educaÇÃo do campo e educaÇÃo em direitos humanos - a transdisciplinaridade humanista em memorial...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E À DISTÂNCIA
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM EDUCAÇÃO DO
CAMPO/SECAD/UAB/CAPES
MÁRCIA HELENA FRANCO SANTOS GODOY
EDUCAÇÃO DO CAMPO E EDUCAÇÃO EM
DIREITOS HUMANOS: A TRANSDISCIPLINARIDADE
HUMANISTA EM MEMORIAL DE ESPECIALIZAÇÃO
MIRANDA – MS
2011
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E À DISTÂNCIA
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM EDUCAÇÃO DO
CAMPO/SECAD/UAB/CAPES
MÁRCIA HELENA FRANCO SANTOS GODOY
EDUCAÇÃO DO CAMPO E EDUCAÇÃO EM
DIREITOS HUMANOS: A TRANSDISCIPLINARIDADE
HUMANISTA EM MEMORIAL DE ESPECIALIZAÇÃO
Produção apresentada como trabalho de
conclusão do Curso de Especialização em
Educação do Campo como requisito parcial
para a obtenção do grau de Especialista sob a
orientação do Professor Mestre Munier Abrão
Lacerda da Silva.
MIRANDA – MS
2011
MÁRCIA HELENA FRANCO SANTOS GODOY
EDUCAÇÃO DO CAMPO E EDUCAÇÃO EM
DIREITOS HUMANOS: A TRANSDISCIPLINARIDADE
HUMANISTA EM MEMORIAL DE ESPECIALIZAÇÃO
Produção apresentada como trabalho de
conclusão do Curso de Especialização em
Educação do Campo como requisito parcial
para a obtenção do grau de Especialista sob a
orientação do Professor Mestre Munier Abrão
Lacerda da Silva.
Aprovada em _______ de novembro de 2011.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________
Professor Mestre Munier Abrão Lacerda da Silva – Orientador
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
_______________________________________
Prof.
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
_______________________________________
Prof.
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
A todas as pessoas que viveram antes de mim,
por terem lutado pela criação do mundo em
que hoje vivo...
A todas as pessoas que ainda virão, por
incentivarem os que agora vivem à luta por um
mundo melhor...
AGRADECIMENTOS
À Senhora Defensora Pública de Justiça Neyla Ferreira Mendes, professora voluntária
da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, por me “obrigar” a
refletir sobre a função social da propriedade.
À Senhora Maria Edna Tomassini Pleutin, Coordenadora-Geral Adjunta de Perícias de
Mato Grosso do Sul, pela admiração que sinto à sua dedicação ao trabalho e pelo incentivo
constante aos meus estudos.
Ao meu orientador e amigo, Senhor Professor Mestre Munier Abrão Lacerda da Silva,
pela difícil tarefa que teve também como meu tutor, conduzindo-me, à distância, nas férteis
veredas da aprendizagem.
Aos conhecidos e desconhecidos que me ajudaram a produzir as atividades dessa
Especialização, por terem me mostrado, generosamente, como conhecimentos teóricos podem
sucumbir às realidades da vida.
À minha filha, à minha mãe, aos meus sobrinhos, às minhas irmãs, às minhas tias-
mães e aos meus sogros, por me incentivarem quando o desânimo se instala e por me
brecarem quando me esqueço de minhas limitações.
À saudade que sinto de minha avó e de meu pai, por me mostrar que é somente quando
sabemos de onde viemos que conseguimos perceber o quanto já caminhamos.
Ao meu companheiro, por me deixar caminhar ao seu lado, tornando minha jornada
menos árdua.
A Deus, por ser o verdadeiro e único dono de todas as terras e criaturas.
Não faça do amanhã o sinônimo de nunca,
nem o ontem te seja o mesmo que nunca
mais. Teus passos ficaram. Olhe para trás,
mas vá em frente, pois há muitos que
precisam que você chegue para poderem te
seguir.
Charles Chaplin (1989 – 1977)
RESUMO
As reflexões acerca dos Direitos Humanos devem, hodiernamente, direcionar todas as
interações entre indivíduos e áreas do conhecimento, para fomentar a obediência de
disseminação da transdisciplinaridade humanista. Nesse contexto, a observação das
impressões humanas acerca de experiências individuais se faz mister, em virtude do respeito à
valorização de cada pessoa e de seus saberes. Assim, se entende que, como a formação
cultural das sociedades somente é possível pela junção de vivências individuais, as práticas
memorialistas podem colaborar por demasiado ao desenvolvimento humano, alardeando as
transformações pessoais que, em conjunto, metamorfoseiam idiossincrasias e condutas,
coibindo práticas preconceituosas perpetuadas pelo desconhecimento. Esse trabalho objetiva,
ao promover a prática memorialista de aluna de Especialização em Educação do Campo,
mostrar a presença inconteste da Educação em Direitos Humanos na problemática campesina
brasileira, que repercute em toda a sociedade, mas que, por pugnar contra interesses
capitalistas, não é retratada de forma responsável e justa. Através de metodologia que
compreende a apresentação de atividades obrigatórias desenvolvidas durante o curso de pós-
graduação divulgador das particularidades da vertente pedagógica libertadora do campo, das
leituras e experiências da pós-graduanda, busca-se apontar a fundamental importância da
Educação, em todos os níveis, à ruptura da ignorância, principal geradora de preconceitos e
injustiças. Acredita-se, dessa forma, que exercícios memorialistas podem colaborar
sobremaneira ao desenvolvimento humano, pois, ao serem influenciados pela apresentação de
informações reais acerca dos assuntos que interferem em suas vidas, os indivíduos podem
enxergar seus equívocos e suas limitações, impedindo reiterações de erros e estimulando seus
pares a mesmas ponderações.
Palavras-chave: Educação do Campo. Educação em Direitos Humanos. Memórias. Ensino
Superior.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Quadro 1 - Módulos, eixos temáticos e respectivas cargas horárias do curso de
Especialização em Educação do Campo da UFMS ........................................ 22
Quadro 2 - A influência da transdisciplinaridade humanista nos textos elaborados no módulo
I ............................................................................................................................ 31
Quadro 3 - A influência da transdisciplinaridade humanista nos textos elaborados no módulo
II .......................................................................................................................... 53
Quadro 4 - Cronograma do Projeto “Festival do Diferente” ................................................... 76
Quadro 5 - A influência da transdisciplinaridade humanista nos textos elaborados no módulo
III .......................................................................................................................... 93
Quadro 6 - Escolas Estaduais em Aquidauana, localização e oferta de ensino ...................... 96
Quadro 7 - Escolas Municipais em Aquidauana, localização e quantidade de alunos ............ 97
Quadro 8 - Dinâmica das relações que envolvem a Educampo ............................................ 102
Quadro 9 - Dinâmica das relações que envolvem a Educampo e a influência dos Movimentos
Sociais ................................................................................................................ 104
Quadro 10 - Escolas Estaduais em zona não-urbana de Aquidauana e localização .............. 116
Quadro 11 - Escolas Municipais em zona não-urbana de Aquidauana e localização ........... 116
Quadro 12 - A influência da transdisciplinaridade humanista nos textos elaborados no
módulo IV...................................................................................................... 121
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Espeducampo – Especialização em Educação do Campo
DDHH – Direitos Humanos
EAD – Educação à Distância
EC – Emenda Constitucional
Educampo – Educação do Campo
EDDHH – Educação em Direitos Humanos
Fundeb – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica Pública e de
Valorização dos Profissionais da Educação
Fundef – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização
do Magistério
MMF – Memorialista Márcia Franco
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra
PPP – Proposta Político-Pedagógica
Sejusp / MS – Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Mato Grosso do Sul
UAB - Universidade Aberta do Brasil
UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Unisul – Universidade do Sul de Santa Catarina
Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12
1. MÓDULO I - APRESENTAÇÃO DO CURSO, CONCEITUAL EAD E
FERRAMENTA MOODLE: A EAD E SUAS IMPLICAÇÕES HUMANISTAS .... 25
1.1 Eixo temático: educação do campo / educação para a diversidade ............................. 25
1.1.1 TICs e Educampo: potencialidades ................................................................................. 25
1.2 Eixo temático: conceitual EAD ........................................................................................ 26
1.2.1 Sobre Barros e a Educampo ............................................................................................ 26
1.3 Eixo temático: ferramenta Moodle .................................................................................. 29
1.3.1 Sobre EAD e diamantes em lapidação ............................................................................ 29
1.4 A produção do módulo I e a transdisciplinaridade da EDDHH .................................. 30
2. MÓDULO II - INTRODUÇÃO À EDUCAÇÃO DO CAMPO: O DESPERTAR DA
TRANSDISCIPLINARIDADE HUMANISTA NAS QUESTÕES DA TERRA ......... 32
2.1 Eixo temático: fundamentos e história da educação do campo .................................... 32
2.1.1 Passado, presente, aspiração: a própria vida.................................................................... 33
2.1.2 Pantanal sateriano ............................................................................................................ 34
2.1.3 Cuspes de álcool e transformações .................................................................................. 38
2.2 Eixo temático: educação e movimentos sociais do campo ............................................ 41
2.2.1 Sementes do tempo .......................................................................................................... 41
2.2.2 À luta, pois ....................................................................................................................... 43
2.3 Eixo temático: educação e questão agrária ambiental .................................................. 45
2.3.1 Eu... Em primeira pessoa ................................................................................................. 45
2.3.2 Fichamento do texto “dimensões inter/transdisciplinares na formação do(a)
educador(a)”, de Maria das Graças F. Lobino .............................................................. 47
2.4 A produção do módulo II e a transdisciplinaridade da EDDHH ................................. 52
3. MÓDULO III - PRÁTICAS PEDAGÓGICAS EM EDUCAÇÃO DO CAMPO:
DESCOBRINDO-SE PARA ACEITAR A DIVERSIDADE ......................................... 54
3.1 Eixo temático: princípios norteadores das práticas pedagógicas em educação do
campo ................................................................................................................................ 54
3.1.1 Conversas com quem sabe ............................................................................................... 55
3.1.2 Descobrindo histórias do passado ................................................................................... 59
3.1.3 A infinitude da ponta de um lápis .................................................................................... 63
3.2 Eixo temático: princípios organizadores do trabalho pedagógico em escolas de
educação do campo .......................................................................................................... 66
3.2.1 Era uma vez no futuro, há algum tempo depois de amanhã ............................................ 67
3.3 Eixo temático: planejamento pedagógico - metodologias e práticas em educação
do campo .......................................................................................................................... 71
3.3.1 Mundo espelhado: Projeto Festival do Diferente – conhecer para respeitar ................... 72
3.1.2 Dimensão de olhares ........................................................................................................ 76
3.1.3 Caminhos a percorrer ...................................................................................................... 79
3.1.4 Reflexos de (des)organização social................................................................................ 85
3.1.5 Brotos, flores e frutos ...................................................................................................... 90
3.4 A produção do módulo III e a transdisciplinaridade da EDDHH ............................... 92
4. MÓDULO IV - GESTÃO EDUCACIONAL NO CAMPO: A DEFESA DA
EDUCAMPO, DA DEMOCRACIA E DOS DDHH ..................................................... 94
4.1 Eixo temático: políticas de educação do campo ............................................................. 94
4.1.1 Quantidade? Qualidade. .................................................................................................. 95
4.1.2 Estado, políticas públicas, Movimentos Sociais e “a luta pelo direito” da Educampo:
o pensamento jurídico de Ihering e a problemática educacional campesina .................. 99
4.2 Eixo temático: gestão e financiamento na educação do campo .................................. 104
4.2.1 Adubo$ educacionai$ no Bra$il .................................................................................... 105
4.2.2 Saber quem se é... .......................................................................................................... 107
4.2.3 Oportunidades ................................................................................................................ 112
4.3 Eixo temático: gestão de sistemas de ensino e avaliação de políticas educacionais
do campo ........................................................................................................................ 114
4.3.1 À reflexão, pois. ............................................................................................................ 114
4.3.2 Rabiscos e papel ............................................................................................................ 119
4.4 A produção do módulo IV e a transdisciplinaridade da EDDHH ............................. 120
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 122
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 124
ANEXOS ............................................................................................................................... 130
INTRODUÇÃO
Esse trabalho teve sua origem em agosto de 2009, durante aula da disciplina de Direito
Civil IV, cursada pela memorialista Márcia Franco (MMF), na Faculdade de Direito (FADIR)
da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Ministrada pela Defensora Pública
de Justiça Neyla Ferreira Mendes, professora voluntária do curso, essa cadeira acadêmica
previu a realização de diversas atividades avaliativas e uma delas incumbiu a apresentação de
seminários de diversos temas relacionados à posse e à propriedade, assuntos tratados, em
especialidade, no Livro III do Código Civil Brasileiro.
Após o sorteio dos temas que deveriam ser abordados, incumbiu à MMF, em
apresentação que deveria ser realizada no mês de abril do ano de 2010, a tratativa de questões
relacionadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Ao ser informada
do assunto que lhe caberia apresentar, a MMF (que não se considerava nem um pouco
“simpatizante” do MST) protelou a busca por informações sobre o assunto até meados do mês
de novembro de 2009, quando, através da internet, soube da oferta do primeiro curso de
Especialização em Educação do Campo (Espeducampo) de Mato Grosso do Sul.
A MMF, ao procurar, em provedor de pesquisa digital, os termos “Movimentos
Sociais, propriedade, posse e MST”, observou que um dos primeiros links apresentados era o
endereço virtual de oferta da Espeducampo. Sua característica de gratuidade e possibilidade
de inserção de qualquer membro social interessado (não somente professores em atividade
docente) fomentou na MMF o intento de participação no processo seletivo do curso, que
certamente seria de grande procura em virtude das peculiaridades rurais da região sul-mato-
grossense.
Além da dificuldade de figurar na lista dos participantes após o processo de seleção
(que abarcou apreciação curricular e análise de carta de intenções), a MMF também se
preocupou com a possibilidade de não haver deferimento de sua inscrição, em virtude de sua
condição como acadêmica de Direito da FADIR da UFMS. Entretanto, dispôs-se ao pleito,
interessada na obtenção de novas informações que (vergonhosamente, a MMF admite!)
pudessem fundamentar ainda mais os preconceitos nutridos contra os Movimentos Sociais de
luta pelo acesso a terra no Brasil.
Assim, no final de dezembro de 2009, a MMF - profissional da Secretaria de Estado
de Justiça e Segurança Pública de Mato Grosso do Sul (Sejusp / MS), acadêmica de Direito da
UFMS e especialista em Polícia Comunitária pela Universidade do Sul de Santa Catarina
(Unisul) - iniciou atividades na Espeducampo, convicta (erroneamente) de que a Educampo,
por ser defendida pelo MST, deveria mascarar interesses diversos daqueles pretendidos pela
Educação e pelo ordenamento jurídico pátrio, pois, como todo assunto acastelado por
‘vândalos’, esse também deveria instigar a criminalidade e a balbúrdia.
Essa crueza de entendimento, porém, foi sendo corrigida, à medida que ocorriam as
leituras dos módulos da Espeducampo e, consequentemente, a produção das atividades que
deveriam ser executadas. Conforme ia tendo acesso a “novos olhares” sobre a questão da terra
e da Educação brasileira, mais a MMF intencionava a busca por informações que
justificassem os preconceitos que nutria pelos Movimentos Sociais e seus assuntos, até que,
finalmente, houve a percepção de que negar sua importância era impedir a construção da
sociedade justa, segura, próspera e democrática que se pretende ao futuro.
Assim, começou a ser intuída, pela MMF, a interferência dos assuntos relacionados
aos Direitos Humanos (DDHH) na problemática brasileira do acesso a terra e se percebeu a
transdisciplinaridade humanista nos assuntos abordados pela Educampo, mostrando o
amálgama insofismável de que defender a Educampo e seus ideais é defender a própria
existência humana, que somente pode ser fundamentada através da luta pela conscientização
de que o desenvolvimento deve ser sustentável e pela proteção às particularidades individuais
que formam a sociedade como um todo.
Mostra-se, então, como é inquestionável que o senso-comum, ou se mantém no
silêncio vil do subjugo, ou propaga a ojeriza e a tentativa de criminalização dos
comportamentos dos indivíduos que vivem no e do campo e que, por experienciarem mazelas
peculiares, lutam para a melhoria de suas condições de vida. Nesse contexto de massificação
de equívocos e preconceitos que garantem a manutenção de interesses capitalistas, a
publicidade das questões que envolvem o ambiente rural parece indispensável à
conscientização da sociedade.
Sabe-se que todas as questões que envolvem o expediente campesino não são,
comumente, divulgadas de forma elucidativa, pois abrangem interesses pouco ou nada
preocupados com as minúcias e mazelas desse setor social. Assim, mesmo a modernidade
tecnológica e científica ainda não conseguiu agir de forma difusa, garantindo direitos e
esclarecimentos a número indeterminado de pessoas. Dessa forma, parece imperativa a
necessidade de fomento a quaisquer possibilidades de comunicação e publicidade dos
assuntos pertinentes às pessoas que (sobre)vivem d(n)o campo.
Essas questões, fundamentalmente, perpassam pela análise dos DDHH, que, para
Gutierrez e Mussi (2010) correspondem a direitos relativos à dignidade de cada ser humano,
que deve ter suas particularidades compreendidas e garantidas, por sua peculiar distinção das
demais coisas. Ampliando esse entendimento, Benevides (2000) alega que discutir a temática
humanista impulsiona a construção cultural de deferência à dignidade humana, como um
todo, ao promover e almejar a defesa de uma sociedade livre, justa, igualitária, solidária,
cooperativa, tolerante e pacífica.
Documentos relativos a DDHH, nacionais e estrangeiros, apontam a imperatividade de
abordagem da questão humanista, em todos os cenários de interação humana e,
especificamente, na Educação. Assim, as conquistas de direitos do Homem e as circunstâncias
históricas que envolveram essas conquistas devem ser abordadas em todos os níveis
pedagógicos. Unesco (2009), no Programa Mundial de Educação para os Direitos Humanos,
repercute a necessidade de implantação de ações no âmbito educacional para capacitar e
difundir informações principiológicas sobre a temática humanista.
Logo, acredita-se que somente a promoção do diálogo e a difusão de informações
verdadeiras acerca da realidade poderão fazer as pessoas conseguirem atinar que a melhor
forma de promover o desenvolvimento é estimulando a valorização e preocupação humana
irrestritas. Assim, o diálogo humanista se torna um evento “crítico, capaz de aprimorar a
sensibilidade, promover a diversidade, produzir a solidariedade e o reconhecimento do outro,
incentivar uma postura de indignação ante às injustiças e à co-responsabilidade na garantia de
promoção da vida de/para todos” (CARBONARI, 2009, p. 149).
Nesse mister, a Educampo e todas as nuances que a circundam precisam ser
divulgadas, a fim de fomentar reflexões, na cidade e no campo, sobre os problemas que se
evidenciam na zona não-urbana e sobre a importância do trabalho campesino à sobrevivência
de toda a sociedade. A tal intento, colabora esse trabalho com a experiência da MMF, pelos
próprios preconceitos que nutria antes de participar do curso e que, pelo acesso a informações
durante a Espeducampo, viram-se dissipados pela imperatividade reflexiva acadêmica.
A partir desses relatos e dessas considerações, configuram-se como objeto de estudo
desse trabalho os seguintes questionamentos: Quais temas permearam as atividades de
avaliação da Espeducampo da UFMS? A prática memorialista de apresentação dessas
produções desenvolvidas permite a verificação de transdisciplinaridade com a Educação em
Direitos Humanos (EDDHH)? Como essa transdisciplinaridade pode ser percebida?
A tais interesses, percebe-se, como objetivo geral do trabalho, o escopo de
documentar, através de prática memorialista de apresentação de atividades realizadas em
curso de Especialização, a influência da EDDHH na Educampo. Tem-se, como objetivos
específicos, os desígnios de:
a) Apresentar, em coletânea, as produções textuais elaboradas durante a
Espeducampo;
b) Registrar, através de técnica memorialista de apresentação das produções, as
percepções subjetivas que circundaram o lapso temporal de cumprimento das
disciplinas obrigatórias;
c) Verificar a abordagem da transdisciplinaridade da EDDHH na Educampo; e
d) Demonstrar as transformações idiossincráticas da MMF, durante o processo
educacional.
Esse trabalho se justifica porque, na dinâmica da vida, os discursos somente
adquirirem significado quando seus sujeitos se percebem capazes de influenciar seus destinos,
sejam em conjunto ou individualmente. Nesse processo de percepção de influências, o
entendimento de que idiossincrasias coletivas e pessoais devem ser perpetuamente
questionadas e reformuladas torna-se basilar ao desenvolvimento da sociedade, como ensinam
Adorno (1995), Freire (1987) e Arendt (2007). Assim, a existência coletiva, que se forma
pela união das particularidades humanas, é influenciada por mudanças individuais.
Essas reflexões parecem fundamentais à percepção de que todas as pessoas humanas
são sujeitos de direitos e fundamentais ao amálgama formador das inter-relações que
possibilitam a existência dos seres. Acredita-se, dessa forma, que, ao se entender como parte
integrante e valorizada do mundo, cada indivíduo pode se tornar mais capaz de experienciar,
efetivamente, suas incumbências em prol de um futuro mais justo, seguro e que garanta vida e
dignidade a todos. Tal responsabilidade pode acarretar a prática da cidadania, fundamental à
consolidação democrática, que, para Dallari (1998, p. 14):
expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de
participar ativamente da vida e do governo de seu povo. Quem não tem
cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de
decisões, ficando numa posição de inferioridade dentro do grupo social.
A Educação, nesse contexto, deve exercer função essencial, pois precisa garantir os
jaezes fomentadores de discussões que, ao refutarem a perpetuação de métodos, práticas,
conceitos e resultados, alavancam a consciência humana, incentivando o progresso científico
e moral das civilizações. Por ululante obviedade, esse progresso somente se constrói através
da união dos indivíduos, fato que exige, então, o estabelecimento de uma dinâmica de
conscientização de que cada pessoa deve sempre rever seus baldrames e comportamentos, de
forma a impulsionar a conduta coletiva em busca de benefícios a todos.
A Constituição Republicana de 1988 prevê, em seu artigo 2051, o direito de acesso de
todos à Educação, que deve visar ao “desenvolvimento pleno da pessoa” e “seu preparo para o
exercício da cidadania”. Essa previsão jurídica, conforme se percebe, corrobora o
entendimento de que a coletividade se beneficia pelo exercício pleno e consciente da
participação de cada elemento humano, somente possível pelo desenvolvimento dos
indivíduos. Assim, desenvolvendo-se as pessoas para que elas se tornem, efetivamente,
cidadãs, desenvolve-se a sociedade.
Essa dinâmica reflexiva é responsável pela crença na potencialidade de se apontarem
nuances da transdisciplinaridade da EDDHH em memorial de atividades realizadas durante
Espeducampo da UFMS. Intenciona-se esse quefazer por se acreditar na relevância de
publicidade das mudanças de entendimento e comportamento desencadeadas na MMF, do
início ao término das participações nas disciplinas obrigatórias, acerca da Educação à
distância e das condições de vida dos habitantes do campo brasileiro.
Dessa forma, busca-se, precipuamente, a constatação dos malefícios sociais
produzidos pela perpetuação do senso-comum, que dissemina engodos responsáveis,
mormente, pela manutenção de mesquinhos interesses capitalistas propagadores do subjugo
do Homem por homens. Com isso, ressalta-se a importância da Educação, em todos os níveis
e especificidades, pois somente ela pode transformar preconceitos em comissividade social
construtiva e desmistificar prosopopeias, mostrando às pessoas o valor de se lutar pelo
respeito de quem se é.
Sobre essa peculiar capacidade humana de refletir e reformar posicionamentos, inspira
Freire (1979, p.42) à prática comunicativa, que “é o encontro no qual a reflexão e a ação,
inseparáveis daqueles que dialogam, orientam-se para o mundo que é preciso transformar e
humanizar”. Logo, faz-se imperativo que os indivíduos percebam a necessidade de reflexão
transdisciplinar acerca dos infinitos assuntos componentes da complexidade da vida e
consigam expor o entendimento subjetivo dessa transdisciplinaridade aos seus pares, de
maneira a instigar pensamentos e ações desencadeadoras dessa transformação humanista.
No cenário acadêmico de Educação Superior, a atividade dialógica parece ainda mais
necessária, pois a responsabilidade científica exige a perpétua busca por revisões conceituais e
metodológicas, que estimulam o desenvolvimento. Pode-se considerar, dessa forma, que
mesmo os monólogos discursivos são fundamentais à elaboração de novos saberes, pois
1 Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho.
personificam “conversas” dos indivíduos com eles mesmos. Assim, é bastante habitual, entre
pesquisadores, a prática de registro de diários, por exemplo, que revelam o cotidiano de
sucessos, fracassos e impressões perante atividades de estudo e investigativas.
Nesse contexto, o exercício memorialista presta-se à função dialógica, pois permite a
possibilidade de análise do pensamento e do comportamento do narrador, no lapso temporal
registrado. Isso porque, como ensina Santos (2009, p. 12), a autobiografia aborda
teoricamente a análise do desenvolvimento do biógrafo, apontando uma simbiose entre fala e
escuta assuntadas em suas experiências, produzindo memória na qual o “sujeito constrói uma
narrativa sobre ele próprio, que lhe permite, e ao pesquisador, estabelecer as interfaces sobre
sua identidade diferente e singular constituída num circuito de alteridade”.
Explica-se, ainda, que esse trabalho memorialista, como pretende verificar a influência
da transdisciplinar EDDHH na Espeducampo, mostra-se temporal e materialmente restrito,
fato que permite o equipar ao chamado “memorial de formação”, estilo textual bastante
utilizado como trabalho de conclusão de cursos de graduação e que, conforme ensinam Prado
e Soligo (2005, pp. 59-60), tem um elemento limitante, pois seu conteúdo trata de vivências e
partes da vida relacionadas às “reflexões que tiveram lugar a partir do curso do qual se
participa/participou – e as mudanças decorrentes”.
Estudos de Pereira, Silva e Rutini (2011), Sartori (2007) e Rodrigo (2009) tratam da
elaboração de memoriais e sua relevância científica e mostram que essa construção narrativa
pode funcionar como marco norteador de rumos e atitudes, ao memorialista e a outros, de
forma a coibir a reiteração de equívocos, pois, toda narração, para Benjamin (1985, p. 200):
tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa
utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão
prática, seja num provérbio ou numa norma de vida - de qualquer maneira, o
narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas, se “dar conselhos”
parece hoje algo de antiquado, é porque as experiências estão deixando de
ser comunicáveis. Em consequência, não podemos dar conselhos nem a nós
mesmos nem aos outros. Aconselhar é menos responder a uma pergunta que
fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo
narrada. Para obter essa sugestão, é necessário primeiro saber narrar a
história (sem contar que um homem só é receptivo a um conselho na medida
em que verbaliza a sua situação). O conselho tecido na substância viva da
existência tem um nome: sabedoria.
Justifica-se, com essa asseveração benjaminiana, a imperatividade de se compreender
que a reflexão sobre vivências pode ser, exatamente, a maior contribuição existencial de todos
os indivíduos e não apenas dos membros da comunidade acadêmica. Esse entendimento pode
justificar a escolha da MMF ao relato das transformações discursivas pelas quais passou,
durante sua participação na Espeducampo, contribuindo à exemplificação concreta de que a
Educação é o único instrumento efetivamente libertador de “verdades” e questionador de
preconceitos.
Assim, como durante muito tempo a MMF nutriu ideias e comportamentos de não-
valorização e preconceito aos interesses sociais do campo, esse trabalho pretende a
documentação de um processo de correção de seus equívocos através da possibilidade de
acesso a informações trazidas pela Espeducampo e mostradas em suas atividades avaliativas
obrigatórias. Isso aponta a importância pedagógica da propositura de reflexões que buscam a
libertação dos indivíduos pela análise justa de todos os elementos envolvidos em um processo
de interação, pois, como ensina Freire (1987).
Nesse contexto de mudança de foco reflexivo, figurou de maneira imprescindível a
chamada EDDHH, que, para Fortes (2010, p. 09):
(...) é compreendida como um processo sistemático e multidimensional que
orienta a formação de sujeitos de direitos, articulando várias dimensões,
como a apreensão de conhecimentos sobre Direitos Humanos; a afirmação
de valores, atitudes e práticas que expressam uma cultura de Direitos
Humanos; a afirmação de uma consciência cidadã; o desenvolvimento de
processos metodológicos participativos; e o fortalecimento de práticas
individuais e sociais que gerem ações e instrumentos em favor da promoção
e da defesa dos Direitos Humanos. (...) os Direitos Humanos são uma área de
conhecimento transdisciplinar que deve estar presente na formação de todos
desde a mais tenra idade, alcançando, inclusive, a formação inicial e
continuada de nível superior de todos os cursos e áreas de conhecimento.
Análises de Zenaide (2010), Vargas (2008) e Piovesan (2001) ressaltam a relevância
da presença da temática humanista na Educação Superior, de forma estimuladora às práticas
de debate revisional da condição humana, em todas as suas nuances. Referem-se essas
pesquisadoras tanto à necessidade de incorporação de matérias específicas relativas à
EDDHH, quanto ao aprimoramento da disseminação do assunto de forma transdisciplinar,
mote cuja proeminência à formação de cidadãos comprometidos também é tratada por Lobino
(2009).
Como assevera Orlandi (2007), a Educação é indispensável para ecoar e fazer
ascender o tema humanista, pois ela constrói uma postura crítica frente ao desrespeito
(perpetuado pela sociedade burguesa) dos valores defendidos pelos DDHH. Essa estudiosa
ensina que, pela dificuldade de se viver em uma estrutura social burguesa sem se identificar
com a segregação que ela ocasiona, a Educação é um espaço no qual os indivíduos podem
refletir situações, evitando se perceberem como simples reprodutores de ideologias e
comportamentos, vivenciando uma autonomia transformadora.
Nesse raciocínio, Bittar (2006, apud FRANCO, 2009, p. 14) explica que “educação
que não seja desafiadora, que não se proponha a formar iniciativas, que não prepare para a
mobilização, que não instrumente a mudança, que não seja emancipatória, é mera fábrica de
repetição das formas de ação já conhecidas”. Assim, o escopo da EDDHH constitui o preparo
para o desafio, pois a essência educativa é exatamente o chamamento à elaboração de relatos
e vivências, em respeito à valorização da diversidade e à transformação, deferência somente
construída na experiência das inter-relações.
Sobre o aspecto conceitual da EDDHH, Benevides (2000) e Politi (2010) esclarecem
se tratar do interesse pedagógico em se formarem membros da sociedade que respeitem e
exijam o respeito à dignidade humana, à liberdade, à justiça, à igualdade, à solidariedade, à
cooperação, à tolerância, à paz, à não-discriminação, à ética, à responsabilidade, instigando as
pessoas à percepção de que esses princípios foram arduamente conquistados e que, em razão
disso, precisam ser vivenciados e defendidos.
Ressalta-se, por essa consideração, a relevância da prática memorialista ao
desenvolvimento social, pois, como se sabe, hodiernamente, a formação de uma cultura
somente é possível pelo amálgama de individualidades (NOGUEIRA, 2010; PESAVENTO,
2004). Isso repercute a retomada, na transdisciplinaridade humanista, da tentativa de mostrar a
necessidade de “diálogos” entre indivíduos e áreas do conhecimento (somente possível pela
inter-relação memorialista de pessoas e saberes), porque, conforme ensina Betto (2011, s/p.),
a EDDHH “deve ser dialógica”.
A observação da transdisciplinaridade humanista, em todos os setores da sociedade e,
especialmente, no ambiente educacional, é indispensável às mudanças pretendidas aos
alicerces do futuro. Sobre isso, Betto (2011, s/p.) denuncia ainda que:
A falta de um programa sistemático de educação em direitos humanos (...)
favorece que se considere violação o assassinato, mas não a tortura policial
empregada como método de intimação e investigação; o roubo, mas não a
miséria que atinge milhares de pessoas; a censura, mas não a intervenção
estrangeira em países soberanos; o desrespeito à propriedade, mas não a
sonegação do direito de propriedade à maioria da população.
Essas percepções de desvirtuamento de interesses e escopos são o principal foco da
Educampo, uma das várias subdivisões horizontais da oferta pedagógica brasileira, defendida
em documentos jurídicos pátrios e internacionais, que busca, exatamente, a prática libertadora
da autodeterminação e da valorização dos indivíduos. Independente de suas raízes e suas
condições, a Educampo exige a transformação social direcionada na aceitação dos valores e
saberes das populações das zonas não-urbanas, que buscam, muito além do acúmulo de
capital, a própria sobrevivência da vida no planeta.
Trabalho de Dutra (2010, p. 52), ao alertar sobre o interesse da vida citadina na
disseminação dos DDHH, pode, perfeitamente, reafirmar, também, a situação rural brasileira,
tornando inequívoca a importância da Educampo, pois:
O ambiente urbano (e rural)* imerso em violência e desigualdade pouco
contribui para que se construa um verdadeiro entendimento sobre a idéia de
justiça ou direitos individuais. Por isso, o silêncio da sala de aula sobre este
assunto contribui para que se perpetue a desigualdade e, que ao invés de
fornecer ferramentas para que o aluno seja capaz de ler o real e suas
implicações sociais, econômicas e políticas, simplesmente permite que se
propague aquilo que o professor pretende combater. Silenciar sobre os
Direitos Humanos é criar um conceito precário de cidadania. (*aditado pela
MMF)
Considerações de Vendramini (2007), Fernandes (2005) e Molina (2003) mostram a
preocupação dos estudiosos do assunto quanto ao estreitamento conceitual da vertente
pedagógica campesina, porém reforçam a importância de seu surgimento. Para Caldart (2011,
p. 02), a Educampo merece destaque porque surgiu graças à capacidade mobilizadora dos
“movimentos sociais por uma política educacional para comunidades camponesas (...) pela
implantação de escolas públicas nas áreas de Reforma Agrária (...) para não perder suas
escolas, suas experiências de educação, suas comunidades, seu território, sua identidade”.
Nas últimas décadas, vários segmentos, impulsionados pelas conquistas dos
Movimentos Sociais, começaram a apontar interesse à defesa da Educampo, exigindo a
elaboração e efetivação de políticas públicas que tutelassem o direito de acesso educacional às
comunidades rurais. Inúmeros documentos jurídicos, nacionais e estrangeiros, abarcaram em
seus expedientes as questões fundamentais reivindicadas pelos ativistas e, precipuamente,
garantiam a distinção da oferta pedagógica aos habitantes das zonas não-urbanas, respeitando
seu espaço geográfico e suas características.
Não obstante, surgiu a necessidade de reestruturação, também no ambiente acadêmico,
das reflexões provocadas pela política de Reforma Agrária (contida na Constituição
Republicana de 88) e por todas as suas consequências sociais. Assim, principalmente os
pesquisadores responsáveis pelas áreas de Licenciatura tiveram de adequar suas práticas para
apresentá-las aos profissionais que poderiam ocupar os cenários pedagógicos do campo, além
de, necessariamente, terem de disseminar as influências do processo a toda a sociedade.
Nesse mister de oferta e adequação, a Universidade Aberta do Brasil (UAB)
disponibilizou um específico curso de Licenciatura para docentes da zona rural que
completaram apenas o Ensino Médio. No ano de 2009, foram iniciadas, em parceria com
instituições públicas de Educação Superior, além de eventos de aperfeiçoamento, ofertas de
curso de Especialização em Educampo, que visam ao atendimento de vários setores sociais e
de “3.280 professores da educação básica que lecionam em escolas rurais nos municípios
próximos a 77 polos da UAB”2.
