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Mito e Fantasia -
franklin goldgrub
8º Capítulo
A compatibilidade essencial
Os ciclos de reciprocidade e a constituição do sujeito
Se de fato essa convergência (poderíamos até mesmo dizer
complementaridade) entre as respectivas obras se sobrepõe às
contumazes críticas dirigidas por Lévi-Strauss a Freud, então, deveria ser
possível detectá-la a um nível mais fundamental, o da ética - nitidamente
distinguível, decerto, de um moralismo primário.
Efetivamente, é possível constatar mais essa comunhão de perspectivas
através do papel que ambos os autores conferem aos princípios de
reciprocidade e de realidade. Embora tanto o etnólogo como o decifrador
de sonhos dêem exaustivas mostras de imparcialidade - jamais exibem
posturas desaprovadoras em relação à organização dualista, casamento
patrilateral, psicose, neurose ou -, não é impossível detectar em seus
escritos uma posição preconizante. De fato, percebe-se a valorização do
casamento matrilateral em Lévi-Strauss, assim como é perceptível certo
partidarismo freudiano pela resolução dita "positiva" do Édipo (ou seja,
identificação sexual com o progenitor do mesmo sexo). Em ambos os
casos, trata-se menos de uma reiteração dos preconceitos sociais
vigentes - o que seria de fato surpreendente em iconoclastas desse naipe
- do que uma espécie de conseqüência inevitável da adoção de um
critério preferencial em relação à diferença e à alteridade, já no interesse
em resgatar as sociedades primitivas e a infância da condição de
inferioridade.
Nesse sentido, uma demonstração que quisesse ser convincente deveria
recapitular as sínteses finais de As estruturas elementaresdo parentesco,
relativas às três modalidades que resumem, em suas formas puras, as
instituições exogâmicas dos povos sem escrita e, posteriormente,
compará-las com as fases de desenvolvimento da libido, que expressam,
uma vez depuradas de seu significado anatômico-fisiológico, a lógica do
processo de constituição do sujeito na teoria freudiana. Não se ignora o
caráter arriscado de uma comparação que associa conceitos tão
específicos e aparentemente desconexos. Entretanto, caso a analogia
seja pertinente, o procedimento se justifica se puder demonstrar-se mais
um elo comum entre as duas obras. Confirmar-se-ia, então, por um novo
ângulo e com evidências inéditas, que Freud e Lévi-Strauss seriam sócios
majoritários numa empresa radical: o estudo (ontológico) da constituição
do sujeito e da cultura. Entende-se também, a partir dessas
considerações, porque a questão ética constitui uma preocupação central
para ambos; na medida em que se trata de focalizar a descontinuidade
entre natureza e cultura, é preciso refletir sobre o tema do "excesso
agressivo e sexual" decorrente da substituição dos mecanismos
adaptativos por outros princípios. A transmutação da necessidade em
desejo e do acasalamento procriativo em aliança não se dá, obviamente,
como resultado de uma decisão pensada ou por escolha deliberada. Em
oposição à ciência positivista, que tenderia a homogeneizar as diversas
manifestações do biológico subsumindo-as numa teleologia
adaptacionista, e à filosofia tradicional, que fundamentava a especificidade
humana em privilégios vizinhos aos reivindicados pela fé - livre-arbítrio,
consciência soberana e razão -, tanto Freud como Lévi-Strauss
perscrutam o inconsciente via linguagem, ou seja, procuram captar
através do discurso (imaginário: fantasia e mito) os fenômenos relevantes
para pensar as categorias de desejo e lei.
Por outro lado, a problemática não poderia ser alheia à focalizada por uma
disciplina consagrada ao estudo de um outro tipo de excedente, relativo à
produção, cujo advento geraria conseqüências igualmente conflitivas. Dito
de outra forma, a consideração de uma possível articulação entre
antropologia estrutural e psicanálise freudiana enquanto ciências da
cultura e do sujeito não teria como deixar de suscitar a problemática do
contato com o marxismo, questão cujos prolegômenos - não mais do que
isso - serão esboçados adiante. Antecipar-se-á que o elemento comum a
essas teorias diz respeito à tematização da relação com o outro. De fato,
os respectivos universos teóricos tratam de uma alternativa que se reitera
sob manifestações peculiares ao sujeito, aos clãs e às sociedades
históricas: reconhecimento ou não da alteridade, aliança ou hostilidade,
igualdade ou hierarquização social1.
