualdade de renda e diferença de raça/cor. De forma, que é forçoso compreender a igualdade de acesso e permanência na escola a partir do conceito de equidade, que leva em consideração a igualdade horizontal, portanto, acesso para todos, e vertical, relacionada a características inerentes aos indivíduos e das categorias sociais em que se enquadram.

gastos e das matrículas. Brasília: IPEA, 2008. (Texto para Discussão n. 1352). p. 58.184 Apesar de Sen deixar clara a relação entre pobreza de rendas e pobreza de capacidades, neste artigo a análise foi

direcionada para a segunda, tendo em vista que se optou por verificar a efetividade da educação como direito de todos. Em outras palavras, não foi verificado impacto do aumento das capacidades sobre a renda tendo em vista que ultrapassava o objetivo do trabalho.

185 Terminologia utilizada por Amartya Kumar Sen.186 Nesse sentido, estão direcionados os esforços para atingir a meta de que todas as crianças concluam o Ensino Fun-

damental até 2015.

Page 82: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

82

O perfil do analfabetismo demonstra, em síntese, que é mais acentuado na população negra, nas regiões menos desenvolvidas, nos segmentos de baixa renda e na população de idade mais avançada. O declínio do analfabetismo está ocorrendo em virtude da escolarização da nova geração187 e pelo falecimento dos idosos analfabetos, o que revela que existe uma geração inalcançável pela educação, em outras palavras, uma vez excluídos do sistema educacional, provavelmente serão para sempre excluídos. Dessa forma, muitas vezes os adultos se tornam inalcançáveis pelo sistema de ensino devido à soma de fatores que levam à sua exclusão, como pode ser constatado.

Percebe-se que a conjugação dos fatores de exclusão forma um cinturão de isolamento, que o torna impenetrável pelo sistema educacional, conforme as características visualizadas. Também é perceptível a relação entre pobreza de rendas e pobreza de capacidades, pois a concentração desta última está nos segmentos de baixa renda.

Tais fatores combinam para o afunilamento do número de estudantes no ciclo educacional, para reforçar a relação entre pobreza de rendas e de capacidades de uma forma negativa. Destaca-se que a pobreza de rendas, no caso brasileiro, normalmente está associado a outros elementos como raça e localização – regiões Norte e Nordeste, bem como à localidade rural.

Para inserir as pessoas que se situam nas faixas de desigualdade social, portanto, não basta a mera expansão da estrutura educacional da forma como foi feita, sendo necessárias medidas específicas para atingir a faixa populacional que permanece fora do sistema educativo. Portanto, observa-se que os nós críticos residem em questões como a qualidade do ensino, a distorção idade/série, as desigualdades de renda e a questão do acesso ao ensino superior e, também, a questão do analfabetismo acentuado na faixa etária dos 40 anos ou mais.

CONCLUSÃO

A análise do direito à educação no Brasil compreendeu os avanços e os limites no período posterior à promulgação da Constituição Federal de 1988, tendo em consideração aspectos filosóficos e contextuais. Para tanto, neste trabalho, propusemos inicialmente abordar a teoria do desenvolvimento como liberdade em seu aspecto substancial e em relação à tradição em que se situa. Posteriormente enfatizamos aspectos da tradição brasileira e como esses aspectos influenciaram a conformação das políticas sociais e educacionais, a fim de deixarmos nítido, no terceiro momento do trabalho, como os aspectos inerentes à tradição brasileira repercutem ainda hoje, limitando a efetividade do direito à educação.

A teoria do desenvolvimento como liberdade de Amartya Sen dialoga com a tradição liberal e com a tradição brasileira. Como visto, a teoria seniana parte da preocupação com a fome, pobreza, desigualdade e exclusão social, no contexto que a democracia é o regime adotado e em que há grande circulação de informações. Para tanto, Sen revisita o liberalismo a partir do enfoque de uma sociedade holista. A liberdade é eleita como fim e meio do desenvolvimento e o foco está sobre a eliminação de privações de liberdades que inviabilizam as escolhas e oportunidades do exercício da condição de agente pelo indivíduo.

