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www.franklingoldgrub.com Mito e Fantasia - franklin goldgrub 8º Capítulo A compatibilidade essencial Os ciclos de reciprocidade e a constituição do sujeito Se de fato essa convergência (poderíamos até mesmo dizer complementaridade) entre as respectivas obras se sobrepõe às contumazes críticas dirigidas por Lévi-Strauss a Freud, então, deveria ser possível detectá-la a um nível mais fundamental, o da ética - nitidamente distinguível, decerto, de um moralismo primário. Efetivamente, é possível constatar mais essa comunhão de perspectivas através do papel que ambos os autores conferem aos princípios de reciprocidade e de realidade. Embora tanto o etnólogo como o decifrador de sonhos dêem exaustivas mostras de imparcialidade - jamais exibem posturas desaprovadoras em relação à organização dualista, casamento patrilateral, psicose, neurose ou -, não é impossível detectar em seus escritos uma posição preconizante. De fato, percebe-se a valorização do casamento matrilateral em Lévi-Strauss, assim como é perceptível certo partidarismo freudiano pela resolução dita "positiva" do Édipo (ou seja, identificação sexual com o progenitor do mesmo sexo). Em ambos os

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www.franklingoldgrub.com

Mito e Fantasia -

franklin goldgrub 

8º Capítulo 

A compatibilidade essencial

Os ciclos de reciprocidade e a constituição do sujeito

 

Se de fato essa convergência (poderíamos até mesmo dizer

complementaridade) entre as respectivas obras se sobrepõe às

contumazes críticas dirigidas por Lévi-Strauss a Freud, então, deveria ser

possível detectá-la a um nível mais fundamental, o da ética - nitidamente

distinguível, decerto, de um moralismo primário.

Efetivamente, é possível constatar mais essa comunhão de perspectivas

através do papel que ambos os autores conferem aos princípios de

reciprocidade e de realidade. Embora tanto o etnólogo como o decifrador

de sonhos dêem exaustivas mostras de imparcialidade - jamais exibem

posturas desaprovadoras em relação à organização dualista, casamento

patrilateral, psicose, neurose ou -, não é impossível detectar em seus

escritos uma posição preconizante. De fato, percebe-se a valorização do

casamento matrilateral em Lévi-Strauss, assim como é perceptível certo

partidarismo freudiano pela resolução dita "positiva" do Édipo (ou seja,

identificação sexual com o progenitor do mesmo sexo). Em ambos os

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casos, trata-se menos de uma reiteração dos preconceitos sociais

vigentes - o que seria de fato surpreendente em iconoclastas desse naipe

- do que uma espécie de conseqüência  inevitável da adoção de um

critério preferencial em relação à diferença e à alteridade, já no interesse

em resgatar as sociedades primitivas e a infância da condição de

inferioridade.

Nesse sentido, uma demonstração que quisesse ser convincente deveria

recapitular as sínteses finais de As estruturas elementaresdo parentesco,

relativas às três modalidades que resumem, em suas formas puras, as

instituições exogâmicas dos povos sem escrita e, posteriormente,

compará-las com as fases de desenvolvimento da libido, que expressam,

uma vez depuradas de seu significado anatômico-fisiológico, a lógica do

processo de constituição do sujeito na teoria freudiana. Não se ignora o

caráter arriscado de uma comparação que associa conceitos tão

específicos e aparentemente desconexos. Entretanto, caso a analogia

seja pertinente, o procedimento se justifica se puder demonstrar-se mais

um elo comum entre as duas obras. Confirmar-se-ia, então, por um novo

ângulo e com evidências inéditas, que Freud e Lévi-Strauss seriam sócios

majoritários numa empresa radical: o estudo (ontológico) da constituição

do sujeito e da cultura. Entende-se também, a partir dessas

considerações, porque a questão ética constitui uma preocupação central

para ambos; na medida em que se trata de focalizar a descontinuidade

entre natureza e cultura, é preciso refletir sobre o tema do "excesso

agressivo e sexual" decorrente da substituição dos mecanismos

adaptativos por outros princípios. A transmutação da necessidade em

desejo e do acasalamento procriativo em aliança não se dá, obviamente,

como resultado de uma decisão pensada ou por escolha deliberada. Em

oposição à ciência positivista, que tenderia a homogeneizar as diver­sas

manifestações do biológico subsumindo-as numa teleologia

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adaptacionista, e à filosofia tradicional, que fundamentava a especificidade

humana em privilégios vizinhos aos reivindicados pela fé - livre-arbítrio,

consciência soberana e razão -, tanto Freud como Lévi-Strauss

perscrutam o inconsciente via linguagem, ou seja, procuram captar

através do discurso (imaginário: fantasia e mito) os fenômenos relevantes

para pensar as categorias de desejo e lei.

