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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 139, setembro 2005 EDITORIAL L acan faz uma comunicação à Sociedade Francesa de Filosofia, em fevereiro de 1957, pautando sua fala pela pergunta: o que a psicanálise nos ensina, como ensiná-lo? O acento não está sobre “o que” a psicanálise nos ensina, e sim sobre como transmitir algo a partir dos efeitos desse ensino. Evidentemente, ele não pretendeu oferecer uma ilustração de seu modo de ensino. Trabalhou nas questões de fundamentos da clínica, formulando, naquele momento, a questão de que se o sintoma pode ser lido, isso é devido ao fato de já estar inscrito, ele próprio, em um processo de escrita: enquanto formação particular do inconsciente, o sintoma não é significação, mas a relação desta significação com uma estrutura significante que a deter- mina. Este Correio reúne trabalhos apresentados na Jornada do Percurso de Escola da APPOA, realizada em julho deste ano, momento de conclusão de três anos de trabalho compartilhado. Efeitos do percorrido, falas desde a implicação de cada um. Entre os textos situam-se interrogações em torno da psicose, do ato de escrita, da constituição subjetiva, de fragmentos da clínica e dos discursos que nos vêm desde a cultura. Sobre a implicação, voltamos a encontrar a produção de Lacan ao final de seu ensino, novamente sobre o sintoma, já em outra via. Sinthoma: responsabilizar-se por ele. Não é demais, quanto à responsabilidade, reler aquele momento de produção: “Qualquer retorno a Freud que dê ensejo a um ensino digno desse nome só se produzirá pela via mediante a qual a verdade mais oculta mani- festa-se nas revoluções da cultura. Essa via é a única formação que pode- mos pretender transmitir àqueles que nos seguem. Ela se chama: um esti- lo.” (A psicanálise e seu ensino, 1957; Escritos, p. 460).

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Page 1: EDITORIAL - APPOANa manhã do sábado, dia 9 de julho passado, aconteceu na sede da APPOA mais uma Oficina de Topologia. Desta vez, entre tecidos, papéis e tesouras, um grupo animado

1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 139, setembro 2005

EDITORIAL

Lacan faz uma comunicação à Sociedade Francesa de Filosofia,em fevereiro de 1957, pautando sua fala pela pergunta: o que apsicanálise nos ensina, como ensiná-lo? O acento não está sobre

“o que” a psicanálise nos ensina, e sim sobre como transmitir algo apartir dos efeitos desse ensino.

Evidentemente, ele não pretendeu oferecer uma ilustração de seu modode ensino. Trabalhou nas questões de fundamentos da clínica, formulando,naquele momento, a questão de que se o sintoma pode ser lido, isso édevido ao fato de já estar inscrito, ele próprio, em um processo de escrita:enquanto formação particular do inconsciente, o sintoma não é significação,mas a relação desta significação com uma estrutura significante que a deter-mina.

Este Correio reúne trabalhos apresentados na Jornada do Percursode Escola da APPOA, realizada em julho deste ano, momento de conclusãode três anos de trabalho compartilhado. Efeitos do percorrido, falas desde aimplicação de cada um. Entre os textos situam-se interrogações em tornoda psicose, do ato de escrita, da constituição subjetiva, de fragmentos daclínica e dos discursos que nos vêm desde a cultura.

Sobre a implicação, voltamos a encontrar a produção de Lacan aofinal de seu ensino, novamente sobre o sintoma, já em outra via. Sinthoma:responsabilizar-se por ele.

Não é demais, quanto à responsabilidade, reler aquele momento deprodução:

“Qualquer retorno a Freud que dê ensejo a um ensino digno dessenome só se produzirá pela via mediante a qual a verdade mais oculta mani-festa-se nas revoluções da cultura. Essa via é a única formação que pode-mos pretender transmitir àqueles que nos seguem. Ela se chama: um esti-lo.” (A psicanálise e seu ensino, 1957; Escritos, p. 460).

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PSICANÁLISE E VIDA COTIDIANA UM SARAU PARA CURIOSOS, XERETAS E DESAVISADOS

A história da APPOA conta com inúmeras iniciativas de interlocuçãocom os diferentes campos do saber que fazem fronteira com a Psicanálise.Tendo já estabelecido uma tradição - quinze anos talvez já nos autorizem aouso deste substantivo - no que concerne ao debate com outros saberes sobreos impasses de nosso tempo, sentimos, neste momento, o desejo de adensarnosso diálogo. Pensamos naqueles que, instigados pelo legado freudiano, sãocuriosos o suficiente para uma aproximação da psicanálise; porém, ainda nãoa tendo empreendido, encontram-se em dúvida sobre sua viabilidade. Quere-mos convidar aos contaminados pela peste freudiana que desejem estabelecerum diálogo sobre questões bastante próprias de nosso tempo; indagações quenos instigam e que, por sua atualidade, resistem a qualquer resposta fácil.Como ponto de partida elegemos três temas de trabalho: amor e desejo emtempos “ponto com”; as músicas que cantamos e que nos cantam; e os con-tornos que damos aos ideais que nomeamos de felicidade. Estaremos reuni-dos em torno destes temas, contando com a intervenção de psicanalistas,artistas, músicos, filósofos, escritores que trarão suas contribuições para fo-mentar uma conversa, um debate, um bate-bola... um sarau. A perspectiva éde que, a partir daquilo que nossos convidados trouxerem para compartilhar,instigados pela temática convocante, possamos, cada um, contribuir para quenão se arrefeça a capacidade de perguntar que anima curiosos, xeretas edesavisados de todos os calibres.

Freqüência mensalSextas-feiras, 19 horasValor: R$ 5,00

Cronograma previstoDia 07/10 – Tema:  amor/sexo.com Dia 04/11 – Tema: Sons que fazem a cabeça 

Dia 02/12 – Tema: Felicidade é...Os palestrantes convidados para o debate serão indicados oportuna-

mente.Coordenadores: Eduardo Mendes Ribeiro, Mariane Mendes Ribeiro,

Maria Cristina Poli e Simone Rickes.

OFICINA DE TOPOLOGIA“AS SUPERFÍCIES DE SEIFERT”

Na manhã do sábado, dia 9 de julho passado, aconteceu na sededa APPOA mais uma Oficina de Topologia. Desta vez, entre tecidos,papéis e tesouras, um grupo animado trabalhou as superfícies de Seifert.

Lacan referiu-se a essas superfícies em diferentes momentos de seuensino. No seminário “A identificação” (classe de 11/04/62), por exemplo,trabalhou o corte do toro (Fig. 1). Trata-se de um corte em oito-interior, reu-nindo o desejo inconsciente – contido no buraco longitudinal do toro – e ademanda consciente – que estaria na alça menor do toro representante daestrutura do sujeito.

Em “O objeto da psicanálise” (classe de 27/04/66), sem falar quese tratava de uma superfície de Seifert, sugeriu que a mesma pudesseconter a estrutura do orgasmo. Em “L’étourdit” (1972) propôs esse mes-mo corte para dar suporte à interpretação. Fica impossível compreendersem tê-lo efetuado e manipulado. Em “A topologia e o tempo” (1974)Lacan apresentou outra versão desta banda retorcida, mas não desen-volveu esta idéia.

Na oficina de topologia trabalhamos três dessas superfícies, partindoda construção de cada uma delas, e em seguida, a partir dos respectivoscortes na cinta de Mœbius. Apresento-as abaixo, simplificando eesquematizando para fins didáticos.

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Figura 1. Corte em oito-interior no toro. Se o corte fosse completo =Cinta de Mœbius bipartida e retorcida, bilátera (2 lados) e com 1 borda. Paratransformá-la em uma superfície de Seifert, é necessário não efetuar o corteaté o fim.

Outros exemplos de superfícies de Seifert:

Herbert Seifert foi um matemático alemão (nascido em Bernstadt, naantiga Saxônia, 1907-1996). Ele criou inicialmente um algoritmo que, aplica-do a uma projeção de um enlaçamento, produzia uma superfície orientável,tendo as componentes do enlaçamento como componentes do bordo. Assuperfícies de Seifert são, por definição, “estruturas de variedades analíticascomplexas, cujas bordas formam nós”.

O algoritmo de Seifert nos mostra que não somente podemos mergu-lhar tais superfícies no espaço R3, bem como também podemos fazer suaconstrução a partir de uma projeção qualquer de enlaçamento. Ou seja, po-demos dar corpo ao desenho, projetando-o sobre papel ou tecido, definindouma orientação para cada círculo, denominados “nós” (que se transformamnas bordas da superfície), e conectando-se estrategicamente estes uns aosoutros por intermédio de faixas retorcidas. O resultado será uma superfíciecujo bordo é o próprio enlaçamento tomado para esta construção.

Assim como há diferentes “variedades topológicas”, também há dife-rentes variedades clínicas, que constituem o campo do analisável.Correspondem às estruturas, com seus respectivos sintomas. Aos leitoresde Lacan, acostumados a uma leitura metafórica de sua obra, pode parecerestranha esta proposta de que a topologia não é um modelo, mas o próprioReal. Marc Darmon ressaltou isso, em seus Ensaios sobre a topologia

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lacaniana. Concordo com ele, quando diz que aceitar a topologia como sen-do a escritura do real não é sem conseqüências diretas na prática da clínicapsicanalítica e conduz a uma concepção radicalmente específica do ato ana-lítico, no qual uma modificação de estrutura está em jogo e esta é de todaresponsabilidade do analista.

Fica esse campo em aberto, para ser trabalhado. Por suas caracterís-ticas – assimetria, maleabilidade, bi ou unilateralidade – penso que as su-perfícies de Seifert possam nos servir para formalizar as estruturas psicóticas,bem como os diferentes momentos do ato analítico em uma psicanálise.

Ligia Gomes Víctora

CURSO DE EXTENSÃO: A PSICANÁLISE DE JACQUES LACAN

Lacan Jacques Lacan (1901-1981) é um dos autores mais importantese criativos do campo psicanalítico. Ele apresenta uma releitura e atualizaçãoda teoria freudiana, incluindo o aporte de outras disciplinas das ciênciashumanas: lingüística, antropologia, filosofia, artes, etc. Sua obra constitui-se, atualmente, em uma referência obrigatória para o trabalho clínico, teóricoe de pesquisa em psicanálise. Também para a compreensão do discursosocial e da subjetividade contemporânea. A complexidade de seu pensamento,que se reflete em seus escritos e seminários, comporta dificuldades paraaqueles que querem se iniciar nesse estudo. O presente curso de extensão- A psicanálise de Jacques Lacan - visa introduzir os interessados aopensamento deste importante autor da psicanálise.Programa: 06 e 08/09 - Lacan, leitor de Freud - Prof. Me. Lucia Serrano Pereira (APPOA)13 e 15/09 - Constituição do eu no estágio do espelho - Prof. Me. CarmemBackes (UFRGS, APPOA)27 e 29/09 - O sujeito e a lógica do significante - Prof. Dra. Simone Rickes(UFRGS, APPOA)04 e 06/10 - Real, Simbólico, Imaginário - Prof. Dra. Ana Costa (UERJ, APPOA)

11 e 13/10 - Os três tempos do Édipo e a metáfora paterna - Prof. Me. LúciaMees (APPOA)18 e 20/10 - Inconsciente: linguagem e circuito pulsional - Prof. Dr. EduardoMendes Ribeiro (PUCRS, APPOA)01/11 25 e 27/10 - A ética da psicanálise - Prof. Me. Marta Pedó (APPOA)Conferência de encerramento: Atualidade da psicanálise - Prof. Me. AlfredoJerusalinsky (USP, APPOA)

Horário das aulas: das 19h30min às 21h30min.Promoção: Faculdade de Psicologia da PUCRS e Associação Psicanalíticade Porto Alegre (APPOA). Local: Auditório do Programa de Pós-graduaçãoem Psicologia (9. andar) - Faculdade de Psicologia da PUCRS (Prédio 11).Coordenação do curso: Prof. Dr. Eduardo Mendes Ribeiro (PUCRS, APPOA)e Prof. Dra. Neuza Guareschi (PUCRS).Público-alvo: alunos do curso de graduação e pós-graduação da Faculdadede Psicologia da PUCRS, alunos de outros cursos e de outras universidades,professores e comunidade em geral.Informações e inscrições: Faculdade de Psicologia da PUCRS - Campus daPUCRS, Prédio 11, 8. andar - F: 3320-3550.

LANÇAMENTO DE LIVRO

No dia 01 de setembro, será lançado o livro “Sob o Véu Transparente:recortes do processo criativo” com Claudia Stern, de autoria dos psicanalis-tas Jaime Betts e Lenira Balbueno Fleck e da arte-educadora Emilia Viero(Território das Artes Ed).

Local: MARGSHorário: das 18h às 21h

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EXERCÍCIOS CLÍNICOS 

O Serviço de Atendimento Clínico convida para o  próximo encontrode “Exercícios Clínicos”, no dia 10 de setembro, com a participação de  ElaineStarosta Foguel, Psicanalista (Salvador/BA) e Membro Correspondente daAPPOA, que nos propõe o seguinte argumento para o trabalho neste sába-do:

 “Não há textos fundamentais em Freud e Lacan que formalizem a questão da dor, mas há talvez muito mais do que esperávamos encontrar quando começamos esse percurso. Desse modo, nos cabe articular e discutir na doutrina psicanalítica os pontos que nos guiarão na direção do tratamento quando a dor crônica está presente.” 

Horário: 10h Vagas limitadasInscrições antecipadas na Secretaria

    

JORNADAS DA CLÍNICA PSICANALÍTICANARRATIVA E DESTINO NA CLÍNICA PSICANALÍTICA

O inconsciente é estruturado como uma linguagem e, por isso, a psi-canálise concede um lugar fundamental à maneira como cada um relata asua história, seja sob a forma de uma novela dramática bem tecida ou de ummosaico de fragmentos aparentemente desconexos. O psicanalista tem afunção de viabilizar a construção de uma possibilidade discursiva, trabalhosustentado na transferência, situação imprescindível para uma prática clíni-ca.

Jacques Lacan propôs um retorno a Freud, afirmando que a psicaná-lise era re-escrever a própria história, possibilitando com isto a construçãode outro destino. Freud já havia, para espanto de sua época, depositado naspalavras a chave da cura, do alívio e da novidade na vida dos neuróticos.Para tanto, a prática psicanalítica ocupa-se da escuta do sofrimento huma-no, tanto o que irrompe no corpo, quanto nas relações (amorosas ou odio-sas) com os outros e com o mundo que nos cerca, reconhecendo no incons-ciente um campo privilegiado para o tratamento desta condição.

Mas o tempo passa e vale a questão: essa fala, essa voz singular - anarrativa do sujeito - que novidades traz hoje em dia para nossa escuta? Sejanos consultórios, nos ambulatórios, nos hospitais, nos círculos acadêmicose nas mais diversas demandas que a pólis e a mídia nos endereçam. Masnão só nestas formas ditas tradicionais. Os meios eletrônicos modernos -chats, blogs, mails, messengers - requerem uma escuta específica das suasnarrativas? Sabemos escutá-las?

A fim de compreender o que muda e o que se repete nas vozes de quese compõe nossa clínica e nossa reflexão teórica, propomos um trabalho emtorno de quatro eixos de discussão:

1. Freud teve seus grandes casos clínicos relidos por Lacan. O quefazemos com sua herança? Quais as re-invenções que mantêm a possibili-dade da psicanálise?

ENCONTROS E DESENCONTROSNO SEMINÁRIO “O DIVÃ E A TELA”

“Encontros e Desencontros”, dirigido por Sofia Coppola, é o filme queserá discutido este mês no seminário “O divã e a tela”. Com título original“Lost in translation”, Bill Murray e Scarlet Johanson, dirigidos por alguém dageração pós-68, mostram que a diferença de idades e culturas pode provocarvárias seqüências de “achados” e “perdidos”. Uma boa oportunidade para darcontinuidade a uma discussão sobre as referências que fazem com quecada um possa situar-se na cultura, passando pela função simbólica comoorganizadora fundamental.

Data: 14 de setembro, quarta-feiraHora: 19h30minCoordenação: Enéas de Souza e Robson Pereira

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2. Um diálogo com o saber de nosso tempo para que possamos dis-cutir as diferenças e interfaces entre discurso psicanalítico e discurso daciência, capitalismo e tecnologia.

3. Artes plásticas, literatura, cinema, teatro - o que estas formas denarrativa têm a contribuir para o psicanalista e mesmo para uma interpreta-ção da subjetividade contemporânea?

4. As formas atuais de representação de si que se valem das novastecnologias, também tentam dar conta de maneira inovadora do mal-estar nacultura ou só procuram um alívio imediato dos sintomas?

Enfim, a discussão está lançada.

Data: 01 e 02 de outubroLocal: Centro de Eventos Plaza São RafaelInscrições: Sede da APPOA, fone (51) 3333-2140

PROGRAMA

Sábado 01 de outubro

Manhã9 h – Entrega de credenciais

9h30min – Abertura: Lucia Serrano Pereira – Presidente da APPOAConferência: Trauma e ironia em Quincas Borba, de Machado de Assis

Maria Rita Kehl - São Paulo-SP– Debate

11h15min – Mesa 1– Invenção possível de si num espaço virtual – Rosane Palacci dos Santos

– Porto Alegre-RS– Em busca do narrador perdido. Reflexões sobre a clínica da melancolia –Maria Rosane Pereira Pinto – Porto Alegre-RS– O limite da metáfora – Elaine Starosta Foguel – Salvador-BADebate

Tarde14h30min Mesa 2– Re-escrever ou inventar uma história? – Rosane Monteiro Ramalho - PortoAlegre-RS– As mil e uma luas – Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack – Porto Alegre-RS– Prostitutas vão para casa na sexta-feira santa – Eliana dos Reis Calligaris– São Paulo-SPDebate

16h30min Mesa 3– Um novo realismo – a narrativa cientificista – Marcus do Rio Teixeira –Salvador-BA– Limites, sintoma, destino – quase ensaio – Robson de Freitas Pereira –Porto Alegre-RSDebate

18 h Conferência: Homo sacer contra chipman (ou... De como a História setornou gibi)

Alfredo Néstor Jerusalinsky – Porto Alegre-RS

Domingo 02 de outubro

Manhã9h30min Conferência: Antecipação e destino: atualidades do espelho

Ana Costa – Porto Alegre-RSDebate

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Intervalo

11h Mesa 4– Aos 13: crônica da adolescência – Roselene Gursky– Narrativas em cena: desejo e criação no processo da performance – ÂngelaLângaro Becker– De uma guerra a outra: a transmissão do desejo - Lucy Linhares da FontouraDebate

12h30min – EncerramentoJaime Alberto Betts, Robson de Freitas Pereira, Rosane Monteiro

Ramalho (Coordenação da Jornada)

Informações e inscrições:Associação Psicanalítica de Porto Alegre - APPOARua Faria Santos, 258 – Bairro PetrópolisPorto Alegre/RS90.670-150Fone: (0xx51) 3333.2140Fax: (0xx51) 3333.7922Horário de funcionamento da Secretaria da APPOA: 13h30min às

21h30min.

- As vagas são limitadas.- Inscrições para estudantes de graduação e antecipadas devem ser

feitas na secretaria da APPOA- Inscrições mediante depósito bancário, para Banco Itaú, agência 0604,

conta- corrente: 32910-2. Neste caso, enviar, por fax, o comprovante depagamento devidamente preenchido, para a inscrição ser efetivada.

- Inscrições pelo site: www.appoa.com.br

PERCURSO DE ESCOLA – 2006TURMA VIII

O percurso de escola faz parte do quadro de ensino da APPOA, des-de 1994, como um lugar possível do desdobramento das perguntas que oencontro com a Psicanálise coloca a cada um. Esta proposta inscreve-secomo um espaço de estudo sistemático dos textos fundamentais de Freud eLacan, bem como das disciplinas que com eles dialogaram no transcurso daconstituição e consolidação da psicanálise, quais sejam, Lingüística,Topologia, Literatura, Antropologia, Filosofia e as Artes em geral. O Percursode Escola destina-se àqueles que se sentem concernidos pela Psicanálisee pelas questões que ela suscita.

O trabalho se desenvolve em torno dos seguintes eixos temáticos:– O inconsciente– Édipo e castração– Narcisismo e identificação– O sintoma– A transferência

Valor das InscriçõesAté 22/09 Após e no local

Associados R$ 80,00 R$ 100,00Estudantes de graduação R$ 90,00 R$ 110,00Profissionais R$ 110,00 R$ 130,00

Local do Evento:Centro de Eventos Plaza São RafaelAvenida Alberto Bins, n°509 - CentroPorto Alegre – RS – Brasil

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

CICLO DE DEBATESMACHADO DE ASSIS NA CULTURA

PSICANÁLISE & LITERATURA Palestrantes: Marieta Luce Madeira Rodrigues e Gilberto Flores CabralDia: 29 de setembro (quinta-feira)Hora: 20hLocal: Livraria Cultura (Bourbon Shopping Country – Av. Túlio de Rose,

80 – Loja 302)Entrada Franca

Neste mês de setembro, duas contribuições singulares a partir daobra machadiana. A psicanalista Marieta Rodrigues estará fazendo uma in-tervenção intitulada “Uns braços, uma leitura” onde, a partir do conhecidoconto de Machado de Assis, é possível transitar sobre este tema tão recor-

– Temas cruciais da psicanálise; história e formaçãoEsses eixos temáticos são trabalhados ao longo do percurso, sendo

desdobrados nas perspectivas das obras de Freud e Lacan, em textos clíni-cos (casos ou textos concernentes à clínica) e ensino contextual (Antropolo-gia, Lingüística, Filosofia, Estética, Literatura, Topologia e outros).

Inscrições para seleção da nova turmaInício: março/2006Duração: 3 anosEncontros: terças e quartas-feiras, das 19h30min às 22h30min

Período de inscrições: 15/09 a 31/10/2005Valor da inscrição: R$ 40,00Local: Sede da Associação Psicanalítica de Porto Alegre

rente ao longo da obra: o corpo feminino e seu desvelamento. Por seu turno,o arquiteto Gilberto Flores Cabral estará desenvolvendo “O Rio de Janeiro deMachado de Assis”, cidade/personagem fundamental nas produções deMachado. O urbanismo torna-se cenário fundamental para a expressão dasubjetividade.

O ciclo de debates Machado de Assis na Cultura - Psicanálise &Literatura é uma realização da APPOA, do Pós-Graduação de Letras daUFRGS e da Livraria Cultura. Oportuniza uma visão abrangente e uma opor-tunidade de debate a partir da produção do escritor: contos, ensaios, roman-ces e poesias.

Em outubro, estarão presentes no ciclo Ana Costa e Flavio LoureiroChaves.

 

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SEÇÃO TEMÁTICA

CULTURA E DESAMPARO:COM A PALAVRA, OS GÓTICOS

Martha Lacerda Lemos

Inúmeras são as maneiras encontradas, através do imaginário na cultura,para a elaboração das questões existenciais. Lembremos que sujeito ecultura estão atrelados: tanto o sujeito fala através da cultura como vice-

versa. São muitas as formas, as possibilidades do sujeito se haver com oseu desamparo, bem como com o seu desejo, mediante as identificações.Porém, com as possibilidades identificatórias tradicionais esmaecidas, nosnossos dias, ele vai em busca de novos recursos identitários.

Cultura é discurso em todas as suas formas, aparecendo em sutile-zas quase imperceptíveis do dia-a-dia e, sobretudo, nas falas dos sujeitos.

