educaÇÃo, liberdade e polÍtica na reflexÃo … · artigo, que trabalha a educação, a...

13
1 Eixo: 03 Marxismo e Educação EDUCAÇÃO, LIBERDADE E POLÍTICA NA REFLEXÃO MARXIANA Ariovaldo de Oliveira Santos (UEL) 1 Francieli Araujo (UTFPR) 2 Resumo: O avanço das políticas identificadas como neoliberais fomentou uma leitura essencialmente pragmática a respeito da educação. Neste sentido, sua finalidade foi convertida quase que exclusivamente à necessidade de atender às exigências das transformações econômicas em curso, para o que se passou a requisitar, em diversos ramos de atividade, de um trabalhador polivalente ou mais reativo às situações. Contrapondo-se a esta perspectiva, o artigo desenvolvido procura resgatar o debate da educação não como instrumento para o mercado de trabalho e sim como mediação necessária no processo de constituição de seres sociais que, avançando para além da polivalência ou politécnia, realizem individual e coletivamente a omnilateralidade humana. Neste sentido, adota como referencial reflexões contidas na obra marxiana e engelsiana, às quais foram posteriormente reapropriadas por marxistas como V. I. Lênin ou Antonio Gramsci. Contudo, a perspectiva aqui seguida é de compreender a educação como processo mais amplo do que aquele que se efetiva dentro de instituições especificamente voltadas a esta tarefa, como é o caso das escolas. Busca-se, ao longo do artigo, que trabalha a educação, a liberdade e a política como categorias, apontar para que a educação é um processo mais amplo, que envolve a totalidade do ser social e que atua no sentido de distanciá-lo cada vez mais dos outros seres, orgânicos e inorgânicos. O artigo opera com a hipótese de que educação, liberdade e política não podem ser dissociadas na obra marxiana e engelsiana, amarrando-se a um determinado projeto que é o de construção do embate, nas condições capitalistas de produção, à própria sociabilidade burguesa. Em seu conjunto, a obra marxiana e engelsiana apresentam-se coerentes neste sentido. Contudo, escapa à finalidade do artigo analisar as condições concretas nas quais se dá a relação educação-liberdade-política, resguardando-se o estudo a apresentar apenas alguns elementos neste sentido. O caminho adotado visa resgatar a necessidade de pensar a educação para além do pensamento único na qual cada vez mais é encerrado o debate e no qual se perde de vista que educação é uma manifestação do ser social muito mais ampla do que uma formação para desempenhar determinada função produtiva. Palavras-chave: Educação; Liberdade; Política; Luta de Classes; Emancipação Social. 1 Ariovaldo de Oliveira Santos, Universidade Estadual de Londrina, Paraná, Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Francieli Araujo, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Paraná, Brasil. E-mail: [email protected]

Upload: phungnhan

Post on 13-Dec-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

1

Eixo: 03 – Marxismo e Educação

EDUCAÇÃO, LIBERDADE E POLÍTICA NA REFLEXÃO

MARXIANA

Ariovaldo de Oliveira Santos (UEL)1

Francieli Araujo (UTFPR)2

Resumo: O avanço das políticas identificadas como neoliberais fomentou uma leitura

essencialmente pragmática a respeito da educação. Neste sentido, sua finalidade foi

convertida quase que exclusivamente à necessidade de atender às exigências das

transformações econômicas em curso, para o que se passou a requisitar, em diversos

ramos de atividade, de um trabalhador polivalente ou mais reativo às situações.

Contrapondo-se a esta perspectiva, o artigo desenvolvido procura resgatar o debate da

educação não como instrumento para o mercado de trabalho e sim como mediação

necessária no processo de constituição de seres sociais que, avançando para além da

polivalência ou politécnia, realizem individual e coletivamente a omnilateralidade

humana. Neste sentido, adota como referencial reflexões contidas na obra marxiana e

engelsiana, às quais foram posteriormente reapropriadas por marxistas como V. I. Lênin

ou Antonio Gramsci. Contudo, a perspectiva aqui seguida é de compreender a educação

como processo mais amplo do que aquele que se efetiva dentro de instituições

especificamente voltadas a esta tarefa, como é o caso das escolas. Busca-se, ao longo do

artigo, que trabalha a educação, a liberdade e a política como categorias, apontar para

que a educação é um processo mais amplo, que envolve a totalidade do ser social e que

atua no sentido de distanciá-lo cada vez mais dos outros seres, orgânicos e inorgânicos.