Por outro lado, a problemática não poderia ser alheia à focalizada por uma

disciplina consagrada ao estudo de um outro tipo de excedente, relativo à

produção, cujo advento geraria conseqüências igualmente conflitivas. Dito

de outra forma, a consideração de uma possível articulação entre

antropologia estrutural e psicanálise freudiana enquanto ciências da

cultura e do sujeito não teria como deixar de suscitar a problemática do

contato com o marxismo, questão cujos prolegômenos - não mais do que

isso - serão esboçados adiante. Antecipar-se-á que o elemento comum a

essas teorias diz respeito à tematização da relação com o outro. De fato,

os respectivos universos teóricos tratam de uma alternativa que se reitera

sob manifestações peculiares ao sujeito, aos clãs e às sociedades

históricas: reconhecimento ou não da alteridade, aliança ou hostilidade,

igualdade ou hierarquização social1.

A hipótese teórica de Lévi-Strauss, relativa às instituições exogâmicas das

populações primitivas, soluciona os enigmas com os quais se debatia em

vão a antropologia pré-estruturalista, guiada por uma perspectiva

etnocêntrica que via nas normas matrimoniais indígenas a confusa

expressão de um espírito primário. De fato, não se entendia por que as

primas eram alternativamente prescritas ou proibidas, desde que o grau

de consanguinidade efetivamente permanece o mesmo quando se

compara a filha da irmã da mãe ou do irmão do pai (primas paralelas),

com a filha da irmã do pai (prima cruzada patrilateral) ou a filha do irmão

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da mãe (prima cru/ada mu-trilateral). Sem dúvida, o problema torna-se

insolúvel quando abor­dado pelo ângulo da genética ou através de uma

lógica restrita aos valores professados, isto é, dentro do referencial

pertencente à cultura do observador.

Segundo Rivers, "é muito difícil ver como tal regulamentação (o

casamento dos primos cruzados) pode ter base psicológica objetiva e

conceber algum motivo que pudesse tornar desejável o casamento dos

filhos do irmão e da irmã, ao passo que o casamento entre filhos de

irmãos ou filhos de irmãs seria tão rigorosamente proibido" (apud Lévi-

Strauss, 1976b, p. 492). Dentro desse espírito, a conclusão inevi­tável é

que as prescrições matrimoniais clânicas são uma "instituição destituída

de sentido".

O etnocentrismo sustenta o arcabouço preconceituoso mas, ele próprio,

por seu turno, repousa numa concepção epistemológica que não deixa

outra saída senão negar a significação visada, refratária ao instrumental

forjado em obediência a seus pressupostos.

"Esses postulados podem ser resumidos da seguinte maneira: uma

instituição humana só pode provir de duas fontes, a saber, ou de uma

origem histórica e irracional, ou de um propósito deliberado, por

conseguinte, de um cálculo do legislador; em suma, de um

acontecimento ou de uma intenção. Se, portanto, não se pode atribuir

nenhum motivo racional à instituição do casamento dos primos cruzados,

é porque resulta de uma série de acontecimentos históricos, que são por

si mesmos desti­tuídos de significação. A antiga psicologia não

raciocinava de outra maneira. Segundo seu modo de ver, ou as noções

matemáticas demonstravam a essência superior e irredutível do espírito

humano, constituindo propriedade inata, ou, então, era preciso admitir

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que seriam inteiramen­te construídas a partir da experiência, pelo jogo

automático das associa­ções"2. (Lévi-Strauss, 1976b, p. 139.)

Na perspectiva estruturalista, ao inatismo - biológico ou "espi­ritual" (metafísico) - e ao associacionismo - ambiental ou histórico-social -

opõe-se como fator epistemológico o inconsciente, cujo núcleo gira em

torno da significação. De acordo com o último pressuposto, não poderia

haver comportamento ou instituição humana desprovidos de sentido. A

demonstração de uma tal concepção implicará, sem dúvida, um difícil

debate sobre critérios metodológicos, mas já é certo, desde o princípio,

que para seus adeptos nenhum problema será abandonado como

irrelevante, ou banido, a qualquer outro pretexto, da jurisdição científica. A

obtenção de sentido exigirá exaustivos procedimentos aos quais serão

submetidos os materiais colhidos, visando detectar as oposições de cuja

relação surgirá a significação. Com relação ao regime matrimonial das

sociedades primitivas, o exame do material etnográfico conduz o etnólogo

à sua célebre fórmula que assim resume as estruturas elementares do

parentesco:

Casamento bilateral: ciclo nulo; fórmula:           A <-> B

Casamento patrilateral: ciclo curto; fórmula:     A  ->  B

                                                                                  B  <-  A

Casamento matrilateral: ciclo longo; fórmula: A -> B -> C

(Lévi-Strauss, 1976b, p. 507.)