No folclore estão formas que a sabedoria popular cria para lidar com afalta, podendo o seu discurso ser para o sujeito uma referência simbólica.Como exemplo de sua elaboração no coletivo, gostaria de me reportar aoque diz Mario Corso em seu livro “Monstruário” (2002): “tanto o mito da sereiaeuropéia quanto o da Iara, versão brasileira da sereia, falam da dificuldade denossos antepassados de lidar com o sexo em geral e com a beleza e osencantos femininos em particular” (pg. 194).

Uma cena de folclore se oferece a várias vias de significação. Umconto, crença, ritual, será tomado de forma diversa, de acordo com a singu-laridade de cada um, que o articulará assim à sua subjetividade.

Segundo Lacan, o sujeito é lançado inconscientemente a muitas iden-tificações durante a vida, que são relativas a uma referência que está dadapelo traço unário, já referido anteriormente por Freud com o nome de traçoúnico.

Vejamos, por exemplo, a respeito da elaboração de algo como a mor-te: sabemos o quanto é difícil tentar aceitar e explicar o que ninguém sabe,o Real do qual ninguém escapa. Por isso tantos rituais, crenças, mitos,superstições, contos, em todas as culturas. A riqueza e variedade de formasde representações atesta essa dificuldade. As simbolizações, a sua manei-

LEMOS, M. L. Cultura e desamparo: com...

Esta seção temática reúne a produção das colegas que concluíram oPercurso de Escola VI da APPOA. São trabalhos que compõem umacartografia do caminho percorrido por cada autora ao longo de três

anos. Vindas de diferentes áreas de atuação profissional, trabalhando eminstituições, escolas ou consultórios, escrevem a partir das questões singu-lares que sua práxis levanta ao se deixarem interrogar pela Psicanálise. É nopercurso que realizamos ao procurar responder as questões que nos faze-mos, que nos constituímos como sujeitos.

O que se espera do ensino da Psicanálise é que se produzam efeitosde transmissão da experiência analítica de divisão subjetiva pelo significante.Na leitura dos textos que se seguem, podemos perceber o trabalho de teciturado significante no fio do desejo de cada autora, na busca de respostas àssuas interrogações. Ao final, mais que respostas, chegamos todos ao dese-nho de um mapa que sinaliza novos percursos, novas transferências de tra-balho que relançam o desejo.

Carmen Backes e Jaime Betts

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SEÇÃO TEMÁTICA

Sobre a diluição dos referenciais simbólicos na nossa cultura hoje,tomemos alguns trechos extraídos do jornal “Folha de São Paulo” em de-zembro de 2004.

Trecho 1:O “Projeto A Barca”, que documenta ritmos tradicionais, constata que

a maioria dos jovens em uma comunidade de Alagoas não tem interesse emaprender a tocar pandeiro, instrumento que acompanha a “chegança”, que éuma manifestação folclórica do local.

Trecho 2:Um pai tem dúvida se deve ou não transmitir o significado religioso do

Natal à filha, com 5 anos, embora a família seja religiosa praticante, porqueele e a mulher decidiram deixar que a filha escolha, quando for a hora, se vaiou não seguir alguma religião, e qual delas.

Trecho 3:Uma mãe cuja família de origem segue as tradições judaicas diz não

saber como se portar no Natal com os filhos pequenos.Seu conteúdo mostra uma dificuldade na transmissão da cultura atra-

vés das gerações. Diz algo de uma sociedade individualista onde cada umvale por si.

Atentos aos trechos citados, podemos imaginar, por exemplo, umalinha que vinha se desenrolando e que, no momento e da maneira ali referida,parou.

O Outro ali aparece falido, com pouca força na transmissão de valorese saberes. Há uma falha na atribuição de lugares que vinha, ao que parece,até ali, num movimento através das gerações.

Quando a transmissão falha e as referências não são dadas, abre-seum leque muito grande de possibilidades que estão fora do sujeito, que élevado, ao mesmo tempo, à impressão de que tudo pode e a um sentimentode desamparo.

Muitas dessas possibilidades aparecem em forma de uma grande vi-trine, onde coisas são oferecidas prometendo satisfação ou obtenção deuma imagem idealizada coletivamente.

LEMOS, M. L. Cultura e desamparo: com...

ra, ajudam na nossa sustentação e de certa forma dão um sentido ao que nãoconseguimos e não queremos saber. Na verdade, convivemos a cada dia denossas vidas com este limite, o do Real, que não pode ser apreendido no todo.

Sabemos da variedade de culturas de ontem e hoje, diversas mesmodentro das nações, e de suas visões diferentes a respeito da morte: issoaparece na expressão cultural.

No Brasil, nos contos populares do chamado “ciclo da morte”, o que serepete é o fato do homem, em vão, procurar enganar a morte, mandá-la paralonge de si, utilizando todos os recursos da inteligência. Mas a morte, por suavez, sempre vem e é “vencedora” no final. Temos como exemplo o conto intitulado“O Compadre da Morte”, recolhido e registrado por Câmara Cascudo em “Con-tos Tradicionais do Brasil” (2001): depois de muitas vindas e idas, ela vemdefinitivamente e leva o homem, apesar dele ser seu compadre.

O que ainda vemos hoje em termos de simbolização da morte, aonosso redor, numa cultura que delimitaremos como ocidental, brasileira ecristã? Temos, por exemplo, a homenagem do “Dia de Finados” quando osmortos recebem flores em seus túmulos numa tradição vinda com os portu-gueses, os rituais dos velórios, os epitáfios... No interior do RS - e em vias deextinção ou já extinta - a popularmente chamada “Recomenda das Almas” éum curioso ritual que tem a influência da religião católica: na época da Qua-resma, grupos de pessoas param nas portas das casas, dos cemitérios, dascapelas ou junto às cruzes de beira de estrada e rezam pelos mortos. Flo-res, palavras e gestos eternizam os mortos, numa presença simbólica.

Na sociedade contemporânea convivemos com a chamada “morte datradição ou do pai”, que é a fragilização dos referenciais simbólicos ou da fun-ção paterna. Isto é causa do “ter que se fazer por si só”, da solidão e da apatiado homem contemporâneo, tão comentadas por Lipovetsky (1989) e outros. Ede um sentimento de desamparo, que parece ser maior do que o referido porFreud em “O futuro de uma ilusão”, de 1927, que toma o desamparo como umefeito sofrido, mas natural, da condição humana de estar no mundo. O que mechama a atenção é como o sujeito vivencia este desamparo dos nossos dias:parece vivê-lo como uma experiência de morte, de um vazio.

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qual a resolução de cores também contribui para uma tentativa de elabora-ção do sentimento de morte, de desamparo.

Vejamos o que diz uma jovem conhecida como “Heartless”: “ser góti-co é, antes de tudo, cultivar e preservar a solidão. Lamentamos a existênciapor meio da inexistência de esperança.” Ela diz ter hábitos como o isola-mento, ficar na escuridão e o de ler Lord Byron e Álvares de Azevedo.

Os góticos não parecem estar exclusivamente colados à imagem.Há uma significação para esta, que é tomada e articulada com algo dassuas singularidades como sentimentos, maneiras de ser e pensar, con-forme diz Jonas: “muitas pessoas que ainda não se encontraram achambonito ser gótico, mas é triste. Eu sempre fui como sou, mais sensível,emotivo, e percebi que minha personalidade tinha muito a ver com estacultura”.

É interessante que eles mesmos usam o termo “cultura”, aludindo auma pertença, a uma identificação.

Eles reivindicam uma filiação, como diz Heartless: “já se nasce góti-co. Alguém que diz ser gótico só por causa das festas e das bandas queestão na mídia não sabe qual é a essência do gótico, não conhece a cultu-ra”.

Considerando que a função paterna está agonizante, os góticos pare-cem buscar uma “filiação” por outras vias.

Segundo Calligaris (1993), “a tradição não pode mais nos sustentarcomo sujeitos, nos dando algum tipo de identificação. Tornamo-nos todosiguais.”

Na filiação, cada um tem sua singularidade, proporcionada a partir dotraço unário que nos remete a uma diferença. O discurso dos góticos, aoreivindicar uma filiação, tenta marcar uma diferença, um lugar ou posiçãodiferenciada na cultura. É esta diferença que localiza o sujeito em relação aopassado, possibilitando que ele se conte, seja na cultura ou num grupofamiliar.

Ellen Cristina, 17 anos, diz: “É um estilo de viver, uma filosofia diferen-te, um mundo mais romântico”.

LEMOS, M. L. Cultura e desamparo: com...

Estas promessas parecem andar na contramão do desejo, cuja natu-reza é de uma busca interminável, jamais satisfeita no todo e que está rela-cionada com a subjetividade de cada um, isto é, algo que não é ligado aofertas padronizadas e valorizadas pela mídia.

Quando o que é valorizado é o que está fora do sujeito, a subjetividadee o desejo passam a não ter vez, como na cultura de massa, que tornainócuas as possibilidades de identificação, impingindo ao imaginário ídolosde papel soltos no tempo, sem nenhuma conexão efetiva com a história dosujeito.

Chamou-me a atenção os “góticos”: mais do que simbolizar a mortefísica, eles lidam com a escassez de referenciais simbólicos e seu conse-qüente desamparo, sentido como uma morte. Parecem tentar buscar umaidentificação.

Segundo reportagem do jornal Folha de S. Paulo de 15 de novembrode 2004, o “movimento gótico” inclui bandas de rock que surgiram na Ingla-terra no final dos anos 70, injetando em suas letras termos que expressampessimismo, morte, misticismo, sangue, depressão. Os “góticos” costumamse encontrar em cemitérios e apresentam um visual sombrio, maquiagemcarregada, crucifixos, bijouterias com saliências e pontas, apreciam a artechamada de gótica com sua arquitetura, escultura e ornamentação caracte-rística, como gárgulas esculpidas em forma de seres fantásticos, bem comoas letras góticas.

Victor Hugo Borges, artista plástico que se inclui no movimento góti-co, diz: “meu trabalho mescla, basicamente, cultura pop a coisas mórbidas,macabras. Sempre trabalho a partir do preto e depois parto para outras co-res. Uma referência muito forte são pessoas fossilizadas. Uso muito materi-ais que se aproximam do fóssil.”

A expressão “pessoas fossilizadas” me impressiona justamentepela contraposição que há entre uma pessoa e um fóssil, que nos reme-te a algo inerte, parado, enquadrado, morto. Parece ser através destesignificante que Victor localiza, para além de si mesmo, o traço que oliga a seus colegas de movimento e que expressa em seu trabalho, no

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procurar esta via do grupo de góticos e não outra via. Questão esta que sópoderia ser vislumbrada através de uma escuta de cada sujeito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FREUD, Sigmund. O Futuro de uma Ilusão. Edição Standard Brasileira das ObrasCompletas. RJ. Imago. 1974.CASCUDO, Luís da Câmara. Contos Tradicionais do Brasil. Ed. Global. SP. 2001.CORSO, Mário. Monstruário: inventário de identidades imaginárias e mitos brasi-leiros. Tomo Editorial. POA. 2002.LIPOVETSKY, Gilles. A Era do Vazio: ensaio sobre o individualismo contemporâ-neo. Relógio D’Água. Lisboa. 1989.KEHL, M. Rita. Função Fraterna. RJ. Relume Dumará. 2000.CALLIGARIS, Contardo. Psicanálise e Sintoma Social: Sociedade eIndivíduo.Unisinos. São Leopoldo. 1993.

LEMOS, M. L. Cultura e desamparo: com...

Cláudia, 27 anos, é casada e leva uma vida normal durante o dia:cuida de sua casa, dos 4 filhos e, à noite, incorpora seu estilo com umamaquiagem pesada e roupa preta. Ela diz: “Há treze anos faço parte domovimento gótico. Gosto de me vestir assim, ouvir músicas depressivas esempre que posso vou ao cemitério”.

Buscando uma identificação, os góticos parecem encontrar no outrosemelhante uma imagem de si, num reconhecimento. Como numa alusãoao estádio do espelho - momento na infância em que o olhar do outro legiti-ma o eu em formação - os góticos são legitimados pelo olhar do outro.

A importância e o peso do grupo, em especial a importância do reco-nhecimento pelo grupo, leva-nos a pensar na idéia de M. Rita Kehl em “Fun-ção Fraterna” (2000). Ela diz que a função fraterna não substitui a funçãopaterna - que opera para fundar o sujeito - mas faz uma suplência a esta, namedida em que possibilita separar a lei da autoridade do pai real. Isto é, nafunção fraterna, o irmão ou parceiro semelhante é quem reconhece o lugardo sujeito, autorizando-o.

Os góticos parecem encontrar algo como uma sustentação face aodesamparo, simbolizando e elaborando esta espécie de morte, na invençãode uma marca de pertença que aparece no corpo, nos adereços, nas idéiase no gosto por coisas que os identificam como grupo. Uma sustentação parapoderem estar no mundo, autorizando-se.

Marcando diferença com seu discurso, eles parecem empreender umcontraponto (ou contratempo?) com seu visual sombrio, às vezes quase numaode à tristeza e à introspecção, com leituras e hábitos peculiares, em rela-ção à cultura de massa, que dita regras não só em relação ao corpo, mastambém ao humor, já que a felicidade permanente, hoje, também se tornouum imperativo. Tentando explicar esta questão, LipovetsKy em “A era dovazio” (1989), diz que se o passado está perdido, desvalorizado, o futuro ficacomprometido. Então, resta o presente para ser vivido e preservado o máxi-mo possível, na forma, inclusive, do consumo desenfreado de objetos.

Os góticos seriam um exemplo de tentativa de sobrevivência simbóli-ca no social. Mas é claro que há a questão singular do porquê de um jovem

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decorrência de sua insuficiência neuropsicomotora, o bebê é tão indefeso etão desamparado que necessita de um Outro que encarne a função de cui-dar. O Outro materno, através do olhar, metáfora de seu desejo e primeirareferência do bebê, ao inscrever uma letra, configura uma imagem do corpo edo movimento de um sujeito. Esta marca simbólica no corpo introduz umdestino e institui um sujeito (Levin, 1997).

Esse momento de reconhecimento pela mãe de uma imagemunificadora do filho ocorre durante o Estádio do Espelho, momento em que obebê se volta para o adulto, pedindo-lhe para reafirmar, através do olhar, aimagem que ele percebe no espelho. Trata-se de uma imagem antecipadaque é devolvida pelo olhar materno e, para manter esse ideal de si mesmo,conforme Jerusalinsky (1984), o bebê não tem outra saída, senão desejar odesejo da mãe. Por isso, a referência dessa cena é a alienação, momentode jubilação, no qual a mãe antecipa a imaturidade do bebê, segundo Bergése Balbo (1997).

Freud (1914/1987) situou esse enquadre narcísico, a partir do lugar de“sua majestade o bebê”, que o Outro materno oferece ao bebê. Freud definiucomo sendo este o lugar de ser e fazer aquilo que os pais não foram e nãoconseguiram fazer para os seus pais. Já em Freud, podemos ver que o nas-cimento desse bebê majestoso se dá muito antes de o bebê real nascer.Portanto, há algo que precede seu nascimento, na medida em que ele jánasce com um lugar suposto: ser o falo da mãe. Aí, já podemos identificar aantecipação, que está nos primórdios da constituição do sujeito, uma vezque o bebê cumpre com a promessa do Outro.

Dentro dessa mesma perspectiva, Lacan (citado por Laznik-Penot, 1997)salienta que é o Outro materno que incorpora a alienação do bebê ao seudesejo e, ao mesmo tempo, possibilita a abertura de uma fenda na relaçãomãe-bebê, permitindo o acesso do bebê ao campo do simbólico. De acordocom Lacan, o apelo do bebê é traduzido pelo Outro materno, tornando-se de-manda que aliena o bebê, e é nesse lugar do Outro que ele encontrará aspalavras que poderão nomear para ele a separação em relação à mãe.

Esse intervalo entre a mãe e o bebê, segundo Jerusalinsky (1984), só

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REFLEXÕES SOBRE A CONSTITUIÇÃODO SUJEITO PSÍQUICO

Lisiane Machado de Oliveira

O trabalho clínico e de pesquisa acerca da deficiência mental coloca-nos num constante repensar sobre a constituição do sujeito psíquico e sobre a instituição do laço mãe-bebê, forçando-nos a interrogar

os ditos que aprendemos e costumeiramente reproduzimos. Apontarei, aseguir, questões seguidas de algumas reflexões.

A partir dos postulados de Wallon, Lacan (1949/1998), desde o seucélebre escrito sobre o Estádio do Espelho, acentuou a captura do pequenoaspirante a sujeito no desejo do Outro Primordial. Situo aqui a pedra funda-mental de minhas interrogações: Aspirante? Será que o bebê aspira a algo?Não podemos chamar essa aspiração de desejo, já que a falta ainda não lhefoi instaurada. Não falamos de desejo, senão a partir do sujeito barrado pelacastração, mas não haveria no pequeno sujeito, uma demanda que o colocana relação com o Outro materno?

O ser humano, ao nascer, é imaturo em termos neuropsicomotores.Neurologicamente, não há um sistema nervoso central pronto. Psicanalitica-mente, não há um sujeito psíquico. E, desde a perspectiva motora não háuma intencionalidade motora. Inicialmente, o bebê é um ser repleto de refle-xos que têm o caráter de garantir a sua sobrevivência. Pelo menos em parte,já que os reflexos devem ser tomados pelo Outro. Sendo assim, os reflexosnão somente podem garantir a sobrevivência física, como também represen-tam uma possibilidade de constituição psíquica. Os reflexos, conforme Levin(1997), possibilitam um encontro com a demanda materna, articulando-osnuma rede significante, já que a imaturidade neuropsicomotora do bebê exi-ge do Outro um sentido às suas produções corporais.

No decorrer do desenvolvimento, os reflexos vão, paulatinamente, de-saparecendo, dando lugar aos movimentos, nos quais, podemos, pouco apouco, identificar uma intencionalidade, guiada pelo desejo do Outro. Em

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quico, não a entendendo como uma via de mão única. Ele cita cincosubsistemas que caracterizam o sistema de atividades constitucionais dacriança: os reflexos arcaicos, a gestualidade reflexa, o tônus muscular, aatividade postural e espontânea e os ritmos biológicos. A significação mater-na, por sua vez, incidirá inicialmente nesses cinco subsistemas. Comparti-lho a preocupação de Jerusalinsky de que tais subsistemas constitucionaissão “pouco valorizados quanto a seu papel de proporcionar trilhos de encon-tro para a mãe, que se vê forçada, na sua natural função de escutar comoutros ouvidos essa criança que ainda não fala”(p.46).

Outra questão a ser discutida é a comunicação que é instalada entrea mãe e o bebê. Tanto do lado do bebê, como do lado da mãe há umaconvocação. Enquanto a mãe convoca o bebê a desejar o seu desejo, o bebêconvoca a mãe a olhá-lo. Poderíamos supor que o conceito de diálogo tônicocorresponde ao encontro dessas duas convocações.

Os estudos de Wallon (apud Ajuriaguerra & Marcelli, 1986) identifica-ram o diálogo tônico como troca pré-verbal entre a criança e as pessoas asua volta. Trata-se de um jogo de olhares que marcará o diálogo gestualentre a mãe e o bebê que, segundo Levin (2001), introduz a criança na cultu-ra. Nesse sentido, o tônus muscular do bebê é tomado e atravessado pelalinguagem.

Freud (1895/1987), ao falar sobre a experiência de satisfação, menci-onou a descarga motora do bebê como tendo um caráter de comunicação,desde que tomada pela mãe como apelo. Freud já apontava para uma con-cepção de que há instituição de um laço primordial entre o bebê e o Outromaterno. Dolto (1992) ratifica a teoria freudiana, ao mencionar que a tensãodo bebê é humanizada por meio de percepções sutis e palavras. Desde onascimento são as palavras e fonemas que acompanham os contatos capta-dos pelo corpo da criança. Tais palavras são aquelas que correspondem auma experiência sensorial já simbolizada ou em vias de sê-lo.

Spitz (2000), é um dos autores, que observou bebês e discutiu a co-municação não-verbal ou pré-verbal entre o bebê e sua mãe. Embora nãotenha desenvolvido essa questão, Spitz menciona que a comunicação utiliza

OLIVEIRA, L. M. Reflexões sobre a...

é possível a partir da interferência de um discurso que, operando na mãe acastração simbólica, coloca ambos diante da referência a um terceiro. Afi-nal, “mãe e filho não se suturam numa complementariedade satisfatória”(p.12).

Minhas reflexões têm me levado a considerar o bebê desde um lugarde não passividade diante da constituição do sujeito psíquico. Os reflexosexprimem essa idéia de que há uma demanda do lado do bebê, embora nãopossamos esquecer que o Outro materno, necessariamente, deverá tomarestes reflexos como demanda, e articulá-los em uma rede significante. Écomum ouvirmos falar que o bebê se oferece como falo para imaginariamen-te completar a mãe ou que o bebê se dá a ver à mãe para responder a seudesejo. Não estaríamos aí falando da demanda do lado do bebê?

Freud (1915/1987), em “As pulsões e seus destinos”, propõe umaatividade no sujeito em constituição psíquica. Ao falar sobre o circuito pulsional,ele a articula dentro de uma perspectiva de fases, salientando que o olharprecede o ser olhado e, portanto, a atividade surge antes da passividade.Lacan (1964/1998) retoma a proposta freudiana, sugerindo que a atividade dapulsão se traduz em “se fazer ver”. Nesse sentido, tal postura ativa do peque-no sujeito consiste em uma espécie de sedução, atraindo o olhar do Outromaterno.

É a partir dessa perspectiva que podemos pensar que a demanda nãoestá somente no campo do Outro, mas também do lado do pequeno sujeito.Esse caráter ativo do bebê, no entanto, deve ser acolhido pelo Outro mater-no, uma vez que o bebê situa a mãe em sua função, convocando-a a olharpara ele. O bebê exprime uma demanda de amor indiscriminada, inarticulávele cabe ao Outro materno responder a essa demanda. Segundo Levin (2001),a demanda parte da mãe e do bebê. A mãe pressupõe um saber no filho,interrogando-o e demandando dele. O bebê, por sua vez, situa a mãe naposição materna, na medida em que demanda dela e também a interroga.

Jerusalinsky (1984) refere que o nascimento de um bebê não é sufici-ente para garantir a constituição de um sujeito psíquico. No entanto, nãodeixa de mencionar a “participação” do bebê na constituição do sujeito psí-

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FREUD, S. (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. In Sigmund Freud, ObrasCompletas (J. Salomão, Trad.). Rio de Janeiro: Imago, 1987. V. 14JERUSALINSKY, A. N. Psicanálise do autismo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1984.LACAN, J. (1949). O estádio do espelho como formador da função do eu tal comonos é revelada na experiência psicanalítica. Em Jacques Lacan, Escritos (pp. 96-103). (V. Ribeiro, Trad.) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.LACAN, J. (1964). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais dapsicanálise. (M.D. Magno, Trad.) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.LAZNIK-PENOT, M.C. Rumo à palavra: três crianças autistas em Psicanálise.São Paulo: Editora Escuta, 1997.LEVIN, E. A infância em cena: constituição do sujeito e desenvolvimentopsicomotor. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1997.LEVIN, E. A função do filho: espelhos e labirintos da infância. Petrópolis, Rio deJaneiro: Vozes, 2001.SPITZ, R. O primeiro ano de vida. São Paulo: Martins Fontes, 2000.WINNICOTT, D. W. (1969). A experiência mãe-bebê de mutualidade. Em ClareWinnicott, Ray Shepherd & Madeleine Davis, Explorações psicanalíticas D. W.Winnicott (pp.195-202). Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.

