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TEXTO NATÁLIA MARTINO PARÁ > Berço da vida A PEQUENA CIDADE DE CURUÇÁ, NO PARÁ, ABRIGA UM DOS MAIORES MANGUEZAIS DO MUNDO, FONTE DE ALIMENTO, RENDA E DIVERSÃO. E LUTA PARA MANTÊ-LO PRESERVADO O s pés afundam no “tijuco”, como é conhecida a lama preta dos mangues, até quase a altura do joelho e é preciso desviar das inúmeras raízes da superfície lamacenta. Apesar disto, o caranguejeiro Manoel Lima, 59 anos, caminha com destreza pelo mangue – o maior conjunto contínuo de manguezais do mundo, situado, em grande parte, no município de Curuçá, no Estado do Pará. Pegar caranguejos e andar pelo mangue é a atividade que Manoel praticou a vida toda. No ponto escolhido, ele começa sua “colheita”. Com a habilidade ad- quirida ao longo da vida, veste a “braçadeira”, uma meia preta que cobre e protege o braço que utiliza para pegar o animal na toca. Ao se levantar, já traz na mão um enorme caranguejo. Tem sido assim que, ao longo das décadas, Manoel se acostumou a pegar até 100 caranguejos por dia, uma fartura que já não existe mais. Hoje, para pegar 50 desses crustáceos, ele diz que é preciso passar o dia todo no manguezal. Ele sabe que seu ganha-pão vem diminuindo com o tempo e procura usar a técnica menos agressiva para pegar caranguejos: escolhe apenas machos adultos para não interferir no processo de procriação. Mas nem todos são assim. Caranguejeiros mais afoitos enfiam os pés nas tocas para forçar a saída do animal e, com isso, arrebentam as raízes das plantas, destruindo os mangueiros, árvore típica do bioma. “Tem manguezal por aí que parece que entrou um trator e destruiu tudo, de tanta árvore caída”, conta Manoel, garantindo que os curuçaenses não utilizam essa técnica, mais comum entre caranguejeiros das cidades vizinhas. São Caetano de Odivelas, por exemplo. Lá, segundo ele, a situação é crítica. “Antigamen- te, a cidade era a terra dos caranguejos graúdos. Agora não tem mais nada por lá e eles vêm aqui para pegar os nossos”, reclama. Muito comum no litoral brasileiro, os man- guezais ocorrem onde o rio encontra o mar. Graças aos sedimentos minerais e orgânicos carregados pelos rios, forma-se a lama caracte- rística desse ecossistema, de onde erguem-se mangueiros, tinteiras e siribeiras – as árvores mais recorrentes nesse tipo de formação – e um rico ambiente para a proliferação de fauna específica, como é o caso dos caranguejos. Se- gundo o biólogo Renato de Almeida, a riqueza dos manguezais atrai uma enorme quantidade de espécies nos períodos reprodutivos. É o berço da vida. E muitos filhotes permanecem nas suas Ecossistema ameaçado Um estudo recente encomendado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e pelo The Nature Conservancy (TNC) indicou que um quinto dos manguezais do mundo foi destruído desde 1980. E eles continuam a ser apagados do mapa a uma taxa anual de 0,7%. O relatório a que esse estudo deu origem, o Atlas Mundial de Manguezais, diz que em alguns pontos do planeta esse ecossistema está sendo destruído com uma velocidade até quatro vezes maior do que outros. Como os manguezais se localizam necessariamente nos litorais, regiões em geral mais populosas, a pressão pelo uso da terra é mais intensa que em outros ecossistemas. Ainda segundo o relatório, durante as décadas de 1980 e 1990, os manguezais eram considerados improdutivos e insalubres na América Latina. Por isso, o continente perdeu cerca de 250 mil hectares desse ecossistema, 11% do total, o que equivale a quase duas cidades de São Paulo. O Brasil, com seu extenso litoral, abriga quase a metade dos manguezais do continente e, nos últimos 25 anos, perdeu 50 mil hectares deles, sendo que as maiores perdas foram na Região Sudeste. Um triste cenário em um país que tenta defender o ecossistema desde 1760. Nesse ano, o então rei de Portugal, dom José 1 0 , decretou uma série de restrições para o corte de madeiras de manguezais. HORIZONTE GEOGRÁFICO 71 Da lama preta do maior conjunto contínuo de manguezais do mundo os curuçaenses extraem os caranguejos PAULO SANTOS MIGUEL CHIKAOKA