O artigo opera com a hipótese de que educação, liberdade e política não podem ser

dissociadas na obra marxiana e engelsiana, amarrando-se a um determinado projeto que

é o de construção do embate, nas condições capitalistas de produção, à própria

sociabilidade burguesa. Em seu conjunto, a obra marxiana e engelsiana apresentam-se

coerentes neste sentido. Contudo, escapa à finalidade do artigo analisar as condições

concretas nas quais se dá a relação educação-liberdade-política, resguardando-se o

estudo a apresentar apenas alguns elementos neste sentido. O caminho adotado visa

resgatar a necessidade de pensar a educação para além do pensamento único na qual

cada vez mais é encerrado o debate e no qual se perde de vista que educação é uma

manifestação do ser social muito mais ampla do que uma formação para desempenhar

determinada função produtiva.

Palavras-chave: Educação; Liberdade; Política; Luta de Classes; Emancipação Social.

1Ariovaldo de Oliveira Santos, Universidade Estadual de Londrina, Paraná, Brasil. E-mail:

[email protected]. 2Francieli Araujo, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Paraná, Brasil. E-mail: [email protected]

2

Introdução

Desenvolveu-se, nos últimos anos, no plano mundial, a compreensão, fomentada

por organismos internacionais e midiáticos, de que a educação é a formação para se

conseguir um espaço no mercado de trabalho, atendendo às necessidades postas e

repostas pela sociabilidade capitalista e, se possível, garantindo conquistas sociais que

reafirmem os princípios da cidadania. Esta perspectiva foi fortemente abraçada pelos

defensores do ideário neoliberal, encontrando repercussões mesmo entre aqueles que

aparentemente se colocam contrários a este tipo de leitura, o que pode ser verificado,

também no plano mundial, na discussão envolvendo “trabalho decente”.

Ao lado desta maneira de apreender o problema, apresenta-se outra, igualmente

problemática, que busca ler a educação a partir da existência de uma instituição

particular voltada à finalidade da socialização, isto é, a escola. Por este caminho, não

apenas a compreensão do papel social da educação fica mutilada em sua amplitude,

como também as análises, na forma como se apresentam, conduz a um certo engano de

que a educação é produto da sociedade capitalista.

Este artigo caminha no sentido oposto. Sua finalidade é a de abordar a educação

como um processo mais amplo que ocorre entre o ser social e as condições objetivas nas

quais se encontra, o que conduz à necessidade de estabelecimento de relações sociais de

produção com outros homens. Para isto recorre-se à leitura da educação, sua vinculação

com a questão da liberdade, e a conquista de ambas via práxis política, recorrendo ao

referencial marxiano e engelsiano de tratamento do problema.

Desenvolvimento

Considerações iniciais feitas, convém ressaltar, de início, que é frequente na

literatura o estabelecimento de uma íntima ligação entre educação e formação escolar.

Neste sentido, o processo educativo estaria dado, essencialmente, pela presença de uma

determinada instituição, encarregada de transmitir às gerações mais novas os

conhecimentos sistematizados e reconhecidos como socialmente válidos por uma

determinada sociedade. Através deste processo estariam dadas as condições gerais para

3

que todo e qualquer indivíduo estivesse em condições de participar de uma determinada

estrutura social.

Esta leitura se acentua quando se tem em consideração que a instituição escolar

ganha cada vez mais espaço na transição da Idade Média para o mundo moderno ou,

mais precisamente, na passagem do modo de produção feudal para o modo de produção

capitalista. Neste trânsito, ao lado da transmissão geral e sistematizada de

conhecimentos, voltados essencialmente aos membros de uma determinada classe

social, conviveu com o processo educativo a implementação de mecanismos de

disciplinarização social, mediante o qual os valores hierarquizados da sociedade

pudessem ser solidificados.