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mecanismos comparáveis aos predominantes no mundo animal, consistindode sinais posturais e sons. Ele supõe que tal comunicação possa ser daordem de uma percepção extra-sensorial ou telepatia. Winnicott (1969/1994)discutiu a comunicação mãe-bebê, a partir da experiência de mutualidade,na qual, a mãe, precocemente, deverá se identificar com as necessidadesdo bebê.

Nesse sentido, o choro pode ser tomado pela mãe como um apelo,que deve ser satisfeito, uma vez que é somente através da intervenção doOutro que a tensão psíquica, em forma de descarga motora, é aliviada. Aexperiência de satisfação somente é operada quando a mãe atribui significa-dos ao apelo do bebê. Não estaríamos falando do apelo como uma demandaque convoca a mãe a olhá-lo? Outra questão que também mereceria maisdiscussão diz respeito à comunicação não-verbal ou pré-verbal. Poderíamosfalar de comunicação não-verbal ou pré-verbal, já que a linguagem está nocampo do Outro? O bebê é falado pelo Outro, uma vez que os significantessão ofertados pelo Outro.

São muitas as interrogações e cada vez mais o desejo de seguir refle-tindo sobre o tema. Finalizo com um pensamento de Sócrates:

“Quanto mais eu sei, mais eu percebo que o que sei é um quase nadaperto do que se tem por saber.”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AJURIAGUERRA, J. & MARCELLI, D. Psicopatologia Infantil. Porto Alegre: ArtesMédicas, 1986.BERGÉS, J. & BALBO, G. A criança e a Psicanálise: novas perspectivas. PortoAlegre: Artes Médicas, 1997.DOLTO, F. A imagem inconsciente do corpo. São Paulo: Editora Perspectiva,1992.FREUD, S. (1895). Projeto para uma psicologia científica. In, Obras Completas(J. Salomão, Trad.). Rio de Janeiro: Imago. 1987, V. I.FREUD, S. (1915). Pulsão e seus Destinos. Obras Completas (J. Salomão, Trad.).Rio de Janeiro: Imago, 1987. Vol. I.

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O filhote humano é marcado, desde o início de sua existência, por uminacabamento de todo o sistema nervoso, confirmando o dado daprematuração, caráter específico da sua espécie. Por isso, este está natotal dependência do outro. É o que ocorre à criança que, ao nascer, vive umestado de desamparo, e precisa do outro “auxiliador” – lugar ocupado emgeral pela mãe. E é no encontro com este, que ela vive a primeira experiênciade satisfação falada por Freud (1895) –”Projeto para uma Psicologia Científi-ca”, colocando em andamento as primeiras inscrições psíquicas. A experi-ência de satisfação coloca um fim à excitação interna do bebê que tem fomee grita em função disto. Nesta experiência, segundo Freud (1900), registra-se uma percepção particular, nesse caso, a de nutrição, sendo que a ima-gem mnemônica daqui para frente estará associada a esse traço de “memó-ria” produzido pela necessidade, pela urgência.

Essa experiência de satisfação “cujo caráter visual merece ser ressal-tado” (Quinet, 2004, p.55), institui a associação das duas representações: ado objeto percebido e a da necessidade. “É provável que a imagem mnemônicado objeto será a primeira a ser afetada pela ‘ativação do desejo’” (grifado naobra) (Freud, 1895, v. I, p. 371).

Assim, o bebê, a partir daí, frente a uma nova tensão de necessidade,enlaçada ao desejo, faz um re-percurso das marcas desta primeira experiên-cia prazerosa, com a alucinação do objeto de satisfação. Um impulso psíqui-co reinveste a imagem mnemônica da percepção na busca da satisfaçãooriginal. Sempre que se reconstitui a experiência de satisfação, que é sem-pre parcial, está implicada a participação desta imagem, tanto na realidadecomo na alucinação.

Freud coloca na figura do Nebenmensch (neben: próximo; mensch:homem) o próximo auxiliador mencionado anteriormente, o primeiro objetode satisfação do bebê, o primeiro objeto hostil, assim como o único quepode lhe auxiliar. É através deste outro que o sujeito faz a primeira apreen-são da realidade. Contudo, isto se dará de forma dividida – uma parte dessecomplexo do próximo que pode ser entendida graças a uma atividademnemônica, isto é, redutível a traços, ficando inscrita no sistema de memó-

GARZIERA, M. O. Contribuição da...

CONTRIBUIÇÃO DA PSICANÁLISENO FAZER DA EDUCAÇÃO

DIANTE DOS DESAFIOS DO AUTISMO

Maria Odete Garziera

Um breve histórico: Como profissional da educação e da saúde, aolongo dos anos, uma das causas em que, junto com outros profissionais, estive implicada, foi a de oportunizar aos portadores de trans-

tornos psíquicos, um espaço na escola pública estadual.Embora sempre houvesse demanda, tornou-se realidade, por soli-

citação do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Assim, o trabalhocom as classes de alunos portadores de autismo inicia-se em 1995,sendo assinado, em 11 de agosto de 1999, termo de compromisso eajustamento entre Ministério Público do Estado – Coordenadoria dasPromotorias da Infância e Juventude – e estado do RS, através da Secre-taria da Educação, “com o intuito de garantir o direito à educação acrianças e adolescentes portadores de autismo”, passando o atendimentoa essas crianças e adolescentes a fazer parte, então, das políticas pú-blicas para a educação em nosso Estado. Temos, hoje, na Rede PúblicaEstadual de Ensino, as Classes de Educação Terapêutica. São classescom dois professores e seis alunos – crianças/adolescentes. Atualmen-te, além de portadores de autismo, integram essas classes alunos comquadros de psicose e outras síndromes.

Neste momento, me atenho a investigar aspectos relacionados aoautismo em função do trabalho com essas classes. A investigação acercadeste tema se realiza em torno de dois eixos: “o olhar e o discurso do Outrona estruturação do eu e da imagem corporal e o circuito da pulsão”, poratravessarem as questões que nos convocam a escrever. Questões encon-tradas no acompanhamento dessas crianças/adolescentes, de professorese familiares que, pensadas a partir dos pressupostos da psicanálise, auxili-am-nos a refletir sobre as formas de intervenção.

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Freud (1914), “Sobre o narcisismo: uma introdução”, embora já fizesse usodo conceito desde 1910. “Posso ressaltar que estamos destinados a suporque uma unidade comparável ao eu não pode existir no indivíduo desde ocomeço; o eu tem de ser desenvolvido (...) sendo, portanto, necessário quealgo seja adicionado ao auto erotismo – uma nova ação psíquica – a fim deprovocar o narcisismo” (Freud, 1914, p. 84).

Destaca-se o momento que faz coincidir a predominância do narcisismocom os momentos formadores do Eu, isto é, a constituição do Eu como algocorrelativo à constituição da imagem corporal. Essa unidade psíquica é pre-cipitada por uma imagem que o sujeito constrói de si mesmo, a partir dostraços do Outro – é o Eu. Esses momentos iniciais da formação do Eu coma constitutiva experiência narcísica, Lacan chamou de estádio do espelho.

“A criança ainda impotente quanto à motricidade e na dependênciaquanto à amamentação assume com júbilo sua imagem especular e tem aímanifestada a primordial matriz simbólica do eu. Frente a sua imagem, obebê vê de uma forma antecipada a maturação de sua potência que só lhe édada como gestalt. Essa gestalt que tem sua freqüência ligada à espéciesimboliza a permanência mental do Eu, sendo também o queconcomitantemente prefigura sua destinação alienante” (Lacan, 1998, p. 97e 98).

Quando Lacan fala que, na experiência do estádio do espelho, o infansencontra no semelhante a gestalt do corpo próprio, está implícito que a “Gestaltdo corpo próprio” não se refere apenas ao contorno visual da forma do corpo,mas este corpo deve ter um reconhecimento. Não é com os próprios olhosque a criança se vê, mas sempre com os olhos da pessoa que a ama ou nãoa ama. Bergés e Balbo escrevem que “em torno dos seis meses, frente aoespelho, o filho apreende os indícios de sua imagem pela voz que lhe articulaessa imagem para lhe dar, através de um nome, identidade e ex-sistência”(2003, p 45).

Essa identificação primordial que a criança faz dela mesma com estaimagem, vai promover a estruturação do “Eu”, dando fim à vivência psíquicaque Lacan chamou de fantasma do corpo esfacelado.

GARZIERA, M. O. Contribuição da...

ria, e outra que dá impressão de estrutura permanente, que permanece coe-sa como coisa inassimilável – das Ding.

Das Ding é o que vai proporcionar a coisicidade desejosa do outro eque aponta para o sujeito o caminho do desejo. “O Ding como Fremde, estra-nho, e podendo mesmo ser hostil num dado momento; em todo caso, comoprimeiro exterior, é em torno do que se orienta todo o encaminhamento dosujeito. É sem dúvida alguma um encaminhamento de controle, de referên-cia, em relação a que? – ao mundo de seus desejos” (Lacan, 1991, p. 69).

Esse objeto da primeira experiência de satisfação, quando se consti-tui o desejo, corresponde à Coisa, que jamais será alcançada, seja na aluci-nação do desejo, seja na realidade. Dela, temos somente suas coordenadassimbólicas dadas pelos traços significantes dessa experiência, na qual ela éimagem, e a percepção envolvida nesse processo é visual.

Na psicanálise, a Coisa é o objeto perdido. “É por sua natureza que oobjeto é perdido como tal” (Lacan, 1991, p. 69). No entanto, o sujeito precisair em busca, reencontrá-lo, sem jamais conseguir, constituindo assim, afalta estrutural que dá lugar ao desejo.

Laznik, trabalhando sobre o “Projeto” e com base nos trabalhos dospsicolingüistas e em certos casos clínicos, traz-nos formulações sobre estetema. “Algo do desejo da mãe sobre a criança seria traduzido pelos traçosde seu rosto, no modo de olhá-lo; isto também estava registrado no póloalucinatório de satisfação. Hoje, permito-me dizer que esses traços são tam-bém acústicos e que têm seu eixo nos modos prosódicos da fala dos pais aseu bebê” (Laznik,2004, p.70 e71).

Lacan faz uma releitura de Freud; elabora conceitos que trazem luzsobre o funcionamento e, acima de tudo, sobre a instauração precoce donosso psiquismo. Dentre suas elaborações, inicio por uma linha norteadora– sua construção sobre o estádio do espelho.

Como ocorre o estádio do espelho no processo de subjetivação?O estádio do espelho é um período da constituição do sujeito que

ocorre dos seis aos dezoito meses, inicialmente marcado pela prematuraçãodo sistema nervoso. Uma das referências a este período encontramos em

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É importante assinalar que a imagem especular não é apenas umaimagem onde o eu pode se reconhecer, mas também diz do caráter de ima-gem ideal. E em relação a essa imagem ideal, o eu está sempre aquém.Está sempre insuficiente e prematuro frente a essa imagem.

Entre o eu e esta imagem pode colocar-se uma relação deagressividade, uma vez que se estabelece tensão entre o eu e a imagemideal. Assim, a noção de agressividade como tensão, correlata à estruturanarcísica no devir do sujeito, permite compreender todos os tipos de aciden-tes e atipias desse devir.

O que acontece com a criança com autismo em relação ao estádio doespelho?

Entre os sinais a serem observados no diagnóstico precoce do autismo,Laznik (2004) destaca o OLHAR. Refere que o não olhar entre uma mãe eseu filho e, principalmente, o fato de a mãe não poder dar-se conta distoconstitui um dos principais sinais que permite pensar durante os primeirosmeses de vida na possibilidade de um autismo; as estereotipias aparecemmais tarde.

Se este não olhar não evoluir necessariamente para uma síndromeautística caracterizada, pensa Laznik, não deixa de ser, no entanto, sinal deuma dificuldade ao nível da relação com o outro. Fica claro que, se nãohouver uma intervenção, o estádio do espelho não se constituirá, pelo menosnão na evolução conveniente.

Desde Wallon, vários autores nos trazem informações sobre o tempopré-especular. Zazzo nos diz “que o bebê está presente no mundo bem an-tes dos seis meses, bem antes da construção completa dos objetosinvariantes, coisas e pessoas” (1989, p. 131).

Renè A. Spitz (1949), desenvolveu pesquisas a respeito do auto-ero-tismo em crianças, no primeiro ano de vida. As atividades auto-eróticasinvestigadas foram o conhecido ‘embalar’ dos bebês, o jogo genital e o jogofecal.

Trabalhando o conceito de transitivismo, Bergés e Balbo (2003), refe-rem que, para a experiência do estádio do espelho ser possível, a relação

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Segundo Wallon (1971), no processo vivido pela criança na conquistade sua imagem destacam-se basicamente três fases: num primeiro momen-to, a criança considera a imagem refletida no espelho como real; num segun-do momento, há uma imagem que é de um semelhante. Num terceiro mo-mento, a criança percebe que essa imagem é dela mesma; apropria-se desua imagem.

O que Lacan concebe como matriz simbólica, por ocasião de suacomunicação sobre o estádio do espelho em 1949, fica melhor explicitadocom as elaborações que faz nos anos subsequëntes quando trabalha com oesquema óptico.

No Seminário X (1962-1963), “A angústia”, Lacan dá ênfase à funçãoestruturante da “falta” que nomeia “menos phi”. Questiona a formação daimagem real, aquela do primeiro reconhecimento que faz recair sobre o cor-po fragmentado do bebê um ideal, fazendo com que ele ocupe o lugar de“Sua Majestade o Bebê”.

O olhar de amor do Outro marcado pela falta, como o apaixonado, buscao que espera completá-lo. Vai dar o que não tem, por isso, deseja. É esta açãode doação que possibilita à criança a falicização, a libidinização do seu corpo.

Atrás do espelho plano, não aparecerá a imagem virtual da imagem realcomo cópia uma da outra. Os pequenos a não são especularizáveis. Lacan faladisso como a não especularização do falo que volta na imagem virtual, naimagem especular, como uma falta – a imagem especular porta o registro de“menos phi” no lugar que corresponde aos objetos a na imagem real.

Como se opera a construção do Outro da criança nesse momentoespecular?

Na formação da imagem real, a condição da mãe ou de quem desempe-nha a função materna de situar a criança no lugar de Ideal está na dependênciado dom da falta da falta. A doação que a mãe faz ao seu bebê está ligada aolugar que ela reserva ao pai (Lacan, 1999). Assim, se na ocasião do nascimen-to de um bebê essa falta estiver obturada na fantasmática materna pelas maisvariadas circunstâncias, essa criança poderá ter dificuldade na constituição daimagem real.

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sugando a chupeta, ouvindo a prosódia do “manhês” mesmo se tratando deuma gravação. Mas ela constatou que o bebê manifesta uma resposta dife-rente ao ouvir a gravação da fala da mãe, falando ao seu bebê, se esta foragravada sem a presença dele.

Laznik chama a atenção para a diferença radical entre o objeto causade desejo – o da pulsão – e o objeto da satisfação da necessidade, que nãoestá presente na pesquisa de Fernald.

Dos ensinamentos da pesquisa, Laznik diz que, desde o nascimentoe antes de qualquer experiência de satisfação alimentar, o “recém-nascidotem uma apetência extraordinária para o gozo que a visão de sua presençadesencadeia no Outro materno. Os bebês que se tornaram autistas noslevam a pensar que o recém-nascido só olharia para sua mãe – ou o Outroprimordial de sua vida – quando ele fizesse a experiência desta prosódia navoz materna. Esta prosódia lhe possibilitaria identificar sua presença comoobjeto causa de um gozo deste Outro primordial. E ele procurará tambémfazer-se objeto deste olhar, no qual ele lerá que ele é o objeto causa dessasurpresa e dessa alegria que a prosódia da voz e os traços do rosto maternorefletem. Ele terá então amarrado com ela um circuito pulsional escópico”(2004, p. 82).

A partir das contribuições dos diferentes autores mencionados acima,constatamos que eventos significativos necessitam ser vivenciados pelo bebêno decorrer do período pré-especular para que ele possa passar pela expe-riência do estádio do espelho.

Assim, para que o bebê possa, mais tarde, ter a plena vivência de seucorpo, faz-se necessário uma complexa articulação entre a realidade da cri-ança e o olhar dos pais. Esse olhar presença faz com que a mãe possaescutar nos balbucios do bebê mensagens significantes que, mais tarde,delas ele se apropriará. A mãe como escrevem Bergès e Balbo (2003), faz ahipótese de que o filho tem um saber – antecipa, vê, escuta e fala algo queainda não está, para que possa um dia advir.

Se a mãe não consegue fazer a hipótese de uma demanda em seufilho, se os pais não tiverem uma ilusão antecipadora em relação ao bebê,

GARZIERA, M. O. Contribuição da...

transitivista entre a mãe e seu bebê deve existir bem antes do sexto mês,período do início do estádio do espelho, sendo que é justamente o transitivismoque torna possível a experiência do espelho.

Bergès (2004), num texto publicado no site da Associação FreudianaInternacional, “Mãe pré-especular”, fala que o corpo da criança não é somen-te receptáculo das manobras da mãe, de seus cuidados, de suas fantasiaseróticas, de suas intervenções oportunas ou, a contratempo, dos acordos edesacordos na tensão ou na detenção, gerando descargas, sendo “instru-mento antecipatório primário, vindo a surpreender a mãe pelas mudanças deregistro”. Este espanto, também apontado por Laznik, em outra perspectiva,diante da passagem do registro do auditivo ao visual, do tônico ao motor, nosono à atenção. “É este instrumento instável que suscita sem cessar o es-pelho na mãe bem antes que o estádio do espelho esteja em jogo e venha asustentar a falicização da mãe (2004, wwwfreud-lacan.com).

A ausência-presença da criança para a mãe permite à criançadesolidarizar-se da postura, do olhar e dos movimentos da mãe porque acriança está ausente para ela. Bergès coloca que é este o fundamento queLacan destaca da função de chamado da criança para a mãe e para elaprópria em referência a um terceiro. “Da mesma forma, isto caminha no sen-tido do que tende a situar a mãe no lugar do grande Outro? Porque nestapaixão de ser o chamado para ela e para ele próprio, não se trata somente dadimensão da imagem: para que a criança chame a si mesma, é necessárioque faça referência a seu corpo próprio na imagem que a mãe pode doar. ‘Adoação da imagem pré-especular é antecipatória aos eventos que vão sesuceder na criança’” (grifo meu). (Bergès, 2004, wwwfreud -lacan.com).

Laznik faz uma leitura dos dados constatados na pesquisa de Fernald(1982) para pensar a possibilidade da voz ser o primeiro objeto da pulsãooral. Fernald, em seu trabalho com recém-nascidos de um a três dias devida, descobriu que, antes mesmo do leite “descer”, um bebezinho que nãoteve experiência de satisfação alimentar, ao ouvir uma forma prosódica parti-cular da voz da mãe – motherese (manhês) – dirigindo-se a ele, torna-semuito atento e começa a sugar com intensidade uma chupeta. Ele continua

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Lacan, no “Seminário - livro XI” – fala sobre as duas operações decausação do sujeito – a alienação e a separação. Na dialética do advento dosujeito, o vel da alienação se dá pela dependência do próprio ser em relaçãoao Outro, uma vez que o significante está primeiro no campo do Outro – eume alieno no desejo do Outro ou entro em “afânise”. Antes do primeiro movi-mento em direção ao Outro – como lugar de significante, eu não sou nada.

A separação finaliza a circularidade da relação do sujeito ao Outro,fala Lacan, aí evidenciando uma torção essencial. Enquanto a alienação estáfundada na subestrutura da reunião, a separação está fundada na subestruturachamada intersecção. Ela vai ter elementos que pertencem aos dois conjun-tos; situa-se nessa parte onde reencontramos a forma da hiância, da borda.

No ponto de intersecção, imbricam-se desejo do Outro e desejo dosujeito. Assim, ela surge do recobrimento de duas faltas, estando implicadoo desejo de um sujeito que está pendente ao Outro e o desejo do Outroenquanto falta em seu discurso, o que aponta ao Outro materno uma funçãodiferente da que ocorre na alienação – a de introduzir não só o significante,mas a própria falta, condição do desejo.

Laznik (1991), partindo dos conceitos de Lacan vistos nas operaçõesde causação do sujeito – alienação e separação, diferencia, por um lado,certas psicoses como a paranóia e, por outro, o autismo. Seguindo o racio-cínio de Soler (1990), ela tenta mostrar que, no autismo, o que fracassa é otempo da alienação, ao passo que na constituição subjetiva do paranóico, oque fracassa é o tempo da separação. Avança, fazendo uma construção – ofracasso da instauração do tempo de alienação do ponto de vista do fracassodo circuito pulsional, considerando que o enlaçamento dá uma consistênciareal à alienação. Não podemos esquecer o que vimos no estádio do espelho– dimensão imaginária da alienação quando da captação da imagem do se-melhante e a “permanente questão sobre o que acontece à criança que nãochega a este estádio, que frente a essa imagem fica indiferente”.

Para Lacan, a pulsão não é só uma articulação entre o biológico e opsíquico, mas principalmente uma articulação entre o significante e o corpo.Mas o corpo, como vimos, não é só o biológico, é uma construção onde está

GARZIERA, M. O. Contribuição da...

vendo nele tão somente um corpo, impossibilitam também qualquer advir. Obebê se ressente da falta dessa imagem real que o deixa sem imagem docorpo e, consequentemente, sua vivência de unidade corporal.

A ausência da imagem do corpo, segundo Laznik (1991), tem comoconseqüência o bloqueio da possível reversibilidade da libido do corpo para ade objeto. Do mesmo modo, isto se coloca como impedimento na passa-gem da imagem real i(a) à imagem virtual i’(a).

A autora, em seu artigo “Poderíamos pensar numa prevenção dasíndrome autística?” (2004), refere que, pelo entendimento da psicanálise, amanifestação de uma síndrome autística pode ser concebida como traduçãoclínica da não instauração de determinadas estruturas psíquicas que, devidosua ausência provocam déficit cognitivo, entre outros. Também pelo entendi-mento da psicanálise, Jerusalinsky, quando escreve “Para uma clínica psi-canalítica das psicoses”, afirma que “não se constitui no autismo isso quepodemos chamar de estrutura mínima, que é a estrutura do fantasma. Éesse o único quadro clínico, a única forma de funcionamento mental, em quenão há fantasma” (1996, p. 147).

O CIRCUITO DA PULSÃOA ausência de uma imagem do corpo constituída tem como conseqü-

ência a não interação, o não fazer laço com o social, pois não há sujeitopsíquico. Isto, em última instância, se apresenta como uma falha do circuitopulsional onde se dá o encontro do sujeito com o Outro.

Freud nos diz em “As pulsões e seus destinos”, que o sujeito dapulsão, num primeiro momento, tem papel ativo, buscando o objeto. Numsegundo momento, a pulsão muda de objeto e retorna ao Eu: “A essência doprocesso é, assim, a mudança do objeto, ao passo que a finalidade perma-nece inalterada” (1915, vol. V p. 132). Então, há uma mudança da posiçãoativa de buscar o objeto para uma reflexiva onde o indivíduo é, ao mesmotempo, objeto e agente da pulsão (auto-erotismo). Num terceiro momento, osujeito vem ocupar a posição passiva e, o Outro da função materna, a posi-ção ativa.

