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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EDUCAÇÃO E IDENTIDADE ÍNDIGENA: UM ESTUDO DE CASO SOBRE OS LIMITES E POSSIBLIDADES DA EDUCAÇÃO NA (RE) CONSTRUÇÃO E REAFIRMAÇÃO DE IDENTIDADE MURA CLÓVIS FERNANDO PALMEIRA OLIVEIRA MANAUS-AM 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONASFACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

EDUCAÇÃO E IDENTIDADE ÍNDIGENA: UM ESTUDO DECASO SOBRE OS LIMITES E POSSIBLIDADES DA EDUCAÇÃO

NA (RE) CONSTRUÇÃO E REAFIRMAÇÃO DE IDENTIDADEMURA

CLÓVIS FERNANDO PALMEIRA OLIVEIRA

MANAUS-AM2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONASFACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

CLÓVIS FERNANDO PALMEIRA OLIVEIRA

EDUCAÇÃO E IDENTIDADE ÍNDIGENA: UM ESTUDO DECASO SOBRE OS LIMITES E POSSIBLIDADES DA EDUCAÇÃO

NA (RE) CONSTRUÇÃO E REAFIRMAÇÃO DE IDENTIDADEMURA

Dissertação apresentada ao Programa dePós-Graduação em Educação da UniversidadeFederal do Amazonas, como requisito parcialpara a obtenção do título de Mestre emEducação, sob orientação da Prof.ª Dr.ª RosaMendonça de Brito.

MANAUS-AM2007

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Ficha Catalográfica(Catalogação na fonte realizada pela Biblioteca Central – UFAM)

O48eOliveira, Clóvis Fernando Palmeira

Educação e identidade indígena: um estudo de caso sobre oslimites e possibilidades da educação na (re)construção e reafirmaçãoda identidade Mura / Clóvis Fernando Palmeira Oliveira . - Manaus:UFAM, 2007.

266 f.; il. color.

Dissertação (Mestrado em Educação) –– Universidade Federal

do Amazonas, 2007.

Orientadora: Profa. Dra. Rosa Mendonça de Brito

1. Identidade cultural 2. Cultura 3. Educação indígena 4. Povo Mura5. Formação de professores I. Brito, Rosa Mendonça de II.Universidade Federal do Amazonas III.Tít ulo

CDU 398.2(811=082)(043.3)

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CLÓVIS FERNANDO PALMEIRA OLIVEIRA

EDUCAÇÃO E IDENTIDADE ÍNDIGENA: UM ESTUDO DECASO SOBRE OS LIMITES E POSSIBLIDADES DA EDUCAÇÃO

NA (RE) CONSTRUÇÃO E REAFIRMAÇÃO DE IDENTIDADEMURA

Dissertação apresentada ao Programa dePós-Graduação em Educação da UniversidadeFederal do Amazonas, como requisito parcialpara a obtenção do título de Mestre emEducação, sob orientação da Prof.ª Dr.ª RosaMendonça de Brito.

Aprovado em 24 de maio de 2007.

BANCA EXAMINADORA

Prof.ª Dr.ª Rosa Mendonça de Brito – PresidenteUniversidade Federal do Amazonas

Prof.ª Dr.ª Rosa Helena Dias da Silva – MembroUniversidade Federal do Amazonas

Prof. Dr. Evandro Luiz Ghedin– MembroUniversidade Estadual do Amazonas

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DEDICATÓRIA

Às lideranças, organizações e aldeias

indígenas Mura no município de Autazes e, em

especial, aos professores Mura, por terem

protagonizado incansáveis lutas, mobilizações

políticas e articulações de possibilidades,

frente aos processos de valorização e

reconhecimento de sua cultura e reafirmação

da identidade étnica de seu povo, expressa e

validada na interação social.

Dedico, também, a minha esposa, Rose, e

minhas filhas, Zeina e Zênia, que souberam

compreender minhas ausências em momentos

tão importantes que não pude compartilhar, e

também pelo incentivo e apoio à organização

deste trabalho.

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente a Deus, pela minha existência

e poder conquistar mais essa vitória.

À Prof.ª Dr.ª Rosa Mendonça de Brito, minha

orientadora, pelo incentivo, observações

críticas, sugestões e confiança em mim

depositada na construção criativa e autônoma

deste trabalho.

À Prof.ª Dr.ª Helena Dias da Silva, minha co -

orientadora, por ouvir minhas idéia s, e por

suas significativas observações críticas,

principalmente no processo de qualificação,

sugerindo mudanças essenciais que muito me

ajudaram no aprimoramento deste trabalho.

À Prof.ª Dr.ª. Valéria Augusta Cerqueira de

Medeiros Weigel, também co -orientadora,

pela atenção, simpatia e boa vontade com que

sempre me orientou, sobretudo, pelas precisas

indicações bibliográficas que possibilitaram o

enriquecimento de minhas análises e

interpretações.

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À Prof.ª. Dr.ª. Antônia Silva Lima por ter me

auxiliado no início desta dissertação,

sugerindo mudanças necessárias ainda

enquanto projeto de pesquisa.

Aos meus Professores do PPGE em geral, por

terem proporcionado novos conhecimentos e

profícuas discussões, possibilitando, assim,

base mais sólida para que eu pudesse

reconsiderar alguns conceitos, relativizar

idéias e aprofundar meus conhecimentos sobre

a temática em questão.

Aos colegas de Turma do Mestrado do PPGE

pela troca de idéias, palavras de incentivo e

por terem compartilhado comigo de

experiências e construção de novos saberes.

Aos colegas da Gerência de Educação Escolar

Indígena pelo apoio e palavras de incentivo.

Ao extinto Instituto de Educação Rural do

Amazonas, IER-AM, onde iniciei minha

formação sobre a educação escolar indígena,

e aprendi que atuar junto às populações

étnicas e culturalmente diferenciadas é

preciso, antes de tudo, sensibilidade e um

olhar mais profundo e valoroso sobre o outro.

À Secretaria de Estado da Educação e

Qualidade do Ensino pela liberação de minhas

atribuições funcionais, e a Gerência de

Educação Escolar Indígena por ter

possibilitado minha atuação docente nos

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diversos Programas de formação de

professores indígenas no estado.

E, em especial, meu profundo agradecimento a

todos os professores Mura, pela c onfiança,

amizade e respeito a mim demonstrado, mas,

sobretudo, por ter permitido compartilhar

juntamente com eles desta singular e

significativa experiência.

AGRADEÇO.

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RESUMO

Com esta dissertação "Educação e Identid ade Indígena: um estudo de caso sobre os limites epossibilidades da educação na (re) construção e reafirmação da identidade Mura", propomo -nos examinar e discutir, a partir da experiência em construção do Projeto de educação escolarMura no município de Autazes, os limites e possibilidades da educação na constituição deidentidades indígenas na atualidade, tendo como pressuposto a concepção de sujeitosindígenas e o estabelecimento de novas relações impostas pelo mundo globalizado.Entretanto, as experiências, processos, dinâmicas, práticas pedagógicas, relatos, depoimentos,concepções e análises apresentadas neste estudo resultam da formação dos professores Murano município de Autazes e cotidiano desse povo, no período de 1999 a 2003, aomanifestarem, entre outros interesses, o desejo pelo combate ao preconceito e discriminaçãosofridos, recuperação da memória histórica de seu povo e reafirmação da identidade étnica deseus membros, por meio da construção e desenvolvimento de uma política indígena deeducação escolar entendida como instrumento de luta, resistência, reivindicações, direitos,preservação da cultura, dos valores e de seus métodos próprios de aprendizagem, quefornecesse respostas satisfatórias ao processo histórico do grupo. Nesse sentido é no ssaintenção demonstrar a força que tem a educação em todas as culturas em contribuir naformação de uma política e prática educacional adequadas, capazes de atender aos anseios,interesses e necessidades diárias da realidade atual.

PALAVRAS-CHAVE: Etnicidade – Cultura – Identidade Étnica – Identidade Cultural –Educação.

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ABSTRACT

With to epigraph of this dissertation "Education and Indigenous Identity: a study of in caseabout the limits and possibilities of the education in the (re verse) construction and restatementof the identity Walls", we intend to examine us and to discuss, starting from the experience inconstruction of the Project of school education Walls at the present time in the municipaldistrict of Autazes, the limits a nd possibilities of the education in the constitution ofindigenous identities, tends as presupposition the conception of indigenous subjects and theestablishment of new relationships imposed by the world globalization. However, theexperiences, processes, dynamics, pedagogic practices, reports, depositions, conceptions andanalyses presented in this study result of the teachers' formation Walls in the municipaldistrict of Autazes and daily of that people, in the period from 1999 to 2003, to the theymanifest, among other interests, the desire for the combat to the prejudice and discriminationsuffered, recovery of the historical memory of his/her people and restatement of the ethnicidentity of their members, through the construction and development of an indigenous politicsof school education understood as fight instrument, resistance, claims, rights, preservation ofthe culture, of the values and of their own methods of learning, that it supplied satisfactoryanswers to the historical process of the gro up. In that sense it is our intention to demonstratethe force that has the education in all of the cultures in contributing in the formation of apolitics and appropriate education practice, capable to assist to the longings, interests anddaily needs of the current reality.

KEY-WORDS: Ethnicity – Culture – Ethnic Identity – Cultural Identity – Education.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

FOTO 1 – Vista parcial do lago do Capivara, aldeia Capivara, Autaz es-AM..........................98

FOTO 2 – Habitação Mura, aldeia São Félix, rio Autaz -Açu, Autazes-AM..........................101

FOTO 3 – Habitação Mura, aldeia Igapó-Açu, rio Autaz-Açu, Autazes-AM........................102

FOTO 4 – Família Mura na aldeia Jutaí, Autazes -AM...........................................................103

FOTO 5 – Família Mura na aldeia São Félix, Autazes -AM...................................................103

FOTO 6 – Professor e alunos da Escola Indígena Manoel Mir anda, aldeia Murutinga ........134

FOTO 7 – I Seminário de Educação Escolar Indígena no Mu nicípio de Autazes-AM......

FOTO 8 – Professores Mura no Seminário de Educação Escolar Indígena...........................

FOTO 9 – Professores Mura em formação, aldeia São Félix, Autazes -AM...........................146

FOTO 10 – Professores Mura em formação, aldeia São Félix, Aut azes-AM.........................146

FOTO 11 – Professores Mura em formação, aldeia Murutinga, A utazes-AM.......................147

FOTO 12 – Professores Mura em formação, sede do munic ípio, Autazes-AM.....................147

FOTO 13 – Professor Mura e o Referencial Curricular Nacional para as Escolas

Indígenas.............................................................................................................155

FOTO 14 – Professor Mura em atividade curricular, Autazes-AM........................................171

FOTO 15 – Professores Mura ilustrando materiais de pesquisa, A utazes-AM......................171

FOTO 16 – Professores Mura durante as discussões sobre a língua nheengatu.....................198

FOTO 17 – Professores Mura durante a assessoria lingüística sobre a língua nheengatu......199

FOTO 18 – Professor Mura em atividade curricular, Autazes-AM........................................204

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FOTO 19 – Professores Mura definindo a identidade do profes sor, Autazes-AM.................207

FOTO 20 – Reunião sobre o Projeto de educação escolar: tuxaua da aldeia S ão Félix.........218

FOTO 21 – Reunião sobre o Projeto de educação escolar na aldeia São Félix......................219

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LISTA DE SIGLAS

CEB – Câmara de Educação Básica

CEE-AM – Conselho Estadual de Educação do Amazonas

CEEI-AM – Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena do Amazonas

CIM – Conselho Indígena Mura

CNE – Conselho Nacional de Educação

COIAB – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira

COPIAM – Comissão de Professores Indígenas da Amazônia

COPIAR – Comissão dos Professores Indígenas do Amazonas, Roraima e Acre

DEPPE – Departamento de Políticas e Programas Educacionais da Secretaria de Estado da

Educação e Qualidade do Ensino

FACED – Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas

FUNAI – Fundação Nacional do Índio

FUNASA – Fundação Nacional de Saúde

GEEI – Gerência de Educação Escolar Indígena da Secretaria de Estado da Educação e

Qualidade do Ensino

IER-AM – Instituto de Educação Rural do Amazonas

MEC – Ministério da Educação e do Desporto

OPIM – Organização dos Professores Indígenas Mura

PRORURAL – Programa de Formação de Professores Rurais do Estado do Amazonas

RCNEI – Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas

SEDUC-AM – Secretaria de Estado da Educação e Qualidade do Ensino do Amazonas.

SEEM – Setor de Educação Escolar Mura da Secretaria Municipal de Educação, Cultura,

Desporto e Lazer de Autazes

SEMEC – Secretaria Municipal de Educação, Cultura, Desporto e Lazer de Autazes

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UFAM – Universidade Federal do Amazonas.

OMIM – Organização das Mulheres Indígenas Mura

OASIM – Organização dos Agentes de Saúde Indígena Mura

OEIM – Organização dos Estudantes Indígenas Mura

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S U M Á R I O

INTRODUÇÃO.................................................................................................... ...................18

CAPÍTULO I

1. ABORDAGEM TEÓRICO-CONCEITUAL SOBRE AS BASES ÉTNICAS E

CULTURAIS DAS TENDÊNCIAS POSITIVAS DE IDENTIFICAÇÃO E

INCLUSÃO NUM GRUPO ÉTNICO ....................................................... ........................36

1.1. A Etnicidade como Fenômeno de Identidade Étnica ....................................................36

1.1.1. Etnicidade: definições e conceitos............................................................. .....................43

1.1.2. Teorias e Divergências Conceptuais Sobre o Fenômeno Étnico................. ...................48

1.1.2.1. A Etnicidade sob a Abordagem Primordialista ...........................................................49

1.1.2.2. A Etnicidade sob a Abordagem Sociobiológica........................................... ................51

1.1.2.3. A Etnicidade sob as Abordagens Instrumentalistas e Mobilizacionistas ..........,,........52

1.1.2.4. A Etnicidade sob as Abordagens Neomarxistas ..........................................................57

1.1.2.5. A Etnicidade sob as Abordagens Neoculturalistas ....................................... ...............59

1.1.2.6. A Etnicidade sob as Abordagens Interacionistas .......................................... ..............61

1.1.3. Noção de Raça, Etnia e Grupo Étnico................................................................ ............63

1.1.4. Grupos Étnicos e Suas Fronteiras.................................... ...............................................70

1.2. Cultura e Identidade Cultural .......................................................................... ..............74

1.3. Educação e Identidade .................................................... .................................................8 5

CAPÍTULO II

2. POVO MURA: BREVE ABORDAGEM HISTÓRICA E MODOS DE VIDA

ATUAL......................................................................... ........................................................93

2.1. O Projeto Colonial Português na Amazônia e a Desconstrução da Identidade

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Mura............................................................................................................................. .....93

2.2. Remanescentes Mura no Estado do Amazonas .............................................. ...............96

2.3. Remanescentes Mura no Município de Autazes ............................................. ...............97

CAPÍTULO III

3. "SER ÍNDIO", "SER MURA": REINVENÇÃO ESTRATÉGICA DE UMA

IDENTIDADE COLETIVA .......................................................................... ..................104

3.1. Manifestação dos Sentimentos de Pertencimento e os Modos de Ser do Sujeito

Mura............................................................................................................................. ...104

3.2. Predomínio do Efeito Ideológico e Repressivo nas Práticas Educacionais ...............126

3.3. Movimentos por uma Educação Diferente ..................................................... .............135

CAPÍTULO IV

4. POLÍTICA INDÍGENA DE EDUCAÇÃO ESCOLAR MURA: APROPRIAÇÃO

DO ESPAÇO ESCOLAR COMO RECURSO ESTRATÉGICO DE IDENTIDADE

E RESISTÊNCIA..............................................................................................................141

4.1. Formação de Professores Mura: Questões Centrais e Execução do Programa .......141

4.2. Fundamentação, Princípios e Bases da Formação dos Professores Mura................148

4.3. Definição de Objetivos para a Formulação do Projeto de Educação Mura .............155

4.4. Definindo Temáticas e a Construção de Conteúdos Culturais ..................................162

4.5. Projetos de Pesquisa e a Reconstrução da História Mura.........................................172

4.6. O Estudo da língua "nheengatu" como Estratégia de Identidade ............................182

4.7. Reconstruindo a Identidade do Professor .................................................. ..................199

4.8. Acompanhando e Cuidando da Experiência ...............................................................207

4.9. Lidando com os Problemas, Conflitos e Contradições ................................. ..............219

4.10. Estratégias de Identidade e o Desenvolvimento da Política Indígena de

Educação Escolar Mura: Avanços Conquistados, Impasses e Perspectivas..........227

4.10.1. Avanços Conquistados........................................................... .....................................230

4.10.2. Impasses............................................................................................................. .........231

4.10.3. Perspectivas......................................................... ........................................................232

REFLEXÕES FINAIS................................................................... .......................................234

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REFERÊNCIAS......................................................... ...........................................................257

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INTRODUÇÃO

Com esta dissertação "Educação e Identidade Indígena: um estudo de caso sobre os

limites e possibilidades da educação na (re) construção e reafir mação da identidade Mura",

propomo-nos examinar e discutir, a partir da experiência em construção do Projeto de

educação escolar Mura no município de Autazes, os limites e possibilidades da educação na

constituição de identidades indígenas na atualidade , tendo como pressuposto a concepção de

sujeitos indígenas e o estabelecimento de novas relações impostas pelo mundo globalizado.

Minha experiência com a educação indígena, e mais particularmente com a educação

escolar indígena, teve início em 1991 1, quando do momento de implantação das políticas

públicas e diretrizes nacionais para a educação escolar indígena no país, que, nesta época,

passaram a ser coordenadas e executadas no estado, pelo Instituto de Educação Rural do

Amazonas, IER-AM.

1 De 1983 a 1998 integrei a equipe técnica do Instituto de Educação Rural do Amazonas, IER -AM, autarquiavinculada a Secretaria de Estado da Educação e Cultura, SEDUC -AM, dotada de personalidade jurídica eautonomia administrativa e financei ra, com sede em Manaus e jurisdição em todo o estado. A necessidade devincular a educação à realidade e desenvolvimento rural, obrigou a criação do Instituto por Lei de N o. 1469 de17 de novembro de 1981. Além de planejar, coordenar, executar e avaliar a política de educação e ensino ruralno estado, atendida inicialmente pelo núcleo de Educação Rural da SEDUC, passou, a partir de 1991, acoordenar e executar as políticas públicas para a educação escolar indígena no Amazonas, por força do DecretoNo. 26 de 4 de fevereiro de 1991, em que o governo brasileiro atribui ao MEC a competência para integrar aeducação escolar indígena aos sistemas de ensino regular, coordenando as ações referentes àquelas escolas emtodos os níveis e modalidades de ensino. O mesmo Decreto atribui a execução dessas ações às secretariasestaduais e municipais de educação, em consonância com as diretrizes traçadas pelo MEC. O Instituto deEducação Rural do Amazonas, IER -AM, foi desativado em 1998, deixando de cumprir suas funções polít icas eeducacionais por enxugamento da máquina administrativa durante o governo Amazonino Mendes. A partir deentão, as políticas públicas para a educação escolar indígena vêm sendo coordenadas e executadas pelaSecretaria de Estado da Educação e Qualidade do Ensino, por meio da Gerência de Educação Escolar Indígena,GEEI, cuja equipe técnica integro atualmente.

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A inspiração obtida para a elaboração desta dissertação, resultou, entre outras práticas,

de experiências adquiridas e baseadas na realidade de fatos, fenômenos, interesses e

comportamentos identificados durante a execução de programas de formação de professores

indígenas no estado do Amazonas nos quais integro o quadro de formadores.

Entretanto, a questão central tratada nesta dissertação - "limites e possibilidades da

educação na (re) construção e reafirmação da identidade Mura" - é decorrente de minha

prática docente2 exercida durante a formação dos professores Mura no município de Autazes,

localizado na margem direita do paraná do rio Autaz -Açu, com uma área de 7.986 km 2,

considerado um dos menores municípios do Estado do Amazonas. Autazes limita -se com os

municípios de Itacoatiara, Nova Olinda do Norte, Borba e Careiro, e dista, em linha reta, 100

km de Manaus.

O desenvolvimento desta prática me fez suscitar profundas reflexões sobre os

interesses e necessidades ora coletivas, ora específicas e bem particulares, d emonstradas não

somente pelos professores em formação, como também por membros e lideranças de algumas

comunidades Mura acerca de seus processos de auto -identificação e necessidade de

reafirmação de sua identidade étnica.

Cabe aqui destacar, no entanto, d e modo geral, a importância do interesse coletivo,

bem como a responsabilidade demonstrada pelos professores Mura em assumir e conduzir

processos e movimentos pela recuperação da memória histórica de seu povo e reafirmação da

2 Desde 1993 venho atuando como formador em vários programas de formação de professores indígenas noestado do Amazonas por meio do Proj eto Pirayawara, Programa de Formação de Professores Indígenas noEstado do Amazonas, ministrando as disciplinas Etno -história, da Área de Conhecimento Ciências Humanas esuas Tecnologias, e as disciplinas Prática de Ensino e Metodologia de Pesquisa, da Áre a de ConhecimentoFundamentos para o Magistério, que integram a estrutura curricular do referido Projeto. Durante as trêsprimeiras etapas letivas intensivas do Programa de Formação de Professores Indígenas Mura, executadas noperíodo de 1999 a 2000, minis trei as disciplinas Etno-história, Noções de Sociologia, Noções de Antropologia,Metodologia de Pesquisa e Prática de Ensino. A partir do ano 2001 a 2003, passei a ministrar apenas asdisciplinas Etno-história, Metodologia de Pesquisa e Prática de Ensino. Este Programa, a luz do ProjetoPirayawara, passou a ser denominado a partir do ano 2000 de Projeto "Mura -Peara". Segundo os professores, otermo "peara", na língua geral - nheengatu - significa aquele que guia ou se faz seguir. O Projeto Mura -Pearapara os professores, significa, então, aquele que conduz ou norteia todo o processo escolar, processos e açõeseducativas destinadas à consecução de seus objetivos, apoio à construção de seus projetos societários.

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identidade étnica de seus memb ros, por meio da construção e desenvolvimento de uma

política indígena de educação escolar entendida como instrumento de preservação da cultura,

dos valores e de seus métodos próprios de aprendizagem, que fornecesse respostas

satisfatórias ao processo histórico do grupo.

Ao longo dessa experiência, procurei reunir um acervo bibliográfico relativo à questão

do fenômeno étnico, coletar documentos junto às organizações e professores Mura, registrar

experiências, depoimentos, relatos e práticas pedagógicas de senvolvidas pelos professores em

suas salas de aula na aldeia, mas também no próprio interior do Curso de formação 3, por meio

do qual os sentimentos de pertencimento à cultura e produção de uma subjetividade, ora

coletiva, ora particular e específica sobre a constituição de suas identidades, passaram a se

manifestar.

Diante do exposto, apresentam-se, neste documento, concepções político -pedagógicas

construídas pelos professores juntamente com a participação da comunidade escolar, na idéia

de que a escola indígena Mura, enquanto espaço de discussão e reflexão sobre a história,

cultura e modos de vida do povo, poderia se tornar num instrumento de fortalecimento do que

lhes é próprio e essencial ao desenvolvimento de um processo educativo que consistisse na

conquista de sua autonomia, cidadania, reafirmação da identidade étnica, reconhecimento e

valorização de sua cultura.

3 O Programa de Formação de Professores Indí genas Mura no município de Autazes ocorreu no período de 1999a 2003 e, de acordo com a estrutura curricular e operacional do Projeto Pirayawra, por meio de dois momentosdistintos: sob a forma de Etapas Letivas Intensivas ou de ensino presencial, geralmente executado num postoindígena ou numa aldeia, sob a orientação dos formadores das diferentes áreas do conhecimento ; e EtapasLetivas Intermediárias, atividades desenvolvidas pelo professor em formação na sua própria aldeia oucomunidade de origem, num total de nove etapas consecutivas. As cinco primeiras etapas do Programacorrespondem ao Ensino Fundamental de 5ª a 8ª série e, as demais, isto é, as quatro últimas etapas, ao E nsinoMédio / Normal Indígena.

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Meu envolvimento e participação na construção do Projeto de Educação Escolar Mura

no município de Autazes foram possibilitados por m eio do Projeto Pirayawara4, coordenado e

executado pela Secretaria de Estado da Educação e Qualidade do Ensino, SEDUC -AM, em

parceria com a Secretaria Municipal de Educação, Cultura, Desporto e Lazer do município de

Autazes, SEMEC-Autazes, e com o apoio das lideranças e Organização dos Professores

Indígenas Mura, OPIM.

Com base na trajetória junto ao "povo Mura" 5 e nas experiências e práticas adquiridas

no contexto do Curso, observou -se que as multifaces dos sujeitos indígenas Mura vinham se

revelando e constituindo um contexto social e político complexo por força impositiva não

somente de interesses e necessidades coletivas, mas também pessoais, mas sobretudo, das

relações e formas de produção estabelecidas pelo sistema vigente, instrumentos globalizan tes

e homogeneização cultural.

Pode-se observar ainda, que esta situação, inserida no meio de afirmações de

diferenças e de dinâmica cultural, vinha se revelando cada vez mais conflituosa, ambígua e

contraditória às práticas e necessidades reais demo nstradas, e também às formas de

reivindicação e desenvolvimento de uma política indígena de educação e de identidades que

realmente atendesse a seus interesses e necessidades mais prementes.

4 O Projeto Pirayawara tem como objetivo geral "assegurar às populações indígenas condições de acesso e depermanência na escola, garantindo uma educação diferenciada, específica, intercultural, bilíngüe, comunitária ede qualidade, que responda aos anseios e necessidades de seus projetos societários". A educação pleiteadaneste Projeto encontra-se apoiada em três princípios básicos: organização, participação e solidariedade. Porprincípio da organização entende-se que as ações educativas deverão estar voltadas para o fortalecimento dospovos indígenas, no sentido de atender suas reivindicações, pelo estabelecimento de condições dignas de vida eque seus direitos e necessidades sejam priorizados e atendidos. O princípio da participação configura-se comoum envolvimento efetivo dos indígenas na tomada de decisões quanto às ações compreendidas nos váriosmomentos do processo educativo, isto é, no planejamento, na definição de prioridades, na formulação dediretrizes, no estabelecimento de programas, etc. O princípio da solidariedade configura-se como forma decompartilhar os problemas e o compromisso para resolvê -los, significa, pois, o esforço das ações educativasem fortalecer e assegurar a consecução dos direitos fundamentais dos povos indígenas (Projeto Pirayawara, p.10).

5 A despeito de incorrer no erro de utilização de um conceito colonialista e de generalização cultural, preferi nodecorrer dessa dissertação utilizar a terminologia "povo Mura", de modo evitar a utilização de palavras deconotação pejorativa.

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Com base nesse quadro, e nas observações de Santos (1 977, p. 148), considera-se que

as relações estruturais entre a temática abordada nesta dissertação com os processos

educativos e identidades amazônicas, só podem ser compreendidas a partir da análise da

trajetória histórica da ocupação do espaço amazônico e da posição dos grupos indígenas em

relação ao processo amplo de mudança que implica numa autocriação e negociação de

sentidos que vem ocorrendo não somente no sistema mundial, mas, sobretudo, em suas novas

relações, sentimentos, valores, necessidades e i nteresses que incidem e mobilizam estes

sujeitos ou sociedades indígenas a assumirem determinada categoria identitária.

Nesse sentido, considerando os aspectos históricos, políticos, sociológicos,

antropológicos e pedagógicos destas questões durante a realização do Programa de formação

dos professores Mura, procurou -se desenvolver uma discussão sobre a construção,

reconstrução ou reafirmação da identidade indígena Mura na atualidade. Procurou -se seguir,

no entanto, por um viéis diferente, isto é, não tr atar de um tipo de identidade pensada somente

a partir dos interesses sociais ou coletivos, mas de uma prática que tem se mostrado

inteiramente complexa, particular e não compartilhada pelos mesmos sujeitos do grupo, mas

articulada na maioria das vezes com interesses bem pessoais.

Diante desses procedimentos, considerou -se que trabalhar a questão da construção,

reconstrução ou reafirmação da identidade cultural e étnica numa perspectiva indígena

pressupunha discutir a concepção e identificação de sujeito indígena na contemporaneidade

construído na relação com outras posições de sujeito neste mundo globalizado, muito

especialmente da tecnologia das comunicações, que teceu o mundo numa só rede de

informações e causalidade.

Nessa perspectiva as teorizações sociais e educacionais da atualidade nos auxiliaram

bastante na fundamentação e problematização das questões voltadas para a concepção e

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conquista de sua autonomia, autodeterminação e de valorização da cultura, sem desconsiderar,

é claro, o caráter ambíguo que caracterizou esses movimentos.

As possibilidades de reafi rmação ou constituição de novas identidades passaram a ser

uma questão fundamental na análise dos processos vindouros, tendo em vista, que, segundo

Hall (2004, p. 7):

[...] as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estãoem declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno,até aqui visto como um sujeito unificado. A assim chamada "crise de identidade" évista como parte de um processo mais amplo de mudanças, que está deslocando asestruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros dereferência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social.

Nesse sentido, reconhecendo os processos de mudança e as condições estruturais que

implicam no deslocamento ou fragmentação das identidades indígenas, os professores Mura,

com base nas perspectivas e possibilidades oferecidas pela educação ao reconhecimento do

étnico e constituição dessas identidades, criaram não somente instrumentos e mecanismos de

ação com a finalidade de alcançar os propósitos estabelecidos em seus movimentos, como

também desencadearam processos cada vez mais conscientes de discussões, sempre acirradas

e problematizadoras acerca de uma política indígena de educação que garantisse a execu ção

de seus projetos de sociedade , configurando-se, assim, em um verdadeiro protagonismo

intelectual.

Assim sendo, ao se instrumentalizarem, os professores Mura passaram a enfrentar

desafios e limites impostos pelo sistema educacional e estrutura de estad o quanto ao

reconhecimento de novas metodologias, práticas pedagógicas e processos de avaliação em

construção e, consequentemente, à concreção pelo reconhecimento e funcionamento de seu

Projeto de escola e de educação, o que passou a exigir destes professo res ações cada vez mais

articuladas, conscientes, críticas e abrangentes dos recursos que os cercam, imprimindo uma

nova ordem ao tempo e ao espaço em que vivem.

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Embora se reconheça, nestes últimos quinze anos, profundas transformações no campo

da educação escolar indígena, se observa também a generalização de um discurso cada vez

mais hegemônico sobre uma educação que não corresponde a uma ampliação de novas

práticas educativas nas terras indígenas, e que não considera, segundo Corry (1994), "os

povos indígenas enquanto sociedades viáveis e contemporâneas com complexos modos de

vida, assim como formas progressistas de pensamento que são muito pertinentes para o

mundo atual" (apud DIAS DA SILVA ; BONIN, p.7).

Convém lembrar que, com os direitos adquiridos na Constituição Federal de 1988, os

povos indígenas no Brasil, no contexto atual de inserção na sociedade nacional, vêm

estabelecendo novas formas de relações, sejam a partir da sociodiversidade, sejam a partir da

relação com o meio ambiente e com os novos m odos de produção. Neste processo passam a

ter contato com valores, instituições e procedimentos distintos dos que lhes são próprios.

Os direitos conquistados por esses povos, e assegurados constitucionalmente,

possibilitam-lhes o direito de decidirem seu p róprio destino, fazer suas escolhas, elaborar e

administrar autonomamente seus projetos de vida e de futuro.

Nesse contexto, ainda, o de construírem, sempre articulada aos seus movimentos e

reivindicações, uma outra escola7 que possibilite, não somente, o atendimento às suas

necessidades mais imediatas, as quais se incluem o desenvolvimento de suas práticas e de

uma educação voltada para a constituição de novas identidades indígenas, mas também de

diálogo intercultural.

Com base nesse novo quadro jurídic o e cultural, novas relações vêm sendo

estabelecidas entre o indivíduo e a construção da sua identidade, sendo significativo o papel

das diversas linguagens na constituição dessas relações e na vida que se transforma,

7 Ao longo das abordagens apresentadas e explicitadas nessa dissertação, procuramos situar, segundo asconcepções, princípios e objetivos fixados pelos professor es, o lugar e função da escola indígena Mura.

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permanentemente, tendo em vista que é a partir da utilização dos meios de informações e das

diferentes linguagens que o confronto entre as sociedades se instala.

Nesse sentido, considerando os confrontos, desafios e processos de mudanças gerados

pela mundialização da cultura sobre a constituiç ão de identidades, estabelecimento de novas

relações, mas, sobretudo, o direito garantido à construção de projetos indígenas de educação,

é que se estabeleceu, durante a realização de nosso projeto de pesquisa, as seguintes questões

norteadoras:

a) Como vem se configurando o deslocamento ou fragmentação dos sujeitos nas

sociedades indígenas?

b) Que modelo de sujeito ou identidade indígena está sendo construído, reconstruído

ou mesmo desconstruído em terras indígenas por meio da educação escolar

diferenciada, específica, intercultural e bilíngüe?

c) De que forma as escolas indígenas Mura por meio de seu modelo de educação

intercultural, estão de fato se transformando num instrumento de luta e de

relacionamento com os demais segmentos da sociedade local ou regional?

d) O modelo de educação escolar que vem sendo implantado nas escolas indígenas

está respondendo aos desafios que se colocam para o futuro desses povos?

e) Quais os impactos ou conseqüências da globalização sobre as identidades culturais

indígenas na contemporaneidade?

Considerando a complexidade destas questões, e o amplo contexto de mudanças e

conquistas, observa-se claramente, por um lado, uma legislação indigenista progressista, que

valoriza os processos próprios de aprendiza gem, as práticas e manifestações culturais e o

fortalecimento das identidades étnicas, por outro, uma estrutura de Estado, que se mostra

contrária a ela.

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O quadro se agrava na medida em que essa legislação não vem sendo

sistematicamente cumprida por tod as as esferas de governo - federal, estadual e municipal – o

que dificulta uma leitura avançada de seu conteúdo e preceitos legais. Além disso, não

existem mecanismos a disposição dos povos indígenas que permitam fazer frente ao não

cumprimento da legislação que trata dos direitos indígenas a uma educação diferenciada e de

qualidade que possa responder aos desafios que se colocam para o futuro destes povos,

considerando o dinamismo de seus processos identitários e de suas práticas culturais

específicas.

Pode-se observar ainda, por parte de parcela de representantes do poder público

(federal, estadual e municipal), formadores, técnicos governamentais e gestores de programas

educacionais em andamento em terras indígenas, a falta de sensibilidade, vontade polít ica,

informação e dificuldade de compreensão da lógica e pensamento indígena, bem como de

entendimento das políticas públicas que asseguram e garantem os direitos fundamentais

desses povos, especificamente, aqueles destinados ao direito constitucionalmente garantido de

construírem seus projetos de educação, articulados aos seus projetos mais amplos de futuro.

Com a maturidade política e intelectual adquirida por seus professores, a escola

indígena Mura, em construção desde 1999, vem gradativamente se afirmando e deixando de

ser um instrumento de dominação e passando a ser um instrumento de luta, resistência,

reafirmação cultural e étnica, de reivindicações e informação sobre a sociedade envolvente,

como base para um diálogo em que são sujeitos que b uscam construir seu próprio destino

através da reflexão, escolhas e autodeterminação, sem negar, no entanto, as relações de poder

instauradas no discurso político e pedagógico, bem como as forças hegemônicas e impositivas

da política local que interferem nesse processo.

Nesse sentido, ao considerarmos os avanços e desafios da escola indígena Mura nestes

últimos seis anos, procurou-se, no contexto das abordagens apresentadas neste documento,

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explicitar, não somente, o modo como o processo educativo ex pressou as relações de força

que se instauraram entre as instâncias determinadas pela ideologia, como também o modo

como ela se transpôs para a práxis educativa, analisando a relação cultura x identidade,

educação x identidade, educação x currículo x ident idade, visando a compreensão das

questões que ainda hoje dificultam a consolidação da escola indígena Mura.

Certamente, a problemática histórica, cultural, política e educacional enfrentada pelo

povo Mura no município de Autazes, tanto quanto em outros municípios no Amazonas, tem

causa num contexto sociocultural e ideológico e, foi neste âmbito, que se iniciou uma

discussão sobre os limites e possibilidades da educação na construção, reconstrução ou

reafirmação de identidades indígenas na contemporaneid ade ou processo da globalização,

demonstrando, também, a força que tem a educação em todas as culturas em contribuir na

formação de uma política e prática educacional adequadas, capazes de atender aos anseios,

interesses e necessidades diárias da realidade atual.

Caracterizar a cultura e educação Mura no município de Autazes pressupõe não

somente apresentar, com maior visibilidade, a alteridade historicamente criada sobre seus

hábitos, costumes, valores e instituições, como também evidenciar o (s) tipo (s) de identidade

(s) que o currículo Mura em funcionamento poderá vir a produzir para esse mundo em

transformação.

Toda trajetória relacionada ao direito dos povos indígenas decidirem sobre sua auto -

identificação étnica, bem como a compreensão do processo de educação escolar na formação

dessa identidade, e outras questões pertinentes, foram tratadas no contexto da formação dos

professores Mura, concomitantemente ao processo em construção de seu projeto de educação

e currículo escolar, refletindo e enfatizando sempre o (s) tipo (s) de sujeito (s) que pretendiam

formar e para que tipo (s) de sociedade (s).

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A partir dos resultados desta experiência, procurou -se ainda examinar as diferentes

visões ou imagens que a sociedade local tinha sobre o povo Mura, ou mesmo a sociedade

brasileira em relação aos povos indígenas no país, discutindo e analisando os tipos de

convivência e de sujeito indígena neste mundo contemporâneo.

Muitos povos, a exemplo dos Mura, desenvolveram e vem desenvolvendo sua

autoconsciência cultural e consciência étnica, e cada vez mais percebendo a afirmação de suas

culturas tradicionais como parte integrante de sua resistência política à perda de suas terras,

recursos e poderes de autodeterminação. Assim, construída a partir da revitalização d e suas

próprias culturas, a identidade política fortalece -se e fundamenta-se na diferença.

Tendo em vista os procedimentos metodológicos que deram origem a este estudo,

realizou-se uma pesquisa de base exploratório-descritiva voltada para a observação, re gistro,

análise e correlação entre fatos e fenômenos, sem manipulá -los, buscando conhecer as

diversas situações e relações ocorridas na vida sociocultural, política e econômica dos

professores e suas comunidades, mas também de seus comportamentos, tomados isolado e

coletivamente, de modo definir os parâmetros norteadores que orientassem minha conduta e

prática durante toda investigação e organização dessa experiência.

Quanto aos métodos de abordagem ou bases lógicas de investigação, utilizou -se, para

a apreensão, compreensão e descrição da realidade observada, os métodos

fenomenológico/hermenêutico e dialético/dialógico, orientando, assim, minha caminhada na

condução do processo de investigação científica.

Baseado em Gil (1999, p. 32-33), a escolha pelo método fenomenológico consiste em

mostrar o que é o dado e em esclarecer esse dado, desvelar o fenômeno, aquilo que se mostra,

pô-lo a descoberto, desvendá-lo para além do que parece ser, visto que o fenômeno não é tão

evidente, porém existe, faz parte da r ealidade e deve ser investigado conscientemente.

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Para este autor, o método fenomenológico se reveste de importância, porque, a rigor,

não há uma receita para a aplicação do método, há, sim, uma atitude de abertura, de

disposição, para compreender o que se mostra, ou seja, a realidade. "Não há, pois, para a

fenomenologia, uma única realidade, mas tantas quantas forem suas interpretações e

comunicações". O fenômeno social como se apresenta e as representações deste é que se

configura como objeto da pesquisa fenomenológica (id. ibid., p. 32 -33).

Em assim sendo, é importante ressaltar, que nosso olhar fenomenológico se

concentrou no estudo do sujeito Mura enquanto sujeito coletivo e não objeto, no que ele pensa

e percebe, suas representações de mundo e da real idade, formas de exteriorização de seu

pensamento, às conceituações que faz acerca do fenômeno e realidade escolar, suas

consciências perante um dado fenômeno, suas formas de comunicações e interpretações

diante do que acontece na escola, entre outros elem entos de observação.

Nesse sentido Merleau-Ponty (1993) faz notar que:

[...] tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visãominha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência nãopoderiam dizer nada. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido,e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu sentido eseu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qualela é a expressão segunda. A ciência não tem e não terá jamais o mesmo sentido deser que o mundo percebido, pela simples razão de que ela é uma determinação ouuma explicação dele (apud PINHEIRO, 2002, p. 28).

Reafirma ainda este filósofo que "o mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que

vivo, sou aberto ao mundo, me comunico indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é

inesgotável" (apud PINHEIRO, 2002, p. 31).

A escolha do método hermenêutico justifica -se em razão da necessidade de se buscar

sempre novas interpretações, considerando que para as abordagens hermenêuticas, a

interpretação-compreensão é indispensável à necessidade que os homens têm de se comunicar

com seus semelhantes. O interesse cognitivo que comanda as pesquisas fenomenológicas-

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hermenêuticas é a comunicação, a possibilidade de compreender e interpretar não apenas o

que está visível, mas revelar intimamente aquilo que pode estar num dado momento oculto,

daí o método não se limitar a uma descrição passiva dos fatos (G amboa, apud FAZENDA,

2001, p. 100).

Para Gamboa:

[...] os fenômenos objetos da pesquisa (palavras, gestos, ações, símbolos, sinais,textos, artefatos, obras, discursos etc.) precisam ser compreendidos, isto é, pesquisarconsiste em captar o significado dos fenômenos, saber ou desvendar seu sentido ouseus sentidos. A compreensão supõe uma interpretação, uma maneira de conhecerseu significado que não se dá imediatamente; razão pela qual precisamos dainterpretação (hermenêutica). A hermenêutica é entendida como indagação ouesclarecimento dos pressupostos, das modalidades, e dos princípios da interpretaçãoe da compreensão (id. ibid., 2001, p.100).

Gamboa faz ainda notar que a compreensão de um fenômeno só é possível com

relação à totalidade à qual pertence (horizonte da c ompreensão). Não há compreensão de um

fenômeno isolado; uma palavra só pode ser compreendida dentro de um texto, e este, num

contexto. Um elemento é compreendido pelo sistema ao qual se integra e, reciprocamente,

uma totalidade só é compreendida em função dos elementos que a integram (id. ibid., p. 101).

Considerando a inter-relação e historicidade dos fenômenos observados, os processos

de mudanças por contradição, bem como as transformações qualitativas operadas no contexto

da formação dos professores Mura e, consequentemente, em suas comunidades, utilizou -se

como base para uma interpretação dinâmica e totalizante da realidade o método

dialético/dialógico. Na perspectiva desta abordagem procuramos examinar os fenômenos e

fatos sociais em sua totalidade, sob influências políticas, econômicas e histórico -culturais.

Por meio de recursos discursivos, se destacou a existência do homem enquanto ser

histórico, social, criador e transformador da realidade social, ao mesmo tempo em que se

possibilitou a compreensão da educação enquanto espaço de reprodução das contradições que

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dinamizam as mudanças e possibilitam a gestação de novas formações sociais. Nesse

contexto, tornou-se imprescindível a relação dialógica entre o educador e o educando.

Com a finalidade de aprofundar a investigação crítica sobre os processos de auto -

identificação e reafirmação da identidade étnica Mura, utilizou -se o estudo de caso como

método de procedimento, por considerarmos uma experiência distinta e singular em relação a

outros processos mais amplos envolvendo questões étnicas .

A partir de sua investigação sistemática pode -se observar não somente os fatores que

influenciaram os problemas gerados, como também analisar os aspectos próprios dos

fenômenos observados, coletando de forma ampla as informações necessárias sobre a

realidade investigada.

Quanto aos sujeitos coletivos da pesquisa, foram constituídos por quarenta e dois

professores Mura em formação . É importante ressaltar, que ao iniciar meu processo de

investigação, a maioria destes professores ainda não havia exercido nenhuma prática

pedagógica ou função docente.

Durante os procedimentos de coleta de dados e informações foram utilizadas pesquisas

bibliográficas e pesquisa de campo. Durante a pesquisa bibliográfica foram feitas cons ultas a

bibliografias já tornadas públicas em relação ao tema em estudo, às publicações avulsas,

livros, pesquisas monográficas e dissertativas, relatórios de viagens e autobiografias dos

professores Mura com a finalidade de fornecer dados relevantes e atu ais relacionados ao tema,

com a finalidade de estabelecer um modelo teórico inicial de referência.

A pesquisa de campo foi realizada através de documentação e contatos diretos. Os

contatos diretos foram realizados junto aos professores Mura a cada etapa d a formação,

ocorridas duas vezes por ano, num período consecutivo de quatro anos, como também aos

comunitários e lideranças, por meio dos quais podemos obter informações e conhecimentos

acerca do objeto e sujeitos da pesquisa, descobrindo novos fenômenos o u a relação entre eles.

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Foram utilizadas técnicas de entrevistas com os professores, conversas informais com

as famílias e lideranças das aldeias São Félix e Murutinga, mas também com os professores, e

observação dos fatos e fenômenos durante todo o pro cesso da formação, práticas pedagógicas

desenvolvidas salas de aula, planos de aula, cadernos de registros, reuniões de comunidade,

assembléias, atitudes comportamentais, práticas culturais, cotidiano das aldeias, bem como a

atenção a cada palavra, a cada gesto, ações, símbolos, sinais, textos, artefatos, obras, discursos

etc., de modo identificar e obter provas a respeito de objetivos sobre os quais os sujeitos

envolvidos não tinham consciência, mas que orientavam seu comportamento.

O campo de investigação da pesquisa foi o município de Autazes, compreendendo a

aldeia São Félix, onde foram executadas as duas primeiras etapas letivas intensivas do

Programa, e a aldeia Murutinga, onde ocorreu a terceira etapa letiva intensiva.

Posteriormente, todas as etapas letivas intensivas foram executadas na sede do município.

Com base nesses procedimentos, decidiu -se, então, para a organização dessa

dissertação, apresentar as questões históricas, experiências, práticas pedagógicas, processos e

dinâmicas acerca da (re) construção e reafirmação da identidade étnica Mura, dimensionados

em quatro capítulos específicos, sistematizados no sentido de possibilitar uma compreensão

acerca dos resultados sempre transitórios dos processos de identificação.

O primeiro capítulo trata de uma abordagem teórico-conceitual sobre as bases étnicas

e culturais das tendências positivas de identificação e inclusão num grupo étnico.

Nele, trata-se, pois, em algumas de suas dimensões, a etnicidade enquanto fenômeno

de identidade étnica, tomando como modelo empírico o processo de (re) construção e

reafirmação da identidade étnica do povo Mura no município de Autazes, a partir da

apropriação do espaço escolar como recurso estratégico de identidade, resistência e

emancipação.

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São focalizadas ainda neste capítulo algumas definições e conceitos acerca do termo

etnicidade, considerações teóricas e divergências conceptuais sobre o fenômeno étnico, noção

de raça, etnia e grupo étnico, considerações sobre grupos étnicos e suas fronteiras, e os nexos

entre cultura e identidade cultural, educação e identidade, com a finalidade de fundamentar o

processo de discussão, análise e interpretação da temática em questão.

É importante ressaltar, que, neste capítulo, no que tange à revisão da literatura,

compactuamos com as perspectivas contidas nas obras de Fredrik Barth (1969) e Philippe

Poutignat e Jocelyne Streiff -Fenart8 (1998), que tratam da questão da etnicidade, analisando

os limites grupais e a noção de identidade étnica, além de outros teóricos, por meio dos quais

se procurou enriquecer e ilustrar o tema em discussão.

O segundo capítulo trata de uma breve abordagem histórica sobre o povo Mura e os

processos de desconstrução de sua identidade durante o século XVIII, bem como os modos de

vida atual deste povo no município de Autazes, e também no Amazonas.

O terceiro capítulo consiste em apresentar não somente questões pertinentes ao

processo de manifestação dos sentimentos de pertencimento, auto -identificação e os modos de

ser do sujeito Mura, como também os efeitos ideológicos e repressivos em suas práticas

educacionais anteriores aos movimentos por uma educação específica e diferenciada.

O quarto capítulo consiste na descrição e análise do processo de construção da política

indígena de educação escolar Mura, articulada aos movimentos, processos de mobilização

política e de reivindicações específicas do grupo, na luta por seus direitos à cidadania e

respeito à diferença, recuperação de sua dignidade, mas, sobretudo, pelo reconhecimento de

sua cultura e reafirmação de sua identidade étnica.

8 Ver Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff -Fenart. Teorias da Etnicidade, seguido de Grupos Étnicos e suasFronteiras de Fredrik Barth . São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. Philippe Poutignat e JocelyneStreiff-Fenart elaboram uma importante análise e debate teórico sobre as teorias dos pesquisadores de línguainglesa no que diz respeito ao conceito de etnicidade, identificando -se com a linhagem teórica fundada porFredrik Barth na década de 1960.

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No bojo das discussões apresentadas neste documento, focaliza -se, em alguns de seus

aspectos, a complexidade do processo de globalização e sua implicação nas políticas públicas

para a educação escolar indígena e const ituição de identidades indígenas.

Em assim sendo, é importante registrar, que os professores Mura no município de

Autazes constituíram o primeiro grupo de professores indígenas a concluírem o Ensino

Médio / Normal Indígena no Amazonas (2003), realizan do sua cerimônia de formatura no dia

24 de janeiro de 2004, na sede do município.

Sinto-me honrado em registrar, a homenagem especial a mim dedicada por meio de

seu convite de formatura, expressa ndo a seguinte citação: "Ao mestre e amigo Clóvis

Fernando Palmeira Oliveira, o docente não -índio que tem a cabeça e o coração de índio" ,

além de dedicarem à turma de formandos, o meu próprio nome.

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CAPÍTULO I

1. ABORDAGEM TEÓRICO-CONCEITUAL SOBRE AS BASES

ÉTNICAS E CULTURAIS DAS TENDÊNCIAS POSITIVAS DE

IDENTIFICAÇÃO E INCLUSÃO NUM GRUPO ÉTNICO

1.1. A Etnicidade como Fenômeno de Identidade Étnica

Dentre as várias perspectivas teóricas a partir da qual a manifestação da etnicidade

pode ser analisada ou interpretada, é nossa intenção, neste capítulo, desenvolver uma

abordagem teórica e conceitual sobre as bases étnicas e culturais das tendências positivas de

identificação e inclusão num grupo étnico.

Trataremos, pois, em algumas de suas dimensões, da etnicid ade enquanto fenômeno de

identidade étnica, tomando como modelo empírico o processo de (re) construção ou

reafirmação da identidade étnica do povo Mura no município de Autazes, a partir do processo

de educação escolar, por meio do qual os professores protagonizaram processos de luta,

mobilizações políticas e articulação de possibilidades em nome de sua pertença étnica,

expressa e validada na interação social.

É esta abordagem que constitui o foco central da análise que se propõe neste trabalho

e, ao mesmo tempo, meu maior desafio, principalmente no que se refere em estabelecer um

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diálogo multidisciplinar a partir da discussão dos processos de identificação no âmbito das

teorias sociais e educacionais, mais p recisamente entre três áreas epistemológicas do saber -

antropologia, sociologia e educação - e suas possíveis conexões.

Antes, porém, é importante ressaltar, que, no Brasil, no que tange a questão da

manifestação da etnicidade por determinados grupos minoritários, tal fenômeno, conforme se

tem observado, vem emergindo cada vez mais e ganhou força expressiva a partir do

reconhecimento da diversidade cultural e avanço significativo da legislação indigenista

brasileira a partir da Constituição Federal de 1988 9, em que as populações indígenas tiveram

"sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre

as terras que tradicionalmente ocupam ", garantidos e assegurados.10

Até então, o princípio anterior a os preceitos da nova Constituição, visava à

incorporação dos povos indígenas à comunhão nacional, numa perspectiva integracionista e

de homogeneidade cultural e, sob uma visão fatalista, os entendia como categoria étnica e

social transitória e fadada ao desaparecimento.

Além dos direitos jurídicos e socioculturais gara ntidos pelo atual texto constitucional,

foi assegurado, sobretudo, às populações indígenas, o direito a uma educação escolar indígena

específica, diferenciada, intercultural e bilíngüe.11

Desde então, a oferta de uma educação escolar indígena diferenciada e de qualidade,

regulamentada por vários textos legais, passou a atender prioritariamente aos interesses e

necessidades básicas destas populações, vindo agora ao encontro de seus projetos de vida , de

sociedade e de futuro.

9 Pela primeira vez na história da política indigenista brasileira uma Constituição reconhece aos índios o direito àdiferença, isto é, à alteridade cultural, rompendo com a postura com que sempre procurou incorporar eassimilar os índios à "Comunhão Na cional". Com a Constituição Federal de 1988, assegurou -se aos índios noBrasil o direito de permanecerem índios, isto é, de permanecerem eles mesmos, com suas línguas, culturas etradições, passando a ser respeitados como grupos étnicos diferenciados.

10 Ver Artigo 231, Capítulo VII - Dos Índios, da Constituição Federal de 1988.11 Ver as Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena, MEC, 1993.

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Em assim sendo, o estabelecimento desse novo quadro jurídico possibilitou com que

as sociedades indígenas no Brasil, e em particular, no estado do Amazonas, passassem a

reivindicar não somente o direito a uma educação escolar indígena diferenciada, mas,

sobretudo, o direito à sua etnicidade e cidadania, definindo seus limites grupais.

Nesse novo quadro, a manifestação da etnicidade, caso específico d os professores

Mura no município de Autazes, emerge, assim, no final do século XX e início do século

XXI12, como uma identidade negociada entre parceiros com objetivos políticos comuns, cuja

utilização estratégica de símbolos culturais específicos 13 implicou numa total reorganização

de suas relações, sistemas de troca, costumes e mobilizaç ões.

Configurando-se em processos multiculturais e político s, a negociação dessa

identidade, obteve, por um lado, a satisfação, em parte, de suas necessidades - sociais,

políticas, econômicas - atendidas e, por outro, mesmo reconhecendo a existência dos

conflitos, tiveram que submeter-se à subordinação da ação pol ítica hegemônica local.

É importante, mencionar, no entanto, que a submissão a essa ação política

hegemônica, além dos processos antagônicos que permearam toda negociação da identidade

Mura, ocorreu sob um forte sentimento de conquista, solidariedade e efe rvescência cultural, o

12 Destaca-se esta periodização não somente por corresponder à execução do Programa de For mação deProfessores Mura no município de Autazes, compreendida no período de 1999 a 2003, como também p orestruturação de movimentos educacionais e processos de mobilização que possibilitaram o desencadeamentode mudanças profundas e significativas quanto à manifestação de sua etnicidade e reafirmação de suaidentidade étnica, por meio de ações coletivas, mas também individuais. Ao apropriarem -se criticamente doespaço escolar (no contexto da sala do Curso de formação) e das concepções de educação articula das a outrasáreas de saber, e contextualizadas com sua realidade sociocultural, os professores Mura conseguirampromover reivindicações de diversas ordens. Por outro lado, e também de forma bastante significativa, esseperíodo marca o envolvimento e a par ticipação de professores Mura nos movimentos organizados pelaComissão dos Professores Indígenas do Amazonas, Roraima e Acre, COPIAR, posteriormente denominadoComissão de Professores Indígenas da Amazônia, COPIAM, na luta pela implantação de uma educaçãoescolar indígena específica e diferenciada que atendesse aos interesses e necessidades desse e demais povosque habitam a Amazônia.

13 Considero que a manifestação da etnicidade do povo Mura imbricada no processo de oposições simbólicas,reorganização das relações sociais, sistemas de troca, costumes e de mobilização política desenvolvidas,encontra-se articulada, independentemente do processo de reconhecimento de sua indianidade, à criação desímbolos culturais específicos, utilizados estrategicamente como forma de reafirmação de sua identidadeétnica. Considero estes símbolos, entre outros, o engajamento e participação efetiva de seus membros nopróprio movimento político de conquista pela oferta de uma educação escolar indígena específica ediferenciada, os movimentos pela regularização e posse de suas terras e, sobretudo, os novos padrões decomportamento assumidos pelos professores no contexto de suas negociações e relações interculturais.

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que de certa forma, incomodou, demasiadamente, o poder público municipal, principalmente

pelas críticas e reivindicações constantemente efetuadas pelos professores em formação à

administração política local pela atenção que lhes era anteriormente oferecida.

