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FICHA TÉCNICA Título original: Miracles from Heaven Autora: Christy Wilson Beam Copyright © 2015 by Christy Wilson Beam Edição portuguesa publicada por acordo com Hachette Books, New York, USA Todos os direitos reservados Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2015 Tradução: João Reis Imagem da capa: Corbis/VMI Capa: Vera Espinha/Editorial Presença Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. 1. a edição, Lisboa, agosto, 2015 Depósito legal n. o 396 291/15 Reservados todos os direitos para Portugal à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730‑132 BARCARENA [email protected] www.presenca.pt

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FICHA TÉCNICA

Título original: Miracles from HeavenAutora: Christy Wilson BeamCopyright © 2015 by Christy Wilson BeamEdição portuguesa publicada por acordo com Hachette Books, New York, USATodos os direitos reservadosTradução © Editorial Presença, Lisboa, 2015Tradução: João ReisImagem da capa: Corbis/VMICapa: Vera Espinha/Editorial PresençaComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.1.a edição, Lisboa, agosto, 2015Depósito legal n.o 396 291/15

Reservados todos os direitospara Portugal àEDITORIAL PRESENÇAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730 ‑132 [email protected]

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Prólogo

Ele realiza maravilhas imperscrutáveis,milagres incontáveis.

Jó 9:10

Quando o meu marido e eu decidimos constituir uma famí lia, rezá‑mos pelos milagres normais: filhos saudáveis, um lar harmonioso, o último modelo de uma carrinha pick up com um bom sistema de ar con‑dicionado e chuva nas alturas adequadas, que caísse abundantemente nos canteiros das flores, mas nunca às sextas ‑feiras à noite, durante os jogos de futebol americano. Não esperávamos nada mais arrebata‑dor do que um pôr do Sol no Norte do Texas, nada mais celestial do que enve lhecermos juntos. A nossa definição de paraíso era um pedaço de terra isolado nos arredores de Burleson, no Texas, uma pequena vila a sul da movimentada área metropolitana de Dallas ‑Fort Worth.

O Kevin e eu vamos à igreja, somos pessoas de fé. Viven ciá mos «aguaceiros de bênçãos», como diz o velho hino reli gioso, «gotas de misericórdia caindo à nossa volta», como acontece quando nasce um bebé depois de a família ter perdido a esperança, ou quando estranhos se cruzam nos seus caminhos e algo nos seus corações lhes diz que já são amigos. Sempre acreditámos em milagres, em teoria. Para Deus todas as coisas são possíveis, dizem ‑nos, e, por vezes, muito rara‑mente, eu ouvia falar de algo que contraria as probabilidades e afasta completamente os medos.

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Agora tenho um milagre nas minhas mãos.A enfermeira entrega ‑me duas folhas impressas com uma lista de

todos os medicamente tomados pela minha filha na última vez que a trouxe ao Hospital Pediátrico de Boston — naquele momento em que ela me disse que queria morrer e ficar com Jesus no Céu, onde não há dor.

— Há três anos? — diz a enfermeira, com uma sobrancelha erguida. — Isto estará certo?

Está certo. O facto de ser impossível já não interessa.— Ora bem, Annabel — diz a enfermeira —, parece que tens

agora doze anos.A Anna confirma ‑o entusiasticamente com um aceno de cabeça,

feliz por ter doze anos, feliz por estar em Boston, feliz por estar viva. A enfermeira diz ‑lhe que se coloque em cima da balança.

— Enquanto anoto os seus valores clínicos, poderia, por favor, verificar o que está aqui? — diz ‑me a enfermeira, indi cando ‑me a lista impressa. — Preciso que veja se tem erros para que possa atua‑lizar os dados no computador. Marque apenas aqueles que ela ainda toma.

Os meus olhos percorrem a lista de cima a baixo.Prevacid (lansoprazol), um inibidor da bomba de protões; suple‑

mento probiótico; polietilenoglicol; Periactin (cipro ‑hep ta dina), um anti ‑histamínico com anticolinérgico adicional, antisserotoninérgico e agentes anestéticos locais...

É como estar a olhar para a cicatriz cirúrgica no abdómen da Anna, que agora é apenas uma linha branco ‑pálida onde levou pontos, e que foi reaberta e novamente cosida.

Neurontin (gabapentina), um anticonvulsivo e analgésico; rifa‑ximina, um antibiótico semissintético à base de rifamicina; Augmentin (amoxicilina e ácido clavulânico); cloridrato de tramadol para dor moderada a grave...

Por um momento, a longa lista esbate ‑se diante dos meus olhos. Meu Deus, pelo que o seu pequeno corpo passou!

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Hiosciamina, um alcaloide tropano e metabolito secundário; Celexa (bromidrato de citalopram), um inibidor seletivo de recaptação da serotonina...