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seja, as representações inconscientes não se constituindo, estão ausentesmetáfora e metonímia, processos de condensação e deslocamento. Segun-do ela, quando o terceiro tempo não acontece, é porque o segundo tempo dapulsão em que o bebê é objeto e agente da pulsão (auto-erotismo) já nãoocorreu como deveria; ao invés de auto-erotismo – há aut + ismo, sem eros.“Quando esse terceiro tempo acontece, ele garante que, no pólo alucinatóriode satisfação do desejo, haverá traços mnêmicos deste Outro materno, des-te próximo assegurador. Trata-se, mais precisamente, de traços mnêmicosde seu gozo; deste momento em que a mãe sorri de prazer para esse bebêque se faz olhar ou que oferece seu pé para morder. Temos, então, certezade que, quando ele estiver sozinho, sugando seu polegar ou chupeta, haveráreinvestimento dos traços mnêmicos deste Outro materno” (2004, p. 80).

É interessante retomar o pensamento de Bergès e Balbo quanto àincapacidade da mãe de fazer a hipótese de uma demanda em seu filho oude permitir “o golpe de força”, tendo como conseqüência o não acesso à fala,partindo do retardo de linguagem até o mutismo, porque se verifica umaconcordância dos autores estudados no que diz respeito ao não acesso àlinguagem verbal.

Laznik (1997), em sua obra “Rumo à palavra”, aprofunda a questão da“estereotipia”, utilizando a noção de “ato”. Ela compara a tendência em repe-tir indefinidamente uma ação por ela mesma, por parte de uma criança autistaem análise, com o jogo do fort-da da criança do carretel. A repetição da açãopor ela mesma, da criança autista, destitui seu valor de ato, ao passo que ojogo do fort-da é um “ato”.

Com isto, as condutas estereotipadas são comportamentos que,embora sejam repetidos até o esgotamento, não são da ordem da compulsãoà repetição, porque esta já se encontra no registro da pulsão. As condutasestereotipadas são acima de tudo “meios de descarga, manobras deevitamento defensivo (elisão) contra a lembrança de traços mnésicos ou per-cepções dolorosas proveniente do mundo exterior” (1997, p.70). São condu-tas que não tem um objetivo de ato, não conduzem representação da ausên-cia como no jogo do fort-da. As gesticulações automáticas, na sua origem,

GARZIERA, M. O. Contribuição da...

implicada uma imagem totalizante i(a), numa composição onde o olhar e odiscurso do Outro tem lugar fundamental.

As zonas erógenas podem estar em diferentes partes do corpo, massó são reconhecidas nos pontos em que se diferenciam pela sua estruturade borda. “Por que as zonas ditas erógenas só são reconhecidas nessespontos que se diferenciam para nós por sua estrutura de borda? Por que sefala da boca, e não do esôfago, ou do estômago?”(Lacan, 1988, p.160). Combase nesse conceito de Lacan, Laznik (1991) nos reporta à importância domesmo na clínica das crianças com autismo, onde essas zonas não fazemborda. É a saliva que rola pelos lábios, são os esfíncteres que não fazem suafunção. Para ela, faz sentido pensar que são zonas que não são tomadaspelo circuito pulsional. Assim, a pulsão se movimenta num circuito, enlaçan-do-se sobre o ponto de partida, obtendo sua satisfação.

No entendimento dessa autora, os avanços de Lacan sobre os escri-tos de Freud ajudam a pensar a clínica do autismo. Através da noção daalienação, ele opera um enodamento entre o surgimento do sujeito eenlaçamento do circuito da pulsão, com isso desenvolvendo um tema que éum avanço específico de sua construção – o sujeito enquanto sujeito doinconsciente. Conforme o exposto, pelo enlaçamento da pulsão, o sujeitovem alcançar a dimensão do Outro. É o sujeito do inconsciente constituindo-se no campo do Outro. Vemos que, para Lacan, o primeiro advir depende doterceiro tempo do circuito da pulsão. Antes desse terceiro tempo, não existesujeito da pulsão.

Nesta mesma linha de pensamento, estão as elaborações de Bergèse Balbo; “(...) o transitivismo faz passar o sujeito ao ‘novo sujeito’, ao outro,esse semelhante graças ao qual os retornos concernentes ao objeto e asinversões concernentes às metas e, portanto, ao sujeito, são possíveis.Mais exatamente, nada de novo sujeito pulsional sem transitivismoantecipador” (2002, p.28).

À luz das elaborações de Lacan e de seu fazer clínico, Laznik pensaque, sem o terceiro tempo da pulsão, sem o enlaçamento pulsional, a crian-ça não acede ao campo da linguagem ou esta se encontra empobrecida, ou

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SEÇÃO TEMÁTICA

DELIMITANDO FRONTEIRAS: CORPO, SUBJETIVAÇÃO E PALAVRA

Elaini Alves Gonçalves

A proposta deste trabalho é refletir sobre a aquisição da linguagem,mais especificamente da fala, situando-a como uma das mais importantes conquistas do indíviduo, pensando também na sua relação

com o processo de subjetivação na infância.Inicialmente, gostaria de fazer referência aos significados que são

emprestados ao termo “infância” conforme descreve Ângela Vorcaro (1997).Infância: do latim infans, infantis refere-se aos que não falam. Infantia:

falta de eloquência, dificuldade de explicar-se, condição em que não se fala.Criança: radical indo-europeu ker; origem creantia, particípio creare.

Referente ao animal que está se criando. Criado: crescido, educado ou ser-vo, empregado. Sob este verbo inscreveram-se implicações de “tirar do nada,transformar, cultivar, inventar” e “ainda produção, eleição, escolha, nomea-ção”. Caráter da criança enquanto processamento do ato criativo de outremque a inventa, estabelece, funda ou institui; permite acepção da criança en-quanto única, singular, feita a existir, trazida à luz .

A expressão “condição em que não se fala”, nos remete a pensar emuma menina de três anos, a quem chamaremos de Letícia, bastante curiosa,alegre e comunicativa e que, na ausência da mãe, evitava dirigir-se a qual-quer adulto, até mesmo pelo olhar. A partir dessa situação questionamos,no processo de interação mãe/criança, quais as condições subjetivas quepermitem ao indivíduo fazer o uso da palavra de maneira significativa.

A relação mãe/bebê tem sido amplamente discutida e valorizada nosúltimos anos. Cada vez mais se confirma a importância do laço que se formaa partir dessa díade e suas consequências para a subjetivação deste pequenoser. Desde o nascimento, é através do corpo que esse vínculo (reforçado pelavoz, pelo toque e pelo olhar) se instala e é realimentado quando a mãe simbo-liza a linguagem do bebê, colocando significados às suas manifestações.

GONÇALVES, E. A. Delimitando Fronteiras...

foram da ordem de um ato, sendo que seu papel organizador pré simbólicoficou a caminho. Assim, seria a emergência de fala que não aconteceu. Nãoexistiu um lastro significativo para que isso acontecesse.

Bergès e Balbo (2003), fazendo um deslocamento do funcionamentodescontrolado da letra, em que os significantes foram degradados para ocorpo introduzido na motricidade, no sentido que ela está ligada a uma ativi-dade repetitiva, robotizada das estereotipias, afirmam que estes movimentosestão desprovidos não de sentido, mas de significantes. Isso quer dizer que,em sua atividade, não importando qual, não há significante para dar consis-tência ao corpo no autismo.

Finalizando essa investigação teórica, destacamos a importância dodiagnóstico precoce com o objetivo de realizar intervenções que possamestabelecer ou restabelecer um circuito pulsional pois as evidências nosapontam que quanto antes estas forem realizadas, mais exitosos poderãoser os resultados. A importância do diagnóstico precoce também é testemu-nhada no dia-a-dia do nosso trabalho, tanto nas Classes de Educação Tera-pêutica como nas demais classes.

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SEÇÃO TEMÁTICA

A relação fusional que se instala a partir do nascimento tende a sermodificada à medida que a mãe libidiniza o corpo do filho, principalmenteatravés dos orifícios pulsionais.

O contato corporal, a voz e as significações atribuídas às manifesta-ções da criança, permitem à mãe inserir marcas no corpo do bebê, come-çando a estabelecer fronteiras, separando-o do corpo materno. Assim, ostraços de ligações fusionais são substituídos por experiências de separaçãoe frustração, que vão permitir a transição do estado de “não–eu” para o esta-do de “eu”.

Winnicott nos diz que o objeto transicional é a primeira propriedade“não-eu”, protegendo a criança da angústia da separação. Embora seja con-siderado como substituto do seio, não é visto como parte da realidadeexterna e permitirá que a criança efetue a transição necessária entre arelação oral com a mãe e uma verdadeira relação de objeto, onde poderáreconhecer-se .

A fala pode ser adquirida quando a criança for capaz de perceber umadiferença entre a realidade externa e interna e estabelecer uma relaçãoanalógica entre elas , denominada por Winicott como “área transicional” (DidierAnzier, 1997).

Para Lacan, embora a criança tenha oportunidade de realizar experi-ências de separação e frustração sucessivas, apenas no período edípico,quando estiver em confronto com a lei de proibição do incesto, é que serácapaz de aderir à ordem simbólica, renunciando às tentativas de repetir asrelações fusionais. Nesta ótica, a criança passaria por um processo primá-rio, substituindo a presença da mãe desejada por uma imagem perceptiva.Em seguida, a ligação vocal com a mãe apoiada pela imagem perceptivapermitirá que a criança inicie-se nos jogos circulatórios vocais, repetindosons que ouve, como se fossem sinais da presença materna. Assim, a cas-tração oral, que separa os lábios do seio, permite a descoberta dos prazeresda fala.

As experiências de castração oral, anal e fálica, por sua vez, darãoacesso a modalidades mais complexas do processo secundário, enquanto

GONÇALVES, E. A. Delimitando Fronteiras...

Inicia-se uma relação fusional, em que a mãe empresta seu corpo esua voz à criança, desenvolvendo uma comunicação que se dá através deuma linguagem particular.

Ela é capaz de distinguir diferentes tonalidades de choros, gemidos evocalizações, inserindo assim o bebê no campo da linguagem. Essa relaçãoé dita fusional, uma vez que caracteriza um estado de coisas em que oscorpos da mãe e do bebê se confundem.

Sabemos que o recém-nascido quando é amamentado, percebe oseio como uma parte do seu corpo e para a mãe a sensação não é muitodiferente, pois em seu imaginário as partes do seu corpo também pertencemao bebê. O discurso materno pode evidenciar a indiferenciação entre o corpoda mãe e o da criança. Percebemos situação semelhante ao observar a mãede Letícia que, referindo-se ao primeiro ano de vida de sua filha, dizia: “Nóstínhamos refluxo.”

Freud (1905) definiu a pulsão como um dos conceitos de demarcaçãoentre o psíquico e o somático, salientando a relação do recém-nascido como seio materno, as fezes e os genitais.

Quando Lacan (1964) nos fala nos objetos da pulsão situa entre eles,além do seio e das fezes também a voz e o olhar.

O contato corporal com a mãe, mediado pela voz, permitirá que obebê deixe de ser apenas um corpo. Nesta perspectiva, Myriam Szejer(1999) refere que a voz pode se tornar mais apta a levar à vida que o cortedo cordão umbilical, uma vez que ela nomeia, distingue e celebra o cor-po da criança.

Para o bebê, a presença de um outro que signifique suas reações efale em seu lugar, possibilita sua inserção no campo da linguagem, vinculan-do-o com o seu corpo e sua história.

Por outro lado, as manifestações da criança podem falar de suas rela-ções com a alteridade, constituindo um indicativo de suas relações com oOutro. Françoise Dolto (1999) salienta a importância da voz no processo desubjetivação dizendo que “quando se fala diante de um bebê sem falar à suapessoa, pouco a pouco ele vai parando de escutar.”

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materno, fazendo com que os significados circulem para além da díademãe/filho.

Annie Anzieu (Didier,1997) refere que a aquisição da fala tambémestá intimamente relacionada à aquisição do andar, uma vez que é atravésdesta última que a criança tem a possibilidade de “perceber ativamente aseparação espacial real de sua mãe”, que, até o momento, era sofrida deforma passiva e dolorosa .

Quando começa a andar, a criança passa a correr riscos ao mesmotempo em que será alvo de ordens e proibições verbais que tomarão o lugar do“discurso-prazer” que recebia da mãe como puro “desdobramento narcísico”,favorecendo, assim, o processo de separação, afirma Renné Spitz (Didier,1997).

No momento do nascimento, a identificação da mãe com a criança éintensa, porém, é imprescindível que o bebê consiga separar-se dela paraadquirir identidade e voz próprias. A criação de círculos de inclusão e exclu-são permitirá ao bebê apropriar-se da sua voz.

Neste contexto acontecem também as experiências do brincar queWinnicott descreve como “uma forma fundamental de vida”. As brincadeiras,os jogos com palavras, ritmos e canções propiciam um espaço de união eseparação entre mãe e bebê, pois convocam a criança a participar de formacriativa. Podemos dizer que os jogos de faz-de-conta, assim como os jogoscorporais e de repetição, explorados cotidianamente no período da infância,possibilitam o acesso à palavra, primeiramente a nível corporal, até chegar àorganização de uma sequência discursiva. Ouvir contos ou relatos de suaprópria história, também pode auxiliar a criança a construir sua versão e suanarrativa.

A capacidade discursiva permite à criança alcançar um saber, cons-tituído a partir do Outro, possibilitando a construção do sujeito, ou seja, desua condição desejante.

Finalizando, trazemos o pensamento de Bernard Gibello (1997) quan-do diz que: “Para compreendermos o que significa não falar, precisamossaber o que significa falar. Cada uma de nossas palavras enuncia pelo menostrês discursos diferentes... Mal falar nos remete a anomalias das possibilida-

GONÇALVES, E. A. Delimitando Fronteiras...

a castração simbólica edipiana permitirá à criança identificar-se e, ao mes-mo tempo diferenciar-se das figuras parentais, increvendo-se na “ordem sim-bólica”.

Roland Gori (1997) afirma que “a linguagem amarra em um elo fusionalaquele que fala e aquele que ouve”. Desta forma pode-se dizer que o ato dafala é um prolongamento narcísico e pulsional, que substitui a experiênciacorporal através de uma metáfora.

Muitas vezes é difícil compreender o que significa não falar ou malfalar. Lembramos novamente a mãe de Letícia, que ao comentar orgulhosa ocrescimento significativo do vocabulário da menina, nos diz: “Olha como aLetícia já fala aqui na escola. Antes ela não deixava que as professorasouvissem a sua voz!”

Pensando na importância da voz para a subjetivação da criança, po-demos questionar sobre os fatores que, num determinado momento, impedi-ram Letícia de soltar a sua voz, convocando a atenção das professoras.Consideramos importante, também, evidenciar o tipo de vínculo inicialmentemantido entre mãe e filha e o início de um processo onde a mãe parecedeixar de capturar para si todas as manifestações da menina, permitindoque esta se direcione a um outro adulto.

Sabemos que a elaboração de teorias sexuais infantis permite à criançainiciar uma separação da mãe real, constituindo uma realidade psíquica.

A clássica pergunta infantil “De onde vêm os bebês?” remete à ques-tão sobre o desejo da mãe, ou seja, o desejo que lhe deu origem.

O surgimento da palavra marca o desprendimento da criança desteenigma. Assim, é preciso que ela tenha condições de recalcar o desejomaterno, para que os significantes possam ser compartilhados com outrosadultos.

Podemos dizer que o enigma do desejo da mãe fica preso ao objetotransicional, permitindo a circulação de outros significantes.

É importante salientar que a passagem pelo período edípico tambémrepresenta um momento crucial no processo de subjetivação. A criança come-ça a apropriar-se de um lugar à medida que o pai passa a representar o desejo

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SEÇÃO TEMÁTICA

“CLÍNICA DAS PSICOSES NO AMBULATÓRIO PÚBLICO:UMA CLÍNICA DO SUJEITO”

Giselda da Silveira Endres

A rede pública ambulatorial de saúde mental tem sido convocada atratar diferentes quadros clínicos, tanto relacionados à clínica dasneuroses quanto à clínica das psicoses.

Após algum tempo trabalhando em ambulatório público, observa-seque, nesse conjunto de situações clínicas, aquelas que pertencem ao cam-po das psicoses apresentam maior dificuldade em constituir tratamento. Apartir desta dificuldade de tratar “terapeuticamente” pacientes psicóticos emambulatório, surgem as seguintes interrogações: Por que tantos pacientesvoltam a se internar sistematicamente? Há dificuldade em escutar essespacientes? Não existem espaços adequados de tratamento? Qual aespecificidade da clínica das psicoses? Como esta clínica pode se dar noâmbito do ambulatório público?

A fim de discutir essas questões, é importante registrar que, no coti-diano do ambulatório público, existe uma série de situações adversas que,muitas vezes, dificultam o trabalho clínico.

Tais situações, adversas para o trabalho clínico no ambulatório, pare-cem também estar relacionadas a um modelo hegemônico e sintomático declínica que orienta o ambulatório de saúde mental. Isso se expressa no fatode a clínica das psicoses em ambulatório centrar o tratamento no uso depsicofármacos, com predomínio da atenção nos sintomas e em sua elimina-ção.

Esta estrutura de atendimento ambulatorial, nas décadas de 70 e 80,tinha a intenção de se propor como alternativa à internação hospitalar. Nessaépoca, a idéia consistia na humanização do asilo e na priorização do atendi-mento ambulatorial. No entanto, observa-se que tal resposta alternativa aca-bou não superando a lógica dessubjetivante do modelo manicomial.

ENDRES, G. S. Clínica das psicoses...

des do agir do corpo, a angústias de abandono ou à angústia de castraçãosecundária edípica, e, muitas vezes, às três simultaneamente. Finalmente, agrande surpresa disso tudo talvez seja que, mal ou bem, nós falemos”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANZIER, Didier et alli. Psicanálise e linguagem – do corpo à fala. São Paulo,Casa do Psicólogo, 1997.BERGÉS, Jean & BALBO, Gabriel. Jogo de posições da mãe e da criança –ensaio sobre o transitivismo . Porto Alegre, CMC Editores, 2002.CAMAROTTI, Maria doCarmo (org.) Atendimento ao bebê. São Paulo, Casa doPsicólogo, 2001.COSTA, Ana . (Org) Adolescência e experiências de borda. Porto Alegre, UFRGS,2004.DOLTO, Françoise. Tudo é linguagem. São Paulo, Martins Fontes, 1999.FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). ObrasCompletas. Vol.VII. Imago, 1996.GIBELLO, Bernard. Fantasia, linguagem, natureza: três ordens de realidade. In:Anzier, D. Psicanálise e linguagem – do corpo à fala. São Paulo, Casa do Psicólogo,1997.GORI, Roland. Entre grito e linguagem: o ato de fala. In: Anzier, D. Psicanálise elinguagem do corpo à fala. São Paulo, Casa do Psicólogo, 1997.JERUSALINSKY, Alfredo. “Falar uma criança”. In: Escritos da Criança - 2 . PortoAlegre, Centro Lydia Coriat, 1987.JERUSALINSKY, Alfredo. “O nascimento do sujeito: da voz à letra.” In: SemináriosI. Lugar de Vida, USP, 2001.LACAN, Jacques. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais dapsicanálise (1964). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998.MANNONI, Maud. Amor, ódio, separação. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Edito-res,1995.SZEGER, Myriam. Palavras para nascer – a escuta psicanalítica na maternidade.São Paulo, Casa do Psicólogo, 1999.VORCARO, Ângela. A criança na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro,Cia de Freud,1997.

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O psicótico porém, constrói um saber que não passa por uma referên-cia central, um saber de defesa em que todos os significantes se equivalem,não havendo um mais importante. Daí a errância característica da estruturapsicótica.

No entanto, é comum, pelo que se observa na clínica, as crisespsicóticas acontecerem quando há uma exigência do sujeito responder àdeterminada situação, a qual ele não consegue respondê-la.

Na ocorrência de uma crise psicótica, o saber que até então sustenta-va o indivíduo de repente desmorona. São momentos que se referem a situ-ações em que o sujeito se vê chamado a responder a partir de um lugar noqual ele não tem resposta, caindo no vazio. Pode-se dizer que houve umainjunção ao se referir a uma amarragem central, paterna, e, como ele não atem simbolizada, o seu mundo se crepusculiza, ou seja, o sujeito se vêtendo que dar conta de algo que está além de suas possibilidades psíquicas.

Quanto ao delírio, este é uma tentativa, daquele que atravessa umacrise, de dar sentido ao que irrompe sem qualquer sentido na alucinação.Podemos entendê-lo como tentativa de cura, de construção de uma filiação,de uma significação subjetiva para si. Porém, o delírio, para chegar a sersubstituto da metáfora paterna, tem um trabalho a realizar, tem que consti-tuir uma metáfora delirante, de forma a outorgar uma significação para osujeito. Quando o delírio se constitui, temos a construção de uma defesa emrelação à posição objetal em que o sujeito se encontrava na crise. Ele sedefende construindo uma metáfora delirante, metáfora esta que vem a seruma alternativa à metáfora paterna.

Além do acesso à condição de sujeito, na psicose, se dar através daconstrução de uma metáfora delirante, Lacan (Lacan apud Julien, 1999) apontaa criação artística como uma via que pode funcionar como suplência aosignificante Nome do Pai, que está forcluído no simbólico. A criação, napsicose, pode então, cumprir a função de um nó que amarra e organiza aexperiência subjetiva. Quanto a criação artística ser uma maneira privilegia-da para o acesso à uma posição de sujeito na psicose, o caso de Gabrielaparece apontar nessa direção.

ENDRES, G. S. Clínica das psicoses...

A rede pública de saúde mental, a partir das orientações da Lei deReforma Psiquiátrica em curso no Brasil, tem pautado a necessidade deimplantar outros dispositivos de tratamento para os pacientes psicóticos eneuróticos graves.

Neste percurso de questionamento e construção de novas práticas emsaúde mental na rede pública, faz-se necessário discutir a reformulação dosserviços a partir de uma concepção de psicose e de clínica, visto que as dificul-dades com esta clínica parecem não ser relativas somente ao tipo de disposi-tivo de tratamento. Com isto, ir além do modelo ambulatorial no tratamento depacientes psicóticos é também afirmar a importância e a possibilidade do es-paço de escuta para o tratamento de tais pacientes na rede pública, positivandoa dimensão da clínica, discutindo sua especificidade e seus impasses.

Com o objetivo de caracterizar alguns elementos desta especificidadeclínica, iniciaremos situando o processo de constituição subjetiva, de modoa singularizar algumas questões acerca da estrutura psicótica.

A constituição da subjetividade se dá desde muito cedo na vida do serhumano. O sujeito começa a existir desde antes de seu nascimento nodesejo dos pais. Assim para se tornar um sujeito é preciso ser algo diferen-ciado do seu corpo, é necessário que haja um investimento subjetivo, com asuposição de que naquele corpo haja um sujeito, suposição esta que vai serdada por um Outro. Inicialmente há uma relação de completa dependênciado bebê com o Outro primordial, para que posteriormente seja possível umaseparação, uma diferenciação.

Na neurose ocorre este processo de alienação e de separação. Nes-se caso há a entrada de um terceiro e, com isso, a possibilidade de umaseparação, de uma diferençiação. Há a constituição de uma metáfora pater-na, que amarra significante e significado, constituindo uma amarragemsignificante organizadora para o sujeito, ou seja, o significante Nome do Pai.

