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EFEITO LOLITA: A SEXUALIZAÇÃO E OBJETIFICAÇÃO FEMININA POR MEIO DA MÍDIA, EM UMA ANÁLISE DA FANPAGE DA CAPRICHO NO FACEBOOK Pâmela Rocha Vieira 1 Resumo Este estudo analisa o conteúdo da fanpage da Capricho no Facebook, por meio da coleta de postagens realizadas entre agosto e setembro de 2015. As informações foram interpretadas e aqui expostas com base na teoria do Efeito Lolita, sistematizada pela autora Meenakshi Gigi Durham (2009) e discorre sobre o papel da mídia na sexualização precoce e objetificação feminina. A abordagem do tema leva em conta o contexto de sociedade midiatizada e de consumo, problematizando o papel social da mulher e relações de gênero na contemporaneidade, com ênfase na adolescência e as relações dessa fase da vida com os padrões de beleza, consumo e comportamento. Palavras-chave: mulher, machismo, mídia, consumo e padrão de beleza. Partindo do pressuposto de que os meios de comunicação são grandes responsáveis pela construção da visão de mundo, especialmente nos tempos atuais de sociedade midiatizada (Sodré, 1996) e considerando que a mídia forja padrões de beleza e comportamento, coloca-se uma interrogação acerca do papel dos meios de comunicação na questão dos gêneros. Aqui, nosso olhar está focado para a raiz da questão: as meninas, na fase da adolescência. A professora e pesquisadora em Comunicação Meenaskhi Gigi Durham, da Universidade de Iowa, realizou estudos pioneiros sobre como os meios de comunicação de massa afetam a formação das meninas, concluindo que temos como efeito uma sexualização precoce. A partir daí, cunhou o termo Efeito Lolita 2 . Na obra “The Lolita Effect: the media 1 Aluna do mestrado no Programa de Pós Graduação em Comunicação e Territorialidades da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Email: [email protected] 2 Referência à personagem principal do romance Lolita, de Vladimir Nabokov, que conta a história de uma jovem adolescente de 12 anos que seduz um poderoso homem mais velho.

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EFEITO LOLITA: A SEXUALIZAÇÃO E OBJETIFICAÇÃO FEMININA POR

MEIO DA MÍDIA, EM UMA ANÁLISE DA FANPAGE DA CAPRICHO NO

FACEBOOK

Pâmela Rocha Vieira1

Resumo

Este estudo analisa o conteúdo da fanpage da Capricho no Facebook, por meio da coleta de

postagens realizadas entre agosto e setembro de 2015. As informações foram interpretadas e

aqui expostas com base na teoria do Efeito Lolita, sistematizada pela autora Meenakshi Gigi

Durham (2009) e discorre sobre o papel da mídia na sexualização precoce e objetificação

feminina. A abordagem do tema leva em conta o contexto de sociedade midiatizada e de

consumo, problematizando o papel social da mulher e relações de gênero na

contemporaneidade, com ênfase na adolescência e as relações dessa fase da vida com os

padrões de beleza, consumo e comportamento.

Palavras-chave: mulher, machismo, mídia, consumo e padrão de beleza.

Partindo do pressuposto de que os meios de comunicação são grandes responsáveis

pela construção da visão de mundo, especialmente nos tempos atuais de sociedade

midiatizada (Sodré, 1996) e considerando que a mídia forja padrões de beleza e

comportamento, coloca-se uma interrogação acerca do papel dos meios de comunicação na

questão dos gêneros. Aqui, nosso olhar está focado para a raiz da questão: as meninas, na fase

da adolescência.

A professora e pesquisadora em Comunicação Meenaskhi Gigi Durham, da

Universidade de Iowa, realizou estudos pioneiros sobre como os meios de comunicação de

massa afetam a formação das meninas, concluindo que temos como efeito uma sexualização

precoce. A partir daí, cunhou o termo Efeito Lolita2. Na obra “The Lolita Effect: the media

1 Aluna do mestrado no Programa de Pós Graduação em Comunicação e Territorialidades da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Email: [email protected] 2 Referência à personagem principal do romance Lolita, de Vladimir Nabokov, que conta a história de uma jovem adolescente de 12 anos que seduz um poderoso homem mais velho.