Sorrio à enfermeira.— Ela não está a tomar nenhum destes.— Quer dizer que ela não está a tomar nenhum destes? — pergunta

ela, apontando para a primeira coluna com uma caneta.— Não, quero dizer nenhum destes — tenho nas mãos as duas

folhas. — Ela não está a tomar nada.— Uau! Muito bem. — Ela examina a lista. — Isso é realmente...

uau... isso é...Um milagre.Ela não o diz, mas não faz mal. Geralmente, as pessoas sen tem‑

‑se mais confortáveis ao chamar às pequenas coisas coincidência, ou felicidade, ou pura sorte. Os médicos usam palavras como remissão espontânea para explicar aquilo que é completamente inexplicável. Há algum tempo, tomei a decisão consciente de usar a palavra começada por «M». Eu nem sempre vi a mão de Deus nos fios entrelaçados da minha vida, mas vejo ‑a agora. Ele estava lá, no nosso início e sempre que o nosso mundo se desmoronou. Ele está connosco agora e estará no futuro desconhecido.

À luz de tudo aquilo que Ele nos deu, à luz de tudo o que acon teceu, eu não posso deixar de vos contar a nossa história.

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Capítulo Um

Erguia ‑se mais alto do que todas as árvores no campo;os seus ramos aumentaram e os seus galhos cresceram,espalhando ‑se, devido à fartura de águas.

Ezequiel 31:5

O enorme choupo ‑do ‑canadá no prado para além do caminho de gravilha de acesso à nossa casa era uma maravilha natural, uma daquelas árvores imponentes que «apenas podem ser feitas por Deus». Pensem por um momento no calor escaldante e nos escaravelhos esfo‑meados, nas geadas intensas que se formam no inverno, e nos tornados de verão que amiúde varrem a região central do Texas, em camisas rasgadas a rodopiarem sob o efeito de fortes tempestades na costa do golfo do México. Durante cem ou mais anos, aquele choupo ‑do‑‑canadá foi um lar para pássaros, aranhas e esquilos, e assistiu ao cul‑tivo e à colheita nos campos circundantes. Permaneceu ali como uma sentinela à medida que as estradas eram abertas por entre os velhos carvalhos e se construíam casas na vastidão dos campos agrícolas.

Um gigante calvo com folhas esparsas e em forma de cora ção, que ergueu uma cúpula de galhos secos a vinte e oito metros do chão. Em volta da base da árvore, nós duros sobressaíam por entre a vegetação rasteira. Raízes grossas e retorcidas prendiam ‑no ao solo. O tronco era tão largo que uma pessoa sozinha não o conseguiria abraçar, mas, três anos antes, Kevin e eu poderíamos tê ‑lo rodeado se déssemos as mãos às nossas filhas — Abigail, de onze anos, Annabel, de nove anos, e

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Adelynn, de sete anos —, e era resumidamente assim que abordávamos as questões complicadas da nossa vida familiar. Quando nos surgia algo demasiado grande para ser envolvido com os braços, Kevin, eu e as raparigas tínhamos apenas de nos unir uns aos outros.

A cerca de nove metros acima da base do choupo, dois ramos maci‑ços estendiam ‑se como braços abertos. Um dos ramos formava uma espécie de ponte larga para as árvores mais pequenas que se erguiam ao lado, mas o outro ramo partira ‑se e repousava no chão. Teria sido pro‑vavelmente arran cado e atirado por terra por uma forte rajada de vento numa tempestade ocorrida muitos anos antes. O ramo caiu por entre os galhos mais finos e aterrou com força, sulcando a terra. Bem no cimo do largo tronco da árvore abria ‑se um enorme buraco: uma abertura com cerca de 1,20 metros de altura e um metro de largura. Vista do solo, parecia a palma de uma mão enrugada em forma de concha.

A Bíblia menciona que Deus prepara um grande peixe para engolir Jonas e levá ‑lo ao outro lado de um mar revolto. Podemos pensar se Ele não terá começado a preparar aquela árvore muito antes de qualquer um de nós nascer. Podemos imaginar Deus sussurrando ao coração do choupo: Abre caminho. E ele abriu.

Passaram ‑se décadas e a árvore manteve o seu segredo.

Em 2002, o ano em que a Annabel nasceu, o Kevin e eu comprá‑mos os doze hectares em volta do bosque de choupos ‑do ‑canadá e começámos a construir uma casa. A Abbie era uma criancinha inquieta; a Adelynn era uma prece em que ainda não tínhamos pensado. Eu estava arrebatada pelo alegre ato de malabarismo que ocorre quando «a bebé» se torna «as crianças». O Kevin acabara de se juntar a uma bem ‑sucedida equipa médica na Clínica Veterinária de Alvarado, onde tratavam animais de grande e pequeno porte — desde vacas a caniches, e até um canguru numa ocasião memorável. Ele sente compaixão por todas as criaturas que lhe entram pela porta, bem como pelos seus donos, e por vezes trazia para casa um cachorro vadio ou vítima de abusos: o Trinity, o Shadow, o lãzudo e branco Cypress, o inteligente

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River, o desgrenhado Arnold e o querido Jack, parte pinscher minia‑tura, parte gladiador, que tomou como missão manter ‑se em guarda sempre que a Annabel ficava doente.