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O casamento bilateral está ligado ao que se conhece em antropologia por

organizações dualistas. Este conceito está sujeito a controvérsias,

sobretudo devido às insuficiências do enfoque histórico empregado para

defini-lo. "Apela-se para a ignorância em que nos encontramos sobre a

origem, a evolução e as formas de decomposi­ção das organizações

dualistas. Seria preciso, contudo, para ousar afirmar seu valor funcional,

conhecer o decreto que, em tal ou qual caso particular, as teria

instituído?" (Lévi-Strauss, 1976b, p. 114.) A orientação preconizada por

Lévi-Strauss é diversa: a organização dualista "é, antes de mais nada, um

princípio de organização" que só pode ser apreendido enquanto uma das

formas assumidas pela reci­procidade, e, nesse sentido, para

compreendê-la, mais vale "invocar certas estruturas fundamentais do

espírito humano e não esta ou aquela região privilegiada do mundo ou

período da história da civili­zação" (1976b, p. 114).

Pela expressão "organização dualista" se entende um sistema de metades

exogâmicas3. Os clãs A e B trocam suas mulheres; ambas as primas

cruzadas (filhas de irmãos de sexo diferente) serão, pois, cônjuges

possíveis, enquanto as primas paralelas, inversamente, perma­necem

proibidas. A razão é simples: estas últimas, por pertencerem

necessariamente ao mesmo clã que ego, são designadas pelo mesmo

termo que nomeia as irmãs, visto que os respectivos progenitores (do

mesmo sexo) são necessariamente irmãos - ou primos paralelos, mas,

neste caso, categorizados igualmente como irmãos. A expressão ciclo

nulo designa a mútua complementaridade das metades exogâmicas: os

clãs A e B trocarão suas mulheres sem que qualquer outro grupo

intervenha. A divisão da organização dualista em subsecões matrimoniais

obedece a razões de crescimento demográfico, mas, através da

cissiparidade, não faz senão reproduzir o mesmo princípio.

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Lévi-Strauss designa esse tipo de prescrição matrimonial pela expressão

"troca restrita". Diferentemente, os casamentos unilaterais, quer com a

prima patrilateral (filha da irmã do pai) ou com a prima matrilateral (filha do

irmão da mãe), serão categorizados como regimes de "troca

generalizada". Entretanto, o casamento unilateral também pode ser objeto

de uma distinção: se o cônjuge preconizado for a prima patrilateral, os

grupos se comunicarão através de um ciclo curto, em contraposição à

preconização da prima matrilateral, que li­ga os clãs numa seqüência  

ilimitada, dando lugar ao chamado ciclo longo. Esta última distinção diz

respeito ao número de grupos envolvidos nas prestações matrimoniais.

De fato, se numa dada geração, ego, do clã A, se casa com sua prima

patrilateral do clã B, sua filha, na geração seguinte, voltará ao clã B de

onde ego recebera a esposa, pois esta restituirá suas filhas a seu clã de

origem, isto é, a seu irmão.

Geração I                      

Geração II

Notar-se-á que o clã B apenas se comunica com o clã A e o clã C,

alternadamente. Numa geração recebe-se a mulher de um clã, na

seguinte restitui-se-lhe a filha. Assim, o casamento com a filha da ir­mã

do pai vincula três grupos, novamente fechados entre si; se numa geração

B cede suas mulheres a A, C cede suas mulheres a B, e A cede suas

mulheres a C, na seguinte, o sentido da troca é invertido: A a B, B a C, e

C a A. É verdade que nada impede que outros grupos se­jam integrados

ao circuito, mas esta possibilidade não elimina o fato de que a

comunicação permanece concentrada em três grupos, num movimento

de vaivém. É interessante verificar que este sistema está freqüentemente

associado ao privilégio avuncular, isto é, casamento do tio com sobrinha,

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instaurando, assim, um hiato de geração entre os cônjuges, dentro de um

regime poligâmico.

O outro tipo de casamento representativo da troca generalizada preconiza

a união com a prima matrilateral, isto é, a filha do irmão da mãe.