A hipótese teórica de Lévi-Strauss, relativa às instituições exogâmicas das
populações primitivas, soluciona os enigmas com os quais se debatia em
vão a antropologia pré-estruturalista, guiada por uma perspectiva
etnocêntrica que via nas normas matrimoniais indígenas a confusa
expressão de um espírito primário. De fato, não se entendia por que as
primas eram alternativamente prescritas ou proibidas, desde que o grau
de consanguinidade efetivamente permanece o mesmo quando se
compara a filha da irmã da mãe ou do irmão do pai (primas paralelas),
com a filha da irmã do pai (prima cruzada patrilateral) ou a filha do irmão
da mãe (prima cru/ada mu-trilateral). Sem dúvida, o problema torna-se
insolúvel quando abordado pelo ângulo da genética ou através de uma
lógica restrita aos valores professados, isto é, dentro do referencial
pertencente à cultura do observador.
Segundo Rivers, "é muito difícil ver como tal regulamentação (o
casamento dos primos cruzados) pode ter base psicológica objetiva e
conceber algum motivo que pudesse tornar desejável o casamento dos
filhos do irmão e da irmã, ao passo que o casamento entre filhos de
irmãos ou filhos de irmãs seria tão rigorosamente proibido" (apud Lévi-
Strauss, 1976b, p. 492). Dentro desse espírito, a conclusão inevitável é
que as prescrições matrimoniais clânicas são uma "instituição destituída
de sentido".
O etnocentrismo sustenta o arcabouço preconceituoso mas, ele próprio,
por seu turno, repousa numa concepção epistemológica que não deixa
outra saída senão negar a significação visada, refratária ao instrumental
forjado em obediência a seus pressupostos.
"Esses postulados podem ser resumidos da seguinte maneira: uma
instituição humana só pode provir de duas fontes, a saber, ou de uma
origem histórica e irracional, ou de um propósito deliberado, por
conseguinte, de um cálculo do legislador; em suma, de um
acontecimento ou de uma intenção. Se, portanto, não se pode atribuir
nenhum motivo racional à instituição do casamento dos primos cruzados,
é porque resulta de uma série de acontecimentos históricos, que são por
si mesmos destituídos de significação. A antiga psicologia não
raciocinava de outra maneira. Segundo seu modo de ver, ou as noções
matemáticas demonstravam a essência superior e irredutível do espírito
humano, constituindo propriedade inata, ou, então, era preciso admitir
que seriam inteiramente construídas a partir da experiência, pelo jogo
automático das associações"2. (Lévi-Strauss, 1976b, p. 139.)
Na perspectiva estruturalista, ao inatismo - biológico ou "espiritual" (metafísico) - e ao associacionismo - ambiental ou histórico-social -
opõe-se como fator epistemológico o inconsciente, cujo núcleo gira em
torno da significação. De acordo com o último pressuposto, não poderia
haver comportamento ou instituição humana desprovidos de sentido. A
demonstração de uma tal concepção implicará, sem dúvida, um difícil
debate sobre critérios metodológicos, mas já é certo, desde o princípio,
que para seus adeptos nenhum problema será abandonado como
irrelevante, ou banido, a qualquer outro pretexto, da jurisdição científica. A
obtenção de sentido exigirá exaustivos procedimentos aos quais serão
submetidos os materiais colhidos, visando detectar as oposições de cuja
relação surgirá a significação. Com relação ao regime matrimonial das
sociedades primitivas, o exame do material etnográfico conduz o etnólogo
à sua célebre fórmula que assim resume as estruturas elementares do
parentesco:
Casamento bilateral: ciclo nulo; fórmula: A <-> B
Casamento patrilateral: ciclo curto; fórmula: A -> B
B <- A
Casamento matrilateral: ciclo longo; fórmula: A -> B -> C
(Lévi-Strauss, 1976b, p. 507.)
O casamento bilateral está ligado ao que se conhece em antropologia por
organizações dualistas. Este conceito está sujeito a controvérsias,
sobretudo devido às insuficiências do enfoque histórico empregado para
defini-lo. "Apela-se para a ignorância em que nos encontramos sobre a
origem, a evolução e as formas de decomposição das organizações
dualistas. Seria preciso, contudo, para ousar afirmar seu valor funcional,
conhecer o decreto que, em tal ou qual caso particular, as teria
instituído?" (Lévi-Strauss, 1976b, p. 114.) A orientação preconizada por
Lévi-Strauss é diversa: a organização dualista "é, antes de mais nada, um
princípio de organização" que só pode ser apreendido enquanto uma das
formas assumidas pela reciprocidade, e, nesse sentido, para
compreendê-la, mais vale "invocar certas estruturas fundamentais do
espírito humano e não esta ou aquela região privilegiada do mundo ou
período da história da civilização" (1976b, p. 114).