Parceira da UAB, a UFMS, em 2009, tornou pública “a seleção de candidatos para o
Curso de Pós-Graduação lato sensu, nível de especialização, em Educação do Campo, área de
concentração em Educação, a ser oferecido pela Coordenadoria de Educação Aberta e a
Distância/RTR/UFMS, na modalidade à distância”3. Tal edital previa como clientela
“professores/as e técnicos/as das Secretarias de Educação, participantes de movimentos
sociais e demais membros da comunidade interessados no assunto, que sejam portadores de
diploma de curso de graduação (...) e possuam habilidades para aprendizagem à distância”4.
Assim, após procedimentos de organização e seleção, em dezembro de 2009, foram
iniciadas as aulas da primeira turma de Espeducampo de Mato Grosso do Sul, que marcaram
fundamentalmente a MMF, com previsão de término no ano de 2011. Compreendendo uma
modalidade de aprendizagem à distância, o curso previa encontros para a realização de
atividades presenciais, a serem realizados nos municípios de Água Clara, Camapuã, Rio
Brilhante, São Gabriel do Oeste, Porto Murtinho, Miranda, Costa Rica e Bataguassu, nos
chamados “polos de apoio”.
A Espeducampo da UFMS foi dividida em módulos e subdividida em eixos temáticos,
de acordo com o Quadro 1 (elaborado pela MMF - que fez parte do polo da cidade de
Miranda - conforme informações de cronograma disponibilizado no ambiente virtual5 de
atividades da Especialização, que também apresentava o quadro docente responsável pela
2 Notícia “UAB oferecerá especialização em educação do campo”. Disponível em:
http://www.educador.brasilescola.com/noticias/uab-oferecera-especializacao-educacao-campo.htm. Acesso: 02
Fev. 2011.
3 Resolução COC/UFMS 48, de 28/10/2009. Disponível em:
http://www.propp.ufms.br/index.php?section=edital&itemId=132. Acesso: 11 Fev. 2011.
4 Idem.
5 Disponível em: http://virtual.ufms.br/course/view.php?id=219. Acesso: 26 Fev. 2011.
apresentação das disciplinas). Verifica-se que não se figura qualquer menção à disciplina de
DDHH6, porém uma análise mais elaborada reafirma o entendimento da impossibilidade de se
abordar a Educampo de forma desassociada da questão humanista.
Quadro 1 - Módulos, eixos temáticos e respectivas cargas horárias do curso de Especialização em
Educação do Campo da UFMS
Fonte: Elaborado pela MMF, 2011
Como se percebe pela simples análise dos temas abordados, a problemática dos
DDHH se imiscui de forma inquestionável à Educampo, pois, segundo Antonio e Lucini
(2007) e Perin e Caldas (s/d.) influenciada pela Pedagogia Freireana, a Educampo, por
intentar a libertação de quaisquer formas opressoras e incentivar o respeito incondicional à
alteridade, dissemina a própria EDDHH.
Todas essas considerações repercutem a imperatividade das práticas reflexivas que,
inexoravelmente, devem levar os indivíduos da apatia à ação questionadora dos motivos pelos
quais a realidade se apresenta, mesmo em tempos atuais, de forma tão vexatória à condição
“civilizada” do Homem. Ao refletir sobre “a crise na Educação”, em 1957, Arendt (2006),
6 O eixo temático “Educação para a diversidade”, apesar de compor o primeiro módulo estudado, previa apenas
01 h/a de considerações e foi direcionado às observações das peculiaridades da Educação à Distância e à
estruturação do programa Rede de Educação para a Diversidade (projeto no qual instituições de Ensino Superior
desenvolvem eventos de formação docente continuada).
MÓDULO EIXO TEMÁTICO CARGA
HORÁRIA
I: Apresentação,
Conceitual EaD,
Ferramenta Moodle
Educação do Campo/ Educação para a Diversidade 01h
Conceitual EAD 01 h
Ferramenta Moodle 13 h
II: Introdução a
Educação do Campo
Fundamentos e História da Educação do Campo 30 h
Educação e Movimentos Sociais do Campo 30 h
Educação e Questão Agrária/Ambiental 30 h
III: Práticas
Pedagógicas em
Educação do Campo
Princípios norteadores das Práticas Pedagógicas em
Educação do Campo 30 h
Princípios Organizadores do Trabalho Pedagógico em
Escolas de Educação do Campo 30 h
Planejamento Pedagógico: Metodologias e Práticas em
Educação do Campo
30 h
IV: Gestão
Educacional no
Campo
Políticas de Educação do Campo 30 h
Gestão e Financiamento na Educação do Campo 30 h
Gestão de Sistemas de Ensino e Avaliação de Políticas
Educacionais do Campo 30 h
V: Metodologia do
Trabalho Científico
Transformando a Realidade da Educação do Campo
TCC/Monografia (Registro de Projeto de Ação em diálogo
com o referencial teórico abordado no Curso)
60 h
VI: Seminário de
Finalização
Contribuições para a Educação do Campo de Mato Grosso
do Sul (Seminário: Sessões Temáticas de Apresentação
Oral e Debates sobre as Monografias)
15 h
certamente, não acreditava que, no século XXI, Marques e Rodríguez (2010, p. 10) ainda
relatassem que:
Nos campos brasileiros o elenco de problemas é infindável. Há dados sobre a
inexistência de escolas minimamente equipadas para acolher alunos e
desenvolver com eles um ensino aprendizagem voltado para a cidadania,
cultura geral, cultura do campo, trabalho, música, arte, esporte, comunicação
e expressão diversificada incluindo o acesso às novas tecnologias entre
outras formas de valorizar a escola pública. Acrescente-se como problema a
carência de Ensino Médio no campo para adolescentes, jovens e adultos que
não podem estudar durante o dia; a quase inexistência da educação infantil, e
até recentemente a falta de escolas de ensino fundamental acolhendo
crianças e pré-adolescentes que buscam as séries finais do Ensino
Fundamental. E o que é preocupante, a ausência de políticas públicas para
adolescentes e jovens do campo privados atualmente do acesso à cultura
nacional e internacional seja aquela que mais se expressa nos campos seja a
cultura citadina.
Mostra esse trabalho que a transdisciplinaridade da EDDHH na Educampo constitui o
mecanismo propulsor reflexivo dos interesses de toda a sociedade e não apenas daqueles que
vivem no e do ambiente rural. Isso porque a sobrevivência física das pessoas depende da
produção do campo e da exploração sustentável dos recursos naturais, que devem ser
percebidas como questões fundamentais de toda a sociedade. Nesse contexto, a Educação não
pode se perceber imparcial, pois ela é, como afirma Arendt (2006, p. 52), “o ponto em que se
decide se se ama suficientemente o mundo para assumir responsabilidade por ele”.
A metodologia adotada nessa produção acadêmica compreende os métodos
bibliográfico e memorialista, que se amalgamam na apresentação das atividades avaliativas
obrigatórias desenvolvidas pela MMF durante a Espeducampo. A revisão das produções
desencadeou análises acerca da interferência da transdisciplinar EDDHH e suas nuances,
apontando a percepção da MMF sobre o conteúdo humanista instigado pela teorização
acadêmica sugerida no ambiente virtual de aprendizagem, além dos outros textos que
fundamentaram as tarefas.
O trabalho desenvolve-se em quatro capítulos, nomeados pelo emprego dos quatro
primeiros títulos dos módulos da Espeducampo aditados por complementação subjetiva da
MMF. Os capítulos foram divididos em partes nominadas de acordo com os eixos temáticos
de cada módulo e trazem breves comentários acerca do processo de produção textual, além de
subdivisões que mostram os textos apresentados durante o curso. Ao final de cada capítulo,
percebe-se um quadro no qual se verifica a influência da transdisciplinaridade da EDDHH nas
atividades apresentadas.
Assim, no Capítulo I, chamado “Módulo I - apresentação do curso, conceitual ead e
ferramenta moodle: a ead e suas implicações humanistas”, apresentam-se os interesses,
benesses e dificuldades da oferta educacional à distância. O Capítulo II, “Módulo II -
introdução à educação do campo: o despertar da transdisciplinaridade humanista nas questões
da terra”, traz o início das questões relativas à Educampo, à propriedade e aos Movimentos
Sociais, no Brasil, além de promover reflexões sobre a transdisciplinaridade das questões
ambientais.
O Capítulo III, intitulado “Módulo III - práticas pedagógicas em educação do campo:
descobrindo-se para aceitar a diversidade”, aborda, precipuamente, as questões humanistas
percebidas na elaboração de atividades pedagógicas. No Capítulo IV, “Módulo IV - gestão
educacional no campo: a defesa da Educampo, da democracia e dos DDHH”, apresenta-se
uma coleta de dados e reflexões acerca da Educampo no município da MMF, preocupando-se
com o conhecimento de particularidades locais na defesa da valorização e respeito da
diversidade.
As conclusões do exercício bibliográfico e memorialista que representa esse trabalho
estão presentes em Considerações finais, que apresenta de maneira insofismável a
importância da Espeducampo na prática reflexiva que desencadeou novas posturas
idiossincráticas e comportamentais na MMF. Quiçá esse trabalho possa contribuir, através da
prática reflexiva proposta pela Educação, a outras mudanças pessoais que, valendo-se da
transdisciplinaridade da EDDHH na Educampo, fomentem discussões e levantes interessados
na defesa das questões da terra.
25
1. MÓDULO I - APRESENTAÇÃO DO CURSO, CONCEITUAL EAD E
FERRAMENTA MOODLE: A EAD E SUAS IMPLICAÇÕES
HUMANISTAS
O módulo I da Espeducampo objetivou apresentar o curso, provocar reflexões acerca
do aspecto conceitual da EAD e promover acessos iniciais à ferramenta Moodle, o ambiente
virtual facilitador da interação entre usuários (cursistas e monitores, precipuamente) e as
produções acadêmicas sugeridas para direcionamento das atividades. Iniciado no final do mês
de dezembro de 2009, esse módulo compreendia atividades, a serem realizadas em 15 h/a,
sobre questões relativas a seus três eixos temáticos, além de reflexões sobre a democratização
de oferta informativa que pode ser possível graças às novas tecnologias.
1.1 Eixo temático: educação do campo / educação para a diversidade
A primeira atividade proposta no ambiente virtual da Espeducampo solicitava uma
redação, de no máximo 10 linhas, que expressasse as possíveis facilidades das TICs no
processo de ensino-aprendizagem, especialmente nas escolas do campo. MMF apontou, na
oportunidade, o texto intitulador da próxima subdivisão desse trabalho que, apesar de apontar
certa basilaridade, já apresenta algum interesse às repercussões da transdisciplinaridade
humanista, especialmente por enfocar as dificuldades que impedem o acesso da
universalidade de pessoas humanas à Educação.
1.1.1 TICs e Educampo: potencialidades
A interferência das TICs, como todos os avanços produzidos e vivenciados pelo
Homem, ainda não dispõe de unanimidade valorativa quanto ao seu emprego na área
educacional7. Entretanto, é inquestionável a potencialidade de seus recursos ao processo de
7 Curiosamente, há vozes ainda que sentenciam ser o uso das TICs o total definhamento da Educação, mesmo
quando tal pensamento é disseminado através de recursos midiáticos. A revista Veja do dia 03 de fevereiro de
2010, em matéria intitulada “O fenômeno Avatar”, ao abordar elementos que tentam explicar o sucesso do filme
de James Cameron, propõe uma intrigante reflexão acerca da interferência da tecnologia no mundo moderno, que
pode ser direcionada à área da Educação. Analisando o texto jornalístico, percebe-se a ambivalência imiscuída
26
ensino-aprendizagem que pode ser oferecido aos de muita vontade (porém, muitas vezes, de
poucos recursos) e de grandes sonhos (porém, amiúde, de pequenas oportunidades).
Destarte, as TICs podem ser exploradas à consolidação da Educampo, pois
possibilitam uma flexibilização a esse peculiar contexto educacional, que entende e valoriza
cada indivíduo de forma integrada ao seu ambiente e à sua história. A ingerência tecnológica
educacional, no campo, pode alavancar a dinâmica das relações e fortalecer os valores éticos e
justos que devem permear qualquer sociedade interessada de fato na busca pelo progresso.
1.2 Eixo temático: conceitual EAD
A segunda atividade da Espeducampo previa a redação de um pequeno texto que
apontasse os principais empecilhos à melhoria da Educampo e ao desenvolvimento da
localidade da cursista. Nessa ocasião, surgiu, pela primeira vez, a apresentação do termo
DDHH na produção da MMF. Seu gosto pela Literatura e seu debruçamento nas questões da
Segurança Pública, especialmente fomentado pelas questões propostas pela Polícia
Comunitária, entrelaçaram-se no texto apresentado a seguir, que nomeia a próxima subdivisão
desse memorial.
1.2.1 Sobre Barros e a Educampo
A ideia de Kant (2006, p. 82) de que “a violação de um direito em um ponto da Terra
repercute em todos os outros lugares” parece servir como defesa à atual imperatividade de
atenção aos assuntos relativos ao campo, especialmente quando se considera a relevância da
produção rural à economia e à própria sobrevivência humana. Assim, nos últimos anos,
aguçados pelas reivindicações sociais providas pelo conhecimento da proteção dos DDHH,
diversos documentos têm sido elaborados visando a garantias às comunidades rurais,
principalmente nos assuntos relacionados à propriedade e à educação.
Grosso modo, a Educampo, no Brasil, tem como gênese a tentativa de resposta aos
anseios de Movimentos Sociais interessados na tutela da diversidade humana, especialmente
quanto aos aspectos relacionados aos direitos fundamentais dos indivíduos das regiões
na produção americana ao disseminar que “tudo o que seja associado à tecnologia é carregado de negatividade”,
embora tal mensagem seja transmitida com os mais avançados recursos tecnológicos.
27
diferentes das urbes. O entendimento de que se faz mister a proteção das exigências dos
habitantes do campo tem buscado, precipuamente, combater o juízo capitalista histórico de
que o labor campeiro não necessita de escolarização, visão ultrajante ao mundo de paz,
justiça, dignidade e igualdade apregoado pela valorização humana.
Nesse contexto evolucionista, a ideia de que o desenvolvimento é aspecto
desencadeador de liberdade merece profundas reflexões acerca das cargas semânticas desses
sintagmas e suas devidas consequências. Bobbio (1992, pp. 43-44) pode suscitar uma
interessante análise do assunto, pois o autor chama de:
“liberdades” os direitos que são garantidos quando o Estado não intervém; e
de “poderes” os direitos que exigem uma intervenção do Estado para sua
efetivação. Pois bem: liberdades e poderes, com frequência, não são - como
se crê -complementares, mas incompatíveis. Para dar um exemplo banal, o
aumento do poder de comprar automóveis diminuiu, até quase paralisar, a
liberdade de circulação. Outro exemplo, um pouco menos banal: a extensão
do direito social de ir à escola até os catorze anos suprimiu, na Itália, a
liberdade de escolher um tipo de escola e não outro. Mas talvez não haja
necessidade de dar exemplos: a sociedade histórica em que vivemos,
caracterizada por uma organização cada vez maior em vista da eficiência, é
uma sociedade em que a cada dia adquirimos uma fatia de poder em troca de
uma falta de liberdade.
Destarte, para serem evitados equívocos que, escamoteados como protetores, de fato
intensifiquem a problemática da Educampo, é imperativa (acima e antes de quaisquer ações) a
promoção do diálogo acerca da escolarização pretendida pelas populações diferenciadas, pois,
como depende da ingerência estatal, se o pensamento de Bobbio tiver algum significado, a
consolidação dessa Educação poderá gerar poder e não liberdade. Dessa forma, transita-se
sobre tênue liame: necessita-se da tutela estatal, porém não se pode admitir massificação de
práticas pelo desprezo a qualquer particularidade daqueles a quem favorece.
Nesse cenário de dualidades (igualdade frente ao respeito às diferenças; poder versus
liberdade; público contra privado; rural e urbano), a Segurança Pública pode ser um
importante aliado, especialmente quanto à teoria já proposta pela efetivação de políticas de
inserção da chamada Polícia Comunitária, que, para Trojanowicz e Bucqueroux (1994, p. 05)
é:
uma filosofia e uma estratégia organizacional que proporciona uma nova
parceria entre a população e a polícia. Baseia-se na premissa de que tanto a
polícia quanto a comunidade devem trabalhar juntas para identificar,
priorizar e resolver problemas contemporâneos.
28
Assim, da mesma forma que se pretende, na Polícia Comunitária, a valorização dos
indivíduos para que eles se percebam como os verdadeiros agentes do bem-estar social e da
segurança, também se pode afirmar ser primordial que a Educação seja discutida de forma a
respeitar os valores e os anseios de cada comunidade, promovendo a autodeterminação
individual. Isso poderá legar (aí sim!) a verdadeira liberdade (em seu sentido lato), que pode
representar, até mesmo, a vontade coletiva de abdicar de algumas liberdades (em sentido
stricto) em favor da segurança, da sobrevivência e do convívio mútuos.
Na comunidade aquidauanense, apesar de algumas investidas à defesa da Educampo,
ainda se percebe a tentativa de tutela à igualdade formal em detrimento da igualdade material,
principalmente sob a abjeta intenção de garantir as mesmas condições8 a todos os indivíduos,
sem a observação de suas particularidades. Ainda é muito comum, por exemplo, a oferta dos
mesmos recursos didáticos a todas as escolas, sem que haja uma prévia consulta aos
interessados sobre o assunto, respaldando ações através das chamadas “decisões de gabinete”.
Outro importante aspecto a ser considerado refere-se à precariedade de atividades
relacionadas à Educampo nos diversos cursos de graduação que atendem à população de
Aquidauana, que demonstra, ainda, pelo menos, o desinteresse acadêmico ao assunto. Isso,
em simplista análise, pode significar o apego à massificação já abordada nesse texto,
despreocupada com particularidades regionais, pois, mesmo em um ambiente natural e
culturalmente profícuo à iniciativa de valorização da diversidade biológica, geográfica e
étnica, são ínfimas as manifestações dessa identidade.
As práticas pedagógicas ainda são direcionadas à valorização do externo e estrangeiro,
legando aos autovalores uma “timidez” desenxabida, precária pela estima e geradora dos
conflitos que impelem o “estudar para sair do campo ou sair do campo para estudar”. Isso sem
falar de outras questões, como o desabafo de um estudante do campo que, ao receber seu
uniforme de aula, bradou que aquele “branquinho, branquinho” não poderia ser mantido com
o uso da água do rio na lavagem, ou daquele outro aluno que, em conversa com o professor de
Educação Física, ouviu a exigência do uso de tênis à aula esportiva9.
Todas essas questões, quiçá, podem ter o início de suas reflexões desencadeadas pelo
entendimento dos profissionais comprometidos com o respeito incondicional ao ser humano e
com a valorização da identidade de cada indivíduo que integra as comunidades, provocando o
8 A autora corrobora o entendimento de que as oportunidades devem ser oferecidas em quantidades iguais e não
sob as mesmas roupagens.
9 Relatos de estudantes indígenas, alunos da MMF no ano de 2005.
29
ciclo necessário à consolidação do processo, no qual os próprios membros do campo se
tornarão responsáveis pelo ensino dos seus. Isso pode impulsionar a auto-estima e solidificar a
manutenção da dignidade a todos os homens, especialmente entre aqueles que se
responsabilizam pelo alimento de todos.
Quando isso se realizar, provavelmente, o campo deixará de ser palco de violados e
violadores para, literalmente, fazer germinar o presente e o futuro desta nação agrícola. Logo,
o desenvolvimento se mostrará através da capacidade plena de autodeterminação dos homens
rurais, que decidirão, de forma livre, se preferem o poder ou a liberdade de que fala Bobbio,
refutando todos os indícios de preconceito e todas as tentativas de manipulação e subjugo.
O poeta Manoel de Barros (s/d., s/p.), ao expor sua admiração pelo homem do campo,
por sua essência e por sua própria identidade, afirmou que o “pantaneiro aprendeu com a
natureza / ele sabe que o ermo tem cantos / e que o silêncio tem cílios. / Ele já foi arborizado
pelos pássaros”. Assim, parece pertinente sonhar que, um dia, todos os homens conseguirão
compreender a riqueza do conhecimento que vem da terra e, transformados pelo desejo de
valorização dos seus semelhantes, ver-se-ão refletidos neles, arborizados pelos pássaros.
1.3 Eixo temático: ferramenta Moodle
O terceiro eixo temático da Espeducampo, a fim de estimular a interação entre
cursistas e ambiente virtual de aprendizagem, solicitava um texto de 10 a 20 linhas que
trouxesse o conceito de EAD, apontando as potencialidades e as limitações desse recurso,
além da responsabilidade social e do esforço pessoal do aluno que se dispõe a esse tipo de
aprendizagem. Novamente a MMF se utilizou do termo DDHH, apontando, implicitamente, a
aplicação do uso das tecnologias para a efetivação de oferta educacional, que deve atender à
universalidade humana. Assim, a subdivisão sequencial intitula o texto produzido.
1.3.1 Sobre EAD e diamantes em lapidação
A Educação tem buscado se adaptar à evolução humana preocupando-se cada vez mais
com as possibilidades da ingerência das modernas formas de tecnologia às práticas
pedagógicas. Entendida potencialmente como a “Educação do Futuro”, a (já presente!) EAD
tem sido apresentada como um importante aliado da necessidade de oferta de oportunidades
de instrução a uma maior quantidade de pessoas, “hospedadas” no mundo em quaisquer que
30
sejam os recantos. Entretanto, mesmo sendo um potencial mecanismo de obediência à
determinação dos principais documentos internacionais de DDHH, a EAD ainda prevê
inúmeros aspectos limitadores.
Entre os empecilhos que se percebem à sua consolidação, especificamente no caso
brasileiro, pode figurar o equivocado entendimento pós-ditatorial de que, se não houver direta
fiscalização e constante convívio, não pode haver autodisciplina, condição indispensável
legada a quem estuda e ao processo de ensino-aprendizagem.
Percebe-se, então, que se inserir em um processo de EAD impulsiona uma ruptura
definitiva com o cerne etimológico da palavra “aluno”. Inicialmente empregado para
identificar aqueles que não tinham a luz do conhecimento (a = ausência / luno = luz), este
vocábulo, com o aprimoramento desta modalidade de ensino, deixou de indicar o indivíduo
que tem como “luz” uma única fonte (o professor), para se transformar na substantivação do
elemento que mais deve fulgurar no processo educacional. Assim, neste modo de
aprendizagem, é o aprendiz um diamante bruto (já brilhante por natureza!), que se
“autolapidará” por ferramentas a ele oferecidas e por outras que ele próprio produzir.10
1.4 A produção do módulo I e a transdisciplinaridade da EDDHH
Apresenta-se, no Quadro 2, a percepção da MMF quanto à transdisciplinaridade
da EDDHH nos textos elaborados no módulo I da Espeducampo e, a seguir, passa-se ao
capítulo seguinte dessa produção acadêmica, que traz a produção desenvolvida no módulo
específico de introdução à Educampo.
10
À refutação de qualquer tentativa anética possibilitada pelo autoplágio, informa-se que a metáfora apresentada
constituiu parte da introdução de atividade encaminhada por MMF ao Curso de Especialização em Polícia
Comunitária, da Universidade do Sul de Santa Catarina (2009). Acredita-se que tal recurso metafórico seja capaz
de apontar a responsabilidade social e a imperativa necessidade de esforço pessoal do estudante de EAD.
Quadro 2 - A influência da transdisciplinaridade humanista nos textos elaborados no módulo I
MÓDULO I
Eixos temáticos Textos elaborados Influência da transdisciplinaridade da EDDHH
Educação do Campo/
Educação para a
Diversidade
TICs e Educampo: potencialidades
Como a Educação personifica um dos ideais humanistas, a EAD pode auxiliar
a possibilidade de acesso educacional a todos os indivíduos a quem se coloquem à
disposição recursos tecnológicos, legitimando a vivência do processo de ensino-
aprendizagem como elemento abalizador da dignidade da pessoa humana.
Conceitual EAD Sobre Barros e a Educampo
Assim como a Educampo visa à valorização do indivíduo que vive nas
comunidades não-urbanas, a EDDHH abaliza o respeito às individualidades,
fomentando nas pessoas o sentimento da importância de suas particularidades à
formação do coletivo, promovendo uma cultura de autovalorização e tolerância,
que busca garantir, precipuamente, a efetivação da cidadania pela participação
social.
Além disso, observa-se a influência de todos os setores da vida humana na
amalgamação das interações, apontando aos indivíduos a importância das “redes de
comunicação” que se formam em comunidades e, consequentemente, faz repercutir
o valor de cada pessoa na dinâmica das relações.
Ferramenta Moodle Sobre EAD e diamantes em lapidação
Novamente, fala-se da valorização humana, pois a própria etimologia da
palavra trabalhada (aluno) aponta, historicamente, a problemática da intolerância e
do subjugo de uns sobre outros.
Mostra, também, a responsabilidade que cada ser humano deve aceitar perante
a construção de melhores condições individuais e coletivas de vida.
Fonte: Elaborado pela MMF, 2011
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2. MÓDULO II - INTRODUÇÃO À EDUCAÇÃO DO CAMPO: O
DESPERTAR DA TRANSDISCIPLINARIDADE HUMANISTA NAS
QUESTÕES DA TERRA
O segundo módulo da Espeducampo trouxe, através de seus eixos temáticos,
conhecimentos e reflexões acerca dos fundamentos e da história da Educampo, além da
repercussão dos interesses agrários e ambientais e da importância dos Movimentos Sociais ao
desenvolvimento da Educação. Com previsão de atividades a serem desenvolvidas em 90 h/a,
seus três eixos temáticos exigiram a leitura de inúmeras produções acadêmicas
(disponibilizadas em formato digital e convencional), que desencadearam o desenvolvimento
de vários textos, incluindo um exercício escrito que foi elaborado durante encontro presencial.
Nas atividades dessa fase da Espeducampo, fomentou-se a transdisciplinaridade da
EDDHH, especialmente pelo acesso a informações sobre a importância dos Movimentos
Sociais nas conquistas da Educação para a clientela que vive no campo. Essa fase da
Espeducampo foi bastante importante para se compreender o desenvolvimento da percepção
da MMF sobre as questões relativas à posse da terra e à propriedade, pois, inicialmente, a
cursista não atinava as implicações e cizânias existentes entre a Educação do Campo e a
Educação no Campo, chegando a elaborar uma ode de agradecimento a um proprietário rural.
Também foi exigida determinada atividade que pretendeu, principalmente,
desencadear reflexões sobre a dinâmica que se estabelece em virtude da condição social do
ser humano, que se amalgama a outros seres para se perceber como elemento pertencente a
uma estrutura de interação. Além disso, o fichamento de uma produção acadêmica fez parte
das tarefas a serem cumpridas, objetivando a percepção da importância do educador no
entendimento de questões agrárias e ambientais que, assim como os ideais humanistas, devem
ser vivenciadas de forma transdisciplinar.
2.1 Eixo temático: fundamentos e história da educação do campo
O módulo II da Espeducampo foi inaugurado pela proposta do eixo temático
interessado nas reflexões sobre os fundamentos e a história da Educampo e suas atividades
solicitaram que, após realização de leituras sugeridas, fossem confeccionados textos que
33
apontassem a história nacional e regional da Educampo, assim como a história do nascimento
de uma escola específica. Novamente relacionou-se o avanço da Educampo com as conquistas
humanistas, alardeando o interesse dos ideais dos DDHH pela diminuição das desigualdades e
pela preservação do meio ambiente para a sobrevivência das espécies.
Também foram abordadas, nas atividades desse eixo temático, a participação de
proprietário rural na criação de escola no campo e, em atividade presencial, durante encontro
na cidade polo, tratou-se da interessante dinâmica social que impossibilita as criaturas de
perceberem como suas próprias atitudes impedem o desenvolvimento da coletividade e afetam
as relações como um todo. Foram elaborados, assim, os textos a seguir, que intitulam as
próximas divisões desse subtítulo apresentado.
2.1.1 Passado, presente, aspiração: a própria vida
Corroborando o pensamento do filósofo pragmático John Dewey de que “a educação é
um processo social, é desenvolvimento; não é a preparação para a vida, é a própria vida”,
acredita-se que a implementação da Educampo é uma conquista de direito difuso. Ela é o
resultado de aspirações dos Movimentos Sociais interessados na publicidade da importância
dos indivíduos e do labor rural à preservação da própria existência humana.
No Brasil, a Educampo se amalgama aos interesses da Reforma Agrária e da
implantação da Política Rural consagradas pela Carta Magna de 1988, que visaram a
responder séculos de discrepâncias sociais. Assim, essa particular vertente educacional
pretende a consolidação de alguns direitos que vem sendo conquistados ao longo de
praticamente toda a História humana, mas que ainda não tutelam a complexidade dos
indivíduos.
Como a distribuição equânime de terras e a consequente valorização das pessoas que
vivem no campo exigem um arcabouço de sustentação, a simples divisão territorial nunca foi
vista como suficiente à garantia da efetividade de defesa da dignidade humana. Nesse
contexto, assim como os subsídios ao cultivo e manejo do solo, a educação das pessoas do
campo também passou a ser exigida pelos Movimentos Sociais interessados na valorização do
meio rural.
Em Mato Grosso do Sul, especialmente pelas condições relacionadas às características
étnicas e naturais do Estado, a Educação sempre foi pressionada a ser abordada com enfoque
à preocupação da diversidade. Isso se deu, preponderantemente, pela presença de
34
comunidades indígenas que exigiram uma prática pedagógica diferenciada, que extinguisse a
tendência elitista-colonizadora de “civilizar” indivíduos “subjugados”.
A preocupação moderna com as questões relacionadas à preservação do meio
ambiente impulsionou as ações dos Movimentos Sociais preocupadas com a defesa da
obrigatoriedade de se observar a função social da propriedade e todas as suas exigências11
e
isso não foi diferente no território sul-mato-grossense. Destarte, a Educampo tem sido exigida
objetivando o atendimento educacional dos indivíduos do campo e a própria proteção do
Pantanal.
Efetivamente, como ainda se inicia a própria condição histórica de Mato Grosso do
Sul12
, a Educampo também busca impulso e incentivos, fomentando discussões e
disseminando novos pensares acerca da manutenção do ser humano (que não pode sobreviver
sem a produção rural) sobre a Terra. Conclui-se, dessa forma, que a ideia educacional de
Dewey pode coligir perfeitamente que do “educar no campo e para o campo” depende,
literalmente, “a própria vida”.
2.1.2 Pantanal sateriano13
A fogueira, a noite / Redes no galpão
O paiero, a moda, / O mate, a prosa
A saga, a sina / O causo e onça / Tem mais não14
O filósofo pragmático John Dewey, em busca de explicações conceituais acerca da
Educação, disse que ela “é um processo social, é desenvolvimento; não é a preparação para a
vida, é a própria vida”. Corroborando com a assertiva do pensador norte-americano, acredita-
se que a implementação da Educampo tem sido uma conquista de direito difuso. Ela é o
resultado de aspirações sociais à publicidade da importância dos indivíduos e do labor rural à
preservação da própria existência humana.
Como se sabe, no Brasil, a Educampo se amalgama aos interesses da implantação da
Política Rural e da Reforma Agrária (e suas consequências jurídicas) consagradas pela Carta
11
Remete-se ao art. 186 do Estatuto da Terra, Lei 4504, de 30 de novembro de 1964.
12
O segundo mais novo Estado da Federação.
13
Desenvolvimento do texto Passado, presente, aspiração: a própria vida, apresentado em cumprimento à
atividade 1 do módulo II da ESPEDUCAMPO, da UFMS.
14
Estrofe da música Peão, de Almir Sater e Renato Teixeira.
35
Magna de 1988, que visaram a responder séculos de discrepâncias sociais. Assim, essa
particular vertente educacional pretende a consolidação de alguns direitos que vem sendo
conquistados ao longo de praticamente toda a História humana, mas que ainda não tutelam a
complexidade dos indivíduos.
Como a distribuição equânime de terras e a consequente valorização das pessoas que
vivem no campo exigem um arcabouço de sustentação, a simples divisão territorial nunca foi
vista como suficiente à garantia da efetividade de defesa da dignidade humana. Nesse
contexto, assim como os subsídios ao cultivo e manejo do solo, a educação das pessoas do
campo também passou a ser exigida pelos interessados na valorização do meio rural, tanto nas
novas comunidades formadas pela distribuição de terras, quanto nas já existentes.
Em Mato Grosso do Sul, especialmente pelas condições relacionadas às características
étnicas e naturais do Estado, a Educação sempre foi pressionada ao interesse pela diversidade.
Isso se deu, preponderantemente, pela presença de comunidades indígenas que exigiram uma
prática pedagógica diferenciada, que extinguisse a tendência elitista-colonizadora de
“civilizar” indivíduos “subjugados” e desencadeasse discussões acerca da espoliação penta
centenária das terras tupiniquins.
Além disso, a preocupação com as questões relacionadas à preservação do meio
ambiente impulsionou ações de obediência à função social da propriedade e todas as suas
exigências15
jurídicas e isso não foi diferente no território sul-mato-grossense. Assim, a
imperiosa necessidade de respeito à diversidade, às relações interpessoais justas e à ideia de
uso sustentável dos recursos naturais na produtividade satisfatória se imiscuiu às tentativas de
melhorias na qualidade de vida das famílias rurais pantaneiras, sejam proprietárias ou
trabalhadoras.
De características peculiares, a vida do homem rural pantaneiro sul-mato-grossense,
segundo Thimoteo (2003, p. 05), é determinada pelo ciclo das chuvas, pois o Pantanal “é
regido pelo signo das águas”. Sazonalmente, parte da planície pantaneira, aproveitada
preponderantemente para a pecuária extensiva, é inundada, obrigando o “isolamento” de
famílias que vivem na zona rural. Essa condição ambiental tem sido preponderante à busca
por conquistas na área educacional, especificamente aos campeiros.
15
Remete-se ao § 1º do art. 2º da Lei 4504, de 30 de novembro de 1964, a saber:
Art. 2° É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função
social, na forma prevista nesta Lei.
§ 1° A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente:
a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias;
b) mantém níveis satisfatórios de produtividade;
c) assegura a conservação dos recursos naturais;
d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem.
36
Situada a aproximadamente 130 km de Campo Grande, a cidade de Aquidauana
(localizada à margem direita do rio homônimo, que, em tupi guarani, significa “lugar das
araras grandes”) tem vivificado importante prática educacional que merece ser espargida. A
Lei Municipal Aquidauanense nº 1730/2000 despontou no cenário estadual como marco de
fomento às discussões que podem coligir perfeitamente com o entendimento de Dewey de
que, no Pantanal, “educar no campo e para o campo” depende, literalmente, “a própria vida”.
Isso porque, ainda para Thimoteo (2002, p. 04), “consciente de que as enchentes e
secas são responsáveis pela riqueza e pela vida no Pantanal, o pantaneiro sabe que deve
adaptar o seu ritmo às condições impostas pela natureza”. Assim, interessada nos aspectos
tutelados, hodiernamente, pela Educampo, a chamada Escola Pantaneira de Aquidauana teve
sua gênese buscando adequação à realidade local, com calendários diferenciados (de acordo
com o ciclo aquífero) e currículo de resgate à valorização regional.
Ao contrário das instituições escolares implantadas pela exigência dos Movimentos
Sociais de reivindicação à posse e à propriedade da terra, a origem da Escola Pantaneira não
está relacionada à necessidade de promover estudo às novas comunidades formadas pela
distribuição imóvel oriunda da Reforma Agrária. Esse programa foi desencadeado pelo
atendimento de um proprietário rural à proposta das famílias de seus funcionários, que
desejavam não mais precisarem encaminhar os filhos para os centros urbanos durante o
período letivo.
