educacao fisica educar e profissionalizar

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Silvino Santin EDUCACAO FISICA EDUCAR E PROFISSIONALIZAR EDIcOES EST Porto Alegre, 1999

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Page 1: Educacao Fisica Educar e Profissionalizar

Silvino Santin

EDUCACAOFISICA

EDUCAR EPROFISSIONALIZAR

EDIcOES ESTPorto Alegre, 1999

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Silvino Santin, 1999

Esta edicäo 6 propriedade do Autor.

Capa:Rubens Renato Abreu

Editoraciio e composicao:Suliani — Editografia Ltda.

it Verissimo Rosa, 311Porto Alegre — Fone / fax (51) 336.1166

EDICOES ESTR. Verfssimo Rosa, 311

CEP 90610-280 — Porto Alegre, RSFone / fax: (51) 336.1166

e-mail: [email protected]

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EDUCACAOFISICA

EDUCAR EPROFISSIONALIZAR

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Colecdo Corpus

Coordenacao: Silvino Santin

Educaglio Fisica — outros caminhosSilvino Santin, 7 ed. 1993

Educaccio Fisica — temas pedagOgicosSilvino Santin, 1992

Educacdo Fisica — da alegria do hidicoopressao do rendimento

Silvino Santin, 7 ed. 1996

0 Corpo SemiotizadoAdair C. Peruzzolo e outros, 1994

Filosofia da Educacao FisicaMaria da Graca LisbOa, 1994

Psicomotricidade — teoria prciticaAgnes Mechele Maria Delobel Lorenzon, 1995

7. Educacdo Fisica, Etica, Estetica, Satide.Silvino Santin, 1995.

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S UMAR 10

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APRESENTACAO / 71 EDUCACAO FISICA / 132 EDUCACAO FISICA

E PROCESSO EDUCACIONAL / 212.1 A educacdo fisica e a ordem institucional / 232.2 A educacao fisica e a vida pessoal / 312.3 A educacdo fisica e a escola / 402.4 A educacao fisica e a ordem social / 46

3 EDUCACAO FISICAE PROJETO PROFISSIONAL / 523.1 Fontes de conhecimento / 55

Conhecimentos de fisico-quimica / 56Os avancos da biologia molecular / 58

3.2 ConstrucOes corporais / 64Arquiteturas funcionais / 65Arquiteturas simbOlicas / 68

C) Arquiteturas vivas / 714 UM NOVO PONTO DE REFERENCIA / 73REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS / 79

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APRESENTACAO

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Este estudo a resultante do acompanhamento, deperto e a distancia, de debates longos, intensos e, porvezes, apaixonados, que ainda motivam os profissio-nais da educacao ffsica a pensar. Tais debates foram esao motivados, em sintese, pelo desejo de construir aidentidade da educagao fisica, particularmente atravesda participacao no concerto dos cursos superiores, daintroducao na sinfonia da cientificidade moderna e dagarantia de um espaco no mercado de trabalho.

Mao se pretende aqui historiar os altos e baixosdestes debates, mas apenas reativa-los, exatamente nomomento em que a profissionalizacao parece estarassegurada. Parece claro que as discussOes sobre aeducacao fisica, inicialmente, giraram em torno dadernIncia do papel exercido durante o period() daditadura militar e o novo engajamento na lutas pelainstalacao da liberdade democratica plena. Em certosentido, tal atitude merece todo apoio e admiracao,pois parecia indispensavel que a educacäo fisica,

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inicialmente, deveria livrar-se da pesada herancainscrita em seus curriculos, metodos e organizacdo,cuja transferencia integral realizara-se das instituicOesmilitares para as universidades. 0 miter autotitario eprescritivo do discurso militar passara para os cursosacademicos. 0 enfoque principal cala sobre os exer-cicios; pouco espaco era reservado para a reflexào.

Aos poucos os horizontes foram se alargando e, aomesmo tempo, se concentrado sobre a exigencia decientificidade. A educacäo fisica como ciencia apare-cia como a redencäo desejada. Estar a servico, seja dequem for, sempre indicava uma posicao subalterna deprestacão de servicos. 0 importante era garantir-lheurn lugar entre as ciencias. Mas por decreto nao se fazciencia, ainda que em certos casos, alguns pareciamacreditar nisto, talvez porque sua obrigatoriedade nasescolas dera-se pelo mesmo caminho. Neste contextosurgiram as classicas perguntas como: a educacdoseria ciencia? E se for ciencia, que tipo de ciencia?As tentativas para responder a essas indagacOes fo-ram transformadas em multiples publicacties, emacirradas polemicas e ate em tema de congressos eseminarios. Toda essa ebulicao, diria eu saudavel,pelo menos academicamente, levou ativistas defenso-res do discurso ideolegico a se tornarem ferrenhosarticuladores das questhes epistemolOgicas, tinicoacesso a cientificidade moderna.

Diante da configuracao de que ela nao apresentavaos requisitos basicos para ser reconhecida como cien-

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cia, particularmente porque não possui urn estatutoepistemolOgico pr6prio, o entusiasmo por essa exi-gencia parece estar se arrefecendo. Primeiramente,porque corn os movimentos cada vez mais fortessobre a exigencia da transdisciplinaridade de poucoadiantaria querer criar mais uma ciencia, quando sepretende buscar uma nova cientificidade, capaz de darconta da complexidade do real. Ou, como diz EdgarMorin, "Ha necessidade de urn pensamento que ligueo que esta separado e compartimentado; [...] de urnpensamento radical (que va as razes dos problemas);de um pensamento multidimensional". Em segundolugar, porque foi alcangado o objetivo de tornar-seuma profissao especifica, corn sua formacäo acade-mica e corn seu mercado de trabalho. Afinal a cienti-ficidade pouco acrescentaria, a nä.° ser que seja acientificidade que, ainda segundo Edgar Morin, "co-megou a se desenvolver nas ciencias ecolOgicas e nasciencias da Terra".

0 presente estudo procura um outro patamar de re-flexab. A questao central se expressa nestes termos: aeducagdo fisica seria urn curso cuja caracterlsticaprimeira consistiria em ser uma atividade educacio-nal. A educagan fisica 6, certamente, em sua raiz umaacao educativa. Alias, a escola nasceu como propostaeducacional; sua transformacao em oficina de produ-cäo de profissionais a muito recente. Tal mudanga,sem dtivida, pode ser atribuida as exigencias impostaspelo surgimento da era industrial. A escola deixou de

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ser educativa para ser exclusivamente ensino/apren-dizagem de conteados cognitivos como base teOricapara intervencOes tecnicas.

A questa°, exposta no titulo deste estudo — educare profissionalizar — nao tem o objetivo de opor osdois elementos, mas retomar o significado de educa-cao, ideal primeiro da escola, desde os gregos. Nao setrata de reforcar o pseudodilema, ou um ou outro. Aocontrario, trata-se de urn e outro. Se o dilema é falso,a diferenca, tambem, é uma construcao histOrica. Noeducar o importante é o aperfeicoamento da condicaohumana, assumida na totalidade de sua existencia.Isto implica obter conhecimentos e valores para orien-tar o viver individual e coletivo, inclusive seu desem-penho produtivo. Na profissionalizacao o que se cons-tata é a reducao para a obtencao de conhecimentoscorn o objetivo de insercao efetiva e eficiente no sis-tema de producao.

Juntar as duas dimensties seria o correto, pode-sepensar. Poucos discordarao da proposta. Entretantoha alguma coisa a ser modificada; nab basta unir oque esta af. 0 primeiro passo a repensar a cientifici-dade dos nossos conhecimentos, o segundo passorevisar nossas pedagogias cognitivistas. Assim comoa multi-pluridisciplinaridade nao 6 juntar as discipli-nas existentes para forma uma visao do todo, masconstruir uma transdisciplinaridade, isto 6, algo queva alem das disciplinas.

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Este e o desafio e esta e a intencao provocativa dopresente estudo. A educacdo fisica a originariamenteeducacdo e devera continuar assim, porque ela buscaconvencer que o importante e saber viver. E o saberviver coloca em primeiro lugar o respeito a vida quecada urn 6, na() isoladamente, mas como integrante dateia da vida, na expressdo de Fritjof Capra. Trabalhar

uma maneira de exercitar o viver.A educacdo fisica, segundo as regras do sistema

produtivo atual, podera formar varios tipos de profis-sionais como treinadores de esportes. E no interiordos esportes a possivel formar especialistas em cadamodalidade esportiva. Poderäo surgir especialistas deexercicios em academias marciais ou esteticas, deprogramacOes de lazer, de atividades compensathriasem inddstrias e empresas para trabalhadores bracaisou executivos sedentarios. 0 mercado, sem dtivida,promissor.

0 objetivo deste texto e provocar urn reflexdo pro-funda sobre a necessidade da educacAo fisica comodepositaria da responsabilidade de aperfeicoar a con-dicdo humana. Seu referencial primeiro e a vida; seudesafio pedag6gico e descobrir como a vida pode servivida corn dignidade, equilfbrio e prazer.

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EDUCA9AO FISICA

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V ou iniciar retomando urn terra ja explorado demaltiplos angulos, talvez cansativo e esgotado, en-tretanto, ainda nab solucionado, o da identidade daeducacao fisica. Todos os que, de alguma maneira,envolveram-se corn os debates sobre a educacao fisi-ca conhecem sobejamente os acalorados e polémicosenfrentamentos quanto a sua definicao. Invoco, aqui,essa questao, nao porque pretendo trazer sua solucao,mas apenas para dizer que, no meu entender, a educa-gar) fisica adquire sua identidade conforme a cir-cunstancia histOrica e cultural que se vive. Diria, mes-mo, que nao ha uma educacao fisica, mas uma multi-plicidade de praticas que acabam por impossibilitaruma Unica compreensao.

A educacdo fisica é uma atividade planejada pelaKa° do homem em funcao de objetivos e criteriosestabelecidos por uma ordem sociocultural. Por issonao é possivel estabelecer com exatiddo urn anico

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conceito. Ela depende de um sistema de significagOesadotado por uma ordem social. Portanto, 6 no interiordessa ordem que ela assume sua prOpria identidade,conforme a classificacao e a escala de valores esta-belecidas pelos criterios adotados. A histOria da edu-cacao fisica, por exemplo, no Brasil, registra essasdiferentes identidades ou fisionomias assumidas.

Para nao me delongar nessas consideracOes, queroapenas lembrar que nos vivemos na era da ciencia eda tecnologia. De um lado, temos a imposicao de urnmodelo epistemolOgico que nos mostra qual o cami-nho eficaz para a construed° de conhecimentos ver-dadeiros, de outro, o modelo econOmico exige o apro-veitamento desses conhecimentos na aplicacao dosistema produtivo.

Vou colocar algumas questhes que me parecemmais esclarecedoras sobre as diferentes possibilidadesde ser da educacao. Queremos que ela seja ciencia.Por que? Porque o crit6rio major da modemidadepara dar credibilidade a uma nab 6 ser ciencia. Sendociencia, acredita-se que a educacao fisica merecarespeito. E, para ser ciencia, precisa mostrar quecapaz de produzir conhecimentos cientificos. 0 im-portante, nesse caso, a que o criterio major da moder-nidade, para dar credibilidade a uma acdo academica,6 a cientificidade vigente. Queremos que seja umaacao pedagOgica, alias, os termos apontariam nestadirecao. Por que? Certamente para educar uma pessoaformando um cidadao atraves do aperfeicoamento, do

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desenvolvimento e do culto da corporeidade humana.Queremos que seja uma atividade disciplinar. Porque? Sem diivida, para exercer urn controle sobre asfor-gas e disposiciies corporais em proveito de outrosvalores do ser humano, provavelmente classificadoscomo superiores. Queremos que seja urn curso profis-sionalizante. Por que? Certamente porque a imposi-cao do sistema de producao, segundo o principio domercado de trabalho, a educacao escolar.

Acredito que, atraves dessas reflexOes, chegamosapenas a perceber a complexidade do tema, mas difi-cilmente vamos chegar a uma solucao definitiva.Tambem, nao sei se vale a pena perseguir essas solu-ceies definitivas. 0 que ocorre comumente é que taissolucOes, apresentadas como uma resposta final, sao,cada vez mais freqUentemente, relativas e provisOrias.Entretanto, podemos, corn certeza, detectar possiveistendencias e perspectivas a serem, por nos, assumidasna compreensao do que seja a educacao fisica.

