educaÇÃo, poder e currÍculo
TRANSCRIPT
Volume 5, Número 5, Ano 5, Março 2012
Revista Pesquisa em Foco: Educação e Filosofia ISSN 1983-3946
103
EDUCAÇÃO, PODER E CURRÍCULO: Uma análise da relação entre escola, currículo
e dominação a partir de Michael Apple
Danielton Campos Melonio
RESUMO: Educação, poder e currículo: a relação entre escola, currículo e dominação. Trabalho de natureza
teórica que reflete, apoiado na filosofia da educação, sobre tal relação. Objetivo analisar a relação entre escola,
currículo e dominação, desenvolvendo uma argumentação a partir da teoria do curriculista Michael W. Apple.
Metodologicamente, desenvolvemos o trabalho seguindo o roteiro a seguir. Inicialmente, apresentamos a
categoria poder, a fim de definir o tipo de poder a qual estamos debatendo, que é a noção de poder a partir do
marxismo. Em seguida, analisamos a relação entre educação e poder, por meio do conceito de ideologia
apresentado por Marx e Engels. Num terceiro momento, investigamos a relação entre currículo e poder,
apresentando dados concretos que nos permitem pensar na relação entre o currículo escolar e a estratificação
social. Concluímos que escola tem como papel ampliar o desajustamento social além de contribuir para a
hegemonia ideológica dos grupos dominantes, e para realizar tal intento os capitalistas intervém nas escolas e no
currículo escolar para determinar quem ocupará as posições de trabalho mental ou manual. Assim, Apple nos faz
pensar que as escolas e o currículo escolar são instrumentos eficientes para o exercício do poder econômico,
auxiliando ideologicamente na dominação e controle social.
Palavras-chave: Currículo. Educação. Poder.
ABSTRACT: education, power and curriculum: the relationship between school, curriculum and domination.
Work of theoretical nature that reflects, supported in the philosophy of education, on such a relationship.
Analyzes the relationship between school, curriculum and domination, developing an argument from the theory
of Michael w. Apple. Methodologically, we developed the work following the roadmap below. Initially, we
present the power category, in order to define the kind of power which we are debating, which is the notion of
power from Marxism. Then we analyze the relationship between education and power, through the concept of
ideology by Marx and Engels. In a third time, we investigate the relationship between curriculum and power,
showing actual data that allow us to think about the relationship between the school curriculum and social
stratification. We found that school has as paper broaden the social gap and contribute to the ideological
hegemony of dominant groups, and to perform such intent capitalists intervenes in schools and in the school curriculum to determine who will occupy the positions of mental work or manual. So Apple makes us think that
schools and the school curriculum are efficient instruments for the exercise of economic power, assisting
ideologically in social control and domination.
Keywords: Curriculum. Education. Power.
1 INTRODUÇÃO
Quando geralmente ouvimos a palavra “currículo” logo pensamos em um
conjunto de conhecimentos organizados em forma de disciplinas que são transmitidos pelas
escolas. O currículo da Educação Infantil, Ensino Fundamental, Médio e Ensino Superior são
organizados de maneira sistemática, hierárquica e formal.
Se pensarmos em nível macro, o currículo da Educação Básica é organizado para
dar fundamentos para o aprofundamento de tais conhecimentos no Ensino superior, que por
sua vez prepara para a Pós-graduação. Em nível micro, as disciplinas de uma série do Ensino
104
Médio, por exemplo, são organizadas de forma curricular. Assim, a impressão inicial que se
tem sobre currículo é essa: conhecimentos organizados sistematicamente a fim de permitir os
avanços nos estudos.
Porém, a análise crítica sobre o currículo, empreendida por teóricos que se
debruçam sobre esse tema, nos faz perceber que o currículo é mais isso. Percebemos que a
organização curricular, apesar de sistemática, racional, hierárquica, científica, não é neutra. O
currículo pode estar a serviço de interesses de grupos e classes? O currículo pode servir para
dominação e o exercício de poder? A quem interessa o controle sobre as diretrizes
curriculares? Quem se beneficia com o controle sobre o currículo? Essas questões nos
indicam inicialmente que é necessário aprofundar a análise sobre o currículo.
Neste artigo objetivamos analisar a relação entre escola, currículo e dominação,
desenvolvendo uma argumentação a partir das reflexões de Michael W. Apple, nascido nos
Estados Unidos em 1942, que se dedica a estudar o currículo a partir de perspectiva crítica.
Para realizar essa tarefa seguiremos os seguintes passos. Primeiramente,
situaremos a categoria de poder, com objetivo de definir em que sentido utilizaremos essa
noção em nosso texto. Em seguida, apoiados em Apple, apresentaremos algumas reflexões
sobre a relação entre a escola e os interesses capitalistas, a partir do currículo.
2 EDUCAÇÃO E PODER
A palavra poder tem vários significados. “Ter a capacidade, ou direito, de poder
determinar algo”, “ter força, ou energia, ou calma, ou paciência para”, “ter possibilidade de,
ou autorização para”, “dispor de força ou autoridade” e “direito de deliberar, agir e mandar”,
são algumas das definições de poder segundo o Dicionário Aurélio da língua portuguesa.
Em áreas mais específicas essa mesma palavra ganha outros sentidos. No campo
da filosofia ou das ciências sociais, por exemplo, a palavra poder tem o seu sentido ampliado.
Bourdieu (2008), por exemplo, afirma que por meio da Ação Pedagógica se efetiva uma
violência simbólica, que é uma forma de exercício de poder de uma classe sobre outra, através
da educação.
Michel Foucault, por sua vez, acrescenta mais elementos sobre a noção de poder.
Segundo o autor o poder não é binário, isto é, que ocorre entre aquele que detém poder e
aquele que é dominado, mas o poder se exerce em rede. É preciso
105
[...] não tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo de
um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre outros, de uma classe sobre as
outras; mas ter bem presente que o poder – desde que não seja considerado de muito
longe – não é algo que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detêm
exclusivamente e aqueles que não o possuem e lhe são submetidos. O poder deve ser
analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia
[...]. O poder se exerce em rede. [...] o poder não se aplica aos indivíduos, passa por
eles (FOUCAULT, 1996, p. 183).
Além disso, vários outros campos definem o que significa poder. A política, a
Economia, a Comunicação, a Arte a Religião e o Senso comum definem poder de diversas
formas. No entanto, nossa intenção aqui não é fazer uma arqueologia dos vários sentidos da
palavra poder, mas buscar compreender de que forma o poder é exercido no ambiente
capitalista contemporâneo, a partir da leitura marxista. Com isso encontraremos subsídios
teóricos para compreender a relação entre educação, currículo e poder.
