edição246

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a cabra JoRNaL UNiVeRsiTáRio de coimbRa 23 de maio de 2012aNo XXi N.º 246 QUiNZeNaL GRaTUiTo diReToR camiLo soLdado • ediToRes-eXecUTiVos iNês amado da siLVa e João GaspaR Entrevista: João Tordo e os vários alter-egos Pág. 7 Francisco Andrade, em entre- vista, conta como viveu as crises académicas, enquanto jogador e treinador da Briosa. Fala dos epi- sódios mais marcantes do seu tempo, destaque para a Taça de Portugal de 69, mas também do presente. Por um homem que vê na essência estudantil de Coimbra algo distintivo. taça De PortugaL Dos anos 60 até aos dias de hoje Pág. 9 Depois de em 2010 ser anun- ciada a possível fusão dos hospitais de Coimbra, em 2011 o governo so- cial-democrata começa a dar-lhe forma. Mas as vozes discordantes multiplicam-se. Sem um estudo prévio e com motivos economicis- tas, a fusão gera consequências - o encerramento das urgências dos Covões durante a noite. chuc Fusão continua a gerar discórdia Pág.14 Ao mesmo tempo que a Europa se vai privatizando, a América La- tina renacionaliza-se. Um pre- sente de crescimento e de redução de desigualdades contrasta com uma Europa onde as regras são di- tadas de fora. A dicotomia capita- lismo versus socialismo não é como preto e branco, mas antes composta por várias nuances. Dicotomia Estratégias: Europa vs. América Latina Pág. 17 O principal desafio tem sido construir um estado a partir do zero. A dez anos de distância, quem acompanhou o processo de autodeterminação timorense afirma que o desenvolvimento do país está abaixo do expectável. Quem vai estudar para fora tem como objetivo voltar para ajudar no crescimento da jovem nação. timor-Leste Uma década de independência Págs. 2 e 3 As cooperativas vêm enfren- tando um desprendimento dos seus constituintes face à matriz inicial. Gerentes, responsáveis e estudiosos contam as vicissitudes que a falta de união pode gerar no seio desta instituição. cooPerativas Perda de espírito cooperativista Pág. 16 Mais informação em acabra. net @ 10 anos de Jazz ao Centro mara rodrigues Carlota rebelo De vitória e reivinDicação fez-se a taça Para além do apoio que os estudantes prestaram à Briosa, houve tempo para alertar para os problemas que o ensino superior enfrenta. Contudo, a segurança do estádio colocou obstáculos às mensagens contidas nas faixas, que consideraram de caráter ofensivo. Pág. 5 Vender para disfarçar a crise Págs. 12 e 13 Pág. 6

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Jornal Universitário de Coimbra A CABRA

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acabraJoRNaL UNiVeRsiTáRio de coimbRa

23 de maio de 2012• aNo XXi • N.º 246 • QUiNZeNaL GRaTUiTodiReToR camiLo soLdado • ediToRes-eXecUTiVos iNês amado da siLVa e João GaspaR

Entrevista:João Tordo e os

vários alter-egos

Pág. 7

Francisco Andrade, em entre-

vista, conta como viveu as crises

académicas, enquanto jogador e

treinador da Briosa. Fala dos epi-

sódios mais marcantes do seu

tempo, destaque para a Taça de

Portugal de 69, mas também do

presente. Por um homem que vê

na essência estudantil de Coimbra

algo distintivo.

taça De PortugaL

Dos anos 60 até aosdias de hoje

Pág. 9

Depois de em 2010 ser anun-

ciada a possível fusão dos hospitais

de Coimbra, em 2011 o governo so-

cial-democrata começa a dar-lhe

forma. Mas as vozes discordantes

multiplicam-se. Sem um estudo

prévio e com motivos economicis-

tas, a fusão gera consequências - o

encerramento das urgências dos

Covões durante a noite.

chuc

Fusão continua agerar discórdia

Pág.14

Ao mesmo tempo que a Europa

se vai privatizando, a América La-

tina renacionaliza-se. Um pre-

sente de crescimento e de redução

de desigualdades contrasta com

uma Europa onde as regras são di-

tadas de fora. A dicotomia capita-

lismo versus socialismo não é

como preto e branco, mas antes

composta por várias nuances.

Dicotomia

Estratégias: Europavs. América Latina

Pág. 17

O principal desafio tem sido

construir um estado a partir do

zero. A dez anos de distância,

quem acompanhou o processo de

autodeterminação timorense

afirma que o desenvolvimento do

país está abaixo do expectável.

Quem vai estudar para fora tem

como objetivo voltar para ajudar

no crescimento da jovem nação.

timor-Leste

Uma década de independência

Págs. 2 e 3

As cooperativas vêm enfren-

tando um desprendimento dos

seus constituintes face à matriz

inicial. Gerentes, responsáveis e

estudiosos contam as vicissitudes

que a falta de união pode gerar no

seio desta instituição.

cooPerativas

Perda de espíritocooperativista

Pág. 16

Mais informação em

acabra.net@

10 anosde Jazz aoCentro

mara rodriguesCarlota rebelo

De vitória e reivinDicaçãofez-se a taçaPara além do apoio que os estudantes prestaram à Briosa,

houve tempo para alertar para os problemas que o ensino

superior enfrenta. Contudo, a segurança do estádio colocou

obstáculos às mensagens contidas nas faixas, que

consideraram de caráter ofensivo.

Pág. 5

Vender paradisfarçar a

crisePágs. 12 e 13

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destaque

ital Araújo tinha 11 ou 12anos, a memória confusatrai-lhe a certeza da idade.Era 12 de novembro de

1991. Estava na escola, a pouco maisde cem metros do cemitério de SantaCruz, em Díli. “Saí da escola porqueouvi muito barulho. Parecia barulhode fritar milho. Os professores tam-bém fugiram, ninguém sabia paraonde ir. Saí da escola com o meuirmão pequenino e fugimos de lá”,descreve, no seu português atrope-lado. Os tiroteios continuaram até aofim daquele dia, conhecido episódioda história de um dos mais jovenspaíses do mundo. “Psicologicamente,afetou-nos. Quando ouvimos barulhopensamos que é um massacre ou umtiroteio dos indonésios”.

José Viegas da Costa tem 29 anose está a terminar a licenciatura emEstudos Europeus e uma pós-gra-duação em Direitos Humanos; VitalAraújo, de 32, frequenta o mestradointegrado em Engenharia Civil,ambos na Universidade de Coimbra.Naquela altura, José morava atrás docemitério: “as pessoas passavam porminha casa a sangrar, com mortos.Muitos foram baleados, muitas coi-sas aconteceram. Marquei presençanesse genocídio. Ainda tenho trau-mas com esse acontecimento”. “Como 12 de novembro houve um impactoenorme”, confirma.

O massacre de Santa Cruz é um devários acontecimentos marcantes dahistória de um povo que assinalouagora uma outra data: a celebraçãode dez anos de independência, a 20de maio, e que veio trazer ao país a

denominação de República Demo-crática de Timor-Leste (RDTL). Du-rante 24 anos, Timor-Leste foiocupado pela Indonésia, sofrendo,nesse período, um intenso processode descaracterização cultural e de re-pressão.

“O meu pai era professor de portu-guês”, conta Vital. “Cresci em 1979, aIndonésia já estava em Timor. Tenhodez irmãos e o meu pai nunca nos en-sinou português porque tinha medo.Quem falava português era quemqueria a independência da Indoné-sia”. E era motivo de execução. “Seouviam português, matavam”, ex-plica José. Com a independência em2002, o Português, juntamente como autóctone Tétum-praça, ganha es-tatuto de língua oficial.

De uma consciência de povo man-tém-se, entre outros traços, o medo, o“trauma”, diz José. “Historicamente,os timorenses viveram sempre emconflito, então têm essa mentali-dade”, ao que acrescem necessidadesdo povo “quer a nível psicológico,quer a nível físico”, como aponta a ti-morense Jessica Lemos, a frequentaro primeiro ano da licenciatura em Di-reito. Para estes timorenses em Por-tugal, que aprovam um investimentodos primeiros governos nas áreas dasegurança e defesa, a fórmula da mu-dança parece residir no reforço daeducação e da saúde, mais do que emestradas ou noutras infraestruturas:“informar e formar as pessoas”,afirma José, “para que um país sejaum país muito bom”.

“Um tempo em que Timorfervilhava”Com o referendo de 1999 veio maisuma vaga de destruição protagoni-zada pelos indonésios, antes de dei-xarem definitivamente o país.António Sampaio, jornalista, lembrao dia histórico da votação: apesar de“amedrontada”, a população desceudas montanhas onde se refugiava eesteve “desde muito cedo às portasdas urnas”, a votar “com uma parti-cipação que faz inveja a qualquer umdos nossos países, que se dizem gran-des e antigas democracias”. A parti-cipação “elevadíssima” é, para ojornalista, “um sinal de força, quemostrou ao mundo a vontade que ostimorenses tinham de concluir o seuprocesso de autodeterminação”.

“Aquele foi um tempo em queTimor fervilhava”, descreve o tam-bém jornalista Ricardo Alexandre,que assistiu ao período pós-eleitoralem 1999. “Não só havia uma grandeatenção do público português comofoi uma oportunidade de testemu-nhar acontecimentos históricos”.

As opiniões dos vários jornalistasque vêm observando Timor-Lestecoincidem – pelos piores motivos, noentanto. Ricardo Alexandre, que vol-tou ao território há cerca de doisanos, considera que “com o investi-mento internacional e com o dinheiroque Timor-Leste tem dos fundos depetróleo, em termos de infraestrutu-ras foi feito muito pouco”. LucianoAlvarez, jornalista que acompanhouo processo em vários momentos eque se encontra em Timor-Leste, des-taca o que considera ser o problema

mais visível: a pobreza, para a qualcontribui a centralização da atividadedo país na capital. “Especialmentefora de Díli, vive-se exatamente comohá dez anos atrás”.

Como relata Luciano Alvarez, “aeletricidade começa a chegar umpouco a todo o lado” e “a estrutura fí-sica das cidades está totalmente le-vantada”. O país leva “uma vidaeconómica muito viva - mas quandose vai para trás das fachadas das ci-dades há ainda muita pobreza”,expõe. “A seguir à independência, ocombate à pobreza foi sempre a pri-meira prioridade do povo de Timor,mas durante estes dez anos pouco foifeito”. Já para António Sampaio, “osistema de saúde melhorou, há maisemprego, há mais gente com di-nheiro, mas ainda há setores da so-ciedade, particularmente nas zonasrurais, com muitas dificuldades”.

Aponta-se também como aspetonegativo o crescimento do fosso so-cial que vai dividindo a população.“Se o povo continua a passar fomeenquanto outros passam de carrões,em frente a estradas onde estãoimensas pessoas a vender comida,não vai resultar em nada. O governoestá mais concentrado em desenvol-ver o país do que o seu povo”, criticaJessica Lemos.

A aposta na educaçãoJúlio Couceiro, professor de Inglês,esteve, de 2006 a 2009, a lecionar naEscola Portuguesa de Díli, tendo vol-tado entre 2010 e 2011. O docente,apesar de elogiar essa escola e o in-centivo à reintrodução da Língua

Se, em 2002, Timor-Leste proclamava o fim da repressão indonésia, em2012, os desafios são outros. A pobreza, a falta de recursos humanos e aaposta que falta na população divergem das potencialidades dos recursosnaturais e com os dividendos cada vez mais altos vindos do petróleo. Contrastes de um país em desenvolvimento e que continua a procurar Portugal como parceiro. Por Camilo Soldado e Inês Amado da Silva

Há dez anos a “lutar para libertara pátria”

V

O petróleoe o gás

natural jávalerammais de

10 mil milhões

de dólaresaos cofres

da RDTL

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23 de maio de 2012 | quarta -feira | a cabra | 3

destaque

os primeiros mercadores portugueses chegaram à ilha ha-bitada pelo povo maubere em 1512. depois de algumas tro-cas comerciais, só em meados do século XViii começa oprocesso de colonização portuguesa. em 1859, o Tratado delisboa, assinado por portugal e Holanda, define as possessõesdas duas nações na região, sendo que em 1914 seria assinadoo acordo que estabelece as fronteiras atuais.

a 17 de novembro 1941, com o decorrer da segundaGuerra mundial, sob pretexto de evitar uma invasão japonesa,a Holanda e a austrália desembarcam em território neutro por-tuguês. apenas dois meses depois, os japoneses iriam invadirTimor. com o final da guerra, a cedência da base das lajes,nos açores, é vista como um esforço de salazar para recupe-rar a colónia no sudeste asiático.

a assembleia Geral das nações unidas considerou, em1960, Timor “um território não autónomo sob administraçãoportuguesa”. Tal nunca foi reconhecido pelo regime portu-guês que continuou a considerar Timor como parte do terri-tório português. Foi apenas nesta década que a eletricidadecomeçou a ser introduzida na ilha, começando também a de-senvolverem-se outras infraestruturas como hospitais e escolas.

com o 25 de abril em portugal, tem início o processo dedescolonização, tendo os timorenses que escolher entre a in-dependência ou a integração na vizinha indonésia. no pro-cesso de autodeterminação timorense, formaram-se trêspartidos: a união democrática Timorense (udT), a associaçãosocial democrática Timorense (asdT) [que viria a ser a Frenterevolucionária de Timor-leste independente (FreTilin)] e aassociação popular democrática Timorense (apodeTi). àseleições do início de 1975, ganhas pela FreTilin, segue-se umclima de guerra civil que iria culminar a 28 de novembro, coma declaração da independência.

apenas nove dias depois, a indonésia invade Timor. a ane-xação contou com a passividade do mundo ocidental, princi-palmente devido a uma alegada ameaça comunista. os 24anos de ocupação contariam com a oposição da luta de guer-rilha das FalinTil, braço armado da FreTilin. em 1991 temlugar o mais tristemente célebre episódio da ocupação indo-nésia: o massacre de santa cruz. no ano seguinte a resistênciatimorense sofria outro duro golpe com a prisão do líder dasFalinTil, Xanana Gusmão.

mas a causa timorense viria a ser reconhecida internacional-mente em 1996, com a atribuição do prémio nobel da paz aobispo carlos Ximenes belo e a José ramos Horta. em 1998, ogeneral indonésio suharto cai do poder, fator que, juntamentecom a pressão internacional, abre portas a um referendo, pro-movido pelas nações unidas, para consultar a vontade dopovo timorense. a votação, que foi realizada a 30 de agostode 1999, contou com 98 por cento de participação da popu-lação e a independência ganha por esmagadora maioria. nasequência dos resultados, milícias pró-indonésias varrem o paísnuma onde de destruição que só iria terminar com a interven-ção de forças das nações unidas. a 20 de maio de 2002, a in-dependência de Timor-leste é, por fim, restaurada.

Timor: da ocupação consTanTe àliberdade

Portuguesa, considera que “muitasdelas ainda são do tempo da Indoné-sia: edifícios pouco apetrechados,praticamente sem condições”.

José Viegas da Costa, presidentedos Académicos Timorenses deCoimbra (ATC), associação que re-presenta cerca de 50 estudantes, tra-duz o objetivo dos que estudam forado país: “regressar o mais rápido pos-sível para ajudar Timor na constru-ção e no progresso que todosqueremos”. “Há muita falta de recur-sos em Timor - não de recursos natu-rais, mas de recursos humanos”,admite José, que repara que a falta dequadros tem colocado complicaçõesao trabalho do governo. “Nós luta-mos para libertar a pátria”, traduz. Aluta que antes foi pela libertação daocupação indonésia é agora uma luta“para libertar o povo de miséria e po-breza, para que seja um povo de jus-tiça social para todos”.

O presidente da ATC salienta quea criação de municípios para descen-tralização do território vai “facilitarao governo o trabalho de governar opaís”, planeamento no qual Portugalestá a intervir e que deverá estar con-cluído até 2014. Mais uma vez, aquestão da formação de quadrosatravessa-se no desenvolvimento dopaís: “não digo que Timor é pobre:Timor tem mais recursos naturais doque nós queremos”. Para além do pe-tróleo e do gás natural, José Viegasda Costa enumera o café, o arroz e omármore como outras mais-valias doterritório, bem como os “muitos ter-renos” que esperam cultivo. Mas háfalta de gestão para isso”, lamenta.

O petróleo e as relaçõesexternasLuciano Alvarez aponta a origem docrescimento dos últimos cinco anos:o petróleo e o gás natural, lembrandoque estes recursos já valeram mais de10 mil milhões de dólares aos cofresda RDTL – muito embora “só umaparte fosse aplicada ao Orçamento doEstado (OE)”. Daqueles recursos pro-vém também cerca de 90 por centodo OE de 2012, de quase 1,7 mil mi-lhões de dólares – contra os 77 mi-lhões do OE em 2002, o que, para ojornalista, demonstra “a importânciaque neste momento tem o dinheirodo petróleo para Timor”.

A embaixadora portuguesa em Ja-carta entre 2000 e 2003, Ana Gomes,lembra a chegada à capital indonésiaem 1999, “um ano completamentedominado pela resolução da questãode Timor”. “Foi uma conjuntura par-ticularmente bem aproveitada doponto de vista diplomático por Por-tugal, que levou ao restabelecimentodas relações com a Indonésia”, con-sidera. A também eurodeputada con-sidera ainda que “Timor tem hojeuma relação com a Indonésia que éexemplar dos dois lados, mas é evi-dente que Portugal também contri-buiu nesses primeiros anos paraisso”.

No plano das relações portuguesascom Timor-Leste, Ana Gomes asse-vera que “Portugal devia ter feitomuito mais do que fez até agora”, re-ferindo a RTP como um “instru-mento vital” de difusão da língua“que poderia ter tido um papel chavepara ajudar a espalhar o português

em Timor-Leste”. Acusa ainda as em-presas portuguesas de terem uma“visão paroquial”, falhando no seupapel de relançamento económico –“para que também se reforçasse oplano político entre Portugal e Indo-nésia”. “As minhas grandes frustra-ções estão aí”, lamenta.

Em 2006, demite-se o primeiro-ministro da RDTL, Mari Alkatiri,acontecimento que Ana Gomes con-sidera “de crescimento democrático”,e lembra as eleições de 2007, “ex-traordinariamente participadas”,uma “demonstração de que o acom-panhamento da comunidade interna-cional que a ONU representa foi umahistória de sucesso”.