Pela expressão "organização dualista" se entende um sistema de metades
exogâmicas3. Os clãs A e B trocam suas mulheres; ambas as primas
cruzadas (filhas de irmãos de sexo diferente) serão, pois, cônjuges
possíveis, enquanto as primas paralelas, inversamente, permanecem
proibidas. A razão é simples: estas últimas, por pertencerem
necessariamente ao mesmo clã que ego, são designadas pelo mesmo
termo que nomeia as irmãs, visto que os respectivos progenitores (do
mesmo sexo) são necessariamente irmãos - ou primos paralelos, mas,
neste caso, categorizados igualmente como irmãos. A expressão ciclo
nulo designa a mútua complementaridade das metades exogâmicas: os
clãs A e B trocarão suas mulheres sem que qualquer outro grupo
intervenha. A divisão da organização dualista em subsecões matrimoniais
obedece a razões de crescimento demográfico, mas, através da
cissiparidade, não faz senão reproduzir o mesmo princípio.
Lévi-Strauss designa esse tipo de prescrição matrimonial pela expressão
"troca restrita". Diferentemente, os casamentos unilaterais, quer com a
prima patrilateral (filha da irmã do pai) ou com a prima matrilateral (filha do
irmão da mãe), serão categorizados como regimes de "troca
generalizada". Entretanto, o casamento unilateral também pode ser objeto
de uma distinção: se o cônjuge preconizado for a prima patrilateral, os
grupos se comunicarão através de um ciclo curto, em contraposição à
preconização da prima matrilateral, que liga os clãs numa seqüência
ilimitada, dando lugar ao chamado ciclo longo. Esta última distinção diz
respeito ao número de grupos envolvidos nas prestações matrimoniais.
De fato, se numa dada geração, ego, do clã A, se casa com sua prima
patrilateral do clã B, sua filha, na geração seguinte, voltará ao clã B de
onde ego recebera a esposa, pois esta restituirá suas filhas a seu clã de
origem, isto é, a seu irmão.
Geração I
Geração II
Notar-se-á que o clã B apenas se comunica com o clã A e o clã C,
alternadamente. Numa geração recebe-se a mulher de um clã, na
seguinte restitui-se-lhe a filha. Assim, o casamento com a filha da irmã
do pai vincula três grupos, novamente fechados entre si; se numa geração
B cede suas mulheres a A, C cede suas mulheres a B, e A cede suas
mulheres a C, na seguinte, o sentido da troca é invertido: A a B, B a C, e
C a A. É verdade que nada impede que outros grupos sejam integrados
ao circuito, mas esta possibilidade não elimina o fato de que a
comunicação permanece concentrada em três grupos, num movimento
de vaivém. É interessante verificar que este sistema está freqüentemente
associado ao privilégio avuncular, isto é, casamento do tio com sobrinha,
instaurando, assim, um hiato de geração entre os cônjuges, dentro de um
regime poligâmico.
O outro tipo de casamento representativo da troca generalizada preconiza
a união com a prima matrilateral, isto é, a filha do irmão da mãe.
Aparentemente, não há diferença entre os casamentos unilaterais. Tratar-
se-ia de uma maneira equivalente de assegurar a solidariedade e, em
oposição ao vínculo bilateral, manter o circuito aberto à integração de
outros grupos. Entretanto, Lévi-Strauss mostra que esses tipos de
casamento diferem consideravelmente:
"Construamos os dois quartetos correspondentes ao casamento com a
filha do irmão da mãe e ao casamento com a filha da irmã do pai:
Filha do irmão Filha da irmã
da mãe do pai
Do ponto de vista puramente formal, o primeiro apresenta uma "estrutura
melhor" que o segundo, no sentido dessa estrutura constituir o mais
completo desenvolvimento concebível do princípio de cruzamento, sobre
o qual repousa a própria noção de primo cruzado. Tudo se passa como
se uma virtude especial - cuja natureza foi, aliás, determinada por nós - se
ligasse, no casamento dos primos cruzados, ao que chamamos pares
assimétricos, isto é, formados por um irmão e uma irmã, em oposição aos
pares simétricos, formados respectivamente por dois irmãos ou duas
irmãs".
