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Edição Nº. 6, Vol. 1, jan./dez. 2016. Inserida em: http://www.uel.br/revistas/lenpes-pibid/
EDUCAÇÃO E LIBERDADE: PERSPECTIVAS TEÓRICAS E ALGUMAS POSSIBILIDADES FRENTE AO DESAFIO DO DESENVOVIMENTO DE UMA EDUCAÇÃO VERDADEIRAMENTE EMANCIPADORA
Marco Aurélio Afonso Costa1
RESUMO
Este artigo busca estabelecer um diálogo entre Pierre Bourdieu e alguns teóricos libertários acerca do tema educação. O objetivo principal é questionar o atual sistema de ensino e a própria moral e significado da palavra educação para a sociedade de uma maneira geral. Buscando no conceito de Habitus de Bourdieu a fundamentação teórica de um conceito abstrato e genérico do que é o aprendizado, encontro no pensamento libertário, nas teorias e nas práticas pedagógicas dos anarquistas, a base necessária para uma radical mudança no conceito e no entendimento que a sociedade estabelece como critério para a educação dos indivíduos. A educação se faz cotidianamente em todos os lugares e a todo tempo, do início ao fim de nossas vidas, o que é fundamental para a mudança no entendimento do que é a escola e qual seu papel na sociedade. A pedagogia que se pretende verdadeiramente emancipadora deve pautar-se, a todo momento, em princípios de liberdade, como meio de proporcionar aos indivíduos a possibilidade de desenvolver suas próprias potencialidades. Toda educação vem do próprio indivíduo, cabendo à escola e aos profissionais da educação proporcionar ambientes propícios ao desenvolvimento autônomo de cada um; os meios devem ser coerentes com o próprio fim. PALAVRAS-CHAVES: Educação; Emancipação; Pedagogia Libertária.
INTRODUÇÃO
A educação foi pensada de diversas formas ao longo do tempo e através das
várias vertentes do pensamento social. Alguns diriam que a educação é papel do Estado
e da instituição escolar e, enquanto tal, deve ser pensada à luz de políticas públicas.
Outros diriam que “educação vem de berço”, como explica o jargão, e por isso é
responsabilidade da família. No entanto, há os que pensam a educação enquanto
vivência; a educação e o aprendizado, para eles, são momentos indissociáveis da
vivência e da prática cotidiana. 1 Professor de Sociologia pelo Estado de Santa Catarina. Contato: [email protected]
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Diversos teóricos discutiram questões pertinentes à educação e chegaram às
mais variadas conclusões; no entanto, quando o assunto é a busca da emancipação do
ser humano dos laços de servidão que os ligam aos seus próprios semelhantes, reforçado
por superstições e crenças, todos concordam no papel da educação enquanto poderoso
meio para alcançar tal objetivo. Max Weber, que teorizou o desencantamento do mundo
provocado pelo desenvolvimento das relações capitalistas de produção e o surgimento do
Estado Moderno, afirmava que a constante racionalização do mundo não comportava
mais verdades absolutas baseadas num conhecimento superior, transcendental. Para ele,
num tempo que se caracteriza pela racionalização e pelo desencantamento do mundo, ao
homem cumpre apenas ouvir a sua voz interior, a sua consciência, pois não há mais
valores supremos e sublimes que orientam a sua conduta. No entanto, a educação tinha
um propósito em Weber: o aprofundamento na comunicação e no significado intrínseco do
conhecimento, fiel à tradição racionalista (CARVALHO, 2004, p.254). Mas Weber tratou
em seus escritos apenas do ensino acadêmico e, talvez por isso, deposita toda a
responsabilidade do ensino na conduta do professor, o colocando como o único agente na
sociedade responsável por formar mentes para o futuro.
Os escritos de Weber se resumiram a discutir a formação acadêmica; no entanto,
a educação se estende por toda a nossa vida. Começamos a aprender as primeiras
noções sobre o mundo a nossa volta no seio da família e logo descobrimos a rua, a
vizinhança, o bairro, a escola como espaços físicos de educação e socialização e
adquirimos noções, medos, preconceitos, superstições que influenciarão todas as nossas
escolhas posteriores. Portanto, nos soa como incoerente, débil e incompleto, quaisquer
tentativas que depositem todo o peso da formação do ser social na instituição escolar e,
principalmente, na capacidade do professor.
O problema é que as estruturas não se fazem presentes apenas fisicamente, de
forma exterior, mas também, e principalmente, na mente das pessoas, como disposições
que norteiam seus pensamentos e ações. Como diria Weber, os juízos que fazemos
serão o meio utilizado para orientar nossas ações, isto é, direcionar as escolhas e as
decisões de cada indivíduo. Isto significa que, quando agimos, há um conjunto de valores
que sustentam e dão sentido as nossas ações (CARVALHO, 2004, p.255).
Dessa maneira, como esperar então que os professores façam o papel de
transformadores das mentes para o futuro, se eles próprios estão imersos e foram
instruídos segundo os valores que pretendem mudar (se é que pretendem mudar). A
neutralidade pretendida por Weber se torna então muito difícil, principalmente porque há
uma hierarquia instituída e mantida pela estrutura escolar, uma hierarquia que funciona
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tanto psicologicamente (o professor deve instruir e o estudante escutar e ser instruído),
quanto fisicamente (no intervalo, os professores se reúnem na sala dos professores e os
estudantes no pátio). Há também, na prática, uma hierarquia construída por títulos de
excelência e mérito que impossibilitam implicitamente a horizontalidade das relações.
Portanto, o objetivo desse artigo é explicitar porque não deveríamos somente
repensar os conteúdos que estão sendo dados em sala de aula, mas também como, em
que ambiente, sob quais condições, essas aulas estão acontecendo. A análise e o
questionamento de como a estrutura física e hierárquica influenciam, tanto no trabalho do
professor, como no aprendizado do estudante também devem ser feitas.
1º PARTE: CONCEITUAÇÃO E CRÍTICA
O “HABITUS”
O autor francês Pierre Bourdieu propôs um conceito que conseguisse lidar com a
difícil caracterização da prática cotidiana. Ou seja, alguns autores, os chamados
estruturalistas, propõem que nossas ações cotidianas são fruto das relações sociais
estabelecidas pela estrutura organizacional da sociedade em geral. Essa afirmação se faz
correta até certo ponto, pois somos sim produtos do meio em que habitamos; no entanto,
essa proposição, utilizada sem as devidas críticas, nos leva a considerar os indivíduos
como apenas reflexos das estruturas, como marionetes da cultura e da moral, ou, como
diria Bourdieu, a prática se resumiria a “um precipitado mecânico de ditames estruturais”.
Outros autores diriam o contrário, afirmariam que as relações sociais são como
um palco, uma representação teatral, onde os indivíduos lançam mão de suas habilidades
em busca de determinados resultados que os beneficiariam; tal afirmação também se faz
correta quando são preservadas as necessárias críticas. Um indivíduo não é apenas fruto
de suas ações, mas também do meio em que se encontra, ou seja, não é apenas o
resultado da perseguição intencional de objetivos, mas também responde, de maneira
muitas vezes inconsciente, às investidas do meio externo onde se encontra (exemplo
disso é a dificuldade de um imigrante em se estabelecer em outra região com cultura e
costumes diferentes do seu).
Observando a ambiguidade e complexidade de nossas relações (tanto com o
meio exterior, quanto com nossa própria consciência e com as idéias que fazemos do
mundo a nossa volta) Bourdieu buscou estabelecer um conceito que pudesse, o mais
possível, dar conta dessa situação. Segundo ele, os indivíduos são produto de uma
relação dialética entre a situação e o habitus, entendido como um sistema de disposições
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duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona em
cada momento como matriz de percepções, apreciações e ações e torna possível cumprir
tarefas infinitamente diferenciadas graças à transferência análoga de esquemas
adquiridos numa prática anterior; história individual e grupal sedimentada no corpo,
estrutura social tornada estrutura mental (Bourdieu, 2002 [1972], p. 261).
Nas palavras de Bourdieu,
o habitus (1) resume não uma aptidão natural mas social que é por essa mesma razão variável através do tempo, do lugar e, sobretudo, através das distribuições de poder; (2) é transferível para vários domínios de prática no interior e entre os indivíduos da mesma classe e que fundamenta os distintos estilos de vida; (3) é durável mas não estático ou eterno: as disposições são socialmente montadas e podem ser corroídas, contrariadas, ou mesmo desmanteladas pela exposição a novas forças externas, como demonstrado, por exemplo, a propósito de situações de migração; (4) contudo é dotado de inércia incorporada, na medida em que o habitus tende a produzir práticas moldadas depois das estruturas sociais que os geraram, e na medida em que cada uma das suas camadas opera como um prisma através do qual as últimas experiências são filtradas e os subseqüentes estratos de disposições sobrepostos. Como “história tornada natureza”, o habitus é aquilo que confere às práticas a sua relativa autonomia no que diz respeito às determinações externas do presente imediato. Esta autonomia é a do passado ordenado e atuante, que, funcionando como capital acumulado, produz história na base da história e assim assegura que a permanência no interior da mudança faça do agente individual “um mundo no interior do mundo”(BOURDIEU, 1990 [1980], p. 56).
Para Bourdieu, o habitus tem duas funções diferentes e complementares: uma ele
chama de sociação, ou seja, as categorias de juízo transmitidas pela sociedade e pelo
meio, fazem com que os indivíduos se identifiquem com outros indivíduos que
compartilham das mesmas categorias, criando assim identidade de grupo ou sensação de
pertencimento entre os que foram submetidos a condições e condicionamentos sociais
similares; assim, segundo ele, pode-se falar de um habitus masculino, um habitus
nacional e um habitus burguês. A outra função do habitus é gerar o efeito de
individuação, isto é, cada pessoa, cada indivíduo, ao ter uma localização e trilhar uma
trajetória única no mundo (mesmo partilhando os mesmos espaços e costumes que
outros) internaliza uma combinação incomparável de esquemas de percepção, o
tornando, assim, um ser singular.
