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Revista técnico-científica do Instituto de Ciências Jurídicas

da FASAM – Faculdade Sul-Americana

Publicação online do Instituto de Ciências Jurídicas da FASAM – Faculdade Sul-AmericanaAno 2, Número 03, novembro de 2013.

ISSN 2316-204X

EDITOR

Dr. Arnaldo Bastos Santos Neto

CONSELHO EDITORIAL

Programação Visual e Editoração Eletrônica:AD.ARTEFINAL – [62] 3211-3458

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIABR-153 – Km 502 – Jardim da luz Goiânia-GO CEP:74850-370

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS – É proibida a reprodução total ou parcial da obra, de qualquer forma ou por qualquer meio sem a autorização prévia e por escrito do autor. A violação dos Direitos Autorais [Lei nº 9.610/98] é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal Brasileiro.

IMPRESSO NO BRASILPrinted in Brazil 2013

Dr. Saulo de Oliveira Pinto CoelhoDra. Elenise Felzke SchonardieDr. Cleuler Barbosa NevesDr. Bruno de Almeida OliveiraDr. Gustavo SiqueiraDr. Diogenes Carvalho

Dr. Flavio PedronDra. Fernanda Busanello FerreiraDr. Marcelo Maciel RamosDr. Arnaldo Bastos Santos NetoDra. Leila Borges Dias Santos

SUMÁRIO

5 UMA PERSPECTIVA FILOSÓFICO-LITERÁRIA DA JUSTI-ÇA? PLATÃO E OS TRAGEDIÓGRAFOS CLÁSSICOS

Rafael Zanlorenzi18 DAS CERTEZAS DA TERRA FIRME ÀS INCERTEZAS DOS

TERRITÓRIOS DESCONHECIDOS. UMA CARTOGRAFIA DE LUIS ALBERTO WARAT

Marta Gama34 DIREITO, LINGUAGEM E SEMIOLOGIA DO PODER

Ricardo Menna Barreto Claudia Raquel Wagner47 A CONSTITUIÇÃO FILOSÓFICA E AS IMAGENS DOS

VALORES NA REPÚBLICA DE PLATÃO Diogo Norberto Mesti

60 O SISTEMA NORMATIVO GLOBAL DOS DIREITOS HU-MANOS E SEU PROCESSO DE CONSTITUCIONALIZA-ÇÃO NO ESTADO BRASILEIRO

Candice Nunes Bertaso 76 CONFIGURAÇÃO DA GUERRA FISCAL NOS ESTADOS

E MUNICÍPIOS BRASILEIROS Camila Gomes Delalibera

89 RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO NA EMIS-SÃO DE PARECERES EM CASO DE INEXIGIBILIDADE E DISPENSA DE LICITAÇÃO

Nile William Fernandes Hamdy Monique Cristina Guimarães do Prado100 A NOVA REDAÇÃO DA LEI SECA (LEI 12.760/12)

Goiacy Campos dos S. Dunck Davi Augusto Campos Dunck

Revista Online do Curso de Direito da Faculdade Sul-Americana

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Revista Online do Curso de Direito da Faculdade Sul-Americana

UMA PERSPECTIVA FILOSÓFICO-LITERÁRIA DA JUSTIÇA? PLATÃO E OS

TRAGEDIÓGRAFOS CLÁSSICOS

Rafael Zanlorenzi1

1 INTRODUÇÃO

Na República e no Górgias, o nivelamento apresentado ao tema da justiça por Platão é determinante do conjunto de instruções coletivas que informam qualquer prática dirigida a tais regimes. Guarda, mesmo assim, profundo contraste, eis que a cultura, sobretudo em seu sentido teatral e literário, apreende as questões da justiça segundo regimes limítrofes.

A ausência de narrativas tipicamente cotidianas de julgamento impede uma observação mais cuidadosa sobre seu sentido genealógico concreto, lançando-nos apenas para as esferas mais amplas da literatura produzida. Isso nos lega dois percursos possíveis, os quais são colocados lado a lado para a tomada de conclusões opostas. Num primeiro momento é possível contemplar a justiça em seu sentido filosófico como resultado de uma leitura das razões coletivas de existência, exigindo-se em algum ponto ao menos um mínimo constitutivo de alteridade para o processo. Num segundo momento, contudo, a mesma questão se desdobra sob as condições irresolutas da presença do tema entre os gregos, o que nos lança a todos para as esferas do questionamento trágico.

A questão fundamental passa a ser, então, se somos capazes de elaborar uma visão mais sólida de justiça segundo os processos de expressão filosófica ou trágica. De fato, presumimos cedo demais que a expressão mais fiel de um jogo de ideias será aquela dirigida por uma promessa inicial de discursos racionais, idôneos e capazes de ubiquidade, e por isso mesmo de uma justeza que retrata o caráter da faculdade de

1 Professor da Universidade Positivo – UP, das Faculdades Estácio-Radial de Curitiba e da Escola do Ministério Público do Estado do Paraná – FEMPAR.

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observação do valor do justo e do injusto sobre as ações atinentes aos homens. Será, contudo, necessário pensar num sentido corriqueiro e meramente externo à angústia fundamental de justiça o problema de concretização das relações mais justas?

Presencia-se antes de tudo no que tange a tal tema um jogo mais profundo entre o interno e o externo. Se a justiça trafega pelo âmbito das considerações mais íntimas ligadas ao regime do ser da República, então devemos entender sua submissão imediata às condições políticas e coletivas que instruem a formação do corpo da polis. Exatamente sob esse aspecto somos levados a considerar as relações íntimas entre os aspectos mais amplos do mito e a construção do pensamento filosófico como tal. Se a filosofia está a se ocupar especificamente dos regimes interiores à polis, então a propensão que se coloca ressurge precisamente pela realocação do filósofo como protagonista e herói-sábio das relações cotidianas, elas próprias condensadas e intensificadas em torno da amenidade do regime de trocas. Isso significa que a condição de igualdade abordada no Górgias se fundamenta especificamente sob o caráter resolutivo das condições existenciais do conceito de justiça, prestando-se à amenização de forças conflitivas geradas no interior de comunidades que, de outro modo, dependeriam de esforços violentos para a resolução de suas querelas.

Por seu turno, a apreensão mítica esforça-se por vagar para além dos limites da polis, e por isso mesmo confere ao tema uma auratização mais específica. Sob esse regime de linguagem, sua descontinuidade é esforço puro no tocante às configurações limítrofes da relação de justiça, constituindo-a apenas como processo exemplar. Aqui tem-se aquilo que se preconiza como jornada externa do herói, em algum momento entendida por Savater como passagem da especificação do conteúdo ético que resume as estruturas de sentido existencial a condições erráticas de conflito, resolução e influências sobrepostas.

Duas questões subsequentes surgem. A primeira delas tangencia o tema e nos faz regressar aos fundamentos constitutivos de tais processos, quando nos faz pensar se a literatura trágica atinge os limites de concepção da justiça por conta da natureza intrínseca do tema ou em virtude da relação trágica em si. A segunda diz respeito à própria natureza da filosofia produzida por Platão, que em algum ponto pode ser entendida como extensão do processo literário, ainda que mais ferozmente exponha a sua recusa fundamental em aceita-lo em sua condição estética essente.

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2 A LEITURA TRÁGICA

Estaria o trágico inclinado a contaminar o tema da justiça?Primeiramente devemos levar em consideração que a cultura tragediográfica

não pode se desfazer de demandas estruturais narrativas que configuram o modelo. Na visão de Northrop Frye esse modelo, batizado de mimético maior, carrega em si posições específicas e temas instruídos para a expressão através dos modelos tragediográficos em si. Afirma ele que as condições essenciais de formação da tragédia residem na exposição do personagem, se figura divina, a dilemas de fundo moral, e se figura humana, a questões de gravidade vital e existencial. Mais além afirma que os temas centrais são representados pela pena e pelo medo, ambos sublimando-se diante da resolução escatológica do texto (FRYE, 1973, p. 35). Se considerarmos essa relação como fundamental a toda produção trágica, então seremos obrigados a imaginar a fundamentação do texto como dirigida para tais sentimentos e condições catárticas, ainda que as concepções representativas sejam construídas sobre o dilema da justiça.

Isso removeria de pronto a natureza fundante do tema da justiça de dentro de tais textos, projetando necessariamente as nossas apreciações para o terreno filosófico em sentido exclusivo – ou quase exclusivo. A alegação posterior de Frye, que coloca o dilema da morte como ponto relevante de uma tragédia, não contribui para a defesa do texto trágico como repositório de nossas preocupações, eis que, segundo o autor, a boa tragédia mantém o dilema da morte como elemento oculto no texto, sugerindo-o por meio de outros temas.

Gostaria, contudo, e apesar das aparências detratoras, de me demorar nesse argumento ainda um pouco mais.

Consideremos que, de fato, a condição trágica do texto esteja estabelecida por uma condução sintagmática que entre em pleno acordo com o que nos coloca Frye. Se ponderarmos de tal modo a questão, então qualquer texto só conquistará uma dimensão catártica pela crescente edificação de uma catarse resolvida escatologicamente por elementos internos à própria narrativa. Essas qualidades caracterizadoras perpetram a trama, que assume tons intercambiáveis no que diz respeito ao justo, em vários de seus percursos. Exemplos de tal percurso sintagmático são encontrados no Ájax, na Oréstia, no Prometeu Acorrentado, certamente na Ilíada e em tantos outros exemplos.

Mas assim como a questão da justiça pode ser nutrida em tais obras, também tantos outros dilemas de cunho existencial podem servir como plano de projeção dessas angústias catárticas. Assim, por exemplo, na leitura mais cuidada das troianas, a vitimização, a súplica, o temor da vida em escravidão e o pedido de asilo são as qualidades mais visíveis.

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Sabe-se, então, que a noção trágica permite leituras de face intercambiável, ou seja, pode se expressar através de uma diversidade tremenda de concepções de mundo, que vão desde os atos de vingança até as expressões mais contundentes do justo. A tragédia, por esse primeiro sentido, não se caracteriza então exclusivamente por ser uma discussão do justo. Por outro lado, se não é possível resumir todo o discurso tráfico a um constante debate em relação à justiça, é possível no entanto realiza-lo segundo a leitura do justo. Será já sempre possível solicitar a constituição dos sentimentos morais ligados à concepção do justo segundo os rigores específicos a que nos submetem catarticamente os personagens da trama. Mesmo assim, se constituímos a questão do justo em tal ocasião, é só pelos termos aprofundados do mise-en-scène da peça, questão que em sentido propriamente categorial coloca a derrota do personagem em seu sentido individual e o reconfigura como peça presente em um jogo estético.

Voltemos nossa atenção a essa questão por um minuto. A realização das condições da peça como justa pode vir a substituir a tese de

Frye, ou então se submete a ela, no sentido de ser apenas mais uma representação possível das condições de apreensão da escatologia trágica. Para substituir o dilema seria preciso minimamente que as peças em questão estabelecessem como ápice catártico a realização do justo ou a concretização final do injusto. Podemos dizer que cada peça agrega, em sua formulação, a realização do justo ou do injusto segundo os critérios de resolução de julgamentos (como na Oréstia ou no Ájax) ou de acordo com as implicações materiais funestas dos ânimos de determinados personagens (como em Medéia). De um modo ou de outro a ação se dá para que o valor seja agregado, e mesmo a questão do justo nem sempre é disponibilizada diretamente. Em geral, aliás, é possível observar a organização de termos que fogem ao emprego de tó dikaios ou dikaiosune. A alternância comum com thymós, por exemplo, é sintomática. Sua elaboração, também por seu turno, parece aliás colocar a questão do justo em contraste com as análises mais contundentes da filosofia platônica.

Consideremos por exemplo os resultados mais elevados do julgamento de Orestes. Em sua extensão, o que se passa é representativo do ponto de convergência e atrito entre divindades antigas e novas. Resguardamo-nos aqui da recuperação da totalidade de forças simbólicas implicadas para o processo (divindades luminosas, humanas, formais em oposição a divindades cthônicas, ofidianas, antigas). Passando, contudo, ao conjunto de debates compreendidos como acusação e defesa de Orestes, percebe-se o ponto tangencial para as esferas de conflito, notadamente quando Atena é ameaçada pelas divindades mais antigas, que alegam ser prerrogativa delas a punição daquele que cometeu o homicídio da própria mãe.

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Notemos então que não se fala em justiça em um sentido direto, mas simplesmente na condição da prerrogativa. Fala-se igualmente em respeito, e passa-se em determinado momento à mais visceral acusação de usurpação de prerrogativas por parte dos deuses mais jovens. Evidentemente a questão, que era de fundo vital e existencial para o mortal Orestes, aqui se torna uma polêmica de fundo moral, o que configura a nota central do estilo mimético superior. Para além disso é importante notar que, colocados sob condições diferentes, os próprios indivíduos envolvidos, deuses e homens, apresentam-se como exemplos dos atos resolutivos do conflito segundo chaves catárticas e hermenêuticas muito diversas dentro do texto. A questão está, então, cercada pelos limites morais e pela gravidade existencial que caracterizam sua força original.

É possível, então, retomar esses discursos e ressignificá-los de acordo com os parâmetros do justo, mas tão somente na medida de suas consubstanciações diversas. O justo entre os deuses é deixar a cada um o que lhe pertence como qualidade regida, termo que se aplica às figuras que preservam poder não por ser antes de tudo qualidade essencial do tó dikaios sobre a autarkeia, mas sobretudo por poder representar lesão à thymós diante da ofensa à autarkeia. Na revolução que atinge a esfera humana, contudo, trata-se da defesa do tó dikaios como expressão mais simples da sanção, da perseguição daquele que deve ser punido. Aqui talvez a justiça seja menos Diké e mais Nemesis¸a Adrástea que persegue fatalmente o homem que comete um crime. Não devemos aliás restringir-nos ao julgamento das ações de Orestes nesse sentido, mas devemos pensar na Adrástea como o agente da fatalidade que traz por seus próprios méritos a punição final, autofágica, de uma linhagem que se consolida sobre a existência política por atos de traição e por crimes imemoriais à própria natureza da existência.

É já perceptível, por conseguinte, a qualidade polissêmica da posição da justiça em nossas traduções dos textos gregos. Mesmo no caso de uma releitura, seremos então obrigados a admitir que essa polissemia promove um levante do quesito afirmativo da justiça. Essa polissemia provém da já mencionada dissociação das visões trágicas, mas serão elas igualmente diferentes visões do justo?

Ambos os círculos se debruçam sobre o ato de Orestes. Por um lado, julga-se-lhe, enquanto por outro faz-se caso das condições sob as quais esse julgamento deve ser levado a cabo. Essa questão parece central. Isso porque o anseio de respeito estabelecido pelas Eumênides já não discute a natureza do crime, mas antes procura restabelecer as prerrogativas de julgamento. Por julgamento, aliás, passa-se à compreensão mais imediata da punição a ser aplicada a Orestes. Essa sanção, medida e estabelecida de antemão, só pode ser esboçada pelas Eumênides executoras, não juízas, e quando Atena se coloca na posição de observadora ubíqua da relação ela imediatamente reinaugura o ciclo de constituição do justo.

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Isso nos fará considerar que a relação não teria o mesmo teor trágico se, no mínimo, a relação impusesse a consequência imediatamente, ou se não houvesse aqui um dilema a ser superado. Somente por isso a questão trágica e a questão de justiça se confundem. Em ocasiões diversas, como no caso de Prometeu, a leitura possível já não reside no conflito trágico que conduz à edificação do justo, mas sim sobre a dúvida fundamental moral a respeito da sanção aplicada a Prometeu por Zeus, e a possibilidade de libertação segundo a satisfação da vontade do soberano. A aplicação da pena é reta, e não resta dúvida sobre o motivo. Fica contudo sob crivo de questionamento a leitura da qualidade justa de tal sanção, e a desgraça de Prometeu é evocada enquanto resultado da sua desobediência ao soberano. Suas naturezas íntimas estão em jogo, colocando-se Zeus antes de tudo como soberano que passa a se assemelhar por demais ao pai, Cronos.

Notemos que a medida das relações de justiça é muito diversa do primeiro exemplo para o segundo. Em certa medida no primeiro caso a questão trágica está na instauração da dúvida pelas disposições justas e indefinidas, demonstrando-se ali a posição trágica preconizada por Hegel e reavaliada por Szondi. Mas no caso de Prometeu essa premissa revolve o tema das prerrogativas e da ação justa segundo suas virtudes íntimas. Resume-se no segundo caso a questão à não usurpação, e a mescla está mesmo presente na diversidade íntima de diálogos platônicos, notadamente na leitura que se faz do justo no Górgias. Ali o justo é mais belo e melhor, e a indissociabilidade de tais elementos se converte em sustentáculo último das relações que reforçam o comportamento justo como vantajoso.

Ainda nesse caso, contudo, as qualidades íntimas do trágico só podem surgir diante da ferida criada sem causa evidente, ou seja, da usurpação que persiste e que por isso gera dor que prossegue ao longo da peça, até uma resolução indefinida perante o protagonista. No caso de Prometeu a indisposição para a vontade de Zeus exige o agravamento de sua pena, exibido no desfecho da peça. Mas quando Ésquilo alcança esse círculo de discussão já não pensa mais na condição da prisão injusta de Prometeu, e sim na possibilidade de justificação final de sua prisão pela libertação nas mãos de Heraclés. Assim, o dom que representa por seu turno virtude de Prometeu é ao mesmo tempo qualidade central de sua vitória sobre Zeus, e com isso o problema da soberania retorna ao proscênio. É, aliás, a ansiedade oculta de Zeus pelo devir que leva Prometeu à prisão.

Já aqui vigoram dois temas que podem conjugar o trágico e o justo: primeiro, a dúvida sobre o valor de justiça de uma ação; segundo, a angústia da persistência da injustiça. No caso da dúvida, entende-se que em fundamento a ação termina por ser justa e injusta a um tempo, evocando-se assim uma dupla representação em linguagem da atitude justa, a que chamaríamos hoje lei. No segundo caso é a

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condição ôntica da existência do deus que está em questão, ou antes o contexto das demandas exacerbadas em nome das inflexões ônticas possíveis sobre a figura representativa do deus.

Nesse ponto de intersecção a divindade prefigura a disputa de poder, e volta-se a um tempo a um estranho argumento, que refaz o percurso do Górgias atendendo a certo entusiasmo. Partindo da relação da retórica, questiona Sócrates a um tempo a Polo e a Górgias a natureza do poder, e diante da afirmação de que seria melhor agir em conformidade com sua própria vontade, entende-se em sentido final que já não se pode mais entender como benigna a ação do homem desarrazoado, mesmo que seja seu desejo. Eis então a expressão do ato monstruoso de Zeus: seu desejo, havido de seu medo, impõe a pena injusta porque já não é mais pena, mas esforço de submissão de Prometeu. A ameaça de Cratos no início da obra é suficiente para recompor a peça segundo um novo plano hermenêutico.

Para que compreendamos então a ligação entre a justiça e a dimensão trágica será preciso antes perceber, portanto, que o justo se aparenta da qualidade do previsível, por ser produto de decisões arrazoadas, o que faz dele bom e belo (novamente, Górgias). O duelo sistemático que se coloca na tragédia emerge então como jogo entre a decisão livre, a imprevisão e a fatalidade, com a prevalência da última sobre as demais.

A associação entre justiça e tragédia não pode ser então direta, ainda que os temas estejam irrevogavelmente implicados. E sob esse aspecto a justiça certamente deverá ser considerada como questão que transcende os limites do trágico, mas que encontra um território adequado a suas necessidades quando se coloca em dimensão de irresolução, sobretudo quando o debate se converte em uma discussão sobre a fatalidade da Nemesis.

3 A LEITURA FILOSÓFICA

Deixemos, então, o argumento como está. Nossa questão subsequente dizia respeito à qualidade da leitura filosófica, e nos obrigava a perguntar que licença tomou Platão para ordenar sua filosofia sob o crivo de seus diálogos sem com isso recuar em sua crítica à própria produção literária.

Duas qualidades diferenciais merecem destaque. A primeira delas diz respeito à natureza das limitações específicas de uma narrativa. Ainda que estejam presentes, de fato, na produção platônica, não se resumem contudo a exclusões fatais para a produção conceitual ensejada. Em segundo lugar, ainda que tais constituições se empenhem em produzir respostas racionais e procurem certo volume de completude,

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elas denunciam, em um grau mais elevado, aquilo que Foucault viria a chamar de processo de transição entre a constituição do pensamento ordenador da Antiguidade e do pensamento significante da Modernidade.

No que diz respeito à primeira concepção, somos obrigados a considerar que a exposição do ideário em questão sob a forma de diálogos tem em si uma tonalidade narrativa, sobretudo diante dos recursos de moldura empregados para situar as discussões. Interessante observação surge, por exemplo, quando se promove, em determinado momento, a substituição de Céfalo pelo filho Polemarco no início da República. Ali fica mais evidente a necessidade de compreensão do círculo de debates endereçado por Platão como familiar e representativo de certas variedades discursivas inclinadas desde o enfoque de certas classes de cidadãos, as quais se vêem representadas por personagens e situações em sentido específico. Outro exemplo, contido no mesmo volume, reside na figura de Trasímaco que, pouco depois, só se dispõe a tratar do tema da justiça mediante pagamento, a exemplo das práticas dos sofistas, passando então a representar seus posicionamentos comuns sobre o tema.

Pode-se prescindir de tais observações para a leitura do texto? Bem, não chegam a ser absolutamente essenciais para todas as composições hermenêuticas elaboradas sobre o texto, mas nem por isso são prescindíveis. Encontrá-las permite a apreensão do texto segundo os recursos hermenêuticos presentes na vivência cultural estabelecida pelo próprio contexto de produção textual.

O ponto diferencial é que se permite um desgaste de tais circunstâncias vivenciais em detrimento dos mapas lógicos que estão sendo traçados na medida da completude argumentativa apresentada. A questão de fundo, contudo, persiste: e quando não existe um encerramento preciso dos projetos argumentativos? E quando a intenção perspectiva não exaure o tema?

Se tomarmos apenas três dos diálogos platônicos em suas percepções de justiça, perceberemos esse não encerramento. Mais que isso, nem mesmo que projetemos os três diálogos em conjunto seremos capazes de completar tais visões, encontrando antes contrapontos severos que precisam ser corrigidos dependendo da discussão. O próprio caráter dialético que se expõe sobre o projeto se reapresenta como condição limitada e evita assim o engajamento ontológico necessário para uma resolução total do tema da justiça.

Na República, os argumentos de Polemarco e Trasímaco são refutados, sendo o primeiro retomado, por exemplo, quando se considera a conformação da República para a averiguação dos limites específicos que a justiça toma enquanto elemento de sua configuração. Mesmo assim, permanece ainda vacante, e só se expressa com a constituição da polis a possibilidade de uma maneira de administração do justo, lançando-o como sustento e produto da realização da polis.

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Já na exposição do Górgias o percurso que recompõe o argumento do mais forte emprega agora a presunção das vantagens em se agir injustamente com a disposição absoluta do poder em sentido desauratizado eticamente. Da mesma maneira nada se afirma sobre a disposição projetada dessa justiça, mas tem-se como resultado provisório da discussão a perene repetição da ligação entre belo, bom e justo e a insistência na ordem de um percurso ético para a realização do justo. Curioso é, nesse sentido, que se precise do bom e do belo insistem sobre si mesmos, considerados que estão como forças orientadoras de uma ética da qual já vem esvaziado o conceito de justiça em si e por si, dependendo então da demonstração dos malefícios de seus opostos, a injustiça cometida e a injustiça sofrida.

Novamente esperamos a consolidação do problema, que encerra o debate ainda em aberto. Sob essas circunstâncias, agrava-se a questão, já que se forma um dimensionamento que pretende aprisionar belo, bom e justo como forças de cooperação sem dar causa mais específica a essas relações unificadas. A única justificação presente reside na condição filológica e mítica que instaura a realização do pensamento platônico, e que de algum modo exerce sobre ele uma influência condutora. Afinal, em suas intervenções a união de tais elementos vai surgir sobretudo na conformação da perfeição ideal dos deuses, na superioridade presumida dos elevados metafísicos.

Convertemos a questão anterior, então, na seguinte: se a discussão permanece não resolvida, então é possível afirmar que sua leitura pode obter benefícios de uma aproximação hermenêutica com a disposição literária?

4 NARRATIVA E DISCURSO FILOSÓFICO

Retornemos, para responder a essa questão, à Apologia de Sócrates, por um segundo. Longe de desejarmos aqui uma avaliação da qualidade retórica do texto, pretendemos antes de tudo endereçar a própria constituição de seus argumentos segundo a revisão platônica. Nela, Sócrates tem sucesso ao refutar as acusações que se lhe impõem, ganhando impacto dois argumentos em especial. O primeiro deles dirigido à noção de descrença nos deuses, afirmada por Meleto e refutada pela reiteração do ideário de Anaxágoras; o segundo deles determinante da impossibilidade de lesão à juventude de Atenas, acusação diante da qual nenhum dos indivíduos supostamente lesados se pronunciou como tendo sido prejudicado.

Nos dois casos, os argumentos apresentados são refutações de caráter mais performático e menos lógico. É evidente que não importa se Anaxágoras considerava sol e lua como astros, e não como deuses. A necessidade de prova pesa sobre a

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crença ou descrença de Sócrates, e sabe-se que já não é possível provar a crença, apenas demonstrá-la por atos de devoção. Por outro lado, o não pronunciamento da juventude também é viciado, eis que os alunos poderiam estar inconscientes do dano causado pelo mentor.

Defesa mais dedicada a esse segundo ponto surge no Górgias. Ali, pela leitura que o próprio Górgias estabelece os maus usos da retórica, expõe-se que o professor não pode receber a culpa dos vícios dos alunos no mau emprego da arte ensinada. Não seria o mesmo com a Filosofia? Evidentemente as diferenças nos dois terrenos são brutais, mesmo porque o Górgias descredita, pela visão de Platão, a retórica como arte, colocando-a como bajulação, e por isso deformação da arte de legislar em nome do agrado pelo acesso aos prazeres humanos auferidos da palavra bem trabalhada.

O contexto mostra mais uma linha argumentativa aberta, que se completa apenas pela teatralização do martírio socrático. E aqui, por meio desse procedimento, o sacrifício do mentor de Platão parece unificar as partes antes soltas demonstrando antes um traçado que simula as condições descritivas no esforço do detalhamento da obra.

A transição em questão depende de um certo cuidado. O argumento central surge com o próprio desfecho da narrativa socrática que, a exemplo dos dizeres de Nietzsche, encerra o ciclo trágico entre os gregos. É a inversão das posições relativas presentes no campo da leitura trágica que reforça a indisposição trágica após a morte do filósofo. A partir de então não há mais a posição segura para arroubo catártico sobre a obra, e a própria consideração estética se realiza no projeto platônico, atingindo seu estado de colocar-se a serviço de uma verdade.

O problema central, então, passa a se desdobrar a partir desses fragmentos que obscurecem o percurso genealógico de cada termo, cada expressão ontológica e cada argumento. Com essas fissuras já não é mais possível observar na leitura platônica uma continuidade mistagógica própria em ângulos ontológicos, mas apenas a tentativa excessiva de um personagem desconstruir o conceito de justiça segundo as expressões filológicas apenas para recolocá-lo como expressão tríplice de um corpo de princípios originais que exigem sentido ético em suas exposições intercambiáveis.

A demonstração da veracidade de todos esses empregos reside, então, no resgate ontológico que se descreve no Fédon, quando Sócrates aceita o sacrifício que lhe é imposto em nome do respeito pelas leis de Atenas, e mais que isso em nome do seu papel como filósofo ateniense. Essa relação mostra que a verdade se impõe sobre ele, dando-lhe condições deônticas de existência. O que se obscurece, contudo, é que obedecer é uma escolha, e que a condição ontológica do homem permitiria a esse

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Sócrates, humanizado, evitar o “crime contra a Filosofia” e, a exemplo de Aristóteles, tantos anos depois, fugir de seu julgamento e sua punição.

Nesse caso, emerge o justo como a obediência à lei, buscando-lhe o benefício e jamais escapando de seu malefício. Não há questão nesse sentido sobre o conteúdo da decisão, colocada em voto para os atenienses, mas simplesmente a preocupação com o respeito às leis de Atenas. A questão retorna ainda uma vez para a tríade platônica, exaustivamente explorada nas obras anteriormente mencionadas, e com isso resume-se à imposição do contraponto ético em aceitar a lesão ou causar a lesão.

Somente por meio desse ato se estabelece o valor ético fundamental dessa qualidade de justiça, e somente pelo resgate conjugado do Górgias e do Fédon é possível perceber que relação afirmativa surge diante da persistência desse prejuízo. Esse é o ato crucial que inscreve a preocupação ontológica como realidade inegável no palco de preocupações racionais. Para além dele, a ligação justiça-beleza-bem conforma um jogo tautológico sem resolução, que transmite os dilemas conceituais interiores dos três conceitos para uma impossibilidade definidora interna.

Mais que isso, a ligação imemorial traçada pela República entre a condição de expressão da techné em oposição à constituição mistagógico-ontológica do artífice, seja ele quem for, impõe o critério de criação do justo no reencontro final da própria expressão ontológica da techné em todos os seus momentos. Em outras palavras a composição que propõe a recuperação ontológica e liga a República ao Fédon só pode se estabelecer pela imposição do sacrifício perante a tautologia construída desde o Górgias. Sobre a sua base o comportamento precisa se repetir, mesmo que por razões alheias, para então conformar aquele mesmo mistério que se coloca no ápice dos esclarecimentos da fictícia Diotima n’O Banquete: ali, a relação que não se pode apreender senão por uma iniciação em mistérios, a mesma que governa o interior dos silenos e se revela quando se os parte.

Em termos mais específicos, esse objeto já sempre almejado só se constitui diante da destruição do sileno, diante da morte de Sócrates, pois antes disso não pode se inscrever na existência. A condição da justiça emerge, então, pela aceitação de uma injustiça sofrida, mas não pelo cometimento de uma injustiça.

5 CONCLUSÃO

Devemos notar, então, que é somente a figura narrativa que instaura o processo e permite assim o reconhecimento do justo como movimento de cessação do injusto. Aliás, essa sensação permeia mesmo o ponto de leitura visível no Górgias, que insiste na relação entre justiça e poder. O poder mal empregado reproduz as condições

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Uma Perspectiva Filosófico-Literária da Justiça? Platão e os Tragediógrafos Clássicos Rafael Zanlorenzi

da injustiça em toda ocasião em que se expressa como mau emprego da força havida e captada. A própria injustiça perpetrada de modo permanente e irreversível assoma para a necessidade de justificação em atos posteriores. Na inevitabilidade do reconhecimento da morte do filósofo resta apenas o fazer-se justiça a ele pela perpetuidade de suas concepções, mais próximas da verdade, e através da expressão de condições existenciais das quais apenas ele foi testemunha. Retornamos assim ainda uma vez ao Górgias, quando Sócrates insiste, ao convencer Polo sobre o potencial mais danoso da injustiça perpetrada, na sua indisposição para “colher os votos” dos demais, bastando-lhe o testemunho do jovem.

Essa delicada questão mostra em que medida a condição ontológica se projeta. Ela se mostra como o jogo da testemunha solitária, testemunha essa repetida no livro VII da República, na já exaurida e exausta alegoria da caverna. O caso da coleta desse testemunho solitário estabelece a discrição da verdade, que se coloca apenas no regime mais íntimo da convicção e projeta uma divisão estrondosa em relação à ausência condicional do refino da alma. Essa raiz do pensamento platônico, que liga O Banquete ao Fedro, incute no processo a justiça como qualidade específica daquele que age com elevação ética e perante condições expressivas daquela mesma tautologia, anteriormente afirmada. Em resumo, a justiça que se coloca exige uma disposição para o devir, momento em que se colocará, e quebra a leitura da própria República, desejoso que está Platão de observar o retorno constitutivo da educação de seus conterrâneos a um ciclo educacional mais fundamental, para assim observar, pela consolidação ideal de todos os movimentos individuais, também o florescimento de sua cidade ideal.

Se é esse o caso, então a justiça se reinstitui na convergência de suas posturas trágica e filosófica. Ela se coloca como produto de exames materiais e como expressão de recomposições que não estão, a rigor, claras, mas que dependem dessa condição ascética interior do indivíduo que pretende agir mais justamente. O avanço em questão só se realiza quando tomamos em conta a possibilidade de uma leitura voltada para a organização da experiência. O testemunho solitário, em outras palavras, exige um primeiro passo, representado pelo risco do qual são feitas as condições mais íntimas da leitura trágica. O ato que se projeta para a constituição do resultado já colocado para além de todas as condições recomendáveis estabelece os novos parâmetros do justo, seja pela condenação, seja pela afirmação do ato. Por isso permanece o justo apenas como fundamento de respeito às leis: sua conformação pontual de nada vale, restando-lhe apenas como fundamento a necessidade de retorno respeitoso para o limiar da punição caso o ato de esforço em experimentação se constitua simplesmente como um maciço erro. Daí a realização platônica que insiste tanto no mal de se praticar a injustiça sem receber punição (Górgias).