187 Nesse sentido, estão direcionados os esforços para atingir a meta de que todas as crianças concluam o Ensino Fun-damental até 2015.

Page 83: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

83

O posicionamento seniano coaduna com as preocupações teóricas de Isaiah Berlin e de John Rawls. Nesse sentido, ressaltamos alguns pontos da teoria de ambos os autores e enfatizamos a liberdade como cerne da preocupação teórica. Em Berlin, destacamos dois pontos. O primeiro residiu na necessidade de oferecer condições materiais ao indivíduo para o desfrute de direitos políticos, pois somente oferecer estes últimos seria zombar da condição humana. Portanto enfocamos a indignação sobre a instituição dos direitos fundamentais de primeira geração sem a respectiva condição material de usufruto. O segundo, destacamos a essencialidade da liberdade. Esta se configura na auto-afirmação do indivíduo, assim, ninguém pode compeli-lo a ser feliz à sua maneira. O paternalismo, nessa linha de pensamento, torna-se o maior despotismo imaginável, pois trata os homens como se não fossem livres.

Os pontos que destacamos da teoria de John Rawls, residiram na: i) compreensão que a liberdade das pessoas reside na possibilidade de pleitear de forma válida, pretensões em nome de suas próprias metas fundamentais possuindo faculdades morais próprias; ii) a existência de uma pluralidade de doutrinas compreensivas como resultado natural da razão humana e iii) a existência da necessidade de distribuição de bens primários, tais como direitos, liberdades e oportunidades, renda e riqueza, como aspecto necessário à igualdade e liberdade.

A diferença entre as tradições pôde ser observada a partir da formulação teórica de John Rawls. Segundo este, as regras de cooperação social são organizadas por meio de um equilíbrio reflexivo, em que existe consenso sobreposto, sendo que os indivíduos não são submetidos a fins alheios, possuindo a liberdade de agência. Para ser possível a comparação entre tradições, destacou-se o tipo de individualismo e o tipo de cooperação social.

Quanto à cooperação social, na tradição liberal esta emerge de indivíduos investidos de características como liberdade, racionalidade e igualdade, enquanto no Brasil vem a configurar-se por meio da participação em determinado grupo, sendo relacional. O indivíduo torna-se amigo, recebendo a cooperação social a linguagem das relações pessoais. Nesse sentido, é plausível a afirmação de que a cooperação social está adstrita à subordinação individual a um grupo. Ao que toca o individualismo é possível verificar sua relação com a definição de igualdade e desigualdade. No Brasil existe a herança de uma visão voltada para o aquinhoamento desigual das desigualdades e assim, para a perpetuação das desigualdades. Dessa forma, a concepção de equidade, ou seja, de igualdade horizontal e vertical, somente veio a ser considerada para a formulação de políticas sociais com o advento da CF/88.

A configuração da esfera pública brasileira foi marcada i) pelo princípio da exclusão, que teve origem na estrutura da sociedade colonial e se baseava na pureza de sangue; ii) por uma burocracia estatal em que havia uma indefinição entre pública e privado e baseava-se em critérios de lealdade e iii) pelo sistema de graças e mercês, que fundava uma rede de pactos e gerava expectativas fundadas, ou quase direitos, em relação aos que a ela pertenciam. Portanto, a tradição brasileira foi marcada por características seletistas e excludentes, baseada em redes e pactos. A esfera pública possuiu uma origem comunitária e a solidariedade estava adstrita aos grupos familiares e de amizades. Da relação entre indivíduo e Estado resultou a ausência de cidadania. Era gerado, no máximo, a estadia, que é a incorporação do sistema político pelo envolvimento da malha crescente da burocracia estatal.