Os anarquistas a muito já percebiam essa dualidade do ser humano e por isso
sempre empregaram seus esforços na tentativa de conceber uma organização social
onde as regras de convivência interferissem o mínimo possível na liberdade dos
indivíduos fazendo assim com que pudessem não apenas serem influenciados, mas
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também influenciarem e modificarem a estrutura social. Segundo George Woodcock, um
dos maiores estudiosos modernos do anarquismo,
a Humanidade é uma só, subordinada à mesma condição, e todos os homens são iguais. Porém, todos os homens são diferentes e, no íntimo de seu coração, cada homem é, na realidade, uma ilha. Os anarquistas têm estado especialmente conscientes dessa dualidade entre o homem universal e o homem particular, e muitas de suas reflexões têm sido devotadas à busca do equilíbrio entre as reivindicações da solidariedade humana geral e as do indivíduo livre. Em especial, eles procuraram conciliar ideais internacionalistas à idéia de um mundo sem fronteira ou barreiras de raça – com uma insistência ferrenha na autonomia local e na espontaneidade pessoal (WOODCOCK, 2006, p.7).
O EFEITO CASCATA DA HIERARQUIA
O catecismo me ensinou, na infância, a fazer o bem por interesse e a não fazer o mal por medo. Deus me oferecia castigos e recompensas, me ameaçava com o inferno e me prometia o céu, e eu temia e acreditava.
Eduardo Galeano
A hierarquia é constituída por um princípio básico: submissão e obediência. A
instituição maior da sociedade moderna, dentro dos limites nacionais, é o Estado, e ele
funciona através dos princípios da hierarquia.
O Estado Democrático de Direito tem por finalidade, teoricamente, a defesa dos
interesses gerais da nação, baseado na constituição e nas leis que são feitas pelos
representantes do povo, escolhidos periodicamente através eleições populares. Tais
interesses representariam a vontade de uma maioria que escolheu seus representantes
democraticamente; portanto, a função da hierarquia é fazer com que esses interesses
sejam refletidos em todos os domínios do Estado Nação. Teoricamente, o Estado é
legitimado dessa forma.
No entanto sabemos, mas não cabe aqui explicar de maneira mais detalhada, que
existem outras forças sociais que atuam e interferem diretamente nas decisões, nas leis e
na aplicação das leis (que se difere qualitativamente da lei em si). Segundo Bakunin,
estes interesses “representam na verdade interesses muito positivos e reais [...], essa
abstração política que é o Estado, representa os interesses da classe que é hoje o
principal – se não o único – agente da exploração [...] a burguesia” (WOODCOCK, Vol. IV,
1910, p. 75).
Como foi dito acima, não iremos entrar nessa discussão, cabe ressaltar a forma
como a hierarquia funciona e que, sendo assim, o modelo de organização do Estado se
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refletirá nas outras organizações que estão sob sua tutela; ou seja, tanto a universidade,
quanto a escola, como também a própria família serão reflexos da organização do Estado.
No início dessa segunda parte foi dito que a hierarquia se baseia em um princípio
básico: submissão e obediência. Logo, para se manter o funcionamento da hierarquia
(submissão e obediência) se faz necessário a aplicação de outro princípio que, como o
próprio nome já diz, está no princípio de toda a educação do ser social: esse princípio é o
dos castigos e recompensas.
O Estado, enquanto instituição centralizadora, possui seus meios para manter-se
enquanto dominador. Todo um aparato se faz necessário para que os indivíduos sob sua
tutela adéquem-se aos seus ditames e, por isso, o conservem. Ou seja, as leis
estabelecem o que se deve ou não fazer; no entanto, as leis não são barreiras físicas que
impedem a passagem com sua solidez. Para se manter a funcionalidade e a efetivação
das leis é necessário primeiro um aparato jurídico que a estabeleça, depois um aparato
moral que a legitime e, por último, um aparelho de guerra que a mantenha pela força.
Para Max Stirner, “o melhor Estado será aquele que tiver os cidadãos mais leais e, quanto
mais perdido estiver o espírito da legalidade, menor será o poder e a qualidade do
Estado, este sistema moral, essa própria vida moral. ‘Respeito à lei’, este é o cimento que
mantém a estrutura do Estado. ‘A lei é sagrada e aquele que a desafia é um criminoso’”
(WOODCOCK, Vol. IV, 1910, p. 81). Portanto, estabelece-se aqui uma relação dialética,
ou seja, quanto menos força tiver o aparato moral, legitimador das leis e das regras, mais
forte deverá ser o aparelho de guerra que manterá a ordem pela força.
O Estado possui seus agentes, os pedreiros que fazem o cimento que mantém
sua estrutura funcionando, os construtores de seu aparato moral, legitimadores de sua
existência e conservação; agentes que transmitem suas regras nos micro-campos e que
vão atingir diretamente o indivíduo: esses agentes dos micro-campos são, entre outros, a
família e a escola.
A FAMÍLIA
O arquétipo de família burguesa (a palavra arquétipo está sendo usada para falar
da família de modo genérico, não considerando as variações recorrentes da realidade),
enquanto instituição primeira de socialização dos indivíduos possui um enorme poder
dentro da estrutura social. Ela também possui sua hierarquia e funciona através punições
e recompensas. O adulto é responsável pela criança, por garantir a sua sobrevivência e
segurança, e enquanto tal outorga a si o direito de decidir sobre os rumos da vida da
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criança. A família, em sua funcionalidade hierárquica, transmite não só seus valores sobre
o mundo exterior, como também interfere diretamente nos ambientes os quais a criança
frequentará, as pessoas com as quais se relacionará, tanto quanto o que pode ou não
fazer, assistir, brincar; tudo prezando, segundo os seus valores, pela “segurança” da
criança. Assim se faz a formação das primeiras estruturas cognitivas do indivíduo, como
veremos mais adiante, que influenciarão fortemente todas as suas percepções e ações
futuras.
A relevância da formação de tais estruturas cognitivas nesse período foi analisada
por vários autores. Pierre Bourdieu classifica tais estruturas, como foi supracitado, pelo
conceito de “habitus”. Segundo ele, a ação pedagógica na primeira fase de formação do
agente é vista como produtora de um “hábito primário” característica de um grupo ou de
uma classe que está no princípio da constituição de todo outro hábito (ORTIZ, Renato
(Org.), 1983, p. 18). Como a família funciona hierarquicamente, os princípios hierárquicos
de submissão e obediência formam as primeiras estruturas cognitivas nas crianças que
posteriormente servirão para sua adaptação à vida escolar e, mais a frente, à disciplina do
trabalho.
A família, assim como o Estado, mantém sua ordem através punições e
recompensas, ou seja, pune os desvios com castigos e recompensa a obediência com
presentes, entre outros; tudo em nome da “segurança” dos que se encontram sob sua
tutela. É na família o primeiro lugar onde uma criança deve amar o superior que dela
cuida, educa e prepara para a vida. Funcionando dessa maneira, produz o cimento moral
que dará sustentação às estruturas sociais e, principalmente, ao Estado.
Quando adulta, amará as demais instituições como a justiça e seu tribunal, a
polícia e suas medidas de contenção, a política e suas disciplinadas formas de influir e
governar por meio de partidos e grupos de pressão; ela, adulta, amará o Estado como
centro e proteção da liberdade pelas proibições sacramentadas na lei universal. Estará
definitivamente preparada para ter filhos e reiniciar o eterno retorno da mesmice ao amor
sobre todas as coisas (PASSETI, 2008, p.29).
A ESCOLA
A escola é uma instituição secundária na formação do ser social, inicia sua
influência depois, mas funciona paralelamente com a formação familiar. A igreja também
é uma instituição e influi fortemente nas relações sociais, no entanto cabe aqui apenas
relatar sua relevância, assim como, na sociedade moderna, a relevância da televisão na
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educação e na difusão de uma cultura de massa modificou fortemente as relações sociais
e deve ser foco de análise e crítica. No entanto, para não entrar em assuntos que
prolongariam demais a análise desse artigo, e para não fugir de nosso objetivo,
trataremos agora da escola e de seu importante papel na constituição e na manutenção
do cimento moral da estrutura social.
A escola e seu papel na formação do ser social sempre estiveram presentes na
análise dos libertários e anarquistas, principalmente enquanto monopólio da educação
pelo Estado, sob a forma de ensino nacional, laico, como direito e obrigação de cada
cidadão. A escola é também uma instituição e está sob a tutela do Estado, por
conseguinte, podemos dizer que refletirá em sua estrutura o mesmo princípio que norteia
e mantém a estrutura estatal: a hierarquia.
Muitos poderão argumentar que hoje há também o ensino privado, particular, que
não está sob a tutela estatal. No entanto, as escolas, mesmo particulares, precisam de
reconhecimento do MEC, do Ministério da Educação, necessitam se adequar a leis e
diretrizes de base e, enquanto tal, não escapam aos olhos do Estado. Além do mais, a
escola privada funciona como uma empresa, possui sua hierarquia, seu funcionamento é
regulado, enquanto empresa privada, pelas necessidades do mercado, acentuando ainda
mais a busca por méritos e a competição entre os alunos, de modo que está estrutura
acentua ainda mais o temor dos castigos e a busca por recompensas. Os alunos de
escolas particulares, já se encontram, na distribuição do capital social, em posição
vantajosa; portanto, há subentendido a necessidade de não fracassar, de buscar a
manutenção do que foi conseguido pelos antepassados, ou conquistar novos espaços e
buscar novas vitórias. Há, nas instituições particulares de ensino, uma forte pressão
externa, psicológica, que reforça o princípio da servidão: siga as regras e obterá êxito,
será recompensado; se não, será um fracasso, tanto frente aos outros estudantes, como
frente à própria família, e, como tal, será castigado, se não física, psicologicamente. Não
é exagero algum colocar sob estes termos, pois, apesar de estar implicitamente
estabelecido, a concorrência nas escolas se faz tão presente quanto no mercado de
trabalho. Mas, voltando à questão anterior, analisemos primeiramente a estrutura física da
escola para depois nos determos em sua formação hierárquica.
ESCOLA: ESTRUTURA FÍSICA
Nas grandes cidades de um país tão violento, os muros e as grades nos protegem de quase tudo; mas o quase tudo quase sempre é quase nada e
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nada nos protege de uma vida sem sentido. O quase tudo, quase sempre, é quase nada.