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Se retornarmos, enfim, ao começo de nossa digressão, perceberemos então que Orestes vê o seu julgamento resolvido e, mais além, contribui para instaurar um novo regime: do acordo entre Atena e as Eumênides passa-se a cultuar as divindades antigas em Atenas, e um templo é erigido em homenagem a elas, permanecendo dali por diante o interdito do derramamento e sangue da mãe pelo filho. A narrativa, por seu produto trágico, inscreve o regime da justiça, mas deixa ainda em aberto o seu aprofundamento ideal-metafísico, como não poderia deixar de ser, já que a iniciação simplesmente supre o filósofo com a constante satisfação de desvendar a natureza essencial das coisas, sem nunca retê-las completamente.

ReferênciasFOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Antiga. São Paulo: Perspectiva, 2010.

PLATÃO. Apologia de Sócrates. In.: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1991.

_______. O Banquete. In.: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1991.

FRYE, Northrop. Anatomy of Criticism: four essays. New Jersey: Princeton University Press, 1973.

_______. Fédon. In.: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1991.

_______. Fedro. Lisboa: Guimarães Editores, 2000.

_______. Górgias. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, [s.d.]

_______. A República.12 ed. Lisboa: Fundação Calouste Goulbenkian, 2010.

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Revista Online do Curso de Direito da Faculdade Sul-Americana

DAS CERTEZAS DA TERRA FIRME ÀS INCERTEZAS DOS TERRITÓRIOS DESCONHECIDOS. UMA CARTOGRAFIA DE LUIS ALBERTO WARAT

Marta Gama1

1 PERDER PARA ENCONTRAR-SE: SEGUINDO OS PASSOS DE WARAT

O mapa é a representação de um todo estático que pretende revelar uma realidade física, palpável, verificável. Nesse sentido, busca estabelecer verdades, definir certezas. A cartografia, ao contrário do mapa, é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo em que os movimentos de transformação da paisagem, dos sentimentos, dos desejos. Ela se constitui no próprio movimento, se compõe ao mesmo tempo em que o território vai se apresentando, e se desfaz. Cartografia como desenho do novo do desejo, que rompe e decreta obsoleto o imaginário vigente. Admite-se, por essa sorte algo que sendo, nunca permanece, susceptível ao instante em que o pincel alcança a seiva quieta da celulose já qualificada como papel, pois, convida sempre à revisitação, à renovação, à resignificação.

Cristóvão Colombo possuía uma carta náutica, um astrolábio e navegava mirando as estrelas; nas noites escuras confiava apenas na sua intuição de que encontraria terras nas quais se acreditava existir criaturas marinhas que devoravam os navegadores, no fim do mundo que então era quadrado. Apesar de valer-se de um mapa, construiu cartografias ao enfrentar o desejante, o desafio de descobrir e construir o novo mundo.

Luis Alberto Warat tal como Colombo navegou por mares povoados por criaturas marinhas, monstros terríveis, misticismos que se pretendiam científicos e verdadeiros. Da mesma forma que Colombo deixou-se guiar pelas estrelas e nas noites de total escuridão, confiava na sua intuição que, pouco a pouco, foi se tornando o seu maior

1 Advogada. Mestra e Doutora em Direito, Estado e Constituição na Universidade de Brasília-UnB.

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Das certezas da terra firme às incertezas dos territórios desconhecidos. Uma cartografia de Luis Alberto WaratMarta Gama

guia. Os seus territórios desconhecidos – ou, seus dragões como frequentemente referia-se –, foram-lhe guiando os passos que aos poucos se afastavam das certezas prontas que aprendeu no círculo analítico de Ambrósio Gioja2.

Navegou nesses mares, premido sempre pela necessidade de desmitificar as crenças e os estereótipos que orientavam o mundo jurídico. Como cartógrafo tentou desmantelar certas condições de existência do discurso jurídico dominante, elucidar sua perda de sentidos, buscando a criação de modos de expressão de desejos no Direito. Certo é que, foram as suas as primeiras certezas abaladas, estranhadas, desconstruídas. O seu corpo implicado nessa vibração produtora do novo, mas acossada pelos estranhamentos que produzem rupturas.

Em meio a essa precariedade e inexistência de certezas ou verdades, ao exercício e a experiência dos seus deslocamentos constantes, é que lhes convido a experimentar comigo a singularidade do modo como as forças de determinado contexto histórico atravessou o corpo deste pensador na desconstrução e construção dos seus devires no mundo jurídico, atravessado pelo surrealismo e pela carnavalização.

Desse modo, construí minha cartografia, tornei–me cartógrafa, antropófaga, ao me envolver e dar língua aos afetos que pediam passagem; ao mergulhar nas intensidades do meu tempo e estar atenta às linguagens que encontro, devorando as linhas dos elementos construídos e empreendidos por este autor, seguindo suas pistas, seus rastros dos mais de quarenta anos de ensino e pesquisa no campo jurídico realizados por Luis Alberto Warat.

Assim, em meio a densidade e longevidade da sua obra, os meus passos foram imprecisos, incertos e precários. Contudo, conhecendo o gosto do autor pela precariedade, como algo sempre por fazer, algo que não é acabado, mas que reclama sempre uma revisão, uma porta aberta, ou melhor, o inacabado como o alpendre, aquilo que não está nem dentro nem fora, mas entre; sinto-me a vontade para lançar-me nesse caminho.

Os diálogos que realizamos desde o nosso encontro em Brasília no ano de 2004 e aqueles empreendidos entre nossos dragões3 serão os meus guias. Eles me dizem de um caminho percorrido por Warat, um corpo marcado por inquietações, um corpo vibrátil, desforme, prenhe de desejos, um corpo transgressor, um corpo de criação.

2 Warat afirma: “Eu já aprendi bastante o que os outros pensaram. Agora preciso seguir o caminho de meus desejos, sem trilhas. O caminho do imprevisível. Quero arriscar-me no acaso, sem bússolas que me guiem”. (2004 a, p. 175).

3 Uso aqui uma metáfora de Luis Alberto Warat construída ao longo de sua obra, e constantemente referida em palestras, conferências e aulas, que estabelece a relação entre dragões – animais mágicos no imaginário corrente – e os territórios desconhecidos da psique humana, que poderíamos aproximar da noção freudiana de inconsciente.

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Das certezas da terra firme às incertezas dos territórios desconhecidos. Uma cartografia de Luis Alberto WaratMarta Gama

Olhando para a sua obra, as suas dobras e recantos, o que dizem, e tudo o quanto vai dizendo por apreensões, por ondas, capturo os sentidos e estranhamentos que produziram os seus movimentos sinfônicos. Com zelo examino e devoro as publicações, as datas, olho para o tempo. E em meio ao tempo, questiono-me, como surgiu o desejo de transgressão em Warat, em que momento ou que acontecimentos, leituras levaram a que desejasse o novo para o Direito? Observando os caminhos, as bifurcações e os atalhos – várias entradas para possíveis começos – centro-me, inicialmente, em uma linha que tomo como ponto de partida: a sua formação no rigoroso círculo analítico de Ambrósio Gioja na Universidade de Buenos Aires, os movimentos empreendidos rumo a semiologia, a epistemologia, a filosofia da linguagem, o ensino, a carnavalização, o surrealismo, a psicanálise, o amor, a ecologia e a mediação. Movimentos disruptores com a sua formação primeira, movimentos transgressores.

Como surrealista se reconheceu e se afirmou desde a publicação do seu Manifesto do surrealismo jurídico, devir que se entranhou no seu corpo, atravessou-lhe definitivamente a alma. A rua grita Dionísio! Direitos Humanos da Alteridade, Surrealismo e Cartografia uma de suas últimas publicações ilustra a compreensão que tem da experiência artística como caminho definitivo de emancipação para o homem, o que marca o seu caminhar surrealista. Contudo, as bases para esse empreendimento já haviam sido colocadas desde o Derecho al derecho, obra publicada no ano de 1970. Verdadeiro manifesto surrealista e carnavalizado, onde o autor pela primeira vez interpela o mundo jurídico acerca das suas verdades instituídas, suas certezas e a sua mitologia, utilizando o potencial disruptor da arte. Coordenadas reveladas, que seriam perseguidas passo a passo até a construção de uma gramática para o Direito onde a convivência, o amor e a alteridade eram o seu centro.

Dizem os meus dragões que Warat desde sempre foi um transgressor – com classe como ele referia– mas um transgressor. Construiu um sólido percurso teórico, um alicerce do qual ele pode pouco a pouco desconstruir as verdades instituídas do mundo jurídico. Interpelou os juristas, revelou-lhes as suas crenças mitológicas. E, à fluidez do seu conhecimento, que nada tem de objetivo, ressaltou como poderia ser o que é só sendo linguagem. Um sistema de ilusões – como diria anos mais tarde– , perverso, mas um sistema de ilusões. Realizou toda uma trajetória de enfrentamento, para em seguida, propor a sua Epistemologia Carnavalizada e Surrealista, o Ensino carnavalizado e surrealista, como forma de realizar uma concepção do Direito que valorizasse o que realmente é essencial: a vida. Assim, entendia que a verdadeira revolução é a revolução do homem.

Warat sempre foi um transgressor! Posta a primeira pedra com o seu Derecho al derecho, cuidou de desconstruir o imaginário instituído do universo jurídico,

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Das certezas da terra firme às incertezas dos territórios desconhecidos. Uma cartografia de Luis Alberto WaratMarta Gama

inicialmente com a semiologia, em seguida a carnavalização, o surrealismo, a psicanálise, a ecologia. Incansável utilizou a epistemologia e a metodologia para revelar a doxa no interior da episteme dos discursos jurídicos vigentes. Em seguida, abandonou a epistemologia moderna para propor a sua própria epistemologia, a epistemologia carnavalizada. Introduziu a arte, a experiência artística como forma de criação, de produção do novo, da sensibilidade, do encontro com o outro, da alteridade. Inscreveu o desejo e o amor no mundo jurídico.

A transgressão e a tentativa de ruptura com os imaginários instituídos do mundo jurídico estão presentes desde as suas primeiras obras, colocadas como que estrategicamente para pontuar um lugar de fala que, posteriormente, seria radicalizado. É esse o ponto de vista que busco nessa fala.

1.1 Entre dobras e reentrâncias: os caminhos inventados que chegaram à arte

O pensamento de Warat é sofisticado, marcado por uma incessante inquietação, total ausência de conformismo com verdades alcançadas. Certo que para ele qualquer verdade é sempre provisória e parcial. Em sua trajetória de pesquisa e docência, produziu vários movimentos que marcam a procura de lugares para a realização de um projeto de libertação do homem de todas as formas de opressão, de legitimação do desejo, enquanto instâncias da vida e do conhecimento. O projeto de revolução subjetiva. (GONÇALVES, 2007).

Um fio conduz toda a sua obra: a produção de subjetividades no horizonte da autonomia e da ruptura com a serialização de produção capitalista de subjetividades, sempre heterônoma. Essa autonomia é construída na intersubjetividade, com o outro. Assim, a alteridade, o cuidado de si e com o outro, o resgate da dimensão da corporeidade, a construção dos vínculos afetivos, vão sendo desenhados ao longo de seu trabalho como alicerces indispensáveis. É certo que esse núcleo central se irradia para o campo do Direito, que ele entende como lugar para construção dos vínculos e da alteridade e não apenas um local para a resolução dos conflitos que emergem da sociedade, antes uma possibilidade de sua vivência. No início, esse viés aparece como uma forte preocupação com o ensino jurídico, com a forma de produção de conhecimento, com os vínculos entre professor e aluno para, em seguida, ser enraizado em seu pensamento com o amadurecimento de suas ideias, em consonância com seus movimentos incansáveis.

Para ele, a autonomia se revela na descoberta do sentido para a própria vida. Sem essa procura não é possível a autonomia. Nesse caso, a aprendizagem de qualquer saber, a erudição acumulada, as verdades assimiladas na academia, não tem o menor sentido ou valor se não forem capazes de auxiliar o homem na construção desse

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Das certezas da terra firme às incertezas dos territórios desconhecidos. Uma cartografia de Luis Alberto WaratMarta Gama

processo (WARAT, 2006c). E, nesse sentido, “a autonomia coletiva só se consolida, só ganha consistência, se existir no nível da subjetividade dos indivíduos e dos grupos, em todos os níveis moleculares, novas atitudes, novas sensibilidades, novas práxis, que impeçam a volta de velhas estruturas” (WARAT, 2006c, p.38). Daí a sua crítica ao conjunto de crenças, instituições, valores, sentidos e significados que marca o imaginário moderno capitalista. Um imaginário que alimenta os processos heterônomos de produção de subjetividade. Um imaginário que anima a formação de corpos dóceis, a domesticação, e termina por roubar a vida do homem.

Uma necessidade arqueológica me faz olhar para um ponto de partida, que atribuo para contar esse começo; como algo que sempre é, senão um primeiro passo, uma marca do que desejamos superar ou reconstruir, a sua formação acadêmica.

Warat empreendeu um longo caminho desde a sua formação em na Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires – UBA, onde se graduou no ano de 1965 e de onde partiu para verdadeiramente experimentar outras possibilidades para o Direito, até encontrar-se com seus devires surrealista e carnavalizado. Formou-se em Filosofia do Direito no círculo analítico de Ambrósio Gioja, dentro dos rigores então exigidos para a formação de um filosofo, “[...] da postura catedrática, do espírito de cátedra, onde se costuma ensinar a Filosofia e a Filosofia do Direito como história correta das doutrinas e a arqueologia dos sistemas de pensamento”(MONDARDO, 2000, p. 6). Um Warat maduro escreve em tom quase confessional: “Aprendi filosofia no rigor dos conceitos e o desprezo ao poético como forma de pensamento”(MONDARDO, 2000, p. 6).

Warat assim formou-se filosofo e professor em uma matriz pedagógica clássica e autoritária. Contudo, um acontecimento levou outros ventos à compreensão do processo de ensino e aprendizagem ao referido círculo e, consequentemente, à sua própria compreensão. Refiro-me à morte de Ambrósio Gioja, – ocorrida quase no mesmo momento em que Warat foi aprovado no concurso para Professor Adjunto na Universidade de Buenos Aires –, que fez com que a responsabilidade da cátedra de filosofia do Direito passasse para Roberto Vernengo, que convidou professoras do Departamento de Pedagogia da mesma Universidade para que realizassem um trabalho conjunto, numa atitude que já demonstra certa interdisciplinaridade. Desse encontro emerge a crítica às aulas magistrais e a adoção das técnicas de dinâmica de grupo. Os contatos com estas professoras foi decisivo para que Warat desse início a um processo de superação do autoritarismo vivido com Gioja. A partir desse momento posiciona-se contra o modelo tradicional de ensino que privilegia o conteúdo e o distanciamento entre professores e alunos e inaugura uma inquietação que passará a ser uma constante na sua vida acadêmica: o processo de produção de conhecimento. Escreve Warat:

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Quanto à minha formação, não posso queixar-me do que aprendi com Gioja (sempre respeitou a minha liberdade); o que me desencantou foi o que se seguiu à sua morte (intolerância pela diferença, pela soberania de pensamento, o culto exagerado à lógica, e muita vaidade). Então, ficou muito claro para mim que tinha que abandonar (metaforicamente e como atitude psicológica) a postura catedrática, o espírito de cátedra, onde se costuma ensinar a Filosofia e a Filosofia do Direito como história correta das doutrinas e a arqueologia dos sistemas de pensamento; senti que tinha de me tornar um intelectual inesperado, dedicado à reflexão sobre os modos de vida, a subjetividade e os temas proibidos. Internamente sempre fui um rebelde contra uma Filosofia que manipula o mundo e se nega (recusa) a habitá-lo. Preferi ser um filósofo que aceite que a liberdade de pensamento e o prazer do corpo andam juntos (MONDARDO, 2000, p. 12).

O doutoramento acontece no ano de 1971 em Direito e Ciência Sociais, na Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires, sob a orientação de Ambrósio Gioja e Roberto Vernengo, com a tese Lenguaje, realidad e trancendencia em la ciência del Derecho. Esses acontecimentos representaram momentos que oportunizaram trânsitos na sua vida e no seu pensamento, como referido por ele no excerto transcrito. A inquietação, dessarte, parece sempre ter estado na sua alma, atravessando o seu corpo como algo que o faz vibrar e tentar desconstruir as verdades impostas.

Aprendi filosofia no rigor dos conceitos e o desprezo ao poético como forma de pensamento. Até a obtenção do meu título de doutor em Direito e Ciências Sociais trataram de podar-me o desejo e a ilusão do meu pensamento. Impuseram-se, sem muito êxito, uma Filosofia do Direito absolutamente distante das minhas circunstâncias de vida. (MONDARDO, 2000, p. 12 ).

Certamente a tentativa de imposição da frieza acadêmica não logrou êxito, pois, o poético e as instâncias criativas da vida falaram mais alto. Dionísio produziu um encantamento maior do que a estética apolínea. Assim, em meio a esses trânsitos, emerge a sua rebeldia com as verdades instituídas do mundo jurídico, e a sua adesão às artes é então anunciada. E, no ano de 1970, ele realiza o que pode ser considerada a sua primeira grande transgressão no mundo jurídico e no círculo analítico de Buenos Aires. Refiro-me à publicação da obra Derecho al derecho, uma coletânea de textos de sua autoria e de Ricardo Entelman. Essa é uma obra de subversão da linguagem jurídica e de suas verdades, ou seja, do conjunto de crenças que animavam e animam o mundo jurídico. É uma tentativa de produzir o novo, por meio da desmitificação e da crítica ao saber tradicional. Nessa obra já está presente a crítica ao paradigma cientificista moderno e a sua epistemologia que nega o sensível como instância criadora de mundo.

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A capa do livro já anuncia a tentativa de demarcar um horizonte crítico, transdisciplinar, complexo que seria traçado por Warat em suas obras posteriores, o que seria o marco de sua vida acadêmica: em um fundo branco, o título em letras negras, o debuxo de três cabeças de homens de perfil, ênfase no crânio. Uma obra de arte surrealista, cujos apelos e sentidos permaneciam abertos em face do título da obra.

A apresentação da obra por si já seria de grande subversão ao mundo editorial jurídico, diante dos modelos das obras publicadas naquele momento, e que ainda vigoram atualmente. Contudo, ela era apenas um anúncio. Seguindo-se aos agradecimentos há a transcrição de um verso do Alcorão, mais uma peça do quebra-cabeça que não iria se ajustar ao todo ou o anúncio da utilização das metáforas? Um recurso que autor passaria a usar de forma recorrente quando buscava produzir rupturas no instituído, criar conceitos4 e tantas outras vezes abordar o absurdo não somente da condição humana, mas sobretudo do mundo jurídico. Nas suas Palabras liminares os autores advertem aos leitores dos desvios dos lugares comuns cometidos. Afirmam uma trajetória que apela ao poético, ao sensível, ao metafórico, como forma de ver o mundo e produzir narrativas novas do mundo jurídico. Seria um anúncio da assunção do Paradigma da Complexidade, da Razão sensível, da Cartografia, do Surrealismo jurídico, da Carnavalização que viriam anos depois? Dizem Warat e Entelman:

Tradicionalmente los autores de filosofia jurídica para su comunicación com suas lectores utilizan un lenguaje totalmente neutro a la emoción. La presentación metafórica, que acerca por encantamiento a lo que se quiere decir, queda así deliberadamente apartada de sus intentos de monstración. Por eso este libro tiene la irreverente pretensión, y no por ello menos científica, de ser diferente. Nuestra intención originaria fue hacer uma seria especulación teórica, sobre algunos temas jurídicos, lo suficientemente trillados como para ser susceptibles de algún intento de clarificación. En este sentido, este es un libro no nascido. Pero, afortunadamente, no pasó demasiado tiempo no siendo. Poco a poco se transformó en otra cosa. Este cambio es producto natural de haber reemplazado la seriedad científica por la exposición emotiva el enunciado teorético por la metáfora. Diluir el conocimiento en la literatura de su mostración, no es transformalo en negativo, sino dotarlo de médios más efectivos para su transmissión. Plantear los problemas normativos apelando a recursos casi diríamos poéticos, lejos de constituir um superficial divertimiento intelectual, es un intento de demostrar que por lo directo y accesible de la explicación, se mide la possibilidad de transmitir conocimientos com claridad. Se puede ser

4 Como Gilles Deleuze e Félix Guattari (2010), Warat entende que a pratica filosófica se realiza na criação de conceitos que nunca são fechados, definitivos. Assim, fez da sua atuação como pesquisador e professor uma constante na criação de conceitos pondo em andamento essa ideia. Operando fluxos de inovação do pensamento do Direito e, a partir dele refazer sua trajetória sem negá-lo, mas incorporando a abertura para o novo.

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riguroso y profundamente antisolemne. La verdad jurídica no hay que construila, hay que desembarazarla de las oscuridades teóricas que la cubrem. Este libro es más que nada una sacudida. Intenta desprenderse del determinismo inmanente al derecho, que condena a quienes se vuelcan a él, a una estática insalvable. Implica cambiar de ritmo (WARAT; ENTELMAN, 1970, p. 13/14).

As linguagens acadêmica e jurídica são então definitivamente abandonadas dando lugar à expressão que, por meio de estilos literários, como a poesia, o conto e a crônica é incorporada como linguagem emotiva, porém, não menos qualificada que aquela reconhecida como científica. Também estão presentes os apelos ao humor, à metáfora, ao fantástico como possibilidades disruptoras.

Essa primeira incursão de Warat no universo surrealista e carnavalizado leva-me a interrogar sobre esse autor que, ainda na década de 1970, tem a inquietante audácia de publicar tal livro, e retoma seu olhar para a semiologia, a epistemologia e o ensino jurídico. O que o teria movido a produzir tamanha transgressão? Sinto como se uma pedra tivesse sido colocada: um marco a ser alcançado e com esse intuito ele atacaria as verdades jurídicas estrategicamente a partir de vários olhares, desconstruindo os castelos que, a despeito de estarem caindo, os juristas teimavam em mantê-los. Enfrentando esse campo de diversos lugares, Luiz Alberto os desestabilizou até inscrever o poético e o carnaval em suas entranhas.

Segue com as suas preocupações e inquietações no campo do Ensino e da Epistemologia do Direito. Preocupa-se com a formação dos docentes5 e também com a forma como os conteúdos são “transmitidos” aos alunos e com o conteúdo que é “ensinado”. Para Warat o ensino do Direito também é fonte do Direito, isto porque a pedagogia tradicional pretende a transmissão de um saber completo e o efeito dessa plenitude é a ideologia funcionando no interior da própria educação. No Direito, a pedagogia ultrapassa as questões meramente pedagógicas para situar-se no lugar da gramática da produção de sentidos do Direito, pois a plenitude da expressão pedagógica é um fluxo de crenças que reforçam o credo juridicista da completa significação do Direito. Entende que, ao questionar as atitudes pedagógicas dos docentes também estaria gerando um processo que serviria para que se desaprendesse a perfeição das significações jurídicas. Assim, introduziu a problemática epistemológica no interior da problemática pedagógica do ensino do Direito, tomando-a intrínseca à metodologia do ensino.

5 Na Universidade de Morón na Argentina desenvolveu um curso de especialização em “Metodologia do Ensino e da Pesquisa” para professores. E, posteriormente no Brasil após a criação da ALMED– Associação Latino Americana Metodologia do Ensino do Direito, também ministrou juntamente com Rosa Maria Cardoso da Cunha cursos de especialização em Metodologia do Ensino para docentes.

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Inquieto diante do ensino dogmático do Direito, da soberba “[...]e [d]a inércia expositiva que dominavam o ensino jurídico: juízes, promotores e advogados bem sucedidos que ministravam as aulas achando que a repetição mecânica dos conteúdos das leis, matizados com algumas idealizações doutrinarias, fosse uma atitude pedagógica”(ROCHA; WARAT, 1991, p. 6), Warat cria, juntamente com professores brasileiros e argentinos, a ALMED6. Pretendiam uma nova atitude pedagógica, um vínculo não autoritário entre professor e alunos, condições menos arbitrárias e subjetivas de avaliação, um processo pedagógico mais participativo e menos apegado às famosas e estéreis aulas magistrais (MONDARDO, 2000). Acreditavam na possibilidade de aplicar, nos territórios jurídicos, as técnicas da dinâmica de grupo e as contribuições da pedagogia científica; instrumentando, assim, técnicas operativas a serviço do polo progressista do pensamento jurídico. Ao lado de suas preocupações epistemológicas e metodológicas do ensino jurídico, Warat mantém suas reflexões semiológicas. No campo semiológico ele tentou fornecer aos alunos um instrumental que pudesse desmanchar certas ilusões que os juristas tinham sobre o funcionamento, a natureza e os efeitos da linguagem do Direito e do ato de interpretação da lei.

A partir do desenvolvimento da semiologia do poder, toma corpo a ideia de que o ensino do Direito tem uma dimensão prioritariamente política de produção do poder das significações do Direito; é um lugar onde se desenvolve a luta política no espaço instituído. Junto com os desenvolvimentos teóricos externados pela semiologia política, o caráter político do ensino jurídico é amplamente debatido. Entretanto, e de forma paralela a este aspecto, começa a se tornar temática a questão dos afetos no processo de ensino. Warat fala da pedagogia do desejo, e manifesta preocupação teórica pela dimensão afetiva do processo de produção do conhecimento.

Nessa fase, ele trabalhava as questões políticas e afetivas de modo independente, entretanto, dialeticamente vinculadas, como duas problemáticas que se vão interpenetrando, interferindo e abalando-se mutuamente. Fala da absoluta impossibilidade de pensar o ensino do Direito como lugar de neutralidade, política ou afetiva. A impossibilidade política ou afetiva de ensinar sem uma tomada de posição sobre os destinos políticos daquilo que se ensina.

6 No ano de 1972 Warat veio pela primeira vez ao Brasil, convidado para participar do I Encontro Latino-Americano de Metodologia do Ensino do Direito, realizado na cidade de Bagé-RS, conjuntamente com o II Encontro Brasileiro de Faculdades de Direito no ano de 1972. Desse encontro surgiu o convite de Joaquim Falcão coordenador do curso de mestrado em Direito da PUC-RJ para que Warat desse aulas no programa de pós-graduação e o início do seu caminho percorrido no Brasil (MONDARDO, 2000). Como fruto desse transito é criada a ALMED– Associação Latino Americana para o Ensino do Direito no ano de 1974, na cidade de Buenos Aires, por um grupo de professores na sua maioria brasileiros e argentinos, com a tarefa precípua de reformulação das práticas pedagógicas ligadas as faculdades de direito.

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Das certezas da terra firme às incertezas dos territórios desconhecidos. Uma cartografia de Luis Alberto WaratMarta Gama

A esse momento seguiu-se a sua proposta da Epistemologia Carnavalizada e do Ensino Carnavalizado presentes em sua obra A ciência jurídica e seus dois maridos, uma tentativa de fazer atravessar o Direito pelos aportes teóricos da Teoria da Carnavalização de Mikhail Bakhtin, e de prolongar o olhar da carnavalização como experiência mágica e cosmovisão do mundo, que permita a reconciliação do homem com suas paixões.

Para Warat, Bakhtin foi o primeiro teórico da intertextualidade, que se encontra necessariamente definida pela polifonia, pelo dialogismo, e pela polissemia, ideias chaves para situar-se frente à fórmula da carnavalização. A polifonia é uma operação antilinear, uma técnica para colocar em crise a verdade. O sistema de signos tende a perder sua hegemonia, quando é marcado por estruturas simultâneas de organização. A polifonia estimula a ruptura da estereotiparão dos discursos, provoca o deslocamento permanente dos significados.

A sua proposta é de carnavalizar a Epistemologia que significa reconhecer que as verdades propostas pelas ciências sociais são explicações assustadas, respostas omissas, conceitos mutilados que provocam práticas mutiladoras, montagens insensíveis, questões sem desejos, hipóteses deserotizadas, convicções sem futuro. Como estratégia para realizar a compreensão do devir incerto das verdades, propõe a substituição dos discursos tradicionais que supostamente falam verdades, pela poética. A epistemologia carnavalizada substituía o método pela cartografia, pela hierarquização, e pela verticalidade dos saberes pelo rizoma, as identidades pelos devires e os territórios pelos lugares vazios (WARAT, 2004 a).

As ideias presentes na carnavalização também são trazidas para o ensino do Direito surgindo assim a didática ou Ensino carnavalizado. Nesse sentido, o discurso monológico do professor é substituído pelo discurso polifônico, em que todas as vozes são escutadas, todos produzem conhecimento. A ausência de hierarquia entre os saberes acadêmico e popular também é uma característica que afeta a sala de aula, pois, reconhece os alunos como potência criativa ao invés de simples repositórios. A rua como instância do coletivo, do público ganha dimensão no ensino, já que a sala de aula não é o único lugar de produção do saber. Por derradeiro, o riso, a alegria, o lúdico, juntamente com a arte, ocupam relevante espaço porque diz de instâncias desejosas da vida que precisam ser reconhecidas.

Em seguida à sua grande virada com a carnavalização, ele segue rumo ao surrealismo. Assim, partindo dos aportes surrealistas, Warat (2004a) formulou o seu Manifesto do surrealismo jurídico7, uma inquietante proposta de reflexão e revolução

7 WARAT, Luis Alberto. Manifesto do surrealismo jurídico. Publicado posteriormente sob o título Manifesto para uma ecologia do desejo.

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da concepção do ensino do Direito, um convite ao rompimento com as formas tradicionais do ensino jurídico e com a pedagogia universitária que privilegiam o cientificismo, o racionalismo, o positivismo em detrimento da dimensão poética.

Para Warat, “a pedagogia tradicional, baseada na angústia da perda, é um instrumento de controle apoiado no sufocamento da imaginação criativa. Nessa forma de ensino, toda criatividade será castigada” (2004a, p. 214). Ao contrário da pedagogia surrealista “[...] o fundamental é o desenvolvimento da criatividade, dos afetos. E essa é a melhor profilaxia contra as formas totalitárias do saber” (WARAT, 2004a, p. 214). Cumpre ao professor abandonar a usual atitude de autoritarismo e embarcar na provocação pela sedução dos jogos na tentativa de despertar no aluno o erótico adormecido, os sonhos, o desejo, práticas estas que por certo o ajudarão a “[...] desenvolver a sua capacidade crítica, sua autonomia frente ao saber” (WARAT, 2004a, p. 214), consubstanciada em seu espírito autônomo.

O professor surrealista não é necessariamente um erudito, é simplesmente um artista, um ilusionista competente. Ele aceita que conhecer é descobrir em cada um a sua identidade; reconhece seu conhecimento a partir desse gesto, mas encontra sua identidade respeitando a dos outros (WARAT, 2004a; 2006b). Essa é a proposta do Surrealismo Jurídico que proclama a necessidade de revolucionar o ensino do Direito por meio de práticas pedagógicas que provoquem os alunos a encontrarem o seu desejo, a despertar os sentidos, a inscrever a poesia na vida, uma proposta pedagógica para a revolução do homem, pois busca criar pontos de fugas, fissuras no instituído e, a partir daí, fazer emergir o poético.

Como verdadeiro Cronópio8 seguiu se mimetizando, emprestando cores, se descolorindo. Daí um mergulho mais radical na psicanálise, outra forma de desajustar o discurso jurídico, com a obra O amor tomado pelo amor, onde a expressão literária já é absolutamente fluente, pois já abandonara a escrita acadêmica, adotando a arte como sua forma de manifestação. Nesses movimentos, apelo ao ecologia como lugar da complexidade e do homem. E, em seguida uma nova virada rumo à mediação que na sua lente também é um mergulho na psicanálise e uma projeção para o Direito dos seus aportes.

Em que pese tais movimentos parecerem dispares, e talvez distantes do surrealismo e da carnavalização, entendo que lhes foram consequentes. Representam a possibilidade de ruptura com a Epistemologia dominante, a assunção da

8 Inspirado em Júlio Cortazar, Warat (2004a, p. 96) diz que os Cronópios são “[...] Homens pluriformes e pluricromáticos de espantosa riqueza inventiva, estranha poesia e humor adstringente. Altamente sensíveis a tudo o que existe de raro e fantástico na vida cotidiana, vivem empenhados em redescobrir o amor pela vida, debochar do instituído e exercitar uma livre comunicação dos desejos. Comunicam-se marginalmente, apelando a uma semiologia dissidente dos desejos. A forma dos cronópios é a loucura”.

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possibilidade de produzir conhecimento jurídico desde aportes transdisciplinares em que estão asseguradas a linguagem artística e sua potência disruptora. Afirmo, pois, Warat como um eterno surrealista, anjo carnavalizado que não mediu esforços para aproximar o Direito da vida, rompendo com os distanciamentos supérfluos inventados pelos juristas.

E, o apelo ao poético está presente da mesma forma em diversos trabalhos publicados, conferências pronunciadas, cursos ministrados. Enfim, na sua vida acadêmica. O seu devir surrealista é uma constante, ouso afirmar – em que pese toda a inquietação e movimentos realizados – estar sempre presente em sua existência desde o início da sua carreira, como pudemos compartilhar em face da leitura da sua obra Derecho al derecho, publicada no ano de 1970, na Argentina, no mesmo momento em que finalizava sua tese de doutorado.