Em primeiro lugar, é necessário compreender o ambiente em que o pensamento de
Marx foi elaborado. A burguesia havia ocupado seu espaço econômico e político. A
Revolução Industrial e a Revolução Francesa prepararam o terreno fértil para o
desenvolvimento do capitalismo. As fábricas tornam-se o novo ambiente de produção. Cria-se
uma nova classe: o proletariado. Mas as condições de trabalho dessa classe no ambiente fabril
não eram melhores que antes. Longas jornadas de trabalho, condições insalubres, falta de
proteção legal aos trabalhadores (férias, salários dignos, aposentadoria), entre outros motivos,
fizeram alguns trabalhadores e intelectuais ligados a classe trabalhadora se revoltarem contra
essa situação. Aparecem as críticas às condições dos trabalhadores desferidas pelos
movimentos socialista, anarquista e comunista. É nesse ambiente, vividos por vários
trabalhadores dos séculos XVIII e XIX, que as ideias de Marx e Engels florescem.
Com o modelo fabril a pleno vapor, os burgueses passaram a produzir mais em
menos tempo, permitindo ampliar consideravelmente o seu lucro. Ao explorarem os
proletários nas fábricas os burgueses passam a exercer uma forma de poder, até então inédita:
a exploração do trabalho assalariado. O trabalhador passa a alienar o seu trabalho, isto é, o
fruto de seu trabalho deixa de lhe pertencer, pertencendo a outrem, o burguês. Nesse sentido,
o trabalho perde sua dimensão humanizadora – aquela que permite aos homens por meio do
trabalho superar as limitações da natureza e se libertar dos determinismos naturais – e torna-se
trabalho alienado, desumanizador. O trabalho se torna estranho ao homem, pois
o trabalho externo, em que o homem se aliena, é um trabalho de sacrifício de si
mesmo, de mortificação. Finalmente, a exterioridade do trabalho para o trabalhador
transparece no fato de que ele não é o seu trabalho, mas o de outro, no fato de que
106
não lhe pertence, de que no trabalho ele não pertence a si mesmo mas a outro
(MARX, 1993, p. 162).
Além disso, é possível afirmar que
[...] se ele [o homem] se relaciona com o produto do trabalho, com seu trabalho
objetivado, como um objeto estranho, hostil, poderoso, independente, relaciona-se
com ele de tal modo que outro homem estranho, inimigo, mas poderoso e independente, é o senhor deste objeto. Se ele se relaciona à própria atividade como
uma atividade não livre, então relaciona-se-lhe como à atividade ao serviço, sob o
domínio, a coerção e o jugo de outro homem (MARX, 1993, p. 167-168).
Assim, o modelo capitalista fabril produziu uma relação diferente entre os homens
e o trabalho, uma vez que o trabalho torna-se alienado. Por meio dessa relação de exploração
do trabalho é possível perceber como se exerce o poder a partir da leitura marxista: o poder
tem origem e é exercido especialmente nas relações de trabalho entre burguês e proletário. O
poder aqui é sinônimo de poder econômico, que determina uma relação de dominação por
meio do trabalho alienado.
Como toda dominação se origina nas relações econômicas, a superação dessa
dominação deve ocorrer inicialmente neste nível,
[...] uma vez que toda a servidão humana se encontra envolvida na relação do
trabalhador à produção e todos os tipos de servidão se manifestam exclusivamente
como modificações ou conseqüências da sobredita relação (MARX, 1993, p. 170).
Portanto, por meio do trabalho alienado a classe economicamente dominante
exerce poder e dominação sobre os trabalhadores, poder esse que se estende para outros níveis
da sociedade, para além das relações diretamente econômicas. A partir dessa análise é
possível definir a concepção de poder engendrada no seio da leitura marxista da realidade
social, a saber, o poder como exercício do poder econômico de uma classe sobre outra.
Contudo, como o próprio Marx nos faz perceber, o poder econômico não se
esgota em si mesmo. A classe dominante necessita criar mecanismos para dissimular tal
processo de dominação. Quando, de forma proposital, a classe dominante elabora uma visão
distorcida da realidade social, a fim de não permitir que a classe dominada veja com clareza
as relações de dominação a qual está sendo submetida, estamos diante das ideologias, no
sentido marxista.
Ao transmitir aos trabalhadores valores universais como “liberdade, igualdade e
fraternidade”, ou ao afirmar que “todos são iguais perante a lei”, ou que “Deus recompensará
aqueles que trabalharem duro”, ou ainda que “quem poupa irá enriquecer”, a classe dominante
107
não permite a classe oprimida perceber que isso não é de fato verdadeiro, aliás, não permite
perceber que isso vale apenas para os próprios dominantes, e que os dominados, através da
exploração do trabalho, só servem para manter todos os privilégios da classe dominante.
Numa passagem do livro A Revolução dos Bichos, em que a personagem Garganta
(um dos porcos que tomam a Granja do Solar) argumenta porque somente os porcos estão se
alimentando do leite e das maçãs produzidas na Granja dos Bichos, é possível ter uma noção
mais clara sobre o que é qual o papel da ideologia:
- Camaradas! - gritou. - Não imaginais, suponho, que nós, os porcos, fazemos isso
por espírito de egoísmo e privilégio. Muitos de nós até nem gostamos de leite e de
maçã. Eu, por exemplo, não gosto. Nosso único objetivo ao ingerir essas coisas é
preservar nossa saúde. O leite e a maçã (está provado pela Ciência, camaradas)
contêm substâncias absolutamente necessárias à saúde dos porcos. Nós, os porcos,
somos trabalhadores intelectuais. A organização e a direção desta granja repousam
sobre nós. Dia e noite velamos por vosso bem-estar. É por vossa causa que bebemos
aquele leite e comemos aquelas maçãs. Sabeis o que sucederia se os porcos
falhassem em sua missão? Jones voltaria! Jones voltaria! (ORWELL, 2004, p. 12).
Como se percebe na citação acima, quando a classe dominante precisa justificar o
injustificável – a opressão e a dominação – recorre a discursivos persuasivos e retóricos –
apoiado na ciência, na literatura, na música, na religião, no cinema, na televisão, etc. – para
dissimular a opressão a qual a classe oprimida está sendo submetida.
A classe que detém o poder econômico também possui o poder de elaborar as
ideias que circulam na realidade social. Ou nas palavras de Marx e Engels (2008, p. 48):
Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os
pensamentos dominantes; em outras palavras, a classe que é o poder material
dominante numa determinada sociedade é também o poder espiritual dominante. A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe também dos meios de
produção intelectual, de tal modo que o pensamento daqueles aos quais são negados
os meios de produção intelectual está submetido também à classe dominante.
Assim, a classe economicamente dominante exerce seu poder e dominação sem
que a classe oprimida perceba. Por meio das dissimulações e simulacros que circulam através
das ideologias dominantes, a dominação econômica se perpetua na sociedade capitalista, sem
que os oprimidos tenham chance de perceber e superar tal situação.