[...]
"Se generalizarmos esta noção de par assimétrico, podemos dizer que o
quarteto construído sobre o casamento com a filha do irmão da mãe é
formado de quatro desses pares. Um irmão e uma irmã, um marido e uma
mulher, um pai e uma filha, uma mãe e um filho. Isto é, de qualquer
maneira que analisarmos a estrutura, os homens e as mulheres
apresentam-se regularmente alternados, como devem apresentar-se
aqueles dos quais nasceram primos cruzados (e, mais geralmente,
cônjuges potenciais em uma organização dualista). O quarteto do
casamento com a prima matrilateral representa a aplicação sistemática a
todos os graus de parentesco, da relação formal de alternância dos
sexos, de que depende a existência de primos cruzados.
A estrutura do segundo quarteto, embora tenha, afinal de contas, o valor
global, é menos satisfatória. Ao interpretá-la, como fizemos, por meio da
estrutura precedente, só encontramos nela dois pares assimétricos, irmão
e irmã, marido e mulher, e dois pares simétricos, pai e filho, mãe e filha.
Por conseguinte, esta estrutura, se assim é possível dizer, só está de
acordo com o arquétipo pela metade. E também pela metade conserva a
relação fundamental da simetria dos pares, de que depende a existência
dos primos paralelos". (1976b, p. 486-7.)
Estas primeiras considerações são suficientes para dar o primeiro impulso
a uma analogia sumamente temerária: de fato, passamos a postular o
paralelismo entre a lógica das estruturas elementares de parentesco e a
que subjaz ao processo de constituição do sujeito no âmbito das fases de
desenvolvimento da libido. Obviamente, o menos importante nessa
comparação é a coincidência numérica - três estruturas e três estádios -
mesmo porque o pareamento entre casamento bilateral e fase oral,
casamentos patrilateral e matrilateral com as tendências regressiva e
progressiva associadas ao período edipia-no (fase fálica) constitui uma
aproximação rudimentar.
Não obstante, não há outro ponlo de partida para abordar a questão.
Sabe-se que Lévi-Strauss se opõe a considerações histórico-
evolucionistas tendentes a serializar as modalidades conjugais conforme
um eixo desenvolvimentista. Mesmo assim, ele não deixa de reconhecer
que a "...distribuição das organizações dualistas apresenta, com efeito,
caracteres que as tornam, entre todas, notáveis. Não são aparentes em
todos os povos, mas encontram-se em todas as partes do mundo, e
geralmente associadas aos níveis de cultura mais primitivos. [...] Na
Melanésia, Codrington, Rivers, Fox e Deacon estão de acordo em
reconhecer, quase nos mesmos termos, que constituem a estrutura social
mais arcaica" (Lévi-Strauss, 1976b, p. 109).
O discurso do etnólogo sobre as metades exogâmicas põe em relevo o
seu caráter constitutivo. De fato, trata-se de um mecanismo quase
obrigatório se se imagina uma humanidade recém-constituída, como aliás
ressalta de um mito Nuer:
"Um tal Gau, descido do céu, casou-se com Kwong (sem dúvida,
também ela chegada do céu em data anterior) [...] e teve com ela dois
filhos, Gaa e Kwook, e um grande número de filhas. Como não dispunha
de ninguém com quem casá-las, Gau designou várias de suas filhas para
cada um dos dois filhos, e a fim de evitar as calamidades resultantes do
incesto realizou a cerimónia de cortar em dois um bezerro, no sentido do
comprimento [...] e decretou que os dois grupos poderiam casar-se entre
si, mas nem um nem outro em seu próprio interior". (1976b, p. 110.)
Lévi-Strauss comenta: "...o mito explica evidentemente a origem dos
pares exógamos" (1976b, p. 110).
Portanto, essa diferenciação entre os dois pólos de um mesmo par, que
caracteriza e tipifica as metades exogâmicas, pode ser perfeitamente
aproximada do processo pelo qual se dá o nascimento psicológico da
criança, a partir do momento em que ela se concebe representada por
uma imagem especular que representa o olhar da mãe. O
reconhecimento, por parte desta, da alteridade de seu descendente,
constitui o momento inaugural da barreira erguida contra o incesto; em
compensação, essa separação é atenuada pelos laços estabelecidos
entre o bebê e sua progenitora, os quais, na vigência do primeiro ano de
vida, são tão exclusivos como os decorrentes das relações
complementares entre os dois grupos da organização dualista4.