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sexualization of young girls and what we can do about it”, Durham expõe sua pesquisa

sobre a temática.

A Capricho foi escolhida para este estudo pela longa trajetória de diálogo com o

público adolescente feminino, desde o ano de 1952. O site oficial da revista traz como

definição do produto “os serviços mais relevantes para as meninas de 13 a 17 anos”. A

relevância desse conteúdo é contestada vez ou outra. Em agosto de 2013, numa das mais

recentes polêmicas protagonizadas pela Capricho, a revista recebeu uma avalanche de críticas

e acusações de machismo por um texto publicado em seu site. O texto separava as meninas

entre adequadas para namorar e adequadas para “ficar”, estas sendo úteis apenas para diversão

de uma noite.

A frequente publicação de conteúdos a respeito de beleza também é questionável

como um serviço relevante para adolescentes. O reforço dos padrões de beleza e a vinculação

excessiva do universo feminino com o mundo da moda produz uma visão estereotipada do

papel social da mulher. De toda sorte, a audiência e a longevidade dos veículos são mostras

do seu sucesso na “conversa” com o público adolescente.

O estudo do Efeito Lolita aborda a sexualização feminina em idade precoce e de

maneira inadequada, incentivada pelos meios de comunicação de massa. Ao tratar do tema,

Durham (2009) deixa clara a preocupação com a vivência de uma sexualidade saudável,

formada em um ambiente seguro e com amplas possibilidades de debate. Dessa forma, parte –

se da premissa de que o sexo e a sexualidade são coisas normais e naturais e as meninas

devem ser educadas com a liberdade de desfrutá-los ao máximo. Nesse ponto, grande parte

dos veículos de comunicação presta um desserviço ao público, uma vez que reforçam a

repressão e controle sobre a sexualidade das garotas, muitas vezes travestidos sob uma falsa

libertação.

A autoria batizou de Efeito Lolita o conjunto de mitos sobre a sexualidade das garotas,

com ampla circulação em nossa cultura e que tem o intuito de limitar, minar e restringir o

progresso sexual de crianças e adolescentes do sexo feminino. Para funcionar, o Efeito Lolita

se apoia em cinco mitos: “se você tem, exiba”; “anatomia de uma deusa do sexo”; “as garotas

bonitas”; “ser violento é sexy” e “do que os rapazes gostam”.

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O primeiro mito analisado é o “se você tem, exiba”. Examinando essa construção,

Durham (2009) analisa os incentivos da indústria midiática para que as garotas exibam o

corpo com roupas curtas e fotos provocantes em redes sociais. Esses incentivos são baseados

na premissa de ser hot, o que também significa ser sexy. À primeira vista, isso parece

libertador e exitoso, visto que o modo como as mulheres se vestem ainda é alvo de tabus. No

entanto, o encorajamento para a exibição do corpo é bastante direcionado: o corpo a ser

exibido deve ser magro, definido, com tônus muscular, sem nenhum tipo de deficiência física

e preferencialmente branco.

A mídia dirigida às adolescentes capitaliza os incentivos à sensualidade feminina. Não

faltam dicas de roupas, cosméticos e outras formas de consumo voltados à aparência feminina

e que reforçam a construção do corpo feminino atraente, que chama a atenção. Por outro lado,

ofensas como “galinha” e “vadia” ainda são ouvidas por inúmeras mulheres, especialmente de

acordo com o modo como se vestem ou se maquiam. Isso confirma o espectro conservador e

retrógrado que ainda marca a sexualidade feminina, mesmo quando o discurso parece

libertador.

O segundo mito que constitui o Efeito Lolita é o “anatomia da deusa do sexo” e

reflete sobre o padrão de beleza reforçado pela mídia, comparado com o corpo da boneca

Barbie. Convertendo as medidas da boneca para uma “escala humana”, a Barbie seria uma

mulher de 1,75 m, com 45 cm de cintura, 91 cm de seios, 83 cm de quadris e pesaria 50 kg.