Quando nos mudámos para a nossa nova casa, o Kevin pensava em localização, localização, localização. Eu pensava em escolas, baby‑‑sitters, consultório do pediatra. Ele pensava num negócio familiar; eu pensava no negócio da família — e é por isso que fazemos uma boa equipa. Ora, pensando em 2011, nenhum de nós imaginava que a nossa vida nos iria empurrar para salas das urgências hospitalares e consul tórios de especialistas em doenças raras. Entubações, TAC, biopsias e recolhas de sangue — são coisas que parecem inevitáveis para os nossos avós envelhecidos, mas para uma criança? Impensável! O Kevin e eu planeámos uma vida feliz na nossa pitoresca proprie‑dade, com as nossas filhas perfeitas brincando às escondidas entre os velhos carvalhos, balançando nos vigorosos ramos do choupo e criando o seu próprio lar num forte solidamente construído na árvore.

Aquele alto choupo ‑do ‑canadá, em particular, era uma aven tura da família Robinson suíça à espera de acontecer: ginásio na selva, um cas‑telo de encantar e um safári de animais selvagens, todos num só. Abbie e uma amiga tinham unido, como se fossem macacos, uma das árvores vizinhas mais pequenas à ponte natural, onde se sentavam e examina‑vam o mundo e imaginavam todo o tipo de coisas, e de onde regres‑savam com um adorável ninho de passarinho abandonado no início do inverno. Este tesouro fantástico fascinava a Annabel e a Adelynn, mas a Adelynn era demasiado pequena para trepar aos choupos e a Annabel não se sentia suficientemente bem para brincar lá fora.

— Poderão ser os medicamentos a causar ‑lhe as enxa quecas — dis‑se eu ao Kevin —, mas, se lhe tirarmos algum deles, arriscamo ‑nos a que ela tenha outra oclusão no intestino.

— Não arranjemos problemas — disse ele. — Ela vai ter a con‑sulta de rotina em Boston esta semana. Se se passar alguma coisa, eles darão conta disso.

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Saímos de Dallas ‑Fort Worth de avião, a Anna e eu, e à medida que sobrevoávamos a cidade víamos pequenas formas geométricas bem lá em baixo. O tráfego intenso transformava ‑se num formigueiro concor‑rido. As quintas e campos de petró leo espalhavam ‑se como uma manta de remendos de padrão esbatido. A Annabel pousou a testa na janela do avião e observava tudo a desaparecer por baixo das nuvens, os seus pensamentos muito longe dali, os seus olhos difusos com a familiar dor de uma enxaqueca persistente. Ela fizera esta viagem vezes suficientes para saber que conseguiria obter das hospedeiras uma Sprite extra, com a sua ternura e o seu sorriso espontâneo. Ela sabia também o que a esperava no Hospital Pediátrico de Boston: dias de sondas e apalpa‑ções, recolhas de sangue e ecografias a todo o corpo, testes invasivos que a deixavam cansada e frustrada.

— É só por um dia — recordei. — Regressaremos a casa antes que dês por ela e então, de repente — estalei os dedos —, será Natal.

Sempre pronta para pensar de modo positivo, a Annabel anuiu com a cabeça de modo feliz e ergueu o meu braço, colo cando ‑o em volta dos seus ombros, e eu passei o meu polegar pela sua clavícula, perto do sítio onde um CCIP — um cateter central inserido perifericamente — fora colocado para lhe fornecer nutrição diretamente na corrente sanguínea durante as terríveis ocasiões em que uma pseudo ‑oclusão intestinal crónica tornou impossível ao seu pequeno corpo digerir comida ou mesmo água de modo normal. Simpli ficando, há uma pseudo ‑oclusão intestinal crónica quando algo não se move corretamente do ponto A ao ponto B nos intestinos. Está, por vezes, relacionada com o sistema nervoso ou, outras vezes, com os músculos; o problema específico da Annabel afetava a capacidade de o seu sistema nervoso «disparar» em sincronia. Frequentemente, as crises agudas parecem ‑se e comportam‑‑se de forma similar à oclusão intestinal. Daí o nome pseudo ‑oclusão.

Lidávamos há quatro anos com a realidade brutal por trás de todo aquele palavreado médico. Lutáramos muito e de forma árdua, pri‑meiro para chegar àquele terrível diagnóstico, e depois na tentativa de encontrar alguma esperança e ajuda significativa para a nossa Anna.

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Descobrimos, finalmente, o Dr. Samuel Nurko, diretor do Centro de Doenças Gas trointestinais Funcionais e de Motilidade no Hospital Pediá trico de Boston e professor adjunto de Pediatria na Facul dade de Medicina de Harvard. É considerado um dos maiores peritos mundiais em pseudo ‑oclusão intestinal crónica, mas a Anna e os seus outros pacientes adoram ‑no pelo seu largo e rápido sorriso e pelas suas grava‑tas do Simão da Rua Sésamo. Ele foi uma balsa salva ‑vidas. Apegámo‑‑nos a ele, apesar de as despesas do tratamento e das viagens nos levarem todo o dinheiro. Esta viagem, em particular, fora financiada pela venda da nossa bela carrinha pickup, cujo pagamento em presta‑ções o Kevin orgulhosamente acabara de liquidar poucos anos antes.