A troca restrita institui o número dois e detém-se nele, mesmo quando as
seções e subsecões matrimoniais dão conta do crescimento demográfico
do grupo:
"Compreendemos sob o nome de troca restrita todo sistema que divide o
grupo, efetiva ou funcionalmente, em um certo número de pares de
unidades de troca, tais que, em um par qualquer X - Y, a relação de troca
seja recíproca, isto é, que um homem X casando-se com uma mulher Y,
um homem Y deve sempre poder casar-se com uma mulher X [...] Se
supusermos que a uma dicotomia fundada sobre um dos dois modos de
filiação se superpõe uma dicotomia fundada sobre o outro, teremos um
sistema com quatro seções, em lugar de duas metades. Se o mesmo
procedimento se repetir, o grupo compreenderá oito seções em vez de
quatro. Assistiremos, portanto, a uma progressão regular, mas nada há
que se assemelhe a uma mudança de princípio ou a uma brusca
inversão". (1976b, p. 187.)
Pode-se dizer que o bebê se encontra em "troca restrita" permanente;
quem quer que seja o adulto, deverá sempre desempenhar o mesmo
papel de figura materna, e somente sob essa condição não será um
estranho. Além disso, o bilateralismo tem o significado da in-diferenciação
(entre os primos cruzados de ambos os ramos), o que novamente
encontra correspondência numa situação típica do primeiro ano de vida,
quando o infante se relaciona basicamente com uma função - a materna -
sem que o pai possa entrar em consideração enquanto agente de outra
função.
A troca generalizada emerge diretamente associada à quebra do vínculo
bipolar. Em seu ciclo curto, já exige a presença do terceiro elemento; na
forma do casamento matrilateral, prefigura uma continuidade, em tese
inesgotável, de aliados. Certamente, parecerá aventuroso comparar o
terceiro clã exigido pela troca generalizada à situação que se instaura na
infância com o fim da relação dual, isto é, quando as primeiras exigências
são formuladas e a criança se defronta com a premência de fazer
concessões. Mas são as próprias considerações lévi-straussianas a
propósito das estruturas elementares de parentesco que convidam a
essas analogias, aparentemente arriscadas. A distância em relação à
figura materna, apenas mantida durante a fase oral, parece-se
sobremaneira à proximidade física entre os membros das metades numa
organização dualista, que vivem na mesma aldeia e cuja própria
denominação se dá através de termos complementares. O procedimento
exige menos ainda da interpretação quando lemos as comparações feitas
por Lévi-Strauss entre as duas modalidades de casamentos com primos:
"O casamento matrilateral representa a mais lúcida e fecunda das formas
simples da reciprocidade, enquanto em seu duplo aspecto de privilégio
avuncular e de casamento com a filha da irmã do pai, o casamento patri-
lateral oferece a realização mais elementar e mais pobre dela. Mas a
medalha tem seu reverso. Social e logicamente, o casamento com a filha
do irmão da mãe apresenta a fórmula mais satisfatória. Do ponto de vista
psicológico e individual, entretanto, mostramos, em várias oportunidades, que constitui uma aventura e um risco". (1976b, p. 494.)
"Do ponto de vista psicológico e individual": o convite à interpretação
não poderia ser mais explícito. De fato, a descrição da via conjugal
patrilateral lembra algo do que Freud escreveu sobre a fase anal e muito
do que postulou acerca das formas assumidas pelo conflito edipiano.