No meu entender, sera sabendo o que fazemos na ecorn a educacao fisica, de um lado, e o que ela nosleva a fazer, de outro, que descobriremos sua identi-dade. Nao sei se, corn isso, adquirimos o direito dedefinir o que é a educacao fisica, mas, certamente,saberemos o que ela é para nos. Ha urn velho ditado,nao sei se é correta a transposicdo para este caso, quediz digs-me corn quem andas e dir-te-ei quem es. Eudiria: diga-me o que fazes ern nome da educacaofisica, e dir-te-ei o que ela é. Se fag° ciencia, é cién-

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cia; se educo, a educacao; se treino, a profissao; sedisciplino, a disciplina. Ou sera muito simplista meuraciocinio?

As ciencias, no percurso da histOria ocidental, sur-giram depois que algumas atividades corn caracteris-ticas especificas foram batizadas de ciencia. Cadaciencia estabeleceu sua prOpria identidade no mo-mento em que mostrou que era capaz de produzirnovos conhecimentos, que nenhuma outra ciencia eracapaz de produzir. Quando a educacao fisica preen-cher os criterios dessa cientificidade, sera ciencia. Porenquanto, precisamos agir. Queremos construir cien-cia, entao vamos ver se somos capazes, corn umametodologia especffica, de produzir novos conheci-mentos, ou se o objeto da educacao fisica se prestapara tanto. Queremos educar, entao vamos buscarbases pedagOgicas para faze-lo. Por exemplo, comocompreender as 4;limensOes corporais do ser humano.E, em maior profundidade, como assumir a condicaode ser corpo e viver a corporeidade. Queremos queseja profissdo, end() vamos investir na definicao deum territOrio especifico no sistema de producao eestabelecer os padthes necessarios para o exerciciodeste profissional.

Numa tentative de sintetizar o que acabei de escre-ver, diria que as questOes da educacao fisica, obser-vando as preocupacOes atuais, poderiam ser coloca-das em tres esferas.

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A primeira diz respeito ao problema da cientifici-dade. Hoje, para se ter credibilidade, é preciso passarpelos criterios da cientificidade vigente. Ser cienciatornou-se urn imperativo dnico, urn requisito sine quanon para obter as credenciais de ingresso no discursoacademic°, particularmente se a pretensao e formarprofissionais. Quando nao se alcanca o status cientifi-co, a dnica alternativa é falar e agir em nome de al-guma ciencia. Seria, no momento, a opcao da educa-cao

Como situar a educacao fisica no conjunto das cien-cias, segundo os criterios de cientificidade moderna?Todos sabemos que ha uma grande divisao nas cien-cias proposta por Dilthey, no final do seculo passado:as ciencias naturais ou exatas e as ciencias humanasou culturais. A que ciencia a educacao fisica perten-ceria? Ela seria uma ciencia humana? Ou faz partedas ciencias exatas? Ou deveria ser uma ciencia comoa medicina, que reline conhecimentos de diferentesareas e os aplica as questoes da sande? A busca derespostas para essas questoes continua sendo o desa-fio. No meu entender, nab deveria ser uma preocupa-cab fundamental, o importante é saber que valoresqueremos desenvolver corn a educacao fisica.

A segunda esfera é a da nab pedagOgica. A edu-cacao fisica, independentemente de ser ciencia ounao, d uma atividade educacional. Alias, seu nomediz explicitamente que é educacao. 0 problema, en-tretanto, nä° a de simples solucao. Apenas para lem-

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brar como aconteceria sua atividade educativa, yousublinhar dois aspectos. Em primeiro lugar deve-sedar prioridade ao contetldo cognitivo, ou o importante

concentrar-se no desenvolvimento de exerciciosfisicos? E, em segundo lugar, esses exercicios fisicosdeveriam privilegiar o desenvolvimento corporal indi-vidual, ou as atividades esportivas? Dito em palavrasmais diretas, a educacao fisica deve ensinar a usar ocorpo ou a viver o corpo?

Por fim, a terceira esfera refere-se a formacao pro-fissional. A educacao Mica 6 urn curso profissionali-zante, como qualquer outro. Ela forma um profissio-nal liberal, como os demais cursos profissionalizan-tes. Formar-se em educacao fisica significa tornar-seum profissional e nao um educador. Disputar o mer-cado de trabalho em geral, sabendo que ha um mer-cado reservado. Isso exige que se delimite um territ&rio no qual o referido profissional ter ra o direito deatuar com exclusividade.

A presente Jornada de Educacao Fisica, promovidapor ocasiao da instalacao de um novo curso universi-tario, propee, com muita propriedade, tratar de ten-dencias e perspectivas. Pelo titulo da minha palestra,estou limitando a minha exposicao sobre tendencias eperspectivas as esferas educacional e profissional. Eessa foi uma woo minha, assumida de plena cons-ciencia. Isso nito significa que sejam as mais impor-tantes, sao simplesmente aquelas que mais me sensi-bilizam.

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Antes de entrar no assunto propriamente dito, pre-ciso dizer que tanto a dimensdo educacional quanto aprofissional não dispensam suas vinculaciies corn asciéncias em geral. Toda acdo educativa e qualqueratividade profissional dependem de conhecimentos.Tal dependencia de conhecimentos, tratando-se detendencias e perspectivas da eclucacao fisica, no meuentender, concentra-se em duas ciencias-maes, a fisi-ca e a biologia. Uma trata do fato fisico, a outra terncomo objeto o fato vivo. Conciliar as duas fontescientificas tido é tarefa simples, mas urn desafio paratodos os que pensam numa educacdo fisica renovada.

A minha decisdo de excluir o debate sobre a cienti-ficidade da educacäo fisica deveu-se ao fato de que,al6m de ser muito polémica, especialmente nestemomento em que se fala de multi-pluri-inter-transdis-ciplinaridade, possui caracteristicas mais académicas,portanto, mais teOricas. Uma reflexao filosOfica, se-gundo Nietzsche, precisa nascer dos fatos, do con-creto. Diante disso, pareceu-me mais adequado, parando dizer mais produtivo, neste momento, desenvol-ver as possiveis tendencias e perspectivas para a edu-end° e para o mercado de trabalho, que exigem,obrigatoriamente, uma nä° concreta. Al6m disso, sdoquestOes mais imediatas. Mais imediatas, porque,mesmo que nao se resolva a questao da cientificidade,acontecem na escola e no trabalho. Por isso, julgomais pertinente refletir sobre a questdo para saber se oegresso do curso de educacäo fisica deve ser urn edu-

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cador para atuar na escola, ou urn profissional, paraatuar no sistema de producao. Ou, talvez, urn diplo-mado mais completo, capaz de ser, ao mesmo tempo,urn trabalhador e um educador. Essa distincao, hoje,parece ter-se tornado obsoleta, pouco valorizada, porisso quase esquecida, mas, sem dtivida, fundamental.Desde os gregos, essa preocupacao tornou-se basicapara o processo da formagao humana, pois do educa-dor exigia-se urn conjunto de virtudes superior a sim-ples conhecimentos e dominio tecnico, suficientesapenas para o artifice, nao para o pedagogo.

Para que fique clara minha posic-do, quero anteci-par que, no meu entender, a educagao fisica 6, emprimeirissimo lugar, uma acao pedagOgica. E, digomais, trata-se da educacão mais importante, priorita-ria e anica indispensavel a vida humana, 6 a sabedoriade viver ou a ciencia da vida humana. Aprender asaber viver 6 o que se deveria fazer ao longo da vida.Posso lido saber matematica, quimica ou fisica; hist&ria, economia ou psicologia e continuo vivendo, senao aprender a viver, nao saberei viver a vida quesou. Poderei usa-la, explora-la, mas jamais cultiva-la,isto 6, vive-la.

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EDUCACAO FISICAE 0 PROCESSO EDUCACIONAL

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E Obvio que ninguem ousaria afirmar que se podepensar a educacäo fisica como urn objeto isolado douniverso educacional. Portanto, nenhuma novidade hanessa primeira afirmacäo. A questao esta em saber deque maneira ela emergiu como uma atividade distintadas demais areas do ensino, como se situa no con-texto institucional, que significado tem na vida daspessoas e, por fim, o que representa na ordem social.

Se a educacdo fisica é uma acao educativa, serafundamental saber quais Sao os seus fundamentospedag6gicos, tanto principios filosOficos quanto ob-jetivos propostos. Tal tarefa comeca por enfrentaruma serie de interrogacOes, nada facil de responder.Ewa), vejamos. 0 que a educacdo fisica ensina oudeve ensinar? De que maneira ela deve atuar juntoaos educandos? Seu objetivo é agir sobre o fisico daspessoas? Qual a sua metodologia didatica? Ensinar

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gestos, movimentos, didaticamente falando, e o mes-mo que ensinar operacOes matematicas, formulasquimicas? Simplesmente dito, aprende-se o exerciciofisico da mesma maneira que o conteado inteligivel?A educacao fisica deveria cultivar, ou desenvolver efortalecer as potencialidades organicas, em oposicaoa educacao tradicional que desenvolve as potenciali-dades intelectuais ou mentais? A educacao, propria-mente dita, ocupa-se corn a mente, o intelecto, e aeducacao Mica corn o corpo ou a corporeidade? Mc)estaria na hora da educacao Mica buscar outros refe-renciais filosOficos, antropolOgicos e cientificos?

0 desafio que me propus foi tentar aprofundar es-sas questOes. A tiltima, a busca de referenciais tilos&ficos, antropolOgicos e cientificos, segundo minhacompreensao, e a que oferece a chave para pensartendencias e perspectivas de uma educacao fisicacomo educacao humana.

Para isso, acreditando ser mais didatico, resolvipontuar alguns aspectos que, no meu entender, podemoferecer uma visa° mais abrangente do grande signi-ficado que a educagao Mica devera ter no futuro dahumanidade, seja no ambito pessoal, seja no ambitogeral.

Fazendo uma pequena digressao, mas que servepara conformar o que acabo de dizer, you lembraruma ideia que a muito corrente sobre trés areas fun-damentais para o prOximo milènio. Em primeiro lugaresta a informatica. So quem domina a tecnologia da

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informacdo consegue manter-sea frente dos avancoscientfficos. A comunicacdo atualizada e global vai sera condicão primeira de desenvolvimento competitivoe Unica maneira de manter-se atuante na ordem uni-versal. A segunda é a ecologia. 0 homem precisacompreender a natureza. Trata-se de respeitar o pla-neta Terra, nossa patria. Em terceiro lugar, vem aeducactio fi'sica. Quem ndo souber viver sua realidadecorporal, seu organismo vivo, que é a natureza e aecologia resumidas em cada ser humano, dificilmenteconseguira usufruir urn alto nivel de qualidade devida. 0 corpo é nossa casa, nossa morada primeira eoriginal. 0 corpo sou eu.

Retomando a quesfäo da educacäo ffsica no pro-cesso educacional, you comecar pela parte mais visf-vel, a questdo da institucionalizacdo. A educacão foiinstitucionalizada segundo os princfpios de urn termi-nado processo educacional.

2.1A educacão fisica e a ordem institucional

Institucionalizar significa, em sentido geral, esta-belecer que certa atividade é reconhecida e que deveser regida por determinadas normas. Assim, a educa-cão ffsica institucionalizada passa a ser reconhecidacomo uma atividade obrigatOria no processo educa-cional escolar. Daf surge a necessidade de se estabe-

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lecer normas para seu controle e perfeito funciona-mento. Resta saber se seu ingresso no espaco escolardeveu-se a valores que the säo prOprios, o que thedaria autonornia pedagOgica, ou se foi aceita apenascomo reforco de outros valores superiores, o que acolocaria em situacao de dependencia institucional epedag6gica.

A educacäo intelectual foi institucionalizada, noOcidente, pelos gregos, como forma de preparar ocidadao, o membro da sociedade. A escola tomou-sea instituicao privilegiada para formar os novos cida-&dos. Mas, como a cidadania era urn privilegio depoucos, a maioria da populacäo, encarregada, oumelhor, condenada ao trabalho de prover os bensmateriais e a defesa da sociedade, a ela ndo teve aces-so. Foi assim que, embora institucionalizada para aformacdo das novas geracOes, a educacio escolarlevou muito tempo para ser estendida a todos, resul-tante do dever do Estado e como obrigacdo e direitodos indivicluos. Mesmo depois de tornar-se obrigat6-ria, ainda hoje milhOes de brasileiros, para ficarmosapenas entre n6s, continuam analfabetos, e outrostantos milhOes possuem uma formacäo escolar insufi-ciente para gozar uma cidadania plena.

Agora pergunto, e a educacao ffsica como ficou?Quando foi institucionalizada? Quando se tomouobrigatOria na escola? Quando foi incorporada comoexigencia do processo educativo ou como disciplinado curriculo?