Mesmo conscientes de que as transações dos recursos negociados se constituíam a

priori em direitos constitucionalmente garantidos, entre estes, o direito a uma educação

escolar específica e diferenciada, o que exigia o desenvolvimento de uma política pública

municipal de educação escolar destinada à população indígena no município, os professores

Mura, principais atores dessa negociação e processos, tiveram que aceitar e participar do jogo

dessas relações, de modo garantir o atendi mento de seus objetivos.

É importante, ressaltar, que as negociações mais significativas da identidade Mura,

operadas tanto no campo cultural, quanto político, mas, sobretudo, educacional, sucederam-se

a partir do início da própria administração atual, isto é, desde o ano 2000, e que permanece até

os dias de hoje, muito embora, no início dessas negociações, estas tenham sido operadas com

muitas dificuldades. Essas negociações, durante as administrações anteriores, caracterizaram-

se por seus vários embates e conflitos.

Segundo nota Eduardo Menéndez (apud Canclini, 1995):

[...] as transações que os atores populares fazem ao combinar recursos pressupõem,em parte, a "aceitação e a 'solução' dos problemas dentro dos limites estabelecidospelas classes dominantes". Dentro desses limites, os extratos subalternos tentamobter eficácia a partir da auto-exploração e da apropriação subordinada da produçãoexterna (p. 227-28).

Com base nessa argumentação, Canclini (1995, p. 228) ressalta que "diant e da

hegemonia política que não conseguem modificar, a transação consiste, por exemplo, em

aceitar submissões pessoais para, quem sabe, obter benefícios de tipo individual".

Por outro lado, reafirma este autor, em dadas situações de negociação da identidad e,

ocorre certa submissão das classes subalternas em colaborar freqüentemente com quem os

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oprime, dando-lhe votos nas eleições e pactuando com ele na vida cotidiana e nos embates

políticos.

Durante os processos de negociação da identidade Mura, a Secre taria Municipal de

Educação, Cultura, Desporto e Lazer, SEMEC -Autazes, funcionou como aparelho mediador

das relações entre os professores, a secretaria e a administração municipal , exercendo, desde

então, um poder de controle sobre toda ação praticada, sejam dos movimentos por eles

organizados, tipos de reivindicações, fatos e modos de como os professores estavam sendo

conduzidos no processo de sua formação, exercício em sala de aula, mas também do trabalho

dos formadores.

É importante ressaltar, que as neg ociações dos professores compreendiam, nesse

momento, questões relativas à definição, construção do modelo de organização, gestão e

funcionamento de suas escolas.

Utilizaram como suporte para discussão, as condições estruturais de suas

comunidades, práticas socioculturais e religiosas, atividades econômicas e diferentes formas

de produção, sistema de trocas, contexto onde a escola estava inserida, formas de assistência e

atendimento prestados pela secretaria, problemas enfrentados em sua atuação na sala de aula,

processos e métodos próprios de ensino e aprendizagem, falta de materiais didático-

pedagógicos específicos e diferenciados baseados em seu contexto sociocultural , entre outros.

Todos esses elementos implicaram em organização de movimentos e políticas específicas de

reivindicações.

O poder de controle da SEMEC sobre a ação dos movimentos políticos e sociais dos

professores Mura, não deve ser encarado aqui como um poder de controle na concepção de

Michel Foucault, ou seja, "como apenas uma ação dominado ra exercida verticalmente sobre

os dominados", mas como uma prática descentrada e multideterminada das relações políticas,

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cujos conflitos e assimetrias são moderados através de compromissos entre os atores

colocados em posições desiguais (CANCLINI, 1995, p. 232).

Segundo este antropólogo, "nem mesmo nas concentrações monopólicas do poder,

acentuadas pelas políticas neoliberais, existe uma manipulação onipotente das relações

socioculturais" (id. ibid., p. 231).

Acrescenta, ainda que,

[...] as identidades se constituem não só no conflito entre classes, mas também emcontextos institucionais de ação - numa uma escola, num hospital, numa fábrica -cujo funcionamento se torna possível na medida em que todos os seus participantes,hegemônicos ou subalternos, os concebem como uma "ordem negociada" (id. ibid.,p. 232).

Tendo em vista que as negociações da identidade são movimentos que expressam

demandas, é importante mencionar, que os movimentos indígenas Mura permitiram, entre

outras, a concreção da lotação de todos os professores indígenas, gestão do próprio processo

escolar nas aldeias, construção e ampliação de prédios escolares, espaços para manifestação e

divulgação da cultura Mura 14, representação da educação escolar indígena nos espaç os físicos

da SEMEC15, etc.

Sobre uma identidade negociada, Canclini (1995) argumenta que:

[...] na linha do interacionismo simbólico, a negociação é um comportamento -chavepara o funcionamento das instituições e dos campos socioculturais . (...) As políticasque reconhecem um papel importante à negociação se sustentam no papelconstitutivo das transações no desenvolvimento das culturas . (...) A negociação daidentidade é sempre um jogo de relações, é uma modalidade de existência, algointrínseco aos grupos participantes do jogo social, instalada na subjetividadecoletiva, na cultura cotidiana e política mais inconsciente (p. 226-238).

14 No município de Autazes se realiza o Festival do Leite, e nele foi aberto espaço para que os professores Murapudessem expor seus artesanatos e manifestar alguns aspectos de sua cultura.

15 Na estrutura física da SEMEC foi criado o Setor de Educação Escolar Mura, SEEM. Os professores quecoordenam o setor são os representantes das escolas nas aldeias e se responsabilizam pelo desenvolvimento eacompanhamento das políticas públicas para a educação escolar indígena no município. Eles possuem, emparte, certa autonomia para decidir sobre os processos, encaminhamentos e a rticulação de possibilidades emprol do desenvolvimento da educação escolar indígena. Mas de modo geral ficam submetidos à açãohegemônica da política municipal, tendo que mediar estrategicamente as relações e os interesses comuns dainstituição e também dos professores e povo das aldeias.

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Nessa dimensão, a manifestação da etnicidade Mura aponta para a perspectiva atual da

questão étnica, mostrando a eficiência estratégica da etnicidade como base para mobilização

ou fazer reivindicações de várias ordens, inclusive políticas (Cohen (1969, 1974) e Glazer e

Moynihan (1975) apud SEYFERTH, 1983, p. 3).

No contexto das análises e interpretações sobre a manifestação do fenômeno étnico

tratado nesta dissertação, o termo identidade é empregado como categoria de atribuição de

significados específicos dos sujeitos em relação uns com os outros, isto é, em relações multi e

interculturais.

Segundo Brandão (1986),

[...] o diferente é o outro, e o reconhecimento da diferença é a consciência daalteridade: a descoberta do sentimento que se arma dos símbolos da cultura paradizer que nem tudo é o que eu sou e nem todos são como eu sou. (...) O outro sugereser decifrado, para que os lados mais difíceis de meu eu, do meu mundo, de minhacultura sejam traduzidos também através dele, de seu mundo e de sua cultura.Através do que há de meu nele, quando, então, o outro reflete a minha imagemespelhada e é às vezes ali onde eu melhor me vejo. Através do que ele afirma e tornaclaro em mim, na diferença que há entre ele e eu (apud BRITO, 2001, p. 17) .

Corroborando com esse pensamento, no entendimento de Brito (2001) as identidades

são, pois, representações inevitavelment e marcadas pelo confronto com o outro e pelo próprio

reconhecimento social da diferença. A construção das imagens com que os sujeitos se

percebem passa pelo entrelaçamento de suas culturas, nos pontos de interseção com as vidas

individuais (id. ibid., p. 17).

Nas palavras de Carneiro da Cunha (1986), "a etnicidade, fruto de confrontos com os

"outros"16 é um elemento político presente em todos os recantos do mundo, sendo considerada

a "hidra do século XX"17 (apud BARROS, 1997, p. 26).

16 Grifo da autora.17 Grifo da autora.

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1.1.1. Etnicidade: Definições e Conceitos

Diante do exposto, e também no sentido de dar maior visibilidade às questões que se

propõem discutir, tornou-se necessário, a meu ver, tendo em vista os propósitos previamente

mencionados neste trabalho, focalizar a problemática da etnicidade de forma didática , mas

também sob uma perspectiva teórica dinâmica, situando -a desde o surgimento do termo às

suas diferentes concepções teóricas.

Entendemos que essa trajetória se faz necessário, não somente em virtude da

necessidade de apreensão de conceitos que possibilitem o entendimento dos mecanismos de

construção, reafirmação ou fortalecimento da identidade étnica, como também dos processos

de inclusão e exclusão que estabelecem limites entre os grupos.

Apesar da constatação do uso do termo etnicidade nas ciências sociais desde a década

de 1940, o estudo das relações interétnicas e os problemas das minorias étnicas,

permaneceram, em grande parte, e por certo tempo, alheio ao desenvolvimento da pesquisa

científica.

Segundo Poutignat e Streiff-Fenart (1998, p. 24), o termo etnicidade emergiu nas

ciências sociais americanas no decurso da década de 1950, no entanto, se impôs teoricamente

somente a partir da década de 1970, período esse caracterizado por Basham & De Groot

(1977), como o da emergência da "indústria acadêmica da etnicidade", por meio de um

número impressionante de obras e programas de pesquisa sobre o tema .18

No decorrer dos anos setenta o termo foi muito mais utilizado como uma categoria

descritiva de problemas étnicos espe cíficos do que mesmo um conceito sociológico

18 Pode-se citar especialmente: Van den Berghe, 1970; Te Selle, 1973; Greeley, 1974; Bell & Freeman, 1974;Glazer & Moynihan, 1975; Despres, 1975; Bennet, 1975; Henry, 1976 ; Said & Simmons, 1976; Giles, 1977;Gordon, 1978; Holloman & Arutinov, 1978 (opus cit. p. 24).

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propriamente dito, não contendo nenhuma definição explícita e, na maioria das vezes,

apresentando um conteúdo vago, incoerente e impreciso, tornando a noção menos operatória.

Entre uma acepção e outra, a noção d e etnicidade era referida, ora como uma

qualidade aferente ao grupo étnico, ora designava a existência dos próprios grupos étnicos.

Na concepção de Gordon (1964), a noção de etnicidade serve para designar o

sentimento de formar um povo, ao passo que, pa ra Connor (1978), é precisamente quando este

sentimento se manifesta que é preciso parar de falar etnicidade para falar de nacionalismo.

Para alguns autores, como A. Cohen (1974), a etnicidade é avaliada em termos de

comportamentos (o grau de conformidade dos membros às normas coletivas do grupo. Para

outros, como De Vos (1975), Hechter (1974) e Brass (1976), em termos de representações ou

de sentimentos associados à pertença. Para outros, ainda, como Deshen (1974), em termos de

ação e de estratégia (id. ibid., p. 86).

Diante de tais concepções, e do grande debate teórico suscitado em torno de sua

abrangência e sentidos, além da fluidez e ao mesmo tempo da imprecisão que o termo

denotava nas várias definições, a etnicidade passou a ser tratada como fenômen o novo e,

portanto, a exigir uma maior precisão e explicação significativa do termo. Dessa forma,

ampliou-se uma diversidade de abordagens e, ao mesmo tempo, evitou -se que uma postura

única e exclusiva se impusesse sobre a questão.

As migrações de populações de origem e de cultura diferentes e suas relações ao

entrarem em contato ou conviverem no seio de uma mesma sociedade global tornaram -se não

somente elementos essenciais na discussão e debate teórico acerca do significado do conceito

de etnicidade, como também objeto central das ciências sociais anglo -saxônicas.

A sociedade norte americana, cuja população é quase totalmente originária de uma

migração proveniente de todas as partes do mundo, foi uma das primeiras a se preocupar com

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a investigação sobre as questões práticas e científicas suscitadas pelas relações interétnicas e

interculturais.

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pluriétnicas, assim como naquelas supostas culturalmente homogêneas: regionalismos na

França e na Grã-Bretanha, conflitos lingüísticos no Canadá e na Bélgica, problema das

nacionalidades no leste europeu, tribalismo na África (id. ibid., p. 25).

Para alguns pesquisadores, a etnicidade é um fenômeno universalmente presente na

modernidade19, por tratar-se de um produto do desenvolvimento econômico, da expansão

industrial capitalista e da formação e do dese nvolvimento dos Estados-nações. Para outros,

ainda, a etnicidade é vista como um fenômeno essencialmente contemporâneo. A

modernidade social, segundo Giroux (1999), entre outras perspectivas, tem como

característica:

[...] o projeto epistemológico de elev ar a razão a um status ontológico. Nessaperspectiva, a modernidade torna -se sinônimo da própria civilização, e a razão éuniversalizada em termos cognitivos e instrumentais como a base para um modelode progresso industrial, cultural e social. Está em jog o nessa noção de modernidadeuma visão da identidade individual e coletiva em que a memória histórica éidealizada como um processo linear, em que o sujeito humano torna -se fontefundamental de significado e ação, em que uma noção de territorialidade geogr áficae cultural é constituída em uma hierarquia de dominação e subordinação marcadapor um centro e por uma margem legitimados através do conhecimento e do podercivilizador de uma cultura eurocêntrica privilegiada (apud GHEDIN, 2006, p. 49).

Sobre uma outra perspectiva apresentada sobre a complexidade desta questão,

Calinescu (1987) caracteriza a modernidade social como sendo

[...] a doutrina do progresso, a confiança nas possibilidades benéficas da ciência e datecnologia, a preocupação com o tempo ( um tempo mensurável, um tempo que podeser comprado e vendido e por isso tem, como qualquer outro produto, umequivalente calculável em dinheiro, o culto da razão e o ideal da liberdade, definidosdentro da estrutura de um humanismo abstrato, mas também or ientado para opragmatismo e o culto da ação e do sucesso (id . ibid., 2006, p. 49).

19 Dada à complexidade teórica, ideológica e política das categorias "modernidade", "pós -modernidade" e"globalização" referidas ao longo do desenvolvimento deste trabalho, e que exigem desdobramentos, análisese debates teóricos mais profícuos, entendemos ser mais conveniente, no contexto das exposições explicitadasnesta dissertação, apenas situá -las como referência nas quais o fenômeno étnico encontra -se presente eimbricado, e também para que possamos compreender algumas características fundamentais do discurso pós -moderno, que pressupõem algumas idéias do discurso moderno, nas palavras de Ghedin (2006).

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Assim, o fenômeno étnico como produto da universalização da modernidade, passou a

retratar por meio do processo histórico, fortes tensões, conflitos e alianças, constr uindo-se

uma representação das etnias que melhor correspondesse à edificação do projeto nacional,

legitimando a superioridade da cultura européia. Para autores como Cohen (1978), o termo

etnicidade fez repentinamente da pertença étnica "um a realidade onip resente" do mundo

contemporâneo. Para Francis (1976) a etnicidade é concebida como "uma dimensão universal

das relações humanas", e não um fenômeno característico dos grupos que o senso comum

define como étnicos (apud POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 1998, p. 25).

Glazer & Moynihan (1975), cuja convicção é compartilhada por inúmeros teóricos da

etnicidade no decorrer da década de 1970, as manifestações de renascimento étnico no mundo

contemporâneo revelam a emergência de uma nova categoria social igualmente importante

para a análise do século XX, tanto quanto o foi a categoria de classe social para o século XIX

(id. ibid., p. 26).

De um modo geral, observa-se, que a grande preocupação em torno do debate teór ico

atual sobre a noção de etnicidade por diferentes cientistas sociais consiste não em atestar a

existência dos grupos étnicos, mas sua existência como problemática, a consubstancialidade

de uma entidade social e de uma cultura pela qual se define o grupo étnico.

Como podemos observar no decorrer desta exposição, são diversas as acepções e

discussões que floresceram sobre o conceito de etnicidade. É importante perceber, no entanto,

que não se pode apontar uma significação precisa, uma definição explícita d o termo, mas uma

generalização do seu uso nas ciências sociais. São diferentes os sentidos que os autores

colocam sob o uso do termo, considerando a pluralidade do fenômeno abordado. Em assim

sendo, muito embora os confrontos teóricos acerca da etnicidade tenham despontado

precisamente desde a década de 1970 atingindo os movimentos sociais atuais, não permiti ram

ainda que se apresente uma teoria geral da etnicidade, mas concepções particulares opondo -se

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quanto a fenômenos diferentes e manifestações diferent es do fenômeno étnico, e que pouco a

pouco vem precisando os seus diversos conteúdos, embora divergentes.

É importante refletir, se por um lado, todo debate teórico suscitado em torno da

problemática da etnicidade surgiu da crítica das concepções substanci alistas dos grupos e das

identidades étnicas, por outro, possibilitou uma diversificada produção teórica que não só

enriqueceu consideravelmente o conhecimento empírico das situações interétnicas como

também deu origem a novas perspectivas de pesquisa e an álise em torno da questão.

A diversidade dos fenômenos e suas divergências conceptuais possibilitam assim

escolhas teóricas e metodológicas que, por conseguinte nos ajuda a compreender o sentido e a

natureza dos processos étnicos. Entendemos da mesma maneira que Poutignat e Streiff-Fenart

(1998, p. 27), que desenvolvida por diferentes cientistas sociais, à universalidade do objeto da

etnicidade numa perspectiva mundial compreende acepções sensivelmente diferentes da

especificidade do fenômeno étnico.

1.1.2. Teorias e Divergências Conceptuais sobre o Fenômeno Étnico

Vimos até, então, que a concepção dinâmica do conceito de etnicidade, empregado nas

várias definições, surgiu de forma bastante imprecisa e tautológica, não chegando os teóricos

a apresentar uma teoria geral da etnicidade, mas concepções particulares opondo -se quanto a

fenômenos diferentes e manifestações diferentes do fenômeno étnico. No entanto, ao

desencadear processos significativos de reflexão e debate teórico, a problemática da

etnicidade deu lugar a teorizações diversas, ao mesmo tempo em que abriu novas perspectivas

de estudo e pesquisa divergentes sobre o fenômeno étnico.

Do que considero como principais fundamentos da questão da etnicidade ou dos

fenômenos étnicos, entendo que é importante destacar, de um modo geral, e sem muitos

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desdobramentos teóricos que a questão exige a forte polarização teórica entre as diferentes

escolas de pensamento que se opõem e que de certa forma intentam abranger a diversidade

das abordagens sobre a etnicidade. Iniciaremos, pois, esta discussão, a partir do ponto de vista

da abordagem primordialista ou essencialista, que concebe a etnicidade como um dado

primordial.

1.1.2.1. A Etnicidade sob a Abordagem Primordialista

É no ensaio de Kallen (1915) sobre o pluralismo cultural, que se encontram os

primeiros desdobramentos de uma concepção que faz da similaridade intrínseca entre aqueles

que, sem tê-la escolhido, compartilha a herança cultural transmitida por ancestrais comuns a

fonte de ligações primárias e fundamentais. Mas é a Shils (1957) e não a Kallen (1915),

segundo Poutignat e Streiff-Fenart (1998, p. 88), que se atribui não somente o termo

primordial, utilizado para corroborar sua tese da importância dos grupos primários na

integração e na reprodução da sociedade global, como também a paternidade da teoria

primordialista. Shils entende que “em suas condutas cotidianas, o homem comum não é

guiado por uma ideologia abstrata ou por uma imagem coerente do mundo e da sociedade,

mas por sua implicação nos vínculos pessoais dotados de “qualidades primordiais” 20,

independentemente das relações efetivas" (id. ibid., p. 88).

20 Lembremo-nos de que Durkheim via nesses víncul os primordiais a base da formação do vínculo social numaperspectiva evolucionária, este ponto de partida primordialista servindo -lhe para refutar as concepçõesutilitaristas da solidariedade. O argumento que ele desenvolve em La division du travail social (A divisão dotrabalho social) é que o que cria a solidariedade não é a cooperação (ao contrário do que afirmava Spencer),mas "forças impulsivas como a afinidade sangüínea, a ligação ao mesmo solo, o culto dos ancestrais, acomunhão dos costumes. É somen te quando o grupo se forma nestas bases que a cooperação nele se organiza"(p. 262). O argumento primordialista permite -lhe, assim, que funde uma análise da produção do vínculo sociala partir do social e não a partir do indivíduo, e evitar, o que é a sua preocupação principal, fazer derivar a vidacoletiva da vida individual (op. cit., p.88).

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Para os primordialistas, a especificidade dos vínculos e dos sentimentos primordiais

relacionados aos sentimentos e aos vínculos civis é que dão conta da qualidade primária e

fundamental da identidade étnica.

Ao analisar a questão dos vínculos primordiais, Poutignat e Streiff -Fenart (1998),

explicam que a qualidade primária da identidade étnica consiste no fato de que o indivíduo

nasce com (ou adquire desde o nascimento) os elementos constitutivos de sua identid ade

étnica: as características físicas, o nome, a afiliação tribal ou religiosa, ligados a ancestrais

putativos cuja herança é transmitida de geração a geração. É esta ancoragem da identidade

étnica em um grupo de parentesco ampliado, fictício ou real, que confere às ligações étnicas a

força coercitiva derivada do dever moral de solidariedade para com "os seus" e a força dos

sentimentos emocionais que é atraída pelo simbolismo dos vínculos de sangue e da família.

Quanto à qualidade fundamental da identidade étnica, a pertença ao grupo étnico

representa a identidade de grupo "de base" para todos os indivíduos, aquela pela qual são

transmitidas as emoções, os instintos, as lembranças de uma maneira que o indivíduo não

pode optar e que está para além da consciê ncia. Esta qualidade primordial da etnicidade torna -

se uma propriedade essencial transmitida no e pelo grupo, independente das relações com os

outros grupos (Novak, 1972, apud POUTIGNAT e STREIFF-FENART, p. 90).

As críticas dirigidas à teoria primordialis ta, representada por um pequeno número de

autores, são de várias ordens: alguns autores acusam -na de incapacidade para dar conta da

especificidade das "ligações étnicas", refutando a tese segundo a qual a ancestralidade comum

criaria vínculos naturais e inevitáveis entre os indivíduos.

Outros, porém, criticam a natureza particular dos vínculos étnicos que se prendem a

seu caráter afetivo e emocional, de terem ocultado a análise, postulando o caráter inefável e a

priori das ligações afetivas. O que é preciso , dizem eles, é explicar a gênese das ligações

étnicas e os mecanismos culturais que geram e mantêm os sentimentos emocionais que os

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caracterizam. Além da crítica a alguns postulados primordialistas definirem a etnicidade em

termos de traços culturais prim ordiais que, por sua vez, são utilizados para explicar a

etnicidade como vínculo primordial. A teoria primordialista é considerada ultrapassada pela

maioria dos autores. Embora se reconheça sua valiosa contribuição e apoio na elaboração da

maioria dos conceitos posteriores, a teoria primordialista não propiciou desenvolvimentos

suficientes para constituir uma teoria da etnicidade.

1.1.2.2. A Etnicidade sob a Abordagem Sociobiológica

A aplicação da teoria sociobiológica às relações étnicas, deve -se a Pierre Van den

Berghe (1981), uma das figuras marcantes da sociologia das relações étnicas e raciais do

mundo anglo-saxão, cuja tese postula, que os homens, como os outros animais, são

geneticamente programados para maximizar suas chances de sucesso na reprodução, o que

implica não somente a reprodução dos genes de um indivíduo, mas também daqueles com

quem ele compartilha genes, a saber, sua parentela.

Nesse sentido, a etnicidade é concebida como uma extensão do princípio de

parentesco e surge como um método de seleção dos apa rentados pelo qual os indivíduos

maximizam sua própria aptidão. Os sentimentos étnicos e os comportamentos que eles

determinam enraízam-se, assim, numa tendência geneticamente programada para favorecer

seus próximos em detrimento dos estranhos. Para esta r eflexão, é preciso reconhecer em Van

den Berghe (1981), que o postulado da maximização da aptidão não chega a promover uma

abordagem "racial" da etnicidade, nem mesmo a considerar o racismo como um fenômeno

inscrito nos genes. Os traços fenotípicos são ape nas índices triviais que podem ser utilizados

pelos grupos do mesmo modo que, sob outras condições, traços culturais como a língua o é

para se diferenciar dos vizinhos. Para este teórico, duas situações de formação da identidade

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étnica são distinguidas: uma, em que a diferenciação opera -se no seio de populações vizinhas

e fracamente diferenciadas de um ponto de vista fenotípico, e outra que deriva das conquistas

e das migrações a longa distância, na qual populações fortemente diferenciadas se acham

postas em contato. No entendimento deste autor, a raça aparece não como uma fatalidade

biológica, mas, ao contrário, como signo de diferenciação utilizado de maneira puramente

situacional, não mais eficaz e, certamente, menos provável que qualquer outro traço cult ural.

Em compensação, o etnocentrismo (a preferência sistemática pelos membros de sua

etnia) aparece bem, quaisquer que sejam os índices nos quais se apóia, como uma tendência

atávica inconsciente enraizada de forma genética. A tentativa recente de aplicar a teoria

sociobiológica às relações étnicas pode ser considerada uma nova variante das teorias

primordialistas clássicas21, segundo Poutignat & Streiff -Fenart (1998, p. 90).

1.1.2.3. A Etnicidade sob as Abordagens Instrumentalistas e Mobilizacionistas

Para as abordagens instrumentalistas e mobilizacionistas a etnicidade é concebida

como um recurso mobilizável na conquista do poder político e dos bens econômicos. O

processo de competição é colocado no centro das suas análises, compreende, contudo, mui tas

variantes nas quais a ênfase é colocada ora nos fins e nas estratégias individuais, ora nas lutas

de poder coletivas. Para Glazer e Moynihan (1975), que mantêm esse mesmo ponto de vista, o

que têm em comum formas de identificação baseadas em realidades tão diferentes quanto a

religião, a língua, a origem nacional é que "elas se tornam focos de mobilização de grupo para

21 As teorias sociobiológicas possuem vários pontos em comum com as teses primordialistas: nos dois casos, aetnicidade surge como um dado irredutível e universa l do comportamento humano; a participação no interiordos limites do grupo é vista como valorizada por si, o foco é colocado sobre o parentesco como matriz de basena qual se enraíza a etnicidade. Elas se distinguem por seu anticulturalismo materialista. A cultura étnica, paraVan den Berghe, nada mais é senão um meio de maximizar as chances de sobrevivência e de reprodução dogrupo. Ele é, em conseqüência disso, amplamente modificável segundo condições que determinamnecessidades variáveis de se diferencia r dos outros humanos e de operar diferenciações entre parentes e não -parentes.

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a realização de objetivos políticos concretos", ou mesmo para conseguir vantagens políticas

ou econômicas. Nessa perspectiva a etnicidad e é firmada sobre interesses que mobilizam os

grupos a assumirem determinada categoria identitária ( apud POUTIGNAT e STREIFF-

FENART, 1998, p. 95).

Cohen (1969) afirma que a contribuição particular da etnicidade para a mobilização

política é fornecer um idioma que favoreça a solidariedade de grupo e que de certa maneira

dissimule os interesses específicos comuns pel a qual a luta é conduzida (opus citatum, p. 96).

Esta perspectiva está ligada a uma visão contemporaneísta da etnicidade, a novidade do

fenômeno étnico explicando-se pelo fato de que os Estados -nações modernos são

caracterizados pela multiplicidade das oportunidades de competição por recursos raros 22.

A questão fundamental é compreender as condições nas quais indivíduos que podem

reclamar uma pertença étnica são levados a desenvolver uma solidariedade com outros

indivíduos pertencentes à mesma categoria para conseguir vantagens políticas ou econômicas.

As perspectivas das teorias do grupo de interesse postulam que as identidades e as

ideologias étnicas são mantidas e enfatizadas para exercer uma influência nas políticas sociais

e econômicas. A etnicidade é vista como uma solidariedade de grupo emergente em situações

conflituais entre indivíduos que possuem interesses materiais em comum. De acordo com a

definição de Vincent (1974), ela é "a máscara do confronto" (id . ibid., p. 97). Nesse sentido,

Bell (1975) considera que o que torna a etnicidade eficiente, como base de mobilização

política, é que ela permite combinar interesses e vínculos afetivos ou, mesmo, poderíamos

dizer combinar funções instrumentais e expressivas (id . ibid., p. 97).

22 Este tipo de abordagem foi amplamente utilizado pelos africanistas para pôr em causa as explicaçõesprimordialistas do tribalismo. Este, diz Skinner (1968), não é mais que a identidade utilizada por grupos emcompetição por poder e prestígio na África contemporânea. Os termos "tribalismo" e "etnicidade" argumentaA. Cohen (1974), são apenas duas etiquetas diferentes que designam o mesmo fenômeno: uma forma dereação às condições da modernidade que, tanto na África quanto nos Estados Unidos, leva os indivíduos aorganizar-se segundo as linhas étnicas para sustentar a competição econômica e política (op. cit. 1998, p. 96).

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De modo tornar mais complexa a noção de grupo de interesse, Hannertz (1974),

conjectura que numa situação de forte competição entre grupos minoritários, submetidos

todos ao domínio econômico e cultural do grupo dominante, a pertença étnica representa para

os indivíduos um instrumento para a mobilidade social.

A etnicidade (entendida aqui como uma forma de organização social numa base

étnica) propicia uma alternativa c oletiva que permite que se desenvolvam estratégias de

sucesso econômico e de promoção do grupo (id . ibid., p. 99).

Mas, se a promoção coletiva é facilitada pela etnicidade, ela desemboca igualmente na

fragmentação do grupo e na divergência dos interesses individuais de seus membros. A

exaltação dos valores morais e da lealdade étnica pode se transformar num gene para os

membros do grupo que conseguiram acesso a posições dominantes na sociedade global 23.

As teorias instrumentalistas refutam a idéia segundo a qual a etnicidade seria um efeito

da socialização no seio do grupo étnico, mas situam -na como uma reação às mudanças das

estruturas institucionais e das relações de poder implicadas pela modernização. Assim, a

etnicidade não pode ser senão política, uma vez que a função de organização de interesses

políticos é justamente o que a define 24.

23 É importante destacar, no contexto d esta abordagem, que o fenômeno da etnicidade Mura, engendrado em seusmovimentos políticos e sociais de conquista, manifestou -se, de modo geral, a partir de processos já conscientesde escolhas, tomadas de decisões, cooperação e solidariedade entre o própr io grupo, embora se percebesseclaramente, entre alguns professores, interesses bem pessoais e específicos em relação ao projeto coletivo dogrupo como um todo. Esses interesses, em alguns, não eram demonstrados ou manifestados visivelmente.Ainda assim, as relações antagônicas entre interesse individuais e coletivos durante o processo dereconhecimento do étnico, em nada implicaram no processo de conquistas do grupo. Tais comportamentos, ébom que se diga, também não chegaram a exercer nenhuma influência o u tendência negativa à fragmentaçãodo mesmo, mas implicou nas relações pessoais e interpessoais do grupo. No entanto, como recursomobilizável, o Curso de formação dos professores, possibilitou, a posteriori, que alguns professoresalcançassem prestígio e posição social dentro do próprio movimento do grupo, outros, porém, fora dele,movidos por interesses bem particulares. Em assim sendo, é impossível não reconhecer que organizadossocialmente, e guiados por certa consciência coletiva - étnica e cultural - o grupo passou a atingir seusobjetivos, garantindo não somente os interesses coletivos, mas também individuais. Continuou a se articular ea ocupar estrategicamente sua posição no mundo.

24 A análise feita por Herzog (1984) sobre a situação israelens e, mostra de que maneira, longe de ser ancorada nahistória ou na tradição das comunidades originais, a etnicidade emerge como uma forma de organização dosinteresses políticos e econômicos dos jovens, em mobilidade ascendente, fortemente implicados na soc iedadeisraelense e desejosos de compartilhar os recursos e o prestígio social, segundo as normas definidas pelasociedade global (apud POUTIGNAT e STREIFF -FENART, 1998, p. 100).

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A partir da noção de "escolha" individual, os membros dos grupos étnicos não são

definidos como tais em razão de sua pertença involuntária e de sua interiorização inconsc iente

dos valores do grupo. Mas, ao contrário, os grupos étnicos se formam quando os indivíduos

desejam adquirir bens (a riqueza, o poder) que não chegam a conseguir segundo estratégias

individuais. O grupo étnico não é mais que a soma dos indivíduos que o compõem e a

resultante de suas ações racionais numa situação de competição econômica e política.

Segundo Weber, a concepção de grupo étnico por ele refletida é a de que a etnicidade como

tipo de atividade social baseada nos sentimentos de pertença deriva da comunalização e não

da forma associativa guiada pelo interesse racional (id . ibid., p. 102).

Em resumo, as críticas concernentes à teoria da escolha racional devem -se ao fato de

que não se podem tratar todas as escolhas individuais como se fossem i guais, ao passo que as

condições estruturais das escolhas são desiguais. Além d e que esta teoria reflete muito mais

sobre os indivíduos, colocado no centro de suas análises, do que propriamente dito sobre a

identidade, e evita ainda refletir sobre os valor es que determinam aquilo que é uma escolha

racional para um dado indivíduo (D ouglas, 1983, apud POUTIGNAT & STREIFF -FENART,

1998, p.103).

Inicialmente utilizada por Blauner (1969) para descrever a situação dos negros nos

Estados Unidos, a noção de colonialismo interno foi desenvolvida por Hechter (1974, 1975,

1976) para explicar o desenvolvimento dos etno -nacionalismos nas sociedades industriais

(opus citatum, p. 103).

A abordagem proposta por Hechter baseia -se na hipótese da divisão cultural do

trabalho, com base nos traços culturais observáveis dos indivíduos a tipos de empregos e de

papéis específicos, na oposição centro e periferia no interior de um espaço nacional, para dar

conta dos fenômenos de dependência e da divisão do trabalho na economia -mundo (Frank,

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1967; Emmanuel, 1972; Wallerstein, 1979 apud POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 1998,

p. 103).

Enquanto a abordagem marxista clássica interessa -se apenas pela análise das

condições estruturais que produzem as divisões étnicas, Hechter (1974, 1975, 197 6) encara a

etnicidade como uma forma de solidariedade que emerge em resposta à discriminação e à

desigualdade e manifesta uma grande consciência política por parte dos grupos que buscam

reverter uma lógica de dominação 25.

Nas sociedades industriais o proc esso de modernização aumentou consideravelmente a

desigualdade de distribuição de recursos e do poder entre um grupo central, econômica e

politicamente privilegiado, penalizando grupos periféricos a uma desfavorável situação de

prestígio e desvantagem econômica.

Na medida em que esta distribuição desigual dos recursos e do poder corresponde a

uma divisão cultural do trabalho, a alocação de papéis diferenciados entre centro e periferia

contribui para o desenvolvimento de identificações étnicas distintivas n os dois grupos. As

reações da periferia subprivilegiada à alienação terão, assim, grandes chances de exprimirem -

se numa base étnica, o grupo prejudicado armando -se das diferenças culturais para fazer disso

a base de suas reivindicações políticas.

Hechter (1982), em sua autocrítica, reconhece que, como todas as teorias utilitaristas, a

teoria do colonialismo interno peca por sua dificuldade em explicar a gênese e a manutenção

da solidariedade de grupo e em resolver o problema teórico do aproveitador 26.

Esta autocrítica leva-o a pôr parcialmente em debate os pressupostos das teorias

mobilizacionistas: só o fato de existirem interesses materiais em comum não é uma condição

25 A abordagem de Hechter afasta -se, entretanto, claramente da problemátic a marxista pelo interesse que elaatribui às mobilizações coletivas da etnicidade que, de repente, não é mais simplesmente a expressão de umaalienação ou falsa consciência, mas um instrumento de lutas coletivas (apud POUTIGNAT e STREIFF -FENART, 1998, p. 103).

26 A questão do aproveitador designa uma contradição central em todas as teorias utilitaristas da ação coletiva.Se um indivíduo é determinado por seus interesses próprios, o comportamento fundamentalmente racional,para ele, será o de abster-se de qualquer participação nas lutas coletivas para, contudo, beneficiar -se de seusefeitos positivos (opus cit., p. 105).

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suficiente para o desenvolvimento de uma solidariedade de grupo ou de uma ação coletiva"

(id. ibid., p. 105).

No que se referem às posições teóricas que se situam na corrente de uma teoria do

poder político, encontramos implícita ou explicitamente uma distinção entre interesses reais e

interesses imaginários e insiste -se no papel fundamental das elites na politização da

etnicidade. Esta emerge não através da agregação de interesses individuais, mas como

estratégia própria a um grupo particular que manipula, em proveito próprio, o apelo à lealdade

étnica (id. ibid., p. 105).

A falta de mobilização étnica em determinadas situações, ao contrário, explica -se pela

abertura do setor majoritário da sociedade para as elites do grupo minoritário, e sua cooptação

na classe dirigente desvia-os de seu papel de líderes étnicos (Young, 1976; Van den Berghe e

Primov, 1977)27.

Esta teoria apresenta uma fragilidade de argumentação por não explicar a base de

massa dos movimentos políticos étnicos. As teorias instrumentalistas não respondem à

questão de saber de onde provém realmente a etnicidade.

1.1.2.4. A Etnicidade sob as Abordagens Neomarxistas

Analisada a partir de uma teoria da exploração capitalista do trabalho, tem como

centro de interesse a relação entre a etnicidade e a classe. Nesta abordagem a etnicidade é

vista como reflexo dos antagon ismos econômicos, e sofre limitações ao não considerar a

27 Barth (1998) faz uma observação similar a propósito das estratégias abertas aos agentes da mudança esublinha, igualmente, os móveis " friamente táticos" que levam as elites a manipular as referências identitáriasem benefício próprio. Mas, ao contrário das teorias mobilizacionistas, a utilização das identidades étnicas comfinalidade de conquista do poder político não está na base da etn icidade, ela é uma forma, dentre outras, detornar as diferenças culturais organizacionalmente pertinentes (p. 106).

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etnicidade senão no quadro da expansão capitalista, ignora as relações étnicas que podem

existir no mundo não-capitalista.28

Explicam-se as divisões étnicas e raciais a partir das funções que ela s preenchem no

sistema capitalista, permitindo a criação de uma força de trabalho barata ou a constituição de

um exército reserva do trabalho.

De acordo com Bonacich (1972), a segmentação do mercado de trabalho é

fundamentada a partir dos antagonismos gera dos nas sociedades industriais, ocasionando a

divisão dos trabalhadores de acordo com as linhas étnicas e raciais.

A situação de competição econômica resultante da segmentação do mercado de

trabalho explica os fenômenos sociais de exclusão ou de "casta" 29 que correspondem aos

interesses dos operários pertencentes aos grupos étnicos mais bem pagos.

Da tendência geral do capitalismo em fixar o menor preço para o trabalho é que deriva

a divisão dos trabalhadores, não dos preconceitos em relação a pessoas de cor ou a membros

dos grupos étnicos. A mão-de-obra de baixo custo disponível deve -se as características

objetivas e ao mesmo tempo subjetivas dos indivíduos.

Se eles compartilham com os teóricos instrumentalistas a convicção de que os grupos

são definidos essencialmente por interesses materiais, políticos ou econômicos, os teóricos

marxistas não levam em conta que a etnicidade exprime de forma dissimulada esses

interesses, mas, antes, que ela constitui uma forma de afiliação social em competição com a

classe, cuja função ideológica é mascarar os interesses de classe convergentes entre os grupos

etnicamente dominados e a facção explorada do grupo etnicamente dominante.

28 A teoria não chega, além disso, a explicar (a não ser recorrendo a fatores psicológicos) por que determinadosgrupos como, por exemplo, os mexicanos nos Estados Unidos permanecem, depois de gerações, mantidos nossetores de atividades menos atrativos e com os menores salários, ao passo que outros, como os japoneses, queestavam desde a origem colocados em condições de discriminação econôm ica pelos menos tão importantesquanto, fizeram a experiência da mobilidade (Surace, 1982; Nelson & Tienda, 1985 apud POUTIGNAT eSTREIFF-FENART, 1998, p. 107).

29 Grifo do autor. O termo "casta" é aqui utilizado no sentido de segregação.

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De acordo com a concepção marxista tradicional, Wallerstein (1988) pensa que as

"realidades"30 étnicas dissimulam um conflito de classe e postula que, se a afiliação étnica tem

por função ocultar as realidades das distinções de classe, as diferenças étnicas desapareceriam

se as condições sociais chegassem a abolir os antagonismos de classe que lhes estão

subentendidos.

O grupo étnico constitui para Wallerstein (1988) "um reagrupamento de pessoas por

uma afinidade que precede miticamente à cena econômica e política atual e que é a

reivindicação de uma solidariedade que ultrapassa os grupos definidos em termos de classes e

de ideologia" (apud POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 1998, p. 108).

Para Bonacich (1980), tendo em vista o desenvolvimento desigual do capitalismo

numa escala mundial, não existe "uma" 31 etnicidade, mas formas de etnicidade que poss uem

significações diferentes por terem raízes de classe diferentes.

1.1.2.5. A Etnicidade sob as Abordagens Neoculturalistas

Segundo Poutignat e Streiff -Fenart (1998), as abordagens neoculturalistas concebem a

etnicidade como sistema cultural, e opõem-se de forma radical às concepções tradicionais da

cultura como totalidade integrada ou como conjunto de traços descritíveis.

Tais abordagens opõem-se fortemente às teorias instrumentalistas pela importância

que atribuem à atividade simbólica q ue representa por si a etnicidade, mas refutam de modo

igualmente radical o essencialismo das teorias primordialistas.

Numerosos autores32 vêem, ao menos parcialmente, a etnicidade como um sistema

cultural que permite aos indivíduos situar seu espaço em u ma ordem social mais ampla.

30 Grifo do autor.31 Grifo do autor.32 Ver Aronson, 1976; De Vos, 1975; Deshen, 1974; Epstein, 1978; Simon, 1979.

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Drummond (1980) e Eriksen (1991) fazem, assim, da dimensão cultural, o ponto

central de uma teoria da etnicidade. Esta é vista, aqui, como o processo pelo qual as pessoas,

por meio das diferenças culturais, comunicam idéias sobr e a distintividade humana e tentam

resolver problemas de significação.

Segundo Drummond, neste modelo a etnicidade é tratada como um sistema simbólico,

ou seja, "um conjunto de idéias coercitivas sobre a distintividade entre si e os outros, que

fornece uma base para a ação e a interpretação do outro" (p. 110).

De acordo com essa abordagem não existem grupos étnicos definidos a priori, mas um

conjunto variável de categorias étnicas 33 que só possuem significações porque são definidas e

utilizadas por pessoas que possuem uma compreensão e expectativas comuns em relação às

diferenças fundamentais que separam as pessoas em sua sociedade.

Do mesmo modo, a definição de etnicidade dada por Eriksen (1991) é derivada de sua

concepção da cultura34, considerando os aspectos concretos das relações interacionais e a

produção e reprodução de significações compartilhadas.

Nesse sentido a etnicidade é vista como um idioma por meio do qual são comunicadas

diferenças culturais em contextos que variam segundo o grau de si gnificações compartilhadas.

Segundo Eriksen (1991), não nos relacionamos, portanto, com grupos étnicos, mas

com contextos interétnicos, nos quais os atores em interação utilizam jogos de linguagem que

podem ser, segundo as situações, uniformes, imbricados ou incomensuráveis.

33 As categorias étnicas são definidas pelo autor como símbolos cujo conteúdo varia em função das situações,mas que formam em conjunto um sistema de sign ificações interligadas (apud p. 110).

34 Eriksen (1991) define identidade retomando o conceito de dualidade da estrutura de Giddens, por sua naturezadualística: a cultura é simultaneamente um aspecto da interação concreta e o contexto de significações de stamesma interação; ela é posta em movimento nas relações humanas como a condição que torna essas mesmasrelações significativas. O trabalho de Eriksen é, simultaneamente, interacionista e culturalista. Interacionista,uma vez que as visões de mundo parti culares que os indivíduos empregam nos encontros interculturais nãoexistem independentemente das situações de interação, em cujo decorrer os atores as utilizam propondo -semutuamente jogos de linguagem. Culturalista, pois o que os atores empregam nos jogo s de linguagem são asdefinições respectivas que eles possuem das estruturas pertinentes de significação do mundo, ou seja, culturasentendidas em um sentido próximo do que Geertz atribui a este termo, como contextos que permitem ainteligibilidade das situações e dos acontecimentos (apud POUTIGNAT e STREIFF -FENART, 1998, p. 110-111).

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1.1.2.6. A Etnicidade sob as Abordagens Interacionistas

Nessa perspectiva, a etnicidade é um processo contínuo de dicotomização entre

membros e fronteiras, requerendo ser expressa e validada na interação social. A et nicidade é

vista, assim, como forma de interação social. A noção de grupo é ancorada nas fronteiras.

Na medida em que a existência dos grupos étnicos depende da manutenção de suas

fronteiras, a questão é saber de que modo as dicotomizações entre membros e fronteiras são

produzidas e mantidas e discernir seu efeito sobre próprio nos comportamentos efetivos.

Considerando o grupo étnico do ponto de vista da atribuição de categorias de Nós e

Eles, Barth (1998) faz da etnicidade um processo organizacional a part ir da constituição de

espaços cênicos e das operações externas que os atores aí realizam uns com os outros, não da

derivação da psicologia dos indivíduos.

A especificidade da organização social étnica decorre do papel que nela desempenha

os contrastes culturais, não dissociados dos processos de manifestação de identidades.

Uma outra interpretação interacionista possível é a de Hannan (1979). O conjunto de

sua obra, consagrado ao estudo da constituição de formas organizacionais de grupo étnico,

combinam duas abordagens: uma interacionista, e uma outra que privilegia a ação

individual35.

Do ponto de vista da abordagem interacional, podemos classificar dois tipos de

abordagens, uma centrada nas operações de classificação e de categorização que regem os

processos de interação, e a outra, nas negociações dos estatutos sociais e das estratégias de

domínio das impressões.

35 "Denomina-se interacionista uma abordagem que não toma a ação individual como unidade de base da análisesocial. Por ação individual, entendo a ação como uma das entida des que podem ser atribuídas como predicadosa um indivíduo-sujeito, considerado como uma instância não totalmente determinada de determinação. Umaabordagem interacionista raciocina, ao contrário, em termos de ações recíprocas, isto é, de ações que sedeterminam umas às outras na seqüência de suas ocorrências situadas" (apud POUTIGNAT e STREIFF -FENART, 1998, p. 110-111 ).

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Quanto à primeira abordagem, esta é definida como uma capacidade cognitiva de

categorização que opera a partir de símbolos culturais, não como uma qualidade ou

propriedade que deriva da pertença a um grupo.

Nesse sentido, por meio de uma estrutura descrita como mapa cognitivo os atores das

situações pluriétnicas orientam-se em suas interações, definindo a situação e o tipo de

comportamento a ser adotado uns em relação aos outros.

As definições de Nós e Eles recompõem -se continuamente para reger as interações

nas situações de mudança social induzidas pelos processos macrossociais.

Os símbolos e as marcas étnicas são referentes cognitivos manipulados em finalidades

pragmáticas de compreensão de sentido comum e mobilizados pelos atores para validar seu

comportamento. A identidade étnica, assim, é definida como um quadro cognitivo comum que

constitui um guia para orientação das relações sociais e a inte rpretação das situações.

A aplicação de uma marca étnica a um indivíduo permite simultaneamente dar conta

do comportamento deste indivíduo em termos compreensíveis para todos os que dividem o

mesmo conjunto de categorias de pertença étnica.

As categorias que compõem um conjunto étnico sempre se situam em contraste umas

com as outras, e a emergência de uma categoria faz com que surjam igualmente as categorias

associadas.

Quanto à segunda abordagem, centrada nas negociações dos estatutos sociais e das

estratégias de domínio das impressões, a etnicidade é vista como um elemento de definição de

situação manipulado pelos atores no decorrer de suas situações.

Nesse sentido, a etnicidade é entendida como um meio de construção, de manipulação

e de modificação da realidade pelos atores. Ela é um elemento das negociações explícitas ou

implícitas de identidade sempre implicadas nas relações sociais.

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A hipótese é que, no curso dessas negociações, os atores procuram impor uma

definição da situação que lhes permita assum ir a identidade mais vantajosa.

Quando a identidade étnica é um estigma social, o domínio da impressão impõe -se

como uma preocupação constante dos atores, manipulando técnicas que permitem ocultar e

tornar suportável uma inferioridade à qual não se pode f ugir.36

Ao contrário do essencialismo das teorias primordialistas, as abordagens interacionais

(e situacionais) têm em comum o fato de articular a afinidade intra -étnica com as oposições

simbólicas e sociais entre grupos. Os aspectos inefáveis da cultura do grupo, os sentimentos

de honra étnica e a força do vínculo entre co -membros não surgem aí como dados primeiros e

inerentes ao próprio grupo étnico, mas como recursos explorados para enfrentar um meio

ambiente social hostil ou incerto.

3. Noção de Raça, Etnia e Grupo Étnico

Observa-se, a partir da explicitação das diferentes abordagens teóricas a cerca da

etnicidade, que as diferentes posturas e concepções apresentadas, ora congruentes, ora

completamente divergentes entre si, assumem características peculiares no sentido da dar

conta da complexidade do fenômeno étnico.

Pode-se deduzir, ainda, que dada à dificuldade de interpretar a complexidade desses

fenômenos, a atribuição categorial como critério definidor de grupos e sua diversidade

sociocultural se configurou num grande desafio para os cientistas sociais.

36 Esta afirmação é pertinente ao contexto dos fenômenos observados durante a realização dessa experiência,quando no município de Autazes a identidade étnica tornou -se para o povo Mura um estigma ou emblemasocial. Nesse sentido, para ocultar a identidade e escapar à discriminação atribuída à imagem negativa criadasobre seus antepassados, os Mura ainda são desqualificados, por alguns, como "ladrões, beberrões,indolentes...", o que levou, inclusive, alguns professores a se identificar como "branco" para não seremdiscriminados ou mesmo reconhecidos como sujeitos indígenas, o que ainda constitui um grande estigma einferioridade social para estas populações.

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Nesse sentido, a tentativa de atri buir um significado a esses fenômenos ou às questões

das relações étnicas e raciais, gerou possíveis confusões em torno da apropriação e utilização

dos termos raça, etnia e grupo étnico.

Entendo, portanto, com base nas questões até aqui expostas, importante acrescentar

neste trabalho, antes mesmo de tratar, entre outras, de questões referentes aos processos de

definição de grupo étnico a partir de suas fronteiras, uma discussão da categoria raça em

oposição à categoria etnia ou qualificativo étnico, por ter assim influenciado na definição de

grupos e suas identidades sociais.

Nesse aspecto, o equívoco teórico entre estes dois termos permitiu com que a categoria

raça dominasse o pensamento social em muitas partes do mundo, da mesma forma que

influenciou grande parte dos teóricos dos séculos XVIII e XIX, dificultando assim, uma

interpretação mais precisa e coerente quanto ao critério definidor da diversidade cultural e das

representações dos grupos minoritários.

Utilizando-se de características somáticas como c ritério de classificação, o conceito de

raça serviu para justificar níveis de submissão entre povos, manipulado como instrumento de

conflito ou dominação política entre os homens, pois se acreditava na crença de uma

superioridade hereditária de alguns tipo s sobre outros.

Tanto assim, que na segunda metade do século XIX, principalmente após a expansão

colonialista européia, as questões raciais serviram como pano de fundo para situações

conflituosas entre os povos. Mas também não podemos deixar de observar qu e na atualidade

conflitos étnicos de diversas ordens continuam a existir em quase todas as partes do mundo,

muitos dos quais decorrentes do próprio processo de expansão colonialista européia.

Podemos citar os conflitos étnicos e religiosos na África, Somál ia e Sudão, entre os

governos muçulmanos e guerrilheiros não-muçulmanos, os bascos na Espanha, guerra civil

entre diversas etnias no Afeganistão, no Iraque pela invasão estadounidense, o Timor Leste

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lutando por sua independência e, entre outros, o conflito étnico e religioso que se concentra

entre judeus e muçulmanos na faixa de Gaza e no território de Israel.

No contexto das formulações ideológicas, com base no saber científico, a s relações de

dominação eram mantidas pelos povos brancos como justificativas de sua pretensa

superioridade biológica e intelectual sobre as demais populações do mundo, estigmatizadas

pela coloração da pele e outras características somáticas.

A diferença genética foi, conforme Hall (2001), o último refúgio das ideo logias

racistas e, contrariamente à crença generalizada, a raça não é uma categoria biológica ou

genética com validade científica que possa ser usada para distinguir um povo do outro. Hall

define:

[...] raça como uma categoria discursiva e não uma categor ia biológica. Isto é, ela é acategoria organizadora daquelas formas de falar, daqueles sistemas de representaçãoe práticas sociais (discursos) que utilizam um conjunto frouxo, freqüentementepouco específico, de diferenças em termos de características fí sicas - cor da pele,textura do cabelo, características físicas e corporais, etc. - como marcas simbólicas,a fim de diferenciar socialmente um grupo do outro ( apud DALMOLIN, 2004, p.75).

Nesse sentido, os pesquisadores contemporâneos, contrariamente ao s teóricos dos

séculos XVIII e XIX, não tomam mais a categoria raça como um fator explicativo do social,

embora até hoje ainda se possa encontrar equívocos nos debates que envolvem a questão. O

termo raça agora é visto como mito do mundo moderno.

Em sua acepção contemporânea, o termo raça ou o qualificativo racial não mais indica

a hereditariedade biossomática, mas a percepção das diferenças físicas, no fato de elas terem

uma incidência sobre os estatutos dos grupos e dos indivíduos e as relações sociais.

Os antropólogos estão totalmente convencidos de que as diferenças genéticas não são

determinantes das diferenças culturais. Segundo Felix Keesing (1961)

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Nessa acepção, os grupos étnicos existem apenas pela crença subjetiva que têm seus

membros de formar uma comunidade e pelo sentimento de honra social compartilhado por

todos os que alimentam tal crença.

Ao definir o grupo étnico a partir da crença subjetiva na origem comum, W eber

destaca que não é na posse de traços fixos que se deve buscar a fonte da etnicidade, mas "na

atividade de produção, de manutenção e de aprofundamento de diferenças cujo peso objetivo

não pode ser avaliado independentemente da significação que lhes atr ibuem os indivíduos no

decorrer de suas relações sociais".

Recorrendo a Barth (1998, p. 194) para maior explicitação sobre os traços fixos na

atribuição dos indivíduos, este antropólogo nos faz entender que em tais processos "os traços

que devemos levar em conta não são a soma das diferenças 'objetivas' mas unicamente

aqueles que os próprios atores consideram como significativos". Desse modo, as mesmas

características diferenciais podem mudar de significação ou perder a significação no decorrer

da história do grupo; e diversas características podem suceder -se adquirindo a mesma

significação.

Nessa perspectiva, Barth (1998) esclarece ainda

[...] que a etnicidade não é um conjunto intemporal, imutável de "traços culturais"(crenças, valores, símbolos, ritos, regras de conduta, língua, código de polidez,práticas de vestuário ou culinária etc.), transmitidos da mesma forma de geraçãopara geração na história do grupo; ela provoca ações e reações entre este grupo e osoutros em uma organização social que não cessa de evoluir (op. cit., p. 194).

Segundo Amselle (1985), a adoção do termo etnia, assim como o de tribo, para referir -

se às "sociedades primitivas", anda junto, na verdade com a negação da historicidade dessas

sociedades, ou seja, afirma este autor, que as noções de 'etnia' e 'tribo' estão ligadas às outras

distinções através das quais se opera a grande divisão entre antropologia e sociologia:

sociedade sem história/sociedade com história, sociedade pré -industrial/sociedade industrial,

comunidade/sociedade (apud POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 1998, p. 55).

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A etnia, próxima da noção de tribo, corresponde então a um quadro coletivo específico

destas sociedades, obra conjunta dos administradores coloniais e de etnólogos profissionais,

por não encontrar aí instituições políticas do tipo europeu.

Por certo tempo, o conceito de etnia permaneceu um dos mais confusos do

vocabulário das ciências sociais, muitas vezes inadequado com a realidade observada em

diferentes áreas.

No entanto, a partir da metade do século XX, com o desenvolvimento da etnologia e,

sobretudo, com o aumento de dados sobre as sociedades tradicionais conhecidas para estudar

de forma compreensiva, antropólogos americanos e britânicos ocuparam -se, por meio do

método comparativo, com a tarefa prioritária de classificação das informações que permitisse

a identificação das similaridades e das diferenças de tipos sociais encontrados em diversas

culturas e o estabelecimento das generalizações baseadas no estudo das correlações entre

diferentes traços de organização social.