As bases do seu pensamento, então maduro, permitiram ser reafirmadas em seu Lapidarium. Nele estão assentadas a sua crítica ao Paradigma moderno cientificista e também à perspectiva da pós-modernidade, sempre a seu ver mais nociva: a necessidade da emergência de uma visão de mundo, um mundo em trânsito, desde o sensível, às artes, ao sonho, à criatividade e uma Epistemologia elaborada desde essa visão de mundo; a arte como disruptora e como potencia criadora de novos mundos e; o apelo ao poético como uma emergência de uma nova visão de mundo, um mundo que reclama a alteridade, o diálogo e o reconhecimento.

No ano de 2005 ele retoma com mais força ao Surrealismo Jurídico, juntamente com o Grupo Direito e Arte da UnB que aceita o convite de radicalizar a sua proposta de colocar em andamento a livre experimentação artística como tentativa de ruptura com as gramáticas instituídas do mundo acadêmico e, sobretudo do mundo jurídico.

Essas convivências/experiências também resultaram na invenção do Cabaret Macunaíma9 e, em seguida, dos Cafés Filosóficos10 e, por último, das Casas Warat; projeto último que gestou, e que continua crescendo de forma rizomática e deterritorializada como imaginou. Em todos esses espaços o poético, a livre experimentação artística, a imaginação foram e são os condutores das experiências vivenciadas. Importante que se diga que desde esse momento a produção se volta de forma definitiva para a importância da experiência artística, das artes, como estilística da existência e da possibilidade de realização da alteridade.

9 Sobre o Cabaret Macunaíma ver: GONÇALVES, Marta Regina Gama. Surrealismo Jurídico: a invenção do Cabaret Macunaíma – Uma concepção emancipatória do Direito. Dissertação (Mestrado em Direito) Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, Brasília/DF, 2007.

10 A partir do ano de 2007 Warat deu início a realização de Cafés Filosóficos que um pouco à moda dos Cabarets Macunaíma buscavam produzir momentos de ludicidade e poesia. Desde então foram realizados vários Cafés em diversas localidades a exemplo do Rio de Janeiro-RJ, Salvador-BA, Curitiba-PR, Santo Ângelo-RS, Buenos Aires, etc.

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Assim são os seus últimos textos escritos e publicados na coletânea A rua grita Dionísio: direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia; Mosaicos do materialismo mágico, Terceiro manifesto do surrealismo jurídico: o amor louco. Neles estão presentes, eu entendo, os valores que sintetizam o percurso empreendido pelo grande mestre, amigo, mercador de sonhos, vendedor de ilusões. O surrealismo, a alteridade e a cartografia como produtores de sentidos que possibilitam a produção de subjetividades autônomas, singulares, que rompem o processo de serialização e possibilitam a alteridade.

Pois, para Warat o Surrealismo é mais que uma expressão estética, é uma concepção de vida, um olhar diferente para o mundo, longe das convenções e dos lugares comuns. Uma radical busca da alteridade, do reconhecimento do outro em sua expressão poética, porque propõe a revolução da vida em todos os seus planos, nos seus valores, nas suas significações a partir da imaginação, do sonho, do inconsciente e mostra o sentido singular de cada existência no questionamento das formas oficiais da cultura.

2 A PROPOSTA DIREITO E ARTE

Direito e Arte é uma proposta formulada a partir do pensamento de Warat, da sua atuação como docente e pensador do Direito, em especial dos movimentos e reflexões sobre a Epistemologia Jurídica, o ensino do Direito e as práticas jurídicas. De logo advirto que essa proposta, que entendo como a síntese da obra de Warat, aponta para a minha própria leitura do seu trabalho. Leitura que foi sendo esboçada no percurso da nossa intensa convivências afetiva e intelectual, que teve início no ano de 2004, na cidade de Brasília, se expandiu rizomática e desterritorializadamente, abrindo caminhos pelo Brasil e pela América Latina. Desde então, tivemos oportunidade de compartilhar muitas ideias, em conversas formais e informais, em salas de aula, auditórios e ambientes extramuros da academia. Durante a realização de cursos, encontros da Casa Warat de Buenos Aires, seminários, congressos, Cabarets Macunaímas, Cafés Filosóficos, até o momento do seu falecimento no dia 16 de dezembro de 2010.

Nesse período, nunca nos furtamos ao exercício de sonhar com outros mundos possíveis e impossíveis para o Direito e para os homens, sempre na perspectiva da emancipação, da produção de subjetividades autônomas; da alteridade, da arte, da construção de vínculos afetivos que pudessem nos ajudar a resgatar os nossos próprios desejos, o cuidado de si e do outro. Acredito que o ato de sonhar e imaginar outros mundos também nos constitui e constitui essa proposta.

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É possível afirmar que a proposta Direito e Arte foi sendo gestada ao longo de toda a vida acadêmica de Warat. Posta a sua pedra fundamental com a publicação da obra Derecho al derecho no ano de 1970, outros movimentos se seguiram. Obras onde a linguagem literária foi definitivamente assumida, como A ciência jurídica e seus dois maridos, O manifesto do surrealismo jurídico, O amor tomado pelo amor, Por quem cantam as sereias, são exemplos claros desse encaminhamento.

Outras vozes artísticas foram sendo escutadas nesse caminho, ajudando a trilhar um universo de polifonia criativa, assim Os quadrinhos puros do Direito, onde a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, é contada através da linguagem dos quadrinhos. Em um tom que se aproxima do humor, que parodia a seriedade da obra, Warat cria a mulata fundamental como tentativa de definir a norma fundamental kelseniana. Nada mais original, nada mais subversivo. Compõem esse mosaico, a criação da disciplina Filoestética e Direito, no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Catarina, que deu origem ao Projeto Filosofia, Estética e Direito e ao Núcleo de Vídeo e Cinema – NVC. Esse em conjunto com a ALMED, realizou as Semanas de CineSofia11.Com as semanas de CineSofia pretendia-se empregar o cinema como um ponto de subjetivação, que permitisse repensar os mal-estares do final do século. Um modo de entender esteticamente o que somos para tentar afirmar a autonomia, emprestando ao cinema o viés de memória criativa e o experimento da alteridade (WARAT, 2004 a). Todos esse movimento também rendeu o periódico Cinesofia, que com um projeto gráfico arrojado, se transformou em um espaço para a manifestação artística, publicando além dos anais do evento ensaios, entrevistas, poesias, fotos, etc.

As atividades do Núcleo de Vídeo e Cinema – NVC, não se limitavam à produção dos Seminários e do periódico, mas envolviam também a roteirização, produção e realização de filmes. Assim, a realização do longa metragem baseado na obra de Warat O amor tomado pelo amor. A criação da disciplina Psicanálise e Direito, no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Catarina, possibilitou a inscrição das temáticas do desejo, do erótico, do amor e da castração no universo jurídico, temas tão caros à proposta Direito e Arte. Ainda nesse sentido é possível relatar os dois Seminários sobre o Amor realizados no ano de 1990, na cidade de Florianópolis.

As disciplinas criadas por Warat, o Projeto Filosofia, Estética e Direito, o Núcleo de Vídeo e Cinema – NVC, os seminários de Cinesofia, os seminários sobre o Amor,

11 A I Semana nacional de CineSofia, Promovida pelo Núcleo de Vídeo e Cinema do Programa de Pós-graduação em Direito da UFSC e a ALMED, de 7 a 12 de novembro de 1994. E a II Semana nacional de CineSofia 20 a 26 de agosto de 1994 Florianópolis-SC. A 3a. Semana Nacional de Cinesofia aconteceu 7 a 9 de setembro de 2001 no Parque Nacional da Chapada dos Guimarães-MS.

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a publicação Cinesofia, as atividades de roteirização, produção, realização de um longa metragem, são algumas contas desse mosaico, que foi sendo construído e cuja síntese acredito ser a proposta Direito e Arte.

Os passos dados em direção à experiência artística foram se tornando cada vez mais seguros, mais livres, até o encontro com o Grupo Direito e Arte da UnB. Compreendo que as experiências vivenciadas no período de 2005 a 2007, pelo Grupo e a criação do Cabaret Macunaíma, tem especial importância na construção dessa proposta. A essas experiências se agregam os Cafés Filosóficos e as Casas Warat.

Poderia mencionar ainda os projetos fantásticos elaborados por Warat como o Barco do Amor, o circo surrealista itinerante, a criação de uma trupe de teatro que circularia por todas as faculdades de Direito do Brasil com o Cabaret, entre tantos outros, que certamente fazem parte dessa composição.

Essas contas vão compondo um fio, uma guia que me guia nessa cartografia e com ela o percurso que empreendi na minha pesquisa de mestrado, me levam a persistir na investigação dessa temática e a formular a proposta Direito e Arte. A potencialidade da experiência artística na formação do jurista e a sua repercussão nas práticas jurídicas.

ReferênciasDELEUZE, Giles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado Jr. E Alberto Alonso Munoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 2010.

GAMA, Marta Regina Gama Gonçalves. Direito e Arte: as práticas estético-poéticas, novas poéticas para o Direito. Disponível em: <http://www.entrelugares.ufc.br/numero3/artigo.html. Acesso em: 12.04.2011.

GONÇALVES, Marta Regina Gama. Surrealismo Jurídico: a invenção do Cabaret Macunaíma – Uma concepção emancipatória do Direito. Dissertação (Mestrado em Direito) Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, Brasília/DF, 2007.

GUATTARI, Félix. Caosmose: Um novo paradigma estético. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Revolução Molecular: Pulsações políticas do desejo. Tradução de Suely Rolnik. Petropólis: Vozes, 2005.

GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica. Cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 2005.

MONDARDO, Dilsa. 20 anos rebeldes: o direito à luz da proposta filosófica– pedagógica de L.A. Warat. Florianópolis: Diploma Legal, 2000.

WARAT, Luis Alberto; ENTELMAN, Ricardo. Derecho al Derecho. Buenos Aires, 1970.

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Das certezas da terra firme às incertezas dos territórios desconhecidos. Uma cartografia de Luis Alberto WaratMarta Gama

_______. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Volume I. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004 a.

_______. Epistemologia e o ensino do Direito: o sonho acabou. Volume II. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004 b.

_______. Surfando na pororoca: ofício do mediador. Volume III. Coordenadores: Orides Mezzaroba, Arno Dal Ri Júnior, Aires José Rover, Cláudia. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004 c.

_______. Mosaicos de materialismo mágico. Posto Alegre: Livraria dos Advogados, 2009.

_______. A rua grita Dionísio! Direitos humanos da Alteridade, Surrealismo e Cartografia. Tradução e Organização: Vivian Alves de Assis, Júlio César Marcelino Jr. E Alexandre de Morais Rosa. Rio de Janeiro: LumenJuris, 2010.

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Revista Online do Curso de Direito da Faculdade Sul-Americana

DIREITO, LINGUAGEM E SEMIOLOGIA DO PODER

Ricardo Menna Barreto1

Claudia Raquel Wagner2

1 PROLEGÔMENOS

Direito e Linguagem têm uma plataforma comum, afirma Paolo Grossi3. Com efeito, tal afirmação desvela a importância da Linguística para a Teoria do Direito, nos levando a empreender um percurso que irá perpassar, de modo bastante breve, a Semiologia (Saussure) [1] e a Semiótica (Peirce) [2] para adentrar nos labirintos sígnicos da Linguagem Jurídica. Partindo desses estímulos linguísticos, buscaremos demonstrar, brevemente, à luz da Semiologia do Poder (Warat) [3], como as verdades jurídicas constroem-se, existem e descontroem-se na e pela linguagem, demonstrando-se, assim, quão inarredáveis são os fenômenos linguístico e jurídico.

2 O PROJETO SEMIOLÓGICO DE FERDINAND DE SAUSSURE

Ferdinand de Saussure é considerado por muitos o “pai” da linguística moderna, uma vez que estabeleceu seu objeto de análise científico. Ao fazer isso, delimitou que a língua deveria ser este objeto de análise. A partir desse momento, o estudo da língua possibilitou que outras áreas pudessem se

1 Mestre e Graduado em Direito pela UNISINOS (RS). Professor do Curso de Direito e Gestão da Tecnologia da Informação (GTI) da Faculdade São Francisco de Barreiras – FASB, Bahia, Brasil.

2 Pós-graduada em Docência Presencial e Virtual no Ensino Superior – Universidade Católica de Brasília – UCB – 2013. Graduada em Letras pela UNISINOS (RS). Professora de Língua Portuguesa e de Metodologia da Pesquisa Científica e Jurídica da Faculdade São Francisco de Barreiras – FASB, Bahia, Brasil.

3 GROSSI, Paolo. La Primera Lección de Derecho. Traducción de Clara Álvarez Alonso. Colección Politropias 9, dirigida por José María Ordóñez. Madrid: Marcial Pons Ediciones Jurídicas y Sociales, 2006, p. 33.

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beneficiar de seus estudos, a exemplo das artes, da Psicologia, da Sociologia e do próprio Direito – desse modo, deixou-se de lado a visão limitante e limitadora de que o estudo da língua compreendia apenas o estudo da gramática4. A preocupação dos linguistas passa, desde então, a ser a compreensão da língua em uso, ou seja, entender como a língua é utilizada por seus falantes, ao invés de somente prescrever como ela deve ser usada; com efeito, essa mudança provoca um novo olhar, superando a visão, ou classificação, limitante e limitadora de certo e errado5.

Contudo, Saussure preocupou-se em limitar apenas a língua como objeto de estudo da linguística, uma vez que, para ele, pensar em um estudo sobre a linguagem poderia abranger demais seu objeto de análise e fazer com que se perdesse seu caráter científico6, pois “se estudarmos a linguagem sob vários aspectos ao mesmo tempo, o objeto da Linguística nos aparecerá como um aglomerado confuso de coisas heteróclitas, sem liamos ente si” 7. Nesse sentido, a língua, para Saussure, é somente uma parte da linguagem – esta que é uma faculdade dada pela natureza; a língua “é, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos” 8. Assim sendo, a língua é uma invenção humana, que é adquirida pelo indivíduo e que obedece a uma convenção social. Saussure ainda complementa: “Ela é a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, que, por si só, não pode nem criá-la nem modificá-la; ela não existe senão em virtude de uma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade”9. Somente por meio de uma aprendizagem as pessoas podem

4 SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. Organizado por Charles Bally, Albert Sechehaye, com colaboração de Albert Riedlinger. Tradução de Antônio Chelini e José Paulo Paes. 34ª ed. São Paulo: Cultrix, 2012. Ver também COELHO NETTO, J. Teixeira. Semiótica, Informação e Comunicação. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.

5 SCHUMACHER, Cristina A. Uma Gramática Intuitiva: liberte-se das regras e tome posse da língua que você fala. Rio de Janeiro: LTC, 2013.

6 Com efeito, este foi um problema que afetou Charles S. Peirce, pois, de acordo com Santaella, “nenhuma Universidade americana soube lhe dar um emprego como professor: nem como cientista, nem como lógico, nem como filósofo” em virtude da vastidão e do diálogo entre várias áreas compreendidas em sua teoria da semiótica – uma vez que seu propósito não era o de fundar uma ciência aplicada, mas o de “configurar conceitos sígnicos tão gerais que pudessem servir de alicerce a qualquer ciência aplicada” (SANTAELLA. O que é Semiótica? São Paulo: Brasiliense, 2002, p. 20).

7 SAUSSURE, op. cit., p. 40.8 Id. ibid., p. 41.9 SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. Organizado por Charles Bally, Albert Sechehaye, com

colaboração de Albert Riedlinger. Tradução de Antônio Chelini e José Paulo Paes. 34ª ed. São Paulo: Cultrix, 2012, p. 46.

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– ou seja, o homem não nasce com a língua, ela o é exterior e ele precisa compreender seu funcionamento para – se expressar nela e através dela.

Além de distinguir a língua da linguagem, outra diferenciação importante que Saussure faz é entre a fala e a língua, de modo a delimitar ainda mais seu objeto de análise científica. Para Saussure, diferenciar a fala da língua torna-se de fundamental importância, uma vez que os fatos que se referem à língua estão relacionados à estrutura do sistema linguístico e os fatos que se referem à fala estão relacionados ao uso desse sistema. Com base nesta premissa, Saussure considera a fala como a parte individual da linguagem, resultante das combinações feitas pelo sujeito falante ao utilizar o código da língua, além disso, o indivíduo faz uso da língua por meio dos mecanismos psicofísicos (órgãos vocais).

No entanto, apesar das diferenças entre ambas, este linguista acredita que a língua e a fala mantêm uma relação estreita entre si, pois se implicam mutuamente, sendo isso notadamente percebido pelo fato de que a língua é a condição para que se produza a fala, mas não há língua sem o exercício da fala. Por exemplo, a língua portuguesa surgiu da fala vulgar do latim, mas ela só continuará existindo enquanto um grupo de pessoas continuar a falar a língua portuguesa. Contudo, como Saussure somente considerava a língua como objeto da linguística, a fala seria pertinente ao estudo linguístico apenas quando interferisse diretamente nas relações internas entre seus elementos sistematizados. Isso se verifica em casos nos quais os vocábulos acabam sofrendo transformação fonética, a exemplo da palavra japonesa arigatô, cuja pronúncia portuguesa transformou na palavra lusófana obrigado10.

Por outro lado, é necessário destacar que Saussure definia a língua como “um sistema de signos que exprimem ideias” 11. Para entender-se esta noção é preciso compreender o que Saussure entendia por signo. Para este linguista, o signo linguístico é formado pela relação entre o significado, que o autor chama de conceito, e o significante, denominado imagem acústica. Neste caso, para compreender o signo linguístico, Saussure explica que as coisas no mundo precisam ser transformadas em equivalentes através de uma imagem acústica para comporem a língua; essa imagem acústica não é o som, “mas a impressão (empreinte) psíquica desse som, a representação que dele nos dá o testemunho de nossos sentidos”12, pode-se dizer que a imagem acústica é, na

10 Cabe ressaltar que esta foi uma concepção inicial estabelecida por Saussure, pois, atualmente, entende-se que a linguagem só existe como atividade; não se pode opor a língua à fala, pois uma não exclui a outra, ao contrário – a fala é a realização concreta da língua, conforme destaca o linguista Francisco Borba.

11 SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. Organizado por Charles Bally, Albert Sechehaye, com colaboração de Albert Riedlinger. Tradução de Antônio Chelini e José Paulo Paes. 34. ed. São Paulo: Cultrix, 2012, p. 47.

12 Id. Ibid., p. 106.

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verdade, uma imagem mental de um conceito e não necessariamente há uma relação entre o signo e o objeto representado. Por fim, veja-se que Saussure considerava que tanto o sentido quanto a imagem acústica são igualmente psíquicas – entretanto, não significa dizer que são abstrações, mas sim “associações, ratificadas pelo consentimento coletivo cujo conjunto constitui a língua, são realidades que têm sua sede no cérebro” 13.

Estabelecidas essas premissas iniciais acerca do pensamento de Ferdinand de Saussure, pode-se, desde já, desvelar a questão: qual a relação entre Linguística, Semiologia e Direito? Inicialmente, cabe destacar, conjuntamente com Luis Alberto Warat, que

a Lingüística e a Semiologia não são disciplinas que contêm paradigmas fortemente estabelecidos, carregados de tradição; elas se reconstituem em um movimento de permanente auto-análise de reavaliação de seu objeto. Movimento que provoca alterações nos processos teóricos que dela se valem. Creio, por isso, que os estudos lingüísticos e semiológicos do direito necessitam procurar dar o salto teórico, que a própria lingüística ou a semiologia estão buscando compreender 14.

Leonel Severo Rocha, por sua vez, explica como a semiologia, desde Saussure, é caracterizada por constantes deslocamentos de sua problemática, pois “seguindo-se ao último Barthes e a Eliseo Verón, poder-se-ia dizer que, na atualidade, a semiologia se define por oposição à linguística. A primeira ocupar-se-ia de estabelecer o sistema de sentidos historicamente conotados, e a segunda, da relação designativo-conotativa” 15.

Assim, Luis Alberto Warat e Leonel Rocha, em determinado momento de seu percurso teórico, juristas, estimulados por diferentes autores, como Saussure, Peirce e Carnap16, procuraram estudar as funções sociais, os efeitos políticos e ideológicos dos diferentes discursos jurídicos [especialmente do discurso docente e do discurso da dogmática jurídica]17, reconhecendo, à

13 SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. Organizado por Charles Bally, Albert Sechehaye, com colaboração de Albert Riedlinger. Tradução de Antônio Chelini e José Paulo Paes. 34. ed. São Paulo: Cultrix, 2012, p. 46.

14 WARAT, Luis Alberto. À Procura de uma Semiologia do Poder. In: Sequência – Estudos Jurídicos e Políticos, Volume 02, nº 3 (1981), pp. 79-83, UFSC – Florianópolis, SC, Brasil. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/17232. Acesso em: 21 de julho de 2013.

15 ROCHA, Leonel Severo. Algumas Anotações sobre a Semiologia do Poder. In: ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia Jurídica e Democracia. 2. ed. São Leopoldo: UNISINOS, 2005, p. 19.

16 CARNAP, Rudolf. The Logical Structure of the World. Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1969.

17 WARAT, Luis Alberto; ROCHA, Leonel Severo e CITTADINO, Gisele. O Poder do Discurso Docente das Escolas de Direito. In: Sequência. 2º semestre de 1980, pp. 146-152.

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luz da Semiologia do Poder18, que “as significações não deixam de ser um instrumento de poder. Aceitando-se que o Direito é uma técnica de controle social não podemos deixar de reconhecer que seu poder só pode manter-se estabelecendo-se certos hábitos de significação” 19. Trata-se, como se pode perceber, de um “transcender” da análise das cadeias conotativas de significação, passando-se a refletir acerca do poder das cadeias conotativas de significação na sociedade20.

Vistas essas noções iniciais acerca da teoria saussureana, passemos, pois, à observação de algumas premissas da semiótica de Charles S. Peirce, visando estabelecer aportes para uma compreensão linguística das verdades jurídicas.

3 A SEMIÓTICA DE CHARLES SANDERS PEIRCE

Os reflexos da Semiótica de Peirce para o Direito desvelam um complemento à análise da linguagem jurídica, uma vez que, diferente de Saussure, a teoria semiótica tenta contemplar não somente o discurso produzido pelos juristas, como também possibilita que se observem igualmente questões extralinguísticas, a saber, por exemplo, a linguagem não verbal. Estas questões tornam o estudo dos discursos mais completos, uma vez que a linguagem é pensada em todos os seus aspectos 21.

Santaella22 destaca que a Semiótica, de certo modo, é o “estudo da vida”, visto que esta também pode ser compreendida como linguagem, especialmente se considerarmos o fato de que o DNA é um código que contém informação biológica para que haja vida. Não distantes do entendimento de

18 WARAT, Luis Alberto. À Procura de uma Semiologia do Poder. In: Sequência – Estudos Jurídicos e Políticos, Volume 02, nº 3 (1981), pp. 79-83, UFSC – Florianópolis, SC, Brasil. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/17232. Acesso em: 21 de julho de 2013.

19 WARAT, Luis Alberto. As Vozes Incógnitas das Verdades Jurídicas. In: Sequência – Estudos Jurídicos e Políticos, Volume 08, nº 14 (1987), pp. 58-59, UFSC – Florianópolis, SC, Brasil. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/16456. Acesso em: 16 de novembro de 2013.

20 ROCHA, Leonel Severo. Algumas Anotações sobre a Semiologia do Poder. In: ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia Jurídica e Democracia. 2. ed. São Leopoldo: UNISINOS, 2005, p. 19.

21 É importante destacar que, contemporaneamente, Patrick Charaudeau, redefine essas teorias a partir da semiolinguística, que, através da situação de comunicação, passa a analisar não somente os elementos linguísticos do discurso, como também os extralinguísticos, a saber: os parceiros da interação, sua finalidade, seu tema e o canal de comunicação. CHARAUDEAU, Patrick. La situation de communication comme lieu de conditionnement du surgissement interdiscursif. In: TRANEL n°44, Interdiscours et intertextualité dans les médias, Institut de linguistique de l’Université de Neuchâtel, Neuchâtel, 2006, [...] sur le site de Patrick Charaudeau - Livres, articles, publications. Disponível em: http://www.patrick-charaudeau.com/La-situation-de-communication.html. Acesso em: 07 de setembro de 2013.

22 SANTAELLA. O que é Semiótica? São Paulo: Brasiliense, 2002.

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Santaella encontram-se os biólogos cognitivos Humberto Maturana Romesín e Francisco Varela, que afirmam que nós somente nos tornamos humanos através da e na linguagem, pois “todo ato humano ocorre na linguagem. Toda ação na linguagem produz o mundo que se cria com os outros, no ato de convivência que dá origem ao humano”23. Em outras palavras, pode-se afirmar que os próprios sistemas de linguagem agem, pois, como sistemas vivos.

Em sua teoria, Peirce determina que tudo pode ser compreendido como signo, desde que represente algo para alguém; entretanto, para que a linguagem se complete, é necessário que haja uma relação triádica entre signo, significante e objeto.

O signo, também chamado por Peirce de representâmen, é aquilo que representa algo para alguém, ou seja, forma na mente de um indivíduo um signo equivalente ou mais desenvolvido. Esse representâmen criará na mente de uma pessoa um signo equivalente, que passará a ser o significante. Segundo Peirce24, “o signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto não em todos os seus aspectos, mas com referência a um tipo de idéia (sic), que eu, por vezes, denominei fundamento do representâmen”. Portanto, o objeto é o resultado da relação entre representâmen e significante.

Pensemos, por exemplo, no signo casa. Suponhamos que este signo nunca fora apresentado a uma pessoa, de modo que, na primeira vez que ela tentar compreender o que vem a ser este signo, precisará criar uma imagem mental, ou seja, formar um signo equivalente em sua mente para compreender o signo casa – que ela está vendo – o qual passará a ser o significante do signo casa. Deste modo, o signo casa, após essa concepção mental, passa a representar, para essa pessoa, um lar, passa a ser uma concepção derivada do signo casa, que é, no entanto, diferente dele. Nesse sentido, lar é o objeto do signo casa e surge como o resultado da união do primeiro signo (a casa que ele vê) com o segundo (a ideia de casa). Assim, o objeto lar somente existe por causa de um indivíduo que atribuiu um sentido a ele. Peirce25 ainda completa que “[...] para que algo possa ser um Signo, esse algo deve ‘representar’, como costumamos dizer, alguma outra coisa, chamada seu Objeto [...]”.

23 MATURANA, H. R.; VARELA, F. J. A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. Tradução de: Humberto Mariotti e Lia Diskin. São Paulo: Palas Athena, 2001, p. 269.

24 PEIRCE, Charles S. Semiótica. Tradução de José Teixeira Coelho Netto. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 46.

25 PEIRCE, Charles S. Semiótica. Tradução de José Teixeira Coelho Netto. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 47.

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Se considerarmos que, após esta primeira compreensão do indivíduo A sobre o signo casa, essa pessoa se depara com outra (B) que mora em um prédio residencial, e B lhe diz que sua casa é ali, então, A deverá realizar o seguinte reordenamento de pensamento: diante do signo apartamento, a pessoa, para compreender o significado deste signo, deverá criar um significante equivalente em sua mente. Para isso, poderá evocar o signo casa, referente ao exemplo anterior. Assim, o objeto do signo apartamento passará a ser lar – o mesmo que o do signo casa – uma vez que ambos se referem ao mesmo sentido.

Nesses dois exemplos, vimos que o objeto dos dois signos é o mesmo, uma vez que é um sentido geral para estes signos. Porém, quando pensamos que um sentido geral para esses dois signos diferentes pode ser o mesmo, precisamos também levar em consideração que nem sempre esse sentido pode ser o mesmo para todas as pessoas, uma vez que o significado de cada signo depende da interpretação que cada indivíduo dá para cada signo. Além disso, cada interpretação dependerá do significante que, por sua vez, pode ser o mesmo ou diferente conforme as experiências, as emoções que cada indivíduo possui, pois são a partir delas que vamos modelando o modo como compreendemos o mundo.

Daí, pensar-se em uma efetiva padronização do significado dos signos, torna-se um absurdo, pois a compreensão do mundo é única para cada pessoa e, também, essa compreensão pode ser modificada, conforme as experiências de cada pessoa. Santaella26 complementa esta ideia, afirmando que “o homem – na sua inquieta indagação para a compreensão dos fenômenos – desvela significações. É no homem e pelo homem que se opera o processo de alteração dos sinais (qualquer estímulo emitido pelos objetos do mundo) em signos ou linguagens (produtos da consciência)”. Além de ser uma experiência pessoal desvelar o mundo, trata-se de atividade extremamente complexa e falível, especialmente quando não estamos familiarizados com determinada situação ou signo. Berger e Luckmann27, sobre isso, defendem que

A realidade da vida cotidiana não é cheia unicamente de objetivações; é somente possível por causa delas. Estou constantemente envolvido por objetos que ‘proclamam’ as intenções subjetivas de meus semelhantes, embora possa às vezes ter dificuldade de saber ao certo o que um objeto particular está ‘proclamando’, especialmente se foi produzido por homens que não conheci bem, ou mesmo que conheci de todo, em situação face a face.

26 SANTAELLA. O que é Semiótica? São Paulo: Brasiliense, 2002, p. 12-13.27 BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade: tratado de sociologia do

conhecimento. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 54.

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Neste caso, estes dois autores entendem que objetivação é a significação, ou seja, a produção humana de sinais, “intenção explícita de servir de índice de significados subjetivos”28. Diante dessa nova configuração acerca da compreensão do mundo, a teoria semiótica de Charles S. Peirce, no século XIX, possibilitou a criação de um novo paradigma científico sobre a verdade, no qual os fenômenos sociais podem ser compreendidos fundamentalmente como fenômenos da linguagem.

4 NOTAS PARA UMA (DES)CONSTRUÇÃO DAS VERDADES JURÍDICAS PELA SEMIOLOGIA DO PODER

Verdades são crenças construídas na e pela linguagem, únicas para cada indivíduo e para cada contexto social no qual se está inserido. Desde a Semiótica, não há, portanto, uma verdade universal, como julgava a ciência positivista. Isso foi ilustrado por Peirce29 no seguinte exemplo:

When society is broken into bands, now warring, now allied, now for a time subordinated one to another, man loses his conceptions of truth and of reason. If he sees one man assert what another denies, he will, if he is concerned, choose his side and set to work by all means in his power to silence his adversaries. The truth for him is that for which he fights 30.

A partir dessa concepção, Peirce entende que o ser humano é essencialmente social. Diz ele: “você e eu, o que somos? Simples células de um organismo social” 31. Esse entendimento, associado à noção de falibilismo, princípio de que o conhecimento flutua em um continuum de incerteza e indeterminação, nunca sendo visto como uma certeza, mostram que a pretensão de um controle absoluto dos fenômenos da natureza ou da sociedade é impossível.

A ciência, ou melhor, as certezas produzidas por ela, são produtos de uma criação contextual, que ocorrem dentro de um espaço e tempo específicos e que passam a

28 BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 55.

29 PEIRCE, Charles S. Collected Papers. Cambridge: Harvard University Press, 1931, p. 59.30 “Quando a sociedade é dividida em lados, agora em guerra, agora aliado, agora por um tempo subordinados uns

aos outros, o homem perde suas concepções da verdade e da razão. Se alguém ver um homem afirmando o que outro nega, ele irá, se estiver envolvido, escolher de que lado ficar e tratar de trabalhar com todos os meios que tiver para silenciar seus adversários. A verdade será para ele aquilo pelo qual ele luta” (Tradução livre).

31 PEIRCE, Charles S. Collected Papers. Cambridge: Harvard University Press, 1931, p. 673.

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vigorar conforme as crenças de cada época. Santaella, nesse sentido, argumenta que essa produção de conhecimento/certeza científica é um conjunto de

processos que amadurecem gradualmente, produtos da mente coletiva que obedecem a leis de desenvolvimento interno, ao mesmo tempo que respondem a eventos externos (novas idéias [sic], novas experiências, novas observações), e que dependem, inclusive, do modo de vida, lugar e tempo nos quais o investigador vive32.

Coelho Netto33, por sua vez, afirma que a verdade, para Peirce, “apresentava-se como uma atividade (dirigida para um objetivo) capaz de permitir a passagem de um estado de insatisfação para um estado de satisfação”. Assim, o modo como cada pessoa interage na comunidade é único, sendo que a verdade é uma ideia relativa, a qual depende do ponto de vista assumido por um determinado sujeito em um certo contexto de comunicação34. Fica evidente, logo, que verdades são produtos da linguagem construídos na interação com o outro.

Note-se que estudos sobre a linguagem jurídica ganharam espaço em solo brasileiro notadamente a partir da década de 1970. Conforme Leonel Severo Rocha, análises relativamente sistematizadas sobre os signos jurídicos foram provocadas, principalmente, por três influências: a) a Lógica Jurídica; b) a Nova Retórica; e c) a Escola Analítica de Buenos Aires35. A semiótica jurídica, propriamente dita, ganhou espaço no Brasil nessa época a partir da obra de Warat 36.