Humberto Gessinger
A maioria das escolas é formada pelo mesmo padrão: os muros e as grades
cercam um terreno, grande ou pequeno; o terreno deve ser capaz de abrigar um prédio
fechado e manter uma parte a céu aberto. Os prédios escolares são em sua maioria
constituídos pelo mesmo princípio: o da vigilância. Há uma portaria onde um funcionário
controla, através cartões de identificação, a entrada, a saída e o fluxo de estudantes. Há
um pátio onde os estudantes aguardam o início das aulas e onde, no intervalo, poderão
tomar sol e respirar ar fresco. Os corredores são retangulares, com salas contíguas,
permitindo assim o fluxo do trânsito tanto como a fiscalização do inspetor. As salas são
retangulares com um quadro-negro na frente, de onde, em seu púlpito, o professor
ministrará sua aula; as carteiras são enfileiradas de modo a permitir que o professor ande
pelos corredores avaliando as atividades dos estudantes. Os estudantes não podem estar
em nenhum momento sem atividades, a não ser nos horários especificados para essa
finalidade. Se forem pegos transitando pelos corredores sem autorização, são levados à
presença do diretor para prestar esclarecimentos.
No prédio há uma divisão por méritos e funções: os professores possuem seus
próprios banheiros (que estão sempre em melhores condições de uso que o dos
estudantes); possuem uma sala específica onde podem se reunir no intervalo para
conversar e tomar café ou comer. Os funcionários também possuem banheiro
diferenciado e espaços onde podem se reunir. Os estudantes, quando não estão em
horário de aula, se reúnem no pátio ou na cantina, sempre com comportamento e horários
controlados pelos funcionários. Na hora do intervalo fica explícita a divisão que a estrutura
física produz na escola. Coincidências à parte, essa estrutura se assemelha tanto as dos
prédios públicos, quanto a dos hospitais, fábricas e prisões.
Segundo os anarquistas, não há coincidências, muito menos acaso, na conduta
do Estado. Para eles, tanto as prisões quanto as escolas são instituições da modernidade;
a escola foi criada para disciplinar a criança, para torná-la um bom trabalhador e um bom cidadão; a prisão (para jovens e adultos) apareceu, quase ao mesmo tempo, para corrigir os desviados, ressocializá-los, integrá-los sob o espírito da nova chance, da introjeção dos valores perdidos ou desconhecidos [...] A prisão assume o lugar da escola e reconhece a sua falha. Escola e prisão são, portanto, instituições que se comunicam, com características arquitetônicas semelhantes, grades, vigias, salas contíguas e geminadas, corredores que facilitam inspeção e controle, proximidades, isolamentos, reuniões temporárias em pátios. Esse estranho parentesco quanto ao uso do espaço, o domínio das disciplinas e
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a aplicação do sistema de recompensas e punições não exige um especialista para ser desvendado (PASSETTI , 2008, p. 94-95).
Além da semelhança estrutural entre escolas e prisões, o Estado também designa
uma polícia especial para cuidar, segundo toda a ideologia que justifica e legitima as
práticas de controle, da “segurança” dos estudantes. A patrulha escolar ronda as escolas
em horários específicos e pode ser contatada pelos funcionários ou professores caso
alguma situação saia do controle. Algumas idéias têm sido usadas constantemente para
legitimar ações de controle e vigilância por parte do Estado, inclusive com o uso da
violência, e que, muitas vezes, como foi especificado acima, pode terminar até com a
detenção dos envolvidos. Assim como em outras épocas fora o combate ao comunismo,
e, nos dias de hoje, o combate ao terrorismo, o combate ao tráfico e ao uso de drogas
tem legitimado violências desmedidas por parte dos organismos de segurança do Estado.
Hoje é muito comum ver câmeras de vigilância espalhadas pelos corredores das
escolas, e inclusive dentro das salas de aula. Esse tipo de vigilância pode servir não só
para controlar as atitudes dos estudantes como também a conduta do próprio professor.
Recentemente gerou polêmica por parte dos pais dos estudantes a instalação de câmeras
até mesmo dentro dos banheiros, legitimada pela mesma idéia do combate ao uso de
drogas.
A escola, portanto, não transmite aos estudantes apenas os conteúdos de sala de
aula, mas também, e principalmente, pela convivência diária nesse ambiente, transmite a
idéia de insegurança, a idéia da desconfiança entre todos; forma, como diria Bourdieu,
esquemas de percepção e ação habituados à constante vigilância, ao controle sistemático
das ações, do respeito à hierarquia, do medo da polícia; os pais, amedrontados com a
idéia de seus filhos estarem expostos a tais perigos como o uso de drogas, têm legitimado
ações desmedidas e condicionado cada vez mais seus filhos a viverem e a aprenderem a
aceitar tais condições. Como diria Edson Passetti, os pais, acreditando no saber científico
exercido por especialistas dentro e fora do Estado, a eles destinavam a tarefa de curar o
desajuste dos filhos, ou simplesmente administravam-nos em instituições de recolhimento
de menores quando desistiam de conviver com a criança problema. Segundo ele, dentro
desta fortalecida rede composta por pessoas refazendo normas, leis, condutas,
contestações prévias e previsíveis, consentimento e repressões [...] a escola pode tudo,
não por ela mesma, mas pelo seu relevante desempenho institucional ao lado da família,
religião, polícia, trabalho, política... formando o aluno, o filho, o crente, o vigilante, o
penalizador, o produtivo, o leitor, o adorador de ídolos (PASSETTI, 2008, p. 26).
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ESCOLA: FORMAÇÃO BUROCRÁTICA
Primeiramente, há uma hierarquia explícita, ou seja, a formação burocrática da
escola. Há em todas as escolas, sejam elas públicas ou particulares, um diretor, uma
equipe pedagógica, uma burocracia funcional, um grupo de professores, funcionários e,
claro, estudantes. O diretor é o responsável geral pelo andamento da escola, a ele estão
subordinados os demais funcionários e a ele devem relatar suas atividades. A equipe
pedagógica organiza didaticamente e trata diretamente do funcionamento da escola com
os professores. A burocracia funcional, como o próprio nome já diz, preza pelo
funcionamento burocrático da instituição, e os funcionários fazem a manutenção geral da
parte física do colégio. Assim está formada a hierarquia escolar; mas... e os estudantes?
Dentro da instituição escolar não há voz para os estudantes. Apesar de ser
maioria dentro do colégio, não há representações estudantis e, quando há, a participação
é mínima. Assim, a escola não é do estudante, mas para ele; ou seja, tem-se
subentendido a idéia de incapacidade política das crianças e dos adolescentes, portanto,
a escola não é lugar de participação ativa dos mesmos, mas antes, para sua formação,
formatação, para a vida adulta. Alias, não é à toa essa invalidação política de crianças e
adolescentes: não tendo que participar ativamente dos ambientes que freqüenta, o
estudante aprende a viver representado, a aceitar decisões e não participar delas. Assim,
quando sair da escola já estará acostumado com o funcionamento político da sociedade;
votará apenas por obrigação, aceitará sua incapacidade frente à máquina política; poderá
até criticar, mas nunca participar ativamente: nunca foi assim, desde a família, passando
pela escola, igreja, nunca pode participar, fora sempre controlado, sempre condicionado
e, portanto, apesar de sentir o vazio que isso lhe traz, aceitará como fato incontestável o
efeito embriagante da representação política.
Além da hierarquia explícita, há também outro tipo de hierarquia no colégio, uma
hierarquia implícita, formada antes pelas condições e pelo condicionamento social dos
indivíduos. Essa hierarquia implícita Bourdieu vai chamar de “capital cultural”, ou seja, são
esquemas formados pela condição social do indivíduo advindo da posição que sua família
ocupa dentro dos micro-campos sociais. Para ele, cada família transmite a seus filhos,
mais por vias indiretas do que diretas o capital cultural e o ethos, sistema de valores
implícitos e profundamente interiorizados, que contribui para definir, entre coisas, as
atitudes face ao capital cultural e à instituição escolar. A herança cultural, que difere, sob
os dois aspectos, segundo as classes sociais, é a responsável pela diferença inicial das
crianças diante da experiência escolar e, conseqüentemente, pelas taxas de êxito. A
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instituição escolar e seus processos seletivos vão trabalhar, portanto, não como meio
para dissolução de tais diferenças socioculturais formadas pela família e pelo meio social,
mas antes como espaço de legitimação de tais diferenças, por meio de métodos de
avaliação e separação em grupos diferenciados.
De tempo em tempo, os membros ativos da instituição escolar vão se reunir, sem
a presença dos estudantes, para decidir então quem são os que merecem receber as
recompensas por seu bom comportamento e disciplina e quais serão castigados pelos
desvios da normalidade e regras impostas de cima para baixo. Tal qual um tribunal, o
conselho de classe outorga a si a capacidade de decidir, a partir de seus valores, o futuro
de seus réus. Assim sendo, reunir-se-ão com os pais e “responsáveis” para comunicá-los
de seus veredictos; como se não bastasse a não participação dos estudantes em
nenhuma das decisões, a “corte” ainda se fará influenciar nas relações familiares de seus
súditos, relatando, como inquisidores, os desvios e bajulando a submissão, opinando nas
sanções e interferindo nas recompensas, aumentando e tornando instransponível o
abismo que separa direção, pedagogos e professores dos mais interessados em como
deveria ser uma escola: os próprios estudantes.
2º PARTE: A POSIÇÃO LIBERTÁRIA
Nessa segunda parte, pretendo colocar a posição dos libertários com relação à
educação e sua função na sociedade. Serão feitas algumas considerações teóricas e
apontamentos práticos a respeito do significado da educação para libertários e
anarquistas e suas propostas de como seria possível à educação desempenhar um papel
realmente emancipador nas relações sociais. Paralelamente a isso, será desenvolvido
como embasamento teórico o mesmo conceito já usado na primeira parte para fazer a
crítica ao modelo educacional vigente, ou seja, a formação e o desenvolvimento do
habitus nos indivíduos em sua relação com os ambientes aos quais estão condicionados.
A HIERARQUIA
A crítica anarquista sempre esteve voltada, principalmente, a um agente que
estrutura a sociedade e, como tal, faz dela um espelho de seu próprio funcionamento.