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A literatura sobre a histOria da educacao fisica noBrasil 6 bastante conhecida, por isso, acredito nao sernecessario retoma-la. Aos estudiosos dessa area éoferecida tanto a histOria que se conta quanto a histO-ria que Tido se conta. Essa ultima, presumidamente,estaria contada pelo professor Lino Castelani. Pode-se, tambem, encontrar varios autores que, guiados porboas intencOes histOricas e corn esforco louvavel,buscaram periodizar cronologicamente a educacdoMica. A histOria, sem dfivida, nos mostra o percursoda humanidade. Depois da inauguracao, por MichelFoucault, do novo discurso histOlico, que ele preferechamar de arqueologia, tornou-se possivel escrever ashistOrias particulares sem a necessidade da universa-lidade ou da objetividade, mas em nome de uma ver-dade adotada pelas praticas dos homens. Assim, ahistOria da educacao fisica pole ser escrita e reescritasegundo as prâticas que dela se fizeram.

A institucionalizacao da educacao Mica, de fato,recebeu urn reforco fundamental quando surgiram oscursos de formacao superior, corn o objetivo de pre-encher as atividades escolares corn professores espe-cialistas, em substituicao aos professores leigos. Issoaconteceu, no Brasil, no final dos anos 60. Antes, aeducacao fisica institucionalizada estava restrita asescolas militares corn o objetivo de formar seus qua-dros. Quando algumas delas, como no caso da ESEFda UFRGS, foram assumidas pelas universidades, parala se transferiram corn mala e cuia. E os novos cursos

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Mint do aproveitamento dos profissionais corn for-macao militar, assumiram, na quase plenitude, o seucurricula tanto a parte teOrica quanto os exercfciosfisicos e modalidades esportivas, gerando tuna gamade situac6es um tanto impr6prias para os recursosexistentes nas universidades, por exemplo, a praticade esgrima, equitacäo, remo, apenas para citar algu-mas.

0 lugar que a educacao fisica, como qualquer ou-tra atividade educativa, ocupa na ordem institucional,em qualquer grau de ensino, depende do significadoque the 6 atribufdo. Ern qualquer processo de hierar-quizacao ou classificacao, os elementos em jogo me-recem o destaque segundo os valores que recebem.esse significado que na educacao fisica ainda nab foibem especificado, pelo menos as discordfincias säomuitas. Reforcando essa ausencia de um sentido prO-prio, 6 s6 observar o que acontece nos tres graus deensino. No ensino de primeiro a segundo graus, porexemplo, qual a contribuicao educativa da educacaofisica? Seria o esporte seu conteddo privilegiado? Noensino superior, a questan 6 muito diferente: devecontinuar ou nito? 0 estudante de universidade nä°precisa mais de educacao fisica? Portanto, ela podeser dispensavel? Se continuar, sera por imposicao delei ou por exigencia da plena formacao das pessoas?

As respostas a tais interrogagOes poderao ser for-muladas corn firmeza e fundamento quando o seusignificado for bem claro em relacäo ao processo

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educacional da fase escolar. Se a educacão fisica ndofor reduzida a apenas o periodo de escolaridade, en-fa-4z) ela podera tornar-se uma educacão permanente,sem que nenhuma pessoa, em qualquer situacdo, sejadispensada, por se tratar de uma maneira de promoverqualidade de vida.

Uma vez aceita a institucionalizacdo da educacaoMica no sistema escolar, torna-se fundamental for-macdo de especialistas que a ministrem. E a universi-dade, como introduziu em seu sistema institucional ocurso de educacdo fisica? Entre os seus diferentesinstitutos de agrupamento de cursos, onde decidiucoloca-la? Mais uma vez encontramos controversias.E um curso da area da satide? Deve ser urn instituto,faculdade ou centro corn autonomia administrativa?Ou deve ser urn curso da faculdade de educacdo? Napratica, constata-se que as duas primeiras altemativassäo as mais freqiientes. A educacao fisica parecesentir-se corn maior status academico elencada entreos cursos das ciéncias da satide. A Ultima opcdo,insercao entre os cursos de educacäo, parece ter pou-cos defensores. Ate na esfera ministerial, a educacaofisica encontrou obstaculos de diferentes ordens paraser incorporada. Hoje, se for perguntado a maioriadas pessoas que trabalham com educacäo fisica, cer-tamente, ndo saberdo dizer qual sua condicdo ministe-rial. Parece que a educacao fisica deverfi dancar entrea Ministerio da Educacdo e o Ministerio do Esporte eTurismo. Quando se apresentar como atividade edu-

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cativa deverd bater a porta de urn minist6rio, quandoseus objetivos sao as praticas esportivas precisaraprocurar o endereco de outro ministerio. Assim fleadiffcil definir seus prOprios caminhos.

No ambiente académico pareceram-me muito sin-tomaticas as atitudes e manifestacOes pouco simpati-cas a educacao ffsica. Em geral, os alunos da educa-cao ffsica dificilmente a véem como uma atividadecurricular; para a maioria, ela nao passa de uma ativi-dade que se confunde corn o esporte. Ha um tempo, aeducacao ffsica, que era chamada de ginastica, con-fundia-se corn exercfcios militarizados em fling -do dedesfiles e marchas. 0 boletim nao registrava educa-cao ffsica, mas ginitstica. FreqUentemente, o instrutor,assim era chamado, pertencia ao quadro da policiamilitar. No ensino superior, observa-se uma relutan-cia muito acentuada em inscrever-se em atividades deeducacao ffsica, busca-se por todos os meios evita-las. Analisando o calendario escolar, percebe-se queos horarios nab poderiam ser mais inadequados. Emgeral, sao os retalhos de tempo. Em primeiro lugarsao estabelecidos os horarios das disciplinas do curso,a educacao ffsica precisa adaptar-se ao que sobra,numa nftida atitude de que ela a totalmente secunda-ria. Casa a lei nao a imponha, facilmente sera des-cartada como

Neste momento, acredito ser muito significativoapresentar um depoirnento, no meu modo de enten-der, profundamente depreciador da educacao ffsica,

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que, talvez, possa ser generalizado. De qualquer ma-neira, mesmo parcial, ele é muito ilustrativo. 0 pro-fessor aposentado, Antenor Rodrigo de Lima da USP,embora nao revele expressamente, pelo seu modo defalar, deve ter sido professor de portugues, pelo me-nos, integrante do Departamento de Letras. 0 profes-sor Antenor manifesta, sua inconformidade "pela notade corte para Letras na USP no ultimo concurso daFuvest, a antepentiltima no cOmputo geral, abaixo daeducacao fisica e ciencias da terra". Exatamente essasforam suas palavras. Sua queixa sustenta-se no fatode que a escola deve dispor de professores que co-nhegam a lingua portuguesa. Nessa observagao, cer-tamente, nenhum professor, de qualquer area, discor-daria do professor Antenor. 0 que me causou muitaestranheza, e da qual discordo totalmente, é a conclu-sac) desastrosa que ele tira desse fato. Indaga ele: "Namao de quem esta o futuro do Brasil? E responde:"Na mao de milsculos anabolizados e cultura de mi-nhocas. E a lingua portuguesa? Bem, esta vai as fa-vas." Eu diria que, para defender o valor da linguaportuguesa, ele nao precisava colocar no lixo a edu-cacao fisica e as ciencias da terra. Reduzir a educacaofisica a masculos anabolizados é desconhecer seusignificado, e, pior, trata-la como desvio de condutapor parte de certos praticantes de esporte é urn gestoimpensado. Quanto a compreensao dada as cienciasda terra como cultura de minhocas, tambem nao passa

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de uma manifestacao irada. Os ecologistas teriam asrespostas mais adequadas para tal mentafidade.

Lembrei essa migoa do professor Antenor porquendo 6 o (irk° a atribuir pouco valor a educag -ao fisica;muitos, sem ter magoas, pensam de maneira muitosemelhante. E, para confirmar essa minha observa-clio, ciao urn boletim que circulou ha algum tempo,apresentando o professor de educagäo fisica com urncorpo enorme, eneimado por uma cabecinha, jadiria sinal de uma cabeca atrofiada, mas algo inexis-tente por ser täo mimiscula tal como urn ponto escurosobre os ombros de urn corpo elefantino ou masto-dOntico. 1 verdacle que tal desenho dirigia-se a umacerta camada de praticantes de educacao fisica que alimitavam, a exercfcios ffsicos, recusando-se a pensa-la. No meu mod° tie, ver, tais atitudes, mais que de-nunciar os maus professores ou profissionais, deni-grem a irnagem da educacio fisica.

Os fatos que mostram essas atitudes depreciativasda educacio Mica, vindas ate do interior da mesma,sao variados e freqiientes, mas ha tamb6m aquelesque se esforcarn para mostrar que a educacao fisica 6uma exigencia fundamental para o born desenvolvi-mento de todas as pessoas. Por isso, urn lugar dedestaque na ordem, lostitucional somente sera alcan7gado pela educactio fisica quando nos the dermos urnsignificado prioritario em nossa vida pessoal, tantodurante o process° educacional escolar quanto nodecorrer de toda a existencia.

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2.2A educacdo fisica e a vida pessoal

A valorizacao da educagao fisica depende direta-mente do modelo de vida que levamos como indivf-duos ou como coletividade. Cada um de nos tem urnconjunto de valores, individualmente escolhidos, clas-sificados e hierarquizados, que constituem a face denossa existencia. Entao fica facil saber onde cada urncoloca a educagao fisica. Cada sociedade, por suavez, sustenta-se sobre urn sistema de valores muitobem institucionalizados. Nao é preciso consultar ma-nuais ou dicionarios para saber qual o tratamento quea educagao Mica recebe das pessoas e da sociedade,basta um momento de atengao sobre nos mesmos esobre o ordenamento social.

Ha outro modo de perceber o valor da educagao fi-sica em nossa vida, a compreensao que temos docorpo. Que id6ia, que significado, que tratamentocada um da a seu corpo? Uma pergunta que, quasesempre, surpreende as pessoas. Na verdade, umapergunta corn resposta facil, ao alcance da mac); tal-vez nao muito agradavel, em alguns casos, muitoconstrangedora ou, ate, assustadora. E so consultar asi mesmo.

A educacao fisica esti vinculada a relacao quecada indivicluo estabelece corn seu corpo. Quem sepensa como corpo, vera na nela o espago pr6prio paradesenvolver e aperfeigoar a corporeidade; quem se

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julga urn senhor proprietario do corpo, a transformardnum processo de fortalecimento das funcOes instru-mentais para servir o todo-poderoso patrao.

Ja que a educacilo fisica e o corpo, ou a corporei-dade, tem muito a ver historicamente em nossa formade viver, toma-se indispensavel olhar o tema cornmais atencao e em diferentes direcOes. 0 mais corretoseria rever a histeria do corpo, particularmente a es-crita por Roy Porter, ou aquela que transparece emVigiar e punir de Michel Foucault. Alguns tacosgerais, espero, sera° suficientes para revelar os corn-prometimentos hist6ricos entre corpo e educac-dofisica.

A significaclio do corpo na existencia humana,desde o surgimento dos estudos antropolOgicos, nãose acha ainda claramente definida. Os povos prirniti-vos, segundo os estudiosos observaram, ndo tinhamuma ideia do corpo humano. Ele se confundia corn oscorpos de todos os seres da natureza. 0 homem, cha-mado de civilizado, passou a criar uma imagem de simesmo, o que fez emergir, como conseqiiencia, umarepresentacão de corpo. Como ja me referi anterior-mente, näo e possivel, nesta reflex -do filos6fica, per-correr toda a histeria do corpo. IsTao se pode, entre-tanto, esquecer que as nossas duas vertentes antropo-lOgicas principais, a grega e a biblica, encarregaram-se de transmitir, particularmente aos povos ociden-tais, uma ideia denegrida do corpo. 0 que importavano homem era a vida mental, espiritual ou psiquica. A

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raid°, a consciéncia e o espffito continham a humani-dade do homem. As dimensOes fisicas ou organicasconfundiam o homem corn a vida animal. As mani-festacOes de origem corporal eram interpretadas comosendo atitudes animalescas. E foi assim que todos osocidentais nasceram, cresceram, tornaram-se adultose enfrentaram a morte, como se fossem navegadorestotalmente distintos do barco. Foi assim que, no dizerde Gusdorf, "Meu corpo nä° sou eu; é outro que naoeu, urn corpo num mundo de corpos e nao o lugar deminha presenca em mim mesmo, de minha presencanum mundo e nos outros. A ciéncia toma posse destedominio do qual faz urn departamento da natureza,submetido ao direito comum da ciencia natural" (Aagonia de nossa civilizapao, p. 126). Diante dessecorpo pesado e obstaculo para o born desempenhodas atividades intelectuais, ou como fonte de forcasperversas e de manifestagOes pecaminosas, a educa-cao ocidental viu-se na obrigacao de estabelecer seve-ras normas de controle, de disciplina e de castigos.