Contudo, focar neste tipo de leitura, ainda que ele contenha elementos

importantes para a compreensão do processo educativo, torna-se limitado uma vez que,

restaria a seguinte pergunta: se a educação está ligada à existência de uma determinada

instituição, no caso, a escola, e se inicialmente esta vinculação está direcionada a

estabelecer um processo que atua essencialmente e inicialmente sobre os filhos da classe

dominante, isto significa que não houve educação em outros tempos históricos ou houve

debilmente naquelas sociedades nas quais a escola não tivesse comparecido mediação

institucionalizada pela sociedade?

Romper com esta leitura e, mesmo com a ideia do “aluno como invenção”,

pressupõe uma reflexão mais abrangente do que é educação e o processo educativo. É

somente caminhando dentro de outra perspectiva que os problemas inicialmente

colocados podem ser pensados e, mais ainda, que se torna possível uma discussão

efetiva da educação como prática da liberdade. Caminho que aponta para a necessidade,

muito menos do que escolha arbitrária, de se pensar a educação não no plano de práticas

institucionalizadas, ainda que ela seja atravessada por esta dimensão, e sim como

momento ontologicamente essencial de constituição do ser social no processo histórico

genético na qual está inserido.

Neste sentido, é necessário reconhecer, inicialmente, que a liberdade aqui tratada

não confunde-se com uma leitura abstrata e ligada essencialmente ao indivíduo. Por

outras palavras, do que se trata aqui não é da liberdade em seu matizamento liberal.

Igualmente, liberdade e educação não se constituem, na leitura proposta por este artigo,

4

em conceitos adaptáveis a esta ou aquela situação. Pelo contrário, embora seja possível

conceituar em seus traços gerais educação e liberdade, aqui eles são tratados na

condição de categorias, não apenas em razão de sua íntima ligação com os processos

econômicos, no sentido de que participam diretamente da produção e reprodução do ser

social, mas também por se constituírem em determinações inelimináveis de todo e

qualquer ser social, independentemente da forma de sociabilidade à qual se esteja

fazendo referência.

Se a educação é pressuposto da liberdade, no sentido aqui tratado, é necessário

igualmente reconhecer que ela não se esgota entre os muros da escola. Antes, é um

processo que percorre a constituição mesma do ser social. Neste sentido, ela está posta e

reposta, ao longo da história dentro da relação que o ser social estabelece com as

condições objetivas ou as condições materiais de sua existência, mediatizadas cada vez

mais pelo trabalho.

Vista a partir desta perspectiva, é forçoso reconhecer que no processo pelo qual

o ser social se objetiva no mundo ele aprende e cada aprendizado tem por consequência

direta ampliar potencialmente o grau de conhecimento deste mesmo ser em relação às

condições objetivas e em relação ao próprio gênero do qual ele faz parte. Nas teses

sobre Feuerbach encontram-se indicações significativas da dimensão educativa contida

na práxis do ser social para responder às necessidades que se colocam no plano da vida

cotidiana.

O intercâmbio do ser social com as condições objetivas e com os demais seres

do gênero coloca em evidência, desde o princípio, um aprendizado fundamental: o de

que a realidade pode ser compreendida concretamente pelo pensamento, de tal modo

que este pode elaborar, ao menos aproximativamente, uma compreensão racional do

fenômeno. Assim, práxis e conhecimento não se dissociam nesta perspectiva. Pelo

contrário, encontram-se em íntima ligação e atuam como condição fundamental para

criar as possibilidades de distanciamento do ser em relação ao senso comum ou ao que

Marx denomina por misticismo. Estes elementos se revelam com clareza na segunda

tese sobre Feuerbach quando Marx afirma:

O problema de se ao pensamento humano se pode atribuir uma

verdade objetiva, não é um problema teórico, sim um problema

5

prático. É na prática que o homem tem que demonstrar a verdade, isto

e, a realidade e o poderio, a terrenalidade de seu pensamento. O litígio

sobre a realidade ou irrealidade de um pensamento que se isola da

prática, é um problema puramente escolástico (MARX, 1974, p.7-8).