Não obstante, antes de iniciar nossa breve exposição da ideia de verdades jurídicas à luz da Semiologia do Poder, de Luis Alberto Warat, devemos partir da premissa que a linguagem jurídica é o suporte material das formas. Como Lourival Vilanova bem identificou, “a expressão linguagem jurídica é ambígua. Refere-se a dois níveis de linguagem: a do direito positivo e a da Ciência-do-Direito que tem o direito positivo como objeto de conhecimento dogmático” 37. Em outras palavras, a Ciência do Direito é a metalinguagem que possui como linguagem-objeto o direito positivo (compreendido, em seu

32 SANTAELLA. O que é Semiótica? São Paulo: Brasiliense, 2002, p. 26.33 COELHO NETTO, J. T. Semiótica, Informação e Comunicação. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 53.34 PEIRCE, Charles S. Collected Papers. Cambridge: Harvard University Press, 1931.35 ROCHA, Leonel Severo. Semiologia, Semiótica e Teoria do Direito. In: ROCHA, L. S. Epistemologia Jurídica

e Democracia. 2ª ed. São Leopoldo: Unisinos, 2005, p. 26. 36 WARAT, Luís Alberto. O Direito e sua Linguagem. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio. Antônio Fabris, 1995.37 VILANOVA, Lourival. As Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. Prefácio de Geraldo Ataliba. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 25.

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conjunto normativo, como lei, doutrina, jurisprudência). É, pois, no plano da linguagem-objeto que erigem-se verdades jurídicas que cristalizam o que Warat denominou “Senso Comum Teórico Jurídico” (SCTJ):

Os juristas contam com um emaranhado de costumes intelectuais que são aceitos como verdades de princípio para ocultar o componente político da investigação de verdades. Por conseguinte se canonizam certas imagens e crenças para preservar o segredo que escondem as verdades. O SCTJ é o lugar do secreto 38.

Verdades jurídicas são, pois, significações que integram o discurso

cotidiano dos juristas. Foi Warat quem, a partir da Semiologia do Poder, explicou como a história das verdades estaria “constituída por todas as significações jurídicas que reivindicam um valor assertivo, apelando às vozes imunizadas da ciência, mas que, no fundo, não deixam de ser uma maneira de falar adaptada à ‘doxa’”39. Dessa maneira, discursos jurídicos sacralizam-se como crença e são negados como ideologia, produzindo e reproduzindo o efeito da lei na sociedade, tornando “suportáveis as obrigações impostas pelo direito, reduzindo conseqüentemente as possibilidades de não aceitação das decisões impostas pelo aparelho judicial-administrativo do Estado” 40.

Note-se que a Semiologia do Poder, proposta por Warat, constitui mesmo um novo tipo de estudo semiológico sobre o Direito, enquadrando-se na perspectiva de uma Teoria Crítica do Direito. Partindo de um espaço reflexivo que transcende as contribuições de Saussure e Peirce, Warat propõe uma teoria jurídica crítica que “não se deve preocupar com a constituição de uma normatividade para o conhecimento do direito. Ela se define pela tentativa de elaboração de um contra-discurso apto a revelar o poder do conhecimento e seus condicionamentos sociais” 41.

Com efeito, as verdades jurídicas que habitam o discurso cotidiano dos juristas somente podem ser desveladas em um plano metalinguístico. É, pois, nesse plano que percebe-se que as significações jurídicas não provêm

38 WARAT, Luis Alberto. As Vozes Incógnitas das Verdades Jurídicas. In: Sequência – Estudos Jurídicos e Políticos, Volume 08, nº 14 (1987), pp. 58-59, UFSC – Florianópolis, SC, Brasil. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/16456. Acesso em: 16 de novembro de 2013, p. 59.

39 WARAT, Luis Alberto. Dilemas Sobre a História das Verdades Jurídicas: tópicos para refletir e discutir. In: Sequência – Estudos Jurídicos e Políticos, Vol. 04, n. 06 (1983), pp. 97-113, UFSC, Florianópolis, SC, Brasil. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/16922, p. 106.

40 Idem, ibidem, p. 109. 41 WARAT, Luis Alberto. À Procura de uma Semiologia do Poder. In: Sequência – Estudos Jurídicos e Políticos,

Volume 02, nº 3 (1981), pp. 79-83, UFSC – Florianópolis, SC, Brasil. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/17232. Acesso em: 21 de julho de 2013, p. 82.

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somente do Estado, como bem observa Rocha, pois “as relações de poder/sentido atravessam o Estado e, portanto, as normas jurídicas podem ter suas significações determinadas por conotações extra-estatais” 42. Tendo o Estado como “topos” logotécnico dominante, nascem discursos jurídicos oriundos de distintas e heterogêneas influências, como, por exemplo, os discursos midiático e político, os quais passam a se revestir de juridicidade43.

Por outro lado, surgem, igualmente, discursos doutrinários e jurisprudenciais que passam a constituir o saber jurídico dominante, forjados “por toda uma série de representações, que por sua vez, condiciona o tipo de evocações conotativas nas quais os juristas se baseiam no momento de apontar o sentido das palavras da lei”44. Ora, essas representações ganham a forma de fetiches, visões, ideias dispersas e neutralizações que ganham, em Warat, conforme mencionamos, um conceito operacional: Senso Comum Teórico Jurídico. Com essa expressão resta designada as condições implícitas de produção, circulação e consumo das verdades nas práticas jurídicas, servindo para desvelar a própria dimensão ideológica das verdades jurídicas 45.

Assim, a crítica do direito waratiana cristaliza um verdadeiro deslocamento epistêmico, apto a reconhecer os limites, silêncios e funções políticas da epistemologia jurídica oficial, explicando o sentido político da normatividade “que a epistemologia clássica instaura quando efetua julgamentos sobre a cientificidade dos discursos que os juristas elaboram em nome da verdade” 46.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As relações entre Direito e Linguagem foram, no presente texto, desveladas à luz de um breve itinerário das teorias da linguagem de Charles Sanders Peirce e Ferdinand de Saussure, culminando na Semiologia do Poder de Luis Alberto Warat. Em tais perspectivas, restou demonstrada não apenas a “plataforma comum” de

42 ROCHA, Leonel Severo. A Problemática Jurídica. Uma introdução transdisciplinar. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1985, p. 62.

43 Um exemplo recente pode ser visto nas discussões que envolveram e determinaram o texto do Marco Civil da Internet no Brasil.

44 ROCHA, Leonel Severo. A Problemática Jurídica. Uma introdução transdisciplinar. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1985, p. 63.

45 WARAT, Luis Alberto. As Vozes Incógnitas das Verdades Jurídicas. In: Sequência – Estudos Jurídicos e Políticos, Volume 08, nº 14 (1987), pp. 58-59, UFSC – Florianópolis, SC, Brasil. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/16456. Acesso em: 16 de nov. 2013, p. 57.

46 WARAT, Luis Alberto. Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas. In: Sequência – Estudos Jurídicos e Políticos, Volume 03, nº 05 (1982), pp. 48-57, UFSC – Florianópolis, SC, Brasil. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/17121. Acesso em: 12 de out. 2013, p. 49.

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Direito e Linguagem (Grossi), mas de como o instrumental linguístico pode ser útil para uma compreensão crítica do fenômeno jurídico.

O instrumental semiológico jurídico proposto por Warat mostra-se apto a auxiliar na intepretação de novas hipóteses sobre os saberes do sujeito enunciador [legislativo/sociedade], seus pontos de vista em relação aos enunciados [normas] e em relação aos sujeitos destinatários [cidadãos/operadores jurídicos]. Do mesmo modo, a Semiologia do Poder permite identificar as inconsistências e ideologias imperantes no discurso jurídico, demonstrando como os atos de linguagem narram/constroem o mundo através de suas próprias condições de existência, únicas para cada indivíduo – e, por esse motivo, não podem (ou, pelo menos, não deveriam) ser generalizadas.

Contudo, nessa construção do mundo (jurídico) parece imperar o Senso Comum Teórico Jurídico, conforme bem denunciado por Warat. Assim, criticamente, a “Semiologia do Poder deve ocupar-se da análise do papel desempenhado pelos fatores extranormativos e históricos nas diferentes modalidades de produção das significações jurídicas e, ao mesmo tempo, dos efeitos de retorno à sociedade destas significações” 47.

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47 ROCHA, Leonel Severo. Algumas anotações sobre a semiologia do poder. In: ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia Jurídica e Democracia. 2. ed. São Leopoldo: Unisinos, 2005, p. 19.

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Revista Online do Curso de Direito da Faculdade Sul-Americana

A CONSTITUIÇÃO FILOSÓFICA E AS IMAGENS DOS VALORES NA REPÚBLICA DE PLATÃO

Diogo Norberto Mesti1

1 INTRODUÇÃO

A obra de Platão que é objeto deste trabalho é apresentada como se pesquisasse a essência da justiça. Seu alvo seria uma justiça última perfeita e divina, a justiça natural por excelência.2 Contudo, Platão nunca atingiu essa essência última da justiça, apresentando uma quantidade enorme de imagens dos valores que são confrontadas umas com as outras como se fossem argumentos e opiniões que surgem da cidade de Atenas. Em vez de pensar na ilusão da justiça, é preciso pensar na justiça como sendo uma das imagens dos valores que a Politéia apresenta e situá-la como uma etapa para o ícone do bem comum que deve guiar a produção da constituição da cidade.

No livro VI da Politéia,3 Platão mostra a longa via que o leva ao ícone (eikón) do bem. O bem aparece ali para sustentar que o filósofo se torne o guardião da constituição da cidade, pois é somente o bem que poderá tornar a justiça útil para cidade, superando a justiça individual como aquela que proporciona somente um bem para quem a prática. Começa a nascer com essa discussão a preocupação com a justiça e o bem públicos.

Na passagem 504 do livro VI da Politéia, Sócrates retoma, em poucas palavras, o assunto já abordado sem muito rigor no livro IV, lembrando-se dos resultados limitados da pesquisa acerca das virtudes da alma que atingiu a definição da justiça

1 Doutorando em Filosofia Antiga na Universidade Federal de Minas Gerais e Professor de Filosofia do Direito e Hermenêutica Jurídica no Curso de Direito da Universidade do Estado de Minas Gerais, unidade Diamantina, MG. [email protected]

2 Essa é a leitura de Kelsen (1995, 1998).3 Mantenho o nome em grego do livro República para que se preserve a ideia de que a res publica é a constituição

em grego.

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como dar a cada um o que é seu por natureza. Como sustentarei no decorrer deste trabalho, o ponto central é a diferença de rigor (akribéia) entre a alma que chega a um eídolon da justiça (daqui em diante sempre adotarei imagem para traduzir eídolon) e a alma que chega ao eikón do bem (daqui em diante sempre adotarei ícone para traduzir eikón).

Ao contrário de Sócrates, Gláucon não sente necessidade de algo novo no livro VI. Sua satisfação remonta ao ponto que haviam chegado no livro IV, quando encontraram uma medida para aplicar a justiça na cidade, sendo que a justiça teria como exemplo a divisão de funções entre os órgãos e as partes do corpo humano. Contudo, mas Sócrates não está satisfeito com a definição de justiça no livro IV como dar a cada parte da cidade a tarefa que é mais apropriadamente a sua. O desejo de melhorar sua compreensão do que seria a justiça o faz estabelecer um contraste entre possuir a medida de alguma coisa sem conhecer a relação dessa medida com aquilo que é o valor em si mesmo e possuir a medida de algo tendo o conhecimento daquilo que é. Aquele que tem a medida e não conhece o que é acha que “isso basta e que não é necessário buscar algo a mais” (VI 504c), acabando por se perder ao utilizar a medida que possui porque não conhece o valor ao qual ele serve. A questão é: como tornar a medida de justiça que possuímos útil para a cidade? Basta para isso aplicar à cidade a concepção funcionalista de justiça das partes do corpo?

2 A MEDIDA E A UTILIDADE

Gláucon expõe seu desejo de ouvir a defesa da justiça de um modo diferente daqueles que só falam dos seus benefícios sociais que parecer justo pode proporcionar. Sem negar os benefícios evidentes da justiça, Gláucon deseja que expliquem “o que é a justiça e a injustiça e qual poder tem relação com elas no íntimo da alma” (II 358b). A novidade ocorreria, anuncia Gláucon, porque ninguém jamais demonstrou nem em prosa ou em poesia como a justiça e a injustiça podem existir em função “de um poder que há dentro da alma de quem as possui, mas isso passa despercebido aos deuses e aos homens (...) que uma é o maior dos males que a alma tem dentro de si4 e a outra, a justiça, é o maior dos bens” (dikaiosýne de mégiston agathón, II 366e).

4 O foco no livro II está na questão causal, pois se investiga qual poder gera a justiça e a injustiça na alma. Um modo diferente seria prestar atenção nos efeitos (ou nos benefícios) que esse poder interna também gerará. A resposta pelo que é a justiça é a seguinte: ela é uma virtude da alma do homem. Em razão disso, o homem não é justo somente depois das convenções e das leis da cidade, sendo sua bondade e a justiça atribuída a um contrato exterior acerca do que é justo fazer. Neste caso, a “natureza” (359b8), o “surgimento e a essência da justiça” ficariam “entre o ótimo, cometer injustiça e não ser punido, e o péssimo, ser vítima de injustiça e não poder vingar-se” (359 b), como se a justiça surgisse entre as pessoas só pelo medo de sofrerem injustiças. A oposição

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A justiça é o maior bem que a alma pode possuir, sendo comparada às capacidades de ver, ouvir, ter saúde e ponderar (phronein), como bens que não só valem a pena possuir pelo que podem proporcionar, mas em razão deles mesmos. Então, Sócrates deve elogiar, para Gláucon, “a justiça naquilo em que sua própria natureza ajuda quem a tem e a injustiça prejudica” e deixar “que outros façam o elogio das recompensas e da reputação!” (367d). É depois disso que Sócrates afirma que “defenderá a justiça na medida das minhas forças” (II 368c) e conta que todos pediram para ele utilizar “todos os recursos, a socorresse e não desistisse da discussão, mas que examinasse a fundo o que é a justiça e injustiça e qual é a verdade sobre a utilidade de ambas” (II 368c).

O livro IV mostra o poder que gera a justiça na alma. Sócrates inicia, neste livro, a pesquisa por um caminho que tenta encontrar as virtudes na cidade: sabedoria, coragem, temperança e justiça. Explicada as três primeiras virtudes, Sócrates diz que irão caçar a justiça e é preciso ficar à espreita para que ela não escape dos olhos dele e de Gláucon. Sócrates diz, brincando:

O lugar me parece de difícil acesso e sombrio. É pelo menos escuro e difícil de explorar. Mas mesmo assim devemos ir! Gláucon: Devemos, sim. Sócrates: Eu dei uma olhada e falei: Oh! Oh! Gláucon! Pode bem ser que tenhamos encontrado uma pista e, parece, não vamos perdê-la (432c-d).

Sócrates sustenta que a justiça já estava nas mãos deles, enquanto eles a procuravam longe, como pessoas procurando os óculos que estão na própria cabeça. Assim, “o aspecto (eídos) da justiça” é aquilo que eles já disseram que os homens deveriam fazer o tempo todo: “cada um deveria ocupar-se com uma das tarefas relativas à cidade, aquela para qual sua natureza é a mais bem dotada” (433a). Além disso, essa noção de justiça não é inovadora, parecendo ser uma opinião de muitos, pois “cumprir a tarefa que é a sua sem se meter em outras atividades é justiça, isso ouvimos de muitos outros, e nós mesmos dissemos muitas vezes” (433b).5

consiste em considerá-la ou como fruto de uma convenção legal, onde ela seria útil apenas por falta de ânimo em cometer injustiça ou como um bem da própria alma humana. Sócrates escolhe a segunda opção: a justiça está entre os maiores bens que vale a pena possuir (megíston agathón eínai dikaiosýne, II 367d).

5 O curioso é notar que o eídos da justiça é percebido num lugar que parece ser escuro, o que permite entender eídos aqui como algo que aparece na multiplicidade e não como algo uno, sendo mais importante o aparecimento da justiça e sua ligação com um poder interno do homem que atinge uma imagem da justiça. Dixsaut, inclusive, salienta como que eídos pode ter o sentido de um aspecto sensível ou imagem mental, abarcando os campos semânticos de algo sensível, psicológico, lógico e ontológico (2000). Textualmente, na Politéia, nos trechos analisados, não acreditamos haver referência à forma inteligível da justiça, pois em todos os momentos que eidos é utilizado para falar da justiça ele é entendido com um aspecto interno da justiça na alma, mais associado à visibilidade de uma imagem (eídolon) da opinião do homem e ao aparecer do que ao ser. Não excluímos a possibilidade de que haja um sentido ontológico para a forma da justiça que deva ser antes de se tornar

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Desde o livro III, Sócrates propôs comparar a origem da justiça na cidade com a origem da justiça no indivíduo, mas só no IV, essa comparação jogará um pouco de luz naquilo que é obscuro, já que o resultado da comparação entre os diferentes tipos de justiça é visto como a faísca do atrito entre duas madeiras. O aspecto (eídos) da justiça, já encontrado enquanto eles fundavam a cidade, agora é posto na relação com o indivíduo justo e este em nada diferirá do aspecto já encontrado na cidade:

Então, disse eu, o que se diz ser o mesmo, embora seja maior ou menor, pela mesma razão pela qual é o mesmo será dissemelhante ou é semelhante? Gláucon: Semelhante. Sóc: Ah! E um homem justo em nada diferirá de uma cidade justa em relação ao aspecto da justiça [eídos, cf. 433a], mas será semelhante. Gla: será semelhante (435a-b).

O método em questão analisa as semelhanças de disposições entre a alma do indivíduo e a cidade, designando a cada um a função que lhe cabe pela natureza da capacidade e atividade que exercem melhor. Mais especificamente, é um método de friccionar as disposições a serem comparadas para ver se surge algo que se pode gravar na alma:

Pensávamos que, se antes tomássemos algo maior onde haja justiça e aí tentássemos contemplar a justiça, seria mais fácil ver o que ela é no indivíduo. (...). Transfiramos, portanto, para o indivíduo o que tivemos diante de nossos olhos [o aspecto (eídos) da justiça caçado] e, se houver consenso, estará bem; se, porém, algo diferente se mostrar no indivíduo, voltando de novo para a cidade submeteremos nossos resultados à prova e, confrontando-os e esfregando-os um contra o outro, talvez façamos com que a justiça brilhe como uma faísca que salta de dois pedaços de madeira friccionados e, quando ela se fizer visível, nós a fixaremos firmemente em nós mesmos (IV 434e-435a).

O vocabulário desse procedimento não é o da demonstração, mas o da apresentação. Isso gera duas coisas bem específicas: um consenso (homologoito, 434a1) e uma concordância (syndoké, 434a3). O uso de eídos da justiça diz respeito a um aspecto dela que pode ser visto, a partir do qual haveria a possibilidade de consenso e concordância: “Se, consentirmos (homologétai) que esse aspecto (eídos) penetre em cada um dos homens tornando-se individualizado e que ali também encontramos a justiça, então nós concordaríamos em afirmar” (IV 434d)” que o resultado daquela fricção tenta chegar a uma justiça que possa brilhar para a alma

uma marca no homem, mas acredito que nesse contexto na Politéia eídos é entendido como aspecto e não como forma inteligível, sendo possível entendê-lo como um aspecto visível do inteligível. Alguns tradutores da Politéia, como Leroux, também consideram que eidos da justiça, pelo menos até o livro IV é aspecto da justiça.

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dos homens. Esse brilho seria o ponto comum que os homens conseguem ver no interior de suas almas e que já é visto por muitos na cidade. Isso convenceria os homens a adotarem uma perspectiva semelhante para a justiça na alma, inspirando-se no aspecto (eídos) do que é a justiça na cidade.

Sócrates, a todo o momento, inverte a relação entre cidade e indivíduo. Primeiro, ele parte de uma concepção de justiça disseminada na cidade e vista por muitos para incorporá-la na alma, porém, depois, ele sustenta como as três partes da cidade, a impetuosa, a sábia e a que ama as riquezas são originadas na alma do indivíduo, pois tanto a alma quanto a cidade possuem as mesmas disposições. Em ambos os casos, quando cada uma das partes cumprir sua função, haverá justiça. A justiça na alma, semelhante à justiça que vemos na cidade, ocorre quando a razão se alia ao ímpeto para ambos coordenarem e vigiarem os desejos. Assim, Sócrates pergunta: “ainda pretendes que a justiça seja algo que não esse poder que dá aos homens e às cidades tais qualidades?” (443b). Ainda fica a pergunta: quais são esses poderes?

Ao fim do livro IV, ele apresenta dois tipos de poderes psíquicos distintos porque lidam com objetos e com movimentos distintos, mas que parecem chegar a uma mesma conclusão,6 sendo uma, a sabedoria, mais efetiva e decisiva do que a outra, a temperança. A relação entre aquela medida com a qual Gláucon estava satisfeito e a temperança é que ambas fornecem um acordo útil para a alma e para a cidade, pois a temperança é apresentada como uma opinião disseminada pelo todo acerca do modo como as partes devem se relacionar, promovendo a consonância entre as partes da cidade e do indivíduo. Isso é perceptível quando Sócrates sustenta que é pela opinião e não pelo conhecimento que a alma é temperante: a alma não é “temperante graças à amizade e consonância que existe entre as partes, quando a opinião da que comanda e de ambas as comandadas é que a razão deve comandá-las e estas não se rebelam contra aquela?” (442d). A força da justiça repousa na opinião entre as partes de que é melhor cada uma cumprir a sua tarefa, recebendo cada uma sua função específica. A outra atividade psíquica, distinta da opinião, é o conhecimento proporcionado pela razão, pois é esta que “dá recomendações e ainda tem dentro a ciência do que é útil para cada parte e para o todo que as três partes constituem em comum” (442c).

6 Isso fica muito claro depois do que foi exposto acima, quando, ao falar de um homem sábio e mostrando uma espécie de ciência interna que ele possui, Sócrates admite que a temperança espalhada por toda a alma é capaz de ter a sua opinião complementada com o conteúdo do saber que a ciência possui. Se, por um lado, a temperança mostra o que é ser justo e dissemina a opinião de que a razão é a melhor guia, por outro lado, a razão que deve guiar sabe por que é útil possuir essa justiça interna, numa estruturação psíquica em que a opinião certa acha o que a razão sustenta e em que a razão sustenta o que a opinião certa acha, como no momento em que as melhores opiniões são consideradas como cegas, ou pensas [pergunta Sócrates] que há qualquer diferença entre os cegos caminhando por uma avenida reta e aqueles que tem um opinião verdadeira sobre qualquer coisa sem ter inteligência.

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A diferença de poderes é como a diferença entre as partes da alma e possibilitaria que a alma que obtivesse a opinião acerca do que é justo também pesquisasse, ao mesmo tempo, pela razão, “a ciência do que é útil”. Por um lado, temos a opinião sobre cada um exercer a sua função conforme a sua natureza e, por outro, a ciência que consegue explicar o motivo da utilidade e das funções de cada parte. Esse contraste estruturará toda a diferenciação entre ciência e opinião no livro V, mas não deve ser visto para excluir a opinião, sobretudo porque a justiça está no âmbito da opinião e do acordo e não no da demonstração científica.

A justiça é o maior dos bens que o homem pode possuir, mesmo que ele não tenha conhecimento do bem, enquanto o bem é o mais importante tema que o homem pode vir a conhecer para tornar efetivamente útil a justiça. A diferença existente entre possuir uma opinião da justiça e conhecer o bem permite tratar a opinião e a ciência como poderes que conseguem estabelecer uma aliança. A sabedoria (sophia) é a ciência que preside as ações belas e justas e que colabora com a manutenção de um estado harmônico de uma alma temperante. A dissolução dessa harmonia entre as partes do psiquismo ocorre por causa de uma opinião contrária à temperante, a opinião que é gerada pela ignorância.7

3 A IMAGEM DA JUSTIÇA

Em 504, Sócrates continua explicando o que é importante o guardião conhecer e refere-se à necessidade de que ocorra uma volta maior para que ele possa aprender efetivamente os assuntos que têm imensa importância. E, ao responder a pergunta de Gláucon, se existe algo maior do que a justiça, Sócrates diz:

Há algo maior, e é preciso que não apenas observemos (theásthai) o esboço (hypographé) como agora, mas que não deixemos de lado sua realização mais acabada. Não seria ridículo que nos esforçássemos e tudo que fazemos para que

7 A diferença que podemos estabelecer entre as opiniões é: uma opinião é temperante e justa e a outra intemperante, sendo esta a ignorância que é vista como uma capacidade também opinativa, que preside a ação injusta e é capaz de destruir a harmonia entre as partes. Como se pode perceber no livro II, quando Sócrates se refere à verdadeira mentira. Ali pensa na ignorância presente na alma que promove um engano acerca do que é, mas que, quando há uma imitação em palavras “do que se passa na alma e que mais tarde se torna uma imagem (eídolon) não é mais uma mentira intemperante (ákratos)” (II 382b, trad. Ana Lia modificada em ákratos, utilizo o sentido que se refere às pessoas (cf. L-S-J) e não o sentido direcionado aos líquidos como se fosse uma “mentira sem mistura”). Essa imagem produzida pela imitação e gerada mais tarde já não é a mesma coisa que a ignorância e pode ser vista e entendida como uma opinião e é por meio dela que compreenderemos mais adequadamente o eídolon da justiça que aparecerá no segundo tópico. Contudo, o eídolon também pode ser fruto de uma alma sem temperança, como a alma do tirano no livro IX que convive com imagens dos falsos prazeres.

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coisas insignificantes fiquem, tanto quanto possível, mais exatas e nítidas, mas não consideramos que as mais importantes merecem também maior exatidão? (504d-e)

Gláucon fica intrigado e retruca Sócrates com uma pergunta: a “respeito de que você fala” (kai peri hóti légeis)? Mas antes de responder qual é o tema ou o objeto destas capacidades, cabe responder sobre o que é o esboço que precisará ser aprimorado depois pela pesquisa do bem. Segundo Sócrates, “o que menos deve ocorrer com o guardião da cidade e das leis” (VI 504c) é ele se satisfazer com uma medida da temperança e com uma opinião da justiça sem o conhecimento do bem, pois assim ele apenas acertaria o caminho certo sem conseguir justificar os motivos.8

Isso tudo porque o máximo que uma alma moderada pode fazer acerca da justiça é sonhar comedidamente acerca da justiça na cidade. No livro IV, Sócrates chega a uma imagem e a um sonho que projeta na cidade a relação justa entre as partes da alma:

Eis que nosso sonho (enýpnion) já está completo e perfeito. Aquele que, como supusemos (hypopteusai) logo que iniciamos a fundação de nossa cidade, fazia-nos assinalar que um deus podia bem fazer-nos chegar ao princípio e a uma certa marca (týpos) da justiça. Gláucon: Sem dúvida. Sócrates: Ah! Esse marca, Gláucon, era – e isso nos ajuda – uma imagem da justiça (eídolon ti tés dikaiosýnes). É justo que aquele que, por natureza, é sapateiro fabrique sapatos e nada mais faça, que o construtor construa e, quanto aos outros, também seja assim? Gláucon: Parece (443b-c).

O sonho aqui não é desmedido e pretende projetar na cidade a medida encontrada na alma. Mas que medida é essa? A dramatização que Platão faz da terceira onda, em que o filósofo será defendido como guardião da constituição, é um desdobramento de algo que ele já havia defendido quando se referiu ao sonho da justiça projetado na cidade, pois neste sonho as partes da cidade deveriam ter a mesma opinião da alma. Espera-se que a cidade seja guiada pela opinião que a alma tem de si mesma, a saber: “a opinião da que comanda e de ambas as comandadas é que a razão deve comandá-las e estas não se rebelam contra aquela” (442d), chegando através deste argumento psíquico ao argumento político de que o filósofo deve ser o guardião das leis da cidade por uma opinião disseminada na cidade.

O passo seguinte ao sonho foi a elaboração de leis conforme a natureza, isto é, que defendessem que a natureza da alma de cada um importa mais no exercício da função na cidade do que sua característica física ou familiar. Por isso todos os filhos

8 Essa diferença entre ter a opinião correta, mas não poder dar a razão disso, sem ter ciência disso, nos remete ao Teeteto.

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da cidade deveriam ser educados em conjunto e ninguém deveria saber quem eram seus pais, sendo mais importante o que cada um é capaz de fazer do que seu sexo ou origem familiar. Essa cidade assim construída não é um simples sonho, mas o paradigma de uma cidade que se aproxima ao máximo da bela cidade desenhada com perfeição, perfeição essa de caráter discursivo (473a). Sócrates reafirma isso aqui:

Ah! Porque queríamos ter um paradigma, procurávamos (ezetoumenon) o que é própria justiça e o que seria o homem completamente justo, se existisse e, por outro lado, também o que é a injustiça e o homem muito injusto para que, olhando para eles, conforme a manifestação9 (phainontai) que tivemos deles em relação à felicidade e ao seu oposto, fôssemos obrigados a concordar (homologein), em relação a nós mesmos, que quem for muito semelhante a eles terá a sorte semelhante a deles. Nossa intenção, porém, não era demonstrar (apodeixomen) que esses paradigmas possam existir (V 472c-d).

A pergunta se o homem mais feliz é o justo ou o injusto surgiu no mesmo momento em que Gláucon pediu a Sócrates que defendesse a justiça e injustiça por elas mesmas e não pelo benefício que podem proporcionar. A temperança e a justiça na alma são as principais virtudes que proporcionam a felicidade interna, porque assim o homem teria o maior bem que cabe ao homem possuir. Possuir a justiça interna significa ter uma marca da justiça que se apresentará (phaino), primeiro, como uma imagem onírica e, segundo, como um paradigma da cidade perfeita. Pode-se afirmar que o paradigma no plano da lei é como a exposição pública daquele sonho, enquanto o tipo da justiça é uma marca psíquica interna, como se o homem tivesse “diante dos olhos uma forma uma de virtude” (hen eínai eidos tés aretés, 445 c). É o momento em que cada um dos aspectos (eídé) do justo, do injusto, do bem, do mal “que se manifestam (phantazomai) por toda parte por causa da comunhão que eles mantêm com as ações, com os corpos e entre si, e assim cada um parece múltiplo” (V 476a). Nesse caso, o eídos se apresenta e temos acesso ao eidos da justiça manifesto numa imagem (eídolon) e em um paradigma.

Fica provado que a opinião tem o mesmo estatuto dúbio do sonho porque aquele que só opina passa a vida sonhando: “será que sonhar não é alguém, quer dormindo, quer em vigília, julgar que aquilo que é semelhante a algo não é apenas semelhante, mas é a própria coisa à qual se assemelha?” (V 476d). No livro VII, a imagem (isto

9 A escolha por manifestação e não simplesmente aparecer para explicar o ‘phaíno’ pretende destacar que o aparecer acontece sempre por meio de alguma coisa. Ou seja, não é só a justiça que aparece, mas aparece por meio da comparação entre o homem e a cidade, quando, pela fricção, é gerada alguma luminosidade naquela caverna obscura em que Sócrates e Gláucon caçavam a justiça. Pretende-se que a justiça brilhe como uma faísca do fogo gerada pela fricção de dois pedaços de madeira. O fogo transluz através da madeira, assim como a justiça brilha através de uma imagem que a faz transparecer.

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é, o eídolon) da justiça que já vimos ser um sonho, pode ser um sonho em relação ao bem, pois Sócrates diz: “O homem que não conhece o bem em si, mais somente algum eidólon do bem, por opinião e não por ciência – sua vida passa sonhando e adormecido” (VII 534 c). Em razão disso, a justiça projetada na cidade é uma mistura onírica de ser e não-ser (477a), de algo que já é na alma humana e que ainda não é na cidade.

Por isso, a justiça também está num lugar escuro, no meio do caminho de clareza (phaínetai, translucidez), entre a clareza que tem o conhecimento e a obscuridade total da ignorância (478c). Não se pode tratar a opinião como se ela fosse ignorância total, pois ainda que ela tenha algo de uma ignorância relativa, porque melhor dentre as opiniões é cega, ela também tem algo de um conhecimento do que as coisas são.

A prova deste argumento aparece quando Sócrates conclui que a maioria das pessoas admitem como norma (nómima) “a respeito do belo e de outras características (479d)” aquilo que é intermediário ao não-ser e ao puro ser, ou seja, a maioria das pessoas toma como norma do belo e de outras qualidades, como a justiça, algo que repousa na opinião que é uma “capacidade intermediária” (V 479 d, metaxý dynamei) que “apreende” essas coisas. Assim, se a justiça é uma medida, ela é geralmente aplicada somente pela opinião de qual é a sua verdadeira utilidade. Para que a justiça seja realmente útil para a cidade é preciso que tudo que for justo seja uma aplicação do que é o bem comum.