Trata-se de uma troca em que a garantia precisa ser obtida no mesmo
momento da concessão; assim, a filha ou irmã cedida representa uma
perda cuja indenização precisa ser estipulada imediatamente na forma da
reivindicação sobre sua descendente. Reciprocamente, a mulher recebida
traz consigo a obrigação da devolução. Essa inquietante aparição da
dimensão temporal contrasta com o "presente perpétuo" em que
parecem viver as organizações dualistas, cujo esquema de permuta é
quase simbiótico, e, portanto, exclui a angústia da dívida e a ansiedade da
cobrança. Assim, entende-se que o etnólogo instaure uma nova distinção
entre as três formas, que revaloriza a organização dualista à custa do
casamento patrilateral:
"Em lugar de constituir um sistema global, como fazem, cada qual em sua
respectiva esfera, o casamento bilateral e o casamento com a prima ma-
trilateral, o casamento com a filha da irmã do pai não é capaz de alcançar
outra forma senão a de uma multidão de pequenos sistemas fechados,
justapostos uns aos outros, sem nunca poder realizar uma estrutura
global. Há uma lei de troca restrita que formulamos: se A casa-se com B,
B casa-se com A. Há uma lei da troca generalizada: se A casa-se com B,
B casa-se com C. Mas em face dessas duas formas contínuas de
reciprocidade, encontramos agora uma forma descontínua, para a qual
não existe lei". (Lévi-Strauss, 1976b, p. 488.)
Tudo se passa como se a bilateralidade constituísse o momento inaugural
da descoberta do outro, a quem tudo se cede e de quem tudo se recebe;
a orientação conjugal matrilateral seria a continuação e a intensificação
desse processo, através de uma atitude de confiança no funcionamento
da solidariedade. Mas a preferência pela prima patrilateral representa, pelo
contrário, o receio, a dúvida, a busca de garantias e vantagens, em suma,
a atitude desconfiada que vê no outro o credor, o devedor e o sonegador
em potencial.
Se de fato for assim, então a semelhança com a paisagem edipiana é
total. A fase fálica organiza justamente a relação com o outro na mesma
medida em que cristaliza a auto-imagem; as possibilidades extremas
inerentes à relação seriam, de um lado, confiança e cooperação, de outro,
hostilidade e competição. As duas fórmulas conjugais são descritas por
Lévi-Strauss em plena consonância com o que a psicanálise pôde afirmar
acerca de uma "boa" e uma "má" resolução do Édipo, momento crucial
em que se estabelece a articulação entre desejo e lei e se constrói,
através do binómio identidade/alteridade, o próprio prisma que governará
nossa visão do "real".
Uma simetria interessante pode ser invocada em apoio a essa
interpretação. O casamento patrilateral, como foi visto, está
freqüentemente associado ao privilégio avuncular, isto é, à possibilidade
de a sobrinha ser reivindicada pelo tio - pai de ego - em sociedades
poligâmicas. Freqüentemente, o tio renuncia em favor de seu filho e, por
outro lado, não é raro que ambos se tornem cunhados ao desposar duas
irmãs. Seja como for, trata-se de uma situação onde a rivalidade entre um
homem e seu descendente direto constitui uma possibilidade latente, visto
que ambos terão direito à mesma categoria de mulheres. Tal situação
constitui o reflexo social do conflito edipiano, com uma inversão
significativa, pois no interior da família nuclear a disputa se dá tendo como
pivô a figura materna, isto é, uma mulher que pertence por definição à
geração anterior à do filho. Inversamente, o tio materno, nos regimes
matrilaterais, alegoriza não o açambarcamento mas a propiciação, e seu
filho, primo cruzado matrilateral de ego, tampouco será um rival ou um
credor. A mulher cedida a ego provém do(s) mesmo(s) doador(es) que
cedera(m) sua mãe a seu pai; não é este, como acontece no casamento
com a prima patrilateral, que reivindica a mulher, sobre a qual, então,
passa a ter a prerrogativa de credor que explica o privilégio avuncular;
tem-se acesso à figura feminina por intermédio de um homem que, em
virtude dos preceitos exogâmicos, jamais poderia exigi-la para si nem para
seu descendente direto5.
Portanto, sem precisar recorrer a extremos elocubrativos, é possível
entender em que sentido essas colocações reiteram, a nível social, a
problemática edipiana. Também a propósito do sujeito coloca-se a
questão de renunciar à manutenção do laço privilegiado com a figura
materna; apenas, e novamente através de uma inversão, a tradução social
faz com que o pai e/ou o irmão abram mão da figura feminina
correspondente, pertencente à geração posterior ou ao mesmo eixo
geracional. Mais uma vez o contraste é oferecido pelo casamento
patrilateral; aqui, o casamento com a filha da irmã do pai denuncia a
intenção de reaver através da sobrinha a irmã perdida. A troca assume,
assim, o significado de um prejuízo e dá ocasião à concomitante exigência
indenizatória. Em oposição a isso, o casamento matrilateral é aproximável
do declínio do desejo incestuoso na medida em que a figura masculina
adulta se reveste de características predominantemente benfazejas - pois
o tio materno, doador da mulher, representa socialmente o pai propiciador
que não se sete rival do filho. Com relação a esta última questão, Freud
lembrará que a paternidade pode ser vivenciada pelo homem como uma
perda de seu privilégio afetivo junto à esposa; ou seja, o progenitor não
deixa de sofrer de um "complexo de Laio", que outra coisa não é senão
a permanência dos significantes edipianos relativos ao desejo de
exclusividade em relação à figura materna reatualizada em esposa.