Ela seria incapaz de ficar de pé e os órgãos internos não teriam espaço de acomodação. 3

Algumas campanhas do tipo “ame o seu corpo” são endossadas vez ou outra por

veículos de público alvo feminino. No entanto, mesmo nessas ocasiões, os corpos exibidos

variam dentro de um padrão bastante restrito. Não há representações de mulheres realmente

obesas e quando há, estão ligadas ao fracasso, anunciando alguma dieta e outras formas de

perder peso. Assim, a mensagem do “ame o seu corpo” é ofuscada pela constante celebração

visual e discursiva do corpo esbelto e bem definido. Mas a mensagem transmitida aos leitores

(e principalmente às leitoras) é que basta esforço, empenho e comprometimento para

conseguir o corpo desejado. Essa lógica está inserida nos hábitos contemporâneos de consumo

3 Experimento realizado pelo site estadunidense Rehabs, que reúne instituições de reabilitação para usuários de álcool e outras drogas, além de transtornos como a bulimia.

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excessivo, numa realidade em que todos os indivíduos compartilham um espaço social em

comum: o mercado. (Bauman, 2008).

O terceiro mito é denominado “garotas bonitas” e trata da juventude como um

objetivo de beleza ideal, que se encaixa no padrão. Durham (2009) considera essa associação

da beleza com juventude como uma insinuação ao fruto proibido. Para corroborar essa

hipótese, a autora cita exemplos do uso de fantasias colegiais como roupas sensuais, em

posturas apelativas, tal qual no clipe Baby One More Time, da cantora Britney Spears.

No Brasil, um bom exemplo disso é a escolha de atrizes cada vez mais jovens em

novelas, contracenando com atores que já eram galãs há anos e, portanto são bem mais velhos

que as atrizes. O objetivo dessa observação, inclusive publicada no blog Socialista Morena4,

não é criticar os relacionamentos entre pessoas de idades diferentes, mas sim chamar a

atenção para o fato de que a juventude como uma condição de beleza recai sobre a mulher.

Outra observação interessante é a de utilizar atrizes/modelos mais velhas e

desempenhando papéis mais jovens, com auxílio de maquiagem, roupas e estilo específico.

“A sexualidade feminina ideal é jovem, ou mesmo infantil” (DURHAM, 2009, p.121). Essa

associação, entre juventude feminina e sensualidade, reforça os traços de infantilização de

mulher, colocando a figura feminina como indefesa, frágil e incapaz, o que reflete uma

construção evidentemente machista. Um agravante disso é a ideia de que as garotas são

cúmplices dessa construção cultural, como se elas escolhessem estar preocupadas com a

beleza desde muito jovens e também como se a preocupação em perpetuar a aparência jovem

fosse uma livre escolha.

As representações hiperssexuais de garotas jovens levam a questionar o motivo disso.

Uma possível resposta é que se trata de “um movimento de resistência patriarcal contra o

feminismo” (DURHAM, 2009, p.130). Diante da incapacidade machista em lidar com as

conquistas sociais e políticas das mulheres, alguns homens veem nas jovens garotas uma

possibilidade mais simples de adaptação ao molde convencional da sexualidade feminina. É

como se elas fossem uma ameaça menor que as mulheres adultas, representando uma

sexualidade submissa e dócil.

4 Endereço: http://www.socialistamorena.com.br/o-estranho-fenomeno-do-gala/ Acesso em 28/08/2015.

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Outra possível resposta para o interesse na hiperssexualização infanto-juvenil é a

motivação comercial. Indústrias de cosméticos, roupas e outros produtos têm buscado

fidelizar seus consumidores desde a infância, especialmente para os produtos de beleza

antienvelhecimento (Durham, 2009). No cenário atual, da “sociedade de consumidores”

(BAUMAN, 2008, p.70), os indivíduos – especialmente os mais jovens, são permanentemente

acometidos pelo medo da inadequação e as indústrias tiram proveito desse medo para lucrar,

independentemente da real necessidade de consumo daquele produto.