Em detrimento à importância da subjetividade dos membros (sentimento de identidade

do grupo, crença na origem comum etc.), houve, portanto, uma grande tentativa de definir

critérios objetivos que permitisse ao etnólogo inferi r a existência de uma unidade cultural aos

grupos, tais como a língua, a independência econômica, o etnônimo, a organização política, a

contigüidade territorial. Tamanha foi a dificuldade e equívoco.

As tentativas de objetivação e empreendimento comparati vo do grupo étnico

tornaram-se, desde logo, objeto de debates e de discussões no seio da antropologia cultural,

tendo em vista que alguns critérios, como a língua, por exemplo, são considerados

determinantes para alguns autores, para outros inexistentes.

Reconhecendo-se as imperfeições do método comparativo, bem como a necessidade

de se buscar uma solução definitiva para o problema da classificação das unidades étnicas,

considerou-se ingênua a idéia de se acreditar que se poderia definir um critério único

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universalmente válido ou uma unidade étnica por uma lista de traços. Quaisquer que sejam os

critérios alguns agrupamentos são raramente congruentes uns em relação a outros.

Quanto ao absurdo das tentativas de classificação dos grupos étnicos, é importante

ressaltar, que Barth e seus colaboradores, demonstram "ser impossível encontrar um conjunto

total de traços culturais que permitam a distinção entre um grupo e outro, e que a variação

cultural não permite por si própria abranger o traçado dos limites étnic os" (apud

POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 1998, p. 61).

Para este antropólogo, as identidades distintivas podem ser mantidas na ausência de

traços culturais comuns comprovados e que, ao inverso, uma teoria indígena da diversidade

étnica pode existir apesar da homogeneidade cultural constatada pelo observador 37.

Nesse sentido, o que importa não é mais estudar a maneira pela qual os traços culturais

estão distribuídos, mas a maneira como a diversidade étnica é socialmente articulada e

mantida.

Segundo Poutignat e Streiff-Fenart (1998), estas críticas, desde o final da década de

1960, marcam um avanço decisivo na conceptualização dos grupos étnicos que, baseadas no

esquema de Cohen (1978), marca a passagem da noção de "tribo" para a noção de "grupo

étnico".

37 De fato, a perda de traços comuns originários decorrente s da situação de contato, não impediu que o povoMura no município de Autazes mantivesse ao longo de seu processo histórico uma unidade ou solidariedadeétnica dotada de fronteiras sociais . Os professores Mura, motivados por um diálogo multidisciplinar entreteorias sociais e educacionais, possibilitaram a eclosão dos sentimentos de pertencimento étnico também desuas comunidades, até então negados de expre ssão. Embora tenham enfrentado os mais diversos estigmas, ogrupo conseguiu manter socialmente sua distintividade a partir do restabelecimento de suas relações sociais,políticas e econômicas com a sociedade local e regional, utilizando signos culturais es pecialmente criados quepermitiram o processo de distinção entre Nós/Eles. É interessante destacar que os Mura concentrados emoutras regiões do estado com os quais tenho convivido por meio dos programas de formação de professores,possuem alguns traços culturais extremamente limitados e diferentes de outros grupos Mura, embora a crençasubjetiva na comunidade de origem seja pertinente a todos. Para efeito de ilustração, é importante ressaltar, noentanto, que entre alguns dos professores em formação, a pri ncípio, expressaram a preocupação em capturarfragmentos ou resíduos de identidades indígenas que atribuíssem uma "tradição cultural" ao grupo. No entanto,no decorrer do processo da formação tive que aprofundar as discussões e estudo sobre a concepção e conceitode cultura, o que muito contribuiu para a manifestação dos sentimentos de pertença étnica. É importante,também destacar, que a preocupação em assumir uma identidade deslocada de sua história e práticas sociaisconcretas não chegou a ter uma dimensão determinante no processo, embora significante. Neste casotipicamente Mura, a identidade étnica persistiu apesar do contato e da perda dos traços originários.

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Para Cohen (1978):

[...] a unidade tribal considerada isoladamente como uma unidade discreta,característica do mundo não-ocidental, estudada de acordo com uma abordagemobjetivista e sistêmica, é substituída por uma concepção do grupo étnico comounidade potencialmente universal, contextualmente definida por seus limites eestudada segundo uma abordagem dinâmica e "subjetivista" (op. cit., 1998, p. 64).

Por meio dessa mudança nas concepções do grupo étnico, nota Eriksen (1991), o

objeto das pesquisas sobre a etnicidade passou do estudo das características dos grupos para o

estudo das propriedades de um processo social. A forma tomou o lugar da substância, os

aspectos dinâmicos e racionais substituíram os aspectos estatísticos e o processo tornou -se

mais importante que a estrutura (id . ibid., p. 64).

1.1.4. Grupos Étnicos e suas Fronteiras

Ainda no que se refere à construção dinâmica da conceptualização de grupo étnico,

além dos fundamentos e concepções teóricas até então explicitadas, torna -se necessário,

também, destacar a revolucionária contribuição de Barth para esta abordagem a partir da

noção de fronteira étnica, que sem dúvida, marcou uma virada importante na

conceptualização desses grupos e representa um elemento central da compreensão dos

fenômenos de etnicidade.

Também entendemos com Barth (1998), que a pertença étnica não pode ser

determinada senão em relação a uma linha de demarcação entre os membros e os não -

membros, cuja manutenção das fronteiras necessita da organização das trocas ent re os grupos

e da ativação de uma série de proscrições e de prescrições regendo suas interações.

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São as fronteiras étnicas e não o conteúdo cultural interno que definem o grupo étnico

e permitem que se dê conta de sua existência e persistência no tempo 38, independentemente

das mudanças que os afetam. Como vimos no desenvolvimento deste trabalho, é a partir de

um número limitado de traços culturais que um grupo étnico estabelece sua distintinvidade

entre ele e os outros.

Quanto à manutenção das fronteiras ét nicas, entende este autor, que mesmo através

dos tempos ela pode continuar a existir apesar das transformações culturais internas ou

mudanças na natureza da própria fronteira, "mesmo modificando e substituindo sua cultura

um grupo étnico não perde sua iden tidade". Um grupo pode adotar os traços culturais de um

outro, como a língua e a religião e, contudo, continuar a ser percebido e a perceber -se como

distintivo. Por outro lado, uma redução das diferenças culturais entre os grupos étnicos não

põe necessariamente em causa a pertinência do limite que os separa.

As fronteiras entre os grupos étnicos podem sofrer alterações, podem tornar -se mais

flexíveis ou mais rígidas com o decorrer do tempo. Para alguns autores a mudança dos limites

de grupo pode tomar a forma de uma erosão dos limites por amalgamação, no sentido de que

um ou vários grupos se unem para formar um grupo maior, diferente de cada um de seus

componentes, ou por incorporação, no sentido de que um grupo se funde em outro que

mantém sua identidade.

Segundo Wallman (1978), para que a noção de grupo étnico tenha um sentido, é

preciso que os atores possam se dar conta das fronteiras que marcam o sistema social ao qual

acham que pertencem e para além dos quais eles identificam outros atores implicados em um

outro sistema social. Melhor dizendo, as identidades étnicas só se mobilizam com referência a

38 Esta afirmação constitui o caráter inovador da noção de fronteira étnica, atestada pela e xcepcional influênciade seu autor, Barth. A importância do texto de Barth liga -se a que, como o notam Molohom et al., elerepresenta um verdadeiro desafio para a maioria das teorias anteriores sobre esta questão, especialmente as daaculturação, da assimilação e da mudança cultural. Despres considera que podemos dividir os estudos étnicosde acordo com dois períodos: BB (before Barth) e AB (after Barth) (Molohon et al., 1979; Despres, 1975 apudPOUTIGNAT e STREIFF-FENART, 1998, p. 153).

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uma alteridade, e a etnicidade implica sempre a organização de agrupamentos dicotômicos

Nós/Eles. Ela não pode ser concebida senão na fronteira do "Nós", e m contato ou

confrontação, ou por contraste com "Eles" (apud POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 1998,

p. 153).

As fronteiras étnicas não são fechadas, mas permeáveis, mesmo aqueles considerados

diferentes em decorrência de sua origem ou de sua herança cultural, s ão admitidos a

compartilhar a experiência do grupo.

Por outro lado, as fronteiras étnicas entre os grupos são tanto menos permeáveis

quanto mais a organização das identidades étnicas esteja fortemente correlacionada a um

sistema de estratificação socioecon ômico, quando as características fenotípicas ou culturais

são associadas à posição de classe. Neste caso a fronteira étnica superpõe -se à fronteira social,

uma reforçando a outra.

As fronteiras étnicas são produzidas e reproduzidas pelos atores no decorrer das

interações sociais, que criam signos culturais específicos 39 para manutenção de suas

fronteiras. A cooperação dos membros para a manutenção das fronteiras é uma condição

necessária da etnicidade.

Quanto ao isolamento geográfico e social, Barth explic a que as fronteiras étnicas

persistem apesar do fluxo de pessoas que as atravessam, em segundo, relações freqüentemente

de uma importância vital são mantidas através dessas fronteiras. A interpenetração e a

interdependência entre os grupos não devem ser vi stas como dispersões das identidades

étnicas, mas como as condições de sua perpetuação.

As fronteiras étnicas são manipuláveis pelos atores na medida em que se ampliam ou

se restringem em função dos processos de inclusão e pertinência ao estabelecer uma di stinção

39 A defesa da fronteira que separa suas religiões respectivas foi o elemento constitutivo de identidades como asdos otomanos e dos castelhanos (Armstrong, 1982). No caso dos amishes, as técnicas de manutenção dasfronteiras, tais como a interdição da exogamia, a recusa da participação na vida política, a recusa do automóvele do telefone, tornaram-se os próprios signos da especificidade cultural da comunidade (Hostetler, 1963),(apud POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 1998, p. 158).

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Nós/Eles, ou mesmo pode remeter a uma relação de forças entre diferentes componentes de

um grupo étnico.

Para Poutignat e Streiff-Fenart (1998), essa abordagem mais sociológica que

etnológica do objeto de pesquisa representado pelas relações inter étnicas renovou de modo

incontestável a problemática e o método, instigando o pesquisador a se questionar como, por

meio das mudanças sociais, políticas e culturais de sua história, os grupos étnicos conseguem

manter os limites que os distinguem dos outros .

Barth (1998, p. 12) concorda que "traços culturais diferenciadores" riscam a linha de

demarcação entre os grupos étnicos, mas pouco lhe importando qua l, uma vez que podem

variar no decorrer do tempo e ao sabor das interações com os grupos. E é muito rapidamente

que ele indica que, nos casos de confronto político entre grupos étnicos (quando, de acordo

com ele, atenuam-se as diferenças culturais), "é preciso dar bastante atenção à revitalização de

determinados traços tradicionais escolhidos e à instaur ação de tradições históricas para

justificar os idiomas e a identidade".

Poutignat & Streiff-Fenart (1998) em relação às questões "barthianas" dos limites ou

linhas demarcatórias entre os grupos e da colocação em relevo dos critérios de pertença na

interação social (questões que são colocadas em relação a qualquer identidade coletiva)

acrescentaram a questão específica da etnicidade: a da fixação dos "símbolos identitários" que

fundam a crença em uma origem comum. "O que diferencia, em última instânc ia, a identidade

étnica de outras formas de identidade coletiva é o fato de ela ser orientada para o passado".

Passado que não é o da ciência histórica; mas aquele em que se representa a memória coletiva.

Para Barth (1998), um grupo étnico se define atrav és de critérios pelos quais ele

mesmo estabelece as suas fronteiras. "Os grupos étnicos são categorias de atribuição e

identificação realizadas pelos próprios atores sociais e, assim, têm a característica de

organizar a interação entre as pessoas".

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De modo contribuir mais significativamente com a análise sobre a definição de grupo

étnico, recorremos a Brandão (1986, p. 145), que concebe grupo étnico,

[...] como um tipo organizacional peculiar culturalmente diferenciado de outros;uma categoria de articulação de tipos de pessoas que, por estarem historicamenteunidas por laços próprios de relações realizadas como famílias, r edes de parentes,clãs, aldeias e tribos, e por viverem e se reconhecerem vivendo em comum ummesmo modo peculiar de vida e representaç ão da vida social, estabelecem para elespróprios e para os outros as suas fronteiras étnicas, os seus limites de etnia.Mergulhados em um sistema de relações regidas pela desigualdade, aprendem apensar a diferença; aprendem a se pensar como diferentes.

Assim sendo, a concepção de grupo étnico , enquanto categoria de atribuição está

ligada aos critérios que os próprios sujeitos estabelecem a partir dos elementos da cultura de

que é parte, se constrói nas práticas sociais, dos limites de suas fronteiras , dos símbolos

identitários que fundam a crença subjetiva na comunidade de origem.

Em síntese,

[...] ser pessoa40 de tal grupo, ou ser uma experiência pessoal de uma etnia é,

justamente, o haver aprendido a incorporar subjetivamente aquilo que realiza em c ada sujeito

maneiras de ser, de pensar, de sentir e de se relacionar, que são peculiares de seu grupo, no

jogo de relações interpessoais que tornam tudo isso uma realidade social objetivamente

construída e partilhada (Brandão apud BRITO, 2001, p. 18).

1.2. Cultura e Identidade Cultural

Da discussão sobre a etnicidade, que, em parte, realizamos nas páginas precedentes

deste Capítulo, vimos que a cultura concorre para o reconhecimento do étnico. O étnico é

assim processo que se constrói nas práticas sociais, se manifesta e se articula a partir dos

40 Grifo do autor.

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símbolos, das representações e das valorações do grupo. A cultura está vinculada à vida social

e, portanto, resulta na produção de identidades.

Vimos, ainda, entre as teorias da etnicidade enquanto fenômeno de identidade étnica,

aquelas que consistem em explicar a existência de uma identidade étnica a partir de

sentimentos primordiais, ou seja, que tudo está definido desde seu começo, que se afirma

sobre valores inerentes ao próprio grupo, as chamadas teorias primordialistas ou

essencialistas.

Outras, porém, consistem em explicar a existência de uma identidade étnica a partir da

herança cultural, ligada à soci alização do indivíduo no interior de seu grupo cultural, as

chamadas teorias culturalistas. Além daquelas que dão ênfase à herança biológica, em que a

identidade é vista como uma essência impossibilitada de evoluir e sobre a qual o indivíduo ou

o grupo não tem nenhuma influência, ainda assim, a identidade também é definida como

preexistente ao indivíduo. É a teoria sociobiológica, onde a identidade está praticamente

inscrita no patrimônio genético.

Outras, ainda, concebem que a identidade étnica é firmad a sobre interesses que

mobilizam os grupos a assumirem determinada categoria identitária, as chamadas teorias

instrumentalistas ou mobilizacionistas.

No contexto destas abordagens, visando analisar o nexo entre cultura e identidade

cultural, focalizei o olhar, inicialmente, ao desenvolvimento do conceito de cultura, na

perspectiva de que, enquanto fenômeno humano e, portanto, social, ela serve de base para a

construção dos processos identitários, ou mais, especificamente, para a construção ou

reafirmação de identidades étnicas41.

41 É importante ressaltar que a noção dos conceitos de "cultura" e de "identidade" sempre esteve presente eaqueceu as discussões e reflexões dos professores Mura , orientando suas escolhas, decisões e estratégias demobilização que resultaram em seus processos de auto-identificação e reconhecimento da identidade étnica .

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Como sabemos o desenvolvimento do conceito de cultura, desde os iluministas até os

autores modernos, passou por diversas variações influenciando as principais correntes

teóricas: o evolucionismo e suas influências no difusionismo e na sociologia francesa de

Durkheim e Mauss; o marxismo e a sociologia de Max Weber e o estruturalismo de Lévi -

Strauss. O funcionalismo inglês e as vertentes culturalistas americanas também se inserem

neste campo.

Para atender aos objetivos deste es tudo apresento algumas considerações gerais acerca

do fenômeno cultura, dando visibilidade a alguns conceitos tomados emprestados de autores

nacionais e estrangeiros.

Segundo Laraia (2002, p. 30), a primeira definição de cultura formulada do ponto de

vista antropológico pertence a Edward B. Tylor (1871), que procurou demonstrar que cultura

pode ser objeto de um estudo sistemático, pois se trata de um fenômeno natural que possui

causas e regularidades, permitindo um estudo objetivo e uma análise capaz de pro porcionar a

formulação de leis sobre o processo cultural.

Tylor propôs que cultura "é aquele todo complexo que inclui o conhecimento, as

crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e aptidões adquiridos pelo

homem como membro da sociedade" (apud MARCONI e PRESOTTO, 1998, p. 43).

No entendimento de Laraia (2002), o comportamento dos indivíduos depende de um

aprendizado, e este consiste na cópia de padrões que fazem parte da herança cultural do

grupo. Os diferentes comportame ntos sociais são produtos de uma herança cultural, ou seja, o

resultado da operação de uma determinada cultura. Em decorrência de uma educação

diferenciada, os indivíduos de culturas diferentes vêem o mundo de maneiras diferentes. A

cultura se refere, pois à capacidade e necessidade que os seres humanos têm de aprender.

A partir desses pressupostos, pode -se perceber, que o conceito de cultura não

compreende em nenhuma instância um agregado de traços culturais determinando o

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indivíduo, ou mesmo grupos forma dos por esta cultura. Esta concepção não reflete a

tendência pensada em termos biológicos, quando se falava de raças e de sua heterogeneidade.

Franz Boas (1938) define cultura como "a totalidade das reações e atividades mentais

e físicas que caracterizam o comportamento dos indivíduos que compõem um grupo social..."

(apud MARCONI e PRESOTTO, 1998, p. 43).

Para Felix M. Keesing (1958), a cultura é "comportamento cultivado, ou seja, a

totalidade da experiência adquirida e acumulada pelo homem e transmitida so cialmente, ou

ainda, o comportamento adquirido por aprendizado social" (id ., ibid., p. 43).

Mais recentemente, Clifford Geertz (1973), propõe que "a cultura deve ser vista como

um conjunto de mecanismos de controle - planos, receitas, regras, instituições - para governar

o comportamento" (id. ibid., p. 44).

Para este antropólogo, “mecanismos de controle” consistem nos símbolos

significantes, ou seja, palavras, gestos, desenhos, sons musicais, objetos ou qualquer coisa que

seja usada para impor um significad o à experiência.

Nesse sentido ainda, concebendo a "cultura como um conjunto de mecanismos de

controle" sobre o comportamento, Geertz (1978) acrescenta:

[...] Não dirigido por padrões culturais - sistemas organizados de símbolossignificantes - o comportamento do homem seria virtualmente ingovernável, umsimples caos de atos sem sentido e de explosões emocionais, e sua experiência nãoteria praticamente qualquer forma. A cultura, a totalidade acumulada de tais padrões,não é apenas um ornamento da expe riência humana, mas uma condição essencialpara ela - a principal base de sua especificidade (apud THOMAZ, 1995, p. 428).

Não é possível pensarmos, portanto, numa natureza humana independente da cultura:

diante de um homem sem cultura estaríamos diante de uma monstruosidade. Para sua

existência, o homem depende de "uma espécie de aprendizado: atingir conceitos, a apreensão

e aplicação de sistemas específicos de significado simbólico" (id . p. 61).

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Claude Lévi-Strauss (1976) define a cultura "como um si stema simbólico que é uma

criação acumulativa da mente humana". Seu trabalho enfatiza a "estrutura subconsciente de

pensamento". Para Lévi-Strauss, a diversidade humana não é importante, mas a similaridade

humana do pensamento, em que a identidade de grupo é fundamental na construção da pessoa

humana (apud LARAIA, 2002, p. 61).

Corroborando com este entendimento, Thomaz (1995, p. 428) reafirma que, como

qualquer código simbólico, a cultura tem seus segredos para aqueles que não a conhecem. No

entanto, é possível chegar a conhecer uma cultura estranha: como um código, esta deve ser

decifrada, decodificando as mensagens aparentemente truncadas, pouco racionais ou sem

sentido.

Recorrendo a Lopes da Silva (1988, p. 5), o conceito de cultura por ela concebid o diz

respeito à "capacidade que os seres humanos têm (e só eles têm) de dar significado às ações

que praticam à realidade natural ou construída que os cerca, às condutas de animais e

pessoas".

A essa qualidade humana e capacidade de criar símbolos é co mpartilhada por todos os

seres humanos, cada grupo de pessoas que vivem juntas, acaba por dar significados próprios

às coisas, próprios no sentido de que são produzidos por aquele grupo em particular, não se

referindo, pois a um fenômeno individual. Mesmo em um ambiente natural é possível existir

uma grande diversidade cultural e vários significados alternativos para um mesmo fato ou um

mesmo elemento do mundo natural (id . ibid., p. 5).

Em assim sendo, com base em Laraia (2002), Franz Boas (1938), M. Keesin g (1958),

Clifford Geertz (1973), Lévi -Strauss (1976), Thomaz (1995) e Lopes da Silva (1988), pode -

se, perceber, que o homem é resultado do meio cultural em que foi socializado, herdeiro de

um longo processo acumulativo que reflete o conhecimento e a exper iência adquirida pelas

numerosas gerações que o antecederam (Laraia, 2002). Sendo a cultura um fenômeno humano

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e, portanto, social, não existe indivíduo sem cultura, seus comportamentos sociais são

produtos de uma herança cultural.

O modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes

comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos de uma herança

cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura (L ARAIA, 2002, p. 68).

Nesse sentido, com base em Santos (1977, p. 148), e também no papel da cultura na

constituição de grupos sociais, é importante perceber que o fenômeno étnico ou a questão da

manifestação da etnicidade do povo Mura no município de Autazes, não pode ser

compreendido no contexto da constituição de identidades indígenas na atualidade, sem a

análise da situação do contato ou da trajetória histórica da ocupação do espaço, da cultura e

nem da posição desse grupo em relação aos processos de mudança que implicam numa

autocriação e negociação de sentidos que ocorre não somente no sistema mundial, mas,

sobretudo, em relação aos sentimentos, valores e interesses que incidem e mobilizam os

sujeitos ou sociedades indígenas a assumirem determinada categoria identitária.

No que se refere, portanto, à relação entre cultura e identidade na constituição dos

processos identitários, ou mais precisamente a relação entre a concepção que se faz de cultura

e a concepção que se tem de identidade cultural, Cuche (2002, p. 176) esclarece que

[...] não se pode, pura e simplesmente, confundir as noções de cultura e deidentidade cultural ainda que as duas tenham uma grande ligação. Em últimainstância, a cultura pode existir sem consciência de identidade, ao passo que asestratégias de identidade podem manipular e até modificar uma cultura que não teráentão quase nada em comum com o que ela era anteriormente. A cultura depende emgrande parte de processos inconscientes. A identidade remete a uma norma devinculação, necessariamente consciente, baseada em oposições simbólicas.

Diante do exposto, antes de analisarmos a identidade cultural ou processos de

identificação de sujeitos neste mundo globalizado basead os em oposições simbólicas e das

diferentes posições de sujeito construídas na relação com outra s posições de sujeitos, é

importante, ressaltar, que o conceito de identidade cultural, tal qual o conceito de cultura

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como vimos, também passou por diversas definições e reinterpretações, por sua polissemia e

sua fluidez (CUCHE, p. 176).

Na década de cinqüenta conceituou-se a idéia de identidade cultural numa abordagem

que concebia a identidade cultural como praticamente imutável e determinando a conduta dos

indivíduos.

Para Boaventura Santos (1977, p. 35):

[...] as identidades culturais não são rígidas nem, muito menos, imutáveis. Sãoresultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação. Mesmo asidentidades aparentemente mais sólidas, como a de mulher, homem, país africano,país latino-americano ou país europeu, escondem negociações d e sentidos, jogos depolissemia, choques de temporalidades em constante processo de transformação,responsáveis em última instância pela sucessão de configurações hermenêuticas quede época em época dão corpo e vida a tais identidades. Identidades são, poi s,identificações em curso.

Nesse sentido, podemos observar que a produção de identidades independe de uma

transmissão genética ou herança biológica que a impede de evoluir, como algo preexistente ao

indivíduo, ou mesmo de traços culturais determinando -os, mas resultante sempre de processos

de transformação ou mudanças culturais internas, quando resultantes da dinâmica do próprio

sistema cultural, ou externas, quando resultantes do contato de um sistema cultural com um

outro.

De acordo com Hall (2004), a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito

é representado ou interpelado nos sistemas culturais que o rodeia, e passa a assumir

identidades diferentes em momentos diferentes. A perda de um sentido de si, o que denomina

de crise de identidade e envolve toda uma concepção sociológica do sujeito, é formada na

interação entre o sujeito e a sociedade. O que há são representações imaginárias funcionando

na constituição do sujeito. A noção de um sujeito como tendo uma identidade unificada, fixa e

estável está superada. Os processos identitários são definidos historicamente e não

biologicamente.

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Tendo em vista as ultrapassadas conceptualizaç ões sobre as diferentes posições de

sujeitos com identidades fixas, estáveis e inacabadas, recorremos a grande contribuição de

Barth (1998) que,

[...] substituiu uma concepção estática da identidade étnica por uma concepçãodinâmica. Faz entender que essa identidade, como qualquer outra identidade coletiva(religiosa, profissional, corporativa, política, familiar, de classe social ou de geração,de clube ou de sindicato, de seita ou de congregação... e assim também a identidadepessoal de cada um), é construída e transformada na interação de grupos sociaisatravés de processos de exclusão e inclusão que estabelecem limites entre taisgrupos, definindo os que os integram ou não. Então, o que importa é procurar saberem que consistem tais processos de organização social através dos quais se mantêmde forma duradoura as distinções entre "nós" e "os outros", mesmo quand o mudamas diferenças que, para "nós", assim como para "os outros", justificam e legitimamtais distinções (apud Poutignat e Streiff-Fenart, 1998, p.11).

Nesse sentido, não podemos no contexto da discussão sobre a etnicidade do povo

Mura, definir identidade cultural ou processos de identificação de sujeitos indígenas na

atualidade sem consideramos esta relação também com o mundo globalizado, e com as

diferentes visões ou imagens que a sociedade brasileira em geral tem dos povos indígenas. É

preciso discutir e analisar os tipos de convivência e de homem contemporâneo.

Nessa perspectiva, a identidade cultural, então, aparece como uma modalidade de

categorização da distinção Nós/Eles, baseada na diferença cultural (CUCHE, 2002, p. 177).

Segundo Albuquerque (2002, p. 109), vale a pena lembrar, no que se refere à

constituição de identidades indígenas, que estes sujeitos não estão mais somente nas aldeias,

estão na cidade, estão em relação com o mundo, com o "outro"42, com sociedades que têm

suas formas próprias de organização. Eles pertencem a sociedades que estão se (re)

construindo no conflito, na tensão do inevitável contato.

Entendendo a identidade enquanto processo dinâmico e sempre transitório é

importante ressaltar que "à medida que os sistemas de signif icação e representação cultural se

multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de

42 Grifo da autora.

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identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar - ao menos

temporariamente" (HALL, 2004, p. 13).

O exterior exerce um importante papel na formação de nossa identidade, que está

presente no nosso imaginário e é transmitida, fundamentalmente, por meio da cultura. A

identidade é que nos diferencia dos outros, o que nos caracteriza como pessoa ou como grupo

social. Ela é definida pelo conjunto de papéis que desempenhamos e é determinada pelas

condições sociais decorrentes da produção da vida social.

Quando nos referimos à identidade cultural, referimo -nos ao sentimento de

pertencimento, ou seja, aquela cultura em que nascemos e que absorvemos ao longo de nossas

vidas, aquela, como vimos, por meio de processos de aprendizagem aprendemos a ver o

mundo de maneira diferente, as culturas de maneira diferente, e de nossos comportamentos

sociais enquanto produto de uma heran ça cultural. Esta identidade não é uma identidade

natural, geneticamente herdada, ela é construída.

Nesse sentido, é importante registrar, que em decorrência dos processos de sentimento

de pertença étnica e (re) construção da identidade dos professores e membros das aldeias

Mura no município de Autazes, estes vêm percebendo a afirmação de sua "cultura

remanescente43" como parte integrante de sua resistência política à perda de suas terras, de

sua língua, traços culturais originários, mas sobretudo, de sua

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A definição do grupo e de sua identidade social abriu perspectivas e possibilidades de

articulação para que seu projeto de escola se constituísse num instrumento de valorização dos

saberes e de suas tradições, deixando de se restring ir a um instrumento de imposição dos

valores culturais da sociedade envolvente e passando a desempenhar um papel importante no

processo de conquista de sua autonomia e autodeterminação, sem desconsiderar, é claro, o

caráter ambíguo que caracterizou esses m ovimentos.

É impossível não reconhecer as mudanças e movimentos provocados pelos professores

Mura quanto às tendências positivas de identificação e inclusão no grupo étnico a partir dos

processos de transformação provocados pela globalização.

Dada à análise e reflexão sobre a relação entre cultura e identidade, bem como os

processos de mudança na modernidade, é preciso concordar com Geertz (2000, p. 215 -216)

sobre a "presença no panorama mundial da existência de um novo tempo, onde tudo fica mais

global e mais dividido, mais completamente interligado e mais intrincadamente

compartimentalizado, ao mesmo tempo, provocando impactos quase instantâneos,

disseminados e ampliados, e que evidenciam sua ambigüidade", e seu impacto sobre a

identidade cultural.

Sabemos, pois, que as sociedades modernas caracterizam -se, fundamentalmente, por

serem sociedade de mudanças constantes e rápidas e, neste tempo ambíguo de profundas

transformações de um mundo fragmentado é que grupos sociais se articulam, as pessoas se

identificam como fazendo parte de grupos que querem ter vez, voz e representação.

Nessa perspectiva, para Geertz (2000):

[...] seja o que for que define a identidade no capitalismo sem fronteiras e na aldeiaglobal, não se trata de acordos profundos sobre questões profundas, porém de algomais parecido com a recorrência de divisões conhecidas, argumentos persistentes ouameaças permanentes, e com a idéia de que, haja o que mais houver, de algum modoé preciso manter a ordem da diferença ( apud HALL, 2004, p. 219).

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Para Laclau (1990), diferentemente das sociedades tradicionais, as sociedades

modernas são caracterizadas pela diferença, atravessadas por diferentes divisões e

antagonismos sociais que produzem uma variedade de difer entes "posições de sujeito" - isto é,

identidades - para os indivíduos (apud POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 1998, p.17).

Sobre o impacto da globalização sobre as identidades culturais nacionais, Hall (2004,

p. 69) acrescenta que estão sendo deslocadas por um complexo de processos e forças de

mudanças que incidem sobre elas e examina três possíveis conseqüências sobre as identidades

culturais:

[...] que as identidades culturais nacionais estão se desintegrando, como resultado docrescimento da homogeneização cultural e do "pós-moderno global"; as identidades

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possibilidades e novas posições de identificação, tornando as identidades menos fixas e

unificadas.

O fenômeno chamado por Hall (2004) de "descentramento" ou "deslocamento" tem

características positivas. Segundo esse teórico, ele desarticula as identidades estáveis do

passado, mas abre possibilidades de que novas identidades sejam criadas, produz sujeitos não

mais com identidades fixas e estáveis, mas contraditórias, inacabadas, sempre em p rocesso,

assim como a própria história desses sujeitos.

Considerando que a identidade étnica é produzida a partir de uma interação relacional,

sou adepto ao pensamento de Barth reforçado por Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff -Fenart

quanto a definição do fenômeno da etnicidade, como sendo

[...] uma forma de organização social, baseada na atribuição categorial que classificaas pessoas em função de sua origem suposta, que se acha validada na interaçãosocial pela ativação de signos culturais socialmente diferenciados (Poutignat eStreiff-Fenart, 1998, p. 141).

É, pois, esta relação dialética que transforma a etnicidade em um processo dinâmico

sempre sujeito à redefinição e à recomposição, como afirmam esses autores.

1.3. Educação e Identidade

Da questão que se propõe discutir nesse contexto - educação e identidade - não

poderíamos deixar de tratar do papel da educação frente ao desafio da multiplicidade de

culturas ou das práticas sociais que resultam no reconhecimento étnico, sem lhe atribuir uma

instância social, entre outras, na luta pela transformação da sociedade, atingindo os aspectos

não somente políticos, sociais e econômicos, mas também filosóficos, artísticos e culturais.

Nesse sentido, considerando os processos culturais e as várias perspec tivas filosóficas

da educação, qual seria o seu verdadeiro sentido na sociedade senão o de servir de meio

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efetivo, de instrumento permanente de transformação da sociedade, mediando, dialeticamente,

seus projetos de democratização e, consequentemente, de ed ucação.

Segundo Saviani, uma teoria desse tipo se impõe a tarefa de superar tanto o poder

ilusório que caracterizam as teorias não -críticas, quanto à impotência decorrente das teorias

crítico-reprodutivistas, colocando nas mãos dos educadores uma arma de luta capaz de

permitir-lhes o exercício de um poder real, ainda que limitado (apud LUCKESI, 1994, p. 49).

O caminho é repleto de armadilhas, já que os mecanismos de adaptação acionados

periodicamente a partir dos interesses dominantes podem ser confundidos com anseios da

classe dominada. Para evitar esse risco, é necessário avançar no sentido da captar a natureza

específica da educação, o que nos levará à compreensão das complexas mediações pelas quais

se dá sua inserção contraditória na sociedade capitalis ta (id. ibid., p. 50).

No que se refere à sociedade capitalista, vale à pena lembrar o que dizem Marx e

Engels a respeito ao papel da educação enquanto instrumento de manutenção ou

transformação do poder.

Antes, porém, é importante perceber, segundo Gregório da Silva (2006, p. 129), que

muitas das opiniões e análises desenvolvidas por estes teóricos sobre educação e ensino

surgiram como uma crítica às situações que o capitalismo e, concretamente a manufatura,

tinham produzido. Tanto assim, que no conj unto de suas obras, não é possível encontrar um

sistema pedagógico completo e elaborado.

As afirmações sobre a educação e ensino feitas por Marx e Engels, considera m que se

a educação e ensino não são armas poderosas para contribuir com um horizonte histór ico no

quais as relações de dominação tenham desaparecido, pelos menos são fortes aliadas no

debate comprometido com a educação libertadora, diferentemente da crítica atual que tenta

conformar os alunos, os professores e a sociedade em geral às novas trans formações operadas

na maneira de produzir (id, ibid, p. 129).

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As transformações operadas nesse sentido, como vimos, resultaram no processo de

interligação da economia mundial numa totalidade cada vez mais interdependente e

complexa, conhecidas como processo de globalização da economia, da sociedade e da cultura,

redimensionando as noções de tempo e espaço, interpenetrando o global e o local, tornando -os

agora inseparáveis.

O processo de globalização entendido como expansão do capitalismo numa escala

verdadeiramente universal, apesar das profundas mudanças da conjuntura mundial, não tem

impedido que identidades passadas refloresçam, e que identidades novas sejam (re) contruídas

e fortalecidas.

O aparecimento de nacionalismos, regionalismos, etnicismos, funda mentalismos e

identidades se enraízam no horizonte dos rearranjos e das tensões provocadas pela emergência

da sociedade global. Nesse sentido, a globalização não significa somente homogeneização,

mas diferenciação em outros níveis, diversidades com outras potencialidades, desigualdades

com outras forças.

Corroborando com esse pensamento e, longe de uma perspectiva pessimista de um

capitalismo triunfante, Ianni (1997), mesmo reconhecendo as implicações do que denominou

globalismo, não perde a noção da dimensão sempre transformadora da história e a perspectiva

de uma superação qualitativa do atual nível de desenvolvimento da humanidade:

[...] "A globalização é um fato e o globalismo pode ser visto como uma configuraçãohistórico-social no âmbito da qual se movem os indivíduos e as coletividades, ou asnações e as nacionalidades, compreendendo grupos sociais, classes sociais, povos,tribos, clãs, e etnias, com as suas formas sociais de vida e trabalho, com as suasinstituições, os seus padrões e os se us valores. Juntamente com as peculiaridades decada coletividade, nação ou nacionalidade, com as suas tradições ou identidades,manifestam-se as configurações e os movimentos do globalismo. São realidadessociais, econômicas, políticas e culturais que eme rgem e dinamiza-se com aglobalização do mundo, ou a formação da sociedade global" (apud LOMBARDI,2003, p. 8).

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Observa-se, pois, uma nova (des)45 ordem tendo em vista que se abalaram conotações

como a de tempo e espaço, da geografia e da história, do pass ado e do presente, da biografia e

da memória, da identidade e alteridade e de Ocidente e Oriente. Mas se o desafio perante os

problemas desconhecidos ou conhecidos, embora modificados, transfigurados, apresenta -se à

razão humana, importa mais uma vez a rec omendação já citada de Anderson (1999) e também

do próprio Ianni (1997): o problema é como compreender a realidade agora desenhada, em

nível micro, macro e metateórico (opus cit., 2003, p. 9).

Segundo Lombardi (2003, p. 11), se educação e globalização se imbricam, a educação

não está imune às transformações da base material da sociedade, hoje em processo de

globalização e, ao mesmo tempo, não está imune à pós -modernidade46 cultural que as

sinalizam, pós-modernidade, globalização e educação relacionam -se pela lógica de mercado.

Uma outra questão que também nos faz repensar o nexo educação e identidade é seu

entendimento enquanto mediadora de um projeto de transformação que possibilite aos grupos

o direito à sua autodeterminação, ou seja, o direito à livre escolha e poder de decisão sobre o

próprio destino.

Diante desta questão, a educação também nos remete a pensar a questão da autonomia

voltada para os processos étnicos de auto -identificação e reafirmação da identidade étnica.

Refiro-me, neste caso, em particular, aos direitos fundamentais garantidos aos povos

indígenas no Brasil.

Fundada em mobilizações e lutas organizadas por diferentes setores da sociedade a

conquista da autonomia encontra seu suporte na própria Constituição Federal promulgada em

1988, e não diz respeito exclusivamente à de ordem política e econômica, mas essencialmente

àquela referente aos direitos soci oculturais desses povos, e mais precisamente aos direitos

educacionais garantidos.

45 Citado por Lombardi, 2003, p. 9.46 O conceito de pós-modernidade para Lombardi (2003), "não passa de um movimento que expressa a difusa e

contraditória ideologia do capital monopolista e que abrange um amplo e complexo arco de posiçõ es".

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É de conhecimento público que tais direitos assegura m ao Sistema de Ensino da

União, com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de assistência aos

índios, o desenvolvimento de programas integrados de ensino e pesquisa para a oferta de

educação escolar bilíngüe e intercultural a estes pov os que, entre outros objetivos, visa

fundamentalmente "proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de

suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas

línguas e ciências".47

Diante do exposto, tem-se observado, no entanto, que na prática, tais prerrogativas não

vêm concorrendo de forma incisiva no fortalecimento da identidade étnica e nem para a

constituição de sujeitos e de grupos em contextos interacionais em um ambiente em

transformação, ou melhor, dizendo, de culturas em conflito. No caso Mura, o grande

diferencial foi o movimento indígena organizado, extremamente importante nos seus

processos de mobilização, reivindicação e conquistas.

A oferta de uma educação escolar específica e diferen ciada aos povos indígenas,

alheias, assim, a dinâmica social e aos processos culturais em conflito, não se dá conta da

oposição simbólica e das diferentes posições de sujeito construídas no estabelecimento de

relações, sejam elas resultantes de mudanças in ternas ou externas ao grupo. E, por

conseqüência, não podem operacionaliza r um currículo real.

Currículo, autonomia e identidade relacionam -se com a educação não por afinidades

conceituais, mas porque é na educação e pela educação que o homem pode ter aces so aos

direitos que lhes são assegurados democraticamente e, sobretudo, o de ser ante a diversidade

cultural.

47 Ver Lei no. 9.394, de 20 de Dezembro de 1996, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional / LDB, Título VIII- Das Disposições Gerais, artigo 78, inciso I .

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Segundo Scott (1990), tanto o gênero quanto o étnico perpassam os símbolos de uma

sociedade, suas normas, sua educação, sua organização so cial. Isto significa que a educação é

etnicizada, isto é, atravessada pela etnia. O étnico é elemento de diferenciação social, influi na

percepção e na organização da vida social. Ele não se dá no abstrato. Manifesta -se nos

símbolos, nas representações e n as valorações de grupos. O étnico concorre para que a

concreção histórica se efetive de uma forma específica (apud K REUTZ, 1998, p. 1). E, como

se pode perceber isso é refletido no processo educacional.

Nessa perspectiva, nos cabe repensar, então, os limi tes e possibilidades que a educação

oferece na construção, reafirmação ou fortalecimento de identidades, sejam elas de gênero,

etnia ou sexualidade, neste mundo globalizado. E, nesse mesmo contexto, repensar ainda, a

força que tem a educação em todas as cu lturas em contribuir na formação de uma política e

práticas educacionais adequadas, capazes de atender aos anseios, interesses e necessidades

diárias da realidade atual, tendo em vista que na medida em que áreas diferentes do globo são

postas em interconexão umas com as outras, ondas de transformação social atingem

virtualmente toda a superfície da terra e a natureza das instituições modernas.

Segundo Dias da Silva e Iara Bonin, "a educação indígena compreende os processos

pelos quais esses povos asseguram seus projetos de futuro, reproduzindo e reconstruindo a

identidade, a tradição, os saberes, os valores, os padrões de comportamento e de

relacionamento, na dinâmica própria de suas culturas " (In VEIGA e D'ANGELIS, 2003, p.

34).

É justamente a partir desses pressupostos que emerge nossa preocupação e discussão

acerca de uma política de identidade que o currículo escolar em construção em terras

indígenas supostamente possa estar contribuindo, e que tipos de sujeitos estão produzindo,

para que tipo de cultura e sociedade.

Como afirma Silva (1996):

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[...] a teoria social e educacional crítica tem tentado desenvolver quais são asimplicações para o currículo e para a educação dos novos mapas culturais traçadospela emergência de novos movimentos e identidades sociais. Eles colocam no centrodo mapa educacional e curricular, uma política de identidade ( apud PARAISO,2004, p.181).

Nesse sentido, pode-se perceber o quanto a construção de um currículo em

funcionamento em terras indígenas está implicado com uma política e produção de

identidades, ainda mais se tratando de um currículo específico e diferenciado que reflita as

necessidades, os reais interesses e a complexa realidade das escolas e comunidades indígenas.

De acordo com Hall (2004, p. 8 -9), as identidades modernas estão sendo

"descentralizadas, isto é, deslocadas ou fragmentadas" e, nesse sentido, situando o currículo

enquanto instrumento por excelência de viabilização dos projetos políticos pedagógicos, deve

preparar e instrumentalizar os sujeitos pa ra um mundo em constante transformação, se

constituindo em espaço de discussão para as novas paisagens culturais de classe, gênero,

religiosidade, sexualidade, etnia, e nacionalidade, que hoje transformam nossas localizações

como pessoas, como indivíduos s ociais, mudando também nossas identidades culturais.

Segundo Paraíso (2004, p. 2), o entendimento do currículo como uma narrativa própria

e específica pode tanto subjugar pessoas e grupos sociais, como ser espaço em que os

diferentes grupos sejam represen tados.

É, pois, tarefa da educação, possibilitar o atendimento aos interesses, necessidades

coletivas e também específicas dos indivíduos, contribuir com uma educação que respeite a

totalidade do ser, sua autonomia e emancipação.

De acordo com Soares (2000 , p. 16), a prática da qual estamos falamos compreende

um processo que promove a identidade do indivíduo, livre dos condicionantes utilitaristas da

sociedade e suas interações voláteis, capaz de compreender os processos predominantes e

escolher os caminhos a seguir.

Corroborando com essa concepção, Enguita (1993, p. 103), nos faz lembrar que:

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[...] "a concepção humanista e libertadora da educação (...) jamais dicotomiza ohomem do mundo. Em vez de negá -la, afirma e se baseia na realidadepermanentemente mutável. (...) Estimula a criatividade humana. Tem do saber umavisão crítica; sabe que todo o saber se encontra submetido a condicionamentoshistórico-sociológicos. (...) Reconhece que o homem se faz na medida em que, noprocesso de sua hominização até sua humanização, é capaz de admirar o mundo. Écapaz de, desprendendo-se dele, conservar-se nele e com ele; e, objetivando-o,transformá-lo. Sabe que é precisamente porque pode admirar o mundo que o homemé um ser da práxis ou um ser que é práxis. Reconhece o homem como um serhistórico. (...) Em vez do homem -coisa, adaptável, luta pelo homem -pessoa,transformador do mundo".

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CAPÍTULO II

2. POVO MURA: BREVE ABORDAGEM HISTÓRICA E MODOS DE

VIDA ATUAL

2.1. O Projeto Colonial Português na Amazônia e a Desconstrução da

Identidade Mura

Conhecidos historicamente por Mura ou Murá, autodenominavam-se por Buharaem

ou por Buxwarahy e, de acordo com a maioria dos lingüistas , falavam língua isolada (apud

SANTOS, 1999, p.70).

De acordo com Santos (1999, p. 71), d epois da pacificação, na década de 1780, os

Mura começaram a falar a língua geral e, trinta anos depois, mesmo falando a língua geral,

ainda usavam entre si a língua materna. No final do século XIX, a maioria dos grupos

substituíra a língua geral pelo português.

Os Mura foram pela primeira vez mencionados em 1714, numa carta do padre

Bartolomeu Rodrigues, que os localizou na margem direita do rio Madeira, entre os rios

Mataurá e Manicoré. Eram considerados hostis para com as missões jesuíticas que atuaram

acima destes rios, na boca do rio Javari (id. ibid. p. 71).

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Por mais de cem anos, os Mura foram vistos como o mais terrível açoite. A primeira

expedição acima do rio Madeira , que entrou por Mato Grosso, sob a liderança do major João

de Souza, teve sangrentos encontros com esse povo .

Ficaram conhecidos pela belicosidade com que reagiram à colonização portuguesa na

Amazônia durante todo o século XVIII, continuando, inclusive, até as proximidades de

meados do século XIX. De acordo com Nimuendajú (1925), g uarnições militares foram

criadas para fazer frente aos Mura e organizaram -se diversas expedições punitivas que

anualmente os perseguiam em seus refúgios. Os Mura então, evitaram batalhas abertas e

passaram a fazer uso de emboscadas pelas quais se tornaram famosos e, para não se torn arem

alvos fáceis, começaram a fazer deslocamentos (apud RIBEIRO, p. 39, 1979).

Segundo Ribeiro (1979, p. 39),

[...] os Mura constituíram o grupo de maior resistência indígena contra o invasorbranco. Foram nisso tão bem sucedidos que, em fins do século XVIII, eram objetode desesperados apelos de extermínio, como único meio de evitar um completocolapso da civilização na Amazônia. Os Mura habitavam primitivamente as terras damargem direita do médio Madeira onde enfrentaram os primeiros brancos que tantosubiam o rio vindo do Amazonas, como desciam, vindo de Mato Grosso. Graças aosucesso de suas táticas de povo canoeiro contra invasores que navegavam empesados batelões, os Mura expandiram -se passando a ocupar um extenso territórioao longo do Madeira até sua foz e daí pelo Amazonas e Purus acima, concentrando -se, principalmente, na região do Autaz. Desta posição, dificilmente acessível pelointricado sistema de lagos, furos e canais, passaram a atacar, quase impunemente, aspopulações civilizadas do Amaz onas, Solimões e rio Negro, obrigando mesmoalgumas vilas a se mudarem para longe de sua área de ação.

Em 1749, quando a expedição de João Gonçalves da Fonseca teve vários encontros

com eles, já estavam localizados em um lago na margem direita do rio Madeira, em frente à

boca do rio Autaz-Mirim, no rio Madeirinha, um pouco acima de Borba.

Em 1768, já haviam migrado para a região norte do rio Solimões. Mas, pelo visto, o

habitat original dos Mura foi a bacia hidrográfica do rio Madeira, abaixo das cabeceiras e

perto da boca do rio Jamari.

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Sendo um povo guerreiro e estarem conscientes da eficiência de suas táticas,

espalharam-se para baixo, no rio Madeira e tão longe quanto o rio Purus, indo ainda mais

longe no rio Codajás. Essa expansão , provavelmente, não foi um movimento para fugir das

invasões Munduruku que, àquela época, 1768, andavam se deslocando pelo baixo Amazonas

e eram mencionados no rio Maués.

A expansão dos Mura foi facilitada pelo fato de que eles achavam o território

fracamente povoado; as numerosas tribos sedentárias haviam sucumbido às tropas brancas e

ao sistema de missões. Seus fracos descendentes, carecendo de qualquer iniciativa ou atitude

contra a servidão, e concentrados em poucas vilas, não tiveram forças para resistir aos ataqu es

sofridos, conscientes de sua superioridade como guerreiros. Com a chegada dos Mura à região

do rio Autaz, começou a se estabelecer um novo território, que foi defendido bravamente por

seus guerreiros.

Os Mura aderiram à Cabanagem, movimento revolucionár io que reuniu caboclos,

negros, brancos pobres e índios, na mais violenta rebelião da Amazônia, engrossando as

forças cabanas, e seu território constituiu o maior reduto dos revoltosos. Para sua defesa os

Mura se localizaram no lago da Trincheira, onde est á localizada atualmente a aldeia

Trincheira, e lutaram ferozmente como bravos guerreiros defendendo seu povo até se

estabelecerem na região.

Nas campanhas de 1834-1839, em que as forças legalistas derrotaram os cabanos,

estes índios sofreram massacres em m assa, conservando-se, porém, fiéis aos rebeldes. Muitos

anos depois, quando a Cabanagem morrera em todas as regiões, ali continuava viva,

polarizando a solidariedade dos índios como sua única bandeira de libertação do jugo em que

viviam.

Sabe-se que os Mura foram precedidos na região de Autaz por outros povos, o que é

provado por resquícios arqueológicos encontrados em 1923 por Tastevin. Incluem -se nestes,

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grandes lanças de pesca feitas em madeira e também urnas funerárias conhecidas com o nome

de micarenguará.

Ainda que o povo Mura tenha experimentado uma grande expansão geográfica no

século XVIII, seu habitat tradicional parece ter sido a margem direita do rio Madeira, entre o

Manicoré e o Maici, onde hoje se encontram seus remanescentes, e os Mura-Pirahã.

Os Mura acumulam três séculos de contato com a sociedade nacional e uma história

marcada pelo preconceito e discriminação. Integrados à sociedade nacional desde o final do

século XVIII, apresentam tipos característicos variados, o que torna impossíve l determinar

suas características físicas originais. Perderam além da língua materna, seus hábitos e

costumes tradicionais, tiveram que aprender os modos de vida dos não -índios, para continuar

sendo Mura.

2.2. Remanescentes Mura no Estado do Amazonas

Diversos subgrupos são encontrados nos municípios de Anori, Autazes (rio Autaz -Açu

e Autaz-Mirim, lagos do Capivara, Cuia, Gapenu, Jauari, Josefa, Acará -Grande, Murutinga,

Sampaio, Soares, entre outros); Beruri; Borba (rio Igapó -Açu); Careiro (rio Juma); Care iro da

Várzea (rio Autaz-Mirim), Itacoatiara (rio Urubu), Manacapuru; Manaquiri e Manicoré (rios

Mataurá, Madeira e Manicoré, lagos do Jauari, Capanã e Baeta).

Parte considerável da população Mura no estado se encontra habitando principalmente

os centros urbanos das cidades de Manaus, Borba, Manicoré e Autazes, neste último, vive ndo

em bairros exclusivamente Mura.

São mais de cinqüenta o número de Terras Indígenas Mura no estado do Amazonas, e

a situação jurídica destas terras encontra -se em diferentes estágios de reconhecimento oficial.

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Dados fornecidos em 2002, pela Fundação Nacional do Índio, FUNAI, revelam que a

população atual do povo Mura no Amazonas está estimada em 5.540, embora os professores,

com base em dados adquiridos em 2006, afirmam a e xistência de uma população com mais de

8.000 indivíduos.

Dedicam-se a atividade de caça, pesca, e ao comércio da farinha e da castanha.

O povo Mura vem lutando pela defesa de seu território e contra a invasão de peixeiros,

posseiros, madeireiros e caçado res que ainda vivem nas suas terras, além de encontrar -se em

processo de recuperação de sua memória histórica, revitalização da cultura e fortalecimento

da identidade étnica de seus membros, por meio da construção de seu projeto de escola e de

educação.

2.3. Remanescentes Mura no Município de Autazes

A situação lingüística atual do povo Mura no município de Autazes é de

monolingüismo em português sendo este empregado no convívio familiar, no trabalho, nas

escolas e nas relações de comunicação diversas.

As Terras Indígenas Mura no município de Autazes são Capivara, Cuia,

Cunhã/Sapucaia, Gapenu, Itaitinga, Jauari, Jutaí, Lago do Limão, Miguel/Josefa, Muratuba,

Murutinga, Natal/Felicidade, Padre Cícero, Pantaleão, Paracuúba, Patauá, Ponciano,

Recreio/São Félix, São Pedro, Tracajá e Trincheira.

No município de Autazes se encontra o maior contingente populacional de

remanescentes Mura. Essa população, segundo dados fornecidos pela Fundação Nacional do

Índio, FUNAI, no ano de 2002, era estimada em aproximadamente 3.587 indivíduos. Mas de

acordo com o Projeto de Elaboração de Curso de Licenciatura Específica para Formação de

Professores Indígenas Mura, PROLIND, da Universidade Federal do Amazonas, baseado em

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levantamento feito no ano de 2006 pelos próprios prof essores Mura em suas aldeias, esta

população foi estimada em 4.000 indivíduos.

Esta população é encontrada habitando dezoito aldeias da região: Capivara, Cuia,

Gapenu, Igarapé-Açu, Jauari, Jutaí, Limão, Josefa, Muratuba, Murutinga, Natal, Padre Cícer o,

Pantaleão, Paracuúba, Ponciano, São Félix, Tracajá e Trincheira 48.

Sua imbricada rede hidrográfica é formada pelos rios Autaz -Açu, Autaz-Miri, Igapó-

Açu, Madeirinha, Juma, Mutuca, Preto do Pantaleão e Piranha, lagos do Acará Grande, Cuia,

Gapenú, Josefa, Paracuúba, Trincheira, Murutinga, Jauari, Pantaleão, Acará -Miri, Capivara,

Sampaio, Iguapemi e Iauaçu, lago do Soares, paranás Autaz -Açu, Autaz-Miri, Cuia, Tracajá,

Madeirinha, Mamori e Miuá, e igarapés Limão, Trincheira, Igarapé -Açu, Taquara, Igarapé

Grande, Veneza, Uruá e Miuá.

Durante o período de cheia, da sede do município para as aldeias, o acesso é feito

através dos rios, lagos e igarapés, sem dificuldades. De algumas aldeias para outras, esse

acesso é feito por meio de caminhadas na mata. Du rante o período de seca, as dificuldades

aparecem e a utilização de voadeiras, rabetas e canoas tornam -se imprescindível. O

deslocamento de barcos, no entanto, torna-se inviável nesta época do ano.

FOTO 01 – Vista parcial do lago do Capivara / Aldeia Capivara, Autazes-AM / outubro, 1998, Foto: Inafran Bastos.

48 Dados fornecidos pelos professores indígenas Mura.

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A habitação Mura no município de Autazes é construída, na sua maioria, de madeira

beneficiada, coberta com telhas de alumínio, zinco ou palha branca, em forma de palafitas,

com assoalho de madeira, e algumas com chão de barro batido. A lgumas são mobiliadas,

possuindo, inclusive, produtos eletroeletrônicos. Outras, porém, poucos utensílios possuem

em seu interior, apenas o básico e necessário à sobrevivência de seus membros, tais como

mesa e cadeiras para as refeições, utensílios de caça e pesca, e redes para dormir.

A alimentação básica do povo Mura da região constitui -se basicamente de peixe e

farinha de mandioca, além da carne de gado, de caça e aves. Os hábitos alimentares do povo

não são diferentes dos não-índios que residem no município. É na sede que costumam

comprar seus produtos ou fazer seus ranchos para ajudar na manutenção alimentar: café,

açúcar, leite, sabão, arroz, feijão, sal, macarrão, óleo, fósforo, produtos de limpeza, entre

outros. Ainda assim cultivam o hábito de preparar alimentos como beiju, farinha de tapioca,

vinhos de frutas, mingaus, chibé e pé-de-moleque.