Aparentemente, não há diferença entre os casamentos unilaterais. Tratar-

se-ia de uma maneira equivalente de assegurar a solidariedade e, em

oposição ao vínculo bilateral, manter o circuito aberto à integração de

outros grupos. Entretanto, Lévi-Strauss mostra que esses tipos de

casamento diferem consideravelmente:

"Construamos os dois quartetos correspondentes ao casamento com a

fi­lha do irmão da mãe e ao casamento com a filha da irmã do pai:

 

                              Filha do irmão                                 Filha da irmã

                                    da mãe                                            do pai

Do ponto de vista puramente formal, o primeiro apresenta uma "estrutura

melhor" que o segundo, no sentido dessa estrutura constituir o mais

completo desenvolvimento concebível do princípio de cruzamento, sobre

o qual repousa a própria noção de primo cruzado. Tudo se passa como

se uma virtude especial - cuja natureza foi, aliás, determinada por nós - se

ligasse, no casamento dos primos cruzados, ao que chamamos pares

assimétricos, isto é, formados por um irmão e uma irmã, em oposição aos

pares simétricos, formados respectivamente por dois irmãos ou duas

irmãs".

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[...]

"Se generalizarmos esta noção de par assimétrico, podemos dizer que o

quarteto construído sobre o casamento com a filha do irmão da mãe é

formado de quatro desses pares. Um irmão e uma irmã, um marido e uma

mulher, um pai e uma filha, uma mãe e um filho. Isto é, de qualquer

maneira que analisarmos a estrutura, os homens e as mulheres

apresentam-se regularmente alternados, como devem apresentar-se

aqueles dos quais nasceram primos cruzados (e, mais geralmente,

cônjuges potenciais em uma organização dualista). O quarteto do

casamento com a prima matrilateral representa a aplicação sistemática a

todos os graus de parentesco, da relação formal de alternância dos

sexos, de que depende a existência de primos cruzados.

A estrutura do segundo quarteto, embora tenha, afinal de contas, o valor

global, é menos satisfatória. Ao interpretá-la, como fizemos, por meio da

estrutura precedente, só encontramos nela dois pares assimétricos, irmão

e irmã, marido e mulher, e dois pares simétricos, pai e filho, mãe e filha.

Por conseguinte, esta estrutura, se assim é possível dizer, só está de

acordo com o arquétipo pela metade. E também pela metade conserva a

relação fundamental da simetria dos pares, de que depende a existência

dos primos paralelos". (1976b, p. 486-7.)

Estas primeiras considerações são suficientes para dar o primeiro impulso

a uma analogia sumamente temerária: de fato, passamos a postular o

paralelismo entre a lógica das estruturas elementares de parentesco e a

que subjaz ao processo de constituição do sujeito no âmbito das fases de

desenvolvimento da libido. Obviamente, o menos importante nessa

comparação é a coincidência numérica - três estruturas e três estádios -

mesmo porque o pareamento entre casamento bilateral e fase oral,

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casamentos patrilateral e matrilateral com as tendências regressiva e

progressiva associadas ao período edipia-no (fase fálica) constitui uma

aproximação rudimentar.

Não obstante, não há outro ponlo de partida para abordar a questão.

Sabe-se que Lévi-Strauss se opõe a considerações histórico-

evolucionistas tendentes a serializar as modalidades conjugais conforme

um eixo desenvolvimentista. Mesmo assim, ele não deixa de reconhecer

que a "...distribuição das organizações dualistas apresenta, com efeito,

caracteres que as tornam, entre todas, notáveis. Não são aparentes em

todos os povos, mas encontram-se em todas as partes do mundo, e

geralmente associadas aos níveis de cultura mais primitivos. [...] Na

Melanésia, Codrington, Rivers, Fox e Deacon estão de acordo em

reconhecer, quase nos mesmos termos, que constituem a estrutura social

mais arcaica" (Lévi-Strauss, 1976b, p. 109).

O discurso do etnólogo sobre as metades exogâmicas põe em relevo o

seu caráter constitutivo. De fato, trata-se de um mecanismo quase

obrigatório se se imagina uma humanidade recém-constituída, como aliás

ressalta de um mito Nuer:

"Um tal Gau, descido do céu, casou-se com Kwong (sem dúvida,

também ela chegada do céu em data anterior) [...] e teve com ela dois

filhos, Gaa e Kwook, e um grande número de filhas. Como não dispunha

de nin­guém com quem casá-las, Gau designou várias de suas filhas para

cada um dos dois filhos, e a fim de evitar as calamidades resultantes do

inces­to realizou a cerimónia de cortar em dois um bezerro, no sentido do

comprimento [...] e decretou que os dois grupos poderiam casar-se entre

si, mas nem um nem outro em seu próprio interior". (1976b, p. 110.)