O quarto mito do Efeito Lolita é o “Ser violento é sexy”. Observa-se a construção de

um discurso que identifica o prazer sexual masculino com a violência, enquanto a sexualidade

feminina é vitimizada. A sexualidade masculina fica associada ao agente do sadismo e cabe à

mulher ser passiva na situação. O mais recente e famoso exemplo do sadismo protagonizado

por um homem é a história da trilogia literária Cinquenta Tons de Cinza, também adaptada

para o cinema.

Nessa narrativa, o poderoso magnata Christian Grey se envolve com a jovem virgem e

recatada Anastasia Steele. Grey revela suas práticas sadomasoquistas para a moça, que se

torna seu objeto de submissão. O termo “submissa” é originalmente usado na obra para

designar o papel que Anastasia passa a desempenhar. Cinquenta Tons de Cinza conquistou fãs

e também vorazes críticas feministas. Para este estudo, não cabe o aprofundamento do tema,

mas é válido levantar a seguinte questão: seria igualmente aceitável pela audiência que um

homem fosse sexualmente “submisso” a uma mulher?

O que Durham (2009) defende na análise do quarto mito é, de certa forma, uma

resposta para essa questão, ou seja: a associação entre a sexualidade masculina e uma postura

violenta e agressiva é tomada como natural. Ao ser legitimada pela mídia, essa postura

enfatiza e perpetua um sistema de misoginia, brutalidade e submissão feminina, reafirmando a

ideia de fragilidade da mulher diante da figura masculina.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública5, o Brasil registrou 50.320 casos

de estupro no ano de 2014 e estima-se que apenas 35% dos casos sejam relatados às

autoridades policiais. Assim, fica clara a relação entre a violência e a sexualidade,

5 Endereço: http://www.forumseguranca.org.br/ Acesso em 29/08/2015.

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especialmente como uma forma de dominação sobre a mulher. Afinal, como defendido pela

autora feminista Brownmiller (1975), o estupro não é apenas um crime sexual, mas se refere a

uma relação de poder abusiva, na qual os homens buscam manter as mulheres num estado de

medo permanente.

Finalmente, o quinto mito trata da heterossexualidade tradicional. Intitulado como “do

que os rapazes gostam”, Durham (2009) analisa a autoridade discursiva do homem sobre a

mulher e como isso se apresenta nos meios de comunicação. É como se os rapazes

impusessem os critérios e, a partir daí, as meninas tivessem que buscar a adequação para

agradá-los. Essa prerrogativa reforça a autoridade do discurso masculino até mesmo nas

publicações voltadas para mulheres, ou seja: as vozes dos rapazes exercem enorme autoridade

sobre as temáticas que as revistas e publicações adolescentes categorizam como de interesse

das garotas nessa faixa-etária.

Em agosto de 2013, a Capricho protagonizou uma polêmica6 que corrobora o exposto

neste mito. Na ocasião, um colunista online da revista publicou um texto em que categorizava

as mulheres entre “garotas para ficar” e “garotas para namorar”. Segundo o critério do

colunista, as “garotas para ficar” são aquelas adequadas para proporcionar a diversão por uma

noite, que são bonitas mas não têm outros atributos importantes, como uma conversa

interessante. Já as “garotas para namorar” são as que sabem se comportar, apoiam o garoto

incondicionalmente e têm maturidade nas decisões.

Esse tipo de categorização também reafirma a associação do prazer sexual masculino

com a violência e o poder, como aquele que decide sozinho sobre sexo e relacionamento,

enquanto a mulher ocupa o lugar da sujeição. “É como se o sexo para as garotas tivesse de

significar uma experiência infeliz” (DURHAM, 2009, p.166). Diante disso, as jovens não

encontram espaço para decisões seguras e proativas a respeito da própria vida sexual e

chegam à vida adulta com a ideia consolidada de que as experiências afetivas e sexuais têm o

objetivo de garantir a satisfação do homem.