A segunda tese é acompanhada, na terceira, pela consideração direta do

problema da educação na qual os laços entre ser social e condições objetivas são

aprofundados, de tal modo que não está posto para esta compreensão da educação a

existência de um dado primário e secundário, mas sim a articulação entre os “homens” e

as “circunstâncias” e a “educação”. Assim, de acordo com Marx,

A teoria materialista de que os homens são produtos das

circunstâncias e da educação, e de que, portanto, os homens

modificados são produtos de circunstâncias distintas e de uma

educação modificada, esquece que são os homens, precisamente, os

que fazem com que mudem as circunstâncias e que o próprio educador

necessita ser educado (MARX, 1974, p.8).

Vê-se, nesta terceira tese, que a questão da educação está posta em plano

abstrato, uma vez que os princípios enunciados por Marx compreendem toda e qualquer

forma de sociabilidade, isto é, de classes ou não, está distante de reduzir. O foco

enunciado por Marx não é uma ou outra forma de sociabilidade e sim um processo

contínuo que ocorre na cotidianidade. O intercâmbio que este estabelece com as

condições objetivas e que o impulsiona, inclusive, a estabelecer laços não meramente

gregários com outros seres pertencentes ao gênero, forja o terreno das experiências, do

aprendizado e, com ele, o da própria educação enquanto conjunto operacional de

conhecimentos a serem transmitidos para as gerações posteriores.

A referida tese aponta, logo de início, um princípio básico que norteia o processo

educativo em toda e qualquer forma de sociabilidade. Trata-se do reconhecimento de

que o pensamento busca traduzir aproximativamente o concreto, porém, não se

autonomiza deste. Portanto, a realidade não é uma construção do pensamento ou

realização do mundo das ideias. Do mesmo modo que a educação não é a expressão do

pensamento puro ou de um ser que paira imaginariamente sobre o mundo. Angulação

que será exaustivamente combatida por Marx e Engels no livro A Ideologia Alemã, não

sendo outro o sentido da passagem na qual afirmam: “Conforme anunciam os ideólogos

alemães, a Alemanha teria passado nos últimos anos por uma revolução sem igual”. E,

6

depois de descrever as transformações no solo alemão, arrematam: “Tudo isso teria

acontecido no terreno do pensamento puro” (MARX; ENGELS, 2007, p. 85).

Rompidos os referenciais fornecidos pelo idealismo, tratava-se, pois de

compreender o ser dos homens, resultante, “produto”, das circunstâncias (leia-se,

condições concretas, particulares, efetivamente existentes) e da educação. Por outras

palavras, o ser social age, mas na medida em que atua, aprende e coloca em movimento

novas mediações que fazem com que o momento posterior jamais seja idêntico ao

anterior. A cada intervenção, diferentemente dos demais animais, o que resulta é uma

experiência que aporta modificações no ser, ainda que estas sejam imperceptíveis e

venham a ser clarificadas, por vezes, após dezenas de anos ou séculos de

desenvolvimento do ser social. Daí a afirmação marxiana do caráter não instintivo do

processo educativo que se efetiva, isto é, de que “os homens modificados são produto

de circunstâncias distintas e de uma educação modificada”. Ou seja, nem o ser social,

nem as condições objetivas, permanecem as mesmas ao final do processo.

O ser social, ao interiorizar elementos da realidade que tem diante de si, já se

modifica em relação ao momento pretérito, mesmo que seja no plano estrito do

reconhecimento de que ele passa a elaborar ideias que não possuía anteriormente. De

posse das ideias, às quais precisa submeter à prática para obter as confirmações

necessárias, inicialmente essencialmente intuitivas, sem se perder de vista que neste ser

a intuição, ou o “instinto”, são já instintos conscientes, o ser social, ao intervir,

modifica, igualmente, as condições concretas de sua existência tal como elas estavam

postas anteriormente.