Retomando aos aspectos teóricos do desenvolvimento como liberdade, a educação é um dos elementos que colabora para a formação de liberdades. Como foi visto,

Page 84: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

84

a liberdade possui aspectos substantivos e instrumentais. O aspecto substantivo relaciona-se tanto à privação de recursos quanto ao acesso a estrutura de saúde pública, a serviços públicos, a assistência social, etc. Assim, está-se falando de oportunidades econômicas, mas também de acesso a políticas sociais como boa saúde, educação básica, aposentadoria, etc. O aspecto instrumental tange a negação de liberdades políticas e civis, restrição de participação social, política e econômica.

A trajetória do sistema educacional no Brasil é marcada por características próprias da esfera pública brasileira. Tratou-se de uma trajetória de oscilações políticas que ocasionou descontinuidades estruturais, bem como resultou em um enfoque organizativo prioritário sobre determinadas regiões, classes, etc., sendo celetista e excludente. Ademais, a carência organizativa do sistema de ensino se reproduziu ao longo da história, gerando um déficit não abarcável pelas normas que surgiam para reestruturar o direito à educação no Brasil.

A Constituição Federal de 1988 – CF/88 foi promulgada no contexto em que predominava a linha de pensamento em prol do Estado mínimo, oriundo de uma vertente liberal conservadora, no entanto, foram estabelecidos, amplamente direitos fundamentais no texto constitucional que demandavam a prestação positiva do Estado, uma postura, portanto, além da abstenção da invasão do Estado na esfera privada e a garantia de direitos políticos.

Nesse sentido, as políticas educacionais no pós CF/88 foram lançadas sobre o desafio de organizar um sistema de educação baseado no princípio da exclusão e deficitário quanto à sua propagação, impedindo o acesso e permanência “de todos” no sistema educacional. A consagração da educação como direito de todos no art. 205 da CF/88 representou a opção por enfrentar um desafio histórico de estrutura deficitária da educação nacional.

A fim de verificar a efetividade do direito à educação no Brasil, compreendendo seus avanços e limites, o terceiro capítulo foi reservado à análise de dados. A efetividade do direito à educação, ou a eficácia social do direito à educação, significa tanto a aplicabilidade da norma correspondente, como sua realização no meio social objeto de regulação, de forma a promover a similitude entre o ser e o dever ser.

O contexto educacional pode ser visualizado em cinco condicionantes da educação no Brasil: i) elevado índice de analfabetismo, devido à escravidão e à pouca importância que foi conferida a educação na época colonial; ii) baixa qualidade do ensino e rendimento dos estudantes; iii) aporte de recursos deficitário ao sistema de ensino; iv) condições socioeconômicas precárias do alunado, e v) processos educacionais seletivos e excludentes, em que boa parte do alunado submete-se a sucessivas reprovações que culminam na evasão escolar. Esses fatores são, atualmente, obstáculos à efetividade do direito em questão e, colaboram para a formação de uma classe de analfabetos. O analfabetismo é a situação que se situa na extremidade oposta à realização do princípio da educação como direito de todos. Dessa forma, a faixa populacional se encontra em situação de analfabetismo revela com nitidez o limite da efetividade do direito à educação.

Por meio da análise dos dados fornecidos pelo Relatório Nacional de acompanhamento dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio – ODMs – verificamos que no ensino fundamental houve a diminuição entre as desigualdades regionais, bem como da desigualdade entre sexos, cor/raça e urbana/rural. Observamos que as distorções não sensíveis estatisticamente no ensino fundamental foram visualizadas com nitidez no ensino médio, o que ocorreu devido à baixa qualidade de ensino, bem como pela disparidade de

Page 85: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

85

renda. No ensino médio foi possível observar que a distorção idade-série é maior entre estudantes de baixa renda e, assim, boa parcela desses conclui o ensino fundamental na idade adulta, o que dificulta o ingresso e a permanência no ensino médio, dada a necessidade de ingressar no mercado. Ademais, o alto índice de distorção idade-série também está associado às desigualdades regionais. Portanto, tanto a renda como desigualdade regionais são fatores que se conjugam para acentuar a distorção do resultado do indicador de adequação idade-série. Nesse ponto, constamos a relação entre pobreza de rendas e de capacidades e, assim, a existência de um círculo vicioso nas regiões Norte e Nordeste.