4 ÍCONE DO BEM

Ao contrário dessa opinião que funda a imagem da justiça, a sabedoria lida com objetos diferentes, como o ícone (eikón) do bem, que é um artefato da razão produzido a partir da observação para o que há de mais verdadeiro.10 É a partir da observação

10 O livro VI inicia contrapondo os objetos da opinião, da ciência e da ignorância, quando se refere à metáfora do cego para sustentar que o guardião é aquele que deve ter uma visão boa e não um cego: “Parece-te, então, que há alguma diferença entre os cegos e os que realmente estão privados do conhecimento de todo ser, porque os primeiros não têm em sua alma nenhum paradigma nítido e os outros não são capazes de olhar, como os pintores, para o que há de mais verdadeiro nem de voltar sempre os olhos para isso e contemplando-o com a maior precisão possível, estabelecer aqui as leis do belo, do justo e do bom, caso seja necessário e, mantendo-as sob guarda, preservar as que já existem?” (VI 484c). A questão nessa passagem é que a diferença entre aquele que é cego e aquele que tem um modelo nítido em sua alma não é muito grande se este último não avançar e tornar mais preciso o conhecimento que ele tem das coisas em si mesmas, que ele deve contemplar para melhorar o modelo que possui. Sem esse conhecimento das coisas em si mesmas, sem a ciência deste saber, o paradigma se torna apenas uma opinião que pode ser vista de modo errante. Aqui ainda está em jogo a diferença entre três capacidades: ignorância, sem paradigma, opinião, com paradigma, mas sem conhecimento e ciência. Diante do exposto, é possível sustentar que a sabedoria nos ensina a seguirmos firmes na opinião de que a justiça é a melhor coisa que pode acontecer em nossa alma. Por isso, é possível que o guardião seja temperante, mas é

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do que é possível “contemplar com a maior precisão possível” que será possível encontrar a medida correta da aplicação da justiça nas leis da cidade. A capacidade de produzir os ícones do bem consolida as características próprias daquilo que é produzido visando ou pressupondo o conhecimento das coisas em si mesmas. Os ícones não mais aparecerão (phaíno) como os eídola, mas serão concebidos (eikázo), eles não serão primariamente afecções e marcas, mas poderes desenhados na alma e forma uma terceira capacidade, o pensamento (dianóia).11

No momento da fabricação dos ícones não se trata mais de uma opinião, mas de uma representação (eikázo, 488a5) ou concepção que está relacionada à outra capacidade da alma: o pensamento. Enquanto no primeiro caso, na temperança, as partes da alma possuem a opinião do que é justo em conjunto, no caso do pensamento, elas raciocinariam vendo o que está além dos ícones, sendo esta uma capacidade semelhante à dos geômetras, não ao cálculo dos geômetras, mas à persuasão de seus desenhos e gráficos.12

necessário que ele se torne filósofo para cuidar com adequação das leis da cidade.11 A questão dos ícones das virtudes emerge no livro III, quando os poetas deveriam compor “ícones do bom

caráter” (III, 401b) e isso se aprofunda no livro VI, onde Sócrates inicia as suas apresentações por meio desses ícones para explicar porque o filósofo deve governar. Deve-se aprofundar a relação disso com os ícones grafados na alma e com o vestíbulo do bem no Filebo. Em relação ao poder de Sócrates, é preciso notar que o fato dele utilizar ícones causa estranhamento, mas ainda assim grafar ou desenhar (graphein) aqui tem um sentido mais aprimorado do que o esboço (upographein) de outrora (504d-e). Por isso, o ícone do timoneiro que Sócrates compõe, serve para explicar como o conhecimento que o timoneiro tem pode ser comparado ao conhecimento que o filósofo tem. Trata-se, agora, de explanar a vida que os sábios possuem na cidade, mostrando um ícone que se dirige para a reflexão e não mais para o coração do homem, tanto que Sócrates pede que Gláucon reflita (noéo, 488a8) sobre o navio, para explicar que a fama de inutilidade do filósofo é porque o filósofo não se auto-atribui a utilidade que ele possui, cabendo à cidade procurá-lo, como se procura um médico diante da necessidade emergente.

12 É por não ser o conteúdo de uma capacidade intermediária da alma que a imagem, o ídolo ou o eídolon não pode ter um estatuto epistemológico. Julgamos que na Carta VII também não é possível sustentar isso que ela pensa, tendo em vista que a Carta VII corrobora a nossa tese de que haveria uma diferença entre o conteúdo da opinião e o conteúdo do pensamento e do saber, como há uma diferença entre imagens (eídola) e ícones (eikónes). Na Carta VII, há uma diferença entre, por um lado, a natureza temperante daquele que quer ser justo, como Díon, um “homem moderado” que pensa em fazer o “maior bem e honra que pudesse, espalhando benefícios no meio da maior grandeza pra que acontecesse o melhor”, e, por outro lado, aquele que conhece, sabe e tem ciência. No primeiro caso, de acordo com o que estamos sustentando na Politéia, temos que o eídolon da justiça que é obtido por uma alma cuja natureza é temperante é insuficiente para provar a importância do filósofo bem intencionado como Díon, na cidade. Por isso na Carta VII, temos três elementos com os quais algumas almas se satisfazem, tal como na Politéia, almas como a de Gláucon se satisfazem com a medida sem ter o conhecimento do que é. Esses três elementos que primeiro aparecem para os homens são: primeiro, o nome (que pode ser o nome de justiça); segundo, sua definição (como a de que cabe por natureza cada um exercer sua função, terceiro, imagem (eídolon) (como a imagem da justiça projetada na cidade) e, por fim, a ciência (342b). Fundamentalmente, temos algumas aproximações com a Politéia que mereceriam ser aprofundadas, tais como: i) a relação de Díon que sendo temperante pretendeu encontrar a justiça nas constituições mas não conseguiu; ii) o poder de se relacionar com os quatro modo; iii) o significado de ciência na Carta VII poderia ser associado ao pensamento científico dos geômetras da Politéia; iv) ser ridicularizado por aceitar a primeira imagem que é apresentada não seria como o ridículo de sustentar a opinião de que o bem diz respeito ao ato de ponderar (phronein) (Politéia VI 505b) ou que o fato de tentar superar o esboço das virtudes feitos no livro IV não seria ridículo se tentássemos

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A constituição filosófica e as imagens dos valores na República de Platão Diogo Norberto Mesti

Neste texto, comecei por explicar o passo VI 504, onde Platão inicia falando da diferença entre ter a medida e ter a medida sabendo o que é. Ele complementa isso explicando a diferença entre o caminho menos rigoroso que é o que o leva a uma imagem da justiça, que mostra um aspecto do que seria o aspecto visível da justiça, e o caminho mais longo, que o leva à ideia do bem. Na página seguinte, 505, fica clara a oposição entre algo que aparece e algo que é. Sócrates pergunta se não é comum muitos

escolherem como justo e belo o que eles tomam pela opinião (élointo ta dokounta) e, ainda que não fosse, mesmo assim, isso quereriam fazer, possuir e opinar que fazem e possuem? Para ninguém, entretanto, basta adquirir um bem pela opinião; ao contrário, buscam coisas existentes e, nesse caso, desprezam aquilo que consideram (dokéo) (505d).

No início de 505, Platão explica porque o “estudo mais importante é a ideia do bem”. Sócrates afirma: é porque “através dele as ações justas e outras ações se tornam úteis e proveitosas. (...). Se, porém, não a conhecemos, ainda que conheçamos as outras, isso de nada nos servirá, como quando possuímos algo sem ter o bem” (505a-b). O que está sendo discutido aqui é o que já sabemos, que tem menos valor ter a medida e ponderação (phronein), sem conhecer o que é, como ter a opinião, sem o conhecimento, tal como saber dos aspectos (eídos) da justiça, sem conhecer a (idea) do bem.

5 OS EFEITOS NA CONSTITUIÇÃO

O efeito do ícone do bem é a consolidação do poder que o homem possui de ser justo, mas não de uma justiça que tenha como preocupação apenas a sua própria saúde ou felicidade, mas de uma justiça para a cidade. Trata-se da consolidação de uma preocupação com os bens e com a justiça pública e não de uma preocupação com os bens e a justiça individual de cada um. A justiça se transforma em uma potência política quando é associada ao bem que deve guiar a constituição das cidades. Neste momento, explicaremos como Platão mostra que “a verdade sobre a utilidade” da justiça é o efeito proporcionado

tornar mais preciso o assunto mais importante (504d-e); iv) qual a relação da opinião verdadeira da Carta VII com a opinião verdadeira da Politéia que é considerada como a melhor dentre as opiniões, mas é cega, e qual a diferença da opinião verdadeira na Carta VII com as outras capacidades que superam e aprimoram a opinião verdadeira?; v) qual a relação do relâmpago que nasce na alma e se alimenta a si próprio com o fogo da fricção entre a cidade e o homem que entendemos como sendo a imagem da justiça?

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A constituição filosófica e as imagens dos valores na República de Platão Diogo Norberto Mesti

pelo conhecimento do bem, o único capaz de melhorar a justiça, transformando a capacidade interna em uma potência política.

Quando Platão diz que o filósofo deve aliar-se ao poder político, ele está dizendo que ele é quem governará melhor a construção das constituições boas. Com isso, ele expande a opinião da justiça e tenta aplicá-la à cidade, sendo imprescindível que o filósofo passe pelo bem nessa tentativa de expansão. Para consolidar a natureza que predispõe o filósofo a conhecer o bem, Platão passa a explicar a natureza do filósofo: diante “daquele cujos desejos fluem na direção do conhecimento e de tudo que lhe é similar”, Sócrates sustenta: “um homem assim é temperante” (485d).13 O filósofo deve passar pelo bem porque é o bem que tornará útil o poder da justiça que ele possui em sua alma temperante, ou seja, é o bem que tornará útil para a cidade a natureza temperante da alma do guardião enquanto ele constrói a constituição adequada.

Essa moderação fará com que o homem não possa se tornar injusto (486b), sobretudo porque essa alma incorpora a medida ajustada (emmetria, VI 486d). A grande questão é que deixar de ser injusto não é o suficiente para tomar atitudes justas em relação aos outros. Entra em cena aqui a inutilidade dos filósofos, que eu entendo como a inutilidade de uma alma que tem a opinião justa de uma alma temperante, mas que não consegue elevar essa justiça ao plano da política. O bem é o que dá utilidade à justiça e, por conseguinte, transforma a relevância do filósofo.

Grande parte do livro VI discute o risco de o filósofo se tornar inútil para a cidade se ele se preocupar apenas com a justiça em relação a si mesmo e não em relação a constituição da cidade que é comum aos homens.14 Trata-se, também, da limitação de se acreditar que a filosofia se resumiria à manutenção da temperança e da justiça apenas em relação às coisas privadas da vida do homem. O tom agora vai se modificando.

Se, no momento em que a imagem da justiça foi mencionada, o tom era de irrealização daquele tipo sonhado, agora, com o filósofo sendo ouvido pela cidade,

13 O vocabulário platônico sempre associa, no livro VI, uma natureza temperante que é coordenada pela justiça na alma com a natureza do filósofo, daquele que ama e busca o saber. Aquele que ama o saber deve ter uma opinião verdadeira a respeito da relação que sua alma deve estabelecer entre suas próprias partes. Essa é, digamos uma predisposição do filósofo que se associa a tomar a verdade com guia: pois, “quando a verdade é a guia, jamais dizemos, penso eu, que atrás dela virá um coro de males. Gláucon: como poderia? Mas um modo de ser sadio e justo ao que se segue também a temperança” (490c).

14 Num momento que parece uma crítica de Platão velada à Sócrates (em 496 b-497a), o próprio personagem Sócrates crítica os homens que por não desejarem cometer injustiça acabam se tornando inúteis para a cidade em que vivem, sem prestar serviço à cidade e “mesmo vendo os outros cheios de injustiça, ser dá por feliz, sabendo que aqui viverá sua vida isento de injustiça e de atos ímpios e daqui irá embora, sereno e benigno, levando em consideração uma bela esperança” (49d-e). A questão que lhe falta é se preocupar com a constituição da cidade. Mesmo se preocupando com a justiça, o que não é pouca coisa, isso não chega a ser também grande coisa, pois “se não tivesse conseguido a constituição adequada. Pois numa constituição adequada é que ele cresceria mais e, junto com os bens que fossem seus, salvaria também os da comunidade” (497a).

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pelo acaso de uma emergência ou porque os príncipes se interessem por filosofia, então é possível tornar a constituição antes sonhada mais concreta e plausível: “não é impossível que ela exista, nem nós estamos falando de coisas impossíveis, mesmo que se trata de algo difícil” (499d). Primeiro o sonho, depois um paradigma aplicável às leis da cidade e, por fim, a dificuldade, mas a dificuldade da sua realização por meio do bem.

Neste momento, o filósofo passa a tentar assemelhar-se ao que é divino e também inserir aos poucos nos “hábitos humanos, privados ou públicos, o que vê lá e não apenas tratar de modelar a si próprio”. Sócrates pergunta então se Gláucon acredita que “ele virá a ser um mau artesão da temperança, da justiça e do conjunto das virtudes do cidadão?” (500d-e) e a comparação com o pintor prossegue: “jamais a cidade será feliz se não a desenharem pintores que sigam o paradigma divino” (500e) enquanto elaboram a constituição. Se o eídolon da justiça era um paradigma retirado do sonho do homem e aplicado à cidade, tomando como exemplo a justiça interna da harmonia da alma do homem temperante, agora o paradigma não é mais a alma humana, mas algo divino e por isso talvez a cidade possa então ser realizada, pois agora se trata da universalidade do bem (diferente da particularidade da justiça), que deverá guiar “os esquemas da constituição” (501a) que o filósofo realizar. Com isso forma-se a base para a constituição que poderá ser chamada de filosófica.

ReferênciasPLATÃO. República. Trad. Ana Lia Amaral. SP: Martins Fontes, 2008.

PLATON. République. Introduction, trad. et notes par Georges Leroux. Paris : Flammarion, 2005.

PLATON. République (livres VI e VII). Traduction e commentaire par Monique Dixsaut. Paris : Bordas, 1986.

DIXSAUT, M. « Ousia, Eidos et Idea no Phédon ». In _______. Platon e la question de la pensée. Paris : Vrin, 2000.

KELSEN, Hans. A ilusão da Justiça. Trad. de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

_______. O problema da Justiça. Trad. de João Baptista Machado. 3a

edição. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

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Revista Online do Curso de Direito da Faculdade Sul-Americana

O SISTEMA NORMATIVO GLOBAL DOS DIREITOS HUMANOS E SEU PROCESSO DE

CONSTITUCIONALIZAÇÃO NO ESTADO BRASILEIRO

Candice Nunes Bertaso 1

A afirmação dos direitos do homem e seu processo de constitucionalização e reconhecimento desde as primeiras Declarações de direitos do século XVIII moldaram as principais instituições políticas e jurídicas contemporâneas. A afirmação dos direitos do homem passa a ser um ponto de partida para a instituição de um sistema de direitos, os quais passam a ser protegidos e positivados no âmbito do Estado que os reconhece, e acabam como direitos positivos universais concretos com a Declaração Universal de 1948.

Segundo Piovesan,

a partir da Declaração Universal de 1948, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros tratados internacionais voltados à proteção de direitos fundamentais. Forma-se o sistema normativo global de proteção dos direitos humanos, no âmbito das Nações Unidas.2

O sistema das Nações Unidas tem proporcionado um dos mais amplos sistemas de proteção às minorias,3 apesar do fato de que até o presente momento, não estar inteiramente desenvolvido e inobstante o fato de que muitos grupos minoritários e muitos direitos das minorias ainda estão fora do âmbito de proteção das provisões normativas existentes. O desenvolvimento desse sistema decorre da atuação da Liga das Nações.

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação strictu sensu - Mestrado em Direito da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), campus Santo Ângelo/RS, e bolsista CAPES/PROSUP.

2 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 3. Ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 183.3 Quando se fala em direitos das minorias, fala-se também dos direitos dos grupos vulneráveis.

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O sistema normativo global dos direitos humanos e seu processo de constitucionalização no estado brasileiro Candice Nunes Bertaso

Após a fundamentação dos direitos do homem, a preocupação maior passa a ser a de sua proteção, segundo Bobbio, o problema não seria filosófico, mas jurídico e político. 4 Assim afirma

Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garantí-los (sic), para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados. 5

O problema maior no tocante aos direitos do homem é a sua garantia, pois pode-se dizer que o seu fundamento teve solução com a “Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas, em 10 de março de dezembro de 1848”. 6 Assim, percebe-se que somente após a Declaração Universal é que toda a humanidade compartilha valores comuns, não apenas como um sistema de princípios, na medida em que o consenso sobre sua validade e capacidade de conduzir os destinos de todos os homens foi livremente aceito e explicitamente declarado, ou seja, pela primeira vez de fato, um sistema de valores é universal.

Para Bobbio

A Declaração Universal dos Direitos do Homem representa a manifestação da única prova através da qual um sistema de valores pode ser considerado humanamente fundado e, portanto, reconhecido: e essa prova é o consenso geral acerca da sua validade. 7

No momento em que são teorias filosóficas, as primeiras afirmações dos direitos do homem são expressões de um pensamento individual, isto é, são universais em relação ao conteúdo, mas são limitadas no tocante à sua eficácia, ou conforme propostas a um legislador.8

Na primeira fase, momento em que essas teorias se encontram acolhidas pelo legislador, como nas Declarações de Direitos dos Estados Norte-americanos e da Revolução Francesa, e alicerçadas em uma nova concepção de Estado, a afirmação dos direitos do homem passa a ser “o ponto de partida para a instituição de um

4 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 25.5 Idem, ibidem. p. 256 Idem, p. 26. A íntegra da Declaração Universal dos Direitos do Homem pode ser vista no site da ONU.

Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php>.7 Idem, ibidem. , p. 26.8 BOBBIO, op cit., p. 28. Esse universalismo foi uma lenta conquista e na história da formação das declarações

de direitos podem-se distinguir, pelo menos, três fases.

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autêntico sistema de direitos no sentido estrito da palavra, isto é, enquanto direitos positivos ou efetivos”. 9

Já na segunda fase, os direitos do homem passam a ser protegidos como direitos positivos, ou seja, se concretizam no âmbito do Estado que os reconhece. Nesse momento ganham no tocante à realização, mas perdem em universalidade, pois somente valem no interior desses Estados.

Assim, para Bobbio

Embora se mantenha, nas fórmulas solenes, a distinção entre direitos do homem e direitos do cidadão, não são mais direitos do homem e sim apenas do cidadão, ou, pelo menos, são direitos do homem somente enquanto são direitos do cidadão deste ou daquele Estado particular. 10

Porém, é na terceira fase que a Declaração Universal de 1948 atinge sua última etapa, “na qual a afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo, universal e positiva”. 11 Universal, segundo o mesmo autor

No sentido de que os destinatários dos princípios nela contidos não são mais apenas os cidadãos deste ou daquele Estado, mas todos os homens; positiva no sentido de que põe em movimento um processo em cujo final os direitos do homem deverão ser não mais apenas proclamados ou apenas idealmente reconhecidos, porém efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado. No final desse processo, os direitos do cidadão terão se transformado, realmente, positivamente, em direitos do homem. 12

Nota-se com essa passagem, o movimento dialético da Declaração que inicia com os direitos naturais de forma abstrata e universal, transformando-se em direitos positivos concretos particulares de um Estado, findando com uma universalidade concreta dos direitos positivos universais.

A Declaração Universal de 1948 foi aceita como norteadora do processo de crescimento da comunidade internacional, ou seja, uma comunidade de indivíduos livres e iguais 13 e não mais apenas como uma comunidade só de Estados. Ela representa o começo de um longo processo, onde ainda não se pode vislumbrar sua

9 Idem, p. 29.10 Idem, p. 30.11 Idem, ibidem. p. 30.12 Idem, ibidem, p. 30.13 BOBBIO, op. cit., p. 29. Nesse sentido, a liberdade e a igualdade “não são um dado de fato, mas um ideal a

perseguir; não são (sic) uma existência, mas um valor; não são um ser, mas um dever ser”.

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realização final, e seus princípios são proclamados como um ideal comum a ser alcançado por todas as Nações. 14

Sendo assim, ela inicia um ponto de partida no processo de proteção global dos direitos proclamados, onde a comunidade internacional e seus organismos têm como desafio não apenas a garantia de seus direitos, mas também o sucessivo aperfeiçoamento e atualização do seu conteúdo.

Para Bobbio

Este processo de ‘proliferação de direitos’ envolveu não apenas o aumento dos bens merecedores de tutela, mediante a previsão dos direitos à prestação (como os direitos sociais, econômicos e culturais), como também envolveu a extensão da titularidade de direitos. 15

Dessa forma, a ampliação do conceito de sujeito de direito, a partir da extensão da titularidade de direitos, passa “a abranger, além do indivíduo, as entidades de classe, as organizações sindicais, os grupos vulneráveis e a própria humanidade”. 16

E também no ensinamento de Piovesan Esse processo implicou ainda a especificação do sujeito de direito, tendo em vista

que, ao lado do sujeito genérico e abstrato, delineia-se o sujeito de direito concreto, visto em sua especificidade e na concreticidade de suas diversas relações. Isto é, do ente abstrato, genérico, destituído de cor, sexo, idade, classe social, dentre outros critérios, emerge o sujeito de direito concreto, historicamente, com especificidades e particularidades. Daí apontar-se não mais ao indivíduo genérica e abstratamente considerado, mas ao indivíduo ‘especificado’, considerando-se categorizações relativas ao gênero, idade, etnia, raça, etc. 17

Paralelamente ao sistema geral de proteção, constitui-se o sistema especial de proteção. No Brasil, tal processo de especificação do sujeito de direito ocorreu de fato com a Constituição Brasileira de 1988, isto é, nela encontram-se dispositivos específicos em relação à criança, ao adolescente, ao idoso, aos índios, às mulheres, à população negra, às pessoas com deficiência, etc,18 consolidando-se assim, o valor da igualdade com respeito à diferença e à diversidade no ordenamento jurídico interno, como também no Direito Internacional.

14 Idem, p. 31.15 Idem, p. 70.16 PIOVESAN, op. cit., p. 185.17 Consolida-se, gradativamente, um aparato normativo especial de proteção endereçado à proteção de pessoas

ou grupos de pessoas particularmente vulneráveis, que merecem proteção especial. Os sistemas normativos internacional e nacional passam a reconhecer direitos endereçados às crianças, aos idosos, às mulheres, às pessoas com deficiência, às pessoas vítimas de discriminação racial, dentre outros. Idem, ibidem. p.185.

18 Nesse rol de proteção temos os direitos das minorias ou como é chama Bobbio, dos grupos vulneráveis.

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O sistema normativo global dos direitos humanos e seu processo de constitucionalização no estado brasileiro Candice Nunes Bertaso

Os assuntos que mais preocupam os grupos minoritários ou vulneráveis são abordados em vários pactos, convenções, tratados e outros atos internacionais, ao lado de decisões do Comitê de Direitos Humanos, formando o conjunto de instrumentos de proteção aos direitos das minorias.

No âmbito das Nações Unidas, a provisão normativa mais relevante é o artigo 27 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos, que dispõe:

Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua. 19

O artigo 27 do pacto recebe críticas por não referir-se a todas as minorias, protegendo apenas as minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas. Embora não tendo força vinculante, nem a imperatividade normativa de um tratado, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou, através de sua Resolução 47/135, a 18 de Dezembro de 1992, uma Declaração dos Direitos das Pessoas Pertencentes às Minorias Étnicas, Religiosas e Lingüisticas.20 Os direitos elencados na Declaração, contudo, são considerados como explicitação do artigo 27, do Pacto dos Direitos Civis e Políticos mencionado acima.

Não há um conjunto de direitos aos quais os grupos minoritários sejam mais fortemente vinculados. Entretanto, é comumente aceito que os princípios de igualdade e não-discriminação são requeridos para informar o regime que governa os direitos das minorias. 21 Tais princípios regem a fruição de todos os direitos reconhecidos a cada um pelo Pacto dos Direitos Civis e Políticos ou qualquer outro tratado, pacto, convenção ou ato internacional, pela constituição ou outra norma infraconstitucional.

No plano global, vários tratados de direitos humanos têm expressamente proibido aos Estados-parte qualquer restrição ou derrogação aos direitos reconhecidos ou

19 PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS. O Comitê de Direitos Humanos, órgão de monitoramento instituído pelo Pacto dos Direitos Civis e Políticos, das Nações Unidas, declara que o artigo 27 protege todas as pessoas pertencentes aos grupos minoritários, e tais pessoas ou indivíduos não precisam ser cidadãos do Estado parte. E ainda: o Estado parte não pode restringir os direitos contidos no artigo 27 unicamente a seus cidadãos.

20 DECLARAÇÃODOS DIREITOS DAS PESSOAS PERTENCENTES ÀS MINORIAS ÉTNICAS, RELIGIOSAS E LINGÜÍSTICAS. Aprovada pela resolução 47/135 da Assembléia Geral da ONU de 18 de dezembro de 1992. Disponível em: < http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/discrimina/dec92.htm>. Ver artigos 1º ao 8º no Anexo A.

21 Não havendo tal conjunto mínimo de direitos, alguns direitos básicos são conferidos a minorias, tais como: direito à existência, direito à identidade e direito à medidas positivas. O direito das minorias não está confinado aos mencionados anteriormente. As minorias têm direito de gozar todos os demais direitos humanos, como quaisquer outras pessoas. Como esses últimos serão implementados é que pode variar, precisamente para atender às exigências de garantir a igualdade nos fatos.

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vigentes neles, em virtude de outras convenções, leis, regulamentos ou costumes menos propícios à obtenção de qualquer direito assegurado pelo Estado. O próprio Pacto de Direitos Civis e Políticos em seu artigo 5º, 2, dispõe:

Não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado parte do presente Pacto em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau.

Da mesma forma, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher adverte no seu artigo 23, que:

Nada do disposto nesta Convenção prejudicará qualquer disposição que seja mais propícia à obtenção da igualdade entre homens e mulheres e que esteja contida: a) Na legislação de um Estado-Parte; ou b) Em qualquer outra convenção, tratado ou acordo internacional vigente nesse Estado. 22

Por fim, no mesmo sentido a Convenção sobre os Direitos da Criança, em seu artigo 41, também estabelece que, nada do que nela foi estipulado “afetará as disposições que sejam mais convenientes para a realização dos direitos da criança e que podem constar: a) das leis de um Estado-parte; b) das normas de Direito internacional vigentes para esse Estado”. 23

O artigo 5º, 2, do Pacto de Direitos Civis e Políticos, como destaca Weis,

possui uma particular relevância, ‘pois cria uma regra de inteligência para os direitos estatuídos nos tratados internacionais de direitos humanos, a ordenar que a interpretação de suas prescrições deve ser a mais ampliativa possível, de modo a lhes conferir eficácia máxima’, de sorte que, ‘se uma norma de direito interno definir determinado direito de maneira mais abrangente ou melhor garantir seu gozo, deve prevalecer sobre o Pacto’, e, a contrariu sensu, ‘prevalece a norma do tratado internacional quando esta for a que consagre de modo mais ampliado o direito fundamental’ [grifo do autor]. 24

Seguindo a mesma linha, temos no plano regional, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 29, b e d) oriundo do Pacto de San José da Costa

22 BRASIL. Decreto- Legislativo n. 4.377 de 13 de setembro de 2002. Promulga a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, e revoga o Decreto nº. 89.460, de 20 de março de 1984. In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4377.htm.

23 CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA. Adotada pela Resolução nº. L. 44 (XLIV) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989 e ratificada pelo Brasil em 20 de setembro e 1990. In: <http://www.onu-brasil.org.br/doc_crianca.php>.

24 WEIS, Carlos. Direitos humanos contemporâneos. São Paulo: Malheiros Editores, 1999. p. 31.

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Rica, e o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (art. 4º), que decorre do Protocolo de San Salvador. No continente americano e no europeu não é diferente, temos a Convenção Européia de Direitos Humanos (art. 60), a Convenção Européia para Prevenção da Tortura e Tratamento ou Punição Desumana ou Degradante (art. 17, 1) e por fim, a Carta Social Européia (art. 32). Todas essas declarações consagram o Princípio da Primazia dos Direitos Humanos.

A ONU preocupou-se também com a questão indígena, aprovando a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas. O seu texto, extremamente avançado, reflete o conjunto das reivindicações atuais dos povos indígenas em todo o mundo acerca da melhoria de suas relações com os Estados nacionais. Os princípios contidos na declaração são, a igualdade de direitos, a proibição de discriminação, o direito à autodeterminação e a necessidade de fazer do consentimento e do acordo de vontades, o referencial de todo o relacionamento entre povos indígenas e Estados . 25

Nesse tocante, a universalidade dos direitos humanos consolida-se, na Constituição Brasileira de 1988, a partir do momento em que ela consagra a dignidade da pessoa humana como núcleo informador da interpretação de todo o ordenamento jurídico, tendo em vista que a dignidade é inerente a toda e qualquer pessoa, sendo vedada qualquer discriminação.

A Constituição de 1988 instituiu um Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos individuais e sociais, tendo como a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade justa, fraterna, pluralista e sem preconceitos (preâmbulo).

Tal Estado Democrático de Direito é ainda fundamentado na cidadania, na dignidade da pessoa humana, e no pluralismo político (art. 1º, II, III e V) como já visto, tendo como objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e a promoção de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, I e IV). Tudo isto sendo reforçado pelos princípios constitucionais da prevalência dos direitos humanos e repúdio ao racismo (art. 4º, II e VIII), os quais são formulados no contexto da carta de direitos constitucionais, sob o título, Direitos e Garantias Fundamentais. 26

25 A resistência dos povos indígenas na reivindicação de seus direitos no âmbito internacional chegou a bom termo no dia 13 de setembro de 2007, em Nova Iorque: a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a Declaração das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas. Este serve para estabelecer parâmetros mínimos à outros instrumentos internacionais e leis nacionais. Disponível em: <http://pib.socioambiental.org/pt/c/direitos/internacional/declaracao-da-onu-sobre-direitos-dos-povos-indigenas>.

26 Assim, quando a Constituição dispõe em seu art. 4º, II, que a República Federativa do Brasil rege-se, nas suas relações internacionais, pelo princípio da prevalência dos direitos humanos, está autorizando a incorporação desses direitos pela porta de entrada do seu art. 5º, § 2º, que, como já foi visto, tem o caráter de cláusula aberta

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O conceito de democracia pluralista envolve toda a substância da Constituição, e seus princípios informam como suas provisões devem ser interpretadas. Devido ao princípio da unidade da Constituição, o intérprete tem de considerar as normas constitucionais em seu conjunto, globalmente, conciliando as tensões existentes. Assim, é à luz desses preceitos constitucionais que os artigos 215 e 216 da Constituição, 27 que tratam de cultura e direitos culturais, merecem ser abordados. Os artigos em referência trazem a seguinte redação:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, 28 e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.§ 1.º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.§ 2.º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:I - as formas de expressão;II - os modos de criar, fazer e viver;III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

§ 1.º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.§ 2.º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.§ 3.º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais.§ 4.º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.

à inclusão de novos direitos e garantias individuais provenientes de tratados.27 O artigo 215 deve ser analisado em conjunto com o artigo 216, de modo a compreender o quadro geral em que

estão inseridos a cultura e os direitos culturais. 28 A expressão cultura nacional deve ser interpretada da mesma forma como a expressão patrimônio cultural

brasileiro é entendida, ou seja, como contribuição cultural de todos os povos e grupos participantes do processo civilizatório brasileiro [grifo nosso].

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§ 5.º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.

Esse conjunto de direitos integra os chamados direitos culturais. Eles não estão expressamente mencionados na Constituição ao lado dos direitos sociais, no Capítulo dos Direitos e Garantias Fundamentais. Mas estão no Título VIII - Da Ordem Social, no Capítulo III, ao lado da Educação. Os direitos culturais têm a mesma natureza dos direitos sociais, merecendo a mesma proteção e aplicação. Sendo expressão de uma sociedade plural e sob o modelo ditado pela Constituição de 1988, o Estado não consagra nenhuma cultura como sendo superior, cujos padrões e características todos os demais membros têm de assimilar. Ao contrário, pela primeira vez uma Constituição no Brasil reconheceu a contribuição cultural dos diferentes segmentos étnicos, e os considerou em pé de igualdade com a sociedade envolvente. E não foi apenas uma referência incidental, mas essa contribuição cultural é o foco principal da ação e da memória dos grupos, e encontra-se incluída na proteção do capítulo sobre cultura, não sendo, entretanto, considerada como inferior dada à relevância que assumem para as minorias envolvidas. 29

Os artigos 215 e 216 reconhecem os direitos lingüísticos, pois a língua como forma de expressão está incluída entre os bens imateriais pertencentes a grupos sociais majoritários ou minoritários, que compõem o patrimônio cultural brasileiro. Disso decorre que, sendo reconhecida como um direito desses grupos há de ter um conteúdo mínimo merecedor de respeito. Entretanto, não há expresso como integrando esse conteúdo, o direito a usar essa língua em público ou perante a administração e às autoridades públicas, nem mesmo perante os órgãos do Poder Judiciário. 30

Mas também não há nenhuma vedação a seu uso privado ou em público. Além disso, a Constituição garante aos índios (artigo 210, § 2.º) o ensino fundamental regular a ser ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também, a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Pelo princípio da isonomia, as demais minorias étnicas, lingüísticas e religiosas têm o mesmo direito, já que não pode haver discriminação entre as minorias em si.

Em relação ao reconhecimento dos direitos da população indígena, houve um grande avanço com a Constituição de 1988. No seu capítulo VIII, art. 231, dispõe que:

São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

29 No Estado brasileiro, os direitos das minorias são considerados direitos coletivos.30 Se só souber se expressar nessa sua língua particular, terá direito a um intérprete.