Durante o período de seca há sempre uma grande quantidade de pescado; no período

de enchente, no entanto, torna -se difícil a obtenção desse produto. Quando a carne de caça se

torna escassa, os Mura são obrigados a recorrer aos produtos enlatados, principalmente a

carne em conserva. Alguns moradores utilizam -se da salga de alimentos - peixes e carnes -

para conservação e uso. Não possuem horário estabelecido para suas refeições, alimentam -se

de acordo com a possibilidade e quantidade de alimentos disponíveis.

De um modo geral, desenvolvem uma economia baseada na agricultura de roça de

subsistência, cultivando variados produtos, tanto nas terras de várzea quanto de terra firme,

onde predomina o cultivo da mandioca, cará, batata, macaxeira, milho, feijão, tomate, maxixe,

cebolinha, pimentão e jerimum. Além desses produtos, dedicam -se, ainda, ao cultivo da

melancia, cana-de-açúcar, abacaxi, banana, cupuaçu, abacate, jambo, laranja, tangerina,

manga etc.

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Apenas uma pequena quantidade destes produtos é destinada à comercialização.

Considerando que a família Mura é muito numerosa , seus membros são utilizados como mão -

de-obra nestas atividades. Algumas aldeias dedicam-se especialmente à criação de gado

bovino, criados de forma extensiva, mas apenas para a subsistência das próprias famílias,

além das aves.

No que diz respeito às atividades de pesca, a população Mura de algum as aldeias tem

enfrentado constantes conflitos com barcos pesqueiros oriundos da sede do município e de

municípios vizinhos, que invadem seus rios, lagos e igarapés, promovendo a pesca predatória

através da utilização de arrastões, onde peixes de diversos tamanhos são sacrificados,

dificultando a obtenção desse alimento para o povo.

Ao enfrentarem problemas de saúde, uma parcela da população ainda recorre ao uso

de remédios caseiros utilizados tradicionalmente pelos mais velhos. Entretanto, esta prática

vem sendo gradativamente substituída pelo uso de remédios farmacêuticos, porque acreditam

que agem com maior rapidez contra as doenças adquiridas pelo organismo. São raros os

postos de saúde encontrados na área e, os que existem, não possuem remédios suficie ntes para

atendimento às necessidades dos pacientes, o que os obriga a recorrerem a atendimentos fora

da aldeia, na sede do município. Dependendo do caso, procuram recursos médicos em

Manaus. Parte da população mais idosa ainda costuma respeitar as crença s e entidades

sobrenaturais. Das antigas práticas tradicionais, somente alguns velhos são encontrados

fabricando peças artesanais. Sobre as danças, mitos e ritos originários, não se têm mais

notícias, mas falam com muito entusiasmo da dança da cutia muito praticada antigamente, e

que agora vem sendo revitalizada pelos professores por meio d as atividades desenvolvidas

pela escola.

A realidade, hoje, mostra que as atividades de esporte e lazer praticadas pela maioria

dos jovens e adultos nas aldeias Mura limi tam-se exclusivamente à prática do futevôlei e

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futebol de campo, às festas dançantes ao ritmo do forró, toadas de boi -bumbá, house e axé.

Mas é o futebol o esporte mais praticado nas aldeias, onde costumam promover torneios

atraindo uma grande quantidade d e pessoas, tanto das aldeias vizinhas, quanto da sede do

município. Para isto, possuem bonitos campos, os quais são constantemente conservados.

Nas aldeias acontecem ainda as tradicionais “festas dos santos”, onde há sempre um

padroeiro a comemorar. Estas festas são tradicionalmente transmitidas de pais para filhos e o

patrocinador, quase sempre um comunitário, se responsabiliza pela organização dos festejos,

que se encarrega de matar bois, porcos, galinhas e patos para recepcionar os convidados que

vêm participar da festa. A bebida alcoólica, apesar de proibida na área, é muito consumida

durante a realização destas festas, geralmente causando problemas às pessoas que dela fazem

uso e, às vezes, aos convidados que chegam para participar das comemorações. Os festejos

duram geralmente três dias.

As religiões presentes e mais praticadas nas aldeias são a Católica, a Adventista,

Testemunhos de Jeová, Igreja Universal do Reino de Deus, Pentecostal, Presbiteriana e a

Hari-Krishna. Esta última possui uma escola par ticular no lago do Trincheira, em frente à

aldeia do Trincheira. Nesta escola estudam alunos índios e não -índios.

FOTO 02 – Habitação Mura, aldeia São Félix / Rio Autaz-Açu / Autazes-AM / Foto: Francisco Marques da Silva.

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FOTO 03 - Habitação Mura, Aldeia Igapó-Açu / rio Igapó-Açu / Autazes-AM / outubro, 1998 / Foto: Inafran Bastos.

Quanto às organizações indígenas Mura no município de Autazes , podemos encontrar

a Organização dos Professores Indígenas Mura , OPIM; a Organização das Mulheres

Indígenas Mura, OMIM; a Organização dos Agentes de Saúde Indígena Mura , OASIM; a

Organização dos Estudantes Indígenas Mura , OEIM; e o CIM, Conselho Indígena Mura, sua

maior organização, e que vem lutando pela conquista e defesa dos direitos desse povo.

De um modo geral, estas organizações vêm somando esforços no sentido de

intensificar os trabalhos de articulação junto à sociedade local, regional, estadual e nacional

na busca e consecução de seus projetos de futuro. Destaca -se, entre elas, a atuação da OPIM,

que há muito vem lutando pela defesa e implantação de uma educação escolar indígena

específica, diferenciada e de qualidade, reivindicando a construção de escolas nas áreas

indígenas, contratação, lotação e formação de professores, bem como a possibilidade de

implantação de uma universidade intercultural que atenda suas necessidades, entre outras

reivindicações.

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Com sede no município de Autazes a atuação do CIM tem jurisdição em território indígena

Mura da região do baixo rio Madeira, abrangendo os municípios de Autazes, Careiro, Careiro

da Várzea, Borba e Manicoré.

FOTO 04 - Família Mura na Aldeia Jutaí / Autazes-AM / outubro - 1998 / Foto: Inafran Bastos.

FOTO 05 - Família Mura na aldeia São Félix / Rio Autaz-Açu / Autazes-AM / Foto: Matilde Laranjeira

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CAPÍTULO III

3. "SER ÍNDIO", "SER MURA": REIVENÇÃO ESTRATÉGICA DE

UMA IDENTIDADE COLETIVA

3.1. Manifestação dos Sentimentos de Pertencimento e os Modos de ser

do Sujeito Mura

Ao iniciar a formação dos professores Mura no município de Autazes, um expressivo

número de professores a inda não havia manifestado o sentimento de pertencimento,

autoconsciência cultural e consciência étnica sobre as várias dimensões que envolvem a

condição do sujeito quanto aos modos de ser e vir-a-ser indígena49 e, sobretudo, a assunção e

definição de sujeito Mura.

Enquanto sujeitos em formação, estes professores, na sua maioria, ainda não haviam

exercido nenhuma prática pedagógica ou função docente. Alguns partiram muito cedo de suas

aldeias de origem e foram fixar moradia na sede do município, ou mesmo residir e trabalhar

em Manaus em companhia de suas famílias, retornando tempos depois para participar do

Curso de formação de professores Mura 50.

49 Optamos no desenvolvimento desta dissertação utilizar o termo "indígena" ao termo "índio", porconsiderarmos este último depreciativo.

50 As informações pessoais sobre os professores Mura registradas nesta dissertação foram obtidas a partir dosrelatos escritos contidos em suas Histórias de Vida.

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Embora a coordenação da Organização d os Professores Indígenas Mura, OPIM,

juntamente com as lideranças tivessem desenvolvido processos de mobilização junto às suas

comunidades, informando sobre os propósitos do Curso e os critérios de seleção para seu

ingresso, é importante ressaltar que, bem poucos, foram os professores que demonstraram, a

princípio, o desejo e interesse pela mobilização política e de reivindicações pelo

reconhecimento do étnico e reafirmação da identidade étnica de seu povo.

A necessidade de escolhas e tomadas de decisões exigidas inicialmente eram

favorecidas por meio de discussões provocadas e suscitadas por este pequeno grupo de

professores, face suas práticas e experiências adquiridas durante a participação de discussões

relativas ao movimento indígena em prol do desenv olvimento das políticas públicas para a

educação escolar indígena, promovidas durante os Encontros da Comissão dos Professores

Indígenas do Amazonas, Roraima e Acre, COPIAR, movimentos aos quais se integraram a

partir do ano de 1991, ou mais precisamente, conforme depoimentos dos professores, do IV

Encontro realizado em Manaus.

Por outro lado, de forma particular e interesses específicos identificados, um outro

grupo, embora não significativo, via por meio da formação de professores indígenas uma

alternativa ou possibilidade de escolarização, um modo próprio de assegurar a continuidade

de seus estudos e garantir sua inserção enquanto mão -de-obra na economia de mercado local

ou mesmo regional, conforme afirmavam, buscando assim, um outro sentid o para sua

formação que não exatamente a prática docente por meio do Magistério Indígena.

É importante ressaltar que, por certo período do Curso, mesmo orientados por um

conjunto de informações, participação em grupos de estudo e pesquisa, debates e discussões

acerca do processo histórico de dominação e desconstrução da identidade Mura durante o

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século XVIII51, tornava-se cada vez mais evidente que a utilização de recursos estratégicos, a

congregação de forças de mobilização e movimentos de resistência , não refletia os interesses,

necessidades e consciência coletiva do grupo como um todo. É bom que se diga que tais fatos

ocorreram durante o processo inicial de formação dos professores.

Em meio às ambigüidades e contradições, parte das inquietações man ifestadas

permaneceu obscura, e de certa forma, oculta, por certo tempo, embora persistentemente

provocadas pelo grupo de professores que demonstravam engajamento político ao movimento

indígena e defesa da causa Mura.

Estes professores, ao persistirem em seus desejos e processos de mudança por meio da

realização de fóruns de discussões e debates sobre as questões articuladas ao caráter

reivindicatório de suas necessidades, enfrentamento de possíveis problemas, mas, sobretudo, a

sensibilidade demonstrada em relação à trajetória histórica de dominação, integração e

resistência de seu povo, desencadearam processos de discussões cada vez mais acirradas,

abrangentes e desafiadoras, voltados para a construção de um projeto político -social que

possibilitasse não somente o resgate de sua dignidade, respeito e credibilidade enquanto

cidadãos, como também, de um projeto político -pedagógico que tornasse possível a

recuperação de sua memória histórica e reafirmação da identidade étnica de seus membros,

objetivos estes que pretendiam alcançar por meio do desenvolvimento de uma política

indígena de educação escolar, o que, de fato, passou a ser construída a partir da apropriação

do espaço escolar no interior do Curso de formação, caracterizando -se, assim, num recurso

estratégico de resistência e identidade.

De certo, entende-se esse projeto político-pedagógico como o desenvolvimento de

uma política indígena de educação escolar enquanto instrumento de preservação da cultura,

51 O processo histórico de desconstrução da identidade Mura durante o século XVIII está associado aosinteresses do governo português em implantar o projeto colonial mercantilista na Amazônia, ao qual o povoMura serviu de verdadeiro "empecilho".

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dos valores e de seus métodos próprios de aprend izagem, que fornecesse respostas

satisfatórias ao processo histórico do grupo.

Para ilustração desses movimentos é importante registrar que um clima de incertezas e

insegurança marcou profundamente os primeiros momentos da formação dos professores

Mura, ao tempo que exigia à minha prática docente, novos procedimentos de ação e

estratégias de ensino que possibilitasse a formação de consciências capazes de perceber não

somente a alteridade presente, como também a compreensão da realidade que se revelara cada

vez mais obscura e bizarra.

Faz-se necessário lembrar, que integrando o quadro de formadores do Programa, ao

ministrar os componentes curriculares Prática de Ensino e Etno -história, fundamentalmente,

competia-me a atribuição de encaminhar as discussões re lativas aos processos históricos e

educacionais que fundamentavam a construção dessa política indígena de educação escolar.

Tantas foram as vezes que tive que lidar com situações tão inusitadas e desafiadoras à

minha prática, quanto os professor es pela luta e conquista de seu reconhecimento étnico e as

dificuldades em suas relações.

Igualmente importante, e fundamental para o dinamismo e condução desse processo,

foram as reflexões suscitadas acerca dos problemas e conflitos 52 que os professores Mura

tiveram que enfrentar e lidar ao longo de seus movimentos. As experiências e conhecimentos

adquiridos por meio do Curso de formação, bem como a transferência das aprendizagens em

contextos mais amplos, possibilitaram que estes professores procedesse m por meio de um

processo dialético permanente - ação, reflexão, ação - uma nova leitura da realidade escolar,

sociocultural e relações multiculturais nas quais estavam inseridos, e assim buscar, ainda que

basicamente, as respostas de que tanto necessitava m para orientar suas escolhas e decisões.

52 Sobre os problemas, conflitos e contradições que os professores Mura tiveram que enfrentar e lidar dentro efora de suas aldeias, sejam de ordem social, política, cultural ou educacional, ver Capítulo IV, item 4.9, p.178.

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Dessa forma, a partir da percepção objetiva e, ao mesmo tempo, subjetiva dessa

realidade, sistemática e gradativamente o foco cent ral de toda discussão e os movimentos de

mudança requeridos passaram a ser operados de forma consubstancial: os sentimentos de

pertencimento e os sentidos de si, bem como de sujeito étnico culturalmente diferenciado

começaram a se manifestar positivamente nos professores.

Atribuíram, então, à educação escolar a competência de instrumentalizá -los a operar as

mudanças necessárias à realização de seu projeto de vida e de futuro, agregando os valores

essenciais ao estabelecimento de novas formas de relações res peitosas, multi e interculturais,

bem como o exercício da interculturalidade, que por meio do diálogo53, poderiam encampar

seus desejos de luta e a conquistar seus ideais:

[...] não podemos mais usar as mesmas armas dos antigos, ou resolver nossosproblemas de supetão, como já discutimos. Sei que somos descendentes de um povomuito guerreiro, mas agora estamos conhecendo uma nova arma, mais poderosa eeficaz, o "diálogo" por meio da educação. É por meio da educação que podemosavançar, a conquistar nossos espaços e a nossa reputação... a educação agora deveser a nossa grande esperança de mudarmos esta situação, senão, só se for à marra.Temos que provar pra eles que somos Mura, e que ainda existimos (Prof. Gilbertodos Santos Pereira, aldeia São Félix, 1999).

53 Faz-se necessário mencionar, que durante os momentos de discussão dos professores Mura em sala de aula doCurso de formação, estes pareciam estar travando uma batalha sem igual , que à vista de muitos,principalmente dos técnicos da SEMEC que acompanhavam o Curso, defin iam os comportamentos observadoscomo forma de agressão e desequilíbrio emocional, qualificando-os ainda como sujeitos "briguentos" eviolentos. A nosso ver, a manifestação desses comportamentos foi notoriamente positiva ao processo emquestão, uma vez que oportunizava a estes professores apresentarem criticamente seus posicionamentos evisão de mundo frente aos problemas colocados , ao mesmo tempo em que possibilitava o desenvolvimento desua discursividade, maturidade política e poder de análise e reflexão . As idéias eram contrapostassimultaneamente entre os envolvidos no processo de discussão. Além destas funções, estes movimentosgeraram um exercício dialético permanente . É importante mencionar, ainda, que dada à relevância dessaprática, procuramos não intervir em hipótese alguma nos momentos acirrados de discussão, por mais ferrenhase necessária que fosse nossa intervenção. O pr ocesso dialógico manifestado era fundamental para a satisfaçãodo movimento em curso. Quando eles próprios percebiam ter esgot ado seus argumentos e poder de persuasão,então recorriam a mim para finalizar e ponderar as questões. Esse era o momento, então, que procuravaauxiliar os professores reformulando suas dúvidas e tranqüilizando suas inquietações, isso quando não incitavaainda mais suas provocações. O desenvolvimento da oralidade foi assim um dos objetivos fundamentais daformação. Dessa forma, durante todo o processo, minha prática docente ou assessor ia jamais permitiu que"direcionasse" ou "controlasse" seus movimentos e ações, ao contrário, sempre procurei atuar proporcionando-lhes plena liberdade e autonomia quanto às suas realizações, poder de escolhas e decisão, de modo quepudessem trilhar por seus próprios caminhos. Entendemos , pois, que uma boa assessoria seja aquela que,segundo o professor Gilvan Müller de Oliveira, "sofra uma mudança de função: não desaparece, mas suaexperiência se dilui. Nem sempre é preciso aumentar, às vezes é imprescindível diminuir nossa ação emdeterminados lugares para que as coisas andem por si mesmas e para que se garanta que aquele é o projeto dospovos indígenas", não do assessor.

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A partir dessa perspectiva, e considerando ainda os procedimentos de análises mais

abrangentes acerca da alteridade e estabelecimento de relações entre índios e não -índios no

município e região, os processos de discussão foram encaminhados para as d iversas situações

que os professores Mura, a partir de então, possivelmente teriam que enfrentar, fossem nas

aldeias de origem, fossem na sede do município de Autazes, no trato de suas relações.

Estas situações consistiam, entre outras, no enfrentamento e combate ao preconceito e

discriminação, formação de uma autoconsciência cultural e consciência étnica, elevação da

auto-estima dos próprios professores e membros das diversas comunidades Mura, atribuição

de um lugar e função à escola na aldeia tendo em vi sta a construção de uma nova concepção

de escola (escola indígena), estabelecimento de novas formas de relacionamento, sejam com

os moradores da cidade ou da própria aldeia, sejam com as instituições, mudanças nas formas

de atuação e o papel do professor M ura no domínio das questões relacionadas à construção de

sua política indígena de educação escolar.

Por meio desse processo dinâmico e sistemático, justificam -se as ações, condutas e

comportamentos conscientes e inconscientes manifestados pelos professore s. O conjunto

desses movimentos em geral também se constituiu em estratégias de identidade, de resistência

e de emancipação, criados e protagonizados pelos professores, aos quais foram se integrando

gradativamente lideranças e comunidades indígenas Mura, q ue até então não viam com bons

olhos, ou se mostravam contentes com o novo processo escolar que os professores pleiteavam

implantar54, mas objetivamente indiferentes e reservados.

Como ilustração ao entendimento e compreensão dos caminhos trilhados pelos

professores no processo de construção ou reafirmação de sua identidade étnica, apresentamos,

54 Durante os momentos iniciais de discussão sobre a implantação da educação escolar diferenciada nas aldeias,grande parte das famílias questionava a qualidade dessa educação, deixavam claramente expresso o desejopela permanência da educação escolar oferecida pela escola dos brancos, pois atribuíam a esta a oferta de umaeducação de boa qualidade e importância necessária ao atendimento d e seus interesses e necessidades, e nãouma escola que viesse tratar de cultura indígena ou modos de ser índio. Esse tipo de escola não tinha maislugar na realidade atual das comunidades, aos seus reais interesses e condições de vida, afirmavam.

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pois, alguns de seus depoimentos e percepções, aqueles, que a princípio, não se identificavam

social e culturalmente com seu grupo de origem 55:

"Quando fui trabalhar na aldeia não sabia o que significava ser Mura, sentia muitavergonha por morar lá. Quando chegava à cidade ficava me escondendo para nãoencontrar com os meus parentes da aldeia. Não gostava das brincadeiras que são detradição na aldeia. Na minha família ninguém nunca falou sobre ser índio. Após seismeses na aldeia é que descobri que tinha alguns primos morando lá. Quis saber comminha mãe e ela me disse: você nunca me perguntou!". Prof a. Rosa Coelho Martins,aldeia Paracuúba."Na verdade eu não conhecia essa realidade. Para mim, ser Mura era ser gente dapior espécie, por esta razão na minha família nunca se falava sobre isso. Sempre fuicriada numa cidade que tem muito preconceito contra os Mura (se referindo a cidadede Autazes). Minha mãe sempre falava que sua mãe era índia e que falava feio. Masque ela era cabocla". Prof a Matilde Nascimento Laranjeira, aldeia São Félix."Eu não me considerava índia porque não tinha conhecimento de minha origem.Meus pais nunca tinham me falado disso, ouvia falar em Mura, mas não sabia o quesignificava. Pra mim era um assunto muito desconhecido. Também nunca tinhaouvido os comunitários falarem sobre os índios Mura na própria aldeia". Prof a.Maria Rita Pereira Corrêa, aldeia Gapenu."Eu tinha a concepção de que ser índio era a pessoa que vivia no mato, um serselvagem que não possuía nenhum tipo de roupa, ou seja, o índio era aquele queandava nu. Com essa idéia não me considerava índio, até porque na minha famíliameus pais nunca me disseram nada e nunca se preocuparam em me esclarecer, talvezpossuísse preconceito contra a palavra índio. O que me convencia aceitar que índioera aquele que vivia no mato foi o conhecimento que adquiri na escola dos não -índios, porque dava a idéia de índio genérico". Prof. Fabiano Oliveira dos Santos,aldeia Gapenu.

Observa-se, com base nestes depoimentos, que estes professores, entre outros, ao

iniciar sua formação no magistério indígena não possuíam ainda uma clara concepção, idéia,

consciência cultural e identificação com o grupo.

Atribuíam estas percepções ao desconhecimento de sua origem e realidade histórico -

social, omissão de diálogo familiar, conhecimentos e ideologias reforçadas por meio do

processo escolar, enfim, a todo um processo de exclusão reforçado por uma pedagogia

repressiva que os conformou a viver e a aceitar uma outra realidade e não a de respeito às

diferenças socioculturais. Uma educação enquanto instrumento de homogeneização e não de

desenvolvimento de práticas interculturais.

55 Faz-se necessário informar que os depoimentos e afirmações expressos nesta dissertação pelos professoresMura foram transcritos a partir de sua produção escrita original, sob seu livre consentimento e autorizaçãoformal.

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Entre outras atribuições, convém destacar o papel das instituições na argumentação ou

fabricação do outro por meio de discursos preconceituosos, construídos na maioria das vezes

sob o princípio da nacionalidade 56, traduzido em verdades sobre si e sobre os outros.

Conforme Dalmolin (2004),

[...] o saber corresponde a um conjunto de enunciados aceitáveis, cientificamente,traduzindo-se em verdades sobre si e sobre os outros. Tais enunciados sãotraduzidos em normas, no intuito de disciplinar os indivíduos. Desse modo, associedades ocidentais regulam seus indivíduos, de acordo com um formato médio,preconcebido de acordo com normas reguladoras. Havendo um comportamentopadrão, tornam-se visíveis os "desvios", distinguindo o diferente; aquele cujascaracterísticas não se enquadram nas "verdades" expressas nas normas. Aquele quese porta com modos estranhos à verdade está errado. Assim, a verdade é o certo, e ocerto é trabalhar; o certo é vestir -se, cobrir o corpo, o certo é falar a língua nacional;o bom e valorizado é claro, é o branco. Àquele que difere, cabe uma conotaçãodepreciativa (p. 73-74).

Por outro lado, com base em novos contextos e formas de produção de saberes,

procedemos ao relato do processo de auto -identificação e reafirmação da identidade étnica

dos professore Mura, apresentando, pois, alguns depoimentos, cujo grupo, agora, a nosso ver,

procurando rever suas verdades e desfazer equívocos, já demonstrava sentimentos de

pertencimento ou vinculação ao grupo de origem:

56 Citado por Dalmolin (2004), neste ca so, para destacar a superioridade do Brasil por ter conquistado a proezade harmonizar o "tipo nacional". Enquanto a celebração da mestiçagem respondia à exigência do "princípio danacionalidade", ao mesmo tempo encobria os conflitos e a situação de exclus ão, a que foram submetidos osnão-brancos com a falsa idéia de tolerância ou a ausência de preconceitos (p. 72).

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"Minha mãe é índia Mura e meu pai índio Sateré -Mawé e sempre se identificaramcomo indígenas... Eu nunca me envergonhei do que sou sempre mantive aconsciência de que sou índia Mura". Prof a. Alzenira Dias dos Santos, aldeiaPantaleão, sede do município."Desde os sete anos de idade tive o conhecimento de minha etnia Mura. Entrei noCurso de formação de professores indígenas consciente do que eu sou e do queposso fazer pela educação de minha comunidade. Portanto, essa consciência étnicajá trago comigo desde pequena, e venho desenvolvendo no dia -a-dia". Profa. LuziaPacheco dos Santos, aldeia São Félix, rio Autaz -Açu."Desde que começou o Curso de formação de professores indígenas Mura eu sempreme considerei índio porque minha mãe me falou que seu pai era índio do rio Negro,da aldeia Cajual e, ela, do povo Tikuna. A mãe de minha mãe é Mura, por isso mesinto feliz em pertencer ao povo Mura, povo de gente valente e forte nos assuntos,apesar de que agente era muito discriminado. Mas às vezes quando saíamos para darum passeio ela me falava que não comentasse nada com ninguém que a gente eraíndio da aldeia Murutinga". Prof. Aglair Gomes da Silva, aldeia Murutinga, lago doMurutinga."Antes eu tinha muita vergonha, mas já sabia que era índio Mura, porque meu paiera tuxaua na aldeia. Ele falava que nós éramos índios, mas eu tinha vergonha.Quando estudava na cidade, os não -índios discriminavam bastante os índios. Não sóna escola, mas as outras pessoas da cidade também. Com essa discriminação sofrimuito". Prof. Rosemberg Esmeraldo Corrêa, aldeia Gapenu, lago do Gapenu."Durante a minha convivência dentro e fora do Curso de formação eu nunca diziaque eu não era índio, até porque eu não podia negar, meu pai é da etnia Sateré -Mawée minha mãe, índia Mura, portanto , não podia optar pela raça branca. O Curso deformação reforçou ainda mais a minha idéia, e me fez valorizar ainda mais a culturaMura. Portanto, hoje eu tenho orgulho do que eu sou não tenho vergonha de meidentificar em lugar nenhum. Sou índio Mura e nã o tenho vergonha e nem medo defalar para outras pessoas". Prof. Paulo Matos Santana, aldeia Jabuti, rio Jabuti."Sempre pensei que era índia Mura. Quando iniciou o Curso de formação semprefalei para meus colegas que era índia Mura, porque meus pais dize m que são Mura.Aonde eu chego digo que sou Mura, mesmo com dificuldade e com discriminação.Nunca deixei de dizer. A minha família, meus pais e avós, sempre me incentivaram,por isso é que tenho orgulho de ser Mura". Prof a. Amélia Braga Cabral, aldeiaMurutinga, lago do Murutinga.

Tomados em conjunto estes depoimentos, podemos observar que a noção de

identidade cultural é claramente percebida na fala destes professores ao demonstrarem

sentimentos de pertencimento ou vinculação ao grupo, ao mesmo temp o que apontam

perspectivas para si e para a cultura, cujas representações revelam ainda, que suas

interpretações a partir de sua cultura, podem ser bem diferentes das verdades criadas pela

outra.

E, por último, apresentamos os depoimentos de professores qu e, mesmo possuidores

de certa consciência étnica, foram levados por relações de dominação, discriminação e

preconceito a se negar, conscientemente, como membro pertencente a seu grupo de origem:

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“De 1988 a 1990 tinha um pouco de idéia do que era ser Mura. Na escola onde meformei no Curso Técnico Agrícola, as pessoas demonstravam um grande preconceitocontra os índios Mura. Na minha família nem meus pais queriam que eu meidentificasse como Mura devido o mau -caráter atribuído ao povo. Diziam que osMura eram ladrões, preguiçosos, beberrões e outras desqualificações. Não somenteminha família como também a comunidade não se reconhecia. Depois que entrei nomovimento indígena em 1991 e também a partir de 1999, no Curso de formação, éque passei a desenvolver uma consciência étnica e cultural". Prof. Aldimar PereiraRodrigues, aldeia Gapenu, lago do Gapenu.“Digo, não é simplesmente um pensamento, mas uma realidade. Quanto aos modosde ser índio quando iniciei no Curso de formação de professores era igual ao s não-índios por medo da discriminação, não pela minha família, mas por causa dasociedade não-indígena. O certo é que negávamos nossa identidade para não sermosmal vistos". Prof. Alderico Vieira Neto, aldeia Igarapé -Açu, lago do Igarapé-Açu.“Quando entrei no Curso de formação de professores indígenas Mura tinha umaoutra concepção do que é ser índio, principalmente por parte da sociedadeenvolvente que nos discriminava. Por ter vergonha de ser índio eu não meidentificava, índio tinha a fama de ser pregu içoso e ladrão. Em casa eu não falavapara os meus filhos que eles eram índios. Quando alguém me perguntava se eu eraíndio, logo dizia que não por causa da discriminação que na época era muito forte".Prof. Francisco Marques da Silva, aldeia São Félix, ri o Autaz-Açu.“Eu sabia que tinha algo de indígena, mas não me identificava por falta deinformação e também por causa do preconceito. Em nossa casa ou na comunidadenão se falava sobre este assunto. Nenhum trabalho de conscientização era feito paraque pudéssemos lutar contra os vários preconceitos e discriminação. A pressão dadiscriminação era pelo fato do povo Mura ter a fama de ladrão e preguiçoso". Prof a.

Liene do Nascimento Pereira, aldeia Trincheira, rio Preto do Pantaleão.“Eu já tinha a concepção do que era ser índio, mas me resguardava muito quanto aessa questão, visto que o preconceito contra os índios era muito grande. Quandofalava aos meus colegas da cidade que ia passar as minhas férias na aldeia Gapenu,aldeia de origem de minha mãe, eles diziam: “Lá vai o índião!”, mas mesmo assimnão deixei de ser índio, tanto assim que retornei para minha aldeia e estou meformando professor indígena, uma coisa que nunca imaginei que seria um dia. Aminha mãe não falava diretamente, mas dizia que ti nha vindo de uma aldeiaindígena Mura, que na época era chamada de Mora". Prof. Jerson dos SantosFerreira, aldeia Trincheira, rio Preto do Pantaleão.

O preconceito, desse modo, segundo Dalmolin (2004, p. 74), "efetiva -se reafirmando

uma medida comum, cujo discurso se assenta em saberes, crenças e valores, os quais, um

determinado grupo se auto-oferta, fazendo uso de formas historicamente construídas para

nomear o "desvio"57 e emitir opiniões, geralmente estereotipadas".

De modo geral, estes depoimentos são reveladores de uma consciência sobre os

vínculos de identificação que se materializaram a partir do confronto destes professores em

seus contextos interacionais, ao mesmo tempo em que nos permite refletir a força de uma

ideologia que consistiu em desc onstruir a identidade desses sujeitos e a construir,

57 Grifo do autor.

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simultaneamente, uma imagem estereotipada e, certa forma, desprezível, aos olhos da

civilização, transformando-os em algo diferente do que eram, em cidadãos brasileiros de uma

sociedade supostamente homogênea.

Baseados, portanto, em oposições simbólicas, relações multiculturais e forças

ideológicas, estes professores atribuíram à negação de sua identidade ou identificação com o

grupo de origem, entre outras razões, à sua imagem negativa construída (gent e que se

apropriava indevidamente de coisas alheias, indolentes, consumidores de bebidas alcoólicas,

gente pitiú58, de reputação duvidosa) à falta de conhecimento e informações sobre a própria

cultura, mas, sobretudo, ao preconceito e discriminação existent e contra eles no próprio

município que habitam, levando -os na maioria das vezes a se auto -identificarem como

branco59, como estratégia de ocultação da identidade.

Nesse sentido, para Bell (1975),

[...] ocultar a identidade pretendida para escapar à discrim inação constitui um tipoextremo de estratégia de identificação. Emblema ou estigma, a identidade, noentanto, pode ser instrumentalizada nas relações entre os grupos sociais. Aidentidade não existe em si mesma, independentemente das estratégias de afirma çãodos atores sociais que são ao mesmo tempo o produto e o suporte das lutas sociais epolíticas (apud CUCHE, 2002).

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Por outro lado, a própria indiferença e preconceito demonstrados contra o termo

índio61, palavra essa que cega, motivou positivamente os professores, a parti r das análises da

questão no interior do curso, a organizarem um conjunto de estratégias para mobilização

política e reivindicações e, dessa forma, a partir da situação relacional, intensificar suas

práticas de significação e reafirmação da identidade.

No que tange a concepção de identidade como manifestação relacional, vimos com

Fredrik Barth, no capítulo I, que "a construção da identidade se faz no interior de contextos

sociais que determinam a posição dos agentes e por isso mesmo orientam suas represent ações

e suas escolhas. Sendo uma construção social, a identidade se elabora em uma relação que

opõe um grupo aos outros grupos com os quais está em contato".

Para Barth a identidade deve ser entendid a através da ordem das relações entre os

grupos sociais. Para ele, a identidade é um modo de categorização utilizado pelos grupos para

organizar suas trocas. Também, para definir a identidade de um grupo, o importante não é

inventariar seus traços culturais distintivos, mas localizar aqueles que são utilizados pelos

membros do grupo para afirmar e manter uma distinção cultural. Uma cultura particular não

produz por si só uma identidade diferenciada: esta identidade resulta unicamente das

interações entre os grupos e os procedimentos de diferenciação que eles ut ilizam em suas

relações (apud CUCHE, 2002, p. 182).

A tendência positiva de reivindicação pelo reconhecimento da etnicidade e construção

de uma identidade coletiva passou a ser uma preocupação presente durante todo o processo de

formação dos professores, se constituindo assim, num grande desafio a ser compartilhado por

todos.

61 Segundo Egon Heck e Benedito Prezia (1998), ao pronunciar a palavra índio, poucos percebem que estãorepetindo um erro no qual incorreu Colombo e outros navegadores, quando, há 500 anos, acreditaram estarchegando às Índias. Estamos não só repetindo um erro histórico, mas também reduzindo uma infinidade depovos e culturas a uma categoria genérica e sem identidade, destrui ndo, de uma só vez, nome, cultura, históriae passado (p. 10).

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Considerando a grande dimensão do processo de mobilização política e de reafirmação

da identidade étnica dos professores Mura no município, é importante ainda focalizar algumas

teorizações relativas à construção coletiva da etnicidade, que sempre emerge e é elaborada

como forma de reivindicação da cidadania numa situação típica de grupo minoritário.

A etnicidade, assim, é vista como um conceito que envolve várias dimensões. Numa

perspectiva mais ligada à tradição antropológica, pode ser vista como um fenômeno de

identidade étnica, no sentido em que define limites grupais.

A complexidade desta questão pode ser visualizada, segundo Aronson (1976), como

“um tipo particular de ideolog ia”. Este teórico parte da idéia de que um sistema de símbolos

étnicos (ou etnicidade) cria uma consciência coletiva, faz reivindicações acerca das condições

da sociedade. O que torna a etnicidade diferente de outras ideologias é o fato de ser uma

ideologia de e para diferenciação de valores numa arena sócio-política inclusiva; quer dizer,

ela segue valores supostamente não compartilhados por outros nesta arena (apud SEYFERTH,

1983, p. 2).

Para esta autora, o principal critério que marca a concepção de etn icidade é a

identidade étnica, pois a partir dela o grupo étnico encontra sua expressão mais visível. A

própria identidade étnica possui várias expressões como mostra Epstein (1978, p. 102), que se

situam num continuum marcado nos seus extremos por dois pó los: no pólo positivo a

identidade étnica depende mais de conceitos internos de exclusividade, no outro extremo, a

identidade tem uma definição interna mínima e é essencialmente imposta de fora (idem,

ibidem, p.2).

Esta autora afirma ainda, que a identida de étnica positiva, baseada na importância do

próprio grupo, se expressa pela etnicidade. Mas, diz Epstein (1978, p. 102, apud Seyferth,

1983, p. 2), "existem também identidades étnicas negativas, onde a imagem do indivíduo é

baseada na internalização da a valiação dos outros, quase sempre presentes onde grupos

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étnicos ocupam uma posição de inferioridade ou marginalidade na hierarquia social. Este é o

caso da maioria dos grupos chamados “minoritários” nos Estados modernos":

"Era muito difícil conviver com as pessoas não-índias. Eu me sentia envergonhado,me achava menos importante, mais inferior a eles. (...) Que eram pessoas maisvalorizadas do que minha pessoa". Prof. Aldimar Pereira Rodrigues, aldeia Gapenu,lago do Gapenu."Eu não conseguia notar a dif erença embora sendo diferente. Pensava ser tudo igual.Hoje sei que sou diferente". Prof. Alderico Vieira Neto, aldeia Igarapé -Açu, lago doIgarapé-Açu."Sendo Mura tive que sofrer muitas humilhações. Muitas vezes fazer o que os não -índios bem quisessem porque pensava que eles eram os donos da verdade. Somenteeles é que sabiam de tudo. O Mura era tratado como analfabeto. (...) Ao iniciar oCurso de formação aprendi que ninguém é melhor do que o outro, somos todosiguais perante a lei, mas diferentes cultur almente. Por isso devemos respeitar uns aosoutros". Prof. Francisco Marques da Silva, aldeia São Félix, rio Autaz -Açu."Os não-índios alimentavam a ilusão de que eles eram os donos do poder. Quesomente eles eram capazes de conseguir fazer qualquer trab alho. Só eles eram bemvistos. (...) Hoje é melhor dizer que não. Aprendemos a lidar com qualquerdificuldade". Profa. Liene do Nascimento Pereira, aldeia Trincheira, rio Preto doPantaleão."Falar para as pessoas naquela época que era índio era muito d ifícil porque a visãodos não-índios em relação aos índios era de puro preconceito. Ser índio Mura era serladrão, sujo... (...) Ao ouvir as pessoas falarem assim eu me sentia muito triste, mesentia desclassificado como uma pessoa que não valia nada peran te a sociedadecivilizada que aí está. Em relação à educação escolar, muitas pessoas falavam quenosso Projeto de educação não ia dar certo, vocês vão voltar a andar nu, diziam. Maseles estavam errados". Prof. Jersosn dos Santos Ferreira, aldeia Trincheir a, rio Pretodo Pantaleão.“Como foi falado naquele seminário 62, as pessoas dizem que aqui não existe maisíndio Mura não, nosso jeito agora é de branco, tudo o que usamos é dos brancos,relógio, televisão, roupas, eletrodomésticos; índio que é índio tem qu e falar sualíngua, e nós não sabemos mais falar a nossa, eles dizem. Depois que inventaram asleis, todo mundo agora quer virar índio, é o que todos dizem inclusive o pessoal dasecretaria”. Prof. Arlindo Ruzo Braga, aldeia Murutinga, lago do Murutinga.

Sobre as formas de exclusão, sob o âmbito das representações, na produção de

discursos de significação e produção de identidades, Woodward (2000, p. 18) enfatiza,

[...] que "todas as práticas de significação que produzem significados envolvemrelações de poder, incluindo o poder para definir quem é incluído e quem éexcluído. Ou seja, no cotidiano da intersecção entre pessoas e culturas os sistemassimbólicos fornecem novas formas para dar sentido às divisões, às desigualdadessociais e para justificar os meios pelos quais alguns grupos são excluídos eestigmatizados. As identidades são contestadas" (apud DALMOLIN, 2004, p. 75).

62 Neste caso, o professor Mura Arlindo Ruzo Braga, da aldeia Murutinga, lago do Murutinga, está se referindo arealização do I Seminário de Educação Escolar Indígena no município de Auta zes, realizado nos dias 05 e 06de junho de1999, com o objetivo de apresentar o resultado do Mapeamento da Realidade Sociolingüística,Cultural e Antropológica do Povo Mura no município de Autazes e Borba, como também definir as diretrizes eprincípios para a execução do Programa de Formação dos Professores Indígenas Mura no município com baseno mapeamento citado. Ver Capítulo III - item 3.3, Movimentos por uma Educação Diferente, p. 107).

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Ainda nesse sentido, a despeito da impressão que causam entre si, índios e

civilizados63, argumenta Melatti (1993):

[...] quando duas populações estão em presença uma da outra, cada uma procurainterpretar, julgar, os costumes e tradições da outra. Nem sempre tal interpretação oujulgamento se faz de boa -fé. Desse modo, os civilizados brasileiros têmdeterminadas idéias a respeito dos índios e agem segundo essas idéias. Cadasociedade indígena, por sua vez, faz uma imagem da sociedade civilizada e atuasegundo essa imagem (p.193).

Para esta reflexão, no entanto, importa observar, que na reciprocidade dessas

impressões, os interesses antagônicos estão sempre presentes, tanto, por um lado, quanto pelo

outro. E em tais julgamentos os critérios utilizados têm sempre como referência a própria

cultura, ou seja, os valores e modos de vida de cada sociedade.

Em assim sendo, os ditos civilizados, movidos por interesses econômicos, julgam -se

superiores quanto a sua racionalidade técnica em saber melhor aproveitar os recursos e

produzir bens materiais, daí surgirem os preconceitos e a discriminação contra os índios, estes

últimos, por sua vez, reconhecem as desigualdade daqueles, e se dão conta claramente das

diferenças e tradições que os separam, mas também reconhecem a superioridade de suas

tecnologias.

Chega-se, aí, a uma dimensão muito importante acerca da concepçã o e compreensão,

no que tange as diferenças e manifestação da etnicidade, que são os critérios que estes

professores podem utilizar como elementos para sua auto -identificação. O que surge como

novo nos conflitos atuais é que a etnicidade se tornou não apen as a base para a mobilização

dos grupos étnicos, mas também a base para fazer reivindicações sociais, políticas, mas,

também, econômicas.

63 Ambas as categorias "civilizado" ou "branco" são uti lizadas pelos grupos indígenas, na sua maioria, paradesignar todos os indivíduos que se difere de sua cultura ou sociedade.

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Segundo Lopes da Silva e Grupioni (1995, p.17 -18)64, esta questão ainda nos remete a

uma reflexão acerca dos povos indí genas hoje no Brasil, principalmente no que tange o direito

à diferença:

[...] o desafio que se nos coloca, então, é o de como pensar a diferença. Diferençaentre povos, culturas, tipos físicos, classes sociais: estará fadada a ser eternamentecompreendida e vivida como desigualdade? Como relações entre superiores einferiores, evoluídos e primitivos, cultos e ignorantes, ricos e pobres, maiores emenores, corretos e incorretos, com direitos e sem direitos? [...] Respeito àdiferença, saber conviver com os que não são exatamente como eu sou ou como eugostaria que eles fossem e fazer das diferenças um trunfo, explorá -las em suariqueza, possibilitar a troca, o aprendizado recíproco, proceder, como grupo, àconstrução [...} Tudo isto descreve desafios.

Ao analisar e criticar o critério racial e o de cultura, como elementos de indianidade, a

Antropologia chegou a um outro, que parece o mais adequado: é o que reserva aos próprios

grupos étnicos o direito de decidir quem são e quem pertence a seu grupo. Esse critério é

definido como o de auto-identificação étnica. Nas palavras de Carneiro da Cunha (2001, p.

31)65:

A Antropologia social chegou à conclusão que os grupos étnicos só podem sercaracterizados pela própria distinção que eles percebem entre ele s próprios e osoutros grupos com os quais interagem. Existem enquanto se consideram distintos,não importando se esta distinção se manifesta ou não em traços culturais. E, quantoao critério individual de pertinência a tais grupos, ele depende tão -somente de umaauto-identificação e do reconhecimento pelo grupo de que determinado indivíduolhe pertence. Assim, o grupo pode aceitar ou recusar mestiços, pode adotar ouostracizar pessoas, ou seja, ele dispõe de suas próprias regras de inclusão e exclusão.

Ainda sobre os critérios da auto -identificação, é importante citar, que em 1949, o II

Congresso Indigenista Interamericano, reunido em Cuzco, no Peru, formulou a seguinte

definição de "índio":

64 Ver "A temática indígena na escola" (introdução), 1995.65 Ver "Índios do Brasil", MEC; SEED: SEF, volume 3, 2001.

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[...] "o índio é o descendente dos povos e nações pré -colombianas que têm a mesmaconsciência social de sua condição humana, assim mesmo considerada por elespróprios e por estranhos, em seu sistema de trabalho, em sua língua e em suatradição, mesmo que estas tenham sofrido modificações por contatos estranhos. Oíndio é a expressão de uma consciência social vinculada com os sistemas de trabalhoe a economia, com o idioma próprio e com a tradição nacional respectiva dos povosou nações aborígines" (Lewis e Maes, 1945, p. 115, apud MELATTI, 1993, p. 25).

Com base nessa definição, o critério de auto -identificação étnica pôde ser mais tarde

explicitado por Darcy Ribeiro (1977: 254), ao definir o indígena brasileiro 66:

[...] "indígena é, no Brasil de hoje, essencialmente, aquela parcela da população queapresenta problemas de inadaptação à sociedade brasileira, em suas diversasvariantes, motivados pela conservação de costumes, hábitos ou meras lealdades quea vinculam a uma tradição pré -colombiana". (apud MARCONI e PRESOTTO, 1998,p. 224).

Nas palavras de Melatti (1993, p. 26) grupos indígenas são "aqueles que, tendo uma

continuidade histórica com grupos pré -colombianos, se consideram distintos da sociedade

nacional. O que decide se um grupo de indivíduos pode ser considerado indígena ou não é o

fato de eles próprios se considerarem índios ou não e de serem considerados índios ou não

pela população que os cerca”.

Com base nos critérios apresentados, índio é todo aquele que se reconhece como

pertencente a uma dessas comunidades, e é por ela reconhecido como um de seus membros.

Nas palavras de Carneiro da Cunha (2001, p. 31), o fundamental, portanto, é

considerar-se e ser considerado índio; para isso, pouco importa o fato de usar relógio, roupas,

produtos industrializados, falar somente o português ou viver fora da ald eia.

66 Tanto no passado como no presente, a palavra "índio" é uma expressão depreciativa, sendo muitas vezesetnocentricamente substituída por "selvagem", "pagão" (no sentido de não cristianizado). Nas primeirasdécadas do século XVI, eram tidos pelos colonizadores co mo seres subumanos, desprovidos de alma, estandomais próximos dos animais. Sua dignidade humana só foi restabelecida após 1537, quando a bula do PapaPaulo III os reconheceu como "verdadeiros homens e livres" (apud MARCONI e PRESOTTO, 1998, p. 224).Nesse sentido, ainda, à palavra "índio", segundo Egon Heck e Benedito Prezia (1998), muitas vezes seagregam outros conceitos, como "selvagens", "preguiçosos", conforme pudemos constatar nos depoimentosexpressos pelos professores.

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A partir da tomada de consciência da possibilidade de construir uma identidade

comum (ser índio), os grupos têm se organizado e atuado de forma ativa no cenário político

nacional. Paralelamente à organização do movimento indígena, cada vez mais têm surgido

setores não-índios interessados em apoiar a luta desses povos pela manutenção de suas

identidades e de suas visões de mundo.

Os próprios índios estão conscientes das dificuldades de se relacionar de maneira mais

digna com nossa sociedade e reivind icam, de diferentes formas e em diferentes esferas, novas

formas de relacionamento com o Estado e com os segmentos da sociedade com os quais têm

contato.

Considerando as questões aqui explicitadas, importa ilustrar que decorrentes dos

processos de auto-identificação, os professores Mura puderam desenvolver análises culturais

mais amplas que resultaram sistematicamente no desenvolvimento de sua autoconsciência

cultural, práticas essas capazes de articular e analisar questões gerais da cultura com suas

práticas socioculturais cotidianas:

"No que diz respeito à cultura indígena uma é diferente da outra. Os Kamaiurá, noestado do Mato Grosso, por exemplo, preservam uma cultura diferente da dosYanomami aqui no Amazonas. Nós, povo Mura, não temos mais esse tipo decultura, a nossa já é totalmente diferente, embora ainda temos vários costumes iguaisos deles, como o preparo do beijú, o peixe assado, a fabricação de farinha, dormirem rede, etc”. Profa. Matilde Nascimento Laranjeira, aldeia São Félix, rio Auta z-Açu.“Os Yanomami enfrentam grandes dificuldades tanto de saúde quanto de plantio porcausa do verão. De vez em quando eles se mudam para outras áreas em busca demelhoria de vida. Para nós isso é muito importante nos dias de hoje, para quetenhamos consciência de preservação de nossa terra, de nossa cultura e tradição,buscando mais conhecimentos para fortalecer a nossa cultura, para desenvolvernossas aldeias, não para voltar aos tempos dos ancestrais, mas para recuperar nossamemória social”. Prof. Francisco Marques da Silva, aldeia São Félix, rio Atau -Açu.“Muitos povos ainda preservam seus costumes, língua, crenças, cultura, modos devida e tradições... Na nossa própria comunidade muita coisa já mudou desde otempo dos antigos Mura... Até se alguém chamar alguém de índio, é uma grandeofensa, é um Deus nos acuda, ninguém quer ser chamado de índio, não. Na cidadetambém é assim, índio é motivo de chacota pra eles. Quando a gente chega lá, eleslogo dizem, lá vêm os índios... Ê, rapaz, isso lá são mais índios. Aqui em Autazesnão tem mais índios, não, tudo são caboclos, eles dizem”. Prof a. Amélia BragaCabral, aldeia Murutinga, lago do Murutinga.

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A partir de questões como estas, focalizadas, analisadas e refletidas por todo o Curso,

os professores Mura fortaleceram suas concepções quanto aos modos de ser e vir-a-ser

indígena na atualidade, tendo sempre como referência a cultura e as relações multiculturais,

mas também políticas enquanto sua atuação nas aldeias, e em outras regiões do Brasil.

Eles próprios têm consciência das mudanças internas e externas operadas no grupo,

mas também no interior da própria cultura. Estão conscientes da necessidade de

estabelecimento de novas relações socioculturais e políticas mais amplas e das

interdependências existentes, seja na apropriação de bens, técnicas e recursos tecnológicos

indispensáveis à sua sobrevivência, seja na articulação de possibilidades que garanta a

realização de seus projetos de vida e bem -estar de toda comunidade.

De um modo geral, foram muito s os elementos em todo processo de discussão que

concorreram não somente para a maturidade de suas decisões, como também, mas

gradativamente, para a ampliação de seus quadros de referência e visões, o que se podem

perceber por meio do desenvolvimento de se us processos de conquistas, autonomia,

cidadania, relações, igualdade de direitos e respeito às diferenças.

Nesse sentido, o Programa de Formação de Professores Mura no município de

Autazes, enquanto espaço de troca e saberes, significou a possibilidade d e articulação e

alternativas de atendimento às suas expectativas e demandas.

Quanto a caracterização da identidade ou modos de ser do sujeito Mura, de um modo

geral, identifiquei, em 1999, ao iniciar o Curso de formação de professores indígenas no

município de Autazes, sujeitos apáticos e, ao mesmo tempo, temerosos, inseguros e

indiferentes aos processos de mudança e transformação que se anunciavam. Também

indecisos quanto aos seus modos de ser e vir-a-ser num mundo de tantas incertezas e

impossibilidades que só lhes impunham limites e restrições, decorrentes da discriminação e

preconceito frente às adversidades.

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Comportamentos esses claramente percebidos ao tomarem consciência de tão

grandioso seria o desafio que se propunham a enfrentar. Por essa in segurança, passaram a

oscilar constantemente ora no atendimento às recomendações pedagógicas e aos princípios do

Programa da formação, ora às orientações que a secretaria municipal de educação emanava.

Hoje, reconheço nesses mesmos sujeitos, uma visão mais consciente de sua existência,

de sua presença e relação com o mundo, de suas relações com outras posições de sujeitos,

agora decididos quanto à vontade de conquistas, movimentos e realizações. O Curso como um

todo foi uma "busca" para os professores Mura e, neste contexto, destaca-se o papel e os

movimentos gerados pela OPIM, movimentos enquanto espaço de formação.

Os professores Mura no município de Autazes tornaram -se possuidores de habilidades

e competências específicas necessárias ao desenvolvimento de seus projetos de vida e de

futuro, aos quais se inclui o seu projeto de educação escolar. Além de vencerem a

individualidade criando novas formas de participação coletiva, cooperação mútua e atitudes

solidárias frente às necessidades de resolução de seu s problemas.

Dada a capacidade da ação comunicativa desenvolvida, embora reconheça nestes

verdadeiros discursadores por natureza, são agora capazes de processos de articulações e

negociações mais amplas e, ao mesmo tempo, de lidar, com as mais adversas si tuações que as

novas relações ou condições de vida possam lhes impor.

Certamente ainda é um grande desafio o combate ao preconceito e discriminação

sofridos, o que de fato se constitui num longo processo, mas conseguiram resgatar sua

dignidade, respeito e credibilidade junto à sociedade como um todo.

Ser Mura hoje, segundo os próprios professores, significa estar consciente de sua

realidade política e sociocultural, de seus problemas e o compromisso de resolvê -los. É ser

conhecedor de seus direitos, mas ta mbém de suas obrigações frente aos seus projetos de

futuro que hoje orientam sua prática e presença no mundo. Ser Mura é ser conhecedor de sua

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própria história, da história das aldeias, dos processos de luta e movimentos pela preservação

de seu meio ambiente, pela melhoria de vida e bem-estar de toda sua sociedade.

Além da capacidade demonstrada, por meio de sua atuação, nos processos de

transformação da realidade em vias de realização, os professores Mura têm se revelado

possuidores de certa liberdade e autonomia necessárias à melhor forma de pensar sobre seu

poder de escolha e decisão. E o mais fundamental, não se consideram mais "índios" enquanto

um estigma, mas "índios Mura" enquanto um valor.

Enfim, em meio aos processos profundos de transformaçõ es que vêm operando no seio

de sua cultura, de um mundo impregnado de trocas e negociações, podemos afirmar que a

consciência de ser e o sentimento étnico coletivo não foram destruídos totalmente neste povo,

mesmo em se reconhecendo as mudanças historicame nte operadas em suas estruturas sociais.

O espírito persistente de luta por seu ideal traduz todo seu sentimento.

Enquanto grupo, os professores Mura juntamente com a participação dos membros de

suas aldeias, vem reestruturando suas formas de organização, transformando e agregando

valores, os quais orientam suas ações, escolhas e conduta social. Enquanto étnico, deram um

novo sentido a sua identidade, à sua cultura, à vida em comunidade e às suas ações.

De todas suas relações institucionais, cabe -me, aqui, afirmar, que somente a estes

professores cabe o mérito por protagonizarem tamanho desafio. O desafio de acreditar que é

possível se construir um mundo melhor, mais humano, sem ter que lançar mão de processos

escusos de dominação, exploração e diferente s formas de exclusão. O desafio de transformar

escolas com modelos ultrapassados de ensino e aprendizagem e construir uma nova escola,

atualizada, intercultural, moderna e de qualidade 67, a partir de processos conscientes de lutas,

movimentos, articulações e novas possibilidades, rompendo com os limites da intolerância e

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burocratização. E o mais fundamental, uma escola que esteja a serviço da comunidade e da

cultura, que atenda às suas expectativas e necessidades urgentes.

Cabe-me também, aqui afirmar, que com estes professores aprendi o verdadeiro

sentido do ser. Que não há limite para sonhar e realizar objetivos, que nós próprios impomos

restrições aos nossos desejos. É possível, portanto, realizar, fazer as coisas diferentes, torná -

las melhores do que são.

Em assim sendo, o fenômeno educação, por meio do contexto do Programa de

formação de professores Mura, possibilitou, assim, um diálogo intercultural, articulação,

negociação de novas possibilidades e ações que tornaram possíveis suas reivindicaçõe s,

tornando-os conscientes quanto aos modos de ser, educar e viver neste mundo tão adverso e

multifacetado.

Em síntese, apesar de construírem um movimento atuante e das conquistas obtidas

com a mobilização, a luta continua. As possibilidades de realização de seus projetos na busca

de seus ideais ainda não foram no todo alcançado. Entretanto, seu projeto de educação, a

partir da comunidade, se fortalece cada vez mais enquanto espaço de luta política, resistência

e emancipação. Sua escola, percebida como recu rso estratégico, tem possibilitado o

desenvolvimento da educação intercultural, condução de projetos, valorização e

reconhecimento da cultura, bem como a afirmação da identidade indígena Mura.

Mas o fundamental é que estão avançando no diálogo intercultu ral, articulando novas

possibilidades e criando as condições necessárias para suas negociações culturais. Enfim, o

Projeto de Educação Mura é um processo em construção. A reafirmação da identidade étnica

Mura já é uma realidade.

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3.2. Predomínio do Efeito Ideológico e Repressivo nas Práticas

Educacionais

Historicamente, desde a colonização do Brasil, a implantação de escolas em terras

indígenas tinha um só objetivo: a negação de identidades e a integração forçada dos í ndios à

comunhão nacional. Enquanto instrumentos de imposição de valores e dominação, estas

escolas não só descaracterizaram as culturas indígenas como também desestruturaram suas

organizações e sociedade.