Como narciso, apaixonado por sua imagem diante do reflexo das águas calmas da fonte,
o Estado trabalha para que todo indivíduo sob sua tutela seja controlado, que seus
impulsos sejam domesticados, suas vontades reprimidas; trabalha incessantemente para
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forjar a prudência e a calma em cada súdito para que então veja seus princípios refletidos
nos olhos daqueles que domina. O mecanismo que mantém sua dominação, que
impregna cada ser com suas características, é a hierarquia.
No entanto, o Estado em si é apenas uma abstração. A engrenagem que o faz
concreto, seu cimento, como bem disse Max Stirner, é a moral, introjetada, reproduzida,
e, por esse motivo, atuante em cada ação individual. Seu aparato de funcionamento é
complexo, mas pode ser resumido em alguns pontos principais: interesses de uma classe
dominante; uma constituição vaga e pouco atuante; representantes que fazem e
modificam leis; uma burocracia e um aparelho de guerra que cumprem ordens. Na base
da pirâmide está o indivíduo, condicionado, e refém do mecanismo de castigos e
recompensas. Pierre-Joseph Proudhon, anarquista francês, autor do livro Qu’est-ce-que la
propriété?2, e um dos fundamentadores da I Internacional, deixa melhor especificado essa
condição do indivíduo frente ao Estado, diz ele:
Ser governado significa ser vigiado, inspecionado, espiado, dirigido, valorado, pesado, censurado, por pessoas que não têm o título, nem a ciência, nem a virtude. Ser governado significa, por cada operação, cada movimento, cada transação, ser anotado, registrado, listado, tarifado, carimbado, apontado, coisificado, patenteado, licenciado, autorizado, apostrofado, castigado, impelido, reformado, alinhado, corrigido. Significa, sob o pretexto da autoridade pública, e sob o pretexto do interesse geral, ser amestrado, esquadrinhado, explorado, mistificado, roubado; ao menor sinal de resistência, ou à primeira palavra de protesto, ser preso, multado, mutilado, vilipendiado, humilhado, golpeado, reduzido ao mínimo sopro de vida, desarmado, encarcerado, fuzilado, metralhado, condenado, deportado, vendido, traído e como se isso não fosse o suficiente, ridicularizado, ultrajado, burlado. Isto é governo, esta é sua justiça, esta é sua moral (PROUDHON, 1851, p.95-96).
Essa é uma visão quase unânime entre os anarquistas e por isso seus esforços,
cada qual com sua característica, têm sido voltados à negação do Estado e de seu
princípio fundamental, a hierarquia. Portanto, a crítica anarquista à educação vai se
basear principalmente na modificação dos mecanismos estruturais pautados na
hierarquia; ou seja, toda a organização, tanto física, como burocrática, da escola, segundo
os anarquistas, deve trabalhar no sentido de destruir as relações hierárquicas
cotidianamente, para que assim, os indivíduos possam desenvolver suas potencialidades.
A meu ver, só dessa maneira será possível forjar em cada um e por cada um, estruturas
cognitivas (habitus) acostumadas com a liberdade e a participação.
2 O que é a propriedade? de Pierre-Joseph Proudhon, publicado em 1840.
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A EDUCAÇÃO
Como já foi dito no início deste artigo, a educação foi pensada por diversos
autores e cada qual enxerga, a sua maneira, o papel e a função que a mesma
desempenha na sociedade. Muitos compreendem o papel fundamental das instituições na
formação dos indivíduos, mas quando se fala em educação, remetem-se apenas ao papel
desempenhado pela instituição escolar, fazem a ligação, instantaneamente, da palavra
educação com a palavra escola.
Na visão libertária, a educação vai muito além dos muros da escola, acompanha o
indivíduo do momento em que nasce até quase a hora de sua morte. A palavra educação,
para os anarquistas, não remete à palavra escola, mas antes, e principalmente, à palavra
vivência. O jargão “vivendo e aprendendo” explica bem a posição anarquista frente à
palavra educação que, para eles, corresponde muito mais ao pleno desenvolvimento das
possibilidades de um indivíduo do que à transmissão de um conjunto de valores
socialmente admitidos. Educação, portanto, para os anarquistas, passa pela família, pela
escola, pela rua, pelo bairro, pela televisão, pela igreja, entre outros.
O objetivo final da educação para anarquistas e libertários é conseguir que as
crianças sejam donas de sua própria vida e que não se deixem oprimir e explorar. Para
eles, no entanto, se faz incoerente a persecução de um fim pela aplicação de meios que
não correspondem diretamente ao objetivo final. Ou seja, ao contrário da máxima“os fins
justificam os meios”, os libertários concordam que para se alcançar um determinado fim é
preciso ter meios coerentes com esse fim, isto é, os meios são o próprio fim. Por esse
mesmo motivo, anarquistas e comunistas entraram em confronto, apesar de concordarem
com relação ao fim ao qual uma revolução deveria levar (destruição do Estado e da
propriedade privada), com relação aos meios para se chegar a isso. Os anarquistas
defendiam que era preciso colocar os homens diretamente em contato com a sua
liberdade (através a destruição do Estado), para que aprendessem a viver livres e, a partir
de tal liberdade, forjassem uma nova sociedade; sabiam muito bem que uma ditadura,
seja ela burguesa ou proletária, jamais levaria ao fim pretendido, como foi posteriormente
provado pelos caminhos tomados pela URSS.
Logo, para se fazer com que uma criança seja dona de sua própria vida, é preciso
que ela aprenda o que é a liberdade, não teoricamente, mas na prática cotidiana. Faz-se
necessário o desenvolvimento de um habitus livre; é preciso fazê-las ver que não se deve
obediência cega ao professor, como tampouco se deve esse tipo de obediência às
15
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autoridades sociais. Segundo Moriyón, em seu texto Ensino Antiautoritário, normal é que
a criança pequena se veja submetida de alguma maneira aos adultos; o anormal, o
sementeiro de todo tipo de submissão posterior consistirá no fato de esse período se
prolongar mais do que se deve, de se roubar da criança o protagonismo do seu processo
educativo, fazendo-a crer que tudo o que vai alcançando se deve aos adultos, aos
professores, e que nada parte dela. Se lhe inculcarmos isto, estará preparada para seguir
obedecendo posteriormente aos patrões, aos policiais, ou a qualquer autoridade
opressora (Moriyón, 1989). Nas palavras de Bakunin, a liberdade só se consegue com a
liberdade e todo problema resolvido à força continua sendo um problema. Não há nenhum
caminho que leva à liberdade senão o da própria liberdade, o do exercício cotidiano da
liberdade (grifo meu).
Enfim, para explicitar a conexão que busco fazer entre o habitus e a educação
libertária, termino essa parte com outra referência a Moriyón que, a meu ver, estabelece
bem esse laço, diz ele:
Para a mudança social que eles (anarquistas) buscam não bastará mudar as relações sociais, embora isto seja imprescindível, mas também contar com homens novos. E estes não aparecem da noite para o dia simplesmente porque se tomou a Bastilha ou o Palácio de Inverno, mas sim como resultado de um longo processo pedagógico em que, em função das lutas e enfrentamentos com a burguesia e o Estado, as pessoas vão aprendendo a ser livres e solidárias, a não delegar poderes a ninguém, a assumir sua própria e irrenunciável participação na gestão dos problemas que afetam a comunidade. Por outro lado, se pretendermos formar pessoas capazes de decidir por si mesmas, capazes de sacudir a opressão e não voltar a cair nela, temos que educá-las desde pequenas, fomentar nelas o sentido crítico e a autonomia pessoal, assim como os valores de solidariedade e liberdade. A luta contra a opressão e a exploração não se faz só nas fábricas e no campo, mas também na família e na escola, na qual os anarquistas, com grande agudeza, vêem pilares muito sólidos do sistema capitalista, precisamente porque transmitem valores3que vão favorecer a atuação do patrão e da polícia (MORIYÓN, 1989, p. 15).
MUDAR OS PILARES SÓLIDOS DO SISTEMA
O melhor Estado será aquele que tiver os cidadãos mais leais e, quanto mais perdido estiver o espírito da legalidade, menor será o poder e a qualidade do Estado, este sistema moral, essa própria vida moral. Junto com os “bons cidadãos”, o bom Estado também desaparece e dissolve-se em anarquia e ausência de leis.
Max Stirner
3 Os grifos no texto foram feitos por mim, não estão no texto original.
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A FAMÍLIA
A família sempre foi o pilar mais forte de todos os sistemas. Antes, a sagrada
família mantinha as estruturas mentais de dominação da Igreja; hoje, a família burguesa
faz o papel da estruturação cognitiva para a vida nos princípios capitalistas. Ontem e hoje,
levantando a bandeira de Deus ou do Capital, é na família aonde as primeiras estruturas
cognitivas do indivíduo irão se formar. Não é a toa que o deus do Ocidente é chamado de
Pai, e que nossa formação familiar se baseia no paternalismo.
A dissolução desse tipo de organização familiar é algo lento e paulatino, pois vem
de longa data e é fruto de séculos de tradição, mesmo que essa tradição seja mantida à
força por séculos de dominação, desde a Igreja, até o Estado Moderno. Não pode
acontecer da noite para o dia, pois é parte integrante e funcional do sistema hierárquico,
ou seja, não há interesse por parte da classe dominante de que uma mudança dessas
ocorra, pois trabalha para a conservação do tipo de sociedade que a mantém em seus
privilégios.
No entanto, mesmo o sistema mais bem projetado e articulado não se reproduz
na prática tal qual é em teoria, por isso, a forma familiar baseada no poder centralizador
da figura do pai, aos poucos começa a se desarticular. Mesmo assim sendo, as famílias
que hoje se configuram de maneira diferente da tradição paternalista, em sua maioria,
fazem-se não por opção consciente, mas antes, como reféns de situações externas,
mantendo, por isso, resquícios ainda bem consistentes da tradição paternal.