6 O texto foi retirado da página, mas ainda pode ser lido em: http://www.cientistaqueviroumae.com.br/2013/08/menina-pra-ficar-ou-pra-namorar-como.html. Acesso em 01/09/2015.

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A falta de representação das diversas experiências sexuais possíveis também é outro

traço da autoridade do discurso machista nas publicações adolescentes. O sexo é tratado como

uma prática exclusivamente heterossexual, com pouco espaço para representações

homoafetivas. Isso é grave à medida que demonstra a omissão da mídia em questões de

relevância social, como casos de homofobia e intolerância que resultam em atos violentos,

especialmente entre os jovens.

Novamente, Durham (2009) frisa o papel do leitor masculino imaginário, ou seja: as

mulheres olham para si mesmas com a suposição de que o expectador ideal é masculino e que

a imagem da mulher deve estar de acordo com as preferências desse expectador imaginário,

mas que reflete o homem conceituado pelos meios de comunicação de massa: heterossexual,

viril, conquistador, exigente e provedor. Essa construção não é recente: o crítico de arte John

Berger identificou o que ele chamou de “o olhar masculino” em obras de arte do nu frontal

feminino. Essas obras foram concebidas para o puro deleite masculino e, ao longo da história

da arte no Ocidente, as mulheres são retratadas de forma passiva, plástica e desumanizada.

(Berger, 1972).

Ao tomar a indústria midiática como uma produtora de verdades, é interessante pensar

no interesse que a motiva: o lucro. A mídia fomenta objetivos de corpo e comportamento

ideais, que poderão ser atingidos mediante o consumo de determinados produtos, mas a

satisfação prometida é suplantada por novos desejos e objetivos, alimentando a indústria de

maneira ininterrupta. Independente do ideal que o consumidor consiga atingir, é certo que a

satisfação terá curta duração de tempo (Bauman, 2008).

A construção da identidade feminina, levando em conta as contingências de uma

sociedade machista, também está profundamente ligada ao campo discursivo do corpo e, nas

publicações da Capricho, é moldada e reforçada por uma lógica de padronização e

homogeneização da estética dos corpos, comportamentos e hábitos. Utilizando-se de seu

poder pedagógico, a Capricho emite orientações comportamentais que “educam” sobre o

corpo, por meio do que Foucault (1988) chamou de tecnologia política do corpo. A Capricho

se utiliza dessas tecnologias por meio do tom de aconselhamento, aprovação/reprovação em

suas publicações. Nas palavras da pesquisadora feminista Susan Bordo:

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por meio de disciplinas rigorosas e reguladoras sobre a dieta, a maquiagem e

o vestuário - princípios organizadores centrais do tempo e espaço nos dias de

muitas mulheres - somos convertidas em pessoas menos orientadas para o

social e centradas na automodificação. Induzidas por essas disciplinas,

continuamos a memorizar em nossos corpos e sentimentos a convicção de

carência e insuficiência e achar que nunca somos suficientemente boas

(BORDO, 1997, p. 20).

A formação da subjetividade se dá de maneira inseparável aos hábitos de consumo,

desde a infância. Conforme pertinente esclarecimento de Bauman (2008), o sentimento de

pertença com um grupo ou um estilo de vida não se limita ao consumo de produtos, mas passa

pela “identificação metomínica” (Bauman, 2008, p.108). Por isso é tão expressivo o uso de

celebridades em anúncios e publicações de marcas adolescentes, como a Capricho. Além

disso, a associação da liberdade com o consumo faz recair sobre os indivíduos a

responsabilidade plena pela satisfação de seus desejos, atrelando essa liberdade ao poder

aquisitivo. No caso do público-alvo da Capricho, essa responsabilidade se estende à

autodisciplina necessária – e veiculada como saudável – para alcançar corpos dentro dos

padrões estéticos, o que resulta em um automonitoramento do estilo de vida dessas garotas,

privando-as de simples diversões e descontrações que sejam avessas ao emagrecimento, à

moda, ao gosto masculino e outras exigências.