É difícil proporcionar a mesma qualidade de vida a crianças com esta doença crónica e possivelmente fatal; sentíamo ‑nos desespera‑dos e ansiávamos por encontrar algo que dimi nuísse a dor da Anna e lhe possibilitasse viver de forma minimamente semelhante à normal. O Dr. Nurko era um dos poucos médicos nos Estados Unidos que receitavam cisaprida, um medicamento que fora oficialmente retirado do mercado devido aos riscos que a sua ingestão poderia causar no cora ção e no fígado. As viagens regulares a Boston eram cruciais para obter o equilíbrio entre os vários riscos clínicos e as fases de bem ‑estar.

O Kevin, com os seus conhecimentos médicos e cientí ficos, con‑segue ter uma outra perspetiva de tudo isto. Já eu tendo a encarar as coisas pelo lado pessoal. Como mãe, como poderia não fazê ‑lo? Quero dizer, pensem em todas as prioridades requeridas pelos cuidados a prestar a uma criança quando nos concentramos nas necessidades bási‑cas da vida. Preocupamo ‑nos com tudo o que é essencial ao bem ‑estar dos nossos filhos. Para se manter vivo, o nosso corpo tem de processar ade quadamente três coisas: ar, sangue e comida. Ter apenas dois destes três elementos não será suficiente. Enquanto qualquer problema grave nos primeiros dois nos mata fulminantemente, um problema grave no terceiro causa uma agonia lenta.

Quando o nosso corpo é gravemente afetado por alguma falha no sistema de processamento de comida, qualquer ajuda médica

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disponibilizada é, na melhor das hipóteses, humilhante e, na pior, um ataque inconcebível ao nosso bem ‑estar físico e emocional. Annabel percorrera um longo caminho em direção a esta segunda possibilidade. Este terrível dragão atacou ‑a feroz e incansavelmente. O Kevin e eu não o podíamos eliminar e isso despedaçou ‑nos o coração.

Apesar de toda a dor e perturbação, dos esforços para acompanhar as aulas e da consequente diminuição de aproveita mento escolar, enquanto as suas irmãs tinham bons resultados, a Annabel revelara um género de resignação orgulhosa que posso apenas descrever como uma graça divina. Durante os primeiros dois anos, ao receber más notícias e reveses uns atrás dos outros, o Kevin e eu desenvolvemos uma carapaça para podermos reagir aos mais recentes resultados da bateria de testes a que ela se submetia. A Annabel era, no entanto, otimista em relação aos novos protocolos de tratamento e tinha uma postura filosófica quanto aos que falhavam. Ela suportava estoica‑mente as agulhas, os tubos e os elétrodos e fazia o melhor que podia para cooperar como uma paciente ‑modelo em 99% do tempo. Ela exalava paz e alegria, criando um íman de gentileza e amor. Estávamos rodeados por um círculo íntimo de amigos e familiares que cozinha‑vam e rezavam e faziam tudo o que podiam por nós, e que apareciam de imediato a qualquer aviso em cima da hora para tomarem conta da Abbie e da Adelynn.

No aeroporto de Boston, fomos recebidas pelos nossos bons ami‑gos Beth e Steve Harris, que nunca nos deixaram sair do aeroporto e enfrentar sozinhas a cidade. Conhecemo ‑los através da mulher do pastor que nos casou, a mim e ao Kevin. Ela rezava muito pela nossa família, pelos esforços da Anna, e quando me ouviu dizer que iría‑mos a Boston, contactou os seus bons amigos Beth e Steve, que nem uma única vez permitiram que chegássemos ao aeroporto sem termos alguém à nossa espera e nos desse boleia até ao hotel.

A Beth prendeu a Annabel nos seus braços e dirigimo ‑nos para a saída do aeroporto.

— Estás pronta para o Natal? — perguntou a Beth.

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— Este ano vamos celebrá ‑lo de modo discreto — disse eu. — Em família.

Não seria tão discreto quanto parece, é claro. As férias da família Beam são muito ao género de «atravessar o rio e percorrer os bos‑ques»: uns dias antes do Natal com os meus pais (Maw Maw e Paw Paw), em Wichita Falls; a noite de Natal com os pais do Kevin (Gran Jan e P Paw), em Houston, e a noite de Ano Novo com a Nonny, a avó do Kevin, na sua casa à beira ‑mar, em Corpus Christi.

— Bem, isso parece ser muito divertido, não é? — disse a Beth.— É mesmo muito divertido — afirmou a Annabel. Ela mano brou

habilmente a sua mala de rodas na escada rolante, mostrando ‑se uma viajante experiente.

Segurei ‑a pelo cotovelo e disse:— Anna, querida, para um momento e veste o teu casaco antes de

sairmos.Ela vestia uma T ‑shirt cor ‑de ‑rosa com uma borboleta brilhante e

um casaco leve de manga curta com fecho de correr à frente — a sua demonstração favorita do que para ela estava na moda nessa altura —, o que era perfeito para um dia soalheiro de dezembro em Dallas ‑Fort Worth, mas não tanto em Boston. Quando ela parou para vestir o seu impermeável quente, reparei que durante o voo a pequena T ‑shirt da borboleta ficara mais justa à sua barriga inchada. Tive uma sensação inquietante na nuca.