Outra forma da classe espoliadora exercer seu poder é por meio das instituições
sociais. Inicialmente é necessário perceber que Marx nos alerta que a sociedade é dividida em
dois níveis, denominados de infraestrutura e superestrutura. A infraestrutura é formada pelo
conjunto das relações de produção, enquanto a superestrutura é composta pelas relações
108
políticas, jurídicas e ideológicas (MARX, 1994, p.301). É necessário frisar que a
superestrutura é determinada pela infraestrutura, pois “[...] o modo de produção da vida
material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral”. Essa visão ficou
imortalizada na célebre passagem da obra Contribuição à crítica da economia política em ele
dispara: “Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu
ser social é que determina a sua consciência” (MARX, 1994, p. 301). Com efeito, as relações
de produção determinaram dialeticamente as relações sociais, por meio das instituições
sociais e das ideologias.
Na medida em que exercem o poder por meio das instituições, a classe dominante
cria para si duas instituições poderosas: o Estado e o Direito. Através dessas instituições a
burguesia controla as relações que extrapolam as relações do ambiente de trabalho. Sobre o
Estado Marx (2008, p. 74) declara: “O Estado não é outra coisa senão a forma de organização
que os burgueses dão a si mesmos por necessidade, para garantir reciprocamente sua
propriedade e os seus interesses”. Assim, o Estado burguês existe somente para garantir a
propriedade privada e os privilégios e interesses da classe dominante.
Na mesma linha crítica, Marx (2008) nos faz perceber que o Direito, reduzindo-se
a lei, também é uma maneira de garantir a propriedade privada e os privilégios da classe
dominante. Dessa forma, o Direito se torna uma instituição a serviço da classe dominante,
transformando em lei tudo aquilo que interessa para a manutenção da dominação econômica e
social, reduzindo o direito à lei; cabe lembrar que é a própria classe dominante que define o
que se tornará ou não lei.
O Positivismo jurídico – ideologia jurídica engendrada pelo próprio capitalismo –,
por exemplo, quando fala em Direito,
[...] refere-se a este último – e único – sistema de normas, para ele, válida, como se
ao pensamento e prática jurídicas interessasse apenas o que certos órgãos do poder
social (a classe e grupos dominantes ou, por elas, o Estado) impõem e rotulam como
Direito. É claro que vai nisto uma confusão, pois tal posicionamento equivale a
deduzir todo o Direito de certas normas que supostamente o exprimem, como quem
dissesse que açúcar “é” aquilo que achamos numa lata com a etiqueta açúcar, ainda
que um gaiato lá tenha colocado pó-de-arroz ou um perverso tenha enchido o
recipiente com arsênico (LYRA FILHO, 2001, p.30).
Com efeito, quem define o que é e o que não é direito, que se reduzirá ao que está
escrito na lei, é a própria classe dominante, por meios dos crivos legais criados no próprio
Estado por ela mesma. Assim, concordamos com Marx quando afirma que o Direito e o
109
Estado são instrumentos ideológicos da classe dominante para manter a dominação
funcionando, e assim exercer poder e controle sobre a classe oprimida.
Além da dominação institucional por meio do Estado e do Direito a classe
dominante precisa ampliar essa espoliação em um âmbito em que essa forma de domínio seja
mais sutil ainda: na escola. Por meio da educação escolar a classe dominante pode exercer o
controle social com maior eficácia, de forma dissimulada. Através dos currículos escolares e
dos professores a dominação pode se perpetuar de forma sutil. Quem desconfiaria que as
escolas e os professores podem está a serviço da dominação econômica?
Ademais, os capitalistas precisam de trabalhadores para operar as máquinas,
montar os produtos, transportar as matérias primas, vender os produtos nas lojas, decorar as
vitrines, empacotar as mercadorias vendidas nas lojas, etc., para que a mais-valia possa ser
produzida e ampliar o lucro deles. Assim, é necessário preparar tais trabalhadores para a
realização de suas funções no sistema produtivo. As escolas têm um papel estratégico nessa
tarefa. Com efeito, através delas é possível ensinar aquilo que os trabalhadores precisam saber
para o exercício de suas funções no mercado de trabalho.
No entanto, a classe dominante não pode deixar transparecer que usa as escolas
para esse fim escuso. Não pode deixar claro que muitas escolas existem apenas para preparar
os trabalhadores para ingressarem no mundo do trabalho e com isso serem explorados. É
preciso disfarçar, seja no currículo escolar, nas aulas e nas metodologias de ensino, a
verdadeira tarefa que muitas escolas têm que exercer: preparar o trabalhador para a
dominação econômica que será submetida no mundo do trabalho.
Com efeito, a classe e grupos dominantes utilizam-se ideologicamente das
instituições escolares como forma de mascarar e dissimular o poder e o controle a qual a
classe trabalhadora está sendo submetido. Muitas escolas ensinam o que interessa a classe
dominante, eis o que nos faz pensar Marx e as implicações ulteriores do marxismo.
Mas como isso ocorre de forma detalhada, uma vez que o pensamento marxiano
não se debruçou profundamente sobre o tema da educação? É sobre isso que iremos nos deter
a seguir.
3 Currículo e dominação
Apresentaremos aqui algumas reflexões que possam nos auxiliar a compreender
mais sobre a relação existente entre as escolas e o poder econômico, através do currículo.
Primeiramente, indicaremos em que perspectiva utilizaremos a categoria currículo neste
110
artigo. Em seguida, desenvolveremos uma análise sobre essa temática a partir das reflexões
desenvolvidas por um teórico estadunidense que se debruça sobre o tema currículo.
Para que possamos continuar nossa argumentação é necessário definir em que
perspectiva utilizaremos aqui a categoria currículo, e como ela se relaciona com o poder.
Poderíamos nos servir do termo currículo de diversas maneiras. Numa concepção
mais tradicional define-se currículo como “o conjunto de conteúdos a ensinar (organizado por
disciplinas, temas, áreas de estudo) e como o plano de acção pedagógica, fundamentado e
implementado num sistema tecnológico” (PACHECO, 2005, p. 30-1). Numa direção mais
técnica, currículo
[...] significa o conjunto de todas as experiências planificadas no âmbito da
escolarização dos alunos, vinculando-se a aprendizagem a planos que
predeterminam os resultados e valorizam os fundamentos de uma psicologia de
natureza comportamentalista (PACHECO, 2005, p. 33).
É possível compreender currículo também como
[...] o processo de construção, organização, desenvolvimento e avaliação dos
saberes, conhecimentos, habilidades, atitudes e valores socialmente admitidos e
construídos, os mesmos que se evidenciam no dia-a-dia da escola através das
práticas escolares cotidianas, dos processos cognitivos e práticas docentes, das
diversas formas de inter-relação e respeito mútuo (PAREDES, 2006, p. 136-137).
Dessa forma, percebe-se que o conceito de currículo é amplo, ambíguo e
complexo. Pode ser definido como um conjunto de conteúdos e disciplinas, um plano de
ações que objetiva chegar a determinados resultados ou mesmo como um conjunto de relações
que envolvem diversos elementos educacionais, tais como valores, habilidades, competências,
conteúdos, etc. Assim, devido à diversidade de perspectivas que envolvem o currículo, é
necessário definir a partir de que visão discutiremos essa categoria aqui neste artigo.