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Lévi-Strauss comenta: "...o mito explica evidentemente a origem dos

pares exógamos" (1976b, p. 110).

Portanto, essa diferenciação entre os dois pólos de um mesmo par, que

caracteriza e tipifica as metades exogâmicas, pode ser perfeitamente

aproximada do processo pelo qual se dá o nascimento psicológico da

criança, a partir do momento em que ela se concebe representada por

uma imagem especular que representa o olhar da mãe. O

reconhecimento, por parte desta, da alteridade de seu descendente,

constitui o momento inaugural da barreira erguida contra o incesto; em

compensação, essa separação é atenuada pelos laços estabelecidos

entre o bebê e sua progenitora, os quais, na vigência do primeiro ano de

vida, são tão exclusivos como os decorrentes das relações

complementares entre os dois grupos da organização dualista4.

A troca restrita institui o número dois e detém-se nele, mesmo quando as

seções e subsecões matrimoniais dão conta do crescimento demográfico

do grupo:

"Compreendemos sob o nome de troca restrita todo sistema que divide o

grupo, efetiva ou funcionalmente, em um certo número de pares de

unidades de troca, tais que, em um par qualquer X - Y, a relação de troca

seja recíproca, isto é, que um homem X casando-se com uma mulher Y,

um homem Y deve sempre poder casar-se com uma mulher X [...] Se

supusermos que a uma dicotomia fundada sobre um dos dois modos de

filiação se superpõe uma dicotomia fundada sobre o outro, teremos um

sistema com quatro seções, em lugar de duas metades. Se o mesmo

procedimento se repetir, o grupo compreenderá oito seções em vez de

quatro. Assistiremos, portanto, a uma progressão regular, mas nada há

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que se assemelhe a uma mudança de princípio ou a uma brusca

inversão". (1976b, p. 187.)

Pode-se dizer que o bebê se encontra em "troca restrita" permanente;

quem quer que seja o adulto, deverá sempre desempenhar o mesmo

papel de figura materna, e somente sob essa condição não será um

estranho. Além disso, o bilateralismo tem o significado da in-diferenciação

(entre os primos cruzados de ambos os ramos), o que novamente

encontra correspondência numa situação típica do primeiro ano de vida,

quando o infante se relaciona basicamente com uma função - a materna -

sem que o pai possa entrar em consideração enquanto agente de outra

função.

A troca generalizada emerge diretamente associada à quebra do vínculo

bipolar. Em seu ciclo curto, já exige a presença do terceiro elemento; na

forma do casamento matrilateral, prefigura uma continuidade, em tese

inesgotável, de aliados. Certamente, parecerá aventuroso comparar o

terceiro clã exigido pela troca generalizada à situação que se instaura na

infância com o fim da relação dual, isto é, quando as primeiras exigências

são formuladas e a criança se defronta com a premência de fazer

concessões. Mas são as próprias considerações lévi-straussianas a

propósito das estruturas elementares de parentesco que convidam a

essas analogias, aparentemente arriscadas. A distância em relação à

figura materna, apenas mantida durante a fase oral, parece-se

sobremaneira à proximidade física entre os membros das metades numa

organização dualista, que vivem na mesma aldeia e cuja própria

denominação se dá através de termos complementares. O procedimento

exige menos ainda da interpretação quando lemos as comparações feitas

por Lévi-Strauss entre as duas modalidades de casamentos com primos:

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"O casamento matrilateral representa a mais lúcida e fecunda das formas

simples da reciprocidade, enquanto em seu duplo aspecto de privilégio

avuncular e de casamento com a filha da irmã do pai, o casamento patri-

lateral oferece a realização mais elementar e mais pobre dela. Mas a

medalha tem seu reverso. Social e logicamente, o casamento com a filha

do irmão da mãe apresenta a fórmula mais satisfatória. Do ponto de vista

psicológico e individual, entretanto, mostramos, em várias oportunida­des, que constitui uma aventura e um risco". (1976b, p. 494.)

"Do ponto de vista psicológico e individual": o convite à inter­pretação

não poderia ser mais explícito. De fato, a descrição da via conjugal

patrilateral lembra algo do que Freud escreveu sobre a fase anal e muito

do que postulou acerca das formas assumidas pelo conflito edipiano.

