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EDUCAÇÃO POPULAR E SAUDE – TRAJETÓRIA, EXPRESSÕES E DESAFIOS DE UM MOVIMENTO SOCIAL Critical Pedagogy and Health: history, expressions and challenges of a Brazilian social movement. Eduardo Navarro Stotz * Helena Maria Scherlowski Leal David ** Julio Alberto Wong Un *** Resumo O presente artigo tem por objetivo apresentar uma visão de conjunto da Educação Popular e Saúde, perspectiva que anima um amplo movimento de profissionais, técnicos e pesquisadores e de militantes e ativistas atuantes na área da saúde desde 1991. Discute a caracterização do movimento social assim conformado por estes atores, procurando entender o processo histórico de seu surgimento. Descreve as expressões deste movimento nos congressos de Saúde Coletiva, nas propostas dos núcleos universitários, nas políticas municipais de saúde e nas reflexões científicas de cunho acadêmico. Identifica a influência difusa exercida no sistema de saúde e levanta a questão sobre quais as razões de um movimento social tão amplo e com razoável acumulação de experiências tem encontrado tanta dificuldade em generalizá-las politicamente. Palavras-chave: Saúde Pública; Educação em Saúde; SUS(BR); Sociologia Abstract This revision paper aims to present a global vision of the Critical Pedagogy on Health approach - known as "Popular Health Education " in Brazil, which inspires a extensive * Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz, pesquisador, doutor em Ciências da Saúde. Endereço: Praia de Botafogo, 114/503 CEP 22250-040 Rio de Janeiro - R.J. ** Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professora adjunta, doutora em Ciências da Saúde. *** Coordenação de Prevenção e Vigilância/Instituto Nacional do Câncer, pesquisador, doutor em Ciências da Saúde. Revista APS, v.8, n.1, p. 49-60, jan./jun. 2005

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  • EDUCAO POPULAR E SAUDE TRAJETRIA, EXPRESSES E DESAFIOS DE UM MOVIMENTO SOCIAL

    Critical Pedagogy and Health: history, expressions and challenges of a Brazilian social

    movement.

    Eduardo Navarro Stotz*

    Helena Maria Scherlowski Leal David**

    Julio Alberto Wong Un***

    Resumo

    O presente artigo tem por objetivo apresentar uma viso de conjunto da Educao Popular e

    Sade, perspectiva que anima um amplo movimento de profissionais, tcnicos e

    pesquisadores e de militantes e ativistas atuantes na rea da sade desde 1991. Discute a

    caracterizao do movimento social assim conformado por estes atores, procurando

    entender o processo histrico de seu surgimento. Descreve as expresses deste movimento

    nos congressos de Sade Coletiva, nas propostas dos ncleos universitrios, nas polticas

    municipais de sade e nas reflexes cientficas de cunho acadmico. Identifica a influncia

    difusa exercida no sistema de sade e levanta a questo sobre quais as razes de um

    movimento social to amplo e com razovel acumulao de experincias tem encontrado

    tanta dificuldade em generaliz-las politicamente.

    Palavras-chave: Sade Pblica; Educao em Sade; SUS(BR); Sociologia

    Abstract

    This revision paper aims to present a global vision of the Critical Pedagogy on Health

    approach - known as "Popular Health Education " in Brazil, which inspires a extensive

    * Escola Nacional de Sade Pblica/Fiocruz, pesquisador, doutor em Cincias da Sade. Endereo: Praia de Botafogo, 114/503 CEP 22250-040 Rio de Janeiro - R.J. ** Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professora adjunta, doutora em Cincias da Sade. *** Coordenao de Preveno e Vigilncia/Instituto Nacional do Cncer, pesquisador, doutor em Cincias da Sade.

    Revista APS, v.8, n.1, p. 49-60, jan./jun. 2005

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    movement of researchers, professionals, health workers and activists working in the

    Brazilian health sector since 1991. It discusses the characterization and definition of the

    social movement shaped by the aforementioned actors, in order to understand its historical

    process of birth and development. It describes this movement's expressions in the

    Collective Health Congresses and Meetings, inside Brazilian universities, in the municipal

    health policies and in scientific and academic thought and production. It identifies the

    diffuse influence on the Healthcare System and discusses why such an important social

    movement, with a significant accumulation of experiences and practices has encountered so

    many obstacles to expand politically. Key Words: Public Health.; Health Education; SUS(BR); Sociology

    Introduo

    A caracterizao da Educao Popular e Sade como proposta de um movimento

    social foi cunhada por Eymard Vasconcelos numa interveno pblica no Congresso de

    Sade Coletiva da Associao Brasileira de Ps-Graduao em Sade Coletiva

    (ABRASCO) realizado em Salvador, em julho-agosto de 2000, retomada depois em

    publicaes (VASCONCELOS, 2001a, 2001b). Sistematizar os passos dados tem sido,

    alis, trao marcante do movimento composto, em sua maioria, de profissionais, tcnicos e

    professores/pesquisadores da rea da sade, com a participao de ativistas e militantes de

    movimentos sociais e organizaes no-governamentais. A recusa em teorizar fora do

    contexto da ao fonte de aproximao da vida social, em especial daqueles grupos

    sociais mais oprimidos. Como sabemos, tambm acarreta limitaes e impe desafios

    quando almeja generalizar-se. Esta a inquietao que explicitamos ao leitor para que, aps

    percorrer conosco a apresentao deste movimento e de suas contribuies, possamos

    retom-la em nossas consideraes finais.

    De que movimento social estamos falando?

    Esse jeito de pensar e de fazer sade pautado na experincia favorece uma forma de

    expanso e de crescimento que exerce grande fascnio sobre quem se depara, como o caso

    dos profissionais de sade, com as limitaes do tecnicismo da formao e da orientao

    normativa da ao face complexidade da vida. Esta rigidez tanto mais sentida quando se

    Revista APS, v.8, n.1, p. 49-60, jan./jun. 2005

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    considera a contradio entre a experincia do sofrimento e a falta de resolubilidade dos

    servios de sade. Tal situao gera um permanente descontentamento capaz de mobilizar

    os profissionais no sentido de tentar outros caminhos e buscar outras solues. Esta , sem

    dvida, uma das razes mais fortes para a emergncia do movimento da Educao Popular

    e Sade, de sua ampliao e de seu fortalecimento como um movimento social (RIOS,

    1987).