Doravante, neste texto, utilizaremos a categoria currículo numa perspectiva mais
específica. São basicamente três as possibilidades teóricas de se abordar o termo currículo: a
tradicional, a crítica e pós-crítica. Para ser coerente com a concepção marxista – que nos
servirá como pano de fundo para a análise de nosso problema – discorreremos sobre currículo
a partir da teoria crítica.
Por teoria crítica do currículo entendemos como aquela que, ancorada no
marxismo, analisa o currículo a partir das determinantes econômicas, compreendendo que
essas relações têm uma ligação com o currículo. Dessa forma, as mudanças econômicas no
âmbito do capitalismo influenciaram nas escolas e, por conseguinte, no currículo escolar.
111
Além disso, a teoria crítica defende o caráter revolucionário da escola, entendendo que
mesmo que a escola seja uma estrutura que auxilia na dominação pode, contraditoriamente,
servir também para o processo revolucionário.
Dentre os representantes da teoria crítica no campo do currículo podemos
destacar: Peter MacLaren (1948-), Henry Giroux (1943-) e Michael W. Apple (1942-). Neste
artigo optamos nos alicerçar nas reflexões feitas por este último, a fim de nos permitir
entender a relação existente entre currículo e poder.
3.1 Currículo como instrumento de dominação e controle de classe
No ambiente capitalista as escolas tem um papel estratégico, seja para permitir a
mobilidade social ou contraditoriamente para impedi-la. Uma vez que o sistema capitalista
utiliza o conceito de desajustamento para definir o lugar de cada um na sociedade, a escola
passa a ter um papel importante na definição de quem é ou não ajustado nessa mesma
estrutura social, observa Apple (1989).
As escolas, numa perspectiva ideológica capitalista, são vistas como instituições
que permitem a mobilidade social, por meio de uma ordem meritocrática, isto é, cada ocupa o
lugar que merece, e recebe a sua parcela de recompensa social de acordo com aquilo que lhe
cabe. Além disso, se o fracasso porventura ocorrer, ele é transferido para o indivíduo ou
grupo. O discurso ideológico desferido pelos dominantes que circula na sociedade é esse: se o
indivíduo é desajustado a culpa é dele, e por isso receberá o que merece, eis o que nos alerta
Apple (1989).
Ademais,
pode-se dizer aqui que o desajustamento é “merecido” pelo próprio desajustado,
uma vez que os currículos expresso e oculto, as relações sociais de sala de aula e as
categorias pelas quais os educadores organizam, avaliam e dão significado às
atividades encontradas na escola são percebidas como sendo basicamente neutros
(APPLE, 1989, p. 57).
Dessa maneira, percebemos o caráter ideológico do papel das escolas no
capitalismo, isto é, o de justificar o próprio desajustamento, fazendo parecer que as ações dos
docentes e os conteúdos escolares, orientados pelos currículos, não tem nenhuma relação com
o desajustamento dos indivíduos; aliás, fazem parecer que a culpa de tal desajuste social é
dele próprio.
112
Apple (1989, p. 58) observa que a afirmação que vivemos numa sociedade
meritocrática, em que cada um recebe o que merece por causa de seus méritos pessoas, é
ideológica, pois se vivêssemos de fato numa ordem desse tipo “esperaríamos que a relação
entre as notas nos testes escolares e o êxito na vida adulta aumentasse como o tempo, e que as
relações entre a origem familiar e o êxito adulto caísse”. Isso nos faz pensar que de fato não
há uma relação direta entre aqueles alunos que tiraram as melhores notas na escola com as
melhores ocupações na vida profissional.
Nem sempre o 1º lugar no vestibular ocupa uma boa posição no mundo do
trabalho, e tampouco os alunos com melhores notas na escola serão aqueles com os melhores
empregos e salários. E ainda, nem sempre aqueles que mais estudaram ocupam hoje as
melhores posições na sociedade.
Por exemplo, no caso do Brasil, um juiz de Direito – apenas com a graduação em
direito –, ganha bem mais do que um professor Doutor numa Universidade Pública (que para
alcançar esse patamar foram necessários, além da graduação, mais dois anos dedicados ao
Mestrado e mais quatro anos ao Doutorado, muita pesquisa e estudo).
A título de exemplo, segundo Tabela de Subsídios dos Juízes Federais de Primeiro
e Segundo Graus, em vigência desde 1º de fevereiro de 2010, um magistrado que ocupa o
cargo de Juiz dos Tribunais Regionais Federais recebe um subsídio de R$ 24.117,62 e um
Ministro do STF recebe R$ 26.723,131, enquanto um professor doutor na Universidade
Federal do Maranhão receberá inicialmente R$ 6.722,85, de acordo com Edital No. 126/2010
– PROEN, do Concurso Público para provimento de Concursos Públicos de Provas e Títulos
para Ingresso na Carreira do Magistério Superior, para Provimento de Cargo de Professor
Adjunto, Assistente e Auxiliar, em Regime de Dedicação Exclusiva2.
Por meio dessa ilustração percebe-se que não vivemos em uma ordem
meritocrática como se afirma comumente, pois se fosse assim nossa sociedade premiaria
aqueles que mais estudaram e isso, em geral, não é o que ocorre.
Estranhamente, parece até que em alguns casos ter estudado menos é motivo para
premiação – como, por exemplo, os bons salários pagos aqueles que possuem apenas o ensino
médio em empresas privadas como a Vale, em detrimento de baixos salários pagos a
professores com ensino superior concursados na rede pública de educação básica. Enquanto
um maquinista da Vale ganha em torno de R$ 3.000,00, um professor em início de carreira
1 Cf. http://www.jf.jus.br/cjf/gestao-pessoas/administracao-de.../tabelas-de.../file.
2 Cf. http://www.ufma.br/paginas/editais.php?cod=1844.
113
não ganha mais de R$ 1.481,20 – valor apresentado como vencimento para professor com
nível superior para ministrar aulas no Ensino Médio Regular, no Edital nº. 01/2009, aberto
pela SEDUC-MA, do Concurso Público para cargos de Professores da Educação Básica
(Ensino Fundamental, Ensino Médio Regular e Educação Especial).
Além disso, a análise empreendida por Apple (1989) nos faz perceber qual é o
papel das escolas no contexto capitalista. “Um dos papéis sociais latentes da escola é o de
„amplificação do desajustamento‟. Isto é, a escola naturalmente gera certos tipos de
desajustamento” (APPLE, 1989, p. 58). Além disso, Apple (1989, p. 58) nos alerta que
[...] as escolas, portanto, são também agentes no processo de criação e recriação de
uma cultura dominante eficaz. Elas ensinam normas, valores, disposições e uma
cultura, que contribuem para a hegemonia ideológica de grupos dominantes.
Portanto, mesmo que não seja uma tarefa explícita, cabe as escolas ampliar o
desajustamento social, colocando cada um em seu devido lugar; e ao transmitirem a visão de
mundo da classe dominante, as escolas auxiliam também na tarefa ideológica de justificação
da hegemonia da classe espoliadora.