0 homem moderno, menos submisso as normas damoral religiosa e mais propenso a aceitar as condi-cOes da vida corporal organica, parecia ter superadoessa mentalidade de desprezo e de inferioridade docorpo em sua existéncia. Percebe-se, entretanto, queainda nao foi possivel adquirir uma compreens -do docorpo como algo especffico do ser humano. 0 corpocontinua sendo esse desconhecido no interior daexisténcia. Quem sabe o receio de cair no materialis-

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mo ou no reducionismo seja o grande obstaculo paraque as pessoas se aceitem como corpo. Preferimoscultivar uma auto-imagem como razäo, como cons-ciencia, como psique ou eu transcendente, continuan-do, assim, comodamente, a tratar o corpo como urnoutro, urn estranho, um exterior a nos mesmos. Difi-cilmente buscamos conhecer o prOprio corpo pelaexperiencia ou vivencia que dele temos, ou melhor,somos, e preferimos ve-lo atravós das representagOesnos livros de anatomia, de fisiologia, de genOtica,quando nao, de patologias que fazem parte do acervodos especialistas em histOria natural. 0 corpo vivo,meu corpo que eu conhego, porque o vivo, portanto,sentido de dentro, ainda nao comecou a nos interessarefetivamente. Preferimos contempla.-lo do lado defora, como urn objeto material, para depois assumi-lo,nao como algo vivido, mas como uma representacäointeligivel.

Olhando o corpo humano sob o ponto de vista desua morfologia ou de sua organizagão molecular, oADN, nao da para estabelecer diferengas substanciais.0 que mais esti mudando, neste final de seculo e demilônio, e a relaclo que as pessoas estabelecem cornseu corpo. Um dos elementos mais caracteristicos dachamada pOs-modemidade e o tema do corpo ou, sequiserem, da corporeidade humana. Instalou-se, nes-tes altimos anos, um certo culto do corpo, aparente-mente apresentado como urn gesto de exaltacäo que

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teria como objetivo primeiro desencadear urn proces-so de libertacao.

Diante de tal fato, deve-se perguntar sobre as ra-eyes dessa mudanca. Seria de fato uma mudancasubstancial pela qual o corpo assume urn lugar privi-legiado na existencia humana, ou tudo nao passariade uma acomodacao das tradicionais relacOes men-te/corpo, ou consciencia/corpo? 0 corpo exaltado ecultuado parece continuar em sua posicao de inferio-ridade frente a valores que the seriam superiores. Asubserviéncia seria mantida, a mudanca so acontece-ria nos personagens do cenario. Urn simples apelo ahistOria nos mostra que, na Idade Media, o corpodevia anular-se diante da perfeicao espiritual da alma.Na modernidade foi estabelecido que as forcas corpo-rais deviam estar a servico do bom desempenho inte-lectual. Corn a Revolugao Industrial, o corpo trans-formou-se na fonte de energia aplicada ao trabalhoprodutivo. 0 homem moderno abandonou o habitomedieval de neutralizar o corpo e adotou procedi-mentos disciplinadores para torna-lo mais titil e pro-dutivo. 0 corpo foi transformado numa peca funda-mental para as atividades de producao, segundo asrigidas normas da rano instrumental.

Por fim, na assim chamada era pOs-moderna oupOs-industrial, muitos acreditam que o corpo foi to-talmente liberado de tabus religiosos, de preconceitosculturais, de conceitos filosOficos ou de preceitoseticos obsoletos. Freqiientemente ouve-se a procla-

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macäo de urn corpo completamente liberado. Dupla-mente liberado. Liberado dos vestuarios que o enco-briam e de qualquer norma inibidora de suas naturaismanifestacOes. 0 que garantiria a todos o gozo plenodo corpo.

Uma observacao mais atenta mostra que ha fortesindfcios de que estamos diante de mais uma ilusao. 0corpo, a verdade, pode despir-se num completo strip-tease, mas precisa, ern sua nudez, supostamente libe-ralizante, obedecer a certos requisitos impostos porcriterios de valor estetico. 0 corpo, para expor-se nu,precisa estar bronzeado, submeter-se a paddies debeleza, a medidas de altura e de peso. Em outras pa-lavras, se o corpo, por um lado, nä° precisa maissubmeter-se as virtudes da alma ou aos ditames darazao, por outro, nao consegue livrar-se dos rigoresde modelos esteticos culturais. Antes, sacrificado porpenitencias, jejuns ou submetido a disciplinas; agora,entregue a dietas alimentares e exercfcios ffsicos quethe confiram a forma substitutiva do velho vestuario.As formas esteticas, a cor bronzeada, o combate agordura, o recurso aos antfdotos contra os abusos docorner e do beber, as cirurgias plasticas, a manuten-cao das fonnas corporais juvenis, a preservacao ourestauracao da performance sexual sao os novos tira-nos que atormentam o corpo. A silhueta corporaltransformou-se, metaforicamente, no Ultimo modelo aser vestido.

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Esse corpo desnudo, plena ou parcialmente, en-contra nos meios de comunicacao televisiva urn re-forgo atraves da supremacia da imagem. As revistaser6ticas alcangam tiragens estratosfericas exibindo anudez em todas as cores e formas. Parece que a pala-vra esta perdendo sua forga diante do princfpio de quetudo tem de assumir uma representagao visual. Ora éo corpo inteiro, ora são suas partes ou seus membrosque se transformam em mensagem, em engodo, eniilusäo para os olhos famintos de milhOes de telespec-tadores e consumidores de revistas pornograficas.

E sabido que pouqufssimos sdo os que conseguematingir formas atleticas, mas todos ficam sonhandocorn urn corpo atletico. Centenas de milhares de ado-lescentes sonham corn o sucesso nas passarelas dedesfiles de moda. Ser modelo parece ser o ideal maisincubado no imaginario das garotas, desde a infancia.Diante de tal espetaculos torna-se triste constatar que,segundo confirmam as estatisticas, na melhor dashipOteses, apenas uma jovem, em cada cem, podeconseguir urn corpo escultural, como o exibido pelasmodelos. Mas milhares acorrem desesperadamente aacademias de ginastica como preparagdo para os con-cursos de modelos ou similares. Quantos esforgos,malhacOes e dietas de emagrecimento para alcangartais objetivos, na maioria das vezes, sao intiteis. Pos-so ate exagerar, mas acredito ser legftimo comparartal obsessdo pelas formas corporais corn a loucurapraticada na Idade Media em relagdo aos meninos

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cantores. Talvez a agressäo dos meninos, diante dosonho de ser um cantor famoso ou simplesmente departicipar de um coral, fosse muito mais grave do quea agressão imposta atualmente para obter uma formaestetica. A semelhanca, entretanto, mostra os mesmosprocedimentos obsessivos. Os meninos cantores eramlevados a castracao corn a finalidade de manter a vozsoprano. Milhares deles, dizem os historiadores, fo-ram submetidos pelo,s prOprios pais a tal mutilacao,corn a esperanca de que o filho se tornarsse urn cantorfamoso. Quantos jovens apelam para ester6ides ana-bolizantes a fim de alcancar formas atleticas! Quantasjovens submetem-se a dietas criminosas sonhando emter urn corpo de cinderela! Isso sem contar as dife-rentes violacOes da vida afetiva e do equih'brio psi-quico e social.

No meio de tantos delirios diante de formas passa-geiras, surge, aqui e ali, algum sinal de certa lucidez.Em recente reportagem o jornal Folha de Sao Paulodava uma manchete anunciando que "Filosofia atraiex-atletas", e acrescentava: "Hoje pensadores queestudam a etica, a 16gica e a ideologia do esporte,divergem sobre a manipulacão do corpo na busca derecordes (4.8 de 25/4/99). Tambem, no mesmo jornal,Suzana Alves (conhecida como Tiazinha) declarouque "Näo quero ser apenas urn bumbum. Tenho deinvestir em meus estudos", explicando porque voltoua cursar jomalismo. Quantos vivem pendurados emfuncOes instrumentals do corpo! Toda ferramenta, urn

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dia, inevitavelmente se desgasta, torna-se pega demuseu ou material de reciclagem. As prOteses e ci-rurgias plasticas encontram o espaco ideal de seudesenvolvimento. De urn lado, acolhem os sonhos eas esperangas dos descontentes corn o pr6prio corpo,de outro, proporcionam lucros fantasticos aos investi-dores.

Neste contexto, se for possivel chegar a algumaconclusao, eu diria que se chega a verdadeira valori-zagao do corpo quando ele se constitui na mac, deviver. Nao pode ser reduzido a simples instrumentoou ferramenta. Eu sou o corpo. 0 corpo é mais do quemeu, ele é eu. 0 eu se construiu no corpo e comocorpo. Foi o corpo que construiu o eu. A glorificacaodo corpo é a razao da existencia, nao seu aniquila-mento, esse deveria ser o grande objetivo da educa-cao fisica. A "ciéncia" que ensina a viver o corpo,nao a usa-lo.

Depois de tudo o que foi dito, com certeza, pode-se afirmar corn plena convicgao que a educacao fisicatern seu significado vinculado ao significado atribui-do ao corpo. Diria mais, a educacao ffsica tera omesmo valor da nossa existéncia como seres corpo-rais.

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2.3A educactio fisica e a escola

Se a educagio fisica enfrenta dificuldades para en-contrar seu espaco na ordem institucional, se naosabemos corn clareza qual e o significado do corpo navida pessoal, saber qual e o lugar da educagdo fisica edo corpo no espago escolar torna-se ainda mail com-plicado, ja que a escola a uma instituicdo criada parapromover o desenvolvimento intelectual. Desde crian-ga, os pais sabern o que os filhos precisam e devemaprender. E impressionante a felicidade delirante dospais quando percebem que os filhos estdo manifes-tando urn incomum e precoce brilhantismo de capaci-dades intelectuais. E verdade que, corn a invasäo datelevisdo e das imagens corporais de famosas apre-sentadoras, os dotes fisicos acabam por rivalizar cornos dotes de inteligencia, mesmo assim, a preocupagdocorn a iniciagao intelectual continua sendo o maiordrama do poder paterno. A escola, como o lugar doensino-aprendizagem, continua sendo o referencialinevitavel para assegurar a todas as criancas um futu-ro brilhante.

Ndo se pode esquecer que a estrutura da escola foitotalmente planejada e desenhada para o desenvolvi-mento de atividades de ordem intelectual. As escolasinstituicoes inspiradas numa antropologia racionali-zante que definiu o homem como urn ser racional. A

simbolo da dimensão intelectual, define a es-40

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pecificidade do ser humano como urn ser pensante.Por isso, as atividades planejadas em seu interiordevem dedicar-se exclusivamente ao aperfeicoamentodas capacidades intelectivas dos alunos, as atividadesfisicas quando nao estao em consonancia corn oaprendizado de conhecimentos, podem ser dispensa-veis, em especial, se forem consideradas desfavora-veis. Aceita-se a tese de que o movimento é prejudi-cial ao born funcionamento das capacidades mentais,cujo desempenho maior acontece na imobilidadecorporal. Nada de estranhar se o curriculo na suatotalidade concentra-se na execucao de tarefas quetransmitem conhecimentos. 0 corpo entra na escolaapenas porque a inteligéncia nao pode ir sozinha. Defato, pode-se dizer que os pais matriculam a inteli-gOncia dos seus filhos. As salas de aula, com seumobiliario, mostram que sao o lugar de exercitar amente. As postural corporais sao de imobilidade esubmissao ao grande objetivo de apreender conteildosinteligiveis. Nao ha lugar para o corpo manifestar-se.Suas atividades podem acontecer fora da aula. Asatividades fisicas, especialmente quando tiverem urncarater ludico, sac) seriamente questionadas pelospais, dizendo que se for para brincar, os filhos podembrincar em casa, nao precisam ir a escola.

A partir do que foi exposto, conclui-se que a edu-cacao fisica nao faz parte do processo educacionalpropriamente dito, proposto e desenvolvido em nome

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da racionalidade. 0 corpo nao se educa, mas se disci-plina, se controla, se domina, se neutraliza.

Hoje, devido a estreita vinculacdo da educacdo fi-sica corn o esporte, construfram-se ginasios polies-portivos como uma extensão complementar da escolaque, no meu entender, favorecem a formacäo de atle-tas e nao propriamente a educacdo corporal. De qual-quer maneira, a educacdo fisica pode ter conseguidoseu momento de auto-afirmacdo, ainda que nao comoKA° pedagOgica, mas como pratica esportiva. Tenta-se amenizar essa aproximacão corn o esporte atravesda apresentacäo do esporte educacional. Haveria urnesporte educacional? Essa a uma outra questäo quemerece urn capftulo a parte. Para quem gostaria deaprofundar o tema, a leitura das publicaciies promo-vidas pelo INDESP traz as linhas gerais dos principiosque garantiriam o essencia do esporte educacional.