    VASCONCELOS (2001b, p.16) assim formulou este processo: Pode-se afirmar que grande parte das experincias de Educao Popular em Sade esto voltadas para a superao do fosso cultural existente entre os servios de sade, as organizaes no-governamentais, o saber mdico e mesmo as entidades representativas dos movimentos sociais, de um lado e, de outro lado, a dinmica de adoecimento e de cura do mundo popular.

    A capacidade de movimentos sociais como a EP&S em superar contradies desta

    natureza uma questo discutida mais adiante. Por ora podemos endossar o ponto de vista

    de que, para promover mudanas, no todo ou em parte, em certas instituies sociais, os

    movimentos sociais precisam dar conta de proposies ou de normas adequadas ao

    sistema de valores de que so porta-vozes (BOUDON ; BOURRICAUD, 1993, p.376-77).

    Isto coloca em pauta tanto a forma de organizao e o grau de coeso interno, como traz

    tona o problema, geralmente relativizado ou mesmo ignorado, das caractersticas e das

    alianas subjacentes base social dos movimentos.

    Pode-se afirmar que a existncia de um fosso cultural entre os servios de sade e a

    populao foi percebida nas primeiras iniciativas de educao popular em sade, tal como

    se organizaram nas periferias das metrpoles e das cidades do interior, entre os anos 1975 e

    1985. Essas experincias foram sistematizadas em encontros populares e vieram a compor

    o iderio do que se convencionou chamar de movimento da Reforma Sanitria. (STOTZ,

    2005). Contudo, em que pese o acolhimento dessas contribuies na VIII Conferncia

    Nacional de Sade ocorrida em 1986, o modelo biomdico que est na base do processo de

    separao cultural entre servios de sade e populao continuou intocado, pois a poltica

    de sade desde ento implementada manteve este modelo como pressuposto da ateno da

    sade.

    No campo da Sade Coletiva, o tema tratado como um dos aspectos do modelo de

    ateno da sade da populao. O papel da poltica de sade na manuteno e reproduo

    da biomedicina poderia ser visto como uma conseqncia da nfase dada aos problemas de

    Revista APS, v.8, n.1, p. 49-60, jan./jun. 2005

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    financiamento e de gesto em detrimento da mudana do modelo de ateno do Sistema

    nico de Sade. Entretanto, com a implantao do Programa Sade da Famlia teriam

    ocorrido os avanos quanto ao modelo assistencial, principalmente com o chamado modelo

    tcnico-assistencial da vida (acolhimento, vnculo, contrato) incorporado proposta mais

    abrangente da Vigilncia da Sade (TEIXEIRA, 2005). Apesar destes avanos, no se

    observa na literatura uma retomada da crtica hegemonia da biomedicina feita por Maria

    Andra Loyola, em 1984, que destacava o comprometimento da medicina cientfica ou

    biomedicina com a ordem social fundada no capitalismo: Imbudo de uma ideologia que tem por funo mascarar as relaes de classe que ela encobre, o mdico atua no sentido de preservar o monoplio de seu saber e autoridade indiscutida que a sociedade lhe outorga para dispor da doena, at mesmo do corpo e das sensaes de seu cliente. E sua atitude to mais autoritria quanto mais baixa a classe social do doente que, pela distncia scio-lingustica e dos hbitos mentais que o separa do mdico, encontra-se incapacitado de contra-argumentar com ele, isto , de impor seu prprio discurso ao discurso forte e definitivo do mdico (LOYOLA, 1984, p.228).

    Na leitura que Maria Andra Loyola faz da obra de Luc Boltanski, Les Usages

    Sociaux du Corps, publicada em Paris em 1970 (BOLTANSKI, 1989), verifica-se que a

    medicina cientfica produz constantemente o distanciamento e a ruptura com o saber

    comum e o saber das outras medicinas que lhe fazem concorrncia, disputando o

    monoplio legtimo do cuidado mdico.

    Alguns trabalhos (SILVA JUNIOR, 1998; FAVORETO; CAMARGO JUNIOR,

    2002) e a linha de pesquisa sobre racionalidades mdicas desenvolvida sob coordenao de

    Madel Therezinha Luz, no Instituto de Medicina Social da UERJ, constituem uma exceo.

    A relativizao e posterior abandono, pela maioria dos pesquisadores, dos pressupostos

    crticos da Sade Coletiva, tal como indicada acima, tm razes polticas. A nossa Reforma

    Sanitria, diferentemente da italiana, no se organizou a partir das classes trabalhadoras,

    ainda que fosse proposta em seu nome. Os articuladores do movimento sanitarista

    priorizaram de modo absoluto a ocupao dos assim chamados espaos pblicos,

    separando-se do movimento popular que estava na origem de todo o processo (ESCOREL,

    1995). As razes deste processo so polticas, esto vinculadas aos compromissos firmados

    a partir da aceitao da eleio indireta para o primeiro governo civil (1985), expresso da

    democratizao pactuada pelo alto entre os militares que ento deixavam o poder e os

    polticos que at aquele momento haviam, em sua maioria absoluta, sustentado esse poder.

    Revista APS, v.8, n.1, p. 49-60, jan./jun. 2005

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    Uma vez escolhido este caminho, as tentativas de avanar a reforma setorial acabaram se

    dobrando s imposies das alianas polticas que sustentavam as instituies estatais,

    principalmente o Ministrio da Sade. No apenas a urgncia de enfrentar o problema do

    financiamento e da gesto para viabilizar a construo e consolidao do Sistema nico de

    Sade tornou-se permanente, mas toda lgica do sistema passou a orientar-se pela oferta de

    servios que reafirmou o primado da medicina cientfica.

    As dificuldades em implementar o SUS num contexto poltico neoliberal tornaram

    ainda mais difcil a crtica identidade de pressupostos entre a poltica de sade e a

    biomedicina. Gerou-se uma atitude coletiva em defesa do SUS que acabou por engendrar

    uma sorte de susismo, do qual no ficou imune sequer o ambiente da pesquisa cientfica,

    pois a prpria agenda de pesquisa acabou por incorporar as prioridades da poltica pblica

    de sade.

    nesta conjuntura histrica que emerge o movimento social denominado Educao

    Popular e Sade (EP&S). O movimento organizou-se na Articulao Nacional de Educao

    Popular em Sade, criada em 1991 no I Encontro Nacional de Educao Popular em Sade,

    realizado em So Paulo. Durante quase uma dcada funcionou como uma frgil mas

    persistente relao direta e informal entre profissionais de sade, pesquisadores e algumas

    lideranas de movimentos sociais para a troca de idias e apoio.