Em decorrência desse processo histórico de dominação, mas também de preconceitos e

discriminações, o modelo de educação escolar oferecido às comunidades indígenas sempre

reforçou o pensamento integracionista refletido ideologicamente por meio do ensino

catequético ao ensino bilíngüe.

Além das funções que lhes eram atribuídas ideologicamente, as escolas implantadas

em terras indígenas também assumiram um caráter extremamente repressor , extirpando

qualquer vestígio ou manifestação cultural que demonstrasse o modus vivendi e pensamento

indígena. A exemplo desse fato situa-se o processo histórico vivenciado pelo povo Mura

durante o processo de colonização da Amazônia durante os séculos XVIII e XIX, que além de

terem sua identidade desconstruída, também foram estigmatizados e submetidos aos interesses

da integração.

Por trás da idéia de homogeneização pelo Estado brasileiro, em ofertar uma "escola

para os índios", as escolas localizadas em terras indígenas no município de Autazes, ao iniciar

o Programa de formação dos professores Mura, refletiam claramente a política integracionista

e de assimilação desses povos, ofer ecendo um atendimento baseado na cultura e valores não

indígenas, conforme se pôde observar, no início da formação dos professores, a partir do

desenvolvimento de suas práticas pedagógicas e metodologias desenvolvidas em suas salas de

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aulas, como também por meio das orientações emanadas da Secretaria Municipal de

Educação.

Por conseqüência, aos alunos das escolas Mura eram impostos valores e normas

culturais da sociedade envolvente , influenciando e estabelecendo novos padrões de

comportamentos alheios às suas práticas socioculturais , tornando estes sujeitos em algo

diferente do que era, uma identidade que passou a ser desconstruída historicamente .

Dessa forma, a educação escolar oferecida p or meio de um processo educativo

arbitrário e conflituoso não somente descaracterizava cada vez mais seus modos de ser e

viver, como também suas manifestações socioculturais ainda originárias, além de negar a

memória histórica e cultural desse povo.

Nesse sentido, na tentativa de construir um quadro de referência que possibilitasse

uma leitura real da cultura e principalmente dos processos de educação escolar, por força de

reivindicações de professores e lideranças indígenas que exigiam mudanças na forma de

atendimento de suas escolas, realizou-se um vasto mapeamento local.

Com o denominado Mapeamento da Realidade Sociolingüística, Cultural e

Antropológica do Povo Mura, realizado no período de 5 de outubro a 4 de novembro de 1998

nos municípios de Autazes e Borba, se pode detectar, que os professores , índios e não-índios,

que atuavam nas escolas das aldeias há muito não recebiam formação docente adequada que

lhes possibilitasse a aquisição de novos conhecimentos e práticas pedagógicas necessárias ao

exercício de sua função, muito menos sob a perspectiva de uma proposta educacional que

tivesse como princípios a especificidade e a diferença.

Parte deste professores sequer possuía a 4a série do ensino fundamental completa, e os

que haviam concluído essa modalidade de ensino ou Ensino Médio na cidade de Autazes, ou

mesmo em Manaus, foram formados segundo o modelo de uma escola que não se preocupou

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em lhes oferecer uma educação necessária para a vida em comunidade, muito menos de

respeito e reconhecimento à d iversidade de culturas e povos.

Ainda nesse sentido, dependentes e regidos pela burocracia dos sistemas de educação

escolar, os professores Mura permaneceram, por um longo período de tempo, inseridos na

categoria professores rurais e, suas escolas, denominadas escolas rurais, fazendo funcionar

obrigatoriamente um currículo rígido , inadequado e descontextualizado de sua realidade e

especificidades culturais. Embora os direitos fundamentais dos povos indígenas, inclusive a

uma educação específica e diferenci ada, já se encontrava legalmente assegurada.

Por não possuir um sistema de educação próprio, a S ecretaria Municipal de Educação,

Cultura, desporto e Lazer no município de Autazes, fazia cumprir esse currículo em

consonância com o sistema estadual e naciona l de educação, sem levar em conta , também, os

anseios e necessidades mais prementes dessas comunidades . Estes professores, no município,

juntamente com a categoria dos professores rurais, bem como toda população local, eram

tratados como iguais e não se reconhecia e valorizava nestes, suas diferenças culturais, nem

individuais.

O desenvolvimento de práticas pedagógicas e utilização de um currículo impróprio e

inadequado às escolas e cultura do povo Mura, em suas diversas formas e concepções, podem

ser perfeitamente observadas a partir dos depoimentos dos professores: 68

68 Arquivo pessoal. Depoimentos coletados e m 1999 durante as discussões suscitadas em sala de aula do Cursode formação dos professores Mura, aldeia São Félix, bem como por meio das avaliações realizadas ao final documprimento de cada componente curricular.

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fácil. Os interesses e necessidades demonstrados pelos professores foram os mais adversos,

conforme pudemos perceber ao longo da exposição desse estudo.

É importante mencionar, que até o momento de reivindicação das lideranças e

professores Mura no município de Autazes em 1998, quando da realização do I Seminário de

Educação Escolar Indígena no Estado do Amazonas 69, acerca da implantação de uma escola

indígena específica e diferenciada, nenhum interesse havia sido demonstrado por parte da

Secretaria Municipal de Educação pela execução de uma política de educação escolar

específica e diferenciada para o município de Autazes que atendesse aos anseios e

necessidades da população Mura, apesar do conjunto de textos legais e reivindicações já

existentes, como citamos anteriormente .

Além da Secretaria Municipal, mas também da Secretaria Estadual de Educação,

segundo os próprios professores, não havia, também, apoio do escritório local da FUNAI

quanto a oferta de uma educação escolar indígena diferenciada para o município. Quem

prestava auxílio às escolas indígenas e apoiava o trabalho dos professores, ainda que de forma

esporádica, era o Conselho Indígena Mura, CIM, e a Organização dos Professores Indígenas

Mura, OPIM que, embora criada informalmente, começava a se organizar.

Em seus processos de lutas e movimentos pelo direito a uma educação específica e

diferente, os professores Mura tiveram que enfrentar problemas de diversas ordens,

principalmente aqueles voltados para a realização de um Curso para formação de professores

indígenas, principalmente no que se refere as concepções que tinha o prefeito municipal na

época, sobre os professores e a população indígena Mura.

69 Seminário promovido pelo Instituto d e Educação Rural do Amazonas, IER -AM, no período de 11 a 14 demaio de 1998, no auditório do Centro de Formação Pe. José de Anchieta, da Secretaria Estadual de Educaçãoe Desporto.

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Com a implantação e execução do Projeto Pirayawara, os professores Mura em

formação, demonstraram não possuir domínio suficiente e conhecimentos específicos sobre a

própria realidade histórica e sociocultural, mas puderam adquirir novas informações e ampliar

seus conhecimentos sobre a cultura, memória histórica e tradição de seu povo, passando a

identificar, inclusive, os problemas e conflitos instalados em suas diversas aldeias e região.

Transformados em conteúdos no interior do Curso de formação, a discussão, análise e

reflexão acerca dos problemas e conflitos instalados, possibilitaram uma nova visão de seus

problemas socioculturais, mas ta mbém educacionais. E, dessa forma, novos conhecimentos e

uma maior compreensão acerca da construção de seu currículo escolar voltado

especificamente para o contexto e realidade sociocultural do povo , mas também do contexto

em que suas escolas estavam inseridas.

A partir dessa perspectiva, é importante registrar, que os professores passaram, então,

a experienciar e a desenvolver novas metodologias, construir novos conteúdos, processos de

avaliação, estabelecimento de novas relações entre eles próprios e seu s alunos, mas também

com o pessoal das aldeias, da cidade e com as instituições , local e regional, na tentativa de

estabelecer um novo diálogo intercultural, mas também de articulação e integração entre os

diversos saberes indígenas e não -indígenas.

Em assim sendo, o Programa de Formação dos Professores Mura no município de

Autazes possibilitou o restabelecimento e, ao mesmo tempo, o fortalecimento das relações

interpessoais, uma maior inter -relação com o povo da aldeia e relações interculturais, além do

fortalecimento e recuperação de algumas práticas culturais possíveis, consideradas

importantes enquanto elementos de estratégia de identidade, para construção e reafirmação de

sua identidade cultural e étnica, inclusive, recuperando o uso das categorias aldeias em

detrimento ao uso do termo comunidade, bem como tuxaua, em detrimento do termo capitão .

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No contexto desses movimentos de mudança de autoconsciência cultural e consciência

étnica, os professores, a partir de sua formação, passaram , entre outros, a incentivar nas

aldeias as práticas de construção artesanal, o estudo e uso da língua nheengatu entre eles

próprios, incentivo e mobilização em criar uma tradição participativa em reuniões

comunitárias e de professores, até então quase inexistente, bem como sua participação em

reuniões institucionais, de lideranças, assembléias e movimentos realizados dentro e fora da

aldeia: Hoje a escola indígena Mura está ficando com uma outra cara , diziam os professores.

Embora fossem muitos os problemas enfrentados pe los professores na luta pela

consolidação de seu Projeto de educação, nada é comparado àqueles evidenciados no início de

seu processo de luta e de reivindicações p ela implantação de uma educação escolar indígena

diferenciada, específica, intercultural, com unitária e de qualidade em atendimento às

necessidades desse povo.

Como forma de compartilhar os problemas e o compromisso para resolvê -los, os

professores decidiram coletivamente pela necessidade urgente e imediata de fortalecimento e

regularização de sua organização representativa, OPIM, estabelecendo articulações junto aos

segmentos envolvidos com a questão indígena, de modo assegurar a consecução dos objetivos

estabelecidos no seu estatuto.

Todos esses processos, gerados a partir do esforço das ações e ducativas voltadas para

a recuperação, reconhecimento , fortalecimento de sua cultura e melhoria das condições de

vida de seu povo, também possibilitaram que fossem p ari passu, conquistando e ocupando

seus espaços nas escolas das aldeias , assumindo a função docente e a gestão de suas próprias

escolas. Movimentos, estes, que resultaram, posteriormente, em 2006, na realização de

Concurso Público para professores municipais, incluído os Mura, garantindo, assim, a lotação

efetiva de todos os professores Mura no quadro de servidores da Secretaria Municipal de

Educação de Autazes.

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culturais conscientes, que resultaram nos seus processos de auto-identificação e consciência

étnica.

É importante registrar ainda, que a formação intelectual e política dos professores

possibilitaram não somente processos acirrados de reflexão, compreensão crítica da realidade

e capacidade de transformação, como também o desenvolvimento de ações , tomadas de

decisões cada vez mais coletivas, conscientes e solidárias.

3.3. Movimentos por uma Educação Diferente

Desde 1991, alguns professores e lideranças indígenas Mura no município de Autazes

já vinham participando ativamente de discussões em assembléias e movimentos promovidos

pela Comissão dos Professores Indígenas do Amazonas, Roraima e Acre, COPIAR,

denominada posteriormente de COPIAM70, sobre os direitos fundamentais dos povos

indígenas, tanto aqueles conquistados e assegurados na Constituição Federal de 1988, como

aqueles ainda não reconhecidos, entre outras temáticas e nvolvendo a questão.

Com base nos direitos legais garantidos e assegurados às escolas indí genas, os

professores e lideranças indígenas Mura no município de Autazes reivindicaram o de

construírem uma escola diferenciada e específica, que atendesse às suas necessidades e

interesses, que servisse de importante instrumento para recuperação da memória histórica e

social de seu povo, valorização, reconhecimento e fortalecimento da cultura, mas, sobretudo,

de reafirmação da identidade étnica de seus membros.

Com a realização do I Seminário de Educação Escolar Indígena no Estado do

Amazonas, promovido pelo Instituto de Educação Rural do Amazonas, IER -AM, autarquia

vinculada à Secretaria de Estado da Educação e Desporto, ocorrido no período de 11 a 14 de

70 Conselho dos Professores Indígenas da Amazônia.

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maio de 1998, em Manaus, professores e lideranças Mura da região do baixo Madeira

reafirmaram e manifestaram o desejo de construírem uma nova escola, um novo currículo

escolar por meio da execução do Programa de Formação para professores indígenas.

O Instituto de Educação Rural do Amazonas, por meio d o Setor Técnico de Educação,

decidi

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Com base nas informações levantadas, o Instituto de Educação Rural do Amazonas,

decidiu, com a anuência dos professores e lideranças Mura, programar um seminário regional

sobre educação escolar indígena no município de Autazes, com a finalidade de apresentar e

submeter, inicialmente, às lideranças, organizações e professores indígenas Mura, à

apreciação, análise e contrastaçã o dos resultados desta pesquisa e, dessa forma, poder definir

as ações e procedimentos necessários à realização da tão desejada formação.

No contexto dessas articulações, o referido instituto foi extinto no dia 31 de dezembro

de 1998, passando seus programas e projetos a serem executados pela então Secretaria

Estadual de Educação e Desporto, inclusive o Programa de Educação Escolar Indígena.

Ocorridos, entretanto, quase sete meses desde a realização do Mapeamento da

Realidade Sociolingüística, Cultural e Antropológica do Povo Mura, a Secretaria Estadual de

Educação e Desporto ainda não havia se pronunciado sobre o compromisso as sumido junto

aos professores e lideranças indígenas Mura sobre a realização do seminário anteriormente

programado. Somente após incansáveis solicitações e reivindicações dos professores, é que o

evento pode ser programado e definido data para sua realizaçã o.

Em assim sendo, nos dias 05 e 06 de junho de 1999 foi realizado o I Seminário de

Educação Escolar Indígena no município de Autazes, com o objetivo de apresentar, não

somente às lideranças, professores, organizações e comunidades indígenas Mura, mas t ambém

à população local, envolvendo diretores de escolas públicas municipais indígenas e não -

indígenas, professores, alunos, autoridades e representantes municipais de órgãos públicos

locais, os resultados dessa pesquisa.

Durante a realização deste Seminá rio foram apresentados informações e dados

estatísticos acerca dos elementos levantados. Neste contexto, ainda, foram apresentados

historicamente os processos de lutas e movimentos que levaram este povo, e os demais no

Brasil, a conquistarem seus direitos fundamentais.

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Discutiu-se, a necessidade de implantação e desenvolvimento de uma política pública

de educação escolar indígena no município, de modo que pudesse garantir o respeito à

cultura, a terra, à tradição e aos costumes do povo Mura frente aos não -índios, bem como a

recuperação da memória histórica e cultural desse povo. A formação dos professores

indígenas Mura se configurava, assim, em uma tarefa urgente e desafiadora.

Há quase dois meses após a realização d este seminário, nenhuma providência ,

articulação ou procedimento havia sido tomada ou anunciada quanto ao período estabelecido

para início da formação dos professores. As lideranças e professores Mura, mais uma vez,

começaram a demonstrar uma nova insatisfação em relação a esse descaso, passando a cobrar

insistentemente da Secretaria de Estado da Educação, por meio da Gerência de Educação

Escolar Indígena, uma posição quanto a definição da data para in ício do curso.

Os professores reivindicavam a qualquer custo o direito de iniciar sua formação. De

tão insatisfeitos, chegaram até mesmo a ameaçar que iriam participar do Programa de

Formação de Professores Rurais, Projeto Prorural, que acabara de iniciar no município. Face

aos argumentos técnicos, pedagógicos e financeiros apresentados pela Gerência , os

professores tiveram que mais uma vez aceitar e compreender a situação exposta. Decidiram

aguardar um pouco mais o início de sua formação.

Tão logo resolvida a situação, se deu início à realização do Programa de Formação dos

Professores Indígenas Mura no município de Autazes no dia 28 de julho de 1999, na aldeia

São Félix, nas dependências do antigo prédio do Posto Indígena Barbosa Rodrigues.

Inicialmente o Curso contou com a participação de 53 professores, sendo 10

professores Mura provenientes do muni cípio de Manicoré, e 43 do próprio município de

Autazes.

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É importante registrar, que a primeira etapa letiva intensiva do Programa contou com o

apoio da Secretaria Municipal de Educação, Cultura, Desporto e Lazer, SEMEC -Autazes, das

lideranças e organização dos professores indígenas Mura, OPIM.

À luz do Projeto Pirayawara, que estabelece as diretrizes e concepções político -

pedagógicas, lingüísticas , históricas, sociológicas e antropológicas para formação de

professores indígenas no estado do Amazonas, e do Seminário de Educação Escolar Indígena

realizado no município, foi elaborado pelos técnicos da SEMEC -Autazes, juntamente com a

participação dos professores Mura, um Programa específico de formação para os professores

Mura, denominado Projeto Mura -Peara71.

Por meio da execução deste Projeto, as secretarias estadual e municipal de educação

puderam, então, implementar as ações políticas e educacionais para educação escolar indígena

no município de Autazes, em apoio a formação dos professores.

É importante mencionar, que os 10 professores Mura provenientes do município de

Manicoré ficaram impossibilitados de retornar ao Curso para participarem da segunda etapa

letiva intensiva do Programa de formação dos professores Mura por ordem expressa do

prefeito local, que desautorizou a vinda destes professores.

Sequencialmente, no contexto das abordagens apresentadas neste documento,

passaremos a conhecer e a entender os fenômenos que concorreram para os processos,

dinâmicas, movimentos reivindicatórios e políticos dos professores Mura, ao construir uma

política indígena de educação escolar no município de Autazes que garantisse o respeito à

especificidade de seu povo, ao mesmo tempo em que combatesse o preconceito e

discriminação, tão claramente observados contra e les no município, bem como a recuperação

de sua memória histórica, valorização e fortalecimento da cultura e reafirmação de sua

identidade étnica.

71 Segundo explicação dos professores, o termo "peara", na língua nheengatu significa aquele que guia ou se fazseguir. O Projeto Mura-Peara para os professores Mura, significa, portanto, aquele que norteia todo o processoe ação educativa destinada ao povo Mura no município de A utazes.

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FOTO 07 - Autoridades e representantes de instituições públicas estaduais e municipais durante o I Seminá rio de EducaçãoEscolar Indígena no município de Autazes - AM / junho, 1999.

FOTO 08 - Professores Mura, diretores e professores de escolas públicas municipais durante o I Seminário de EducaçãoEscolar Indígena no município de Autazes - AM / junho, 1999.

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CAPÍTULO IV

4. POLÍTICA INDÍGENA DE EDUCAÇÃO ESCOLAR MURA:

APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR COMO RECURSO

ESTRATÉGICO DE IDENTIDADE E RESISTÊNCIA

4.1. Formação de Professores Mura: Questões Centrais e Execução do

Programa

Dada à importância e necessidade de registro do processo de construção da política

indígena de educação escolar Mura desencadeada a partir de movimentos políticos, culturais e

educacionais significativos, em meio às contradições e complexidade dos p roblemas

enfrentados, apresentamos, pois, de forma sintetizada, os movimentos e questões centrais da

execução do Projeto Mura-Peara - Programa de Formação de Professores Indígenas Mura no

município de Autazes, realizado por meio de nove etapas letivas inte nsivas e intermediárias,

de ensino presencial e semi-presencial, no período consecutivo de cinco anos (1999-2003).

A primeira etapa letiva intensiva foi realizada na aldeia São Félix, rio Autaz -Açu,

paraná do Madeirinha, no período de 28 de julho a 16 de s etembro de 1999, cumprindo uma

carga horária de 440 horas-aula e contando com a participação de 53 professores Mura.

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Esta etapa teve como temáticas fundamentais o estudo sistemático da base conceitual e

legal da educação intercultural, bem como da introduç ão aos fundamentos e princípios gerais

da educação escolar indígena, os quais permitiram suscitar discussões e aprofundar o

diagnóstico da situação sociocultural, política e lingüística em que se encontravam os

professores e comunidades Mura n o município de Autazes, decorrentes do Mapeamento da

Realidade Sociolingüística, Cultural e Antropológica do Povo Mura nos municípios de

Autazes e Borba.

Durante o desenvolvimento das atividades curriculares, é importante mencionar, que,

nesta etapa da formação, além dos professores Mura de Autazes, participaram também

professores Mura do município de Manicoré , os quais ficaram posteriormente,

impossibilitados de retornaram ao Curso por determinação expressa do prefeito do município,

na época, o senhor Waldomiro Gomes.

A segunda etapa letiva intensiva foi também realizada na aldeia São Félix, no período

de 18 de outubro a 13 de dezembro de 1999, cumprindo uma carga horária de 480 horas -aula

e contando com a participação de 46 professores Mura.

Esta etapa não somente deu continuidade ao aprofundamento das questões anteriores

suscitadas, como também teve seu encaminhamento voltado para o atendimento e necessidade

mais imediata dos professores, que solicitavam o aprofundamento de discussões e análises

acerca do processo de reconhecimento e reafirmação d e sua identidade étnica, bem como a

preocupação com a possibilidade de recuperação da língua mura , que também se consistiu no

grande foco das discussões.

Os procedimentos para a recuperação da memória histórica e socia l do povo Mura,

decorrentes de questões mais amplas, sociológica e antropologicamente levantadas , passaram

a ser definidos e encaminhados nesta etapa da formação por meio da realização de projetos de

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pesquisa, iniciando sobre o levantamento d as histórias de suas comunidades. Esse fato marcou

excepcionalmente este momento da formação dos professores.

A terceira etapa letiva intensiva foi realizada na aldeia Murutinga, lago do Murutinga,

no período de 20 de março a 13 de maio de 2000, cumprindo uma carga h orária total de 470

horas-aula e contando com a participação de 44 professores Mura.

Durante esta etapa do Programa foram possibilitadas novas discussões , análises e

aprofundamento das questões anteriores, bem como iniciado um processo de discussão sobre

as competências e procedimentos necessários à construção do projeto pedagógico das escolas

Mura, tendo em vista as questões étnicas e culturais levantadas, destacando concepções

epistemológicas sobre a noção de currículo, escola e educação.

Esta etapa também foi marcada pelas discussões e reflexões relativas à construção e

definição dos objetivos das escolas indígenas Mura , bem como ao conhecimento e estudo da

língua nheengatu e sua inclusão no currículo do Programa de Formação dos professores.

Articuladas aos seus projetos societários, as decisões relativas à construção e

desenvolvimento de seu Projeto de educação escolar tiveram como base para discussão, os

princípios básicos da escola indígena específica e diferenciada, intercultural e bilíngüe.

A quarta etapa letiva intensiva foi realizada em dois momentos distintos: um, no

período de 06 de novembro a 19 de dezembro de 2000, e o outro, no período de 5 a 16 de

janeiro de 2001, na sede do município de Autazes, local denominado Creche Laura Siqu eira,

em virtude da realização das festas natalinas, havendo, portanto, um recesso compreendido

entre o período de 20 de dezembro de 2000 a 4 de janeiro de 2001. Durante esta etapa d e

formação foi cumprida uma carga horária total de 480 horas -aula, e contou com a participação

de 42 professores Mura.

Essa etapa letiva caracterizou-se, fundamentalmente, pelo estudo e discussões

sistemáticas sobre a língua nheengatu no processo de formação dos professores, concebida

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como estratégia de identidade frente aos movimentos e processos de mudança que desejavam

desencadear. Tornando-se disciplina, passou a integrar a carga horária do Curso, por

reivindicação e necessidade dos próprios professores.

A quinta etapa letiva intensiva foi realizada no período de 22 de ja neiro a 24 de março

de 2001, também na sede do município, local conhecido por Centro Social Multiuso,

cumprindo uma carga horária de 530 horas -aula, e contando com a participação de 39

professores Mura.

Esta etapa caracterizou-se pelas diferentes concepções e entendimento dos professores,

quanto ao desenho inicial e preliminar, da organização e estrutura de sua proposta curricular.

A sexta etapa letiva intensiva foi realizada na sede do município, no período de 01 de

outubro a 26 de novembro de 2001, cump rindo uma carga horária de 480 horas -aula,

contando com a participação de 53 professores .

Durante o desenvolvimento desta etapa, todas as atividades e discussões curriculares

do Programa estiveram voltadas para o apoio à construção do Projeto pedagógico das escolas

Mura, suscitando questões e provocando novas reflexões quanto à sua concepção, política de

formação de novas identidades e processo de mudança a gerar.

A sétima etapa letiva intensiva também foi realizada na sede do município, no período

de 14 de outubro a 21 de dezembro de 2002 , cumprindo uma carga horária total de 490 horas-

aula, e contando com a participação de 47 professores .

Durante esta etapa, além do cumprimento da carga horária estabelecida no Curso, em

que foram aprofundadas as que stões tratadas anteriormente, bem como sistematizadas

documentalmente, foram acrescidas 100 horas-aula para atendimento ao programa Parâmetros

em Ação de Educação Escolar Indígena do Ministério da Educação, Secretaria de Educação

Fundamental, perfazendo um total de 590 horas-aula.

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Este Programa tem como propósito apoiar e incentivar o desenvolvimento profissional

de professores e especialistas em educação, de forma articulada com a implantação dos

Parâmetros e Referenciais Curriculares Nacionais para o Ensi no Fundamental, para a

Educação Escolar Indígena e para a Educação Infantil; e com implementação, também, da

Proposta Curricular para a Educação de Jovens e Adultos.

No que se refere ao desenvolvimento da educação escolar indígena, este Programa

visa ainda colaborar com o processo de institucionalização da educação escolar indígena no

país, garantido uma formação diferenciada e respeitosa da diversidade sociocultural par a os

professores e uma educação de qualidade para as crianças indígenas.

É importante registrar a relevante contribuição proporcionada por meio da inserção

deste Programa no contexto da formação dos professores Mura, que a princípio não havia sido

aceita por eles próprios, mas que permitiu que ampliassem seus conhecimentos e percepções

acerca da construção de seu Projeto de escola e de educação.

A oitava e nona etapas letivas intensivas foram realizadas consecutivamente na sede

do município, por solicitação dos próprios professores, no período de 1 de setembro a 29 de

novembro de 2003, cumprindo uma carga horária total de 750 horas -aula, e contando com a

participação de 42 professores.

No decorrer desta formação os professores Mura conseguiram criar uma estrutura e

iniciar a produção textual do documento P rojeto Político-Pedagógico das Escolas Indígenas

Mura, bem como definir estratégias de ensino e ação para seu funcionamento.

A execução do Programa de Formação dos professores Mura no município de Autazes

cumpriu uma carga horária total de 5600 horas -aula, sendo 3200 horas-aula relativas ao

Ensino Fundamental, correspondentes as cinco primeiras etapas letivas , e 2400 horas-aula

relativas ao Ensino Médio / Normal Indígena , correspondentes as quatro últimas etapas .

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FOTO 09 - Professores Mura em formação / I Etapa Letiva na aldei a São Félix / Autazes-AM / agosto, 1999 / Foto: Maria deJesus Oliveira.

FOTO 10 - Professores Mura em formação / II Etapa Letiva na aldeia São Félix / Autazes -AM / outubro, 1999 / Foto: JoséMário Ferreira.

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FOTO 11 - Professores Mura / III Etapa Letiva na aldeia Murutinga / Autazes -AM / março, 2000 / Foto: Matilde Laranjeira.

FOTO 12 - Professores Mura / IV Etapa Letiva, sede do município de Autazes -AM / 2001 / Foto:Matilde Laranjeira

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4.2. Fundamentação, Princípios e Bases da Formação dos Pr ofessores Mura

Tendo como pressupostos básicos o universo cultural, a realidade social e práticas

pedagógicas desenvolvidas pelos professores em sala s de aula nas aldeias, deu-se início ao

Programa de Formação dos Professores Indígenas Mura no município de Autazes,

desencadeando processos sistemáticos e sucessivos de discussões e reflexões sobre questões e

temáticas relevantes e complexas acerca da história , cultura tradicional e práticas culturais

atuais desse povo.

A partir de fóruns de debates e discussões aprofundou-se o estudo da base conceitual e

legal da educação escolar indígena, bem como seus princípios e fundamentos teórico -

metodológicos.

A partir da introdução do conceito de cultura, abriu-se para uma discussão mais ampla

sobre os conceitos de pluralidade e diversidade cultural, etnicidade, multietnicidade,

etnocentrismo, cultura lingüística, relativismo cultural, identidade étnica, identidade cultural

e etnoconhecimentos, tendo sempre como referência a noção e construção de escolas

indígenas específicas e diferenciadas. É extremamente importante mencionar a utilização,

enquanto instrumento de apoio ou suporte técnico -político-pedagógico, do Referencial

Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, RCNEI -Índigena, no processo de produção do

conhecimento e estabelecimento de novas relações com a sociedade local e regional.

A compreensão destes conceitos, elaborados e cada vez mais ampliados, surgi u não

somente da interpretação e compreensão crítica da realidade social vivida por estes

professores em suas respectivas aldeias, mas teve também, como suporte, as discussões e

análises da situação atual dos povos indígenas no Brasil e, em particular no estado do

Amazonas.

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Com base no contexto desta abordagem, consider ou-se a diversidade cultural e

lingüística existente entre os povos indígenas como elementos essenciais de discussão para a

elaboração de propostas e concepções acerca da construção, organização e concretização de

escolas indígenas específicas e diferenciadas, o que resultou no su rgimento de questões muito

mais abrangentes em torno da realidade sociocultural, política e econômica em que estão

inseridas suas escolas e, particularmente, os princípios que poderiam estar norteando a

construção e funcionamento de seu currículo escolar.

De acordo com as concepções do Projeto Pirayawara 72, princípios e fundamentos

gerais da educação escolar indígena , desencadeou-se um dinâmico processo de estudo e

discussão sobre as características da escola indígena diferenciada, específica, intercul tural,

bi/multilíngüe, comunitária e de qualidade.

Nesse sentido, discutiu-se a especificidade e a diferenciação decorrentes da

constatação da existência de cerca de 250 sociedades indígenas diferentes falando em torno de

180 línguas e dialetos e habitando centenas de aldeias situadas em vários estados da

Federação, sociedades estas portadoras de tradições culturais específicas, que vivenciaram

processos históricos distintos.

Cada um desses povos é único, tem uma identidade própria, fundada na própr ia língua,

no território habitado e explorado, nas crenças, costumes, histórias e organização social.

Sociedades que compartilham um conjunto de elementos básicos que são comuns a todas elas

e que as diferenciam da sociedade não -indígena (MEC, 1994, p. 10).

72 O Projeto Pirayawara, Programa de Formação de Professores Indígenas no Estado do Amazonas, apresentacomo concepções básicas a Formulação de uma Política Cultural que atribua lugar e função à escola indígena,por meio da participação efetiva do professor, em conjunto com suas comunidades ; Programa de Formação deProfessores Indígenas enquanto espaço institucional, que sirva de fórum de discussão e debate, para que ascomunidades indígenas possam determinar a formulação de uma Política Li ngüística a serviço da qual aescola estará atuando; A escola indígena deve ser diferenciada, específica, intercultural, bi/multilíngüe,comunitária e de qualidade; Aprendizado via-pesquisa como forma de compreensão da realidade, aliado aosetnoconhecimentos e aos conhecimentos técnico-científicos.

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Assim, os povos indígenas têm formas próprias de ocupação de suas terras e de

exploração dos recursos que nelas se encontram; têm formas próprias de vida comunitária;

têm formas próprias de ensino e aprendizagem, baseadas na transmissão oral do saber co letivo

e dos saberes de cada indivíduo (id . ibid., p. 10).

Discutiu-se a interculturalidade como um avanço conceitual importante na medida em

que aceita a diversidade cultural e redefine a escola como espaço de diálogo entre culturas e

não como aparelho de civilização e integração forçada dos índios à comunhão nacional ,

negando a diferença cultural entre os povos.

Sobre o princípio do bilingüismo, decorrente da complexa e heterogênea situação

sociolingüística vivida pelas sociedades indígenas quanto ao u so da língua materna e da

língua oficial, o português, discutiu-se o estudo, lugar e função da língua portuguesa nas

escolas indígenas Mura, tendo em vista , historicamente, ser esta população, agora,

monolingue em português e, portanto, a língua portuguesa , sua língua materna.

Nesse sentido, é importante, ressaltar, que a língua materna de uma comunidade é um

dos componentes importantes de sua cultura, constituindo -se no código com que se organiza e

mantém integrado todo o conhecimento acumulado ao longo d as gerações (MEC, 1993, p.

11).

Com base nesse pressuposto, é que os professores Mura, ao longo de toda formação,

discutiram, analisaram e refletiram criticamente a sua situação sociolingüística, com base

numa história marcada pelo preconceito e discrimi nação, ao longo destes três séculos de

contato com a sociedade nacional e, por conseqüência, foram forçados a deixar de falar sua

língua materna.

Essa realidade atinge um número significativo de sociedades indígenas hoje no Brasil.

Além do povo Mura, cita-se o povo Baré, Munduruku, Torá, Apurinã, entre muitos outros

grupos no Amazonas, que também foram submetidos a processos de etnocídio e dominação,

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mas, que, apesar de toda subjugação, procuram manter um a forma própria de se organizar

social e politicamente, preservando seus costumes, suas crenças e tradições.

Esses princípios estabelecem uma nova concepção que transforma radicalmente a

prática educacional implantada historicamente nas escolas indígenas, submetida ao paradigma

da integração das sociedades à comunhão nacional, da homogeneização cultural, pois quando

se considerou a diversidade lingüística, o uso das línguas indígenas estava confinado à

alfabetização, empregando estas como “pontes” para o domínio da língua portuguesa e com

isso a imposição de valores da sociedade dominante, dentro da perspectiva integracionista

(FUNAI, 1988).

De modo a oferecer instrumentos para uma compreensão cada vez mais crítica sobre a

construção de seu Projeto de educação escolar, favorecendo a participação dos profes sores em

relações sociais e políticas mais amplas, foram trabalhadas durante toda formação, questões

bem específicas, como, por exemplo, aquelas referentes ao processo histórico de implantação

de escolas em terras indígenas, seus objetivos, modo de organiz ação, funcionamento,

transmissão do saber, entre outras.

Em retorno às discussões, retom ou-se a questão da função da escola na aldeia,

funcionando a favor de quem e de que interesses, e para que t inha servido até o momento

atual?

Em assim sendo, com a finalidade de possibilitar uma maior reflexão e análise sobre a

implantação ou construção de escolas em terras indígenas, bem como do poder de escolha e

decisões, partiu-se de pressupostos históricos e legais da educação em geral e da educação

escolar indígena em particular, bem como da necessidade efetiva de participação d os

professores e suas comunidades no processo de construção e desenvolvimento de seu s

currículos específicos, com calendários escolares que respeitassem as atividades tradicionais,

com metodologias de ensino diferenciadas, com a incorporação dos processos próprios de

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aprendizagem de cada comunidade, produção de materiais didático -pedagógicos específicos e

diferenciados e processos de avaliação de aprendizagem mais flexíveis.

A partir do estudo destes pressupostos, foram sendo construídos quadros teóricos

referenciais baseados em conceitos antropológicos, sociológicos, cognitivos e pedagógicos

que permitiram subsidiar as diversas discussões e oportunizar aos professores Mura em

formação, um primeiro entendimento sobre a necessidade de construção de seu projeto

pedagógico, além de fornecer princípios norteadores para seu trabalho cotidiano em sala de

aula. Discussões essas pautadas não somente nos aspectos legais da questão, como também

nos resultados do processo histórico de luta e conquista das populações indígenas.

Refletindo, pois, a dinâmica e processos vividos, os professores puderam perceber que

os princípios básicos norteadores da educação escolar indígena é que iriam dar um caráter

particular e específico à construção de seu currículo escolar. Um currículo que apresentasse

características específicas próprias, organizado a partir da realidade sociocultural, histórica,

econômica, política e lingüística do povo, considerando as caracter ísticas locais e ambientais

em que as aldeias e as escolas estão inseridas e as tradições culturais específicas (crenças,

hábitos, costumes, história, lendas, mitos, cantos, música, técnicas, instrumentos). E que tudo

isso só poderia surgir a partir do diá logo e da participação efetiva da comunidade em todo

processo coletivo de construção dessa escola.

Os professores Mura puderam, então, compreender ainda, que o conjunto desses

fatores é que faz com que a realidade da educação escolar indígena seja diferente da educação

escolar dos não-índios. Portanto, uma escola na aldeia que não considera esses fatores está

desenvolvendo uma violência cultural contra o próprio povo.

De modo contribuir para a sistematização do saber e construção do Projeto pedagógico

Mura, bem como preparar os professores para a construção de materiais didático -específicos e

diferenciados para suas escolas, utiliz ou-se metodologias específicas e adequadas a cada

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antropológicos e etnográficos, vídeos de natureza pedagógica e antropológica , entre outros),

que contribuíram ainda mais para o surgimento de novas abordagens e concepções.

Estas estratégias foram fundamentais para o domínio da metodologia de trabalho em

sala de aula, para o estudo das bases legais e conceituais que regem a política de educa ção

escolar indígena e, principalmente, para a formulação de Projeto pedagógico da escola Mura.

O entendimento resultante desta prática serviu para que os professores pudessem

compreender os novos paradigmas educacionais que possibilitaram a implantação de uma

política de educação escolar indígena no país, no estado e município, ao mesmo tempo em

que lhes garantiu a implementação e desenvolvimento de uma política de educação escolar

indígena específica, diferenciada e de qualidade.

É importante registrar, que todas as ações, processos e dinâmicas que nortearam e

possibilitaram o desenvolvimento da política indígena de educação escolar Mura, por meio do

envolvimento e participação efetiva de seus professores e lideranças, não ocorreram de forma

isolada ou fragmentada. Tanto assim, que para efeito didático, conhecimento e compreensão

da experiência, apresentam-se neste estudo, seções específicas separadamente, mas que se

entenda, que os processos ocorreram de forma simultânea e integrada.

Isso significa dizer, que os avanços, bem como cada situação que emergia a partir da

necessidade de uma nova discussão ou retorno às reflexões anteriormente suscitadas, foram

possibilitadas, ancoradas ou mesmo apoiadas com base no estudo dos princípios e

fundamentos gerais da educação escolar indígena, mas, sobretudo, da análise da realidade

sociocultural, histórica e escolar do povo Mura e dos professores no município de Autazes,

mas também com base em outros povos que se encontram no mesmo contexto destas

questões.

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FOTO 13 – Professor Mura em formação consultando o ReferencialCurricular Nacional para as Escolas Indígenas, RCNEI / Autazes -AM/ janeiro, 2000 / Foto: Neide Silva.

4.3. Definição de Objetivos para a Formulação do Projeto de Educação

Mura

Segundo o documento Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar

Indígena, (MEC, 1993, p.12):

[...] a escola indígena tem como objetivo a conquista da autonomia sócio -econômico-cultural de cada povo, contextualizada na recup eração de sua memóriahistórica, na reafirmação de sua identidade étnica, no estudo e valorização da próprialíngua e da própria ciência - sintetizada em seus etno-conhecimentos, bem como noacesso às informações e aos conhecimentos técnicos e científicos da sociedademajoritária e das demais sociedades, indígenas e não -indígenas.

Este mesmo documento reafirma que:

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[...] a escola indígena tem que ser parte do sistema de educação de cada povo, noqual, ao mesmo tempo em que se assegura e fortalece a tra dição e o modo de serindígena, fornecem-se os elementos para uma relação positiva com outrassociedades, a qual pressupõe por parte das sociedades indígenas o pleno domínio dasua realidade: a compreensão do processo histórico em que estão envolvidas, apercepção crítica dos valores e contra valores da sociedade envolvente, e a prática daautodeterminação (id. ibid., p. 12).

Com base nestes princípios, os professores Mura desenvolveram processos de

discussão, análise e reflexão acerca do papel e função de suas escolas nas aldeias,

apresentando em seus argumentos, a necessidade de reformulação de seus objetivos,

organização e funcionamento, por uma escola que pudesse lhes devolver a dignidade,

respeito, credibilidade e o direito de serem reconhecidos étnica e culturalmente, e que se

constituísse em instrumento de luta, de resistência, de emancipação, recuperação da memória

histórica, fortalecimento de sua cultura , mas fundamentalmente, de reafirmação de sua

identidade, conforme podemos observar nos depoiment os abaixo:

"Temos que mudar o jeito de ensinar na nossa escola, ela já está aí há não sei quantotempo, e o que a gente sabe de nossa história, a história dos antigos, nada . (...) e oque é mesmo que a gente vem ensinando para os nossos alunos. (...) Precisamosestudar nossa cultura, conhecer a história do nosso passado, de nossosantepassados". Prof. Gilberto dos Santos Pereira."Queremos uma escola que ajude os alunos a conhecer sua cultura, preservar o queainda existe da cultura Mura, mas que aprendam também os conhecimentos lá defora, porque é muito importante para nós, e isso a gente já ensina mesmo na escola".Prof. Francisco Marques da Silva."Nessa escola que estamos discutindo temos que aprender de novo a falar nossalíngua materna, temos que nos esforçar para aprender a língua mura outra vez, sóassim o povo daqui vai parar de dizer que nós não somos mais índios, vão ter maisrespeito por nós". Prof. Gilberto Mura."A gente tem que discutir muito bem essa escola. Na minha comunidade isso nãoacontece, mas sei que em muitas comunidades tem muita gente dizendo que nãoquer saber dessa história de educação diferenciada, eles acham que isso não vai darcerto, não vai dar em nada". Profa. Amélia Braga Cabral."A escola Mura que vamos construir tem que garantir uma boa educação, umaeducação de qualidade, assim como as escolas dos brancos, se não a comunidade vaificar toda contra nós. Temos que ensinar a cultura, a língua, mas também oportuguês, a matemática, a história, todos os conteúdos, e para isso é precisoconversar muito, muito mesmo com o pessoal da aldeia". Prof. Gilean Parente Mura,município de Manicoré.

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Com base nestes depoimentos, foram suscitadas novas discussões sobre a necessidade

de se estabelecer o lugar e função da esco la Mura no município, de modo que os professores

pudessem trilhar por caminhos mais firmes e seguros.

Na perspectiva de estabelecerem que objetivos deveriam ser alcançados por suas

escolas, teve-se que retornar à discussões e reflexões anteriores, abordand o historicamente a

necessidade gerada de implantação de escolas em terras indígenas, e as mudanças pelas quais

passaram seus objetivos, desde o período colonial, em que a escolarização dos índios esteve a

cargo exclusivo de missionários jesuítas, até os di as atuais.

A partir do aprofundamento e análise destas questões, em que se focalizou a educação

baseada na catequese, cuja preocupação era civilizar os povos indígenas e convertê -los à

religião cristã, abriu-se para a discussão de novas categorias de educação e conceitos

pedagógicos, considerando as expectativas que os professores tinham quanto à construção de

seu currículo e ações concretas para sua viabilização.

A concepção de currículo e todos os seus elementos constitutivos deveriam, então,

refletir a concepção pedagógica e política indígena de educação escolar Mura.

Do estudo e teorização sobre as dimensões do Currículo, se focalizou inicialmente sua

dimensão filosófica, isto é, o tipo de educação apropriada a uma cultura ou sociedade, no caso

em questão, à educação Mura em particular, articulada às questões sobre a concepção de

sujeito indígena para uma sociedade em transformação, finalidade da educação, propósitos e

construção de seus conteúdos culturais curriculares.

De sua dimensão sociológico -antropológica, focalizamos a complexidade das

transformações sociais, analisando e refletindo a visão da realidade social na qual estão

inseridos e que vêm lidando diariamente, os padrões de comportamento que vem

influenciando as crianças, jovens e adultos na aldeia, principalmente quanto aos seus modos

de ser e estar no mundo, organização do diagnóstico da realidade cultural onde a escola está

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inserida, forças econômicas atuantes, estrutura familiar, relações de parentesco, tensões

sociais, formas de comunicação, entre outros.

De sua dimensão psicológica focalizamos a atenção especial ao desenvolvimento

psicológico das crianças e jovens, tipos de alunos com os quais iriam lidar e formar,

observando a rapidez de seu raciocínio, ritmos de aprendizagem, desenvolv imento

psicomotor, e considerações acerca dos processos de aprendizagem.

Da compreensão de que o currículo, entre outras, tem como finalidade preparar os

sujeitos para um mundo em constante transformação, os professores Mura identificaram -no

como instrumento por excelência de viabilização de seu Projeto político de escola e de

educação. Nesse sentido, os professores se propuseram a desenvolver um trabalho educativo

dinâmico e atual, produzindo novos saberes e concebendo o aluno indígena como ser ativo,

cercado de conteúdos, dando vida e significado a ele.

Considerando as teorizações educacionais, os conceitos e categorias foram analisados

reflexivamente a partir das questões elaboradas: Existe uma pedagogia indígena? Caso exista,

qual a diferença entre essa possível pedagogia e a pedagogia tradicional dos não -índios? O

que poderia caracterizar uma escola indígena? Existem escolas verdadeiramente indígenas?

Que diferenças poderiam ser estabelecidas entre a escola indígena e a escola tradicional dos

não-índios? Para que deve servir a escola Mura? Que objetivos pretendem atingir? Que

conteúdos devem ser trabalhados? De que forma? Que tipo de calendário escolar deve ser

construído? O que deveria ser respeitado e obedecido? Qual a melhor forma de avaliar os

alunos segundo a concepção trabalhada? Que metodologia seguir? Que identidades deveriam

ser construídas ou reforçadas a partir de seu currículo escolar?

Significativamente, é importante, registrar, que em decorrência deste estudo, os

professores Mura conceberam a idéia de que o processo de construção curricular deveria se

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“Recuperar a memória histórica do povo Mura, bem como a reafirmação de suaidentidade étnica, buscando sua autonomia, através de um processo de educaçãoescolar indígena diferenciada e intercultural desenvolvendo a capacidade de reflexãocrítica dos alunos, sobre os aspectos sócio -econômicos, políticos e históricos dopovo, considerando os processos próprios de aprendizagem como as tradiçõeshábitos e costumes de ontem e de hoje.” (Professores: Waldir Botelho FilgueiraFilho, José Roberto M. dos Santos, Aglair Gomes da Silva, Amélia Braga Cabral,Elcy de Almeida Prado, Jucinéia Gomes do Carmo, Arlindo Ruzo Braga Filho ).“Desenvolver a capacidade de reflexão crítica dos alunos, revitalizando sua memóriahistórica, e a sua identidade étnica, buscando a autonomia sobre os aspectos sócio -cultural-econômico político e lingüístico do povo Mura, considerando as tradições,hábitos, costumes e processos próprios de aprendizagem de ontem e de hoje,fazendo a inter-relação de conhecimentos técnicos científicos da sociedadeenvolvente e de outros povos indígenas. ” (Professores: Alcilei Vale Neto, Raimundoda Silva Caldas, Hamilton Cardoso Batista, Mariomar Moreira de Souza, NatalinoBarbosa da Silva, Emeson Sá Barbosa, Altino da Silva Barbosa, Orleans Marquesdos Santos, Kleber de Almeida Prado).“A escola que queremos deve efetuar as necessidades da Comunidade Mura;desenvolver um instrumento para interlocução e saberes da sociedade Mura;determinar um centro de produção e divulgação dos conhecimentos indígenas Murae de outras sociedades indígena e não -índio; ensinar os nossos alunos segundo asnecessidades das comunidades; contribuir para que se efetive o projeto de autonomiado povo Mura; a escola que queremos é aquela que assegura e fortalece a tradição, acultura, hábitos, costumes e crença do povo Mura; ampl iar uma escola que ensine onosso aluno a pensar no projeto da autonomia do nosso povo Mura; formar umaescola indígena, temos que conquistar a autonomia do nosso povo Mura;desenvolver os seus alunos e professores a capacidade de discutir os pontospolêmicos da comunidade e da sociedade envolvente e oferecer a possibilidade decríticas e conhecimentos dos problemas do povo Mura; permitir aos alunos umaescolha consciente de alta-sustentação hoje presente na sua sociedade ajudando afazer da escola um local de reflexão sobre a vida e o trabalho numa perspectiva deprogressiva autonomia; aplicar a responsabilidade da escola repassar essesconhecimentos que são nosso direitos garantindo por lei na Constituição Federal eLDB; participar da busca das alternativa s de Comercialização no mercado regional,nacional e internacional; desenvolver atitudes para o trabalho e a vida social quereforcem os laços de solidariedade familiar e comunitária; refletir sobre o quepermaneceu e que mudou nossas práticas produtivas e culturais." (Professores:Gercilene Pereira Corrêa, Maria Rita Pereira Corrêa, Emeson Pereira Mourão,Gracimare Rodrigues Filgueira, Francisco Marques da Silva ).

A organização preliminar destes objetivos, bem como dos elementos apontados em seu

interior, passou por um processo dinâmico de discussão e debate teórico, sistematizados

inicialmente durante a segunda etapa letiva intensiva do Programa , sendo retomada sua

discussão e apresentação somente na terceira etapa letiva intensiva do Programa, realizada na

aldeia Murutinga, lago do Murutinga.

Além das diferentes concepções e visões apresentadas, considerou-se a condução

desse processo e o exercício desta prática em particular, como uma das mais dinâmicas,

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relevantes e significativas na busca de seus id eais de escola e de educação , bem como

instrumento de mudança e de reafirmação política e cultural .

A dimensão simbólica e pol ítica atribuída à consecução dos objetivos para suas

escolas não somente demonstrou a consciência que os professores vinham alcan çando quanto

à ressignificação de seu processo educacional, como também a utilização do espaço escolar

como espaço de diálogo intercultural e de saberes , mas acima de tudo, como instrumento de

articulação de novas possibilidades e processos de mobilização que passaram a empreender,

na luta pela construção de uma outra escola que possibilitasse a reafirmação e constituição de

novas identidades.

Durante a terceira etapa letiva do Programa ficou decidido , em conjunto com os

professores, que os objetivos preliminarmente construídos e então apresentados fossem

submetidos a uma apreciação da comunidade, no sentido de que pudessem avaliar se suas

expectativas, anseios e necessidades estavam contemplados e articulados aos seus projetos de

vida, de futuro e de sociedade, mas também de relações diversas .

Em assim sendo, durante a quarta etapa letiva intensiva do Programa, após ter sido

submetida à apreciação da comunidade, e consideradas suas sugestões, idéias e intenções

políticas e escolares, os professores Mura procederam a uma sistematização das concepções

anteriormente construídas e, conseguiram definir o objetivo geral para suas escolas. A Escola

Mura, portanto, tem como objetivo:

“Desenvolver um processo de educação escolar que contribua pa ra a recuperação damemória histórica, fortalecimento da cultura e principalmente a valorização daidentidade étnica do povo, formando alunos críticos que reflitam sobre os aspectossocioculturais, políticos, lingüísticos e históricos do povo Mura, tendo c omo base atradição, hábitos, costumes visão cosmológica do passado e do presente. Essa escoladeve possibilitar aos alunos a aquisição de conhecimentos técnicos e científicos dasociedade envolvente e conhecimentos das demais sociedades indígenas, de modoque possam compreender o mundo em que vivem. Que tenha autonomia para criarseus processos pedagógicos próprios, calendários escolares, construção eorganização escolar, sempre ligados aos interesses e necessidades das comunidades,lideranças e organizações indígenas Mura” .

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A construção e definição deste objetivo procuraram refletir as expectativas, anseios e

interesses demonstrados pelos professores Mura em conjunto com suas comunidades quanto

à necessidade de desenvolvimento de uma política indígena de educação escolar com

características próprias e diferenciadas, respeitando seus modos de vida, suas visões de

mundo, as situações socioculturais específicas por eles vivenciadas e o estabelecimento de

novas relações diversas.

Ao se tornar um forte instrumento gerador de mudanças e de relações, fundado na

construção coletiva de conhecimentos, o objetivo das escolas indignas Mura, além de

apontar, como se pode observar, para uma política de identidades, construída a partir da

construção de seu currículo esc olar, visa assegurar a autonomia de suas escolas por meio da

efetiva participação de suas comunidades nas decisões relativas ao seu funcionamento e na

formulação de seu Projeto pedagógico.

Na luta por seus interesses e atendimento às suas necessidades, os professores Mura,

desde a construção deste objetivo, v êm trilhando por novos caminhos, negociando sua

identidade, articulando e lidando com o mundo institucional na certeza de atendimento às

suas reivindicações, reconhecimento e valorização de sua cultu ra, reafirmação da sua

identidade étnica e participação plena de seu povo na vida regional, estadual e nacional.

4.4. Definindo Temáticas e a Construção de Conteúdos Culturais

Durante a execução do Programa de formação d os professores Mura, a eleição

diversificada de temáticas não só possibilitou a discussão, construção e sistematização de

conteúdos culturais específicos, como também permitiu a reorganização de saberes,

construídos e interpretados nas relações de ensino e aprendizagem, baseados em contex tos

indígenas e na realidade sociocultural vivenciada pelos professores em suas aldeias.

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Nesse sentido, as questões mais suscitadas durante o processo de formação dos

professores, surgiram a partir da grande inquietação demonstrada em torno d os processos de

auto-identificação e reconhecimento de sua etnicidade, bem como a necessidade atribuída a

recuperação de sua língua materna.

A recuperação da língua materna , vista como estratégia de identidade, dizia respeito

às suas necessidades prementes de combater o preconceito e a discriminação que vinham

sofrendo, fosse no próprio município, fosse na capital do estado, quando da participação

destes professores em encontros regionais de professores e lideranças indígenas , conforme se

pode observar no depoimento expresso:

“Quando a gente participa das reuniões lá, em Manaus, e v ê todos falando sua línguae a gente não saber falar, dá uma vergonha danada. Eles dizem que não somos maisíndios. Por isso devemos aprender a falar nossa língua de novo, para podermos serrespeitados. Deve haver alguém que ainda fale a língua mura em algum lugar, eunão acredito que não exista mais a língua mura, por mais que digam ou que estejaescrito. Temos que pesquisar até encontrar”. Prof. Gilberto dos Santos Pereira.

É importante destacar, entre outras, que preocupações como estas permearem todos os

componentes curriculares que integraram o Programa de formação dos professores Mura no

município de Autazes durante a execução do Ensino Fundamental e Ensino Médio/Normal

Indígena.

Alguns elementos de discussão , que transitaram sistematicamente por todo o

Programa, despertaram mais interesses que outros , apresentando um alto grau de

envolvimento e participação efetiva dos professores, resultando posteriormente, n o

surgimento de novas temáticas.

Entre estes, é importante destacar, as discussões e estudo d a história e organização das

comunidades indígenas Mura (Murutinga, Capivara, Trincheira, São Félix, Jauari, Josefa,

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Gapenu, Paracuúba, Cuia e Jabuti) 73, questões acerca das sociedades indígenas e situação

atual no Brasil, sociedades indígenas no Amazonas, conflito da Cabanagem, Terras Indígenas

Mura no município de Autazes, direitos fundamentais dos povos indígenas, importância e

função das organizações indígenas e, especialmente, a traj etória histórica e cultural do povo

Mura, com base na análise crítica dos registros, relatos e depoimentos de missionários,

sertanistas e cronistas que estiveram na Amazônia.

Em assim sendo, em decorrência dos processos de reflexão histórica, análise e

compreensão crítica da realidade sociocultural e política em que estão envolvidas as

sociedade indígenas no Brasil e, em particular, o povo Mura no município de Autazes,

Amazonas, os professores Mura decidiram, após o encaminhamento de propostas de

pesquisas, organizar, sistematizar e integrar esses elementos em sua proposta curricular,

resultando na definição dos seguintes temas de estudo: História da Aldeia, História e Cultura

do Povo Mura, Organizações Indígenas, Os Direitos dos Índios, Povos Indígenas no Brasil,

Povos Indígenas no Amazonas e Terra Indígena.

É importante ressaltar, que esta construção foi possibilitada , particularmente, por meio

de atividades integradas e encaminhadas pelos componentes curriculares Etno -história,

Prática de Ensino e Metodologia de Pesquisa, das áreas de conhecimento Ciências Humanas e

suas Tecnologias e Fundamentos para o Magistério respectivamente, por meio dos quais

pode-se fornecer uma variedade de subsídios teóricos que apoiassem a discussão dos

professores na construção de sua proposta curricular.

Estes subsídios compreenderam sucessivos processos de reflexão acerca da natureza

histórica, filosófica e sociológica da instituição escolar, redimensionando seu papel no

processo de educação Mura, bem como as finalidade s atuais da educação escolar indígena e

não-indígena. O retorno a esta reflexão teve finalidade contribuir cada vez mais com a

73 Ressalta-se, que as discussões e estudo da história e organização das comunidades indígenas Mura, limitaram -se àquelas representadas por seus professores no Curso de formação.