A grande oportunidade da educacão fisica, penso,nao esta na sua "esportivizacaso", mas numa novaconcepcäo antropoh5gica. Trata-se da antropologiacorporal, nao como substituta da antropologia racio-nal, mas como maneira de ser do homem. 0 hornem 6corpo. Essa tese, proposta e fortemente sustentada porMaurice Merleau-Ponty, levanta, aparentemente, umas6rie de confusOes. A primeira delas, talvez a maisdenunciada, e a de urn materialismo radical. Outra 6 aque negaria os valores espirituais transcendentais. Ou,ainda, que levaria a urn reducionismo: o homemapenas corpo. Tudo flea resolvido quando se desco-

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bre que Merleau-Ponty, referindo-se ao homem comocorpo, rido entende o corpo como a parte da antropo-logia tradicional. 0 corpo engloba a totalidade dohomem, näo apenas sua parte fisica ou organica. Nes-se sentido, pode-se tambem invocar o livro de AntO-nio Damasio, 0 erro de Descartes. Qual seria o errode Descartes? A separacdo radical entre mente e cor-po. 0 ato de pensar ndo é, como defendia Descartes,uma atividade separada do corpo. Segundo Damasio,a neurobiologia mostra que mente e corpo sdo res-ponsaveis pelo pensamento. No tempo de Descartes,os conhecimentos de neurologia eram muito superfi-ciais, insuficientes para impedir a formulacdo e aaceitacdo do dualismo cartesiano. 0 tema da corpo-reidade, na linha de Merleau-Ponty, ndo pode sercolocado em paralelo a concepcdo cientffica de corpo,tambem nao pode ser interpretado a luz do conceitode materia da antropologia filosOfica. E, segundoGhislaine de Florival, na aproximacdo corn o fato daencarnacdo da teologia cristä que se pode percebermais claramente a originalidade da sua compreensdode corporeidade. No apOstolo Paulo, aparece a nocaode carne em oposicdo ao conceito grego de corpocomo lugar e instrumento da psique. 0 corpo-carne,apresentado na obra pOstuma 0 visivel e o invisivel,torna-se o lugar prOprio do existir, significa existenciahumana. Quando o Filho de Deus assume a condicaohumana, o texto biblico diz simplesmente que ele setornou cane: "E o Verbo se fez came".

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Outra possibilidade da educacao Mica tornar-sepresente na acao pedag6gica escolar 6 a nova relacaoque a sociedade contemporanea estabeleceu com ocorpo. Como ja foi dito, ha urn culto aos dotes corpo-rals, uma preocupagao corn as formas est6ticas, umaentronizacao do corpo nas relacOes sociais. 0 socialparece estar sendo revisto por implicacOes nas quaisestao mascaradas as dimensOes corporais. Quantadiscriminacao e exclusao ocorrem devido a nao acei-tacao da situacao corporal. Entre outras, pode-se citara questao da cor, o fator idade, defici6ncias fisicas,estatura, doencas contagiosas, etc., como razOes cor-rentes para confrontos socials.

Diante destes novos espacos, que eu chamaria deuma antropologia corporal, a educacao fisica podeconstruir sua pr6pria identidade e autonomia pedagO-gica. Nao se trata de esperar protecionismos de leisou normas governamentais, rnas de mostrar servico,projetos e argumentos. Nem sempre a pelos convitesque se chega a algum lugar, mas pela oferta de con-tribuiceies, de propostas e de atuacties efetivas. Ficaresperando pelos outros, muitas vezes, nos deixa,exatamente, onde estamos. A educacao fisica poderaser uma forma de eliminar as diferencas sociais porrazOes simplesmente de estereOtipos corporals.

Como ilustracito, quero lembrar dois exemplos.Urn protagonizado por Van Gog. Todos sabem que,em vida, sua obra artistica nao obteve sucesso. Dizemque teria vendido apenas urn quadro. Mas ele conti-

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nuou pintando. Produziu urn acervo monumental.Depois de sua morte sua arte foi reconhecida. E oreconhecimento foi tao extraordinario que, como sesabe, foi o primeiro pintor a receber urn museu exclu-sivamente para sua obra, inaugurado em Amsterdaem 1974. Outro exemplo é Nierstche. Um filOsofoque, em vida, nunca ensinou filosofia. Seus escritoscausavam espanto e ate desprezo. Ele continuou es-crevendo seus livros, ou suas "loucuras". Hoje, semdilvida, é urn dos pensadores mais lembrados e maisestudados nos cursos de filosofia, sem falar nas cita-cOes que encontramos em toda parte, especialmentequando se quer manifestar urn sentimento de rebeldia.

A educacäo ffsica corn rosto prOprio, certamente,precisa ser construfda, inventada. A educacdo ffsicaque disciplinou corpos ou que molda atletas ja esta af.A educagdo ffsica, acao pedagOgica, para educarcorporeidades no interior das escolas esta esperandoos seus criadores ou inventores. E born lembrar queas pedagogias cognitivistas se desenvolveram porquetransmitir conhecimentos era a grande tarefa da es-cola. A histOria da pedagogia mostra as turbul8nciasprovocadas por novas teorias, o que, de fato, repre-senta a atualizacão constante da educacão racional. Apedagogia cognitiva nä° foi elaborada uma vez parasempre, pelo contrario, uma linha ininterrupta deteorias foram se sucedendo ao par de renovados me-todos diddticos na tentativa de assegurar a eficacia doato de conhecer.

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Desenvolver pedagogias corporais, nao como opo-sic-do ou negacão da pedagogia cognitiva, mas comoproposta mais abrangente do desenvolvimento huma-no, e o desafio para o futuro. Se a condicao humanaser corpo, evidentemente que a pedagogia nao podeprivilegiar o pensamento como uma funcilo autOnomaao corpo. Os especialistas em educagdo ffsica aceitamassumir o compromisso ou preferem continuar sub-altemos prestadores de servicos? Corn isso nao querodizer que agora chegou a vez da educacäo ffsica as-sumir a pedagogia, mas, certamente, precisa reivindi-car o seu Lugar junto as outras areas pedagOgicas, naelaboracdo de uma pedagogia abrangente, capaz dever o ser humano como totalidade e unidade.

2.4A educacim fisica e a ordem social

A sociedade, segundo minha percep0o, tern umavisa° muito clara da educacdo ffsica. Ela nao passa deurn conjunto de exercfcios ffsicos, ate pouco tempo,apenas direcionados as priticas esportivas. Mais re-centemente, a educacdo ffsica tornou-se, especial-mente para as elites, ora urn recurso para manter asformas corporais, ora urn refdgio para livrar-se dospesadelos da vida sedentaria. De um lado, procura-se,nos exercfcios fisicos, tecnicas de modelagens esteti-cas; de outro, busca-se, pelo movimento, o milagre de

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amenizar o estresse. Mas o maior referencial atualpara a atividade fisica é a sailde. Atividade fisicapassou a ser o sinal mais convincente de vida saudA-vel.

Como a sociabilidade é urn reflexo do conceitodualista do homem, o criterio do Indice de racionali-dade determinou o grau de sociabilidade. 0 contatofisico ficou reservado apenas ao domestic°, a esferada intimidade, ao convivio das amizades. No ambitoda sociedade, a presenca corporal ficou restrita asformalidades burocraticas, das boas maneiras, daetiqueta, do comportamento recatado. 0 grande refe-rencial das relnOes sociais Sao os gestos comandadospela raid°. A insercao no social se da pelo grau deracionalidade. A exclusao, por sua vez, acontece pelarazao inversa, auséncia de racionalidade, desequill-brio racional ou perda do use da raid°.

Em relnao ao profissional da educnao fisica, asociedade o enquadra obrigatoriamente no perfil deurn corpo atletico. A autoridade profissional do pro-fessor de educnao fisica depende de sua massa fisi-ca. Nao sac) suas ideias, seus ideais pedagOgicos queo recomendam, mas seu porte fisico. Numa sala demusculnao, mais que suas propostas tecnicas, é suamassa muscular que inspira confianca; numa acade-mia de aerObica, é a perfeicao de sua silhueta queatrai os freqiientadores; num programa de atividadesesportivas, sac) suas performances que impOem orespeito dos participantes. 0 valor do profissional,

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professor ou nao, gira sempre em torno dos resultadosobtidos gracas as atividades propostas, não corn basecientifica, mas esculpidos na pessoa que orienta taisiniciativas. Numa comparacao, diria que a situacäo doprofessor de educagão ffsica assemelha-se a do ven-dedor de produtos ou dietas de emagrecimento. Se elefor gordo, tudo estit perdido, mesmo que ele ndo es-teja interessado em utilizar seus produtos. Comoalgu6m vende produtos sendo uma figura oposta aosresultados anunciados pela mercadoria vendida?meio caminho andado rumo ao descredito.

Numa sociedade em que o corpo passa a ter umacerta exaltacäo, fica evidente que a educacão ffsicaencontra uma receptividade facilitada. 0 importantesaber como aproveitar esse espaco surgido, diga-se,de passagem, nio por merit° da educacao ffsica, maspor uma mudanca de relacionamento das pessoas cornseu corpo e da funcão que a imagem corporal adqui-riu na comunicacäo televisiva. Em ambos os casos, asformas esteticas prevalecem. Resta saber se a educa-cdo ffsica continua no papel de prestadora de servicose não no de mentora de um programa de nova viven-cia corporal. Se antes disciplinava corpos para umasociedade racionalizada, hoje podera ser urn laboratO-rio de pr6teses de OrgRos ou funcOes corporais. For-talecer mtisculos, explorar os membros superiores ouinferiores conforme a modalidade esportiva, controlaro consumo aerObico, aumentar a velocidade, as re-sistencias ou os impulsos corn exercfcios e dietas,

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quando nä°, drogas, etc., constitufram os grandesobjetivos da educacão fisica tradicional.

Ate agora, aceitamos passivamente o monopOlioda cultura intelectual, chegou a hora de se comecar adiscutir a cultura corporal, já que se tornou uma exi-gencia da sociedade contemporanea. 0 modo de vidado homem da era pOs-industrial acentua, cada vezmais, urn desequilfbrio entre o consumo de energiasfisicas e o consumo de energias psfquicas. ComentaGusdorf que: "A cultura fisica intervem quando to-mamos consciencia de que uma parte das forcas doindividuo permanece sem emprego, e, portanto, dis-ponivel para o use utilitario. 0 corpo, que cessou deser urn instrumento de trabalho, exige ser liberado deseus excedentes de energia disponiveis" (op. cit., p.134). Gusdorf, corn muita propriedade, chama, tam-bem, atencao para o perigo de uma cultura corporaldesvirtuada diante do comportamento adotado pelosindividuos de cultivar o prOprio corpo seguindo osprincipios da racionalidade utilitarista, tanto que"cultiva o corpo como cultivaria uma horta de legu-mes ou um jardim de fibres" (p. 134). Ndo se trata deseu prOprio corpo, ligado a sua existencia, mas umcorpo oferecido ao trabalho produtivo, que merece,num momento determinado, uma atencdo especial,como garantia de que possa voltar a funcionar nor-malmente nas atividades de seus negOcios. E ainda,seguindo o pensamento de Gusdorf, "0 corpo dagindstica aparece sempre a maneira do motor, que é

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preciso utilizar de sorte que retorne a urn regime sa-tisfatOrio; nao meu corpo, o irmao-corpo integrado aunidade de minha vida". Essa atitude fica claramentedemonstrada quando observamos o homem urbano, oexecutivo, o profissional liberal, o burocrata, etc.,enclausurado, diariamente, em seu apartamento ouem seu escritOrio, gabinete ou consultOrio: depois deter cumprido, pela manlia, seu ritual ginastico pode itou voltar a seus afazeres rotineiros, nao pensa maisem seu corpo. ApOs o ritual ginfistico, julga-se quitecorn o corpo, dal em diante entra-se num outro uni-verso. 0 ritmo do trabalho impOe-se, o corpo, hapoucos instantes cuidado carinhosamente, passa a sersobrecarregado, esgotado; alimenta-o mal e as pres-sas, as vezes demasiadamente, quase sempre errone-amente e sem nenhuma preocupacao corn seus meta-bolismos naturais. 0 corpo fica submisso ao regimede trabalho e ao tempo disponivel. Foi colocado aservico de outras causas, ele nao conta mais.