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§ 1.º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios, e dos lagos nestas existentes. § 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada a participação nos resultados da lavra, na forma da lei. § 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. § 5º É vedada a remoção de grupos indígenas de suas terras, salvo ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese o retorno imediato logo que cesse o risco. § 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvando relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção do direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto à benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. § 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, §§ 3º e 4º art. Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo. Título IX. Das disposições constitucionais gerais. Art. 67. A união concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição. 31

Essas disposições consagram um dos maiores avanços na legislação comparada e está diretamente relacionada aos direitos dos indígenas. Seus direitos originários são reconhecidos como permanentes por sua condição de primeiros e contínuos ocupantes históricos de suas terras. Sendo que elas são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. 32

31 BRASIL. Constituição. Brasília: Senado Federal, 1988.32 Ver artigos 231,§4º da CF/88.

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Em face das reivindicações indígenas, 33 vários setores brasileiros e internacionais ofereceram apoio, tal como foi manifestado na Assembléia Constituinte de 1988, onde a discussão se estendeu dos foros estaduais, em que prevaleciam interesses locais contrários às reivindicações indígenas, para o nível nacional, em que a defesa dos seus direitos foi apoiada por outros grandes setores sociais. 34

No nosso ordenamento jurídico, afora os direitos e garantias constitucionais, existem normas infraconstitucionais de proteção aos direitos das minorias. Como por exemplo, a Lei nº. 2.889/56 de prevenção ao genocídio; a Lei nº. 7.716/89 que criminaliza condutas decorrentes de preconceito e discriminação; e também a Lei nº. 6.001/73 que disciplina os direitos dos índios, juntamente com a Lei nº. 5.371/67, a qual institui a FUNAI 35.

Importante mencionar ainda, a proteção da mulher na Lei nº. 11.340/06 (Lei Maria da Penha); a proteção do idoso na Lei nº. 10.741/03 (Estatuto do Idoso); a proteção do negro na Lei nº. 7.716/89 (Lei contra o crime de racismo); e também, a proteção da criança e do adolescente na Lei nº. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

No entanto, como a Constituição de 1988 fundamentou o processo de institucionalização dos direitos humanos no Brasil, reconheceu os tratados internacionais de proteção desses direitos em nível constitucional dando-lhes aplicação imediata, não pode permitir nenhum tipo de violação a essas normas devidamente incorporadas no ordenamento jurídico.

Nesse sentido, Trindade salienta

A incorporação da normativa internacional de proteção no direito interno dos Estados constitui alta prioridade em nossos dias: pensamos que, da adoção e aperfeiçoamento de medidas nacionais de implementação depende em grande parte o futuro da própria proteção internacional dos direitos humanos. Na verdade, como se pode depreender de um exame cuidadoso da matéria, no presente domínio de proteção o direito internacional e o direito interno conformam um todo harmônico: apontam na mesma direção, desvendando o propósito comum de proteção da

33 Fundamentado no princípio de ocupação territorial, o Plano Calha Norte, a partir de 1987, segundo princípios militares de segurança, almejou reduzir os grandes territórios contíguos dos índios. Pretendiam excluí-los de uma faixa de segurança de 62 km a partir das fronteiras e enfatizar a classificação dos indígenas em ‘silvícolas’ e ‘aculturados’, com diferentes direitos segundo cada categoria. Em relação aos ‘aculturados’, as obrigações do Estado desapareciam ou, ao menos, eram sensivelmente reduzidas. REDE BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS. Os Direitos Humanos dos Povos Indígenas do Brasil. Disponível em: < http://www.dhnet.org.br/educar/redeedh/bib/oea97.htm> .

34 Referente à declaração de direitos dos povos indígenas, a ONU elaborou a “Minuta de Declarações dos Direitos Indígenas”. Disponível: <http://pib.socioambiental.org/pt/c/politicas-indigenistas/saude-indigena/novos-horizontes> .

35 A Fundação Nacional do Índio (FUNAI) é o órgão do Governo Federal brasileiro que estabelece e executa a política indigenista no Brasil, dando cumprimento ao que determina a Constituição brasileira de 1988.

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pessoa humana. As normas jurídicas, de origem tanto internacional como interna, vêm socorrer os seres humanos que têm seus direitos violados ou ameaçados, formando um ordenamento jurídico de proteção. O direito internacional e o direito interno aqui se mostram, desse modo, em constante interação, em benefício dos seres humanos protegidos. 36

Dessa forma, no presente domínio de proteção, direito internacional e direito interno estão em constante interação, conformando-se num todo harmônico no que tange à proteção dos direitos humanos. Não se pretende, por conseguinte, dar primazia a um ou a outro, mas sim à norma que no caso mais proteja os direitos das pessoas protegidas. Por esse motivo, é irrelevante no que toca à proteção dos direitos humanos, o estudo do conflito de normas entre direito internacional e direito interno, tendo em vista que a solução consagrada em inúmeros tratados de proteção dos direitos humanos é a de se escolher a norma mais favorável às vítimas de violações de direitos.

Nos Estados multinacionais, as minorias nacionais reclamam certos atributos de independência, ou seja, elas defendem seus direitos culturais, especialmente o direito de usar sua própria língua, na escola e na via administrativa. Segundo Touraine

A novidade é que grupos definidos em termos de nação, etnia ou religião, que só tinham existência na esfera privada, adquirem agora uma existência pública às vezes suficientemente forte para questionar sua pertença a determinada sociedade nacional. 37

Isto acontece porque há Estados que se recusam a reconhecer a existência destas

minorias. Entretanto, é no espaço cultural que acontece os principais conflitos e reivindicações, acarretando no reforço das comunidades étnicas e consequentemente no enfraquecimento das comunidades nacionais.

Os direitos culturais das minorias forçam uma reflexão nas democracias, no sentido de se transformarem para reconhecer tais direitos, como ocorreu no reconhecimento dos direitos sociais dos cidadãos. Assim, percebe-se que os direitos culturais estão ligados positivamente aos direitos políticos e, portanto, à cidadania.

Segundo Touraine

Esta categoria, a cultural, parece à primeira vista bastante heterogênea: a dependência cultural diz respeito primeiramente aos países mais dependentes, mas também às minorias étnicas, religiosas ou sexuais. Ela é mais visível ainda nas

36 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997, p. 401-402.

37 TOURAINE, Alain. Um Novo Paradigma: para compreender o mundo de hoje. Petrópolis: Vozes, 2006. p. 169.

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grandes cidades, onde graves ameaças pesam sobre o meio ambiente. E enfim, e talvez sobretudo, sua maior visibilidade está nas reivindicações das mulheres, que querem fazer reconhecer sua dupla exigência de igualdade e de diferença, na medida em que esta exigência é portadora de uma mudança mais profunda do que aquelas mudanças às quais nos acostumou a sociedade industrial. 38

É significativo saber que os direitos culturais por mais que se encontrem ligados positivamente aos direitos políticos, não podem ser considerados extensão destes direitos, ou seja, os direitos políticos devem ser conferidos a todos os cidadãos, enquanto os direitos culturais protegem populações determinadas. 39 Nota-se que em relação aos direitos culturais, não mais se trata do direito de ser como os outros, mas sim de ser outro, ou seja, trata-se do direito de ajustar uma diferença cultural com a participação em um sistema econômico mundializado.

Há a necessidade de se estabelecer uma ligação entre as diferentes culturas e a modernidade, 40 pois esta se define por valores universais, sendo assim, propostas novas se encontram no reconhecimento de diversas culturas, quer se refira à religião, à língua ou à vestuário. Dessa maneira, em um mundo cujo movimento é acelerado, o reconhecimento do pluralismo das culturas é uma necessidade.

Touraine afirma que

Concretamente, não podemos reconhecer direitos culturais a não ser com a condição de que seja aceito aquilo que nós reconhecemos como nossos princípios fundamentais, ou seja, a crença no pensamento racional e a afirmação de que existem direitos pessoais que nenhuma sociedade, nenhum Estado tem o direito de transgredir. 41

Pode-se afirmar que quanto mais a globalização, os intercâmbios internacionais e especialmente as migrações aumentarem, mais se faz necessário o ajuste entre o reconhecimento do outro, o apego ao racionalismo e à afirmação dos direitos individuais.

Touraine diz ainda

38 Idem, p. 171. 39 “É o caso dos mulçumanos, que exigem o direito de fazer o ramadã, e também dos gays e lésbicas que reclamam

o direito de casar”. Idem, p. 171. 40 Para Touraine, o conceito de modernidade e de modernização não é sinônimo. Modernidade se define por

princípios de alcance universal, isto é, possui como elementos o pensamento racional e os direitos do indivíduo. E modernização estabelece a idéia de uma particularidade e mesmo da singularidade de cada sociedade em mutação, e já que as duas noções não podem ser nem confundidas e nem separadas uma da outra, é também impossível definir uma sociedade como puramente universalista senão por sua pura singularidade. Idem, ibidem. p. 189.

41 Trata-se aqui do fundamento da democracia na sociedade moderna. Idem, ibidem. p. 187.

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Ao enunciar a existência deste núcleo central da modernidade, não se trata de eliminar as outras culturas, quer se afirmem fora ou dentro de nossa sociedade, mas apenas de saber em que condições podem ser compatíveis os princípios fundamentais da modernidade com a diversidade das culturas e de suas formas de intervenção na vida pessoal e coletiva. 42

No entanto, se os direitos culturais do indivíduo ou da coletividade precisam ser reconhecidos, isso se faz na medida em que haja a necessidade de proteção de todos os caminhos de modernização. 43 Apenas se pode falar em direitos culturais quando condutas culturais e sociais demandam reconhecimento em nome de princípios universalistas, ou seja, “em nome do direito de cada indivíduo de praticar sua cultura, sua língua, sua religião, suas relações de parentesco, seus hábitos alimentares etc.”. 44

Nesse sentido, para Bertaso

[...] é preciso reconhecer que vivemos, na maioria dos casos, em sociedades multiculturais, compostas de uma pluralidade de modos-de-ser no mundo, o que instiga a reflexão a respeito das dificuldades de sustentar a ideia de cidadania e de identidades comuns sem a devida consideração das singularidades excluídas, esquecidas ou não reconhecidas desde o projeto moderno.45

Em sociedades em que os direitos humanos determinam os limites do exercício do poder e da autoridade constituída, vai sendo superado o modelo de Estado nacional, consolidado no século XIX e XX. Nesse sentido, os Estados-nação defrontam-se com um conjunto de problemas, que sugerem a criação de meios de cooperação mútua – internas e externas – para que se possibilite a construção de soluções efetivas a questões relativas às minorias, às etnias, aos gêneros e ao meio ambiente, que transcendem localidades e fronteiras, e se fazem a partir de movimentos locais/globais.

Nessa perspectiva, observa-se a necessidade de um diálogo entre os diversos grupos para que se possibilite o reconhecimento a partir de vínculos comuns

42 Idem, ibidem, p. 187.43 “Esta separação e esta complementaridade entre a modernidade e as modernizações, não leva somente a

compreender e respeitar culturas diferentes, com a condição de que estas reconheçam princípios gerais, como a prática do pensamento racional e o respeito dos direitos individuais, sem o que a comunicação intercultural é impossível”. [grifo do autor] TOURAINE, op. cit., p. 200.

44 Somente a partir do momento em que a oposição a uma cultura central definida como universalista provêm de culturas minoritárias, condenadas pelos que se identificam com o universalismo, é que o conflito se torna inevitável. Idem, p. 190.

45 BERTASO, João Martins; SANTOS, André Leonardo Copetti. Cidadania e direitos culturais: a tutela judicial das minorias e hipossuficientes no Brasil. Santo Ângelo: FURI, 2013.p. 8.

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que demandam por direitos e por dignidade. Como fica evidenciado que se vive um período de demandas pela diversidade, como uma nova etapa civilizatória de construção da democracia, própria da dinâmica dos direitos humanos. È necessário que se crie condições para que esta democracia se vincule à busca da igualdade simultaneamente ao reconhecimento da diversidade de segmentos distintos.

Por fim, diante destas condições, sabendo que o sistema geral de proteção conjuntamente com o sistema especial de proteção, forma o sistema global de proteção aos direitos humanos. E como o conceito de democracia pluralista envolve toda a substância da Constituição, e esta diz que a dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil, rege-se nas suas relações internacionais pelo princípio da prevalência dos direitos humanos e institui o Estado Democrático de Direito, este tem a obrigação de assegurar os direitos e garantias fundamentais, pois quando os consagra como valores primordiais, cabe ao Estado a concretização desses direitos.

ReferênciasBOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

BERTASO, João Martins; SANTOS, André Leonardo Copetti. Cidadania e direitos culturais: a tutela judicial das minorias e hipossuficientes no Brasil. Santo Ângelo: FURI, 2013.

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BRASIL. Decreto Legislativo nº. 56, de 19 de abril de 1995. Aprova os textos do Protocolo sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de São Salvador) adotado em São Salvador, em 17 de novembro de 1988, e do Protocolo referente à Abolição da Pena de Morte, adotado em Assunção, Paraguai, em 8 de junho de 1990. In: <http://www.aids.gov.br/legislacao/vol1_5.htm >.

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O sistema normativo global dos direitos humanos e seu processo de constitucionalização no estado brasileiro Candice Nunes Bertaso

Adotada pela Resolução nº. L. 44 (XLIV) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989 e ratificada pelo Brasil em 20 de setembro e 1990. In: <http://www.onu-brasil.org.br/doc_crianca.php>.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração das Nações Unidas Sobre Direitos dos Povos Indígenas. Disponível em: http://pib.socioambiental.org/pt/c/direitos/internacional/declaracao-da-onu-sobre-direitos-dos-povos-indigenas>.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração dos Direitos das Pessoas Pertencentes às Minorias Étnicas, Religiosas e Lingüísticas. Aprovada pela resolução 47/135 da Assembléia Geral da ONU de 18 de dezembro de 1992. Disponível em: < http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/discrimina/dec92.htm>.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos do Homem. Aprovada pela Assembléia-Geral das nações Unidas, em 10 de março de dezembro de 1848. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php>.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Disponível em: < http://www.aids.gov.br/legislacao/vol1_2.htm>.

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PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 3. Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

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Revista Online do Curso de Direito da Faculdade Sul-Americana

CONFIGURAÇÃO DA GUERRA FISCAL NOS ESTADOS E MUNICÍPIOS BRASILEIROS

Camila Gomes Delalibera1

1 INTRODUÇÃO

Entende-se por guerra fiscal a concorrência entre as entidades subnacionais de um Estado federado no sentido de atrair para si a alocação de recursos privados por meio da concessão de benefícios. Estes podem se apresentar na forma de benefícios fiscais, financeiros, financeiro-fiscais e/ou de infra-estrutura para as empresas que tencionem se transferir ou investir no território do Estado ou Município concedente.

A guerra fiscal representa uma corrupção do federalismo, na medida em que rompe com o cooperativismo esperado nesta forma de Estado.

No Brasil, a instabilidade do pacto federativo deve-se à vigência de um unitarismo disfarçado e pela dificuldade de composição dos interesses regionais (políticos, econômicos e sociais), o que resulta em um cenário de intenso desequilíbrio econômico entre as regiões.

A guerra fiscal no país, no moldes como a conhecemos hordienamente, remonta ao processo de redemocratização do país, especialmente com a promulgação da Constituição de 1988, que em capítulo destinado ao Sistema Tributário Nacional, deu nova roupagem à distribuição das competências tributárias, conferindo maior autonomia aos Estados e Municípios.

Na década de 90, a adoção de uma postura neoliberalista por parte do governo brasileiro culminou na retirada do poder público federal das ações de promoção do desenvolvimento regional, sendo que a ausência de políticas públicas somente agravou as desigualdades já existentes.

1 Advogada especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás.

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Configuração da guerra fiscal nos estados e municípios brasileiros Camila Gomes Delalibera

Neste mesmo período, a abertura do mercado interno às empresas multinacionais acirrou a guerra fiscal no país. Diante da discrepância das condições econômicas regionais, a única forma encontrada pelos Estados menos desenvolvidos vencerem a óbvia atratividade dos grandes centros econômicos foi a concessão de benefícios e incentivos.

Com efeito, a conquista da instalação de uma grande empresa aumenta a oferta local de empregos e atrai indústrias fornecedoras, expandindo a renda da região. Contudo, os principais impactos da renúncia fiscal são o comprometimento das finanças, o aumento da dependência das transferências intergovernamentais e a falta de recursos para a promoção de melhorias e investimentos em infra-estrutura. Destarte, ao final deste processo, os Estados mais desenvolvidos continuam a exercer maior atratividade, pois não é possível que Estados menores, a médio e longo prazo, continuem a fazer concorrência a economias mais pujantes.

Ademais, no âmbito empresarial, os efeitos da guerra fiscal também são nefastos, haja vista que ao se privilegiar somente as grandes empresas e multinacionais, se atinge diretamente as médias e pequenas empresas, o que acarreta a diminuição da concorrência e o aumento da economia informal.

Assim, verifica-se que a responsabilidade pela guerra fiscal não pode ser atribuída somente aos Estados ou municípios. Sua principal causa é a falta de planejamento e coordenação por parte da União no sentido de promover políticas de desenvolvimento regional e de cooperação entre os entes federados, ou seja, a falta de efetividade do federalismo cooperativo estabelecido pela Constituição.

O presente trabalho tem por escopo traçar uma breve análise sobre a configuração da guerra fiscal nos Estados e Municípios brasileiros e pontuar algumas propostas para o equacionamento da questão.

A pesquisa epigrafada adotou como principal método de abordagem o dialético, baseando-se na contra-argumentação para verificar com mais rigor os objetos de análise.

Como técnica de pesquisa, utilizou-se a revisão bibliográfica, calcada na análise de artigos acadêmicos, doutrina especializada e jurisprudência pertinente.

O estudo está estruturado em duas partes, sendo a primeira constituída pela análise da Guerra Fiscal nos Estados e da “Guerra dos Portos”; e a segunda pela observação da Guerra Fiscal nos Municípios.

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2 A GUERRA FISCAL NOS ESTADOS

A renúncia fiscal por parte dos Estados ocorre precipuamente com a isenção do ICMS - imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transportes interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior.

O ICMS foi criado como um imposto neutro, de cunho eminentemente fiscal, objetivando fornecer recursos para que Estados e Municípios possam fazer face às suas despesas. Ele não pode ser usado isoladamente pelos Estados e pelo Distrito Federal como instrumento regulador da economia, pois não é imposto de atuação extrafiscal e, por isso, as suas alíquotas têm seu teto fixado pelo Senado Federal e as isenções dependem de convênio, conforme a Lei Complementar n. 24, de 1975.

No que tange à necessidade de convênio para a concessão de isenções, o artigo 155, inciso XII, alínea g da Constituição Federal dispõe caber à lei complementar “regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados”.

Com efeito, a Lei Complementar n. 24, de 19752 disciplina o supracitado dispositivo, conferindo ao CONFAZ o mister de deliberar sobre a concessão de benefícios tributários acerca do ICMS.

O CONFAZ é um órgão deliberativo colegiado formado por um representante de cada Estado e do Distrito Federal e por um representante da União. A concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados nesse fórum, consoante o § 2º do art. 2º da LC n. 24/75, o que provoca grandes entraves para uma efetiva implementação de políticas de federalismo cooperativo para a redução das desigualdades regionais, haja vista que as disputas econômicas entre os Estados federados torna impossível a obtenção de uma decisão unânime.

Diante da imposição de obtenção de unanimidade nas votações, tornou-se comum no Brasil a concessão de benefícios fiscais à margem do CONFAZ. A grande maioria dos Estados adota normas de incentivo ao setor produtivo que foram estabelecidas sem a aprovação do órgão e, portanto, ao alvedrio do que preceitua a Constituição Federal3.

O desrespeito à regra contida na LC 24/75, além de ofender a Constituição Federal, tem maculado a credibilidade da Suprema Corte brasileira, pois, não obstante as reiteradas decisões do Tribunal Pleno declarando a inconstitucionalidade

2 A Lei Complementar n. 24, de 1975, apesar de anteceder a Constituição atual, foi recepcionada por força do disposto no artigo 34, § 8º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

3 Cf. CALCIOLARI, Aspectos jurídicos da guerra fiscal no Brasil.

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do citado fenômeno, os Estados continuam a exercitar tal prática4. Os julgados abaixo corroboram o cenário denunciado, in verbis:

EMENTA: INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Lei nº 11.393/2000, do Estado de Santa Catarina. Tributo. Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS. Benefícios fiscais. Cancelamento de notificações fiscais e devolução dos correspondentes valores recolhidos ao erário. Concessão. Inexistência de suporte em convênio celebrado no âmbito do CONFAZ, nos termos da LC 24/75. Expressão da chamada “guerra fiscal”. Inadmissibilidade. Ofensa aos arts. 150, § 6º, 152 e 155, § 2º, inc. XII, letra “g”, da CF. Ação julgada procedente. Precedentes. Não pode o Estado-membro conceder isenção, incentivo ou benefício fiscal, relativos ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS, de modo unilateral, mediante decreto ou outro ato normativo, sem prévia celebração de convênio intergovernamental no âmbito do CONFAZ (STF, Tribunal Pleno, ADI 2345 / SC, Rel. Min. Cezar Peluso, d.j. 30/06/2011).

EMENTA: 1. INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Objeto. Admissibilidade. Impugnação de decreto autônomo, que institui benefícios fiscais. Caráter não meramente regulamentar. Introdução de novidade normativa. Preliminar repelida. Precedentes. Decreto que, não se limitando a regulamentar lei, institua benefício fiscal ou introduza outra novidade normativa, reputa-se autônomo e, como tal, é suscetível de controle concentrado de constitucionalidade. 2. INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Decreto nº 27.427/00, do Estado do Rio de Janeiro. Tributo. Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS. Benefícios fiscais. Redução de alíquota e concessão de crédito presumido, por Estado-membro, mediante decreto. Inexistência de suporte em convênio celebrado no âmbito do CONFAZ, nos termos da LC 24/75. Expressão da chamada “guerra fiscal”. Inadmissibilidade. Ofensa aos arts. 150, § 6º, 152 e 155, § 2º, inc. XII, letra “g”, da CF. Ação julgada procedente. Precedentes. Não pode o Estado-membro conceder isenção, incentivo ou benefício fiscal, relativos ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, de modo unilateral, mediante decreto ou outro ato normativo, sem prévia celebração de convênio intergovernamental no âmbito do CONFAZ (STF, Tribunal Pleno, ADI 3664 / RJ, Rel. Min. Cezar Peluso, d.j. 01/06/2011).

Nesse diapasão, insta mencionar que a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) de n. 198 visa a combater exatamente a exigência

4 Pronunciando-se sobre o assunto, Ives Gandra da Silva Martins declarou que “causa perplexidade que os Estados proponentes de ações diretas de inconstitucionalidades providas pelo Supremo Tribunal Federal não ingressem com reclamações nessa mesma Corte a cada nova lei contrária que reedite os incentivos já reconhecidos como inconstitucionais, pedindo a sustação imediata de seus efeitos - o que pode ser decidido até mesmo monocraticamente pelo ministro que receber o pedido, à luz das decisões anteriores. (...) Os Estados prejudicados, como Minas Gerais e São Paulo, omitem-se ao não questionar perante o Supremo Tribunal Federal a validade desses diplomas normativos. O que é ocorre por simples conveniência política, uma vez que não se acredita que a inação decorre do fato desses Estados também concederem benefícios irregulares”.

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de prévio consentimento unânime do CONFAZ na edição de benefícios fiscais. O que se pede na ADPF é que o STF afaste a imposição contida no § 2º do artigo 2º da LC 24/75, sendo que, julgado procedente o pedido, a aprovação de benefícios no CONFAZ se submeteria a um quorum simples, o que alteraria toda sistemática atual para edição de benefícios no Brasil e, provavelmente, colocaria fim à Guerra Fiscal entre os Estados.

Outro fator para o esvaziamento do CONFAZ refere-se à debilidade das sanções previstas no parágrafo único do art. 8º da Lei Complementar nº 24 - presunção de irregularidade das contas correspondentes ao exercício, a juízo do Tribunal de Contas da União, e a suspensão do pagamento das quotas referentes ao Fundo de Participação, ao Fundo Especial e aos impostos referidos nos itens VIII e IX do art. 21 da Constituição Federal, que são incompatíveis com a Lei de Responsabilidade Fiscal5.

O efetivo cumprimento da Lei Complementar n. 24 já seria bastante para por fim à guerra fiscal estadual. O seu não-cumprimento e o esvaziamento do CONFAZ estimulam uma situação de animosidade entre os Estados federados, prejudicando o pacto federativo cooperativo.

Nessa esteira, convém trazer à colação o verbete referente à proposta de Súmula Vinculante de n. 69, que visa a conferir efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário quanto à declaração de inconstitucionalidade de benefícios fiscais concedidos à margem do CONFAZ, senão vejamos:

Qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou de base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento ou outro benefício fiscal relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do CONFAZ, é inconstitucional.

Assim, constata-se a flagrante inconstitucionalidade da renúncia do ICMS pelos Estados, por constituir isenção autonômica, materializada por meio de lei ordinária ou até mesmo de decretos, quando, na verdade, a regulamentação da concessão de benefícios fiscais é matéria que reclama lei complementar.

Insta destacar, neste momento, algumas alternativas propostas pelo eminente jurista Ives Gandra da Silva Martins6, no sentido de consolidar-se a pacificação fiscal:

a) (...) uma emenda constitucional proibir qualquer tipo de incentivo fiscal e financeiro no âmbito do ICMS, impondo alíquota única para todo o território

5 Cf. CALCIOLARI, Aspectos jurídicos da guerra fiscal no Brasil.6 MARTINS, ICMS – Guerra fiscal e reforma tributária.

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nacional nas operações interestaduais, respeitando-se o princípio da seletividade. Acabaria assim a guerra dos estímulos;b) (...) fundir o IPI, o ICMS e o ISS num mesmo imposto sobre o valor agregado, outorgando aos Estados o direito de arrecadar e partilhar com a União e os municípios a sua receita. Dessa forma, a sua perda da competência legislativa seria compensada com o alargamento da capacidade de arrecadação, pois os Estados têm máquina arrecadatória maior do que a União. A lei seria, assim, nacional;c) (...) regulamentação definitiva dos incentivos por lei complementar, como determina a letra g do inciso XII do parágrafo 2.º do artigo 155 da Constituição federal. Haveria, pois, uma única regra para equacionar de vez os problemas.

Espera-se que resultados positivos para o equacionamento da questão possam ser atingidos em sendo julgada procedente a ADPF n. 198, estabelecendo um quorum simples de votação no âmbito das deliberações do CONFAZ e com a aprovação do verbete referente à proposta de Súmula Vinculante de n. 69, merecendo destaque, ademais, as propostas esboçadas por Ives Gandra.

2.1 A Guerra dos Portos

A chamada “Guerra dos Portos” consiste na concessão de benefícios fiscais na importação de bens do exterior, a partir da redução do ICMS. Segundo Amir Khair, esta questão trouxe um aumento recorde de importações na indústria nacional, fenômeno que não ocorria desde 2006, segundo a Confederação Nacional da Indústria (CNI)7.

Na Guerra dos Portos, a redução do ICMS cobrado da empresa importadora acaba tornando o produto interno mais caro que o produto importado, pois, ante a lógica de não cumulatividade do tributo em epígrafe, os créditos obtidos pelo empresário na circulação da mercadoria fazem com que as alíquotas incidentes sobre o produto importado, ao final, sejam menores do que as alíquotas incidentes sobre o produto interno.

A Guerra dos Portos tem efeitos perniciosos sobre a indústria nacional, na medida em que reduz a níveis insustentáveis a competitividade do produto nacional perante o importado. Com isso, reduz-se a lucratividade das empresas nacionais, acarretando na redução de sua capacidade de investimento. Outro impacto negativo produzido pela questão refere-se à deterioração da malha viária, uma vez que a mercadoria tem que ser transportada por longas distâncias para ter que ser deslocada do Estado concedente até o Estado destinatário da mercadoria8.

7 Cf. KHAIR, Avaliação do impacto de mudanças nas alíquotas do ICMS nas transações interestaduais.8 Ibidem.

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Nesse diapasão, o Projeto de Resolução n. 72, de 2010 do Senado Federal tem o condão de coibir a Guerra dos Portos por meio da regulamentação da alíquota aplicável nas operações interestaduais com bens e mercadorias importados do exterior. Na justificação do PRS n. 72, de 2010, o autor aduz que as particularidades da repartição das receitas de ICMS em operações de caráter nacional produzem diversos efeitos negativos para o País. Os objetivos deste projeto estão relacionados no excerto abaixo, extraído do relatório do Senador Armando Monteiro:

No mérito, vale mencionar que o Projeto de Resolução 72 objetiva combater os efeitos deletérios da chamada guerra dos portos, que podem ser resumidos em três dimensões: a) contribui para a destruição das cadeias produtivas, gera desemprego e diminui a capacidade do efeito multiplicador na economia decorrentes dos aumentos dos investimentos e da produção industrial, ao deslocar a produção doméstica em favor dos bens importados; b) Reduz a arrecadação total do ICMS para o conjunto dos estados, dado que os ganhos de receita de ICMS dos estados que concedem os benefícios fiscais não compensam as perdas dos estados destinatários das mercadorias subsidiadas – Portanto, guerra dos portos é fazer concessão com os recursos alheios; c) É uma forma de utilização de recursos públicos para financiar a geração de empregos no exterior, desafiando a racionalidade econômica e social.

No voto do Relator Ricardo Ferraço, o Senador conclui pela inconstitucionalidade do Projeto. Entre os seus argumentos, destacam-se dois: a) que o PRS ofenderia o disposto no art. 152 da Constituição Federal, que veda aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer diferença tributária entre bens e serviços, de qualquer natureza, em razão de sua procedência ou destino; b) que o tema tratado no PRS é relativo a benefício fiscal, e, por esse motivo, teria de ser tratado por lei complementar (art. 155, § 2º, XII, g, da CF) e não por resolução do Senado Federal.

No voto em separado do Senador Armando Monteiro (pela constitucionalidade da medida proposta), ele rebate os argumentos do Relator aduzindo que: a) com fundamento no art. 152 da CF, o Senado já estabeleceu quatro alíquotas distintas, variáveis conforme a localização do Estado de destino das operações, o serviço prestado e a natureza da operação, sendo que nenhuma dessas diferenciações foi declarada inconstitucional pelo STF; b) à luz do art.155, § 2º, inciso IV da Constituição Federal, o instrumento, por excelência, para veicular a fixação das alíquotas aplicáveis às operações e prestações interestaduais é uma resolução do Senado Federal.

Ao final, acabou prevalecendo a tese pela constitucionalidade do PRS n. 72, que resultou na edição da Resolução n. 13 de 2012, do Senado Federal, publicada no Diário Oficial da União em 26 de abril de 2012, a qual estabelece alíquotas do ICMS, nas operações interestaduais com bens e mercadorias importados do exterior.

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É interessante frisar o artigo 1º da mencionada resolução, in verbis:

Art. 1º A alíquota do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS), nas operações interestaduais com bens e mercadorias importados do exterior, será de 4% (quatro por cento).

Em respeito ao princípio da anterioridade, a Resolução somente entrou em vigor em 1º de janeiro de 2013.

3 A GUERRA FISCAL NOS MUNICÍPIOS

A guerra fiscal no âmbito dos Municípios é marcada pela isenção do IPTU - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana e do ISS - imposto sobre serviços e de taxas municipais para as empresas montadoras de veículos automotores.

Além das isenções de IPTU, ISS e taxas, alguns Municípios oferecem toda a infra-estrutura viária e de terraplanagem sem nenhum custo, dispensando o pagamento de contribuição de melhoria; promovem a doação de imóveis; criam novas leis municipais ou modificam a legislação vigente; concedem financiamentos, muitas vezes, sem encargos ou correção monetária, com juros irrisórios, muito inferiores aos praticados pelo mercado em geral9.

Um recente levantamento do IBGE (2008) sobre o perfil dos municípios brasileiros chegou à conclusão de que metade dos 5.507 municípios existentes no país adotava algum mecanismo de incentivo fiscal para a instalação de empresas em seu território. O gráfico abaixo traduz em porcentagens as principais formas de incentivos, vejamos10:

9 Cf. SIRAQUE, O princípio da federação e o ICMS.10 Cf. MENEGHETTI NETO, Os incentivos fiscais nos municípios da região sul.

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GRÁFICO 1: MECANISMOS DE INCENTIVOS A IMPLANTAÇÃO DE EMPREENDIMENTOS UTILIZADOS PELOS MUNICÍPIOS NOS ÚLTIMOS 24 MESES SEGUNDO O TIPO NO BRASIL – 2006

FONTE: IBGE. Perfil dos Municípios Brasileiros 2006. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/perfilmunic/default.shtm>. Acesso em 14 maio 2012.

No que tange ao ISS, visando a combater a guerra fiscal, a Constituição Federal, nitidamente a partir da Emenda Constitucional n. 37/2002, passou a limitar a autonomia dos Municípios no exercício da competência pertinente a este tributo.