A 7 de julho, os timorenses serãonovamente convocados para as elei-ções legislativas, num momento quemuitos têm visto como um teste à es-tabilidade política do país. No fim de2012, a ONU terminará a sua missãono país. Se o país está pronto para asmudanças? “É muito complicado res-ponder a essa questão”, explica o es-tudante timorense José Viegas daCosta. “Não digo bem ou mal, mas deum modo geral, Timor está prontopara assumir essa responsabilidade.Os problemas de Timor são os timo-renses que têm de resolver”, explica.José diz não gostar de ouvir que o seupaís é “um Estado falhado”. “Timor éum Estado frágil, isso é verdade, masfalhado não. Temos uma populaçãojovem e não queremos passar essamentalidade do passado. Temos opassado como padrão para melhoraro presente e olhar para o futuro”.

Há dez anos a “lutar para libertara pátria”

A pobreza é considerada umdos maiores flagelos do

Timor atual

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4 | a cabra | 23 de maio de 2012 | quarta-feira

EnSInO SuPErIOr

Fundo de Apoio Social da UC é reforçado em dez por centoO ano letivo passado, o

fundo ajudou 381 alunos.

Contudo, estudantes

consideram que o apoio

prestado é insuficiente. As

candidaturas para este

ano letivo encontram-se

abertas

O Fundo de Apoio Social (FAS)da Universidade de Coimbra (UC)vai ser este ano reforçado em dezpor cento no seu valor afeto. Nototal, o FAS vai este ano letivo atri-buir apoios no valor total de 220 mileuros, sendo que o acréscimo de dezpor cento em relação ao ano pas-

sado se traduz em mais 20 mileuros.

O FAS é um apoio disponibilizadopela UC aos estudantes de licencia-tura e mestrado não comtempladoscom bolsa de estudo. “O objetivo éimpedir o abandono da frequênciado ensino superior dos estudantesnão bolseiros, em dificuldade do pa-gamento de propinas”, refere a vice-reitora para o planeamento efinanças, Margarida Mano. O fundofoi criado em 2004 por deliberaçãodo Senado Universitário.

As candidaturas ao fundo encon-tram-se neste momento abertas,tendo-se iniciado no passado dia 15e decorrem até ao próximo dia 15 dejunho. Este ano, pela primeira vez,as cnadidaturas ao fundo podem serefetuadas via online, uma inovaçãoque a UC institui de forma a “facili-tar, flexibilizar e acelerar o processode candidatura e seleção dos candi-datos”, revela a vice-reitora.

No ano letivo transato, de acordocom dados fornecidos pela reitoriada UC, o FAS contemplou 381 dos544 estudantes que concorreram aoapoio, sendo que 463 eram de na-cionalidade portuguesa e 72 de paí-ses de língua oficial portuguesa. Amaior fatia de candidatos pertenciaà Faculdade de Ciências e Tecnolo-gia, seguido pelas Faculdades de Le-tras e de Direito. O valor atribuídoaos contemplados com o FAS foi de369 euros e 38 cêntimos, montanteque corresponde à diferença entre ovalor da propina máxima e mínima.Os 163 processos indeferidos pren-deram-se com o não cumprimentode requisitos de aproveitamento es-colar, com o facto de os estudantescandidatos serem já bolseiros outerem desistido do processo.

Estudantes consideramfundo pouco divulgado“Se não fosse a assistente social não

tinha tido conhecimento do fundo”,afirma Sara Cardoso, estudante dePsicologia. Também Bárbara Antu-nes, estudante do mesmo curso,considera que o FAS é pouco divul-gado: “fiquei a saber do fundo atra-vés de um papel afixado, mas foiuma colega, que também concor-reu, que me disse que o apoio erapara as pessoas que não tinham tidobolsa”.

Apesar de reconhecerem a ajudapor parte da universidade, ambas asestudantes consideram que o valordo fundo não é suficiente. “O factode estar uns euros acima do limiarda bolsa não significa que tenha ca-pacidade para me sustentar duranteo ano e o valor do FAS não ajudaninguém a sustentar-se durante umano”, assevera Sara Cardoso. “Re-cebi perto de 360 euros. Não chegaa ser metade do valor das propinas”,corrobora Beatriz Antunes.

Por sua vez, uma das vantagens

da candidatura ao fundo é a rapideze menor burocracia em relação aoprocesso e atribuição de bolsas doministério da educação e ciência,afirma Beatriz Antunes. “É maissimples, só precisei de preencherum papel porque os serviços deação social já tinham os meus dadosde quando concorri à bolsa”, diz. Aestudante atesta ainda a rapidez depagamento do fundo, que funcionade maneira diferente da bolsa,sendo o montante atribuído trans-ferido de uma só vez para a contados estudantes. “Na hora em que re-cebi a mensagem a dizer que ofundo me foi atribuído tinha o di-nheiro”, conta Beatriz.

Contudo, Sara Cardoso é mais as-sertiva: “as pessoas precisam de di-nheiro em setembro, outubro enovembro, para pagar casa, comidae propinas e em maio já não há di-nheiro para isso”.

Para promover um debate

sobre questões relativas à

garantia de qualidade do

ES, o pelouro da Pedago-

gia da DG/AAC organiza o

I Meeting de Pedagogia

Nos próximos dias 25 e 26 demaio, a direção-geral da AssociaçãoAcadémica de Coimbra (DG/AAC)promove o “I Meeting de Pedago-gia”, com o intuito de reunir váriosórgãos representativos dos estudan-tes para o debate “mais profundo” de

questões relacionadas com a garan-tia de qualidade das instituições deensino superior (IES). Exemplo maisrepresentativo destas questões é adiscussão em torno do Processo deBolonha. A iniciativa, da responsa-bilidade do pelouro de Pedagogia daDG/AAC, vai contar com a partici-pação de várias instituições ligadasao espaço universitário e académico:Fórum Académico para a Informa-ção e Representação Externa, Bolo-nha Follow-Up Group e Agência deAvaliação e Acreditação das IES, rei-toria da Universidade de Coimbra eda Universidade do Porto. Tambémos grupos parlamentares foram con-vidados pela AAC para este debate.No entanto, a coordenadora geral do

pelouro da Pedagogia, Leila Campos,não pode confirmar a sua presença.

Apesar de ser um espaço de for-mação e debate direcionado para osnúcleos de estudantes da AAC, estu-dantes senadores, conselheiros ge-rais, representantes dos estudantesnos Conselhos Pedagógicos das fa-culdades e para outras direções as-sociativas, as inscrições estãoabertas para os estudantes no geral.Ainda assim, Leila Campos confessaque “é notório que o interesse dos es-tudantes por estas questões não émuito”. A discussão será entre umjantar-conferência na Cantina dasQuímicas, no primeiro dia, e a conti-nuação do debate no Instituto Jus-tiça e Paz, no dia seguinte.

“A nível europeu o estudante é bastante considerado”Segundo a coordenadora geral dopelouro da Pedagogia, o grande ob-jetivo é analisar com precisão o Pro-cesso de Bolonha, compersonalidades que já fizeram estaanálise no estrangeiro. Ao conside-rar que o preenchimento de inquéri-tos “não é suficiente”, Leila Campospretende que o meeting permita “ex-plorar outras vias de participação” eatravés disso, permitir ao estudante“ganhar importância”, uma vez quea “nível europeu o estudante já ébastante considerado”, isto é, é ou-vido de forma equitativa pelos res-tantes atores do ES.

Espaço de formação e debate para estudantes

Carlota rebelo

As candidaturas ao Fundo encontram-se abertas até ao dia 15 de junho

Ana Morais

Inês Balreira

Carlota rebelo

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23 de maio de 2012 | quarta-feira | a cabra | 5

EnSInO SuPErIOr

uando os autocarros parti-ram de Coimbra às dez damanhã, a incerteza daBriosa trazer a taça do

Jamor ao final do dia reinava entre osestudantes e os prognósticos divi-diam-se, depois de uma época quedeixou a Académica de Coimbra nodécimo segundo lugar da liga. Umacerteza dos cerca de 250 estudantesque rumaram ao Estádio do Jamor éque, para além de irem assistir à finalda taça de Portugal, iam fazer-seouvir e reivindicar os seus direitos,como há 43 anos atrás. Nada previaque as forças de segurança do estádiose opusessem à colocação das faixasque a direção-geral da AssociaçãoAcadémica de Coimbra (DG/AAC)levou, como forma de reivindicação,aproveitando a exposição mediáticaque os estudantes iriam ter.

“Tínhamos a confirmação de queas nossas faixas podiam entrar no es-tádio entre as 10h00 e as 12h00 e láestivemos a essa hora para que as fai-xas ficassem já posicionadas”, contao presidente da direção-geral da As-sociação Académica de Coimbra(DG/AAC), Ricardo morgado. No en-tanto, quando a DG/AAC se prepa-rava para distribuir as faixas peloestádio as forças de segurança impe-diram-nas de entrar, devido ao “carizofensivo” que ostentavam, afirma ocoordenador do pelouro da PolíticaEducativa da DG/AAC, Tiago Mar-tins. Ricardo Morgado clarifica que oconteúdo das faixas “eram apenasconstatações de factos e mensagensque a AAC tem vindo a defender aolongo do ano, apesar da Polícia de se-gurança Pública as considerar muitoagressivas”.

Horas depois de negociações comas forças de segurança e de as faixasserem revistas várias vezes, os estu-dantes conseguiram entrar com osestandartes. “Se houve tentativa decensura ou não, a verdade é que asfaixas entraram, mas foi um processotão longo que, decerto, houve atoresnaquele processo que não se sentiamconfortáveis com a entrada de certasmensagens”, analisa Ricardo Mor-gado.

E se o ministro não gostar?Uma das faixas que mais problemasteve ao entrar no estádio foi a quedizia “Marinho paga-me as propi-nas”. “Um dos agentes pensou quefosse uma indireta para o Bastonárioda Ordem dos Advogados, MarinhoPinto, e disse que se o ministro da ad-ministração interna visse aquilo emcasa e não gostasse eles tinham quetirar as faixas a todo o custo”, revelao presidente da DG/AAC. O Marinhoreferido na faixa não era mais nemmenos que o jogador da Briosa quemarcou o golo da vitória. “Foi umambiente desconfortável e quem es-teve envolvido no processo questionao porquê de isto ainda acontecer”, dizo dirigente. “Em ditadura a contesta-ção é mais difícil de silenciar, em de-mocracia é muito mais fácil”,acrescenta, “mas tantos anos depoiso Jamor voltou a ter contestação es-tudantil”.

O principal objetivo erademonstrar o descontentamento“Não compreendemos a falta de in-vestimento na educação, muitomenos numa altura em que o paísprecisa de ter um outro rumo na suapolítica e como tal, demonstrámos onosso apoio à Académica mas quise-mos aproveitar também o momentopara transmitir as nossas preocupa-ções”, conta Tiago Martins. Alusões àquestão do desemprego, das propinase do subfinanciamento do ensino su-perior foram as principais mensagensque a AAC deixou nas faixas quelevou ao Jamor.

Apesar de todos os percalços que aação reivindicativa sofreu, os diri-gentes estudantis fazem um balançopositivo da iniciativa. “Acho que real-mente foi positivo, não só pela men-sagem que passámos, mas tambémpela associação que passou para aspessoas, de que a Académica conti-nua a contestar e isso é muito impor-tante”, declara o presidente daDG/AAC. O dirigente consideraainda que os estudantes “não foramofensivos, mas sim ordeiros e civili-zados”, conseguindo “mostrar não só

a força e o queé ser

d a

Académica”, como também os valo-res por que se pautam. “Acho que onosso descontentamento ficou bempatente, quer no estádio, quer emcasa porque foi amplamente noti-ciado na televisão, na rádio e im-prensa e visível para todas as pessoasque estavam no estádio”, considera ocoordenador geral. “Fico feliz por verque a académica é incómoda e isso sónos dá mais vontade de continuar amostrar aquilo que pensamos”,acrescenta.

Ação reivindicativa sem colaboração dos movimentos estudantisA iniciativa de reivindicação levada acabo no passado fim-de-semana re-sultou de uma moção aprovada na úl-tima Assembleia Magna. A moção foiapresentada pela DG/AAC e pelo co-letivo A Alternativa És Tu!. Nestesentido, a DG/AAC chamou o refe-rido movimento e os restantes paraparticiparem na ida ao Jamor. Con-tudo, os coletivos demonstraram-sedescontentes com a atitude da dire-ção-geral. “A DG contactou-nos comtrês dias antes da ação, mas não como intuito de preparar qualquer ação,comunicaram-nos apenas o que ia ser

feito e se nós estávamos interessadosem participar”, afirma Alma Riverada A Alternativa És Tu!. A estudanteacrescenta que “perante este tipo deproposta” o coletivo “decidiu nãoaderir”. Por sua vez, Renata Cambra,da Frente de AACção Estudantil, re-vela que nenhum dos elementos do

coletivo pôde estar presente devido àmarcação tardia da reunião, suce-dendo o mesmo com a AACção.

Apesar de nenhum coletivo ter es-tado oficialmente representado noJamor, os três movimentos conside-ram que a ação de protesto não teveimpacto suficiente. “O protesto foisimbólico e o governo não vai mudarrigorosamente em nada a sua posi-ção”, adverte Fabian Figueiredo, daAACção. “Em 69 surtiu efeito, mas ocontexto era completamente

diferente e estar a fotocopiar a açãopela metade não leva ao mesmoefeito de décadas passadas”, acres-centa.“O impacto foi pequeno. Con-tudo, congratulamos a iniciativa, queapesar de ter sido feita, já vem ematraso”, afirma Alma Rivera. A estu-dante aponta ainda o facto de a açãonão estar ao alcance de todos os es-tudantes: “sabemos que para a maio-ria não é possível estar a ter estegasto para reivindicar por direitosque são seus”. Por sua vez RenataCambra, considera que a ação foiapenas “simbólica em recordação dacrise de 1969”. “Este tipo de açõesnão chega e correm o risco de passardespercebidas de tão simbólicas quesão”, assevera.

Ricardo Morgado esclarece que aculpa no atraso da preparação daação de protesto não foi da direção-geral, uma vez que “só muito tardia-mente” tiveram conhecimento daquantidade de bilhetes disponibili-zada pela organização, o que “pôs opé no travão dos preparativos”. “Vol-támos a não ter uma participaçãoconjunta mais ativa, mas não foi detodo culpa nossa, uma vez que con-tactámos [os coletivos], dissemos oque queríamos fazer e disponibilizá-

mos bilhetes”, ressalva o dirigente.

A tradição faz-se de reivindicação. 43 anos volvidos os estudantes de Coimbra voltaram ao Jamor não só

para ver jogar a Briosa, mas também para reivindicar os seus direitos. Sobre os entraves às mensagens

contidas nas faixas fica a questão: tentativa de censura ou questão de segurança? Por Inês Balreira

À semelhança de 1969, estudantesforam ao Jamor reivindicar

Q

“Em ditadura a

contestação é mais

difícil de silenciar,

em democracia é

muito mais fácil”

Carlota rebelo

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Page 6: Edição246

Cultura6 | a cabra | 23 de maio de 2012 | quarta-feira

Uma década de encontros com o JazzO Festival Jazz ao Centro

regressa entre os dias 24

e 26 de maio, com con-

certos que irão percorrer

alguns dos palcos mais

emblemáticos da cidade

de Coimbra

No ano em que comemora a suadécima edição, o Festival Jazz aoCentro – Encontros Internacionaisde Jazz de Coimbra será compostonão só pelos vários concertos mastambém por uma exposição foto-gráfica. “10 anos de Encontros”funciona como retrospetiva na his-tória do festival e está patente noTeatro Académico de Gil Vicente(TAGV) até ao dia 27 de maio. Oevento, organizado pelo Jazz aoCentro Clube (JACC) em parceriacom a Câmara Municipal de Coim-bra, propõe novamente este anouma edição recheada com vários

nomes nacionais e estrangeiros re-conhecidos pelos apreciadoresdesta linguagem musical.

Os concertos espalham-se por vá-rios locais: o primeiro tem lugar noCentro Cultural Dom Dinis, es-tando marcado o seu início para as19 horas com a atuação dos OpenField String Trio, que irão partilharo palco com Carlos Zíngaro, numasessão que será de entrada livre(embora os restantes concertos te-nham um custo entre os 5 e os 7,5euros). Segundo o responsável pelaprodução executiva, José MiguelPereira, esta é “ uma das formas en-contradas para ir ao encontro dopúblico”, universitário e não só. Dá-se, assim, a “possibilidade de assis-tir a um concerto de jazz ao vivo”para afastar “alguns preconceitosque as pessoas possam ter” relati-vos ao género musical. A noite ter-mina no Salão Brazil, que seráocupado pelos nórdicos TrespassTrio e por uma figura histórica dojazz, o norte-americano JoeMcPhee, que irá actuar também du-rante os restantes dois dias em queo festival decorre. “Há grandes ex-pectativas para estes concertos”,

ressalva José Miguel Pereira,adiantando que os mesmos serãogravados para posterior edição dis-cográfica em parceria com a Clean-Feed.

Edição de continuidadeO produtor refere que o festival, noseu décimo ano, “já tem uma espi-nha dorsal”, quer seja em termosartísticos ou de parceiros e espaçosenvolvidos. E explica algumas dascaracterísticas que considera “es-peciais”: o trabalhar especifica-mente “certos públicos”, assimcomo “fazer passar o festival por lu-gares não convencionais”, como oMosteiro de Santa Clara-a-Velha,onde “qualquer espetáculo é ummomento mágico” e o artista “é ob-rigado a interagir com o espaço”.Carlos Zíngaro atua no segundo diado festival pelas 19 horas, no Mos-teiro, e confessa ter uma preferên-cia por “espaços acústicos vivos”.Refere, por isso, que tocar nesselocal significará “uma aposta na re-lação entre o instrumento violinoacústico e a reverberação, a reflexãodo som nas paredes e na pedra”.

Também no dia 25 de maio, às 22

horas, terá início a atuação do con-trabaixista Hugo Carvalhais, noTAGV, a apresentar o seu novoálbum, “Particula”, onde o públicopode esperar, segundo palavras dopróprio, “muita improvisação,muita experimentação e uma mis-tura de composições espontâneascom fórmulas quânticas”. O seu ha-bitual trio expandiu-se a quinteto:ao baterista Mário Costa e a GabrielPinto no piano juntou-se a pre-sença de “duas figuras incontorná-veis do jazz francês”, EmileParisien, com o seu saxofone so-prano e o violino de Dominique Pi-farély. O TAGV será também palco,no dia seguinte, à mesma hora, daatuação do quinteto Atomic, consi-derado por José Miguel Pereira, umdos coletivos “mais notáveis donovo jazz a ser feito na Escandiná-via”. Cabe-lhes o penúltimo con-certo, antes do fim da festa no SalãoBrazil.