Na compreensão marxiana é importante observar que, embora trate a educação

abstratamente, Marx não pretende indicar, com isto, que o processo educativo

manifeste-se de forma idêntica em toda e qualquer parte na qual o ser social estabeleça

relações com as condições objetivas e com outros seres pertencentes ao gênero.

Circunstâncias distintas produzem, igualmente, formas de educação distintas, ou, para

utilizar aqui expressão do próprio Marx, uma “educação modificada”.

Embora as condições concretas sejam o terreno a partir do qual o ser social

colherá os elementos iniciais para a reflexão, a educação possui, no interior deste tipo de

reflexão, um papel ativo. Ao mesmo tempo em que as condições objetivas atuam sobre

7

os seres sociais, estes agem, por sua vez, sobre estas mesmas condições, modificando-

as. Daí ser necessário lembrar, na referida tese terceira a necessidade de não se esquecer

“que são os homens modificados, produtos de uma educação modificada”, os

responsáveis por fazerem com que “mudem as circunstâncias”, isto é, as condições

concretas possíveis.

Observe-se que os homens não representam, no interior do pensamento

marxiano, o indivíduo isolado ou atomizado. Homens aqui são considerados enquanto

gênero. Portanto, é da ação do gênero e não de indivíduos isolados que brotam as

transformações significativas que operacionalizam sobre as condições objetivas, mas

também e decisivamente sobre o próprio ser social. Soma-se a isto que a obtenção de

respostas é apenas o ponto de partida para a construção de novas perguntas e,

consequentemente, busca de novas respostas. É dentro desta perspectiva que se torna

possível compreender o processo educativo como aquele no qual “o próprio educador

necessita ser educado”. Por outras palavras, se a realidade é movimento e cada resposta

conduz à emergência de novos problemas, o ser que age está colocado na condição,

igualmente, de refletir sobre as novas condições, sob pena de ver comprometida a

própria espécie.

Entendida nesta perspectiva, a educação apresenta-se como pressuposto

fundamental para a construção da liberdade, a qual é igualmente tratada no campo das

determinações concretas. Ou, como afirmam Marx e Engels, “Só é possível conquistar a

libertação real no mundo real e pelo emprego dos meios reais”. Portanto, “a ‘libertação’

é um ato histórico e não um ato do pensamento, e é ocasionada por condições históricas,

pelas com[dições] da indústria, do co[mércio], [da agricul]tura, do inter[câmbio]”

(MARX; ENGELS, 2007, p. 29).

Educação e liberdade formarão duas categorias indissociáveis para o pensamento

marxiano. Porém, só podem ser adequadamente compreendidas em suas interrelações

dentro das condições concretas nas quais se manifestam. Os mesmos processos que

criam as condições para que o ser social aprofunde em si o campo da educação,

potencializando suas necessidades humanas e as condições para efetivação de sua

humanidade em patamares verdadeiramente humanos, são aqueles que estabelecem

obstáculos a tais efetivações. O mesmo é válido no que se refere à liberdade, entendida

8

no interior daquela forma de pensamento como o distanciamento do ser em relação às

condições materiais imediatas. Por outras palavras, os mesmos processos que produzem

as condições para que o ser social se distancie cada vez mais, por exemplo, dos demais

animais, são os que criam barreiras para que o desestranhamento social possa ocorrer ou

possa ser efetivada a sociabilidade na qual a unilateralização do ser possa ser vencida

pela omnilateralidade, alegoricamente traduzida por Marx e Engels na afirmação de que

na sociedade comunista, dada a cota de contribuição social de cada um para a existência

do coletivo, o homem poderá pescar pela manhã, caçar à tarde ou mesmo fazer poesias e

literatura de madrugada.

O quanto educação e liberdade encontram-se obstaculizadas dentro de uma

manifestação histórica concreta é dada pela dimensão que ocupam no interior da

sociedade burguesa. Do mesmo modo que destas condições concretas brotam as

possibilidades de romper o confinamento no qual estão encerradas educação e liberdade.