O meio mais usual de deflagração da guerra fiscal por meio do ISS consistia na estipulação de alíquotas baixíssimas para o imposto, haja vista que a competência era, em regra, do Municio do domicilio do prestador do serviço.

Nesse contexto, visando coibir a supracitada prática, o artigo 156, §3º, incisos I e III da Constituição Federal estabelece:

§ 3º Em relação ao imposto previsto no inciso III do caput deste artigo, cabe à lei complementar: I - fixar as suas alíquotas máximas e mínimas; II – (...);III - regular a forma e as condições como isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.

Com base no mandamento constitucional, a Lei Complementar n. 116/2003 estabeleceu em seu artigo 8º, inciso II, a alíquota máxima de 5%, objetivando impor limites à sede arrecadatória. Contudo, quanto à fixação de alíquotas mínimas, instrumento capaz de reduzir a guerra fiscal municipal a níveis menos acirrados, a mencionada lei complementar manteve-se inerte, continuando-se a regular a matéria

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pelo disposto no artigo 88 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que fixa a alíquota mínima de 2% para o ISS (para os serviços referidos nos itens 32, 33 e 34 da Lista de Serviços anexa ao Decreto-lei n. 406/1968), enquanto não editada a respectiva lei complementar.

A Lei Complementar n. 113/2003 também se omitiu no que diz respeito à regulação das condições e requisitos para a concessão e revogação de benefícios fiscais do ISS, sendo necessário recorrer, mais uma vez, às disposições do ADCT que, em seu artigo 88, estabelece vedação a qualquer isenção, incentivo ou benefício fiscal que implique, direta ou indiretamente, na redução da alíquota mínima de 2% prevista no inciso I do mesmo dispositivo.

Cumpre destacar que alguns juristas reputam ser inconstitucional a instituição de uma alíquota de piso para o ISS, sob o argumento de que o processo de concentração da legislação tributária no governo federal feriria a autonomia municipal e, conseqüentemente, o pacto federativo.

Contudo, é preciso considerar que no modelo federativo brasileiro é patente a centralização de competências nas mãos da União como um agente estruturador das políticas econômicas do Estado e a rigidez do modelo tributário brasileiro. Assim, a União ao definir uma alíquota de piso para o ISS age como um coordenador das ações municipais11.

Diante do exposto, em relação ao ISS, principal alvo de manobras no âmbito da guerra fiscal municipal, conclui-se que a regulação da alíquota mínima aplicada ao tributo, bem como o estabelecimento de condições e requisitos para a concessão de benefício e incentivos, não é medida adequada à solução do problema. A aplicação do ADCT, na falta de disciplinamento da matéria por meio de lei complementar, não foi capaz de coibir a disputa entre os municípios, o que indica que eventual lei complementar também não conseguiria.

Assim, não só em relação ao ISS, mas também quanto às isenções de outros tributos, a solução para o problema, remonta às mesmas origens da guerra fiscal entre os Estados, qual seja, a necessidade de enfrentamento pela União das desigualdades regionais. Além do mais, é imprescindível que se repense, em qualquer tentativa de reforma tributária, a repartição de receitas entre os entes subnacionais, dotando os Municípios de maiores recursos.

Outrossim, há de se combater a concessão de benefícios e incentivos inconstitucionais, tanto fiscais como não fiscais, pois como visto, a pretexto de combater as desigualdades regionais, a guerra fiscal somente corrobora este processo,

11 Cf. OLIVEIRA, A guerra tributária intermunicipal: uma análise sobre os efeitos da política de harmonização tributária sobre o fenômeno da arrecadação dos municípios da Região Metropolitana de São Paulo.

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uma vez que gera como principais conseqüências a diminuição da arrecadação do ente concedente e o aumento da necessidade das transferências. Ademais, Alfredo Meneghetti Neto destaca que a política municipal de incentivos no Brasil privilegia o setor industrial, sendo que os setores de serviços e comércio geram maior emprego e renda, devendo estar figurando em primeiro plano12.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

1. A guerra fiscal nos Estados recai de forma mais significativa sobre o ICMS, a partir da redução ou isenção das alíquotas do imposto. O mecanismo é permitido pelo esvaziamento do CONFAZ, haja vista a descabida exigência de prévio consentimento unânime na edição de benefícios fiscais e a incompatibilidade das sanções previstas na LC 24/75 com a Lei de Responsabilidade Fiscal.

2. Destacam-se como alternativas tomadas com o propósito de combater a guerra fiscal entre os Estados: a) a ADPF n. 198, que visa a combater a exigência de consentimento unânime no âmbito do CONFAZ, submetendo a aprovação de benefícios a um quorum simples; b) a proposta de Súmula Vinculante n. 69, que pretende conferir efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário quanto à declaração de inconstitucionalidade de benefícios fiscais concedidos à margem do CONFAZ; e c) a Resolução n. 13/12, do Senado Federal, a qual estabelece alíquotas de 4% nas operações interestaduais com bens e mercadorias importados do exterior.

3. Ives Gandra da Silva Martins sugere como propostas tendentes ao fim da guerra fiscal: a elaboração de uma emenda constitucional proibindo qualquer tipo de incentivo fiscal e financeiro no âmbito do ICMS, impondo alíquota única para todo o território nacional nas operações interestaduais; a fusão do IPI, do ICMS e do ISS num mesmo imposto sobre o valor agregado; e a regulamentação definitiva dos incentivos por lei complementar.

4. No que diz respeito ao ISS, principal objeto da guerra fiscal municipal, percebeu-se que a regulação da alíquota mínima aplicada ao tributo, bem como o estabelecimento de condições e requisitos para a concessão de benefício e incentivos, não é medida adequada ao fim da disputa entre os Municípios.

5. A solução para o problema, tanto no âmbito estadual quanto no âmbito municipal, reside na necessidade de enfrentamento pela União das desigualdades regionais. Além do mais, é imprescindível que se repense, em qualquer tentativa de

12 Cf. MENEGHETTI NETO, Os incentivos fiscais nos municípios da região sul.

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reforma tributária, a repartição de receitas entre as entidades federativas, atribuindo mais receitas aos Municípios.

6. O combate à concessão de benefícios e incentivos inconstitucionais, tanto fiscais como não fiscais, é outra medida imperativa, tendo em vista que, sob o argumento de mitigar as diferenças inter-regionais, a guerra fiscal somente intensifica o abismo existente entre as diferentes localidades, pois acarreta a diminuição da arrecadação do ente concedente e o aumento da necessidade das transferências.

7. Portanto, conclui-se que a principal causa da guerra fiscal é a falta de planejamento e coordenação por parte da União no sentido de promover políticas de desenvolvimento regional e de cooperação entre os entes federados. Assim, qualquer iniciativa que pretenda erradicar por vez o fenômeno da guerra fiscal deverá passar necessariamente pela efetividade do federalismo cooperativo.

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Revista Online do Curso de Direito da Faculdade Sul-Americana

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO NA EMISSÃO DE PARECERES EM CASO DE

INEXIGIBILIDADE E DISPENSA DE LICITAÇÃO

Nile William Fernandes Hamdy1

Monique Cristina Guimarães do Prado2

1 LICITAÇÃO: FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS E PRINCÍPIOS REGENTES

A Administração Pública, para prestar serviços públicos e outras atividades decorrentes da estrutura do Estado, necessita da contratação de serviços, obras e realizar compras. O mecanismo apropriado para efetivar tais aquisições é por meio da licitação, com amparo constitucional expresso no artigo 37, XXI. Justen Filho (2005, p. 309) assim conceitua como:

[...] um procedimento administrativo disciplinado por lei e por um ato administrativo prévio, que determina critérios objetivos de seleção da proposta de contratação mais vantajosa, com observância do princípio da isonomia, conduzido por um órgão dotado de competência específica.

Dessa forma, oportunizando-se a todos os particulares a oportunidade de celebrar contratos com a Administração Pública, a realização de licitação é regra constitucional que deve ser observada e cumprida. A lei 8.666/1993 instrumentaliza a realização da licitação no âmbito da Administração Pública Federal, e ainda traz normas de cunho nacional, que devem ser observadas por todos os demais entes federativos, bem como às pessoas da Administração Indireta a eles vinculados.

Sem dúvida, dos princípios jurídicos que o artigo 3º da lei 8.666/1993 menciona como regentes do procedimento licitatório, merece grande relevo o princípio da

1 Mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás, professor assistente do Centro de Ensino Superior de Catalão.

2 Estudante do curso de Direito do Centro de Ensino Superior de Catalão.

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Responsabilidade civil do advogado na emissão de pareceres em caso de inexigibilidade e dispensa de licitaçãoMonique Cristina Guimarães do Prado

isonomia, pois como expresso na norma mencionada, a satisfação do mesmo é um dos fins da licitação. Nesse sentido, Oliveira (2014, p. 30) assim afirma

O princípio da isonomia tem profunda ligação com o princípio da impessoalidade, e significa que a Administração deve dispensar tratamento igualitário (não discriminatório) aos licitantes. A licitação deve assegurar “igualdade de condições a todos os concorrentes”, conforme dispõe o artigo 37, XXI, da CRFB. Da mesma forma, isonomia guarda estreita relação com a competividade, pois as restrições à participação de determinadas pessoas na licitação acarretam diminuição do número de possíveis interessados.

Claramente o princípio da isonomia, em um ambiente constitucionalmente democrático e inclusive, admite mitigações, como nos casos dos critérios de desempates dos procedimentos licitatórios. Nesse caso, estabelece o artigo 3º, § 2º, da lei 8.666/1993 a seguinte ordem preferencial aos bens e serviços: produzidos no país, produzidos ou prestados por empresas brasileiras, produzidos ou prestados por empresas que invistam em pesquisa e desenvolvimento de tecnologia no país. É apenas um exemplo de uma exceção da amplitude do princípio da isonomia, dentre outras que existem no ordenamento jurídico brasileiro.

Inolvidável é que a Administração Pública tem em vistas a satisfação do interesse público. Nesse sentido, ressalta Barroso (2007, p. 16, 17) que:

o interesse público primário, consubstanciado em valores fundamentais como justiça e segurança, há de desfrutar de supremacia em um sistema constitucional e democrático. Deverá ele pautar todas as relações jurídicas e sociais – dos particulares entre si, deles com as pessoas de direito público e destas entre si. O interesse público primário desfruta de supremacia porque não é passível de ponderação. Ele é o parâmetro da ponderação. Em suma: o interesse público primário consiste na melhor realização possível, à vista da situação concreta a ser apreciada, da vontade constitucional, dos valores fundamentais que ao intérprete cabe preservar ou promover.

Por esse lado, é que a própria lei de licitações traz em seu bojo hipóteses em que o administrador poderá ficar dispensado da licitação ou mesmo declará-la inexigível. Há situações em que a lei desobriga a ocorrência de licitação prévia na celebração dos contratos administrativos, sendo elas: inexigibilidade, dispensa de licitação e licitação dispensável. No entanto, em qualquer caso é obrigatória a motivação do ato administrativo que decida sobre sua incidência.

A dispensa de licitação ocorre nas hipóteses previstas no artigo 17, I e II da Lei nº 8.666/93, e em regra, se refere a alienação de bens e direitos pela Administração, onde a lei afasta a possibilidade de realizar o procedimento licitatório, podendo o

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administrador público celebrar o contrato administrativo com o particular sem que haja licitação. Na lição de Meirelles (2008, p. 253):

[...] é aquela que a própria lei declarou como tal. Com relação a imóveis: nos casos de dação em pagamento; investidura; venda a outro órgão público; alienação, concessão de direito real de uso, locação ou permissão de uso de habitações de interesse social. Com relação a móveis: nos casos de doação, permuta, venda de ações e títulos, venda de bens produzidos ou comercializados por órgãos ou entidades da Administração e venda de materiais e equipamentos inservíveis, atendidos os requisitos e condições previstas nas alíneas do inciso II do art. 17.

Em que pese o entendimento tradicional afirmar que as hipóteses do artigo 17, II da lei de licitações não permitir a discricionariedade do administrador, apenas para aclaramento do tema, tal posicionamento é divergente, em razão a própria obrigação constitucional de licitar. Nesse sentido, Oliveira (2014, p. 62) afirma:

[...] entendemos que não se pode admitir que o legislador retire do administrador, de maneira absoluta, a possibilidade de realização de licitação, quando houver, é claro, viabilidade de competição. Ora, se a regra constitucional é a licitação, o legislador ordinário não possui legitimidade para impedir a licitação quando houver competição, mas apenas a possibilidade de elencar hipóteses excepcionais em que a licitação não será obrigatória, segundo a ponderação do administrador diante do caso concreto.

D’outra banda, a licitação dispensável encontra-se prevista no art. 24 da lei de licitações e é aquela em a lei dá margem de discricionariedade, podendo-se realizar ou não o procedimento, a depender do administrador. Alexandrino (2011, p. 580) explica que

Quando a lei autoriza a Administração a, discricionariamente, deixar de realizar a licitação, temos a denominada licitação dispensável. Portanto, na licitação dispensável, a competição é possível, mas a Administração poderá ou não, realizar a licitação, conforme seus critérios de conveniência e oportunidade.

Com efeito, a possibilidade de licitação dispensável encontra amparo na flexibilidade administrativa que se confere ao administrador, visando à satisfação do interesse público, que por vezes fica prejudicado com o excesso de prazos e regras para determinadas contratações. Corrobora Madeira (2008, p. 325) que

embora haja viabilidade em realizar o certame, este se torna inconveniente, por razões de interesse público, uma vez que o procedimento licitatório demanda

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uma série de gastos que, por sua vez, devem trazer benefícios que os compensem. Às vezes, os custos que advêm de um certame são maiores do que o resultado pretendido, levando a um desequilíbrio indesejado na relação custo-benefício, trazendo prejuízos para a Administração. Em tais casos, é obvio que a realização da licitação apenas sacrificaria o interesse público, razão por que o legislador permite ao administrador, nos casos expressamente previstos em lei, a saber, no art. 24 da Lei nº 8.666/93, a faculdade de dispensar a licitação.

O artigo 25 da lei de licitações traz, por seu turno, hipóteses em que a licitação é obrigação que se torna inexigível, em situações bem específicas. Segundo Meirelles (2008, p. 256) “ocorre a inexigibilidade de licitação, quando há impossibilidade jurídica de competição entre contratantes, quer pela natureza específica do negócio, quer pelos objetivos sociais, visados pela Administração”. No mesmo diapasão, esclarece Justen Filho (2008, p. 345)

a inexigibilidade de licitação pode se dar em razão de: todos os bens pertencerem a uma só pessoa ou, com relação a produtos, de só existir um fornecedor exclusivo; a contratação for de natureza singular; e a contratação exigir profissional do setor artístico de consagrada notoriedade. Assim, por não haver critérios objetivos e aceitáveis para se aferir tais casos e escolher a melhor proposta dentre aquelas que, porventura, fossem apresentadas, não é possível a realização de um certame licitatório por ser impossível fazer-se um julgamento objetivo, ou, simplesmente, comparar propostas em razão daquelas previsões especiais.

Mesmo assim, sejam em hipóteses de dispensa ou inexigibilidade, Madeira (2008, p. 337) salienta que

em todos os casos de dispensa ou inexigibilidade de licitação, instaura-se um processo de controle de legalidade e da economicidade da decisão adotada. E isso não é feito por pura vontade da autoridade competente, mas pelo que expressa o ar. 26 da Lei nº 8.666/1993, que vale para ambos os institutos.

De toda forma, o procedimento licitatório inicia-se com a abertura de processo administrativo e nos casos de dispensa ou inexigibilidade de licitação devem ser precedidos de pareceres técnicos ou jurídicos, nos termos do art. 38, VI da Lei nº 8.666/93, nos quais constarão os motivos que levaram a administração a não realizar licitação. O parecer jurídico, como sabido, somente pode ser emitido por um profissional regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, e em pleno exercício funcional.

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2 PARECER JURÍDICO EM LICITAÇÃO E A PROBIDADE ADMINISTRATIVA COMO UM DIREITO DIFUSO

O parecer é um ato administrativo, no qual a Administração, em determinadas situações, necessita consultar a opinião de seus órgãos consultivos sobre assuntos técnicos ou jurídicos de sua competência, onde o profissional emitirá uma análise acerca do que lhe foi solicitado.

Como se trata da opinião do agente administrativo sobre matéria submetida à sua apreciação, o qual emite um juízo de valor, não vincula a autoridade que tem o poder decisório, podendo esta adotar ou não a deliberação do parecerista (Madeira, 2009, p. 230).

O advogado parecerista analisa a legalidade do edital a ser publicado, bem como da minuta de contrato, e antes da homologação, analisa o certame realizado. Quando há dispensa ou inexigibilidade, o parecer do advogado é no sentido de se atestar se os motivos elencados pelo administrador são compatíveis ou não com as hipóteses elencadas na lei de licitações. De toda forma, no procedimento licitatório ou nas hipóteses de dispensa ou inexigibilidade, o parecer jurídico é elemento obrigatório.

Isso ocorre porque é direito de todos os cidadãos exigirem o máximo de eficiência e legalidade nos atos administrativos. Afinal, o bom cuidado com o erário e a celeridade da Administração proporciona aos administrados serviços públicos melhores e mais eficazes. É a própria efetivação dos fins que visa a Constituição em jogo.

A probidade administrativa equivale ao comportamento legal, moral e ético que a Constituição Federal exige de todo e qualquer agente público e sua tutela tem natureza de interesse difuso. É condição essencial ao Estado Democrático de Direito a existência de um governo honesto, zeloso e eficiente pelas coisas públicas, cabendo ao administrador público o dever de fidelidade e honestidade com o Estado e com a população, no desempenho de suas funções. Nesse sentido, Zawascki (2005, p. 90, 91) que

O direito a um governo honesto, eficiente e zeloso pelas coisas públicas, tem, nesse sentido, natureza transindividual: decorrendo, como decorre do Estado Democrático, ele não pertence a ninguém individualmente; seu titular é o povo, em nome e em benefício de quem o poder deve ser exercido.

Dentre os direitos de natureza individual, valendo-se do microssistema de direitos coletivos, Zanetti Filho [s.d.] que

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[...] tem-se por direitos difusos (art. 81, § único, I, do CDC e art. 1°, I, do CM) aqueles transindividuais (metaindividuais, supraindividuais, pertencentes a vários indivíduos), de natureza indivisível (só podem ser considerados como um todo), e cujos titulares sejam pessoas indeterminadas (ou seja, indeterminabilidade dos sujeitos, não há individuação) ligadas por circunstâncias de fato, não existe um vínculo comum de natureza jurídica, v.g., a publicidade enganosa ou abusiva, veiculada através de imprensa falada, escrita ou televisionada, a afetar uma multidão incalculável de pessoas, sem que entre elas exista uma relação jurídica-base.

Dessa feita, considerando que a probidade administrativa interessa todos os administrados, uma vez que todos somos destinatários dos serviços públicos, sejam universais ou singulares, prestados pelo Estado Brasileiro, é facilmente perceptível classifica-la como um direito difuso. Assim, a proteção do erário enseja todo o manejo do microssistema processual coletivo, uma vez que inexiste uma ordenação legal que estabeleçam procedimentos de forma unificada para tal matéria, como explana Almeida (2007, p. 333) que é

[...] a ação de improbidade administrativa fundada na lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa) é espécie do gênero ação civil pública (art. 129, III da CF/88). A tutela é de direito difuso por excelência. As sanções aplicáveis, com vistas nos fundamentos que as justificam, possuem natureza de direito difuso, já que representam a punição não-penal pela violação da probidade administrativa como garantia constitucional da coletividade. Assim, perfeitamente aplicável em sede de ação civil pública de improbidade administrativa a disciplina da coisa julgada coletiva prevista no art. 103, I, do CDC (Lei 8.078/90), conclusão a que se chega com base no art. 21 da LACP (Lei 7.347/85).

A análise de uma situação que excepcione a regra da licitação deve ser, por óbvio, de extrema acuidade na aplicação técnica do Direito por seu operador. Afinal, considerar que determinada situação enseja a dispensa ou a inexigibilidade de uma licitação deve levar em conta se o fato subsume-se às hipóteses legais, e ponderar o interesse público se se torna melhor atendido com a realização da licitação ou não.

Em razão da amplitude jurídica que a probidade administrativa adquiriu com a Constituição da República, e explicitada na Lei 8.429/92, a corresponsabilização do advogado merece grande indagação, seja pela natureza especial do serviço advocatício, seja pela proteção constitucional que seu ministério privado goza.

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3 INVIOLABILIDADE DO ADVOGADO NO EXERCÍCIO PROFISSIONAL E A CORRESPONSABILIZAÇÃO POR PARECERES EMITIDOS EM CASOS DE DISPENSA OU INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO

A Constituição da República colocou o advogado em um lócus privilegiado: único profissional liberal mencionado no texto, no seu artigo 133, tratado como “indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. Como a lei 8.906/94 dispõe no artigo 1º, II, que as atividades de assessoria, consultoria e direção jurídica são privativas dos advogados, mesmo quando se tratar de advogados públicos ou contratados pela Administração, assegura-se os mesmos direitos e prerrogativas legais.

Ademais, a lei 8.906/94, no seu artigo 44, I, ainda elencou a OAB como “defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”.

A referida lei federal guarda coerência com o texto constitucional. Isso pois, o legislador constituinte originário conferiu à OAB um papel especial, legitimando-a para o questionamento da constitucionalidade de todas as leis e normas, bem como para arguir descumprimento de preceito fundamental, independentemente de guardar relação com os interesses da advocacia.

Na ambiência do Estado de Direito, buscando-se a prevalência da lei e da busca incessante de alcançar-se o ideal de justiça, o advogado é a representação técnica das postulações do indivíduo. Preconiza-se os próprios fundamentos da jurisdição, enquanto atividade monopolizada pelo Estado, pois havendo profissionais habilitados para a discussão de litígios dentro dos limites legais, a autotutela torna-se totalmente insubsistente. Nesse sentido, afirma Sodré (1975, p. 57) que

O advogado exerce função social, pois ele atende a uma exigência da sociedade. Basta que considere o seguinte: sem liberdade, não há advogado sem a intervenção não há ordenamento jurídico e sem este não há condições de vida para a pessoa humana. Logo, a atuação do advogado é condição imprescindível para que funcione a justiça. Não resta, pois, a menor dúvida de que o advogado exerce função social.

Portanto, é próprio e necessário que o advogado seja livre para defender os interesses dos cidadãos. Para isso, exige-se uma liberdade do advogado para compreender e interpretar os institutos jurídicos, afinal, é sua carga argumentativa, é a sua proposta de interpretação sobre o enunciado normativo que é exigido em sua

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técnica profissional, que não se restringe aos ambientes judiciários, como visto na própria lei 8.906/94. Nesse sentido, Souto (1998, p. 83) afirma que

A elaboração de um parecer não pode ser considerada ilegal, até porque, em sede de licitações e contratos, sua existência é um imperativo da lei. Não é o fato de se discordar das opiniões nele contidas que o torna ilegal, nem muito menos lesivo, por não ser instrumento que gera direitos ou obrigações. Assim como ocorre com os magistrados, que só respondem por atos praticados com dolo ou culpa (CPC, art. 133), só pode haver responsabilização de um advogado com dolo ou culpa (art. 32 da Lei 8.906/94 de 4/7/1994, que regula o exercício da profissão de advogado).

No caso das licitações, bem como das hipóteses de dispensa ou inexigibilidade, a decisão de assim o fazer não é do advogado, mas do próprio administrador. Nesse sentido entende Oliveira (2014, p. 253) que

A decisão final sempre será da autoridade que pode, inclusive, decidir por não continuar com o processo de licitação/contratação, apesar da existência de parecer jurídico. É a autoridade administrativa (e não o advogado público) a responsável pela administração pública ou gestão da coisa pública, sendo, a nosso ver, incoerente a classificação do parecer como “vinculante”3 quando, em verdade, o ato representa apenas a opinião jurídica do advogado. Em segundo lugar, existem diversas interpretações jurídicas que podem ser razoavelmente apresentadas em cada situação concreta, não sendo possível responsabilizar o advogado público que apresentou interpretação razoável. Não se pode desconsiderar o fato de que o advogado público tem que manifestar a sua opinião no momento em que o fato se apresenta, sem a real noção, muitas vezes, das inúmeras consequências (boas ou ruins) que poderão ser produzidas.

Não se pode esquecer que a atividade do Direito é de fundo interpretativa, logo, é criativa, pois da compreensão dos fatos postos com o enunciado abstrato do texto normativo, é que se pretende produzir a norma jurídica. E se até as ciências exatas oferecem, por vezes, uma pluralidade de resultados, a partir da fórmula escolhida, o que não falar do Direito, tão que recebe vetores de tantos matizes. Por isso afirma Grau (2009, p. 39) que

Cogitam os que não são intérpretes autênticos, quando do direito tratam, da juris prudentia, e não de uma juris scientia; o intérprete autêntico, ao produzir normas jurídicas, pratica a juris prudentia, e não juris scientia. O intérprete atua segundo a lógica da preferência, e não conforme a lógica da consequência [Comparato]: a

3 Nesse ponto, o autor critica a classificação dos pareceres presente no Informativo 475 do Supremo Tribunal Federal, que trouxe a notícia da decisão do pleno daquela Corte no Mandado de Segurança 24.631/DF, de relatoria do Ministro Joaquim Benedito Barbosa Gomes.

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lógica jurídica é a da escolha entre várias possibilidades corretas. Interpretar um texto normativo significa escolher uma entre várias interpretações possíveis, de modo que a escolha seja apresentada como adequada [Larenz]. A norma não é objeto de demonstração, mas de justificação. Por isso a alternativa verdadeiro/falso é estranha ao direito; no direito há apenas o aceitável (justificável). [grifos do autor]

Assim, pela própria natureza do direito, enquanto técnica e prática, não se admite uma argumentação possível que vise responsabilizar o consultor pelas decisões que venham a ser equivocadas pelo administrador. No caso de contratação direta da Administração, quando se realiza dispensa ou se declara inexigível a licitação, a situação é ainda mais crítica, pois é o interesse público que pretende ser atendido. O consultor irá apontar para qual caminho esse é melhor observado, dentro das situações previstas na lei 8.666/93. A decisão final está no âmbito da discricionariedade do administrador.

4 CONCLUSÃO

A exigência da probidade administrativa é um direito de todos os cidadãos brasileiros. O bom trato com o erário e meios efetivos de fiscalização e controle sobre os atos administrativos permitem aprofundar a nossa democracia, identificando a Administração com os administrados.

Com efeito, a possibilidade de contratar com a Administração atrai grandes interesses dos particulares, mesmo havendo a incidência prioritária das normas de direito público nos contratos administrativos, conferindo vantagens à Administração. Como a eficiência é um dos vetores principais, a Administração requer mecanismos objetivos para selecionar a melhor proposta para atender seus interesses, melhor prestar os serviços públicos, e observar a isonomia entre os administrados interessados em contratar.

Isso não implica que a licitação seja regra absoluta, pois em diversos momentos o interesse público exige mecanismos mais rápidos para contratação, ou mesmo quando esta se torna inviável – são os casos legais de dispensa e de inexigibilidade. Tanto para licitar, como para se dispensar ou declarar inexigível, o parecer jurídico emitido por advogado regularmente inscrito nos quadros da OAB é indispensável por força de lei.

No entanto, o advogado é um profissional liberal diferenciado, até mesmo pelo lócus privilegiado que ocupa segundo a Constituição da República. Elemento importante do funcionamento do Judiciário, e defensor dos direitos individuais, carrega consigo a inviolabilidade dos seus atos.

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Compreendendo o Direito como ciência e como prática da linguagem, inegável que o papel criativo e interpretativo do jurista pode-lhe permitir a chegar em diversos resultados, igualmente corretos. Ainda quando se traz o atendimento ao interesse público, uma orientação principiológica com alto nível de abstração, essa possibilidade aumenta ainda mais, em que pese as situações de dispensa e inexigibilidade estarem taxativamente prevista na lei 8.666/93.

Alfim, considerando que a responsabilidade do ato administrativo é do administrador e não do consultor jurídico, a responsabilização civil do advogado por seu parecer deve se ater nas hipóteses previstas na lei 8.906/94, demonstrando-se culpa ou dolo. O papel que a Constituição da República delegou ao advogado não permite censurá-lo ou responsabilizá-lo pela construção de propostas e soluções jurídicas que sejam distintas daquela interpretada por outros atores do Direito.

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JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 12ª Ed. São Paulo: Dialética, 2008.

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MADEIRA, José Maria Pinheiro. Administração pública. 10. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 34ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

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SODRÉ, Ruy de Azevedo. Ética profissional e Estatuto do Advogado. São Paulo: LTr, 1975.

SOUTO, Marcos Juruena Villela.Licitações e contratos administrativos. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Esplanada, 2008.

ZANETI JÚNIOR, Hermes. Direitos coletivos lato sensu: a definição conceitual dos

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Responsabilidade civil do advogado na emissão de pareceres em caso de inexigibilidade e dispensa de licitaçãoMonique Cristina Guimarães do Prado

direitos difusos, dos direitos coletivos stricto sensu e dos direitos individuais homogêneos. Sítio da Academia Brasileira de Direito Processual Coletivo, acessado em 12/07/2013, disponível em <http://www.abdpc.org.br/artigos/artigo14.htm>.

ZAWASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. Tese de doutorado – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005. [Orientador: Prof. Dr. Carlos Alberto Álvaro de Oliveira].

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Revista Online do Curso de Direito da Faculdade Sul-Americana

A NOVA REDAÇÃO DA LEI SECA (LEI 12.760/12)

Goiacy Campos dos S. Dunck1

Davi Augusto Campos Dunck2

1 INTRODUÇÃO

A invenção dos veículos automotores no século XVII veio alavancar o desenvolvimento econômico, social, impulsionando as pessoas a viajarem rápido, com comodidade e, sobretudo, com um mínimo de esforço para os ocupantes e um máximo de segurança. Com o passar dos tempos, as inovações associadas aos veículos foram tornando-os mais agradáveis e velozes.

Assim, em decorrência da grande potência dos automotores no século XX, é que a história passa a registrar inúmeros acidentes envolvendo pessoas em seus veículos e terceiros afetados por estes. Dessa forma, em 23 de setembro de 1997 é promulgada pelo Congresso Nacional a Lei 9.503 regulamentando o Código de trânsito Brasileiro com a finalidade de disciplinar a conduta dos condutores, passageiros e pedestres.

Quando apareceu o novo Código de Trânsito brasileiro, em 1997, o DATASUS (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde do Brasil) já registrava 35.620 mortes no trânsito. Logo que esta lei parou de surtir o efeito desejado modificou-se o CTB em 2006 e aí já contávamos com 36.367 mortes. Não tendo funcionado bem essa lei, veio a Lei nº 11.705/2008, quando alcançamos o patamar de 38.273 mortes. Infelizmente, esta lei teve inúmeras falhas em sua redação após na tentativa de se corrigir os desacertos que ficou conhecida como a Lei Seca, ocorreu a promulgação de uma nova lei sobre embriaguez ao volante, a Lei nº 12.760. Esta nova lei estabelece alterações no Código de Trânsito Brasileiro, especialmente em relação ao crime e à infração administrativa de trânsito por embriaguez ao volante.

1 Advogada. Professora de Direito Civil , Processo Civil , Introdução ao Estudo de Direito e Direitos Humanos na PUC-GO e FASAM.Especialista em Direito Civil pela UFG,Mestre em Direito.

2 Bacharel em Direito, [email protected]

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A nova redação da lei seca (Lei 12.760/12) Davi Augusto Campos Dunck

Uma das maiores motivações para a urgência na edição da Nova Lei seca foi a de retificação dos equívocos da legislação anterior, pois já existia uma grande pressão exercida por diversos setores da sociedade para que fossem corrigidas as muitas falhas da legislação anterior, que acabaram tornando ineficazes as medidas até então existentes contra a direção embriagada, motivando assim, a rápida edição da Nova Lei Seca.

Neste sentido, a nova Lei Seca suprimiu a exigência dos seis ou mais decigramas de álcool por litro de sangue para configuração do crime de embriaguez ao volante. A partir de agora, essa conduta passa a ser tão somente conduzir o veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, como por exemplo, a cocaína.

Por seu turno, a nova legislação elencou diversos meios de prova por meio dos quais poderá ser comprovada a embriaguez, tais como o teste de alcoolemia, exames clínicos, perícias, vídeos e prova testemunhal, onde vemos claramente que o principal objetivo desta Nova Lei Seca foi de consertar os equívocos da legislação anterior que tratou da embriaguez ao volante.

Tendo em vista essa problemática em crescente discussão, tem como objetivo o presente estudo, analisar todos os aspectos gerais da nova Lei Seca, apresentando a recente interpretação da nova redação.

2 NOVA LEI SECA (LEI 12.760/12)

A nova lei seca (Lei 12.760/12), que enrijeceu mais uma vez o Código de Trânsito, está vigorando desde 20.12.2012. Na tentativa de retificação dos erros da Lei nº 11.705/2008, que ficou conhecida como Lei Seca, foi promulgada, enfim, uma nova lei sobre embriaguez ao volante: a Lei nº 12.760. Esta última, fruto do Projeto de Lei nº 5.607-A, apresentado na Câmara dos Deputados, que estabelece as modificações no Código de Trânsito Brasileiro, basicamente em relação ao crime e à infração administrativa de trânsito de embriaguez ao volante.