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capacidade de questionamento e de reflexão dos professores Mura, dotando -os de visão ampla

e profunda acerca do contexto em que s e desenvolvia e se reconstruía sua atividade docente.

Dessa forma, teve-se a preocupação com que o processo de discussão e análise das

questões ou temáticas encaminhadas em todo o contexto da formação dos professores Mura

não estivessem dissociadas ou desarticuladas de sua realidade e contexto sociocultural.

Procurou-se não tratar de questões isoladas, mas sempre articuladas às diferentes áreas de

conhecimento, favorecendo o estabelecimento de conexões entre elas próprias, de modo que

os professores pudessem dotá-las de sentido e significados, e de construir relações, enquanto

sujeitos que praticam ação em relação ao mundo que os cerca.

De modo geral, o encaminhamento e discussão das várias questões e temáticas,

possibilitou aos professores uma apropriação significativa de conhecimentos e controle sobre

variados padrões culturais, ampliando assim, sua compreensão crítica da realidade e

capacidade de atuação sobre ela.

Ao invés de trabalhar conteúdo pelo conteúdo , como se tem observado em algu mas

práticas de professores formadores, procurou-se organizar o trabalho e questões levantadas

pelos professores, explicando e propondo habilidades diferentes e , desse modo, segundo

Antunes (2001, p. 19), possibilitá-los a se construir como agentes de sua própria formação e

aprendizagem.

Nesse contexto, segundo este autor, a aprendizagem significativa se contrapõe a uma

aprendizagem mecânica ou automática, quando, nesta última, as informações são adquiridas

sem interagir com conceitos relevantes existentes n a estrutura cognitiva.

De acordo com o pensamento de David Ausubel ( 1963, 1968 e 1978), a aprendizagem

mecânica não conduz à construção do conhecimento e, portanto, sua exposição arbitrária

jamais permitirá que o aluno possa utilizar seus ensinamentos com o instrumentos do

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conhecer, fazer, viver e principalmente ser, conceitos de aprendizagem esses bastante

utilizados por ele (apud ANTUNES, p. 17).

É a escola atuando como mediadora entre o individual e o social, possibilitando uma

articulação entre o conhecimento transmitido e a assimilação ativa por parte de um aluno

concreto, objetivando o desenvolvimento da pesquisa.

Com base nesses pressupostos e temáticas definidas, é que orientou-se os professores

para a construção e sistematização d e conteúdos culturais Mura.

Possibilitou-se ainda a estes professores , a compreensão de que a produção de seus

conteúdos culturais deveriam ser formadores de opiniões , mas também problematizadores.

Deveriam, pois, gerar atividades e procedimentos que propicia ssem a solução de problemas,

provocasse sempre novas discussões, gerassem reflexões, que gerasse a produção de materiais

didáticos específicos e diferenciados para suas escolas, elementos identificadores de

problemas sociais, possibilitassem novas informações e, fundamentalmente, resultasse num

saber criticamente elaborado.

A partir da construção desses conteúdos em contextos indígenas, os professores

puderam, então, perceber, que estes só poderão cumprir sua função específica, se fossem de

fato construídos a partir de seu próprio interesse, de suas necessidades e relevância para as

comunidades, no sentido de que pudessem promover a interação, inter-relação ou articulação

entre o conhecimento local (etnoconhecimentos) e os conhecimentos universais

historicamente acumulados.

Os conteúdos que compõem a organização curricular da escola indígena Mura foram

construídos, essencialmente, a partir dos problemas que a comunidade enfrenta ou vivencia.

Essa prática orientou o desenvolvimento da metodologia da educação intercultur al, associada

à prática da pesquisa.

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Aos conteúdos, cumpre-lhes, portanto, o papel de transformar os conhecimentos

existentes (conteúdos prontos), ou seja, torná -los úteis e imprescindíveis à vida social. E,

nesse sentido, os professores puderam perc eber ainda que uma lista de conteúdos a serem

trabalhados na sala de aula , prática comum na cultura escolar tradicional, nunca dá conta

daquilo que se propõem, não representa a totalidade dos conhecimentos, é apenas uma

abreviatura que se desdobra em novos conhecimentos e informações.

Além da construção destes conteúdos, os quais passaram a integrar a proposta

curricular da escola Mura, foram considerados , também, para enriquecimento e valoração de

suas experiências, os registros dos conteúdos contidos nos seus cadernos de campo. Estes

registros não somente refleti ram o interesse dos alunos e da comunidade quanto aos conteúdos

a serem estudados nas suas escolas, como também as experiências e práticas pedagógicas

desenvolvidas pelos professores em suas sal as de aula.

É importante registrar, que uma prática constante no processo de formação de

professores indígenas, é a presença permanente de m embros da comunidade assisti ndo e

participando das aulas dos formadores.

É importante registrar ainda, que a observação e acompanhamento desta prática, isto é,

dos conteúdos explorados pelos professores em suas salas de aula na aldeia, era acompanhada

a cada etapa da formação, de modo que pudessem ser criticamente analisados, ampliados, ou

mesmo reconstruídos. Essa prática possibilitou-lhes a organização não somente de sua

proposta curricular, como também da elaboração do documento Projeto Político Pedagógico

para suas escolas.

Os conteúdos especificamente Mura, construídos com a participação de professores e

comunidades, foram, assim, concebidos como meios que possibilitassem a consecução dos

objetivos de suas escolas, articulados ao projeto de futuro de cada comunidade, d o povo e da

cultura, e como vimos, partindo sempre da análise crítica da realidade social de cada

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comunidade, mas também da realidade vivida por estes professores, por meio de uma ação

pedagógica inserida numa prática social concreta.

Os conteúdos organizados sob a forma de saber escolar, foram trabalhados de forma

gradual, cujo processo de apropriação do conhecimento foi construído sobre os saberes de

cada um, saberes obtidos de sua vida, de suas emoções, de suas brincadeiras, suas relações

com o outro e com o mundo.

De sua concepção e processos de construção e práticas permanentes de exploração ,

decorreu a compreensão sobre o desenvolvimento da educação intercultural, ou seja, da

necessidade de se estabelecer um diálogo permanente entre os conhecimentos da realidade

dos alunos, com os demais saberes, indígenas e não -indígenas.

Da reflexão desta prática, discutiu-se a grande tarefa que se propunha aos professores,

a de fazer os alunos alcançarem o máximo de conhecimentos possíveis, considerando que os

problemas enfrentados pelas comunidades não constituíam conteúdos em si, mas uma forma

de trabalhar os conteúdos na sala de aula era preciso transformar os problemas em conteúdos.

Os conceitos básicos só poderiam ser desenvolvidos a partir da análise destes

problemas, utilizados também como um desafio à reflexão dos próprios alunos. Os conteúdos,

portanto, têm que ser selecionados, configurando-se assim como específicos, significativos e

funcionais.

Partindo destes pressupostos, os professores demonstraram grande interesse , em dar

início a uma importante discussão e questionamento sobre os conhecime ntos que possuíam e

os que precisariam adquirir sobre a cultura Mura atual , mas também sobre a cultura que

caracterizou os modos de vida de seus ancestrais.

Reafirmaram, retomando as discussões iniciais do Programa, a necessidade de

aprofundamento dos estudos acerca dos processos históricos vivenciados pelo Mura, bem

como da imagem criada e estigmatizada sobre eles durante os séculos XVIII e XIX, bem

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como os fatores que levaram ao desaparecimento de sua língua materna, resultando , assim, na

desconstrução de sua identidade.

Os professores puderam então, perceber, não somente a carência de informações que

possuíam sobre os problemas ocorridos nas aldeias e modos de vida atual, como também se

consideraram profundos desconhecedores da cultura tradicional de seu povo.

Diante dessa constatação, passaram a reivindicar e atribuir ao Programa de Formação

a responsabilidade e o compromisso de possibilitar um estudo mais aprofundado sobre a

história e cultura tradicional do povo Mura, principalmente aquelas referentes ao período

compreendido entre os séculos XVI II e XIX, já que se propunham a reescrever sua história.

De modo particular, em atendimento a estes anseios, já que vinha-se encaminhando

discussões no campo da etno -história, procurou-se, no decorrer da formação deste

professores, instrumentalizá-los cada vez mais, oferecendo-lhes uma vasta literatura que lhes

possibilitasse, não somente um maior conhecimento sobre a cultura tradicional de seus

antepassados, como também intensifica sse o desenvolvimento da produção de textos escritos,

atividades de leitura, análise e interpretação crítica da realidade histórica e vivida pelo povo

nas aldeias, a partir de pesquisas acadêmicas e relatos históricos. Procede u-se, assim, toda

uma discussão e análise dos processos de do minação e discriminação a que foram (e são)

submetidos ao longo de sua história.

Fundamental para o desenvolvimento deste processo foi também a utilização de vídeos

antropológicos que, além de servirem de instrumentos de apoio didático, apontaram ao longo

da formação para questões relevantes sobre a diversidade cultural no Brasil e, em especial,

sobre a história, cultura e modos de vida do próprio povo Mura no município de Autazes,

considerando as pressões sociais, preconceitos, discriminação e problemas en frentados na

própria comunidade e fora do município , e dessa forma, reforçar seus movimentos e

reivindicações acerca do reconhecimento étnico.

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Dessa forma, ao abordar historicamente a realidade sociolingüística, cultural e política

vivida pelo povo Mura no município de Autazes e em outros municípios no estado, pôde -se

desencadear ao longo de toda formação d estes professores uma profunda e sensível discussão

sobre as práticas pedagógicas exercidas em suas salas de aulas, suas expectativas e também

das comunidades em relação à construção de uma escola verdadeiramente indígena, específica

e diferente daquela em que estavam habituados a atuar, uma escola que pudesse cumprir sua

função específica enquanto instrumento de formação política, tão imprescindível para a

conquista da autonomia e etnicidade desse povo.

Isso não significa dizer, entretanto, que o desenvolvimento destas capacidades e

apropriação de conhecimentos necessários à vida em sociedade, ocorreu de forma imediata,

mas foram frutos de uma construção dinâmica, num processo contínuo e permanente que se

estendeu por todo o Ensino Fundamental e Médio Indígena, constituindo-se assim, num

eterno vai-e-vem de temáticas e questões, que se completavam e articulavam entre si.

É importante registrar, que somente até o ano de 2003, quando os professores

concluíram o Ensino Médio/Normal Indígena, a construção da escola Mura contou com uma

assessoria especializada de formadores e consultores técnicos do Projeto Pirayawara. Desde

então, nenhuma ação institucional foi destinada ao acompanhamento do processo e apoio às

práticas pedagógicas e metodologias específicas desenvolvidas por estes professores.

Entretanto, a partir de 2003, por iniciativa dos próprios professores Mura, a

concretização desta escola e garantia de funcionamento de seu Projeto Político Pedagógico ,

continuam passando por processos dinâmicos de construção e reconstrução, sendo

permanentemente discutida, refletida e renovada por meio da participação efetiva de seus

professores, lideranças, organizaçõe s, alunos, pais de alunos, bem como a comunidade em

geral. Agora, com o apoio da Universidade Federal do Amazonas, UFAM, que vem lhes

possibilitando uma formação continuada, principalmente no que tange a construção de

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licenciaturas interculturais em atendi mento às suas necessidades educacionais, mas por eles

também discutidas e construídas.

FOTO 14 - Professores Mura durante atividade curricular / V Etapa Letiva Intensiva / Autazes -AM / janeiro - 2000 / Foto:Neide Silva.

FOTO 15 - Professores Mura em formação ilustrando materiais de pesquisa / Autazes -AM / Ano: 2001 / Foto: Neide Silva.

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4.5. Projetos de Pesquisa e a Reconstrução da História Mura

Marcados inicialmente por conflitos e tensões, desejos e necessidades incessantes de

busca por processos de autonomia e reafirmação de sua identidade étnica, os professores

Mura no município de Autazes, como se pôde observar, ao longo de sua formação passaram a

fazer escolhas e a tomar decisões quanto à criação de estratégias de identidade que

possibilitassem o reconhecimento e valorização de sua cultura, seja frente aos não -índios, seja

em relação aos próprios "parentes", que anteriormente, não aceitavam ou acreditavam num

jeito diferente de fazer educação.

A necessidade de valorização e reconhecimento da cultura Mura, bem como os

movimentos pelo reconhecimento de sua identidade étnica foi uma das preocupações iniciais

estabelecidas pelos professores, pertinentes com a situação sociocultural e política que se

encontravam. A estes desafios se aliavam a necessidade de desenvolver formas de

sensibilização e envolvimento efetivo da comunidade nos vários momentos do processo

educativo, a partir da construção do projeto de educação que ora se propunham a implantar.

A partir da maturidade intelect ual e política adquirida por meio dos processos de

discussões e estudos sistemáticos da realidade social, cultural e lingüística de suas

comunidades, os professores Mura decidiram dar início a um amplo processo de pesquisa em

conjunto com suas comunidades, com a finalidade de levantar e registrar todas as informações

possíveis e necessárias acerca da situação atual da cultura.

Pretendiam diagnosticar e avaliar os processos históricos de organização de suas

comunidades, a existência de resquícios históricos e memória social do povo, práticas

culturais tradicionais ainda existentes e os presentes nos dias atuais, tais como hábitos,

costumes, crenças e tradições, enfim, os modos de vida dos antigos e do grupo remanescente.

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Esse processo se iniciou, timidamente , desde a primeira etapa letiva intensiva e se

estendeu por toda formação dos professores, ou seja, durante a execução do Ensino

Fundamental ao Médio Indígena, num período de quatro anos consecutivos.

Por meio de seus pequenos projetos de pesquisa realizad os junto aos velhos,

lideranças, alunos, pais de alunos, e membros da comunidade em geral, os professores não

conseguiram, durante a primeira etapa letiva do Programa, obter com satisfatoriedade as

informações que tanto necessitavam.

Com muita dificuldade, alguns conseguiram registrar informações incipientes sobre

suas próprias comunidades obtendo informações junto a pessoas de comunidades vizinhas,

mas que, de certa forma, possibilitaram refletir claramente os processos de relações

interétnicas em que estavam envolvidos.

Surpreendidos com os resultados desta pesquisa, concebidos por eles, a princípio,

como resultados negativos, os professores constataram a inexistência de informações e o

desconhecimento que as comunidades em geral tinham sobre elas próprias e, por conseguinte,

sobre os aspectos históricos , políticos e culturais de sua cultura tradicional.

É importante ressaltar, que alguns dos professores, chegaram a demonstrar tamanha

irritabilidade e desânimo com os próprios parentes, afirmando ser esta s ituação uma

demonstração de que o povo nas aldeias não mais se preocupava em preservar a cultura

indígena ou a própria identidade : Eles querem mesmo é viver como os brancos , têm vergonha

de dizer que são índios , se expressou um dos professores.

Com base nos vários depoimentos expressos e percepções construídas pelos

professores, procurou-se inicialmente ouvir atentamente cada professor e as formas como

desenvolvia seu processo de análise e raciocínio acerca desta questão. Mas a inexistência de

fontes de informações era de fato comprovada.

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Decidiu-se, pois, provocar um processo de discussão que possibilitasse aos professores

a compreensão crítica da realidade observada, bem como as formas de participação e

intervenção nessa realidade por meio de seus proj etos de pesquisa.

Como contraponto ao resultado das informações e concepções apresentadas, decidiu-

se partir da análise do próprio universo cultural Mura, da situação histórica e lingüística

vivida por esse povo durante o processo de colonização e ocupação da Amazônia e, de sua

importância histórica enquanto grupo remanescente de um povo marcado pelo preconceito e

discriminação, impedidos, ainda, de preservarem sua identidade, língua e práticas culturais

tradicionais, mas que, certamente, resistiram bravamente às tentativas de catequese e

aldeamento.

Possibilitou-se, nesse contexto, o desencadeamento de fóruns de discussões sobre as

relações pautadas no contato interétnico, para o qual se propôs reflexões sistemáticas voltadas

para o conhecimento e entendimento histórico-social da realidade regional e estadual,

levando-os a compreenderem sua inserção numa economia na qual nem a escola e nem eles

próprios estavam dissociados historicamente.

Por outro lado, procedeu-se uma abordagem teórico-metodológica acerca dos

processos de auto-identificação e autoconsciência cultural sobre os sujeitos envolvidos no

processo, de modo a encaminhar novamente os processos de pesquisa nas aldeias, bem como

as formas de participação e envolvimento da comunidade no processo74.

A partir da análise e compreensão destas questões, os professores perceberam , então, a

necessidade do desenvolvimento de processos internos de convencimento, e para isso,

necessitariam de maior tempo para realização e aprofundamento das pesquisas nas aldeias,

mas, sobretudo, uma nova postura em relação aos membros das aldeias quanto ao tratamento

74 Segundo os professores, durante o desenvolvimento de seus projetos de pesquisa nas aldeias, era comumouvirem da população que só forneceriam informações mediante pagamento.

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e levantamento, agora, sobre o que o povo conhecia de fato sobre sua realidade, sua história e

sobre sua cultura.

Puderam perceber e atribuir ainda, a importância dos processos de pesquisa com a

produção diversificada de materiais escritos, articulados ao objetivo geral para suas escolas ,

de modo que pudesse se tornar em instrumentos legítimos, construídos com a participação

coletiva e consciente da comunidade, superando assim, os desafios e buscando novos

caminhos para a conquista de sua autonomia, reconhecimento e valorização de sua cultura e

reconhecimento de sua indianidade .

É importante mencionar que, desde os processos iniciais de sua formação, foi a

primeira vez que os professores mencionaram e atribuíram uma função significativa à

produção dos materiais escritos específicos, enquanto instrumento de construção curricular

em apoio às suas práticas pedagógicas e experiências vivenciadas em sala de aula.

Nesse sentido, toda produção permitiria o aprofundamento, enriquecimento e a

divulgação dos conhecimentos da cultura do povo Mura e cotidiano desse povo no município

de Autazes, mas também para outras localidades, como instrumento de divulgação da cultura,

mas, sobretudo, com a finalidade de reconhecimento de sua cultura e resistência às idéias pré-

concebidas e equivocadas a respeito d o povo.

Com base nessa perspectiva , os processos de pesquisa se intensificaram. Cada

conteúdo construído, sistematizado, apr esentado e discutido em sala de aula, a cada etapa da

formação, possibilitava uma nova compreensão e leitura crítica da realidade social em que

eles e suas comunidades estavam envolvidos.

Novas decisões foram tomadas pelos professores quanto à necessidad e e possibilidade

de empreenderem viagens a outras comunidades indígenas e não -indígenas da região.

Igualmente, visitar antigos moradores das aldeias e não -índios que há muito deixaram o lugar,

foram viver na sede do município. Todo esse esforço consistia no desejo de aprofundarem e

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levantarem novas informações sobre sua história e cultura. Discutiram ainda a necessidade de

deslocamentos a outras Terras Indígenas Mura, como também visitas futuras a arquivos

públicos, museus, bibliotecas, paróquias, entre ou tras instituições, para atendimento a esse

objetivo.

Com o desenvolvimento de suas práticas pedagógicas e aprofundamento de suas

reflexões históricas, os professores Mura, ao longo de sua formação, chegaram a uma

produção diversificada de materiais es critos, a recontar sua própria história, cuidadosamente

registrada, analisada e submetida à apreciação da comunidade.

Todo material produzido era apresentado , com base em relatório escrito, coletivamente

a cada etapa de formação. Os professores submetiam seus trabalhos inicialmente, aos próprios

parentes no Curso, de modo que pudessem ser apreciados, analisados e recebessem sugestões

para seu enriquecimento e aprofundamento. Assim, todos demonstravam euforia, interesse e

cuidado especial com as informações de sua pesquisa. Na maioria das vezes, os textos

submetidos à apreciação, eram reelaborados e reesignificados pelos próprios autores.

Os materiais escritos se constituíam em textos diversificados envolvendo conflitos de

terra, realidade físico-geográfica, história e organização das aldeias, dados populacionais,

questões de saúde e de educação, tipos de habitação, alimentação, meios de transportes,

artesanatos, crenças, trabalhos comunitários, hábitos, costumes, crenças, festas religiosas,

remédios caseiros, atividades produtivas, entre outros, que objetivamente integraram a

proposta de conteúdos do Projeto político pedagógico para suas escolas. Dada à situação

sociolingüística do povo Mura em Autazes, monolíngües em português, todos os textos foram

escritos em português.

Considerou-se, que as respostas geradas a partir da execução do Programa de

Formação de Professores Mura no município de Autazes , não poderiam ser extremamente

satisfatórias se não considerássemos , no contexto dessa formação, uma proposta que

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incentivasse a formação de índios enquanto pesquisadores de seu próprio universo cultural e,

igualmente escritores e redatores de material didático -pedagógico em sua língua materna,

referentes aos etnoconhecimentos de sua sociedade. Além de apoiar na construção de seu

currículo e possibilitar os processos de produção de conhecimento e pesquisa pelos próprios

professores em formação, conforme orienta as diretrizes para a formação de professores

indígenas no estado.

Além de apoiarem os currículos da s escolas indígenas, uma outra importância

atribuída à elaboração de materiais escritos, é a de instituir entre os professores indígenas, não

somente a sua autoria, em processos, às vezes, coletivos, outros individuais, mas

principalmente, ao eliminar a gr ande distância entre quem pensa e quem executa a prática

educativa.

Considerou-se o processo de discussão, reflexão e compreensão crítica da realidade

por que passaram estes professores, muito mais significativo do que mesmo todo resultado da

produção escrita apresentada, passando a criar uma tradição escrita e outras formas de

registros, enfatizando os aspectos interculturais de sua formação.

Neste processo a pesquisa assumiu um papel extremamente importante e fundamental

na formação dos professores Mura, pois na maioria das vezes, não domina vam aspectos de

sua própria cultura. Foi quando passaram, a ampliar seu próprio saber, sistematizar o

conhecimento de sua cultura e também a divulgá -la.

Enquanto princípio que regeu a formação destes professores, os processos de pesquisa

possibilitaram o desenvolvimento de experiências , e construção de uma educação escolar

diferenciada e de qualidade. Também desencadeou a interpretação, construção e reelaboração

de conhecimentos, gerados a partir de reflexão sobre a realidade sócio-econômico-cultural e

lingüística do povo, aliando seus etnoconhecimentos às diferentes informações e aos

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conhecimentos técnicos científicos da sociedade envolvente, de forma contextualizada e

crítica.

A ênfase dada ao processo de pesquisa permitiu, portanto, uma produção diversificada

de materiais, e para isso se respeitou a decisão dos professores quanto à função que atribu íram

a produção dos materiais escritos, gerados a partir da realidade, prática social e cultural de

cada professor indígena envolvido na formação. Uma vez integrados à sua prática docente,

permitem a reflexão sobre seu efeito pedagógico em sala de aula.

Com base nestes pressupostos , é que foi produzida uma diversidade de materiais

escritos, materiais que serviram de apoio ao currículo em construção e em função da atividade

pedagógica exercida, gerados , também, a partir de processos permanentes de reflexão e

compreensão crítica sobre essa produção, função e uso em sala de aula.

A reflexão crítica sobre essa prá tica permitiu que as concepções e princípios

trabalhados durante a formação, fossem cada vez mais discutidos e internalizados pelos

professores, de modo que pudessem perceber os procedimentos e criticidade que se deve ter

com a elaboração desses materiais e sua importância enquanto instrumentos de construção

curricular de fortalecimento da cultura, de resistência, de luta, de reafirmação e formação

política do povo.

Outro aspecto da formação dos professores que merece ser destacado são os processos

de autoria das ilustrações, um aspecto importante que subsidiou a elaboração e organização

dos textos escritos, em apoio a sua função pedagógica e cultural.

Conforme orienta as diretrizes para implementação de programas de formação de

professores indígenas nos sis temas estaduais de ensino (MEC, 2002, p. 59-67), o desenho

nesses materiais indígenas pode ou não cumprir uma função didática, mas é importante que

tenha força estética e apresente coerência com o texto, podendo trazer informações que este

não dá conta de fazer.

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Deve-se valorizar e respeitar o estilo de expressão de cada povo e indivíduo,

consultando e pedindo a colaboração dos mais velhos e de outros membros do grupo que não

freqüentam o programa de formação, mas que podem contribuir com os conhecimentos que

têm sobre a cultura e as formas de expressá -los por imagens. É importante ainda, tratar as

expressões e manifestações de artes como meio de expressão e comunicação dos temas e

disciplinas do currículo de formação e das escolas.

As ilustrações dos materiais com desenhos expressam potencialmente as formas com

que se vivenciam e manifestam as artes na cultura presente. Deve -se incentivar, ainda, a

criatividade dos professores, a fim de evitar cópia e reprodução dos livros a que têm acesso

pelos sistemas de ensino municipais e estaduais.

Durante a sétima etapa letiva do Programa, os professores decidiram que toda

produção escrita seria destina à publicação, mas após consideráveis modificações. Assim, a

maioria dos textos foram reelaborados recebendo uma nova ordem e formato.

Neste contexto, os professores decidiram quem iria lê-los e de que forma, o destino e

finalidade de circulação desses materiais, tipo de publicação, seleção e reelaboração de novas

ilustrações e uso de fotografias.

Decidiram, na estrutura de organização desta publicação, que o s aspectos históricos e

culturais das comunidades Mura seriam organizados por aldeia e apresentados em capítulos

específicos, agrupados num só livro, com a finalidade de facilitar não somente o trabalho dos

professores em sala de aula, como também possibilitar o acesso às informações e

conhecimentos a todos os alunos e comunidades.

A obra produzida recebeu a denominação Aldeias Indígenas Mura e, dado a

quantidade de material pesquisado, estimou -se uma média de 300 páginas. Esta obra deveria

ser digitada e apresentada em forma de boneca na próxima etapa do programa.

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Após sua publicação, decidiram, ainda, que os primeiros exemplares seriam destinados

em primeiro lugar aos professores e alunos das escolas indígen as Mura. Posteriormente às

lideranças e organizações indígenas. Em seguida às famílias, agentes indígenas de saúde,

representantes do CIM, da SEMEC, da SEDUC, Biblioteca Pública Municipal, Biblioteca

Pública Estadual, FUNAI (local e regional), FUNASA, COIA B, COPIAM, CEE, CEEEI,

diretores, professores e alunos de escolas municipais, associações de pais e mestres,

presidente da Câmara Municipal, representantes de órgãos públicos municipais, presidentes

de comunidades não-indígenas, representantes de igrejas e outros grupos indígenas.

Decidiram também que os procedimentos de leitura do conteúdo da obra seriam

iniciados nas comunidades Mura onde a pesquisa foi realizada, por meio de reuniões

escolares, familiares, comunitárias, de saúde, de pais e mestres, enco ntros de lideranças, nos

ajuris, entre os próprios professores, alunos e comunitários em geral e, que estas atividades

contariam sempre com a presença de um professor.

Além de sua concepção fundamental, enquanto instrumento de reconhecimento ,

valorização e divulgação da cultura, mas também de reafirmação étnica e cultural, a produção

desse material teria como finalidade primordial a recuperação da memória histórica e social,

de modo que sua circulação possibilitasse junto as sociedades, indígenas e não -indígenas, o

conhecimento de sua cultura e práticas culturais no município de Autazes. Durante a nona

etapa letiva intensiva não foi possível o retorno do material digitado para apreciação dos

professores. Na oportunidade , os textos foram novamente ampliados com base em novas

informações coletadas pelos professores , e submetidos a uma nova revisão e apreciação mais

rigorosa.

Diante do exposto, os professores decidiram que os textos poderiam ser encaminhados

para uma nova digitação, e após a finalização dessa atividade, encaminhados para publicação.

O material tinha que ser prático e dinâmico, e conter o seguinte formato: tamanho de 21 cm

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de largura por 28 cm de altura, capa dura , encadernação plástica, com ilustrações e fotografias

coloridas. Deveria apresentar a autoria dos textos, desenhos e fotografias. A relação das

comunidades, na folha de rosto da obra, deveria ser organizada em ordem alfabética. No

entanto, até o ano 2005 este material ainda não havia retornado aos professores para uma

apreciação e finalização.

De modo atender as exigências e diretrizes curriculares do Pro grama para fins de

conclusão de Curso, os professores empreenderam-se em novos projetos de pesquisa de livre

escolha, mas, sobretudo, voltados para a realidade histórica, sociocultural e política de seu

grupo de origem, com a finalidade de diversificar ainda mais a produção de nov os materiais,

temáticas e conhecimentos .

Para a organização e desenvolvimento de seus projetos finais de pesquisas, os

professores foram orientados com base nas atividades desenvolvidas pelo componente

curricular Metodologia de Pesquisa, que lhes oferece u os subsídios necessários para

elaboração, escolha dos temas, objetivos, metodologia, cronograma de execução e estratégias

de desenvolvimento. Mas também, durante o período de planejamento e execução do s

referidos projetos, os professores em formação recebem orientações de outros formadores das

outras áreas de conhecimentos, e pelo monitor indígena do Projeto, responsável pelo

acompanhamento pedagógico do Program a no município.

É importante ressaltar, que desde a primeira etapa letiva intensiva do Programa, estes

professores foram capacitados na elaboração e execução de pequenos projetos de pesquisas,

de modo que ao chegar ao final de seu Curso pudessem demonstrar as habilidades necessárias

quanto ao domínio de técnicas e execução dos mesmos. Es tes trabalhos foram entregues e

avaliados pelos próprios formadores. Quando necessário, os trabalhos foram devolvidos ao

professor em formação para que p udesse reformular os aspectos apontados, e devolvê-los

novamente para receber o parecer final.

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Os professores solicitaram que futuramente, os resultados destas pesquisas fossem

transformados em materiais didáticos para suas escolas em apoio ao trabalho do profes sor e

aprendizagem dos alunos. Nesse sentido, apresenta-se, pois, os temas escolhidos pelos

professores, por considerarmos extremamente importantes para o processo de divulgação e

difusão da cultura, como também para o Projeto de Educação Mura, considerando a produção

de novos conteúdos culturais a serem trabalhados em suas escolas: Transporte da Comunidade

Gapenu, Doenças que afetam a comunidade do Jauari e outras comunidades Mura, O fumo,

As Parteiras da Aldeia Josefa, Bebidas Alcoólicas, Uso e Conseqüências, Parteira da aldeia

Jauari, Caçador Indígena, Reafirmação Étnica do Povo Mura, O pegador de Ossos, Farinhada

na Aldeia Cuia, O Povo Mura do Passado e os Remanescentes Mura de Autazes, Pescaria no

Rio Preto do Pantaleão, Os Remanescentes Mura da Aldeia São Félix estão esquecendo os

Remédios Caseiros, Casamento, A Crendice do Povo Mura na Aldeia Murutinga, A Malária,

A Vida Social e Política na Aldeia, A Castanheira, Ajuri, Educação Indígena na Aldeia

Murutinga, Pajé da Aldeia, Remédio Caseiro, Desmatamento na Aldeia Gapenu,

Remanescentes Mura: histórias e crendices, Pescaria na Aldeia Josefa, Poluição: o que ela

causa, Pajé na Aldeia Trincheira, Artesanato do Povo Mura da Aldeia Trincheira, Artesanato,

Crendices na Aldeia Gapenu, A Castanheira, Bebida Alcoólica na Aldeia São Félix, Babaçu

na Aldeia, Doenças Sexualmente Transmissíveis, Ensino Diferenciado Para a Escola Indígena

do Gapenu e Roçado.

4.6. O Estudo da língua nheengatu como Estratégia de Identidade

De modo determinar as práticas lingüísticas e o papel das l ínguas na escola,

desenvolveu-se, desde o momento inicial da formação dos professores, um processo de

discussão focalizando a importância do reconhecimento e respeito à diversidade lingüística

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recuperação, fomento e manutenção de suas línguas maternas, não apenas como usufruto dos

direitos lingüísticos que lhes são assegurados pela Constituição, mas, sobretudo, sua

utilização com a função de status de língua plena e elemento de identidade cult ural e étnica.

Com base nesses pressupostos e, de modo particular, às pressões sociais , preconceitos

e discriminação sofrida, os professores Mura encaminharam toda trajetória de sua formação

na expectativa e tentativa de recuperação de sua língua materna, era preciso manter uma

identidade étnica, era preciso resgatar uma identidade indígena.

Na luta por esse reconhecimento e afirmação d e sua identidade étnica, o estudo e

análise dos processos lingüísticos, tiveram como questões centrais, desde a primeira etapa

letiva intensiva do Programa, o desaparecimento da língua indígena mura e a realidade

sociolingüística vivida por este povo em suas aldeias.

Durante os primeiros momentos da formação t eve-se que lidar com muita sutileza e

prudência, com os diferentes tipos de comportamentos e reações. Quando tratadas questões

relativas ao problema do desaparecimento e perda dos processos lingüísticos mura , um alto

grau de insatisfação, angústia, desânimo e, até certa forma, aflição e agressividade, fo i

demonstrado por alguns professores.

Tal situação expressava a expectativa e necessidade que tinham estes professores no

município de Autazes em recuperar sua dignidade sociocultural e respeito étnico, enquanto

grupo diferenciado da sociedade local, mas também em contextos regionais mais amplos,

buscando na língua de origem uma força maior e razão aos seus processos de auto-

identificação, mas também de reafirmação étnica.

Alguns professores atribuíam à necessidade urgente de adotar uma língua indígena

como instrumento essencial de identidade étnica e, poder, assim, se auto-afirmar, justificar

sua condição de sujeito indígena frente às exigências e indiferenças impostas pela sociedade

local e regional a estes sujeitos.

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É importante registrar, no entanto, que g rande parte da insatisfação e inquietação

demonstrada por parte destes professores, se dava, também, em virtude, dos demais não

manifestarem o desejo por uma consciência coletiva que justificasse o empenho e

engajamento de todos nesse processo defensivo de diferenciação, tensões e oposições

culturais.

Dado ao caráter complexo desta questão, as discussões foram cada vez mais

aprofundadas, suscitando entre os professores, sempre novas inquietações e questionamentos .

Notava-se, também, uma grande preocupaçã o com o cumprimento de seus direitos políticos,

sociais, mas, sobretudo, culturais, frente à sociedade envolvente. Era preciso, portanto,

desenvolver uma autoconsciência étnica e cultural que possibilitasse o compartilhamento dos

mesmos desejos e ideais. Para além das questões de ordem técnico-pedagógica da formação,

isto é, no que se refere ao papel das línguas na escola, é importante destacar, que as

discussões sobre a situação lingüística voltaram-se prioritariamente para uma discussão mais

política da questão.

Cabe aqui reforçar, no entanto, que o grande efeito dessa discussão, após minucioso e

sistemático estudo dos aspectos históricos da língua nheengatu durante a execução da segunda

etapa letiva intensiva, foi a decisão tomada p elos professores quanto a necessidade de

inclusão do estudo dessa língua na estrutura curricular do Programa de formação.

Este estudo, possibilitado por meio do encaminhamento da Área de Linguagens,

Códigos e suas Tecnologia, desencadeou uma discussão mais aprofundada acerca das línguas

indígenas e, da língua nheengatu em particular, tanto no que se refere ao seu processo

histórico, quanto sua estrutura.

Diante das necessidades apresentadas e do compromisso assumido junto aos

professores no sentido de atender suas reivind icações, pôde-se, durante a realização da III

etapa letiva intensiva, realizada na aldeia Murutinga, contar com o apoio do consultor técnico

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do Programa, o sociolingüísta Gilvan Müller de Oliveira75, que juntamente com a colaboração

do formador da área de Fundamentos para o Magistério, professor Clóvis Fernando Palmeira

Oliveira, encaminharam um conjunto de questões sobre a língua nheengatu para reflexão dos

professores. Nesse sentido, encaminhou-se uma discussão e análise crítica articulada às

questões suscitadas sobre a perda da língua mura , como também a funcionalidade e uso da

língua nheengatu no contexto da prática pedagógica dos professores.

Diante destas questões, novos procedimentos de ação foram propostos para que os

professores pudessem refletir so bre o uso efetivo das línguas indígenas, enquanto línguas

minoritárias frente ao grande número de falantes de português, as quais não podem deixar de

serem utilizadas por insuficiência expressiva, mas que possam ser efetivamente utilizadas no

processo educativo e em todas as outras situações. Para o aprofundamento das discussões

sobre o uso da língua nheengatu, foi sugerido aos professores que se organizassem em

pequenos grupos de trabalho de acordo com sua área de atuação, e registrassem suas

percepções e os interesses demonstrados pelas diversas comunidades acerca do estudo e

utilização dessa língua no processo escolar.

Duas questões foram propostas aos professores: a primeira referente ao que eles

sabiam sobre a situação lingüística d e seu povo; e a segunda, sobre o que as comunidades

apontavam para a atuação dos professores a respeito das línguas. Sobre o conhecimento da

situação linguística de seu povo, os professores que constituíram o primeiro grupo de trabalho

apresentaram o seguinte:

75 Coordenador do Núcleo de Estudos Portugueses da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador d oInstituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Lingüística . O sociolingüísta Gilvan Müller deOliveira atuou como assessor e consultor técnico do Projeto Pirayawara, Programa de Formação deProfessores Indígenas no Estado do Amazonas, no período de 1998 a 2001.

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“Na comunidade existem poucos falantes da língua nheengatu; os que falam temvergonha. Sabemos através da história que até 1850 os Mura ainda falavam sualíngua materna, mas somente entre eles” (Prof. Jucivaldo dos Santos Yamuth).“Não se sabe se ainda existe a língu a mura. O que se sabe é que os brancosimpediram os Mura de falarem sua língua materna, eles queriam que as crianças quenascessem não aprendessem mais a língua mura, e daí aconteceu odesaculturamento lingüístico. Depois da união com os brancos a língua se perdeu devez” (Prof. Erlande Santana Lira).“Os Mura foram obrigados a deixar de falar sua língua materna, não sabemos qual onosso tronco, deve ter algum vestígio de língua mura em algum lugar” (Prof. PauloMatos Santana).“Até 1750 os índios Mura p raticavam sua própria língua; atualmente sabemos queexiste variantes linguísticas de uma comunidade para outra assim como acontececom a sociedade envolvente” (Prof. Fabiano Oliveira dos Santos).“A língua mura já foi esquecida, só existiu no passado, a nossa língua atual é oportuguês” (Profa. Gercilene Pereira Corrêa).“Na minha comunidade algumas pessoas dizem que não conheceram a língua mura,só ouviram falar da “língua geral”; hoje em dia somente se fala o português, mesmodentro do português existe variações de palavras de comunidade para comunidade,os jovens não falam sobre a linguagem coloquial” (Profa. Rita Pereira Corrêa).“Penso que a língua mura já foi esquecida há muito tempo. Será que ainda existe alíngua mura em algum lugar? Tenho certez a que nas comunidades Mura só é faladaa língua portuguesa” (Profa. Nilbeth Rodrigues).“O que eu sei, é que os Mura atualmente não falam mais a sua língua materna. Em1553 ainda era falada a língua mura. Os Mura foram obrigados a não falar mais asua língua; a nossa língua atual é o português, mas diferente do português dePortugal, no qual muitas das vezes não existe concordância verbal” (Prof. WaldirBotelho Filgueira Filho).“Se existe ou não a língua mura nós não temos como comprovar. Em algunsmunicípios ainda existe Mura, será que houve mesmo o extermínio dessa língua?”(prof. Aldimar Pereira Rodrigues).“O nheengatu já foi esquecido pela maioria das comunidades, só tem uma pessoadentro da comunidade que moro que fala palavras soltas, e uma outra q ue agorareside em outro lugar que fala o português” (Profa. Cleuce Valente Vieira).“Após a invasão européia, os Mura dominavam absolutamente a sua língua. Nodecorrer dos tempos, os Mura foram integrando entre eles indígenas de outrasnações que traziam consigo suas línguas e suas culturas, e assim foi mudando alíngua Mura. Com a entrada de outras línguas foi se perdendo a língua mura. Emmeados do século XVII já se falava bem pouco a língua mura. No século XVIII coma pacificação do povo Mura, foi intr oduzido o nheengatu, mas alguns Mura aindafalavam a língua mura entre si. A partir daí os Mura continuaram falando a línguageral com uma lei criada pelo marquês de Pombal. Foi proibido falar o nheengatu noBrasil. Os Mura passaram a falar o português com o língua oficial, hoje o portuguêscontinua sendo a língua falada pelos Mura. Existe também alguns indígenas queainda falam palavras soltas de nheengatu quase na íntegra, mas é raro. Tambémexistem indígenas Mura que se dizem falar a gíria, que é a mistur a do nheengatucom outras línguas que surgiram entre eles. Não se sabe ao certo se ainda existe alíngua mura. Foi feita atualmente uma pesquisas que revelou a extinção total dalíngua mura, só sabemos que entre nós existe apenas o português presente, que éfalado por todos os Mura de Autazes e de outros municípios onde há a etnia Mura”(Prof. José Mário dos Santos Ferreira ).

Sobre esse mesmo conhecimento, a professora Rosa Dias Coelho, a única

representante da aldeia Paracuúba, apresentou o seguinte:

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“Na aldeia Paracuúba a nossa situação linguística é que todos falam a línguaportuguesa, como nas demais comunidades indígenas Mura. Somente duas pessoasfalam algumas palavras soltas de nheengatu; uma mora na aldeia e a outra numacomunidade não indígena, próxima da aldeia. Na minha aldeia consegui pesquisar asseguintes palavras: apukwitá , remo; kariwa, branco; ygara, canoa; uí, farinha;yawara, cachorro; tapiíra, anta; yawaraté pininga, onça pintada; di yurie chiuma, vábuscar água; chamior o painin, bater; aradite, catitu; kunhã-mukú, moça; miri,criança pequena; turuku, criança grande; tuí, sangue; aradia, queixada”. Profa. RosaDias Coelho, aldeia Paracuúba.

O terceiro grupo de professores, representantes da aldeia Jauari, apresentou o seguinte:

“Hoje na aldeia do Jauary a situação que se encontra, assim como em outras aldeias,é que não existe mais falantes da língua indígena mura, todos agora só falam oportuguês. Algumas pessoas falam palavras soltas de nheengatu, que eles chamamde gíria. Apesar de não termos muito conhecimento sobre a situação da línguaindígena mura, sabemos que foi por volta do século XVIII que os Mura tiveram umcontato muito próximo com a sociedade envolvente. Daí surgiu a língua nheengatu,deixando depois de falar o nheenagt u para falar a língua portuguesa a qual nósfalamos até hoje” (Professores Elizabeth Lima dos Santos e Francisco Santos).

O quarto grupo de professores apresentou o seguinte:

“Segundo as informações adquiridas através das reuniões, pesquisas, estudos,seminários e encontros de comunidades, descobrimos que em nossas aldeias nãoexiste mais a língua mura, mas sim o português em forma de sotaque, tais como:dispois, eu veio, pulomeio, prua, pupa, bulo, frecha, xisco, arco, teçado, marcarculado, tar coisa, sar, sor, marruer, cabicera, nacionar, butu, uvu, cachuru, numsei, buca, tucu, jugo, purcu, tombém, ontonte, treisontonte, cuxa, mueca, carça,brusa, centupé, fulha, prulargo, barbuleta, largata” (Professores Alderico VieiraNeto, Alcilei Vale Neto, Raimundo da Silva Caldas, Alricélio Martins dos Santos eLiene do Nascimento Pereira).

Sobre o conhecimento da situação linguística na aldeia Josefa, o quinto grupo de

professores apresentou o seguinte:

“Somente algumas pessoas , as mais idosas falam uma língua indígena conhecidacomo língua geral, mas não sabemos se entre elas alguém fala a língua mura. Alíngua usada na aldeia é a língua portuguesa, que as pessoas usam para se comunicarcom o povo da aldeia e com a sociedade envolvente , é a nossa língua materna agora.Existem muitas variantes coloquia is, como: peto, peito; ninada, nada; nium,nenhum; defronte, em frente; ilharga; ao lado; progunta, pergunta; pensal, pensar;canua, canoa; nogo, logo; brocar, comer, entre outras palavras. Aqui também estãoalgumas palavras na língua indígena, que é conhecida como língua geral, que elesfalam: matarisassá, bom-dia; kariwa, branco; kisé, terçado; tatá, fogo; uí, farinha;tatatinga, orvalho; kuité, cuia e outros que, no momento não lembramos”. Katurite,obrigado". (Professores Kleber de Almeida Prado, Hamilton Cardoso Batista e Elcyde Almeida Prado).

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Sobre o conhecimento da situação linguística da aldeia Murutinga, o sexto grupo de

professores apresentou o seguinte:

“Na aldeia Murutinga sabemos que existem al gumas pessoas idosas que falamlíngua indígena, mas não temos certeza se é a língua nheengatu ou se é uma outralíngua indígena. A situação da nossa aldeia é que não falamos mais o portuguêscorreto, existem palavras variantes usadas pelas pessoas: caiô, caiu; cinquointa,cinquenta; barde, balde; cardo, caldo; margulhou, mergulhou; prua, proua; argum,algum; remundo, Raimundo; manuer, Manuel; comperar, coperar; quarquer,qualquer. Algumas pessoas falam a língua nheengatu: malarisassá , como vai;kariwa, branco; ui, farinha; tapira, fogo; tata, anta; sapucaia, galinha; pira, peixe;tapera, casa; yawara, cachorro; messer, pimenta; y’y, água; cunhã-mukú, mulher;cunha, moça; yky, sal; saci, olho” (Professores Aglair Gomes da Silva, JucinéiaGomes do Carmo, Arlindo Ruzo Braga Filho e Amélia Braga Cabral ).

Sobre a aldeia Cuia, os professores do sétimo grupo apresentaram o seguinte:

“Na aldeia Cuia não existe nenhuma pessoa que fale mais a língua indígena mura,falam somente o português e o que chamamos de variante coloquial, exemplo:pressoa, pessoa; prefessor, professor; auvore, árvore; confronte, em frente; nailharga, ao lado; progunta, pergunta; do primeiro, de primeiro; rama, árvore; suqui,suco. Palavras mura só encontramos no livro de Aryon Rodrugues: ap ai, cabeça;ipue, língua; kuse, olho; tawi, nariz; wui, mão; aai, pé; be, sangue; situo, ovo; huese,sol; kaha-íai, lua; pe, água; ati, pedra; kabatxi, anta; txihĩ, canoa; apoe, ovelha”(professores Joab dos Santos Ferreira e Jerson dos Santos Ferreira ).

Os professores que constituíram o oitavo grupo apresentaram o seguinte:

“Existem hoje na comunidade algumas pessoas que ainda falam palavras isoladasem nheengatu: tapira, puxirum, tapirayawara, ui, cariua, taquirré, yuá, tata, cauim,tatuqui, tata-açu, cuiapitinga, toré, marupiara. Outras pessoas falam variantescoloquiais: tumbém, dadonde, pelo menho, chapêu, fugo, fulha, xucubé, jacuba,proguntou, frexa, cumem, arve, pranta, pêto, perparar, sarmurá, mingar, antão,tordia, cardo, épa, barde, pupa, prum ero, tarba, sarcô, arquê, sartar, sumano, sentrar(Professores Altino da Silva Barbosa, Mariomar Moreira de Souza, Emeson SáBarbosa, Natalino Barbosa da Silva, Orleans Marques dos Santos e José Roberto M.dos Santos).

Os professores da aldeia São Félix, que constituíram o nono grupo, apresentaram o

seguinte:

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“Variantes do português faladas pelas pessoas, exemplos: chance, chancha; folha,fulha; pergunta, progunta; fogo, fugu; outro dia, turdia; assim, ansim; anteontem,ontonte; flutuante, furtuante; quase, cage; biriba, guiriba; do lado, na ilharga;problema, poblema; também, tombém; salgado, sargado; salmorado, sarmurado.Mas existem também pessoas que falam palavras isoladas na língua geral, que elesdenominam de “giria”, por exemplo: sassuana , já vou, até logo; caturitêsissainema,repetir alguma coisa; matarissassá , como vai; nacuêma, bom dia; napituna, boatarde; uí, farinha; ii, água; igara, canoa; tapaiuna, preto; puxuíra, feio; kariwa,branco; cunha, menina; pira, peixe; suura, açúcar; iapucá, sentar; kuarukuana, tarde;tapuriçana, chamando; caimin, camisa; liaçuna, fazer relação sexual” (ProfessoresMatilde Nascimento Laranjeira, Janir Marques da Silva, Francisco Marques daSilva, Gilberto dos Santos Pereira, Alzenira Dias dos Santos, Raimunda R odriguesClemente, Emerson Pereira Mourão e Luzia Pacheco dos Santos ).

Frente aos resultados dessa riqueza lingüística , principalmente quanto as variantes

apresentadas sobre a língua portuguesa na região , foi possibilitada aos professores uma

discussão, com base em estudos da fonética e fonologia da língua portuguesa, mas também

com referência a língua nheengatu. Deu-se ênfase as diferentes formas de expressão destas

línguas, considerando seus contextos sociais e culturais, eliminando, assim, qualquer

entendimento que pudesse configurar os modos de expressão das comunidades a idéia de

preconceito lingüístico, tanto assim, que os esforços da discussão estiveram voltados para as

questões relativas sobre a compreensão de "linguagem, dialeto, gíria e gramática ".

Pode-se observar, entre outros aspectos, que, de modo geral, o conhecimento e

argumentos apresentados pelos professores quanto à situação linguística de seu povo consistiu

praticamente nos mesmos elementos: a existência de idosos falantes de palavras em

nheengatu, embora de forma fragmentada e arremedos de língua, a crença na existência da

língua mura e resquícios desta língua, com possibilidades de sua revitalização, conhecimento

histórico sobre o impedimento de falarem sua língua materna, reconhecendo, ainda, as

influências causadas pelas relações matrimoniais entre índios e brancos, o que contribuiu para

seu desaparecimento, mas, sobretudo, de que a língua portuguesa, agora, se constitui,

historicamente, sua língua materna.

Sobre as expectativas apontadas pelas aldeias Mura acerca da atuação do professor a

respeito das línguas, o primeiro grupo apresentou o seguinte:

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“Na minha comunidade os mais velhos falaram que queriam aprender a falar onheengatu para poder se comunicar com os outros parentes, mes mo porque se algumdia alguém perguntar se eles são índios, vão dizer assim , então fala a tua língua. (...)como é que nós vamos falar se nós não sabemos. Eles falaram também que é justoterem uma língua indígena como a maioria das etnias tem” (Profa. Cleuce ValenteVieira).“As pessoas idosas da comunidade falaram que nós temos que estudar uma línguaindígena, o que seria muito bom, já que nós esquecemos a nossa língua nativa . (...)eles também querem aprender, porque lembrariam o que eles haviam esquecidotempos atrás” (Profa. Rita Pereira Corrêa).“A comunidade, na sua maioria, acha que nós devemos aprender a falar o nheengatu,porque vamos ser mais reconhecidos como índio s. Também podemos repassar issopara nossos filhos e netos; citaram que alguns falam palavras soltas”. (Prof. AldimarPereira Rodrigues).“Se nós aprendêssemos a falar a língua geral, poderíamos até apresentar na sala deaula. A comunidade também quer aprender, os que sabem alguma coisa gostariamde ajudar nas aldeias no que fosse possí vel” (Prof. Paulo Matos Santana).“Os idosos se interessaram pelo estudo do nheengatu, até porque seria o momentode relembrarem palavras que eles já esqueceram. E que se nós professoresaprendêssemos a língua, poderíamos ensinar na sala de aula, embora nã o fosse alíngua mura, mas era uma língua indígena” (Prof. Erlande Santana Lira).“Os idosos falaram que o nheengatu seria um instrumento de defesa e decomunicação para todos nós, mas alguns aceitaram, outros não” (Prof. Jucevaldo dosSantos Yamuth).“Muitos dos mais idosos falaram que seria muito bom ter uma língua indígena paraser falada na comunidade e também seria um meio de comunicação entre si nasreuniões. Falaram que para ser índio tem que falar uma língua indígena. Mesmosabendo que não existe a língua mura, seria bom aprender o nheengatu na escola,com isso eles se sentiriam mito felizes sabendo que seus filhos futuramente teriamuma língua indígena para falar, apesar do contacto com a sociedade envolvente sermuito próxima e o português ser f alado por todos. O nheengatu serviria até comodefesa” (Prof. Waldir Botelho Filgueira Filho).

O segundo grupo de professores apresentou o seguinte:

“Em algumas reuniões realizadas na aldeia pudemos observar que as pessoas falammuitas variantes coloquiais. Houve um grande interesse por parte dos comunitáriosem aprender a língua nheengatu se for ensinada na escola. Alguns falaram que émuito importante para o povo Mura aprender a falar uma língua indígena, para poderse identificar, porque quando a pes soa se identifica como indígena, os outros povospedem logo que falem a língua e eles se envergonham por não saberem falar.Algumas variantes usadas: épica, alve, fariña, antão, al comunidade, turdia, ontonte,canua, progunta, ilharga, de primeiro, disque, rama, cardo e outras. Existem tambémhábitos linguísticos, expressões populares, brincadeiras, códigos, citações, gestos ecomparações” (Profa. Rosa Dias Coelho, aldeia Paracuúba ).

O terceiro grupo apresentou o seguinte:

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“Na aldeia Jauary, numa reunião em que se falou a respeito do currículo escolar e dalíngua nheengatu, houve um grande interesse por parte dos comunitários presentessobre o estudo dessa língua. Chegaram a falar que antigamente na aldeia do Limãotodos falavam “gíria”, como é conhecida a língua geral. Falaram que hoje em diaeles não falam mais porque serve de mangoça e muitos já morreram. Quem aindafala é minha avó, Luíza, que tem 98 anos e mora em Manaus, dona Agda, que nãolembro a idade e o seu Flávio de 56 anos. Outros comunit ários falaram que se forimplantada na escola uma língua indígena será muito bom porque só assim seremosreconhecidos e respeitados como índios. A aldeia Jauary tem suas variantes como,alve, canua, suki, pupa, Brisil, procuntar, prua, fugo e outras varian tes. Eles falaramque na língua mura é chamado de Jauari, que não é Caiué , Caioé, são os brancos quefalam” (Profa.. Elizabeth Lima dos Santos e Prof. Francisco Santos).

O quarto grupo de professores apresentou:

“Através das reuniões que tivemos com os comunitários, eles apontaram onheengatu como opção de língua indígena para ser estudada pelos professoresindígenas Mura em formação. E se mostraram bastante interessados em estudar paraaprender e falar na comunidade” (Professores Alderico Vieira Neto, Alcilei ValeNeto, Raimundo da Silva Caldas, Alricélio Martins dos Santos e Liene doNascimento Pereira).

Sobre essa questão o quinto grupo apresentou:

“Que os professores aprendam e ensinem a língua indígena para o povo da aldeia”(professores Kleber de Almeida Prado, Hamílton Cardoso Batista e Elcy de AlmeidaPrado).

Sexto grupo:

“Na aldeia Murutinga os comunitários ap óiam o estudo de uma língua indígena. Elesdizem que é bom estudar a língua nheengatu no curso e depois ensinar para osalunos na escola. Mas eles têm dúvidas: Será que os professores vão mesmoaprender a falar essa língua , eles dizem?” (Professores Aglair Gomes da Silva,Jucinéia Gomes do Carmo, Arlindo Ruzo Braga Filho e Amélia Braga Cabral ).

Sétimo grupo:

“A Comunidade aponta o seguinte: 40% das pessoas que participaram da reuniãoconcordaram com a idéia de ser ensinada uma língua indígena na escola . Falaramque até viriam para aprender também na escola porque nossos antepassados falavamo nheengatu” (Prof. Joab dos Santos Ferreira e Jerson dos Santos Ferreira, da aldeiaCuia).

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Os professores da aldeia Trincheira, o itavo grupo, apresentou o seguinte:

“Primeiramente os professores devem estudar para poder ensinar os alunos e osadultos. Mas existe uma preocupação por parte de alguns comunitários: será queexiste um curso para ensinar uma língua indígena? Será se isso iria funcionar nosdias de hoje? Se isso não funcionar o português seria a nossa primeira língua”(Professores Altino da Silva Barbosa, Mariomar Moreira de Souza, Emeson SáBarbosa, Natalino Barbosa da Silva, Orleans Marques dos Santos e José Roberto M.dos Santos).