Trata-se de uma troca em que a garantia precisa ser obtida no mesmo

momento da concessão; assim, a filha ou irmã cedida representa uma

perda cuja indenização precisa ser estipulada imediatamente na forma da

reivindicação sobre sua descendente. Reciprocamente, a mulher recebida

traz consigo a obrigação da devolução. Essa inquietante aparição da

dimensão temporal contrasta com o "presente perpétuo" em que

parecem viver as organizações dualistas, cujo esquema de permuta é

quase simbiótico, e, portanto, exclui a angústia da dívida e a ansiedade da

cobrança. Assim, entende-se que o etnólogo instaure uma nova distinção

entre as três formas, que revaloriza a organização dualista à custa do

casamento patrilateral:

"Em lugar de constituir um sistema global, como fazem, cada qual em sua

respectiva esfera, o casamento bilateral e o casamento com a prima ma-

trilateral, o casamento com a filha da irmã do pai não é capaz de alcançar

outra forma senão a de uma multidão de pequenos sistemas fechados,

justapostos uns aos outros, sem nunca poder realizar uma estrutura

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global. Há uma lei de troca restrita que formulamos: se A casa-se com B,

B casa-se com A. Há uma lei da troca generalizada: se A casa-se com B,

B casa-se com C. Mas em face dessas duas formas contínuas de

reciprocidade, encontramos agora uma forma descontínua, para a qual

não existe lei". (Lévi-Strauss, 1976b, p. 488.)

Tudo se passa como se a bilateralidade constituísse o momento inaugural

da descoberta do outro, a quem tudo se cede e de quem tudo se recebe;

a orientação conjugal matrilateral seria a continuação e a intensificação

desse processo, através de uma atitude de confiança no funcionamento

da solidariedade. Mas a preferência pela prima patrilateral representa, pelo

contrário, o receio, a dúvida, a busca de garantias e vantagens, em suma,

a atitude desconfiada que vê no outro o credor, o devedor e o sonegador

em potencial.

Se de fato for assim, então a semelhança com a paisagem edipiana é

total. A fase fálica organiza justamente a relação com o outro na mesma

medida em que cristaliza a auto-imagem; as possibilidades extremas

inerentes à relação seriam, de um lado, confiança e cooperação, de outro,

hostilidade e competição. As duas fórmulas conjugais são descritas por

Lévi-Strauss em plena consonância com o que a psicanálise pôde afirmar

acerca de uma "boa" e uma "má" resolução do Édipo, momento crucial

em que se estabelece a articulação entre desejo e lei e se constrói,

através do binómio identidade/alteridade, o próprio prisma que governará

nossa visão do "real".

Uma simetria interessante pode ser invocada em apoio a essa

interpretação. O casamento patrilateral, como foi visto, está

freqüentemente associado ao privilégio avuncular, isto é, à possibilidade

de a sobrinha ser reivindicada pelo tio - pai de ego - em sociedades

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poligâmicas. Freqüentemente, o tio renuncia em favor de seu filho e, por

outro lado, não é raro que ambos se tornem cunhados ao desposar duas

irmãs. Seja como for, trata-se de uma situação onde a rivalidade entre um

homem e seu descendente direto constitui uma possibilidade latente, visto

que ambos terão direito à mesma categoria de mulheres. Tal situação

constitui o reflexo social do conflito edipiano, com uma inversão

significativa, pois no interior da família nuclear a disputa se dá tendo como

pivô a figura materna, isto é, uma mulher que pertence por definição à

geração anterior à do filho. Inversamen­te, o tio materno, nos regimes

matrilaterais, alegoriza não o açambarcamento mas a propiciação, e seu

filho, primo cruzado matrilateral de ego, tampouco será um rival ou um

credor. A mulher cedida a ego provém do(s) mesmo(s) doador(es) que

cedera(m) sua mãe a seu pai; não é este, como acontece no casamento

com a prima patrilateral, que reivindica a mulher, sobre a qual, então,

passa a ter a prerrogativa de credor que explica o privilégio avuncular;

tem-se acesso à figura feminina por intermédio de um homem que, em

virtude dos preceitos exogâmicos, jamais poderia exigi-la para si nem para

seu descendente direto5.