No aeroporto, tínhamos à nossa espera o Steve, que abraçámos calorosamente.

— Quantos dias ficarão por cá? — perguntou. — Terão tempo para jantar connosco? — O Steve e a Beth eram uns magníficos compa‑nheiros de jantar, pois conheciam bem as limitações dietéticas da Anna, quando ela conseguia comer alimentos sólidos.

— Desta vez apenas por uma noite — disse eu. — É só um check up de rotina, análises sanguíneas e eletrocardiograma para ter a certeza de que os medicamentos não lhe estão a afetar o coração. É só isso. — Fiz um gesto ligeiro com a mão. — É entrar por uma porta e sair por outra.

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Eu não permitia que nenhuma outra possibilidade nos ensombrasse. Não dessa vez, porque era esse o plano e o Kevin e as meninas espe‑ravam que voltássemos a casa e vá lá, Deus, é Natal!

Parece ‑me, no entanto, que o nosso dragão de estimação não rece‑beu essas informações.

— A Annabel precisa de ser internada — disseram ‑me na manhã seguinte. — Não gostamos do que estamos a ver. Temos de verificar o que se passa no aparelho digestivo. Ela está pálida, muito inchada e a enxaqueca crónica é outra questão problemática.

— Entendo a necessidade de mais análises — disse eu cui da do‑samente. — O problema é que ela tem passado muito tempo no hospital nos últimos dois anos (mesmo muito tem po), e embora ela seja uma resistente, vai ficar devastada. Além disso, na passada semana estava tudo normal: normal para ela, quero eu dizer. Tão bem quanto pode estar. Ela sentia a dor crónica, mas comia e bebia e o seu sistema parecia funcionar relativamente bem. Este checkup deveria ser, supos‑tamente, de rotina. Por favor, se puderem tratar a questão aguda, façam apenas qualquer coisa quanto à dor e depois deixem ‑na ir; podemos consultar o doutor Siddiqui, em Austin. Ele estudou com o doutor Nurko. Eles trabalham em grande proximidade. E muito perto de nossa casa temos o nosso fantástico pediatra, o doutor Moses, que cuida da Anna desde que ela nasceu.

Esforcei ‑me muito para não parecer estar a suplicar. Porém, eu estava mesmo a suplicar. A suplicar àquele médico, a suplicar a Deus, eu até teria suplicado ao Pai Natal da esquina se isso servisse de alguma coisa.

— Eles quiseram interná ‑la — disse eu pelo telefone, nessa noite, ao Kevin. Senti o seu profundo suspiro no outro lado da linha. Ele conhecia a rotina tão bem quanto eu, assim como a Annabel. Ela começaria em regime NPO — non per os —, o que significa sem nada para comer ou beber. Começaram a utilizar alimentação intra‑venosa para a reidratar e deixar que os intestinos descansassem. Em seguida, dariam lugar aos preparativos para o exame invasivo do trato

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gastrointestinal superior e inferior, ao clister de bário e à colo nos‑copia, para se certificarem de que não se aproximava outra perigosa oclusão.

— Que nível de dor sente ela? — perguntou o Kevin.— Ela diz seis ou sete, mas sabes como ela é forte. Ela diz sempre

um número abaixo.— Como é que está o ânimo dela?— Não muito bom — disse eu. — Nunca a vi assim, Kevin. Ela

fica simplesmente a olhar para a televisão, não se levanta para olhar pela janela ou ir para a sala dos brinquedos, não fala com ninguém...

— Mãe — gemeu Annabel —, arranjas ‑me uma compressa térmica para o estômago?

— Claro que sim, querida. — Passei ‑lhe o meu telemóvel. — Toma, fala com o pai enquanto vou buscá ‑la à sala de enfermagem ao fundo do corredor. Será mais rápido do que tocar a campainha.

Quando regressei com a compressa térmica, o pai fizera ‑a rir um pouco. Ela, contudo, estava ainda apática para o que costuma ser a habitual Annabel, e o meu coração parou com o som da sua gargalhada meiga. Eu ajudei ‑a a colocar a compressa térmica e ela passou ‑me o telemóvel.

— É melhor desligares — disse eu ao Kevin. — Começas a traba‑lhar bem cedo de manhã.

— Vai correr tudo bem, querida — disse o Kevin, mas consegui per ceber que ele não acreditava nisso mais do que eu. — Amo ‑te, Christy.

— Eu também te amo.— Diz à Anna que a amo. Eu já lho disse, mas... Diz ‑lhe outra vez.— Assim farei — disse eu. — Diz à Abbie e à Adelynn que tenho

imensas saudades delas. — Elas também têm saudades tuas.— Diz ‑lhes que escovem os dentes. E usem o fio dental. E diz à

Abbie que tire o nariz do livro que está a ler e que te ajude com o jantar.— Tenho tudo em andamento. Não te preocupes com isso.