A divulgação do JazzDez edições depois, e em jeito debalanço, José Miguel Pereira con-clui que o festival “trilhou um ca-minho que permite hoje ter um

público fiel”, não só de habitantesde Coimbra como também de “ou-tras pessoas que nos visitam pro-positadamente para assistirem aofestival”. A fidelização do público étambém fruto do JACC, que definecomo sendo uma organização de“produção e criação local”. José Mi-guel Pereira crê que todo estetempo de trabalho tem “permitidoque a estrutura esteja a trabalhardiariamente na cidade”, para quepossa “oferecer muitos mais espe-táculos, de forma muito mais fre-quente, durante todo o ano”.

O contrabaixista Hugo Carva-lhais confidencia que ele próprio sedeslocou “por diversas vezes aCoimbra nos últimos anos para veros concertos”, acrescentando que “éevidente que a divulgação dos mú-sicos e projetos portugueses é ex-tremamente importante” nestegénero de eventos. O músico Car-los Zíngaro salienta que é de “lou-var a iniciativa do Jazz ao Centro”,pois apesar do período económicoem que vivemos, o JACC tem umpapel “de insistência, de militânciae de acompanhamento, promoçãoe divulgação destas áreas musicais”.

cedida pelo jaac - fotografia por hélio gomes

Carlos Zíngaro (na foto) é um dos artistas que vai atuar nesta edição dos Encontros Internacionais de Jazz em Coimbra

Daniel Alves da Silva

línio Marcos nunca foium autor de fácil absor-ção. Os seus textos sãodesbocados, furiosos e

crus. Em “O Abajur Lilás” encon-tramos isso mesmo - um limbo deemoções que, de forma crescente,mostram ao público uma durarealidade. Escrita em 1969, estapeça chegou a ser censurada, de-vido ao seu forte conteúdo para aaltura – a história de três prosti-tutas, Dilma, Célia e Leninha, quevivem na casa de Giro, um velhohomossexual ambicioso, que asexplora possessivamente. O sub-mundo de um prostíbulo apre-senta-se de uma forma simples.Uma cama, uma mesa, algumas

cadeiras e, claro, um abajur lilás.Temos Dilma, que se prostitui

porque tem um filho para criar,facto que a move durante toda apeça. Não se pode rebelar contraGiro nem contra a vida que leva –porque, como a própria repete aolongo da história, tem um filhopara criar. Temos Célia, que gastadinheiro no bagaço para esquecertudo. Célia tem coragem, mas fal-tam-lhe meios: tem a coragempara querer matar Giro, planoque tenta concretizar, mas semdinheiro para comprar uma arma,nada consegue. Mais tarde chegaLeninha, mulher livre, que nãodeve nada a ninguém e facilmenteconsegue manipular o “cafetão”.

Depois há Giro, personagembastante intrigante: em primeiro,aparece-nos como um homem en-graçado, apesar de já sabermos oque faz para ganhar a vida. Masno final surge-nos a sua verda-deira essência: cruel e vil, não va-cila se tiver que eliminar alguémque não cumpra com as suas von-tades. Sempre protegido pelo seuajudante, Osvaldo – por quemtem uma pequena paixoneta -, faza vida negra às três prostitutas.

O clímax é inesperado: Os-valdo, personagem a início umpouco apagada, trama as prosti-tutas, destruindo o prostíbulo eculpando-as. Giro, que já tinha li-dado com a rebeldia de Célia,

quando esta partiu o abajur lilás,não hesita e prende as prostitutas,torturando-as até que contem averdade. O derradeiro castigoacaba por cair sobre Célia, a prin-cipal vítima da história.

O terror da última parte da peçaé logo de seguida esquecido porDilma e Leninha, porque nadapodem fazer para além de umacoisa: continuar a trabalhar parasobreviver. Porque, segundo Giro,“putaria é assim mesmo”. A adap-tação é feita pelo CENDREV eestá em exibição até 27 de maio,n’ A Escola da Noite.

Por Ana Duarte

Em Palco • Porque “putaria é assim mesmo”

P

paulo nuno silva

Page 7: Edição246

23 de maio de 2012 | quarta-feira | a cabra | 7

Cultura

Numa conversa ao final detarde, depois de um encon-tro com os leitores na Bi-blioteca Municipal, JoãoTordo fala dos seus váriosalter-egos e da forma comoeles determinam a sua es-crita. Num registo descon-traído, entre cigarros echiclete de mentol, o escri-tor contou a forma como oseu percurso de vida foi de-cisivo para a sua escrita.Desde o papel de CatarinaEufémia à chancela do Pré-mio Literário José Sara-mago, Tordo partilhou asua vida e obra, sem reser-vas ou mistérios.

No romance “Anatomia dosMártires”, retratas a históriade Catarina Eufémia. Tendoem conta que já referiste queera uma história “muito malcontada”, pensas que o teulivro contribui para esclare-cer o que se passou?O objetivo não era contar melhor ahistória mas perceber quem tinhasido aquela personagem e porquetinha sido guardada nos baús damemória. Porém, o mais impor-tante não é a Catarina Eufémia emsi, é o percurso que o protagonistafaz ao longo do livro, dado que éum romance e não um ensaio. ACatarina serve como uma buscaque é exterior, mas que também éinterior para ele.

Nos teus livros descreves mo-mentos de pesquisa na biblio-teca, de leituras quaseobstinadas. São descrições datua própria pesquisa?Penso que a pesquisa tem que teros seus limites. Eu faço muita pes-quisa geográfica porque gosto deconhecer os sítios de que falo.Mas a pesquisa documental deveter limites. Interessa-me pes-quisar, mas interessa-memuito mais imaginar.

Os teus narradores são decisi-vos no desenrolar de todas ashistórias. Apesar disso nãotêm nome. O que te leva afazer essa escolha?Eu gosto daquela confusão entrepersonagem que narra e autor.Muitas das coisas que se vão pas-sando nos romances, foram coisasque me foram acontecendo e per-sonagens que vou conhecendo aquie ali e é uma maneira de eu própriome colocar naquela história, sentirque estou a vivê-la. No entanto, osnarradores dos romances sãotodos muito diferentes. Penso quetemos várias personagens dentrode nós e podemos assumi-las.

No livro “O Bom Inverno” éreferida a dificuldade do nar-rador continuar a narrativa,pois considera-se “o únicoresponsável” pelo desenrolarda história e vê-se como umréu, um advogado ou um juiz.É assim que te vês?Vou-me vendo no mesmo papelque tinha o arquivista quando es-crevi “As Três Vidas”. É um arqui-vista que vai arquivando a vida dosoutros e que ao mesmo tempo vaiarquivando a sua própria vida. Noromance “O Bom Inverno” ele as-sume o papel do Barqueiro de Ca-ronte. Sou uma espécie deintermediário.

A ideologia política é um ele-mento comum e decisivo nosteus romances. Tambémocupa um papel importantena tua vida?Por opção próprian ã otenho

ideologia política, não posso ser or-todoxo. A pior coisa que podeacontecer a um romancista é estarcoberto de dogmas que não lhepermitem ver completamente arealidade. A ideologia políticaserve sobretudo para eu represen-tar personagens que a têm, perso-nagens que têm conflitos, que têmdefeitos, que têm falhas.

Em que momento percebesteque a escrita podia ser algoprofissional?Desde sempre. Pensava que podiaser jornalista, pensava que podiaescrever contos… Percebi que eraromancista quando escrevi o meuprimeiro romance, “O Livro dosHomens Sem Luz”. A escrita foi,desde sempre, a única coisa quepensava ter talento para fazer.

E por que é que decidiste es-colher Filosofia como forma-ção académica?Sempre fui apaixonado por livros,mas não exatamente apaixonadopor academismos. Se eu fosse parauma faculdade estudar línguas ouliteraturas sentiria um pouco quese estavam a dissecar as coisas enão queria isso. Os livros só sãomágicos enquanto não se desmon-tam, tinha medo de perder essebrilho.

Fui estudar Filosofia porque erauma matéria que gostava, quetinha a ver com livros e que era umveículo para outras coisas.

Atualmente és descrito comoescritor, cronista, tradutor,guionista e formador. Apesarde todos estes ofícios terem aescrita em comum, diferemna sua realização. No meio detudo isto, como é que te orga-nizas?Há vezes em que eu ando com osprazos em cima de mim. Mas nãoescrevo romances sempre, tiro unsmeses por ano em que vou alimen-tando as ideias e depois tenho trêsmeses em que me dedico só a es-crever. A partir desse rascunhotudo é mais fácil e os meses que seseguem são de reescrita. Mas nãoconsigo estar a escrever guiões demanhã, crónicas à tarde, tocar con-trabaixo à noite e depois ir paracasa escrever.

Que influências artísticasconjugas na tua obra?As minhas influências têm sido,atualmente, os escritores espa-nhóis: Javier Cercas, Vila-Matas,Juan Marsé, que têm uma visãomais contemporânea. Mas as in-fluências vêm de toda a parte, atédos meus amigos, da família. O es-

critor acaba por ser um tipo umbocado perigoso, porque é

um vampiro da reali-dade, o que é por vezes

desgastante.

Entre teres ganhoe teres sido fina-lista de váriosprémios literá-rios, como consi-deras que issopode ter contri-buído para a tuaafirmação no pa-norama artísticoportuguês?O Prémio Saramagodefinitivamente, por-que é um prémio quecatapulta carreiras.As pessoas, comotêm uma grande es-tima pelo Saramago,terão também pelosescritores que ganha-rem esse prémio. Osoutros prémios tive-ram menos impor-tância porque houvevários que eu não re-cebi, embora sejasempre bom estar lánaqueles eleitos. De-pois há o lado finan-ceiro que nos compratempo de escrita e

isso é fundamental.

Grande parte da nova vaga deescritores portugueses foi dis-tinguida com este prémio.Consideras que é uma chan-cela de qualidade?É um prémio que reconhece jovensescritores e esta é uma geração quefoi marcada pelo prémio, uma ge-ração que dificilmente voltará aacontecer nas próximas décadas. Aúltima geração de escritores comeste conhecimento foi nos anos 50e 60. O século XXI trouxe umavaga muito importante que eu nãosei se se repetirá tão facilmente.

Na “Anatomia dos Mártires”quando o jornalista vai entre-vistar Kapus, não tem um co-nhecimento profundo da suaobra, mas omite esse facto. Éuma crítica à comunicação so-cial atual?É uma crítica aos jornalistas quenão leem os livros dos escritoresque vão entrevistar, o jornalismoda Wikipedia. Os jornalistas não sesabem informar. Depois tem a verum pouco com a sociedade do es-petáculo, do Kapus e do homemque se lança do prédio e que foiclaramente um golpe publicitário,serve no livro como narrativa pa-ralela e contrastante com a narra-tiva verdadeira.

És um jovem escritor, com umpercurso premiado e acla-mado pela crítica. Que conse-lhos deixas?Que tenham muita paciência, queeste não é um bom momento paraum jovem escritor publicar. Queespere e, sobretudo, que não semetam com editoras que oferecemcondições estranhas pela internet,porque isso são tudo aldrabices,vão acabar por pagar o seu própriolivro e ele não vai ser exposto.

“O escritor é um tipo um bocado perigoso, é um vampiro da realidade”

Ana Morais

Paulo Sérgio Santos

EntrEvista a João tordo • Escritor

“Temos várias

personagens

dentro de nós

e podemos

assumi-las.”,

conta

João Tordo

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Page 8: Edição246

CulTurA8 | a cabra | 23 de maio de 2012 | quarta-feira

cápor

29MAIO

palesTra-debaTe por

isabel capeloa Gil e maThias Thaler

Galeria sanTa clara • 21h15enTrada liVre

cultura

31MAIO

TeaTro

omT • 21h30sem informação de preço

música

paV. cenTro de porTuGal •18h

enTrada liVre (sujeiTa a reserVa)

cinema

casa das caldeiras • 18h

enTrada liVre

29MAIO

cinema

TaGV • 21h304€ com desconTos

Por Ana Duarte

TeaTro

omT • Vários horários

sem informação de preço

23MAIO

música

Tabacaria da omT • 22h

5 euros

música

TaGV • 21h3012,5€ com desconTos

cinema

casa das caldeiras • 18h

enTrada liVre

“hISTórIAS dE águA E MúSICA “CIClO dE CONCErTOS

TeaTro

TaGV • 21h3015€ com desconTos

“MIrE VEjA”

4JUNHO

“AS ExTrAOrdINárIAS AVENTurAS dO urSO

POlAr E dA rAPOSA dO dESErTO”

STErEOBOy + hOMEM AO MAr

SIMONE BEAuVOIr/ hANNAh ArENdT

“O NOSSO PArAÍSO”dE gAël MOrEl

lAurIE ANdErSON

“dANCE TO ThE SPIrITS”dE rICArdO ÍSCAr

“é COMO dIz O OuTrO”

“MáSCArAS”dE NOéMIA dElgAdO

17 a 26

24MAIO

26MAIO

1JUNHO

MAIO

O lusotropicalismo do teatro apulsar pelas artérias da cidade

Os VI Encontros Internacionais de Arte abriram no dia 18 e por cáficam até 18 de junho. Pintura e escultura são asprincipais atrações

Quem passasse pela Casa Munici-pal da Cultura às 18 horas e 30, nãodaria por nada. Mas na Sala FérrerCorreia assistia-se à inauguração dosVI Encontros Internacionais de Artede Coimbra. Estes encontros não sãonovos, mas ainda são desconhecidosda maioria da população. À frente doevento está a Associação Cultural eArtística de Coimbra (ACAC). O seufundador e diretor-executivo, JoãoCarolo, também expõe nesta mostrade arte, juntamente com Sophie De-gano, Nelo, Sandrine Cortez e CarlaFerreira. O artista J. Sicar, pai deJoão Carolo, também é homena-

geado nesta exposição, com algumasdas suas obras mais conhecidas.

Os Encontros Internacionais deArte, primeiro realizados de quatroem quatro anos e depois anualmente,reúnem em si três vertentes artísti-cas - pintura, música e escultura -que promovem a multiculturalidadeda arte. O intuito é provado pela pró-pria exposição, onde estão presentesdois artistas franceses e um músicoportuguês, que inaugurou a exposi-ção com Carlos Paredes.

Para João Carolo, esta iniciativa é“ótima para a economia local, porquecom os artistas estrangeiros vêmamigos que ficam em hotéis, vão aoscafés e compram um ‘souvenir’ ”. Ooutro lado do benefício de eventoscomo este reside nos “novos conhe-cimentos que trazem e nas novas for-mas de pensar artisticamente”. “Éum enriquecimento humano a todosos níveis”, acrescenta.

As edições passadas seguiram alinha da deste ano: pouca gente sedeslocou à Casa Municipal da Cul-tura - ainda assim, aqueles que o fi-

zeram deleitaram-se com as obrasexpostas e congratularam o artistapelo evento. “Sei que isto não é ne-nhum fenómeno futebolístico. Geral-mente vêm 30 ou 40 pessoas”,lamenta João Carolo. Mas não semostra totalmente desanimado: “aarte toca a estas pequenas minoriase, portanto, são estas minorias queme tocam”.

A vereadora da Cultura da CâmaraMunicipal de Coimbra (CMC), MariaJosé Azevedo, avalia este eventocomo “um acontecimento de grandeimportância, desde logo por quem oorganiza e por aqueles que o procu-ram”. Mesmo com a cedência do es-paço que a CMC faz, o que na opiniãoda vereadora “é já de si um grandeapoio”, João Carolo, apesar da grati-dão com que o recebe, não acha sufi-ciente: “espero que no futuro hajamais apoios, e não só da CMC”. “Nãorecebemos apoios da Direção-geraldas Artes e, como somos uma asso-ciação sem fins lucrativos, não temosmuitos associados”, diz João Carolo.O artista vai mais longe, afirmando

mesmo que “se fosse uma associaçãoque tivesse uma boa conta bancáriajá havia aí 20 candidatos”.

ACAC, uma associação internacionalA ACAC é uma associação cultural degrande dimensão, mas que passa umpouco ao lado de Coimbra. Pelasmãos do seu fundador, que fez per-curso fora de Portugal, pode dizer-seque a ACAC se torna também uma“associação internacional”. As cola-borações vêm desde França, Espa-nha, Holanda e Irlanda. Mas paraJoão Carolo, neste momento, “anossa dimensão, a nível visível, émuito pequena”. Pequena, porque odiretor-executivo afirma estar ainda“à espera do que foi prometido notempo do doutor Carlos Encarnação”- que o Convento de São Francisco fi-casse pronto para que a ACAC se pu-desse instalar por lá. Por enquanto,vão funcionando no atelier de Carolo.Mas fica expresso o desejo de que “atodos os níveis, melhores temposvirão”.

Um nicho internacional na Casa da Cultura

CEDIDA PELO TEATRÃO

Ana Duarte

Entre 29 de maio e 8 dejunho, o Brasil vem aCoimbra numa mostra de teatro. “São Palco” é o nome do evento, organizado pel'O Teatrão

O Festival Internacional deTeatro de Expressão Ibérica passaeste ano por Coimbra, através deuma extensão que engloba cincocompanhias de teatro de SãoPaulo. “São Palco” não é umevento qualquer: para além deproporcionar à cidade uma mos-tra de teatro brasileiro, diferenteem larga escala daquilo que sepratica por cá, fomenta tambémos laços entre Portugal e Brasil.Desde espetáculos de rua a exibi-ções na Oficina Municipal do Tea-tro (OMT), Coimbra teráoportunidade de conhecer umanova realidade cultural – o teatrode grupos.

“São Palco” contará com a pre-sença da Companhia São Jorge deVariedades, Companhia do Fei-jão, Companhia Mungunzá deTeatro, Grupo XIX de Teatro eCompanhia do Latão. No ano pas-sado, a OMT trouxe Nova Iorquea Coimbra, com o grupo THETEAM e Zachary Oberzan. Maseste ano é a vez dos “paulistas”.

Para a diretora artística d'OTeatrão, Isabel Craveiro, “o teatrona América Latina, não só no Bra-sil, está a passar uma fase muito

vigorosa”. No caso específico doBrasil, refere que “são espetácu-los literalmente muito potentes”,não vendo razões que contrariemo estabelecimento de laços com ascompanhias que vêm atuar.Avança mesmo com a hipótese deconsolidar parcerias fortes, parauma permanente troca de cultu-ras e novas formas de represen-tar.