Portanto, sem precisar recorrer a extremos elocubrativos, é possível

entender em que sentido essas colocações reiteram, a nível social, a

problemática edipiana. Também a propósito do sujeito coloca-se a

questão de renunciar à manutenção do laço privilegiado com a figura

materna; apenas, e novamente através de uma inversão, a tradução social

faz com que o pai e/ou o irmão abram mão da figura feminina

correspondente, pertencente à geração posterior ou ao mesmo eixo

geracional. Mais uma vez o contraste é oferecido pelo casamento

patrilateral; aqui, o casamento com a filha da irmã do pai denuncia a

intenção de reaver através da sobrinha a irmã perdida. A troca assume,

assim, o significado de um prejuízo e dá ocasião à concomitante exigência

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indenizatória. Em oposição a isso, o casamento matrilateral é aproximável

do declínio do desejo incestuoso na medida em que a figura masculina

adulta se reveste de características predominantemente benfazejas - pois

o tio materno, doador da mulher, representa socialmente o pai propiciador

que não se sete rival do filho. Com relação a esta última questão, Freud

lembrará que a paternidade pode ser vivenciada pelo homem como uma

perda de seu privilégio afetivo junto à esposa; ou seja, o progenitor não

deixa de sofrer de um "complexo de Laio", que outra coisa não é se­não

a permanência dos significantes edipianos relativos ao desejo de

exclusividade em relação à figura materna reatualizada em esposa.

O "movimento regressivo" pelo qual Lévi-Strauss caracteriza os regimes

patrilaterais reafirma o direito a comparar antropologia estrutural e

psicanálise; mais uma vez deparamos com semelhanças notáveis, pois,

após ter diferenciado as duas modalidades de conjugalidade, o etnólogo

postula sua mútua contaminação.

"Pode-se, sem dúvida, conceber de maneira ideal um sistema puro. Mas

as sociedades humanas nunca chegaram a este grau de abstração.

Sempre pensaram a troca generalizada em oposição à fórmula patrilateral

- e, por conseguinte, ao mesmo tempo associada a ela. A fórmula

patrilateral tem uma intervenção latente e uma presença subjacente que

oferecem àquelas sociedades um elemento de segurança tal que

nenhuma se mostrou bastante audaciosa para dele se libertar

completamente". (1976b, p. 496.)

A persistência do desejo edipiano no adulto não precisaria ser expressa

em outras palavras.

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"Porque se a fórmula matrilateral é a única que exerce uma ação positiva,

a fórmula patrilateral existe sempre, em forma negativa, ao lado da

primeira, como segundo termo de um par correlativo. É possível dizer que,

desde toda a eternidade, as duas fórmulas são coexistentes. Todas as

hipóteses históricas que quisermos imaginar não conseguirão nunca

oferecer outra coisa senão a transfiguração, incompleta e aproximativa, de

um processo dialético". (1976b, p. 496.)

"Negativo" e "latente" recobrem, sem dúvida, o que em psicanálise

comparecerá semanticamente sob o termo "recalque" . Para encerrar

estas considerações acerca da proximidade entre matrilateralidade e

resolução positiva do Édipo, na medida em que ambos apresentam o

outro como cooperador, bem como entre patrilateralidade e neurose/

perversão, na medida em que esses três termos se associam à relação

conflitiva, vale a pena citar estas linhas:

"Como espantar-se, depois de tudo isso, com a violência demonstrada

por certos povos que praticam o casamento matrilateral, na condenação

do casamento patrilateral? Um não é somente o contrário e a negação do

outro, mas traz também a nostalgia e o pesar do último". (1976b, p. 497.)

Da troca restrita à troca generalizada

 

Supondo que a argumentação anterior tenha efetivamente contribuído

para demonstrar a possibilidade de articular os conceitos fundamentais da

antropologia estrutural e da psicanálise, e, por derivação, fazer pensar em

conjunto a própria lógica subjacente às duas teorias, então o caminho

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estaria aberto para se extraírem de tal apro­ximação as conclusões

pertinentes.

Dessa perspectiva, torna-se lícito afirmar que o estudo da sexualidade

humana, tanto através do indivíduo como por intermédio das instituições

matrimoniais dos povos sem escrita, coloca em pauta uma nova

dimensão, a da subjetividade, que não poderia ser subordinada nem ao

organismo nem à natureza - apesar de ambos constituírem seu evidente

pré-requisito enquanto substrato e origem, respectivamente - e tampouco

poderia ser considerada um epifenômeno cultural, visto que a

universalidade da interdição do incesto demonstra que a normalização da

sexualidade exerce um papel condicionante em relação à existência da

própria cultura. Seria igualmente vão pretender separar ou defasar -

visando estabelecer uma prioridade no âmbito da determinação - as

manifestações inconscientes no grupo e no sujeito. Sua concomitância

paira acima de qualquer tentativa desse género e não poderia ser negada

sem que fossem atingidos os próprios fundamentos da teoria da

subjetividade.