Assim, em 1998, o dono da Fazenda Campo Novo propôs uma parceria com o poder
público aquidauanense visando à construção de um prédio para atender, principalmente, às
necessidades escolares dos filhos dos moradores de sua fazenda e outros da região. Isso
desencadeou a iniciativa de outros fazendeiros e, atualmente, segundo o sítio de notícias
Aquidauana News (2010, s/p.):
as extensões e polos de educação nas fazendas pantaneiras atendem
aproximadamente 260 alunos do 1º ao 9º ano do Ensino Fundamental. Além
do Polo Joaquim Alves Ribeiro na Fazenda Taboco, há extensões na
Fazenda Santana (Núcleo Escolar Santana), Fazenda Querência (Núcleo
Escolar Querência), Fazenda Tupanciretã (Núcleo Escolar Cyriaco da Costa
Rondon), Fazenda Campo Novo (Núcleo Escolar Vale do Rio Negro) e na
Fazenda Primavera (Núcleo Escolinha da Alegria).
37
Foi o sul-mato-grossense Almir Eduardo Melke Sater, o violeiro Almir Sater
(conhecido nacionalmente por sua participação na novela Pantanal16
), proprietário da Fazenda
Campo Novo, que desencadeou as iniciativas que culminaram com a instauração da Escola
Pantaneira. Em entrevista concedida ao Jornal Eletrônico Over Mundo, de Campo Grande, em
27/08/2007, Sater esclareceu a Colombo (2010, s/p.) que o Núcleo Escolar Vale do Rio
Negro, considerado o gérmen do programa:
aconteceu a pedido da comunidade. Os peões vieram a mim, e como
observaram que eu recebia muitas autoridades, pediram para que eu
intercedesse por eles nesta questão. Foi aí que disponibilizei uma área da
fazenda para um posto avançado da escola rural de Aquidauana. É muito
difícil manter uma escola na fazenda. As crianças moram nela de segunda a
sexta-feira. Então, a escola funciona como se fosse a própria casa dos alunos.
E eles gostam muito de estar lá.
Inicialmente, a intenção do Núcleo foi trabalhar com grupos multisseriados de
estudantes e garantir o transporte diário dos alunos, fazendo com que fosse possível o
convívio familiar ininterrupto, porém isso não pode ser concretizado, em virtude das grandes
distâncias a serem percorridas e de outros entraves característicos da região rural do Pantanal,
explicados por Sater a Ricardinho(s/d, s/p.), ao expor que, em sua propriedade:
tudo ali é favorável ao isolamento, na fazenda Campo Novo, região do Rio
Negro, a 250 km de Campo Grande - MS. Durante quatro ou cinco meses
por ano, é possível chegar à cidade de carro. Nos outros meses, na
tradicional cheia, só de avião. O cenário é único e para viver nesse lugar de
geografia, flora e fauna deslumbrantes é preciso ter o espírito pantaneiro:
aventureiro e sereno, paciente como os ciclos da natureza.
Sobre a dinâmica do programa escolar em Aquidauana, onde os filhos do violeiro
também se alfabetizaram (mostrando a fidúcia do proprietário e de sua esposa, Ana Paula, no
trabalho pedagógico do projeto), Sater expôs a Medeiros (s/d, s/p.), em depoimento ao Jornal
Eletrônico Diário de Santa Maria, de 03/12/2009:
que já está completando 10 anos. O projeto é muito simples, mas funciona. É
uma escola do município, mas está na fazenda, que fica a 130 quilômetros de
lá. A prefeitura manda o professor, e a fazenda dá o que tem. (...) É um
trabalho diferente.
16
Telenovela brasileira escrita por Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Jayme Monjardim, apresentada pela
primeira vez em 1990, pela Rede Manchete.
38
Há, ainda, e por certo sempre haverá, enquanto subsistir a vertente capitalista de
produção, críticas quanto às reais intenções das grandes propriedades rurais que, no Pantanal,
são justificadas pelo entendimento de que, a pecuária de corte, principalmente, setor
explorado por Sater, necessita de vastas áreas para o manejo. Entretanto, não se pode negar
que iniciativas na área educacional devem ser defendidas, em prol do desenvolvimento
sustentável que, na visão de Dewey, já comentada, se confunde com o próprio cerne da
Educação.
Nesse contexto pedagógico experenciado nos núcleos e polos da Escola Pantaneira, de
amparo, precipuamente, à dignidade dos homens do Pantanal, capta-se, por analogia
discursiva, a asseveração de Guerra (1999, p. 14), que afirma se viver:
um momento peculiar em que as circunstâncias e o próprio discurso
pedagógico requerem muito mais que um modelo, ou um referencial distante
e abstrato adquirido de “terceiros”, mas sim daquilo que se pode obter a
partir da emoção do trabalho, do trabalho coletivo, realizado em parceria; da
vida, daquilo que é vivido e refletido na ação.
Assim, ponderando a possibilidade falaciosa que permeia as justificativas do subjugo e
da exploração de homens sobre seus pares, o que se apreende, na iniciativa do Núcleo Escolar
Vale do Rio Negro e da Escola Pantaneira, é a defesa, através da ingerência educacional, do
homem do campo, de suas raízes, de seus costumes e de seus sonhos. Conclui-se, então, que o
mote da vida é a Educação, que, ciclicamente, deve vivificar “a própria vida”, pois, como
direito difuso, o desenvolvimento racional favorece a toda a sociedade.
A ação de Almir Sater de firmar parcerias para fomentar a Educação não se propõe a
servir de modelo ou referencial, mas é incontestável a emoção do trabalho coletivo que
instiga, como se não bastasse a denúncia de sua poesia, que alerta para os males da falsa
crença de que a vida na cidade é mais vultosa que o campo:
Diga você me conhece / Eu já fui boiadeiro
Conheço essas trilhas / Quilômetro, milhas
Que vem e que vão / Pelo alto sertão
Que agora se chama / Não mais de sertão
Mas de terra vendida / Civilização.17
2.1.3 Cuspes de álcool e transformações
17
Estrofe da música Peão, de Almir Sater e Renato Teixeira.
39
Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se
sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo
que ontem não é sentir - é lembrar hoje o que se
sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem
foi a vida perdida.
(Fernando Pessoa)
O Homem, respeitando a necessidade de se transformar constantemente, já descobriu
que não pode viver só, nem se enxergar de forma isolada. Nessa universalidade
transformadora exigida pelo Mundo Moderno, a Educampo pretende, fundamentada em lutas
organizadas pelos Movimentos Sociais, tornar pública a importância dos indivíduos e do labor
camponês à vida de todas as pessoas, habitantes de quaisquer sejam os rincões. Assim,
surgiram, em consequência dos apelos do ativismo educacional do campo, inúmeras
denúncias de questões problemáticas relacionadas a todos os setores da vida humana.
A própria legislação brasileira, ratificadora de documentos internacionais de tutela aos
DDHH, traz propostas que, quando efetivadas, tenderão à proteção da dignidade e
manutenção humanas, indispensavelmente associadas ao desenvolvimento econômico e
social. Surge, porém, com a tutela “teórica” dos instrumentos jurídicos positivados, a
necessidade de análise da epígrafe desse texto, pois o ordenamento legal, por si somente, já
exige a observação macro dos organismos sociais e dos sistemas humanos de vida e de
produção, exigindo a ruptura de paradigmas capitalistas arcaicos.
Nesse contexto, cita-se a relativização proposta pela Constituição Republicana, que
contraria o histórico absolutismo que envolve a propriedade. A Carta Cidadã de 1988
vinculou a propriedade à sua função social, exigindo obediência a determinações taxativas
relacionadas ao seu uso e à sua exploração. Essa função social, definida precipuamente pelo
Estatuto da Terra e pelas legislações relacionadas à Política Constitucional de Reforma
Agrária, estabeleceu, exatamente, o caráter imperativo de necessidade humana de
transformação de suas idiossincrasias e de conquista de uma visão plurívoca de mundo.
A terra não pode mais ser lugar de explorações desordenadas, indiscriminadamente
aviltantes e potencialmente impeditivas do bem-estar de todos. Para isso, a obediência à
função social da propriedade deve ser valorizada e defendida, disseminando-se as evocações
propostas pela Educampo. Destarte, o art. 2º e parágrafos da Lei 4.504, de 30 de novembro de
1964, deve figurar como centro da nova bandeira de luta que deve ser tecida pelo ativismo
camponês e pelos indivíduos interessados na “simples” preservação da espécie humana:
40
Art. 2° É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra,
condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei.
§ 1° A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social
quando, simultaneamente:
a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela
labutam, assim como de suas famílias;
b) mantém níveis satisfatórios de produtividade;
c) assegura a conservação dos recursos naturais;
d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho
entre os que a possuem e a cultivem.
É possível observar que, efetivando o proposto pela alínea d do artigo supracitado,
principalmente serão impedidas situações de trabalho humano degradante, como o
desenvolvido pelos homens, mulheres e crianças que maculam suas existências nos canaviais
brasileiros. Não mais se pode admitir que o Estado democrático em que se vive e se defende
avalize situações de indignidade laboral, beneficiando o capitalismo e o subjugo de
trabalhadores, como ainda acontece em todo o país. A sociedade deve se manifestar e, para
que isso ocorra, a Educampo tem se proposto a se situar como marco de levante.
É preciso a conscientização social de que não é concebível uma nação desenvolvida e
próspera enquanto quaisquer pessoas estiverem sendo tratadas como simples objetos de
exploração. Essa mudança de percepção dos indivíduos de que a agressão a outras pessoas (ou
a outros seres vivos, ou ao próprio meio ambiente, como um todo interligado) é uma agressão
a si mesmo passa por um processo educacional a ser construído, experienciado e transmitido,
que poderá fomentar a autovalorização do trabalhador do campo, levando-o à luta pela
efetivação de direitos já legitimados e pela conquista de outros, a nascerem.
Para isso, faz-se necessária, no ambiente educacional precipuamente, conforme a visão
de Lobino (2009, p. 06), a imperatividade de mudanças nas estruturas da Educação e na
formação dos educadores, que deverão preferir o macro ao micro, o global ao local, o todo ao
específico, estimulando a inter/transdiciplinaridade para a compreensão do mundo como um
complexo emaranhado de indivíduos, situações e ambientes. Isso construirá uma cultura de
proteção coletiva, na qual os indivíduos se entenderão com a reciprocidade necessária ao
desenvolvimento humano e econômico e à evolução social.
Apesar de parecer fácil, essa transformação representa um exercício de tolerância e
desprendimento demasiado oneroso, pois muitos ainda são os hipócritas que, por exemplo,
carnívoros, “comem carne e cospem álcool”18
, preferindo o tripúdio a ações governamentais a
18
Expressão criada pela MMF durante a aula presencial, de 29 de maio de 2010, da ESPEDUCAMPO da
UFMS: fala-se das pessoas que se mostram indignadas com determinadas situações (como o trabalho nos
canaviais, por exemplo), mas que não percebem como seus hábitos também representam aviltes à vida.
41
desmascararem a incapacidade de mudança nos próprios comportamentos. Afinal, quantos são
os que, capitalistas ou proletários, homens ou mulheres, jovens, idosos ou crianças, estão
dispostos a se privarem de seus prazeres em defesa da sustentabilidade ambiental? Que se
apresente quem estiver, como diz Pessoa, “disposto a ser outro para viver”.
2.2 Eixo temático: educação e movimentos sociais do campo
A primeira atividade do segundo eixo temático do módulo II sugeriu uma pesquisa
sobre o Massacre de Eldorado de Carajás, a fim de que se produzisse um texto apontando
aspectos desse lamentável episódio da História do Brasil, que envolveu diretamente
profissionais da Segurança Pública e militantes do Movimento Social dos Trabalhadores Sem-
Terra. Por sua condição de policial, MMF intensificou reflexões acerca do assunto, tendo
acesso, pela primeira vez, a informações diferentes daquelas apresentadas pela parcela da
imprensa brasileira com interesses apenas na abordagem capitalista.
A segunda atividade desse eixo pretendeu apontar a importância dos levantes
provocados pelos Movimentos Sociais para o desenvolvimento, no Brasil, da Educampo.
Dessa forma, produziram-se os textos que seguem, que mostram, de forma ululante, como
parcelas da sociedade ainda lutam em busca de direitos, continuando, infelizmente, a sofrerem
consequências por tais ações. Percebeu-se, também, a maneira deturpada como certas
informações se disseminam, massificando preconceitos e, com isso, aviltando direitos que não
mais deveriam ser questionados, como, por exemplo, a própria vida humana.
Destarte, criaram-se os textos que nomeiam as próximas subdivisões desse trabalho
acadêmico.
2.2.1 Sementes do tempo
Ao afirmar que “de todas as sementes confiadas a terra, o sangue dos mártires é o que
dá colheita mais rápida”, o escritor Balzac talvez tenha pretendido justificar atrocidades
históricas que, apesar de consideradas inaceitáveis às sociedades atuais, ainda ocorrem e
podem desencadear reflexões acerca da relativização do tempo. O lamentável episódio de
interferência violenta da Polícia Militar, perpetuado como Massacre de Eldorado dos Carajás,
ocorrido no dia 17 de abril de 1996, no Estado do Pará, é um exemplo evidente dessa atinente
percepção temporal humana.
42
Quase uma década e meia após o homicídio de 19 pessoas que bloqueavam a rodovia
PA-150, durante protesto do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, mais de uma centena
de pessoas foram julgadas pelos crimes, porém somente duas (que aguardam decisão recursal
da sentença em liberdade) foram condenadas. Além disso, mesmo com evidências da
barbárie19
praticada por agentes do Estado, que alegam o cumprimento de ordens de
superiores para a desocupação, as altas autoridades relacionadas ao fato (Governador e
Secretário de Segurança Pública) não foram sequer indiciadas.
Reivindicando a desapropriação da improdutiva Fazenda Macaxeira (que abriga,
hodiernamente, o Assentamento 17 de Abril) pessoas foram feridas no embate e pelo menos
os familiares das vítimas tiveram suas vidas transformadas pela violência. Para a Secretaria
Nacional do MST (2010, p. 50), as famílias dos mortos que se tornaram assentadas ou
permaneceram na militância da luta pela Reforma Agrária “legitimam-se não pela
propriedade, mas pelo trabalho, nesse mundo em que o trabalho está em extinção. (...) Esses
homens e mulheres são um contra-senso porque restituem à vida um sentido que se perdeu”.
Vários movimentos sociais, especialmente os ligados aos interesses do campo, têm
organizado, durante o mês de abril dos anos subsequentes ao Massacre, atividades que visam,
precipuamente, à conscientização social da importância da Reforma Agrária ao Brasil e ao
futuro da humanidade. Além disso, militantes postulam constantes denúncias à aplicação da
lei aos responsáveis pelo Abril Vermelho20
, buscando a demonstração de que a ineficiência da
Justiça à apuração do caso somente tem servido para instigar ainda mais as violações aos
DDHH, principalmente contra indivíduos socialmente excluídos.
Nesse interesse de prestação informativa, a Educampo tem figurado como baluarte do
acesso ao conhecimento e à publicidade da ideologia dos movimentos campesinos
constitucionalmente legítimos21
e fortalecedores do Estado democrático. Isso porque essa
vertente educacional acredita que, como diz a Secretaria Nacional do MST (2010, p. 23),
“escolarizar é incentivar a pensar com a própria cabeça, é desafiar a interpretar a realidade,
elevando o nível cultural. É criar condições para que cada cidadão e cidadã construam, a partir
dos seus pontos de vista, seus destinos”, sem violência e com dignidade e Justiça.
Retomando, então, a problemática da relatividade temporal suscitada pelo pensamento
balzaquiano inicialmente citado, pode-se concluir que, às famílias das “sementes”
19
Laudos necroscópicos de sete mortos do Massacre apontaram lesões fatais com características inquestionáveis
de execução, segundo o Jornal Folha de São Paulo, de 20 de abril de 1996.
20
Denominação empregada para a lembrança do mês em que ocorreu o Massacre de Eldorado dos Carajás.
21
Sobre a constitucionalidade do MST, ver A Constituição e o MST, da professora Delze dos Santos Laureano.
43
massacradas em Eldorado dos Carajás o tempo que passou desde aquele dia sombrio parece
ínfimo quando comparado aos sentimentos que colhem diariamente da luta e da ausência que
ainda resta. Entretanto, para os que anseiam a concretização de um futuro sustentável e seguro
a todos e observam os insignificantes avanços à efetivação do acesso constitucional ao campo
e à punição dos culpados pela violência, o sangue dos mártires ainda não frutificou.
2.2.2 À luta, pois
Quem luta não perde tudo. / Perde quem fica de
braços cruzados. / Quem luta deixa, pelo menos,
exemplo a ser seguido. / Um dia as coisas mudam,
porque / o tempo não para. / Tempo não anistia.
(Felix de Athayde)
Diz o brocardo que a humanidade adquire algum valor quando se avalia o percurso de
sua origem até sua situação atual, evidenciando a ideia de que, mesmo ainda deficiente em
inúmeros aspectos (em especial quanto à garantia indiscriminada de dignidade a todos os
indivíduos), algumas mazelas já foram superadas. À análise dessa evolução histórica e à
reflexão do lema positivista “Ordem e Progresso”22
, eternizado pela flâmula pátria, surge uma
intrigante contradição que parece não corresponder às explicações do desenvolvimento
nacional, principalmente em seus aspectos nativos de aquisição de direitos.
Isso porque, à ponderação sobre os mecanismos geradores das transformações das
idiossincrasias individuais e difusas que formam a realidade e o pensamento coletivos, tanto
nacional quanto internacionalmente, observam-se as lutas de grupos à mudança de suas
realidades, apontando que o “progresso”, em terras tupiniquins, foi trazido por pugnas e não
pela “ordem”. Assim, situações sociais consideradas inadequadas, injustas ou ineficientes
foram (e tem sido!) conhecidamente combatidas, através do que se convencionou serem
chamados de “Movimentos Sociais”.
Para Epstein (1995, apud DIAS, 2001, p. 02) esses “Movimentos Sociais são esforços
coletivos de pessoas social e politicamente subordinadas para mudar suas condições de vida”.
Hodiernamente, entre os inúmeros movimentos legitimamente constituídos que buscam
mudanças sociais no Brasil, destacam-se os de luta pelo direito de acesso a terra,
22
Inspirado no pensamento de Augusto Comte de que o conhecimento científico é a única forma de
conhecimento verdadeiro, entendimento evidentemente contrário aos ideais apregoados pela Educação do
Campo.
44
reivindicatórios da efetivação dos dispositivos legais que regulam a política de Reforma
Agrária garantida em documento constitucional que, principalmente por se chocarem com
interesses capitalistas evidentes, ainda não têm aplicabilidade consolidada.
Nesse contexto de desinteresse estatal para a aplicação do que garante a própria lei, os
Movimentos Sociais do campo se destacam pela publicidade que promovem ao assunto, pois,
conforme Ricupero (1998, apud PILLETI; MOSOLINO, s/d, p. 36):
a emergência do movimento dos trabalhadores rurais é um dos fenômenos
mais importantes da história brasileira, desmitificando toda uma trajetória de
suposta passividade e anomia do nosso povo. Revela um problema real
gravíssimo, a incomensurável miséria do campo. Pois ninguém, por grande
agitador que seja, é capaz de levar dezenas de milhares de pessoas à ação
organizada, a fazer homens e mulheres afrontar a brutalidade de jagunços e
policiais até o sacrifício da vida, se não houver por trás muito desespero e
sofrimento.
Evidenciando a relevância de suas vindicações e o interesse pela tutela integral da vida
do campo, esses Movimentos se interessam pela defesa da amplitude humana, em todos os
seus setores, principalmente no direito à Educação, considerada indispensável ao
fortalecimento da democracia. Destarte, a Educampo tem despontado como interesse
fundamental entre os inúmeros interesses da luta no campo, buscando a valorização do
Homem, do trabalho, das raízes, dos valores e dos saberes camponeses, de cujos frutos
depende o futuro da espécie humana e do planeta.
Normalmente, os próprios Movimentos Sociais se incumbem de justificar a
Educampo, evidenciando sua relevância à Reforma Agrária e ao desenvolvimento da
sociedade. A Secretaria Nacional do MST (2010, p. 23) afirma que “escolarizar é incentivar a
pensar com a própria cabeça, é desafiar a interpretar a realidade, elevando o nível cultural. É
criar condições para que cada cidadão e cidadã construam, a partir dos seus pontos de vista,
seus destinos”, corroborando esse entendimento da importância educacional.
Conclui-se, então, que a existência de Movimentos Sociais camponeses é imperativa
ao fortalecimento da Educampo e ao desenvolvimento de todos, pois desenvolver e evoluir é
educar para movimentar, é educar para exigir e é educar para lutar, movimentando, exigindo,
lutando e conquistando, em um processo cíclico e infinito. A História já mostrou que a
realidade não se transforma sem trabalho e Educação, assim como a terra não produz bons
frutos sem árduo e dedicado labor. À luta, pois.
45
2.3 Eixo temático: educação e questão agrária ambiental
O último eixo temático do módulo II da Espeducampo propôs, inicialmente, uma
atividade de autoconhecimento à MMF, pois, após a leitura de texto sugerido no ambiente
virtual, deveriam ser realizados apontamentos sobre o que restava das vidas ao serem retiradas
todas as situações de interação e de reciprocidades. Esse exercício, obviamente, exigiu o
entendimento da importância dos demais seres às individualidades humanas, apontando
fundamentos da EDDHH, além da tentativa de estabelecer a possibilidade de autovalorização,
pela descoberta de quem se é.
A segunda atividade estabeleceu a confecção de um fichamento de produção assuntada
na formação do(a) educador(a). Embora tenham sido oferecidos outros textos, a MMF optou
por tal escolha pela abordagem ao assunto da transdisciplinaridade. A proposta da atividade
trazia uma explicação detalhada das partes que deveriam ser contempladas no trabalho e o
conteúdo do texto fichado apontou intrigantes revelações das incoerências que ainda pautam o
processo de ensino-aprendizagem no Brasil. Assim, produziram-se os dois textos
apresentados na sequência, que intitulam as próximas subdivisões desse memorial.
2.3.1 Eu... Em primeira pessoa
Quem sabe direito o que uma pessoa é? Antes
sendo: julgamento é sempre defeituoso, porque o
que a gente julga é o passado.
(Guimarães Rosa)
Perdoem-me os críticos da desembreagem enunciativa, mas não há como falar de mim
mesma na terceira pessoa. Não consigo me enxergar como “objeto científico” - soa-me falso,
porque sou “inacabada”. Então, vai assim, “na lata”, na primeira pessoa, enunciativamente:
sem aqueles com quem caminhei ou com quem ainda caminho, não existe “eu”.
Sem eles, não sobra nada em minha existência incompleta, nem mesmo o vazio da
tristeza ou a amargura da solidão, pois foi exatamente com eles que aprendi os sentimentos
que preenchem essas palavras vazias. Todos fizeram quem sou - seja ao “bem” que
normalmente me leva ao “mal” da apatia, seja ao “mal” que (tento!) deve me levar ao “bem”
da ação.
46
Ao construir colunas verticais e horizontais para representar o tempo, os espaços e as
reciprocidades de minha existência, me percebo desenhada em “planta baixa”. Como se
juntasse peças de um quebra-cabeça quebrado, que toma alguma forma pelo olhar e pelas
mãos dos outros. E tudo parece fazer um pouco mais de sentido, nesse intrincado espetáculo
particular de vidas.
Assim, não há lacunas sem gente quando me recordo de minhas brincadeiras de
infância e do estranho gosto por bonecas de papel (que supriam a falta de brinquedos “de
verdade” e, ao mesmo tempo, me levavam já a dialogar com “pessoas” de cartolina e lápis de
cor). O papel conversava comigo, me construía, como se em cada toque houvesse interação e
dependência mútuas.
Nada sobra em minha infância sem a presença de minha avó e as presenças que ela
insistia em me fazer aceitar: “Peça por favor aos teus tios, menina!!!”, “Respeite os mais
velhos, menina!!!”, “Pode brincar, mas traga as crianças aqui perto!!!”. Sou eu crescendo
naquela criança que ainda é possível ver nas lembranças saudosas dos olhos vivos e sorrisos
longos da melhor mãe do mundo: a mãe de minha mãe.
Somente ficaram, também, reciprocidades da juventude - do primeiro amor aos berros
infindáveis de duas professoras de Língua Portuguesa que foram o inferno de minha vida, e
que, depois, me levaram à mágica experiência de poder conhecer ainda mais pessoas. Isso
porque, para obedecer à minha avó (“Vá cursar Letras para você ver como era má com tuas
mestras!!!”), precisei aceitar outros “irmãos de vida”.
Decisivamente nada mais resta se pensar em minha vida sem meus amores de agora:
minha filha-linda-esperança, meu companheiro-amado, minha mãe-fortaleza, minhas
confusas-irmãs, meus sobrinhos-crianças-guapas. Sem contar os que emolduram meus dias:
os colegas do trabalho, os chegados do curso de Direito, os ativistas da Especialização, os
amigos de sempre com quem faço orações.
Quisera eu, porém, conseguir “conviver, aprender a ser recíproca” pelos motivos
nobres que aconselha a teoria fundamentada das reciprocidades (BRANDÃO, s/d, s/p.).
Infelizmente ainda estou em um estágio anterior, aquele no qual se ama e respeita por puro
egoísmo, por acreditar que minha satisfação pessoal e minha segurança dependem dos outros,
como explica Dawkins (1979, p. 117) ao afirmar que:
É possível que ainda outra qualidade única do homem seja a capacidade de
altruísmo verdadeiro, desinteressado e genuíno. (...) O que estou
argumentando agora é que mesmo que olhemos para o lado escuro e
assumamos que o homem é fundamentalmente egoísta, nossa capacidade
47
consciente de previsão - nossa capacidade de simular o futuro na imaginação
poderia nos salvar dos piores excessos egoístas dos replicadores cegos. Pelo
menos temos o equipamento mental para promover nossos interesses
egoístas a longo prazo e não simplesmente aqueles a curto prazo. Podemos
ver os benefícios a longo prazo de participar de uma “conspiração de
pombos”23
e podemos nos reunir para discutir maneiras de fazer com que a
conspiração funcione. (...) Podemos até discutir maneiras de cultivar e
estimular o altruísmo puro e desinteressado - o que não ocorre na Natureza e
que nunca existiu antes em toda história do mundo.
Não sei se bom ou ruim, mas tenho preferido embasar o hoje nesse egoísmo
dawkinsiano, olhando as interações com a obrigação de valorizar cada pessoa e experiência
vivida com a justificativa de que, assim, estarei cuidando e valorizando a mim mesma. E
fazendo isso, luto por todos enquanto luto por mim, em primeira pessoa.
2.3.2 Fichamento do texto “dimensões inter/transdisciplinares na formação do(a)
educador(a)”, de Maria das Graças F. Lobino
Ficha bibliográfica e estrutura da produção
LOBINO, Maria das Graças F. Dimensões inter/transdisciplinares na formação do(a)
educador(a). In SCHÜTZ-FOERSTE, Gerda Margit; FOERSTE, Erineu; CALIARI, Rogério
(org.). Educação do campo: povos, territórios, saberes da terra, movimentos sociais,
sustentabilidade. Vitória: UFES. 2009. 154 p.
O texto específico24
faz parte da coletânea disponibilizada a participantes do curso de
educação profissional continuada do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Espírito Santo (PPGE-UFES) e disseminada (digitalmente) também
entre os pós-graduandos da primeira turma de Espeducampo da UFMS.
A estrutura geral do texto lobino, de sete páginas, divide-se em:
A. Introdução (não-nominada).
B. Dois Subtítulos, intitulados:
B.1 Contextualizando a formação de educadores/as e
B.2 As temáticas transversais como práxis na articulação de outros saberes.
23
Dawkins, em “O gene egoísta”, fala acerca da capacidade de organização dos pombos, que se juntam não por
solidariedade, mas para garantia de proteção individual.
24
Explica-se que, como o texto escolhido para esse fichamento foi apresentado em material digital, foi utilizada
sua paginação virtual nas citações.
48
C. Referências Bibliográficas.
D. Notas.
Ficha temática
Introdução (não-nominada)
O texto “Dimensões inter/transdisciplinares na formação do(a) educador(a)” é,
segundo nota de sua autora, a professora mestre em Educação e autora do livro “Plantando
conhecimento, colhendo cidadania” (publicado pela Bios, em 2004), Maria das Graças F.
Lobino, uma adaptação ampliada de parte de sua dissertação de mestrado que gerou o livro
“A práxis ambiental educativa: diálogo entre os diferentes saberes” (da Editora Edufes, de
2007).
Inicialmente, Lobino (2009, p. 01) destaca, como principal desafio da educação
contemporânea, a necessidade de um aprimoramento dos mecanismos sócio-culturais
viabilizadores de interação pessoal, interpessoal e ambiental, estimulando o que a autora
chama de “auto”, “hetero” e “ecoformação”. Citando outros teóricos25
, o texto intensifica a
relevância do tema que pretende discorrer, propondo uma apresentação histórica à análise da
relevância atual da Educação como “maior legado cultural da modernidade”.
Contextualizando a formação de educadores/as
A autora começa esse subtítulo reafirmando a condição de poder que sempre pautou a
Educação, em quaisquer de seus níveis. A produção recorda outros autores para declarar a
importância da Revolução Francesa como marco delimitador do caráter obrigacional da
educação escolar, percebida, inicialmente, como um importante elemento de dominação,
centrada no professor e na prática expositiva, que se baseava nas propostas trazidas pelo
método indutivo.
Explica o texto, principalmente através de outros doutrinadores, que, no século XX,
foi percebida uma transformação na base educacional, verificando-se que o método indutivo
verteu lugar ao pragmatismo instrumental da chamada Nova Escola. Além disso, o aluno
passou a ser considerado foco indispensável ao processo educativo, fato que intensificou a
transmissão de conhecimentos às classes mais abastadas economicamente, porém pareceu
justificar o arrefecimento educacional dos mais pobres.
25
Entre os teóricos citados por Lobino, destacam-se Freire, Grasci, Pineau e Saboia.
49
Nacionalizando a questão, a preferência teórica lobina esclarece que, no Brasil, a
formação do professor tendeu à condição liberal-pragmática, que intensificou práticas “intra-
escolares” em detrimento dos processos “macro-estruturais”, seguindo-se as práticas
pedagógicas de um esvaziamento político exigido pelo regime militar experenciado durante a
ditadura. Isso criou um enfraquecimento ainda maior da potencialidade educacional, que se
viu obrigada à disseminação simplista de técnicas, do positivismo e da hierarquização.
Ilustra Lobino (2009, p. 02) que, na atualidade, o processo educacional deve ser
democrático, já havendo, inclusive, previsão jurídica para a participação social coletiva
através dos colegiados, estimulando o que a pesquisadora chama de “ecopedagogia” praticada
por “ecoprofessor”, pois, hodiernamente, o centro educacional:
Não seria o professor, nem o aluno, tampouco o técnico. Seriam as relações
entre os sujeitos sociais, o contexto sócio-cultural e a produção
inter/transdiciplinar do conhecimento. A dialetização desta centralidade
sociodiversa permitiria articular e tensionar saberes/fazeres
acadêmicos/escolares com os “não saberes”, ou seja, estabelecer diálogo
entre a comunidade escolar e local. Por outro lado, este processo, exige a
desinstalação de “lugares” para negociação de saberes e fazeres
historicamente demarcados. O fazer solitário docente vai precisar se articular
na dimensão ampla do fazer educativo, para além de sua área específica.
Desta forma, problematizar a cultura escolanovista de que o processo
educativo é tarefa restrita de professores e especialistas – um dos motivos de
resistência da aceitação da participação de pais e comunidade.
As temáticas transversais como práxis na articulação de outros saberes
Lobino (2009, p. 03) resume que as pedagogias tradicional (centrada no professor),
escolanovista (focada individualmente no aluno) e tecnicista (valorizadora da neutralidade
técnico-científica) não tem conseguido justificar ou impedir “relações predatórias e
excludentes dominadas pela globalização da economia, das comunicações, da massificação
cultural e consequentemente da educação”. Destarte, os chamados Temas Transversais
surgiram como opção de “pedagogia libertária, libertadora e crítico-social dos conteúdos”.
Citando textos legais, a autora esclarece que municípios e Estados já legitimaram a
proposta de transversalidade (que, segundo a RES.CNE/CEB de nº 02/98, IV- do art.3º,
representa: “vida cidadã através da articulação entre vários dos seus aspectos como: 1. a
saúde; 2. a sexualidade; 3. a vida familiar e social; 4. o meio ambiente; 5. o trabalho; 6. a
ciência e a tecnologia; 7. a cultura; 8. as linguagens”), embora isso ainda não seja realizado de
modo efetivo.
50
Essa ineficiência mostrada pela escola e pelo professor quanto à discussão de questões
sociais, para Lobino (2009, p. 03), pode ser resolvida ao se considerarem as temáticas
transversais como “princípios estruturadores de currículo” nos quais seriam inseridas as áreas
do conhecimento e não vice-versa, como ocorre atualmente. Isso faria, especialmente nas
questões ambientais, com que a efetiva transformação social fosse incentivada, evitando-se a
simples repetição discursiva que, infelizmente, ainda se verifica.
Nesse contexto, Lobino (2009, p. 03) propõe-se à apresentação de suas conclusões
acerca “da práxis do professor e a questão ambiental”, em observações que partem “do
cotidiano, passa pela Extensão, alimenta a pesquisa e retorna ao ensino”. Explica a
pesquisadora seu interesse ao tema afirmando que, à análise científica, a vertente ambiental
possibilita a verificação de questões que vão desde a abordagem ética dos relacionamentos
humanos até o contexto de dominação e subjugo de elementos sobre outros.
Informa Lobino (2009, p. 04) que, como professora, seu interesse pautou-se na
verificação da possibilidade de extrapolar a ementa curricular e o material didático como
tentativa de vivificação da problemática socioambiental. Assim, a escritora pontua questões
intrigantes, como, por exemplo, os motivos ilógicos nos quais se ajusta a estrutura curricular
para incentivar a apresentação de conteúdos relacionados ao corpo humano somente na “7ª
série”, embora se saiba ser em fase anterior a maior incidência de gravidez na adolescência.
Além disso, a autora também questiona o porquê de o ensino da Física e da Química
somente ser introduzido nas últimas séries do Ensino Fundamental, sendo que estudos já
realizados apontam os problemas sociais causados pelo analfabetismo científico. Esses
problemas, que partem do tão conhecido temor estudantil a essas disciplinas, causam,
invariavelmente, o comprometimento do avanço tecnológico e a tendência ao “mutismo” em
questões relacionadas a tais temas.
Como forma de tentar apontar ações para a prática pedagógica engajada ao
amalgamento das questões humanas e ambientais que envolvem a sociedade, Lobino (2009, p.
04) expõe ações do “projeto Alternativas para o Ensino de Ciências Naturais aprovado no
programa ‘Integração Universidade com o ensino de 1º grau’ MEC/SENESU/FNDE e
desenvolvido nas escolas municipais de Vitória de 1990-95”, afirmando ser possível a
articulação entre Ciências e vida, incentivada pelo fomento linguístico.
O projeto explicado propõe o respeito às relações entre os vários saberes, incentivando
estudantes a se perceberem como integrantes da grande teia relacional humana e ambiental
que viabiliza a existência sobre a Terra. Isso, segundo a pesquisadora, permite a aquisição de
conhecimentos acerca daquilo que se vive, estimulando a aplicação da teoria às experiências
51
vividas e retornando à teoria, em um processo cíclico, no qual o aprendiz é o principal agente
de sua educação.