Mesmo modificando-se, em sua estrutura organizacional, a família ainda mantém
algumas características arraigadas em sua estrutura funcional, e que é ainda mais
fortalecida por uma política do medo, fomentada e patrocinada pelo Estado enquanto
mecanismo de legitimação da dominação pela força. Essas características, ainda tão
atuantes na sociedade de hoje, são a submissão das crianças e adolescentes aos
adultos, como forma de manter sua “segurança”, e a necessidade de manutenção, a
qualquer custo, de relações baseadas no parentesco por consangüinidade.
Alguns se perguntariam aonde quero chegar com tais afirmações, ou então
demonizariam tais idéias por estarem interferindo em algo considerado por eles como
sagrado, ou seja, a família. Mas é justamente por considerar este tipo de organização
familiarenquanto sagrado e, portanto, intocável, que muitos de nossos problemas
educacionais se formam e se perpetuam. Faço tais afirmações, pois concordo com
Bourdieu quando o mesmo diz que o habitus
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é um conjunto dinâmico de disposições sobrepostas em camadas que grava, armazena e prolonga a influência dos diversos ambientes sucessivamente4encontrados na vida de uma pessoa. Por esse motivo, o habitus tende a conformar e a orientar a ação, mas na mediada em que é produto das relações sociais ele tende a assegurar a reprodução dessas mesmas relações objetivas que o engendraram, ou seja, o habitus tem um caráter conservador [...] Uma vez que se considera a socialização como um processo que se desenvolve ao longo de uma série de produções de habitus distintos, dedica-se uma atenção particular ao período de formação das primeiras categorias e valores que orientam a prática futura do agente. A ação pedagógica na primeira fase de formação do agente é vista como produtora de um “hábito primário” característica de um grupo ou de uma classe que está no princípio da constituição ulterior de todo outro hábito. As estruturas de um habitus logicamente anterior comandam, portanto, o processo de estruturação de novos habitus a serem produzidos por novas agências pedagógicas. Assim, o habitus adquirido na família está no princípio da estruturação das experiências escolares, o habitus transformado pela escola, ele mesmo diversificado, estando por sua vez no princípio da estruturação de todas as experiências ulteriores (ORTIZ, 1983, p. 18).
Em suma, o habitus produzido na família age como fosse um guia na formação
das camadas conseguintes. No entanto, o próprio Bourdieu afirma que o habitus é
durável, mas não estático ou eterno, ou seja, como as disposições são socialmente
adquiridas, podem ser corroídas, contrariadas ou mesmo desmanteladas pela exposição
a novas experiências, novas forças externas. Porém, como foi afirmado acima, a
hierarquia, enquanto princípio constitutivo do Estado, estará refletida e seguirá
funcionando nas várias instituições sociais que dele derivam; ou seja, o habitus primário
adquirido na família, mesmo que possuam as mais diferentes variações, possui algo em
comum na maioria dos casos, que é o da funcionalidade hierárquica da formação familiar.
A partir daí, esse habitus continuará sendo reforçado nas demais instituições sociais, tal
qual a escola, a igreja, o trabalho, a universidade, o exército, o sistema político e nas
relações sociais hierarquicamente baseadas em princípios econômicos.
FAMÍLIA: ALTERNATIVAS À FORMAÇÃO HIERÁRQUICA
Como já foi citado acima, Moriyón afirma, em seu texto Ensino Antiautoritário, que
normal é que a criança pequena se veja submetida de alguma maneira aos adultos; o
anormal, o sementeiro de todo tipo de submissão posterior consistirá no fato de esse
período se prolongar mais do que se deve, de se roubar da criança o protagonismo do
seu processo educativo, fazendo-a crer que tudo o que vai alcançando se deve aos 4 Os grifos no texto foram feitos por mim. Não estão no original.
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adultos, aos professores, e que nada parte dela. Willian Godwin, em seu texto Os males
de um ensino nacional5, afirma que só é possível dar o verdadeiro valor às coisas que eu
mesmo consegui ganhar, àquilo que obtenho apenas pelo desejo de obter; tudo o que me
for concedido sem que eu peça poderá fazer de mim um indolente, jamais um ser
respeitável.
Em seu romance A ilha, Aldous Huxley6 descreve uma sociedade que vive em
uma ilha, a ilha de Pala, um lugar ainda sem a interferência do mundo externo
globalizado, onde, baseados em princípios budistas e do comunismo primitivo, as
pessoas organizaram uma sociedade livre dos vícios do mundo moderno. Neste romance,
Huxley fornece suas idéias de como poderia ser uma sociedade não baseada nos
princípios hierárquicos, na submissão e nas desigualdades sociais.
Em um diálogo entre uma mulher palanesa, Susila e um jornalista inglês, Will
Farnaby, que chegou à ilha por acaso após um acidente com seu barco, Huxley expõe um
sistema familiar não baseado na família nuclear burguesa que, segundo ele, é fonte de
muitas das neuroses modernas. Susila começa comparando de maneira rápida, mas com
muita precisão e sarcasmo as diferenças entre o sistema familiar em Pala e o sistema em
que vive Will. Diz ela como se estivesse lendo um livro de receitas:
Tome um assalariado sexualmente incapaz, uma mulher insatisfeita, dois (ou mesmo três) pequenos viciados em televisão e faça um escabeche misturando uma porção de freudismo e uma solução fraca de cristianismo. Arrolhe bem num apartamento de quatro cômodos e cozinhe tudo isso no próprio caldo. A nossa receita é bastante diferente: Tome vinte casais sexualmente satisfeitos, juntamente com sua prole. Adicione ciência, intuição e humor em partes iguais. Ingresse no Budismo Tantrik e ponha a mistura a ferver ao ar livre, lenta e indefinidamente, numa panela aberta, colocada sobre a chama viva da afeição (HUXLEY, 1969, p. 149-150).
A descrição que Susila faz do sistema familiar em Pala é baseado no que Huxley
chama de C.A.M. (Clube de Adoção Mútua). Este clube se configura como uma extensão
do núcleo familiar, ou melhor, funciona quase como uma dissolução de tal sistema. O
C.A.M. é formado por grupos compostos por outras famílias, não necessariamente com
ligações consangüíneas, e que são escolhidas pela própria criança; ou seja, são
ambientes diferentes do ambiente familiar no qual a criança nasceu, com pessoas e
relações diferentes, nos quais a criança, por livre escolha, pode frequentar, habitar e
5 In: Investigação sobre a justiça política, 1793. 6 Escritor inglês autor de “As portas da percepção” e “Admirável mundo novo”.
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vivenciar situações diferenciadas das que acontecem no ambiente onde nasceu. Voltando
ao texto, diz Susila:
- Deixe-me explicar em termos do meu caso particular: o caso de uma filha única de duas pessoas que não podiam se compreender e estavam sempre se desentendendo e mesmo discutindo. Nos velhos tempos, uma menina desse ambiente se transformaria num destroço, numa rebelde ou numa conformista hipócrita e resignada. Porém, sob o novo regime, não tive que suportar o sofrimento desnecessário e, por conseguinte, não fui forçada a me tornar um destroço, uma rebelde ou uma resignada. Por quê? Porque, desde o momento em que comecei a andar, era livre para fugir [...] Fugir – explicou ela – está no novo sistema. Em qualquer tempo em que o “lar, doce lar” paterno se torna insuportável a criança tem permissão, ou melhor, é ativamente encorajada (e todo o peso da opinião pública está por trás desse encorajamento) a emigrar para outro lar. [...] Todos nós pertencemos a um C.A.M. (Clube de Adoção Mútua). Cada C.A.M. é composto por quinze ou vinte e cinco casais diferentes. Casais jovens, mais velhos e com filhos em idade de crescimento, avós e bisavós, todos os do clube se adotam mutuamente. Além dos nossos parentes consangüíneos, dispomos de uma porção de mães, pais, tias, tios, irmãos, irmãs, nenéns e adolescentes que nós mesmos elegemos (HUXLEY, 1969, p. 148-149).
Não há, portanto, neste sistema, uma imposição genética, muito menos
econômica, que obrigue os indivíduos a viver em ambientes hostis ao seu
desenvolvimento; além disso, não há, como disse Moriyón, o “roubar da criança o
protagonismo de seu processo educativo”, mas antes lhe é dada, desde de a tenra idade,
a oportunidade e a efetivação de seu posicionamento e sua vontade. Huxley diz, falando
através dos sociólogos de Pala, que esse processo gera certa “hibridação de
microculturas”, através a troca mútua de hábitos diferenciados. Para finalizar, Susila diz
que
a adoção mútua protege a criança contra a injustiça e outras conseqüências ainda piores da inépcia dos pais; não as protege contra a disciplina ou contra o fato de ter de aceitar seus encargos. Ao contrário, aumenta o número de suas responsabilidades e as expõe a grande variedade de disciplinas. Nas “suas” famílias [Susila diz assim quando se refere às famílias da parte do mundo de onde Will vem, ou seja, ao modelo de família burguesa], exclusivistas e predestinadas, as crianças, como você disse, passa um período longo na prisão, sob a guarda de um par de carcereiros. É claro que esses carcereiros podem ser bons, sábios e inteligentes. Nesse caso, os pequenos prisioneiros emergirão mais ou menos intactos. Mas o fato é que a maioria dos pais-carcereiros do “seu mundo” não é realmente boa, sábia ou inteligente. Podem ter boas intenções e serem ignorantes, podem ser frívolos e destituídos de qualquer intenção boa e podem ser neuróticos, maus ou definitivamente mórbidos. Desse modo, Deus que ajude aos jovens “convictos” que são compelidos pela lei, pelos costumes e pela religião a se submeter às suaves misericórdias familiares! Aqui, as crianças se desenvolvem num mundo
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que é um modelo de sociedade em pleno funcionamento e que é a miniatura perfeita do ambiente no qual terão que viver quando atingirem a vida adulta (HUXLEY, 1969, p. 153).
Imagine quantas crianças não ficariam livres de viver em orfanatos, ou centros de
reabilitação, pelo simples motivo de poderem escolher outros lares para viver. E quantos
casais que não possuem filhos, mas que almejam tê-los, também teriam suas casas de
portas abertas para essas crianças, sem precisarem recorrer à adoção, no sentido usual
do termo hoje.