Assim, o incesto, como a loucura, permanecerá uma possibilidade

exclusiva do indivíduo; enquanto, a nível social, e em perfeita

contraposição, só serão encontradas preconizações exogâmicas. O

desejo, em sua forma radical, não teria como expressar-se socialmente

sem destruir o grupo. Em compensação, é perfeitamente capaz de

expandir-se no "interior" do sujeito, mostrando sua finalidade, força e

alcan­ce através da psicose. Esta não poderia ser definida senão pela

recusa da diferenciação com o outro6, isto é, pela simultânea negação da

identi-dade e da alteridade; reciprocamente, a hipotética revogação da

exogamia apagaria a fronteira entre cultura e natureza, reintegrando a

primeira na segunda. O incesto, para a psicanálise, se define pela

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renúncia do indivíduo à sua identidade de ser desejante, portador da falta

fundamental. O mito Andaman, evocado por Lévi-Strauss nas linhas finais

de As estruturas elementares do parentesco, descreve a crença desse

povo (e de todos...) na beatitude "...do além como um céu no qual as

mulheres não serão mais trocadas [...] um mundo no qual se poderia viver

entre si" (1976b, p. 537).

Freud iniciou sua abordagem do social criticando a moral hipócrita

professada nas fases iniciais do industrialismo, à qual atribuía, após ter

descoberto a sexualidade infantil e identificado os efeitos devidos à

educação repressiva, a causa principal dos conflitos neuróticos. Através

do conceito de superego, procurou entender a cumplicidade do sujeito

com a negação de seu próprio prazer e adscreveu a formação dessa

instância aos "momentosos eventos" ocorridos na pré-história, quando os

filhos parricidas teriam introjetado as restrições sexuais através da culpa

consequente ao assassinato. Lentamente, e talvez nunca de maneira

plenamente explícita para seus leitores menos atentos, o criador da

psicanálise foi modificando essa concepção "reichiana", deixando de ver

na realização do desejo, cuja tirania talvez não fosse menor do que a dos

valores morais, o bem por excelência. Correspondentemente, passou a

aferir a dimensão liberadora da lei. Entre a norma neurotizante e a

liberação perversa, entre a fuga ao contato e a transformação do

semelhante em puro objeto, emerge a possibilidade conciliatória apoiada

na sublimação.

Conceito dos mais distorcidos pelo senso comum, que a assimila à

substituição da sexualidade, a sublimação costuma escapar ilesa das

freqüentes exegeses a que é submetida a obra freudiana. Esquece-se

habitualmente uma de suas principais conseqüências, a possibilidade de

renunciar à busca de poder sobre o outro, tanto nas relações políticas

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como nas amorosas, e sem que essa renúncia se transforme em

isolamento (como na neurose). Dito de outra forma, a sublimação explica

como o desejo de poder se transforma em poder sobre o desejo... de

poder.

Em sua análise do pensamento freudiano, Lévi-Strauss demonstra não

perceber esse movimento. É preciso admitir que, tendo partido do

extremo oposto, sua perspectiva não era a mais favorável. De fato, o

etnólogo celebrou com a decifração das modalidades aparentemente

absurdas da conjugalidade primitiva - tão absurdas como os sintomas

histéricos e obsessivos para a medicina - a descoberta do princípio de

reciprocidade, verdadeira regra de ouro da convivência social, cujo

sentido solidário transparece na rede de alianças criadas graças às

instituições exogâmicas, mecanismo pelo qual a humanidade escapa à

autodestruição.

Assim, assiste-se a um minueto, em cuja contradança os parceiros

executam movimentos reciprocamente complementares. Na medida em

que nem Freud nem Lévi-Strauss conseguem subtrair-se, pelo menos

inicialmente, a uma atitude valorativa, ambos revelam padecer do mesmo

viés causídico e advogam em nome de clientes em litígio. O primeiro

representa a reivindicação individual ao prazer irrestrito, o segundo

defende os interesses do grupo, centrados na segurança coletiva. Em

seus primórdios, a psicanálise debitou a psico-patologia à negação do

erotismo; em contraposição, Lévi-Strauss mostra o perigo acarretado

pelas exigências libidinais para a sobrevivência da grei humana. A postura

freudiana inicial sugere um humanismo exacerbado quem sabe próximo

da ideologia do liberalismo econômico (o que talvez explique em parte

esse mal-entendido subjacente à popularidade atual do divã...); por outro

lado, Lévi-Strauss parece advogar a socialização da sexualidade e sua

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subordinação aos interesses coletivos. O conflito seria tudo menos inédito

se não fosse pelo fato de que ambos os autores extraem seus

argumentos exatamente do mesmo lugar... Entende-se, assim, que o

desencontro entre os dois teóricos do inconsciente se expresse

privilegiadamente através do

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

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