O "movimento regressivo" pelo qual Lévi-Strauss caracteriza os regimes
patrilaterais reafirma o direito a comparar antropologia estrutural e
psicanálise; mais uma vez deparamos com semelhanças notáveis, pois,
após ter diferenciado as duas modalidades de conjugalidade, o etnólogo
postula sua mútua contaminação.
"Pode-se, sem dúvida, conceber de maneira ideal um sistema puro. Mas
as sociedades humanas nunca chegaram a este grau de abstração.
Sempre pensaram a troca generalizada em oposição à fórmula patrilateral
- e, por conseguinte, ao mesmo tempo associada a ela. A fórmula
patrilateral tem uma intervenção latente e uma presença subjacente que
oferecem àquelas sociedades um elemento de segurança tal que
nenhuma se mostrou bastante audaciosa para dele se libertar
completamente". (1976b, p. 496.)
A persistência do desejo edipiano no adulto não precisaria ser expressa
em outras palavras.
"Porque se a fórmula matrilateral é a única que exerce uma ação positiva,
a fórmula patrilateral existe sempre, em forma negativa, ao lado da
primeira, como segundo termo de um par correlativo. É possível dizer que,
desde toda a eternidade, as duas fórmulas são coexistentes. Todas as
hipóteses históricas que quisermos imaginar não conseguirão nunca
oferecer outra coisa senão a transfiguração, incompleta e aproximativa, de
um processo dialético". (1976b, p. 496.)
"Negativo" e "latente" recobrem, sem dúvida, o que em psicanálise
comparecerá semanticamente sob o termo "recalque" . Para encerrar
estas considerações acerca da proximidade entre matrilateralidade e
resolução positiva do Édipo, na medida em que ambos apresentam o
outro como cooperador, bem como entre patrilateralidade e neurose/
perversão, na medida em que esses três termos se associam à relação
conflitiva, vale a pena citar estas linhas:
"Como espantar-se, depois de tudo isso, com a violência demonstrada
por certos povos que praticam o casamento matrilateral, na condenação
do casamento patrilateral? Um não é somente o contrário e a negação do
outro, mas traz também a nostalgia e o pesar do último". (1976b, p. 497.)
Da troca restrita à troca generalizada
Supondo que a argumentação anterior tenha efetivamente contribuído
para demonstrar a possibilidade de articular os conceitos fundamentais da
antropologia estrutural e da psicanálise, e, por derivação, fazer pensar em
conjunto a própria lógica subjacente às duas teorias, então o caminho
estaria aberto para se extraírem de tal aproximação as conclusões
pertinentes.
Dessa perspectiva, torna-se lícito afirmar que o estudo da sexualidade
humana, tanto através do indivíduo como por intermédio das instituições
matrimoniais dos povos sem escrita, coloca em pauta uma nova
dimensão, a da subjetividade, que não poderia ser subordinada nem ao
organismo nem à natureza - apesar de ambos constituírem seu evidente
pré-requisito enquanto substrato e origem, respectivamente - e tampouco
poderia ser considerada um epifenômeno cultural, visto que a
universalidade da interdição do incesto demonstra que a normalização da
sexualidade exerce um papel condicionante em relação à existência da
própria cultura. Seria igualmente vão pretender separar ou defasar -
visando estabelecer uma prioridade no âmbito da determinação - as
manifestações inconscientes no grupo e no sujeito. Sua concomitância
paira acima de qualquer tentativa desse género e não poderia ser negada
sem que fossem atingidos os próprios fundamentos da teoria da
subjetividade.