Evidentemente essa cultura fisica nao passa deuma desnaturacao corporal, adotada por grande partedas elites sociais. Das classes trabalhadoras nem sepode falar. 0 corpo a usado para sobreviver. No casodas classes privilegiadas, a educacao fisica pode con-trariar ou inserir-se nesse processo de desnaturacaodo corpo ou, ate, pode contribuir para agrava-lo atra-v6s da mitologia do esporte e do culto do camped°olimpico, com a estreita e camplice colaboraclIo dosmeios de comunicagao de massa.

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Fica evidente que esta na hora de pensar num cor-po cidaddo, não apenas numa consciencia cidadi 0homem precisa viver corn o direito de obter os recur-sos necessarios para desenvolver sua existencia.

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EDUCAQAO FISICAE PROJETO PROFISSIONAL

O

A histeria mostra que cada povo criou sua cultura,definiu, dividiu e classificou suas atividades ao mes-mo tempo que foi distribuindo tarefas e estabelecendonormas para ter o direito ou o dever de exerce-las.Surgem, assim, diferentes instituicOes que coordenamas atividades basicas como garantia de satisfazer asnecessidades de sobrevivencia do individuo e dogrupo. As instituiVies que giram em torno do governoforam as primeiras a serem regulamentadas. 0 exer-cicio do poder mereceu uma prioridade de regula-mentacao. 0 lugar, o tempo e o sujeito do poder re-ceberam, na pratica, as mais variadas atribuickies, atehoje, as diversidades estao em toda parte. Ha sempreuma preocupacao com o detentor do poder, com omomento e o espaco em que pode ser exercido. Asciencias politicas oferecem uma literature riquissima.Aqui, o tema somente a lembrado para dizer que a

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educacAo fisica, como qualquer outra atividade, pagatributo as instituicOes de poder.

Os processos institucionalizantes, entretanto, pas-saram por graves conflitos internos ate serem confir-mados, não raro, sustentados pela forca. Depreende-se que a institucionalizacdo da vida social ndo é umadecorrencia natural, mas uma constmcdo coletiva. Namedida em que uma ordem social se instala comoimposicdo consensual ou nAo, ela sempre necessita dejustificativas para se legitimar. Para os gregos, foi anatureza. Para a cultura judaico-cristä, d Deus. Amodemidade estabeleceu a razAo humana como abase de qualquer institucionalizacdo, explicitada nassuas duas maiores criaturas, a ciencia e a tecnica. Foiassim que surgiu o Estado Moderno composto pelotriplice poder, legislativo, executivo e judiciario.Estava assim institucionalizada a ordem politica doOcidente. Corn a RevolucAo Industrial institucionali-zou-se, nos mesmos criterios da ciencia e da tecnica,o sistema produtivo. Surgiu, por conseqiiência, omercado de trabalho. Nele se estabeleceram as atri-buicOes necessarias para atuar nas diferentes areas deexploracdo das riquezas naturais e na execucdo deprestacdo de servicos. Aos poucos foram surgindo asprofissiies, forcando a delimitacao do territOrio deatuacäo de cada uma. A escola passou a ser a institui-ção encarregada de legitimar a competéncia necessa-ria para o exercicio de cada profissào.

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Nessa descricäo telegrafica, pretendi apresentartodo o percurso da forma como se constitufram asdiferentes instituicties ate o momento presente, e ocaminho a ser seguido para criar futuras instituicEes.

A preocupagdo, agora, 6 saber qual o territOrio deatuacäo profissional que o diplomado em educacdofisica tem direito a ocupar. Na area educacional,como professor, ja esti assegurado. No mercado detrabalho, porem, ainda nao ester plenamente definidoseu campo exclusivo de atuaclo. E isso por dualrazOes. A primeira, porque ainda nito ha uma basecientifica prOpria que a distinga de outros cursosprofissionalizantes. A segunda, porque nap ester esta-belecido urn territOrio especifico no mercado do tra-balho. Quanto as exigencias cientificas, aos poucos asituacao vai se acomodando, especialmente quandoha uma demands de trabalho. No mercado de traba-lho, obserya-se que aos poucos vao surgindo exigen-cias do diploma de ensino superior em educacao fisi-ca para exercer certas funcOes vinculadas a atividadesfisicas, particularmente treinamentos esportivos, em-bora haja, ainda, a dependencia de urn atestado daautoridade medica. Nos prOprios clubes, a liberagãodo atleta a decisiio do medico. As academias, prova-velmente, poderilo ser o espaco mais natural para aexpansäo profissional da educagäo fisica.

Pelo que foi exposto ate agora, flea claro que hamuito espaco no mercado de trabalho que pode serocupado pela educacio fisica. 0 importante a creden-

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ciar-se para isso, mostrando competencia atrav6s deconhecimentos especializados e t6cnicas eficazes. 0ponto mais delicado, no meu entender, 6 nao tantogarantir urn mercado, mas definir uma filosofia detrabalho. A questao poderia ser formulada assim: quevalores a educacao Mica deveria desenvolver nomundo do trabalho? Ou em que principios deveriafundamentar seu direito de trabalho autOnomo?

Vou tentar encontrar os caminhos para ver se hapossibilidades para a solucao dessa questa°. Naotenho, entretanto, a pretensao de resolver o problema,julgo-me satisfeito se conseguir apontar algumasalternativas.

3.1Fontes de conhecimento

0 saber, seja ele cientifico ou nao, sempre foi aexigencia primeira para desenvolver, segura e eficien-temente, uma atividade qualquer. Ao colocar o sabercomo ponto de partida, nao me refiro exclusivamenteao saber teOrico, mas a qualquer tipo de saber. 0saber cientifico fornece uma explicacao teOrica. Navida pratica, ao contrario, sempre que surge a neces-sidade de executar uma tarefa, a primeira atitude 6perguntar se alguem sabe fazer. Baseado nessa tese,ouso dizer que a competencia da educacao Mica podeestar fundada em duas fontes de conhecimentos (ago-

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ra sim, como exigencia da cientificidade academica,you referir-me ao conhecimento cientifico): umatradicional, outra inovadora. A primeira segue o mo-del() da ffsica, a segunda adotaria o modelo da biolo-gia.

A) Conhecimentos de fisico-quimica

A fonte tradicional das praticas da educacäo ffsica,uma vez institucionalizada como atividade academi-ca, foi constitufda pelos conhecimentos advindos daffsica e da qufmica. Os cientistas positivistas afirmamque o universo nao passa de uma gigantesca maquinaregida exclusivamente por forcas ffsico-qufmicas.Nada mais ha alern dessas duas fontes de energia.Assim, o corpo humano, um objeto como os demaiscorpos da natureza, estaria tamb6m sujeito a esseregime de forcas. 0 importante a conhecer o corpo,que nao passa de uma maquina, para depois formularos princfpios que regem sua organizacao intema eseus movimentos. A esse resp6ito, basta lembrar oque se afirmava do coracAo. Inicialmente era umacaldeira de aquechnento do sangue, produzido e vin-do em estado frio do ffgado. Posteriormente tornou-seuma central de bombeamento do sangue, segundo urnsistema fechado de vasos comunicantes. Os fenOme-nos internos, por exemplo, o metabolismo, passarama ser tratados como meras reacOes qufmicas.faltou, mais reeentemente, quem afirmasse que oprOprio amor era um fenOmeno de qufmica. Mao 6

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preciso andar muito para comprovar o domfnio dainfluencia qufmica, é suficiente observar as bases damedicina quimioterdpica. A quase totalidade dosmedicamentos é apresentada segundo sua composiedoquirnica.

As leis da ffsica já estdo formuladas pela ciénciaffsica, as composieOes qufmicas sdo fornecidas pelaqufmica, resta aplied-las ao corpo humano. Isso ditode maneira muito simplificada. E, como conclusdo, oftemos a base cientffica da pratica dos exercfcios ffsi-cos para dar maior rendimento ao corpo humanoconforme a atividade que deve desempenhar. Osmovimentos, as resistencias, as velocidades, os saltos,as rotagOes e o equilfbrio seguem as leis basicas daffsica dos corpos em movimento ou repouso. Asenergias necessarias para a execucao das atividadessao produzidas por agentes e reagentes qufmicos, emprincfpio, existentes no tipo de alimentacdo, o quenao exclui, freqiientemente, o recurso a drogas qui-micas.

Acredito que ndo estou exagerando, pelo menosndo sou voz isolada, se afirmar que a educacdo ffsicaatual, salvo excecOes, oficialmente segue essa inspi-racdo. Basta observar o que se esta fazendo nos trei-namentos, especialmente em esportes de alto rendi-mento. Tudo parece resumido ao born e adequadoexercicio fisico, somado a uma controlada dieta ali-mentar, as vezes, reforcada por drogas quimicas,licitas ou ilicitas.

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Nao 6 de estranhar que tal mentalidade tenha sidotao aceita, pois o ideal de maquina foi, desde o seculoXVI, a grande metifora para representar a ordem douniverso. Tratava-se de uma grande e revolucionariainvencao que substituiu a cosmologia guiada pelavontade de um Deus Todo-Poderoso.

0 corpo human, abandonado pelos filOsofos des-de Descartes, como urn objeto nao filosOfico, e entre-gue aos cientistas, foi por esses definido, ja no seculoXVI, como urn microcosmo, isto 6, uma maquinaminiaturizada do rnundo. Nada de anormal, segundoo paradigma da Opoca, poderia ser detectado, pois oprOprio Descartes afirmava que os filOsofos poucoconheciam a respeito do homem, porque pouco co-nheciam a respeito de maquinas. Nesse ambiente foifundamental buscar nas leis da ffsica e da quimica ainspiracao, supostamente correta, para entender ofuncionamento do motor humano. As leis do movi-mento da ffsica e a energia tirada das formulas dascomposicOes quimicas formaram a eficiencia do funcionamento maquinal do corpo.

B) Os avanfos da biologia molecular

Qualquer observador, mesmo o mais leigo no as-sunto, que acompanhe os enormes avancos da biolo-gia molecular, percebe que esta diante de uma revo-lucao biolOgica de conseqiiencias ainda nab total-mente previsfveis. Hoje, a biologia parece estar as-sumindo a condicao de ciOncia referencial basica, em

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substituicdo a Mica, para pensar o universo. No ladoda fisica, a teoria quantica parece aproximar-se dabiologia molecular, pelo menos no que diz respeitoimprevisibilidade do movimento existente no univer-so. De qualquer maneira, a fisica qufintica é colocadacomo a porta aberta para o avanco das pesquisasbiolOgicas.

0 homem demorou a romper o primeiro limite docorpo humano, que é a pele. Enfrentou dificuldadesincriveis para fazer anatomias e conhecer direta evisivelmente os Orgäos internos. Hoje, pela biologiamolecular, parece que tudo vai acabar exposto sobreuma mesa de cirurgia microscOpica.

A descoberta do ADN mostrou o caminho de in-gresso, provavelmente, ao Ultimo reduto da intimida-de da vida. 0 cOdigo genetic°, aos poucos, vai sendocolocado ao avesso, caso seja possivel continuar fa-lando em avesso. 0 que importa, nesta minha refle-xdo, nä° é o fato do desvelamento do que era oculto,mas a descoberta de que a organizacão do ser vivonab segue leis fisico-quimicas, mas é guiada por urnsistema de comunicacão. A organizacäo de todo or-ganismo vivo mantem-se gracas a um sofisticadoprocesso de codificacdo e decodificacäo. Cada partearmazena as informacOes do todo. Cada molecula tema memOria d6 todo o organismo, e 6 capaz de repro-duzi-lo. Era a descoberta que faltava para as expe-riencias da clonagem. Jfi estfi em elaboracäo aquiloque, no meu entender, vai a ser o grande manual de

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antropologia fisica do homem, refiro-me ao projetoGenoma Humano, cuja conclusao, segundo seus idea-lizadores, esti prevista para o ano 2003. Estara, entao,a disposicao de todos o mapeamento completo doscerca de 100 mil genes do cOdigo genetic° human.Os cientistas poderao, entao, fomecer as tendenciasde cada gene, e, por conseqUencia, as tendencias decada pessoa. Por exemplo, qual seria a profissao maiscondizente corn a organizacao genetica de cada pes-soa. No campo esportivo, os velhos testes, hoje prati-cados corn a maxima seriedade cientffica, tornar-se-ao completamente obsoletos e, provavelmente, moti-vo de ironias.

Diante desses novos saberes, dos quais, penso, naose podera fugir, a educacao fisica podera assumirduas atitudes. A primeira, aproveita-los por meio deuma adaptagao e continuar no seu esquema de traba-lho anterior. A segunda seria repensar seu projeto erefazer o modelo de compreensao do ser humano,dando origem a uma nova educacao fisica, o mesmoque podera acontecer na medicina.