A receção do convite da OMTfoi, em geral, bem recebida. O di-retor do Grupo XIX, Luiz Mar-ques, afirma, em nome docoletivo, que estão “muito empol-gados com essa vinda a Coimbra”.“Hygiene”, a peça que vão apre-sentar, é o único espetáculo derua desta mostra e será o princi-pal desafio. Mas não se mostramincomodados com isso, antes pelocontrário: “Coimbra tem aquelaarquitetura de época e aqui noBrasil não há muito disso, porisso estamos mesmo muito em-polgados por fazer a peça aí”. Nãosendo estreantes em Portugal (jáatuaram no Porto), o Grupo XIXquer repetir a experiência, porquetiveram “uma receção muitolegal, uma troca mesmo muitoboa”. As expectativas, essas são asmelhores.

Ligações ancestraisMas estes espetáculos não sur-gem n'O Teatrão por acaso – elesvão ao encontro daquilo que é otrabalho da companhia portu-guesa. “Desde sempre criámosuma postura fraterna, tal comoestas companhias. Para nós é fan-

tástico poder acolher outras pes-soas, perceber como é que outrosespetáculos se constroem, como éque é a visão de outros artistas”,explica Isabel Craveiro.

Membro da direção da Compa-nhia do Feijão, Pedro Pires clas-sifica este evento como “umachance de estabelecer contactocom companheiros de outro con-tinente com os quais dividimosum idioma e, porque não dizer,uma ancestralidade”. Para alémdisso, “São Palco” é a grande pos-sibilidade para esta companhiacontinuar a mostrar o seu traba-lho pelo globo, já que, segundoPedro Pires, é uma ideia que estápresente no grupo desde a suaorigem, em 1998. Luiz Marques émais assertivo - “esta troca cultu-

ral é fundamental. Até acho queestá a acontecer tardiamente”.

O principal objetivo desta mos-tra será, nas palavras da diretoraartística d'O Teatrão, “ dar à ci-dade esta dimensão internacio-nal”.“ Coimbra é um sítio comooutro qualquer, com capacidadepara organizar e para ter uma es-cala internacional de programa-ção, não é só Lisboa e Porto”,continua. Mas não fica por aqui.Há que potenciar o teatro portu-guês lá fora. O diretor do GrupoXIX lamenta não ver mais com-panhias portuguesas no Brasil eacredita que, com este laço, a si-tuação possa mudar: “teatro éuma arte do hoje, do agora, porisso faz falta esta troca, ficar maispróximo do teatro português”.

Ana Duarte

“Hygiene” (na foto) é uma das peças da mostra de teatro brasileiro

23 e 30MAIO

Page 9: Edição246

dESPOrTO23 de maio de 2012 | quarta-feira | a cabra | 9

fuTsalaac x braga17h • pavilhão engenheirojorge anjinho

ruGbyaeis agronomia x aac15h • estádio universitário delisboa - pavilhão nº1

26MAIO

26MAIO

2 JUN

3JUN

a g e n d a d e s p o r t i v a

hÓQuei femin inoaac x Gulpilhares15h • estádio universitário decoimbra - pavilhão nº1

judocdul x aacTaça do mundo • bucaresteséniores femininos

Tanto para falar do pre-sente como do passado,Francisco Andrade fala em“nós”. Esteve ligado à Aca-démica em 1962 como jo-gador e em 69 e 74 comotreinador. Quando o temaé a Taça de Portugal, torna-se incontornável, para opresidente da Junta de Fre-guesia dos Olivais, revisitaras crises académicas - daimportância que o futebolteve na sociedade, pas-sando pelas dificuldadesque os jogadores viviam àrelação com a AssociaçãoAcadémica de Coimbra,que pode voltar a ser comoera.

Encontra paralelismo entre

esta final e a de 1969?

Claro que esta final é diferente de69. Hoje, talvez os jovens não con-sigam perceber o que era uma aca-demia em luto, que estavacircunscrita à cidade. Mesmo osestudantes, quando saíam deCoimbra e iam para casa ao fim desemana, tinham receio de dizer àsua própria família, porque sa-biam que podiam ser perseguidos.Quando entrámos na Taça de Por-tugal, os jogos eram diferentes deagora porque eram depois do cam-peonato e tinham duas mãos.Nós tivemos três jogos ecada um teve a sua his-tória. O primeirofoi contra oG u i m a -rães. Láper-

demos 2-1 e cá ganhámos 5-0, oque foi marcante, porque toda agente pensava que íamos ser eli-minados. Ao vencermos o Vitóriapõe-se o problema de irmos àsmeias-finais, com o Sporting, o se-gundo lugar. E é então que se dá oauge da crise académica. Isto comuma equipa composta por estu-dantes na sua quase totalidade.Era a verdadeira Académica.

E hoje, isso não é possível?

Não é possível por vários motivos.Por isso é que eu digo que estaFinal da Taça tem uma possibili-dade única de fazer com queaquilo que fomos no passadopossa melhorar o futuro. Eu seique os tempos são outros, que aatração de vir estudar para Coim-bra não é a mesma que era antiga-mente. Antes, era a garantia deuma profissão, de ter outro papelna sociedade, e hoje não. Mas eusou daqueles que acreditam que épossível ter uma equipa de futebolcom

muito mais estudantes do quetemos. E, tendo mais, vai haveruma ligação com a academia.

Mas porque é que entende

que as coisas hoje são assim?

São assim porque o futebol não secompadece com amadorismos emmuita coisa. E a Académica é pro-fissional de fora para dentro, navinda de jogadores e treinadores,mas não o é na organização dedentro para fora. Para se ser hojeuma equipa diferente daquela queexiste e haver a tal simbiose entreo estudante e o jogador, é neces-sário fazer uma prospeção, queseria não só através do empresá-rio. Depois, nós chegámos a ter naequipa principal nove ex-juniores.E poder-se-á dizer que os temposeram outros, mas não porque jo-gávamos contra o Benfica, que foià final connosco e que era cam-peão europeu. Também é uma rea-lidade que, na grande parte dosclubes portugueses, há jogadoresestudantes. É outro erro quandoas pessoas pensam que não há es-

tudantes a jogar futebol. Sim-plesmente, esses não constam

na lista dos empresários, por-que não são esses com quemeles ganham dinheiro. Massão esses que têm valor téc-nico e têm outro valor so-cial, que poderá alterar afilosofia. E é essa a minha

esperança. Que os respon-sáveis da Académica se

abram, porquehoje, feliz-

mente,

temos um presidente da AAC queestá aberto.

E por parte do presidente da

Académica, sente que tam-

bém existe essa abertura?

É isso que eu digo. Tem de haverdas duas partes uma aproximação.

Mas isso é possível?

Eu estou fora, não quero fazer juí-zos de valor.

Mesmo em relação aos estu-

dantes que vivem as dificul-

dades atuais, sente que há,

nesta final, um revivalismo

desse passado?

É preciso não esquecer que nóstambém vivíamos dificuldades. Naaltura, recebíamos para pagar apensão e os livros. E muitas vezessujeitávamo-nos ao arroz com bo-linho de bacalhau, porque nãohavia dinheiro. Hoje, o estudantevive problemas e é umas das taisresponsabilidades que eu digo queexistem na própria AAC e na OAF.Quando eu hoje vejo um senti-mento de revolta, e muito bem, eletem de ter a Académica comobase. Porque nós não somos iguaisàs outras universidades, por maisque elas queiram.

E foi aí que o futebol teve o

seu papel…

Foi fundamental, virou o mundo.Este clube era diferente de todosos clubes. Agora, está muito igual.E ainda bem que a academia está aaparecer no futebol e a ligar-se aele, porque ela dá cor ao emblema,dá alma.

Quanto à época, que foi atí-

pica, qual o seu comentário?

A Académica teve um ano atí-pico, realmente. Era impensá-vel, nos tempos do [JoséMaria] Pedroto e do [Mário]Wilson, termos uma segundavolta em que só marcámosum golo em casa. A forçados teóricos da Académicaera tal e tanta que corriamcom os treinadores. Esteano, a Académica come-çou o campeonato a ilu-dir muita gente de umvalor que ela não tinha, efez uma parte do cam-peonato em que as pes-soas começaram a pensar

na Europa. E ainda bemque isto aconteceu, porque

fez com que o presidente daAcadémica inscrevesse a

equipa nas competições europeias.Temos de congratulá-lo por isso.

E a equipa está preparada

para isso?

Pode beneficiar financeiramente.Podemos melhorar e dar um boca-dinho mais de nome. Mas falemosda Académica no seu todo. Aequipa não tinha maturidade, eramuito jovem. Mas costuma-sedizer que uma equipa se reco-nhece quando perde.

E o treinador, também era

demasiado jovem?

É um treinador jovem, que nãotem ainda sequer o quarto nível detreinador, mas com todas as po-tencialidades. Claro que para oano será mais treinador do que foieste ano. É a vida. Ele vai apren-der, de certeza, com alguns errosque fez. Mas estou convencido deque é inteligente e vai fazer umareflexão profunda.

Quanto ao passado das finais

e das crises académicas, há

algum episódio que desta-

que?

Em 1962 foi tremendo. A equipaera só de estudantes e a direçãotambém. E há também uma criseacadémica. Nós recebemos emcasa um postal a dizer para apare-cermos no Palácio dos Grilos,onde íamos receber o tal subsidio-zinho no final do mês para pagar-mos a pensão e os livros. Lá,disseram-nos: “vocês não são maisnossos jogadores”. Veja que na-quela altura alguns eram casadose com filhos, o que fez com quedisséssemos – e agora? Tudo issofoi um momento de revolta. Equando aparece uma comissão ad-ministrativa composta por pessoasde grande gabarito social aqui emCoimbra e nos perguntam se que-remos ou não jogar…e levam-nospara casa do Pedrosa Santos. Sa-bíamos que estava lá também apolícia política. Como alguns joga-dores pretendiam fugir e não que-riam dar nas vistas, pediram atodos para dizermos que sim. Masnão fomos convincentes, porquehavia quem chorasse. Éramos es-tudantes e estávamos com o movi-mento, mas ao mesmo tempotínhamos que viver. Depois, há ojogo com o Sporting. Muita genteestava connosco, mas outros, ex-tremistas, não nos perdoaram e fi-zeram claque pelo adversário. Istotambém fez com que a Académicase tenha separado da academia.

“O sentimento de revolta nos estudantestem de ter a Académica como base”

Fernando Sá Pessoa

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Page 10: Edição246

DESPorto10 | a cabra | 23 de maio de 2012 | quarta-feira

prolongamento

FUTsaLA equipa deTó Coelhoestá perto degarantir a ma-

nutenção e encontra-se, nestemomento, no segundo lugar do‘play-out’, com os mesmos 19pontos do primeiro lugar, oSporting de Braga. A vitória noterreno do Belenenses, no pas-sado dia 19, por 5-7, foi impor-tante, uma vez que os homensde Belém estão a apenas a trêspontos da Briosa, e só os doisprimeiros lugares entre os qua-tro podem ficar na primeira di-visão. No regresso ao primeiroescalão do futsal português, amanutenção está ao alcance,pelo que a partida com o Braga,no próximo sábado, se revelarádecisiva.

JUdoA Secção deJudo conquis-tou, pela pri-meira vez na

sua história, o tí-tulo de campeão nacional deequipas na categoria de senio-res femininos. O torneio decor-reu no passado fim de semana,em Odivelas, onde também aequipa masculina sénior estevemuito perto de disputar a final,tendo alcançado o 3º lugar dopódio. O encontro decisivo parao título da equipa femininadeu-se contra o Sport Algés eDafundo, duelo em que a Aca-démica saiu vencedora com oresultado de 2-1. No próximodia 2 de junho, a equipa femi-nina da secção de Judo partepara Bucareste, na Roménia,onde disputa a Taça do Mundo.

NaTaÇÃoA Académicaalcançou 20medalhas noTorneio Nada-

dor Completo, que decorreu naPedrulha, nos passados dias 13e 14 de maio. A secção da aca-demia, que esteve representadaem todos os escalões, contoucom um total de 31 atletas. Derealçar as prestações de JoãoNeves, João Pires e GustavoMadureira, juniores masculinosque conquistaram os primeiro,segundo e terceiro lugares, res-petivamente.

Por Fernando Sá Pessoa

ecretária da direção do cen-tro hípico do Choupal, Isa-bel Veloso, refere que o“ideal seria ter 60 cavalos,

mas eles têm saído”. Contam-seagora 30. Também no hipismo acrise se faz sentir, visível nos pou-cos focinhos pontiagudos que es-preitam, envergonhados, pelasjanelas das ‘boxes’. Os empregadossão já apenas três, para toda a ma-nutenção dos dez hectares do re-cinto, para alimentar os cavalos epara lhes fazer a cama. Enquanto adirigente lamenta as escassas con-dições financeiras, o Kiwi, cavalobranco que está na ‘box’ contígua àsala onde decorre a conversa, re-lincha, como que concordando. Eas suas queixas vêm pelos cascosque batem, com estrondo, na cal-çada.

Dadas as dificuldades financei-ras, torna-se pertinente questionarem que medida faz sentido associaro hipismo à elite social. Com efeito,Isabel Veloso refere que isso é algo“que tem de ser combatido”. “Àsvezes, vejo as pessoas com meninosao colo a olharem cá para dentro, eeu é que vou dizer que podem en-trar”, refere. E o centro hípico é,vistas as coisas, pouco conhecidopela população conimbricense, tal-vez por causa do estigma social. Se

muitos apoios, afirma a dirigente,têm sido “concedidos pela CâmaraMunicipal de Coimbra, principal-mente para a manutenção do es-paço”, Gabriel Veloso, presidenteda assembleia geral, evidencia aimportância de “passar a informa-ção para a população”, uma dasprioridades da nova direção. E éneste campo que o estigma poderáser superado. O dirigente comparamesmo a prática da equitação aoginásio, os cavalos ao ferro. “Asmensalidades que se dão para umginásio dão para pagar as aulas nocentro hípico”, garante. “E não épreciso ter um cavalo para fazer hi-pismo”. Que o diga a criança que,no picadeiro coberto, se desfaz emdelícias, durante o volteio, etapainicial desta modalidade despor-tiva.

Benefícios terapêuticosPorém, não só de trotes e competi-ção se fazem os desportos eques-tres. No centro hípico do Choupalpratica-se também hipoterapia, de-dicada a pessoas com dificuldadesmotoras. Neste contexto, Isabel Ve-loso salienta a importância quemontar pode ter para a saúde. “Es-teve aí um menino, por exemplo,que tinha grandes dificuldades deequilíbrio e que, depois das aulas,

teve uma grande melhoria”.

“O cavalo sofre e tem depressões como as pessoas”Não será, porventura, à toa, queesta modalidade está associada adeterminados estratos sociais. Naspalavras de Gabriel Veloso, “o ca-valo é um animal nobre”. À exceçãodo ‘Dark’, claro, que, no seu habi-táculo, abana a crina em sins, vigo-rosos, como se escutasse algumamúsica ritmada. Além de nobre, ocavalo é também um animal sensí-vel. “Hipersensível”, afirma o diri-gente. Quase sempre é o reflexo dodono. “Se ele for mal-educado e ir-requieto, é porque o dono tambémo é”. “Ele sofre quando não é acari-nhado e tem depressões como aspessoas”, acrescenta.

Relação com o cavaleiroEntra aqui a necessidade de sinto-nia entre o cavaleiro e o cavalo,questão fulcral no hipismo e quenão pode ser subestimada. Entre os“clac, clac” que emite para os cava-los e as indicações que dá aos seusalunos. Filipe Gonçalves, monitor,lamenta que as pessoas, muitasvezes, olhem para o cavalo “comouma máquina”, problema que está,garante, “incutido nos próprios for-

madores”. “Quando se ganha, o ca-valeiro é o maior e quando se perderesolve-se com duas bofetadas noanimal”, diz. Ainda assim, o sócioe ex-dirigente do centro, Luís Sar-nado, destaca que, ali, “muitos doscavalos têm mais condições que al-guns humanos”. Importa respeitara psicologia equestre.

Como afirma Filipe Gonçalves,“para se educar um cavalo não sedeve recorrer à violência, masantes ser-se persistente.” “Os re-sultados não podem estar à frentedo animal”, defende. Com a can-dura de que fala, o monitor inter-rompe a conversa e apronta-se aajudar uma aluna, que pede ajudapara se recolocar. Ao jeito que lhedá, segue-se uma festa no cavalo.“Nós podemos comprar um taco degolfe em qualquer loja, que ele éigual toda a vida. O cavalo não. Édiferente toda a vida”, diz Filipe.

Para lá das cancelas do Choupal, cerca de dois quilómetros depois da mata, existeum centro hípico. Discreto e encaminhado por uma estrada esburacada, o complexo possui, neste momento, 30 cavalos, embora possa ter cerca de 60. Em tempos, que não de crise, foi assim. Por Fernando Sá Pessoa e Mariana Morais

Afinal, o hipismo não é umdesporto só para elites

fernandO sá pessOa

O centro hípico do Choupal está aberto a todo o público, não se reservando apenas aos utentes que pagam para usufruir das aulas

hipismo

S

“As mensalidadesque se dão para umginásio dão parapagar as aulas nocentro hípico”

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23 de maio de 2012 | quarta-feira | a cabra | 11

CiênCia E tECnologia

o contrário do que possaparecer, o veículo elétriconão é novidade. “Entre1890 e 1914 havia mais

automóveis elétricos nos EstadosUnidos da América e no ReinoUnido do que automóveis commotor de combustão interna”,conta Victor Lobo, eletroquímicoda Faculdade de Ciências e Tecno-logia da Universidade de Coimbra(FCTUC). Apesar do avanço tecno-lógico, a opção pelo veículo elétricocontinua a apresentar mais contrasdo que prós em relação aos veícu-los com um motor de combustãointerna, vulgo automóveis que con-somem gasolina ou gasóleo.

A queda do líder do mercadoO declínio do veículo elétrico temorigem na década de 1910, combase em desenvolvimentos tecno-lógicos. Victor Lobo aponta váriasrazões, entre elas a melhoria da fia-bilidade dos motores de combustãointerna; o preço, com Henry Ford acolocar automóveis a gasolina a440 dólares; o surgimento de novospneumáticos.

A viragem na sua utilização coin-cide com o primeiro marco histó-rico do século XX, a PrimeiraGuerra Mundial. Os desenvolvi-mentos ao nível da mecânica auto-móvel, com fins bélicos,possibilitaram novas inovaçõescomo silenciadores e motores dearranque. Dessa forma, o veículoelétrico, que até aí era alvo de pre-ferência nas classes mais abasta-das, perdeu em relação ao seuconcorrente a nível de ruído emi-tido e da sua escolha maioritáriapelo sexo feminino, por não ser ne-cessário pôr a trabalhar à manivela,o que originava muitos braços par-tidos.