Assim, o incesto, como a loucura, permanecerá uma possibilidade
exclusiva do indivíduo; enquanto, a nível social, e em perfeita
contraposição, só serão encontradas preconizações exogâmicas. O
desejo, em sua forma radical, não teria como expressar-se socialmente
sem destruir o grupo. Em compensação, é perfeitamente capaz de
expandir-se no "interior" do sujeito, mostrando sua finalidade, força e
alcance através da psicose. Esta não poderia ser definida senão pela
recusa da diferenciação com o outro6, isto é, pela simultânea negação da
identi-dade e da alteridade; reciprocamente, a hipotética revogação da
exogamia apagaria a fronteira entre cultura e natureza, reintegrando a
primeira na segunda. O incesto, para a psicanálise, se define pela
renúncia do indivíduo à sua identidade de ser desejante, portador da falta
fundamental. O mito Andaman, evocado por Lévi-Strauss nas linhas finais
de As estruturas elementares do parentesco, descreve a crença desse
povo (e de todos...) na beatitude "...do além como um céu no qual as
mulheres não serão mais trocadas [...] um mundo no qual se poderia viver
entre si" (1976b, p. 537).
Freud iniciou sua abordagem do social criticando a moral hipócrita
professada nas fases iniciais do industrialismo, à qual atribuía, após ter
descoberto a sexualidade infantil e identificado os efeitos devidos à
educação repressiva, a causa principal dos conflitos neuróticos. Através
do conceito de superego, procurou entender a cumplicidade do sujeito
com a negação de seu próprio prazer e adscreveu a formação dessa
instância aos "momentosos eventos" ocorridos na pré-história, quando os
filhos parricidas teriam introjetado as restrições sexuais através da culpa
consequente ao assassinato. Lentamente, e talvez nunca de maneira
plenamente explícita para seus leitores menos atentos, o criador da
psicanálise foi modificando essa concepção "reichiana", deixando de ver
na realização do desejo, cuja tirania talvez não fosse menor do que a dos
valores morais, o bem por excelência. Correspondentemente, passou a
aferir a dimensão liberadora da lei. Entre a norma neurotizante e a
liberação perversa, entre a fuga ao contato e a transformação do
semelhante em puro objeto, emerge a possibilidade conciliatória apoiada
na sublimação.
Conceito dos mais distorcidos pelo senso comum, que a assimila à
substituição da sexualidade, a sublimação costuma escapar ilesa das
freqüentes exegeses a que é submetida a obra freudiana. Esquece-se
habitualmente uma de suas principais conseqüências, a possibilidade de
renunciar à busca de poder sobre o outro, tanto nas relações políticas
como nas amorosas, e sem que essa renúncia se transforme em
isolamento (como na neurose). Dito de outra forma, a sublimação explica
como o desejo de poder se transforma em poder sobre o desejo... de
poder.
Em sua análise do pensamento freudiano, Lévi-Strauss demonstra não
perceber esse movimento. É preciso admitir que, tendo partido do
extremo oposto, sua perspectiva não era a mais favorável. De fato, o
etnólogo celebrou com a decifração das modalidades aparentemente
absurdas da conjugalidade primitiva - tão absurdas como os sintomas
histéricos e obsessivos para a medicina - a descoberta do princípio de
reciprocidade, verdadeira regra de ouro da convivência social, cujo
sentido solidário transparece na rede de alianças criadas graças às
instituições exogâmicas, mecanismo pelo qual a humanidade escapa à
autodestruição.
Assim, assiste-se a um minueto, em cuja contradança os parceiros
executam movimentos reciprocamente complementares. Na medida em
que nem Freud nem Lévi-Strauss conseguem subtrair-se, pelo menos
inicialmente, a uma atitude valorativa, ambos revelam padecer do mesmo
viés causídico e advogam em nome de clientes em litígio. O primeiro
representa a reivindicação individual ao prazer irrestrito, o segundo
defende os interesses do grupo, centrados na segurança coletiva. Em
seus primórdios, a psicanálise debitou a psico-patologia à negação do
erotismo; em contraposição, Lévi-Strauss mostra o perigo acarretado
pelas exigências libidinais para a sobrevivência da grei humana. A postura
freudiana inicial sugere um humanismo exacerbado quem sabe próximo
da ideologia do liberalismo econômico (o que talvez explique em parte
esse mal-entendido subjacente à popularidade atual do divã...); por outro
lado, Lévi-Strauss parece advogar a socialização da sexualidade e sua
subordinação aos interesses coletivos. O conflito seria tudo menos inédito
se não fosse pelo fato de que ambos os autores extraem seus
argumentos exatamente do mesmo lugar... Entende-se, assim, que o
desencontro entre os dois teóricos do inconsciente se expresse
privilegiadamente através do
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