Vou continuar minha reflexao exatamente pela se-gunda atitude, nao so por entende-la mais simpatica,mas, especialmente, por acreditar que este devera sero caminho futuro a seguir. E, como reforco da minha°ma°, nada mais significativo do que invocar, preci-samente, o que esta acontecendo na area da satidepela proposta da medicina bio-ortomolecular. 0 refe-rencial primeiro, sem diivida, 6 buscar o apoio dos

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prOprios biOlogos representativos no meio cientifico.Humberto Maturana Romesin e Francisco VarelaGarcia, certamente, sao referencias mais que suficien-tes para fundamentar a necessidade de revisdo dohomem maquina. 0 organismo vivo é resultante deuma auto-organizaao ou, como Maturana preferechamar, uma autopoise. Essa autopoise, em resumo,um sistema auto-referido, o que significa dizer quetodo organismo vivo torna-se o que é por umamica interim. Ele precisa receber do exterior apenasos recursos necessarios para seu desenvolvimento.Jacques Monod, um dos biOlogos pioneiros das pes-quisas de ADN - pelas quais recebeu, junto corn ou-tros colegas, o premio Nobel de Fisiologia e Medici-na em 1965 dizia, talvez precursoramente, que oser vivo é, sim, uma maquina viva, mas uma maquinanäo de modelo meanie°, porque dotado de tres prin-cfpios: teleonomia, morfogenese autenoma e inva-riancia reprodutiva. 0 que ficou comprovado pelasposteriores experiéncias em clonagem.

Para a medicina ortomolecular, a intervenao demedicamentos nä. ° pode ser invasiva a moda tradicio-nal da farmacologia quimica, mas apenas como com-plemento alimentar. 0 organismo vivo tem seus me-canismo metabOlicos capazes de reorientar sua orde-nacao, desde que receba os recursos necessarios emtempo habil. Nä° ha necessidade de medicamentosque substituam suas funcOes, sempre que o acompa-nhamento assistencial seja corretamente conduzido.

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Assim, a educacao fisica poderia seguir o exemploda medicina ortomolecular e educar o corpo segundoas caracteristicas geneticas individuais, trabalhando omovimento, uma das caraterfstica fundamentals doser vivo. Vida e movimento sao indissocifiveis. Infe-lizmente, a compreensao de movimento que a fisicanos legou foi a de uma nab externa, executada noespaco e no tempo.

Retomando, agora, a primeira atitude, pode-seconcluir que, pelas descobertas da biologia molecular,

possivel fazer previsOes fantasticas. Os laboratOriosde gen6tica poderao construir clones segundo as fun-cOes previstas, por exemplo, de uma modalidadeesportiva. Urn empresario ou urn treinador poderaencomendar goleiros, zagueiros, atacantes, boxeado-res, etc. Por enquanto, alguns julguam que se trata depiada, ironia ou, inclusive, de humor negro. Pelarapidez como as coisas acontecem, 6 possivel preverque tudo isso sera urn fato rotineiro. Para justificarminha conclusao, quero lembrar uma ficcao de humorpublicada em 1994 (em Sextante): "Urn cidadao deci-diu fazer uma viagem. Na primeira parada, dirigiu-sea urn hotel e la encontrou alguem exatamente igual aele. Visitou varias cidades, bares, lojas, ruas e sempreo inusitado. Acabava encontrando algu6m que thefazia pensar que estivesse em frente a urn espelho.Apesar do sotaque, das roupas e do estilo dos cabelosserem diferentes, cram exatamente iguais. Al entaoele nao sabia que tinha irmaos gemeos. Voltando a

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sua casa, descobriu que havia sido fruto de uma expe-riencia." A autora, Ines Figueiredo, dizia que, haalguns anos, essa situacao poderia ser apenas umafantasia de algum escritor de &Oct cientifica. Hojeem dia — isso escrito em 1994, lembro eu ela dei-xou as paginas de livros inverossimeis e vem sendoestudada em laboratOrio." Agora, pode-se acrescentarque isso näo esta sendo apenas objeto estudado emlaboratOrio, mas praticado corn resultados apresenta-dos para todos verem. E born observar que os clonesapresentados, por enquanto, estao restritos aos ani-mais. Mas, no que se refere as pesquisas em laboratO-rios, you lembrar o fato, divulgado pela imprensa, deque um grupo de cientistas firmaram um acordo,subscrito em fins de julho do ano passado, no sentidode adiar as experi8ncias de clones humanos. Algunsdias depois, urn grupo japones anunciou a adesao aoacordo, dizendo que estava suspendendo as experien-cias. No caso japones, ficou claro que a palavra sus-pensao denunciava a existencia concreta de experien-cias corn humanos. No caso do acordo firmado pelogrupo de cientistas, a razao do nab realizacao de ex-periencias de clones humanos deveu-se apenas aofato, isso dito explicitamente, de a sociedade aindando estar preparada para receber tais resultados.

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3.2Construct-to de corpos

A natureza encarregou-se, ate poucos anos, de criarcorpos e organismos vivos com ilimitada diversidade.No reino mineral, apesar das diferencas serem muitas,ha, certamente, muita regularidade, o exemplo maiscitado sac) os cristais. No mundo vivo, tanto no reinovegetal quanto no reino animal, pode-se dizer quenada ou ninguem 6 exatamente igual ao outro. Aspesquisas na natureza constantemente mostram eacentuam a grande riqueza de especies, formas ecores dos seres vivos. E verdade que em muitos casostem-se a impressao de estar vendo deformacties, no

algo acentuadamente exOtico e incompreen-sivel. 0 importante, nisso tudo, a que essa facanha eraatribuida exclusivamente ao poder criador de Deusou, simplesmente, as forcas presentes na natureza.

Pelos avancos da biologia, o homem passou a tersob controle parte desse poder. 0 use desse pareceestar assustando seu novo detentor. Nao ha consensodiante do que possa acontecer corn tal investidura.Uma das primeiras manifestacties de repadio a ousa-dia do homem criar seres vivos esta manifesta nestaexpressao: o homem quer brincar de Deus. Os defen-sores do direito de usufruir do poder criador garantemque nao se trata de brincar de Deus, mas de assumir aacao criadora como tarefa de preservar e garantir acontinuidade da especie humana, especialmente,

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como aumento da longevidade e como combate adoencas. Em outras palavras, como promocdo daqualidade de vida. Seria ficedo afirmar que o homemdeu urn passo decisivo no caminho da superacdo damorte?

O fato mais concreto é que, corn os dados da en-genharia genetica, tomou-se viavel a construed.° decorpos. Os transgenicos e os clones sdo as Ciltimasobras. Os planejamentos dessas construct:les, analisa-dos num espectro amplo, podem caminhar em duasdirecOes: como projeto inspirado nos interesses poll-tico-econdmicos do homem; ou como contribuiedopara aperfeicoar a vida.

Falando em construcOes, de imediato, surge a ideiade arquitetura. Toda construed° obedece a uma ar-quitetura. Deus, ainda hoje, a designado pela ordemmaceinica como o Grande Arquiteto do universo.Assim, pode-se pensar em possiyeis arquiteturas decorpos humanos, desenhadas segundo valores, crite-rios e objetivos propostos. Seguindo esse raciocinio,you apresentar tres tipos, mais ou menos abrangentes,de projetos arquitetOnicos.

A) Arquiteturas funcionais

Parece ineyitavel a conclusdo de que caminhamosinexoravelmente para uma construgdo planejada decorpos humanos. Os transplantes, ao lado das prOte-ses, penso que podem ser vistos como a pre-histOriadessas constructies, por terem a caracteristica de uma

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espeeie de mecinica de restauracio ou reposicas o depecas. A inseminacio artificial foi o primeiro e subs-tancial passo. Apareceu, em seguida, a escolha dosexo do feto. Depois, assistimos a experiancias trans-génicas, inicialmente em animais e vegetais, atual-mente, em homens. Por fim, chegou a clonagemcomo fato consumado nos animais, e em passo deespera, pelo menos oficialmente, em humanos. Maorecta dtivida, 6 possivel desenhar um ser humano. Ouseria, tambem, possivel invents-lo?

Não se sabe se essa criatura desenhada em labora-tOrios de genetica, em sua integralidade. Seupsiquismo ainda não foi decifrado. 0 controle doADN, no estagio atual, assegura o controle total davida humana? Sabe-se que o clone 6 c6pia genetica-mente identica do seu doador. Não se sabe se seusdesejos, sentimentos, e emogOes tambOm idgnti-cos. Nada assegura, pelas informacOes disponiveis,que o psiquisrno do. clone repita o original.

Retomando o ptojeto das arquiteturas funcionais,Pica explicit° que ele teria comp finalidade produzirseres vivos, humanos ou at°, segundo encomendasfeitas para o desempenho de determinadas tarefas. Damesma maneira como se produzem ferramentas, ins-trumentos ou maquinas visando uma performanceinstrumental, assim seriam construidos individuosvivos. Um certO tipo humano, por exemplo, seriaplanejado corn determinados tipos de genes que ohabilitariam a aprender e exercer uma funcäo especi-

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fica no interior de um sistema produtivo. E nadamais. Ele fica programado, a maneira de urn compu-tador, para executar functies de tal empresa.

Essa seria a situacao que se imagina. Mas nä° étudo. Uma suposicao. A conviccao corrente entre oscientistas de que é possivel produzir urn clone de urncampeao olimpico, de urn grande artista ou genic) naoelimina a davida diante da decisao dente optar peloesporte, pela arte ou pela ciencia. Certeza ha quanto aarquitetura organica, a esfera das decisOes ainda nabesta controlada. Por exemplo, se for feito urn clone dePe16, tera ele o mesmo gosto pelo futebol ou poderiaquerer praticar outro esporte ou, mesmo, outra ativi-dade? A resposta é a incerteza. Se o laboratOrio lancarno mercado urn ser vivo planejado, ficara ele circuns-crito aos limites de sua programacao? Ha urn casobiblico que, embora interpretado sem preocupaceiesteolOgicas, poderia ser considerado como um prece-dente de possivel desvio. Jaye criou o homem e ocolocou no paralso. Nesse local, ern principio, deveriaficar toda a vida. Essa, segundo o relato sagrado, seriaa programacao de seu criador, mas a criatura, dese-nhada corn argila e animada corn urn sopro, nab ficourestrita ao programa divino, desobedeceu, pelo quefoi, inapelavelmente, atirada ao mundo E, nessemundo de exilio, continua dando trabalho ao Deus-criador, que teve de mandar seu Filho Primogenitopara reenquada-la — a humanidade — na histOria divi-na.

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A educacAo fisica podera ser, futuramente, umadas grandes interessadas em investir nessas arquitetu-ras funcionais como maneira de desenvolver as per-formances esportivas, quebrar indefinidamente osrecordes. Isso vem a comprovar uma manchete daimprensa, feita no ano passado, de que o corpo seria afutura fronteira de investimentos. Parece que essesinvestimentos ja comecaram com urn mercado, mui-tas vezes clandestino e criminoso, de compra e vendade Organs. Nao faltam os que defendem em congres-ses cientfficos a legalidade do mercado do corpo. 0que falta seria apenas uma legislagao correta. Nessacorrente podem entrar os corpos planejados para re-posicao de Orgaos.

B) Arquiteturas simbelicasAntes que as arquiteturas funcionais dominem o

mercado humano e nos aterrorizem, podemos refletirsobre arquiteturas simbOlicas, que, a bem da verdade,tambem nao sao inocentes. Na esteira da exaltacao docorpo, vigente na p6s-modernidade, surgiram asconstrucbes simb6licas do corpo. Criaram-se, emlarga escala, corpos virtuais para o consumo das mas-sas telespectadoras. Neste sentido, ha uma rica lite-ratura, no meu entender encabecada por Baudrillard.A leitura do capitulo IV, "0 corpo ou o ossuarito designos", do livro A troca simbOlica e a morte, poderiasignificar uma Otima introducao ao tema.

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Todos temos, ou melhor, somos, urn corpo cornurn determinado perfil, para ficar na linguagem, aquiadotada, corn urn projeto arquitetOnico. Na maioriados casos, poucos sentem-se satisfeitos corn seu pro-jeto arquitetOnico, carregando corn ma vontade ouresignacdo tal corpo, larnentando uma mae-naturezamadrasta. A maioria sonha, no minim, corn algunsretoques. Alguns, ou muitos, apelam para as maisdiferentes formas de restauracao. Nao posso falardessas tecnicas, que se estendem das dietas as cirur-gias, mas apenas desses corpos construidos em nomede uma simbologia que se forma no seio de uma socie-dade e de uma cultura.