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Dissemos «amo ‑te» uma vez mais. Talvez mais do que uma vez. Desliguei o telemóvel, diminuí as luzes, descalcei os sapatos e deitei ‑me na cama da Anna, reconfortando ‑a, aproximando o seu pequeno corpo quente da minha barriga, como se pudesse aí abrigá ‑la e pro tegê ‑la.

— Os corredores do hospital estão todos decorados com um milhão de luzes cintilantes de Natal — disse eu, acariciando ‑lhe o cabelo e afastando ‑o da testa. — Depois de dormires um pouco, iremos dar uma voltinha.

— Não tenho vontade de fazer isso — ela parecia muito agastada e triste.

— Oh, vá lá! Vamos ver os corredores, certo? Aqui há corredores que duram dias a percorrer, sou eu que to digo.

— Não, obrigada.— Vemos se eles têm o Disney Channel? Talvez aquele programa

com a Selena Gomez. Ou eu poderia ler ‑te até adormeceres. Gostarias que eu o fizesse?

— Não.— Annabel... minha querida filha...Eu senti a sua respiração no meu peito e ela, pela primeira vez na

sua longa e árdua viagem, rendeu ‑se a um choro profundo e incon‑solável. Um oceano de mágoa parecia engoli ‑la, onda após onda de lágrimas amargas. Toda a minha alma chorou com ela, mas contive as minhas lágrimas, tentando dar ‑lhe algo sólido a que se agarrar, encorajando ‑a a respirar, beijando ‑lhe a cabeça, passando a mão sobre a compressa térmica no inchaço duro da sua barriga. Cerrei os dentes numa oração fervorosa e silenciosa: Por favor, Senhor, por favor, deixa que eu fique com as dores. Senti ‑las ‑ei por ela, Senhor. Farei qualquer coisa se tu, por favor, por favor, me deixares ficar com elas. Oh, Deus, tu deste a Agar e ao seu bebé água no deserto; peço ‑te, peço ‑te, tem misericórdia...

Ela chorou durante muito tempo, soluços avassaladores inter rom‑pidos por questões genuinamente perplexas: Porque sou assim? Porque não posso ser como as minhas irmãs? Como pode isto continuar a

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acontecer quando muitas pessoas de fé se lembraram tantas vezes de mim nas suas orações? Eu não tinha respostas para ela. Eu própria colocava as mesmas questões!

O seu choro terminou, por fim, em soluços exaustos. Pare cia des‑pedir ‑se assim do dia, todo o seu corpo frágil e febril; a energia elétrica e frenética que faz da Annabel o que ela é parecia dissipar ‑se a cada suspiro silencioso. Permaneci deitada, atenta a qualquer ruído na sala das enfermeiras ao fundo do corredor, o suave pingue pingue do soro junto à cama. Pensei que a Annabel adormecera.

— Mãe... só quero morrer e ir para o Céu e estar com Jesus onde não há dor.

Uma onda de choque gelado percorreu ‑me.— Annabel... — Hesitei em busca da resposta certa. — Se tu... se

tu fosses para o Céu, não estarias comigo nem com o pai. Eu ficaria com uma grande dor na alma. Eu ficaria muito triste.

— Não, mãe — disse ela sem hesitação —, tu matar ‑te ‑ias e irias comigo.

— Anna... — não me ocorreram mais palavras.As suas palavras foram muito frontais, muito pragmáticas e firmes,

um sentimento obscuro saído de um espírito imensamente luminoso. Agoniada, estonteada pela tristeza, tomei consciência do seguinte: ela pensara naquilo, considerando pragmaticamente todos os pontos de vista. Ela pensara em tudo.

Quando Annabel adormeceu, esgueirei ‑me para o corredor e liguei ao Kevin.

— Fisicamente, ela não está pior do que já esteve no passado — dis‑se ‑lhe eu —, mas o seu estado mental assusta ‑me.

Pensando agora, em retrospetiva, no assunto, não sei porque fiquei tão surpreendida com o seu desejo — o seu pedido — de par‑tir e ficar com Deus. A Annabel é uma pessoa realista cujo nome do meio é Faith*. Porque é que ela não gostaria de terminar aquela luta

* Em português, Fé. (NR)

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prolongada e horrível? Fui eu quem lhe falou de Deus e Jesus e do dia límpido do Céu. Eu sabia que ela estaria a salvo aí, livre de toda a dor e sempre feliz com o seu Salvador, mas, com o meu coração egoísta, eu queria tê ‑la comigo. Com toda a minha alma, eu desejava que ela continuasse connosco.

Por favor, Deus, por favor, não faças isto. Oh, Jesus, dá ‑lhe força para continuar.