Esse ideal curricular propõe uma alfabetização científica, analisando a Química e a
Física, inicialmente, através de seus elementos essenciais, envolvendo as demais Ciências
nesse processo. Tal práxis possibilitaria, na visão da autora, uma transformação da realidade
atual percebida, especialmente, porque alguns assuntos sabidos por poucos passariam a ser de
conhecimento verdadeiramente coletivo, fato que poderia desencadear uma cultura plena de
sustentabilidade.
Conclui Lobino (2009, p. 06) pela imperatividade de mudanças nas estruturas da
Educação e na própria formação dos educadores, que deverão preferir o macro ao micro, o
global ao local, o todo ao específico, estimulando a inter/transdiciplinaridade para a
compreensão do mundo como um complexo emaranhado de indivíduos, situações e
ambientes. Tais escolhas gerarão, segundo a autora, uma autoformação interessada na hetero e
na ecoformação, sem as quais nenhuma mudança ao mundo será possível.
Ficha geral
Conclusão – síntese pessoal
O texto se propõe à defesa da implantação efetiva do que chama a autora de
inter/transdisciplinaridade, ou seja, de uma prática pedagógica interessada na amalgamação
dos saberes e das Ciências, buscando a extinção do estanquismo historicamente vinculado à
Educação. Para isso, a pesquisadora explana acerca da importância da autoformação humana,
porém vinculada aos interesses do álter e do ambiente, sem os quais a condição de vida se
torna inviável em sociedade.
Refuta-se o atual entendimento pedagógico de que as disciplinas devem proporcionar
“aberturas” à discussão dos temas sociais, buscando adeptos à ideia de que os conceitos
escolares (“de conteúdos”) é que devem figurar como periféricos às questões humanas
verdadeiramente relevantes. Para justificar a opinião apresentada, a escritora cita um projeto
experienciado pela mesma, que intentou apresentar a estudantes o vínculo existente entre o
natural e as coisas.
Precipuamente, o que parece buscar Lobino é a percepção da coletividade de que seus
integrantes são dependentes recíprocos e que essa característica não pode continuar
desapercebida da Educação. Trata-se de uma intrigante denúncia dos métodos, currículos
escolares e das idiossincrasias docentes pretéritas e atuais que, ao incentivarem a visão do
52
conhecimento como elemento desarticulado, desestimulam o avanço social e científico,
coibindo o desenvolvimento e a construção de uma sociedade justa, digna e educada de fato.
2.4 A produção do módulo II e a transdisciplinaridade da EDDHH
O Quadro 3 traz a questão humanista na produção do módulo II e, na sequência,
mosttram-se os textos desenvolvidos no módulo seguinte da Espeducampo e suas
considerações relativas à transdisciplinaridade humanista percebida nas atividades assuntadas
nas questões das práticas pedagógicas em Educampo.
Quadro 3 - A influência da transdisciplinaridade humanista nos textos elaborados no módulo II
MÓDULO II
Eixos temáticos Textos elaborados Influência da transdisciplinaridade da EDDHH
Fundamentos e história da
educação do campo
Passado, presente, aspiração: a própria vida
Traz basilares reflexões acerca da interferência dos Movimentos
Sociais à consolidação das conquistas dos DDHH, além de apontar,
novamente, a importância da oferta de Educação a todas as pessoas,
como garantia fundamental da efetivação da dignidade humana.
Pantanal sateriano
Ao apresentar ponderações acerca da iniciativa de proprietário
rural para a oferta pedagógica em área não-urbana, estimula a
percepção da dessemelhança existente entre Educação do Campo e
Educação no Campo, promovendo reflexões humanistas sobre subjugo
explícito e dominação humana escamoteada.
Cuspes de álcool e transformações
Alardeia a exploração de seres por seres, em tentativa de
percepção de que, para que haja o desenvolvimento da coletividade,
fazem-se necessárias mudanças de discursos e comportamentos
individuais.
Educação e movimentos sociais
do campo
Sementes do tempo Trata a questão do Massacre de Eldorado de Carajás e sua
insofismável manifestação de aviltamento aos DDHH.
À luta, pois
Aponta a importância dos Movimentos Sociais à conquista de
direitos, promovendo “novos olhares” sobre a militância e, de certa
forma, agradecimentos por todas as pugnas propostas em benefício
dos menos favorecidos e da sociedade, de forma geral.
Educação e questão agrária
ambiental
Eu... Em primeira pessoa
Promove a observação das relações que se estabelecem para que
as vidas sejam encaminhadas, demonstrando a importância de todos à
vida de cada pessoa e a relevância de cada um à construção da
coletividade.
Fichamento do texto “dimensões
inter/transdisciplinares na formação do(a)
educador(a)”, de Maria das Graças F. Lobino
Demonstra o “atraso” de certas práticas ainda presentes no
universo pedagógico brasileiro, definindo a questão ambiental (assim
como a humanista é!) como um assunto transdisciplinar (e não apenas
transversal).
Fonte: Elaborado pela MMF, 2011
53
54
3. MÓDULO III - PRÁTICAS PEDAGÓGICAS EM EDUCAÇÃO DO
CAMPO: DESCOBRINDO-SE PARA ACEITAR A DIVERSIDADE
O terceiro módulo da Espeducampo previa a execução de três eixos temáticos,
divididos em 90 h/a. Ele apresentou interesse, especialmente, à execução de entrevistas com
pessoas relacionadas ao campo e que interagissem, de alguma maneira, com estudantes do
campo, de forma a promover conhecimento de práticas e histórias que se manifestam no
ambiente rural. Além disso, foi solicitada a elaboração de um exercício criativo, que
apontasse uma escola do campo ideal, assim como as confecções de plano de aula e de
atividades pedagógica e artística a serem desenvolvidas nessa escola idealizada.
Também esse módulo intensificou ações da MMF à procura por informação sobre os
arranjos de sua comunidade relativos ao ambiente rural e promoveu análises que
desencadearam a estruturação de princípios que deveriam embasar a elaboração de PPPs das
escolas do campo, que devem ter suas particularidades resguardadas perante os documentos
jurídicos que as abalizam. A questão humanista foi transdisciplinarmente abordada, como se
poderá observar, por exemplo, no histórico da primeira atividade do eixo temático inicial, no
qual a MMF expõe sua percepção acerca de sua origem e do gérmen dos valores que cultiva.
3.1 Eixo temático: princípios norteadores das práticas pedagógicas em educação do
campo
A primeira atividade do eixo temático inicial do módulo III sugeriu entrevistas com
pessoas relacionadas ao ambiente rural para registros de práticas que poderiam estar
relacionadas a técnicas de cultivo, de preparo de alimentos, de transmissão de brincadeiras, de
produção de remédios, ou de quaisquer outras atividades que tivesse ligação com o campo. A
segunda atividade do eixo, em complementação à primeira, instigou a participação da MMF
em conversas com pessoas anciãs que, pela experiência de vida no campo, pudessem
transmitir histórias vivenciadas ou conhecidas.
A última atividade desse eixo, por sua vez, solicitou a elaboração de um plano de aula
a ser executado em uma escola ideal criada pela MMF (que será apresentada na sequência
desse trabalho). Todos os exercícios fomentaram a interação com o ambiente do campo,
55
promovendo descobertas de histórias alheias, ascendências e utopias de efetivação de direitos
e incumbências de novas responsabilidades. Assim, mostram-se os textos a seguir,
nomeadores das próximas subdivisões.
3.1.1 Conversas com quem sabe
Histórico da atividade
As leituras e os exercícios avaliativos da Especialização em Educampo têm
proporcionado a mim um importante exercício de autoconhecimento e de análise aos valores
que cultivo. Especialmente essa atividade, em virtude de problemas pessoais que me
impediram ao cumprimento de prazo para entrega, muita aflição me causou, por considerar
complexa a escolha sobre a quem deveria recair minhas entrevistas.
Pensei em entrevistar autoridades vinculadas ao campo... Pensei em professores
viventes em fazendas... Pensei em assentados e acampados... Pensei em amigos que, sabia eu,
já tinham vivido na zona rural. Fiquei na dúvida até que minha filha Luísa, cansada de minhas
dúvidas, me perguntou se ninguém de nossa família tinha vivido no campo, para me ajudar na
execução da atividade que, segundo ela, tinha tudo a ver com minhas “esquisitices”.
Perguntou-me a criatura adolescente, com a impaciência da juventude, com quem eu
tinha aprendido a fazer meus remédios de mato e minhas comidas caseiras e quem havia me
ensinado a brincar com pedras. Completou ela, a fim de acabar com minhas lamúrias por mais
uma tarefa que, exigente de produção, sempre é amaldiçoada por mim, antes de iniciada: “Se
tudo isso não é coisa de gente do campo, então não sei de quem é!!!”.
Decidiam-se, assim, minhas escolhas: procurei “gente minha” (meu sogro, minha mãe
e uma tia), que nem sabia ter experiência com a “terra”, para conversar e descobrir...
Proseando, percebi de onde vem tudo o que sou e muito do pouco que sei, em uma fantástica
experiência de interação com o passado de pessoas que eu acreditava conhecer, porém com
quem apenas convivia. E senti minhas raízes crescerem, adubadas pelo fruto do meu ventre.
Entrevistas
1
Nome completo: WILFRIDO GODOY
Sexo: Masculino
Naturalidade: General de Aquino - Paraguai
56
Idade: 67 anos
Profissão: Pedreiro
Estado Civil: Casado
Descendência: 01 Filho e 01 Neta
Local de Moradia: Rua João Lopes Assumpção, 75, Bairro Alto, Aquidauana
Com quem aprendeu essa técnica: Com sua mãe, a senhora Onorina Godoy
Tipo de conhecimento / tecnologia: Fazer remédio caseiro para combater verminoses em
pessoas e animais.
Descrição das etapas:
1. Material necessário:
maço de erva-de-santa-maria
água limpa
pedaço de pano limpo
batedor
vasilha de barro
2. Modo de execução:
Durante a noite, colhe-se um punhado de erva-de-santa-maria e, depois de lavá-la bem
(de preferência em água de mina natural), acomoda-se a planta em um pedaço de pano limpo.
Em seguida, faz-se uma “trouxinha” com a erva envolta no pano e, com o auxílio de um
batedor (de pedra ou de pau), soca-se o tecido, até que a planta esteja bem pilada.
Coloca-se a tritura em uma vasilha de barro e torce-se o pano, até que seja retirado
todo o líquido nele impregnado. Coloca-se um pouco de água sobre o preparado. Deve-se,
então, deixar a vasilha destampada “dormir” sobre o sereno, para absorver as propriedades da
noite. Na manhã seguinte, o remédio deve ser ingerido em jejum, por pessoas e animais.
Não deve ser utilizado por mulheres grávidas.
Outras informações: Durante a entrevista, muitas vezes o relator afirmou que não sabia se
“doutores de verdade” receitariam tal medicamento caseiro para alguém (a erva-de-santa-
maria é conhecida cientificamente por Chenopodium ambrosioides).
2
Nome completo: RITA FRANCO SANTOS
Sexo: Feminino
Naturalidade: Fazenda Fazendinha - Aquidauana
Idade: 53 anos
57
Profissão: Professora
Estado Civil: Viúva
Descendência: 03 Filhas e 03 Netos
Local de Moradia: Rua José Luiz Pereira, Bloco 4, Ap. 26, Monte Líbano, Campo Grande
Com quem aprendeu essa técnica: Com sua mãe, a senhora Daidamia Rojas Franco
Tipo de conhecimento / tecnologia: Fazer uma iguaria culinária chamada Buri-buri.
Descrição das etapas:
1. Material necessário:
01 cebola picada
04 tomates picados
01 maço de cheiro-verde
01 fio de óleo
½ galinha caipira cortada em pedaços
sal e pimenta a gosto
½ queijo caipira ralado
500 g de fubá de milho saboró
03 litros de água filtrada fervendo
01 panela
01 vasilha
2. Modo de execução:
Frite a galinha no fio de óleo e, depois de devidamente cozida, acrescente a cebola e o
tomate e refogue. Coloque o cheiro-verde e a água e deixe ferver. Em uma vasilha, misture
bem o queijo e o fubá. Com o auxílio de uma colher, despeje um pouco do caldo quente sobre
o fubá e o queijo, aos poucos, até que se obtenha uma massa firme, com consistência
suficiente para ser moldada com as mãos. Faça pequenas bolinhas com a massa. Então,
despeje as bolinhas no caldo que ainda deve estar na fervura. Espere as bolinhas começarem a
subir e tire do fogo. Pode ser servido com mandioca cozida.
Outras informações: Segundo a entrevistada, sua mãe dizia que essa comida havia sido
criada no período da Guerra do Paraguai e sempre foi muito apreciada pelas comunidades
rurais nos meses mais frios, por sua composição simples e abundante no meio rural, porém de
importante sustentação calórica.
3
Nome completo: HILÁRIA ROJAS FRANCO
58
Sexo: Feminino
Naturalidade: Aquidauana
Idade: 44 anos
Profissão: Funcionária Pública
Estado Civil: Solteira
Descendência: 01 Filha e 01 Neta
Local de Moradia: Rua Quintino Bocaiuva, 532, Aquidauana
Com quem aprendeu essa técnica: Com seu pai, o senhor Thomaz Franco
Tipo de conhecimento / tecnologia: Organizar e ensinar brincadeira de turito.
Descrição das etapas:
1. Material necessário:
05 pedras arredondadas, de tamanho pequeno
pessoas com espírito de criança e com vontade de brincar
2. Modo de execução:
Sentado(a) no chão, de preferência sobre a terra, apoie o dedo médio da mão esquerda
sobre o dedo indicador desse mesmo membro e forme uma espécie de “portal” colocando o
dedo indicador e o polegar sobre o chão, em uma posição confortável. Segure as pedras com a
outra mão e, passando o braço direito por baixo do braço esquerdo, jogue as pedrinhas sobre o
chão, na frente do “portal”.
Pegue uma das pedras e, mantendo o “portal” sobre o chão, jogue-a para cima,
empurrando uma a uma as pedras que estão no chão para dentro do “portal”. Mande rápido as
pedras para dentro do “portal”, pois a pedra jogada para cima não pode cair sobre o solo,
devendo ser recolhida.
Após todas as pedras terem sido empurradas, o jogador as recolhe e inicia novamente
o processo, mas dessa vez deve recolher duas pedras na mão e lançá-las ao alto, enquanto
empurra as demais. Na terceira rodada, recolhem-se três pedras para serem jogadas e assim
sucessivamente. A cada caída da pedra, outro jogador recebe a vez no jogo. Ganha quem
conseguir executar todos os passos primeiro.
Outras informações: Segundo a entrevistada, uma de suas diversões durante os anos em que
sua família viveu no campo era a brincadeira de turito, que ela, depois de grande, ensinou à
sua filha adotiva e a todos os seus sobrinhos, com quem ainda brinca, de vez em quando,
disseminando a ideia de que nem somente de jogos eletrônicos deve viver a juventude.
59
3.1.2 Descobrindo histórias do passado
Entrevistado 1
Nome completo: WILFRIDO GODOY
Sexo: Masculino
Apelido: Caraí
Naturalidade: General de Aquino - Paraguai
Idade: 67 anos
Profissão: Pedreiro
Estado Civil: Casado
Descendência: 01 Filho e 01 Neta
Local de Moradia: Rua João Lopes Assumpção, 75, Bairro Alto, Aquidauana
Com quem aprendeu esse caso: Aprendeu esse caso com seu amigo Chita.
Característica peculiar: Sempre contam essa história nas pescarias entre amigos.
Indicação:
1. Localidade: Aquidauana / MS
2. Época cronológica: Ocorreu logo no início da utilização dos fogões a gás.
3. Quem contava: Um amigo do senhor Caraí, o Chita.
4. Quando se contava: Principalmente para rir, nas pescarias.
Caso: Susto da modernidade
Essa história aconteceu logo no início da fabricação dos fogões a gás. Antigamente,
mesmo na cidade, só existiam fogões a lenha. Então, quando surgiram os fogões a gás, muitas
pessoas tinham uma enorme preocupação, principalmente quanto à segurança. Nessa época, o
Chita, meu amigo desde muito tempo, morava ainda na fazenda onde fomos criados.
O dono da propriedade comprou o tal do fogão a gás. Junto com o equipamento, é
claro, veio o botijão, mas ninguém sabia montar o trambolho. Foi então que apareceu o Chita
e se ofereceu para cumprir a missão, que logo foi auxiliada pela Dona Constância, uma
paraguaia que cozinhava na fazenda há muito tempo. Disse a mulher que já tinha visto aquele
procedimento e que precisaria de um martelo, para finalizar a montagem.
Ninguém entendeu, mas o martelo foi providenciado e Chita fez tudo certo: colocou a
mangueira no devido lugar, destravou o botijão, acionou a trava de segurança, fez a ligação de
forma correta e, finalmente, usou toda a sua força para apertar a válvula. Foi quando Dona
Constância entregou o martelo pra ele e disse: “Agora bate!”. E Chita, olhando para ela,
60
olhando para o botijão, olhando para a plateia que acompanhava tudo, girou o braço e teim,
meteu o martelo no botijão, fazendo o maior estalo, assustando todo mundo.
Não havia entendido, o pobre coitado, que era só para reforçar o aperto da válvula.
Outras informações: Durante o relato, o entrevistado ria muito, recordando a história e se
divertindo com ela.
Entrevistada 2
Nome completo: MARIA ÁUREA DOS SANTOS GODOY
Sexo: Feminino
Apelido: Vovó Áurea
Naturalidade: Aquidauana - MS
Idade: 64 anos
Profissão: Aposentada
Estado Civil: Casada
Descendência: 01 Filho e 01 Neta
Local de Moradia: Rua João Lopes Assumpção, 75, Bairro Alto, Aquidauana
Com quem aprendeu esse caso: Aprendeu o caso com seu pai, o senhor Joaquim Cardeal
dos Santos.
Característica peculiar: Até hoje ainda conta esse causo para toda parturiente que conhece,
por acreditar na função protetiva da história.
Indicação:
1. Localidade: Aquidauana / MS
2. Época cronológica: Década de 40 do século passado
3. Quem contava: O pai da senhora Maria Áurea
4. Quando se contava: Sempre que se falava em bebês e aleitamento materno.
Caso: Rabo de cobra, peito de mãe
Quando engravidei de meu único filho, uma de minhas maiores preocupações foi
quanto ao constrangimento que eu poderia sentir nos momentos em que teria que amamentar
meu filho, na frente dos outros. Tinha receio de me sentir envergonhada por ter que expor
meu corpo, mesmo que por um motivo perfeitamente natural. Naquela época a preocupação
com a nudez era diferente de hoje.
Depois do nascimento do bebê, entretanto, essa sensação passou e me sentia
perfeitamente confortável com meu papel de mãe. Certo dia, meu pai chegou a minha casa e
me viu deitada, dormindo, enquanto meu filho mamava. Quando acordei, me contou um caso
61
que, segundo ele, era narrado pela sua saudosa mãe, sempre que uma mulher estava prestes a
dar à luz.
Relatou meu pai que, certa vez, nos ermos do Pantanal, uma mulher teve uma criança
que nasceu saudável, mas que não se desenvolvia, embora sua mãe a amamentasse
constantemente. Alegava a mulher que o bebê, inclusive, mamava a noite toda, grudada em
seu peito, enquanto dormiam. Tais declarações, entretanto, não correspondiam com o aspecto
de desnutrição da criança, fato que começou a tirar o sono da mãe.
Uma noite, preocupada com a criança que sugava seu peito, a mãe cochilou apenas e o
que se seguiu foi surpreendente: uma enorme sucuri surgiu no meio da frágil parede de
madeira do quarto, fazendo com que a mulher permanecesse estática, de medo. Então, a
serpente colocou seu rabo na boca da criança e começou a sugar o leite, “enganando” mãe e
filho.
Mesmo desesperada, a mulher não conseguia se mover e somente esboçou reação após
a cobra se saciar e abandonar o lugar. Diziam os habitantes da região que nunca mais, depois
daquele dia, as mulheres jamais se deitavam com seus filhos para amamentar, pois tinham
certeza de que, se o fizessem, seriam visitadas pela cobra-mamífera, que enganava crianças e
mães. Eu, pelo menos, nunca mais dormi enquanto meu bebê mamava.
Outras informações: Após o relato, a entrevistada, curiosamente, contou que, meses antes de
seu filho nascer, uma prima havia tido um bebê e, acidentalmente, o matou asfixiado,
enquanto ambos dormiam juntos, na mesma cama. A narradora acredita, racionalmente, que
seu pai talvez tenha inventado essa história da cobra para que a filha não corresse o risco de,
também culposamente, sufocar a criança durante o sono. De qualquer forma, o intento
funcionou.
Entrevistado 3
Nome completo: LUIZ RODRIGUES MIRANDA
Sexo: Masculino
Apelido: Seu Miranda
Naturalidade: Miranda - MS
Idade: 62 anos
Profissão: Funcionário Público Estadual
Estado Civil: Casado
Descendência: 02 Filhos e 01 Neta
Local de Moradia: Rua dos Ferroviários, s/nº, Bairro Alto, Aquidauana
62
Com quem aprendeu esse caso: Com seu pai, senhor Alexandre Miranda
Característica peculiar: Sempre conta essa história, quando quer se referir a alguém
preguiçoso.
Indicação:
1. Localidade: Miranda / MS
2. Época cronológica: Década de 50 do século passado
3. Quem contava: O pai do senhor Luiz
4. Quando se contava: Sempre que alguém precisava ser alertado sobre as
consequências da preguiça.
Caso: Exemplo de gato
Havia um homem já de idade avançada que, ao ficar viúvo, deixou sua propriedade do
campo e foi até a cidade, para arrumar uma nova companheira. Depois de conhecer várias
mulheres, escolheu uma bela moça, muito mais nova que ele, porém de grande beleza. Ao se
casarem, resolveram voltar para a roça, um lugar muito bonito, porém que exigia muito
trabalho à manutenção.
Depois de alguns dias de núpcias, o fazendeiro começou a perceber que a esposa,
apesar de muito agradável aos olhos e aos seus caprichos de homem, era pouco afeita a
trabalho, permanecendo na cama até muito tempo depois do nascer do sol. Isso começou a
injuriar o velho, que já pensava ter feito uma péssima escolha, pois várias outras mulheres
dariam “céu e terra” por um casamento como aquele.
Após refletir sobre como fazer com que a jovem esposa se prontificasse a, pelo menos,
ajudar nas tarefas caseiras, o marido resolveu aplicar-lhe uma lição: pegou um de seus gatos
de estimação e, na frente da moça, deu uma enorme surra no animal, gritando para quem
quisesse ouvir: “Eu mandei você parar de se lamber e você não parou. Mandei você parar de
afiar suas garras no sofá e você não parou. Agora você vai ver quem é que manda”.
Após muito bater no bichano, humilhá-lo física e “moralmente”, tripudiá-lo e
praticamente virar o gato do lado avesso, o homem olhou para a linda e jovem esposa (que
acompanhava a cena de perto) e disse, calmamente: “Querida, será que você pode, a partir de
hoje, ficar responsável pela nossa casa, pela nossa roupa e pela nossa comida?” – E quem, em
uma situação dessas, seria capaz de discordar?
Outras informações: O relator afirmou, jocosamente, que seus filhos cresceram ouvindo esse
caso e que, sempre que um deles se recusava a algum serviço, era alertado com a pergunta:
“Gato de quem será maltratado hoje?”.
63
3.1.3 A infinitude da ponta de um lápis
A imaginação é mais importante que o saber.
(Albert Einstein)
Introdução
A doutora Ana Maria Fargoni26
dizia, em suas aulas de análise sintática por diagramas,
em terras aquidauanenses, nos findos do século passado, que “depois de Adão, nem Eva foi
original”. Afirmava isso, a douta e inesquecível mestra, quando seus pupilos pantaneiros
(impressionados pela forma como a paulista esmiuçava a linguagem) alardeavam a
criatividade de seu método de tracejados e retas que se propunha a desvendar a arcana
morfossintaxe portuguesa.
Por ululante obviedade, acredita-se que essa conclusão fargoniana almejava apenas a
modéstia intelectiva que deve pautar o responsável ambiente acadêmico, sem a qual,
seguramente, deixaria de existir o desenvolvimento científico e, talvez, a própria evolução
social. O que se percebe é que, como elemento histórico, o Homem se reconstrói e se
reformula a cada momento, moldando elementos conhecidos de forma fecunda ao vivificar a
mítica essência inventiva, transformadora e original por natureza.
Nesse contexto de criatividade, a revisão de práticas pedagógicas é imprescindível à
facúndia repercussiva do escopo da Educampo, pois não mais podem ser admitidas técnicas
de ensino-aprendizagem perpetuadoras do subjugo imposto pelo capital e pelo desrespeito à
sustentabilidade da natureza. Assim, técnicas e métodos podem ser “criativamente”
transformados, pois materializam a decisiva influência docente à formação do intelecto e do
amálgama de seres e saberes que deve permear o universo educacional.
Por piores que sejam as predições, a sobrevivência humana jamais estará
negativamente sentenciada, enquanto ao próprio indivíduo (algoz e vítima) incidir o destino
do mundo. Isso porque, “apesar de capaz dos piores pesadelos, ao ser humano ainda cabem
belos sonhos”27
. Basta que o próprio Homem (interessado não mais em destruir, mas em
fecundar) se reinvente, na infinitude que cabe na “ponta de um lápis”.
Plano de aula
Dados de Identificação
26
Professora aposentada de Linguística e Língua Portuguesa da UFMS.
27
Tradução livre de trecho da produção cinematográfica Contato, de Robert Zemecks.
64
Escola: Núcleo Escolar “Dulce Esperança Vital”
Turma: 7º Ano, 8º Ano e 9º Ano
Disciplinas envolvidas: Língua Portuguesa, Literatura, Biologia e Artes
Tema: Potencialidades de o óbvio ser diferente – TransFormAções do Agente Humano
Professores: docentes das disciplinas supramencionadas e voluntários
Dia: 11 de setembro de 2010 (sábado letivo)
Horário: 07 h
Duração: 4 h/a com intervalo
Local: Assentamento “Futuro Próspero”
Objetivos
A atividade busca, precipuamente:
a. Fomentar a percepção do elemento humano como agente transformador da
realidade;
b. Desenvolver a potencialidade de apreciação natural e artística;
c. Incentivar a busca por ações criativas de sustentabilidade;
d. Estimular a valorização dos elementos do campo através da percepção da
importância da matéria-prima à construção do mundo;
e. Topicalizar a dimensão da singeleza na elaboração da complexidade, através da
focalização e valorização do local; e
f. Produzir novos textos e novos materiais através de alterações em elementos
habituais já existentes, reinventando a linguagem, o próprio conhecimento e, por conseguinte,
promovendo a elevação da auto-estima.
Elementos desencadeadores da práxis reflexiva (conteúdos)
Textos escrito, musicado e visual, disponibilizados no Anexo A.
Procedimentos metodológicos
Será realizada a leitura, em grande grupo, dos textos verbais e não-verbais mostrados,
sugerindo a questão da intertextualidade e fomentando a percepção de que um único elemento
(o lápis, no caso) pode ser trabalhado de formas diferenciadas, a critério das necessidades ou
da amplitude criadora do Homem, agente essencialmente transformador.
Esse exercício criativo deve primar pelo interesse da condição inventiva humana, que
perpassa por atividades em todos os setores sociais e de saberes e que, no ambiente escolar,
para Virgolim (1998, p. 10):
65
propiciam uma abertura da sala de aula para a expressão do pensamento
divergente, influindo no aumento da auto-estima dos alunos e na satisfação
do aluno com o sistema escolar.
Deve ser ressaltada, no processo, a carga semântica e metafórica de “o lápis”,
propondo a necessária e fundamental “apologia à EducAção” (transformadora, por natureza).
Assim, serão apresentadas potencialidades de elaboração e de compreensão diferentes a uma
mesma temática, reforçando a individualidade e o local para a completude conjunta.
Autorizando a discussão em grande grupo, os estudantes serão convidados à busca por
outros elementos que já foram “transformados” na História, ajuizando as necessidades, as
benesses e as consequências de tais transformações, ponderando, criticamente, a quem mais
favoreceu tais eventos, pois, conforme afirma Guillon (1994, p.19):
Quando a pessoa está consciente de como ela própria e os outros percebem e
processam a informação, pode conseguir com que o aprendizado e a
comunicação se tornem bem mais fáceis e eficazes, trabalhando no seu
melhor estilo.
Assim, por exemplo, a “metalinguagem” do texto poético apresentado pode sugerir
uma abordagem à essência natural dos indivíduos e percepção da singeleza de elementos
necessários à sua manutenção, enquanto o lirismo da produção musicada se presta à
amostragem da imensidão da criatividade humana, comprovada pelas esculturas apresentadas
nas imagens.
Segue-se para a prática transformadora, que pode utilizar quaisquer materiais:
linguagem verbal, não-verbal, recurso naturalístico ou industrializado28
(admite-se a
“variação” de textos ou de elementos, como, por exemplo, coletados do lixo), reforçando nos
participantes a necessidade de percepção quanto às consequências de suas escolhas.
Finalmente, as “recriações” serão apresentadas individualmente ao grupo, com as
devidas explicações: o que era, como foi transformada, no que se transformou e as
consequências dessa mutação, ao meio ambiente e às pessoas. Os trabalhos serão expostos a
toda a comunidade, no Festival do Diferente29
, vivificando a criatividade, que, para Luckesi
(2005, p. 29):
28
Os recursos naturais possíveis de serem utilizados serão conseguidos no próprio assentamento, como cascas,
folhas, frutas e sementes de árvores, rochas, argila e outros; os recursos industrializados deverão, também, ser da
própria comunidade, como roupas usadas e equipamentos extraviados.
29
Atividade desenvolvida no Núcleo Escolar e melhor detalhada na atividade 5 desse módulo III.
66
tem a ver com a possibilidade do olho brilhar diante da compreensão de
alguma coisa nova sobre a qual somente tínhamos ignorância,
desconhecíamos. Criatividade tem a ver com o prazer de aprender, de
entender, de buscar, de saber fazer, de construir, de conseguir dar conta de
alguma coisa que nos desafia ou que desafia nossos educandos. Educadores
e educadoras que rompem com a formalidade na prática pedagógica são
aqueles que colocam “coração” no caminho pedagógico e insistem, inventam
e reinventam possibilidades para que os seus educandos aprendam, porque,
para desenvolver-se, importa que aprendam significativamente sobre tudo o
que se passa diante de seus olhos.
Critérios de avaliação
Os participantes (estudantes) da atividade serão avaliados:
a. Pelos docentes, quanto à participação;
b. Por seus pares, quanto ao empenho no cumprimento das tarefas;
c. Por si próprios, quanto aos resultados conseguidos;
d. Pela comunidade assentada, quanto à exposição coletiva.
Os participantes (professores e voluntários) da atividade serão avaliados:
a. Por si próprios, quanto à participação e envolvimento dos estudantes e da comunidade em
geral.
Recursos didáticos
Serão necessários, à atividade:
a. Fotocópias dos textos verbais e não-verbais e/ou aparelho de computador com projetor;
b. Papéis, canetas, lápis, tinta, lápis de cor, giz de cera, cola;
c. Jornais, livros e revistas;
d. Máquinas fotográficas (artesanais e digitais).
Os demais materiais deverão ser conseguidos pelos estudantes, através de devidas
autorizações.
3.2 Eixo temático: princípios organizadores do trabalho pedagógico em escolas de
educação do campo
A única atividade desse eixo temático sugeriu uma “viagem” ao futuro, a fim de se
apontar, através de expediente lúdico, a criação de uma escola do campo ideal, que fosse
capaz de retratar as necessidades e utopias da Educação e, por conseguinte, a aplicação efetiva
da EDDHH. Assim, utilizando-se de exercício de intertextualidade com a produção disponível
67
no Anexo B, MMF apresentou o texto a seguir, que nomeia a próxima subdivisão desse
memorial.
3.2.1 Era uma vez no futuro, há algum tempo depois de amanhã
Antes de ser concretizada, uma ideia tem uma
estranha semelhança com a utopia.
(Sartre)
Foi na formatura de minha avó, ainda no início do século, que minha mãe ouviu, pela
primeira vez, falar em Dona Dulce, a professora do Jardim de Infância que acreditava ser
descendente de poeira de estrela. Contou minha avó, oradora de turma, no seu discurso de
graduação, que a professora Dulce acreditava que as pessoas tinham sido originadas de
fragmentos de estrelas, há muito tempo atrás, e que, por essa ascendência luminosa, todos os
seres humanos nasceram para trabalhar e brilhar.
Em homenagem à fantasia espalhada pela mãe de minha mãe (até hoje ninguém
confirma a veracidade da história, mas lendas têm muito de realidade!), a escola do
Assentamento “Futuro Próspero” foi batizada de Núcleo Escolar “Dulce Esperança Vital”.
Ninguém pode duvidar ser esse o melhor lugar do mundo para se aprender a viver: um pedaço
fértil de chão pantaneiro, localizado às margens do Rio Aquidauana, no município homônimo,
a 15 quilômetros da sede, em direção ao conhecido Morro do Chapéu.
É aqui que vivo: no “Futuro Próspero”. É aqui que cresço: no “Dulce Esperança Vital
do Futuro Próspero”, na doce promessa de vida de um amanhã melhor. Meu nome é Ana Mel
e sou filha de minha mãe, que é filha de minha avó, que é filha de minha bisavó, que é filha
de minha tataravó, filha da Dona Puri que nasceu em campos paraguaios, mas criou, na
cidade, filha, neta e bisneta que cresceram e descobriram a importância do campo e
mostraram a quem veio depois o valor da terra e do labor rural. Simples assim.
Moro no Mato Grosso do Sul, o Estado brasileiro reconhecido mundialmente como
exemplo de preservação ambiental e valorização à vida. Nossos governantes, por
personificarem a grandeza da democracia, endossam a manutenção municipal de minha
escola, que também recebe auxílio da cooperativa do assentamento. Aqui nunca falta nada ao
desenvolvimento intelectual e emocional das crianças, jovens e adultos, pois trabalhamos
muito para que a comunidade tenha tudo o que o dinheiro pode comprar.
68
O Núcleo “Dulce Esperança” é um referencial porque possibilita acompanhamento
desde a Educação Infantil até depois do Ensino Médio, facultando auxílio aos cursos
superiores, nas mais diferentes áreas, com incentivos principalmente às cadeiras acadêmicas
voltadas aos assuntos do campo, como Agronomia, Veterinária e Educação. A filha de minha
vizinha, que ainda nem nasceu, já está matriculada na creche, no próximo semestre,
demonstrando a preocupação do “Futuro Próspero” com a formação humana.
No ano passado, o Seu Altivo, um agricultor aposentado de 93 anos, concluiu a
faculdade de Direito, auxiliado pela cooperativa, que mantém um meio de transporte que leva
e traz universitários que estudam na cidade. Todos os 224 moradores do “Futuro Próspero”
estiveram na festa de formatura e, agora, o Seu Altivo é voluntário do Núcleo e conversa com
as crianças e os jovens, uma vez por semana, sobre questões relacionadas a Direitos Humanos
e Cidadania.
Foi o Seu Altivo que propôs a construção da “sala de plástico”, pois, em uma de suas
conversas, um aluno quis saber por que nossa escola tem salas de tijolo, salas de madeira,
salas de pau-a-pique e salas debaixo de pé de manga. O sábio bacharel explicou que o ser
humano deve experimentar todas as possibilidades oferecidas pela natureza e pela tecnologia,
a fim de aprender a respeitar as escolhas de cada semelhante e, por conseguinte, aprender a
defender suas próprias escolhas. Simples assim.