Com efeito, a visão crítica do autor nos permite perceber que as escolas não são
exatamente instituições neutras que educam por meios de pressupostos pedagógicos
aparentemente científicos e racionais, transmitindo apenas conteúdos necessários para a
socialização e adaptação dos indivíduos na sociedade. As escolas também servem para criar e
perpetuar o desajustamento social, tarefa esse que ocorre de forma implícita, ideológica.
Ademais, Apple (1989) levanta uma questão sobre o conhecimento escolar: as
escolas apenas distribuem ou também produzem conhecimento?
Para responder a essa questão é necessário primeiro entender aspectos destacados
por duas teorias que se propõem explicar esse problema, a saber, a teoria do capital humano e
a teoria da alocação, explica Apple (1989).
A primeira teoria “afirma que as escolas são agentes importantes de crescimento
econômico e de mobilidade. As escolas maximizam a distribuição do conhecimento técnico e
administrativo entre a população”, permitindo a realização da mobilidade social, na medida
em que possibilita as pessoas ocuparem espaços melhores com os conhecimentos adquiridos
nas escolas (APPLE, 1989, p. 59). Assim, de acordo com a referida teoria, cabe às escolas
distribuir conhecimento para permitir mobilidade social e, portanto, serem recompensadas
ocupando melhores posições na sociedade.
114
A teoria da alocação, por sua vez, afirma que “as escolas não estão aí para
estimular a mobilidade generalizada. Ao invés disso, elas atuam basicamente como
mecanismos de classificação” (APPLE, 1989, p. 59). Isso ocorre uma vez que as escolas,
como afirmam os teóricos defensores desta teoria,
[...] distribuem os indivíduos pelos seus „lugares apropriados‟ dentro da divisão
hierárquica do trabalho e transmitem as disposições, normas e valores (através do
currículo oculto) necessários aos trabalhadores para sua participação eficaz no seu
lugar respectivo na escala ocupacional (APPLE, 1989, p. 59).
Com efeito, a teoria da alocação entende a escola como um ambiente em que os
indivíduos serão classificados e colocados em seus devidos lugares na ordem social. Essa
alocação não se dá forma explícita, mas de forma sub-reptícia, por meio das mensagens
ideológicas repassadas pelo currículo oculto.
Apesar de se dizer mais inclinado a concordar em parte com os teóricos da teoria
da alocação, Apple (1989) faz algumas observações sobre as duas posições teóricas. Ele
indica que as duas teorias concordam que as escolas são instituições que visam distribuir o
conhecimento. No entanto, Apple (1989) observa que as escolas são instituições que
produzem e não somente distribuem conhecimento.
Além disso, é preciso ver as escolas
[...] como aspectos do aparato produtivo da sociedade sob duas formas:
primeiramente, como instituições que ajudam a produzir agentes para posições fora
da escola, no setor econômico da sociedade; e em segundo lugar, como instituições
que produzem as formas culturais direta e indiretamente exigidas por esse mesmo
setor econômico (APPLE, 1989, p. 61).
Com efeito, segundo a argumentação do pensador crítico estadunidense, nem a
teoria do capital humano, e tampouco a da alocação, conseguem perceber o verdadeiro papel
da escola, isto é, como produtora de conhecimentos. Conhecimentos estes que serão
importantes para formar agentes que ocuparam espaços para além da escola, além de produzir
a cultura necessária para manter funcionando o setor econômico fora dos muros da escola.
Portanto, as escolas realizam uma tarefa estratégica para o setor econômico, porque é por
meio delas que o conhecimento escolar é produzido, auxiliando na manutenção da hegemonia
econômica e cultural da classe dominante.
Ademais, se pensarmos no conhecimento como um tipo de capital,
compreenderemos mais profundamente o papel das escolas no processo de produção do
conhecimento escolar, observa Apple (1989). Assim, “exatamente da mesma forma que as
115
instituições econômicas estão organizadas de modo que certas classes aumentem sua fatia do
capital econômico, as instituições culturais como a escola parecem fazer a mesma coisa”,
analisa Apple (1989, p. 61). Ele continua afirmando que “as escolas exercem um papel
fundamental, ao contribuir para a acumulação de capital cultural” (APPLE, 1989, p. 61).
Utilizando essa argumentação, é possível inferir que as escolas contribuem para o
processo de acumulação de capital, só que o capital que elas produzem e acumulam é o
conhecimento. Isso nos faz pensar que as escolas que tem mais capital (conhecimento)
acumulado são aquelas com mais poder cultural perante a sociedade.
Assim, podemos inferir que escolas conceituadas – como a USP em relação às
demais Universidades do Norte e Nordeste, por exemplo, ou a FGV em relação a uma
Faculdade de Administração particular no Maranhão – são aquelas que apresentam perante a
sociedade maior prestígio, pois, implicitamente, são aquelas que produzem e acumulam mais
capital em termos de conhecimento, e, portanto são vistas como mais conceituadas e
eficientes. No entanto, o acúmulo de maior capital também é um indício de que tal instituição
pode está servindo muito bem ao processo de acumulação capitalista em geral, contribuindo
dessa forma para a ampliação do desajustamento e da exploração do trabalho, pelo menos é
isso que a argumentação de Apple (1989) nos faz pensar.
Outra analogia interessante desenvolvida por Apple (1989, p. 62-63) é a seguinte:
Exatamente como no “mercado econômico”, em que é mais eficiente ter um nível
relativamente constante de desemprego (ou uma variação no seu nível, controlada
pelo estado ou pelo capital), ou seja, na realidade, gerá-lo de forma controlada, também as instituições culturais “naturalmente” geram o desajustamento e níveis
baixos de rendimento escolar. A distribuição ou a escassez de certas formas de
capital cultural é menos importante para o cálculo de valores produzidos por essa
formação cultural que a maximização da produção do conhecimento particular em
si.
Por conseguinte, assim como o mercado de trabalho precisa de um exército de
reserva de desempregados, as instituições escolares produzem e distribuem de forma
controlada os conhecimentos por ela engendrados. As escolas precisam maximinizar a
produção de conhecimentos, porém é necessário distribuí-los de forma controlada, para não
inundar o mercado com capital cultural abundante e “inflacionar” tal mercado com uma
enxurrada de conhecimentos. As escolas serão mais eficientes, perante o sistema produtivo, se
realizarem a seguinte tarefa: aumentar a produção do conhecimento e distribuí-lo de forma
controlada, a fim de evitar uma desvalorização do capital (conhecimento) que elas produzem,
tornando tal capital mais valioso, eis o que nos permite pensar Apple (1989).
116
Uma maneira de perceber essa forma de controle sobre a distribuição do
conhecimento é por meio de avaliações e exames a que alguns estudantes são submetidos ao
final de um curso superior. O Exame da Ordem dos Advogados do Brasil é um exemplo disso.
Uma análise crítica pode nos mostrar alguns aspectos implícitos desse Exame.