2.1 Embriaguez no trânsito

Na tentativa de retificação dos erros da Lei nº 11.705/2008, que ficou conhecida como Lei Seca, foi promulgada, enfim, uma nova lei sobre embriaguez ao volante: a Lei nº 12.760. Esta última, fruto do Projeto de Lei nº 5.607-A, apresentado na Câmara dos Deputados, que estabelece as modificações no Código de Trânsito Brasileiro, basicamente em relação ao crime e à infração administrativa de trânsito de embriaguez ao volante.

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A nova redação da lei seca (Lei 12.760/12) Goiacy Campos dos S. Dunck; Davi Augusto Campos Dunck

Responsável por inúmeros acidentes de trânsito no Brasil, o álcool é considerado como a grande causa das ocorrências de trânsito, reduzindo os reflexos afetando a visão do condutor, como conseqüência, distorcendo de maneira excessiva quanto as suas avaliações de distância e espaço.

Além disso, a embriaguez provoca a privação do governo de seus músculos; a alteração das imagens produzidas pelos sentidos, provcovando por exemplo, a diplopia ou a visão dupla; e a privação do governo prudente de si mesmo, fazendo com que a pessoa fique corajosa e impulsiva, passando a encarar o perigo, exatamente para provar aos outros que está seguro e firme.

Neste sentido, Fernando Capez (2010, p. 337) conceitua a embriaguez como:

Causa capaz de levar à exclusão da capacidade de entendimento e vontade do agente, em virtude de uma intoxicação aguda e transitória causada por álcool ou qualquer substância de efeitos psicotrópicos, sejam eles entorpecentes (morfina, ópio etc.), estimulantes (cocaína) ou alucinógenos (ácido lisérgico).

Desta forma, viu-se a necessidade da verificação das características apresentadas pelos doutrinadores a respeito do que seria a embriaguez, para que houvesse a imputabilidade penal dessa conduta. Diante disso, o conceito existente de embriaguez trazido por nosso ordenamento jurídico atual nos fala a respeito do que seja a intoxicação, não só aquela ocorrida pela ingestão de álcool como também resultante do uso de qualquer substância de efeitos idênticos, capaz de afetar a capacidade de discernimento do indivíduo. Diante disso, é de extrema relevância observar que a nova lei fala em influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, incluindo-se aqui não tão somente as drogas ilícitas (maconha, cocaína, heroína, LSD etc.), senão também as lícitas. Assim sendo, o indivíduo que toma remédio e fica com sua capacidade psicomotora alterada não pode dirigir veículo.

É interessante notar que antes da alteração, a embriaguez do motorista só poderia ser apurada por meio do exame do etilômetro (“bafômetro”) ou exame de sangue. Ocorre que tais provas dependiam exclusivamente da colaboração da vítima. Assim, tendo em vista que a Constituição da República garante o direito do indivíduo de não produzir provas contra si mesmo (princípio do nemo tenetur se detegere), era bastante difícil para obter a comprovação da embriaguez.

Ainda de acordo com a antiga redação do artigo 306, uma pessoa era basicamente considerada embriagada apenas quando constatada a presença de 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue, o que também era muito questionado pela doutrina, pois dificultava a punição de infratores.

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A nova redação da lei seca (Lei 12.760/12) Goiacy Campos dos S. Dunck; Davi Augusto Campos Dunck

Com a nova Lei Seca houve uma mudança significativa no conteúdo do artigo 306 do CTB. Em linhas gerais, agora o estado de embriaguez pode ser comprovado por diversos meios, tais como exames de alcoolemia, vídeos, testemunhas ou outras provas admitidas pelo nosso ordenamento jurídico.

Com a recente redação dada pela Lei 12.760/2012, o crime de embriaguez ao volante se caracteriza quando restar constatado que a capacidade psicomotora do motorista foi alterada em virtude do álcool ou de outra substância psicoativa, como, por exemplo, a maconha.

Verifica-se, portanto, que a “alteração da capacidade psicomotora” passa a ser elementar do tipo. Em outras palavras, caso o motorista tenha ingerido bebidas alcoólicas, mas não esteja com a sua capacidade psicomotora alterada, o crime não estará configurado.

Conforme destacado, a grande alteração trazida pela nova Lei está no fato de o tipo penal não mais vincular a constatação da embriaguez, exclusivamente, ao percentual de seis decigramas de álcool por litro de sangue, sendo este apenas um dos meios de prova.

Impende frisar, que para que ocorresse o processo de mudança da redação desta lei, foi importante a intensa pressão por diversos setores da sociedade para que fossem corrigidas as falhas da legislação anterior, que acabaram tornando ineficazes as medidas até então existentes contra a embriaguês no trânsito, tendo como conseqüência a rápida edição desta Nova Lei Seca.

2.2 Análise do tipo penal na redação da nova lei seca (lei 12.760/12) O alvo central do Código de Trânsito é a segurança das pessoas no trânsito e

para isso, seu fim instrumental é reduzir o número e os efeitos dos acidentes nas vias terrestres. O bem jurídico a ser resguardado é a vida, integridade física e/ou o patrimônio de um grande número de pessoas, ou seja, daqueles que participam do tráfego urbano. (checar se é realmente apenas tráfego urbano) (Objeto Jurídico)

Além disso, deve-se saber que qualquer pessoa habilitada ou não, pode ser agente delitivo, onde o sujeito passivo da infração é observado na coletividade, isto é, um número inderteminado ou inderteminável de pessoas que entram no raio de ação da conduta perigosa, onde independente se via píblica ou privada é fundamental que a conduta proibida seja realizada em locais em que haja outros veículos ou pessoas em vias abertas á circulação ou de utilização comum, para os quais haja risco em razão da condução pelo agente, pois do contrário será atípico. (Sujeito ativo e passivo)

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A nova redação da lei seca (Lei 12.760/12) Goiacy Campos dos S. Dunck; Davi Augusto Campos Dunck

A nova redação dada ao artigo 306 do CTB, pela lei 12.720/2012 é a seguinte: (Elemento Objetivo)

Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:Penas- detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.§ 1º As condutas previstas no caput serão constatadas por: I - concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou II - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora. § 2º A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova. § 3º O Contran disporá sobre a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo.

Para a condução de veículo automotor é necessário, como condição inicial para a existência do delito, que o acusado conduza um veículo automotor. Conduzir, para fins deste dispositivo, significa dirigir, colocar o veículo em movimento mediante o acionamento de seus mecanismos, sendo necessário que o veículo esteja ligado, ainda que o deslocamento dê-se em ponto morto ou na baguela. Exige-se o movimento do veículo automotor, apto a criar uma situação de potencial de perigo para os pedestres, passageiros ou demais condutores.

É importante ressaltar, que o novo Código de Trânsito Brasileiro continua classificando os veículos automotores quanto à tração em seu artigo 96. Todavia, em seu Anexo I (“Dos conceitos e definições”), apresenta uma clara conceituação, definindo assim, como veículo automotor:

todo veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios, e que serve normalmente para o transporte viário de pessoas e coisas, ou para a tração viária de veículos utilizados utilizados para o transporte de pessoas ou coisas. O termo compreende os veículos conectados a uma linha elétrica e que não circulam sobre trilhos (ônibus elétrico).

Em relação a capacidade psicomotora alterada, reside uma inovação do legislador, pois não é suficiente a simples ingestão de álcool ou uso de drogas pelo motorista do automotor é essencial que o consumo das substâncias psicoativas que causam dependência altere sua capacidade psicomotora e com efeito, reduza suas faculdades para a condução do veículo. Sabe-se que é

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distinta a forma como o álcool e/ou uma droga afeta cada pessoa ou a mesma pessoa, mas em situações diferentes.

Assim, desconsiderando-se as desiguais caracteírsticas pessoais dos condutores, a alteração psicofísica deve ser observada por um conjunto de sinais, como, por exemplo, comportamento impaciente ou irritado, dificuldade de comunicação com os agentes de trânsito ou de resposta a simples perguntas ou, ainda, de permanecer no local indicado pela autoridade policial ou de pecorrer pequeno trajeto determinado, entre outros.

Tratando-se de requisito expresso no tipo penal, em cada caso concreto é necessário comprovar, não basta presumir, a alteração da capacidade psicomotora, já que é possível que em muitos acidentes de trânsito possa o agente entrar em estado de choque exibindo sinais e sintomas próximos aos do consumo de álcool ou de drogas, contudo apenas aparentando estar alcoolizado ou drogado.

É de suma observância analisar a expressão “em razão da influência”, constante no preceito primário do art. 306 do CTB .Como elemento normativo do tipo penal, exige valoração pelo magistrado, consistente na análise caso a caso da influência do álcool ou das drogas na condução do veículo automotor. Além da alteração da capacidade psicofísica na pessoa do condutor, necessário que se estabeleça o efeito que o álcool ou as substâncias psicoativas casuam na própria condução realizada pelo agente infrator. Por exemplo:

Não basta, para a configuração adequada, a constatação da substância ilícita em si, porém, sobretudo, que o condutor, pelo seu uso, estivesse sob a influência dela, atestado por profissional habilitado mediante exame adequado. Não se pode deslizar no imaginário de que a maconha foi utilizada e que, por si, tenha causado influência, pois se sabe que o THC depende de uma concentração específica” (TJSC, Autos de Ação Penal 023.09.032443-1, da Capital, rel. Juiz Alexandre Morais da Rosa, j. 5-11-2009)

É decisivo, avaliar a forma de condução do veículo automotor porquanto todo aquele que consegue controlar o perigo do consumo prévio de álcool ou das drogas não deve responder pelo delito, pois não criou contexto de risco potencial aos bens jurídicos penalmente tutelados ou a sua conduta não apresentou perigosidade real. Não é suficiente certo nível de álcool ou de drogas no sangue para a configuração do tipo penal, senão será preciso que o álcool ou as drogas influenciem realmente na condução do veículo pelo agente.

Em uma perspectiva teleológica, portanto, deve-se acrescentar outro elemento na descrição da conduta proibida consistente na criação de um potencial perigo ao bem jurídico. Trata-se de um “critério material-individual” segundo o qual haverá que

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determinar se certo nível de ingestão de álcool ou de drogas influenciou realmente a condução do sujeito no caso concreto que se examine, no qual conduzir o veículo automotor com elevada concentração etílica no sangue pode não constituir delito, mas apenas infração administrativa, se nenhum bem jurídico entrar no raio de ação da condução perigosa.

Importante frisar, relativamente à ingestão de álcool ou de outra substância psicoativa, por evidente, deve o acusado haver ingerido bebida alcoólica ou ter feito uso de outra substância psicoativa que determine dependência. Faz uso o legislador da fórmula de interpretação analógica, referindo-se de modo genérico, após exemplificação, a outras substâncias psicoativas que agem no sistema nervoso do condutor, alterando temporariamente seu comportamento.

isso posto, a circunstância mais comum é a ingestão de álcool ou, ao menos a mais verificada na prática, inclusive a determinação das bebidas que são consideradas alcoólicas não revela o problema. Conforme especialistas, podem ser diluídas ou concentradas, como a cerveja e o uísque, respectivamente. Igualmente segundo os especialistas, indiferente, também, que o motorista não tenha ingerido álcool pela via oral ou por substância que não seja exclusivamente líquida, pois o fundamental se relaciona com a influência efetiva de álcool na condução.

Nesse sentido, Leonardo Schmitt de bem (2013, p. 57) defende que:

O juiz deve proceder a uma interpretação restritiva da expressão, porque, do contrário, por exemplo, a ingestão da cafeína, a substância psicoativa mais consumida no mundo, poderá ensejar a punição do condutor do veículo automotor, onde se deve considerar as drogas tóxicas, os estupefacientes e as substâncias psicotrópicas. Ademais, o condutor que faz uso de medicamentos controlados, mesmo devidamente receitados por médicos, poderá ser responsabilizado criminalmente se os fármacos alterarem sua capacidade de psicomotora e a sua forma de condução.

Ainda no preceito, o legislador apresentou uma formulação genérica, materializada na expressão “ou outra substância psicoativa que determine dependência”. Está-se perante um conceito normativo que, para efeitos penais, entendemos albergar apenas as substâncias psicoativas proibidas ou ilegais aptas a influenciar a capacidade psicomotora do motorista e a sua condução.

As medidas consideradas pelo legislador para possível incidência penal foram estipuladas no art. 306, §1º, I, do Código de Trânsito: seis decigramas de álcool por litro de sangue ou três décimos de miligramas de álcool por ar expelido dos pulmões, No caso do bafômetro, porem, deve-se ainda considerar o valor correspondente ao seu erro máximo admitido, também expresso em miligrama de álcool por litro expirado.

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Há quem possa negar a eficácia ao exame pericial, especialmente porque não se realizou logo após o suposto flagrante. Essa oposição será descabida, pois, como o organismo humano elimina o álcool a uma velocidade de 0,15 grama/litro/hora, em média, será possível constatar se no momento da condução do veículo a alcoolemia era compatível com os índices legais.

É evidente que a prova de alcoolemia realizada pelo aparelho do bafômetro constitui meio idôneo para a aferição da concentração etílica do condutor do veículo automotor. Inclusive o Poder Executivo prevê que, nos procedimentos de fiscalização, deva-se priorizar a utilização do teste de bafômetro.

Neste contexto, ressalta Leonardo Schmitt de Bem (2013, p. 69):

Igualmente notório que a grande maioria dos condutores não se submeterá ao exame, invocando a aplicação (por uma ampliação jurisprudencial) do direito de não produzir prova contra si mesmo. Porém, principalmente como resposta á decisão do STJ, a prova técnica de alcoolemia tornou-se prescindível com a promulgação da recente Lei n. 12.760/2012.

Desta maneira, será desnecessário constar na ocorrência a recusa á submissão da prova pericial, em especial do teste de bafômetro, pois, além de ser prescindível, não há uma sequência de exames que deva ser respeitada. Está claro que o legislador faz o uso da conjunção “ou” na disciplina do §1º do art. 306 do Código de Trânsito, denotando a alternatividade da prova.

É importante observar que o Legislador previu no segundo inciso do §1º do art. 306 do Código de Trânsito, a possibilidade de outros critérios (sinais) indicarem a alteração da capacidade psicomotora do agente. Deste modo, o Contran disciplinou as evidências externas que atestam suficientemente a influência do álcool na condução do veículo automotor.

Assim, por exemplo: “em relação à aparência, se o condutor apresenta sonolência, olhos vermelhos, vômitos, soluços, desordem nas vestes, odor de álcool ou halitose alcoólica; Em relação á atitude, se o condutor apresenta agressividade, arrogância, exaltação, ironia, falante ou dispersão; quanto á orientação, se o condutor sabe onde está, sabe a data e a hora; em relação a memória, se o condutor sabe seu endereço e lembra os atos cometidos; e, quanto á capacidade motora e verbal se o condutor apresenta dificuldade de equilíbrio ou fala alterada.

É necessário ressaltar que o mais importante é que estes sinais próprios de quem ingeriu álcool ou fez uso de drogas deverão influenciar a condução do veículo automotor caracterizando conduta com potencial perigo aos bens jurídicos tutelados. Logo, a presença destes sintomas não caracteriza automaticamente a ocorrência do delito como pretende o Poder Executivo, pois se faz necessária uma condução

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anormal em razão da influência de álcool ou de outras substâncias psicoativas. É nesse sentido que o art. 306 do CTB será interpretado em sua completude.

De acordo com a redação do § 2º do art. 306 do CTB, há também a possibilidade de verificação da influência do álcool utilizando-se qualquer meio de prova em direito admitido, como os testes de alcoolemia (etilômetro ou bafômetro), exame clínico (laudo médico) firmado por um médico examinador oficial, as perícias (provas técnicas) através dos exames laboratoriais especializados, a prova de vídeo (filmagem), provas testemunhais e outras provas, tais como a coleta de urina, amostras de saliva ou até mesmo a própria confissão do motorista onde o mesmo admite que ele não estava em condições seguras para dirigir em razão do consumo prévio de álcool.

Pune-se a conduta dolosa, independente de qualquer objetivo específico. É suficiente, portanto, que o agente apenas tenha consciência de que conduz após o consumo de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que determine dependência, ou seja, não é necessário que conheça a concreta lesividade de sua conduta. É dolo genérico, apreciado no momento em que o agente decide-se pela ingestão da substância, e não quando da condução do veículo. (Elemento Subjetivo)

A tentativa não é freqüente no delito, mas admissível. Em que pese tratar-se de delito de perigo abstrato, no qual há uma antecipação da punição, a tentativa pode acontecer nos casos em que o sujeito se coloca diretamente a efetuar os atos de condução com afetação do bem jurídico tutelado penalmente e não pode prosseguir por causas distintas de sua própria e voluntária desistência, como, por exemplo, cai desmaiado pela sua própria ebriedade. (Tentativa)

O delito do artigo 306 se consuma quando o agente, sob a influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, conduz o veículo automotor anormalmente provocando com sua ação um risco potencial para a vida, a integridade física ou o patrimônio das pessoas presentes no tráfego viário. Trata-se de delito de caráter permanente, pois a consumação se prolonga durante todo o tempo da condução do veículo automotor sob influência de álcool ou de uma droga por exemplo. (Consumação)

O delito do art. 306 do CTB é concretizado na realização da conduta em abstrato perigosa, independente da produção de algum resultado. Entretanto, pode ocorrer de o bem jurídico tutelado penalmente ser efetivamente lesionado. Deste modo, nos contextos de concretização efetiva de um delito de dano, o condutor alcoolizado ou drogado apenas responderá pela lesão corporal culposa (art. 303), ou pelo homicídio culposo (art. 302) ficando absorvido o delito do art. 306 do CTB. (Concurso aparente de normas)

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Dentro da ótica dos crimes de trânsito, a natureza jurídica do crime de embriaguez ao volante sempre foi muito contestada e controvertida pela doutrina. O debate fica estabelecido em duas diferentes linhas interpretativas, quais sejam, o crime de perigo abstrato presumido (ou puro) e o crime de perigo abstrato de perigosidade real. (Classificação do Crime)

A ação penal é pública incondicionada e o rito processual é o dos crimes apenados com detenção (art. 539, CPP)

3 AS INFRAÇÕES DA NOVA LEI SECA

3.1 A infração adminitrativa do artigo 165 do ctb

A infração administrativa do art. 165 tem a seguinte redação. Textualmente:

Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Infração – gravíssima.Penalidade - multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses.Medida administrativa - recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo, observado o disposto no § 4º do art. 270 da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 - do Código de Trânsito Brasileiro. Parágrafo único. Aplica-se em dobro a multa prevista no caput em caso de reincidência no período de até 12 (doze) meses.

Além disso, nosso legislador determinou que o Conselho Nacional de Trânsito estabelecesse as margens de tolerância quando a infração administrativa for apurada por aparelho de medição. Textualmente:

Art. 276. Qualquer concentração de álcool por litro de sangue ou por litro de ar alveolar sujeita o condutor ás penalidades previstas no art. 165.Parágrafo único. O Contran disciplinará as margens de tolerância quando a infração for apurada por meio de aparelho de medição, observada a legislação metrológica.

Desta maneira, com o objetivo de impedir a condução de veículos automotores por motoristas sob a influência de qualquer concentração de álcool ou de qualquer substância psicoativa que determine dependência, manteve-se a penalidade de suspensão do direito de dirigir por doze meses, entretanto o valor da multa administrativa foi dobrado (de cinco para dez vezes), ficando no valor de R$ 1.915,30.

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Além disto, em caso de reincidência no período de até doze meses (contados, evidentemente, do trânsito em julgado da primeira infração), prevê-se a aplicação em dobro (vinte vezes) da multa, ou seja, R$ 3.830,60.

É interessante observar que além da multa, o legislador também previu (para o agente infrator) a suspensão do direito de dirigir por doze meses, bem como a medida administrativa de retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado, que também será submetido à fiscalização. Caso ninguém se apresente, o veículo será recolhido ao depósito do órgão competente. Da mesma forma, o documento de habilitação será recolhido e permanecerá sob custódia do órgão de trânsito responsável, quando poderá ser retirado pelo próprio condutor, comprovado que não está com a capacidade psicomotora alterada. No caso em que o condutor não retirar em cinco dias, o documento será remetido ao órgão executivo de trânsito responsável pelo seu registro.

3.2 Distinção entre a infração criminal e a infração administrativa

As infrações) criminal (art. 306) e administrativa (art. 165) possuem praticamente (para não dizer literalmente) a mesma redação. O novo texto do crime do art. 306, com a nova redação, fala que: “Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotor alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência.” Já a infração administrativa tem a seguinte redação: “Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer substância psicoativa que determine dependência.”

Como se vê, a literalidade da redação de ambas as infrações são praticamente idênticas. Tudo isso resultou mais que confirmado na nova Resolução n.432/2013 do Contran (que fala expressamente em alteração da capacidade psicomotora nas duas infrações). Considerando essa identidade conceitual, o Contran, através desta resolução n. 432/2013 adotou o critério quantitativo (até 0,33 miligrama de álcool por litro de ar alveolar expirado, é infração administrativa, acima disso, é crime). Diante de tal constatação, verifica-se que esse critério está completamente equivocado.

Imagine um motorista hipersensível ao álcool, com 0,28 ou 0,32 mg/l, que faça “barbaridades absurdas” no trânsito (zigue-zague, suba na calçada, bata em outro veículo, passe no sinal vermelho) etc.) Pelo critério quantitativo, responderia por infração administrativa (quando, na verdade, estamos diante de um crime.) Deste modo, a diferença não deveria ser quantitativa (tal como estabelecido na Resolução n.432/2013), mas sim, qualitativa.

Portanto, onde está escrito “sob a influência (art. 165), leia-se “sob a presumida influência de...”. Trata-se de uma infração de perigo abstrato puro, fundado no risco

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generalizado para a segurança viária e a condução segura, risco esse (presumido) coligado com a condução embriagada.

Nessa esteira, ressalta Luiz Flávio Gomes (2013, p.122):

Para a infração administrativa do art. 165 basta, portanto a condução do veículo automotor (“dirigir”) sob o presumido efeito do álcool ou outra substância psicoativa. A ingestão do álcool ou outra substância precisar ser comprovada. Seus efeitos é que são presumidos. Não se faz necessário comprovar que essa impregnação etílica tenha efetivamente influenciado a forma de conduzir ou que tenha concretamente alterado a capacidade psicomotora do agente. Tudo é presumido, de forma abstrata e feral (estatística). Daí a implantação da política de tolerância zero de álcool no sangue.

Condução de veículo automotor + ingestão de álcool ou outra substância psicoativa: apenas esses dois requisitos são necessários para que haja a infração administrativa do art. 165 do CTB. Ambos devem ser devidamente comprovados, pelos meios de provas admitidos em direito. Em regra, essa situação de perigo abstrato puro acontece nas blitze, quem em geral surpreendem um motorista bêbado, mas que está dirigindo com certo controle do veículo. Numa blitz, não temos a situação (normalmente) de um motorista que esteja sendo perseguido por ter seu veículo conduzido .Nesse caso, a influência do álcool ou mesmo a alteração da capacidade psicomotora não necessita de comprovação, pois é presumida (presunção abstrata pura).

Na infração administrativa, o agente, apesar da ingestão do álcool ou outra substância psicoativa, conduz o veículo (ainda) de forma não anormal. Há uma relativa e presumida perda da capacidade psicomotora, porém nenhum rebaixamento concreto de nível de segurança viária decorrente de uma condução anormal. Dessa forma o agente não viola visivelmente, notoriamente, ostensivamente o princípio da condução segura nem o nível mínimo da segurança viária em virtude de uma condição anormal. Desta maneira, não rebaixa, com uma condução penalmente irregular a segurança viária. Caso isso ocorra, incidirá o delito do art. 306.

Não se pode afirmar que o condutor bêbado não rebaixe o nível de segurança dirigindo. Com certeza rebaixa. Mas isso ainda acontece no contexto de uma direção não penalmente anormal, não penalmente irregular (como dirigir em zigue-zague, invadir a contramão, subir em calçada, etc.).

Quem, portanto, apesar da ingestão de álcool ou outra substância psicoativa, dirige (ainda) de maneira normal, (ainda) com certa segurança, com domínio (relativo) da direção, sem afetar concretamente, com uma direção penalmente anormal, determinado nível de segurança viária, muito menos de forma ostensiva

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ou notória o princípio da condução segura, responderá tão somente pela infração administrativa e não pela infração penal. Tudo é uma questão de valoração, cuja palavra será do juiz. Com esse critério, afasta-se o critério quantitativo adotado na Resolução n. 432/2013, que é analisado de maneira totalmente equivocada.

3.3 O crime de perigo abstrato de perigosidade real no artigo 306 do CTB

O novo tipo penal, na medida em que exige “capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência”, nitidamente se distanciou dos dois anteriores modelos (de 1997 e de 2008). Se o legislador alterou a redação da lei, agregando algo que antes não existia, parece muito evidente que houve alteração no perigo abstrato puro ou presumido de 2008.

Desde logo, está claro o seguinte: o novo tipo penal, em sua literalidade, não exige comprovação de dano potencial concreto “a outrem”, e não se contentou com a (mera) presunção da influência e da alteração da capacidade psicomotora a partir de uma certa quantidade de álcool por litro de sangue (6 dg). Nem uma coisa, nem outra.

As duas novas exigências formais contidas no art. 306 (alteração da capacidade psicomotora do agente e influência do álcool ou outra substância) devem ficar devidamente comprovadas em juízo. Isso, todavia, não implica o perigo concreto determinado (com vítima certa). O novo artigo 306 do CTB seguiu o caminho do perigo abstrato, porém, aí não se contemplou o chamado perigo abstrato puro ou presumido (tal como ocorria na última redação, de 2008), mas sim, o perigo abstrato de perigosidade real, que tem equivalência dogmática com o perigo concreto indireto (ou indeterminado).

Uma das teoricamente possíveis interpretações do art. 306 seria concebê-lo como crime de perigo abstrato presumido (ou puro), fundado no critério quantitativo, no sentido de que competiria à acusação comprovar unicamente a direção do veículo automotor e a ingestão do álcool ou de outra substância psicoativa, presumindo-se, a partir dessas circunstâncias, tanto alteração da capacidade psicomotora quanto a influência da substância psicoativa do agente.

Entretanto, Luiz Flávio Gomes (2013, p.137) defende que:

Não basta a conduta de dirigir, depois da ingestão de álcool ou outra substância psicoativa. O tipo penal do art. 306 faz outras exigências normativas concretas (não presumidas, como no art. 165): (a) capacidade psicomotora alterada; e (b) influência na forma de condução do veículo. Esses dois requisitos concederam ao tipo penal uma carga material, que não condiz com o mero perigo abstrato puro (ou presumido). Eles não podem ser presumidos, pois estão expressamente

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contemplados na lei, logo, devem ser provados. Aliás, é com essa prova (de real perigo para a segurança viária) que se desfaz a presunção de inocência.

Deste modo, é preciso a criação de um risco proibido penalmente relevante, decorrente da constatação da influência de álcool ou outra substância psicoativa, visto que é ele quem de fato, afeta o interesse intermediário da segurança viária. Sem a afetação real (ou concreta) desse interesse intermediário, não há que se falar em crime. Impõe-se que o delito ultrapasse o umbral da infração administrativa. Em outras palavras, apenas com essa afetação concreta do interesse instrumental (ou intermediário) é que fica comprovado o perigo de perigosidade real.

Assim, o critério quantitativo é incorreto, porque generaliza uma situação que é diferente em cada pessoa e, além do mais, é inócuo, pois pressupõe o exame de sangue ou etilômetro, que não é obrigatório (basta recusar o exame e está desfeito o critério quantitativo). Ele vale tão somente para quem se submete ao exame, e não vale para os outros motoristas. Tratamento desigual para situações diferentes.

Desarte, a nova redação do artigo 306 do CTB trata-se de um tipo penal de perigo abstrato de perigosidade real. Na prática significa que, não basta o ato de conduzir veículo automotor após ter ingerido álcool ou outra substância. Além dessas duas (condução de um veículo + ingestão de álcool ou outra substância psicoativa), outras três comprovações em juízo são necessárias: (1) a capacidade psicomotora alterada do condutor, (2) em razão do álcool ou outra substância psicoativa, e (3) influência do álcool ou outra substância psicoativa na forma de conduzir.

Essas três novas exigências típicas, agora, não podem mais ser presumidas. Passaram a compor a descrição legal. Devem ser efetivamente narradas na denúncia e comprovadas em juízo. Interessante ressaltar que antes, na redação de 2008, a presunção era possível, porque o tipo penal só falava em 6 dg/l de sangue. Além disso, não se exige (tal como em 97) a comprovação de um dano potencial a vítima concreta (“incolumidade de outrem”) e, por isso, o novo tipo penal não requer vítima concreta.

Como é dispensável que haja vítima concreta, basta a comprovação de que o agente não estava em condições de dirigir com segurança (capacidade psicomotora alterada) em razão de uma embriaguez visível e de elevado grau ou que tenha praticado uma condução irregular. O que estamos chamando aqui de embriagues visível é unicamente a que revela elevado grau (nível) de comprometimento da capacidade psicomotora do motorista. Quem dessa forma (com elevado e notório nível de embriaguez: 1,5 gramas para cima, por exemplo), conduz veículo automotor, sobretudo em via pública, viola de forma indubitável o princípio da condução segura.

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Atualmente, há muita divergência sobre qual poderia ser de fato o nível de embriaguez para ser considerada elevada. Existe um certo consenso em torno da quantificação de 1,5 gramas, a partir daí o condutor já estará (em geral) visivelmente embriagado, e uma embriaguez visível de (1,5 g/l) certamente implicará uma condução anormal. Obviamente que tudo isso vai depender do caso concreto. Assim sendo, O critério da condução anormal é muito mais justo e equilibrado que o critério quantitativo.

À vista disso, Luiz Flávio Gomes (2013, p. 133) explica que:

para a configuração do crime do art. 306 do CTB necessita-se de uma condução irregular (anormal ou perigosa), que implique a criação de um risco real para os bens jurídicos. Dirigir de maneira anormal significa dirigir em zigue-zague, ultrapassar o sinal vermelho, não observar o ‘pare’, colidir com um poste, dirigir na contramão, sobe a calçada, bater em uma mureta etc.

Por conseguinte, a partir da condução irregular, está firmado um grande indício de que o agente dirige sob a influência de substância psicoativa, no qual o bem jurídico protegido (vida, integridade física, patrimônio etc.) entra em risco indireto, e, por isso, estamos diante de um crime de perigo concreto indeterminado (não necessita apresentar vítima concreta, basta apenas comprovar o risco efetivo). Percebe-se assim, de maneira mais clara, que, o novo art. 306 trata-se de um crime de perigo de perigosidade real, que teoricamente equivale ao perigo concreto indeterminado (ou indireto).

4 CONCLUSÃO

Pretendeu-se com este trabalho conhecer as questões relacionadas com as consequências jurídicas trazidas pela vigência, aplicação e posterior a análise literal da nova lei em conformidade com a prática, através da condução do motorista de um veículo automotor com a capacidade psicomotora alterada.

Tendo em vista as pesquisas realizadas, pode-se constatar que a referida Lei, tem como objetivo principal, alcançar um maior número de punições, considerando a correlação entre o consumo de álcool e/ou drogas e direção de veículo automotor, a probabilidade de acidentes de trânsito é significativa. Entretanto, vemos que a nova lei não é executada na prática conforme a literalidade de sua atual redação.

Quanto à finalidade da nova lei, creio que não é de forma alguma, motivo de debates. Todo se humano busca e debate seus direitos, a fim de seu bem estar e preservação de sua vida e de familiares, tanto no trânsito como em qualquer situação do cotidiano.

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Quanto aos objetivos propostos pela nova Lei, são de extrema importância, e, por isso, necessita da observância e do conhecimento da população, pois, alcançá-los, podem significar salvar mais vidas. Entretanto, quantos aos meios, não se pode negar que, infelizmente ainda é falho.

Conforme exposto durante esta pesquisa, tais falhas vêm desde os princípios fundamentais que são feridos, até os meios de constatação, administrativos e criminais, da embriaguez.

Por imediato, indubitavelmente, tal assunto abrirá espaço para mais comentários, com diversas interpretações e críticas, e certamente fruto ainda de muitas discussões, de acordo com todo o conflito supracitado.

Em relação ao aspecto Jurídico, restou-se demonstrado, que será de grande validade, para toda a população, prosseguir em busca de um entendimento mais claro, para que assim, todos possam atuar em defesa à justiça e dos direitos fundamentais.

Diante de tudo isso, pode-se concluir que nada vai adiantar se a população, de modo geral, não se conscientizar de que não é só coação, não é só repressão, são milhares e milhares de vidas que que estarão sendo preservadas. Creio também que a prevenção antes do castigo resultaria em medida mais adequada, na qual a adoção da medida de política social (menos evasiva do que a punição penal) poderia apresentar melhores resultados na tutela de bens jurídicos como a vida e integridade física. Obviamente, que, se os motoristas continuarem nesse ritmo, infelizmente o “castigo” deverá preponderar.

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