Nós também vivemos, em nossas famílias, uma miniatura, não perfeita, mas
bastante representativa, do modelo social no qual viveremos quando adultos. Pois,
segundo já foi dito, a família é a fonte de um hábito primário, na base do qual se
desenvolverão os hábitos seguintes. Bourdieu chama esse conjunto de disposições
cognitivas adquirido na família de capital cultural, o qual irá modelar de maneira micro-
cósmica (através da situação econômica, do nível de cultura, da posição política no
campo social, entre outros) as diferenças futuras que estruturarão hierarquicamente a
sociedade. Por isso disse que também vivemos, em nossas famílias, uma miniatura
bastante representativa do modelo social. Não é perfeita, pois não somos máquinas e tais
disposições podem ser modificadas dependendo das escolhas dos agentes, ou da
exposição à condicionalidades sociais diferentes.
Esse tipo de organização familiar exposta por Huxley em seu livro, não é mera
utopia, quimera de sonhadores idealistas, mas já foi aplicado em situações sociais
concretas. Murray Bookchin, professor na Universidade Alternativa de Nova York e autor
de muitos artigos sobre problemas urbanos e ecológicos, em seu livro “Anarquismo pós-
escassez”, possui um pequeno texto chamado “Grupos de Afinidade” no qual descreve de
maneira sucinta organizações semelhantes às descritas por Huxley, as quais serviram de
base à formação da F.A.I (Federação Anarquista Ibérica). Segundo ele, os anarquistas
espanhóis da década de 30 criaram grupos de afinidade que
poderiam ser facilmente considerados como um novo tipo de prolongamento da família, em que os laços de parentesco foram substituídos por um relacionamento humano extremamente intenso, relacionamento que era alimentado por idéias e práticas revolucionárias comuns. Muito antes que a palavra “tribo” ganhasse popularidade no movimento da contracultura americana, os espanhóis anarquistas já chamavam suas reuniões de “asambleas de las tribus” – assembléias das tribos. Cada grupo de afinidade tinha um número limitado de participantes para garantir o maior grau de intimidade possível entre seus membros. Autônomos, comunitários e francamente democráticos, os grupos combinavam as teorias revolucionárias a um estilo de vida e um
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comportamento igualmente revolucionários, criando um espaço livre onde seus integrantes podiam reestruturar-se, tanto individual quanto socialmente como seres humanos. Grupos de afinidade pretendem funcionar como catalisadores dentro do movimento popular, não como “vanguardas”; eles proporcionam iniciativa e conscientização, não um estado-maior e uma fonte de comando [...] A união ou separação de cada grupo é determinada pelas circunstâncias do momento e não por ordens burocráticas vindas de um centro distante [...] Eles podem unir-se através de grupos locais, regionais ou nacionais para formular planos de ação comum; podem criar comitês temporários (como os que congregavam estudantes e operários franceses em 1968) para coordenar determinadas tarefas [...] Como resultado de sua autonomia e regionalismo, os grupos são capazes de manter uma avaliação crítica sensível sobre as novas perspectivas. Intensamente experimentais e diversificados quanto ao estilo de vida, eles funcionam como uma fonte de estímulo mútuo, influenciando também o movimento popular. Cada grupo procura adquirir os recursos necessários para funcionar com quase total autonomia, desenvolvendo um perfeito sistema de conhecimentos e experiências para vencer as limitações impostas pela sociedade burguesa ao desenvolvimento individual (WOODCOCK, Vol. IV, 1910, p. 162-163).
Portanto, a intenção de se modificar a estrutura familiar está baseada na
necessidade de transformação do ambiente em que se desenvolve o indivíduo. Os
anarquistas sempre tiveram a convicção de que não são apenas as idéias que
transformam o indivíduo, mas a sua intrínseca e inseparável relação com a prática
cotidiana. Muito antes de Bourdieu formular sua teoria do habitus, os anarquistas já
enxergavam a potencialidade dos ambientes e das situações vivenciadas pelo indivíduo
na formação de suas idéias e práticas. Sendo assim, passemos agora às propostas
anarquistas para o ambiente escolar.
A ESCOLA
A escolarização universal, seja ela dada pelo Estado ou particular, é, para os
anarquistas, espaço onde se ensina a obedecer. Esse é o ponto principal; ou seja, não se
ensina a respeitar, não é ensinado às crianças a participar, a dar sua opinião, e mesmo
que ela possa opinar, a maior parte das vezes esse posicionamento não tem efeito
prático. Por isso, a escola é, neste caso, lugar onde se ensina a obedecer.
Mas, por que a escola ensina a obedecer? Segundo William Godwin, a resposta
reside, “em primeiro lugar, no fato de que todos os estabelecimentos públicos trazem em
si a idéia de permanência” (WOODCOCK, Vol. IV, 1910, p. 252). Ou seja, as instituições
funcionam, como já foi dito, à base da hierarquia e, para o ideal funcionamento de uma
instituição, se faz necessário a manutenção de seu princípio básico: submissão e
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obediência. Fomentar o livre pensamento e a livre ação faria com que fosse necessário a
essas instituições transformarem-se continuamente para adequarem-se a novas
perspectivas, situações e idéias. O que levaria, por conseguinte, a necessária
transformação do próprio Estado. No entanto, o poder tem sempre em si a tendência de
se perpetuar, a se manter, fazendo assim a manutenção da classe que o ocupa e seus
privilégios. Por esse motivo, a classe dominante e seu aparelho de dominação política, o
Estado e suas instituições, são avessos a mudanças e trazem em si a idéia de
permanência. Logo, a escola, enquanto instituição, ensina a obedecer.
Edson Passetti nos diz que “só há escola porque existe criança. É sobre ela, seu
corpinho pequeno e mente aberta que se investe em formatação para o trabalho, a
política, os esportes, as especializações”. Além dos conteúdos ministrados em sala de
aula pelos professores, a escola ensina muito mais: ensina a obedecer horários, a
obedecer autoridades, a comportar-se adequadamente, a escolher o momento de falar, e
mais que isso, ensina crianças e adolescentes “a constatarem que se encontram sob
relações de poder intermináveis e que seu lugar, quase invariavelmente, é o de obediente
e devoto” (PASSETTI, 2008, p. 25).
Quando Passetti diz que a escola investe em formatação, fala pois vê nas
instituições um enorme temor frente às potencialidades da criança. A criança é para os
adultos, acostumados a viver com tantas regras e restrições, um potencial extremamente
perigoso e trabalhoso de espontaneidade. A criança é um problema, um estorvo, até
mesmo uma ameaça a instituições que funcionam pelo princípio da permanência, pois ela
é intempestiva, desregulada e deve ser enquadrada.
É com esse objetivo, o de conter tanta energia e potencialidades, que a escola e
os pais, não dando conta do recado em um mundo cada vez mais atribulado por afazeres
intermináveis e muito pouco tempo livre, buscaram e continuam buscando na
farmacologia um importante aliado na contenção de tais energias. Independente das
conseqüências, buscam ajustar os pequenos ao seu ritmo por meio de drogas; drogas
legais, mas não menos prejudiciais que aquelas através das quais legitimam tanto abuso
das autoridades. Para Passetti,
na atualidade, quando as práticas de prevenção e controle da vida desajustada tornam-se cada vez mais abrangentes, as crianças desde cedo são medicadas com o intuito de contribuir para a contenção de sua atitude contestadora inaugural, muitas vezes associada a uma doença como hiperatividade. Pretende-se, mais do que encurtar o tempo de disciplinamento, com o uso de medicamentos eficientes, introduzir a conduta conformista, normalizada e “saudável” na criança. Em função do tempo reduzido de convivência com seus pais, que, quando empregados,
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freqüentam múltiplos empregos ou ocupações, a criança cresce desfrutando de um restrito tempo livre com eles [...] A farmacologia chega para reintroduzir a alegria e a tranqüilidade entre pequenas crianças e seus pais, complementando a jornada escolar, as demais atividades escolarizadas e as múltiplas ajudas fornecidas por especialistas na administração do uso das energias da criança (PASSETTI, 2008, p. 27-28).
Se, como foi dito anteriormente, é necessário especial atenção à formação das
primeiras estruturas cognitivas do indivíduo, parece-me importante questionar se a
administração de medicamentos na contenção das energias da criança para adaptarem-
se ao mundo cronometrado do adulto, não estará, ao invés de resolvendo, criando
problemas ainda maiores para a sociedade.
Por esse mesmo motivo, os anarquistas, assim como Bourdieu, Rousseau, entre
outros, dão especial atenção à educação e à vivência nesta fase da vida. É também, pelo
mesmo motivo, que Godwin via com tanta desconfiança um projeto de sistema escolar
nacional dependente do governo. Se assim fosse feito, alertava ele, estaríamos pondo em
mãos de um agente tão pouco confiável como o governo um instrumento poderosíssimo
que o ajudaria a reforçar o poder e fomentar as instituições. A educação deixaria de ser,
como queriam os anarquistas, um instrumento fundamental para a emancipação dos
seres humanos e se converteria, nas mãos do Estado, em escola de submissão em que
antes de tudo se buscaria formar “bons cidadãos” (MORIYÓN, 1989, p. 17).
ESCOLA: ALTERNATIVAS PARA A DESESCOLARIZAÇÃO
Os anarquistas, inspirados pelas propostas pedagógicas iniciadas por Rousseau,
decidiram inverter o quadro educacional baseado na “escola de submissão” colocando na
criança e nos seus próprios interesses o centro da educação, entendendo-a mais como
pleno desenvolvimento de suas possibilidades do que como transmissão de um conjunto
de valores socialmente admitidos. O objetivo final será, evidentemente, o de conseguir
que as crianças sejam donas de sua própria vida e que não se deixem oprimir e explorar;
para tanto, será preciso fazê-las ver que não se deve uma obediência cega ao professor,
como tampouco se deve esse tipo de obediência às autoridades sociais (MORIYÓN,
1989, p. 17).