Para garantir que o mercado de trabalho dos advogados não seja “inflacionado”
com um volume grande de profissionais formados a todo ano, é necessário controlar quantos e
quais profissionais entrarão definitivamente para esse clube seleto de profissionais. A
manutenção dos altos salários e dos pomposos honorários advocatícios depende do controle
da quantidade e qualidade dos profissionais existentes no mercado.
Só como exemplo, para que um advogado possa cobrar, no mínimo, R$ 900,00
para elaborar um Mandado de Segurança mais 10% do proveito, R$ 5.400,00 para realizar
pedido e acompanhamento de recuperação judicial de empresa mais 5% do valor passivo; de
10% a 20% sobre o valor do bem numa ação de desapropriação cobrando minimamente R$
2.800,00, além de poder cobrar para defesa e acompanhamento da instrução, contrariedade ao
libelo e defesa em plenário (completa) de processo no Tribunal do Júri o valor mínimo de R$
6.000,00 (segundo fonte da Tabela de Honorários da OAB-MA), é necessário controlar a
quantidade de profissionais que entram no mercado. Um mercado de trabalho inflacionado,
com uma quantidade excessiva de profissionais, implicaria numa diminuição do valor dessa
mercadoria produzida pelas escolas, neste caso o advogado. As universidades e Faculdades,
em conjunto com a OAB, realizam esse controle tanto da produção quanto da distribuição
desse conhecimento jurídico, são inferências possíveis a partir das reflexões de Apple (1989).
Com efeito, Apple (1989, p. 63) nos faz perceber que as escolas “não atuam
„meramente‟ como mecanismos de distribuição de um currículo oculto e de distribuição das
pessoas pelos seus lugares „apropriados‟ fora delas. Elas são elementos importantes no modo
de produção de mercadorias da sociedade”. Assim, as escolas produzem mercadorias, e
quanto mais valiosas elas foram maior será o valor dessas instituições perante o sistema de
acumulação do capital.
Se pensarmos nos egressos das escolas como mercadorias, entenderemos porque
algumas mercadorias são consideradas mais valiosas que outras no contexto capitalista.
Atualmente uma mercadoria muito valiosa produzida pelas escolas é o
conhecimento técnico e tecnológico, observa Apple (1989), extremamente útil ao sistema
produtivo hodierno. Quem domina tal conhecimento deterá poder para acumular mais capital.
Assim as escolas produzem esse conhecimento desejado pelas empresas capitalistas, pois
117
o conhecimento técnico não é necessariamente uma mercadoria neutra numa
economia capitalista. Isso é particularmente importante, uma vez que está se
tornando crescentemente claro que há uma monopolização quase total do
conhecimento técnico e da inteligência tecnológica por parte das empresas
capitalistas (APPLE, 1989, p. 63).
Por conseguinte, as escolas se tornam necessárias à medida que produzem
mercadorias úteis ao sistema produtivo. Uma universidade que forma Filósofos produz uma
mercadoria menos valiosa (ou até mesmo inútil) do que aquela que produz analistas de
sistema ou administradores, pelo menos é assim que pensam os capitalistas.
Uma maneira de avaliar se as mercadorias produzidas pelas escolas são valiosas
perante o mercado é analisar o grau de interesse dos estudantes em relação a determinado
curso superior, por exemplo. Os cursos de medicina, Direito e Administração ainda são os
mais procurados. São vários os motivos para que isso ocorra, no entanto acreditamos que um
dos mais determinantes é a remuneração e o status social dos profissionais egressos desses
cursos.
O curso de direito, atualmente, é uma dos mais atrativos, devido os altos salários
pagos para a carreira jurídica. Segundo dados do CESPE/UNB3, no Concurso Público para
Provimento de Cargos de Juiz do Trabalho Substituto do Tribunal Regional do Trabalho da
Primeira Região – 2010 foram 3095 inscritos para 23 vagas, implicando numa relação
candidato/vaga de 134,57 candidatos por vaga. Num Concurso Público para Provimento de
Cargos e Formação de Cadastro de Reserva para Carreiras de Analista e Técnico do MPU –
2010 a demanda para o cargo de Analista Processual, que exige apenas nível superior, foi de
1.716 inscritos no Maranhão enquanto no Distrito Federal chegou a 33.721.
Quando o assunto é remuneração os concursos da área jurídica são os mais
cobiçados. No Concurso Público promovido pelo TJDFT, de 18 de dezembro de 2007, para
Provimento de Vagas para Formação de Cadastro de Reserva nos cargos de Analista
Judiciário e de Técnico Judiciário os salários são bem atraentes. Neste certame o cargo de
Analista judiciário, que exige apenas que o candidato possua graduação em Direito, oferece
uma remuneração inicial de R$ 5.484,08, e para cargos de exigem apenas o Ensino Médio a
remuneração média é de R$ 3.323,52, segundo dados do CESPE/UNB.
Portanto, o profissional na área do direito ainda é uma mercadoria valiosa e as
escolas que os preparam também gozam de prestígio perante a sociedade, afinal de contas
estas escolas estão preparando aqueles que irão exercer funções administrativas estratégicas
para a acumulação do capital.
3 Cf. http://www.cespe.unb.br/concursos/ .
118
Ainda seguindo a orientação de Apple (1989), observa se que à medida que o
desenvolvimento da indústria vinculava-se a divisão do trabalho, ao controle do trabalho e as
inovações técnicas, foi cada vez mais necessário garantir o maior controle na produção do
capital cultural, para permitir maior controle do capital econômico. Assim, foi preciso uma
maior intervenção, em geral por meio do Estado, da classe dominante nas instituições
responsáveis pela produção cultural, em especial as escolas, e particularmente as
universidades (APPLE, 1989).
É por isso que os currículos das escolas, especialmente das universidades, parece
está organizado a fim de permitir mais acumulação do capital por parte das empresas
capitalistas, do que criar possibilidades para que se questione essa estrutura de exploração.
Isso é mais perceptível quando compreendemos que as escolas ajudam a manter a
distinção entre trabalho manual e mental, nos alerta Apple (1989). “Aqueles estudantes que
são identificados como sendo capazes de produzir [...] importantes quantidades de
conhecimento técnico/administrativo são progressivamente „colocados‟ no lado mental dessa
dicotomia” (APPLE, 1989, p.66).
Isso nos faz pensar que os estudantes com melhor poder aquisitivo, advindo de
famílias bem colocadas na sociedade, serão identificados como aqueles que devem realizar o
trabalho mental e, portanto, ocupar as melhores posições no mercado de trabalho. Estudantes
filhos de médicos, ou de juízes e advogados, com bom posicionamento social, por exemplo,
dificilmente serão classificados como “destinados” a exercer o trabalho manual. As escolas e
o currículo escolar apenas irão justificar essa divisão social, classificando e “destinando”
esses estudantes para exercer o lado mental da dicotomia entre trabalho manual e mental.