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A PEQUENA CIDADE DE CURUÇÁ, NO PARÁ, ABRIGA UM DOS MAIORES MANGUEZAIS DO MUNDO, FONTE DE ALIMENTO, RENDA E DIVERSÃO. E LUTA PARA MANTÊ-LO PRESERVADO

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TEXTO NATÁLIA MARTINO

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Berço da vidaA PEQUENA CIDADE DE CURUÇÁ, NO PARÁ, ABRIGA UM DOS

MAIORES MANGUEZAIS DO MUNDO, FONTE DE ALIMENTO, RENDA E DIVERSÃO. E LUTA PARA MANTÊ-LO PRESERVADO

O s pés afundam no “tijuco”, como é conhecida a lama preta dos mangues, até quase a altura do joelho e é preciso desviar das inúmeras raízes da superfície lamacenta. Apesar disto, o caranguejeiro

Manoel Lima, 59 anos, caminha com destreza pelo mangue – o maior conjunto contínuo de manguezais do mundo, situado, em grande parte, no município de Curuçá, no Estado do Pará. Pegar caranguejos e andar pelo mangue é a atividade que Manoel praticou a vida toda. No ponto escolhido, ele começa sua “colheita”. Com a habilidade ad-quirida ao longo da vida, veste a “braçadeira”, uma meia preta que cobre e protege o braço que utiliza para pegar o animal na toca. Ao se levantar, já traz na mão um enorme caranguejo. Tem sido assim que, ao longo das décadas, Manoel se acostumou a pegar até 100 caranguejos por dia, uma fartura que já não existe mais. Hoje, para pegar 50 desses crustáceos, ele diz que é preciso passar o dia todo no manguezal. Ele sabe que seu ganha-pão vem diminuindo com o tempo e procura usar a técnica menos agressiva para pegar caranguejos: escolhe apenas machos adultos para não interferir no processo de procriação.

Mas nem todos são assim. Caranguejeiros mais afoitos enfiam os pés nas tocas para forçar a saída do animal e, com isso, arrebentam as raízes das plantas, destruindo os mangueiros, árvore típica do bioma. “Tem manguezal por aí que parece que entrou um trator e destruiu tudo, de tanta árvore caída”, conta Manoel, garantindo que os curuçaenses não utilizam essa técnica, mais comum entre caranguejeiros das cidades vizinhas. São Caetano de Odivelas, por exemplo. Lá, segundo ele, a situação é crítica. “Antigamen-te, a cidade era a terra dos caranguejos graúdos. Agora não tem mais nada por lá e eles vêm aqui para pegar os nossos”, reclama.

Muito comum no litoral brasileiro, os man-guezais ocorrem onde o rio encontra o mar. Graças aos sedimentos minerais e orgânicos carregados pelos rios, forma-se a lama caracte-rística desse ecossistema, de onde erguem-se mangueiros, tinteiras e siribeiras – as árvores mais recorrentes nesse tipo de formação – e um rico ambiente para a proliferação de fauna específica, como é o caso dos caranguejos. Se-gundo o biólogo Renato de Almeida, a riqueza dos manguezais atrai uma enorme quantidade de espécies nos períodos reprodutivos. É o berço da vida. E muitos filhotes permanecem nas suas

Ecossistema ameaçadoUm estudo recente encomendado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e pelo The Nature Conservancy (TNC) indicou que um quinto dos manguezais do mundo foi destruído desde 1980. E eles continuam a ser apagados do mapa a uma taxa anual de 0,7%. O relatório a que esse estudo deu origem, o Atlas Mundial de Manguezais, diz que em alguns pontos do planeta esse ecossistema está sendo destruído com uma velocidade até quatro vezes maior do que outros. Como os manguezais se localizam necessariamente nos litorais, regiões em geral mais populosas, a pressão pelo uso da terra é mais intensa que em outros ecossistemas. Ainda segundo o relatório, durante as décadas de 1980 e 1990, os manguezais eram considerados improdutivos e insalubres na América Latina. Por isso, o continente perdeu cerca de 250 mil hectares desse ecossistema, 11% do total, o que equivale a quase duas cidades de São Paulo. O Brasil, com seu extenso litoral, abriga quase a metade dos manguezais do continente e, nos últimos 25 anos, perdeu 50 mil hectares deles, sendo que as maiores perdas foram na Região Sudeste. Um triste cenário em um país que tenta defender o ecossistema desde 1760. Nesse ano, o então rei de Portugal, dom José 10, decretou uma série de restrições para o corte de madeiras de manguezais.