Quando os primeiros anarquistas aportaram no Brasil em 1888, não havia escola
para gente pobre. Algumas experiências anarquistas de educação e vivência foram então
tentadas por Arthur Campagnoli, que fundou a Colônia Anarquista de Guararema e,
posteriormente, Giovanni Rossi instalou no Paraná a Colônia Cecília, projeto bancado,
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paradoxalmente, pelo imperador Pedro II. No entanto, ano após ano, diversos
anarquistas, vindos da Europa, principalmente espanhóis e italianos, foram chegando ao
Brasil e com eles trazendo as idéias revolucionárias do operariado europeu. Foi com a
propagação do ideário anarquista que as associações de classe propuseram escolas para
operários e seus filhos. Em 1895, foi fundada no Rio Grande do Sul a Escola União
Operária e, também, a Escola Elisée Reclus. Em 24 de julho de 1904, foi fundada no Rio
de Janeiro a Universidade Popular que surgiria, também, onze anos depois em São
Paulo. Poucos foram os registros que ficaram de tais escolas, alguns, segundo Passetti,
estão nos arquivos da Unicamp – AEL (Arquivo Edgar Leurenroth), no CEDEM (Centro de
Documentação e Memória) da UNESP/São Paulo, tanto como no Arquivo Nacional e a
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. O jornal “Amigo do Povo”, segundo ele,
desde 1902, foi o principal divulgador do aparecimento dessas escolas, ao mesmo tempo em que publicava notas e reflexões sobre o ensino racionalista e romances libertários em capítulos, como O ideólogo, de Fábio Luz. As primeiras escolas para trabalhadores livres foram: Escola Libertária Germinal, fundada em setembro de 1903, na Rua Sólon, 138, no bairro do Bom Retiro, em São Paulo; a Escola Livre, em Campinas, criada pela Liga Operária, em 1908, para filhos de trabalhadores e que se desvencilhou com presteza das agressões do clero e de seus devotos, como noticiou o jornal anticlerical “A Lanterna”, de 13/11/1909. As Escolas Modernas apareceram em 1913, no bairro do Belenzinho, e, reiterando a relação escola, militância e imprensa, na sede da Escola Moderna 2, situada na rua Muller, 74, encontrava-se instalado o jornal “A Rebelião”, realizador de ciclos de palestras como as de Florentino de Carvalho, sobre o ensino racionalista7(PASSETTI, 2008, p. 56).
Infelizmente, até a conclusão deste artigo, não pude ter acesso a tais
documentos, deixando em falta uma análise sobre o funcionamento de tais escolas e seu
alcance dentro dos objetivos propostos pelos libertários. No entanto, tenho de maneira
mais detalhada a descrição sobre o funcionamento de uma das escolas que melhor
explicitou em seu funcionamento, em sua prática cotidiana, os ideais educacionais dos
anarquistas e libertários. Essa escola se chamou La Ruche (a colméia), e foi proposta e
efetivada pelo conferencista e teórico anarquista Sébastien Faure.
LA RUCHE (A COLMÉIA)
7A esse respeito, consultar: Edgar Rodrigues (1992; 2005); Rogério H. Z. Nascimento (2006); Tatiana da Silva Calzavara (2004).
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Situada em Rambouillet (Seine-et-Oise), a 48 quilômetros de Paris, França, num
terreno bastante amplo, uma horta grande, bosques, prados, terras cultiváveis, A Colméia
educou aproximadamente quarenta crianças de ambos os sexos. A obra foi fundada em
1904 e permaneceu em funcionamento até aproximadamente 1917, sendo extinta por
ocasião da eclosão da Primeira Guerra Mundial. A Colméia não foi subsidiada pelo
Estado, nem pelo Ministério, nem pelo Município, sendo parte de seus recursos
proveniente das conferências ministradas por Faure, e outra parte das pessoas
interessadas em contribuir, cada um na medida de suas possibilidades. Faure dizia que “a
escola cristã é a escola do passado, organizada pela Igreja e para ela; a escola laica é a
escola do presente, organizada pelo Estado e para ele. A Colméia é a escola do futuro, a
Escola Simplesmente, organizada para a criança, de tal maneira que, deixando de ser o
bem, o objeto, a propriedade da Religião ou do Estado, se pertença a si mesma e
encontre nela o pão, o saber e a ternura, que seu corpo, cérebro e coração necessitam”
(MORIYÓN, 1989, p. 111).
Por que a criança? Como já foi dito anteriormente, é nas primeiras fases da vida
do indivíduo que se formam as primeiras categorias que servirão de base para todo o seu
desenvolvimento posterior. Faure dizia que, em pessoas que chegaram à maturidade e a
velhice, é muito difícil mostrá-las a possibilidade de caminhos diferentes do qual trilhara;
e, quando se trata de adultos que atingiram a idade de 25 ou 30 anos, sem terem que
participar das lutas sociais de sua época, faz-se também extremamente laborioso o êxito
da obra desejada. Mas as crianças, ainda em formação de suas primeiras categorias de
percepção do mundo, seu cérebro novo, vontade flexível, se faz de maneira mais efetiva a
educação para a liberdade. Nas palavras de Faure: “a uma educação nova, com
exemplos distintos, com condições de vida ativa, independente, digna e solidária,
corresponderá um ser novo, ativo, independente, digno, solidário, em resumo, um ser
contrário a este cujo triste espetáculo temos diante de nós” (MORIYÓN, 1989, p. 113).
A Colméia não é uma escola, propriamente dita, nem um internato, nem um
orfanato. Não possui mensalidade, pagamento, nem relações com a Beneficência; não
tem situação regular, prevista e regulamentada pela lei ou pelos estatutos de uma
sociedade regularmente constituída. Recebe apenas algumas contribuições dos pais que,
de acordo com sua situação financeira, decidem espontaneamente ajudar a obra. Na
Colméia há um diretor, mas não há hierarquia. Há um diretor porque, para lidar com os
assuntos externos, autoridades, administração, pais, entre outros, para falar e escrever
em nome da Colméia, se faz necessário um representante. No entanto, terminada a
função de lidar com o meio externo, o diretor volta à fila dos colaboradores, “tem voz com
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o mesmo direito dos outros, emite seu parecer como os demais, e o seu parecer não toma
o caráter de nenhum valor especial”.
Há, também, os colaboradores; não como esses que hoje ouvimos anunciar nos
auto-falantes dos supermercados, trabalhadores assalariados, mas colaboradores no
sentido literal da palavra, ou seja, não recebem retribuição, nem salário. Trabalham na
Colméia de maneira desinteressada e renunciam de bom grado a estas vantagens
materiais para viverem lá. São professores, trabalhadores braçais nas fábricas, oficinas,
nos campos; recebem alimentação, casa, calor, luz, cuidados, mas contentam-se com um
regime bastante modesto. Há, no entanto, um fundo comum de onde retiram algum
dinheiro conforme suas necessidades sem terem que se justificar. Nas palavras de Faure,
“são e continuam sendo os únicos juízes das necessidades que têm e eu tenho o orgulho
de dizer, para elogio de todos, que, há dez anos que existe A Colméia, todos os nossos
colaboradores foram comedidos e discretos evitando assim pesar no nosso orçamento”.
Como parte da educação política de seus estudantes, uma vez por semana, há
uma reunião onde são discutidos assuntos de interesse da Colméia, como ensino, caixa,
contabilidade, cozinha, etc. Dela participam todos os colaboradores e também os
adolescentes a partir dos 15 anos; todos participam das decisões tomadas e contribuem
para sua aplicação. Segundo Faure, “é a vida transparente; a plena confiança, a troca de
opiniões, simplesmente, francamente, com o coração na mão. É o meio mais seguro e
melhor de evitar as intrigas e a formação de grupinhos que o silêncio favorece”
(MORIYÓN, 1989, p. 117).
Um dos objetivos da educação libertária, além do antiautoritarismo, é o que eles
chamam de educação integral. Esse tipo de educação está baseado na idéia de uma
necessária harmonia entre o estudo intelectual e a prática cotidiana, ou seja, não basta
apenas exercitar a mente, instruir a mente; faz-se necessário também a instrução do
corpo, o exercício prático e diário do que foi aprendido através do estudo intelectual. Não
apenas enquanto o que hoje chamamos de Educação Física, ou seja, a prática de
esportes convencionais como futebol e vôlei. A educação física, para os anarquistas,
passa também pela prática de ofícios, como carpintaria, forja, costura, cozinha,
lavanderia, roupa, plantação, jardinagem, etc. Sendo assim, todos participam dos
trabalhos, tanto intelectuais, como braçais, como forma de desenvolver um indivíduo
completo, acostumado a trabalhar na lavoura e a estudar filosofia, livre, desta maneira,
dos vícios da especialização prematura.
Estas atribuições são divididas em três grupos: os pequenos, os médios e os
grandes. Sendo assim,
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os pequenos são aqueles que ainda bem novos para dedicarem a qualquer trabalho de aprendiz, não freqüentam nenhuma oficina e distribuem seu tempo entre as aulas, o brinquedo e pequenos serviços domésticos que podem fazer: limpar, varrer, descascar legumes, etc. Os médios são os aprendizes. Sua jornada é dedicada metade ao estudo e metade ao trabalho braçal. Os grandes são os que, tendo terminado os estudos propriamente ditos e também o tempo de pré-aprendizagem, entram na aprendizagem. Achamos que não há idade fixa, invariável, [...] uns são mais precoces, outros menos fortes; e é o desenvolvimento físico e cerebral de cada criança que determina, mais do que a idade, o momento que passam de pequenos a médios e de médios a grandes [...] [Deste modo] os maiores tornam-se crianças em contato com os infantilismos e as ingenuidades dos pequenos, e estes se tornam, pouco a pouco, formais e razoáveis, em contato com a seriedade e o jeito laborioso e sensato dos maiores (MORIYÓN, 1989, p. 119).
Para Faure, o importante é que as crianças tenham tempo para aprenderem
diversas funções, diversos ofícios antes de escolherem com o que querem trabalhar.
Diferentemente do modo de educação moderno, onde dependendo da família da qual
provém, das escolas pelas quais passou, entre outros fatores, os estudantes já se
encontram mais ou menos condicionados a determinados tipos de funções na sociedade,
na Colméia eles terão tempo de experimentarem, de vivenciarem para posteriormente
decidirem qual o melhor caminho a seguir. E, como já estarão trabalhando nos diversos
ofícios, não precisarão abandonar a escola atrás de emprego, ou seja, “ao trabalharem
por turno, cada dia, de maneira regular, na sala de aula ou na oficina, se estabelecerá de
forma irremediável, talvez sem que eles o saibam, uma relação muito útil entre seus
trabalhos aqui e seus estudos lá; entre a formação de sua inteligência e a de sua vista e
de suas mãos, entre cultura geral e a aprendizagem técnica”.