Para a confecção deste artigo, foram coletadas manualmente 76 postagens na fanpage

oficial da Capricho no Facebook7, entre os dias 17 de agosto e 27 de setembro de 2015, por

meio da metodologia semana falsa – na primeira semana, coletou-se publicações da segunda-

feira; na segunda semana, publicações da terça-feira e assim sucessivamente, até a sétima

semana, com a coleta dos dados de domingo (27 de setembro). Os dados foram extraídos por

meio da tecla print screen, que permite uma reprodução digital do que aparece na tela do

computador.

As 76 postagens foram divididas nas seguintes categorias: Teste , Celebridade,

Beleza, Moda, Comportamento e Entretenimento. Essa categorização foi feita de acordo com

a temática principal de cada postagem. No caso de postagens que falavam sobre o tipo de

roupa de uma celebridade, por exemplo, optou-se pela categorização tanto em Celebridade

7 https://www.facebook.com/capricho/. Último acesso em 11/11/2015

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quanto em Moda. O objetivo principal da categorização é elucidar a pouca diversidade

temática das publicações e mostrar como todas as categorias contemplam clichês relacionados

ao universo feminino.

A categoria com maior número de posts foi a Celebridade, totalizando 36 publicações.

Os conteúdos sobre celebridades costumam contemplar personalidades da música pop

estadunidense e na maioria das vezes estão acompanhados de juízos de valor como

“lacradora”, “diva” e “musa”. A Figura 1 – Celebridade mostra uma postagem do dia 10 de

setembro, sobre o lançamento da nova música da cantora pop Selena Gomez. A publicação

especula que o teor da música tem o objetivo atingir algumas pessoas da convivência da

cantora, por meio de indiretas. Essa interpretação leva a inferir que a Capricho e sua audiência

estão inteirados da vida de Selena Gomez, afinal, um desavisado que ouvir sua música pela

primeira vez certamente não perceberá nenhuma das indiretas. A foto exibe a cantora em uma

pose destemida, confiante, vestida elegantemente de acordo com os padrões e sem deixar de

exibir o corpo. A mensagem dessa publicação valoriza os ideais de autenticidade, o tão

evocado “seja você mesma”, que a mídia vende em um discurso contraditório, pois estimula a

libertação limitada pelos padrões vigentes.

A celebração visual do corpo esbelto vem à rebote do culto às celebridades. Num

cenário de entretenimento pop de pouca diversidade, hegemonicamente constituído por

mulheres brancas, magras, de corpos torneados e com roupas que seguem a moda, o ideal de

corpo feminino na cultura da mídia contemporânea contraria todas as mensagens do tipo “ame

seu corpo” (Durham, 2009). Assim, conforme descrito pelo Efeito Lolita em seu Segundo

Mito: “A anatomia de uma deusa do sexo”. Mensagens de sucesso são atreladas a jovens

famosos, ricos e dentro de um padrão que exclui os corpos obesos e a diversidade étnica.

Figura 1 – Selena Gomez

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Periodicamente, a Capricho posta conteúdos da série It Girls, na qual meninas que

formam a audiência da Capricho são escolhidas pelo corpo editorial para mostrar algumas de

suas roupas e falar sobre seu estilo. Esses conteúdos mesclam as categorias de Moda, Beleza e

Comportamento, legitimando a padronização do estilo de vestimentas das meninas e as

implicações mercadológicas disso. Na Figura 2 – It Girl Caroline Macedo, uma usuária do

Facebook e que acompanha a fanpage da Capricho demonstrou por meio de comentário a sua

impressão diante do post: “Um dia eu vou ser que nem ela, só falta o dinheiro”. O incentivo à

magreza também é percebido pelo público de maneira clara. O comentário de outra usuária do

Facebook expressou o desejo por ser “linda assim” (como a It Girl) algum dia, mas, por

enquanto, prefere continuar comendo – encarando a privação de comida como uma forma

plausível de emagrecimento.