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Da lama preta do maior conjunto contínuo de manguezais do mundo

os curuçaenses extraem os caranguejos

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Os caranguejeiros deixam os barcos nos igarapés e entram nos manguezais em busca dos crustáceos, que estão cada vez mais longe das margens

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águas calmas, protegidos contra predadores. Renato destaca, ainda, os peixes-boi, mamífero ameaçado de extinção que também procura as ricas regiões de mangues para a reprodução, e as aves migratórias, que, muitas vezes, param nos bancos de lama dos estuários para repor energias, atraídas pela fartura de alimentos.

Como tudo na Amazônia, o manguezal de Curuçá não poderia deixar de ser também superla-tivo: ele se estende da Ilha de Marajó até o Estado do Maranhão, ocupando toda a região nordeste do Pará, conhecida como Salgado. E segue preserva-do, apesar de boa parte da floresta amazônica ao seu redor já ter sido destruída por causa do plantio para subsistência. Evitar que o mesmo aconteça com o mangue foi um dos motivos para a criação, em dezembro de 2002, da Reserva Extrativista Marinha Mãe Grande de Curuçá.

Riqueza comprometidaNessa pequena cidade de 30 mil habitantes,

cercada de rios, com alguma vocação turística, a população vive da pesca e da agricultura, em uma vida sustentada pelo manguezal e pelos igarapés que se estendem à sua margem. Para os habitantes de Curuçá, conservar o mangue é uma questão de sobrevivência. Segundo Lour-des Furtado, antropóloga do Museu Paraense Emílio Goeldi e coordenadora de um estudo para traçar o diagnóstico da reserva extrativista, a noção de defesa do meio ambiente, seja por razões econômicas ou por ativismo ambiental, vem crescendo na cidade. Mesmo assim, alguns animais que vivem ali já começam a escassear. Para o caranguejeiro Manoel, o primeiro sinal dessa realidade foi quando ele constatou que precisava se aprofundar cada vez mais no man-gue para achar seus caranguejos. Outro morador de Curuçá, Odilon Pompeu, reforça a impressão: pescar camarão é cada dia mais difícil. Aos 53 anos, 28 dos quais dedicados à atividade, ele lembra dos tempos fartos em que chegou a pegar até 82 quilos de camarão em uma única noite. Hoje é difícil pegar 15 quilos.

O cenário traz consigo implicações sociais pro-fundas: caranguejeiros não têm acesso a benefícios sociais porque não são considerados pescadores. Se fossem, teriam direito a um salário no período de “defeso”, quando ocorre, durante quatro ou cinco dias de todos os meses, o período reprodutivo em que a pesca é proibida. Não têm direitos, mas têm deveres: “Já vi o Ibama chegar aqui e soltar os

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Petisco afrodisíacoHá quem diga que esse molusco tem grandes efeitos medicinais. “Já teve gente que chegou por aqui desenganado pelos médicos por causa de tuberculose e foi embora curado. O remédio foi só o turu”, afirma o curuçaense Everaldo Santos. Isso sem contar o efeito afrodisíaco atribuído ao pequeno animal, que é ingerido cru pela população local. Dizem que o turu, que lembra uma grande minhoca, tem gosto semelhante ao das ostras.

Vestido com sua braçadeira, Manoel se prepara para pegar caranguejos – ele está atrás dos machos adultos

COMO TUDO NA AMAZÔNIA, ESSE MANGUEZAL É SUPERLATIVO: ELE SE ESTENDE DA ILHA DE MARAJÓ, NO PARÁ, ATÉ O ESTADO DO MARANHÃO

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Brincadeira educativaTudo começou de uma maneira bem prosaica. Carnaval, três amigos sem dinheiro para as fantasias e o mangue. A solução encontrada foi mergulhar no manguezal e fazer da lama sua fantasia. Gostaram da brincadeira e a repetiram durante anos, com alguns poucos seguidores. Ficaram, assim, famosos entre os curuçaenses, que às vezes chamavam o pequeno grupo de Bloco da Lama, outras de Bloco do Caranguejo e outras de Pretinhos do Mangue. A partir do ano 2000, sob o comando de Edmilson dos Santos, o bloco Pretinhos do Mangue ganhou grande repercussão na mídia paraense e nacional e foi transformado em patrimônio cultural do Pará. Desde 2009, os atuais integrantes do grupo conseguiram elevar o bloco à categoria de ONG e pretendem usar a brincadeira para trabalhar com educação ambiental. Segundo Edmilson, os Pretinhos do Mangue reuniram dez mil pessoas em Curuçá no carnaval de 2010, vindas de diferentes partes do país.