Destarte, com a ajuda da comunidade, mais uma sala foi criada, feita de garrafas de
refrigerante, com móveis inventados de reciclagem, mostrando a preocupação da escola com
assuntos que são de todos e não somente das pessoas que moram nas cidades. Eu prefiro as
salas debaixo de pé de manga, para onde nos levam os professores nos dias de sol e calor,
mas, devo confessar, no período de frio e chuva, a sala de plástico funciona bem, mostrando
como o “Futuro Próspero” pode ser acolhedor ao desenvolvimento humano.
Uma de minhas melhores amigas da cidade, sempre que vem aqui, se impressiona com
a infra-estrutura da “Dulce Esperança”, dizendo que quem mora no campo não pode ter os
mesmos recursos de quem vive na cidade, como se a vida rural fosse alheia às transformações
do mundo. Eu explico a ela, lembrando das lições de Seu Altivo, que o “Futuro Próspero” não
pode parar no tempo e que dispor de tecnologias e fazer bom uso do desenvolvimento é um
direito de todos, desde que a natureza seja plenamente respeitada.
Ela fica admirada de ver como “Dulce Esperança” está sempre limpa e arrumada,
apesar de singela. Explico que, seguindo a filosofia da Polícia Comunitária, os problemas são
resolvidos quando ainda pequenos, pois se, por exemplo, não houver o primeiro papel
amassado jogado no chão, outras sujidades não aparecerão. No “Futuro Próspero” o índice de
69
violência é praticamente zero, pois aprendemos em casa e na escola que a segurança
individual depende do bem-estar coletivo.
Digo a ela que aqui sentimos que podemos desejar e devemos trabalhar para
conquistar bens materiais, mas que é imprescindível a preocupação com a oferta de
oportunidades quantitativamente iguais aos outros, porque o nosso sucesso não pode ser
conquistado através da criação de um inimigo em potencial, pois ele pode se tornar nosso
algoz. Quando mostrei a inexistência, na escola, de muros e salas separadas para diretor,
coordenador e professores, ela me disse que na escola dela não funcionava dessa maneira.
No “Futuro Próspero”, como as decisões mais importantes são tomadas coletivamente,
todos trabalham juntos, sempre que possível, como uma grande família que precisa aprender a
conviver para sobreviver. Mesmo os computadores ficam disponíveis a todos, pois ninguém
tem a intenção de ações que possam causar qualquer prejuízo ou constrangimento a quem
quer que seja. Somos incentivados a seguir a máxima “aja como você gostaria que os outros
agissem”. Simples assim.
Essa minha amiga estuda em uma escolar particular da cidade e me conta que a
diretora da escola dela premia, todo final de ano, os alunos que tiram notas maiores que nove
no boletim, com uma viagem para a praia. Na minha escola não há prêmios para notas. Há
incentivos à aprendizagem e ao talento e minha diretora já explicou que isso nem sempre
pode ser mensurado através de notas. Foi assim que ganhei, no ano passado, uma coleção de
livros de Monteiro Lobato, que, depois que li e reli, doei à biblioteca do “Dulce”.
Conquistei os livros por ter auxiliado cinco colegas que estavam com dificuldades em
aprender a fazer cálculos. Assim como eu, outros nove alunos também foram premiados, por
razões diversas, mas que demonstravam claramente a intenção do “Futuro Próspero” de
formar pessoas comprometidas com a criatividade, com a solidariedade e com o respeito ao
ambiente em que vivem. Não ansiamos somente a busca por notas altas, pois isso, depois,
pode se tornar a triste busca de recompensa por dinheiro apenas.
O Jean, do nono ano, foi galardoado por ter sugerido uma técnica engenhosa que foi
utilizada na construção da sala de plástico; o Felipe, do Ensino Médio, conquistou louros por,
apesar de não ter se saído muito bem nos estudos no primeiro semestre, ter conseguido
superar suas dificuldades e passar no vestibular, assim como a Ana, do sétimo ano, que
ajudou na exposição nacional de compotas e geleias; a Denise, do Ensino Médio, ganhou um
grande troféu por ter representado nossa escola no campeonato de ciclismo.
A Mariazinha, do quinto ano, ganhou livros também pela sua dedicação à produção de
poemas, que retratam a vida do homem do campo; o Rodrigo, do sexto ano, foi laureado por
70
sua valentia ao acolher um lobinho que foi ferido por um automóvel que passou pela rodovia
que corta o assentamento; a Joana, do Ensino Médio, ganhou um computador por ser brilhante
em informática e ajudar a secretaria da escola com a documentação dos estudantes.
O bisneto do Seu Altivo, Lucas, que estuda no oitavo ano, ganhou obras de Manoel de
Barros, por sua dedicação ao estudo da Língua Inglesa e por ter servido de intérprete quando
um grupo de estrangeiros veio visitar o “Futuro Próspero”. A Luísa, do nono ano, ganhou uma
viagem para Brasília, para participar de um congresso e palestrar a jovens sobre a importância
dos Movimentos Sociais ao fortalecimento da democracia e ao desenvolvimento nacional.
Todos nós, segundo a diretora (uma pedagoga que nasceu no assentamento, estudou
aqui, se formou através do ensino à distância e hoje, eleita pela comunidade, se dedica ainda
mais à valorização da vida rural), somos a personificação do sucesso, porque fazemos a
diferença. Assim como um dos vereadores de nossa cidade, que também é “filho do
assentamento”, e da Secretária de Educação do município (irmã da nossa diretora), que, muito
compromissada, mora no “Futuro Próspero”, de onde (diz) não sai nem depois de morta.
Passo o tempo todo estudando, assim como todos os assentados, pois somos
comprometidos com a manifestação da essência da palavra educar, conforme ensinou o
professor Marcos Bagno quando esteve aqui no ano passado, após receber um e-mail enviado
pela Joana. Segundo esse linguista, educar é diferente de ensinar, porque educar implica em
um movimento de dentro para fora, diferente de ensinar, que empurra de fora para dentro (às
vezes, coisas que não dizem respeito a quem somos ou a quem queremos ser).
Então, mesmo quando não estamos sentados em uma cadeira, ouvindo um professor
falar, estamos nos educando. Aprendemos com a natureza e com sua fantástica generosidade
pela produção de nossos alimentos; educamo-nos para conhecer melhor as estações do ano e a
cronologia da terra; despertamos interesse pela capacidade gestacional dos bichos; tornamo-
nos especialistas em observação de pássaros; decidimos pela composição dos melhores
adubos.
Usamos as ciências para melhorar nosso mundo e fazemos com que trabalhem para
nós, de forma a não nos tornarmos seus escravos, pois elas é que devem estar sujeitas às
nossas necessidades, provendo-nos. No “Futuro Próspero” aprendemos a aprender o porquê
de aprender. Logo, a vida em sua totalidade é abordada na “Dulce Esperança”, o que nos
enche de júbilo e dedicação, pois percebemos nossa evolução como ser vivo e nos
descobrimos capazes de tudo aquilo que desejarmos.
Na semana passada, no “Dulce”, houve a décima edição da Festa do Diferente, uma
comemoração bimestral para celebrar a universalidade e o respeito a todas as dessemelhanças
71
que existem no mundo. Grupos de alunos se formam e abordam questões para falar das
particularidades que diversificam a vida. Tem palestras, teatro, apresentações musicais e o que
mais puder representar a diversidade humana. Foi em uma dessas festas que o professor Sírio
Possenti falou que os sotaques são as cores das Línguas. Achei bonito.
Houve também a apresentação de um longa-metragem norte-americano e minha
professora de Literatura (que é apaixonada por Guimarães Rosa e vive repetindo aquela
passagem de “Grande Sertão”: “Passarinho que se debruça, o voo já está pronto”) pediu que
os professores refletissem a respeito da fala de uma personagem do filme. Nessa parte da fita,
a diretora de um colégio diz a um professor que mais importante que encher a cabeça dos
jovens de informações é ajudar a direcionar essas cabeças cheias ao caminho certo.
Eu não entendi direito, mas gostei muito da história, porque ele fala sobre a vida de
um professor que começou a lecionar simplesmente por necessidade financeira e descobriu
que era um bom mestre e que suas lições de vida eram importantes para outras pessoas.
Percebi por que minha avó devia gostar tanto da Dona Dulce. Agradeci, em silêncio, por viver
aqui e por crescer aqui. E pedi, também em silêncio, que o mundo descubra essa terra, essa
gente e essa coragem de se perceber como estrela, rasgo de luz. Simples assim.
3.3 Eixo temático: planejamento pedagógico - metodologias e práticas em educação do
campo
O último eixo temático do módulo III determinou a realização de cinco atividades. A
primeira deveria contemplar a organização de uma prática pedagógica (que poderia ser um
projeto, ou um passeio, ou qualquer outra atividade), enquanto o segundo exercício exigiu a
elaboração de um plano de trabalho que se utilizasse de alguma forma de manifestação
artística (ambas as práticas deveriam ter como público alvo a comunidade escolar ideal
apresentada no trabalho anterior e traziam vastas sugestões de procedimentos a serem
seguidos à sua elaboração e aplicação).
A terceira atividade se diferenciava das primeiras, pois propunha novamente a prática
das entrevistas, exigindo que fossem pesquisadas pessoas que vivessem no campo e tivessem
estudantes sob suas responsabilidades, a fim de se verificarem quais os interesses e aspirações
se pretendiam a escolas reais. Assim, estreitou-se o contato da MMF com indivíduos que
vivem do, no e para o campo, em conveniente demonstração da interatividade humana: de um
72
lado, a especializanda interessada no cumprimento de suas tarefas e, do outro, pessoas que se
consideram simples demais para conversas, mas que educam muito mais do que supõem.
O quarto trabalho solicitou uma maior interação da MMF com sua comunidade, pois a
mesma foi impingida a conhecer melhor o lugar onde vive para que pudesse buscar
informações sobre a existência de Movimentos Sociais e outras formas de organização de
trabalhadores rurais. Finalmente, a última atividade intentou a fundamentação de princípios
norteadores de PPPs das escolas do campo. Assim, foram elaborados os textos que intitulam
as subdivisões seguintes desse trabalho acadêmico.
3.3.1 Mundo espelhado: Projeto Festival do Diferente – conhecer para respeitar
Não perturbemos o homem que substitui a vida por
um sonho.
(Georges Clemenceau)
Introdução
Talvez o maior de todos os problemas do Homem seja a ineficiência do ser humano de
se perceber como alvo de seus próprios (pré)conceitos e suas mesmas ações. As agruras e as
vaidades do indivíduo não (inter)feririam a vida em sociedade se cada sujeito tivesse uma
melhor percepção espelhada de suas limitações e virtudes. Assim, muitas das mazelas
hodiernas habitariam somente histórias de ficção se as pessoas conseguissem se perceber
como um alvo em potencial ou como um temerário algoz.
Por que os indivíduos têm tanta dificuldade de se enxergarem em seus semelhantes?
Por que a transposição de vivências e de sentimentos é tão complexa a organismos formados
por, basicamente, os mesmos elementos químicos? Por que a metamorfose humana de
pensamentos ocorre tão devastadoramente, a ponto de, em situações idênticas em que figura
em polo oposto, a mesma pessoa tenha impressões diferenciadas? Por que TUDO pode
acontecer ao outro e NADA pode acontecer comigo?
As respostas a essas dúvidas existenciais devem habitar um mundo utópico, em um
universo de espelhos no qual todos consigam, olhando aos demais, enxergarem-se a si
próprios e se perceberem na luminosidade dos reflexos. Para isso, entretanto, faz-se mister a
prática de ações que estimulem a formação dessa potencialidade perceptiva, mostrando a
influência dos comportamentos individuais à vida coletiva, alardeando a interferência de uns
sobre os outros.
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A vida e as experiências do campo podem estimular essa percepção, pois os
ensinamentos de quem compreende a grandeza das miudezas da terra e da natureza são
fundamentais à Educação. Ao futuro próximo, há algum tempo depois de amanhã, em um
mundo espelhado, será primordial e indispensável o entendimento de que, “por mais frondosa
e frutífera que seja a árvore, ela somente personifica os sonhos de germinação e de grandeza
de sua semente”.
Dados de identificação do projeto
Escola: Núcleo Escolar “Dulce Esperança Vital”
Localização: Assentamento “Futuro Próspero”, município de Aquidauana / MS
Turmas envolvidas: Educação Infantil, Fundamental e Média
Responsáveis: Professora Francisca Benta Teixeira – Diretora do Núcleo
Professora Luísa Helena Franco Godoy – Bióloga
Senhor Altino da Silva Pedroso – Voluntário, Bacharel em Direito
Participantes: Doutor Marcos Bagno – Linguista
José Rainha Neto – Ativista de Movimento Social (Questão Agrária)
Robson da Silveira – Ativista de Movimento Social (Questão Racial)
Mia Gimenez – Ativista de Movimento Social (Questão de Gênero)
Grupo de Expressão Artística “Saberes da Terra”
Prática pedagógica: Festival do Diferente – Conhecer para Respeitar
Período: Primeira semana da Primavera, algum tempo depois de amanhã
Local: Pátio do Núcleo Escolar “Dulce Esperança Vital
Justificativa
Considerando fundamental a prática educacional para a diversidade, pretendida pela
indispensável inferência da Educação em Direitos Humanos, em todos os setores sociais, a
presente atividade pedagógica se legitima na necessidade de valorização e de respeito à
multiplicidade humana.
Hodiernamente, apesar de constituir uma situação inaceitável à pretensão de
desenvolvimento e à construção de uma sociedade equânime e justa, ainda é majoritária a
existência de indivíduos perpetuadores de ideias deturpadas e discriminatórias, que
influenciam o universo infanto-juvenil, criando um círculo de desinformação e preconceito.
Assim, fazem-se misteres propostas de disseminação da temática da heterogeneidade
humana entre os jovens, especialmente no ambiente educacional (propício à difusão de
74
ponderações), que não pode se furtar à imperatividade de interferir para influenciar
positivamente as experiências humanas.
Entende-se que discorrer esse assunto pode se mostrar complexo e demeritório,
especialmente porque envolve a necessidade de reformulação interna de idiossincrasias que,
no período de transição da infância à idade adulta, se encontram ainda mais intensificadas.
Entretanto, parece pertinente a relevância da tentativa se forem consideradas as
crescentes estatísticas apontando a participação de jovens em atos de alienação política,
discriminatórios ou autodepreciativos, fato que reforça a ingerência de projetos e atividades
que estimulem práticas de conscientização biofílica e humanista.
Referencial teórico
Ao se analisar a necessidade de discussão dos ideais humanistas interessados na
diversidade, percebe-se seu caráter indispensável à vida moderna em virtude das mazelas
trazidas pela criminalidade e violência, que evidenciam uma crescente evolução,
principalmente, de práticas biofóbicas.
Isso tem legado a insatisfação coletiva e o desvirtuamento social abordado por Camps
(1994, p. 12) ao defender a importância de se construir, na prática educacional, um lócus da
ética e do incentivo de valores morais eufóricos, pois “se estivéssemos plenamente ajustados à
realidade, não caberia falar de justiça nem de valores como algo a conquistar”.
Baseando-se em princípios antropológicos, humanistas e descritivistas, compreende-se
se tratar a disseminação do respeito à diversidade humana uma questão coletiva e de ampla
carga semântica, estimulando a proposta de Rayo (2004, p. 164) de que toda ação educativa
deve estar a serviço da humanidade, visando a uma “cultura da paz”.
Sobre o papel da informação à vivência da “cultura de paz”, diz Franco que (2009, p.
44) “nem que seja por motivos de autopreservação, o altruísmo deve ser fomentado, propondo
a efetivação da solidariedade, da segurança, da dignidade, da paz e da Justiça na
transformação do mundo, que começa dentro de cada exemplar da espécie humana”.
Assim, corroborando o entendimento de Freire (1979, p.42) para quem a interação “é o
encontro no qual a reflexão e a ação (...) orientam-se para o mundo que é preciso transformar
e humanizar”, tal atividade busca, precipuamente, uma conversa entre o campo, suas
minudências e o restante do mundo, em um exercício de reciprocidade.
Objetivos
Traçam-se as seguintes metas à realização da prática:
75
a. apresentar experiências humanas diferenciadas;
b. propor convivência de valorização, aceitação e respeito às dessemelhanças da
natureza humana; e
c. estimular a necessidade de respeito à multiplicidade, instigando, principalmente, a
percepção ao autorrespeito.
Metodologia
O Festival do Diferente prevê a realização de conversas informais com convidados
(inseridos em contextos de diversidade linguística, de lócus de origem e vivência,
etnicorracial e sexista) que, por questões de estudo ou existência, possam apontar fatores
desencadeadores de preconceitos e discriminações.
Além disso, apresentações do Grupo “Saberes da Terra” e oficinas artísticas
(produzidas pelos integrantes do grupo e auxiliadas pelos professores, funcionários do Núcleo
Escolar “Dulce Esperança Vital” e voluntários do Assentamento) serão imiscuídas aos
debates, mostrando situações práticas de (des)valorização à diversidade e suas consequências.
Assim, após as palestras, serão realizadas apresentações (teatrais, musicais,
cinematográficas) que buscarão retratar as explanações dos convidados, acerca de diferenças
humanas, estimulando a potencialidade artística dos participantes, que se verão incentivados
ao teatro, ou à pintura, ou à fotografia, ou à música, como forma de externar o aprendizado.
Recursos materiais
Para os convidados: as passagens e acomodações dos palestrantes serão custeadas por
recursos da cooperativa do assentamento.
Para as palestras: aparelho de som e microfone.
Para as oficinas: argila, sementes nativas, folhas e galhos secos de árvores, tintas em
geral (industrializadas e produzidas de forma artesanal), papéis de diferentes gramaturas e
tamanhos, retalhos de tecido, revistas e jornais que possam ser recortados, tesouras de uso
escolar, cola atóxica, lápis de cor, máquinas fotográficas (convencionais, digitais e
artesanais), computadores, impressoras, mesas e cadeiras.
Cronograma
Apresenta-se o seguinte cronograma:
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Quadro 4 - Cronograma do Projeto “Festival do Diferente”
Atividades / Período
agosto setembro
1ª
S
2ª
S
3ª
S
4ª
S
1ª
S
2ª
S
3ª
S
4ª
S
Elaboração do projeto X
Explicação da proposta e convite aos palestrantes X
Entrega do projeto à liderança do assentamento (para
viabilização de recursos) X
Escolha das atividades artísticas a serem apresentadas e das
respectivas oficinas X
Encaminhamento de convites a autoridades e pessoas
envolvidas em Movimentos Sociais X
Propaganda e preparo do espaço físico do Núcleo
(elaboração de cartazes e divulgação diversa) X X X
Efetivação da proposta X
Avaliação dos resultados X
Fonte: Elaborado pela MMF, 2010
Orçamento
Os recursos envolvidos no transporte e acomodação dos convidados serão viabilizados
pela cooperativa do assentamento e os demais materiais (a serem utilizados nas oficinas
artísticas) já são disponíveis a práticas pedagógicas no Núcleo Escolar. Quaisquer outras
necessidades pecuniárias poderão ser supridas por doações dos assentados.
Critérios de avaliação
A proposta será avaliada de acordo com a participação dos estudantes e da
comunidade assentada em geral, através das interações durante as palestras e apresentações
artísticas. Além disso, será observada a influência da temática na produção das oficinas e, em
longo prazo, deverão ser analisadas as (con)vivências da comunidade em geral.
Isso poderá mostrar, através da diminuição ou (oxalá) extinção de práticas aviltantes,
discriminatórias e preconceituosas, a interferência dessa atividade pedagógica na
transformação ou aprimoramento idiossincrático de toda a comunidade assentada, fomentando
a “cultura de paz” e valor à natureza desejada pela existência do campo.
3.1.2 Dimensão de olhares
Introdução
77
O pensador Goethe afirmou que “só a arte permite a realização de tudo o que na
realidade a vida recusa ao homem”. Pode-se entender, corroborando com esse entendimento
do filósofo alemão, que mesmo as maiores atrocidades e as mais belas utopias podem ser
vivenciadas sob o docel artístico, sem a possibilidade de quaisquer prejuízos. Assim, tem a
Educação, nesse universo linguístico simbólico e plurívoco, um dos mais importantes aliados
aos seus escopos de construção de uma sociedade mais abalizada ao futuro de respeito e
tolerância que se deseja desde a gênese humana.
Interessada no fomento da autonomia e da solidariedade, a Educampo pode se utilizar
das múltiplas possibilidades culturais para incentivar a valorização de seu público e
desencadear a tão necessária conscientização social sobre os aspectos que abarca. Isso pode
influenciar denúncias de práticas aviltantes aos interesses dos indivíduos do campo e,
precipuamente, difundir o sucesso de técnicas e experiências preocupadas com o futuro do
planeta e suas condições de sustentabilidade ambiental.
Entretanto, faz-se imperativa a própria consciência de valorização das pessoas
campeiras, ainda bastantes desestimuladas pelo subjugo capitalista, que insiste no predomínio
das preferências urbanas às rurais, perpetuando o ciclo de desigualdade que reveste toda a
História do Homem. Interferir e finalizar esse ciclo deve ser, também, a função das atividades
pedagógicas das instituições do campo, apontando o entendimento humanista de deferência à
“simples” e fundamental condição de ser pessoa.
Nesse contexto, a arte pode (como tem feito desde os primórdios) servir à publicidade
das preocupações humanas, pois, ao “velar” o “indizível”, provoca a reflexão sem o “choque”
da realidade. Assim como fez Gil Vicente no século XVI, as mazelas sociais hodiernas podem
ser escancaradas pela atividade artística, influenciando a construção de novos entendimentos
pelo profícuo caráter pedagógico do exercício cultural, que a modernidade ainda mais
potencializou através de seus veículos midiáticos de disseminação.
Por que não, então, antecipar a utopia do mundo humanista que se deseja ao “Futuro
Próspero” e estimular jovens e crianças, através da arte, ao exercício da percepção de que A
DIMENSÃO DE TUDO DEPENDE DO OLHAR DE QUEM VÊ? Perceber isso talvez seja o
gérmen da consciência de proteção à natureza e valorização das pessoas, como pretende os
ideais da Educampo. Nessa dimensão, parece óbvio que a vida somente recusa ao homem
aquilo que o próprio Homem recusa à vida e a si mesmo.
Atividade
Título: Percepções da (des)igualdade: a dimensão de tudo depende do olhar de quem vê
78
Tipos de Linguagens:
a. Discursos poético, fabular e argumentativo
b. Fotografia
Temática: Valorização das singularidades das coisas e do Homem (Educação em Direitos
Humanos)
Objetivos:
A atividade almeja, ao exercício da percepção da alteridade e das questões relativas à
desigualdade e igualdade histórica e culturalmente (des)construídas:
a. Apresentar diferentes discursos artísticos em exercício intertextual;
b. Propor reflexões acerca do evento linguístico, apontando semelhanças e diferenças
discursivas;
c. Estimular a percepção da importância de respeito às particularidades de coisas e
pessoas;
d. Desenvolver a potencialidade de análise de perspectivas de múltiplos enfoques
sobre mesmos temas;
e. Evidenciar, como estratégia de valorização pessoal e interpessoal, a percepção do
caráter plurívoco de situações e vivências.
Local / Instituição: Núcleo Escolar “Dulce Esperança Vital”, do Assentamento “Futuro
Próspero”
Artistas: Professores da instituição escolar e estudantes do Ensino Médio
Roteiro:
A atividade será iniciada com a leitura individual dos textos de Manoel de Barros,
Monteiro Lobato e Rui Barbosa (Anexo C). Posteriormente à decodificação dos discursos,
debates devem ser organizados, buscando, precipuamente, evidenciar o entendimento acerca
dos “valores” que cada escritor oferece a situações, coisas e pessoas, apresentando o contexto
histórico e artístico da produção de cada discurso.
Após a construção verbal (que pode ser escrita ou oral) das percepções sobre a
temática “igualdade e desigualdade”, serão apresentadas imagens “ambíguas” (Anexo C), em
estímulo à constituição de “perspectivas de olhares”, buscando a “desconstrução” de textos
verbais e não-verbais. Com a percepção da influência que tem, sobre cada pessoa, o
entendimento (mormente sofismático) de outrem, será estimulada a necessidade individual de
reflexão.
Assim, imbuídos do pensamento de “olhar” o mundo sob novas perspectivas, a poética
de valorização barroseana ao individual, ou o rebuscamento “macro sistêmico” da visão
79
coletiva barboseana, ou a percepção dual lobateana serão concretizados pela captura de
imagens fotográficas que devem, assim como os escritores, retratar o particular e o grupal,
estimulando a imperatividade de valorização pessoal e interpessoal.
Após as atividades, as imagens capturadas devem compor uma apresentação em
recurso de mídia, que será divulgada à comunidade em geral, no Festival do Diferente,
abordado na atividade 5 deste módulo. Essa apresentação pode ser emoldurada com as
reflexões verbais desenvolvidas durante as discussões dos textos, que servirão à concretude de
estímulo ao autorrespeito e à consideração da existência e das opiniões alheias.
Havendo interesse do grupo, pode acontecer, também, a leitura dos textos de Manoel
de Barros e de Rui Barbosa (musicados, por exemplo), além da representação cênica das
versões fabulares, fomentando ainda mais a necessidade de respeito e tolerância. Sugestões
podem e devem ser incentivadas, de forma a despertar, em cada artista participante da
atividade, novas possibilidades de disseminação da temática.
3.1.3 Caminhos a percorrer
O que tem de ser tem muita força.
(Guimarães Rosa)
Introdução
Normalmente se aconselha, aos escritores iniciantes, a completude do texto e, somente
ao final, a postura do título. Normalmente. Essa produção começou diferente, com a escolha
do título decidida pelas personagens, seres reais que, parados na Estação Rodoviária da cidade
de Aquidauana, se prontificaram a conversar com uma desconhecida, a respeito de suas vidas
e dos caminhos que percorreram até serem o que são hoje.
A história foi assim: completamente desesperada pela obrigatoriedade de cumprir a
tarefa de entrevistar famílias que tem filhos em Escolas do Campo e praticamente sem
possibilidade de contato com pessoas nessa situação, a “entrevistadora” (uma urbana-caipira)
procurou uma parada de ônibus de sua cidade, sabida como ponto de partida a distritos e
propriedades rurais.
Interessada em boa prosa, sentou-se em uma mureta e ficou observando andares, como
quem escolhe destinos. Pobre dela, pois não sabia é que o destino a escolhia enquanto dirigia
pessoas a sentar-se ao lado. Primeiro um. Depois outro. E mais outro. E a real tarde de
80
sábado, mormente destinada à ingratidão de seu trabalho, se metamorfoseou em realidades,
até chegar à dimensão plena daquelas vidas (com)parti(lha)das.
O primeiro homem que veio trouxe com ele toda a família, que era carregada “às
compras” na cidade com a galhardia de quem se sente útil por ter conseguido juntar sua raiz,
galhos e sementes: pai, esposa e filhos. Seu Mizin... Dono de uma vivacidade ímpar, apesar da
impressionante velhice da cútis, conseguida, seguramente, pela exposição prolongada ao sol.
Também... Difícil frutificar sem luz.
A segunda personagem principal relatada chegou na companhia do parceiro de vida:
um “laço” que aprisionou a mulher indomável, conforme palavras dela mesma. Dona
Eulália... Guerreira de fibra, de voz mansa e sorriso longo que faz recordar tardes de
primavera entre laranjais, apesar da calosidade das mãos, atrevidas e cansadas pelos labores
da (quase!) insuportável condição de ser fêmea. Também... Difícil vencer sem dor.
O terceiro que aceitou a conversa veio só, pois não partia, mas aguardava a ledice:
esperava o transporte que conduzia aqueles que iriam acabar com a separação da distância, a
quem a esperança deu o nome de saudade. Seu Benedito... Homem simples no vestir, porém
de uma propriedade linguística impressionante, daquelas que a palavra certa surge no
momento exato, para punir ou acalentar. Também... Difícil viver sem sonhar.
Não se sabe para onde foram todos os que naquela mureta pararam para descansar,
conversar, partilhar e seguir... Porém se sabe que estiveram... E são... E deverão continuar
sendo, porque todas as criaturas da natureza têm uma conveniência ao universo, por mais
estranhas, efêmeras, cruéis ou dessemelhantes que pareçam. Basta a humildade refletida no
olhar de quem vê.
E assim, entre histórias, novos “caminhos a percorrer” foram criados: “Apareça na
fazenda para comer um pão caseiro”, “Vá ao sítio andar a cavalo”, “Leva a família lá em casa
para pescar no rio”. Nesse intrincado jogo da vida, outros rumos os preconceitos tomaram,
mais uma vez, alardeando a potencial condição humana de ser diferente mesmo sendo igual...
E de ser igual por ser diferente, enquanto veredas se cruzam.
Relato 1
Dados de identificação da família
A Família Soares é “do mundo”30
, conforme diz Seu Altamir, um homem de 29 anos
(com aparência de sofridas 50 primaveras). Depois de ter se casado com Josefa (gaúcha de 28
30
As expressões entre aspas trazidas nos relatos buscaram retratar o melhor possível as lembranças da
“entrevistadora” quanto ao discurso original das personagens.
81
anos) e ter tido seu casal de filhos (Maria Antônia, de 10 anos, e Davi, de 09 anos), o
pernambucano Mizin (como é conhecido) resolveu que precisava “ganhar a vida” e, como
nada “dá mais dinheiro que a terra”, foi morar “no mato”, com seu pai, o João-Pé-No-Chão,
um homem de 87 anos que, depois de ficar viúvo do primeiro casamento, se “enrabichou”
com a mãe de Mizin, que faleceu no parto.
Toda a família vive bem de saúde, apesar do menino Davi, vez ou outra, ter crise de
diarreia, pela mania que tem de “andar descalço”. Os 87 anos de Seu João quase espelham a
pele branca e queimada de Mizin, que Josefa, vez ou outra, refresca com folha de babosa que
“é peste” no quintal. Dinheiro quase não aparece na casinha modesta de madeira, que colore
de azul o verde do fundo da fazenda do Seu Nino, padrinho de Maria Antônia, dona de
inebriantes olhos azuis; porém nada falta à vida plena e feliz de quem parece sentir satisfação
em viver “o simples”.
História, valores familiares e culturais
Depois do nascimento dos filhos, em solo sulista, Mizin resolveu “achar” o pai, que
sabia estar em terras pantaneiras. Deixou o emprego em uma fábrica de roupas e veio com a
família para o Mato Grosso do Sul, onde achou Pé-No-Chão, depois de colocar um anúncio
em uma rádio local. Seu João morava na propriedade de Seu Nino e para lá levou a “nova”
família, que foi muito bem recebida pelo fazendeiro.
Muito espiritualizados, todos frequentam a igrejinha do distrito, menos Seu João, que
deixou de ir “ver o padre” depois de uma discussão com o vigário sobre a existência do Saci.
Nas quermesses da paróquia, Josefa sempre expõe suas cestas de bambu, enquanto as
crianças, estimuladas pela professora, solfejam cantos religiosos e recitam poemas “rústicos”,
aprendidos com o Pé-No-Chão.
O que a família espera do processo de escolarização de seus/suas filhos/filhas e como
avalia as práticas pedagógicas das Escolas do Campo
Dona Josefa parece ser a mais preocupada com a educação formal das crianças,
apresentando um pensamento diferenciado de Mizin: enquanto o homem deseja que os filhos
aprendam as “lidas do campo” na escola, a mãe das crianças está mais interessada em uma
educação que possibilite aos pequenos a “saída da roça”, para a conquista de um “mundo
melhor”. No duelo dos pais, a sabedoria do ancião da família alardeia: “Parem de discutir,
vocês dois. As crianças serão o que quiserem ser, se tiverem a tranquilidade para a escolha”.
Sábio esse Seu João, o Pé-No-Chão!
82
Outras considerações significativas
As crianças, somente quando inquiridas diretamente, verbalizavam informações,
porém sempre que os mais velhos falavam, balançavam as cabeças, concordando ou
discordando dos outros, em uma fantástica demonstração de respeito: dos pequenos para com
os grandes (pois não ousaram extravasar seus pensamentos) e dos grandes para com os
menores (que viam as concordâncias e discordâncias, porém não recriminavam os
comportamentos, como se estivessem “ensaiando” pessoas respeitosas e questionadoras).
Relato 2
Dados de identificação da família
A família da Dona Eulália da Silva parece se sustentar na força dessa mulher que, com
58 anos, 3 filhos e 7 netos, voltou a estudar o “primário” e já lê tudo o que lhe vem aos olhos.
Casada com Seu Cardoso, de quem “herdou” mais dois netos, a aquidauanense de nascimento
viveu sempre no campo, onde cuidou sozinha da prole, depois que o pai de seus filhos “se
perdeu” na cidade. Eugenésio, Eugeni e Eugênio, os filhos de Eulália, foram tentar a vida na
capital do Estado e aparecem de vez em quando, para visitar a mãe.
Eugeni teve quatro filhos (Marco Antônio, Maria Eduarda, Lucas e Paulo) e todos eles
moram com a avó, no sítio do Seu Cardoso. A idade das crianças varia de 11 a 5 anos e todos
eles já frequentam a escola, que fica “longe-perto” da propriedade. Apesar de não haver
problemas de relacionamento, a família de Seu Cardoso aparece pouco no sítio, porque não
tem paciência com a “demora do tempo que há no meio do mato”. Além do casal e das quatro
crianças, vivem sob o cuidado de Dona Eulália os pais de Seu Cardoso, que “apesar de velhos
ainda vivem que nem moleques”.
História, valores familiares e culturais
Dona Eulália nasceu e cresceu em um pedaço de terra próximo do sítio de Seu
Cardoso, mas foi somente depois que se separou dos pais de seus filhos que “se encantou”
pelo sitiante que, também recém-separado, “lançou” olhos sobre ela. Caçula de uma família
bastante conservadora, não aceitou o “destino das mulheres descasadas de sua época” e
decidiu que não ficaria sozinha, somente porque a “tradição” mandava.
Depois que a única “filha-mulher”, Eugeni, se separou também, Dona Eulália assumiu
a responsabilidade de cuidar dos netos, para que a “Geni” pudesse trabalhar. Como nunca
83
havia frequentado a escola, com o incentivo do Seu Cardoso, começou a participar das aulas,
junto com as crianças, para que pudesse “aprender a ler a Bíblia, domingo, na igreja”.
Evangélica “de carteirinha”, sempre escuta Seu Cardoso dizer que não dá certo ser
“protestante e simpatizante do PT”, fato que faz com que Dona Eulália solte boas gargalhadas
e esclareça que “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”. Apesar da afirmação
constante de que “gosta dos netos de forma igual”, é visível a doçura maior com a qual fala de
Maria Eduarda, a Duda, sua “companheira de culto e de vida”.
O que a família espera do processo de escolarização de seus/suas filhos/filhas e como
avalia as práticas pedagógicas das Escolas do Campo
Para Seu Cardoso, a vida no campo não exige “conhecimento de escola”, embora
admita que as escolhas profissionais dos filhos foi diretamente influenciada pelo meio rural:
um deles é agrônomo e o outro, veterinário. Dona Eulália, entretanto, apesar de não ter tido
uma educação formal, acredita que a frequência escolar e o aprendizado são fundamentais a
todo ser humano.