Faure faz a comparação entre o filho de um burguês e o filho de um operário em
sua relação com a educação e expõe os malefícios da especialização prematura na
formação destas crianças. Aqui, nesta comparação, se estabelece bem a relação entre a
formação do habitus no ser social, com a perpetuação e até mesmo a intensificação da
divisão do trabalho e da manutenção das desigualdades. Diz ele:
Aqui encontramos um filho de burgueses cujos pais ambicionam transformá-lo num estudante aplicado ou num bem dotado em matemática, mas que acreditariam dar a seu herdeiro uma educação indigna de sua categoria e da situação social a que o destinam, se aprendesse a trabalhar com as mãos o metal, a madeira ou a terra. Mais além, encontramos o filho de um proletário, mais ou menos necessitado, que a família tira, aos doze ou traze anos, da escola. Sabe estritamente ler, escrever e contar, está na idade em que a inteligência se abre à compreensão, em que a memória começa a armazenar, em que se forma o juízo. Tem que ir à oficina ou ao
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campo; já é tempo de trabalhar. E, além do mais – dizem os pais – de que adianta se tornar um sábio se vai ser camponês ou operário? O que acontece? O primeiro destes dois meninos chegará, talvez, a um grau apreciável de cultura intelectual: artista, sábio, literato, filósofo, terá o seu mérito, não o discuto; mas terá uma ignorância lamentável e uma grande falta de habilidade para polir uma chapa, dar uma martelada, arrumar ou manejar um utensílio, em resumo, para entregar-se a qualquer trabalho braçal. O segundo será, talvez, no seu ramo, um trabalhador competente: mecânico, alfaiate, pedreiro; não o nego, mas fora de seu ofício, será uma ignorância crassa e terá uma deplorável falta de compreensão das coisas. Um e outro se desenvolveram convenientemente num sentido, mas descuidaram totalmente do outro [...] O filho do burguês se inclinará a julgar com indigno dele o trabalho braçal e como inferiores a ele os que vivem disto; o filho do proletário será levado a inclinar-se ante a superioridade do trabalho intelectual e a humilhar-se, com admiração, respeito e submissão, diante dos que o exercem (MORIYÓN, 1989, p. 122-123).
Por esse motivo, para os anarquistas é tão necessário o desenvolvimento da
educação integral como forma de desarticular esse tipo de mecanismo que gera e
mantém a estrutura das desigualdades. A formação de hábitos de trabalho, tanto
intelectual quanto braçal, é um dos objetivos necessários para a formação de seres livres.
Na Colméia, como já foi explicitado acima, os estudantes participam, além das
aulas teóricas, das oficinas onde desenvolvem trabalhos braçais e onde, de maneira
prática, aplicam os aprendizados teóricos das aulas. Ou seja, o trabalho prático reafirma e
estabelece enquanto aprendizado, não apenas como decoreba, os assuntos teóricos.
Terminados os estudos, os estudantes da Colméia têm a escolha de saírem em busca de
algum trabalho na sociedade através dos ofícios que aprenderam, ou mesmo da
continuação de seus estudos, ou podem tornar-se colaboradores e continuarem fazendo
parte desta escola que, como convivência diária e pela cumplicidade de seus integrantes,
também se configura como uma nova organização familiar.
As oficinas da Colméia, apesar de algumas dificuldades financeiras que passaram
durante a sua existência, chegaram a produzir e a vender seus produtos por um preço
acessível às famílias de operários franceses que não tinham a possibilidade de comprar
seus móveis ou alimentos nos mercados tradicionais.
Expus aqui de maneira breve o modelo de funcionamento de uma “escola” tida
como um dos melhores exemplos de efetivação do ensino libertário. Escola essa, não
vinculada ao Estado, nem a nenhuma instituição com fins lucrativos, nem mesmo à
Beneficência. Livre dos padrões que regem os estatutos e regulamentos da sociedade
burocrático-estatal, a Colméia aplicou durante dez anos os princípios de uma educação
voltada à formação de indivíduos livres e acostumados tanto ao trabalho intelectual como
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braçal; ou como bem definiu seu idealizador e fundador, “acostumados à idéia de que a
criança não pertence nem a seu pai, nem a seu professor, nem à Igreja, nem ao Estado,
mas apenas a si mesma”. Seu fim se deu por volta de 1917, como conseqüência das
dificuldades provenientes da eclosão da Primeira Guerra Mundial.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não será necessário me estender muito nas considerações finais, pois acredito
que elas já estão bem explícitas no decorrer do próprio trabalho. No entanto, reafirmo a
necessidade de se pensar a educação, não apenas enquanto conteúdos racionalistas,
mas antes enquanto vivência. Assim sendo, deixaremos de construir escolas-presídios,
onde trancamos nossas crianças em salas quadradas, com corredores e salas
geminadas, onde as vigiamos e as punimos de acordo com seu grau de obediência às
regras. Pois, se continuarmos dessa maneira, estaremos reafirmando, a cada dia de
vivência nesses espaços, a educação como eterno retorno à obediência, submissão e
adoração.
Muitos acreditam na necessidade de uma educação rígida, severa, devido à
natureza má dos homens, pautados por teorias que remontam a séculos de servidão e
escravatura. Tais pessoas falam da natureza má do homem, pois, nascidos e crescidos
em tal sociedade, expostos a condições físicas e psicologicamente degradantes, jamais
tiveram a oportunidade de experimentar liberdades. A liberdade que temos nos dias de
hoje, como bem diz Susila, personagem do livro A ilha, de Huxley, é o tipo de liberdade
que se tem dentro de uma cabine telefônica. Somos desde o nascimento, e durante toda
a nossa vida, levados a crer na infalibilidade do sistema em que vivemos, na incapacidade
de mudanças e na naturalização das desigualdades. Não acreditamos em outras formas
de organização e vivência, pois apenas as estudamos teoricamente. Ao sair da sala de
aula, ou fechar o livro, voltamos a reproduzir aquilo que tão fortemente a sociedade nos
inculca. Os professores falam de liberdade, dentro de quatro paredes, vigiados por
guardas, monitorados por câmeras, condicionados a estatutos, chamadas, e etc. Ao sair
da sala de aula, reúne-se com outros professores em uma sala destinada a eles para
discutir assuntos simplórios. Não conhecem seus estudantes e acham que têm o direito
de julgá-los em um conselho no fim do ano, apenas porque possuem o título de professor.
Os pedagogos realizam seus trabalhos de olho no relógio, fazendo como manda as
normas, não querem conhecer os estudantes, apenas mantê-los sob as regras, pois é
isso o que é necessário para que, no fim do mês, recebam seu salário. Frente a um
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mundo tão burocratizado, onde nada mais possui rosto, funcionários apenas cumprem
ordens. Não há com quem reclamar. Assim manda o estatuto. Assim diz a lei. Assim
determinou o juiz. Mas a cara do juiz ninguém vê. Está escondido atrás de quilos e quilos
de papeis e má vontade. “É por essa razão”, segundo Willian Godwin, “que encontramos
tanta ineficiência e preguiça hoje em dia. Pois, na verdade, quem está no lugar certo?
Quem trabalha naquilo que gosta e realmente o interessa?” (WOODCOCK, Vol. IV, 1910,
p. 255-256).
Pelo contrário, aos libertários, não interessa esse tipo de educação. Invertendo as
teorias que estabelecem a natureza má do ser humano, para eles, é na vivência dentro
dessa “cabine telefônica” que se criam os demônios que nos aterrorizam e nos habituam
à desconfiança e ao medo. É através da educação severa, dos castigos e recompensas,
que se criam os homens habituados a esse jogo dissimulado da mentira e da hipocrisia.
Cria-se, através disso, a pior de todas as características do homem: a corrupção. Quando
se é necessário se esconder para poder lucrar, mentir para faturar, enganar para se fazer
valer, é que criamos os grupos que se favorecem do silêncio. “A severidade faz hipócritas,
temerosos e covardes [...] e a mentira e a hipocrisia são frutos inevitáveis da severidade,
da ameaça”, nas palavras de Faure (MORIYÓN, 1989, p. 134).
Quando somos ladeados por regras que estabelecem exatamente o que devemos
e o que não devemos fazer, quando vemos a nossa frente os dizeres “faça isso e terá um
prêmio”, “faça aquilo e será castigado”, temos tanta liberdade quanto um pássaro na
gaiola. Então eles dizem: “tudo bem, será um pássaro na gaiola, mas, se comportar-se de
maneira adequada, lhe daremos uma gaiola com grades de ouro”.
No capitalismo esse sistema funciona muito bem. Funciona, pois os indivíduos
estão perseguindo riqueza material e nada mais material que uma grade de ouro. No
entanto, para os anarquistas que, ao contrário, sabem dos riscos da propriedade material,
da prisão que se encerra a cada degrau conquistado no sistema da propriedade privada,
não é esse o objetivo de sua existência. Para eles, o objetivo é a busca da autonomia.
Autonomia não representa aquela liberdade que se confunde com permissividade e gera
tantas criticas ao anarquismo. Mas antes aquela que se reconhece enquanto parte de
uma sociedade, parte de um todo e enquanto parte desse todo necessita buscar o
equilíbrio para não gerar desigualdades. Portanto, sabemos que, além de parte de um
todo social, somos parte de um todo cósmico que, enquanto tal, também necessita de
equilíbrio não sendo possível assim a geração infinita de riquezas. Não é preciso gerar
tanta riqueza, mas antes distribuí-la. Tanto a riqueza material, quanto a riqueza
intelectual.
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Para tanto, faz-se necessário educar para a mobilidade, para a mudança, para a
autonomia. Indivíduos autônomos, acostumados à escolha, a dar sua opinião e vê-la
efetivada, não ficam estarrecidos frente à grade aberta da gaiola. Por isso, a educação
libertária é a educação pela vivência, o aprendizado pela prática, a potencialização das
práticas livres como modo de gerar habitus livre e, por conseguinte, seres humanos ativos
e autônomos.
REFERÊNCIAS
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