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caranguejos que o rapaz levou o dia todo para pegar porque estava no período de acasalamento. Mas me diz uma coisa, quem é que vai colocar comida em casa nesse período?”, diz Manoel.

É um dilema e as soluções para enfrentá-lo nem sempre são as melhores. Carlos Augusto Rodrigues pega o crustáceo no manguezal de São Caetano de Odivelas há 25 anos e afirma que os caranguejos estão se escondendo no fundo do lamaçal. Por isso, ele já não os retira com o braço, usa uma técnica mais eficiente e também mais predatória: coloca uma linha de náilon, com um laço na ponta, na extremida-de de um pedaço de madeira. Instala a “armadilha” nas proximidades da toca do caranguejo para que, ao passar pela linha, fique preso a ela. Caranguejei-ros mais conscientes, como Manoel, consideram a

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De olho no mangueNa conhecida praia da Romana, em Curuçá, há um canal natural com profundidade superior a 25 metros, mesmo em períodos secos, ideal para a construção de um porto – que tem atraído a atenção da Anglo American, antiga MMX Mineração e Metálicos. A empresa está tentando conseguir a licença dos órgãos ambientais para instalar uma estação flutuante em um local chamado de Ponta da Tijoca, que serviria para escoar o minério de ferro extraído no Amapá. O maior porto desse estado, o de Santana, não tem capacidade de receber navios de grande calado, que necessitam de águas profundas. O problema é que essa operação pode gerar grandes danos ambientais à frágil área da Reserva Extrativista Marinha Mãe Grande de Curuçá – como, por exemplo, vazamentos de óleo e introdução de espécies de peixes estranhas ao ecossistema a partir da chamada água de lastro, que é captada e liberada pelos navios para garantir sua estabilidade.

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técnica agressiva, já que captura animais de todos os tamanhos, e atribuem também a ela a responsabili-dade pela escassez dos crustáceos da região.

Bom exemploOs novos tempos, no entanto, inspiram solu-

ções contra o extrativismo predatório e lançam perspectivas menos sombrias. É o que está acon-tecendo com os criadores de ostras da região que já não são mais apenas extrativistas. A atividade começou há cinco anos com a ajuda do Sebrae e com a criação da Associação de Aquicultores da Vila Lauro Sodré (Aquavila) – cujos associados foram conhecer experiências do mesmo tipo na Bahia e em Santa Catarina, participaram de cur-sos de capacitação e, finalmente, deram início à própria criação. Juniel Duarte Galvão, presidente da Aquavila, explica que a técnica utilizada por eles é conhecida como sistema de mesas. O nome deve-se às grandes bandejas nas quais os animais são colocados para a engorda. Trata-se de coleto-res construídos com bambus e redes instaladas às margens dos rios.

Além de evitar a extração predatória da ostra, a criação apresenta também outras vantagens, como possibilitar o aproveitamento de um maior número de larvas, já que, no ambiente natural, uma boa parte delas poderia se perder por causa da ação de predadores. Além de otimizar o tra-balho e proteger o meio ambiente com a criação de ostras, a Aquavila potencializa a criação com o artesanato produzido a partir das conchas. “Nas feiras e nos balneários de Curuçá, de Belém e de toda a região, não faltam compradores para as ostras e os artesanatos”, orgulha-se Juniel, que lembra que agora a cidade vai contar também com o Festival da Ostra, que será realizado todos os anos, em novembro.

A comemoração se junta a tantas outras na cidade – festivais de peixes e outros animais do mangue são tão comuns quanto festivais de fol-clore em Curuçá. Mais do que celebrações, essas festas são símbolos do reconhecimento da riqueza que emana do mangue. E os curuçaenses cada vez mais conhecem e valorizam seu manguezal, que se espalha pelas margens das estradas e dos rios, atrás das praias oceânicas, entre um bairro e outro e, principalmente, pela rotina dos moradores.

Caranguejos, camarões e ostras são a base da culinária e da renda da maioria das famílias curuçaenses. Conservar o mangue é questão de sobrevivência para eles

Veja mais sobre manguezais no site www.horizontegeografico.com.br

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