Assim, Engels destaca que:

A existência das classes se deve à divisão do trabalho, e esta última,

sob sua forma atual, desaparecerá inteiramente, já que, para elevar a

produção industrial e agrícola ao mencionado nível não bastam só os

meios auxiliares mecânicos e químicos. É preciso desenvolver

correlativamente as aptidões dos homens que empregam estes meios.

Igual ao que ocorreu no século passado, quando os camponeses e os

operários da manufaturas, em razão de terem sido incorporados à

grande indústria, modificaram todo seu regime de vida e se tornaram

completamente outros, a direção coletiva da produção por toda a

sociedade e o novo progresso de referida produção que resultará disto

necessitarão homens novos e os formarão. A gestão coletiva da

produção não pode ocorrer sob responsabilidade dos homens tais

como são hoje, homens que dependem cada qual de um ramo

determinado da produção, estão aferrados a ela, são explorados por

ela, desenvolvem nada mais que um aspecto de suas aptidões à custa

de todos os outros e só conhecem um ramo ou parte de algum ramo da

produção. A indústria de nossos dias está já cada vez menos em

condições de empregar tais homens. A indústria que funciona de

modo planificado às custas do esforço comum de toda a sociedade

pressupõe com mais motivo homens com aptidões desenvolvidas

universalmente, homens capazes de orientar-se em todo o sistema da

produção. Por conseguinte, desaparecerá do todo a divisão do

trabalho, minada já na atualidade pela máquina, a divisão que faz com

que um seja camponês, outro sapateiro, um terceiro, operário fabril, e

um quarto, especulador da bolsa. A educação dará aos jovens a

possibilidade de assimilar rapidamente na prática todo o sistema de

9

produção e lhes permitirá passar sucessivamente de um ramo de

produção a outro, segundo sejam as necessidades da sociedade ou suas

próprias inclinações. Por conseguinte, a educação os libertará desse

caráter unilateral que a divisão atual do trabalho impõe a cada

indivíduo. Assim, a sociedade organizada sobre bases comunistas dará

a seus membros a possibilidade de empregar em todos os aspectos

suas faculdades desenvolvidas universalmente (ENGELS, 1974, p. 94,

grifo do autor).

Formando um par indissolúvel, educação e liberdade, dadas as processualidades

históricas que marcaram e continuam a atuar sobre os seres sociais, só podem realizar-se

em patamares efetivamente humanos dentro de uma nova forma de sociabilidade que

esteja para além da sociedade de classes. Contudo, a finalidade desta observação

engelsiana não está direcionada a reconhecer que educação e liberdade sejam um tema

para o futuro e sim busca apontar como, por mais contraditório que seja o processo de

desenvolvimento histórico social, a sua efetivação mais plena decorre das próprias

possibilidades contidas no mundo moderno com o advento da grande indústria

capitalista. Este estágio de desenvolvimento do capitalismo ao mesmo tempo em que

cria mutilações físicas e mentais para os trabalhadores, colocam objetivamente as

condições para que, dentro de outra lógica societal, aquela dada pela sociedade

comunista, as conquistas obtidas no modo de produção anterior possam ser utilizadas no

sentido de realização das potencias humanas adormecidas.

Esta questão se explicita com maior clareza ainda em O Capital, quando Marx

afirma que o sistema fabril fez

germinar a educação do futuro, a educação que unirá para todas as

crianças acima de uma certa idade o trabalho produtivo com a

instrução e a ginástica, e isto não somente como método de acrescer a

produção social, mas como exclusivo e único método de produzir

homens completos (MARX, 1982, p. 461).

Se a grande indústria moderna desenvolveu a politécnia, que não deve ser

desprezada por se tratar de habilidades criadas no trabalhador para responder

essencialmente às necessidades da sociedade capitalista, é necessário, contudo, diz

Marx, ir para além dela. Para ele, superar esta situação é “uma questão de vida ou de

morte” pois,

10

[...] a grande indústria obriga a sociedade sob pena de morte a

substituir o indivíduo espedaçado, portador de desgraças, porte-

douleur de uma função produtiva de detalhe, pelo indivíduo integral

que saiba fazer frente às exigências mais diversificadas do trabalho e

não dá, em suas funções alternadas, nada mais que uma livre expansão

à diversidade de suas capacidades naturais ou adquiridas (MARX,

1982, p. 465).