A poluição e o preçoTanto Victor Lobo como PedroMarques, investigador do Departa-mento de Engenharia Mecânica daFCTUC, afirmam que as marcas deautomóveis fazem propaganda auma taxa zero de emissão de po-luentes, o que não corresponde àverdade. “Não poluem localmente,mas onde se gerou eletricidade”,enfatiza o investigador, tendo emconta que a energia elétrica podeser gerada através da queima decombustíveis fósseis, como o gásnatural ou o carvão. Isto varia con-soante o horário de carregamentodos veículos, conforme explicaPedro Marques. Durante a noite hámenos consumo de energia e Por-tugal, nessa altura específica, pro-duz um excesso de energiaproveniente de fontes renováveis.

No Departamento de EngenhariaMecânica, avaliam-se padrões de

utilização mistos, baseados não sóna questão ambiental mas tambémna económica. Um dos grandescontras do veículo elétrico é o seuexcessivo preço: “um veículo de 30

mil euros tem carros equivalentesque não chegam a custar 15 mil”,evidencia o investigador, que refereigualmente que na conjuntura atualas pessoas optam pela escolha mais

barata, o automóvel convencional.Outro dos problemas também re-

lacionados com a componente fi-nanceira são as baterias utilizadascomo fontes de armazenamento deenergia. Cada conjunto de bateriasronda os dez mil euros, tendo, se-gundo dados fornecidos pelas mar-cas, uma autonomia de “100 milquilómetros”, calcula Pedro Mar-ques. Se se considerar um tempo deutilização para o veículo de dezanos e 200 mil quilómetros, pers-petiva-se que sejam utilizados doisconjuntos de baterias. “Se pensar-mos que um veículo custa 30 mileuros e as baterias 10, temos umpreço final de 40 mil euros”, estimao investigador. Nem mesmo aopção, de algumas marcas, poruma espécie de aluguer de longaduração, que eliminaria o custo deaquisição de um novo conjunto debaterias, parece ser viável.

O problema das baterias não seesgota no seu custo, nem no seutempo de vida. A sua própria tec-nologia, ainda que em constantedesenvolvimento, apresenta muitaslimitações. Pedro Marques relataum teste feito a um veículo elétricoque põe em causa a sua fiabilidade,uma viagem entre Lisboa e Madridque terminou com o veículo total-mente inutilizado.

É preciso fazer contasUma questão que passa desperce-bida ao público em geral é a ausên-

cia de ruído por parte destes veícu-los. Apesar de nota máxima na re-dução de poluição sonora, PedroMarques questiona até que pontonão se estará a colocar em risco asegurança dos transeuntes. VictorLobo levanta ainda outra questãocrucial, a dos impostos associadosaos combustíveis: “o preço da ga-solina é de 50 a 60 cêntimos e es-tamos a pagar bem mais de 1 euro emeio. Se passássemos a ter só au-tomóveis elétricos, o poder políticocolocaria os mesmos impostos naeletricidade”.

Atualmente vive-se um para-doxo. Com valores de aquisição deveículos elétricos residuais, apesardos esforços do Governo em dotaro país de uma rede de postos decarregamento, não há grandes in-vestimentos no desenvolvimentode novas tecnologias. Pedro Mar-ques aponta números e até inter-roga: “se tivermos em conta queproduzir energia elétrica numacentral a carvão tem uma eficiênciade 40 por cento, e estamos a perder60 por cento, mais as perdas de 8 a10 por cento na rede de distribui-ção a baixas voltagens, o transfor-mador da rede para ocarregamento do carro, as perdasda bateria (apesar de ter uma efi-ciência de 90 por cento)… Se calhara eficiência do veículo elétrico nãoé assim tão grande”. “Estamos adesviar-nos do problema e não aresolvê-lo”, conclui o investigador.

a ideia de que os veículos elétricos não poluem é falsa

Em tempos que pedem uma consciência mais ecológica, o veículo elétrico surge muitas vezes comouma alternativa. todavia, o tipo de produção de energia elétrica e o preço de compra do veículopodem impedir o seu ressurgimento no quotidiano popular. Por Filipe Furtado e Paulo Sérgio Santos

d.r.

A

A cidade de Coimbra coloca à disposição 27 postos de carregamento deveículos elétricos, instalados no primeiro trimestre de 2011 pela mobi.e(consórcio e projeto que assegura a rede de abastecimento nacional).

A Câmara municipal de Coimbra (CmC) prevê várias medidas de incen-tivo à utilização de veículos elétricos, incorporando já alguns destes na suafrota e pretendendo manter uma percentagem fixa dos mesmos aquando darenovação da frota camarária.

de acordo com o adjunto da vereação para o trânsito, rui ernesto, o “car-sharing”, isto é, a partilha de veículos espalhados pela cidade, alugados porminutos ou algumas horas, é uma ideia que “tenta englobar os veículos elé-tricos”. A CmC quer definir uma tarifa bi-horária favorável ao carregamentonoturno, tornando-o menos dispendioso tanto para as carteiras como para oambiente. uma possível “isenção parcial ou total de pagamento em zonas deestacionamento pago ou de duração limitada” é outra das propostas, talcomo a hipótese de fazer microgeração de energia junto das áreas de carre-gamento, aponta rui ernesto.

As medidas já foram aprovadas e estão para “breve”, mas “fazem sentidonuma estratégia que estava definida para o mobi.e”, explica rui ernesto. Con-tudo, neste momento, o município está em “stand-by”, à espera de orienta-ção política da administração central sobre o mobi.e, para saber se osmoldes do projeto serão ou não alterados.

• em 1900, nos euA, venderam-se 5000 veículos elétricos e apenas1000 veículos movidos por motor de combustão interna

• em 1910, o veículo elétrico começa a perder competitividade paraa automóveis a gasolina ou gasóleo, fruto dos avanços tecnológicos

• em 1921, fecha a última fábrica de veículos elétricos dos euA

por Filipe Furtado

CâmArA muniCipAl de CoimbrA AprovA listA de inCentivos Ao veíCulo elétriCo

Veículos elétricos também poluem

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venda de bens12 | a cabra | 23 de maio de 2012 | quarta-feira

m casal novo, com um bebé

ao colo, entra numa casa de

compra e venda de ouro.

Levavam várias peças para

vender. Assim que Jorge Faria, o fun-

cionário, os informa do valor que

podia oferecer pelo ouro, o casal

apercebe-se de que não chega para

fazer face às despesas e, num mo-

mento de constrangimento sentido,

tiram as alianças dos dedos.

Todos os dias, Jorge Faria, a traba-

lhar no ramo desde 2011, encontra

pessoas à procura de se desfazerem

do ouro que têm. “Aparece tudo. Seja

em pepita, barra, fios, joalharia de

todo o tipo, relógios, até dentes de

ouro já comprei”. “Agora vê-se cada

vez mais gente a vender ouro por ne-

cessidade”, relata. Chegam cabisbai-

xos, constrangidos, alguns com uma

lágrima a escapulir-se-lhes pelo canto

do olho. Muitos não falam, outros

lançam lamentos corriqueiros para o

ar. As tabuletas de publicidade pro-

metem máximo sigilo e as recusas na

cedência de entrevista nestas lojas

são consecutivas. A necessidade da

pessoa gera vergonha no momento de

entrar numa destas lojas, de portas

douradas e vidros fumados. “Isto é

como comprar Viagra”, elucida Nuno

Pereira, a trabalhar há ano e meio

numa casa de ouro na Avenida Sá da

Bandeira. “Já encontrei clientes que

vendiam prata para poderem com-

prar manteiga, pão e leite”, lembra o

comprador de ouro.

As histórias que se ouvem dos

compradores de ouro que aceitaram

falar com o Jornal A Cabra são escas-

sas. Alguns preferem nem sequer

contar, mas a própria estratégia do

comprador leva a que as histórias não

sejam ouvidas. “Nós tentamos nem

nos focalizarmos na situação dramá-

tica em que a pessoa se encontra e

concentrarmo-nos na felicidade que

o dinheiro realizado lhe vai dar”, ex-

plica Jorge Faria.

“São obrigados a desfazerem-se do ouro”José Ferreira Nunes, de 66 anos,

também se meteu no negócio da com-

pra e venda de ouro pela própria im-

posição da crise. Ficou desempregado

dois anos e a reforma que recebe não

dava para sobreviver. Agora compra

ouro. “Muitas vezes vêm, tiram o anel

do dedo, perguntam quanto dou e

vendem”. Diz que a maioria confessa

a necessidade que tem em vender o

ouro, e da carência assumida, José

Ferreira Nunes guarda uma história

que o marcou. “Uma senhora, de

meia idade, entrou na loja, tirou os

brincos das orelhas a chorar e per-

guntou-me se os comprava”. Com-

prou. “Pronto, já tenho dinheiro para

mais duas noites cá em Coimbra”,

disse a senhora, que vendeu os brin-

cos para poder pagar estadia na ci-

dade, enquanto um familiar seu era

operado.

“São obrigados a desfazerem-se do

ouro porque a vida assim o pede”, ex-

plica José. “Temos que ir andando até

a gente poder, quando não puder,

olha….”. Para se ir andando, muitos

vendem todo o ouro que têm. Seja

alianças, joalharia, heranças, objetos

com valor sentimental. Tudo. Há que

fazer face a prestações, contas de

água e luz, dívidas, até despesas de

primeira necessidade ou compra de

medicamentos. As casas de ouro es-

palham-se e alastram como abelhas

reluzentes por toda a cidade, com os

seus placards dourados e pretos a

lembrar os transeuntes que o ouro

que têm em casa é dinheiro. “A aber-

tura de tantas lojas vai despertar o

olho do cliente e chama-o”, afirma

Catarina Santos, de 27 anos, licen-

ciada em Economia, que perdera o

emprego num banco e que trabalha

agora numa loja de compra e venda

de ouro. “Apareceu-me cá uma se-

nhora a chorar, a dizer que não se

queria estar a desfazer das suas coi-

sas mas como não tinha outra forma

de sobreviver, vendeu”, expõe Cata-

rina.

IMI levou muitos às casasde ouroMuitos dirigem-se a lojas por causa

de contas de água e luz ou de dívidas

contraídas. Todavia, Catarina Santos

aponta para abril passado como um

mês de grande procura devido ao au-

mento da taxa do Imposto Municipal

sobre Imóveis (IMI) em Coimbra - si-

tuação corroborada por Nuno Pe-

reira. Contudo, não se pense que seja

só para situações de sobrevivência.

Segundo Sónia Leitão, há 18 anos a

trabalhar numa ourivesaria da Baixa,

lembra que “há quem venda para via-

jar”. Também Jorge Faria já observou

diversas situações semelhantes: “há

quem venha aqui vender e logo de se-

guida está com um saco de roupa a

dizer “olhe aqui o dinheiro do ouro”.

Apesar de haver cada vez mais

casas de ouro em Coimbra, Rodrigo

Góis, coordenador de uma rede des-

tas lojas em Coimbra, considera que

“daqui a três ou quatro anos vai ser

um negócio em extinção”. O ouro em

casa das pessoas vai desaparecendo.

Rodrigo Góis nota também uma mu-

dança no perfil das pessoas que agora

vendem: “dantes era só classe baixa a

querer desfazer-se do ouro, hoje

vemos mais classe média e média-

baixa”.

O valor artístico perdido“Na Baixa, quando abre alguma loja,

ou é uma casa de ouro ou é um chi-

nês”, lamenta Sónia Leitão. José da

Costa, 80 anos, trabalha como ouri-

ves desde os seus 11 anos. Dos já bem

largos 69 anos de volta de joalharia,

aflige-lhe a “praga”. Aflige-lhe repa-

rar que é por necessidade que as pes-

soas vão às casas de ouro e aflige-lhe

também o valor artístico perdido.

Sendo que quase a totalidade das

peças é fundida e transformada em

barra de ouro, para José da Costa

custa ver “peças bonitas, obras de

arte, a serem desfeitas assim”. “A ou-

rivesaria clássica não faz isso”. Conta

que já antes se comprava ouro, mas

nada que se comparasse com este fe-

nómeno e deixa uma pergunta acuti-

lante: “e depois do ouro o que é que

vendem?”. “Vendem tudo o que for

preciso. Inclusive a alma e a digni-

dade”, responde, em jeito de lamento,

Luís Quintans, dono de uma loja de

velharias na Baixa de Coimbra, ofício

que faz do mesmo um cronista diário

U

“Vendem oque for preciso.

Inclusive aalma”

As casas de compra de ouro alastram pela cidade a responderà necessidade afligida das pessoas. As de velharias têm quedizer não e nos ‘stands’ e imobiliárias há pessoas aflitas por

se desfazerem de carro e casa. Tudo se vende. Por João Gaspar

Vão-se os anéis.

Ficam os dedos

Page 13: Edição246

23 de maio de 2012 | quarta-feira | a cabra | 13

venda de bens

da crise, observando-a na cara das

pessoas que ali batem à porta para

ver se compra uns livros, uns pratos

ou outra bugiganga qualquer. “As

pessoas agarram-se a tudo para ven-

der”.

“Ajude-me lá que estou à rasca”.

“Compre qualquer coisa”. “Ai, a

crise…”. “Sabe, tenho empréstimos

para pagar”. “Coisas da vida”. “Isto

está mal”. O agravamento da crise

económica e social leva algumas pes-

soas a desfazerem-se de bens. Não só

do ouro e prata que têm em casa mas

também de carros, casas, ou perten-

ces que tentam vender em velharias.

Tudo vale para fazer atenuar as difí-

ceis contas do final do mês.

As velharias já não compram“Assiste-se a uma desmesurada

oferta de bens. Antes comprávamos

e conseguíamos canalizar os objetos.

Agora, como não vendemos, não

compramos”, explica. Quer Luís

Quintans, quer Fausto Carvalho, quer

Carlos Dias, todos no ramo das ve-

lharias, já raramente compram.

“Aparecem todos os dias. Eu nem

vejo os objetos. Digo logo que não

estou a comprar”, explica Carlos

Dias, de 88 anos. Também Fausto

tem que dar negas todos os dias,

“desde que a ‘troika’ chegou”.

“Assisto diariamente a dramas.

Querem vender para comprar medi-

camentos ou comida… E a lágrima

vem aos olhos, puxo do dinheiro,

dou-lhes e nem fico com o objeto. As

pessoas desmancham-se a chorar”,

explana Luís. Ouve os desabafos des-

graçados dos que lhe batem à porta.

“Veio aí uma menina de 30 anos a

querer vender uns livros. Disse que

não podia comprar e começou a cho-

rar que nem uma criança”. Precisava

de dinheiro para o filho que ardia em

febre em casa. “Dei-lhe cinco euros.

E o problema é que há muitas histó-

rias como esta”.

“Pessoas que têm as suas profis-

sões estão a ficar empobrecidas, a

cair numa indigência de já nem terem

dinheiro para medicamentos. A ideia

que temos de que os pobres são os

outros acabou. Hoje qualquer um de

nós pode ser um pedinte disfarçado”,

comenta Quintans.

Vender o carro para pagarempréstimoDesenha-se então o disfarce, alimen-

tado por vendas de bens, sejam eles

ouro, livros ou casas e carros. “A par-

tir do início de 2012 começaram a

aparecer pessoas a perguntar se que-

ríamos comprar carros. Pessoas que

não podiam sequer pagar as presta-

ções”, afirma João Lemos, há 21 anos

no ramo automóvel. E aqui nota-se o

mesmo paradigma que nas lojas de

velharias – muitos querem vender,

poucos querem comprar. Este ano,

no ‘stand’ onde trabalha sentiu uma

quebra de 50 por cento nas vendas.

“Não compram, e quando compram

é um automóvel mais modesto do

que aquele que vendem para pode-

rem pagar o empréstimo. Mas por

vezes o valor comercial do automóvel

é inferior ao valor da dívida”, elucida.

“Encontramos pessoas desesperadas,

que andam a pagar o carro há uma

série de anos, e que ficam na iminên-

cia de ficar sem o automóvel que es-

tava quase pago e sem dinheiro para

comprar outro. E o carro é quase um

bem essencial para muitos!”.

Se se vendem carros para pagar

empréstimos dos próprios carros,

também se vendem imóveis para

pagar os créditos de habitação.

Maria, nome fictício, trabalha há oito

anos no ramo imobiliário e encontra

cada vez mais pessoas numa situação

de desesperança – “ou vendem o

imóvel ou o banco fica com ele”. “As

pessoas estão aflitas e acabam por

aceitar propostas muito mais baixas

por estarem em risco de entregarem

a casa ao banco”, ilustra Maria, que

afirma que tal se tem notado mais

desde o início de 2012. “Lembro-me

de um senhor que tinha dois meses

para vender a casa, senão seria en-

tregue ao banco. Acabou por aceitar

uma proposta 30 por cento mais

baixa”. E comprar? “Quase ninguém

compra. Há é uma grande procura do

arrendamento, visto que não têm ca-

pital próprio para recorrer a finan-

ciamento”, garante.

Vão-se as casas, os carros, o ouro,

objetos sentimentais, livros, móveis

antigos, de tudo um pouco para se si-

lenciar uma crise cada vez mais ape-

gada ao desespero, o mesmo que os

que aqui intervêm usam para retra-

tar as histórias que ouvem. “Que se

vão os anéis e que fiquem os dedos”,

diz José Ferreira Nunes. E quando já

não há anéis?

“Encontreiclientes

que vendiam

prata para

comprarpão

e leite”

Com o agravamento da crise económica e social, determinada por umapolítica de austeridade fortemente recessiva levou a um aumento das difi-culdades enfrentadas pela maioria das famílias portuguesas. e estas, parapoderem fazer face a necessidades básicas como a alimentação, o paga-mento da renda ou a prestação do crédito, vendem tudo o que podem ven-der.

o número das casas de ouro explodiu aproveitando-se da situação deaflição em que se encontram muitas famílias e do desconhecimento do mer-cado e do verdadeiro valor dos objetos para comprar a preço de saldo. Parachegar a essa conclusão, basta ir com o mesmo objeto a várias casas e ternumas uma posição passiva, e em outras uma posição ativa, regateando opreço, para se ficar com uma ideia da amplitude da diferença de preçosque existe neste mercado.

É urgente que o governo intervenha nomeadamente no mercado das casasde ouro e de objetos de elevado valor que fazem parte do património dasfamílias para impedir a exploração da sua aflição e vulnerabilidade. e podiafazê-lo de várias formas. em primeiro lugar, realizando um controlo muitomais rigoroso das suas transações e dos preços a que são feitas. em segundolugar, abrindo serviços oficiais de avaliação que permitissem aos portugue-ses que quisessem vender peças de ouro ou outros objetos de elevado valorobter o preço correto dessas peças. Finalmente, o estado devia criar condi-ções para a concessão de pequenos empréstimos tendo como garantia, porexemplo esse ouro, para fazer face a dificuldades temporárias, evitandoassim que famílias, devido a um problema de curta duração, fossem obriga-das a ficar sem uma peça de ouro que tem para ela também um elevadovalor simbólico.