Nos dias seguintes, vieram fisioterapeutas que a fizeram sair da cama, e uma psicóloga pediátrica que a encorajou a falar sobre os seus sentimentos. Depois do período NPO, durante o qual se mostraram satisfeitos por não haver nenhuma oclusão e por o seu sistema diges‑tivo ser obrigado a funcionar novamente, as enfermeiras e eu faláva‑mos com ela e pedíamos ‑lhe que comesse e bebesse, mas ela continuou com a alimentação intravenosa como sua única fonte de nutrição e hidratação. Era capaz de se mexer, comer, beber, brincar — poderia até ter saído da cama; escolheu não fazê ‑lo. A Annabel normalmente adorava que a Beth, que era calorosa, elegante e divertida, a visitasse, ficando com ela algum tempo, o que me permitia dar um salto ao hotel e tomar um duche. Mas agora ela queria apenas dormitar, e exigia a minha presença ao seu lado enquanto dormia.

— Sabes quantas pessoas rezam hoje por ti? — dizia ‑lhe eu todas as manhãs. — Imensas. A Maw Maw e toda a sua turma de catequese em Wichita Falls rezam por ti. O Paw Paw e todos os outros diáconos da igreja rezam por ti. A Gran Jan e o P Paw e a Nonny e todos os nossos amigos e família...

Afaguei ‑lhe a cabeça, recitando essa litania de amor, esperando que ela sentisse as suas orações em volta dela como uma grande for‑taleza.

O Dr. Nurko tivera de se ausentar por razões de natureza familiar, por isso, em vez de me sentar com ele na sala de brinquedos do hospi‑tal, sentei ‑me na ponta de uma mesa de reuniões diante de toda a equipa médica. Sobre a mesa estavam espalhados mapas e exames com toda a informação clínica. Essa foi a primeira vez em que o ânimo da Anna

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quebrou seriamente, e agora o seu estado de espírito era tão débil e terrífico quanto a doença, que, ameaçadora, aguardava o momento de atacar os seus intestinos.

— Estamos muito preocupados — disse alguém.Acenos afirmativos de cabeça a toda a volta, e um sombrio coro

de «Muito preocupados». Ansiei pelo sólido conforto que me transmitia a presença impertur‑

bável do Kevin ao meu lado. Desde o início, eu era a mão protetora no comando. Eu não tinha problemas em incomodar quem quer que fosse e chamar a atenção para a Annabel, mas o Kevin sabia quais eram as perguntas certas a fazer. Ele falava a língua dos diagnósticos e tinha as credenciais que lhe alteravam o tom de voz. Eles chamavam ‑me «mãe» e ofereciam ‑me um sorriso complacente; ao Kevin chamavam «doutor» e davam ‑lhe respostas.

Propuseram uma série de estratégias, incluindo a ideia de que deve‑ríamos reduzir a dose de cisaprida e acrescentar um antidepressivo, mas, antes que pudéssemos verificar se isso iria resultar, aconteceu a melhor coisa que poderia ter acontecido.

Naquela manhã, depois de o Kevin e eu falarmos, ele desligou o seu telemóvel, desceu as escadas rapidamente e gritou:

— Abigail! Prepara as malas para ti e para a Adelynn.Ela sabia o que tinha de fazer; ela e a Adelynn eram frequentemente

arrancadas da cama ou da escola para ficarem em casa de amigos ou de familiares enquanto o Kevin e eu levávamos a Annabel às urgências. Em poucos minutos ela preparou as suas coisas e as da irmã e ficaram prontas para sair. Dirigiram ‑se à velha carrinha a gasóleo que o Kevin trouxera emprestada da clínica veterinária. Era uma substituta ruidosa da silenciosa carrinha para que ele tanto trabalhara, mas não obstante sentia ‑se grato por ter uma viatura à sua disposição.

— Para onde vamos? — perguntou a Abbie ao subirem para a carrinha.— Para Boston.O Kevin conduzia apreensivo até ao aeroporto, que ficava a uma

hora de distância, e, enquanto seguiam pela estrada, a Abbie tirava da

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car teira dele um cartão de crédito atrás de outro e lia ‑lhe os números no verso para que ele pudesse telefonar para o banco a pedir crédito sufi‑ciente para comprar bilhetes de avião para ele e para as meninas. Nunca saberemos ao certo o que o levou a fazer isso. O Kevin orgulhava ‑se imenso da sua autossuficiência. Ele batalhara para triunfar nos estudos, estudara muito, obtivera excelentes resultados; construíra uma sólida carreira, que lhe permitia auferir um bom salário e proporcionar ‑me a mim e às nossas filhas uma vida desafogada. Ele empenhava ‑se em ensinar ‑lhes, através dos seus exemplos, coisas sobre a ética de traba‑lho, integridade e autossuficiência. Ele é um homem terra a terra. Mas não conseguia aguentar a ideia do que estava a acontecer em Boston, tão longe, sem poder ajudar a Annabel.

Foi muito humilhante, como ele me disse posteriormente, entrar naquela pickup ferrugenta e emprestada apenas com dez dólares no bolso e encostar o telemóvel à orelha para pedir a pessoas desco‑nhecidas que lhe dessem crédito enquanto a filha escutava, de olhos arregalados, tentando ajudá ‑lo. Tê ‑la ali como testemunha tornou a situação mil vezes pior. Contudo a Abbie tem uma alma sábia, disse‑‑lhe eu; ela é suficientemente esperta para saber que não há homem mais forte do que aquele que se dispõe a pôr de lado o orgulho pela sua família. Por fim, o Kevin conseguiu ouvir palavras esperanço‑sas de uma funcionária de uma das companhias dos cartões de cré‑dito. Na verdade ela não podia aumentar ‑lhe o plafond, mas disse ‑lhe para tentar.