Uma vez que o par educação-liberdade se amarra diretamente à produção e

reprodução da vida material, e estando dadas as limitações crescentes para que ambos se

efetivem na sociedade burguesa em patamares voltados para o omnilateralidade em

detrimento da unilateralidade, o debate sobre o problema lança Marx e Engels

diretamente na necessidade de pensar a articulação destas dimensões com a política e,

mais especificamente, com a luta de classes. Sem esta perspectivação torna-se

impossível compreender, inclusive, as referências que ambos os autores fazem à

educação e à liberdade contrapondo aquela que existe na sociedade capitalista e a que

deveria ser o parâmetro dentro de uma sociedade comunista, conforme destacado em

citações anteriores deste artigo.

Desta forma, educação e liberdade, ainda que integrando o processo de formação

do ser social desde suas origens, assume, na sociedade moderna, a sociedade burguesa,

um problema a ser discutido, também, no âmbito da política e, mais particularmente, da

política de classe a ser conduzida pelo proletariado organizado.

Ao traçar a ligação direta entre a luta do proletariado e o conjunto da sociedade,

isto é, da humanidade, uma vez que a vida social universaliza-se cada vez mais, estão

postas para Marx tanto as possibilidades de superação do homem burguês, mesquinho,

quanto as condições para uma efetiva igualdade entre os homens que esteja para além

do domínio da “consciência pura”. É na ação do proletariado, norteada pelo devido salto

de consciência de sua genericidade humana, que se coloca, pois, a questão decisiva da

liberdade. Marx destaca, neste sentido, que a

igualdade, é a consciência que o homem tem de si mesmo no domínio da

prática, isto é, por conseguinte, a consciência que um homem tem de outro

homem como sendo seu igual e o comportamento do homem a respeito de

um outro homem como frente a frente de seu igual. A igualdade é a

expressão francesa para traduzir a unidade essencial do ser humano, a

consciência genérica e o comportamento genérico do homem, a identidade

11

prática do homem com o homem, isto é, por conseguinte, a relação social ou

humana do homem com o homem (MARX; ENGELS, 1972, p. 50).

Homem e sociedade, desta forma, não comparecem à reflexão marxiana como

termos antitéticos, assim como não o são o par educação-liberdade. Em sua

complementaridade desvendam-se preocupações éticas na fundamentação do possível

vir a ser homem do homem uma vez que não se trata de garantir a existência do

indivíduo egoísta e sim do ser social enquanto constitutivo e constituinte da humanidade

genérica. E, mais ainda, na luta política faz-se necessária a criação de uma nova

consciência social, impossível de ser efetivada nos marcos da sociedade burguesa.

Como essa não nasce por geração espontânea, está implícita nesta problematização que

a luta política não está reduzida a um conflito armado mas, mais ainda, à construção

educativa de um novo tipo de ser, capaz de pensar a destruição de uma determinada

sociedade, a burguesa, na perspectiva de constituição de uma outra, onde o gênero

humano esteja pautado como horizonte a ser continuamente perseguido.

A verificação é de fundamental importância uma vez que, comumente, atribui-se

a Marx o demérito de ter extirpado da história o indivíduo, colocando em seu lugar as

grandes estruturas ou mesmo obstrui-se a compreensão de que uma revolução, vindo a

tornar-se possível, necessitaria de sujeitos com graus de consciência que encontram-se

em ruptura com o egoísmo burguês.

Um quarto elemento se faz necessário resgatar para a compreensão da questão

aqui proposta. Trata-se do papel educativo da teoria no processo de construção da

liberdade. Esta dimensão do problema precisa ser resgatada na medida em que, não

raras vezes, tem sido pautado pelo pensamento que corteja com a pós-modernidade ou

simplesmente com a fenomenologia, que ciência e senso comum possuem praticamente

o mesmo estatuto.