Na psicose, porém, não se dá a amarragem de um significante central,um pólo que organiza as significações. É o que Lacan (1998) denomina deforclusão do Nome do pai. “Forclusão” no sentido de “ficar fora”, “rechaçado”, denão ter ocorrido uma simbolização primordial.

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ção de uma significação subjetiva para ela. Porém, a dificuldade em publicarseus demais escritos pode ter ameaçado sua significação subjetiva comoescritora. A doença da mãe (sua patrocinadora) e o fato de não conseguirpatrocínio parece ter sido desestabilizador da significação de escritora, doque a vinha sustentando como sujeito.

Neste caso, por um reconhecimento na cultura, Gabriela constitui umasignificação subjetiva, um lugar de pertença na cultura, que faz função desuplência à metáfora paterna.

Ao tecer algumas considerações preliminares a partir da discussãodo presente texto, podemos pensar que uma clínica possível das psicosesconsista em apostar no advento de uma posição subjetiva na psicose, se-gundo a singularidade de cada paciente e de suas produções no delírio, nashistórias infantis, nos laços que cada sujeito vai construindo para se susten-tar e se produzir como tal. Este trabalho de possibilitar o acesso à condiçãode sujeito na psicose se dá a partir de uma concepção de psicose e declínica que se sustentam no desejo e no trabalho do terapeuta, onde osdesdobramentos do dispositivo institucional podem ser situados como con-seqüência da práxis que o organiza. Neste sentido, acredito que na saúdepública, o dispositivo CAPS apresenta-se como o mais potencializador dotrabalho clínico com pacientes psicóticos, uma vez que possibilita condi-ções favoráveis para esta especificidade de clínica. Porém, também seguidode “adversidades”, uma vez que o trabalho com a loucura é o encontro comuma lógica que nos remete a outra operação de sentido1, o que muitas vezescausa estranheza e resistência àqueles que com ela se deparam.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BRASIL, Ministério da Saúde. Legislação em saúde mental. Brasília, 2004.CALLIGARIS, Contardo. Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. PortoAlegre: Artes Médicas, 1989.

1 Outra lógica, considerando-se a lógica neurótica.

ENDRES, G. S. Clínica das psicoses...

Gabriela iniciou seu tratamento no final do ano de 2002, após seratendida em um serviço de emergência da cidade, apresentando sintomasde depressão e alucinações visuais, além de se encontrar muito confusa edesorientada. Referia sentir muita falta do marido, que havia falecido há cer-ca de seis meses. Apresentou-se como escritora de histórias infantis e, naocasião, estava escrevendo uma. Dizia que tinha um sonho, que era o depublicar um livro. Após algum tempo, apresentou melhora, as alucinaçõescessaram e falou que não precisava mais ir ao atendimento.

Em 2005 voltou para o tratamento. Disse estar se sentindo muito can-sada. Falou que a mãe estava muito doente, cabendo a ela fazer tudo paramãe. Gabriela voltou a ter alucinações visuais, via bichos, morcegos, ara-nhas, dormia muito mal, tinha sono agitado e se debatia ao dormir.

Gabriela publicou seu primeiro livro de histórias infantis em 2003, atra-vés da ajuda da mãe, que financiou a publicação junto à editora. A história ésobre uma abelha que quer ser cantora e pede que a cigarra a ensine. Acigarra mostra a importância do trabalho da abelha como produtora de mel.No final, a abelha não quer mais ser cantora, passando a perceber a impor-tância de seu próprio trabalho.

Atualmente Gabriela fala que não consegue patrocínio para publicarsuas demais histórias e poesias, mas segue escrevendo. Ela explica seugosto por escrever histórias infantis em razão de ter tido uma infância muitosozinha, pois não tinha com quem brincar. E todas as noites, quando peque-na, “o povo” vinha buscá-la e a levava para dentro da parede de seu quarto,entrando num mundo bonito e colorido. Acha que “o povo” era composto deduendes, pois eram seres pequenos.

Atualmente Gabriela está escrevendo duas novas histórias, além depoesias. Uma delas é uma nova história infantil. A outra é para adultos, umconto de terror. Diz que esta história ela escreve devagar, pois tem medo.Escreve e tem a impressão de que as almas vão aparecer.

Pode-se pensar que a criação artística, através da escrita, possibili-tou uma significação para Gabriela. O reconhecimento como escritora, obti-do também através da publicação do seu primeiro livro, possibilitou a produ-

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SEÇÃO TEMÁTICA

DESDOBRAMENTOS DO OLHAR:CONSIDERAÇÕES NA CLÍNICA DA PSICOSE

Claudia Martins Marquesan

Célia chega para atendimento, sentidos aguçados, olhos que chamam a atenção. Um olhar que “salta aos olhos”. Assustada? Talvez.Um silêncio que me intriga. Manifesta-se através do corpo: passa

de um canto ao outro da sala, senta-se ora na cadeira, ora no chão, ora namesa. Tira o sapato e caminha descalça.

Dirijo-me a ela perguntando seu nome. Responde seu primeiro nomee na seqüência diz: “eu esqueço das coisas”.

Inquieta-se frente à tentativa da irmã de expor alguma informaçãosobre sua situação. Ambas pouco conseguem falar. Célia senta-se, le-vanta-se, movimenta-se na sala. Mostra partes do corpo apontandomarcas que atribui a uma das medicações que utiliza. Andréia, suairmã, ocupa-se com papéis e documentos desordenados, os quaisquer mostrar como se estes pudessem transmitir uma história, umaexistência.

Concomitante à fala de que pouco sabe a respeito da irmã, a qualsempre fora cuidada pela mãe, Andréia segue mexendo nos papéis. Mostra-me registros das internações e receitas de medicações, como se a maisnada, além da doença psiquiátrica, pudesse se referir.

Célia nem mesmo cuida da sua higiene pessoal, afirma a irmã. Co-menta ainda que, por vezes, saía de casa e era encontrada, dias depois,como mendiga, vagando sem rumo.

Andréia, ao mesmo tempo em que tenta situar-se na confusão dos“papéis”, fala da dificuldade que está enfrentando com a situação nova de“cuidar” da irmã.

Interrompe a fala pedindo à Célia, a qual se inquietava com a cena,que colabore com ela. Esta fala da irmã tem efeito: Célia senta-se e volta seuolhar para ela.

MARQUESAN, C. M. Desdobramentos do...

______. Texto sobre As Psicoses, Seminário 3 de Jacques Lacan. Porto Alegre:Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 1989.FREUD, Sigmund. (1911). Notas psicanalíticas sobre um caso de paranóia. In:______. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980.JULIEN, Philippe. As psicoses: um estudo sobre a paranóia comum. Rio deJaneiro: Companhia de Freud, 1999.LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 3: As psicoses (1955-56). Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 2002.______. (1958) De uma questão preliminar a todo tratamento possível das psi-coses. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1998.POMMIER, Gérard. O desenlace de uma análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1987.RAMALHO Rosane. A escuta do delírio na psicose. Em: Correio da APPOA nº 111,Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, 2003.TENÓRIO, Fernando. Psicanálise e a clínica da reforma psiquiátrica. Rio de Ja-neiro: Rios Ambiciosos, 2001.______. In: QUINET, Antônio (Org.). Da reforma psiquiátrica à clínica do sujeito.Psicanálise e Psiquiatria: Controvérsias e Convergências. Rio de Janeiro: RiosAmbiciosos, 2001.

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SEÇÃO TEMÁTICA

Célia também diz que a mãe costuma se dirigir a ela perguntando sejá almoçou, quando então lhe alcança uma xícara de café acompanhada dosremédios (considerados remédios para dormir). No transcorrer das sessões,Célia vai afirmar: “eu queria mais do que dormir, comer e tomar remédio”.Parece que, com esta fala, arma recursos à posição de exterioridade, esbo-ço a um distanciamento do Outro.

Logo que chega, Célia não consegue desvencilhar-se da condiçãorestrita de dormir, comer e tomar remédio. Esta condição configura seu coti-diano. Trata-se, então, de significantes que não abrem espaço de significa-ção, que a tomam de forma imperativa, aprisionando-a numa condição alie-nada.

De início, neste fragmento, pontos importantes se destacam, salien-tando a precariedade e a inconsistência subjetiva. Entre eles a inquietaçãode Célia, talvez assinalando a ausência de um lugar de sujeito, o estatutoatribuído aos documentos, papéis que concretamente parecem representá-la, os significantes do quadro familiar, que parecem impor um destino, e,principalmente, a escassez de palavras e significações.

Mas é o olhar que, de forma peculiar, me parece roubar a cena. Nãose trata do olhar como fascinação, o que estaria do lado da captura e comotal, da paralisia. Ao contrário disto, o olhar instituindo um movimento. Esteolhar, tanto no que diz respeito a um enlace transferencial, quanto à susten-tação do movimento subjetivo, que a partir deste enlace, se constitui.

O substancial movimento de Célia ao passar da pura inquietação,com manifestações motoras, à possibilidade de articulação discursiva, em-bora que de forma fragmentada, é notório e instigador.

Interrogo-me sobre a função do olhar neste movimento. Sabemos quelá onde o olhar está implicado, a voz nunca está longe. Percebo, pois, quese configura uma conjugação que toma um caráter inseparável: olhar/voz/escuta.

Parece-me que a função do olhar, na transferência, tem dimensõespeculiares quando a posição subjetiva não está efetivamente consistente.Refiro-me à situação do sujeito que não encontra um lugar simbólico, que

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Andréia enfatiza, ao se voltar novamente aos papéis, que Célia nãoconsegue ficar com seus documentos, rasga-os ou perde-os. Fala tambémque Célia não ficou com seus filhos e não deixou que alguém da família oscuidasse, dando-os a estranhos.

Durante as colocações da irmã, por vezes, dirijo meu olhar à Célia.Nestes momentos, de forma repetida, manifesta-se dizendo: “não me lem-bro”. Esta expressão talvez não carregue somente a dicotomia do lembrar edo esquecer. Tampouco, parece estar referida a algum ponto na fala da irmã.Trata-se, me parece, da dificuldade de situar-se, de acessar significaçõesque minimamente pudessem sustentá-la como sujeito. Ao mesmo tempo,percebo que nada teria falado se não tivesse lhe dirigido o olhar.

Passo a escutar Célia sem a presença da irmã. Coloco-me espacial-mente muito próxima a ela. Dirijo meu olhar ao seu. Célia aceita a proximida-de e corresponde ao olhar, também mantendo seu olhar dirigido ao meu.Este movimento de escutar Célia sem a presença da irmã, sustentado pelaproximidade física e pelo olhar, transforma o que, num primeiro momento,era manifestação corporal, com possibilidade de agitação psicomotora, emconstrução narrativa.

Célia inicia sua fala pelo relato de vivências que denomina “momentosde crises”. Caracteriza-os como “sem fronteiras”: saía sem rumo, passavamuitos dias vagando pelas ruas, algumas vezes chegando a ser internadapor policiais e pessoas estranhas que a encontravam em situações de risco.Mostra no corpo marcas do desamparo, cicatrizes de atropelamentos e deagressões físicas.

A fala é truncada, intercalada com momentos de choro. Por vezes,pergunta-me qual a importância do que está falando, parecendo, desta for-ma, buscar significações. Ao responder-lhe tratar-se da sua vida, ela percor-re novos fragmentos de sua história.

Ao longo da construção narrativa, Célia aborda as expressões que serepetem na fala da mãe. Afirma: “Ela diz o tempo todo que eu só faço coisaerrada”. “Sempre me chamando de louca”. Estes ditos são freqüentementeutilizados para dar nome às suas atitudes.

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SEÇÃO TEMÁTICA

O olhar, então, como espelho que imaginariamente contorna, faz “fron-teira”, proporciona certa consistência ao eu, na medida em que não o captu-ra como puro objeto, instituindo um hiato, um espaço à palavra. Assim sen-do, o olhar parece sustentar, na transferência, a marca da suposição desujeito. É então esta marca – a suposição de sujeito – que tem no olhar seusuporte imaginário, que sustenta a construção narrativa e, como tal, a possi-bilidade de saída da situação de inconsistência subjetiva, que por ora estácolocada.

Retomemos o movimento de Célia: em determinado momento, elafala sobre ter aprendido a fazer crochê, primeiramente, situando-o comoum ensinamento da mãe. Depois, relacionando-o ao período que esteveinternada num hospital fora do estado. Acompanho-a na retomada destaatividade.

Posteriormente, com certo entusiasmo, aponta uma mudança na re-lação com algumas vizinhas. Refere-se a estas como se a estivessem “olhan-do” de forma diferente. Enquanto a vêem fazendo crochê, dirigem-se a elaperguntando sobre o que faz.

Célia tece com a linha do crochê e com as palavras, sob o olhar quelhe é dirigido. Isto institui novos espaços. Avança nas possibilidades de cir-culação social. Passa a visitar as vizinhas, a sair de casa para caminhadasao longo da quadra e, por vezes, vem mostrar roupas que ganha de presentedestas “novas amigas”.

Logo, porém, este tecer se interrompe. Por algum tempo, Célia seausenta do espaço de atendimento, pois Andréia não consegue acompanhá-la nas sessões e ela não transita desacompanhada na cidade.

Esta circulação, tendo em vista um destino, é, para ela, impossível.Célia acompanha os passos, hoje, da irmã, anteriormente, da mãe. Nãosabe dizer do espaço por onde anda. Todas as ruas lhe parecem iguais,nada marca uma diferença.

Não se estabelece uma figura ordenadora, um mapa com contornosque definam início, fim ou marquem fronteiras. É como se não existisse umponto que decidisse o valor dos outros.

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fica imaginariamente perdido no Outro. Logo, pouco consegue enunciar, nãofala em nome próprio.

Nesta situação, o efeito do olhar seria, então, da ordem de umenlaçamento constitutivo do lugar de sujeito?

A constituição subjetiva parte de uma disjunção entre o campo doOutro – lugar da linguagem, conjunto de significantes que precede o sujeito– e o lugar do sujeito.

O movimento proposto por Lacan é o da circulação entre a alienaçãoe a separação. A operação de alienação no Outro é fundante, mas é com omovimento de separação que o sujeito constitui um modo singular de relaci-onar-se e posicionar-se frente ao desejo do Outro.

Para a psicanálise, a psicose é uma estrutura psíquica, na qual osujeito tem uma relação peculiar com o que lhe é dirigido pelo Outro. Oparadoxo da relação constituinte de alienação no Outro e separação éproblemático. Não se constitui o retorno da imagem integradora, ficandoo sujeito psicótico aprisionado na relação dual, ou seja, como puroobjeto.

Como pensar o olhar neste movimento de alienação e separação, defronteira do eu e do Outro em se tratando da psicose?

Poderá ter o olhar o efeito de uma marca de exterioridade e, como tal,uma condição de margem, de estabelecimento de uma diferença?

Quando Lacan (1953-1954/1986) teoriza sobre a relação de objeto e arelação intersubjetiva, salienta que há sempre três termos na estrutura. Afir-ma: “Não é somente que eu vejo o outro, eu o vejo me ver, o que implica oterceiro termo, a saber, que ele sabe que eu o vejo.” (p. 249)

Nesta situação clínica que aqui apresento, a precariedade das mar-gens, do limite do eu e do Outro e a fragilidade do saber que institui umadiferença, um espaço a um terceiro termo, está posta enquanto estrutura. Osujeito não se sustenta em relação a um conjunto significante, sendo por elecapturado. O olhar me parece ter seu efeito sustentado na transferência,pelo olho que vê, mas lançado no além do ver, ou seja, num jogo imaginárioque institui a palavra como terceiro.

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Ao pensarmos na saída da crise, estaremos falando do caminho apercorrer na construção de uma metáfora. Construção esta que amarre sig-nificações, mesmo que o lugar central dessa amarragem esteja fora doregistro simbólico, constituindo uma metáfora delirante.

Este caminho, tanto na saída da crise como na busca infinita de cons-trução e reconstrução de um saber, necessita de um lugar de escuta, queconfigure uma ancoragem à construção narrativa, ou seja, um testemunho.

Na clínica da psicose, o lugar da escuta como lugar de testemunho, éapontado por J. Allouch na obra “Marguerite ou A ‘Aimée’ de Lacan”. Quan-do este autor busca esclarecer o teor do encontro de Lacan e Marguerite,aborda, entre outros pontos, a inversão que Lacan propõe, ou seja, colocan-do-se na transferência, na posição de secretário de Marguerite, Lacan atribuia ela o lugar de sujeito suposto saber. Allouch refere-se a estas duas posi-ções - a do narrador daquilo que lhe vem do Outro, no caso Marguerite, e aposição de Lacan como secretário, atribuindo a ela o lugar do saber - comoconstituintes do testemunho.

No percurso que fiz para elaborar este texto percebo que utilizei al-guns dos significantes referidos na fragmentada narrativa de Célia. Estessignificantes aparecem no texto, tanto referidos a sua fala, quanto comogerme da construção teórico-clínica que aqui apresento. Trata-se então, deuma escrita realizada à luz da transferência, que abriu caminhos e possibili-dades à escuta.

Permito-me, para finalizar, referir palavras de J. Allouch (1997) do textoanteriormente citado: “Como o psicanalista, o psicótico é levado a fazer-se deteórico de sua experiência; eles são irmãos nessa necessidade”. (p. 445).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:ALLOUCH, J. Marguerite ou A “Aimeé” de Lacan. Rio de Janeiro: Companhia deFreud, 1997.LACAN, J. O Seminário. Livro I. Os escritos Técnicos de Freud. (1953-1954) Riode Janeiro: Jorge Zahar, 1986.

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Célia sobe e desce de ônibus, transita em ruas ou avenidas, semconseguir situar qualquer significação.

É assim, pois, o saber na psicose: não há um pólo organizador narede de significantes. Não há um significante que ocupe o lugar de referên-cia, o lugar fálico, que ordene os demais.

Este significante, ao qual cabe a função ordenadora, é designado porLacan significante Nome-do-Pai. Na estrutura psicótica, este significante nãofaz função. Função esta que operaria como terceiro na relação ao Outro, comofonte de significações, como guardião de um saber, ao qual o sujeito pudesserecorrer para se reconhecer numa filiação. É o próprio sujeito que tem de tecera rede, o tecido deste saber, que lhe possibilite um lugar no mundo. A errânciainfinita do psicótico caracteriza-se, então, pela constante construção e recons-trução desta teia, que nunca garante suficiente sustentação.

Quando diante de determinada situação – momento de injunção – osujeito necessita recorrer a este saber não constituído, não localizável, nãoreferido a um pólo organizador, depara-se com o vazio. É, pois, este o mo-mento que irrompe a crise, o saber não simbolizado retorna no registro doReal como alucinação.

Célia, num primeiro momento, caracteriza a crise utilizando a expressão“sem fronteiras”. Menciona um sair à rua sem rumo, por vezes vagando atémesmo fora do estado. Relata, por exemplo, situações em Brasília e em BeloHorizonte. Este apagamento das fronteiras geográficas, territoriais, nos faz pensarna ausência de fronteiras subjetivas. Num estar em lugar qualquer, ou seja, narua, como um estar fora do registro simbólico, tomada em lugar nenhum.

Num momento posterior, Célia fala que, por vezes, escuta vozesde crianças. Ao lhe interrogar sobre as vozes, conta sobre sua primeirainternação. Diz que ficou muito tempo sem conseguir falar e sem comer.Situa esta internação após ter “dado” sua filha. Afirma que precisava sedefender, dizer o quanto não queria entregar sua filha mas não conse-guia cuidar dela. Relata que, nesta ocasião, não conseguia participardos grupos no hospital. Diz ter sido a insistência de um médico que a fezfalar.

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SEÇÃO TEMÁTICA

construídos na presença de outros. São textos para serem lidos, comparti-lhados. Não são textos autobiográficos, mas a marca do sujeito que escrevese faz presente, muitas vezes como uma forma de se apresentar a essesoutros, contando sua história ou buscando uma definição de si próprio.

Percebe-se que, à medida que os encontros de escrita acontecem,como um efeito a posteriori, os pacientes passam a questionar o conteúdode seus escritos, numa tentativa de torná-los compreensíveis ao outro ouainda de se fazerem entendidos. É no escrever e no ler que a significação doescrito é construída, o que aponta para uma função da escrita que atualizaas diferentes posições do leitor e do escritor. Nesse jogo constante de es-crever, ler e falar sobre o escrito, atualiza-se o exercício da alteridade, produ-zindo algumas modificações do lugar de enunciação, mas, também, de es-cuta dessa enunciação.

A partir dessas considerações iniciais, apresento um pequeno recorteda experiência da Oficina, a partir dos escritos de J.J. e de seus efeitos:

J.J. tem 47 anos, reside sozinho nos fundos da casa de uma de suasirmãs. Vem de uma família pobre e numerosa, com muitos irmãos. Após ofalecimento de seus pais, os irmãos se separaram; segundo ele: “cada umformou seu lar”. J.J., por ser solteiro, considera que não pôde formar seu lar,de tempos em tempos morava com um dos irmãos. Morou em Porto Alegrequando criança e, depois, mudou-se com a família para Esteio. De PortoAlegre, guarda lembranças que aparecerão em seus textos, dos banhos noRio Guaíba ou, ainda, do calçadão da Rua da Praia. Freqüentou a escolaregular até a 4ª série, abandonando os estudos, pois não conseguia acom-panhar a aprendizagem. Refere que seus pais o tiraram da escola porquenão aprendia, e, então, começou a trabalhar. O fato de ter sido retirado daescola por não aprender, representou, para J.J., a perda da possibilidade deestar com as crianças da sua idade ou de ser como elas: “inteligentes” (sic).

Então, se não podia aprender, foi trabalhar. J.J. trabalhou muitos anosem uma fábrica, onde ganhava o suficiente para seu sustento. Em um perío-do de sua vida, em torno dos 26 anos, sofreu um acidente com piche quente,o que representou para ele um “susto” (sic). A partir desse susto, J.J. mu-dou, não conseguia dormir, andava pela casa e falava coisas sem sentido.

SERAFINI, G. C. C. Escritos sobre a escrita

ESCRITOS SOBRE A ESCRITA

Giovana de C. Cavalcante Serafini

Minhas questões de pesquisa surgiram a partir de minha atividadeprofissional no CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) de Esteio,mais especificamente na Oficina de Escrita que desenvolvo desde

março de 2003. A implantação do CAPS, que se apresentou como um servi-ço substitutivo às internações psiquiátricas, resultou em uma nova forma deolhar e de pensar a doença mental e seu tratamento, propondo novas formasde acolhida, a escuta, o respeito à singularidade de cada caso e a invençãode outras estratégias de intervenção sobre o campo social e clínico. Foinesse contexto de reformulação de práticas que (re)surgiu o trabalho dasoficinas terapêuticas, não mais como uma forma de entretenimento ou deocupação do tempo ocioso, como nos primórdios de sua inserção nos hos-pitais psiquiátricos. Surgiu como possibilidade de troca, como um convite àparticipação e não como prescrição ou obrigatoriedade de tratamento. Emconsonância com as proposições da Reforma Psiquiátrica no Brasil, essasatividades terapêuticas buscam dar sustentação à possibilidade de inserçãosocial e de participação na vida cultural de sua comunidade para os sujeitoscom grave sofrimento psíquico. No caso da Oficina de Escrita, o convite quefaço é que cada um escreva o que quiser, da forma como conseguir, e que oescrito possa ser lido para os outros participantes. Há a produção de umobjeto, o texto, envolvendo o trabalho sobre a linguagem a partir de seucomparti lhamento com terceiros. Nessa proposta, existe umaindissociabilidade da escrita e da leitura, do olhar sobre o escrito e da voz naleitura, que se apresentam como marca subjetiva. A folha pode, em algumassituações, oferecer-se como superfície de inscrição de traços psíquicos, le-vando em consideração a sua dimensão de referência e de endereçamentocomo sustentadora do laço do sujeito com o Outro.