Figura 2 – It Girl Caroline Macedo

A exaltação da beleza afastada da diversidade, como um único molde possível a ser

perseguido, além de fomentar a busca pela magreza a qualquer custo e a baixo autoestima de

garotas dissonantes do padrão está inserida nas lógicas de consumo contemporâneas, nas

quais o mercado é um espaço social do qual todos os indivíduos compartilham, mas não de

forma igualitária (Bauman, 2008). Conforme esclarecido por Durham (2009) na abordagem

do Efeito Lolita, a fidelização de consumidores desde a infância opera em consonância com

os interesses das grandes corporações empresariais e grande parte dessas estratégias de

consumo envolvem a mídia. É como se todos fossem obrigados a ser magros, bonitos e

estilosos – com ênfase recaindo sobre as mulheres, mas quem não for assim naturalmente

pode comprar esses atributos e “resolver o problema”.

A magreza é colocada em um patamar tão incontestável que mesmo quando o texto da

publicação levanta algum questionamento em torno do tema, algumas leitoras manifestam

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insatisfação, alegando que os manequins magros estão alinhados com a realidade e dando a

entender que o preconceito contra as meninas gordas acontece na mesma proporção que o

preconceito contra as magras. Essa ideia de reverter o discurso cultural dominante mostra-se

falaciosa, especialmente no contexto midiático que exibe uma profusão de mulheres magras e

praticamente não mostra mulheres obesas. A Figura 3 – Manequim excessivamente magra

retrata a situação descrita.

Figura 3 – Manequim excessivamente magra

Em um comentário com quase 3 mil curtidas, uma usuária do Facebook diz não ver

“problema nenhum em manequim magro”. E completa dizendo que as manifestações contra a

magreza excessiva são, na verdade, “um exagero”. Vale questionar se as meninas obesas, alvo

da opressão diárias pelos corpos magros e torneados compartilham da mesma opinião,

sofrendo na pele o preconceito. Em uma outra postagem, mostrada na Figura 5 – Gordofobia,

o uso do termo “gordofobia” desperta uma reação que também se vale da lógica de

preconceito reverso, na qual uma menina defende o uso do termo “magrofobia”. O padrão do

corpo perfeito e a negação permanente de que exista um preconceito contra quem não segue

esses padrões – dando a impressão de que a beleza natural deve ser valorizada – já estão

enraizados de tal forma na sociedade que nenhum gancho de discussão parece ter efeito. A

falta de empatia com os relatos das meninas que sofrem de gordofobia também revela um

traço cruel do machismo na sociedade: a disseminação da ideia de que as mulheres competem

entre si e alimentam rivalidades, enquanto os homens são amigos e companheiros.

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Figura 4 – Gordofobia

A quantidade considerável de postagens sobre moda e beleza deixa claro o espectro de

objetificação feminina, em consonância com o que é defendido pelo Efeito Lolita. A

reincidência da abordagem de temas como produtos de beleza, cortes de cabelo e estilos de

roupas constroem o entendimento de que esses assuntos são prioritários e acaba por ignorar

muitos outros aspectos que poderiam ser proveitosos para a vida das adolescentes. Essa

homogeneização temática empobrece toda a concepção de conceitos como “universo

feminino” e “feminilidade”, colocando à margem mulheres que não se interessem por

maquiagem ou moda, por exemplo. Neste estudo, das 76 postagens coletadas, 21 foram

categorizadas como Moda e Beleza. Notícia sobre lançamentos de produtos, dicas para a

combinação de roupas e discussões sobre as roupas de celebridades trazem à tona as opiniões

e inseguranças das meninas. Na Figura 6 – Dica de look, a Capricho se posiciona como amiga

íntima da leitora, dando uma dica valiosa sobre como driblar os protocolos da Moda e

combinar determinadas peças de roupa. As modelos que aparecem na foto são magras,

brancas e de cabelo liso. A foto é tão parecida com as outras que costumam ser divulgadas na

fanpage que, se viesse desacompanhada do texto, certamente não seria associada a uma

quebra de padrões.