Esta preocupação, presente a todo momento no pensamento de Marx e Engels,

sendo uma expressão disto os esforços que desenvolveram à frente da Liga dos

Comunistas e, em momento posterior, nos anos de 1864 a 1871, nas fileiras da

Associação Internacional dos Trabalhadores, transcendeu a estes autores, o que revela a

importância da teoria na construção do tripé educação-liberdade-política. Porém, da

teoria que, colocando-se ao real, aponte para a possibilidade de constituição de saltos

12

críticos no processo de construção da autonomia e criticidade por parte do conjunto do

trabalho.

Assim, não é de se estranhar que uma das primeiras ações dos comunistas

revolucionários da Rússia czarista tenha sido a formação de militantes preparados para

alfabetizar no campo e na cidade. O mesmo é possível se verificar, de outra parte, na

obra gramsciana e seus esforços de constituição dos intelectuais orgânicos da classe

trabalhadora, cujos delineamentos escapam aos objetivos deste artigo. No caso de Lênin

é ilustrativa a passagem segundo a qual uma das

hipocrisias da burguesia é a crença segundo a qual a escola pode ser

apartada da política. Vocês sabem tão bem quão falsa essa crença é. A

própria burguesia, a qual advoga esse princípio, faz sua própria

política burguesa a pedra angular do sistema escolar, e tenta reduzir a

escola ao treino de servos dóceis e eficientes à burguesia, reduzir a

educação universal para o fim de treinar servos dóceis e eficientes

para a burguesia, ou escravos e instrumentos do capital. A burguesia

nunca pensou em dar à escola o sentido de desenvolver a

personalidade humana. (Lenin12 [Discurso proferido em 14/01/1919 e

publicado em forma de relatório resumido no nº 13 da revista Izvestia

em 19/01/191], 2002, p.1)13 (apud OYAMA, 2014, p. 53).

Verifica-se, pois que, na extensa tradição decorrente do pensamento e engelsiano

estruturou-se a discussão do tripé educação-liberdade-política dissociando-se da

perspectiva que atrela a primeira como reduzida às necessidade do mercado de trabalho.

Para o eixo marxiano e marxista, educação é, sobretudo, um momento, assim como a

liberdade e a política, no processo de formação de uma nova individualidade que se

encontra intimamente ligada ao social.

Conclusão

Contrariamente ao que está largamente defendido pelo “pensamento único” ou,

mais geralmente, pelo pensamento neoliberal, cuja sobrevivência tem se estendido ao

longo destas primeiras décadas do século XXI, a educação pode revestir-se de outra

finalidade que não seja dada por aquela de atender às necessidades do mercado. Mais

ainda, sua efetiva plenitude para o ser social só pode ocorrer se ela estiver para além da

lógica de mercado e, portanto, da própria sociedade de classes. Contudo, ainda que este

13

seja o horizonte a ser defendido no campo da ciência, resta sempre a reconhecer que nas

bases da sociedade atual são postas, ainda que jamais plenamente efetivadas, as

condições para o nascimento da educação em seu sentido mais amplo, isto é, de

perspectiva emancipatória.

Referências

ENGELS, F. Princípios do Comunismo. In: MARX, K; ENGELS, F., Obras Escogidas I.

Moscú, Editorial Progreso.

MARX, K. ; ENGELS, F., A ideologia alemã. S.P., Boitempo Editorial, 2007.

MARX, K.; ENGELS, F., Critique de l’éducation et de l’enseignement. Paris, Maspero,

1976.

MARX, K. Le Capital 1, Moscou, Éditions du Progrès, 1982.

MARX, K. Tesis sobre Feuerbach. In: MARX, K; ENGELS, F., Obras Escogidas I. Moscú,

Editorial Progreso.

OYAMA, E. R. A perspectiva da educação socialista em Lenin e Krupskaia. In: Marx e o

Marxismo. v.2, n.2, jan/jul 2014.