“É urgente que o governo intervenha”EmDiscursodiretoEugénio Rosa

Economista

MArA rodrigues

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CidAde14 | a cabra | 23 de maio de 2012 | quarta-feira

‘Cowork’: mais do que partilhar o espaço é trocar conhecimentos

Apesar de já remontar a

2010, a fusão dos hospi-

tais volta à discussão.

Com o fecho das urgên-

cias dos Covões e a jun-

ção das maternidades

multiplica-se a discórdia

Quase dois anos depois, a “fusão”ou “integração” do Centro Hospita-lar e Universitário de Coimbra(CHUC) está longe de reunir con-senso e são ainda muitas as vozesque discordam desta tomada de po-sição. Atente-se no percurso que estadecisão já seguiu: desde os finais de2010, que a Ministra da Saúde, AnaJorge, do anterior governo socialista,anunciou a fusão dos Hospitais daUniversidade de Coimbra (HUC)com o Centro Hospital de Coimbra(CHC), vulgarmente chamado deHospital dos Covões; mas só no ano

de 2011, é que esta integração come-çou a ser posta em prática, já sob aaprovação do governo social-demo-crata. No entanto, os episódios re-centes do fecho das urgênciasdurante o período noturno nos Co-vões e da possível fusão da Materni-dade Bissaya Barreto e MaternidadeDaniel de Matos catapultaram o as-sunto de novo à discussão pública.

“A centralização é perigosa e aindamais a centralização exagerada”, édesta forma que o diretor do serviçode optometria do Hospital Pediá-trico, Jorge Seabra, classifica a fusão.Opinião corroborada pelo Bastoná-rio da Ordem dos Médicos, José Ma-nuel Silva – “a criação de um centrohospitalar gigantesco é ingerível e amédio prazo vai ter resultados muitomaus”. Também o presidente da Câ-mara Municipal de Coimbra, Bar-bosa de Melo, em entrevista aoJornal A CABRA, em dezembro de2011, lançava críticas à fusão doshospitais, ao apelidá-la de “perigosapara a cidade”. Ainda o Sindicato dosMédicos da Zona Centro (SMZC), em

comunicado de imprensa, de 16 demaio, considera esta medida de “la-mentável e intolerável num Estadode Direito”.

“Evitar redundâncias” é oobjetivo da fusãoMas com tantas vozes discordantes,porquê a fusão? Em nome do CHUC,o diretor de saúde materno fetal,José Sousa Barros, responde: “noshospitais havia duplicações e redun-dâncias que fazem sentido reapre-ciar”. Na mesma linha depensamento, está o diretor do ser-viço de urologia e transplantaçãorenal do CHUC, Alfredo Mota - “ogrande objetivo da concentração é omelhor aproveitamento dos recur-sos, o que pode gerar poupança aoServiço Nacional de Saúde (SNS)”,assevera.

Os críticos desta concentração deserviços usam o mesmo argumentoreivindicativo: a não divulgação deum estudo prévio quanto à fusão doshospitais. Ainda assim, José SousaBarros afirma que apesar de não

haver um estudo formal, “as pessoasque propuseram a fusão tinham umaanálise real” da situação. Por sua vez,Jorge Seabra explica que os profis-sionais não foram consultados e as-segura que há um perigo real nestecenário – “o afastamento dos órgãosmais altos da gestão e uma não per-ceção dos serviços”. Já Alfredo Motaconta que esta fusão “tem o apoio de80 por cento da população”, lem-brando a soma dos votos dos dois úl-timos governos que levaram a caboesta fusão.

“Há dinheiro para muitascoisas e corta-se nasaúde”O Bastonário José Manuel Silvaconta que encara “com reserva” estafusão, uma vez que “o principal cri-tério é o critério económico e não oaproveitamento de energias e me-lhoria da qualidade”. “Há dinheiropara muitas coisas e corta-se nasaúde”, protesta Jorge Seabra aoclassificar de “desequilibrada” a ló-gica política seguida no SNS. No

mesmo sentido, José Manuel Silvaconsidera que a fusão só se deu “pelaincompetência da governação dopaís”. De opinião contrária, JoséSousa Barros considera que é neces-sário “libertar recursos que possampermitir investir em áreas de desen-volvimento também necessárias” epara tal é preciso “olhar ao que segasta”. Ainda assim, Jorge Seabraconta que “só a longo prazo é quepodem haver vantagens económi-cas”.

Quanto a soluções, também parecehaver consenso: “cautela ao avançarcom o processo”, pede Jorge Seabra.A preocupação com os doentes étambém o grande mote do lado crí-tico desta fusão, uma vez que com alógica economicista não se pode des-cartar as “necessidades dos doentes”exige o Bastonário.

Apesar da lógica do SNS ser decontenção e de cortes na cidade deCoimbra, o serviço privado ganhaterreno – no passado dia 16, foi inau-gurado na cidade a maior unidadeprivada da zona centro.

Fusão do CHUC, uma decisão que está longe do consenso

ana duarte

‘Coworking’ é uma das alternativas de quem não quer trabalhar em casa

Ana Morais

ana duarte

Apesar de ser um conceito

recente em Coimbra, o

‘cowork’ está a aumentar

e apresenta-se como uma

alternativa, ao valorizar

as sinergias criadas

Partilha. Substantivo feminino, atoou efeito de partilhar. Partilhar.Verbo transitivo, fazer partilha de, di-vidir, repartir. É neste espírito quesurge o conceito de ‘cowork’. Pessoasdistintas, de várias áreas e com pro-jetos diferentes que se juntam nomesmo local para trabalhar.

A gestora do “CoWork.Coimbra” –situado na Rua da Casa Branca -,Eduarda Melo, conta que as sinergiascriadas neste espaço entre as váriasredes de profissionais levam muitasvezes a que se criem negócios e par-cerias entre as várias pessoas que porlá trabalham. Outro espaço da cidadeque recorre a esta prática é o “Con-nect Coimbra”, com uma localizaçãocentral no Bairro Sousa Pinto. FilipeBatista, um dos clientes do Connect,conta que a grande “mais-valia depoder trabalhar num local como esteé ouvir pontos de vista diferentes”.Da mesma opinião é uma das sóciasfundadoras deste recente projeto,Ana Reis: “não somos só um espaçode trabalho, temos aqui já uma co-munidade de profissionais e convive-mos”.

O “CoWork.Coimbra” iniciou-secomo um espaço dedicado exclusiva-

mente para profissionais relaciona-dos com arquitetura. Eduarda Meloconta que “o conceito começou a serutilizado sem ser assumido comotal”. Só quando viu uma reportagemna televisão sobre a prática de ‘co-working’, há dois anos, é que decidiuassumi-lo ao alargar o espaço e dotá-lo de outras valências. Inauguradooficialmente no passado mês de feve-reiro, o “Connect Coimbra” nasceu deuma discussão da edição de 2010 doPensar Fora da Caixa. Ana Reis e Ber-nardo Raposo, depois de considera-rem o ‘coworking’ uma “ideiaengraçada que se ajustava à realidadede Coimbra”, decidiram apostar –“saímos dos nossos empregos e ini-ciámos esta aventura”, conta um dossócios, Bernardo.

“É só chegar e pôr as coisas para trabalhar”Para explicar o conceito, Ana Reis re-sume-o numa frase simplificadora: “ésó chegar e pôr as coisas para traba-lhar”, garante ao explicar que tudoestá incluído - desde o material, à in-ternet, ao ar condicionado e até à lim-peza. Quanto à distribuição deespaço, o “Connect Coimbra” ofereceuma sala de reuniões, uma cafetaria euma sala polivalente, num piso supe-rior e mais reservado. No piso de re-ceção funcionam também as salas departilha. De forma semelhante fun-ciona o “CoWork.Coimbra”, tambémcom sala de reuniões, com uma zonade convívio e um piso que funcionaem regime de ‘open space’. Uma vezque este começou por ser um espaçoexclusivamente para profissionais dearquitetura, alberga um local só para

este tipo de trabalhos, zona que ser-viu como “âncora do projeto”, explicaEduarda Melo.

“Acreditamos que há um parale-lismo entre cursos mais tecnológicose artísticos com o conceito”, contaBernardo Raposo ao enumerar asáreas dos profissionais que compõematualmente o Connect. As áreas coin-cidem no “CoWork.Coimbra”: “temosdesde jornalistas, a designers gráfi-cos ou ilustradores e arquitetos”. AnaReis explica que este é um conceitotambém importante para os profis-sionais de investigação da Universi-dade de Coimbra, que muitas vezesnão estão satisfeitos com as condi-ções oferecidas pelos seus departa-mentos.

Procura com evoluçãoCom ligeiras diferenças, os preços pa-recem coincidir nos dois espaços queoferecem esta prática na cidade. Aopagar 119 euros por mês no “ConnectCoimbra” ou optando por 12 eurospara utilizar por 10 horas um espaçodo “CoWork.Coimbra”, os preços pa-recem agradar. Rúben Cabaço,cliente do Connect, partilha: “as al-ternativas são trabalhar em casa oualugar um apartamento e nesse sen-tido sai em conta estar aqui”.

“Estou bastante satisfeita com odesenrolar do negócio”, contaEduarda Melo ao referir que esta “éuma fase de mais procura”. TambémBernardo Raposo assegura que “sevai notando uma evolução” e nessesentido o “Connect Coimbra” pre-tende apostar mais em eventos, como‘workshops’ ou formações, paraatrair mais público.

Ana Morais

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23 de maio de 2012 | quarta-feira | a cabra | 15

CidAde

“Quando a cidade é motivação, é garantidoo êxito. Tal não tem acontecido”

cidade é uma cidadede compromissos enós abandonámo-los”, lamenta o pro-

fessor de Sociologia da Faculdadede Economia da Universidade deCoimbra (FEUC), Carlos Fortuna.O défice na participação dos cida-dãos conimbricenses para umadiscussão ativa sobre o que é e oque deve ser a cidade de Coimbratem gerado dados de desprendi-mento preocupantes - “há umcrescente desligamento de quemcá vive”, alerta a ex-deputada, Te-resa Alegre Portugal. A socialistarealça que o busílis do desapego éem grande parte devido a uma si-tuação política local “confrange-dora”.

A falta de afirmação políticacoimbrã a uma escala nacionalencontra expressão nos 40 porcento de abstenção nas últimasautárquicas; no “centrão” parti-dário e numa perda de 4 porcento na população segundo oCensos 2011. As instituições pú-blicas, com relevo para a Univer-sidade de Coimbra (UC), para acâmara e para a concentrada áreada saúde, têm sido o grande ga-rante da cidade que se diz ser doconhecimento.

Por estas razões se aludiu aoconjunto de três associações cívi-cas da cidade, apelidado de Alter-nativa: Associação Cultural parao Desenvolvimento do Ser Hu-mano, Delegação do Centro daAssociação 25 de Abril e Movi-mento Republicano 5 de Outubro.Estas associações propuseram-sea um debate frutífero e sem res-trições. Chamaram-lhe “Coimbra:O que vale uma cidade no meio da

crise”. A discussão fez-se do altodo Hotel D. Luís, com pano defundo na panorâmica da cidadeque se separa pela água de pratado Mondego.

“Quando a cidade é motivação,é garantido o êxito”, assegura oarquiteto José Bandeirinha. Oproblema para o mesmo é que “talnão tem acontecido”. Bandeiri-nha, nascido e ancorado na ci-dade, avisa que Coimbra foi acidade que mais “perdeu acessibi-lidades”. Todos procuram alguémque lute pela cidade e que a dis-cuta.

“O estudante está a serum consumidor” Falar de Coimbra é falar da suauniversidade. E aí intervêm os es-tudantes, os 200 milhões de re-ceitas próprias geradas pela UC, ea consciência de que o rendi-mento vale muito em tempos deaperto. A educação não deixa deser palco de montra para a eliteque o ensino superior tem sido: “oestudante está a ser um consumi-dor”, afiança João Rodrigues.Transformar a UC num “labora-tório para pensar o futuro” é aânsia do moderador do debate emembro das três associações,José Dias. Mas este desejo éameaçado pelo presente.

“O tempo é escasso para oritmo infernal a que o petroleirosegue”, enceta em jeito de metá-fora outro dos elementos interve-nientes e também docente, JoséCastro Caldas. A parte de “falarsobre a crise” ficou para ele, e aíirrompeu sobre a promoção debancarrota a que o país se tem su-

j e i -tado: “épreciso umanecessidade in-dependente, umaviragem deste barcoque se está a degradar”,prossegue o também in-vestigador do Centro de Es-tudos Sociais.

A representação é a de uma ci-dade “estagnada e com poucopoder político”, realça João Ro-drigues, um dos três economistasda FEUC convidados para versarsobre a conjuntura. Contudo odocente olha para esta imagem dacidade como um “véu de ignorân-cia”, lembrando indicadores obje-tivos. A dinâmica social daCoimbra pública joga a seu favor:“tem um nível superior de qualifi-cação comparativamente à médianacional e o dobro de médicos porcada 1000 habitantes”, sustentaJoão Rodrigues. No entanto, em-bora a terciarização se tenha ele-vado aos outros setores, a reduçãodo Estado português a “uma enti-dade privada, leva Coimbra acomportar situações difíceis”,lança o mesmo.

Respostas territoriais“Numa cidade que ainda se move,podíamos ter um fórum de cida-dãos”, sugere o terceiro econo-mista convidado, José Reis. Odocente traça um mapa genéticoque remonta a uma carta consti-tucional, ao congresso que houvena cidade e a outros movimentosestratégicos como o Concelho daCidade de Coimbra, ou a Pro

Urbe. Propõe um ba-lanço de mobilização cívica de ci-dadãos onde não haja lugar paraqueixumes.

O remédio para todos os malesdo património passado da cidadeé sempre relembrado quando seexortam os feitos de mais de seteséculos de história. Todavia, osmais de 140 mil habitantes não sepodem “reduzir ao passado”,afiança Carlos Fortuna. A históriaé pródiga em solidificar Coimbrano tempo, mas há quem queirapatrimónio para a frente. “As ci-dades não morrem, mas afogam-se a si próprias”, determina comoobstáculo o professor catedráticoda FEUC.

O que pode restar é a capaci-dade de agir “aqui”, assegura vee-mente José Reis. É nas cidadesque se dá a resposta mais territo-rial ao monstro da crise. Sob aforma de um pensamento que as-sente num diagnóstico “inquietoe voluntarista”, afirma. Se issonão acontecer, então não é “ação”.

“Coimbra dos Humanoides” O debate ganha ritmo com aque-les que depois têm espaço para

expora sua própria visão. O professorJoão de Castro Nunes revela o seureceio sem pejo: “a Coimbra doshumanistas está a chegar à Coim-bra dos humanoides”. Luís ReisTorgal, outro dos académicos pre-sentes, conta que está “amargu-rado”. A lógica doeconomicamente favorável fazcom que “sejamos idealistas, nãolucramos com a crise, roubam-nos todos os dias”, acrescenta. La-menta que Coimbra não constituaum núcleo “político e cultural”.

Do outro lado da sala alevanta-se uma voz otimista. “Vale a penaapostar e fazer a onda crescernem que seja para 20 pessoas”,destaca Teresa Alegre Portugal.As quezílias políticas alimentarãouma grande discussão sobre aseleições autárquicas do próximoano, mas a mudança para uma ci-dadania mais pró-ativa passarápelos rostos que representam a ci-dade – “tem de ter rostos, é pre-ciso gerar gente séria”, afirmaresoluta.

A cidadania ativa foi luta pela democracia. O fim do estado Novo trouxe a delegação da voz popular nos represen-

tantes, fazendo com que muitos se demitissem de pensar o que é melhor. Na cidade de Coimbra, em particular,

tenta-se reavivar a presença cívica pela necessidade de fazer valer uma cidade no meio da crise. Por Liliana Cunha

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A representação

é a de

uma cidade

“estagnada e

com pouco

poder político”,

realça João

Rodrigues

“Numa cidade

que ainda se

move, podíamos

ter um fórum

de cidadãos”,

sugere José Reis.

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16 | a cabra | 23 de maio de 2012 | quarta-feira

PaíS

um dia da semana, na Coo-perativa Agrícola de Mon-temor-o-Velho, uma fila de

agricultores espera pela sua vez naárea de atendimento ao público. De-pois de tirada a senha, enquanto unspassam os olhos de cinco em cincosegundos pelos ponteiros do relógio- que tardam em andar - outros vão-se entretendo com o televisor sinto-nizado num programa matinal.

O responsável dos serviços da Coo-perativa Agrícola de Montemor-o-Velho, Manuel Martinho, explica queo atendimento ao público não se des-tina exclusivamente a associados.“Há pessoas que sabem, por intermé-dio dos vizinhos, que têm apoio téc-nico e dirigem-se à cooperativa”,esclarece.

A partilha de propriedade paraatingir o bem comum é o propósitoda criação de uma cooperativa. É pre-vista uma união voluntária entre só-cios que seja democraticamentegerida.

O coordenador do Centro de Estu-dos Cooperativos (CEC), Rui Namo-rado, explica que, durante o EstadoNovo, “o cooperativismo era bastantehostilizado”, por se aproximar aideais contrários aos do regime. Emliberdade, “houve um grande salto”no sistema, sustenta Rui Namoradoque enaltece que, com os 800 mi-lhões de inscritos na Aliança Coope-rativa Internacional, esta “é umarealidade incontornável em todo o

mundo”.Vários tipos ganham forma depois

do 25 de abril. Nascem cooperativasagrícolas, agropecuárias, de habita-ção e construção, de ensino, de cul-tura e de outros tantos setores. Odéfice de investimento no setor pri-mário leva a que muitas destas asso-ciações tentem encontrar uma formade contornar a conjuntura: “o grandedrama é que somos um país que im-porta 90 por cento do que produzi-mos sem razão”, lamenta o gerenteda Cooperativa Agrícola do Concelhoda Mealhada, MEAGRI, Júlio Costa.

Apostar na agricultura de subsis-tência baseada em modelos anterio-res à reforma agrária nãocorresponde às necessidades de hoje.“A agricultura é uma área como outraqualquer e quando bem dimensio-nada a pessoa ganha dinheiro comela”, desmistifica o gerente da MEA-GRI.