Por outro lado, observa Apple (1989, p. 66),
aqueles [estudantes] que rejeitam ou são rejeitados por esse cálculo particular de
valores são “colocados”, outra vez através dos programas curriculares e da
orientação educacional da escola, numa trajetória que permite que posteriormente
lhes seja extraído trabalho excedente sob a forma de serviço e/ou de trabalho
manual.
Com efeito, estudantes oriundas da classe trabalhadora geralmente serão
classificados como apropriados para o trabalho manual. A escola e o currículo se dedicaram a
ajustar esse indivíduo no lugar a que está destinado na estrutura social capitalista, ou seja, a
aprender o necessário para a realização do trabalho manual, enquanto outros se encarregarão
de elaborar o trabalho mental.
119
Por meio dessa divisão, a escola classifica e coloca os indivíduos em seus
“devidos” lugares. Existem aqueles que estarão aptos ao trabalho manual – que serão
explorados mais avidamente pelo sistema produtivo – e aqueles que produzirão as teorias,
ideias e planejamento que ajudarão a manter funcionando o sistema de exploração do trabalho
– que ocuparão posições privilegiadas na hierarquia social e no mercado de trabalho, e serão
mais bem recompensados.
Acentuar e manter essa divisão, segundo Apple (1989), é uma tarefa importante
das escolas capitalistas, pois ajudam a produzir mão-de-obra que realizará trabalho manual –
pois não são capazes de contribuir com a produção de conhecimento técnico/administrativo –,
e por isso serão considerados desajustados, devendo ocupar esse determinado lugar na
hierarquia social.
Por outro lado, essa divisão promove a criação de “experts”, que “ajudam a
legitimar a subordinação do trabalhador ao capital, ao fazer parecer natural que os
trabalhadores sejam incapazes de eles mesmos organizarem a produção” (WRIGTH apud
APPLE, 1989, p.66). Além disso, os experts realizam uma função ideológica importante,
salienta Apple (1989), pois auxiliam a justificar a divisão do trabalho mental e manual,
impedindo que os trabalhadores manuais compreendam o funcionamento integral do sistema
de produção.
Por conseguinte, os trabalhadores dificilmente encontram na escola
conhecimentos necessários para romper com o processo de exploração. Pois, como observa
Apple (1989, p. 66),
por causa da divisão generalizada entre trabalho mental e trabalho manual, os
trabalhadores geralmente acabam por ser privados do conhecimento necessário tanto
para compreender quanto para dirigir aspectos importantes do processo de produção.
Não é à toa que as empresas capitalistas compreendem a força ambígua exercida
pelas escolas: ao mesmo tempo em que legitimam a divisão entre trabalho mental e manual,
as escolas e o currículo escolar podem permitir romper com essa divisão . Em função disso, é
necessário manter um controle rígido sobre as escolas e o currículo escolar, pensam os donos
do capital.
Dessa maneira, os capitalistas precisam intervir e controlar a escola e o currículo
escolar, para permitir o acúmulo de capital e evitar que os trabalhadores possam reverter esse
processo. Uma das formas mais eficientes de exercer esse controle é por meio do Estado.
120
Para que as empresas capitalistas funcionem corretamente, é necessário garantir
que o conhecimento que circula na sociedade seja canalizado para a produção, formando mão-
de-obra especializada para ocupar cargos nestas empresas. Controlar, determinar e influenciar
o tipo de conhecimento que será produzido nas e pelas escolas é uma tarefa estratégica para
permitir a acumulação do capital de maneira eficiente. Com efeito, criar meios para exercer
esse controle é uma tarefa fundamental para o sistema de acumulação. Ou como nos alerta
Apple (1989, p. 68):
uma vez que se tem tornado cada vez mais difícil para as empresas individuais
garantir um fluxo de conhecimento técnico e de pessoal tecnicamente especializado
assim como pessoal semiqualificado, o aparelho educacional do estado, através de
suas políticas e prioridades curriculares, de programas de testes e de financiamento,
assume um papel imprescindível.
Por conseguinte, a classe dominante usa o aparato educacional estatal para poder
controlar o fluxo de conhecimentos que circularam nas escolas, a fim de garantir que os
interesses capitalistas sejam cumpridos. A interferência curricular é uma das maneiras disso
ocorrer. Na medida em que os interesses do capital se modificam as interferências no sistema
educacional também ocorrem. Programas governamentais para educação (como o Programa
Ensino Médio Inovador do Governo Federal em parceria com o SESC), sistemas de avaliação
nacional (ENEN, ENADE, etc.) ou mesmo inserções tecnológicas na escola (como os
Programas PROINFO ou Programas de Inclusão Digital), trazem, também, ideologicamente
em seu bojo diretrizes que interessam as empresas capitalistas.
Como seria muito caro para essas companhias investirem individual e diretamente
na produção do conhecimento que necessitam utilizam-se do Estado para cumprir essa tarefa
para elas. No entanto, o gasto com a educação é dividida com toda a sociedade enquanto o
lucro fica apenas com as empresas. Nas palavras de Apple (1989, p. 69), o que ocorre nesse
caso é “a socialização dos custos e a privatização dos lucros”.
Além dos grandes capitalistas, a “nova pequena burguesia”, devido à sua
influência crescente no mercado, também se utiliza da escola para produzir o conhecimento
técnico/administrativo que necessita, observa Apple (1989, p. 69). Dessa forma, a escola
acaba por realizar duas tarefas: “aumentar sua própria legitimidade perante esse importante
segmento de classe” e “permite que esse mesmo segmento de classe use o aparato educacional
para reproduzir a si mesmo” (APPLE, 1989, 69). Assim, por meio da dessa tarefa realizada
pela escola em favor da nova pequena burguesia são formados trabalhadores para ocupar
funções importantes para este seguimento social, fazendo com que ele tenha um olhar positivo
121
sobre as instituições escolares ao mesmo tempo em que permite que as escolas sejam
utilizadas para reprodução dos interesses dessa classe.
Portanto, seja pelos grandes capitalistas ou pela pequena burguesia, a escola é
utilizada frequentemente para produzir conhecimentos necessários à acumulação do capital.
Cumpre observar também que as formas de intervenção dos capitalistas no
sistema educacional são diversas. Essas intervenções, segundo Apple (1989, p. 70),
incluem a ênfase na educação baseada na “competência”, instrução sistêmica,
educação profissionalizante, futurismo, [...] financiamento continuado e prioritário
para o desenvolvimento de currículos de matemática e ciências, programas nacionais
de testes, faculdades e institutos técnicos comunitários (mais curtos e de menor prestígio), e assim por diante.
Com efeito, ao dar maior ênfase na educação por “competências”, na educação
profissionalizante e nos conhecimentos de matemática e ciências, as empresas capitalistas, por
meio da intervenção curricular, usam as escolas para reproduzir os seus interesses e formar
trabalhadores ajustados para ocupar as posições necessárias ao bom funcionamento do sistema
econômico.