    Em 1998, a Articulao passa a denominar-se Rede de Educao Popular e Sade.

    Dela participam aqueles que acreditam na centralidade da Educao Popular como

    estratgia de construo de uma sociedade mais saudvel e participativa, bem como de um

    sistema de sade mais democrtico e adequado s condies de vida da populao. (REDE

    DE EDUCAO POPULAR E SADE, 2005).

    A unidade de propsitos dos participantes do movimento consiste em trazer, para a

    campo da sade, a contribuio do pensamento freiriano, expressa numa pedagogia e

    concepo de mundo centrada no dilogo, na problematizao e na ao comum entre

    profissionais e populao. importante ressaltar, na identidade do pensamento de Paulo

    Freire e a dos participantes do movimento de educao popular e sade, a convergncia de

    ideologias aparentemente dspares, quais sejam, o cristianismo, o humanismo e socialismo.

    A trajetria do movimento de EP&S no esteve isenta de conflitos e de dificuldades

    de relacionamento com os movimentos sociais que, a exemplo do Movimento Popular de

    Revista APS, v.8, n.1, p. 49-60, jan./jun. 2005

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    Sade (MOPS), reivindicam para si tambm a herana da educao popular em sade.

    importante assinalar, neste sentido, a experincia originria nos movimentos sociais durante

    a poca da luta contra o regime militar que entre 1979 e 1981, logrou organizar Encontros

    Nacionais de Experincias em Medicina Comunitria. desta experincia, alis, que

    nasceu e se desenvolveu o MOPS que jamais conseguiu reunir em torno de si as vertentes

    da educao popular em sade (STOTZ, 2005). Apenas com a abertura do governo Lula,

    principalmente no Ministrio da Sade, participao dos movimentos sociais se conseguiu

    construir uma proposta de atuao comum. Isto aconteceu na criao da Articulao

    Nacional de Movimentos e Prticas de Educao Popular e Sade (ANEPS) em 5 e 6 de

    dezembro de 2003.1 A ANEPS aponta, pela primeira vez desde a tentativa dos ENEMECS,

    a possibilidade de que movimentos e prticas locais possam adquirir voz e reconhecimento

    pblicos, que venham a ser apoiados como elementos fundamentais para a prpria

    renovao da poltica de sade e das prticas do SUS (STOTZ, 2004).

    A estrutura e mtodos da Rede de Educao Popular e Sade

    A estrutura da Rede extremamente simples: uma coordenao escolhida entre os

    pares reunidos em oficinas realizadas no mbito de congressos e outros eventos cientficos

    e tcnicos da rea da sade, operando por meio da comunicao eletrnica (lista de

    discusso) e comunicando-se com o pblico mais amplo por meio de boletins e da pgina

    na internet. Contudo mais do que uma rede virtual, uma vez que se apia sobre redes

    sociais estruturadas em ncleos universitrios, centros de pesquisa ou setores tcnicos de

    secretarias de sade progressistas. O sucesso da rede depende em parte dessas redes

    subjacentes, em parte da liderana desses ncleos, do carisma de alguns de seus nomes

    mais proeminentes e da convico da originalidade radical da proposta da educao

    popular. Lembre-se aqui a advertncia de Boudon e Bourricaud (1993) a respeito das

    interpretaes unilaterais: a anlise de um movimento deve considerar as diversas

    motivaes dos seus participantes, sejam mais idealistas, utilitaristas ou romnticos.

    Relaes em rede na educao popular em sade

    Revista APS, v.8, n.1, p. 49-60, jan./jun. 2005

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    As dinmicas da Rede de Educao Popular em Sade e, parcialmente, as da

    ANEPS, correspondem ao que tem sido descrito como a Sociedade em Rede, onde os

    fluxos de informao e os contatos fludos so caractersticas marcantes. Estas novas

    formas de convvio social e de organizao e articulao coletiva devem ser entendidas

    como produto de desenvolvimentos e mudanas recentes. Nos anos 70 e 80 surgiram os

    denominados novos movimentos sociais (mulher, ndio, moradia, sade) que ampliaram

    as agendas e estratgias de luta pelo bem-estar, incorporando o cotidiano, a cultura, o

    subjetivo e as emoes embora de forma variada e desigual.

    A sociedade em rede aproxima-se, no plano das idias, das transformaes

    identificadas na estrutura do sistema social abrangente. Embora no seja do escopo do

    presente artigo, importa assinalar a crise do capitalismo organizado que deu sustentao

    ao Estado de Bem-estar Social e a superao (negao, conservao) numa nova

    configurao da sociedade civil subordinada empresa capitalista e aos mecanismos de

    mercado (SAMAJA, 2000). No se pode deixar de perceber que as classes subalternas

    tambm reagiram ao enfraquecimento e limitao dos arranjos de proteo social. No por

    acaso, nos anos da dcada de 1990, os movimentos sociais foram se articulando no que veio

    a se chamar redes de movimentos.

    A idia de redes de movimentos convergiu com as discusses, vindas da teoria dos

    sistemas e das cincias da complexidade, sobre as relaes sociais em rede (CASTELS,

    1999, 2003; BAUMAN, 2001, 2003; SANTOS, 2000, 2003) que se caracterizam pela

    mobilidade, fragilidade, velocidade e mutabilidade. Uma rede, ento, definida pelas

    relaes e no pelos ns sejam pessoas, grupos ou conjuntos de movimentos. Os ns

    mudam, surgem e apagam-se, participam (plenamente, na poltica, na esttica, no dilogo,

    na produo e/ou no uso dos produtos culturais da rede). As relaes em rede so difceis

    de classificar e delimitar.

    A reflexo acima esboada pertinente para a compreenso dos processos criativos

    da Rede de Educao Popular em Sade. Desde sua fundao a Rede tem demonstrado uma

    capacidade surpreendente de articulao, produo, gerao de relaes profissionais,

    pessoais e afetivas profundas, mesmo que fragmentrias, temporrias, e no lineares e

    talvez por isso, mais livres e prazerosas.