Partindo da premissa de que o ato de escrever sempre está endereça-do, questiona-se que tipo de endereçamento se configura nesses textos

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SEÇÃO TEMÁTICA

Seus primeiros textos se apresentavam como uma continuidade deletras no papel que só eram interrompidas pelas margens da folha. As pala-vras se juntavam, muitas vezes, sem espaço entre elas, sem uma pontua-ção, sem parágrafo, sem intervalo, um texto em um único bloco. No momen-to de leitura de sua produção, lia baixinho como se estivesse lendo para elepróprio, sem muitas vezes entender o que estava lendo. A leitura, da mesmaforma que sua escrita, apresentava-se sem intervalo, sem pausas. Dava-mea impressão de que o que exercia o papel de corte era a margem da folha depapel e não a lei própria do código lingüístico. Dessa forma, o código lingüísticonão é utilizado como ponto de ancoragem que organiza a sua escrita, mas,no entanto, ele foi inscrito nesse código, já que escreve, mas de uma manei-ra bastante particular. Essa preocupação com a imagem da letra em detri-mento do conteúdo de sua escrita, remete-nos a Bergés (1999)3, que, aofazer reflexões sobre o estatuto da letra a partir do estudo de crianças não-leitoras, coloca que, quando a letra está muito imaginarizada, menos simbó-lica ela se torna.

Sua primeira produção escrita, em 25/04/03, assim se configurava:“oquelenbrodePortoAlegremaisPequenaLenbraçadecadabairrooQue

PortoAlegretinhanacidadecalçadão praçaigresa onaveganteGuaibapraiabondeonibosEPracalenbro”Nesse primeiro texto, percebe-se uma tentativa de descrever lembran-

ças de Porto Alegre e de sua infância na cidade. A maneira como o faz énuma escrita em ditado, como se estivesse fazendo uma lista, numa tenta-tiva de contabilizar o real, através da citação dos pontos que consegue evo-car de sua lembrança: calçadão, praça, igreja dos Navegantes, Guaíba, praia,bonde, ônibus. Com exceção da igreja, que é singularizada, todos os outroselementos aparecem sem uma particularização, como se fossem objetoscitados ou ditados.

A repetição da palavra “lembro”, iniciando e terminando o texto, faz-nos pensar na importância dessa repetição para reafirmar que se trata deuma lembrança “pequena” e que, portanto, precisa ser reafirmada. O que3 BERGÉS, Jean. A instância da letra na aprendizagem. In: Revista da Associação Psicana-lítica de Porto Alegre, ano IX, nº 16. Porto Alegre: APPOA, 1999.

SERAFINI, G. C. C. Escritos sobre a escrita

Não conseguia trabalhar, pediu demissão da empresa. Sua história é cheiade buracos: J.J. não se lembra, e seus familiares também já esqueceram.Iniciou acompanhamento psiquiátrico há 11 anos, levado por uma irmã quecuidava dele na época. Ouvia vozes, caminhava sem parar e falava com atelevisão. A irmã relatou que J.J. ficou assim desde o acidente, traumatizadoao ver seu corpo queimado, principalmente o rosto. Ele, após o início dotratamento, nunca mais entrou em crise e segue “estável” do ponto de vistapsiquiátrico. Com o início do CAPS, J.J. passou a fazer parte deste e esco-lheu as atividades que gostaria de participar, entre elas a oficina de escrita.

Conheci J.J. no momento em que ingressou na Oficina de Escrita.Dizia que não sabia escrever, pois não tinha estudo. Das atividades que lheforam oferecidas, optou por uma que dizia não saber fazer. J.J. sabia escre-ver, mas o que eu percebia era que ele não se reconhecia nessa posição.Não importava o quanto ele havia conseguido produzir, para ele era pouco,pois tecia comparações entre o tamanho de seu texto e o de outros, especi-almente com o de C..1

Geralmente J.J. não é muito comunicativo, sua fala é lenta, assimcomo sua escrita. Quando escreve, parece estar fazendo o desenho cuida-doso de cada letra. Como se cada letra tivesse sua própria existência semestar em relação com a letra que está ao seu lado formando uma sentença.Sua escrita constitui-se em um trabalhoso desenho de letras, uma a uma.Balbo (1996) 2 afirma que para uma escrita advir, deve haver a passagem daletra ao significante, ou seja, é necessário um desprendimento do desenhoem sua dimensão imaginária, para apoiar-se no significante, através da es-crita, na sua dimensão simbólica. Uma vez que a letra precisa deixar de sero desenho dela mesma para se inscrever como traço vazio de um sentido emsi, para ser um traço que produz sentido no conjunto em que está inserido,surge a questão: por que J.J. precisou manter essa forma rudimentar deescrita, não conseguindo superá-la e realizar a passagem ao significante?1 C. também é participante da Oficina de Escrita.2 BALBO, Gabriel. O desenho como originária passagem à escritura. IN: O mundo a gentetraça: considerações psicanalíticas acerca do desenho infantil. TEIXEIRA, Ângela B. do Rio(ORG.).Coleção Psicanálise da Criança - Coisa de Criança, vol. I nº1. Salvador: Ágalma,1996.

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municar ao analista tudo que lhe ocorra no pensamento sem a influência dacensura. Mas há, na associação livre, no fluxo de idéias, a presença docódigo que ancora o falar. O que em J.J. não é possível identificar, pois odiscurso (escrito) apresenta-se entrecortado, como se faltassem as liga-ções que são próprias da produção de sentido.

Em 16/05/03, escreve:“Indepedente eAquilo que pas sse cada coísaQuepas tem um nome

esato depemdedo que tupes certo Eu estou cmo vido A Lus Dos olhos Aluminaclaridade Estol cemdo ALusdo tel camínhoeLumine onosso dia”

Nota-se a presença de um endereçamento nesse escrito, um outro paraquem a mensagem está sendo enviada. Nesse dia, foi questionado para quemestava escrevendo, J.J. respondeu que não sabia; que podia ser para qualquerpessoa, foi sua resposta. Ao ler seu texto, os outros participantes disseramnão conseguir entender o que ele tinha escrito. J.J. disse não saber explicar.Sugiro, então, que ele tente ler novamente, pausadamente, para que nós ten-tássemos entender. J.J. lê com dificuldade, com um tom de voz muito baixo esem intervalo entre as palavras (tal qual sua escrita). Alguém pergunta o que eleescreveu, J.J. responde que já não sabe mais. Chama-me a atenção a impos-sibilidade de explicar sua intenção, pois o que ele queria comunicar ele já nãosabia mais. O que o fez esquecer e qual a permanência de sua memória sãoalgumas questões que se colocam. Digo para ele que percebia que queriaescrever tudo de uma vez só, como se não houvesse a possibilidade de separaras palavras e as idéias em linhas ou parágrafos, o que não lhe permitia, numsegundo tempo, falar para os outros do seu escrito. Isso aponta para umaimpossibilidade de reconstruir seu ato de escrita através da fala ou da leitura.

No encontro posterior, em 23/05/03, J.J. assim escreve:“Xispae sair comMedo das BrasasConvehtoAs brasas e AlegriaDe Quen Esta conprioNo enverno

SERAFINI, G. C. C. Escritos sobre a escrita

aponta para a fragilidade dessa inscrição, enquanto um traço mnêmico quepossa ser recuperado.

O que se percebe é que, no sujeito em questão, talvez não haja apossibilidade de marcar sua presença como auditor de uma fala que lhe éendereçada, da mesma forma que, quando escreve, a posição de pausa, decorte, não pode ser definida; esse trabalho fica em aberto para o leitor quefica sem a referência à intenção do escritor.

Temos, então, um texto escrito que se apresenta numa certa planíciede sentido no qual não se pode deduzir, ao ler, um recorte de sentido. Apre-senta-se como um agrupamento de palavras, como uma superfície lisa, semos contornos da pontuação ou mesmo da acentuação, que definiriam asbordas e o corpo deste escrito.

Na produção seguinte, do dia 02/05/03, encontramos:“OGauchos DarçanSapatiada Agalinha eformado nunpito oGramado

peitoDaGrama APaisca Efeito Da (escreveu seu nome) surrasQuiada Praquatropessoabrasa QuenlevamaisPorquecomemenos churrasco”

Ele inicia escrevendo que os gaúchos dançam sapateado, mas, emseguida, passa aos temas da galinha, do gramado, da faísca e o que formacada um deles. Imediatamente, escreve sobre churrasqueada, o que é umhábito dos gaúchos; não está escrito, mas é possível subentender. Nota-sea sobreposição dos temas, estes são colocados numa seqüência na frase,ou seja, um após o outro, mas não estão necessariamente relacionados emtermos de significação. São palavras coladas lado a lado, preenchendo afolha, mas que parecem carecer de significado. A leitura de seu texto provo-ca uma certa desacomodação do leitor, uma vez que nos sentimos convoca-dos a traduzir sua escrita como se fosse uma outra língua que não compre-endemos.

Percebe-se, nesse texto, que há um fio condutor de sentido, comrelação a o que forma o quê. Ao lê-lo, temos a impressão de uma associa-ção, de um fluxo de idéias, porém desconexas entre si, como se não esti-vessem ancoradas pelo código. Poderíamos encontrar analogia com o funci-onamento do inconsciente em uma análise, a partir da regra geral da livreassociação. Nesta, o analisando é convidado a associar livremente e a co-

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UMA CLÍNICA QUE CONVOCA À INVENÇÃO: AFOTOGRAFIA COMO DISPOSITIVO DE TRATAMENTO

Thoya Lindner Mosena

Uma clínica que convoca à invenção. Faço tal afirmação para desdobrá-la talvez em seu contrário: que clínica não convoca à invenção? Mais ainda:que práxis não faz esse convite? A invenção aqui vai remeter, pelo menosdiretamente, a três aspectos: trata-se da história de um trabalho deestruturação de um sujeito; trabalho esse que levou à construção de umsetting que resiste a estandarização; e, finalmente, porque se fez figurar afotografia como dispositivo nesse tratamento. A partir de um recorte da histó-ria de alguns encontros do tratamento de C., teço um certo diálogo comRicardo Rodulfo naquilo que ele desenvolveu sobre as teses do brincar.

Comecei a atender C. na Clínica de Atendimento Psicológico daUFRGS no final de 2000; na época com 11 anos, ensaiava suas primeiraspalavras. Já o conhecia de suas andanças pela instituição, onde fazia quaseque invariavelmente o mesmo percurso. Pegava a “mamadeira” (objeto quehavia construído) ou o “marrom” (um porta-lápis marrom), os quais ficavasegurando com uma mão e batendo repetidamente no dedo indicador daoutra mão. Um ou outro desses objetos o acompanhava ao longo de todo oatendimento.

De posse da “mamadeira” ou do “marrom”, dirigia-se até uma salaonde havia um quadro onde C. sempre apontava para a “igreja”, cenário demuitas histórias desse atendimento. Ele se colocava, então, em frente ao talquadro, apontando para a igreja, e por vezes entoando uma melodia e algoque parecia ser um “amém”.

Às vezes pegava canetinhas, colocava a mão sobre uma folha de pa-pel e pedia para que eu desenhasse o contorno de suas mãos. Não poracaso a mão foi a primeira parte do corpo que pôde nomear; feito o desenho,desencostava a mão do papel e abria um largo sorriso. Mais do que a marcaque se produzia na folha, solicitava que se repetisse de novo e mais uma vez

Tu esta perdido nomeioDe AlgumasPessoAsQuando precisa deAlguma companiaQuando precisaDe Algum emderessoOlpreçisa comversaCom AlguemQuero comversa comtigoQueroPergumta aorasQuero fica do tellado”Seu texto se apresenta de outra maneira, há parágrafo, há separação

entre os parágrafos através de uma linha em branco. Seus “colegas” de Ofi-cina de Escrita compreendem a sua leitura, C. diz que ele escreveu umpoema. Tal comentário aponta na direção de um reconhecimento, nomeandoo que, até então, era, para os outros, incompreensível. O texto que nãoentendiam passa a ser um poema. E, sendo um poema, ele é incluído nalíngua. Estão em jogo, nesse reconhecimento, as dimensões imaginária, nocompartilhamento do sentido, e simbólica, na nomeação que outorga umlugar.

Penso que esses espaços que J.J. faz nas letras de sua escrita sãoconcomitantes à abertura para o leitor em seu texto. Com espaços vazios, oleitor é convidado a entrar em seu escrito e produzir a significação. O outropode ler essas letras, que, agora cortadas, deixam espaço para a alteridade.O que aponta para a importante relação do corte com o surgimento do sen-tido no texto. Texto que se constrói num espaço fora do sujeito que escreve,na alteridade com os semelhantes, naquilo que está fora de si. Mas um textofora de si, que não é um texto louco, já que encontra reconhecimento, é umtexto que, ao ser escrito, constrói o si próprio.

MOSENA, T. L. Uma Clínica que convoca...

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dia, me pegou pela mão, me levou até o banheiro, saiu e fechou a porta, medeixando lá. Em seguida, voltou à cozinha, subiu na cadeira e ficou meolhando pela janela. Eu ia até a janela (na verdade uma basculante, ou seja,ele me enxergava pelas frestas e talvez pela sombra), abanava, gritava “oi” eele, de lá, respondia. Então eu abanava novamente, dizia “tchau” e saía dajanela. Quando eu desaparecia do seu campo de visão, ou me chamava pelonome, ou apontava pela janela, contando para quem ali chegasse, onde euestava. Se o dentro e fora, o continente e conteúdo ainda não estavam deli-mitados, começava a se esboçar um primeiro movimento no sentido de cons-truir uma tal distância?

Foi nesse momento do trabalho com o C., no qual estava às voltascom a construção do seu corpo imaginário, que anunciei um dia para ele quetraria uma máquina fotográfica no atendimento seguinte e que o fotografaría-mos, além dos lugares e das coisas que gostava de fazer. Trouxe a câmerauns dias depois e ele, como tínhamos combinado, foi me mostrando ascoisas que queria fotografar. Íamos com a máquina em punho trilhando essepercurso tantas vezes refeito.

Depois da revelação, C. olhou entre sorridente e intrigado para aque-las imagens. Nomeava cada uma das fotos, como que colocando uma legen-da. Assim, sorria apontando para a foto da igreja, da janela, do café e dele,que em algumas fotos aparecia olhando para a câmera, fazendo pose, nou-tras só aparecia apontando para o objeto a ser fotografado. Passamos areconhecer, descrever e contar a história daquele dia, daquele lugar, daquelabrincadeira. C., ao apontar para a sua imagem na foto, dizia o seu nome.

Mas além de falar das fotos, C. pegou três delas: a do café, a dobanheiro e a da igreja, uma de cada vez, em atendimentos diferentes. Com arespectiva foto em mãos, foi até o lugar fotografado, colocando a foto ao ladoda cafeteira, ao lado da descarga do banheiro e ao lado do quadro da igreja,que ficaram como que duplicados: o objeto e sua imagem. A foto do café elelevou até a pia, pegou água e tentou “passar” café com a foto, que terminoumolhada. No banheiro, com a foto em mãos, puxou a descarga, como naimagem, ou seja, reproduziu em ato o que a imagem mostrava. Olhava-me

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o gesto de passar a canetinha em torno da sua mão, produzindo, comoefeito, várias mãos sobrepostas sobre o papel, assinalando para um esboçodo desenhar psiquicamente os contornos do próprio corpo.

Finalmente, C. dirigia-se à cozinha, onde produzia uma série de ce-nas em torno do café, que ele nomeava por sua coloração. Inicialmente es-palhava o “preto” sobre a pia, enchia e esvaziava copos e xícaras, tocava ocafé e ficavam, assim, a mão, a pia e o copo pretos.

O café e o papel podem ser tomados como os suportes que C. utilizoupara fazer superfície. Ricardo Rodulfo propôs pensarmos essa atividade delambuzar-se como uma operação psíquica relativa à constituição libidinal docorpo anterior ao fort-da. Seria essa a primeira função do brincar enquantoprática significante, identificada pelo autor justamente como a combinaçãoesburacar-fazer superfície. Diferente do que poderíamos cogitar, “a partir daestruturação primordial do corpo, através do brincar, a primeira coisa que seconstrói não é, de maneira alguma, um interior, quer dizer, um volume, masuma película em fita contínua” (Rodulfo, 1990, p.96). Isto é, para que a crian-ça possa constituir um dentro e fora do seu corpo, primeiro precisa fazer-sesob a forma de uma superfície, uma fita contínua, como um tempo necessá-rio para desenhar-se só depois um corpo com contornos e com conteúdo,um corpo com volume.

A própria rotina dos percursos que se repetiam a cada atendimentotambém constituía uma certa continuidade que aos poucos C. pôde vir aesburacar. Talvez possamos pensar por essa via suas andanças pela insti-tuição, o espaço de seu tratamento estendido para além do consultório –nesse momento da constituição psíquica em que ainda não é possível inter-por uma barra entre corpo e espaço. Mas se uma delimitação não é possível,uma relação sim, e ela vai configurar-se posteriormente pelo que Rodulfonomeou a formação de um tubo, ou seja, o corpo como um lugar de passa-gem.

Da janela da cozinha enxergávamos a janela do banheiro. C. passou asubir numa cadeira para alcançar a janela e, de lá, observava a movimenta-ção do entrar e sair de pessoas do banheiro, o acender e apagar da luz. Um

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refazia, a lugares que ele conhecia, seja de passagem, seja de ouvir falar,como uma narrativa que ele começava a poder escrever. Um contar que acon-tecia no instante mesmo de fazer o percurso, um narrar fazendo a história.Foi um ponto de partida para em seguida começar a contar histórias – e aprimeira delas foi sobre um filme de bruxa que tinha assistido.

Podemos pensar na fotografia como o dispositivo que possibilitou cons-truir essa imagem de forma consistente? A fotografia é um recurso que, aoque parece, produz dois efeitos, que não são independentes, mas justamen-te se produzem mutuamente: ao mesmo tempo se constitui numa superfíciee opera um corte. Como quando desenhamos algo no papel e depois recor-tamos em seus contornos, fazendo destacar algo que, no entanto, deixa suamarca no papel que resta depois dessa operação. O que foi desenhado ficaassim registrado na superfície e no recorte, como presença e como ausên-cia, como o objeto e sua imagem.

Podemos fazer uma aproximação entre as operações de registrar-recortar da fotografia e aquela descrita por Lacan no “Estádio do Espelho”?Lacan inclusive utiliza a expressão “fixar um aspecto instantâneo da ima-gem” (1998, p.97) para falar sobre o que se produz quando a criança, diantedo espelho, supera os entraves de sua imaturidade. O que se passa alisenão a formação de uma imagem que está recortada, digamos assim, darealidade?

Na operação de fotografar, de alguma forma também se opera essecorte no próprio fechar do obturador; o fotógrafo não vê a imagem que foicapturada, porque no apertar o botão, fecha a entrada de luz. A fotografiaproduz uma imagem exatamente nessa operação de recorte, numa aproxi-mação com o próprio olhar, enquanto “o que ao mesmo tempo abraça acoisa e entrevê o que cai fora” (Assoun, 1999, p.95), operação de captura ecorte.

Se a fotografia e a operação psíquica de construção da imagem espe-cular podem ser postas em relação, o que a fotografia vai oferecer como umdispositivo diferencial é a possibilidade de produzir uma imagem que é mate-rial. Em alguns casos, nos quais a captura no simbólico está em questão, a

MOSENA, T. L. Uma clínica que convoca...

espantado, como que pedindo a confirmação do que ali se passava – a ima-gem que se destacava do objeto.

É o que se produz quando, em frente ao espelho, a criança vai olharatrás à procura daquele outro que ali, naquela superfície, vê estampado.Como quando a criança brinca, movimentando-se, com a imagem “inanima-da”, experimentando “ludicamente a relação dos movimentos assumidos pelaimagem com seu meio refletido, e desse complexo virtual com a realidadeque ele reduplica” (Lacan, 1998, p.96-7). Precisa do outro a lhe dizer que é,sim, a sua própria imagem, que ali se destaca, nessa brincadeira que é a deconstruir uma imagem que conte a realidade própria.

Mas há um tempo e uma materialidade necessários para que umainscrição possa vir a ter eficácia psíquica. Se há a garantia de uma tramasimbólica tecida, a palavra é suficiente para evocar a imagem produzida noespelho. Para o C., no entanto, é como se a imagem viesse sempre antes e,deste ponto, é que se fizesse o fio de uma narrativa. No atendimento decrianças constitui-se uma pluralidade de formas de construir narrativas: asmúsicas, os desenhos e, talvez possamos incluir, as fotos. A idéia de traba-lhar com fotografia no tratamento surgiu numa supervisão. Os efeitos que afotografia produziria não foram previstos, antecipados. Não foi algo tomadode antemão como um dispositivo de tratamento. Os desdobramentos dissose revelariam só depois.

Nos momentos posteriores ao fotografar, C. mudou o seu percurso deatendimento. Disse pela primeira vez “não quero” quando anunciei o términode um atendimento. Comunicava isso antes de outras formas, com o corpo,mas não tomando a palavra. Se antes, quando eu não estava por perto, ia atémim, passou a me chamar pelo nome ou a perguntar por mim para quempassasse. É como se o outro tivesse sido registrado de uma forma outra.Saiu também do circuito marrom-mamadeira-igreja-cozinha, interessando-se pelas outras janelas, pelos outros andares da Clínica.

Alguns meses depois, viria a pedir para sair da Clínica para ir à IgrejaSanta Terezinha, onde, depois de acompanharmos o final da missa, C. can-tava “Terezinha de Jesus”. Esses passeios eram como percursos que C.

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ESCOLARIZAÇÃO DE CRIANÇAS COM UMAESTRUTURAÇÃO PSÍQUICA PRECÁRIA –

IMPASSES E POSSIBILIDADES

Renata Gonçalves Prosdocimi

A entrada de alunos com necessidades especiais em escolas regulares tem sido tema de muitas discussões, tanto no campo da educação, quanto no campo da saúde. Sabe-se que muitos alunos exclu-

ídos das salas de aula nos últimos anos, por não responderem adequada-mente às demandas escolares ou por apresentarem algum transtorno dedesenvolvimento, poderiam se beneficiar com a experiência de escolarização.

Por outro lado, se para alguns sujeitos o ingresso numa instituição edu-cacional regular abre muitas possibilidades, nem todos se beneficiam dessaexperiência. Atualmente há um discurso vigente de que a escola é para todose movimentos no sentido de efetivar a qualquer custo essa proposição, nãoconsiderando muitas vezes a singularidade de cada um. Alfredo Jerusalinsky eStella Paez tratam dessa questão no texto “Carta aberta aos pais acerca daescolarização das crianças com problemas de desenvolvimento” (2001), deforma bastante elucidativa, pontuando que independente da direção do trabalhoa ser escolhida pelas escolas especiais e comuns diante da educação inclusi-va, “não se deve esquecer que toda a questão escolar, além de dar lugar a umacriança, implica trabalhar com um sujeito.” (p. 21).