O analfabetismo pode ser identificado como resultado do déficit de igualdade e liberdade na implementação das políticas sociais, em termos amplos, e na política educacional, de forma específica. É um problema que demonstra nitidamente os limites à efetividade do direito à educação e é resultado da conjugação dos seguintes elementos: i) insuficiência e desigual oportunidades de acesso e permanência na escola na idade adequada; ii) fracasso dos sistemas públicos de ensino que geram jovens analfabetos de forma a alimentar um círculo vicioso de má qualidade de ensino, pois geram professores despreparados; iii) desmotivação de permanência no ensino tendo em vista o baixo retorno à educação, e iv) falha na estruturação do ensino a fim de adequar-se às camadas mais pobres, em termos de renda, da população.

Traçamos, por meio dos dados referentes ao analfabetismo, um perfil do analfabetismo. Observamos que: i) é mais acentuado na população negra; ii) as regiões menos desenvolvidas, os municípios de pequeno porte e as zonas rurais apresentam os piores índices; iii) é mais concentrado nos segmentos de baixa renda e iv) acentuado nos estratos de idade mais avançada. Portanto, o perfil traçado revela ser resultado das condicionantes da educação no Brasil.

Do que foi visto, constamos que a estrutura educacional no pós CF/88, apesar dos avanços verificados, principalmente em termos de ensino fundamental, não foi hábil a romper com os fatores que ocasionaram o alijamento educacional da faixa populacional que se encontra em condições de analfabetismo. O declínio do analfabetismo ocorre pela escolarização da população mais nova, e, assim, pela dinâmica populacional, ou seja, a morte dos idosos analfabetos. Portanto, existe um cinturão de isolamento dos atuais analfabetos quanto ao sistema de ensino. Tal situação corresponde ao propósito histórico das políticas sociais brasileiras, que possuíram o fito de excluir da esfera pública parcela da população, utilizando-se da limitação da concepção de igual por meio da restrição de liberdades substantivas e instrumentais.

Pensar a educação na perspectiva do desenvolvimento como liberdade demanda imaginar uma esfera pública diferente da formada no Brasil. Em outras palavras, a efetividade do direito à educação reproduz, nos dados analisados, as limitações históricas em termos de igualdade e liberdade no Brasil. A estratificação social, o paternalismo, a falta de acesso a bens e à cidadania são elementos que modulam, atualmente, os resultados das políticas sociais e educacionais. Com tais colocações não excluímos o reconhecimento dos avanços observados, apenas apontamos que os aspectos relacionados à tradição brasileira estão presentes nos resultados da efetividade do princípio constitucional da educação como direito de todos, sendo este seu limite de efetividade no pós CF/88.

Page 86: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

86

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Luiz Eduardo de Lacerda. Qual o sentido de Rawls para nós?. Revista de Informação Legislativa, v. 43, p. 149-173, 2006.

Aristóteles em Ética a Nicômaco: “The Nicomachean ethics, ed. rev. trad. D. Ross, Oxford University Press, 1980, livro I, seção 5, p. 7.”In: SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

BALL, Stephen J. Grandes Políticas, um mundo pequeño. Introducción a una perspectiva internacional en las políticas educativas. In ANDRADA, Myrian. NORES, Milagros. NARODOWSKI, Mariano. Nuevas tendencias en políticas educativas. Estado, mercado e escola. Buenos Aires, Granica, 2002.

BARBOSA, Rui. Oração aos moços. [S. l.]: Virtual Books, 2000. Disponível em: <http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/didaticos/Oracao_aos _Mocos.htm>, p. 19. Acesso em 26 jan 2011.

BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 12ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.

BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. p. 1-49. In BUCCI, Maria Paula Dallari. (org) Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006.

CARDOSO JR., José Celso. JACCOUD, Luciana. Políticas sociais no Brasil: Organização, abrangência e tensões da ação estatal. p. 181 – 260. In JACCOUD, Luciana Barros. SILVA, Frederico Augusto Barbosa da. Questão social e políticas sociais no Brasil contemporâneo. Brasília: IPEA, 2005.

CARVALHO, José Murilo de. Pontos e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

CASTRO, Cláudio de Moura. Educação brasileira: consertos e remendos. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

CASTRO, Jorge Abrahão de; DUARTE, Bruno de Carvalho. Descentralização da educação pública no Brasil: trajetória dos gastos e das matrículas. Brasília: IPEA, 2008. (Texto para Discussão n. 1352).

CASTRO, Jorge Abrahão de. RIBEIRO, José Aparecido Carlos. As políticas sociais e a constituição de 1988: conquistas e desafios. In Políticas Sociais: acompanhamento e análise - Vinte Anos da Constituição Federal. Brasília: IPEA, 2009.

Page 87: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

87

CHIBBER, Vivek. ¿Revivir el Estado desarrollista? El mito de la “Burguesía Nacional”. Disponível em <http://www.scielo.org.ar/scielo. php?pid=S185137272008000200001 &script=sci_arttext>. Acesso em 16 set 2010.

CURY, Carlos Roberto Jamil. Estado e políticas de financiamento em educação. Educação e Sociedade – revista de ciência da educação. Campinas, v.28, n100-Especial, outubro 2007.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1998.

DEVOTO, Fernando. FAUSTO, Boris. Argentina – Brasil. 1850-2000. Un ensayo de historia comparada. Buenos Aires: Sudamericana, 2008.

DUARTE, Clarice Seixas. A educação como um direito fundamental de natureza social. Educação e Sociedade, Campinas, vol. 28, n. 100 – Especial, p. 691-713, out. 2007.

DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio e Janeiro: Rocco, 1985.

DUBET, François. ¿Mutaciones institucionales y/o liberalismo? in FANFANI, Emilio Tenti. Governabilidade de los sistemas educativos en la América Latina. Buenos Aires: IIPE, 2004.

EDO, María. Amartya Sen y el desarrollo como libertad: la viabilidad de una alternativa a las estrategias de promoción del desarrollo. Argentina: Universidad Torcuato di Tella, 2002.

Explanação sobre o IDH. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/idh/>. Acesso em 27 jan 2011.

FANFANI, Emilio Tenti. Governabilidade de los sistemas educativos en la América Latina. Buenos Aires: IIPE, 2004.

FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 2010

FEIJOÓ, Maria del Carmen. Argentina: equidad social y eduación en los ’90. IIPE – UNESCO: Buenos Aires, 2002.

FERNANDES, Francisco das Chagas Fernandes. (Secretário de Educação Básica do Ministério da Educação, representante do Ministério da Educação) Redefinição da política de financiamento da educação básica. , p. 25 In Seminários regionais e setoriais de Educação e Cultura: Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb. Plano Nacional de Cultura – PNC. Centro de Documentação e Informação. Coordenação de Publicações. Brasília, 2006.

HESPANHA, Antônio Manuel. Porque é que foi “portuguesa” a expansão portuguesa? ou O revisionismo dos trópicos. In: Conferência proferida na sessão de abertura do Colóquio “O espaço atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades”, org. pelo CHAM-FCSH-UNL/IICT, Lisboa, 2 a 5 de Novembro de 2005. Disponível em: < http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/antonio_manuel_hespanha.pdf>. Acesso em 22 mar 2010.