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Figura 5 – Dica de look

A importância à opinião masculina em uma revista de público alvo feminino tem

ligação clara com o interlocutor masculino imaginário que Durham (2009) descreve no Efeito

Lolita. Nos casos da postagem analisadas neste estudo, é interessante observar que além do

reforço dos padrões de beleza femininos, conteúdos que falam sobre relacionamentos

amorosos também deixam o homem em posição favorável. Na Figura 7 – Selena Gomez e

Justin Bieber, a Capricho divulga uma entrevista na qual a cantora pop Selena Gomez fala

sobre o fim do namoro com outra estrela do mundo teen, o cantor Justin Bieber. Nos

comentários, as leitoras manifestam-se de maneira irônica sobre as declarações de Selena,

dando a entender que o fim do namoro beneficiou Justin Bieber e que com o término ele ficou

muito “melhor, mais gato, gostoso, mais homem e sobra pra nós...”. Além de toda a avaliação

unilateral, deixando subentendido que Selena Gomez era um obstáculo para o máximo

desempenho de Justin Bieber, o emprego do termo “mais homem” chama atenção. O conceito

de masculinidade refletido nessa opinião parece ligar-se, inevitavelmente, ao comportamento

“caçador” do homem solteiro, sem uma mulher ciumenta e limitadora por perto para

atrapalhar.

Figura 6 – Selena Gomez e Justin Bieber

No universo das 76 postagens coletadas por este estudo, essas seis figuras dão conta de

retratar quais são os temas mais abordados pelas publicações da Capricho. A escolha por

termos que sugerem a urgência de ficar por dentro da vida das celebridades, a opção por fotos

de meninas inseridas nos padrões de beleza, a preocupação com o discurso de empoderamento

feminino, ainda que ambíguo e cercado de contradições, levam à constatação de que a

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Capricho trabalha reforçando o campo simbólico de um universo feminino estereotipado, de

acordo com a construção subjetiva de uma sociedade machista.

A homogeneização das temáticas e a postura negligente quanto à diversidade confirma

os resultados do Efeito Lolita. Este estudo percebeu a predominância por fotos de

celebridades magras, de músculos rijos e torneados e brancas. A associação do tema de

celebridades com assuntos de moda e beleza e celebridades e seus relacionamentos amorosos

limitam a construção discursiva da adolescente brasileira a uma menina curiosa sobre a vida

íntima de astros pop, preocupada em ser magra e vestir os looks da moda, bem como usar o

corte adequado de cabelo e as maquiagens e esmaltes que mais a favoreçam. Em sua

construção discursiva, a Capricho estabelece jogos de verdade (Foucault, 1994) excludentes e

homogeneizadores, reforçando a concepção estereotipada do que é ser uma menina

adolescente, construindo uma identidade feminina tolhida por regras mercadológicas. Pode

parecer piada, mas talvez valha a reflexão: se um extraterrestre pudesse acessar o Facebook e

a fanpage da Capricho, que opinião formaria sobre as adolescentes brasileiras? Certamente,

não conheceria as negras, gordas, lésbicas e que gostem de outro estilo musical que não seja o

pop.

O senso comum em torno da libertinagem masculina também é reforçado pela

Capricho, o que contribui para a construção limitada da sexualidade feminina, cercada de

medos e estereótipos. No Efeito Lolita, Durham (2009) descreve uma postura de resignação

dos meios de comunicação diante da violência masculina, inclusive glamourizando o

comportamento do homem “pegador” e deixando claro que o homem está sempre pronto para

o sexo, por isso a menina deve saber e escolher cuidadosamente até onde deve se guardar,

para não sofrer a experiência traumática de ser abandonada no dia seguinte. Além disso, a

palavra final sobre o sexo pertence ao homem, no sentido de espalhar boatos e difamações

contra a garota. “Ter fama de piranha”, por exemplo, é uma expressão pejorativa sem um

equivalente no gênero masculino. Dessa maneira, concluímos que a Capricho se insere no

contexto brasileiro de reafirmação dos mitos descritos pelo Efeito Lolita, operando como um

reforço à objetificação feminina precoce.

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Referências Bibliográficas

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