    Revista APS, v.8, n.1, p. 49-60, jan./jun. 2005

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    Vida dentro (e alm) do ciberespao

    Bom exemplo das dinmicas que acontecem na rede a produo cotidiana de

    vozes e trocas dentro dos grupos de interesse (ou listas de discusso) na Internet

    ligados rede. A lista foi fundada em maro de 1999

    e em 2004 atingiu uma mdia mensal de 250 a 300 mensagens, nmero considerado alto

    para uma lista de cunho acadmico-poltico, na medida em que prprio de grandes listas

    com mais de 1000 participantes. A lista conta atualmente com 560 participantes. A

    participao na lista propicia a criao coletiva de espaos reais de troca, conhecimento e

    reconhecimento, a exemplo de oficinas, congressos e projetos de pesquisa.

    Poiesis das relaes em rede: criao, amizade, militncia e identidade

    Dentro da Rede h ticas amorosas de relao que foram se construindo atravs das

    trocas e dilogos, dos aportes das pessoas depoimentos, crnicas, relatos de viagens,

    poemas, conversas, desentendimentos, acordos, indignaes compartilhadas. Uma vez que

    o espao da virtualidade configura-se como um ntimo pblico, vai se criando uma

    forma de grito ao p do ouvido, ou cochicho coletivo. Pela prpria natureza das

    relaes em rede, ticas amorosas de relao se reformulam cotidianamente.

    Este nvel aprofundado de relao possvel dado o engajamento mltiplo dos

    membros com experincias locais, e movimentos sociais, incorporando vrios nveis da

    experincia e do fazer humano: ativismo poltico, trabalho organizativo, atuao dentro dos

    servios de sade e criao de identidades compartilhadas com os grupos populares e

    movimentos sociais. Nas propostas de vida (quem sabe projetos) h um componente de

    busca ativa de amorosidade e espiritualidade, artes de fazer o convvio social e o

    Self.

    Ao mesmo tempo em que o iderio da Educao Popular em Sade prope esta

    atitude diferente, esta postura de dilogo, interesse pela escuta, preocupao por viver

    radicalmente o olhar e a experincia dos outros populares, possvel pensar tambm numa

    cultura em formao. Uma cultura de relaes militantes, amorosas e estticas, onde se cria

    Revista APS, v.8, n.1, p. 49-60, jan./jun. 2005

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    uma casa comum para o aconchego e no um lugar de briga.2 Amorosidade e respeito ao

    outro diferente, lugar privilegiado das diversidades e da troca entre vises, saberes e

    sabedorias. Eis a poiesis da Rede, os caminhos da criao, da experincia potica coletiva,

    dentro e fora da internet.

    Prticas e concepes educativas

    Na medida em que estamos falando de um movimento que envolve um grande

    nmero de profissionais de sade, importa reconhecer a importncia da ampliao da

    cobertura do Sistema nico de Sade ao longo dos anos da dcada de 1990. A implantao

    das estratgias do Programa de Agentes Comunitrios de Sade (PACS) e do Programa de

    Sade da Famlia (PSF) vem levantando debates importantes sobre os vrios aspectos

    envolvidos na reorganizao de servios e prticas, entre os quais a importncia do papel da

    educao nas aes de sade.

    Grosso modo, dois tipos de profissionais engajaram-se nas propostas do PACS/PSF:

    o primeiro grupo refere-se queles que j estavam engajados com os pressupostos da

    Ateno Primria Sade (APS) que, desde os anos da dcada de 1970, ofereceu uma

    alternativa para romper com uma prtica tecnicista e distanciada da populao; esses

    profissionais j vinham debatendo questes relacionadas ao campo da Educao Popular e

    Sade (VASCONCELOS, 2001b). O outro grupo agregou profissionais oriundos de

    servios organizados de modo tradicional, e cuja relao com a populao era caracterizada

    pelo distanciamento considerado normal, ou ainda recm-formados, na sua maioria

    formados em currculos tradicionais, em busca de um mercado de trabalho em expanso.

    Na lista virtual de discusso da Rede [email protected] - fonte de relatos

    que serviram de base a estas consideraes podemos encontrar profissionais dos dois

    grupos.

    Em relao s concepes educativas, para o primeiro grupo, este momento inicial

    de implantao do PACS/PSF representou a possibilidade de continuidade do projeto da

    APS, de concretizao de novas relaes e processo de trabalho. Muitos profissionais e

    acadmicos envolvidos com o campo da Educao Popular e Sade estiveram inseridos

    nestas estratgias. Entre aqueles que vieram de prticas tradicionais de trabalho ou

    formao, a mudana nos processos de trabalho dentro do PACS e do PSF evidenciou

    Revista APS, v.8, n.1, p. 49-60, jan./jun. 2005

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    algumas questes relacionadas mediao educativa: competncias construdas a partir de

    currculos inadequados e acrticos, despreparo dos profissionais para o enfrentamento

    compartilhado dos problemas na comunidade, dificuldade em estabelecer dilogos e

    parcerias e a descoberta da importncia dos referenciais tericos e metodolgicos para o

    estabelecimento de processos pedaggicos de fato efetivos. Um certo ressurgir da

    Educao Popular, desde ento, pode ser atribudo ao reconhecimento, a partir da vivncia

    no trabalho na comunidade, de que a educao est presente no apenas como um

    componente das prticas, mas como eixo estruturante de uma proposta de mudana de

    modelo de ateno. Da tambm, um certo entendimento corrente de que Educao Popular

    e PACS/PSF esto naturalmente atrelados ou at mesmo de que Educao Popular

    questo exclusiva do nvel da Ateno Bsica, e do trabalho em comunidade do PACS/PSF

    (no sendo, portanto, de interesse ou importncia para os nveis de maior complexidade de

    ateno).

    A acentuada expanso de cobertura do PSF aps a segunda metade dos anos 1990,

    acompanha-se de mudanas no enfoque e nas formas de organizao dos servios e

    processo de trabalho, diluindo o componente ideolgico e poltico da transformao de

    modelo, numa crescente viso do PSF como desafogo da mdia e alta complexidade, e

    como mercado de oportunidades de trabalho. pluralidade de enfoques, prticas e

    processos educativos soma-se a contratao precria e alta rotatividade de profissionais,

    fazendo-nos lembrar o comentrio jocoso de um profissional vinculado a uma coordenao

    estadual de PSF, sobre as enfermeiras voadoras que ficam rodando de um municpio para

    outro, em vnculos precrios e provisrios, quando no chegam ao absurdo de manter um

    vnculo num municpio, de manh, e noutro, tarde.

    Esta avaliao aponta para o diagnstico, anteriormente referido, do processo em

    que se deu a Reforma Sanitria e a implantao do SUS.