A união ainda pode fazera força“Procuro tentar cativar as pessoas,tentar que elas conheçam e depoiselas vêm. Se nós fechássemos logo àentrada seria pior”, explica ManuelMartinho. De portas abertas, a coo-perativa de Montemor tem tentadoajudar mesmo quem não é sócio.Com um centro de formação profis-sional, e um conjunto de técnicosagrários disponíveis para avaliar ascondições de cultivo, a instituição re-

gista, nos meses de verão, uma maiorafluência devido à atribuição de sub-sídios. O responsável lamenta que osagricultores só apareçam “nesta fasede candidatura para ganhar aquelaverba” e que depois se “ausentem”.

Em Coimbra, o engenheiro GilBranco queixa-se do “espírito coope-rativo que hoje se perdeu”. Emborarealce um aumento na procura de

produtos na Cooperativa Agrícola deCoimbra nos últimos dois anos, atri-bui a culpa “às mentalidades que mu-daram”.

A MEAGRI, que conta com cercade 2000 associados, enfrenta o pro-blema que é transversal à região.Júlio Costa conta, desgostoso, que odia em que há assembleia geral dacooperativa “é o dia mais triste detodos” porque “não aparece ninguémpara dar sugestões, criticar ou darideias novas”. A força que “a casa po-deria ter se [os agricultores] com-prassem tudo aqui” é dificilmentecalculável para o responsável.

Todavia, Rui Namorado entendeque essa mesma culpa não pode ser

apontada em exclusivo a uma daspartes: “é um problema da organiza-ção das cooperativas, não têm de sequeixar dos sócios”, realiza o tambémdocente da Faculdade de Economiada Universidade de Coimbra. Rui Na-morado acredita que se “devia com-bater” essa situação, se oscooperadores são parte das coopera-tivas, “estão a queixar-se de si mes-mas”.

Sem água e sem créditoFundada em 1948, a CooperativaAgrícola de Vila do Conde (CAVC) émaioritariamente conhecida pela li-gação que mantém com a distribui-dora de leite Agros. Tambémalimenta protocolos agrários com al-gumas universidades do país como ade Trás-os-Montes, Porto e com umconjunto de outras cooperativas daregião Norte, através da União Agrí-cola do Norte.

Tal como no resto do país, a CAVCenfrenta dificuldades relacionadascom a falta de chuva. “O problema foia chuva que não veio no inverno”,identifica o gerente da cooperativa,Jorge Costa. No entanto, o responsá-vel receia que o pior se verifique“quando começar a haver calor” e osreservatórios de água estiverem va-zios. A confirmação deste cenário vairepresentar consequências negativaspara as plantações e animais.

Manuel Martinho afirma que osprejuízos relativos a este período de

seca “também se propagam às em-presas a montante e a jusante da agri-cultura”. A difícil conjunturaeconómica reflete-se na retração dabanca na concessão de crédito aosagricultores. A tesouraria das coope-rativas atrofia e, do Estado, as coope-rativas não recebem “um tostão” nemlinhas de crédito, assevera o gerenteda Mealhada, Júlio Costa.

Método CooperativoPara se ser associado de uma coope-rativa, há uma obrigação que seprende com a entrega de 100 eurosde joia. “A pessoa tem de pensar quesão 100 euros que estão parados, nãocapitalizam, mas dão-lhe um con-junto de direitos”, defende JúlioCosta. Contudo, 100 euros em tem-pos de aperto por vezes afastam ospotenciais associados que querem re-sultados “no imediato e não a longoprazo”, lamenta Manuel Martinho.“As pessoas fazem as suas contas e100 euros no mundo agrícola é muitodinheiro”, lamenta o responsável deMontemor.

“Ninguém é louco para fazer a agri-cultura que o meu pai fazia, dar 17horas por dia e no fim do ano ficarcom as mãos a abanar”, afirma o ge-rente da MEAGRI. Para não se retor-nar a tempos antigos, as estruturascooperativistas têm de ser “maisapoiadas e protegidas, porque é umimperativo constitucional”, lembra ocoordenador do CEC, Rui Namorado.

A união das cooperativas perde forçaa produção e armazenamento dos cereais é uma das etapas por que a cooperativa é responsável no apoio ao agricultor

O setor agrícola encontra, desde o fim do Estado Novo, apoio na estrutura das cooperativas. No entanto,o método aplicado tem sofrido alterações pela falta de união e de mudança de mentalidades. Falta de crédito e condições climatéricas adversas condicionam o seu trabalho. Por Liliana Cunha e Camilo Soldado

“O grande drama é

que somos um país

que importa 90

por cento do que

produzimos”

A

camilo soldadocamilo soldado

camilo soldado camilo soldado

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MuNdO

Século XXI: novaideologia, precisa-seao passo de uma vaga de privatização na Europa, o mercadoemergente da américa Latina retorna à nacionalização dossectores estratégicos. Capitalismo ‘versus’ socialismo nãoserá a separação mais acertada. Por Maria Garrido

á uma experiênciahistórica, com o so-cialismo e o capita-lismo e ideologias

que marcaram os séculos XVIII, XIXe XX. O século XXI precisa de novasideologias”, começa por consideraro professor de Economia do Desen-volvimento da Universidade Cató-lica do Porto (UCP), LeonardoCosta. Acreditando que dicotomiascomo o socialismo e o capitalismopossam ser “um bocado redutoras”,o investigador do Centro de EstudosSociais de Coimbra (CES), José Cal-das, defende que “é bom que exis-tam conceções diversas quecoexistam e dialoguem na socie-dade”. “Entre o preto e o branco hámuitas nuances”, clarifica.

Na América Latina, no entanto,uma vaga de nacionalizações geral-mente associada ao socialismo faz-se sentir em países como aArgentina, Bolívia, Venezuela e ou-tros. Do outro lado do oceano, surgeuma Europa onde as sucessivas pri-vatizações associadas ao capitalismosão facilmente acusadas. Mas, umavez mais, a dicotomia é contestada.“A questão não se coloca em termosde políticas capitalistas ou socialis-tas mas sim de políticas que promo-vam uma economia que eu chamariaplural”, resguarda o economista etambém investigador do CES, JoãoRodrigues. O investigador sustentaa criação de uma economia “mista”,onde caibam espaços de mercado ede concorrência em que “certos bense certos recursos e infraestruturassão controlados publicamente porEstados capazes de fornecer bens eserviços em condições”.

Por sua vez, o professor de Eco-nomia Financeira Internacional daUCP, Ricardo Cruz, faz a associação:“[o movimento de nacionalizaçõesna América Latina] é um movi-mento que está muito localizado empaíses concretos com regimes polí-ticos claramente de planificação so-cialista”, assevera. Sustentando queeste é um fenómeno que se encontra“longe de ser uma generalização”,Ricardo Cruz afirma haver na Amé-rica Latina experiências, sentidos evontades “muito diferentes”.

Privatizações de 80 e 90 Depois de ter passado por um pro-cesso de privatização nas décadas de80 e 90, João Rodrigues entende seresta vaga de nacionalizações naAmérica Latina um “reverter do que

esses governos consideram ser errosassociados a processos de privatiza-ção que correram bastante mal”.“Trata-se no fundo de renacionali-zações”, reforça José Caldas. O in-vestigador do CES vê estemovimento como um “assumir ocontrolo público de recursos que sãofundamentais para o desenvolvi-mento dos diferentes países”.

O manifesto agrado da populaçãoda América Latina é também ex-posto. João Rodrigues vê este factocomo um “reconhecimento porparte da população de que são polí-ticas justas e que contribuem paramelhorar as suas condições de vida ea capacidade que os Estados têm deter algum controlo sobre recursos vi-tais para o desenvolvimento dos paí-ses”.

Entre os sectores estratégicos emprocesso de renacionalização con-tam-se, a título de exemplo, a ex-propriação da petrolífera espanholaRepsol YPF na Argentina de CristinaFernández ou uma de empresa tam-bém espanhola de eletricidade darede do operador Red Eléctrica naBolívia.

Um presente de crescimento “Um certo populismo político nasopções que justificam essas nacio-nalizações”, é a visão de RicardoCruz. O docente da UCP afiança queem muitos países “certas decisõespopulistas têm normalmente grandeadesão popular a curto prazo”. Acontrapor, José Caldas atesta que“populismo é normalmente a pala-vra que a direita neoliberal utilizapara designar políticas que nãogosta” e acredita haver uma “ten-dência geral que é positiva de trans-formação num sentido de reduçãoda pobreza e da desigualdade”. “Apolítica ou é boa ou é má. E é boa oué má em função de argumentos.Dizer que é uma política populistanão é dizer absolutamente nada”,concorda João Rodrigues.

“Penso que tem-se muito a apren-der com a América Latina hoje emdia. Acho que a Europa está em re-gressão e a América Latina está emcrescimento, em parte devido à di-ferente orientação das políticas nume noutro lado”, remata João Rodri-gues. Entendendo ser difícil anteci-par qual o futuro económico daAmérica Latina, José Caldas nãodescura o presente: “vejo um pre-sente de crescimento, redução das

desigualdades, de prosperidadeonde nunca existiu, que contrastacom o panorama da Velha Europa.Vejo uma América Latina pujanteem contraste com uma Europa emcontraciclo”. Já Ricardo Cruz acre-dita que o futuro será “auspiciosoenquanto esses países assumiremcapitais em volumes significativos”que “acrescentam oportunidade demelhorarem as estruturas primitivase se tornarem mais competitivos”.

O enfraquecimento doEstado Na Europa, são contínuas as políti-cas de privatização. Leonardo Costaalia-as à crise que considera nestemomento ser dos Estados e das dí-vidas soberanas. Isto preocupaJoão Rodrigues, que vê incidir nospaíses da periferia os processos deprivatização mais radicais. Proces-sos estes que compreende estarema ser levados a cabo por “condiçõesde necessidade, impostas por go-vernos que obedecem a instruçõesvindas de fora e que não têm emconta os interesses dos países emcausa mas sim de quem os financia”.Ricardo Cruz não vê hoje nenhumanovidade relativamente ao que temsido a tendência das últimas déca-das: “na Europa o que existe é umaUnião Europeia que se rege porprincípios da economia do mer-cado”, assinala.

“O processo de privatização podelevar a um aumento dos preços, aum aumento da exclusão de umaparte importante da população noacesso de bens e a uma deterioraçãoda sua qualidade”, remata João Ro-drigues. Falando da privatização ex-trema, o investigador do CESassume-se preocupado com o “en-fraquecimento de um Estado capazde fornecer bens e serviços essen-ciais às suas populações, da educa-ção à saúde, da segurança social ainfraestruturas base e serviços bási-cos sem os quais não existem direi-tos de cidadania nem democracia”.

Em Portugal, lembre-se porexemplo, a privatização da EDP,tendo sido a empresa de eletricidadeganha para investidores chineses.Pelo resto da Europa também se ve-rificam políticas de privatização di-tadas pelo atual contexto deausteridade. Fale-se do caso da Gré-cia que tenciona a venda ou o arren-damento de bens nacionais comoaeroportos, empresas petrolíferas ede gás estatais ou mesmo bancos.

“H

Há uma experiência histórica, com o socialismo

e o capitalismo e ideologias que marcaram os

séculos XViii, XiX e XX. o século XXi precisa de

novas ideologias”, defende Leonardo costa.

d.r.

d.r.

Dicotomias

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aRteS18 | a cabra | 23 de maio de 2012 | quarta-feira

luta pela igualdade de di-reitos entre homens e mu-lheres não é um tema

recente. Atualmente estamos habi-tuados a que a mulher já não assumaa figura de serva. Hoje, as mulheressão independentes e lutam pelos seusdireitos. Contudo, não podemosnegar a existência de povos em quetal não acontece. Olhemos para oscostumes enraizados da comunidadeislâmica radical, com um machismoexacerbado bem presente e com tra-dições firmes que dificilmente sãoreavaliadas ou alteradas.

Radu Mihaileanu, realizador ro-meno mas que vive em França, con-segue olhar para estes povos e apartir das suas vivências construirum retrato fiel para a grande tela. “lasource de femmes”, traduzida paraportuguês como “A fonte das mulhe-res”, conta-nos, assim, a história deuma aldeia muçulmana, em que umaforte seca faz com que as mulheressejam obrigadas a desempenhar pe-sadas tarefas. sem qualquer referên-cia espacial, sabemos apenas que

esta aldeia é algures ente o norte deÁfrica e o Médio Oriente.

Mas vamos então ao papel das mu-lheres – a aldeia é árida e enfrentauma seca extrema e há uma únicafonte de água no cimo de uma ín-greme montanha. Com a mentali-dade machista patente no Corão,quem mais para suportar este serviçose não as mulheres? esforço, muitoesforço. Calor, sol tórrido. suor, san-gue. lágrimas, desespero. É destaforma que as mulheres da aldeiafazem a subida e a busca de água aocume da montanha.

Contudo, eis que leila, uma jovemrecém-casada “estrangeira” (como éapelidada), percebe as injustiças pa-tentes nesta desigualdade de génerose luta com todas as forças para in-verter a situação. inicialmente, não énada bem recebida pelas outras mu-lheres. Todavia, a sua persistência fazcom que as mulheres comecem a va-lorizar a sua ideia. Que é, nada mais,nada menos, que uma greve de sexo(ou de amor, como lhe chamam), en-quanto os seus homens não as aju-

darem com o transporte da água. Aescolha está portanto do lado deles –ou água ou amor.

Os aldeões furiosos com leila ecom as restantes mulheres tentaminúmeras tentativas para aceder aesta necessidade básica, o sexo, masa sólida luta construída pelas mulhe-res revela-se mais forte. Por fim, odiálogo entre homens e mulhereschega mesmo a trazer à aldeia novassoluções. Porém, até lá, o duro cami-nho percorrido pelo sexo feminino,sobretudo por leila é evidente. Ficaassim, uma menção à forte prestaçãoda atriz leïla Bekhti.

A libertação de antigos preceitos,religiosos ou não, e do papel da mu-lher na família e na sociedade pare-cem ter sido o mote de RaduMihaileanu e que lhe valeram a “lasource de femmes” várias nomea-ções, das quais se destaca a Palma deOuro em Cannes. Também as sono-ridades envolventes da banda sonorade Armand Amar e os figurinos re-pletos de cor e personalidade orientaldevem merecer uma alusão especial.

a fonte das

mulheres

Cin

em

a

a escolha é dos homens – ou

água ou amor

CrítICa de ana MoraIs

de

Radu Mihaileanu

CoM

leila Bekhti

hafzia heRzi

SaBRina Ouazani

2011

m pesado drama, umabusca por um passadodesconhecido. A es-tranha e perturbada

nawal Marwan (lubna Azabal),mãe de Jeanne Marwan (Mé-lissa Désormeaux-Poulin) esimon Marwan (Maxim Gau-dette), morre após um inespe-rado AVC.

À família, residente no Ca-nadá, fica o testamento. Alémdos bens materiais, nawal deixaaos filhos a hercúlea tarefa deencontrar o pai, que julgavammorto e um irmão, do qualnunca tiveram conhecimento. Ofilme torna-se, desde logo,numa referência de qualidade àguerra civil que se abateu sobreo líbano, nos finais dos anos 70do século passado. Ainda quenão haja nenhuma alusão espe-

cífica ao país, a associação é ine-gável.

Já no Médio Oriente, os filhosde Marwan acabam por desco-brir uma mãe diferente. estu-dante de línguas, prolíferatrabalhadora num jornal uni-versitário, assassina de um altolíder miliciano – uma mulhermuito além daquilo que julga-vam conhecer. A película é com-posta por diversos retrocessos,que nos vão dando a conheceras diversas fases da vida denawal.

Ainda ressentidas com asações de nawal, Jeanne esimon não encontram nas pes-soas a hospitalidade que dese-javam. segredos, ruínas e dadosperdidos pelo tempo não dei-xam antever o que os jovenstanto anseiam. Quando o rasto

parecia perdido, a ajuda de umamigo da mãe dá novo folgo àdesesperada procura. O pai e oirmão são, por fim, localizados,promessas são cumpridas e ca-pítulos de um obscuro passadosão finalmente fechados. O des-fecho, devastador, tem tudopara se assemelhar a uma tra-gédia grega.

Contudo, é certamente umdos melhores filmes estrangei-ros dos últimos tempos. A jun-tar a um grande desempenho daatriz belga, lubna Azabal,temos um excelente trabalhosobre a sociedade libanesa, deum realizador canadiano. umaprodução cinematográfica in-tensa, com um complexo argu-mento, onde diferentesrealidades se cruzam.

Marhaba

Incendies - a Mulher Que Canta

joão Valadão

“ A

u

ve

r

Artigo disponível na:

filme

De

Denies VilleneuVe

eDitora

MPA

2010

Page 19: Edição246

feitaS23 de maio de 2012 | quarta-feira | a cabra | 19

om a tournée mundial de“einstein on the Beach”,que arrancou em Mont-

pellier e com extensão até 2013,Philip Glass aproveita para reedi-tar uma gravação realizada pelaColumbia Broadcasting system(CBs), dois anos depois da suacriação(1976).

Várias perguntas se podem le-vantar. É possível apreciar estacomposição privando-nos dassuas incríveis imagens (de RobertWilson)? Quais as vantagem emrelação aos registos de nonesuchRecords, realizados pelos mesmoselementos quinze anos depois,numa versão ampliada (note-seque existe um acréscimo conside-rável em meia hora nesta grava-ção), com uma notória melhoriana qualidade de som e da execu-ção do coro mais cuidado?semelhanças que podemos en-

contrar num charme inigualávelque resulta numa junção de radi-calidade, como se o compositor e

o maestro Michael Riesman estivessem ainda em 1978, em plenafolia da criação, conseguida através da tournée que prossegue atéchegar à Metropolitan Opera Association, em nova iorque.

nesta ópera abstracta encontramos o poder hipnótico da repe-tição glassiana de uma outra época, em constante mudança (pro-gressões, deslocações, inversões, rupturas rítmicas,prolongamento de séries...), a funcionar na sua plenitude.