Delineia-se, portanto, duas vias distintas de pensar a inclusão: comoresposta a um discurso social, sustentada pela legislação, ou como efeitode um desejo – do aluno, dos pais, dos terapeutas e da instituição escolar.

Mas o que determina que uma inclusão tenha mais sucesso do queoutra? O que faz a diferença nesse processo? Porque alguns alunos commuitas dificuldades conseguem inserir-se na escola com mais facilidade doque outros? Sãos essas algumas das questões que nortearam a construçãodesse texto, e que surgiram a partir de minha experiência como psicólogaescolar em uma instituição particular de ensino regular.

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utilização de recursos materiais que potencializem uma concretude à per-manência da imagem pode fazer diferença.

Esse tensionamento entre uma continuidade e um esburacar é umelemento que podemos ver figurar no transcorrer de uma análise em relaçãoà posição que o analista deve ocupar para que sua intervenção tenha efeitos(Rodulfo, 1990). A relação com a imagem também acontece numa pulsação;é sempre de reconhecimento e de distância. Como o encontro com a fotorevelada é sempre, de alguma forma, como o do C. – entre sorrisos e espan-tos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ASSOUN, Paul-Laurent. O olhar e a voz: lições psicanalíticas sobre o olhar e avoz: fundamentos da clínica à teoria. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu. In: ___.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.RODULFO, Ricardo. O brincar e o significante. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

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te a conheceu antes das aulas começarem, com o intuito de iniciar umarelação com ela que imaginávamos ser importante no momento em que elese encontrasse com o grupo todo. A professora, por sua vez, estava bastan-te disposta em recebê-lo na turma. O desejo do lado da educadora é funda-mental nesses casos. Mas isso não é suficiente. Mitsumori e Amâncio (2005)afirmam que, se tratando de um aluno incluído, este não é só da professora,é de toda a escola, pois “por mais que um(a) professor(a) acolha e se empe-nhe em trabalhar com as crianças ‘diferentes’, se a escola como um todonão for capaz de se envolver e assumir para si a responsabilidade pelaescolarização desses alunos, o processo de inclusão não se efetiva” (p. 97).

Os primeiros dias foram de muitos ajustes. Ajustes da relação domenino com a professora e com os colegas, e destes com ele. No início, elenão estabelecia um contato direto com a turma, por muitas vezes a profes-sora precisava intermediar essa comunicação. Atrapalhava as aulas, tinhacomportamentos esquisitos, provocativos. Os colegas e seus pais questio-navam sua presença ali. Atendimentos à turma e às famílias foram necessá-rios para que a angústia frente ao colega novo não viesse a impossibilitar suapermanência na escola.

E como pensar nos casos em que essa interlocução entre família eescola não acontece no processo de chegada à instituição e as dificuldadesda criança são desveladas somente quando as aulas começam?

Numa outra situação que acompanhei, o processo de escolarizaçãofoi um tanto diferente do citado anteriormente. Resgatarei episódios dessaexperiência buscando entender as diferenças encontradas.

Na entrevista de ingresso na escola não houve nenhuma referência daparte dos pais quanto a dificuldades que seu filho pudesse vir a ter. No entan-to, já nos primeiros dias de aula, o aluno demonstrou ter muita dificuldadeem parar, atender solicitações, cumprir combinações. A relação com os co-legas era complicada, batia neles, o que provocava preocupação nos pais daturma.

Frente a esse quadro, buscou-se trabalhar com os pais do menino natentativa de dar um sentido ao que acontecia e realizar intervenções mais

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Na busca por respostas para esses questionamentos tentei encon-trar, a partir das crianças acompanhadas, elementos que nos dessem pistasdo que torna algumas histórias de inclusão mais viáveis. Percebi que não é aquestão diagnóstica o que determina o sucesso de uma experiência deescolarização, isto é, não há uma relação diretamente proporcional entregravidade da patologia e possibilidades de escolarização. Há sim, outrosatravessamentos que, associados às condições de cada criança, irão contri-buir ou não para isso.

No caso de um aluno que acompanhei na busca por uma nova escola,reconhecemos elementos que parecem ter contribuído para que essa fosseuma trajetória interessante. Desde a primeira entrevista realizada na escola- quando se apresentou agitado, intolerante e, por vezes, agressivo - suamãe demonstrava preocupação com que realmente o conhecêssemos, fa-lando da experiência nas escolas anteriores e atendimentos que freqüentava(psicológico e psiquiátrico). Em contato que tivemos com as profissionaisque o atendiam, conversamos sobre as possibilidades e limitações dele,bem como as da escola. Essa parceria com os especialistas que acompa-nham a criança é fundamental quando estamos falando de inclusão escolar,uma vez que a posição dos mesmos quanto à ida do aluno para a instituiçãoescolhida pelos pais e a possibilidade de um trabalho em equipe faz toda adiferença.

O recebimento dessa criança pela escola foi discutido muitas vezestambém entre os componentes da equipe pedagógica. Turno de aula, perfildos alunos, pais e professoras, organização curricular, foram variáveis consi-deradas nesse momento. A decisão de aceitá-lo como aluno ocorreu namedida em que pudemos vislumbrar um lugar para ele e condições de recebê-lo com suas características. Esse tempo transcorrido entre a primeira entre-vista e o ato da matrícula é muito significativo. É um tempo para que a escolaconstrua um lugar para o aluno e para que o desejo da família de incluir seufilho na instituição se constitua e demonstre sua consistência.

Para dar continuidade ao trabalho, novas estratégias foram organiza-das. A primeira delas referia-se ao vínculo dele com a professora. O estudan-

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contrário, tudo o que vier da escola provavelmente não irá provocar inter-rogação, preocupação, ou qualquer tentativa de tratar os problemas surgi-dos.

Ao mesmo tempo, podemos considerar que as dificuldades de organi-zação subjetiva de uma criança andam de mãos dadas com desorganiza-ções familiares, o que redunda em uma rede pouca sustentadora para acriança.

Talvez aqui possamos buscar os conceitos de função materna e pa-terna como subsídio para entender o que está em jogo em algumas situa-ções. A escola, por sua função social, ocupa muitas vezes o lugar de tercei-ro. Ela situa-se como representante da função paterna. Portanto, da mesmaforma que para que o processo de estruturação subjetiva seja efetivo, a mãeprecisa permitir a entrada do pai, no caso da escola, para que habitá-la sejaviável para a criança, o que é da função materna precisa permitir que a insti-tuição entre em cena, reconhecendo seu lugar de transmissor cultural, paraque intervenções possam ser realizadas.

Quando uma família com condições de dar sustentação ao processode escolarização procura uma escola, isto é, quando uma família abre espa-ço à alteridade que a escola pode representar para ela e para a criança,quando recebemos esse pedido, recebemos junto um convite para fazermosparte da rede de suporte à criança. A escola é mais um fio da rede. A quemnão se pode demandar tudo, da qual não se pode receber tudo. No entanto,o desejo por receber tais alunos precisa estar presente nas instituições es-colares para permitir uma parceria necessária de trabalho. Sem dúvida não ésimples receber essas crianças. A chegada delas tem efeitos em toda aescola, implica tanto os profissionais como o grupo de alunos e seus famili-ares. Convoca a todos, convoca no lugar da invenção, já que não raramenteos dispositivos existentes e as proposições instituídas não dão conta deacolher e incluir certos alunos no processo educativo.

Isso quer dizer que se não fossem esses alunos tudo estaria bem etodas as crianças estariam aprendendo com as mesmas facilidades nasescolas por aí? Sabemos que não é assim. O que parece acontecer é que o

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adequadas. No entanto, os laços entre família e escola eram frágeis, emarcados pela impermeabilidade dos pais frente às nossas solicitações.Uma das alternativas utilizadas para convocar a família a uma parceria,por exemplo, foi de solicitar sua presença na escola, toda vez que adesorganização motora da criança impossibilitasse sua permanência entreos colegas. Entretanto, cada tentativa de estreitar laços tinha comoefeito uma resistência ainda maior. E na mesma medida em que aumen-tava a distância da família com a escola, aumentavam as dificuldades domenino. Numa semana de extrema desorganização, agitação eagressividade, foi solicitado que ele ficasse em casa por alguns dias.Esse pedido não era nenhuma medida de punição aos atos dele – atéporque reconhecíamos sua impossibilidade de agir de outro jeito naquelemomento - mas um tempo necessário para nos reorganizarmos (o alunoe a escola), realizar atendimentos à turma dele e seus familiares. Eranecessário constituir-se novamente um grupo com condições de acolhê-lo. Foi um trabalho difícil, mas com resultados interessantes. Na sema-na em que voltou para a sala, nos pareceu que a relação com os colegasficara mais tranqüila. O que não estava tranqüilo era o sentimento de suafamília, que não aceitou esse tempo por nós solicitado e acabou decidin-do por retirá-lo da escola.

Podemos encontrar, nessas duas experiências, elementos que pare-cem ter feito a diferença no processo de escolarização, como o desejo decada um dos envolvidos e a relação estabelecida entre criança, família eescola. São esses outros atravessamentos que fazem com que criançasque teriam condições de apresentar um determinado percurso no seu pro-cesso de escolarização, às vezes tenham essa trajetória marcada por trope-ços, quando não por impossibilidades.

As condições subjetivas da família aparecem como decisivas noprocesso. É necessário que a mesma suponha que a instituição escolhi-da tem como dar conta e auxiliar no desenvolvimento de seu filho. Éimportante que se estabeleça uma relação de suposto saber entre famí-lia e professora e/ou demais profissionais que se ocupem do aluno. Caso

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A HOSPITALIDADE: AS PALAVRASNAS PALAVRAS E NOTAS

PARA SE CONTINUAR PENSANDOA NOÇÃO DE ACOLHIMENTO¹

Charles Elias Lang

O texto que se segue pretende-se no espírito de uma conversa sobreas palavras que utilizamos e deixamos de utilizar, sobre as palavrasocultas nas palavras, e aquilo que a gente quer dizer e não diz por-

que não pode, ou porque não consegue, ou porque é materialmente impossí-vel de dizer. É uma conversa sobre a conversa, sobre a hospitalidade e ooferecer o ouvido e a palavra.

A palavra que está no título, e que aqui pretendo enfatizar, não preten-de substituir, mas quer-se um adjetivo ou uma associação ao substantivo“acolhimento”. A palavra hospitalidade provém do latino hospitalitate, paradesignar o ato de hospedar, hospedagem: a qualidade de hospitaleiro e, porextensão, o acolhimento afetuoso. Antigamente, a palavra “hóspede” permi-tia um duplo sentido: quem hospeda e quem é hospedado. Hoje a palavra épouco utilizada tanto na linguagem coloquial quanto no modo de vida urbanoe, quando usada, só significa a pessoa hospedada, aquela que recebe hospi-talidade, que é recebida na casa de alguém, acolhida. “Hóspede” provém dolatino hospes e é a pessoa que se aloja temporariamente em casa alheia,visitante; hospite era o senhor do estrangeiro, do hospitem, do propriamenteestrangeiro, da pessoa que vem de outra terra. Hospitalidade, como derivan-do do latino hospitalitas é o ato de hospedar, de acolher afetuosamente, e dehospitatem, a qualidade, a disposição acolhedora de quem oferece hospeda-gem, de quem bem recebe hóspede. (BENVENISTE, 1969).

¹A partir de nosso encontro em Canela, no início de junho e por ocasião do Relendo Freud,retomei uma questão que venho trabalhando há algum tempo e que julgo pertinente àsdiscussões ali levantadas.

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chamado “aluno incluído” porta uma lente de aumento, maximizando osimpasses que proliferam em todas as instâncias da escola que, vez poroutra, embora não fosse funcional para os demais alunos, fazia passar comodesapercebida suas fraturas. Dessa forma, é possível dizer que o alunoincluído acaba funcionando como um interpretante da instituição escolar, e aescola, por sua vez, ao recebê-lo, deve suportar ser interpretada nos seusquatro cantos.

Enfim, com todos esses atravessamentos que a escolarização decrianças com uma estruturação psíquica frágil impõe, seria reduzir muito aproblemática se centrássemos nas questões diagnósticas todas as possibi-lidades e impedimentos de um trabalho efetivo. Essa questão é sim funda-mental, no sentido de pensarmos que diferentes condições subjetivas de-mandam diferentes estratégias e exigências e apontam para possibilidadesdiversas. Coloca-se aí, por exemplo, a discussão em torno de ser a escolaregular um lugar para todos. Sabemos que não, nem todo mundo beneficia-se desse espaço em qualquer momento de sua vida. Mas nos casos em queé possível e interessante a inclusão em escolas ditas normais, é sobre arede de sustentação (familiar e da instituição) que precisamos focar os nos-sos olhares, pois para o sucesso dessa experiência, o papel de cada partici-pante dessa rede é decisivo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

JERUSALINSKY, A. e PÁEZ, S. Carta aberta aos pais acerca da escolarização dascrianças com problemas de desenvolvimento. Em: Escritos da Criança. PortoAlegre, nº 6, p. 15-21. 2001.MITSUMORI, N. e AMÂNCIO, V. O aluno não é só da professora, é de toda aescola: construindo uma educação inclusiva. Em: Travessias inclusão escolar: aexperiência do grupo ponte Pré-escola Terapêutica Lugar de Vida. São Paulo:Casa do Psicólogo, 2005.

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Parasita evoca o seu oposto aparente, não significando na ausênciada contraparte. Não há parasita sem hospedeiro, ao mesmo tempo em quetanto parasita como hospedeiro se subdividem, revelam-se fendidos dentro desi, cada um revela-se Unheimlich: estranho e familiar, para si mesmo e para ooutro. “Para” (para-sita) é ao longo de, o lado de ou próximo a, além de (incor-retamente) semelhante “a’ ou parecido “com”. Nos compostos gregos, “para”indica “junto a”, “ao lado de”, “ao longo”, “além de”, “injustamente”, “nocivamen-te”, “desfavoravelmente” e “dentre muitos”. “Para” é um prefixo antitético duploque significa, ao mesmo tempo, proximidade e distância, similaridade edissimilaridade, interioridade e exterioridade, algo que está dentro de uma eco-nomia doméstica ao mesmo tempo em que fora dela; é também o própriolimite, a tela, que é uma membrana permeável, conectando um dentro e umfora, confundindo um e outro, permitindo que o fora passe para dentro, fazendoo dentro passar para fora, separando-os e juntando-os. Parasita, pois, vem dogrego parasitos, ao lado do grão, do trigo, do alimento. Sitos está em Sitologia,a ciência dos alimentos, da nutrição e da dieta (MILLER, 1995). Um parasitaera algo positivo, um amigo convidado, alguém com que se poderia comparti-lhar a comida, que se encontrava ao lado, à mesa. Mais tarde, o termo parasitapassou a significar um convidado profissional, um especialista em “filar” convi-tes para jantar, aos quais jamais retribui.

Daí é que surgiram dois principais significados modernos para o termoparasita: o significado social e o significado biológico. No primeiro, refere-se àpessoa que habitualmente se aproveita da generosidade das outras, sem ofere-cer qualquer retorno (útil). No campo da Biologia, é significante para qualquerorganismo que cresce, alimenta-se e se abriga num organismo diferente semcontribuir em nada para a sobrevivência daquele que o hospeda.

Assim, percebemos esse curioso sistema de pensamento, linguagem eorganização social implícito na palavra parasita. Parasita e hospedeiro sãocompanheiros que compartilham a comida, por um lado; por outro, o própriohospedeiro é a comida; sua substância, sua potência, seu poder são consumi-dos sem recompensa. O hospedeiro pode, então, se tornar um host, a hóstia,a vítima, o pão consagrado na eucaristia (eu: bom; charis, graça, dom).

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Logo encontramos host, o hospedeiro, o generoso distribuidor da hos-pitalidade e o guest, o hóspede, que remontam à mesma raiz ghos-ti: estra-nho, hóspede; também anfitrião (em particular alguém com quem se man-têm obrigações recíprocas de hospitalidade). Host, no inglês moderno, refe-re-se também ao servidor de computadores, e vem de (h)oste - inglês medi-eval, do antigo francês (anfitrião, convidado) e do latim hospes (raiz hospit-),convidado, anfitrião, estranho.

Encontramos em hospitalidade a raiz per ou pit (tanto nas palavraslatinas como nas inglesas e portuguesas modernas) – tais como em hospitale hospitality – que provém de pot, o “senhor”, “mestre” (pot é tambémpotência, força, e está na raiz de pater, dieu pater, jupiter). Ghos-Pot, raizcomposta, significa “senhor dos convidados, aquele que simboliza o relacio-namento de hospitalidade recíproca (como no gospodi eslavo: amo, senhor,mestre. Guest (hóspede) vem de gest (inglês medieval, do antigo escandinavogestr, de ghos-ti, que vem da mesma raiz de host).

As palavras hospedeiro e hóspede visitam-se. Não há um sem o outroe os dois podem ser o mesmo. Um hospedeiro é também uma hóstia – queprimeiramente era a vítima oferecida em sacrifício, depois o pão consagrado,o corpo do Cristo na eucaristia – um pão. A relação entre o senhor da casaque oferece a hospitalidade a um hóspede, e o hóspede, que a recebe (dohospedeiro e do parasita no sentido original de companheiro convidado), jáestá incluída na palavra Host (hospedeiro). O Host, o hospedeiro é, simulta-neamente, aquele que alimenta como aquele que serve de alimento.

Host, hospedeiro, hóstia, está também à raiz de hoste, inimigo.No interior de host há esse sentido antitético do familiar e íntimo e doestranho e estrangeiro. O hospedeiro oferece comida ao seu hóspede,dá-lhe algo de si, sacrifica uma parte de seu patrimônio. Mas ele só opode fazer por ter essa potência (-pot) por ter se autogerado. O que eleoferece não é o que recebeu de alguém ou o que sobrou, e nem o deve aninguém. Ora, isso que é oferecido pode ser algo benigno ou algo malig-no, tanto quanto o hóspede pode ser um amigo ou um inimigo (ou umparasita).

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de parece ser o exato oposto de hospitalidade, na medida em que hostilizaré tratar como a um inimigo, ter sentimento hostil contra, mover guerra con-tra, causar dano a, prejudicar. Mas o termo hostilidade guarda essa mesmarelação interna que hospitalidade, ao opor-se-lhe: hostilizar é combater-se,agredir-se mutuamente. O hospedeiro não mais se oferece ao outro, masvolta-se contra si mesmo.

Host ainda nos reserva uma outra surpresa. A hóstia, o pão consagra-do, é, antes, a vítima, o sacrifício oferecido à divindade, ao Outro absoluto.Aquele que hospeda sacrifica algo, dá algo de si sem esperar retribuição.Por isso, o dom. Esperar algo em troca anula o dom. De acordo com areligiosidade judaico-cristã, o mundo foi criado perfeito (“viu Deus que tudoera bom”), encantador: o mundo tinha graça (charis), era carismático. Maspelo pecado, pela transgressão, pela culpa dos primeiros homens, o mundocaiu em desgraça, perdeu a graça, e a vida tornou-se um caminho de dorese de trabalhos em direção à morte, o preço da transgressão. Mas a divinda-de, em sua infinita sabedoria, enviou seu filho, seu único filho (um filho queele, o senhor potente, engendrou no interior de si) para que ele fosse sacrifi-cado, se tornasse a vítima no sacrifício, para que a graça fosse restabelecida.O pai entrega o filho à morte, em sacrifício e, ao entregá-lo, entrega-se.

Charis é a graça, a graciosidade, a amabilidade, o favor; o charisma, opresente oferecido de boa vontade. Encontramos, ainda no grego, a palavracharizomaí, o mostrar favor ou bondade, dar como favor, ser gracioso para comalguém. Não é difícil perceber a intimidade entre a graça, o dom e a hospitalida-de. Como se todas essas palavras fossem re-apresentações de uma Ética, deuma posição e disposição, de relação com o outro e com o Outro. Com opróximo, com o semelhante (com o familiar), mas também com o Absoluto,com o inominável, com o incontornável, com o destino (com o estranho).

A eu-carestia é o ato ritual em que se repete o sacrifício, no qual agraça, mas também a carestia, possa repetir-se. O sacrifício guarda relaçãocom a graça e com a carestia. Ele é o preço da graça, mas um preço muitocaro, elevado, incalculável; um preço fora de qualquer economia possível. Éisso que contém a palavra carestia. A noção de algo muito caro, ao mesmotempo em que a falta, a carência, a ausência de um valor. Aquilo que é

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Carestia (do italiano carestia) é a qualidade do que é caro, superior aovalor real, mas é também a escassez, a falta, a carência. Por isso o sacrifício.Só há sacrifício (a hóstia ou a vítima) onde há falta, carência. Se o hospedeiroé aquele que alimenta e que serve o/de alimento, ele também contém em si arelação antitética dupla de hospedeiro e hóspede, ao que se soma o duplosentido de host (como presença amiga ou como invasor, o inimigo).

Se nos detivermos um pouco mais na acepção social do termo parasita,podemos perceber que, em nossas sociedades, há indivíduos que são, pordefinição, parasitas. Pensemos nos presidiários, nos loucos asilados1, etc.Mas não são, tão somente, parasitas (no sentido biológico ou social) que pode-riam ser simplesmente e justificadamente eliminados. Eles têm um outro sen-tido e utilidade.2

Aquele que hospeda oferece sua hospitalidade, sua casa, seu corpoao outro, ao estranho, o estrangeiro. Por sua palavra ele transforma esseoutro/estranho visitante num outro/familiar convidado. Acolhe-o, serve o/dealimento. Esse outro pode tornar-se um convidado, viver em comum, comun-gar, partilhar junto o pão, compartilhar. Mas esse outro pode querer nunca setornar convidado e querer permanecer visitante ou hoste, o que pode tantoser algo positivo quanto poder degenerar na inimizade e no parasitismo.

Hostis é a igualdade por compensação, aquele que compensa umdom por um contra-dom. Host está também na raiz de hostil (do latim hostil),o contrário, o adverso, o inimigo; também o agressivo, provocante. Hostilida-1 Temos a palavra hospício (do latino hospitiu.) que pode ser a casa onde se hospedam e/outratam pessoas pobres ou doentes, “sem retribuição, gratuitamente”, portanto, como o asilode loucos, com retribuição ou sem ela. Um outro sentido para hospício é o de lugar onde serecolhem e tratam animais abandonados.2 No seminário que vinha conduzindo (cfe. anunciava no workshop realizado no mês de julhode 2001, no Rio de Janeiro) Derrida estava se dedicando ao tema da pena de morte, paramostrar justamente essa outra dimensão do parasita. Não mais como o inútil, como oaproveitador, mas o parasita como hóstia, como vítima, como sacrifício. Privamos homens deum valor incalculável – a vida (no caso da pena de morte) ou a liberdade (no caso doencarceramento) – oferecemos vítimas em sacrifício para que nossas culpas e nossas des-razões sejam expiadas e uma certa ordem e harmonia seja restabelecida. Assim, com osacrifício humano e através do sacrifício, podemos nos autojustificar, separarmo-nos denossa crueldade pois ela está bem contida, separada, segregada na prisão ou no manicô-mio. Aquele que cometeu uma crueldade recebe uma outra crueldade. Não somos menoscruéis que aqueles que foram cruéis.