Os professores da aldeia São Félix, n ono grupo, apresentou o seguinte:

“Segundo reunião realizada na aldeia, os comunitários falaram que seria muit o bomque voltássemos de novo a falar a língua geral , porque sé quem sabe falar algumacoisa são pessoas idosas e se essas pessoas morrerem não vão ensinar pra ninguém,morrerá também essa língua. E para que ela não desaparecesse de vez, seria muitobom que fosse ensinada para outras pessoas. Poderia servir de defesa para nós contraos brancos e para poder nos identificar mais ainda como indígenas que somos. Sefosse ensinada de novo, até os mais velhos iriam estudar para falar em casa, na roçano ajuri, na pescaria, em qualquer lugar” (Professores: Matilde NascimentoLaranjeira, Janir Marques da Silva, Francisco Marques da Silva, Gilberto dos SantosPereira, Alzenira Dias dos Santos, Raimunda Rodrigues Clemente, Emerson PereiraMourão e Luiza Pacheco dos Santos).

De modo geral, um aspecto interessante referente à segunda questão, conforme

podemos observar, foi a grande expectativa demonstrada pelos professores quanto à utilização

particular da língua geral ou nheengatu em sua prática, atribuindo a esta, um importante

instrumento de defesa, de reafirmação e de identidade frente às sociedades indígenas e não -

indígenas. Segundo a concepção anteriormente elaborada, era preciso falar uma língua

indígena para serem aceitos e considerados índios por estas sociedades. Para ser considerada

aldeia indígena o povo tinha que falar uma língua indígena.

Entre os muitos argumentos apresentados, destacam-se, também, o desejo e

reivindicação dos idosos em falarem o nheengatu para relembrarem o já haviam esquecido,

bem como o desejo de alguns professores em ensinar seus alunos e a comunidade a falar esta

língua para poder se apresentar como indígenas e, dessa forma, ser respeitados e

reconhecidos.

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É importante destacar, no entanto, os questionamentos levantados por alguns

professores quanto à funcionalidade do uso do nheengatu nos dias atuais, fosse em suas

relações sociais internas, fosse externas, qual seria de fato sua importância para a manutenção

e necessidade de vida do povo da aldeia.

De modo geral, com base nos depoimentos expressos e questionamentos, provocou-se

um amplo processo de discussão e reflexão acerca da realidade sociocultural e lingüística do

povo Mura no município de Autazes, bem como dos processos de manutenção e uso da língua

nheengatu, mas também da língua portuguesa na escola e comunidade.

Após os processos profícuos de discussões, f icou definido, entretanto, que a língua

nheengatu fosse tratada no decorrer da formação dos professores sem a idéia de adoção, mas

que seu estudo decorresse do interesse demon strado pelos próprios professores, juntamente

com suas comunidades, enquanto projeto de recuperação da memória histórica, de modo que

pudessem agrupá-la para as lutas de futuro, ou até mesmo como instrumento de identificação

do grupo.

A análise das questões lingüísticas levantadas também caminhou para o fato de que

esta língua não ficasse restrita a um mero conhecimento da língua pela língua, mas, sobretudo,

que os professores desenvolvessem um estudo sistemático sobre a mesma, possibilitando seu

desenvolvimento e pesquisa, enquanto projeto de memória social e histórica e, também, sob a

ótica da informação.

A partir dessa perspectiva, os professores se responsabilizaram em propor um

programa específico de estudo para essa língua ainda durante a execução d o Programa, não

para que fosse implantada nas comunidades, mas para que pudesse aprender, a princípio,

aspectos dessa língua, perceber sua funcionalidade, satisfazer o interesse demonstrado pelas

crianças, adultos e velhos da comunidade, de lembrarem de co isas que ainda existem sobre

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ela, e o que dela existe dentro do português. Deveriam, portanto, propor um projeto de ensino

descentralizado, diferenciado de comunidade para comunidade, de escola para escola.

Com a inclusão da disciplina Língua Nheengatu no currículo do Programa de

formação, os professores puderam se dedicar ao estudo desta língua como parte integrada à

realização da pesquisa, sem a perspectiva imediata de introdução desta língua nas escolas,

embora se saiba que a escola, com todas suas limi tações, é um elemento que pode incentivar e

favorecer a manutenção ou revitalização de uma língua indígena.

A língua nheengatu não foi tratada como língua de instrução no currículo dos

professores Mura, mas como segunda língua , tendo em vista que língua de instrução é a

aquela utilizada na sala de aula para introduzir conceitos, dar esclarecimentos e explicações,

por onde se trabalha os conhecimentos, por onde nos alfabetizamos e pensamos.

É importante registrar, que, enquanto ensino de segunda língua, f oi possibilitado aos

professores em formação o seu domínio oral e escrito, de modo que contribuísse para que seus

falantes desenvolvessem atitudes positivas em relação a ela, garantindo os benefícios políticos

e à melhoria da auto-imagem que eles traziam sobre si mesmos. Da mesma forma que

pudessem usufruir dos direitos lingüísticos lhes assegurados legalmente. Para isso foi

utilizada uma metodologia específica de ensino de segunda língua.

É importante ressaltar que no Programa de Formação dos Professores Mura a

metodologia de ensino de segunda língua foi estabelecida por meio da realização de diálogos,

dramatizações de peças teatrais, aprendizagem da leitura e escrita de números,

desenvolvimento de exercícios de leituras, criação de situações de comunica ções diversas,

bem como a utilização de gramáticas, fitas de áudio e vídeo, literaturas, etc.

Durante o processo de discussão sobre o uso dessa língua, a assessoria lingüística

utilizou-se de ilustrações a partir da realidade sociolingüística vivida po r diversos povos no

Brasil e no mundo, entre eles, a língua chinesa, língua tonal que apresenta cinco sons

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diferentes. Fez também referência à língua do povo Pirahã76 - língua pirahã - língua tonal e

variante da língua mura.

Segundo o sociolingüísta Gilvan Müller de Oliveira, as mulheres pirahã, por exemplo,

são monolíngües nesta língua. Quando os homens vão caçar eles assoviam entre si para se

comunicar, por ser exatamente uma língua tonal. Se o pirahã é uma língua tonal,

provavelmente a língua mura também era. A língua mura e pirahã pertence riam à mesma

família lingüística.

Segundo, Gonçalves (1993, p. 17),

[...] Nimuendajú esteve entre os Pirahã no começo do século XX, ao subir os riosMarmelos e Maici com a expedição que iria pacificar os Parintintin. Em seurelatório sobre os grupos indígenas do rio Madeira refere -se aos Pirahã como sendoremanescentes da então já aculturada "Nação Mura". A partir da comparação depalavras coletadas junto aos Pirahã com outras obtidas entre os Mura, concluiutratar-se de uma única língua, logo, de um mesmo grupo indígena. Disse ainda queos dialetos pirahã e mura de Manicoré eram mutuamente inteligíveis salvo pequenasvariações dialetais. Os trabalhos de Oliveira (1977, 1978), também apontam aidentidade dos pirahã aos Mura.

Afirma ainda Gonçalves (1993),

[...] a vinculação dos Pirahã aos Mura apóia -se em bases lingüísticas (Cf. Everett,1979), físicas e culturais. Consultando o material iconográfico Mura (Cf. RodriguezFerreira, 1971) percebe-se uma notável semelhança entre os adornos de cabeça,arcos e flechas Mura e Pirahã. Da mesma forma, os relatos sobre a cultura Mura noslembram, de imediato, os Pirahã (p. 17).

A língua pirahã tem sido objeto de estudos científicos e estes têm progredido

consideravelmente nos últimos anos. Como as línguas da família Nambikwára, as da família

Mura também são tonais. No entanto, s egundo Rodrigues (1986, p. 78), para as palavras da

76 Segundo Gonçalves, as primeiras referências aos Pirahã registradas por Barboza Rodrigues (1875, 1892) eOrton (1870), os apontam como um subgrupo Mura. Nos documentos e trabalhos subseqüentes, esta relaçãodos Pirahã à tribo Mura é sempre assinalada (id. ibid., p. 17).

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língua Mura, registradas há cerca de sessenta anos por Curt Nimuendajú 77, não temos esse

tipo de informação.

Diante do exposto, nos chama Gonçalves (1993, p. 18), que, no momento, há apenas

indícios de que os Pirahã seriam um subgrupo, isto é, uma subdivisão da sociedade Mura ou

mesmo remanescentes Mura. Os adeptos desta última hipótese supõem que, no pas sado,

devido a conflitos internos, o grupo cindiu -se dando ensejo a formação de um novo grupo.

Esta hipótese pode ser encontrada tanto em Oliveira quanto em Nimuendajú .

Ficou definido na terceira etapa letiva de formação que, na etapa seguinte, quarta etapa

letiva do Programa, os professores que falassem e possuíssem conhecimentos sobre a língua

nheengatu78, apresentassem materiais e informações sobre a história dessa língua.

O formador que fosse ministrar o estudo desta língua deveria procurar manter contato

com dona Nila, antiga moradora da aldeia Murutinga, e falante de nheengatu, para que os

professores pudessem observar o estabelecimento da comunicação e compreensão entre eles,

por sugestão do professor Jucivaldo dos Santos Yamuth.

Suscitou-se ainda no contexto dessa discussão a indicação de possíveis professores79

que pudessem ministrar as aulas de nheengatu aos professores Mura a partir da etapa seguinte.

Tão logo contatada e confirmada a presença d o professor que fosse ministrar as aulas

de nheengatu, por exigência dos próprios professores Mura, este deveria desenvolver suas

atividades no Programa de Formação acompanhado pela formadora80 responsável pelo

encaminhamento das discussões sobre a formulação de política lingüística no Programa , por

meio da Área de Conhecimento Linguagens, Códigos e suas Tecnologias . A participação

desta docente foi impossibilitada pelo Programa, em virtude de questões financeiras .

77 As tribos do alto Madeira , in: Journal de la Societé des américanistes de Paris, tomo XVII, 1925, pp. 137-172.

78 Entre os citados, destacaram-se os professores Altino da Silva Barbosa, Francisco Marques da Silva, Paul oMatos Santana, Raimundo da Silva Caldas e Hamílton Cardoso Batista .

79 Entre as indicações, foram citados os professores Jean Carlos, da Universidade Federal do Amazonas, CelinaBaré, da COIAB, e do professor baré Florêncio Cordeiro da Silva, de São Gabr iel da Cachoeira.

80 Professora Suely da Silva Rocha.

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Os professores solicitaram, ainda, que o professor de nheengatu possibilitasse o uso de

bastante material para leitura, principalmente sobre as histórias sobre a língua nheengatu e

sobre os falantes desta língua, procurasse também criar situações de comunicação entre os

professores, através de pequenos diálogos, frases e expressões, realizar ex ercícios escritos

(tais como, seu pai, teu pai, pai dele, nosso pai, por exemplo), utilizar músicas, vídeos, fitas de

áudio, providenciar dicionários, gramática e outros materiais disponíveis. Ficou acordado que

todo este material deveria ser providenciado e organizado pela SEDUC para serem utilizados

na quarta etapa letiva do Programa.

O projeto de ensino da língua nheengatu nas escolas indígenas Mura deveria ser

discutido a partir das próximas etapas do Programa, após terem vivenciado as experiências

com o trabalho do professor de nheengatu.

FOTO 16 - Florêncio Cordeiro da Silva, professor Baré de São Gabriel da Cachoeira, quando ministrava aulade nheengatu aos professores Mura. / V Etapa Letiva Intensiva / Autazes -Am / janeiro, 2001 / Foto:Suely Rocha.

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FOTO 17 - O sociolingüísta, Gilvan Müller de Oliveira, quando encaminhava as discussões sobre a línguanheengatu durante a formação dos professores Mura / Autazes -Am / 2001, Foto: Suely Rocha.

4.7. Reconstruindo a Identidade do Professor

Um dos aspectos importantes e também significativos que marcaram o processo de

construção do Projeto pedagógico das escolas indígenas Mura foi, sem dúvida, o de

desenvolvimento de uma autoconsciência cultural e consciência étnica, que resultaram em

processos de tomadas de decisão dos professores quanto à mudança de postura e forma de

atuação docente em seus contextos escolares.

Atribuindo a si próprios, a responsabilidade pela condução d e processos educativos e

viabilização de seus projetos de futu ro, aos quais se incluíam ações, lutas e movimentos pela

reafirmação de sua identidade étnica e recuperação de sua memória histórica, a atuação

docente se configurou no mais alto grau de realização e concretização desses movimentos, ao

conceber o espaço físico da escola, não mais como o único lugar de aprendizado, mas espaço

que possibilitaria o estabelecimento de novas relações, participação e articulações diversas.

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Nesse sentido, a grande preocupação e desafio se voltavam para a reconstrução da

identidade dos professores, de modo que lhes permitisse assumir e protagonizar em suas

comunidades, o desenvolvimento de princípios, condutas, processo s e dinâmica social diante

de um novo quadro educacional que emergia.

Tais fatos provocaram profundas reflexões ace rca de seus próprios valores, sob uma

perspectiva mais humana desta abordagem, mas também de seus contra valores, e todos

aqueles presentes em suas comunidades - mazelas e heranças sociais negativas - em

conseqüência do contato e frutos de sua trajetória histórica.

Tendo como referência os valores éticos indígenas, e os incorporados social e

culturalmente por meio do estabelecimento de suas intensivas relações, os professores Mura

passaram por um processo contínuo e significativo de discussão sobre a valori zação da vida

em cultura e sociedade, enfatizando o desenvolvimento e aprimoramento de valores que

pudessem ser refletidos positivamente na comunidade, principalmente por meio da imagem

do professor, e refletido a partir do desenvolvimento de seu currículo escolar, ora em

construção.

Por currículo escolar, os professores Mura já haviam desenvolvido a compreensão de

que seu funcionamento não se limitaria apenas à obrigatoriedade de apropriação e reprodução

de conhecimentos ou de cumprimento de atividades c urriculares no âmbito exclusivo do

ambiente físico escolar, mas todas as ações, práticas e processos educativos ocorridos dentro e

fora dele, em que professores e alunos atuariam como sujeitos de sua própria formação e

desenvolvimento, refletindo assim, a concepção e os propósitos essenciais do Projeto de

educação pretendido.

Nesse sentido, a assunção e manutenção de uma nova conduta e a preservação de

valores éticos e morais, seria condição a priori para uma boa atuação docente e,

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consequentemente positiva para o desenvolvimento do Projeto de escola e de educação frente

às comunidades em que atuavam estes professores.

A complexidade destas questões fez surgir em conflitos e tensões internas no próprio

grupo, quando das questões levantadas sobre os casos de alcoolismo entre os próprios

professores, fatores sociais estes, considerados inaceitáveis e impróprios para o

desenvolvimento dos processos de recuperação, reconhecimento e valorização da cultura e,

sobretudo, da reafirmação da identid ade étnica do povo, tendo em vista o estigma que tiveram

que enfrentar dada à imagem criada desde os processos de ocupação da Amazônia.

Na busca pela construção de uma nova postura ou identidade social, em meio às

tensões, conflitos e contradições, os professores Mura mantiveram todo o foco de suas

discussões voltadas para a definição de uma nova forma de atuação e auto -dentificação do

professor, tendo como referência a necessidade de assumirem postura ética e moral (dentro e

fora da comunidade) condizente com os propósitos políticos e culturais desejados .

As condições e valores definidos pelos professores para assunção de uma consciência

de si, de mundo e de sociedade, foram sendo construídos ao longo de sua formação, de forma

crítica e coletiva.

Decidiram que, diante do compromisso político assumido junto à escola, cultura e

comunidade, o professor Mura precisaria "ter formação, mais conhecimento de sua cultura, da

sociedade envolvente e de outras sociedades, experiência do trabalho escolar, ser um

professor pesquisador, ter comprometimento pelo trabalho, ser responsável, participativo,

criativo, ter um bom caráter, ser compreensivo, delicado, equilibrado, habilidoso, íntegro,

agente transformador, solidário e crítico ."81

81 Relatório Político-Pedagógico do Programa de Formação de Professores Mura, Ensino fundamental, Autazes -AM, 1999-2001, p. 82.

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Diante dessa nova condição, estava presente na concepção subjetiva dos professores a

preocupação pela recuperação e desenvolvimento dos valores éticos e morais que lhes eram

etnicamente próprios, levando em conta, também, em suas discussões e análises, as

influências externas sofridas pelo grupo, principalmente quanto às mudanças de

comportamentos assumidas pelas crianças, jovens, mas também pelos adultos nas aldeias.

Os valores e princípios especificamente indígenas discutidos diziam respeito,

sobretudo, valor ao sagrado, às tradições, às crenças, aos mais velhos, entre outras.

Os professores objetivavam mudanças e comportamentos que refletissem novas

formas de agir, ser e de se comportar perante o outro e a si próprio.

O modo como iriam se tornar conscientes ou provocar as mudan ças necessárias à

construção de seu Projeto de escola, de educação e de sociedade, por meio do convívio social,

práticas culturais e cotidianas, mas que, conscientemente, somente no futuro, poderiam

responder.

Um outro aspecto importante, igualmente significativo e que merece ser mencionado

nesta experiência, foi a definição do monitor indígena.

No sentido de assumir a interlocução entre os professores em formação, formadores do

Programa e técnicos da Secretaria Municipal de Educação, bem como no acompanhamento

das experiências e práticas pedagógicas desenvolvidas pelos professores em suas salas de

aula, bem como no apoio aos vários processos decorrentes da formação, sugeriu-se aos

professores que indicassem, entre si, aquele que pudesse exercer a função de monitor

indígena, conforme orienta o Programa.

Técnica e pedagogicamente, teve -se que explicar aos professores que ao monitor

indígena caberia a responsabilidade de participar assiduamente das etapas letivas intensivas,

cumprir rigorosamente o cronograma de visitas às escolas durante o estágio supervisionado,

elaborar relatórios sobre o desempenho didático -pedagógico dos professores em formação,

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acompanhar e orientar os professores no desenvolvimento de suas atividades durante as etapas

letivas intensivas e intermediárias, avaliar as dificuldades percebidas, observar e orientar as

necessidades e interesses do professores, informando ao coordenador do estágio, auxiliar na

solução de problemas que surgirem nas escolas levando em consideração a realida de

específica de cada comunidade, bem como apresentar interesse por formação continuada.

Sugeriu-se, ainda, a construção de alguns critérios básicos que pudessem auxiliá -los na

definição e apresentação de um nome: que fosse um membro participativo do Pr ograma, que

inspirasse a confiança de todos, demonstrasse respeito e valorização pela cultura, possuísse o

mínimo necessário de experiências pedagógicas, que pudesse articula r em defesa dos projetos

de vida e de futuro de suas comunidades, interesses e nec essidades das escolas e dos

professores junto às instituições que desenvolvem programas e projetos destinados aos povos

indígenas, principalmente no que diz respeito aos programas de educação.

Com base nestas considerações , mas também nas experiências adquiridas durante os

processos de discussão e construção coletiva da identidade do professor, também decidiram,

que ao longo do Programa, iriam construir a identidade do monitor indígena , e, igualmente a

dos professores, atribuir suas responsabilidades.

O monitor indígena, conforme orienta o Programa, só passaria a ter uma participação

mais efetiva no processo de acompanhamento da formação e atuação dos professores, ao final

das três primeiras etapas letivas intermediárias do Ensino Médio, ou seja, da VI, VII e VIII

etapas letivas, quando ocorriam os estágios supervisionados dos professores. O que não

impedia que ações nesse sentido fossem realizadas desde as primeiras etapas d a formação, e

se pudesse contar com apoio técnico e administrativo da SEMEC.

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FOTO 18 - Professor Mura em atividade curricular / Autazes -AM / janeiro, 2000 / Foto: Neide Silva.

Em assim sendo, voltados para a atuação e função do monitor indígena,

principalmente no que se refere ao conhecimento da realidade escolar em que teria que

conviver e atuar, os professores Mura, tomados por grande entusiasmo e emoção, também se

envolveram em processos de grandes discussões, percorrendo os mesmo caminhos e

dinâmicas quando da reconstrução da identidade do professor.

Confrontaram igualmente os mesmos valores éticos e culturais que antes, isto é,

analisando e refletindo formas de conduta, comportamentos, personalidade, mas, tendo agora

como fundamental referência, a postura que o monitor indígena deveria assumir junto aos

parentes,82 mesmo que estivesse política e administrativamente atuando e a serviço da

82 Modo como se referem aos outros membros de seu grupo.

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SEMEC. Este tipo de serviço, segundo os professores, quando realizados por professores ou

técnicos da SEMEC, assumia uma postura policialesca e repressora quando de suas visitas às

escolas e acompanhamento ao trabalho do professor. Pretendiam agora, que se configurasse a

partir de então, em um trabalho de confiança mútua, respeito e credibilidade entre eles

próprios.

Nesse sentido, decidiram os professores que o monitor indígena não aguardaria tanto

tempo para atuar, mas que as experiências e metodologias pedagógicas em construção fossem

acompanhadas desde os momentos iniciais da formação, de modo observar, analisar e apoiar

as mudanças de concepções e práticas de educação escolar q ue vinham ocorrendo nas escolas

das comunidades.

Com base nesses movimentos, processos e dinâmicas dessa construção, os professores

conseguiram definir e apresentar a identidade do monitor indígena Mura , a saber: "ser índio

Mura e professor titular, ter conhecimento da própria cultura, possuir ética indígena e

profissional, ser dinâmico, ser tranqüilo, respeitoso e atencioso, ser popular, ser participativo,

ser comunicativo e saber dialogar, conhecer a realidade das escolas e da comunidade que vai

trabalhar, ter bom relacionamento com os professores e com a comunidade, ser interessado

pelo seu trabalho, ser criativo, estar disponível para atendimento aos professores e

comunidade, ser crítico e solidário ."83

É importante registrar, que os elementos const itutivos dessa identidade, seriam, a

partir do momento de sua definição, observados em cada professor, a partir de sua atuação no

contexto do Curso, como também de seu trabalho docente .

Por seu envolvimento, compromisso e habilidades demonstradas durante o

desenvolvimento das atividades curriculares, bem como de seu empenho e atuação na

resolução de problemas durante as atividades realizadas fora de sala de aula do Curso de

83 Relatório Político-Pedagógico do Programa de Formação de Professores Mura, Ensino fundamental, Autazes -AM, 1999-2001, p. 83.

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formação, o professor José Mário dos Santos Ferreira foi indicado para exer cer a função de

monitor indígena do Programa de Formação de Professores Mura na segunda etapa letiva

intensiva do Programa84. A ele foi atribuída a responsabilidade de acompanhar e avaliar as

experiências em construção, como também apoiar o trabalho dos professores Mura em suas

respectivas escolas.

Durante os serviços de monitoria indígena85, este professor conseguiu com o apoio da

Secretaria Municipal de Educação, realizar quatro viagens de acompanhamento às escolas e

ao trabalho dos professores, empreendi das no período de 2000 a 2002, o que muito contribuiu

para o desenvolvimento da prática pedagógica e melhoria das relações interpessoais e

políticas, até então conflituosas, tanto entre os próprios professores, quanto entre estes e

algumas lideranças indígenas que não aceitavam qualquer tipo de mudança nas escolas da

aldeia.

Com base na questão acima mencionada, é importante registrar, que os movimentos e

mudanças geradas pelos professores Mura em formação em suas aldeias provocaram impactos

surpreendentes quanto às formas de relações estabelecidas entre a população local e os

diferentes tipos de lideranças existentes.

De um modo geral as lideranças mais tradicionais aderiram facilmente aos processos

gerados, no entanto, algumas lideranças, sob diferentes formas de representação, mas também

por força das relações de controle e de poder sobre os membros de suas aldeias, reagiram

84 Neste ano de 1999 o professor José Mário dos Santos Ferreira também exercia a função de coordenador daOrganização dos Professores Indígenas Mur a, OPIM, no município de Autazes.

85 É importante mencionar também, a contribuição valorosa e apoio ao processo de construção da EscolaIndígena Mura pelos professores Alcilei Vale Neto e Josemar Ferreira dos Santos, que neste período atuaramcomo coordenadores pedagógicos do Projeto Mura -Peara, Programa de Formação dos Professores Mura noMunicípio de Autazes. Desde o ano de 2003, o professor Alcilei Vale Neto vem exercendo a função decoordenador pedagógico do Projeto Mura -Peara, criando novas estratégias de ação e possibilitando novasarticulações sociais e políticas mais amplas junto às instituições de ensino e pesquisa, em apoio aodesenvolvimento das escolas nas aldeias e possibilidades de formação continuada dos professores.

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contrariamente e de forma repressiva aos professores, o que dificultou, a princípio, o

desenvolvimento dessa construção.

FOTO 19 - Professores Mura definindo a identidade do professor / Autazes -AM / Ano: 2001 / Foto: Neide Silva.

4.8. Acompanhando e Cuidando da Experiência

Como vimos nas páginas precedentes deste documento, a realização do Mapeamento

da Realidade Sociolingüística, Cultural e Antropológica do Povo Mura no município de

Autazes, além de dados culturais e lingüísticos, também revelara informações sobre a situação

educacional e processo escolar nas aldeias Mura da região. Todo ritual pedagógico ,86

conforme se pode observar, baseava-se, exclusivamente na cultura escolar tradicional,

reproduzindo princípios, valores e padrões de comportamentos não-índígenas.

86 Chamamos aqui de ritual pedagógico todos os procedimentos ou atividades rotineiras praticados pelosprofessores da cultura escolar tradicional em suas salas de aula, compreendendo desde o modo de chamadanumérica dos alunos à utilização de diferentes aparatos pedagógicos, for ma de exposição e exploração dasaulas, postura do professor, entre outras práticas.

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Vale a pena lembrar, que parte dos professores que conduzia e exercia essa prática

pedagógica, saiu muito cedo de sua aldeia e adquiriu experiências de vida citadina , e que

ainda criança, alguns vieram morar com parentes na sede do município , em municípios

vizinhos e, outros, na capital do estado. Alguns destes professores vieram de lugares bem

distantes, casaram, fixaram residência nas aldeias da região e assumiram a função docente. De

modo geral, mantiveram-se afastados por muito tampo dos hábitos, costumes e tradições de

suas comunidades.

Houve ainda aqueles que foram trabalhar em empresas do D istrito Industrial de

Manaus e em propriedades particulares para poder se manter na cidade. Freqüentaram

estabelecimentos de ensino públicos municipais e estaduais, passando por processos de

escolarização que não respeitavam as diversidades individuais e n em culturais entre os alunos.

Com base nesta escolarização e experiências adquiridas, alguns retornaram para suas aldeias e

assumiram salas de aula por solicitação das famílias e das próprias lideranças locais.

As práticas pedagógicas destes professores ba seavam-se exclusivamente na

reprodução de conteúdos universais, desenvolvendo processos educativos que valorizavam

cada vez mais os modos de viver e pensar da cultura ocidental, gerando, ainda, expectativas

quanto às melhorias de vida e ascensão social a partir da apropriação do conhecimento escolar

e oportunidade de emprego na cidade. As famílias estavam conscientes de que esta esc ola era

a melhor para elas e para a comunidade. Por outro lado os professores reproduziam o que de

certa forma assimilaram das escolas dos brancos. Na realidade a escola funcionava como uma

ponte de passagem da aldeia para a cidade. Certamente, com essa visão, esta escola, mesmo

inserida num contexto sociocultural específico, contribuía ainda mais e de forma sistemática

para a desvalorização e descaracterização da cultura Mura.

Necessidade gerada a partir do contato, estas escolas, funcionando como instrumento

ideológico e de dominação, contribuíam para que os professores assumissem uma postura

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cada vez mais autoritária e repressiva, tanto no que se refere às exigências do cumprimento

curricular, quanto no trato com os alunos, e com a própria população. Em determinadas

comunidades a autoridade do professor era legitimada com a permissão dos próprios pais ou

lideranças, que atribuíam a este todo poder e responsabilidade pela formação de seus filhos,

podendo, inclusive, puni-los quando se tratasse de faltas gr aves cometidas e, que somente

dessa forma, poderiam se tornar bons homens e ter sucesso na vida.

Do ponto de vista dialético dessas contradições, compreensíveis a partir da análise do

processo histórico de implantação de escolas em terras indígenas e da própria história de vida

destes professores, esta situação se tornou um grande desafio para os sujeitos envolvidos na

formação, tendo em vista a quebra de paradigmas e as mudanças às quais teriam que operar na

busca de seus objetivos educacionais.

Esta situação, a princípio, assustadora e temerosa, gerou, entre os sujeitos então

envolvidos na formação, e por certo tempo, profundas inquietações quanto às mudanças

desejadas. Parte dos professores demonstrou insegurança e temorosidade na condução de um

novo processo educacional que lhes exigia ações conscientes e responsáveis pela construção

de uma nova escola, agora com características específicas e diferenciadas. A prática

pedagógica existente, de pleno domínio dos professores, ainda era a mais concebida e

aceitável pela maioria dos professores 87. "Era o jeito mais fácil de ensinar, bastava seguir o

que estava escrito nos livros", como eles próprios afirmavam.

87 Para exemplificar este fato, durante o processo de discussão, análise e reflexão acerca das práticaspedagógicas, metodologias e organização do trabalho escolar nas es colas indígenas Mura, o professorAldimar Pereira Rodrigues exaltou -se profundamente. Não aceitava em hipótese alguma o fato de repensarou ter que construir uma nova forma de planejamento escolar, um modo próprio e específico de ensinar, umavez que já existiam modelos prontos de Planos de Curso e de Aula, os quais deveriam ser ensinados aosprofessores. Exigia a todo custo que fossem trabalhados e apresentados no Curso de formação estes modelos,já prontos, de modo que pudessem continuar utilizando -os em suas salas de aula. Até porque o serviço desupervisão escolar da Secretaria Municipal de Educação estaria exigindo a apresentação destes planos, e até opresente momento nada de concreto havia sido apresentado do Curso. Levados a pensar e a refletir cada vezmais a função e praticidade destes tipos de plano para suas escolas, o professor Aldimar continuou a exaltar -se por não aceitar os argumentos técnicos e pedagógicos baseados nos princípios e fundamentos da educaçãoescolar indígena. Comportamentos como estes foram foi pouco a pouco se modificando à medida queprocessos de discussão e reflexão acerca da construção e objetivo das escolas Mura iam sendo suscitados.

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Diante de tais considerações e, em atenção ao preparo e tranqüilidade dos professores

ao desenvolvimento de uma prática escolar que teriam por interesse próprio construir por toda

sua formação, possibilitou-se nos momentos iniciais do Programa, a construção de

instrumentos e condições necessárias à sua compreensão e capacidades para o domínio da

mesma.

A partir dos princípios político -pedagógicos orientados pelo Programa, novos

mecanismos e procedimentos de ação foram criados no sentido de acompanhar e avaliar o

desenvolvimento destas práticas, e as possibilidades de mudanças que elas poderia m gerar.

Novas concepções e consciências foram sendo construídas pelos professores no

contexto escolar e comunitário, principalmente neste último, onde adquiriram novas

experiências ao lidar com os mais diferentes problemas e questões relativas à construçã o do

Projeto de educação escolar que pretendiam desenvolver.

Em assim sendo, com o desenvolvimento e execução das etapas letivas intensivas e

intermediárias, o acompanhamento às práticas pedagógicas desenvolvidas pelos professores,

fosse diretamente ao interior do Curso de formação, fosse às atividades realizadas na escola

da aldeia e junto à comunidade, se deu no sentido de exercer um controle sobre as antigas

práticas escolares e a fragmentação do processo de apropriação e construção do saber, bem

como a construção e desenvolvimento de novas metodologias que permitissem e

assegurassem a especificidade do modelo de educação intercultural Mura a ser construído.

Toda trajetória e experiência dos professores passaram a ser registradas diariamente

focalizando objetivamente a realidade de cada professor, tendo o cuidado de fornecer dados

sucintos a respeito de sua história pessoal e de seu desempenho.

Este processo apresentou resultados os mais adversos possíveis, mas que engendraram

efeitos positivos e satisfatórios em resposta às inquietações, aos anseios e necessidades

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demonstradas pelos professores no desenvolvimento de seus trabalhos dentro e fora da sala de

aula, permitindo o replanejamento e a implementação de novas ações sempre.

O desenvolvimento de um processo de avaliação, enquanto meio de reflexão

permanente, possibilitou tomada de decisões , tanto no que se referiam as dificuldades ,

avanços e interesses dos professores por seu trabalho docente, quanto pel o avanço e

desenvolvimento da aprendizagem dos alunos.

Assim, contínua e sistematicamente, procur ou-se verificar, no final de cada dia, as

sugestões e a percepção que os professores tinham quanto: ao tempo usado para a realização

das atividades e conteúdos trabalhados em sala de aula; o ponto central do que foi produzido a

partir de seus conhecimentos; ao que foi mais importante discutir; ao que eles gostaram ou

gostariam de saber; ao modo de como colheram as informações; a forma de problematização

das questões levantadas; as dif erentes aptidões apresentadas; a transferência das

aprendizagens em contextos diferentes; bem como a argumentação, participação e

envolvimento demonstrados durante a realização prática dos trabalhos produzidos nos

diferentes momentos da formação.

Esse processo de avaliação serviu como ponto de partida para desencadear as reflexões

sobre os avanços e entraves e, sobretudo, apontar caminhos a serem seguidos. Nele, os

professores puderam participar como sujeitos de seu próprio conhecimento, avaliando sua

própria atuação, possibilidades e limitações frente à realização dos trabalhos escolares e

demais produções.

Através do próprio envolvimento, formas de expressão e desenvolvimento de práticas

de argumentação, os professores puderam perceber um total otimi smo e convicção quanto às

suas intenções diante de uma forma prática e significativa de educar, em detrimento de uma

prática mecânica e ineficiente do fazer pedagógico.

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É importante mencionar, que ao iniciar o Programa de Formação, grande parte dos

professores, timidamente, não havia desenvolvido suas habilidades argumentativas. Além do

comportamento acanhado e receoso, refletiam , ainda, a intenção daqueles que os fizeram

silenciar por toda uma história marcada pela dominação e preconceito.

As dinâmicas, processos de discussão, análise, reflexão e debates realizados no

contexto do Curso proporcionaram mudanças significativas tanto na postura e ação

pedagógica do professor, quanto na aplicabilidade dos conhecimentos construídos e critérios

de auto-avaliação e avaliação de seus alunos.

No contexto destas questões, é importante registrar, no entanto, que os serviços de

acompanhamento ao trabalho do professor e às escolas indígenas não aconteceram de forma

condizente com os planejamentos e expectativas criadas. Embora se tenha definido e previsto

mediante reuniões técnicas de avaliação e planejamento institucional, no sentido de garantir e

assegurar o controle do processo em andamento, estes não foram satisfatoriamente realizados

no seu todo.

A participação efetiva e integrada entre formadores, técnicos da Secretaria Municipal

de Educação e monitoria indígena do Programa, acompanhando experiências e orientando os

professores no desenvolvimento de suas atividades em sala de aula e, ainda, avaliand o seus

avanços, dificuldades, necessidades e interesses, não aconteceram efetivamente, mas de forma

esporádica e assistemática. Em nível institucional foram inviabilizadas por questões de ordem

técnico-administrativas, políticas e financeiras.

Diante de tais circunstâncias, procurou-se, ao longo desta experiência, contar com o

serviço de acompanhamento realizado pela monitoria indígena do Programa, com a finalidade

de acompanhar as mudanças ocorridas e desejadas no processo de construção do Projeto de

Educação Mura, sobretudo, as experiências de aprendizagens e desenvolvimento de

metodologias, tão indispensáveis a este construto.

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Faz-se necessário destacar, no entanto, o apoio significativo dado pela Secretaria

Municipal de Educação de Autazes à realização d a primeira viagem de acompanhamento às

escolas e ao trabalho dos professores.

Em decorrência dessa ação, o registro das experiências, práticas pedagógicas,

metodologias, atividades escolares desenvolvidas dentro e fora da sala de aula, dificuldades,

avanços, necessidades, interesses, entre outros fatos observados, foram trazidos para o interior

do Curso de formação em forma de relatório produzido pelo monitor indígena e coordenador

pedagógico do Projeto88, para que fossem apresentados, discutidos e critica mente analisados.

Também fazia parte desse registro informações sobre os problemas ocorridos e enfrentados

pelos professores em suas escolas, depoimentos de lideranças, alunos, pais de alunos e

membros da comunidade, os quais se constituíam em elementos ne cessários e indispensáveis

à reflexão dos professores.

Sem o desenvolvimento dessa prática, seria técnica e pedagogicamente impossível

garantir a legitimidade, consolidação e reconhecimento dessa experiência.

A primeira viagem de monitoramento às escola s indígenas Mura foi realizada durante

a segunda etapa letiva intermediária, no período de 25 de janeiro a 7 de fevereiro de 2000,

pelo monitor indígena e coordenador pedagógico do Pro grama. Para esta viagem os

professores puderam contar com o apoio signif icativo da SEMEC que disponibilizou uma

voadeira e combustível para a realização da viagem e trabalhos previstos.

A segunda viagem de monitoria às escolas indígenas foi realizada no período de 30 de

agosto a 16 de outubro de 2000, durante a terceira etap a letiva intermediária. Esta viagem foi

planejada e realizada com muita turbulência, pois além da dificuldade para aquisição de

combustível e alimentação, que não houve, os professores tiveram que contar com uma

88 O serviço de monitoria, isto é, de acompanhamento às práticas ped agógicas desenvolvidas pelos professoresem formação, era exercido pelo professor José Mário dos Santos Ferreira e pela coordenação pedagógica doProjeto Mura-Peara, representado pelo professor Josemar dos Santos Ferreira . O coordenador pedagógico équem respondia pela execução do Programa no município e assegurava sua execução.

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voadeira emprestada da FUNASA 89. A SEMEC não ofereceu as mesmas condições que antes.

Mostrou-se completamente indiferente às solicitações e apoio à formação dos professores, o

que de certa forma repercutiu negativamente no processo em andamento.

A terceira viagem de monitoria aconteceu no períod o de 6 de julho a 13 de setembro

de 2001, antes de iniciar as atividades da quarta etapa letiva intensiva. Durante a organização

desta viagem os professores não enfrentaram dificuldades quanto à aquisição de combustível

e alimentação. No entanto, mais uma vez, tiveram que dispor da voadeira da FUNASA.

No período compreendido entre a quarta e quinta etapas letivas, não fo i realizada

nenhuma viagem de monitoramento em virtude das mesmas terem sido executadas uma após

a outra imediatamente.

De modo geral, os serviços de acompanhamento à formação dos professores, sejam

durante os momentos presenciais, sejam durante as atividades desenvolvidas pelos professores

em suas escolas nas aldeias, constituíram -se, por um lado, em ricas tentativas de acertos, por

outro lado, representaram inquietações, nervosismos e angústias na tentativa de construírem

metodologias específicas e planejamentos adequados que possibilitassem o desenvolvimento

de sua política indígena de educação. Estas inquietações eram cada vez mais aguçad as, à

medida que questionávamos seguidamente seus pontos de vista e afirmações, provocando

mais dúvidas e questões para reflexão.

Um fato interessante já constatado e que merece citação foi o uso indevido do aparato

escolar tradicional incorporado à práti ca docente, dificultando em muito o avanço dos

professores quanto ao desenvolvimento de suas habilidades e formas criativas que

demonstram ter. Somente a partir da quarta etapa letiva intensiva este quadro começou

gradativamente a se modificar.

89 Nesta época o coordenador pedagógico do Projeto Mura-Peara era o professor Gilberto dos Santos Pereira.

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Diante do exposto, durante os serviços de monitoria indígena, foram registradas, a

partir das práticas desenvolvidas pelos professores, as seguintes dificuldades: pôr em prática

algumas orientações sugeridas por alguns dos formadores do Programa; desenvolver os

conteúdos culturais Mura de forma integrada com os conteúdos universais, pois terminavam

por retornar ou dar maior peso à exploração destes últimos conteúdos; parte dos professores

não conseguia desenvolver a reflexão crítica dos conteúdos em função do objeti vo da escola

Mura; desenvolver atividades de motivação e participação dos alunos frente ao novo processo

de construção escolar; trabalhar mais de dois componentes curriculares por dia, levavam

sempre em conta o horário escolar orientado pela SEMEC; elabora r planos de aula e

anotações diárias de suas atividades no caderno de registro; insegurança quanto à exploração

de temas ou questões mais amplas; contextualizar os assuntos discutidos; evitar trabalhar com

a distribuição de materiais prontos aos alunos; tr abalhar com a cultura material Mura na sala

de aula; professores suplentes que não participavam das atividades de sala de aula e nem dos

planejamentos escolares na aldeia; utilização excessiva de aulas expositivas; desconhecimento

sobre a história e cultura tradicional do povo Mura por parte de alguns professores;

dificuldade em seguir as orientações emanadas da SEMEC quanto aos cálculos da média

geométrica para avaliação dos alunos; professores que não demonstravam consciência crítica

sobre o processo em construção; suplentes que não demonstravam interesse em participar da

aulas ministradas na aldeia pelo professor titular; entre outras.

A partir da análise destas dificuldades, novos procedimentos de ação, estudos e

estratégias de ensino e aprendizagem foram encaminhados no sentido de possibilitar aos

professores em formação o aperfeiçoamento de seu fazer pedagógico. Uma das estratégias que

utilizou-se para que os professores Mura superassem seus desafios e alcançassem os objetivos

desejados foi instaurar sempre um clima de confiança e motivação, além de primar pelo

discurso da valorização da pessoa humana e suas relações.

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Tendo em vista o aperfeiçoamento e desenvolvimento de suas práticas e habilidades

pedagógicas os professores Mura passaram a exp lorar, a princípio, conteúdos culturais

específicos a partir de temas geradores voltados para a realidade social e cultural de seu povo,

tais como: Cultura, Roçado, Água, Pescaria, Preservação, Família, Meio Ambiente, Meios de

Transportes, Produção, Comuni

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fitas de áudio e de vídeo, entre outros resultados. É importante ressaltar, que além dos

resultados gerados a partir dos serviços de acompanhamento às escolas e ao trabalho do

professor pela monitoria indígena, um outro instrumento que possibilitou o con trole do

processo de construção da educação Mura, foram os relatórios de reuniões de comunidade

elaborados pelos próprios professores em formação e também apresentados, discutidos e

analisados a cada etapa da formação. Exigia-se a produção destes relatórios em virtude de

considerarmos os mesmos a representação das mudanças desejadas.

Valem ressaltar, ainda, que ao final de cada etapa letiva intensiva da formação dos

professores, estes eram orientados para o exercício de uma nova dimensão de trabalho,

recomendando-lhes, sempre, que ao retornarem para suas aldeias de origem, promovessem em

suas comunidades, com a participação das lideranças e demais membros da comunidade,

reuniões prazerosas com a finalidade de relatar não somente os acontecimentos ocorridos

durante a etapa do Curso, como também as orientações pedagógicas recebidas para o

desenvolvimento de novas estratégias de ação em favor da consolidação de seu Projeto

pedagógico de escola.

Nestes relatórios deveriam constar o local e período de realização do curso, nome e

número de participantes, depoimentos e questões levantadas pelos professores, lideranças,

pais de alunos e comunitários, informes pedagógicos e administrativos, conhecimentos

históricos repassados à comunidade, legislação indigenista, cond ições de trabalho em sala de

aula, moradia e alimentação, atividades desenvolvidas pelos formadores do Programa,

problemas ocorridos, papel e atuação do coordenador pedagógico e monitor indígena,

conhecimentos e informações adquiridas, apresentação, apreci ação e contrastação do material

de pesquisa, bem como levantamento de novas informações, indicação de leituras sobre o

Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas , elaboração das atas de reuniões

realizadas na comunidade para serem lidas no m omento do Curso, registro individual das

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experiências de trabalho escolar, realizado dentro e fora da sala de aula, dificuldades

enfrentadas junto à comunidade e durante o desenvolvimento de suas atividades em sala de

aula, atividades realizadas pela escol a, metodologia utilizada pelo professor em sala de aula,

sugestões para serem discutidas nas próximas etapas do curso, entre outras informações

importantes ao processo.

Da mesma forma que os relatórios de monitoria às escolas indígenas e de reuniões de

comunidade, utilizamos ainda como instrumentos de controle e avaliação do processo em

construção, as atas de reuniões elaboradas pela Organização dos Professores Indígenas Mura,

OPIM e de reuniões realizadas pelos professores Mura na Secretaria Municipal de Educação,

SEMEC, os quais eram lidos e analisados em sala de aula durante cada etapa letiva intensiva

realizada. Dessa forma se tornou possível encaminhar as orientações necessárias e construir

propostas alternativas de soluções para os problemas apresenta dos. Esses instrumentos,

essenciais e de extrema importância para os processos de mudanças ocorridas, puderam

contribuir sensivelmente para a legitimação e construção dos processos de autonomia da

Escola Indígena Mura no município de Autazes.

FOTO 20 - Reunião sobre o Projeto de educação escolar: tuxaua da aldeia São Félix, rio Autaz -Açu / Autazes-AM / Foto:Matilde Laranjeira.

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FOTO 21 - Reunião sobre o Projeto de educação escolar na aldeia São Félix: pais, professores e lideranças. / rio Autaz -Açu /Autazes-AM / Foto: Matilde Laranjeira.

4.9. Lidando com os Problemas, Conflitos e Contradições

Considerando os movimentos e as possibilitadas geradas por meio do Programa de

Formação dos Professores Mura no município de Autazes é impossível não recon hecer o

desenvolvimento da política indígena de educação escolar que emerge a partir de tendências

positivas de auto-identificação e inclusão do grupo étnico Mura.

Assumindo a responsabilidade pela condução d os processos étnicos e de educação

escolar, os professores Mura conseguiram criar uma consciência coletiva em meio aos

problemas, conflitos e contradições, ao estabelecer um conjunto de estratégias, ações e

movimentos como base de mobilização política para construção de seu Projeto de educação.

O Projeto de Educação Mura, concebido no contexto do Programa de Formação de

professores Mura, vem sendo construído e sistematizado, baseado em concepções,

experiências e práticas pedagógicas, mas, sobretudo, no interesse e necessidades

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demonstradas por estes professores em conjunto com suas comunidades ao acreditar na

possibilidade de desenvolvimento de um processo de educação que atendesse aos seus

interesses e necessidades mais imediatas , entre as quais, como já vimos anteriormente, se

destacam a recuperação de sua memória histórica e reafirmação de sua identidade étnica.

Durante o processo de construção desse Projeto, inúmeros foram os problemas de

natureza educacional enfrentados por estes professores, relaciona dos desde a falta de infra-

estrutura física necessária e adequada à realização do Programa de Formação, principalmente

nos momentos iniciais da formação dos professores, às questões de ordem política,

pedagógica, administrativa, mas, fundamentalmente financeira.

Dentre os problemas de infra -estrutura física, podem-se citar as condições precárias de

alojamento oferecidas aos professores, ambientes de sala de aula inadequados e impróprios ,

apresentando calor excessivo em virtude da cobertura com telhas de zinco e amianto,

permanência de animais em sala de aula (primeira e segunda etapas), dificuldade de aquisição

de combustível para a geração de energia durante as atividades noturnas , uso de materiais e

equipamentos elétricos em apoio às aulas, alimentação inadequada aos professores ,

excessivamente condimentada, falta de apoio permanente de agentes indígenas de saúde nos

locais do Curso, falta de biblioteca básica, entre outros.

No que se referem às questões políticas, estas foram geradas, em grande parte, no

interior das próprias comunidades, refleti ndo as relações de poder existentes entre as

lideranças, professores e membros das aldeias locais .

Segundo os professores, certas lideranças ao exercerem poderes políticos e de controle

sobre suas comunidades, não aceitavam as mudanças geradas a partir da execução do

Programa de Formação dos professores, tendo em vista o desenvolvimento de novas práticas

comunitárias, participativas e solidárias por eles implantadas, além da postura crítica

assumida por estes professores frente ao processo de formação da co nsciência política da

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comunidade, principalmente quando se tratava da divulgação e conhecimento das leis

conquistadas, relacionadas aos direitos fundamentais dos povos indígenas. Esta situação gerou

por certo período de tempo, conflitos e indiferenças entr e professores e lideranças.

Apesar de todos os conflitos e problemas enfrentados, o de ordem pedagógica foi

ainda o mais agravante e conflituoso. Pode-se relatar, por exemplo, o caso de uma professora

da aldeia São Félix que mesmo em processo de formação e, já tendo cursado duas etapas

letivas intensivas do Programa, correu o risco de perder sua lotação no quadro de professores

da SEMEC em virtude de ser considerada incapaz de desenvolver suas atividades docentes

junto às turmas de alunos de alfabetização na aldeia. Foi inclusive, notificada, de que seria

substituída por um professor branco, por possuir maiores habilidades e conhecimentos para tal

função.

Segundo os professores, esse caso foi encaminhado ao Conselho Estadual de Educação

que deu ganho de causa a esta professora, considerando que além de estar em processo de

formação, vinha sendo capacitada e desenvolvendo metodologias e práticas pedagógicas

específicas e diferenciadas na escola indígena de sua região.

Paralelamente a execução inicial do Programa de Formação dos professores, a

indicação de professores não-indígenas pela Secretaria Municipal de Educação para atuarem

como professores e gestores nas escolas localizadas em terras indígenas Mura, foi um

problema que interferiu consideravelmente no desenvolvimento de experiências e processo de

construção do Projeto de escola e de educação Mura.

Na aldeia Gapenu, por exemplo, ainda na primeira etapa letiva intensiva do Programa,

antes mesmo que os professores retornassem para suas comunidades, os professores brancos

que atuavam juntamente com eles na Escola Novo Horizonte, já comentavam na aldeia que o

Programa de Formação dos Professores Indígenas Mura não deveria ter muita credibilidade,

pois a metodologia de educação específica e diferenciada para as escolas indígenas, além de

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oferecer um ensino e uma educação de má qualidade, possivelmente levaria o povo a “andar

nu outra vez”, tendo em vista ouvirem muito se falar em recuperação da memória histórica e,

nesse sentido, não possibilitaria uma boa formação aos alunos nesta época atual.

A atitude dos professores não-índios somente gerou uma grande desconfiança e

insatisfação da comunidade em relação ao trabalho que os professores indígenas vinham

desenvolvendo, como também grande indiferença ao novo modelo de escola e de educação

que pretendiam implantar. Instalavam-se, assim, e cada vez mais, conflitos e contradições.

Nesta época, isto é, durante o desenvolvimento da primeira etapa letiva do Programa,

em 1999, trabalhavam na Escola Novo Horizonte quatro professores índios e quatro não -

indígenas. O gestor da escola, assim como os demais professores brancos, não morava na

aldeia, mas na sede do município, o que o impedia de observar o trabalho desenvolvido pelos

professores Mura e vivenciar os problemas da comunidade, identificando os interesses e

necessidades por elas demonstradas. Geralmente todos os finais de tarde, e finais de semana

retornavam para a sede do município , onde fixavam residência.

Considerado extremamente autoritário, o gestor da Esco la Novo Horizonte, segundo

os professores Mura, não demonstr ou em nenhum momento interesse em conhecer os

princípios, fundamentos legais, conceituais, antropológicos, lingüísticos e pedagógicos que

fundamentavam sua formação e prática pedagógica, muito menos a concepção que eles

tinham acerca da construção de seu Projeto de educação escolar.

Sua função era, fundamentalmente, cumprir e fazer cumprir as normas e orientações

emanadas da Secretaria Municipal de Educação, ou seja, cuidar da administração da esc ola,

cumprimento da carga horária e horário de trabalho dos professores, verificação da exploração

dos conteúdos programados, repassar informes administrativos e pedagógicos, em atenção aos

objetivos, organização e funcionamento das demais escolas municipa is. Ainda que os

professores indígenas estivessem em processo de formação, discutindo e experienciando em

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suas salas de aula metodologias e práticas pedagógicas específicas, eram obrigados a seguir e

por em prática as mesmas orientações, tipo de planejamen to e normas pedagógicas

estabelecidas às demais escolas municipais da região.

Estas questões geraram de certa forma, uma grande dúvida e inquietação entre os

professores, cujo dilema consistia ora no cumprimento às atividades e orientações

pedagógicas emanadas pela Secretaria Municipal de Educação, ora às recomendações

sugeridas pelos formadores do Programa, principalmente quanto ao desenvolvimento de

novas metodologias e exercício d e uma prática pedagógica sob a perspectiva da educação

escolar indígena específica e diferenciada.

Até certo ponto é compreensível o comportamento e as atitudes assumidas por

professores e gestores "brancos" que atua vam nas escolas das aldeias, dada à falta de

compreensão e concepção acerca da educação indígena e educação escolar indígena em

particular, bem como o desconhecimento que t inham sobre os fundamentos legais e

conceituais que asseguram e garantem o direito a estes povos a uma educação escolar

específica, diferenciada, intercultural e bilíngüe que fortaleça as identidades étnicas

articuladas aos projetos societários das comunidades indígenas.

Por outro lado, os professores não conseguiam compreender os modos de atuação dos

técnicos e política municipal de educação desenvolvida pela SEMEC, que ora lhes

possibilitava a participação e atendimento às reivindicações em melhoria do Curso, ora

limitava seu trabalho em detrimento do desenvolvimento de novas experiências e práticas

pedagógicas específicas sob a ótica da educação intercultural.

Mas, o mais importante, foi a forma que os professores encontraram para conviver e

lidar com esses problemas. Decidiram, pois, criar espaços próprios na escola e comunidade,

priorizando e defendendo seus ideais por meio de uma prática pedagógica diferente que

estivesse a serviço do povo e da cultura, estabelecendo um novo diálogo, sensibilizando e

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conscientizando o povo por meio da realização de reuniões promovidas pela escola , e de

comunidade, por eles próprios organizados.

Segundo os professores, estas eram as duas únicas armas que no m omento possuíam,

mas que surtiram efeitos eficazes. Foram decisões assumidas conscientemente pelos

professores, ou melhor, dizendo, por quase todos.

Outro fato problemático ocorrido durante a formação dos professores e, que aqui

merece ser destacado, refere-se ao processo inicial de discussão sobre a cons tituição de

identidades indígenas e de reconhecimento da cultura Mura , fato este que se deu em

decorrência da formação dos alunos Mura da Escola Novo Horizonte, na aldeia Gapenu.

A Escola Novo Horizonte prestava serviços de atendimento seriado aos alunos. Em

suas salas de aula, as turmas eram formadas por alunos Mura e não-indígenas, atendidos por

professores indígenas, mas também por professores não-indígenas. Aos alunos Mura,

atendidos por professores não-indígenas, não eram possibilitadas discussões e estudo sobre a

história e cultura do povo Mura, nem acesso às informações e discussões que vinham sendo

realizadas em torno da construção da escola indígena Mura. Era oferecida a esses alunos uma

educação baseada em contextos não-indígenas, contrariando assim, a metodologia e processos

que se desenvolviam nas aldeias, e na própria escola.

Quanto aos alunos não-índios, atendidos por professores Mura, por força da nova

metodologia e o desejo de experiencia r processos novos de ensino e aprendizagem, lhes era

oferecida uma educação baseada em contextos indígenas, com base em questões ligadas à

etnicidade, autonomia e autodeterminação do povo Mura. As práticas pedagógicas, segundo o

modelo da cultura escolar t radicional não-indígena, quase não eram mais trabalhadas por estes

professores, e isto gerou uma grande insatisfação por parte das famílias desses alunos.

Durante os dois primeiros anos desta formação, tanto os professores Mura, quanto os

professores não-indígenas, estavam concomitantemente participando de processo s de

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formação inicial de professores. Por um lado, os professores não-indígenas estavam cursando

o Programa de Formação de Professores Rurais, PRORURAL, utilizando metodologias e

práticas pedagógicas voltadas para o ensino e meio rural, por outro lado, os professores Mura

se encontravam desenvolvendo experiências e construindo uma política de educação escolar

específica e diferenciada, possibilitando o estudo da história e cultura do povo Mura.

Esses fatos perduraram por quase três anos, até que a lotação das escolas nas aldeias

passou a ser constituída exclusivamente por professores Mura.

No decorrer dessas conjecturas, uma professora da aldeia Murutinga também foi

impedida de exercer sua função docente, passando a atuar como merendeira de sua própria

escola em apoio aos demais serviços gerais. Esta questão não demorou muito a se resolver, e

logo esta professora assumiu novamente sua função na escola.