Cada pessoa, cada cultura tern seus valores de be-leza, suas preferencias esteticas. Em nome dessesideais esteticos, o corpo passa por sucessivas modela-gens esteticas no interior de uma cultura, sem falarem relacao a culturas diferenciadas. Basta acompa-nhar a histOria da humanidade ocidental, dos gregosatualidade, para constatar o que era urn corpo belo ouforte. A arte e a pintura de retratos podem ser refe-renciais confiaveis para avaliar as formas preferidas,masculinas ou femininas. Corn o surgimento da foto-grafia, ficou ainda mais facil perceber as variacOes.Atualmente, os meios televisivos de comunicacao demassa e as revistas fotograficas de nu se encarregamde divulgar o manequim desses modelos corporais. Eos telespectadores alimentam seu imaginario cornessa beleza exportada, ou, para eles mesmos, impor-

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tada de outro corpo. Sonham corn corpos que não sdoos seus, into 6, qui! näo 6 de. E al vem os interessesda medicina estetica, dos laboraterios de drogas quf-micas, dos dieticistas de emagrecimento, das acade-mias de aer6bica, dos fabricantes de uma parafernaliade maquinas milagrosas, como verdadeiros alquimis-tas, capazes de transformar sapos em prIncipes.

Neste sentido, vou apenas lembrar uma propagan-da que circula na teievisao. Diz mais ou menos assim:"Ate quando voce espera para ter o corpo de seussonhos? Ligue ji e encomende a linha de produtos"tal e tal. isso af„ Nessa mesma balada, os profissio-nais da educacão ffsica entrain no mercado com suareceita de exercicios ffsicos, contribuindo para reali-zar sonhos, talvez de uma maneira menos'agressiva.Novamente, a televisHio confirma o que foi dito.dificil encontrar um canal de TV que nao tenha umprograma milagroso para todos as males que afligemos descontentes a desgostosos com seu corpo efetivo.Causa primeira pars se sonha• corn cargos virtuais.No dizer de Paul "As rnediacOes tecnolOgicasprovocando a telepresenca tentam nos fazer perderdefinitivamente o pr(prio corpo em proveito do amordesmesurado pelo corpo virtual [...J. Ha uma amenaconsideravel de perda do outro, de declfnio da pre-senca ffsica em proveito de uma presenca imaterial efantasmatica" (Ent nome do corpo, p. 76).

As arquiteturas funcionais e simbOlicas seguem odesenho de uma maquete inspirada de fora. Num

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caso, é o modelo funcional, no outro caso, é o modeloestetico. 0 organismo vivo é planejado de fora, osgenes são materia-prima de urn artefato, ainda quevivo.

C) Arquiteturas vivas

As arquiteturas funcionais e simbOlicas seguem odesenho de uma maquete inspirada de fora. Numcaso, é o desenho de urn modelo funcional, no outrocaso, é o desenho de urn modelo estetico. 0 organis-mo vivo, em ambos os casos, é planejado de fora, osgenes são apenas materia-prima de urn artefato, aindaque vivo. Ao contrario, as arquiteturas vivas são de-senhadas pelo prOprio processo evolutivo da vida. Nofundo, é a arquitetura que se confunde corn o prOpriocOdigo genetic° de cada pessoa. Como já foi dito,elas são auto-organizadoras e auto-referidas. 0 servivo é um sistema auto-organizador e auto-orga-nizado porque constrOi a si pr6prio. E e auto-referidoporque na sua autoconstrugdo não segue urn modeloexterior, obedece ao projeto que é ele mesmo. 0 prin-cipio de seu desenvolvimento, do inicio ao fim, estainscrito em seus genes, o que faz corn que urn servivo realize fielmente o projeto que esta na sua me-mOria. No caso do homem, a memOria do ovo huma-no; no caso de grande parte dos vegetais, das semen-tes.

E importante lembrar que todo ser vivo ndo é urnobjeto isolado do seu meio ambiente. Interage, cons-

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tantemente, corn ele. Dele tira os recursos indispen-saveis para satisfazer suas necessidades, e, tambem,sabe defender-se de agressOes. 0 organismo vivoforma uma unidade com a natureza, em geral, e corn avida, em particular. Para explicitar isso, nada melhordo que citar as palavras de Ted Perry, inspiradas nacarta do Chefe Seatle: "0 homem não teceu a teia davida, ele e dela apenas um fio. 0 que fizer para a teiaestara fazendo a si mesmo" (Teia da vida, orelha 1).

E por isso que uma arquitetura viva, saudavel, näotern apenas a capacidade de desenvolver-se, mastambem de produzir o seu sistema imunolOgico.Volto a lembrar a filosofia, adotada pela medicinaortomolecular, que tern como ponto de partida o res-peito por essa arquitetura viva original, obrigatoria-mente presente em cada ser vivo humano, como umpossivel exemplo a ser seguido.

Para näo ficar alheio diante dessas arquiteturas,quero confessar que eu colocaria nesse terceiro tipode arquitetura a grande fonte das tendencias e dasperspectivas da educagäo fisica, caso queiramos ve-lacomo a cultivadora da vida, a educadora do corpo.

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UM NOVO PONTO DE REFERENCIA

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Os novos saberes alcancados pela inteligencia hu-mana transformam-se em novos poderes da cienciaque implicam em novos deveres do homem, diz JeanBernard. Cada categoria profissional, detentora de urnconjunto especializado desses novos saberes e pode-res, tern a obrigacao de assumir seus novos deveresfrente a sociedade. Urn novo saber dd ao profissionalda area correspondente urn aumento de poder paraintervir no universo de seu trabalho, seja no processoeducacional, seja no projeto do sistema produtivo, oque significa aceitar deveres correspondentes. A am-pliacao dos saberes e dos poderes diz respeito a or-dem cientifica e a politica, esferas que, bem ou mal,continuam mantidas sob controle. Quando falamosem deveres, entretanto, ingressamos num mundoprofundamente abalado, o mundo da etica. Parececada dia mais dificil dizer quando a ciéncia é beneficae quando é maléfica para o homem. Facilmente sefesteja urn avanco cientifico como urn ponto a mais

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na melhoria da existencia humana. Passado algumtempo, comecam a aparecer sinais que mostram umaserie de conseqiiencias maleficas. Parece acontecercorn a ciencia o que ocorre com a maioria dos rem6-dios, os efeitos colaterais, que tornam sua utilizacao,em muitos casos duvidosa diante dos s6rios riscos quepode acarretar, sem a certeza da obtencao do benefit-cio proposto. Em relacao a politica, a questa° a aindamais grave. 0 que dizer de urn regime que, emboradito democratic°, exclui das condicOes minimas desobrevivencia urn taco de sua populacao, ou quepouco se interessa pelas questOes sociais? A respostaesta na busca de um referencial etico capaz de sensi-bilizar os detentores do saber e do poder no sentidode investir nas solucOes dos problemas da vida huma-na, nao do progresso cientifico e econOmico apenas.

As ciencias exatas nao fazem juizos de valor, naose preocupam corn o vivido, por isso, esqueceramcompletamente os temas da 6tica. Diante desse qua-dro, confessa Bronowski, que "a ciencia nao paroudesde Hobbes, mas assuntos tais como a etica para-ram" (Ciencia e valores humanos, p. 45). 0 cientistaobcecado pelos avancos da ciencia esqueceu-se corn-pletamente das responsabilidades, isto 6, dos deveresque tais conhecimentos the impunham. Einstein fezurn apelo dramatic° para que a sociedade contempo-ranea desse mais atencao a cultura moral, pois, disseele "Sem cultura moral, nenhuma sada para os ho-mens" (Como vejo o mundo, p. 25). E acrescentou:

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"Hoje o destino da humanidade civilizada repousasobre os valores morais que consegue suscitar em simesma" (p. 62). Mas se a ciencia não se preocupacorn o vivido, como levar o homem das ciencias asuscitar valores morais?

A modernidade, corn sews poderes cientificos ecorn as luzes da razdo, não conseguiu construir umaetica capaz de garantir uma vida coletiva justa. Hoje,pode-se dizer que a sada para a erica a tornar-se umabioetica, porque a vida esta se constituindo num novoreferencial para definir os valores a partir dos guars ahumanidade devera pautar sua histOria. Jean Bernardafirma que "A importancia das questOes ligadas aodesenvolvimento da biologia fez com que etica ebioetica, se tornassem, em linguagem corrente, pala-vras quase sinenimas" (Da biologia a etica, p. 25).Respeitar a vida, em todas as suas manifestacOes eformas, parece concentrar o pensamento comum detodos os que acreditam num futuro mais humano.Fatos muito recentes, entretanto, parecem mostramque a vida vale pouco. Mata-se por qualquer motivofritil, ou mesmo, sem motivo algum. Em contraparti-da, crescem os movimentos que buscam preservarqualquer forma de vida, urn objetivo aceito peloscientistas, Tors sabem que a diversidade biolOgica é amaior garantia de preservacdo da vida em geral.

A ciencia ndo proporcionou uma vida saudavel atoda humanidade, os govemantes foram incapazes depropor o bem comum a toda sociedade, razäo pela

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qual poucos acreditam que a ciencia e o Estado te-nham a sensibilidade de solucionar os problemas daexistencia humana. Uma esperanca de qualidade devida para todos parece estar nascendo da bio6tica,porque ela seria a expressao da medida justa, a ga-rantia do equilibrio que resulta da harmonia indispen-save! para o ser vivo. A bioetica defende o direito doLugar certo para todo ser vivo poder desenvolver esustentar seu modo de viver.

Para concluir, you valer-me de algumas ideias de-fendidas por Henri Atlan referentes a necessidade devoltarmos aos valores eticos. Mao se trata de voltar aopassado, mas de recuperar certas dimensOes que po-dem ainda hoje ter seu significado e importancia. Anossa vida 6 dominada pela tecnociencia, fazendo-nosdesprezar tecnicas e artefatos do passado. Por exem-plo, ninguem vai querer voltar aos tanques de lavarroupa, as velas para iluminar ou as praticas dos feiti-ceiros para buscar a cura. Entretanto, diz Atlan, "ostanques servem para lavar roupas, as velas iluminame os feiticeiros curam, talvez, na mesma proporcaoque as maquinas de lavar, a luz eletrica e a medicinamoderna, respectivamente. E, em certas circunstan-cias, que exigem major intimidade, pode ser maisapropriado organizar uma iluminacao a vela do queligar poderosos holofotes eletricos" (Henri Atlan, p.81). Ninguem decide oferecer um jantar intimo a luzde farOis, como, tambem, ninguem procura, a noite,um naufrago com luz de vela.

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As ciOncias nos ensinaram a transformar todas ascoisas em objetos externos, inclusive nos mesmos nostornamos objetos de nos mesmos. 0 mundo é o gran-de objeto a ser investigado e dominado. A vida, atepouco tempo, era urn reduto quase inatingivel, espe-cialmente a vida humana, porque estava sob a prote-cdo de principios eticos. Hoje, tudo foi liberado asciencias. Elas säo o seu prOprio limite. Basta ver osdefensores da manipulacdo genetica, e, de maneiraespecial, os defensores do mercado da genetica e,tambem, do mercado humano. Para uma parte consi-deravel dos cientistas, entre eles o fisico brasileiroMarcelo Gleiser, autor do livro A danca do universo,a ciencia deve ser totalmente livre e nä° pode serlimitada por lei, seria inutil. Tristam Engelhardt, autordo livro Fundamentos da bioitica e urn dos maioresgeneticistas da atualidade, sustenta a liberacdo totaldo mercado humano, incluindo a compra e venda departes do corpo.

0 Calico valor respeitado pelos cientistas é a vida.No momento que o cientista percebe que estd em jogoa vida e corn ela sua prOpria vida, ele comeca a refle-tir. Basta lembrar mais uma vez o que Ted Perry dis-se: "0 que ele fizer para a teia da vida estard fazendopara si mesmo".

Como tiltimas palavras, concluo que no campo dabio6tica encontram-se as possiveis tendencias e pers-pectivas, ndo so da educacão Mica, mas de qualquerciencia responsavel pelo homem. A vida, sem dirvida,

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6, no momento, o dnico referencial que ainda podesensibilizar toda humanidade, letrados ou nao, crentesou ateus, pela simples raid° de que todos estamos emjogo. So não valoriza a vida aquele que, ha muito, foidela exclufdo pelas injusticas sociais. Nada tern aperder, nem a vida. Cabe a cada urn fazer a sua partecomo acontece num organismo vivo. 0 todo pelaparte e a parte pelo todo.

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