— Nunca se sabe — disse ela. — Pode ser que passe.Que Deus lhes pague estes pequenos favores, como se costuma dizer.Já tarde nessa noite, a Annabel estava deitada na sua cama de

hospital desperta mas sem revelar interesse pela televisão ligada. Quando o Kevin e as meninas irromperam pela porta do quarto, ela ficou com pletamente surpreendida. O olhar no seu rosto (e no meu, aposto!) era indescritível. O Kevin tomou ‑a nos braços enquanto a Abbie e a Adelynn correram até mim para me abraçar como coalas subindo uma árvore.

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— Espeeeeerem lá um instante! — A Annabel piscou os olhos, tentando compreender a situação. — Estou em Boston. O que estão vocês aqui a fazer?

— Viemos ver ‑te! — A Abigail e a Adelynn riram ‑se e puse ram‑‑se em cima da cama para lhe mostrarem, os desenhos com votos de melhoras que tinham feito para ela no avião. — Queremos que fiques melhor!

O Kevin e eu olhámos um para o outro por cima das suas cabeças cor de mel. E então a Abigail — sempre a grande instigadora do bando das irmãs Beam — conseguiu em trinta segundos o que médicos, enfermeiras, terapeutas e eu não tínhamos conseguido fazer durante toda a semana.

— Mostra ‑nos a sala dos brinquedos, Anna — disse ela. — Há aqui uma, não há?

— Sim, mas não me apetece... — Vamos. — A Abbie não aceitaria aquela resposta. — Anda lá!E assim, de modo tão simples, a Annabel saiu da cama, manobrando

o aparelho do soro como uma experiente profissional e saiu porta fora; todos nós a seguimos como se fosse um corso carnavalesco. Já passava das onze horas da noite, mas as enfermeiras ficaram tão entusiasmadas por verem uma centelha de vida na Annabel que abriram a sala dos brinquedos e deixaram que as irmãs Beam tomassem conta do local, apoderando ‑se de tudo, falando e dando risadinhas. A Annabel estava demasiado fraca para qualquer tipo de ousadia física, mas a Abbie e a Adelynn instintivamente «levaram a montanha a Maomé», criando uma brincadeira que incluía o estranho aparelho do soro e recriava todos os objetos coloridos que enchiam a pequena sala dos brinquedos.

— Abbie — disse a Annabel —, fazes a cena da bruxa?A Adelynn pôs ‑se logo ao seu lado.— Sim! Abbie, faz a brincadeira da bruxa! Por favor, por favor,

por favor?!A impressionante atuação a solo da Abbie começou (como sempre

acontecia quando a Anna estava no hospital) com ela a interpretar

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a meiga e jovem criada que se via, por algum motivo, obrigada a servir uma horrível bruxa, também ela interpretada pela Abbie, que, por algum motivo não especificado, pretendia fazer mal à criada. No entanto, tudo o que a bruxa tentava fazer corria mal de um modo espe‑tacularmente rebuscado. Ela tropeçava na vassoura. A água fervia até transbordar da chaleira. Uma coruja enfiava ‑se no seu cabelo. Quando o Kevin e eu recuámos para o canto da sala para falar sobre «as coisas difíceis», a pobre bruxa deparava ‑se com um desastre atrás do outro, e a Annabel e a Adelynn quase se desmanchavam de tanto rir.

Uma vez que, nessa ocasião, havia mais «coisas difíceis» do que habi tualmente, acabei por dizer às meninas que podiam ir ver a gigan‑tesca árvore de Natal na entrada do hospital.

— Obedeçam à Abbie, está bem? Adelynn, estou a falar a sério. Fazes o que a Abbie disser. Não façam barulho no corredor. Não inco‑modem as enfermeiras. Abbie, leva o meu telemóvel e liga para o do pai de dez em dez minutos para dizer que está tudo bem, certo?

A Annabel hesitou um pouco.— Mãe, não me sinto bem. Só me quero deitar.— Anna, é uma aventura — disse a Abbie. — Além disso, sentir‑

‑te ‑ás melhor se caminhares um pouco. Fingiremos estar num filme passado em Câââmmmaaaraaa leeenntaaa!

Agora tratava ‑se de uma brincadeira e a Annabel não oferecia resis‑tência. Sorri para a Abbie e sussurrei ‑lhe: — És um génio!

Enquanto elas percorriam o corredor, dando risadinhas e afas tando‑‑se através do ar pesado, encostei ‑me à parede.

— Oh, querido... — disse eu, não sabendo por onde começar.O Kevin tinha uma expressão séria no rosto, mas a emoção hume‑

deceu ‑lhe os olhos.— Vim para levar a minha família de volta a casa — disse ele.Caminhei em direção aos braços deste homem que amo, em direção

ao único lar de que alguma vez precisarei.

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