Assim, quando o Estado autoriza a criação de mais institutos técnicos e
tecnológicos, com cursos de curta duração (um curso de tecnólogo dura 24 meses em
faculdades particulares, e existem diversas opções no mercado como Gestão de Negócios,
Gestão Ambiental, Design de Interiores, Gastronomia, Cosmetologia, Moda, Siderurgia, etc.),
e promove programas nacionais de avaliação do desempenho dos estudantes (ENEM,
ENADE) ou de instituições de Ensino (SINAES, SAEB), é um grande indicativo da
intervenção dos interesses capitalistas no sistema educacional. Essas intervenções visam
atingir os interesses econômicos dos capitalistas, permitindo que o controle sobre a
acumulação do capital fique apenas nas mãos dos donos do capital, que se utilizam da escola
para auxiliar nessa tarefa.
Dessa forma, por meio das intervenções diretas do Estado no sistema educacional
os interesses capitalistas são inseridos indiretamente. Por trás de uma aparente capa de
racionalidade técnico-burocrática do Estado, através de ações das políticas públicas para a
educação, com ênfase na definição de diretrizes curriculares, os interesses dos dominantes se
propagam, difundindo ideologicamente as diferenças e divisões sociais, aprofundando o
abismo social entre os mais ricos e os mais pobres. E o controle dessa mobilidade na
sociedade se dá por meio da escola, que produz e distribui os conhecimentos necessários para
tornar os indivíduos ajustados ou desajustados para fazer o sistema econômico funcionar.
122
Enfim, Apple (1989), apesar de viver em um ambiente distinto do nosso – os
Estados Unidos –, nos faz refletir sobre a relação entre o currículo, as escolas e o poder. A
partir de suas análises é possível perceber o quanto o poder econômico capitalista influencia
nas escolas e no currículo. Com o objetivo velado de produzir conhecimentos para ampliar o
desajustamento, as escolas no contexto capitalista são instrumentos eficazes para a
perpetuação da dominação e da estratificação social.
4 CONCLUSÃO
Pelo exposto, percebemos que as relações de poder ocorrem de diversas formas.
No capitalismo, segundo a visão marxista, o poder é exercido pela classe economicamente
dominante, que por meio da exploração do trabalho assalariado perpetua a dominação sobre a
classe trabalhadora. Para realizar essa dominação e exercer esse poder a classe espoliadora se
utiliza de diversos instrumentos ideológicos, tais como o direito, a política, arte, etc.. Porém,
dentre estes instrumentos nos interessou aqui compreender o papel da escola como
mecanismo para justificar e perpetuar a dominação econômica.
Para compreender mais profundamente o quanto as escolas subsidiam essa tarefa
de dominação Michael W. Apple (1989) nos fez perceber a relação entre as escolas, o
currículo e poder econômico. Primeiramente, ele afirma que a escola tem como papel ampliar
o desajustamento social além de contribuírem para a hegemonia ideológica dos grupos
dominantes. Ademais, nos fez compreender que as escolas não são meras reprodutoras de
conhecimentos ou distribuidoras de posições sociais: as escolas também produzem
conhecimento.
O conhecimento produzido pelas escolas é o “capital” acumulado por elas.
Produzir e distribuir de forma controlada esse “capital” é uma das tarefas das escolas para
auxiliar na acumulação de capital econômico. Os capitalistas intervêm nas escolas e no
currículo escolar para determinar quem ocupará as posições de trabalho mental ou manual.
Além disso, a interferência dos interesses capitalistas nas escolas e no currículo
ocorre por meio do Estado, pois por intermédio dele as empresas capitalistas podem conseguir
que seus interesses sejam realizados, investindo muito pouco individualmente: a classe
dominante socializa os custos com toda a sociedade mas fica sozinha com os lucros desse
processo.
123
Portanto, as escolas e o currículo escolar são instrumentos eficientes para o
exercício do poder econômico, auxiliando ideologicamente no processo de dominação e
controle social, eis o que nos faz concluir Apple (1989).
No entanto, ficam aqui algumas questões: Esse é o único papel desempenhado
pela escola? É possível que as escolas e o currículo sejam espaços também de luta e
resistência? O currículo escolar pode permitir a superação da dominação a que estão
submetidos os trabalhadores?
As reflexões apresentadas por Apple (1989) nos fazem compreender que as
escolas e o currículo também podem instrumentos para a resistência. Para que isso ocorra é
necessário utilizar o sistema educacional opressivo contra ele mesmo. Ao utilizarmos as
brechas do currículo expresso e, ao mesmo tempo, produzirmos um currículo oculto, seja na
escola ou fora dela (no ambiente de trabalho), os trabalhadores considerados desajustados
pelo sistema podem resistir ao processo de opressão e dominação econômica.
E segundo Apple, a “ação educacional” realizada pelos professores é
extremamente importante para a resistência. Os professores, ao compreenderem mais
claramente os aspectos estruturais que norteiam seu trabalho, podem resistir mais às formas
ideológicas de dominação. Professores alienados, sem compreender os aspectos ocultos que
envolvem seu trabalho, são peças úteis para que as escolas e o currículo escolar possam
realizar a tarefa de dominação apontada por Apple (1989) neste texto.
Assim, a resistência dos professores é um primeiro passo para que a resistência na
escola possa se espalhar para diversas esferas da vida social, e o currículo é um elemento
fundamental dessa luta, pois é por meio dele que os conhecimentos circulam na sociedade
através da escola. Compreender os aspectos estruturais que compõem o currículo, sejam
expressos ou ocultos, é uma tarefa necessária para o professor poder lutar, utilizando as armas
do opressor contra a própria opressão, desvelando os elementos ideológicos que envolvem o
currículo. Se os professores compreenderem criticamente o currículo, a escola talvez deixe de
ser apenas um local de opressão e passe a ser um ambiente também luta e resistência.
124
REFERÊNCIAS
APPLE, Michael W. Educação e poder. Trad. de Maria Cristina Monteiro. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1989.
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. “Fundamentos de uma teoria da violência
simbólica”. In: ______. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino.
Trad. de Reynaldo Baião. Petrópolis: Vozes, 2008.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1996.
LYRA FILHO, R. O que é direito. São Paulo: Brasiliense, 2001 (Coleção Primeiros Passos).
MARX, K. ENGELS, F. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, 1994, v. 1.
MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. Lisboa-Portugal: Edições 70, 1993.
MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
ORWELL, G. A revolução dos bichos. São Paulo: Editora Globo, 2000.
PACHECO, José Augusto. Escritos curriculares. São Paulo: Cortez, 2005.
PAREDES, José Bolívar Burbano. “Educação, reflexividade e diversidade cultural: desafios
na formação de professores”. In: VASCONCELOS, José Geraldo & SOUSA, Antônio
Paulino (orgs.). Educação, política e modernidade. Fortaleza: Edições UFC, 2006.
TORRES SANTOMÉ, Jurjo. A educação em tempos de neoliberalismo. Trad. Claudia
Schiling. Porto Alegre: Artmed, 2003.