    A persistncia do modelo de financiamento do INAMPS, de faturamento de

    procedimentos curativos individuais, apesar da convivncia com outras formas Piso de

    Ateno Bsica (PAB), Programao Pactuada da Epidemiologia e Controle de Doenas

    (PPI-ECD) e incentivos implantao do PACS/PSF deixa patente, quer pelo volume de

    recursos maior, quer pela segmentao do sistema de sade, as dificuldades da mudana do

    Revista APS, v.8, n.1, p. 49-60, jan./jun. 2005

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    modelo de ateno sade da populao brasileira. Trata-se de um forte desafio proposta

    da concretizao de um modelo baseado na sade e no na doena.

    Embora no seja imediatamente visvel, o desenvolvimento de prticas

    transformadoras de educao acaba por sofrer a influncia deste modelo de financiamento,

    j que a presso pela produtividade em cima dos profissionais termina por atropelar o

    tempo necessrio e por impor um ritmo de trabalho incompatvel com o tempo necessrio

    ao estabelecimento de vnculos e parcerias entre profissionais e populao.

    Em relao s prticas educativas, as concepes e jeitos de fazer que marcam a

    atuao dos profissionais envolvidos em PACS/PSF evidenciam, a partir das mensagens

    trocadas na lista de discusso da Rede, alm de muitas queixas diante da contratao

    precria e da manipulao poltico-partidria de governos locais, algumas questes para o

    debate sobre o papel da Educao Popular nas prticas de sade.

    A primeira delas a marca da individualidade: a explicitao da busca de um agir

    educativo transformador fica restrita, na sua maioria, a prticas e processos individuais,

    voluntaristas, no organizados coletivamente, muito menos institucionalmente. Em um

    estudo realizado entre enfermeiros do PSF, verificou-se que as prticas de

    informao/comunicao mostravam importante mudana nas aes individuais, mas no

    possuam expresso coletiva ou de envolvimento da comunidade ou de grupos (MOURA;

    RODRIGUES, 2003). Com todas as dificuldades relacionadas ao vnculo de trabalho e de

    formao de equipes coesas, no de admirar uma certa opo por trabalhar sozinho. O

    profissional prefere depender dele mesmo, raramente se sentindo apoiado numa equipe que

    compartilha a mesma viso sobre a importncia do papel da educao. Aquele que j vinha,

    ao longo dos anos, militando em outros espaos.

    Na crtica prpria formao, verifica-se a valorizao da prtica cotidiana como

    espao de reflexo e avaliao contnua da prpria prtica educativa. Relatos eventuais,

    alguns oriundos de profissionais que trabalham em reas isoladas e distantes, do conta de

    um fazer educativo calcado na vivncia diria do sofrimento e das dificuldades das

    comunidades. Esta reflexo, se capaz de se reverter em uma prxis nova, fortemente

    calcada na realidade local, no avana, no entanto, como movimento social capaz de levar

    mudanas s prticas de sade do sistema de modo mais ampliado, ficando restritas e estas

    experincias individuais.

    Revista APS, v.8, n.1, p. 49-60, jan./jun. 2005

  • 12

    No se trata de contrapor o desenvolvimento de aes individuais s coletivas:

    mesmo as prticas de educao que juntam pessoas acabam por reproduzir modelos

    prescritivos de educar, baseado nas palestras do doutor ou do enfermeiro para a

    populao. Vale ressaltar que, no mbito do PSF, palestras voltadas para grupos especficos

    como hipertensos e diabticos recebem incentivo financeiro como atividades

    educativas, muitas vezes apenas contrapartida do direito dos usurios a receber o

    medicamento gratuitamente.

    A coerncia da orientao biomdica das consultas e a prtica dominante de

    educao e sade prescritiva de hbitos e condutas para responsabilizar os indivduos pelo

    controle das doenas e dos fatores de risco identificada na pesquisa de ALVES (2004)

    realizada junto a equipes do PSF na Bahia.

    No por acaso, portanto, o reduzido apoio recebido pelas equipes do PACS/PSF

    realizao das aes educativas na perspectiva da educao popular, desde equipamentos,

    at recursos e espao para realizar as aes (ALBUQUERQUE ; STOTZ, 2004)

    No se valoriza a mediao educativa como possibilidade de instaurar novas

    relaes e processos nas prticas de sade. A desvalorizao fica mais evidente quando se

    considera que a reflexo metodolgica tratada como algo desnecessrio, como se o saber

    clnico e a formao acadmica fossem suficiente para a implementao dessa prtica

    (ALBUQUERQUE; STOTZ, 2004, p.265). Embora seja importante considerar toda e

    qualquer prtica dos profissionais como uma prtica educativa, refletir sobre esta prtica

    implica colocar em evidncia concepes educativas implcitas e, portanto, certas vises

    sobre a relao entre profissionais e populao.

    Por isso mesmo, os participantes da lista da Rede manifestaram uma preocupao

    crescente com a profissionalizao do Agente Comunitrio de Sade (ACS) e a definio

    de diretrizes curriculares e competncias para sua prtica, agora legalmente definida como

    vinculada ao gestor municipal. Durante o ano de 2004, foi inclusive proposta a estruturao

    de uma lista de discusso especfica sobre a formao de ACS, discusso essa que no foi

    adiante. Para alm do natural movimento de mar das discusses em listas virtuais,

    chama a ateno para a ainda reduzida capacidade de transformar debates crticos e

    consistentes em ao organizada de interveno e mudana. H consenso em que a

    Revista APS, v.8, n.1, p. 49-60, jan./jun. 2005

  • 13

    formao do ACS precisa ser rediscutida, em novas bases, mas se avana pouco no

    como, no quando ou no onde.

    Identificamos uma certa perplexidade diante do imobilismo da populao quando da

    ocorrncia de demisses involuntrias ou interferncia poltica nos PACS/PSF. Este um

    fato bastante freqente nas gestes municipais, e sobretudo no caso dos ACS, possui

    desdobramentos dramticos, j que, diferentemente de mdicos e enfermeiros, este

    profissional, uma vez demitido, no pode simplesmente buscar outra oportunidade de

    trabalho em outro municpio. Cabe perguntar se esta perplexidade no estaria expressando,

    alm de desnimo, indignao e decepo diante do trabalho levado por gua abaixo, a

    persistncia de uma viso ingnua e redentora do papel mediador da educao em sade.