Confessando não ter gostado dos boatos que rondaram o distrito onde fica o sítio de
que uma das professoras foi encontrada junto com um aluno, no pátio da escola, em atos
“pouco faláveis”, Dona Eulália esclarece que espera que todo professor eduque, mesmo “nos
modos”, não obstante servindo o “colégio como uma extensão do universo familiar”.
Assim, a mulher ouvida não compreende bem o que buscam algumas atividades dos
netos, como, por exemplo, a “decoração” de “pôr acentos”, que, para ela, não parece ser
importante, assim como a obrigação de preparar os meninos para desfiles cívicos que, no
entendimento de Dona Eulália, representam a lembrança de um “passado duro do país que já
não mais deveria ser mostrado”.
Outras considerações significativas
Durante a conversa, Dona Eulália informou que seu pai desapareceu na época da
Ditadura, explicando sua angústia quanto às heranças do regime político não-democrático.
Relato 3
Dados de identificação da família
Seu Benedito Cruz, 35 anos, trabalha na cidade, em um frigorífico, embora seja “do
mato”. Sem condições de sustentar a família, decidiu deixar a mulher e os três filhos no
assentamento até que “a situação melhorasse”. A esposa, Maria, dez anos mais nova que ele,
84
grávida de 7 meses, é costureira de “mão cheia”, faz um arroz com feijão “dos deuses” e só
tem um defeito: ser filha da Dona Aurora, a “pior sogra do mundo”, que foi morar no
assentamento para “ajudar com as crianças”.
Os filhos do casal têm 8 anos (os gêmeos Andressa e Neto) e 3 anos (a pequena
Jéssica) e são o resultado da miscigenação do povo tupiniquim: herdeiros do nariz e dos lábios
grossos do pai negro e dos cabelos lisos da mãe de ascendência indígena. Sobre as aspirações
quanto ao sexo do próximo bebê, diz Seu Benedito que isso não tem importância porque só
conhece pensar, na verdade, na possibilidade de ser mais de um, pois nunca viu uma “barriga
tão espichada”.
História, valores familiares e culturais
Participante de um movimento social defensor do direito à moradia, Seu Benedito
conheceu a “luta do povo da beira da estrada” e se interessou pela causa. Depois de algum
tempo, em uma viagem para protesto organizada pelos ativistas, conheceu a Maria, com quem
passou a dividir a vida. Logo vieram os gêmeos e, com eles, a conquista pelo pedaço de terra
e o sonho do futuro melhor.
Infelizmente, somente o que produz no assentamento não é suficiente para manter a
família, fato que fez com que Seu Benedito arriscasse um “tempo na cidade”, até realizar o
sonho de todos: comprar um automóvel, que deverá servir para “vendas”. Segundo o homem,
falta pouco para essa conquista e é por isso que ele prefere que a família venha até ele: tem
receio de visitar sua casa e não querer mais sair de lá.
Apesar de respeitar “as rezas” de Dona Aurora, Seu Benedito diz não acreditar em
Deus, mas o conteúdo de seu discurso é sempre permeado por expressões que remetem o
interlocutor à espiritualidade. Ao partir com a família, depois de receber as crianças com uma
benção, um beijo na mulher e na sua imensa barriga e dar um tapinha nas costas da sogra
(porque ela também veio), disse: “Deus te guie, amiga”. Amém.
O que a família espera do processo de escolarização de seus/suas filhos/filhas e como
avalia as práticas pedagógicas das Escolas do Campo
Seu Benedito não gosta da escola do assentamento, pois diz que, por motivos políticos,
quem ensina lá são pessoas da urbe que não conhecem aquela realidade. Ele acredita que,
nessas condições, seria melhor que as crianças estudassem na cidade, pois assim elas ainda se
sentiriam excluídas, mas dentro de um sistema externo. Para o assentado, a pior forma de
85
exclusão é aquela que ocorre no próprio ambiente do excluído e utiliza “suas próprias
ferramentas para acorrentar e subjugar”.
Outras considerações significativas
Quando perguntado sobre o que espera para o futuro dos filhos, quanto à Educação,
Seu Benedito foi objetivo ao afirmar que aprendeu, nas lutas do movimento, a acreditar na
possibilidade de um amanhã melhor, mas que leu, em algum lugar, que “saber ler e escrever
só serve se isso tornar a pessoa um ser humano melhor”.
A “pior sogra do mundo” não pareceu assim tão má: carregando crianças, malas e a
filha que gerava (pelo menos) mais um neto, sorriu ao ver o trabalhador. Depois da alegria do
encontro, reclamou do calor, arrumou o vestido florido e seguiu atrás de todos, protegendo,
como somente quem se importa é capaz de fazer.
Conclusões
Percebeu-se, com os relatos, que, apesar da importância legada à formalidade
educacional, as pessoas ouvidas ainda não conseguem identificar o escopo da Educampo.
Destarte, ou acreditam que a escola deve proporcionar somente condições para uma suposta
ascensão do aluno, do universo rural à cidade, ou supõem que problemas pontuais somente
ocorrem por essas instituições escolares serem localizadas em ambiente campeiro.
Muito se ouviu, também, acerca da incumbência da escola quanto à educação
direcionada às questões relativas à ética, a conveniências sociais e a outros aspectos
transdisciplinares. Infere-se, assim, a imperatividade de disseminação dos interesses da
Educampo e sua busca pela efetiva valorização das pessoas e dos saberes daqueles que, por
estarem próximos da natureza, têm muito mais a compartilhar do que imaginam, pois
conhecem melhor os caminhos a serem percorridos.
3.1.4 Reflexos de (des)organização social
Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas
ninguém chama violentas as margens que o
comprimem.
(Bertold Brecht)
86
Assim como em todas as esferas pedagógicas, a imperatividade de planejamento de
ações educativas, para o rompimento definitivo com o subjugo de uns sobre outros, faz-se
mister também na Educampo que, conforme assevera Franco (2010, p. 01), pode ser
compreendida como:
o resultado de aspirações dos movimentos sociais interessados na
publicidade da importância dos indivíduos e do labor rural à preservação da
própria existência humana. No Brasil, a Educação do Campo se amalgama
aos interesses da Reforma Agrária e da implantação da Política Rural
consagradas pela Carta Magna de 1988, que visaram a responder séculos de
discrepâncias sociais. Assim, essa particular vertente educacional pretende a
consolidação de alguns direitos que vem sendo conquistados ao longo de
praticamente toda a História humana, mas que ainda não tutelam a
complexidade dos indivíduos. Como a distribuição equânime de terras e a
consequente valorização das pessoas que vivem no campo exigem um
arcabouço de sustentação, a simples divisão territorial nunca foi vista como
suficiente à garantia da efetividade de defesa da dignidade humana. Nesse
contexto, assim como os subsídios ao cultivo e manejo do solo, a educação
das pessoas do campo também passou a ser exigida pelos movimentos
sociais interessados na valorização do meio rural.
Nesse prisma de conquistas do ambiente rural, vários organismos se consolidam,
buscando, precipuamente, a defesa de direitos já adquiridos e o entrave social constante à
permanente amostragem de problemas e outras necessárias vindicações. Na intenção disso é
que figuram, no Brasil, sindicatos, movimentos populares, organizações não-governamentais,
cooperativas e outras instituições que, ao se afirmarem como defensores dos interesses
campesinos, afiançam a relevância das propostas e dos interesses do campo.
A cidade de Aquidauana, localizada a 139 quilômetros da Capital sul-mato-grossense,
pela fertilidade de seu solo, pela fecundidade do rio homônimo que batiza o município de sua
margem direita e pelo espírito de justiça social de seu povo, tem sido preferida à intenção do
fomento de ações relativas à problemática da terra. Na Princesa do Sul, portal do Pantanal,
algumas ações têm sido implantadas, visando ao atendimento de populações campeiras,
indígenas e quilombolas.
Atendendo a apelos da luta rural, o próprio ordenamento público municipal
aquidauanense prevê, em seu organograma, núcleos de meio ambiente e produção rural. Sob
responsabilidade da Gerência de Produção e Meio Ambiente (2010, s/p.), esses núcleos
buscam “desenvolver programas voltados para a fixação do homem no campo; (...) participar
da construção da política ambiental do Município e assessorar todos os setores do governo nas
questões relativas à preservação, conservação e recuperação do meio ambiente”.
87
Figura, ainda entre os interesses do executivo, a chamada Coordenadoria Especial de
Assuntos Indígenas (2010, s/p.) que, subordinada diretamente ao Gerente de Governo
Municipal:
tem como finalidade principal articular e aprimorar a implantação das
políticas voltadas para a população indígena do município de Aquidauana,
estimulando a participação de seus representantes, a integração entre as
instâncias municipal, estadual e federal, estabelecimentos de ensino e
organizações não governamentais.
Tais especializações administrativas não podem ser percebidas como mero expediente
funcional, pois personificam juridicamente o reflexo de pugnas e exteriorizações de
problemas que acometem a toda a sociedade. Elas evidenciam o interesse do povo
aquidauanense nos assuntos relativos ao ambiente campesino e refletem reivindicações
históricas, mormente conquistadas pelo ativismo de representantes da luta pelo acesso a terra,
legalmente garantida em texto constitucional.
Nesse ativismo em solo pantaneiro, determinante aos avanços da tutela do campo,
influenciam sobremaneira a representatividade e as consequências impostas pelo conceito de
“organização social”. Para Di Prieto (2010, p. 496), esse sintagma representa, “a qualificação
jurídica dada à pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, instituída por iniciativa
de particulares, e que recebe delegação do Poder Público, mediante contrato de gestão, para
desempenhar serviço público de natureza social”.
A fim de se verificarem os trabalhos e experiências de tais organizações, em
Aquidauana, foram realizadas sucintas entrevistas com membros de organizações sociais
(associação, sindicato e movimento popular) envolvidos em temas agrários. Tal proposta
objetivou a percepção das características, objetivos, condições e potencialidades das pessoas
jurídicas pesquisadas de colaborarem de forma ativa à prática pedagógica, estimulando ações
de influência eufórica à Educação.
Uma Associação
A primeira organização verificada foi a Associação dos Pequenos Produtores de Leite
de Aquidauana, distante cerca de 70 quilômetros da sede da cidade, que é beneficiada por
acomodar um renomado laticínio do Estado. Conforme ensina o art. 53 da Lei nº 10.406, de
10 de janeiro de 2002, “constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem
para fins não econômicos”. Ainda em fase de desenvolvimento, já integram o quadro de
associados dessa organização cerca de 50 produtores.
88
Embora organizados sem fim econômicos diretos, a Associação dos Pequenos
Produtores de Leite foi estimulada pela necessidade de modernização de técnicas, serviços e
maquinários, além da ingerência do negócio ao aprimoramento genético do plantel bovino. Os
associados colaboram pecuniariamente com periodicidade mensal e, através de financiamento
bancário já foi possível a aquisição de um aparelho refrigerador, que evita desperdícios,
potencializando os lucros.
A Associação mantém convênio com a Gerência Municipal, que recebe a produção
leiteira para consumo em creches e escolas e, em contrapartida ao preço mais acessível que o
de mercado, presta auxílio aos associados, fornecendo, principalmente, cursos e palestras
sobre manuseio com a pastagem, com o gado e com a produção. Por possuir estrutura física
própria, novas parcerias têm sido firmadas em busca de aplicações do leite em seus
subprodutos, já bastante apreciados.
Um Sindicato
Outra organização social envolvida em assuntos da terra, no Portal do Pantanal, é o
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Aquidauana que, atuante, já representa mais de 500
pessoas que vivem e sobrevivem dos labores do campo. Para Moreira (2002, s/p.), “a
definição de sindicato varia, de acordo com o tempo e as condições políticas, razão pela qual,
para alguns estudiosos, o sindicato é a coalizão permanente para a luta de classe e, para
outros, é o órgão destinado a solucionar o problema social”.
Seja como representante classista, seja como solucionador de mazelas sociais, esse
Sindicato busca, preponderantemente, defender seus membros em litígios jurídicos
trabalhistas e, apesar de também desempenhar suas funções há pouco tempo, já foi
responsável por grandes conquistas. Sua manutenção é garantida de forma sindical
convencionada em Lei e sua acomodação física, atualmente, se dá em prédio alugado, nas
proximidades da Prefeitura Municipal.
O Sindicato também tem buscado parcerias para estimular o desenvolvimento do
trabalho no campo e a valorização das peculiaridades da população rural, fomentando o
debate à importância da efetivação da Reforma Agrária, no Brasil. Essas parcerias visam,
precipuamente, à oferta de informações sobre direitos, cooperativas, novas técnicas de manejo
de matérias-primas e potencialidades à comercialização de produtos, no mercado urbano.
Um movimento social
89
Finalmente, buscou-se o ativismo de representação popular para exemplificar a
importância das organizações em abordagens campesinas. Corroborando o entendimento de
Epstein (1995, apud DIAS, 2001, p. 02) de que Movimentos Sociais “são esforços coletivos
de pessoas social e politicamente subordinadas para mudar suas condições de vida”, entende-
se que a maior representatividade campesina, no Brasil, está personificada no Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra.
Em Aquidauana, esse Movimento se verifica nos próprios assentamentos, pela
democrática participação de seus membros, que se reúnem mesmo sem estruturas prediais
específicas. Com flâmulas fincadas nos Assentamentos Indaiás, os ativistas do MST
desenvolvem discussões e fomentam reivindicações, que buscam, principalmente, a
conscientização social e a cobrança dos serviços e incentivos públicos, para a viabilidade das
políticas agrárias.
Divididas nos quadrantes Indaiá I, II, III e IV, mais de 250 famílias se beneficiam das
informações e progressos estimulados pelo Movimento, que recebe incentivos pela relevância
de sua existência e de suas conquistas. A maioria das ações de estímulo à produção e à
participação popular, nos assentamentos, passa pelo crivo da liderança, que viabiliza recursos
e apoio às práticas que se vinculam à situação rural e aos interesses por ela defendidos.
Considerações
Pelo exposto, aparece óbvia a importância das organizações sociais ao pleito do
indivíduo do campo, de seus valores e de seu trabalho. Ao reforçar as reivindicações dos
trabalhadores rurais e defenderem seus direitos, esses aparelhamentos sociais “engessam” a
potencial arbitrariedade do Estado e sua indisposição ao cumprimento efetivo das Leis,
especialmente daquelas que mostram às pessoas o poder da coletividade sobre o Capital e a
prevalência da dignidade humana sobre quaisquer interesses.
Infelizmente, as articulações entre os diversos organismos sociais são praticamente
inexistentes e quase nenhuma preocupação se percebe na elaboração de “redes” de proteção
aos interesses campesinos futuros, especialmente quanto aos assuntos relativos ao
desenvolvimento de práticas educacionais amalgamadas à valorização do ambiente rural.
Percebe-se apenas o interesse imediatista e individual das organizações e, mesmo quando
buscam parcerias com instituições de ensino, visam a satisfações pontuais de informação.
A vivência humana parece ainda não ter compreendido como a Educação e o
entrosamento de experiências são primordiais ao fortalecimento das conquistas históricas,
impingidas, na maioria das vezes, pelo sangue de mártires. Soa a falta de confabulação de que
90
fala Freire (1979, p.42), para quem o diálogo “é o encontro no qual a reflexão e a ação,
inseparáveis daqueles que dialogam, orientam-se para o mundo que é preciso transformar e
humanizar”. Assim, sem articulação, nada se irá mudar.
Alardeiam-se, em cada organização, a falta de interesse público e a dimensão das
dificuldades de alianças. Busca-se, por enquanto, somente o deslumbre pelo que é “do outro”,
o fascínio pelo urbano, a previsão tenebrosa da insustentabilidade do agronegócio, a
individualidade institucional. Faltam, aos combatentes ativistas da terra, o pé fincado no chão,
o adubo da reciprocidade ambiental, o acolhimento da natureza... Mesmo aos de boa-fé, ainda
muito falta...
3.1.5 Brotos, flores e frutos
Os princípios são os princípios, nem que o sangue
tenha de correr pelas ruas.
(Rudyard Kipling)
As especificidades do meio rural mostram, inquestionavelmente, que a práxis
pedagógica comprometida com o desenvolvimento da Educampo deve ser diferenciada,
evidenciando a importância da valorização, principalmente, das pessoas, do ambiente natural
e de suas particularidades. Assim, a PPP das escolas do campo deve, também, repercutir esse
interesse, para que a comunidade campesina se veja refletida no empenho educativo e seja, de
fato, a maior beneficiada pelas práticas solidárias e emancipatórias, que devem ser o fulcro da
intervenção educacional.
Os princípios norteadores que fundamentam a elaboração da PPP de uma escola
urbana não podem ser os mesmos que norteiam uma escola do campo, pois as particularidades
da clientela escolar devem ser analisadas e respeitadas, em busca da maior proficiência
possível, benéfica a toda a sociedade. Nesse contexto, esclarece Reale (1980, p. 299) que
princípios são:
verdades fundantes de um sistema de conhecimento, como tais admitidas por
serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos
de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos
pelas necessidades da pesquisa e da práxis.
91
Esses princípios, se devidamente empregados como norteadores de balizamentos
pedagógicos, devem propiciar a fundamentação de um currículo especializado, condizente
com a realidade local e efetivamente interessado no desenvolvimento das condições dos
trabalhadores e moradores do campo, como já ocorrido no município paranaense de Porto
Barreto e mencionado por Pires (2010, p. 54). Assim, citam-se, a seguir, os princípios que
devem ser observados durante a elaboração de PPPs das escolas do campo:
a. Princípio da participação inconteste de toda a comunidade: refere-se à exigência de que
toda a comunidade beneficiada pela instituição escolar participe das decisões e atividades
pedagógicas, de forma a estimular a prática ativa da cidadania.
b. Princípio da valorização do campo e das pessoas que vivem na e da terra: repercute, na
prática pedagógica, a imperativa defesa da importância do campo a toda a sociedade e,
consequentemente, o valor social e humano dos habitantes do campo e de seu trabalho.
c. Princípio da disseminação dos valores e particularidades locais: diz respeito à
propagação, no ambiente educacional, dos valores humanos e culturais vivenciados
localmente, de forma à perpetuação de vivências e saberes.
d. Princípio da aplicabilidade da teoria pedagógica na práxis do trabalho rural: pretende
a oferta de uma Educação realmente comprometida com a prática da vida, que estimule a
busca pelo desenvolvimento humano e social de todos.
e. Princípio do estímulo à participação social: a práxis pedagógica deve ser interessada na
reflexão e na vivência da cidadania ativa.
f. Princípio do interesse pelo desenvolvimento sustentável: propaga, através da escola, a
preocupação individual e coletiva quanto ao desenvolvimento consciente, que não subjuga
pessoas nem o meio ambiente na busca pelo Capital.
g. Princípio da publicidade das questões agrárias: interessa-se pela disseminação da
problemática da má distribuição da terra no mundo e as consequências desse processo ao
futuro da humanidade.
h. Princípio do fomento a lides sociais de acesso a terra: busca, através da Educação,
estimular a busca pela resolução pacífica de conflitos, sempre através do respeito ao
ordenamento jurídico pátrio.
i. Princípio da denúncia contra a violência no campo: refere-se, mais uma vez, à prática
ativa da cidadania, que deve buscar a paz e o bem-estar social, desestimulando a terrível
tentativa de criminalização dos Movimentos Sociais.
92
j. Princípio do fortalecimento das articulações sociais e políticas: pretende, com gênese na
escola, incentivar as articulações humanas, evidenciando a importância das inter-relações e o
valor da coletividade na busca por conquistas.
Entendidos como as “verdades fundantes” de Reale (1980, p. 299), esses princípios
parecem ser a semente para a educação solidária e emancipatória pretendida pela Educampo.
Nesse contexto, recorda-se a lição poética de Tiso e Nascimento (2011, s/p.), que repercute o
zelo e o respeito que se deve referendar à origem de tudo, ensinando que “há de se cuidar do
broto, pra que a vida nos dê flor, flor e fruto”. Conclui-se, então, que, se a PPP das escolas do
campo observar tais princípios, abundante colheita fornecerá ao futuro de toda a sociedade.
3.4 A produção do módulo III e a transdisciplinaridade da EDDHH
O Quadro 5 mostra a percepção da MMF quanto aos temas humanistas abordados no
módulo III da Espeducampo. Sequencialmente, apresentam-se as informações do capítulo
seguinte desse trabalho, que aponta as atividades realizadas no módulo do curso assuntado na
gestão educacional no campo e sua transdisciplinaridade humanista.
Quadro 5 - A influência da transdisciplinaridade humanista nos textos elaborados no módulo III
MÓDULO III
Eixos temáticos Textos elaborados Influência da transdisciplinaridade da EDDHH
Princípios
norteadores das
práticas
pedagógicas em
educação do
campo
Conversas com quem sabe
Ao exigir entrevistas com pessoas implicadas a existências no ambiente rural, promoveu-se prática
reflexiva da importância do meio não-urbano às existências, pois, por ser o Homem um ser historicamente
vinculado ao campo, suas origens devem ser respeitadas, em exercício de tolerância e respeito.
Descobrindo histórias do
passado
A atividade pretendeu o contato com pessoas de existências mais antigas, estimulando a prática da
interação e da observação das diferenças e semelhanças existentes entre as pessoas e as situações.
A infinitude da ponta de um
lápis
Intenta mostrar como o valor das coisas não depende de tamanho nem de quanto se paga por elas,
pois, normalmente, o que importa é a “singeleza” de cada vida humana e o que se faz com isso. Promove,
de forma implícita, a denúncia contra o interesse latifundiário e capitalista, enquanto mostra a importância
da Educação à efetiva vivência da dignidade humana.
Princípios
organizadores do
trabalho
pedagógico em
escolas de
educação do
campo
Era uma vez no futuro, há
algum tempo depois de
amanhã
Aborda a idealização da Educampo, na visão da MMF, ou seja, o que se espera para o futuro dessa
vertente pedagógica. O ambiente criado traduz de maneira pontual os ideais humanistas de tolerância e
respeito, além de incentivar a participação social às exigências de responsabilidade do setor estatal.
Planejamento
pedagógico -
metodologias e
práticas em
educação do
campo
Mundo espelhado: Projeto
Festival do Diferente –
conhecer para respeitar
Incentiva a prática da valorização humana, independentemente de sua condição étnica, social,
cultural, sexual, política ou econômica.
Dimensão de olhares
Intenta a busca pelo autoconhecimento humano, de forma a mostrar como cada ação repercute de
acordo com quem a produzir e quem recebe, apontando, novamente, a reflexão sobre discursos e
comportamentos individuais na construção da coletividade.
Caminhos a percorrer
Propiciou o contato com pessoas desconhecidas, diferentes entre si por suas histórias de vida, mas
que disseminam as inquietações dos preconceitos sentidos pelos habitantes do campo, além de apontarem
lembranças das experiências históricas de violação de DDHH no passado recente da História do Brasil.
Reflexos de
(des)organização social
Mostra a fragmentação social como um dos problemas que mais comprometem a defesa dos DDHH
e o desenvolvimento como um todo, demonstrando a desarticulação das relações na comunidade.
Brotos, flores e frutos Aponta as particularidades das escolas do campo como elemento fundamental a ser protegido e
valorizado em documentos jurídicos.
Fonte: Elaborado pela MMF, 2011
93
94
4. MÓDULO IV - GESTÃO EDUCACIONAL NO CAMPO: A DEFESA
DA EDUCAMPO, DA DEMOCRACIA E DOS DDHH
O módulo IV da Espeducampo aprimorou o interesse à busca por informações sobre a
organização da Educampo na comunidade da MMF, pois a primeira atividade do eixo
temático inaugural solicitou uma pesquisa acerca da oferta local dessa vertente pedagógica. O
segundo exercício buscou despertar reflexões sobre o papel do Estado e dos Movimentos
Sociais na elaboração de Políticas Públicas de interesse da Educampo e o eixo temático
seguinte fomentou análises sobre o gerenciamento financeiro da Educação, da Educampo
como um todo e, isoladamente, a situação de uma escola escolhida para exame.
Outro trabalho solicitou a confecção de um relatório que apontasse o processo de
realização das duas primeiras atividades do inicial eixo temático desse módulo IV, de forma a
substituir produção que deveria ter sido realizada durante encontro presencial na cidade polo.
Para finalizar, foram exigidas pesquisas para verificação de dados sobre a participação das
escolas na distribuição dos recursos financeiros e, em outra atividade presencial, instaram-se
reflexões sobre a existência de efetiva gestão democrática nas escolas do campo, no
município da MMF.
Essas produções direcionaram ajuizamentos acerca da história internacional dos
DDHH, com a qual se amalgama a própria condição histórica dos Movimentos Sociais,
demonstrando a importância do ativismo ao desenvolvimento humano, à conquista de direitos
e à valorização dos indivíduos. Talvez a maior contribuição desse módulo à MMF tenha sido
a percepção de que, de fato, nem toda Educação promovida no campo representa Educampo,
pois essa, fundamentalmente, apregoa-se à condição libertária que somente uma instrução
politicamente comprometida pode concretizar.
4.1 Eixo temático: políticas de educação do campo
O primeiro eixo temático do módulo IV solicitou, inicialmente, uma pesquisa que
apurasse a situação da oferta da Educampo no município da MMF e a segunda atividade
pretendeu uma abordagem acerca da função do Estado e dos Movimentos Sociais na
efetivação de políticas públicas que devem atender às expectativas e necessidades da
95
Educampo. Assim, foram desenvolvidos os textos que intitulam as próximas subdivisões
desse memorial.
4.1.1 Quantidade? Qualidade.
A qualidade é a quantidade de amanhã.
(Henri Bergson)
Conforme ensina Lacerda (2004, p. 62) “a educação é o melhor meio para assegurar os
valores de uma sociedade”. Entende-se, porém, que, para garantir e perpetuar esses valores
sociais, faz-se mister, obviamente, o conhecimento desses mesmos valores, preferencialmente
no intento de resguardar a complexidade singular dos elementos que são mais próximos aos
seres, levando-os do particular à generalização, em um exercício de elucubração da
importância de cada pessoa na dinâmica da vida. Assim, perceber-se como parte de um todo
pode ser o gérmen da tão desejada conscientização coletiva que garantirá a perpetuação da
espécie humana sobre o planeta.
Nesse contexto, pode-se considerar que a defesa pela efetivação da Educampo,
pautada na valorização do Homem e dos saberes da terra, deve ser imperativa à sobrevivência
futura dos seres, que precisam ser chamados à reflexão das consequências da exploração
insustentável do ambiente natural e humano em que vivem. Evidencia-se, então, de forma
cada vez mais incisiva, a necessidade de propagação das ações públicas que visam a respostas
às exigências educacionais do campo, mormente provocadas pela luta dos Movimentos
Sociais, que repercutem tanto no campo quanto no âmbito urbano, demonstrando o
amalgamento das atividades sociais.
Em obediência à necessidade de conhecimento do particular, buscaram-se informações
sobre a Educampo na cidade de Aquidauana, distante cerca de 140 quilômetros da Capital do
Estado de Mato Grosso do Sul, que tem economia baseada na agropecuária. Abraçando
comunidades campeiras, ribeirinhas, indígenas e quilombolas, esse município totaliza, de
acordo com dados do ano de 2009 do IBGE (2010, s/p.), uma população de 46.515 munícipes,
em uma área territorial de 16.959 quilômetros quadrados. Berço histórico do centro-oeste
brasileiro, a Educação aquidauanense tem sido abordada pelo setor público com significativa
veemência.
96
A conhecida Princesa do Sul se identifica como uma cidade universitária, com
graduações em instituições particular, estadual e federal que despertam o interesse de
acadêmicos dos mais variados rincões, por sua localização geográfica. Atualmente, treze
escolas estaduais oferecem níveis Fundamental e Médio e Educação de Jovens e Adultos a
aproximadamente 5.700 alunos no município, em diferentes bairros, aldeias e distritos,
conforme mostra o Quadro 6, que traz dados coletados no Núcleo de Tecnologia Educacional
da Rede Estadual de Educação de Aquidauana, localizado na Rua Estevão Alves Correa
(antiga Escola Laudelino Barcelos).
Quadro 6 - Escolas Estaduais em Aquidauana, localização e oferta de ensino
ESCOLA LOCALIZAÇÃO
EN
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NS
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AD
UL
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Escola Estadual Antonio Salústio Areias Bairro Alto X
Escola Estadual Antonio Trindade Vila Bancária X
Escola Estadual Cândido Mariano Bairro Guanandy X X
Escola Estadual Coronel José Alves Ribeiro Bairro Alto X X X
Escola Estadual Dóris Mendes Trindade Vila Santa Terezinha X X X
Escola Estadual Felipe Orro Vila Santa Terezinha X X
Escola Estadual Geraldo Afonso Garcia Distritos de Camisão / Piraputanga X X
Escola Estadual Luiz Mongelli Vila Quarenta X X
Escola Estadual Marechal D. da Fonseca Vila Cidade Nova X
Escola Estadual Marly Russo Rodrigues Bairro Nova Aquidauana X X X
Escola Indígena Pascoal Leite Dias Aldeia Limão Verde X
Escola Indígena Pastor Reginaldo Miguel Aldeia Lagoinha X
Escola Indígena Prof. D. M. Miguel Veríssimo Aldeia Bananal X
Fonte: Elaborado pela MMF, 2010
As escolas estaduais aquidauanenses têm recebido investimentos constantes em suas
estruturas prediais, com reformas e construções (especialmente de seus setores esportivos e de
informática) bastante divulgadas pelo Poder Executivo. Quanto ao quadro de professores,
pode-se considerar que a oferta dos últimos concursos públicos elevou a graduação dos
docentes, tornando factual a existência de especialistas e mestres, principalmente entre os
servidores efetivos. O labor de professores não-habilitados somente é percebido nas Escolas
Indígenas e, mormente, são residentes da própria comunidade e incentivados à procura pelos
cursos de licenciatura existentes na sede do município.
De acordo com dados da Gerência Municipal de Educação de Aquidauana, 5.413
alunos foram matriculados, no ano de 2010, nas instituições municipais, que podem ser
subdivididas em urbanas, distritais, indígenas e pantaneiras, conforme mostra o Quadro 7.
97
Quadro 7 - Escolas Municipais em Aquidauana, localização e quantidade de alunos
ESCOLAS URBANAS LOCALIZAÇÃO TOTAL DE
ALUNOS
Centro de Atendimento Integral da Criança Antonio Pace Bairro da Exposição 735
Centro Municipal de Atendimento Rotary Clube Bairro Guanandy 177
Centro Municipal de Educação Infantil A. Pace de Oliveira Bairro da Exposição 950
Escola Municipal Erso Gomes Bairro da Serraria 963
Escola Municipal Marisa Nogueira Rosa Scaff Bairro da Serraria 86
ESCOLAS DISTRITAIS LOCALIZAÇÃO TOTAL DE
ALUNOS
Escola Municipal Ada Moreira de Barros Distrito de Cipolândia 326
Escola Municipal Antonio Santos Ribeiro Distrito de Piraputanga 136
Escola Municipal Franklin Cassiano Distrito de Camisão 149
Escola Municipal Visconde de Taunay Distrito de Taunay 126
ESCOLAS INDÍGENAS LOCALIZAÇÃO TOTAL DE
ALUNOS
Escola Municipal Indígena Feliciano Pio Aldeia Ipegue 284
Escola Municipal Indígena Feliciano Pio (Ext. Colônia Nova) Aldeia Colônia Nova
Escola Municipal Indígena Francisco Farias Aldeia Água Branca 176
Escola Municipal Indígena General Rondon Aldeia Bananal 326
Escola Municipal Indígena General Rondon (Ext. Imbirussu) Aldeia Imbirussu
Escola Municipal Indígena Lutuma Dias Aldeia Limão Verde 380
Escola Municipal Indígena Lutuma Dias (Ext. Córrego Seco) Aldeia Córrego Seco
Escola Municipal Indígena Marcolino Lili Aldeia Lagoinha 299
Escola Municipal Indígena Marcolino Lili (Ext. Morrinho) Aldeia Morrinho
ESCOLAS PANTANEIRAS LOCALIZAÇÃO TOTAL DE
ALUNOS
Núcleo Escolar Escolinha da Alegria Fazenda Primavera 23
Núcleo Escolar Cyriaco da Costa Rondon Fazenda Tupacyretãn 15
Núcleo Escolar Joaquim Alves Ribeiro Fazenda Taboco 115
Núcleo Escolar Querência Fazenda Querência 10
Núcleo Escolar Santana Fazenda Santana 127
Núcleo Escolar Vale do Rio Negro Fazenda Campo Novo 10
Fonte: Elaborado pela MMF, 2010
Aproximadamente 300 professores lecionam nessas escolas municipais e somente
cerca de um décimo não possui curso superior de graduação. Existem inúmeros especialistas e
mestres e, pelo menos uma professora de História de escola indígena está em fase de
conclusão de doutorado. As escolas urbanas atendem à Educação Infantil e ao Ensino
Fundamental de jovens e crianças da cidade. Já as escolas distritais (cuja particularidade
reside no deslocamento não dos alunos, mas dos professores, que saem da cidade em
transporte da Prefeitura) abarcam alguns alunos indígenas e os moradores dos distritos e das
propriedades rurais circunvizinhas.
Quanto às escolas indígenas, elas oferecem atendimento específico à comunidade
nativa, porém o corpo docente dessas instituições ainda é formado, em sua maioria, por
profissionais não-índios, mormente desvinculados da cultura e dos interesses da comunidade.
A Língua Terena, por exemplo, faz parte da grade curricular somente nos primeiros anos do
98
letramento e são poucas as iniciativas de disseminação dos valores e saberes íncolas. Apesar
de todas as dificuldades de acesso, os prédios das escolas são regularmente reformados e
ampliados, de acordo com o aumento das necessidades do grupo escolar ou outros interesses,
como no caso das salas de informática.
A dinâmica das escolas pantaneiras é bastante peculiar e funciona através da parceira
entre proprietários rurais (que cedem lugares para funcionarem como salas de aula e alguns
outros recursos) e a Prefeitura Municipal (que arca com as responsabilidades relativas a
professores e demais necessidades pedagógicas). Alguns núcleos escolares ficam em fazendas
bastante distantes da sede do município, fato que exige a permanência de professores no local
e, algumas vezes, também determina a detença dos alunos, que ficam acomodados em regime
de internato, sob supervisão e acompanhamento dos professores ou outros funcionários.
Normalmente a estrutura física das escolas pantaneiras é precária, apesar de alguns
núcleos atenderem a uma quantidade significativa de alunos em turmas multisseriadas (não
somente moradores da propriedade sede, mas também de outros estabelecimentos rurais
particulares). Essas escolas pantaneiras (assim como as distritais e as indígenas) têm recebido
atenção diferenciada em sua fundamentação pedagógica, com cursos de aperfeiçoamento de
professores que despertam a necessidade de valorização das particularidades e potencialidades
locais, em respeito à dignidade de professores, estudantes e demais atores do evento
educacional rural.
A rotatividade de professores nesses núcleos é bastante alta, devido à dificuldade de
acesso e à permanência do habitante urbano no ambiente rural, mas parcerias com projetos
públicos têm sido firmadas e, atualmente, a política da oferta de ensino da Escola Ativa tem
sido fomentada, visando a, como ensina MEC (2010, s/p.):
Apoiar os sistemas estaduais e municipais de ensino na melhoria da
educação nas escolas do campo com classes multisseriadas, fornecendo
diversos recursos pedagógicos e de gestão;
Fortalecer o desenvolvimento de propostas pedagógicas e metodologias
adequadas a classes multisseriadas;
Realizar formação continuada para os educadores envolvidos no programa
em propostas pedagógicas e princípios políticos pedagógicos voltados às
especificidades do campo;
Fornecer e publicar materiais pedagógicos que sejam apropriados para o
desenvolvimento da proposta pedagógica.