Page 88: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

88

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA– IPEA. O Brasil em 4 décadas. Texto para discussão nº 1500. Brasília, IPEA: 2010.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA– IPEA.. Objetivos de desenvolvimento do milênio. Relatório Nacional de acompanhamento. IPEA: Brasília, 2010.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA– IPEA. Brasil em desenvolvimento: estado, planejamento e políticas públicas. Brasília: IPEA, 2009. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_ ontent&view=article&id=239&Itemid=6>. Acesso em: 12 mai 2010.

JACCOUD, Luciana Barros. SILVA, Frederico Augusto Barbosa da. Questão social e políticas sociais no Brasil contemporâneo. Brasília: IPEA, 2005.

LOPES, Carla Patrícia Frade Nogueira. A efetividade do Direito Internacional Ambiental – O caso da cites. In BARROS-PLATIAU, Ana Flávia, VARELLA, Marcelo Dias. A efetividade do direito internacional ambiental. Brasília: Ed. UNICEUB, UNITAR e UnB, 2009.

MARCÍLIO, Maria Luiza. História da escola em São Paulo e no Brasil. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Instituto Fernand Braudel, 2005.

MÁRQUEZ, Angel Diego. La quiebra del sistema educativo argentino. Política educacional del neoconservadurismo. Buenos Aires: Libros del Quirquincho,1995.

MENEZES, Roberto Goulart. RIBEIRO, Cláudio Oliveira. Políticas públicas pobreza e desigualdade no Brasil: apontamentos a partir do enfoque analítico de Amartya Sen. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index. php/fass/article/view/3937/2974 >. Acesso em 26 maio. 2010.

Page 89: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

89

Ministério da Educação. Primeiros resultados: médias de desempenho do SAEB/2005 em perspectiva comparada. Brasília: INEP, 2007. Disponível em: <http://www.inep.gov.br/download/saeb/2005/SAEB1995_ 2005.pdf>. Acesso em: 13 mar 2010.

MORDUCHOWICZ, Alejandro. Intervención estatal, incentivos y desempeño educativo. IIPE-UNESCO: Buenos Aires, 2000.

MUNNÉ, Guillermo J. Principios de Justiça y derechos sociales de prestación. Tese de doutorado. Orientador: Eusebio Fernández Garcia. Madrid: Universidade Calos III.

PARADA, Eugenio Lahera. Política y políticas públicas. p. 67 a 95. In FERRAREZI, Elisabete. SARAVIA, Enrique. Brasília:ENAP, 2006.

PINTO, José Marcelino de Rezende. Financiamento da educação no Brasil: da vinculação constitucional à construção de uma escola com padrões mínimos de qualidade. Linhas Críticas, vol. 11 nº. 20, jan/jun. 2005.

Prova Brasil e Saeb. Disponível em: http://provabrasil.inep.gov.br/index.php?option=com _content &task=view&id=33& Itemid =60 Acesso realizado em: 18 jan.2010.

SARAVIA, Enrique. Introdução à teoria da política pública. In FERRAREZI, Elisabete; SARAVIA, Enrique. Políticas Públicas: coletânea. Brasília: ENAP, 2006.

SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

SEN, Amartya Kumar. Desigualdade reexaminada. 2ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2008

POCHMANN, Marcio, AMORIN, Ricardo (orgs). Atlas da exclusão social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2003

TIRAMONTI, Maria Guillermina. Modernizacion Educativa de los ‘90. ¿El fin de la ilusión emancipadora? Buenos Aires, Temas Grupo Editoral, 2001.

TORRES, Pedro Medellín. La política de las políticas públicas: propuesta teórica y metodológica para el estúdio de las políticas públicas en países de frágil institucionalidad. Santiago de Chile: CEPAL, Jul./2004.

TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE SÃO PAULO. Manual Básico de Aplicação de Recursos no Ensino 2007. São Paulo: Imprensa Oficial, 2007.

ANEXO

Page 90: Efetividade do Direito à Educação no Pós CF/88 - Patrícia Ribeiro

90