    Alternando decepes e nimo renovado nas poucas situaes em que houve um

    enfrentamento mais coletivo da situao pela populao, os profissionais seguem

    enfrentando a rotatividade de vnculos, salrios dspares, poltica clientelista local, a no

    existncia de espaos sistemticos de debate e crescimento intelectual, a presso da lgica

    da produtividade nos servios.

    Atividades acadmicas e EP&S

    Professores universitrios, pesquisadores e alunos de graduao e ps graduao

    participam da lista da Rede veiculando em suas mensagens o olhar e as prticas do mundo

    acadmico no fazer educativo em sade.

    A atividade acadmica mais citada a extensionista com aes educativas

    envolvendo alunos de graduao em comunidades. A viso mais presente a de que a

    extenso universitria pode ser um elemento importante para a ruptura da distncia entre a

    universidade e a sociedade, e, em relao Educao Popular, que pode se constituir em

    importante espao de formao dos futuros profissionais. Os relatos no trazem o

    detalhamento das concepes que perpassam os projetos, embora refiram-se vivncia

    comunitria dos estudantes.

    No foi localizada meno integrao da extenso com movimentos sociais

    populares, apenas com o movimento estudantil, e deste, pelas executivas nacionais, com a

    ANEPS. Vale lembrar que, nas mensagens, predomina a tica do professor, e no do aluno,

    Revista APS, v.8, n.1, p. 49-60, jan./jun. 2005

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    quanto atividade de extenso, embora seja demanda do movimento estudantil o debate

    sobre a EP&S, incluindo eventos onde a participao discente seja mais ampliada.

    As atividades de pesquisa, quando relatadas, tambm o so na tica do pesquisador-

    professor, no dos alunos ou dos sujeitos das pesquisas (comunidades). Em relao aos

    aspectos tericos, diversos referenciais so explicitados, com nfase na pedagogia libertria

    de Paulo Freire; na discusso sobre a experincia brasileira, com menes a Eymard

    Vasconcelos, Victor Valla, Eduardo Stotz, entre outros; autores latino-americanos como

    Oscar Jar e Juan Daz Bordenave; socilogos como Boaventura dos Santos. As

    metodologias de pesquisa mencionadas referem-se a abordagens qualitativas: pesquisa-

    ao, observao-participante, anlises de contedo, com procedimentos metodolgicos de

    realizao de entrevistas e grupos focais.

    Outras prticas e a EP&S

    Muitos dos envolvidos na Rede, que mandam mensagens para a lista de discusso,

    contam experincias e vivncias no uso de prticas alternativas e/ou populares de sade,

    mais ou menos conformadas em racionalidades e filosofias mdicas especficas (medicina

    antroposfica, medicina tradicional chinesa, medicina ayurvdica) ou no: prticas

    populares de fitoterapia, tcnicas de relaxamento e meditao. Muitas destas esto voltadas

    para grupos populacionais vulnerveis, especficos, como mulheres, populaes indgenas,

    comunidades perifricas, apoio a ocupaes urbanas, comunidades do campo.

    As expresses artsticas so vivenciadas como aspecto mediador importante com a

    cultura popular, sobretudo entre grupos e em regies onde a cultura popular se encontra

    mais preservada. Danas regionais e locais, produo de textos, poesia, artesanato popular,

    so as expresses mais citadas e valorizadas na lista de discusso. Mais importante

    constatar que a expresso artstica confere um tom prprio aos encontros presenciais de

    movimentos e prticas de educao popular e sade, diferenciando-os dos encontros

    puramente acadmicos. Alm da dimenso comunicativa, a arte desempenha, por meio da

    mstica das aberturas e da dinmica de interao pessoal, um importante papel na

    definio das identidades dos movimentos e prticas de EP&S.

    Revista APS, v.8, n.1, p. 49-60, jan./jun. 2005

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    Movimentos e prticas mais visveis: o Catlogo da ANEPS

    O impulso dado pelo apoio financeiro, por parte do Ministrio da Sade,

    estruturao da ANEPS permitiu a realizao de uma pesquisa sobre o perfil dos

    movimentos e prticas. Os resultados da pesquisa realizada pela Rede de Educao Popular

    e Sade durante os encontros estaduais e nacional realizados em 2003 foram consolidados

    no Catlogo de Movimentos e Prticas de EP&S em 2004, dando visibilidade a uma srie

    de caractersticas dos movimentos, organizaes e entidades que informaram o modo de

    fazer educao popular e sade no Brasil.

    A pesquisa confirma alguns elementos metodolgicos das prticas, aqui citados

    anteriormente: o resgate, sistematizao e disseminao de alternativas populares, aparece

    com 57% das respostas dos 783 movimentos e entidades pesquisados, seguindo-se a

    comunicao popular (53,7%), o intercmbio de experincias e capacitao (51,2%). A

    pesquisa revelou que a maioria das entidades e organizaes est vinculada s classes

    populares. Grande parcela das organizaes (72, 6%) de algum modo est ligada ou recebe

    o apoio das instncias governamentais da rede pblica de sade dos nveis municipal,

    estadual ou federal. 54, 3% das organizaes mantm parcerias com universidades.Tal

    informao entra em contradio com a queixa corrente dos profissionais em relao ao

    pouco apoio s aes educativas e levanta questionamentos. Quais as explicaes

    possveis? Estaro as secretarias terceirizando as aes educativas, pelo suporte ou

    vinculao a movimentos, ONGs e outras organizaes, e, ao mesmo tempo, no

    conseguindo enxergar o potencial destas mesmas prticas dentro dos prprios processos de

    trabalho?

    As concepes e opes pedaggicas envolvidas nas prticas no foram objeto desta

    primeira pesquisa. Na continuidade dos seminrios e oficinas, cada vez mais espalhados e

    capilarizados Brasil afora, surgem e ressurgem elementos metodolgicos, explicativos,

    fortalecedores que passam a ser incorporados, oriundos das condies concretas de vida,

    sofrimento e lutas dos grupos populares. Neste sentido, a regio nordeste do pas tem sido

    um exemplo de criatividade e pluralidade de propostas, com a incluso de prticas j

    conhecidas (com destaque para a arte popular: teatro de mamulengo, danas, mdias

    literrias locais) e outras menos, a exemplo do escambo vivenciado pela ANEPS do Cear

    Revista APS, v.8, n.1, p. 49-60, jan./jun. 2005

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    vivncia coletiva, riqussima em signos e significados, de troca de saberes e recursos

    cognitivos. Os que pouco possuem, dividem o muito que sabem.