Pelo exposto, percebe-se que, quantitativamente, Aquidauana parece não demonstrar
problemas quanto à oferta educacional, pois são pouquíssimos os municípios brasileiros com
menos de cinquenta mil habitantes que apresentam 37 escolas públicas, além de três
99
educandários particulares (de ensino fundamental e médio) e cursos de graduação de
instituições privadas, estadual e federal. Quantitativamente parece razoável. A qualidade de
tais ofertas, porém, funda-se como assunto bem mais relevante e complexo e, mesmo com
iniciativas como a proposta das escolas pantaneiras, a utopia da Educação libertadora parece
ainda demasiado distante da realidade.
Tem-se, nessa dicotomia quantidade/qualidade, analogamente, a problemática
campesina e a defesa da subsistência e da sustentabilidade apregoada pelos defensores da terra
contra a dimensão irracional e destrutiva do agronegócio capitalista. A quantidade jamais
poderá ser preferida no ambiente pedagógico, como ainda é, infelizmente, no campo.
Refletindo sobre o pensamento de Lacerda, inicial desse texto, tem-se, como indiscutível, que
a Educação é mesmo o melhor expediente assecuratório de valores sociais. Entretanto, não se
pode jamais esquecer que cabe à sociedade a escolha dos valores que serão defendidos e
perpetuados. Quantidade? Com qualidade, somente.
4.1.2 Estado, políticas públicas, Movimentos Sociais e “a luta pelo direito” da
Educampo: o pensamento jurídico de Ihering e a problemática educacional
campesina
Sonha e serás livre de espírito. Luta e serás livre na
vida.
(Che Guevara)
A Educampo é o resultado de aspirações de interesses pela publicidade da importância
dos indivíduos e do labor rural à preservação da própria existência humana. Como se sabe, no
Brasil, ela se amalgama aos interesses da Reforma Agrária e da implantação da Política Rural
consagradas pela Carta de Outubro, que visaram a responder séculos de discrepâncias sociais.
Assim, essa vertente educacional busca a consolidação de direitos que vêm sendo
conquistados ao longo de praticamente toda a História humana, mas que ainda não tutelam a
complexidade dos indivíduos.
Essa análise inter/transdisciplinar de Ciência Jurídica e Educação tende a considerar
impossível a teorização de aspectos da práxis pedagógica do campo sem relacioná-la a Rudolf
Von Ihering, o jurista alemão considerado um dos marcos do Direito do século XIX. Como
proposta de exercício de inter/transdisciplinaridade, pode-se verter às conquistas da
Educampo sob o prisma do discurso de Ihering e o teor de sua obra “A luta pelo Direito”,
100
influenciadora relevante do positivismo de Hans Kelsen, que baliza, por exemplo, a
fundamental hierarquia do ordenamento jurídico pátrio.
“A luta pelo Direito” é o resultado de reflexões de uma palestra proferida por Ihering,
em 1872, na Sociedade Jurídica de Viena, e ainda retine no mundo ocidental, em virtude da
consistência de suas ponderações. Na introdução da obra, o estudioso da propriedade afirma
que “a paz é fim que o direito tem em vista, a luta é o meio de que se serve para o conseguir”
(IHERING, 2009, p. 1), alardeando ajuizamentos acerca da inquestionável perpetuação
histórica de que as conquistas humanas somente advêm de lutas, pois “a vida do direito é
uma luta: luta dos povos, do Estado, das classes, dos indivíduos” (IHERING, 2009, p. 1).
Firmado está, então, o amálgama do pensamento de Ihering com a Educampo e sua
história de vindicações e luta dos indivíduos que vivem da terra (e para a terra) em defesa da
valorização das particularidades e saberes dos habitantes rurais. Os ativistas defensores da
sustentabilidade do meio ambiente e do meio humano seguem a determinação do jurista
alemão, alardeando a importância e a imperatividade de proteção a garantias e direitos já
conquistados e o fomento a novas aquisições protetivas e abalizadoras do respeito à dignidade
das pessoas.
Nesse contexto, pode-se entender que o Estado apenas tem direcionado ações à
Educampo como respostas a embates, ou seja, a pugnas travadas em busca do direito das
comunidades campesinas de terem seus valores respeitados e garantidos. Dallari (2007, p.
119), apresentando a conceituação de Estado como uma “ordem jurídica soberana que tem por
fim o bem comum de um povo situado em determinado território”, reafirma a determinação
de prélio de Ihering na concepção do ente estatal, que, tendo como finalidade o bem comum,
induz peleja como meio para esse fim.
Portanto, o pensamento iheringuiano alardeia (IHERING, 2009, p. 4) que “a
manutenção da ordem jurídica, da parte do Estado, não é senão uma luta incessante contra a
anarquia que o ataca”, apontando a relação de bivalência de forças que se equilibram. Logo,
as reivindicações do campo (entendidas como lutas) devem se consolidar em obediência à
necessidade do Estado de guerrear contra tentativas de ações que causam instabilidade
jurídica, pois as reclamações campesinas figuram como legítimas, na defesa do cumprimento
de previsões juridicamente positivadas.
Embora o capitalismo propague discursos deturpados e discriminatórios, ao exigir a
atuação do ente estatal frente à problemática da Educampo, os campesinos apenas interferem
de forma proativa na consolidação do Estado Democrático de Direito que se defende,
impedindo a inércia da máquina pública e estimulando a segurança jurídica. Destarte, o papel
101
do Estado na consolidação do direito à Educampo nada mais é do que defender a si próprio e
executar, de fato, a democratização educacional, uma exigência constitucional amplamente
determinada em inúmeros outros documentos legais.
De forma a garantir-se a si mesmo, o Estado agiliza políticas públicas para a execução
das práticas que deverão atender a determinações legais exigidas e firmadas em decorrência
de lutas. Para Höfling (2001, p. 31), política pública é “o Estado implantando um projeto de
governo, através de programas, de ações voltadas para setores específicos da sociedade”, ou
seja, em concordância com o entendimento de Ihering, é através das políticas públicas que o
Estado confronta a potencialidade de anarquia jurídica, lutando em infinita dialética.
Afirma ainda Höfling (2001, p. 38) que “o processo de definição de políticas públicas
para uma sociedade reflete os conflitos de interesses, os arranjos feitos nas esferas de poder
que perpassam as instituições do Estado e da sociedade como um todo”, explicando,
novamente em intertextualidade com Ihering (2009, p. 6), a deturpação da propaganda
midiática de criminalização que sofre a corrente defensora dos interesses do campo, pois
com o decorrer do tempo os interesses de milhares de indivíduos e de classes
inteiras prendem-se ao direito existente, por maneira tal, que este nunca
poderá ser abolido sem os irritar fortemente. Discutir a disposição ou a
instituição do direito é declarar guerra a todos esses interesses, é arrancar um
pólipo que está preso por mil braços. Pela ação natural do instinto de
conservação toda a tentativa desse gênero provoca a mais viva resistência
dos interesses ameaçados. Daí uma luta na qual, como em todas as lutas, não
é o peso das razões, mas o poder relativo das forças postas em presença que
faz pender a balança.
Logo, pode-se afirmar que a função das políticas públicas na defesa da Educampo é a
tentativa de equilibrar a balança da desigualdade de oportunidades que beneficia não a
milhões, mas a apenas algumas classes. Tem-se, novamente, confronto, pois, enquanto a
população do campo luta por direitos, o Estado luta para tentar garantir esses direitos às
comunidades rurais por meio das políticas públicas, entretanto, duela com setores não-
interessados na sustentabilidade e na valorização da vida rural. Esses setores, por sua vez,
divergem de todos os elementos envolvidos no ciclo, pois visam somente à defesa do capital.
Esquematizando, pode-se chegar à percepção visual mostrada no Quadro 8.
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Quadro 8 - Dinâmica das relações que envolvem a Educampo
Fonte: Elaborado pela MMF, 2010
À sociedade brasileira, infelizmente, ainda não foi possível a percepção da
importância das conquistas do campo, porém se sabe que todo processo de benesse humana é
demasiado demorado, em virtude da complexidade de sua natureza. Desse modo, pululam
discursos divergentes ao intento das políticas públicas que visam à melhoria das condições de
vida do ambiente rural, em desconhecimento das aclamações campesinas, que somente
propendem à preservação da própria existência humana e ao desenvolvimento sustentável.
Sobre isso também alertou Ihering (2009, pp. 7-8) ao explicar que:
em todos os casos em que o direito existente encontra este sustentáculo no
interesse, o direito novo não pode chegar a introduzir-se, senão à custa de
uma luta que por vezes se prolonga durante mais de um século e que atinge o
mais alto grau de intensidade quando os interesses tomaram a forma de
direitos adquiridos. Veem-se, então, em presença, dois partidos, tomando
ambos por divisa a santidade do direito; um arvora a bandeira do direito
histórico, do direito do passado, - o outro a do direito, que, dia a dia, se vai
formando, dia a dia, vai rejuvenescendo, do direito primordial que a
humanidade tem de se regenerar constantemente (...) O direito no seu
movimento histórico apresenta-nos pois um quadro de lucubrações, de
combates, de lutas, numa palavra, de penosos esforços.
Respeitadas as particularidades temporais e históricas da fundamentação de Ihering,
sabe-se que o ordenamento jurídico brasileiro não mais considera o caráter absoluto da
propriedade, condicionando-a ao respeito pela sua função social. Assim, o que, no século
103
XIX, representava o anseio pelo absolutismo do direito de propriedade, hodiernamente,
personifica a denúncia de que o campo não pode mais ser explorado de forma insustentável,
sem qualquer preocupação quanto às consequências do abuso irresponsável de recursos
naturais e humanos.
Isso não interfere na continuidade das discussões propostas, pois, mesmo com todas as
dificuldades percebidas, homens, mulheres e crianças se submetem aos milhares à incerteza
da procura pela terra, pois, traçando um paralelo com o discurso do jurista alemão, a terra é
motivo de luta, pois, para ele (IHERING, 2009, p. 28):
o trabalho e a propriedade são a honra do campônio (...) Para o campônio o
campo que cultiva e o gado que cria são a base de toda a sua existência, e
contra o vizinho que por meio da charrua lhe tirou alguns pés de terra ou
contra o marchante de gado que não lhe paga um boi, enceta ele a seu modo,
isto é, por meio de um processo conduzido, a mais exasperada paixão, a
mesma luta pelo direito que o militar sustenta de espada contra aquele que
atingiu a sua honra.
Nesse contexto, atualmente, essa exasperada paixão de luta vê-se depositada não mais
em vizinhos e mercadores, mas contra os grandes proprietários rurais e contra a morosidade
das ações do Estado, que fazem surgir os chamados Movimentos Sociais. Para Epstein (1995,
apud DIAS, 2001, p. 02) esses Movimentos “são esforços coletivos de pessoas social e
politicamente subordinadas para mudar suas condições de vida”, e, conforme afirma Ricupero
(1998, apud PILLETI; MOSOLINO, s/d, p. 36), os Movimentos Sociais do campo se
destacam pela publicidade que promovem ao assunto, pois:
a emergência do movimento dos trabalhadores rurais é um dos fenômenos
mais importantes da história brasileira, desmitificando toda uma trajetória de
suposta passividade e anomia do nosso povo. Revela um problema real
gravíssimo, a incomensurável miséria do campo. Pois ninguém, por grande
agitador que seja, é capaz de levar dezenas de milhares de pessoas à ação
organizada, a fazer homens e mulheres afrontar a brutalidade de jagunços e
policiais até o sacrifício da vida, se não houver por trás muito desespero e
sofrimento.
Corroborando com a premissa iheringuiana (IHERING, 2009, p. 48) de que “quem
defende o seu direito, defende também na esfera estreita deste direito, todo o direito”, pode-se
afirmar que os Movimentos Sociais desempenham uma função ímpar na esfera social, pois, ao
exigirem a efetivação de garantias, reivindicam melhorias a toda a coletividade e não somente
104
aos de quem deles participam. Assim, tem-se a interferência dos Movimentos Sociais
conforme mostra o Quadro 9.
Quadro 9 - Dinâmica das relações que envolvem a Educampo e a influência dos Movimentos Sociais
Fonte: Elaborado pela MMF, 2010
Pelo exposto, constatam-se as incertezas da apatia social destruidora do futuro de
Justiça e segurança que se vislumbra a todos, indiscriminadamente. Destarte, Estado, políticas
públicas e Movimentos Sociais devem interagir em prol das garantias que todos os seres
humanos detêm, em razão de suas “simples” existências. Nesse processo, a Educampo será
sempre fundamental, porque, reafirmando valores da terra, instiga trabalhadores à defesa de
direitos, mostrando, como identifica Ihering (2009, p. 50), que, “em resumo, cada qual é um
lutador nato, pelo direito, no interesse de toda a sociedade”.
4.2 Eixo temático: gestão e financiamento na educação do campo
A primeira atividade do segundo eixo temático do módulo IV pretendeu uma análise
das políticas de financiamento da Educação, que deveria apontar as responsabilidades de cada
ente federativo na disposição de recursos. A segunda produção solicitou a escolha de uma
representante da Educampo para que sobre tal escola fosse realizado um exame acerca de suas
105
necessidades operacionais e de manutenção. Finalmente, o último exercício desse eixo exigiu
a confecção de um relatório acerca do processo de produção das duas primeiras atividades do
eixo temático inicial desse módulo. Destarte, produziram-se os textos nomeadores das
vindouras subdivisões dessa produção acadêmica.
4.2.1 Adubo$ educacionai$ no Bra$il
O dinheiro é como o adubo: não é bom se não for
bem distribuído.
(Francis Bacon)
No mundo capitalista, as políticas de financiamento da Educação podem ser
consideradas tão importantes quanto à própria Educação. Em terras brasileiras, a partir da
última década do século passado, a consolidação do Estado Democrático de Direito e de suas
nuances neoliberais exigiu uma maior atenção do poder público ao setor educacional,
enquanto, em favor da moralidade administrativa, buscava-se a contenção de quaisquer
espécies de desvantagens ao erário.
Nesse contexto, a Emenda Constitucional (EC) 14, submetendo o Brasil à
manipulação política internacional em troca de recursos financeiros, trouxe avanços ao
estimular o desenvolvimento do Ensino Fundamental e fomentar a valorização do Magistério,
possibilitando a interferência da União ao não-cumprimento das responsabilidades dos
Estados, Distrito Federal e municípios na questão escolar. Além disso, a EC14 também previa
o combate ao analfabetismo, que deveria ser escopo das políticas públicas.
Essa mesma EC14 foi responsável pela criação do Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), que
recebeu inúmeras críticas durante sua vigência, precipuamente porque, conforme aponta
Davies (1999, apud MARQUES; RODRÍGUEZ, 2010, p. 69), teve “focalização apenas em
uma etapa do ensino”, “não valoriza o magistério”, “redistribui os recursos existentes” e “não
contempla a educação infantil nem a educação de jovens e adultos”.
Esse fundo, de natureza contábil, formava-se pela arrecadação de impostos, que eram
repassados aos Estados e municípios, mas que poderia beneficiar somente estudantes do
Ensino Fundamental, objetivando o combate aos altos índices de analfabetismo que
acometiam o Brasil, além da grande evasão escolar, principalmente nas séries iniciais. Isso
106
gerou um confronto entre os Estados e municípios na busca pelo maior número possível de
matrículas realizadas, que era o fator gerador do repasse financeiro.
Com a percepção dos problemas trazidos pelas características do Fundef, meses antes
do ano 2000, foi criado o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica
Pública e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). A aplicabilidade desse
recurso, porém, parece ainda não ser capaz de dirimir os problemas da Educação, pois,
mesmo não prevendo mais a “disputa” entre Estados e municípios por quantitativo de
matrículas, não foi capaz, por exemplo, de contemplar a Educação Infantil em sua tutela.
Especificamente quanto à Educampo em Mato Grosso do Sul, somente os levantes dos
Movimentos Sociais foram capazes de estimular algum desenvolvimento. A aprovação
estadual das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica das Escolas do Campo
representou importante conquista, pois, ao particularizar a identidade das instituições
escolares campesinas, possibilitou a tomada de recursos específicos da Constituição
Republicana, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação e do próprio Fundef.
Entre as benesses dessa diferenciação dada às Escolas do Campo percebeu-se um
valor-aluno maior para as instituições rurais, além da garantia de remuneração digna aos
profissionais. Aliado a isso, o Plano de Desenvolvimento da Educação também repercutiu
mudanças positivas ao promover melhorias nas condições de transporte estudantil e de acesso
ao fornecimento de energia elétrica a longínquos recantos, estimulando o labor nas escolas
públicas brasileiras.
Outros programas têm sido desenvolvidos, como, por exemplo, a oferta de bolsas de
estudo a jovens da área rural. Entretanto, talvez a maior conquista do campo seja a
regulamentação dos padrões de qualidade da Educação Básica, que, segundo Marques e
Rodríguez (2010, p. 74), “fixa os insumos fundamentais que servem como garantia da
qualidade da aprendizagem”. Esses padrões mostram que os valores destinados à Educampo
devem ser maiores que os recursos dos demais setores pedagógicos transversais.
Pelo exposto, percebem-se articulações à distribuição de recursos públicos de todos os
níveis administrativos para a Educação e, especificamente, à Educampo. Sabe-se, porém, que
a realidade ainda é apenas arremedo da utopia de uma sociedade em que as oportunidades
serão equânimes e sirvam a um futuro solidário e livre. Que nesse futuro, a pecúnia deixe de
ser a “essência alienada do trabalho e da existência do homem”, como assevera Marx (1964,
p. 70), para personificar um verdadeiro agente social transformador.
107
4.2.2 Saber quem se é...
(...) Aprendi a teoria das idéias e da razão pura.
Especulei filósofos e até cheguei aos eruditos. Aos
homens de grande saber. Achei que os eruditos nas
suas altas abstrações se esqueciam das coisas
simples da terra. Foi aí que encontrei Einstein (ele
mesmo – o Alberto Einstein). Que me ensinou esta
frase: A imaginação é mais importante do que o
saber. Fiquei alcandorado! E fiz uma brincadeira.
Botei um pouco de inocência na erudição. Deu
certo. Meu olho começou a ver de novo as pobres
coisas do chão mijadas de orvalho. E vi as
borboletas. E meditei sobre as borboletas. Vi que
elas dominam o mais leve sem precisar de ter
motor nenhum no corpo. (Essa engenharia de
Deus!) E vi que elas podem pousar nas flores e nas
pedras sem magoar as próprias asas. E vi que o
homem não tem soberania nem pra ser um bentevi.
(Manoel de Barros)
Introdução
Esse trabalho pretende apresentar o levantamento de informações, as dúvidas
suscitadas durante essa coleta de informações e as conclusões desencadeadas por atividade
obrigatória da Espeducampo da UFMS. Explica-se, inicialmente, que, ao começar as reflexões
acerca do desenvolvimento da atividade, foi definido pela especializanda que seu objeto de
observação seria uma das instituições de ensino da conhecida Escola Pantaneira de
Aquidauana. Esse projeto, desenvolvido na cidade da pesquisadora e formado por parceria
entre proprietários de terra e o Executivo Municipal, destina-se ao atendimento da clientela
escolar domiciliada na área rural aquidauanense.
Durante o desenvolvimento do trabalho, porém, ocorreram anfibologias acerca da real
adequação da Escola Pantaneira como representante da Educampo, pois, ao serem
fundamentalmente mantidos por grandes proprietários rurais, talvez esses núcleos escolares
não reflitam a ideologia pretendida pela vertente educacional campesina, como informa sua
publicidade. Por não exercer atualmente a docência ativa (fator impeditivo de observação de
sua própria realidade), a especializanda objetou suas análises ao Núcleo Escolar do Vale do
Rio Negro, participante do projeto Escola Pantaneira, porém verteu interesse também a
dirimir a dúvida acendida.
Assim, buscaram-se ponderações sobre a fundamentação da Educampo e da Escola
Pantaneira, a fim de serem traçados paralelos com a realidade do Núcleo Escolar observado,
constatando-se, mesmo que superficialmente, se esse projeto pode ser encaixilhado como
108
representante dos interesses campesinos e, consequentemente, ser agraciado por recursos
públicos. A seguir, mostram-se as informações coletadas e os expedientes utilizados no
levantamento, além de se apontarem os empecilhos percebidos e o resultado das análises que
propiciaram, além da mera verificação da realidade, o fomento de novas cogitações acerca da
influência capitalista na percepção social.
O levantamento das informações
Durante as atividades que desencadearam o levantamento de subsídios ao trabalho,
algumas considerações determinaram a imperatividade de novos “olhares” à Escola
Pantaneira, que já havia sido escolhida como objeto temático de anterior afazer e que, na
ocasião, não havia causado qualquer celeuma quanto ao seu enquadramento na Educampo.
Entretanto, todas as considerações fomentadas pelas leituras e debates ocorridos durante a
Espeducampo desencadearam nova nuance à existência da Escola Pantaneira da qual, pela
condição científica limitada da especializanda, retirou-se o jaez social ideológico até então
repercutido, observando-se os núcleos escolares integrantes do projeto.
Ao propor uma reflexão sobre a Pedagogia Freireana e seu legado ao mundo, Gadotti
(1997, s/p.) ensina que a primordial incumbência da Educação talvez seja a de “continuar a
tarefa da conscientização, da não-violência, do trabalho de organização dos excluídos, dos
pobres, dos pescadores, dos agricultores, dos sem-terra, dos sem-teto, das minorias
oprimidas”. Nesse contexto, a Educampo mostra-se como fundamental aliada ao intento de
promoção do desenvolvimento humano, pois vislumbra uma prática pedagógica interessada
na autonomia de que trata Freire (2002), conceituada por Gadotti (1997, s/p.), como “a
capacidade de decidir-se, de tomar o próprio destino nas suas mãos”.
Nesse mister de autodeterminação da pedagogia transdisciplinar do campo, a
Secretaria Nacional do MST (2010, p. 23) explica, corroborando o pensamento dos estudiosos
supra mencionados, que “escolarizar é incentivar a pensar com a própria cabeça, é desafiar a
interpretar a realidade (...) É criar condições para que cada cidadão e cidadã construam, a
partir dos seus pontos de vista, seus destinos”. Em superficial interpretação, a chamada Escola
Pantaneira de Aquidauana parece preencher adequadamente esse intento de escolarização,
pois estimula a análise da realidade, com calendários diferenciados (de acordo com o ciclo
aquífero) e currículo de resgate à valorização regional.
Entretanto, as ponderações de Gadotti (1997) e Freire (2002), os ajuizamentos da
pedagogia dos oprimidos (FREIRE, 1987) e a análise das lutas dos Movimentos Sociais
contra o capitalismo neoliberal fomentam dúvida se a chamada Escola Pantaneira de
109
Aquidauana propala, de fato, a Educampo. Essa dúvida é, mormente, fundamentada pelo
entendimento de que o baluarte da Educampo é a defesa da distribuição equitativa da terra, do
desenvolvimento sustentável, da ojeriza ao agronegócio e pecuária extensiva e da valorização
do trabalho e da vida campesina, e que, para Caldart (2011, p. 02):
nasceu como mobilização/pressão de movimentos sociais por uma política
educacional para comunidades camponesas: nasceu da combinação das lutas
dos Sem Terra pela implantação de escolas públicas nas áreas de Reforma
Agrária com as lutas de resistência de inúmeras organizações e comunidades
camponesas para não perder suas escolas, suas experiências de educação,
suas comunidades, seu território, sua identidade. A Educação do Campo
nasceu tomando/precisando tomar posição no confronto de projetos de
campo: contra a lógica do campo como lugar de negócio, que expulsa as
famílias, que não precisa de educação nem de escolas porque precisa cada
vez menos de gente.
Isso parece não coadunar com a gênese da Escola Pantaneira, pois podem surgir
especulações sobre de que maneira instituições escolares públicas que têm latifundiários como
mantenedores podem se interessar por uma prática pedagógica solidária e libertadora, como a
pretendida pela Educampo. Sobre isso, explica Franco (2010, s/p.) que:
Ao contrário das instituições escolares implantadas pela exigência dos
movimentos sociais de reivindicação à posse e à propriedade da terra, a
origem da Escola Pantaneira não está relacionada à necessidade de promover
estudo às novas comunidades formadas pela distribuição imóvel oriunda da
Reforma Agrária. Esse programa foi desencadeado pelo atendimento de um
proprietário rural à proposta das famílias de seus funcionários, que
desejavam não mais precisarem encaminhar os filhos para os centros
urbanos durante o período letivo. Assim, em 1998, o dono da Fazenda
Campo Novo propôs uma parceria com o poder público aquidauanense
visando à construção de um prédio para atender principalmente às
necessidades escolares dos filhos dos moradores de sua fazenda e outros da
região.
Nessa aparente incoerência, almejou-se a observação das peculiaridades da instituição
escolar integrante da Escola Pantaneira de Aquidauana: o Núcleo Escolar do Vale do Rio
Negro, localizado na Fazenda Campo Novo, distante cerca de 250 quilômetros da Capital sul-
mato-grossense. Através de levantamento das condições materiais, físicas, pedagógicas, de
transporte, de alimentação e de professores dessa instituição de ensino, buscar-se-á, ao
término do trabalho, dirimir também a dúvida apontada, evidenciando ou não a existência de
conflito à apresentação desse núcleo como representante legítimo da Educampo.
110
A fim de se promover o levantamento das informações a seguir mostradas e o
resultado das reflexões desencadeadas, buscou-se contato telefônico com a Gerência de
Educação Municipal de Aquidauana. Após explicações à atendente, a mesma disse que alguns
dados poderiam ser passados por telefone e que outras informações estavam disponíveis em
sítio digital do Poder Executivo. Ao questionamento acerca da possibilidade de
acompanhamento de visita ao núcleo escolar escolhido para análise, a atendente avisou que,
em virtude das férias escolares, não havia nenhum agendamento de vistoria dos gestores,
passando, então, ao préstimo das informações.
O resultado da pesquisa
Na apuração informativa, obteve-se o levantamento de que, no ano de 2010, a Escola
Pantaneira atendeu a aproximadamente 300 alunos, distribuídos em seis núcleos. Soube-se
que todos os núcleos funcionam em prédios cedidos pelos donos das fazendas e que, na
Fazenda Campo Novo, de propriedade do Senhor Almir Sater e onde está sediado o Núcleo
Vale do Rio Negro, 10 alunos ficam em internato, pela dificuldade de atendimento de
transporte causado pela precariedade dos acessos. Durante a permanência dos estudantes, a
responsabilidade sobre os mesmos é de incumbência do único professor da escola
(subordinado e pago pelo Executivo Municipal), auxiliado por sua esposa.
Com sala multianual do 1º ao 5º ano, que funciona em tempo integral e tem calendário
com regime de alternância em observação aos períodos de vazantes aquíferas, os alunos
contam com merenda escolar de qualidade, patrocinada pelo proprietário da fazenda, que
determina também a manutenção de uma horta doméstica para complementar a alimentação.
O professor do núcleo, através de instrução passada pelo coordenador municipal do programa
Escola Ativa (destinado a escolas multisseriadas do campo), é periodicamente capacitado, de
forma à melhoria de suas práticas pedagógicas e utilização de materiais didáticos.
Segundo informes, as necessidades do núcleo não foram discutidas com a comunidade
e, portanto, não fazem parte de um Plano de Desenvolvimento da Educação da Escola. Apesar
disso, aparentemente, os pais dos alunos (moradores e trabalhadores da Fazenda Campo Novo
e de outras propriedades rurais vizinhas) são presentes às situações escolares, participando
ativamente quando solicitados. A casa na qual funciona a escola é de madeira e um dos
principais problemas do núcleo é a rotatividade constante de professores, que se sentem
desmotivados pela grande distância que separa a fazenda da cidade e que, em determinados
meses do ano, somente pode ser transposta de avião.
111
Outras dúvidas não puderam ser sanadas, como, por exemplo, o cotidiano pedagógico
do núcleo, a disponibilidade de recursos tecnológicos e bibliográficos e a habilitação do atual
professor, que, apesar de algumas tentativas da pesquisadora, não foi contatado. Uma antiga
professora do Núcleo foi localizada, porém não aceitou ser entrevistada, nem identificada,
esclarecendo apenas que não se interessava em falar sobre o assunto por “não ter boas
recordações da Campo Novo”, sem apresentar quaisquer outros detalhes que possibilitassem à
pesquisadora a percepção da dinâmica pedagógica desencadeada na propriedade de pecuária
extensiva.
Conclusão
A precariedade das informações conseguidas a respeito do Núcleo Escolar Vale do Rio
Negro, infelizmente, não permitiram enquadrar esse integrante da Escola Pantaneira como
legítimo representante da Educampo. Isso porque é demasiado imperativa a incumbência de
diferenciação da Educação do Campo e da Educação no Campo. Parece pouco coerente a
ideia de que uma comunidade escolar mantida por um proprietário de vastas terras tenha
intenção em propagar a ideologia libertadora e de combate ao latifúndio, como propõe a
Educação do Campo. E mesmo que mostrasse intento em tais questões, esse comportamento
soaria como latente desarmonia de interesses.
Aparentemente, apesar de haver, no Núcleo Escolar observado, a presença da figura
do Estado (personificada pelo professor), essa interferência estatal não parece suficientemente
protegida das intenções capitalistas que, literalmente, acolhem e alimentam jovens e crianças.
As práticas pedagógicas diferenciadas e interessadas na valorização do trabalho do campo e
sua importância ao mundo podem ser comprometidas pela ingerência, mesmo que não-
intencional, de elementos subjetivos, situação inconcebível no Estado Democrático de Direito
que fundamenta o Brasil, cuja administração se pauta, entre outros valorosos princípios, pela
impessoalidade.
Assim, apesar da ampla publicidade de que a Escola Pantaneira de Aquidauana atende
aos interesses da Educampo, faz-se mister uma reflexão mais elaborada do assunto, de forma
a refutar possíveis engodos, precipuamente políticos, que atravancam o desenvolvimento
social e a libertação popular. Essa percepção é indispensável para que todas as ações de
gestão e financiamento da Educampo sejam profícuas, de forma a não serem utilizados
recursos financeiros, humanos e temporais de maneira codilha. Somente a descoberta de
verdades libertadoras pode, efetivamente, fender o cerne das mazelas sociais e fomentar a luta
contra a perpetuação do subjugo de uns por outros.
112
4.2.3 Oportunidades
Sempre que tiveres dúvidas, ou quando o teu eu te
pesar em excesso, experimenta o seguinte recurso:
lembra-te do rosto do homem mais pobre e mais
desamparado que alguma vez tenha visto e
pergunta-te se o passo que pretendes dar lhe vai ser
de alguma utilidade. Poderá ganhar alguma coisa
com isso? Fará com que recupere o controle de sua
vida e do seu destino? Por outras palavras,
conduzirá à autonomia espiritual e física dos
milhões de pessoas que morrem de fome? Verás,
então, como as tuas dúvidas e o teu eu se
desvanecem.
(Gandhi)
Acredita-se que qualquer intenção de pesquisa deve verter forças ao desenvolvimento
do Homem e ao progresso social e moral da humanidade, principalmente ao se referir a
investigações acadêmicas. Nesse pensamento, a Espeducampo da UFMS prima, em suas
proposições de atividades, pelo constante desafio de análise da realidade de seus participantes,
estimulando reflexões acerca de suas próprias existências e de suas funções à sociedade.
Aos que não puderam comparecer ao encontro presencial do módulo IV do curso
supra mencionado31
, Gestão Educacional no Campo, e, portanto, deixaram de realizar
atividades obrigatórias, foi proposto um exercício substitutivo, possibilitando menores
prejuízos aos profissionais que, por razões diversas, não participaram da reunião. Assim,
determinou-se a realização de produção textual que expusesse considerações sobre o
desenvolvimento das atividades 1 e 2 do segundo eixo temático, anteriormente realizadas.
Para a realização da atividade 1, deveria se efetivar, nas secretarias de educação, “um
levantamento da oferta de educação básica e de ações ou programas educacionais promovidos
por órgãos governamentais e que foram realizados em seu município para garantir a oferta de
Educampo”. Já a atividade 2 propunha a redação de texto que abordasse as concepções “a
respeito do papel do Estado, das políticas públicas e dos Movimentos Sociais em relação às
garantias do direito à Educação do/no campo”.
Buscando o cumprimento da primeira atividade, depois de devidas visitas ao Núcleo
de Tecnologia Educacional de Aquidauana (contato da Secretaria de Educação Estadual) e à
Gerência Municipal de Educação de Aquidauana, foram realizadas consultas nos sítios
31
Explica-se que a produtora desse texto participou do encontro presencial, porém, por divisão ocorrida no
grupo formado para realizar as atividades, a essa especializanda coube outra tarefa. Em razão disso, de forma a
cumprir todos os exercícios propostos durante o curso, apresenta-se tal produção.
113
digitais dos mesmos órgãos, de forma a se conseguirem outras informações públicas.
Constatou-se certa dificuldade dos servidores à apresentação dos dados, porém as lacunas
puderam ser preenchidas pelos informes disponibilizados na internet.
Após o levantamento, verificou-se considerável quantidade de instituições escolares
em Aquidauana, em todos os níveis verticais de ensino (Educação Infantil, Fundamental,
Média, Superior e Técnica) e áreas transversais (Educampo e Indígena), porém se constatou
precariedade na oferta educacional. Tal percepção desencadeou o interesse de se
desenvolverem reflexões acerca da dicotomia quantidade-qualidade, em tentativa de alerta
social, através da produção “Quantidade? Qualidade.”.
Para a realização da atividade 2, de forma a colaborar com a divulgação da
legitimidade e visão fundamentalmente constitucional dos Movimentos Sociais, considerou-
se a atualidade das asseverações do jurista Rudolf Von Ihering em sua obra “A luta pelo
Direito”. Destarte, o texto “Estado, políticas públicas, movimentos sociais e ‘a luta pelo
direito’ da Educampo: o pensamento jurídico de Ihering e a problemática educacional
campesina” propôs um exercício de transdisciplinaridade à temática.
Nesse escrito, buscou-se a comprovação de que a pressão dos Movimentos Sociais
contra o Estado (para que esse, através das políticas úblicas, interfira no desenvolvimento da
Educampo) não é apenas um direito, mas um dever que não pode ser atalhado. Grosso modo,
sugere-se a reflexão acerca da importância histórica dos levantes sociais (pacíficos ou não) à
situação humana hodierna, promovendo o pensamento (aplicado a países) de Barbosa (1917,
p. 74) (que repercute entre grupos) de que:
se os fracos não têm a força das armas, que se armem com a força do seu
direito, com a afirmação do seu direito, entregando-se por ele a todos os
sacrifícios necessários para que o mundo não lhes desconheça o caráter de
entidades dignas de existência.
Conclui-se que as atividades propostas podem influenciar sobremaneira os juízos
acerca de anexins perpetuados e, consequentemente, tendem a refutar preconceitos e
equívocos sociais. Tais ponderações também podem abalizar comportamentos individuais e
coletivos, influenciados por interesses capitalistas que maculam a verdade sobre as questões
do campo, em prejuízo de toda a sociedade. Como a função da Educação deve ser a de libertar
o Homem, oxalá ele se torne livre, interferindo positivamente na existência de todos os seres.
114
4.3 Eixo temático: gestão de sistemas de ensino e avaliação de políticas educacionais do
campo
O inaugural exercício desse eixo temático solicitou uma coleta de dados sobre o
oferecimento da Educampo no município onde reside a MMF e a última proposta do módulo
(uma atividade presencial que, após determinação e divisão de grupos de trabalho, foi
incumbida à MMF) determinava a realização de análises sobre a existência ou não de gestão
democrática na Educação na comunidade da cursista. Dessa forma, em cumprimento às
determinações, elaboraram-se os textos que nomeiam as próximas subdivisões desse trabalho
de conclusão de curso.