A decisão tomada pela Secretaria Municipal de Educação em nuclear as escolas

indígenas Mura no início do ano 2000, também foi um fato que gerou grande insatisfação

entre os professores, tendo em vista que esta atitude impossibilit ava o desenvolvimento de

práticas comunitárias e participativas h á muito incentivadas entre professores, lideranças,

alunos, pais de alunos e comunitários d e uma mesma aldeia. Os alunos passaram a ser

atendidos em outras escolas, de realidades sociais diferentes, dirigidas por professores não -

indígenas e também destinadas a alunos não-indígenas. Distantes de seu contexto

sociocultural e escolar, esses alunos não puderam vivenciar ou contribuir , no momento, para a

construção coletiva de um currículo escolar específico e diferenciado voltado exclusivamente

para o contexto sociocultural, político e econômico no qual a realidade de sua escola, de sua

família, da vida do povo estava inserida.

Em conseqüência da nucleação das escolas Mura, a escola Trincheira, localizada na

aldeia do mesmo nome, passou a ser gerenciada pela Esc

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Um outro aspecto importante a ser mencionado, s egundo depoimento dos professores,

é o fato de algumas comunidades indígenas Mura, por determinação expressa da Secretaria

Municipal de Educação, ficarem proibidas de usar o espaço físico escolar que não fosse

exclusivamente em função dos interesses da escola, impedi ndo a comunidade de realizar

reuniões comunitárias no local.

De modo geral, esses problemas ocorreram e se agravaram durante quase toda

formação dos professores, que insistentemente denunciavam e requeriam ações mais

concretas e soluções para os mesmos. Os problemas referentes às questões de execução e

operacionalização do Programa, eram denunciados diretamente aos formadores, aos técnicos

da Secretaria Municipal de Educação e à própria coordenadora da Gerência de Educação

Escolar Indígena.

Por ocasião de grandes problemas enfrentados e não resolvidos durante a realização da

terceira etapa letiva intensiva, ocorrida na aldeia Murutinga, os professores exigiram que

providências urgentes e imediatas fossem tomadas pelos representantes das Secretarias

Municipal e Estadual de Educação, pois consideravam que o quadro presente se constituía de

problemas eminentemente de políticas públicas.

Formalizaram, então, um documento escrito, e o encaminharam, a princípio, à

Gerência de Educação Escolar Indígena e, posteriormente, ao Departamento de Políticas e

Programas Educacionais da SEDUC -AM, apresentando os problemas e exigindo sua imediata

resolução. Neste mesmo documento, os professores propuseram uma articulação ou ação

compartilhada entre as Secretarias Estadual e Municipal de Educação, no sentido de conjugar

esforços e assegurar uma educação e scolar indígena específica, diferenciada e de qualidade a

este povo.

É importante registrar, no entanto, que os problemas citados neste documento, foram

na sua maioria, resolvidos pelos próprios professores Mura em formação, junto à Secretaria

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Municipal de Educação, Cultura, Desporto e Lazer, SEMEC, com o apoio da Organização dos

Professores Mura, OPIM e representantes do poder executivo municipal.

4.10. Estratégias de Identidade e o Desenvolvimento da Política Indígena de

Educação Escolar Mura: avanços conquistados, impasses e

perspectivas

Embora diluídas no contexto desta dissertação, decidiu-se, para efeito didático,

reagrupar, destacando, entre outras, algumas estratégias criadas pelos professores Mura no

contexto da negociação de sua identidade , ao articular entre parceiros comuns o

desenvolvimento de novas ações e leque de possibilidades.

Com base na trajetória iniciada há quinze anos, culminando com as ações, movimentos

e reivindicações específicas desenvolvidas a partir da construção de seu Proje to de educação

escolar, os professores Mura cumpriram um papel importante na luta por seus direitos e

autodeterminação. Não só criaram estratégias de identidade e símbolos culturais específicos

frente a seus movimentos e processos de luta, como também diferentes formas de

representação política, conquistando, assim, espaços tanto no cenário político local, quanto

estadual e nacional.

Consideram-se, estes símbolos, entre outros, como vimos nas páginas precedentes a

esta abordagem, a bandeira de luta erguida em prol do próprio movimento político pela oferta

de uma educação escolar indígena específica e diferenciada, bem como os movimentos pela

regularização de suas terras, mas, sobretudo, os padrões de comportamento definidos e

adotados em diferentes formas de relações culturais e interculturais, considerando, ainda, o

significativo engajamento político e participação efetiva de seus membros nos vários

processos gerados.

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Como forma de expressão e representação dos interesses de suas comunidades ao

desenvolvimento de sua política de educação escolar, organizaram e estruturaram

manifestações, movimentos sociais, reuniões comunitárias, assembléias, reorganizaram e

registraram em cartório o estatuto dos professores , conquistaram espaços políticos e

institucionais - local e estadual -, abriram contas bancárias, aprenderam a manipular notas e

prestações, formaram novos líderes, abriram novas perspectivas de articulação de

possibilidades e negociação de sua identidade, atuaram como interlocutores de suas

comunidades no encaminhamento de reivindicações junto a órgãos do governo e outras

entidades, e dessa forma, a lidar com o mundo institucional, público e privado.

Tendo em vista o desenvolvimento destas práticas e movimentos, apresentam-se, pois,

neste documento, algumas estratégias, a meu ver, que se constituíram a priori bases

fundamentais de várias ordens para seus processos de mobilização política e de reivindicações

junto às instituições, mas também às suas próprias comunidades:

1. Uma grande preocupação demonstrada pelos professores ao longo do Programa, foi

com a necessidade de formação e preparo de professores líderes que pudessem

fazer frente aos movimentos e reivindicações específicas , fundamentalmente como

interlocutores na discussão e reivindicaçõ es junto aos vários órgãos e entidades

ligadas às suas várias necessidades e interesses. Decidiram não ter mais como

referência sobre a cultura e o povo apenas a representação de um sujeito, mas tantos

quantos fossem necessários . Nesse sentido, como forma positiva de representação e

expressão cultural, mas também, étnica , decidiram atribuir tarefas específicas a

outros membros do grupo.

2. Um outro aspecto importante ligado às tradições histórico-culturais Mura, diz

respeito à prática do uso da língua geral após sua pacificação, na década de 1780 ,

que mesmo falando esta língua, trinta anos depois, ainda usavam entre si a língua

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materna. No final do século XIX, esta língua fora substituída pelo português 90.

Nesse sentido, enquanto recuperação da memória histórica, os professores

reivindicaram junto à Secretaria de Estado da Educação e Qualidade do Ensino, por

meio da Gerência de Educação Escolar Indígena, a inserção da disciplina "Língua

Nheengatu" na estrutura curricular de seu Programa de formação.

3. Embora textualmente elaborado e muito discutido em ocasiões anteriores, os

professores Mura, a partir de uma consciência coletiva sobre os seus propósitos e

movimentos, decidiram, no interior do Curso de formação, aprofundar as

discussões sobre o Estatuto da Organização dos Professores Indígenas Mura ,

OPIM, discutindo, refletindo, ampliando e reformulando as normas e regulamentos

estabelecidos. Após dois anos de discussão, e devida aprovação pelos professores e

lideranças, foi registrado juridicamente no Registro Especial de Títulos e

Documentos da Comarca de Autazes -AM, em 5 de dezembro de 2001.

4. Um outro aspecto extremamente importante, baseado em oposições simbólicas e à

uma norma de vinculação consciente, foi a decisão tomada pelos professores quanto

ao uso permanente do termo aldeia em substituição ao termo comunidade, como

forma de garantir a identidade cultural e étnica frente aos conflitos e contextos

institucionais de ação, mas também da ordem negociada. Esta decisão não só

refletiu, como também passou a ser adotada na região por outros grupos Mura nos

municípios de Manicoré, Careiro, Careiro da Várzea e Itacoatiara.

5. Igualmente importante e, sob as mesmas considerações, foi a decisão tomada quanto

ao uso permanente do termo tuxaua em substituição ao termo capitão, em ambos os

casos, como forma de estabelecer as diferenças, mas sobretudo, de rearticulações

90 Francisco Jorge dos Santos. Além da Conquista: guerras e rebeliões indígenas na Amazônia pombalina.Manaus: Governo do Estado Amazonas / Secretaria de Estado da Cultura e Turismo / Editora da Universidadedo Amazonas, 1999.

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socioculturais dando um novo rumo à sua história, à sua cultura historicamente

reproduzida na ação.

6. Como forma de apoio aos seus movimentos e garantia de atendimento às suas

reivindicações, bem como instrumento de representação política do grupo,

apoiaram a indicação e eleição de um professor Mura à presidência do Conselho

Estadual de Educação Escolar Indígena do Amazonas.

4.10.1. Avanços Conquistados:

Por meio do desenvolvimento de sua política indígena de educação escolar,

identificam-se e apresentam-se, também, alguns dos avanços conquistados pelos professores

Mura ao longo de sua formação:

1. Indicação de um professor Mura para representar as escolas e comunidades

indígenas na Secretaria Municipal de Educação , Cultura, Desporto e Lazer ,

SEMEC-Autazes, quando do momento inicial do Curso, cujo atendimento, na

época, era feito por funcionários não-indígenas.

2. Articulação pela criação e funcionamento, na estrutura física da SEMEC, do Setor

de Educação Escolar Mura, SEEM, sob a responsabilidade específica de dois

professores Mura, com a finalidade de coordenar e acompanhar as ações e políticas

para o desenvolvimento da educação escolar indígena no município.

3. Lotação assegurada preferencialmente aos professores Mura concomitantemente à

sua formação, em substituição gradativa aos professores não-indígenas, bem como

nas escolas em que novas turmas de alunos estavam sendo criadas.

4. Gestão de suas próprias escolas em substituição aos diretores não-indígenas.

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6. Elaboração da obra Aldeias indígenas Mura , como material didático específico e

diferenciado a ser usado nas escolas das aldeias.

7. Elaboração da Proposta Curricular da Escola Mura equivalente as quatro primeiras

séries do Ensino fundamental, respeitando seus modos de vida, suas visões de

mundo e as práticas socioculturais de cada aldeia.

8. Elaboração do Projeto Político Pedagógico das Escolas Indígenas Mura , entendido

como processo sempre em construção.

9. Presidência do Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena do Amazonas.

10. Criação e presidência do Conselho Municipal de Educação.

11. Representação de professores Mura nos conselhos municipais do FUNDEB, da

Saúde, do Idoso, da Criança, Jovem e Adolescente, e da Merenda Escolar.

12. Construção e ampliação de prédios escolares nas aldeias Trincheira, Murutinga,

Josefa e Jauari.

13. Desencadeamento de processos de conquista relativos à sua credibilidade, respeito

à diferença e reconhecimento étnico, combate a intolerância, preconceito e

discriminação, bem como a perspectiva de novas articulações e possibilidades de

execução de projetos socioculturais, econômicos e educacionais, entre eles com a

UFAM e o INPA, por exemplo.

4.10.2. Impasses:

Identificam-se, entre outras, como principais dificuldades na implementação d a

política indígena de educação escolar Mura no município de Autazes, a:

1. Falta de reconhecimento oficial e regularização das escolas in dígenas Mura pelo

poder público estadual, de modo que possa assegurar os processos de autonomia de

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suas escolas, tanto no que se refere ao uso de recursos financeiros públicos para sua

manutenção e atividades administrativas , quanto ao seu projeto pedagógico, dado

que os obstáculos na burocracia dos sistemas municipa l e estadual de educação são

muitos.

2. Falta de formação contínua e sistemática aos professores que concluíram o

Magistério Indígena, bem como aqueles que assumiram turmas de 5ª a 8ª série nas

escolas da aldeia. Neste contexto, ressalta-se, ainda, a falta de acompanhamento

pedagógico ao trabalho dos professores e às atividades desenvolvidas pelas escolas

nas aldeias.

3. Falta de articulação entre as instituições ligadas à causa indígena, ou

fundamentalmente à educação escolar indígena, visando à execução d e uma política

estadual de educação escolar indígena mais integrada.

4. Falta de recursos e linhas de financiamento para implementação de seus pro jetos e

aquisição de materiais específicos em apoio ao desenvolvimento da especificidade

da educação intercultural, bem como para construção e manutenção de suas escolas.

5. Manutenção da negociação de sua iden tidade frente à ação da política hegemônica

local.

4.10.3. Perspectivas:

1. Reconhecimento oficial e regularização das escolas indígenas Mura pelo poder

público estadual e municipal, de modo a assegurar seus processos de autonomia e

autodeterminação.

2. Curso de Formação Superior, construído com a plena participação dos professores

Mura sob a assessoria de docentes e especialistas da Faculdade de Educação da

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Universidade Federal do Amazonas por meio do Projeto de elaboração de Curso de

Licenciatura Específica para Formação de Professores Indígenas Mura, do

Programa de Apoio à Formação Super ior e Licenciaturas Indígenas, PROLIND -

MEC/SESu/SECAD, tendo em vista a continuidade de sua formação , a fim de

garantir e assegurar a especificidade de seu modelo de educação escolar

intercultural.

3. Criação de um subsistema de educação escolar indígena na estrutura da SEMEC.

4. Criação do Conselho Municipal de Educação Escolar Indígena.

5. Criação de turmas de 5ª a 8ª série do Ensino Fundamental e Ensino Médio na

perspectiva da educação Mura.

Em síntese, reconhecem-se os avanços conquistados, as práticas pedagógicas e

metodologias específicas desenvolvidas pelos professores Mura n o contexto da construção de

seu Projeto de escola e de educação escolar. No entanto, levando em conta a falta de

articulação entre as instituições que tratam da questão indígena, a ausência de informações,

desconhecimento de políticas públicas educacionais e concepções político -pedagógicas por

parcela de agentes institucionais, é importante perceber os limites impostos pela estrutura e

sistemas de educação do estado e município, que ainda dificultam o desenvolvimento de

políticas indígenas de educação escolar dessa natureza, apesar dos avanços significativos na

legislação que assegura e garante os direitos fundamentais desses povos.

Na tentativa de reafirmar sua identidade, bem como superar seus problemas e

dificuldades, criaram dialeticamente as estratégias mais significativas possíveis, b uscando de

forma dinâmica e criativa novas alternativas e mecanismos de solução . Fizeram valer seus

direitos fundamentais, sejam aqueles referentes ao cumprimento legal da política de educação

escolar indígena, sejam os de ordem política e cultural.

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REFLEXÕES FINAIS

Esta dissertação de Mestrado, intitulada "Educação e Identidade Indígena: um estudo

de caso sobre os limites e poss ibilidades da educação na (re) construção ou reafirmação da

identidade Mura", elaborada segundo uma concepção didática, mas também acadêmica e

científica, trata, indiscutivelmente, de um a temática extremamente polêmica e complexa, o

que certamente nos exigiu um grande esforço de interpretação e análise dos fatos e fenômenos

observados.

Em abordagens anteriores, vimos que os fenômenos étnicos se manifestam sob as mais

diferentes formas e situações. No caso dos fenômenos tratados nesta dissertação, o modelo

empírico ou recorte teórico da questão se explica em atenção aos processos de auto -

identificação e reafirmação da identidade étnica Mura possibilitad os por meio de movimentos

políticos e de reivindicações específicas geradas pela realidade educacional, em nome de sua

pertença étnica, expressa na interação social .

Produzida e fundamentada com base em uma vasta e rica experiência vivenciada no

âmbito da educação, mais precisamente no contexto da formação dos professores indígenas

Mura no município de Autazes, esta dissertação, acredito, longe de ser pretensioso, pode

contribuir com aqueles que se dedicam à s atividades técnicas ou à docência em cursos de

formação de professores indígenas , mas também à pesquisa, sobretudo no que se refere aos

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estudos dos fenômenos étnicos, emergidos de projetos locais, aqui no caso, dos próprios

professores indígenas.

Longe de significar algo acabado, pronto, impossibilitado de se reconstruir em novos

saberes, de se auto-evoluir, tenho a certeza que se trata de uma temáti ca a ser cada vez mais

investigada, discutida e debatida nos diversos campos das ciências sociais. Daí apresentar

seus resultados e minha impressão, sob a forma de reflexões finais e não de conclusões. Isto

significa dizer também que sua abordagem deve ser concebida sob uma perspectiva de

incompletude, com a pretensão de abrir novos caminhos à indagação, à reflexão e ao debate

teórico.

Ao se comprometer com um diálogo interdisciplinar, espero ter proporcionado um

conjunto de fatos e informações que tenham permeado o campo da antropologia, da

sociologia, da filosofia, da história, mas, sobretudo, da educação, por meio da qual emergiu as

tendências positivas de auto -identificação e inclusão dos professores Mura no seu grupo

étnico.

Diante do exposto, procuro aqui desenvolver, de modo geral, uma abordagem sobre

alguns aspectos tratados no contexto da questão em voga , mas sem correr o risco de torná -la

enfadonha e repetitiva, acrescentando, a meu ver, alguns pontos que considero extremamente

importantes não somente para uma maior compreensão das questões focalizadas, mas também

das ações decorrentes de políticas públicas que implicam no desenvolvimento de uma

educação escolar indígena bem entendida e executada.

Antes, porém, é importante perceber que toda experiência descrita nesta dissertação

não se constituiu em algo pragmático ou um fato natural, mas em decorrência de processos

mais amplos de mudanças que implicaram nas relações dos sujeitos Mura, em seus modos de

ser, de estar e de se identificar com a cultura e com o mundo.

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Tais fatos nos fazem refletir que descrever um fenômeno aos olhos da ciência é

sempre uma tarefa árdua, já que suas explicações ou resultados s e pretendem lógicos e

precisos. Revelar um fenômeno sob uma perspectiva da filosofia da existência do ser na

concretude do mundo, e em movimento constante, se torna uma tarefa extremamente difícil e

desafiadora.

Mas não é essa nossa intenção e tão pouco discutir valores filosóficos ao ponderarmos

estas considerações finais, muito embora estas questões se encontrem diluídas no contexto

deste documento, mas dar um sentido à existência como um campo de superação, de

realização e de possibilidades. Nesse sentido, não poderíamos tratar da ação, dos movimentos

políticos, sociais, culturais e educacionais dos professores Mura no município de Autazes, de

sua história vivida no dia-a-dia, sem levar em conta os processos e fenômenos que resultaram

no reconhecimento do étnico e seus processos identitários e, ainda, que motivaram nossa

investigação e relato analítico dos resultados dessa experiência .

Segundo Merleau-Ponty, "se a filosofia busca a liberdade, a verdade, a felicidade, etc.,

ela não pode então se afastar das questões próprias de sua época, ou seja, da existência

concreta dos homens, da existência como possibilidade de superar a situação de fato, dando -

lhe uma nova dimensão. (...) O homem sendo capaz de revolucionar a cultura criada por ele

mesmo" (apud CARMO, 2004, p. 132).

De acordo com esse filósofo 91, que se preocupou com o homem muito mais na sua

existência do que na sua essência, "o homem é pensado em seu meio natural, cultural e

histórico, ou seja, como ser-no-mundo mais do que como ser ideal, privilégio anteriormente

dado pela filosofia da consciência" (id . ibid., p. 13).

91 Merleau-Ponty tem papel de destaque no pensamento filosófico francês do pós Segunda Guerra. Um dos maisfiéis discípulos da fenomenologia de Husserl, não mantém com ele, contudo, filiação cega e dogmática. Muitoso consideram, ao lado de Sartre, um dos principais expoentes do existencialismo francês, mas Merleau -Pontyse vê como um "filósofo da exi stência" e atribui o termo "existencialismo" apenas à filosofia e ao modo devida de Sartre (apud CARMO, 2004, p. 13).

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Nessa perspectiva, é importante ressaltar que nosso olhar fenomenológico concentrou -

se no estudo do indivíduo Mura - indivíduo coletivo - enquanto sujeito e não objeto, no que

ele pensa e percebe, nas suas representações da realidade e as formas de exteriorização d e seu

pensamento, às conceituações que faz acerca da realidade escolar, às representações que faz

de si e dos outros, os modos de ver a realidade, sua consciência perante um fenômeno, suas

comunicações e interpretações diante do que acontece cotidianamente em suas vidas e no

ambiente onde a escola está inserida.

Nos primeiros fundamentos dest a dissertação vimos que abordar a questão da

identidade cultural e identidade étnica pressupunha discutir a concepção e identificação de

sujeito na contemporaneidade construído na rel ação com outras posições de sujeito , ao mesmo

tempo em que exigia uma maneira diferente de interpretar o significado do ser, do sentir e do

comunicar entre o homem e a cultura, entre o homem e o mundo, entre eles próprios. Relação

essa, também, que atravessa fronteiras, implica em movimentos e é ordenada segundo

processos complexos de mudanças.

Em meio a esses "complexos processos e forças de mudanças, que, por conveniência,

pode ser sintetizado sob o termo globalização (Hall, p. 67), cabe repensarmos os limites e

possibilidades da educação na produção d e identidades indígenas e condução de processos

identitários. Na construção de um novo sujeito indígena, de um sujeito indígena novo92 para

um mundo novo, com novas identidades, numa concepção mais humana do termo.

92 Não me refiro aqui à concepção de "homem novo" segundo o pensamento marxista sobre a produçãosocialista. Sobre a necessidade de s ubstituição do homem unilateral, especializado e alienado, por homemomnilateral, não-especializado e, sobretudo, livre da exploração e da alienação do seu trabalho, pensamentoeste que embora fundado na exploração, seu objetivo está centrado na vontade de "humanizar o homem". Deacordo com essa concepção, segundo Marx, o que importa é tornar o homem disponível para enfrentar todasas mudanças que as novas exigências do desenvolvimento do trabalho impõem. Minha afirmação, no entanto,articula-se a esse pensamento apenas no que diz respeito a construção de um "homem novo" enquanto sujeitohistórico, que existirá mesmo com a transformação simultânea das condições de sua existência (apudGADOTTI, p. 64). Refiro-me, aqui, portanto, à construção de um sujeito ind ígena que fortaleça os valorespróprios de seu grupo, seus sentimentos, suas crenças, respeito ao sagrado, à vida, à vida em comunidade, ànatureza, aos seus ancestrais, consigo próprio e com os próprios parentes, etc., isso se constitui para mim umsujeito mais humano no significado do termo, no processo de construção dessas novas identidades indígenas.

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Novas identidades indígenas que sejam possíveis de se articular às necessidades de seu

tempo, de sua cultura, de suas novas relações, com seu ambiente físico, com seus processos

próprios de educação e de ensino e aprendizagem, pois como vimos com Albuquerque (2001),

os indígenas não estão mais somente nas aldeias, mas também na cidade, em relação com o

mundo, com o outro. Estão conectados eletrônica e tecnologicamente com o mundo.

É preciso reconhecer, portanto, como já vimos neste documento, a força que a

educação tem em todas as culturas em contribuir na formação de uma política e prática

educacional adequadas, capazes de atender aos anseios, interesses e necessidades diárias da

realidade atual, ou seja, da mundialização da cultura.

Nesse sentido, segundo Oliven (1992),

[...] todo esse processo de mundialização da cultura, que dá a impressão de quevivemos numa aldeia global, acaba repondo a questão da tradição, da nação e daregião. À medida que o mundo se torna mais complexo e se internacional iza, aquestão das diferenças se recoloca e há um intenso processo de construção deidentidades (apud BARROS, p. 25).

Com base nesse argumento, pode-se entender que os interesses transnacionais que

fragilizam os Estados-nações, hoje entidades em crise, r edefinem o lugar da diferença e das

etnias. O novo ciclo de mundialização não implica somente em homogeneização, mas em um

jogo complexo que envolve subordinações novas, novos processos de articulações e

hierarquizações entre povos, nações, localidades, et nias (id. ibid., p. 25).

Segundo Ianni:

[...] é óbvio que a globalização envolve o problema da diversidade. [...] A reflexãosobre a diversidade não pode estar ausente, já que implica aspectos empíricos,metodológicos, teóricos e propriamente epistemológicos. Logo que se reconhece quea sociedade global é uma realidade em processo, que a globalização atinge as coisas,as gentes e as idéias, bem como as sociedades e as nações, as culturas e ascivilizações, desde esse momento está posto o problema do contra pontoglobalização e diversidade, assim como a diversidade e desigualdade, ou integraçãoe antagonismo (apud Barros, 1997, p. 25).

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Corroborando ainda com essa discussão, Anthony McGrew (1992) argumenta que:

[...] a "globalização"93 se refere àqueles processos, atuantes numa escala global, queatravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades eorganizações em novas combinações de espaço -tempo, tornando o mundo, emrealidade e em experiência, mais interconectado" (apud HALL, 2004, p. 67).

Certamente, essas combinações temporais e espaciais geradas pela mundialização, não

somente tem efeito sobre as identidades culturais nacionais, mas também, sobre as identidades

"locais" ou particularistas a que se refere Hall (2004, p. 69) . Nesse contexto, inserimos as

identidades indígenas, tendo em vista que o mundo tem se tornado cada vez menor e as

distâncias cada vez mais curtas, e o impacto dos eventos sobre esses sujeitos e lugares é

imediato.

Assim sendo, nas aldeias indígenas, de um modo ge ral, sejam por meio de mensagens

ou imagens veiculadas pelas redes de comunicação, sejam por meio do consumo industrial ou

da apropriação de bens e recursos tecnológicos, os sujeitos indígenas estão imersos à "aldeia

global"94 e, de acordo com Hall (2004, p . 75), "quanto mais a vida social se torna mediada

pelo mercado global de estilos, mais as identidades se tornam desvinculadas, isto é,

desalojadas, de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem flutuar

livremente", e são, portanto, confr ontados por uma gama de diferentes identidades.

Por outro lado, sobre o impacto dessas novas configurações do cenário mundial sobre

a cultura, Clifford Geertz95, em sua obra O Saber Local (1997), enfatiza também um duplo

movimento entre o local e o g lobal: na medida em que ocorre uma uniformização produzida

pela economia neoliberal, simultaneamente ocorrem fortes reações que buscam expressões

culturais autóctones, fazendo do local, lugar de resistência e revitalização da cultura (apud

PEIXOTO, p. 280).

93 Grifo do autor.94 Grifo do autor.95 Clifford Geertz, autor da obra O Saber Local (1997), é o principal representante da chamada antropolog ia

hermenêutica ou interpretativa.

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Afirma ainda este antropólogo, que "as culturas (locais) são realmente fortes e, em

certo grau, são estimuladas pela própria globalização a se tornarem ainda mais fortes." Logo,

é possível que a globalização encontre, em mão dupla, a localização como res posta e contra-

ataque (id. ibid., p. 280-281).

As sociedades indígenas e, por conseguinte, os sujeitos indígenas, reclamam por novos

modos de articulação dos aspectos particulares e universais da identidade ou de novas formas

de negociação da tensão entre os dois. Daquilo que tanto anseiam e necessitam frente a estes

novos tempos, por formas diferentes de relacionamento, de sistemas de troca, de negociações,

que atendam suas necessidades, e que possam estar instrumentalizados para esse processo de

mudança.

Mas não se trata, porém, segundo Hall (2004, p. 77 -80),

[...] de pensarmos no global como "substituindo" o local, mas pensarmos numa novaarticulação entre "o global" e "o local", pois é mais provável que a globalização váproduzir, simultaneamente, "novas" identificações "globais" e "novas" identificações"locais". A globalização, com seus efeitos em toda parte, incluindo o Ocidente e a"periferia"96, caminha em paralelo com um reforçamento das identidades locais,embora isso ainda esteja dentro da lógica da compreensão espaço-tempo.

Para Barros (1997, p. 26), neste tenso jogo entre o global e o local, a tradição ganha

renovada importância, enquanto fonte de identidades.

Não se pode negar, portanto, que a mundialização provocou uma proliferação de novas

posições de identidades ou sujeitos, e sua possibilidade de levar a um fortalecimento de

identidades locais ou a produção de novas identidades. Assim, os sujeitos são obrigados a

negociar com as novas culturas em que vivem sem simplesmente serem assimilada s por elas e

sem perder completamente suas identidades ( id. ibid, p. 88).

No âmbito dessas negociações e tensa interação dialética entre o local, o regional e o

global, é que, a meu ver, se deve situar a imprescindível ação e mediação da educação,

96 Grifos do autor.

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articulada às práticas, aos valores, à cidadania, mas, essencialmente, aos projetos de

autodeterminação e de futuro desses povos. Nesse sentido, a educação diferenciada, abre

espaços, segundo Barros (1997, p. 27), para o reconhecimento da diferença, como res posta

local desse processo mais amplo de globalização.

Procede-se a articulação desse pensamento, em virtude da experiência vivida e ,

principalmente, com base nas ações positivas dos movimentos, processos e reivindicações

efetuadas pelos professores Mura n o município de Autazes, gerados a pa rtir do contexto e da

qualidade da formação oferecida, em que se levou em conta não somente suas especificidades,

necessidades e reais interesses, mas, sobretudo, seus projetos mais prementes.

Ao longo de seu programa de formação, os professores Mura, assistidos por

especialistas e docentes de diversas áreas do conhecimento, conseguiram experienciar novas

práticas pedagógicas, desenhar e construir seu projeto de educação escolar.

Esta questão nos remete a refletir sobre a funcionalidade e objetivos específicos dos

programas de formação de professores indígenas no estado97 dada a necessidade de

instrumentalização dos sujeitos indígenas perante aos desafios que se lhes colocam, enquanto

espaço alternativo para se pensar a resignificação da cultura, da tradição e das mudanças em

sua ordem cultural.

Para esta reflexão, Marshall Sahlins esclarece que,

97 O Programa de Formação de Professores Indígenas no Estado do Amazonas tem como objetivos específicosformar professores indígenas nas suas comunidades, para a elaboração de currículos específicos para suasescolas; proporcionar o acesso e desenvolver formas de conhecimento advindas de formações culturaisdiversas, tomando como base a sua própria cultura, para que os professores indígenas conheçam e controlemuma variedade de padrões culturais e de conh ecimentos, ampliando a sua compreensão crítica da realidade esua capacidade de atuação sobre ela; oferecer aos professores indígenas condições de promover em suas salasde aula um processo educativo que, fundado nas culturas e formas de pensamentos indíge nas, possa tambémestar orientado para a melhoria de suas condições de vida, através da apropriação crítica de bens e recursostecnológicos de outras culturas; desencadear e fortalecer o processo interativo escola -comunidade,coordenando ações integradas no calendário natural e social. Além destes objetivos, o programa de formaçãode professores indígenas tem também como propósitos formar professores -líderes e prepará-los paraelaboração de pequenos projetos soci oculturais, políticos e econômicos destinados ao desenvolvimento desuas comunidades (Projeto Pirayawara, SEDUC-AM, 1998).

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[...] a própria teoria do sistema mundial faz concessões à preservação das culturassatélites enquanto meios de reprodução da ordem dominante européia. Mas, se assimfor, e adotando um ponto de vista alternativo dos chamados povos dominados, ariqueza européia está atrelada à reprodução e até mesmo à transformação criativa daordem cultural desses povos (apud BARROS, p. 27).

Em assim sendo, todas essas circunstâncias colocadas pelo ciclo de mundialização não

implica, portanto, em dissolução das diferenças , mas em rearticulações sócio-culturais, de um

novo rumo à história, aos movimentos de resistência, de conquistas , de auto-identificações,

tendo em vista a nova conjuntura.

Refletindo ainda sobre essas questões, segundo a Antropologia Histórica, proposta por

Marshall Sahlins98 (1990),

[...] a história é ordenada culturalmente de diferentes modos nas diversas socie dades,de acordo com a significação das coisas. O contrário também é verdadeiro:esquemas culturais são ordenados historicamente porque, em maior ou menor grau,os significados são reavaliados quando realizados na prática. A síntese dessescontrários desdobra-se nas ações criativas dos sujeitos históricos, ou seja, as pessoasenvolvidas. Porque, por um lado, as pessoas organizam seus projetos e dão sentidoaos objetos partindo das compreensões preexistentes da ordem cultural. Nessestermos, a cultura é historicamente reproduzida na ação (Sahlins, 1990, p. 8).

Nessa perspectiva, a cultura e tradição são concebidas como extremamente dinâmicas,

sujeitas a inovações, e não como algo estático, unificado e fixo no tempo. As tradições são

reinventadas através da adequação do passado ao presente, elas são resignificadas. Assim,

criativamente os homens repensam seus esquemas culturais, suas ações, seus saberes, suas

relações, suas identidades, sua educação. A cultura, segundo Sahlins, é alterada

historicamente na ação.

No que consiste à educação escolar para os povos indígenas, esta assume uma

importância cada vez maior nesse novo processo de mundialização. Pode ser a grande aliada

aos seus projetos de autonomia e autodeterminação que, no espaço da escola, passa a ser

98 A Antropologia Histórica proposta por Marshall Sahlins em Historical Metaphors and Mythical Realities(1981) e Islands of History (1985), editado em português em 1990, rep resenta uma importante contribuiçãopara se repensar essas questões.

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reivindicada não somente como instrumento para fazer frente à situação de contato, mas

também como instrumento de luta e resistência, de diálogo intercultural, constituição e

reafirmação de identidades étnicas.

Nesse sentido, visando analisar a relação da oferta de uma educação escolar articulada

a esses movimentos e aos preceitos legais que lhes asseguram, faz-se necessário, destacar, em

alguns de seus pontos, os principais textos oficiais que apóiam as lutas políticas e movimentos

desses grupos por uma educação escolar como estratégia positiva ao desenvolvimento de seus

projetos de emancipação sociocultural.

Sem dúvida, os últimos trinta anos foram marcados por problemas e ameaças

crescentes à sobrevivência dos povos indígenas no Brasil, m as também foram anos de

organização e fortalecimento dos movimentos indígenas, de avanços na legislação e de

envolvimento positivo de setores não -índios da sociedade civil na questão indígena.

Em decorrência desses movimentos os povos indígenas conseguiram que, pela

primeira vez, uma Constituição Brasileira 99 reconhecesse seus direitos à diferença, a uma

educação escolar diferenciada, específica, intercultural e bilíngüe, assegurando -lhes, não

apenas sua sobrevivência física, mas também étnica e cultural. Garantiu a estes povos o

direito tanto à cidadania plena quanto ao reconhecimento de sua identidade diferenciada e sua

manutenção, incumbindo o Estado do dever de assegurar e proteger as manifestações culturais

das sociedades indígenas.

Nesse contexto, a promulgação da Constituição Federal de 1988 constitui -se como um

marco na redefinição das relações entre o Estado brasileiro e as sociedades indígenas.

99 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Ver os Artigos 210(Capítulo III - Da EDUCAÇÃO, DA CULTURA E DO DESPORTO - SEÇÃO I - DA EDUCAÇÃO); 215(Capítulo III - Da EDUCAÇÃO, DA CULTURA E DO DESPORTO - SEÇÃO II - DA EDUCAÇÃO); e 231(Capítulo VIII - DOS ÍNDIOS); Ver as Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena de1993; Ver também os Artigos 78 e 79 da nova Lei no. 9.394/96, de 17.12.96, Lei de Diretrizes e Bases daEducação Nacional Brasileira, que define os objetivos da Educação Escolar Indígena e as ações para oprovimento da educação intercultural às comunidades indígenas (Título VIII - Das Disposições Gerais).

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língua materna de cada comunidade indígena, e proporcione a oportunidade de recuperar sua s

memórias históricas e reafirmar suas id entidade, dando-lhes, também, acesso aos

conhecimentos técnico-científicos da sociedade nacional. 104

Dando seqüência às formulações curriculares e atenção aos preceitos da diferença e

especificidade, o Ministério da Educação publicou em 1998 o Referencial Curricular Nacional

para a Escola Indígena (RCNEI), que se constitui em proposta formativa que pretende garantir

os pontos comuns, encontrados em meio à desejada diversidade e multiplicidade de culturas

indígenas, tal como estão garantidos nos princípios legais do direito à cidadania e à diferença,

traduzidos numa proposta pedagógica de ensino -aprendizagem que promova uma educação

intercultural e bilíngüe, assegurando a interação e parceria. Trata, assim, de referências para a

prática curricular nas escolas indígenas e para a elaboração dos projetos pedagógicos das

escolas.105

Em 1999 lança as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar Indígena ,106

que apresenta a fundamentação da educação indígena, d etermina a estrutura e funcionamento

da escola indígena e propõe ações concretas em prol da educação escolar indígena . Destaca a

proposição da categoria escola indígena, a definição de competências para a oferta da

educação escolar indígena, a formação do professor indígena, o currículo da escola e sua

flexibilização.

104 Para que isto possa ocorrer, a LDB determina a articulação do s sistemas de ensino para a elaboração deprogramas integrados de ensino e pesquisa, que contém com a participação das comunidades indígenas emsua formulação e que tenham como objetivo desenvolver currículos específicos, neles incluindo os conteúdosculturais correspondentes às suas respectivas comunidades. A LDB ainda prevê a formação de pessoalespecializado para atuar nessa área e a elaboração e publicação de materiais didáticos específicos ediferenciados (LDB, Título VIII - Das Disposições Gerais, art igo 79).

105 O Referencial Curricular Nacional para a Escola Indígena está voltado prioritariamente aos professoresindígenas e aos técnicos das secretarias estaduais de educação, responsáveis pela implementação eregularização de programas educativos junto às comunidades indígenas. É seu maior objetivo oferecersubsídios e orientações para a elaboração de programas de educação escolar que melhor atendam aos anseiose interesses das comunidades indígenas.

106 BRASIL. Ministério da Educação. Parecer CNE/CEB n o 14/99, aprovado em 14 de setembro de 1999.

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e contradições a serem superadas, além da carência de informações para a implantação e

implementação de uma nova escola110 consoante com a nova LDB.

Observa-se, que à medida que essa legislação avança, cresce uma forte tendência a

lutar contra seu cumprimento nas formas da Lei, as justificativas quase sempre refletem as

relações de dominação e de forças da sociedade envolvente, bem como se baseiam em

posturas preconceituosas perpetuadas ao longo dos séculos pela desinformação ou má

informação, além da problemática do financiamento público.

Segundo orienta o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (1998)

para que o tratamento dado pelas políticas públicas à questão da educação escolar esteja em

consonância com o que as comunidades indígenas de fato querem e necessitam, é necessário

também que os sistemas de educação - federal, estadual e municipal - considerem a grande

diversidade cultural e étnica dos povos indígenas no Brasil e revejam seus instrumentos

jurídicos e burocráticos, uma vez que tais instrumentos foram instituídos para uma sociedade

que sempre se representou como homogênea (p.12 ).

Mas, ainda, assim, são muitos os fatores que vêm preocupando lideranças, professores

e representantes de organizações indígenas nos últimos tempos, tanto no que se refere à falta

de estrutura e mecanismos adequados para o desenvolvimento da educação escolar indígena e

apoio à formação de professores indígenas, quanto à ausência de acompanhamento

pedagógico às escolas e ao trabalho do professor em sala de aula , o que ocorre em quase todo

o país onde é oferecida.

Sabemos que as demandas de educação escolar apresentadas pelas comunidades

indígenas vêm crescendo enormemente, mas as condições de apoio e assistência educacional

110 Grifo meu. De acordo com a Lei 9.394, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Naci onal, aprovada peloCongresso Nacional em 17 de dezembro de 1996 e promulgada no dia 20 de dezembro daquele ano,preconiza-se como dever do Estado "o oferecimento de uma educação escolar bilíngüe e intercultural, quefortaleça as práticas socioculturais e a língua materna de cada comunidade indígena, e proporcione aoportunidade de recuperar suas memórias históricas e reafirmar suas identidades, dando -lhes, também, acessoaos conhecimentos técnico-científicos da sociedade nacional" (Título VIII - Das Disposições Gerais, artigos78 e 79).

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oferecidas têm se mostrado insuficientes para o desenvolvimento de ações e políticas capazes

de incentivar e promover a melhoria da edu cação escolar indígena.

Inseridas nesse contexto, a s políticas públicas para a educação escolar indígena no

Estado do Amazonas,111 ou as ações que dela decorrem - desinformação, má informação,

burocratização ou arcabouço administrativo - precisam, a meu ver, ser revistas o quanto antes,

tendo em vista a necessidade de um atendimento mais eficiente e eficaz em apoio aos projetos

indígenas. Para que a educação escolar indígena no estado cumpra de fato sua função

específica112, faz-se necessário criar novos mecanismos e estrutura administrativa que

possibilitem o efetivo cumprimento das normas e orientações que asseguram o direito a uma

educação escolar específica e diferenciada para esses povos.

Cabe reforçar aqui, que este argumento se fundamenta em razão de uma maior atenção

à formação dos professores Mura no município de Autazes , resultando em ações políticas

significativas e reivindicações satisfatórias ao grupo. Nesse sentido, considero esta

experiência, a meu ver, única no estado, com ênfase num processo que considerou e respeitou

os fundamentos e princípios da educação escolar indígena na sua essência e totalidade. Que

contou, ainda, com um reconhecido suporte técnico-pedagógico-administrativo,113 apesar de

todas as ambigüidades, problemas e dificuldades enfrentadas na época, incluindo, também, os

de natureza institucional gerados.

É salutar, e reconheço historicamente, a iniciativa do Governo do Estado em ter

tomado para si a política de educação escolar indígena e m determinação aos dispositivos

111 No Estado do Amazonas, as políticas públicas para a educação escolar indígena no período de 1991 a 1998foram coordenadas e executadas pelo Instituto de Educação Rural do Amazonas, IER -AM; desde 1999 vêmsendo coordenada e executada pela Secretaria de Estado da Educação e Qualidade do Ensino, SEDUC -AM,por meio da Gerência de Educação Escolar Indígena.

112 “Os princípios contidos nas leis dão abertura para a construção de uma nova escola, que respeite o desejo dospovos indígenas por uma educação que valorize suas práticas culturais e lhes dê acesso a conhecimentos epráticas de outros grupos e sociedades. Instituiu -se a possibilidade de a escola indígena contribuir para oprocesso de afirmação étnica e cultural des ses povos, deixando de ser um dos principais veículos deassimilação e integração" (MEC, 2005, p. 10).

113 É importante registrar que, os avanços mais significativos nas políticas públicas e apoio à educação escolarindígena no Estado do Amazonas, desde sua implantação em 1991, ocorreram no período de 1999 a 2001,período em que se insere a formação dos professores Mura no Município de Autazes.

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legais e constitucionais para inseri -la como parte integrante de seu sistema estadual de ensino,

considerando nas diretrizes dessa política, as especificidades locais e étnicas dos grupos

indígenas, bem como o atendimento às necessidades e demandas geradas, principalmente

aquelas geradas a partir dos programas de formação d e professores indígenas (apoio técnico à

produção e impressão de materiais didáticos específicos e diferenciados , distribuição de

merenda escolar e material didático às escolas, capacitação da equipe técnica das Semeds para

acompanhamento aos Cursos, entre outras), mas também de suas escolas.

Mas, se por um lado, reconheço o papel e o avanço das políticas públicas gestadas em

administrações anteriores no cumprimento dessas ações, por outro, muito me preocupa a

forma como vem sendo executada e operacionalizada a política atual dessas formações, tendo

em vista a necessidade de respostas aos desafios que se colocam para o futuro desses povos ,

principalmente frente aos impactos ou conseqüências da mundialização da cultura sobre a

constituição das identidades indígenas na conjuntu ra atual.

Diante dessa inquietação, considerando ainda os desafios da multiplicidade de culturas

e de seus projetos de autonomia e emancipação , torna-se necessário dar um novo sentido à

educação escolar indígena e à formação de professores indígenas no estado, de modo que lhes

possibilitem atribuir um lugar e função específica para sua escola, tal qual os professores

Mura atribuíram.

Considerando estas questões, e com vistas a contribuir com a continuidade desse

debate, decidi apontar, entre muitos outros, alguns aspectos, que, a meu ver, vem dificultando

a construção de projetos político-pedagógicos de escolas e professores indígenas, e de se

tornarem instrumento de luta, resistência, reivindicações e de relacionamentos com os demais

segmentos da sociedade local e regional.

Antes, porém, é importante ressaltar que, em anos anteriores, parte das questões

focalizadas a seguir, foi técnica e pedagogicamente por mim questionada junto à Gerência de

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Educação Escolar Indígena, fundadas com base nas dificuldades e problemas enfrentados

durante o processo de formação dos professores Mura, na tentativa de se evitar que os

mesmos equívocos e ambigüidades pudessem ocorrer com futuras formações de professores

indígenas.

No entanto, os mesmos problemas e dificuldades permaneceram, generalizando -se

ainda mais entre as diversas formações, geralmente em conseqüência de processos internos de

burocratização e poder, mas também por falta de decisões políticas mais firmes e conscientes.

Um primeiro aspecto a considerar diz respeito à dificuldade que tem a Secretaria de

Estado da Educação e Qualidade de Ensino em manter um quadro efetivo de técnicos ou

equipe multidisciplinar, devidamente preparada e capacitada114 para atuarem junto às

populações étnicas e culturalmente diferenciadas . Além da falta de investimentos para

formação e capacitação da equipe, dentro e fora do estado.

Questões como estas podem provocar mudanças repentinas chegando a interferir na

qualidade e desenvolvimento dos programas de formação, como aconteceu com os

professores Mura: docentes de determinadas áreas do conhecimento tiveram que ser

substituídos em virtude de não estarem preparados técnica e profissionalmente para lidar com

as diferenças, nem mesmo para se adaptar à realidade física e social das aldeias onde os

Cursos eram oferecidos. Muito embora algumas dessas substituições foram extremamente

positivas ao Programa.

Na tentativa de buscar novos cam inhos, a meu ver, torna-se necessário o

fortalecimento ou reorganização de um novo quadro de docentes ou de especialistas. É

interessante que possíveis interessados possam comprovar experiência de atuação na área da

educação escolar indígena ou mesmo em trabalhos desenvolvidos junto à s populações

114 Dada a dificuldade de contratação de pessoal especializado ou de formação específica para ministrar oscomponentes curriculares que integram a estrutura do Programa de Formação de Professores Indígenas noEstado do Amazonas e, assim, atender a realização dos Cursos de formação de professores, a Gerência deEducação Escolar Indígena necessita remanejar professores em exercício do sistema regular de ensino parasuprir esta necessidade, o que muitas vezes implica numa verdadeira batalha institucional.

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indígenas, caso contrário, sejam devidamente submetidos a um processo intensivo de

formação ou capacitação no campo da educação escolar indígena, mas, sobretudo, no

conhecimento da cultura do povo no qual vão atuar. É preocupante, dada à burocratização do

sistema escolar, o envolvimento e a necessidade, quase que diária, da absorção dos

formadores que integram o quadro da Gerência de Educação Escolar Indígena pelo acúmulo

de trabalhos administrativos , em detrimento da necessidade de discussão, análise,

planejamento e avaliação das políticas e projetos de educação em curso em Terras Indígenas

e, sobretudo, do fazer pedagógico. Tal situação decorre da falta de uma estrutura técnica ,

pedagógica e administrativa da própria instituição, que, por vezes, parece não reconhecer a

amplitude ou dimensão do atendimento que o processo de educação escolar indígena exige.

Um outro aspecto importante a considerar , dada a necessidade de participação em

vários Cursos de formação ao mesmo tempo, é a dificuldade enfrentada pelos formadores em

se reunir para discutir, analisar, planejar ou avaliar conjuntamente as ações , dinâmicas e

processos pertinentes aos projetos aos quais estão envolvidos. Isso tem dificultado o controle

ou atendimento eficiente e eficaz às práticas e experiências dos movimentos dos professores

em formação. A troca de experiências e práticas pedagógicas entre os formadores é

praticamente inexistente.

Um outro componente, o mais fundamental, acredito, e que poderia abrir

possibilidades para novas articulações em benefício e melhoria da educação escolar indígena,

é a inexistência de instrumentos jurídicos - celebração de convênios - entre parceiros, mais

precisamente, entre as secretarias estadual e municipal d e educação115, e também das

115 Embora a atribuição da responsabilidade pelo desenvolvimento das políticas públicas para a educação escolarindígena seja do estado, o atendimento a essas políticas encontra -se inteiramente a cargo das prefeiturasmunicipais, as quais não possuem condições técnico -pedagógicas, administrativas e nem estrutura de apoiode modo que possam administrá -las. Quando muito, dispõem de uma pequena dependência física na própriaSecretaria Municipal de Educação, a qual denominam de setor de educação escolar indígena. Nem o estadonem o município têm se responsabilizado, assim, pelo acompanhamento às escolas e ao trabalho dosprofessores, principalmente daqueles em processo de formação. O Macro -Sistema, também não dispõe deuma estrutura de apoio para o interior do estado no sentido de assessorar e acompanhar os processos deeducação escolar indígena.

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Universidades públicas na formulação de competências, responsabilidades e desenvolvimento

de ações frente à operacionalização, implantação e implementação das políticas públicas para

a educação escolar indígena, de modo assegurar a especificidade do modelo de educação

intercultural das comunidades indígenas, bem como o desenvolvimento e a participação de

cada comunidade nas tomadas de decisões relativas ao seu projeto de escola e de futuro .

Nesse sentido, é interessante comentar, q ue em condições anteriores, professores,

representantes de organizações e lideranças indígenas eram convidados para discutir e

planejar conjuntamente com os formadores a organização e operacionalização dos Cursos de

formação de seus professores.

Igualmente importante para essa análise e reflexão, é a falta de atenção do poder

público estadual ao reconhecimento oficial e à regularização legal das escolas indígenas, de

modo que elas possam cumprir plenamente seus objetivos assegurados na forma da lei, entre

eles, o direito à conquista de sua autonomia político-administrativa, financeira e, sobretudo,

pedagógica.116

É importante refletir, que essa atitude, além de dificultar o processo de autonomia

destas escolas quanto à construção de seus projetos peda gógicos e uso de recursos financeiros

públicos para a manutenção do cotidiano escolar, não garante a plena participação de cada

comunidade indígena nas decisões relativas ao funcionamento da escola.

Um outro aspecto extremamente importante a considerar é a inexistência de uma

política lingüística no estado que possa responder às demandas dos povos indígenas apoiando

os processos de recuperação, fomento e desenvolvimento d e suas línguas.

116 De acordo com as Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena (1993, p. 12), a escolaindígena tem como objetivo "a conquista da autonomia sócio -econômico-cultural de cada povo,contextualizada na recuperação de sua memória histórica, na reafirmação de sua identi dade étnica, no estudoe valorização da própria língua e da própria ciência, sintetizada em seus etno -conhecimentos, bem como noacesso às informações e aos conhecimentos técnicos e científicos da sociedade majoritária e das demaissociedades, indígenas e não-índígenas".

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Embora constitua um dos fundamentos do Programa de Formação de Profe ssores

Indígenas no estado a formulação de uma política lingüística a serviço da qual a escola estará

atuando, esta não vem atendendo aos reais interesses e necessidades dos professores e

comunidades indígenas, principalmente no que se refere à recuperação ou revitalização de

línguas em processo de desaparecimento , tão reivindicadas por alguns grupos , inclusive por

aqueles que já concluíram seu processo de formação. São muito tímidas as ações nesse

sentido e a falta de condições técnicas e uma assessoria lingüística permanente pode

contribuir para um aniquilamento lingüístico.

De um modo geral, percebe-se, que a deficiência das políticas públicas ou ações aqui

expostas, decorre, em sua maioria, da falta de dotações orçamentárias específicas , mínima no

estado, e quase inexistente na União, o que dificulta a criação de uma estrutura própria e

eficiente que permita melhor planejar, executar, acompanhar e avaliar as ações relativas à

Educação Escolar Indígena no Amazonas.

Em conseqüência, a Secretaria de Estado da Educação e Qualidade do Ensino não

consegue desenvolver uma política de educação escolar indígena mais ampla, mas sim,

emergencial e superficial, mostrando-se deficiente tanto em operar uma política de

identidades, quanto em oferecer aos professores, suas comunidades e povos os instrumentos

necessários para suas negociações e articulação de possibilidades frente aos seus projetos

societários. De modo a analisar e refletir dialética, política e culturalmente estas questões,

segundo Dalmolin (2004, p. 267),

[...] a questão da educação escolar e da formação dos professores indígenas deve servista como parte de uma totalidade maior, que são as culturas indígenas. Não épossível tratar de maneira isolada a educação de um povo indígena, ela é parte dacultura, tem base nas tradições, nas cosmovisões, nas línguas e tu do isso precisa sercompreendido em conjunto. A escola é uma instituição que faz sentido para a vidados povos indígenas em um contexto de contato com a sociedade envolvente,quando serve de instrumento a favor de suas lutas. A escola deve proporcionar osconhecimentos necessários para a compreensão das estruturas da sociedademajoritária, os caminhos para a conquista e garantia dos direitos e da autonomia.

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Nesse sentido, ainda, segundo os princípios estabelecidos pela s Diretrizes para a

Política Nacional de Educação Escolar Indígena (1993, p. 12),

[...] a escola indígena tem que ser parte do sistema de educação de cada povo, noqual, ao mesmo tempo em que se assegura e fortalece a tradi ção e o modo de serindígena, fornecem-se os elementos para uma relação positiva com outrassociedades, a qual pressupõe por parte das sociedades indígenas o pleno domínio dasua realidade: a compreensão do processo histórico em que estão envolvidas, apercepção crítica dos valores e contravalores da sociedade envolvente, e a prática daautodeterminação.

Tendo em vista, que as concepções e princípios acima focalizados estão imbricados na

complexidade da cultura e da educação indígena e, por conseguinte, ao processo da educação

escolar indígena, torna-se necessário e urgente, a meu ver, que a Secretaria de Estado da

Educação e Qualidade do Ensino reveja seus instrumentos ou mecanismos de ação

promovendo uma avaliação institucional de suas políticas e situação atual da educação escolar

indígena no estado, de modo a permitir a construção de um novo quadro de análise que

possibilite o desenvolvimento de novas políticas e ações educacionais mais eficazes em

atendimento às reais necessidades e interesses dos professores indígenas e suas comunidades.

Embora sofra limitações, são possibilidades da educação, articulada à outras instâncias

e movimentos, contribuir com o atendimento aos interesses e necessidades coletivas, mas

também específicas e particulares dos indivíduos, com uma educação que respeite a totalidade

do ser, sua emancipação e, segundo Soares (2000, p. 16), um processo que promove a

identidade do indivíduo, livre dos condicionantes utilitaristas da sociedade e suas interações

voláteis, capaz de compreender os processos predominantes e escolher os caminhos a seguir.

Sozinha nada pode fazer.

Nesse sentido, cabe às comunidades indígenas o direito de gerir seus processos

próprios de aprendizagem, e uma escola com características específicas, que busque a

valorização de seu conhecimento tradicional, fornecendo -lhes ainda, instrumentos para

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enfrentar o contato com outras sociedades, tendo em vista as políticas homogeneizadoras e

globalizantes.

Diante de tudo que pudemos perceber o desenvolvimento e a part icipação de cada

comunidade indígena nas decisões relativas ao seu projeto de escola e de futuro só serão

possíveis mediante vontade política e medidas concretas para sua efetivação . De um modo

geral, observa-se, que o grande problema em não empreender novas ações não está nas leis,

mas no seu cumprimento.

É necessário, portanto, romper com o poder político hegemônico, com a

burocratização e comodidade das práticas administrativas institucionais e reconstruir as

políticas públicas adotadas pela estrutura de estado, o que depende de um esforço conjunto de

instituições governamentais e não -governamentais, professores, comunidades e organizações

indígenas, de modo a atender as demandas e reivindicações d esses povos.

Os formadores de professores indígenas , devem, no contexto de suas práticas,

desenvolver processos educacionais que busquem a inovação do pensar e do fazer a educação

escolar em contextos de diversidade sociocultural e possam, desse modo, efetivar os direitos

dos povos indígenas a uma educação escola r intercultural que possibilite a reafirmação ou

fortalecimento das identidades étnicas, articuladas aos projetos societários de suas

comunidades.

Em síntese, conforme orienta o documento Diretrizes para a Política Nacional de

Educação Escolar Indígena (1993, p. 11),

[...] as escolas indígenas, por conseguinte, deverão ser específicas e diferenciadas,ou seja, as características de cada escola, em cada comunidade, só poderão surgir dodiálogo, do envolvimento e do compromisso dos respectivos grupos, como agentes eco-autores de todo o processo. (...) Devem ser entendidas como instrumento de luta,de resistência, de reivindicações, de fortalecimento da cultura, recuperação damemória histórica e, de espaço decisivo, na construção, reconstrução ou reafirmaçãode identidades.

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Sob essa ótica, nos cabe repensar, como já abordamos nas páginas precedentes desta

dissertação, os limites e possibilidades da educação no processo de construção, reconstrução,

reafirmação e fortalecimento de identidades indígenas neste mundo globalizado, e sua força

em contribuir na formação de uma política e prática educacional adequadas, capazes de

atender aos anseios, interesses e necessidades diárias da realidade atual .

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