    A reflexo acadmica

    Os textos fundadores do campo da educao popular em sade na sua configurao

    atual foram publicados inicialmente nos anos da dcada de 1980 sob a forma de livros e

    artigos cientficos, no s em publicaes de sade coletiva, mas tambm da rea da

    educao. Ao longo dos anos seguintes surgiram trabalhos acadmicos, livros e artigos;

    mltiplas experincias de extenso universitria e projetos comunitrios; e tentativas de

    construo de metodologias de trabalho junto populao. Ncleos de educao popular e

    sade se estruturaram na Escola Nacional de Sade Pblica, no Departamento de Promoo

    da Sade da Universidade Federal da Paraba, no Laboratrio de Comunicao e Educao

    em Sade (LACES) da Universidade Estadual de Campinas, no Grupo de Educao em

    Sade Comunitria do Grupo Hospitalar Conceio de Porto Alegre.

    As reflexes sempre foram acompanhadas de vivncia e engajamento dos autores-

    pesquisadores em processos locais, regionais e nacionais de luta social pela concretizao

    do controle social e a participao popular. Mas tambm, seguindo as propostas ampliadas

    e integradas da Educao Popular em Sade, houve a busca de vnculos pessoais amizade,

    militncia compartilhada afetivos e dialgicos.

    Levantamos um conjunto de vinte e oito (28) trabalhos acadmicos dissertaes

    de mestrado e teses de doutorado que abordam direta ou indiretamente a educao

    popular em sade e seus conceitos e valores sustentadores. O mtodo de busca pela internet

    envolveu pesquisa no portal Scielo, nas pginas da Rede de Educao Popular em Sade e

    da Lista da Rede e convocatria aberta para envio de resumos nas duas listas principais

    e .

    A tabela completa contendo os resumos destes trabalhos pode ser encontrada em:

    http://wongun.sites.uol.com.br/teses.html

    Nas produes e sistematizaes coletadas encontramos grande variedade temtica e

    de abordagens, aproximando-se e problematizando boa parte do espectro de possibilidades

    das prticas sociais em sade da populao, dos profissionais da sade e dos processos de

    gesto do Sistema nico de Sade. No objetivo deste artigo explorar todas as

    Revista APS, v.8, n.1, p. 49-60, jan./jun. 2005

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    possibilidades que estas pesquisas levantam, nem as mltiplas pontes que se estabelecem

    entre elas, ou as perspectivas de desenvolvimento de linhas de pesquisa e formulao de

    polticas pblicas de educao, cuidado e ateno sade. Mencionaremos apenas alguns

    avanos reflexivos luz das teses e dissertaes revisadas.

    Um primeiro grande tema o da preocupao com a construo compartilhada,

    dialgica de novas compreenses sobre a sade: uma sade ampliada, diversa, mltipla,

    contraditria at em suas mltiplas vertentes, tolerante e inclusiva. Neste sentido alguns

    trabalhos colocam outras racionalidades mdicas como possibilidades de interseo e

    debate entre as propostas da educao popular e a sade. Especificamente, a Homeopatia

    colocada como espao de reflexo e dilogo. De outro lado, a reflexo sobre as redes

    sociais e sua importncia para a sade dos coletivos num tempo de excluso social

    globalizada discutida, assim como a reflexo sobre o apoio social e seu valor intrnseco

    no bem-estar das pessoas. Nesta mesma perspectiva insere-se o novo campo de estudos

    sobre religiosidade popular e sade.

    O questionamento do senso comum dos profissionais caracterizado

    dominantemente por uma sobrevalorizao e naturalizao do prprio saber, a ponto de

    estabelecer, no cotidiano dos servios e das pesquisas considerado indispensvel para

    uma educao capaz de se abrir experincia e saber dos outros, pessoas comuns, ao

    dilogo, o respeito e a construo de saberes, sabedorias e prticas compartilhadas. Temas

    como o conceito de comunidade, o saber popular, a intuio e as emoes, as prticas

    sociais, as culturas populares, as medicinas outras (racionalidades mdicas, naturais,

    alternativas, complementares, paralelas). Foram desenvolvidas pesquisas tericas, estudos

    de caso, propostas metodolgicas, avaliaes.

    Outros temas abordados aproximam a educao popular em sade da discusso

    contempornea sobre o cuidado em sade, a integralidade e a humanizao. Ao trabalhar as

    formas de relao entre profissionais e trabalhadores de sade e populao, estudando

    impasses, problemas e possibilidades de dilogo, algumas das produes acadmicas

    encontradas abordam temas como: a escuta atenta; o respeito pelo outro no encontro

    teraputico; a espiritualidade como dimenso intrnseca do cuidado; as relaes entre

    cuidado e condies sociais, organizacionais e polticas; a interao entre as equipes de

    Sade da Famlia e a populao; os desafios para aprofundar e sustentar as propostas e

    Revista APS, v.8, n.1, p. 49-60, jan./jun. 2005

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    vises de educao popular dentro das aes comunitrias dos servios e ONGs; caminhos

    para a comunicao em sade atravs de fotonovelas, rdios comunitrias, projetos de

    gnero e comunicao em sade; dentre outros. Tambm h reflexes crticas sobre a

    estratgia de Promoo da Sade e possveis encontros e desencontros com as propostas de

    origem freireana da educao popular em sade.

    A reflexo sobre os Agentes Populares de Cura, incluindo neste grupo Agentes

    Comunitrios de Sade, hoje inseridos nos Servios Pblicos de Sade, Agentes

    Comunitrios ligados a Organizaes No Governamentais, Agentes de Pastoral da Sade,

    e vrios atores sociais de cura popular e tradicional (como pais-de-santo, rezadeiras,

    parteiras, pajs) est presente. H tambm estudos sobre os grupos profissionais

    enfermeiras, odontologistas e sobre a formao, vislumbrando-se possveis pontes de

    debate com a Educao Permanente em Sade.

    Outra agrupao temtica diz respeito aos Movimentos Sociais. Encontramos

    estudos sobre os aspectos de sade do Movimento Sem Terra, de iniciativas locais e de

    extenso universitria. Da mesma forma comea a abordar-se o estudo de redes sociais

    solidrias.