4.3.1 À reflexão, pois.
Toda favela tem um pouco de senzala!
Todo camburão lembra um navio negreiro!
Toda ocupação tem um quê de quilombo!
Quero ocupar os latifúndios mentais que a
desinformação cultiva.
Quero plantar conhecimento em toda mente
improdutiva.
Quero colher resultados em forma de arte e
educação.
Minha guerrilha é cultural!
Viva a revolução!
(http://www.mtst.info/?q=poesia_terra)
Acredita-se que somente o acúmen da realidade (gerado pela reflexão produzida pelo
conhecimento) pode, efetivamente, desencadear nos seres a comissividade necessária à
mudança social indispensável à manutenção da vida no planeta. Nesse contexto, as mazelas da
sociedade apenas podem ser corrigidas pela ingerência de práticas que estimulem as pessoas a
refletirem sobre suas existências e funções, alertando a importância de cada elemento no
grande amálgama formador da História do Homem.
Assim, no intento de conhecer os aspectos que circundam os indivíduos, o objetivo
precípuo desse trabalho é apresentar o levantamento de informações da situação atual de
oferta da Educampo em Aquidauana / MS, a fim de, quiçá, desencadear reflexões que
repercutam favoravelmente ao desenvolvimento humano no ambiente rural. Também serão
apontadas as dificuldades deparadas nessa coleta de dados e os basilares resultados obtidos
pela pesquisadora na realização da atividade.
115
O escopo desse exercício singelo de pesquisa fundamenta-se na imperatividade de,
através da observação de fatos, perceber como se desenvolve, na prática, a gestão democrática
da Educação na comunidade aquidauanense. Recorda-se, pela proposta desse trabalho, a
confissão de Descartes (1983, p. 85) de que:
Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos,
recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que
depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui
duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma
vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera
crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse
estabelecer algo de firme e de constante nas ciências.
Corrobora-se, com isso, a necessidade de reflexão das minúcias que maculam a
consolidação da Democracia e surgem, nessas minudências, infinitas dúvidas acerca das
discrepâncias havidas entre teoria e prática, entre mundo real e mundo jurídico e entre a
simbologia dos discursos acadêmicos e políticos. Constata-se que a apatia dos que se recusam
à ação de defesa dos interesses sociais é inércia causada por desconhecimento e preconceito e,
como praga em plantação, deve ser extirpada por práticas reflexivas.
O levantamento das informações
O levantamento das informações a seguir mostradas foi realizado através de visitas à
Gerência de Educação Municipal e ao Núcleo de Tecnologia Educacional (base municipal da
Secretaria de Educação do Estado), além de conversa com a Especialista em Educação Helena
Rojas, ex-diretora da Escola Pantaneira e ex-secretária de Educação de Aquidauana. Também
foram realizadas pesquisas em sítios digitais, a fim de verificação de existência de outras
considerações informativas.
Explica-se que a pesquisadora não se interessou em agendamento de entrevistas com
gestores do Executivo Municipal da área de Educação, pois, por obviedade ululante, os
mesmos obstariam, por conveniência política, o préstimo de informações que pudessem
macular seus trabalhos. Assim, optou-se pelo convite a profissional já destituída de sua
função comissionada para comentários acerca da proposta de Gestão de Educampo em
Aquidauana.
Após a explicação de pormenores acerca da realização da atividade, os servidores da
Gerência Municipal e da Secretaria Estadual de Educação afirmaram que tentariam aprimorar
as informações que a pesquisadora já possuía em virtude de levantamento anteriormente
116
realizado, mas que, talvez, pouco mais poderiam dispor. Outras informações, como já
informado, foram passadas pela professora Helena Rojas, coordenadora pedagógica
licenciada, em conversa informal realizada em sua residência.
Explica-se, também, que, a fim de verificar o entendimento dos servidores
entrevistados acerca da temática educacional do campo, a pesquisadora, em seus pedidos de
informação, solicitava aos atendentes a “oferta de Educampo em Aquidauana e seus modelos
de gestão”. Tal comportamento evidenciou que parece ainda haver consideração sinonímica
dos termos “Educação do Campo” e “Educação no Campo”, conforme apontarão,
vindouramente, as conclusões desse trabalho.
O resultado da pesquisa
Dados coletados no Núcleo de Tecnologia Educacional da Rede Estadual de Educação
de Aquidauana, localizado na Rua Estevão Alves Correa (antiga Escola Laudelino Barcelos),
apontaram a existência de quatro escolas estaduais mantidas em zona não-urbana (distrito e
aldeias), conforme aponta o Quadro 10.
Quadro 10 - Escolas Estaduais em zona não-urbana de Aquidauana e localização
ESCOLA LOCALIZAÇÃO
Escola Estadual Geraldo Afonso Garcia Distritos de Camisão / Piraputanga
Escola Indígena Pascoal Leite Dias Aldeia Limão Verde
Escola Indígena Pastor Reginaldo Miguel Aldeia Lagoinha
Escola Indígena Professor D. M. Miguel Veríssimo Aldeia Bananal
Fonte: Elaborado pela MMF, 2011
De acordo com dados da Gerência Municipal de Educação de Aquidauana, além das
cinco escolas localizadas em área urbana, o município Portal do Pantanal conta com quatro
escolas distritais, nove instituições indígenas de ensino e 06 núcleos da chamada Escola
Pantaneira, como mostra o Quadro 11.
Quadro 11 - Escolas Municipais em zona não-urbana de Aquidauana e localização
ESCOLAS DISTRITAIS LOCALIZAÇÃO
Escola Municipal Ada Moreira de Barros Distrito de Cipolândia
Escola Municipal Antonio Santos Ribeiro Distrito de Piraputanga
Escola Municipal Franklin Cassiano Distrito de Camisão
Escola Municipal Visconde de Taunay Distrito de Taunay
ESCOLAS INDÍGENAS LOCALIZAÇÃO
Escola Municipal Indígena Feliciano Pio Aldeia Ipegue
Escola Municipal Indígena Feliciano Pio (Ext. Colônia Nova) Aldeia Colônia Nova
Escola Municipal Indígena Francisco Farias Aldeia Água Branca
Escola Municipal Indígena General Rondon Aldeia Bananal
117
Escola Municipal Indígena General Rondon (Ext. Imbirussu) Aldeia Imbirussu
Escola Municipal Indígena Lutuma Dias Aldeia Limão Verde
Escola Municipal Indígena Lutuma Dias (Ext. Córrego Seco) Aldeia Córrego Seco
Escola Municipal Indígena Marcolino Lili Aldeia Lagoinha
Escola Municipal Indígena Marcolino Lili (Ext. Morrinho) Aldeia Morrinho
ESCOLAS PANTANEIRAS LOCALIZAÇÃO
Núcleo Escolar Escolinha da Alegria Fazenda Primavera
Núcleo Escolar Cyriaco da Costa Rondon Fazenda Tupacyretãn
Núcleo Escolar Joaquim Alves Ribeiro Fazenda Taboco
Núcleo Escolar Querência Fazenda Querência
Núcleo Escolar Santana Fazenda Santana
Núcleo Escolar Vale do Rio Negro Fazenda Campo Novo
Fonte: Elaborado pela MMF, 2011
A gestão das escolas da zona não-urbana de Aquidauana parece distante da prática
democrática efetiva, pois, por exemplo, excetuando-se a escola distrital mantida pelo Estado,
os gestores desses educandários não têm mandato eletivo e são escolhidos de forma arbitrária
de acordo com os interesses do Poder Executivo. Algumas informações apontam a
possibilidade de haver, ainda no primeiro semestre de 2011, eleições diretas para diretores das
escolas municipais, porém esse expediente não foi fundamentado de forma jurídica, fato que
pode provocar atrasos ao intento.
Outro exemplo dessa minúcia antidemocrática se refere à escola distrital do Estado,
que oferece educação técnico-agropecuária e, embora bastante conceituada na região, quase
teve suas atividades paralisadas no início de 2011, devido à falta de interesse público na
continuidade do expediente pedagógico. Tal intenção somente não se concretizou em virtude
da mobilização inicial de antigos alunos e alardeou certa desconsideração ao tradicionalismo
da instituição e aos interesses da comunidade, que não foi consultada ao fechamento.
Os PPPs de todas as escolas embasam-se na condição gestora democrática, porém, de
acordo com as informações conseguidas, as comunidades não são consultadas às decisões
financeiras de maior vulto. Quando convidadas à participação, mormente, são manipuladas
pelos discursos dos gestores, que dispõem dos recursos econômicos e humanos passíveis de
flexibilização conforme lhes convêm, apesar da divulgação de propaganda comprometida com
a Educação participativa.
O Plano Municipal de Educação de Aquidauana está sendo elaborado há anos, porém
dessa articulação fazem parte somente representantes da docência e do Executivo Municipal.
Nas comunidades indígenas, apesar de tentativa de atendimento pedagógico diferenciado,
118
ainda predomina a ingerência da Educação “purutuia”32
, aplicadora do mutilador substrato
linguístico, que se interessa pela preservação idiomática nativa e outras nuances culturais
somente nos primeiros anos de estudo.
Alerta-se, novamente, à necessidade de reflexão da Escola Pantaneira como legítima
representante da Educampo, em virtude de sua peculiar condição de ser mantida por parceria
entre o Poder Público e grandes proprietários de terra que, por serem vistos como “donos” da
escola, podem dela dispor. Sabe-se da existência de impedimentos à reforma de prédios que
acolhem os estudantes, além de outras situações ainda mais vexatórias, como denúncias de
que a comunidade escolar não passa de “curral de eleitores”.
Fomentam-se, assim, os debates acerca da oferta da Educação às comunidades de zona
não-urbana, pois, apesar de serem contempladas em seus direitos de acesso educacional, não
vivenciam o poder de escolha de seus interesses. As próprias atividades pedagógicas
consideradas de valorização da vida e do trabalho rural são definidas por profissionais que,
por mais boa vontade que acreditem ter, mormente, nunca vivenciaram a experiência da terra.
Nessa perspectiva, a gestão democrática da Educação, em Aquidauana, ainda não
passa de sofisma político, parecendo coadunar com o entendimento de Marques e Rodríguez
(2010, p. 07) de que é:
Importante considerar que se na atualidade não faltam políticas e propostas
alternativas de educação para o campo, faltam iniciativas de mobilização
popular e de vontade política dos governantes a quem são atribuídas as
competências para fazer a gestão das redes de ensino público no País.
Conclusão
Sabe-se que a prática da cidadania ativa deve ser estimulada em todos os espaços da
vida social, especialmente no ambiente escolar. Questionam-se, então: 1. De que forma se
pode ensinar a prática democrática senão pela vivência? 2. Como crianças e jovens podem
experienciar o exercício da cidadania em uma escola na qual o gestor não foi escolhido pelo
voto da comunidade, mas sim por interesses pessoais e políticos? 3. Como a sociedade pode
aprender a fazer boas escolhas, senão exercendo seu direito de escolher?
À opressão das certezas capitalistas e à sensação de iniquidade que assola o cotidiano
humano, resta a Democracia. Em Aquidauana, a verdadeira Educampo propagada por
documentos jurídicos garantidores do Estado Democrático de Direito, apesar do grande
32
Termo utilizado pela comunidade terena para se referir aos indivíduos que não são membros desse grupo
nativo.
119
intento a tal negativa, parece não existir, havendo perpetuação de equívoco sinonímico entre a
prática pedagógica do campo e no campo, pois a Educação do campo pretende,
precipuamente, a participação popular.
A comunidade aquidauanense do meio rural não compartilha de maneira ativa das
decisões do cenário educacional, pois, mesmo em áreas em que há representação dos
Movimentos Sociais, estudantes se deslocam para escolas que não parecem comprometidas
com a prática libertadora da participação do povo. A gestão educacional democrática ainda
figura apenas em documentos, mas eles apontam a imperatividade de fomento às lutas contra
a opressão humana e evidenciam, como ensina Freire (1987, p. 24), que:
Não são poucos os camponeses que conhecemos em nossa experiência
educativa que, após alguns momentos de discussão viva em torno de um
tema que lhes é problemático, param de repente e dizem ao educador:
“Desculpe, nós devíamos estar calados e o senhor falando. O senhor é o que
sabe; nós, os que não sabemos”. Muitas vezes insistem em que nenhuma
diferença existe entre eles e o animal e, quando reconhecem alguma, é em
vantagem do animal. “É mais livre do que nós”, dizem. É impressionante,
contudo, observar como, com as primeiras alterações numa situação
opressora, se verifica uma transformação nesta autodesvalia. Escutamos,
certa vez, um líder camponês dizer, em reunião, numa das unidades de
produção (asentamiento) da experiência chilena de reforma agrária: “Diziam
de nós que não produzíamos porque éramos borrachos, preguiçosos. Tudo
mentira. Agora, que estamos sendo respeitados como homens, vamos mos-
trar a todos que nunca fomos borrachos, nem preguiçosos. Éramos
explorados, isto sim”, concluiu enfático.
Que a revolução do pensar promovida pela verdadeira ideologia da Educampo liberte
o Homem de toda forma de caudilhismo... À reflexão, pois.
4.3.2 Rabiscos e papel
A História mostra que todo intento de transformação social se inicia pela Educação,
especialmente aquela voltada para que os indivíduos se entendam como elementos proativos
do processo de evolução humana, interferindo e sofrendo interferências dos demais seres, em
um processo contínuo e infinito. Essa amalgamação, porém, jamais acarretará resultados de
sinecuras se não for pautada na crítica sobre eventos e assuntos relacionados, precipuamente,
às garantias de efetivação e manutenção da dignidade do Homem.
120
Nesse contexto, a escolha pátria pela vivência de um Estado Democrático de Direito,
por si somente, representa a condição de existência de um conjunto objetivo de normas que
pautam o comportamento, as relações humanas e a organização estatal. Entretanto, como
assevera Lassale (1933), um documento normativo, quando não executado em sua
complexidade e essência, é apenas uma folha de papel em branco.
Assegura-se, com isso, que, quanto à participação popular ativa na gestão escolar,
especialmente da Educampo, essa folha de papel representativa do ordenamento jurídico
brasileiro ainda recebe seus primeiros rabiscos, em um processo de letramento lento, porém
imperativo ao futuro das gerações vindouras. Estimulada somente pelos Movimentos Sociais,
essa participação ativa na gestão escolar se mostra ainda inerme, em tentativa de
desmobilização provocada, principalmente, pelos interesses do capital.
Assim, apesar de: 1. a Constituição Republicana rezar a cidadania33
como um de seus
princípios fundamentais, considerando-a como o exercício pleno da participação social ativa;
2. a Constituição de Mato Grosso do Sul garantir, como princípio, a gestão democrática do
ensino público34
; e 3. a Lei Orgânica Municipal de Aquidauana afirmar obediência
hierárquica às normas estadual e federal35
, na cidade Portal do Pantanal, apesar das
conquistas, ainda não ocorre, nem mesmo, a escolha democrática de diretores.
Conclui-se, dessa forma, que a previsão legal, por si somente, não tem sido garantia do
exercício aquidauanense social participativo na gestão escolar, pois a cidadania efetiva é
processo gradual. Entretanto, faz-se mister o levante, especialmente dos ativistas e estudiosos
da Educampo, ao espertar da potencialidade reflexiva humana de que, se mãos bem
intencionadas se unirem à luta pelos direitos do campo, ao amanhã será legada escrita
histórica de desenvolvimento sustentável, colaboração e dignidade... A todos.
4.4 A produção do módulo IV e a transdisciplinaridade da EDDHH
Apresenta-se, no quadro a seguir, a percepção da MMF quanto à transdisciplinar
EDDHH nos textos elaborados no módulo IV da EspEducampo e, na sequência, traçam-se as
considerações finais desse trabalho.
33
Art. 1º, II
34
Art. 189, § único, III
35
Art. 165, caput
Quadro 12 - A influência da transdisciplinaridade humanista nos textos elaborados no módulo IV
MÓDULO IV
Eixos temáticos Textos elaborados Influência da transdisciplinaridade da EDDHH
Políticas de educação do campo
Quantidade? Qualidade.
Estabelece o conhecimento das particularidades do local onde se
vive, estimulando a percepção da importância da Educação à promoção
dos DDHH.
Estado, políticas públicas,
Movimentos Sociais e “a luta
pelo direito” da Educampo: o
pensamento jurídico de Ihering e
a problemática educacional
campesina
Produz exercício de transdisciplinaridade entre pensamento jurídico
e importância dos Movimentos Sociais à chamada para ação do Estado,
apontando a responsabilidade de cada indivíduo na luta pela conquista e
pela efetivação de direitos.
Gestão e financiamento na educação do
campo
Adubo$ educacionai$ no Bra$il Demonstra a importância da distribuição justa e democrática de
recursos financeiros ao desenvolvimento educacional e social.
Saber quem se é...
Repercute a necessidade de acesso a informações imparciais acerca
de assuntos relevantes, de forma a se rechaçarem ou defenderem
interesses individuais ou coletivos, demonstrando a importância da
Educação no processo de desenvolvimento humano.
Oportunidades
Aponta a possibilidade de reflexão sobre procedimentos realizados e
etapas pessoais e coletivas cumpridas, estimulando o constante e
indispensável questionamento sobre a evolução de pensares e
comportamentos.
Gestão de sistemas de ensino e avaliação
de políticas educacionais do campo
À reflexão, pois.
Exige busca por conhecimentos sobre a realidade, estimulando a
conscientização à cidadania, enquanto promove reflexões sobre a
verdadeira democracia em que se vive e seus reflexos à existência de
cada indivíduo.
Rabiscos e papel
Suscita indagações acerca da promoção e vivência da Democracia,
convidando a levantes de reflexão e ação em prol da efetivação de
direitos já conquistados.
Fonte: Elaborado pela MMF, 2011
121
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse exercício acadêmico bibliográfico e memorialista apontou, de maneira
insofismável, a influência das questões humanistas na Educampo, além de, precipuamente,
mostrar a importância da Educação no processo reflexivo responsável pelo rompimento de
preconceitos e, consequentemente, de práticas de violação de DDHH. Após ser “obrigada” a
busca por informações relativas a Movimentos Sociais e ter tido acesso à Espeducampo, a
MMF percebeu a fragilidade das fundamentações de seus discursos contrários às questões da
luta pelo acesso a terra, no Brasil.
Durante a elaboração desse trabalho, inúmeras vezes a MMF, ao refletir sobre o
Massacre de Eldorado dos Carajás, questionou, de forma emocionada, se todas aquelas 19
vidas teriam sido ceifadas se houvesse, entre os profissionais da Segurança Pública
envolvidos na ação, pelo menos um policial que teve acesso aos assuntos defendidos pela
Educampo e pela questão humanista. Acredita-se, nessas ponderações, que, ao menos, as
mortes com características de execução teriam sido evitadas, comprometendo-se os atores da
Segurança Pública ao desempenho de suas reais tarefas de proteção social.
Como a história da Educampo está profundamente marcada pela influência dos
Movimentos Sociais, os temas que permearam a Espeducampo da UFMS apontaram total
transdisciplinaridade com a EDDHH, mostrando, precipuamente, a importância de
valorização das pessoas do campo, de seus saberes e dos interesses que defendem, que visam
à proteção de toda a sociedade e a existência futura das espécies. Além disso, foi possível
observar a ascendência campesina de todas as pessoas e a importância das ações dos
Movimentos Sociais interessados no direito de acesso a terra.
Destarte, esse trabalho mostra o “engatinhar” de uma nova etapa na existência da
MMF, que se marcará pela defesa e valorização dos milhares de seres humanos que, em busca
da efetivação do direito à dignidade, defendem constitucionais garantias que ainda não foram
concretizadas. Ele se presta à lembrança de que a crueza de entendimento e a rispidez de
discursos e práticas podem sucumbir ao acesso a informações comprometidas com a realidade
do passado e com o ambiente em que se vive e que desmascaram interesses capitalistas de
violação e subjugo.
A pós-doutora Ana Paula Martins Amaral, professora da Faculdade de Direito da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, costuma divulgar o adágio popular que conta a
história de um garoto que, andando na praia, pegava estrelas-do-mar e as devolvia à água,
quando um homem, ao observar a ação, questionou: “Por que você faz isso? Não percebe que
jamais conseguirá devolver todas as estrelas, pois elas são muitas e você não fará diferença?”.
À incredulidade do homem, o menino atirou mais uma estrela à água e respondeu, com um
sorriso: “Para essa, fará toda a diferença!”. À MMF, antes encalhada nas areias do preconceito
irrefletido, a Espeducampo, inquestionavelmente, fez toda a diferença.
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ANEXOS
ANEXO A
Texto escrito:
O LÁPIS
(BARROS, 2010, s/p.)
É por demais de grande a natureza de Deus.
Eu queria fazer para mim uma naturezinha particular.
Tão pequena que coubesse na ponta do meu lápis.
Fosse ela, quem me dera, só do tamanho do meu quintal.
No quintal ia nascer um pé de tamarindo apenas para uso dos passarinhos.
E que as mães elaborassem outras aves para compor o azul do céu.
E se não fosse pedir demais eu queria que no fundo corresse um rio.
Na verdade na verdade a coisa mais importante que eu desejava era o rio.
No rio eu e a nossa turma, a gente iria todo dia jogar cangapé nas águas correntes.
Essa, eu penso, é que seria a minha naturezinha particular:
Até onde o meu pequeno lápis poderia alcançar.
Texto musicado:
AQUARELA
(TOQUINHO, 2010, s/p.)
Numa folha qualquer / Eu desenho um sol amarelo / E com cinco ou seis retas / É fácil fazer um
castelo... / Corro o lápis em torno / Da mão e me dou uma luva / E se faço chover / Com dois
riscos / Tenho um guarda-chuva... / Se um pinguinho de tinta / Cai num pedacinho / Azul do
papel / Num instante imagino / Uma linda gaivota / A voar no céu... / Vai voando / Contornando
a imensa / Curva Norte e Sul / Vou com ela / Viajando Havaí / Pequim ou Istambul / Pinto um
barco a vela / Brando navegando / É tanto céu e mar / Num beijo azul... / Entre as nuvens /
Vem surgindo um lindo / Avião rosa e grená / Tudo em volta colorindo / Com suas luzes a
piscar... / Basta imaginar e ele está / Partindo, sereno e lindo / Se a gente quiser / Ele vai
pousar... / Numa folha qualquer / Eu desenho um navio / De partida / Com alguns bons amigos /
Bebendo de bem com a vida... / De uma América a outra / Eu consigo passar num segundo /
Giro um simples compasso / E num círculo eu faço o mundo... / Um menino caminha / E
caminhando chega no muro / E ali logo em frente / A esperar pela gente / O futuro está... / E o
futuro é uma astronave / Que tentamos pilotar / Não tem tempo, nem piedade / Nem tem hora de
chegar / Sem pedir licença / Muda a nossa vida / E depois convida / A rir ou chorar... / Nessa
estrada não nos cabe / Conhecer ou ver o que virá / O fim dela ninguém sabe / Bem ao certo
onde vai dar / Vamos todos / Numa linda passarela / De uma aquarela / Que um dia enfim /
Descolorirá... / Numa folha qualquer / Eu desenho um sol amarelo / (Que descolorirá!) / E com
cinco ou seis retas / É fácil fazer um castelo / (Que descolorirá!) / Giro um simples compasso /
Num círculo eu faço / O mundo / (Que descolorirá!)
Imagens de esculturas em ponta de lápis:
ESCULTURAS
(GHETTI, 2010, s/p.)
ANEXO B
POEIRA DE ESTRELA
(FRANCO, 2002, p.04)
Aos 11 anos fiz uma doce descoberta. Assistindo à televisão, ouvi um astrônomo afirmar que
todo o universo era formado por poeira de estrelas.
Intrigada, cheguei à escola na manhã seguinte e encontrei, ainda no corredor, o meu
professor de ciências, o Sr. Amaro. Vencendo minha timidez, perguntei àquele sujeito sisudo - sempre
sério atrás dos seus óculos fundo de garrafa – se tal assertiva era verdadeira.
Ele pensou um pouco, olhou-me de cima a baixo, arrumou os óculos com o dedo indicador
direito – o mesmo que apontava em riste nossos narizes arrebitados pela juventude – e me respondeu:
__ Há conjecturas, mas ainda está longe de ser uma verdade científica.
Colocou rispidamente os livros debaixo do braço e partiu, sem perceber que deixara morta
minha alma.
Ainda quando eu tentava me refazer da apresentação ao vocábulo CONJECTURAS, ouvi a
voz suave de Dona Dulce, a professora do Jardim de Infância que observava à distância minha
conversa com o professor Amaro.
Chegou perto de mim, pôs a mão em meu ombro e disse:
__ Minha filha, não sei se é verdade, mas que bom seria se realmente fôssemos poeira de
estrela, estilhaço de luz. Isto indicaria que não importa se somos grandes ou pequenos: a nossa sina é
brilhar.
Dona Dulce jamais soube, mas fez reviver meu espírito.
Depois ela continuou:
__ Viveríamos olhando o céu em busca de nosso passado e saberíamos todos o quanto
trabalhar é importante, pois nosso espelho seria o sol, astro maior desta galáxia, que só brilha porque
incendeia laboriosamente o seu interior. Veríamos na Terra o brilho de um diamante e nos
lembraríamos do quanto trabalhou a natureza para transformar em tesouro o carvão.
Foi-se Dona Dulce... Ficaram suas palavras...
De uma só vez a professora do Jardim de Infância mostrou-me o que pode transformar
verdadeiramente o mundo: a fantasia e o trabalho.
Hoje estamos aqui porque um dia tivemos sonhos em comum que se transformaram em
projetos e viraram luta, obstinação, trabalho árduo.
Nos encontramos há alguns anos quando éramos “quase” crianças.
Alguns de nós se tornaram irmãos de vida.
Outros, parafraseando Guimarães Rosa, na voz sábia de Riobaldo, “não nasceram para
apertarem as mãos”.
Mas o que importa a individualidade se um dia fomos iguais porque fantasiamos com um
diploma, e em muitos outros dias fomos também iguais porque incansavelmente trabalhamos para
conseguir fazer parte deste momento?
Somos agora uma só estrela.
Daqui há instantes a estrela explodirá e cada estilhaço seguirá seu rumo...
Os que serão educadores terão missão duplamente árdua, pois além de métodos teremos que
optar por caminhos: ser Amaro, viver ortodoxamente e talvez destruir algumas almas, ou ser Dulce e
conseguir equilibrar ilusão e realidade, principalmente nas encruzilhadas do aprender e do viver de
nossos alunos.
Alguns dos fragmentos deste grande astro que somos agora talvez nunca mais se encontrem
no universo, e é por isso que devemos trabalhar e trabalhar muito... Incessantemente...
Para que cada um de nós consiga, mesmo à distância, enxergar o sucesso de quem um dia fez
parte de um só corpo, compartilhou e seguiu.
Vamos transformar o mundo aquecendo-o com a luz de nosso suor...
Não só pela espera de recompensas materiais, pois estrelas não reluzem por desejarem o vil
metal. Elas cintilam porque se não o fizerem estarão entorpecidas e não serão mais a inspiração de
poetas e sonhadores.
Façamos sonhar e sonhemos mais uma vez...
Sejamos inspiração...
Trabalhemos novamente...
E quem sabe no último dia, no derradeiro dia, possamos olhar o mundo, ver como brilha e
sentir que ele é apenas o reflexo de nossa história.
ANEXO C
SOBRE IMPORTÂNCIAS
(BARROS, 2006, s/p.)
Um fotógrafo-artista me disse uma vez: veja / que o pingo de sol no couro de um lagarto é
para nós mais importante do que o sol inteiro / no corpo do mar. Falou mais: que a importância
de uma coisa não se mede com fita métrica nem / com balança nem com barômetro etc. Que a
importância de uma coisa há que ser medida / pelo encantamento que a coisa produza em nós.
Assim um passarinho nas mãos de uma criança / é mais importante para ela do que a Cordilheira
dos Andes. Que um osso é mais importante para / o cachorro do que uma pedra de diamante. E
um dente de macaco da era terciária é mais / importante para os arqueólogos do que a
Torre Eifel. (veja que só um dente de macaco!) / Que uma boneca de trapos que abre e fecha os
olhinhos azuis nas mãos de uma criança é mais / importante para ela do que o Empire State
Building. Que o cu de uma formiga é mais / importante para o poeta do que uma Usina Nuclear.
Sem precisar medir o ânus da formiga. / Que o canto das águas e das rãs nas pedras é mais
importante para os músicos do que os ruídos / dos motores da Fórmula 1. Há um desagero em mim
de aceitar essas medidas. Porém não sei se isso é um defeito / do olho ou da razão. Se é defeito da
alma ou do / corpo. Se fizerem algum exame mental em mim por / tais julgamentos, vão encontrar que
eu gosto / mais de conversar sobre restos de comida com / as moscas do que com homens doutos.
ORAÇÃO AOS MOÇOS
(BARBOSA, 1997, pp. 25-26)
A parte da natureza varia ao infinito. Não há, no universo, duas coisas iguais. Muitas se
parecem umas às outras. Mas todas entre si diversificam. Os ramos de uma só árvore, as folhas da
mesma planta, os traços da polpa de um dedo humano, as gotas do mesmo fluido, os argueiros do
mesmo pó, as raias do espectro de um só raio solar ou estelar. Tudo assim, desde os astros no céu, até
os micróbios no sangue, desde as nebulosas no espaço, até aos aljôfares do rocio na relva dos prados.
A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida
em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha
a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com
desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade
real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a
cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem.
Esta blasfêmia contra a razão e a fé, contra a civilização e a humanidade, é a filosofia da
miséria, proclamada em nome dos direitos do trabalho; e, executada, não faria senão inaugurar, em vez
da supremacia do trabalho, a organização da miséria.
Mas, se a sociedade não pode igualar os que a natureza criou desiguais, cada um, nos limites
da sua energia moral, pode reagir sobre as desigualdades nativas, pela educação, atividade e
perseverança. Tal a missão do trabalho.
Os portentos, de que esta força é capaz, ninguém os calcula. Suas vitórias na reconstituição da
criatura maldotada só se comparam às da oração.
Oração e trabalho são os recursos mais poderosos na criação moral do homem. A oração é o
íntimo sublimar−se d’alma pelo contacto com Deus. O trabalho é o inteirar, o desenvolver, o apurar
das energias do corpo e do espírito, mediante a ação contínua de cada um sobre si mesmo e sobre o
mundo onde labutamos.
O indivíduo que trabalha acerca−se continuamente do autor de todas as coisas, tomando na sua
obra uma parte, de que depende também a dele. O criador começa, e a criatura acaba a criação de si
própria.
Quem quer, pois, que trabalhe, está em oração ao Senhor. Oração pelos atos, ela emparelha
com a oração pelo culto. Nem pode ser que uma ande verdadeiramente sem a outra. Não é trabalho
digno de tal nome o do mau; porque a malícia do trabalhador o contamina.
Não é oração aceitável a do ocioso; porque a ociosidade a dessagra. Mas, quando o trabalho se
junta à oração, e a oração com o trabalho, a segunda criação do homem, a criação do homem pelo
homem, semelha às vezes, em maravilhas, à criação do homem pelo divino Criador.
Ninguém desanime, pois, de que o berço lhe não fosse generoso, ninguém se creia malfadado,
por lhe minguarem de nascença haveres e qualidades. Em tudo isso não há surpresas, que se não
possam esperar da tenacidade e santidade no trabalho.
A CIGARRA E A FORMIGA MÁ
(LOBATO, 1964, p. 14)
Já houve, entretanto, uma formiga má que não soube compreender a cigarra e com dureza a
repeliu de sua porta. Foi isso na Europa, em pleno inverno, quando a neve recobria o mundo com o seu
cruel manto de gelo.
A cigarra, como de costume, havia cantado sem parar o estio inteiro, e o inverno veio
encontrá-la desprovida de tudo, sem casa onde abrigar-se, nem folhinhas que comesse.
Desesperada, bateu à porta da formiga e implorou _ emprestado, notem! _ uns miseráveis
restos de comida. Pagaria com juros altos aquela comida de empréstimo, logo que o tempo o
permitisse. Mas a formiga era uma usuária sem entranhas. Além disso, invejosa. Como não soubesse
cantar, tinha ódio à cigarra por vê-la querida de todos os seres.
- Que fazia você durante o bom tempo?
- Eu... eu cantava!
- Cantava? Pois dance agora... - e fechou-lhe a porta no nariz.
Resultado: a cigarra ali morreu estanguidinha; e quando voltou a primavera o mundo
apresentava um aspecto mais triste. É que faltava na música do mundo o som estridente daquela
cigarra morta por causa da avareza da formiga. Mas se a usuária morresse, quem daria pela falta dela?
Os artistas - poetas, pintores e músicos - são as cigarras da humanidade.
A CIGARRA E A FORMIGA BOA
(LOBATO, 1964, p. 15)
Houve uma jovem cigarra que tinha o costume de chiar ao pé dum formigueiro. Só parava
quando cansadinha; e seu divertimento então era observar as formigas na eterna faina de abastecer as
tulhas. Mas o bom tempo afinal passou e vieram as chuvas. Os animais todos, arrepiados, passavam o
dia cochilando nas tocas. A pobre cigarra, sem abrigo em seu galhinho seco e metida em grandes
apuros, deliberou socorrer-se de alguém. Manquitolando, com uma asa a arrastar, lá se dirigiu para o
formigueiro. Bateu _ tique, tique, tique... Aparece uma formiga, friorenta, embrulhada num xalinho de
paina.
- Que quer? _ perguntou, examinando a triste mendiga suja de lama e a tossir.
- Venho em busca de um agasalho. O mau tempo não cessa e eu...
A formiga olhou-a de alto a baixo.
- E o que fez durante o bom tempo, que não construiu sua casa?
A pobre cigarra, toda tremendo, respondeu depois de um acesso de tosse:
- Eu cantava, bem sabe...
- Ah!... exclamou a formiga recordando-se. Era você então quem cantava nessa árvore
enquanto nós labutávamos para encher as tulhas?
- Isso mesmo, era eu...
- Pois entre, amiguinha! Nunca poderemos esquecer as boas horas que sua cantoria nos
proporcionou. Aquele chiado nos distraía e aliviava o trabalho. Dizíamos sempre: que felicidade ter
como vizinha tão gentil cantora! Entre, amiga, que aqui terá cama e mesa durante todo o mau tempo.
A cigarra entrou, sarou da tosse e voltou a ser a alegre cantora dos dias de sol.
IMAGENS DIVERSAS
Imagem s/autoria. Disponível em:
http://1.bp.blogspot.com/_lqngS7w
QcYA/SYoWI7JtOkI/AAAAAAA
AAPA/V_MY95vcY5A/s400/tretete
r.bmp
Acesso: 26 Ago. 2010.
Imagem s/autoria. Disponível em:
http://misleide.files.wordpress.com/2008/12/
imagem10.jpg
Acesso: 26 Ago. 2010.
Fotografia de Luísa Godoy. Disponível em:
http://www.orkut.com.br/Main#AlbumZoom?
uid=17463474567411659927&pid=12532011
83737&aid=1241411515$pid=125320118373
7
Acesso: 26 Ago. 2010.
Fotografia de Márcia Franco. Disponível
em:
http://www.orkut.com.br/Main#AlbumZo
om?uid=17463474567411659927&pid=1
229353047020&aid=1$pid=12293530470
20
Acesso: 26 Ago. 2010.