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do caminho, sob argumentos ou desculpas, ou sob a pressão de outros cami-nhos. Abraão não discute, não pede razões. Confia e caminha. Ele anda comDeus, agora Deus pode andar com ele. Ele foi até o limite, e Deus agora poderáacompanhá-lo, sempre que ele quiser ir além dos limites. Deus assina, Abraãoendossa, contra-assina. E vice-versa. Pai e Deus são cúmplices, aliados.

Derrida (2000), nos propõe uma outra leitura, no que o seguimos. Aprova de Abraão não é o sacrifício, o dom, a entrega de um bem incalculável, deum valor inestimável. A prova não é hospedar o estranho, entregar o bem maisprecioso, entregar o melhor de si, entregar a garantia de seu futuro na medidaem que o filho é garantia de sua continuidade, de sua descendência. A provanão é abrir mão do futuro. Também o é tudo isso, mas tudo isso só é possível apartir do segredo, do secreto, do oculto, do separado, isolado, segregado. Deum segredo sem conteúdo, sem sigilo, mas do segredo do segredo do pedidode segredo. Deus não precisa pedir segredo de suas visitas, de suas conver-sas, de seus acordos, de seus planos (como o de destruir Sodoma e Gomorra),de seus pedidos. Deus chega como visitante e Abraão o recebe como convida-do. Isso é pacífico. Mas disso Abrão não partilha, não com-partilha, não dividecom ninguém, não conta a ninguém. Sua relação com Deus é silenciosa, se-creta, segregada, separada do mundo, e dos outros. Só há, nesse espaçooculto e isolado, Deus e Abraão, um homem e seu Deus. No que Deus eAbraão se tornam o Outro para os seus, o estranho para os familiares.

Somente é preciso pedir segredo quando não há mais segredo, ou quan-do o secreto já está ameaçado de divisão, de partilha. Aquele que confia algo aoutro e lhe pede “não conte a ninguém, pois é um segredo”, está partilhando osecreto, dividindo-o, ao mesmo tempo em que está pedindo ao outro que nãorepita o seu gesto, que não conte, como ele contou, que não faça o que ele fez.Se fosse um segredo, não deveria, não poderia ter sido contado. Pedir segredoao outro é já não mais estar nesse espaço do secreto. É dividir e transferir (paraoutro) algo que não conseguimos carregar e fazer com que, doravante, o outroo carregue em sua solidão, que ele mantenha unificado, isolado e oculto aqui-lo que já despedaçamos e dividimos partilhando. Abraão, após ouvir o estra-nho pedido do Outro, o pedido de um sacrifício, não divide com ninguém, não

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sacrificado só o pode ser (sacrificado) por não ter valor. No entanto, dizer quenão tem valor já é calcular um valor, mesmo que nulo. Aquilo que é sacrifica-do, a hóstia e a vítima, está fora do cálculo, não pode ser pago por preçoalgum, não pode ser trocado por nada. Por isso o dom. A hóstia, a vítima dosacrifício é oferecida como dom, em seu valor incalculável, sem esperar issoou aquilo em troca – o que anularia o sacrifício.

As palavras que se formam da raiz grega char, indicam coisas queproduzem bem-estar e, também, pertencem à família indo-européia de pala-vras que inclui o Alto Alemão ger (gula) e Geier (abutre); no inglês encontra-mos greddy (guloso). Assim, em charis encontramos também o excesso noqual o alimento, o sacrifício, o pão, a hóstia torna-se hoste, inimigo, hostil.Em que o bem-estar transforma-se em mal-estar, a hospitalidade transfor-ma-se em hostilidade.

Em Abraão, para retornarmos ao Imaginário judaico-cristão, o sacrifí-cio se dá com o filho, Isaque. Depois de tanto ter esperado, nasce seu filho.Mas eis que a divindade retorna, não ao meio-dia (a hora do sol escaldante edas miragens no deserto, a hora em que há menos sombras, espectros),mas à noite, durante o sono (como num sonho), e chama Abraão. Esteresponde: “eis-me aqui”. Esse é o pacto. Quando um chama, o outro respon-de. A aliança entre o pai de Isaque e a divindade, materializada numa marcafísica (a circuncisão) precisa agora ser confirmada através de um sacrifício.A divindade pede a Abraão que tome o filho e caminhe por três dias até Moriáe lá entregue o filho, o único filho, o melhor de si, em sacrifício. Abraãolevanta, pela manhã, e caminha com o herdeiro até o destino. O texto bíblicoé lacônico sobre o que se passou na mente do pai durante os três dias. Nãohá profusão de detalhes, não há descrição de estados da alma, não há umavoz interior discutindo consigo mesma. Abraão caminha em silêncio.

Na montanha, Abraão inicia os gestos finais, no que é impedido porum anjo (um mensageiro). Tradicionalmente, essa seria a prova de Abraão.Ele confiou em Deus, mostrou até que ponto poderia ir com Deus, o que fariajunto com Deus, por Deus; nisso se consolida a aliança. Só se pode ir até ofim com quem nos acompanha até o fim, com quem não desiste, na metade

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RESENHA

RESSENTIMENTO

KEHL, Maria Rita. Ressentimento. São Paulo: Casa doPsicólogo, 2004. 242p.

Por que motivos um analista se ocupa-ria de uma temática que à primeira vis-ta parece estar mais vinculada aos afe-

tos do que a uma estrutura clínica e poderiaser tomada como um sintoma equiparável atantos outros? Deixe-se mobilizar por esta cu-riosidade e confie em sua “suspeita” de que osingelo do título não tem nada de ingênuo, aocontrário, trata-se de uma forma desafiadorade tomar a questão. Você já sabe que a autoranão pretende recuar frente ao instigante e, de fato, encontrará uma aborda-gem capaz de garantir às observações cotidianas da clínica um espaço dereflexão livre de banalizações ou julgamentos apressados. No desdobra-mento do longo e cuidadoso trabalho que desenvolve, a temática será abor-dada com a propriedade que o sofrimento do sujeito da atualidade exige,demarcando também os impasses do analista na condução de sua tarefa.Não é sem generosidade que Maria Rita o faz, transmitindo com a esponta-neidade que lhe é característica o rigor de suas preocupações e reflexões.

Ela parte da constatação de que o ressentimento é sim uma conste-lação afetiva, mas que serve aos conflitos característicos do homem con-temporâneo, dividido “entre exigências e configurações imaginárias própriasdo individualismo e os mecanismos de defesa do eu a serviço do narcisismo.”Na lógica que comanda a formação do ressentimento, a autora evidencia oprivilégio do indivíduo em detrimento do sujeito, da integridade narcísica aoexercício do desejo, uma versão imaginária da falta como prejuízo em lugarda sustentação do campo do Outro como alteridade simbólica. E, se o ter-mo nos evoca também o sintoma, tal como estamos habituados a pensá-lo,como formação de compromisso, ele é aqui considerado como uma solução

consulta ninguém, nem mesmo a velha senhora mãe do menino. E nemexplica para o menino, justificando-se, o horror que está para cometer. Osecreto é justamente isso: que não haja um terceiro entre nós dois.

Assim a hospitalidade, o segredo, o dom e a confiança se articulam.Hospedeiros que se alimentam e se servem mutuamente, num segredo em quenada é preciso pedir e no interior, no íntimo do qual não há hoste ou inimigo quepossa adentrar, cada qual dando ao outro aquilo que é de valor incalculável: umafiança o outro, um garante, segura, assegura ao outro (a confiança). Deus nãoseria Deus (o Outro) se não tivesse criado o homem. Só, Deus não seria Deus,mas um solitário des-graçado, sem alimento para dar e sem alimento a rece-ber. Daí sua necessidade do homem, de encantar o homem (encanto (carmen),de onde provém charme, tem a mesma raiz: charis), engraçá-lo.

Do mesmo modo, reduplica-se a relação do Deus (o Outro) com ohomem na relação do pai com o filho. O que são Deus e o homem assimtambém o devem ser pai e filho: hospitalidade, segredo, dom e confiança3. Apaternidade, nesse sentido, não deixa de ser um dos primeiros nomes paraisso que é inaugurado por Abraão, uma tradição da hospitalidade4 em que osmais velhos, aqueles que estão estabelecidos mostram-se, posicionados,disponíveis e à disposição daqueles que estão chegando.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BENVENISTE, É. : Le vocabulaire des institutions indo-européennes:1. économie,parente, societé. Paris: Minuit, 1969.DERRIDA, J.: Dar la muerte. Buenos Aires: Paidós, 2000.MILLER, J.H.: A ética da leitura: ensaios 1979-1989. Rio de Janeiro: Imago, 1995.

3 Sem nos esquecermos que o pt, em hospitalidade, é a raiz: poder, potência, força. E queestá também na raiz de pater, pai, e de paternidade.4 Conceder hospitalidade é um dever, reconhecido tanto no Antigo como no Novo Testamen-to. Era uma virtude patriarcal (Gn 18.3); estava prescrita na Lei (Lv 19.33,34); implicavaresponsabilidade pela segurança do hóspede (Gn 19.6 a 8); e a sua violação tinha maisimportância que um caso meramente pessoal (Jz 19 e 20). Ser hospitaleiro é considerado umdever cristão (Rm 12.13; Hb 13.2; 1 Pe 4.9), mais especialmente no caso de um bispo ou umsuperintendente (1 Tm 3.2). As circunstâncias em que se achava a Igreja Primitiva tornavamos cristãos particularmente dependentes de tal auxílio.

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afeto característico dos impasses gerados nas democracias liberais moder-nas, que acenam para os indivíduos com a promessa de uma igualdadesocial nunca cumprida, “nos termos em que é simbolicamente antecipadopela lei democrática.” Essa lei garante a priori direitos e deveres iguais paratodos, mesmo que o Estado, os dispositivos sociais ou as conquistas popu-lares não os garantam. É nisso que o ressentimento não é um afeto qual-quer, mas fala dos conflitos da modernidade, do trabalho psíquico que cadasujeito tem de realizar para elaborar o luto de um lugar perdido (não de umobjeto) e representar-se na relação ao Outro e aos outros. Pensamos que aproposta ou reivindicação de igualdade, pode assumir função de defesa con-tra esse Outro, do qual o luto continua pendente, instância à qual responde-mos com nossas conquistas fálicas, igualdade destinada a liberar ao mes-mo tempo do terror e do trabalho de luto.

A busca de reconhecimento poderia ser pensada, então, como a con-seqüência lógica de uma recusa à perder a ilusão do Outro poderoso a quemcaberia preservar o paraíso protegido da infância, só presente no imaginárioda criança - para quem o narcisismo é legítimo e tem função estruturante.

A posição subjetiva resultante da recusa é de uma rendição voluntá-ria, em que o sujeito se impede por conta própria e passa a se identificarcomo vítima. Renuncia a seu desejo, em nome de uma submissão a umoutro, identificado desde o lugar do supereu. Não luta para recuperar o queperdeu ou obter reparação, mas dedica-se à vingança imaginária, que gozana fantasia. Assim, para a autora esse afeto faz função de resistência: con-tra o desejo que é recusado pelo próprio sujeito e é cobrado de um outro nasqueixas e acusações ressentidas; defesa contra assumir a responsabilidadepela sua recusa e defesa contra os sentimentos de vingança não reconheci-dos, seu elemento mais propriamente narcísico. O que o sujeito não arriscaao apartar-se do próprio desejo e da responsabilidade por suas escolhas é oseu narcisismo.

O núcleo do sofrimento no ressentimento é o apego a um passadoideal, é a nostalgia de um tempo em que ele acredita ter formado uma unida-de com sua própria imagem, recusando tudo o que seria o outro, o não-eu.

de compromisso, mas entre dois campos psíquicos, o do narcisismo e o doOutro, fio condutor da pesquisa e reflexão.

A retomada inicial da definição do termo ressentimento já remete oleitor tanto a conceitos psicanalíticos, a partir dos quais se poderia pensar aquestão (como a repetição, o recalcamento, as pulsões, etc.), quanto a situ-ações da sua clínica. Qual analista não se deparou com ocasiões em que afala do analisante não parece permitir que ele elabore e esqueça um agravo;ou quem não se perguntou que destinos poderiam ter as queixas reiteradasde sujeitos “que não se representam como faltantes, mas como prejudica-dos”? Na experiência clínica existem muitos casos de dúvida se há recusaou se é impossível elaborar, esquecer - dúvida que nos seus efeitos, nosparece, pode inclinar a transferência a articular-se em torno da impotência.Como operar no discurso quando o sujeito não vem para ter acesso às ex-pressões de seu desejo, mas “quer não se esquecer”? Com essa expressãoa autora indica o quanto o ato desses sujeitos, mesmo o ato de fala, não visaa reagir contra a ofensa ou a buscar reparação, mas a estender indefinida-mente o tempo da descarga agressiva, embaraçando-os numa vingança nun-ca efetivada, que reorienta essas pulsões contra o eu e gera uma disposiçãopassiva, o que prolonga e reedita seu desamparo. De Max Scheler, um deseus inúmeros interlocutores, resgata a expressão “envenenamento psico-lógico”, para falar desse retorno da raiva e indignação contra si mesmo, efei-to da recusa do sujeito em sair da dependência infantil a um Outro suposta-mente poderoso, a quem caberia protegê-lo e reconhecer seu valor. “Eleprefere ser protegido – ainda que prejudicado – a ser livre, mas desampara-do.” Essa é a condição conflituosa do sujeito de hoje, dividido entre a autono-mia, parceira do desamparo, e a infância eternizada, aterrorizado pelo Outro‘incastrado’.

Temos tomado a narrativa como a possibilidade de inscrever o sujeitona experiência, tanto frente ao trauma quanto nos momentos de passagem,em que se trata de reorganizar inscrições psíquicas e produzir novas repre-sentações do sujeito no coletivo. Ao tomar a questão do ressentimento comosintoma social, Maria Rita contribui para esse debate situando-o como o

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Já em “Nietzsche e o ressentimento”, Maria Rita trabalha basicamen-te a escravidão auto-imposta do ressentido e a dinâmica das pulsões agres-sivas, sádicas, vingativas voltadas contra o eu; a substituição de uma vonta-de de potência por uma vontade de nada, de nada querer; a repetição de umgozo passivo como presa das pulsões de morte. Prossegue num debatecom Espinosa e Freud em torno da moral e da culpa, nas articulações como desejo e o ato.

“O ressentimento na literatura e a estética do ressentimento” se per-corre com deleite, justamente porque veicula uma “estética” particular daleitora Maria Rita, ao evidenciar a beleza de obras que mesmo conhecidasse renovam nos enlaces particulares que ela lê ou se revelam em sua narra-tiva. Uma tragédia: “Ricardo III”, a vingança desenfreada, que atualiza asriquezas de Sheakespeare; um romance: “Crime e castigo”, a vingançadeslocada, no que Dostoiévsky trouxe da relação do sujeito à comunidade eà liberdade; um romance brasileiro: “São Bernardo”, uma vingança invertida,com tudo o que se inaugura de novo e sereno após uma derrocada e “Asbrasas”, uma vingança adiada, trazendo a força da nostalgia, a falta de alter-nativas do sujeito que se apega à segurança e estabilidade de um mundoperdido, seja de uma cultura, seja de uma história subjetiva, recobrindo adestruição com o véu da idealização.

“Políticas do ressentimento” trás o “ressentimento social” e a impo-tência correlativa daqueles que seriam os agentes da transformação políticaque lhes interessaria. Se o pressuposto simbólico é o de igualdade, a desi-gualdade só passa a ser considerada injusta. Evocando Nietzsche o ressen-timento é a patologia de homens enfraquecidos que perderam a coragem delutar e delegam toda vontade de potência ao Estado, ao qual submetem-sevoluntariamente. Há uma importante precisão: o que produziria ressentimen-to “são as tentativas de estabelecer uma solução de compromisso entre ossentimentos de revolta/insatisfação e a subordinação às condições impos-tas pelo poder, gerando uma revolta submissa. A opção pela identificação àvítima como representação de si é detalhada bem como a função da narrativae do testemunho como aquilo que permite, junto ao outro, reconstruir a me-

“Quer não esquecer”, equivale a dizer que não quer renunciar à certeza ima-ginária de que seria seu direito recuperar o que ficou perdido dos ideaisnarcísicos, tomando a impossibilidade de unidade com a imagem ideal, sem-pre presente na constituição do sujeito desejante, como obra de um agenteprivador. Em nome da manutenção dessa integridade funda-se o desejo desubmissão ao gozo do Outro. Trata-se de uma vítima, mas da própria omis-são, de um sujeito que “não pode entregar-se ao fluxo da vida presente.”

Maria Rita verifica e demonstra a atualidade dessa lógica ao cruzar aprodução psicanalítica com múltiplas referências de nossa época, como tre-chos de músicas, contos, filmes e em especial da literatura e da filosofia,além de tomar autores que, de uma forma ou de outra, “narraram” a transiçãopara a modernidade e revelam em suas obras como as alterações da posi-ção do sujeito determinaram a emergência desse conflito.

O livro se organiza em quatro capítulos. Ainda que não valha a penaser breve e o mais interessante seja percorrer a elaboração, tentemos formu-lar o que se destaca em cada um deles:

Em “O ressentimento na psicanálise”, trabalha de início o narcisismoe a repetição - a recusa de renunciar à imagem ideal ou impossibilidade desimbolizar uma perda (do lugar de falo do Outro) - na comparação do ressen-timento com o luto e a melancolia, as modalidades de gozo (a covardiamoral, o desejo de submissão, o masoquismo...) e o fantasma como artifíciopara reconstituir esse lugar perdido. O núcleo arcaico do ressentimento,indissociável da condição humana, se originaria da crença de que o que eleperdeu, injustamente, lhe foi tomado. Essa crença permite que sua relação(sempre defasada) com o ideal narcísico não entre em questão, fixando-onuma identificação com os ideais infantis de perfeição. Identificação comuma imagem que fixa o supereu à identificação tirânica com as exigênciasimpossíveis do eu ideal, destruindo o valor simbólico das conquistas queseriam resultantes da renúncia. “O que o neurótico reconstrói no fantasma,sua posição de gozo, é justamente o que ele já perdeu - em nome do Pai.”Inclui ainda uma reflexão sobre o ressentimento na histeria e na neuroseobsessiva.

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AGENDA

P R Ó X I M O N Ú M E R O

NARRATIVA E DESTINO NA CLÍNICA PSICANALÍTICA

Data Hora Local Atividade

01, 08, 19h30min Sede da APPOA Reunião da Comissão de Eventos15, 22 e 2912 e 19 20h30min Sede da APPOA Reunião da Comissão do Correio da APPOA

08 21h Sede da APPOA Reunião da Mesa Diretiva

9, 23 8h30min Sede da APPOA Reunião da Comissão de Aperiódicos

02 e 16 15h15min Sede da APPOA Reunião da Comissão da Revista da APPOA22 21h Sede da APPOA Reunião do Mesa Diretiva aberta aos

Membros da APPOA

Data Hora Local Evento

01 e 02/10/05 9h às 18h Plaza São Rafael Jornadas Clínicas

29/09/05 20h às 22h Livraria Cultura Núcleo Passagens

a ser definida 10h às 12h Sede da APPOA Núcleo Toxicomanias

19/09/05 20h30min Sede da APPOA Núcleo das Psicoses

SETEMBRO – 2005mória e superar traumas individuais e coletivos. O terceiro, o outro, “institui ocampo simbólico a partir do qual a narrativa pode se abrir para novas signifi-cações, rompendo o aprisionamento repetitivo da cena traumática.” “Traba-lhar a memória é transformar seus resíduos, de modo a que eles se incorpo-rem aos termos da vida presente sem que precisem ser recalcados.”

Maria Rita lembra Benjamin, para quem “o narrador poderia ser qual-quer membro de uma comunidade que tivesse o talento de transformar ovivido em experiência compartilhada”, recolhendo restos da vida miúda paratecer com eles uma rede de sentido com o qual seja possível identificar-se ecujo sentido seja compartilhado.

Por fim, o ressentimento é examinado na sociedade brasileira reto-mando a questão: o que é que o brasileiro não enxerga em sua cultura, ou noconjunto de suas subculturas, que tem de pedir a um outro que o reconhe-ça? - pergunta formulada em Psicanálise e Colonização, organizado por Édsonde Souza, 1999. A questão se desdobra e destaca-se a formulação de queao brasileiro não falta pai, tradição, filiação, falta o reconhecimento da filiaçãoapagada, da origem rejeitada em nome da identificação com um Outro idea-lizado e alheio à nossa história. Não precisamos de mais um “pai colocadoem posição de autoridade ou líder messiânico”, mas reconhecer os efeitosda ação republicana, desdobrada em formações horizontais, fraternas - reco-nhecimento que poderia liberar os “ressentidos sociais” da espera passivafrente às promessas do pai magnânimo, justo e também da desilusão e daqueixa estéril.

O livro tem muitos méritos, mas destaco em especial os aportes quepode trazer aos debates que a APPOA desenvolverá em seu eixo temáticodesse ano - “Narrativas em Psicanálise”. Trata-se de uma delas, que nossupõe na função de interlocutores.

Liz Nunes Ramos

12 20h30min Sede da APPOA Reunião da Comissão de Publicações

27/09/05 08h30min CAIS Mental Núcleo das Psicoses

10/09/05 10h Sede da APPOA Exercícios Clínicos

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EXPEDIENTEÓrgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

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Otávio Augusto Winck Nunes, Robson de Freitas Pereira e Siloé Rey

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.)Criação da capa: Flávio Wild - MacchinaRevista da APPOA

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S U M Á R I O

EDITORIAL 1

NOTÍCIAS 2

SEÇÃO TEMÁTICA 16

CULTURA E DESAMPARO:COM A PALAVRA, OSGÓTICOSMartha Lacerda Lemos 17REFLEXÕES SOBRE ACONSTITUIÇÃODO SUJEITO PSÍQUICOLisiane Machado de Oliveira 24CONTRIBUIÇÃO DAPSICANÁLISE NO FAZER DAEDUCAÇÃO DIANTE DOSDESAFIOS DO AUTISMOMaria Odete Garziera 30DELIMITANDO FRONTEIRAS: CORPO, SUBJETIVAÇÃO EPALAVRAElaini Alves Gonçalves 43CLÍNICA DAS PSICOSES NOAMBULATÓRIO PÚBLICO: UMACLÍNICA DO SUJEITOGiselda da Silveira Endres 49

N° 139 – ANO XII SETEMBRO – 2005

UMA CLÍNICA QUE CONVOCAÀ INVENÇÃO: A FOTOGRAFIACOMO DISPOSITIVO DETRATAMENTOThoya Lindner Mosena 69ESCOLARIZAÇÃO DECRIANÇAS COM UMAESTRUTURAÇÃO PSÍQUICAPRECÁRIA - IMPASSES EPOSSIBILIDADESRenata Gonçalves Prosdocimi 75

SEÇÃO DEBATES 81

A HOSPITALIDADE: ASPALAVRAS NAS PALAVRASE NOTAS PARA SE CONTINUARPENSANDO A NOÇÃODE ACOLHIMENTOCharles Elias Lang 81

RESENHA 89

RESSENTIMENTOLiz Nunes Ramos 89

AGENDA 95

ESCRITOS SOBRE A ESCRITAGiovana de C. Cavalcante Serafini 62

DESDOBRAMENTOS DO OLHAR:CONSIDERAÇÕES NA CLÍNICADA PSICOSEClaudia Martins Marquesan 55

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CARTOGRAFIAS DEUM PERCURSO

N° 139 – ANO XII SETEMBRO – 2005