    Esta diversidade temtica dos objetos de estudo aqui apresentando em grandes

    traos vai configurando, portanto, um campo de identidade intelectual comum marcado

    pela pluralidade e diversidade das abordagens, pela assuno de mltiplas identidades e

    identificaes tericas e metodolgicas mistas. Nos estudos encontramos a utilizao

    criativa de vrias vertentes tericas presentes na sade coletiva hoje: o pensamento

    marxiano, com a crtica ao capitalismo e a necessidade de sua superao; o pensamento

    deleuziano, com a anlise institucional e a esquizoanlise; o pensamento de filsofos como

    Spinoza, Brgson, Serres, Guattari e Benjamin; a pedagogia crtica freireiana; a

    espiritualidade explorada por Vasconcelos; o estudo sobre religiosidade popular e sade,

    uma das linhas de pesquisa de Victor Valla; as cincias da complexidade de Morin; a

    antropologia interpretativa de Geertz; a idia de inveno do cotidiano

    (tticas/estratgias) de Michel de Certeau; o estudo crtico sobre corpo e classes sociais

    (Boltanski) e sobre a relao entre normal e patolgico (Canguilhem); chegando at

    reflexes luz do pensamento epistemolgico do budismo e da poesia, dentre os principais.

    Revista APS, v.8, n.1, p. 49-60, jan./jun. 2005

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    Quem sabe possamos pensar que o eixo comum da Educao popular e Sade um

    projeto subjetivo (porque interiorizado e reconhecido como prioritrio e prprio) e

    intersubjetivo (partilhado nas iniciativas em redes), no qual conhecimento no se separa na

    postura diante das ordens poltica, tica e esttica. No aspecto poltico, vemos uma postura

    crtica injustia, desigualdade, ao neoliberalismo e ao capitalismo; no tico uma

    solidariedade com os excludos e marginalizados, um interesse em saber com a razo e o

    corao e de unir reflexo e pesquisa prtica social e militncia; e finalmente, no esttico,

    a conscincia da boniteza, ao dizer de Paulo Freire, como condio fundamental para

    uma experincia humana plena, transcendente e verdadeira.

    Consideraes finais

    A trajetria deste movimento social singular aqui descrita em grandes linhas e

    breves palavras, ultrapassa, em densidade humana e riqueza intelectual, a nossa capacidade

    de apreenso e anlise. Todo esse cabedal ser, com certeza, objeto de estudos mais

    cuidadosos, num futuro prximo. Isto no nos impede de apontar, desde j, o desafio posto

    pelos prprios passos, no caminho j trilhado.

    Hoje vale ainda mais a afirmao de Vasconcelos (2001b, p. 18-19) de que, apesar

    da razovel experincia sobre os caminhos de participao popular com base na

    metodologia da Educao Popular, continua o desafio de generalizar esta experincia. A

    proposta do autor que aqui endossamos de que tal generalizao passe principalmente

    pela formao de recursos humanos sob o mtodo da educao popular, capaz de escutar

    suas angstias, sua experincia prvia e sua vontade de superao das dificuldades,

    constitui talvez o desafio posto forma de organizao do prprio movimento, isto , da

    fluidez das relaes diretas e informais da rede.

    Esta uma dificuldade parcial, na medida em que o espontanesmo se contrape

    exigncia de uma prtica mais organizada, sistemtica, baseada numa comunicao de

    significados compartilhados tacitamente. As motivaes diversificadas e a pluralidade das

    profisses, experincias, concepes que compem a rede certamente requerem processos

    coletivos novos, capazes de dar respostas s complexas questes da generalizao da

    experincia. Tambm se deve considerar, como apontado no texto, as filiaes diversas

    dos profissionais de sade, aspecto importante quando se considera que est nas mos deles

    Revista APS, v.8, n.1, p. 49-60, jan./jun. 2005

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    o acesso experincia com a populao organizada e no organizada. O tecnicismo da

    formao e o carter normativo das aes de sade igualmente atuam de modo negativo,

    gerando uma atitude suspeita em relao teorizao, quase sempre dissociada,

    infelizmente, da prtica.

    At o momento, as experincias de educao popular e mesmo as reflexes

    acadmicas constituem um patrimnio intelectual disperso e alternativo. Assumir a tarefa

    de passar formulao de propostas de poltica implica superar, no sentido de negar

    conservando, a informalidade originria do movimento social, a saber, criar espaos para

    uma discusso mais aprofundada e sistemtica sem perder o ethos caracterstico da rede, a

    sua poiesis. Mas sempre se propondo a um saber-fazer associado prtica inovadora: por

    isso, indispensvel assinalar a necessidade de fortalecer os vnculos com os movimentos e

    prticas de sade da ANEPS.

    A inveno de novas formas organizativas e novos mtodos de trabalho , como

    vimos, uma exigncia do prprio desenvolvimento da EP&S como movimento social no

    perodo recente. Os processos adequados generalizao das experincias e reflexes aqui

    relatadas, transformando-as em proposies de polticas pblicas, esto, a nosso ver, j em

    curso. Numa primeira vertente esto aqueles relacionados aos encontros dos movimentos e

    prticas de sade que, em cada municpio, tomam forma na ANEPS. Por a fluem as

    possibilidades de uma teorizao vinculada prtica dos servios e dos movimentos

    sociais. Noutra vertente, surge o Grupo de Trabalho de Educao Popular e Sade da

    ABRASCO enquanto dinmica de interface entre a Rede e o ambiente da ps-graduao.

    Registre-se aqui a deciso do GT de apoiar e assessorar cursos de especializao e de

    atualizao, preocupando-se com os processos de formao de pessoal para o SUS

    vinculados vivncia dos profissionais de sade.3

    Em sntese: a EP&S precisa tomar para si o desafio da institucionalizao quem

    sabe sob a forma de um grupo academicamente mais slido em contato com a pulso da

    vida social nos meios populares. Os contornos do movimento chamando de EP&S podero

    ento adquirir novas formas, modeladas por novas artes, numa trajetria de horizontes

    abertos.

    Referncias

    Revista APS, v.8, n.1, p. 49-60, jan./jun. 2005

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    1 A ANEPS uma iniciativa conjunta da Rede de Educao Popular e Sade, Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Movimento de Reintegrao dos Atingidos por Hansenase (MORHAN), Federao das Executivas dos estudantes da Sade, Mulheres Camponesas (MMC), Projeto Sade e Alegria (GTA), Movimento Popular de Sade (MOPS). 2 Mensagem eletrnica enviada por Eymard Vasconcelos lista de discusso Submisso: Jan. 2005 Aprovao: maio 2005

    Revista APS, v.8, n.1, p. 49-60, jan./jun. 2005