O ouvinte fica, novamente, arrebatado pelas vozes, ventos outeclados hiperactivos, tal como na primeira cena (acto i), as dan-ças do “campo com nave espacial” (acto ii e iii), o quadro urbanoda construção. não será, no entanto, necessário esperar pelos“knee plays” (transições entre actos) para encontrar momentosmais calmos. O violino áspero de Paul Zukosky e o coro a em-purrar palavras em vozes deixam ouvir nota a nota ou numera-ções por numerações com uma sinceridade emocionantedepositada de forma quase banal.

se conseguíssemos atingir esta obra radiante, alucinante e in-quietante a nossa felicidade seria completa. Para quem teve asorte de ver esta “obra” em cena, este gesto de Glass não repre-senta nada sem a criação de Wilson (e vice-versa): resta-nosaguardar, por enquanto, pelo DVD.

uando Ari Folman escolheucontar as memórias do mas-sacre de sabra e Chatila, du-rante a Guerra do líbano,

através da ilustração, o sentido daopção era manifesto. e bem implícitaao longo de dois ou três trechos dofilme. Atenuar as marcas da violênciapela linha do desenho. Mas a ideia saiuum pouco furada. A atenção pelo deta-lhe das expressões ora de medo ora decólera, a fluidez dos movimentos comque os corpos franzinos se levantam domar ou a deturpação cromática apenasconseguiram conferir a “Valsa comBashir” uma concepção de brutalidadeemotiva maior do que qualquer foto oudocumentário da invasão israelita.

em “Persépolis”, as marcas de vio-lência também lá estão. Tanto maisquando a satrapi decide dar à bicromiao seu real uso do termo. em “Persépo-lis” é sempre noite. Mesmo quando étempo de festa. Mesmo quando asmiúdas da escola levam ao limite assuas dramatizações. O despotismo docontraste, em que o preto se extrapola,está lá para nos pisar qualquer deva-neio de exultação. Felizmente, há Mar-jane (autora do livro), que comoprofeta que se adivinha desde a nas-cença, aparece com um grande solcomo auréola, qual juba de leão, parailuminar toda a nação iraniana.

“Persépolis” é um livro de quadros,divido entre a história de uma infânciae o regresso ao país natal, após vários

anos de exílio. e essa distinção estábem marcada.

evidentemente, a infância tem maispiada. Tem sempre mais piada. Mu-lher, filha de uma família secular defortes raízes marxistas, Marjane sa-trapi reparte esse tempo entre o escu-tar atento das descrições da crueldadeda tirania do Xá e da República islâ-mica, e as suas conversas privadas comDeus e Marx, que quase se fundemnum só através da barba, e as indaga-ções sobre as aventuras revolucioná-rias dos seus amigos e familiares.

O regresso é desiludido. É o duro en-carar da realidade após termos viajadopor um outro cosmos durante copiosaspáginas. Como quem nos pára o rotordo caleidoscópio, para nos deixar ver,por entre as missangas coloridas, o quehá para lá da lente. É esta a Marjanedeste segundo acto, uma mulher desi-ludida com o seu país e com o seu pró-prio rumo. Afinal, “Persépolis”, maisdo que a história da Pérsia ou do irão,é a história sobre as desilusões e, so-bretudo, os sonhos de quem oferece avida a uma causa.

É infeliz que nem uma (admirável)adaptação ao cinema pelo meio tenhasido capaz de instigar uma traduçãomais recente. Mas, como também noirão a história se move, doze anos de-pois da primeira edição, vale a penavoltar a reler “Persépolis”.

em por acaso, na última edi-ção desta coluna referenciá-mos a caricatura grotesca quea produção nipónica se tornou

de si mesma; “shadows of the Damned”é, certamente, o derradeiro símbolodesse processo de decadência cultural.Fruto de uma colaboração entre as men-tes que estiveram por detrás do incon-tornável “Killer7”, suda Goichi e shinjiMikami, seria de esperar uma obra de ca-libre superior, um oásis nesta árida pai-sagem que é o meio videolúdico. Até háuma ideia no seu âmago, mas não setrata de qualquer conceptualização vi-sionária, antes a típica vulgata boçal quevimos a esperar da mente “punk” de Goi-chi. Trata-se de uma paródia trash, ho-menagem estilo “Grindhouse” aosgrandes clássicos de terror da Capcom.Hiper-violento, quasi-pornográfico, es-catológico e sempre com aquela gracinhapós-modernista que se regozija na pro-dução de lixo “self-conscious” (ignora-mos porque é que o lixo que sabe que élixo deixaria de ser lixo). Claro que,sendo Goichi culto, encontrou um espaçosimbólico que desse uma aura de no-breza artística, e então vá de pegar, como“Devil May Cry”, no inferno de Dantepara vender a coisa como “arte”. A odis-seia pelos nove círculos de Goichi é umaofensa visual e moral a toda a linha, umatorrente imagética vagamente surrealista

e superlativamente repugnante, sempreintercalada com piadinhas prepubescen-tes sobre pénises e felácios. O jogo em sié mais um ersatz de “Resident evil 4”... enem sequer é o melhor nessa ridicula-mente profícua categoria. Mikami até sesafa ao oferecer essa sua marca de designseguro, e um perfeccionismo formal queo descuidado suda não possui. Já Ya-maoka não sai incólume, limitando-se aenfiar pela goela abaixo o seu template“silent Hill”, inconsciente de que estavaa compor música para uma comediazi-nha e não para uma obra dramática.

Goichi confirma com esta obra aquiloque já se adivinhava em “no More He-roes”: não passa de um adolescente re-belde, a fazer joguinhos sem gostonenhum para públicos sem maturidadepara perceber a diferença entre provoca-ção patética e vanguardismo sofisticado.não compreende, como Kamiya em“Bayonetta”, que para uma paródia re-presentar um objecto minimamentedigno, tem de enquadrar as suas refe-rências com subtileza e inteligência, eelevar as suas qualidades formais e ex-pressivas a um novo patamar. Goichi ig-nora isto, e prefere vomitar mais umtravesti insultuoso que ridiculariza o seuintelecto (e o nosso)... Mas pelos vistos, éisto que passa por arte nos videojogos.

oUvir

de

MaRjane SatRaPi

edItora

cOntRaPOntO

2012

de

PhiliP GlaSS

edItora

cBS

2012

einstein on the Beach ”

lígIa anjos

Artigos disponíveis na:

QPersépolis: a história de uma Infância e a história de um regresso

ruI CraVeIrInha

joão MIranda

shadows of the damned

JoGar

“nove

círculos do

inferno”

GUerra DaS CaBraS

A evitar

Fraco

Podia ser pior

Vale a pena

A Cabra aconselha

A Cabra d’Ouro

ler

Regresso à

plenitude

glassiana

n

a história é

sempre lembrada

a preto e branco

PlataforMa

PS3, XBOX

edItora

electROnic aRtS

2011

C

Page 20: Edição246

“Isto já não é o que

nunca foi” – julgo quefoi algures numa das pa-

redes da nossa universidade que en-contrei gravada esta inscrição jocosa.Esta é a caricatura perfeita da atitudeque devemos evitar quando pensa-mos sobre ideias para a universi-dade: projectar um passado

ficcional em referência ao qual

nos lamentamos sobre as nossasmisérias presentes. Mas não sendoesta a atitude que aqui pretendo evo-car, julgo que é importante a univer-sidade de hoje, particularmente nanossa situação epocal, tentar colherdas grandes ideias que orientaram asua vocação a fontede inspiraçãopara as u a

acção futura.De entre estas ideias, a que gosta-

ria de evocar é a de autonomia.Mas esta não pode ser tomada aquicomo uma palavra vã, inúmerasvezes repetida em discursos de cir-cunstância perante auditórios boce-jantes, ou como uma expressão vaziae vagamente inócua.

Evocar a autonomia como ideiacentral na vida universitária é, antesde mais, aludir ao exemplo do

seu passado. A universidade foisempre, na sua história, o alvo de

poderes variados que de algummodo a procuraram tutelar, rentabi-lizando os seus “saberes” e tornando-os, de vários modos, úteis aos seus

interesses. A Igreja, durante a eramedieval, encontrou na uni-

versidade um instrumentopara a elaboração da sua

doutrina teológica, e oEstado moderno procu-rou na universidade umdos meios para o esta-belecimento de uma cul-tura nacional e a

consolidação do seu poderpolítico.

Hoje, dir-se-ia que é a so-ciedade em geral, as “em-

presas” e os

“mercados”,

que se

a p r o -

priam da

universi-

dade e

do seu

ensino.

Face aestas po-

tências, evocar a autonomia univer-sitária significa afirmar o saber uni-versitário como algo que é irredutívelao técnico e ao imediatamente utili-tário. A tentação para apenas va-

lorizar na universidade aquilo

que é rapidamente útil, rentável

e profissionalizante é hoje, como sesabe, cada vez maior. E tanto maiortem de ser hoje a afirmação da auto-nomia universitária face a ela.

Mas evocar a autonomia da uni-versidade é também tomar uma ati-tude face ao presente e ao futuro. A

educação, nos seus vários níveis,tornou-se hoje, em larga medida, co-

lonizada por um discurso peda-

gógico dogmático e acrítico. EmPortugal, o processo de Bolonha

permitiu a sua reprodução au-

tomática na universidade. A fic-ção de contrapor a “transmissão deconhecimentos” ao “desenvolvi-mento de competências”, a transfor-mação do tempo de estudo e dematuração numa série de processosde “avaliação contínua” onde não

há tempo para ler nem pensar, aredução apressada do tempo de du-ração dos cursos e a desestruturaçãodos currículos, são fenómenos quemostram o quanto uma cultura

alheia à universidade procura

tomar conta dos seus tempos e

ritmos. A formação universitária foisempre pensada como integral e,neste sentido, como uma formação

lenta, demorada e profunda

(“escola” em grego quer dizer tempolivre). E talvez esteja na reivindica-ção do seu próprio tempo o signifi-cado mais fundo da exigência da tãopropalada autonomia universitária.

solTAs20 | a cabra | 23 de maio de 2012 | quarta-feira

umA ideiA PArA o ensino suPeriorAlexAndre frAnCo de sá • Professor dA fACuldAde de leTrAs dA uniVersidAde de CoimbrA

olhA o Peixe (fresCo?)

Para quem está pela praça à hora de jantar, tendo as can-tinas azuis fechadas, vê nas amarelas a opção mais compostae com maior alternativa. A fugir ao típico frango ou à espe-tada do costume nos grelhados, ou ainda às aclamadas lulas,venho encontrar do outro lado da rua um bonito prato depeixe.

Para quem gosta de um peixe fresquinho, sabe que muitasvezes se atentam à boa dignidade destes pratos nas nossasbelas cantinas. Por isso, fico duvidoso. É sempre bom apro-veitar as alternativas, mas não me está a apetecer muito mas-car pastilha elástica a esta hora. Mas num vai, não vai, lá coma insistência dos colegas, optei por me aventurar na prova deuma nova especialidade.

Pescada com solha, a malta apostou forte. Mas, faltando-me a coragem para meter tal manjar à boca, entretenho-mecom uma agradável sopa de legumes. O pão também ajuda aencher o pandulho e alguns copos de água, que uma pessoalá se levanta para ir atestar. Começo pela batata cozida, que

desde já costuma ser bastante boa e mantém o nível. A alface é umacompanheira solitária, parece que desta vez nem a cenoura a conse-guiu acompanhar. O tempo passa e lá tenho de me atirar ao principal.Primeira garfada e até nem está mau. Vá, já sei que não posso ser de-masiado exigente. Vou alternando entre a pescada e a solha, juntam-se as batatinhas e até se comeu bem.

Um arroz doce com canela, que mantém o nível satisfatório de sem-pre - apresenta-se como uma boa simulação de sobremesa. Tirado otravo do peixe, enche-se mais um copito de água e vai-se beber umcafé a outro lado qualquer.

Há sempre um certo desconsolo nestes pratos do mar, mas uma re-feição bem composta por este preço, é uma alternativa que ao estu-dante não cabe recusar.

Por João Valadão

Tom

Ai e

Co

mei

ana duarte

ArTe.PonTo

noite prometia. Pega-senum programa da RádioUniversidade de Coimbra,

com o mesmo título do espetáculoe que apresenta semanalmenteuma obra da sétima arte, junta-sea Orquestra Clássica do Centro etem-se, como resultado, um des-file de músicas retiradas de ban-das sonoras de filmes quemarcaram, cada qual a seu modo,a história do cinema. Fiquei na se-gunda fila a contar de trás. Não háproblema, é um concerto de mú-sica clássica, é suposto apreciar-se de olhos fechados até.

O mau augúrio não se concre-tiza e o concerto começa da me-lhor forma. O filme escolhido é “OGladiador”, apresentado, tal comoos restantes, por Vasco Otero, queprotagoniza uma teatral entradaem palco. A direção musical, essa,ficou a cargo de David Lloyd,maestro com um percurso já con-siderável e com uma ligação pro-fissional ao nosso país queremonta à década de 90. Tocam

os primeiros acordes de umabanda sonora composta por HansZimmer e emerge aquilo que seimagina numa orquestra: umasincronização inigualável e umasonoridade irrepreensível. Logoaqui pensei se não se enquadrariaigualmente bem outro dos traba-lhos de Zimmer: “Piratas das Ca-raíbas”. Porque, entretanto, aprimeira parte começa a arrastar-se e as interpretações a parecereminfindáveis. Do outro lado dacoxia, uma senhora está de olhosfechados e não sei se estariamesmo a apreciar o ambiente mu-sical. A finalizar, uma música que,disse Vasco Otero, já todos asso-biámos pelo menos uma vez navida, do filme “A Ponte do RioKwai”.

O público despertou um poucoantes do intervalo mas o senti-mento era que, perante uma au-diência surpreendentementejovem, se poderia ter optado porum alinhamento mais recente. Al-gumas das bandas sonoras dos fil-

mes “Harry Potter”, dirigidas porJohn Williams, teriam sido exce-lentes alternativas. A segundaparte traz o momento menos altoda noite, numa interpretação mu-sical do filme “Psycho”, um clás-sico de Hitchcock, que não deixoude parecer adequado à sensaçãoque os longuíssimos minutos dei-xaram. A compensação foi rápida,com Ennio Morricone e o filme “AMissão” a evangelizarem um pú-blico que já parecia perdido. Pas-sou-se por “Braveheart” antes dofinal, uma interpretação fantás-tica, com toda a orquestra de novoem palco, de um ‘medley’ de“Jesus Christ Superstar”. Ondeviolinos serviram de guitarras e,de tempos a tempos, um flashdourado percorria a audiência.Foi um espectáculo diferente, semdúvida, a pedir uma segunda voltamais baseada nos últimos vinteanos.

Por Paulo Sérgio Santos

PArA A PróximA, um reAl regresso Ao futuro

CinemusiCorium • TAGV • 16 de mAio

d.r.

A

AutonomiA universitáriA

d.r.

Page 21: Edição246

que é o amor? É uma conspi-ração do desejo, dizem mui-tos. Outros suspiram, É a

melancolia das noites que transformaos humores humanos e lhes traz, pelasmanhãs, um colorido ao coração. Al-guns ainda fazem estudos e escrevemtratados e, cheios de sabedoria, falamsobre um amor pleno de percenta-gens, de tiques e repetições.

II

Eu só quero um amor, disse ela umdia, não sabendo nada sobre as intri-gas divinas, muito menos sobre ossentidos distantes que só se manifes-tam nas alvoradas, nem sobre médiase medianas, Eu só quero um amor,sussurrou ela uma tarde depois de tercomeçado a chover como se a cidadetivesse cortinas, Eu só quero umamor, daqueles simples em que,dizem, só é preciso amar e nada mais,Dá-me um beijo!, Dou-te dois!, e ossorrisos correm como sóis e os abra-ços envolvem-se como um ventoquente, Eu só quero um amor! E apartir do momento em que convocoueste mais que bem-querer, ela conhe-ceu a angústia da busca, o suspironuma troca de olhares, o apertar doestômago por quem passa e não olha.

Eram os dias das paixões, doridas eincompletas, violentas e terríveis, Paraquê tudo isto? Eu só quero um amor!

III

No dia em que o conheceu sentiuque o coração lhe fugia, que deixava oseu peito e queria entrar no dele, queas suas pernas procuravam ir-se de-pressa mas, de tão tolas, se quedavamcomo se fossem feitas de gelatina. Elesorriu-lhe e ela pressentiu que ele,sem nada proferir, lhe dizia, Quero-teaté ao fim do mundo!, como se afinalos olhos valessem mais no que toca àretórica do amor. Era um marinheiro,direito e aprumado e, quando falou, assuas palavras eram mais reluzentesque os botões do seu garboso uni-forme, sabiam a amor, Queres tomarum café?, a paixão, Está um dia tãobom!, a beijo, Vens aqui muitasvezes?, a cheiros, Tens que fazer ama-nhã à noite?

Os dias passaram, as mãos entrela-çaram-se, a paixão doida correu eficou o amor. Ele falava-lhe das via-gens, dos mundos que conhecia, dasterras pelas quais passava e que lhetraziam espanto ou tristeza, ela con-tava-lhe dos lugares por onde ousaraandar e, enamorada, questionava-o,sorrindo docemente, Tens uma na-morada em cada porto? Ele, quase en-rubescendo, negava-o, És o meu únicoamor!

Quando partia disfarçava as lágri-mas com a humidade das madrugadase ela, no cais feito de saudades, ace-nava-lhe, Não me esqueças! Voltapara mim!

IV

Há mais marés que marinheiros,diz-se, por serem traiçoeiros, para

quem neles não habita, os mares.Muitas vezes teve ele o céu quase de-baixo das águas e sentiu que a viagemse acabava ali, longe do coração; aper-tava nessa altura contra o peito, comose de uma imagem santificada se tra-tasse, a foto sorridente que ela lhe ofe-recera. E com esse retrato, desbotadopelo suor e águas salgadas, talvez al-guma delas fossem lágrimas, reen-trava feliz no cais das alegrias. “Não teesqueceste de mim?, Não, como erapossível? E as tuas outras namora-das?, Não sejas tonta!

Sorriam e abraçavam-se, não mor-riam só de amores, morriam um pelooutro, Amo-te até ao fim do mundo!,um beijo, Voltaste para mim!, beijo,mão, cheiro, corpo, Amo-te!

V

Não há mundos perfeitos, muitomenos histórias que o sejam. Cada vezque o navio aportava, ela ia ficandomais e mais ausente, enrodilhada empensamentos obscuros, E as tuas ou-tras namoradas?, Já te disse que só tuexistes para mim! Amo-te!

Mas o poder da dúvida corrói, é umácido que dispõe mal, que queima,que deixa dor profunda, corre comoum cavalo bravo, sem brida e em con-tínuo galope. Nesses dias, ela foi, porisso, conhecendo a infelicidade doamor e olhava para as cartas em queele jurava, Amo-te até ao fim domundo, como se fossem ondas gigan-tes que tudo levam e tudo arrasam.Até que um dia decidiu confrontá-lo.A traição que vive no mar tem de serpaga em terra.

VI

Traíste-me!, e os olhos abriram-se

como um céu cinzento carregado detempestades, Não e não e não! Nãotenho mais nenhuma mulher!,Traíste-me!, Não tenho outras namo-radas!, Traíste-me!, Os portos são,para mim como melancolias ondeprocuro ver a tua cara, o teu cheiro, oteu corpo!, Traíste-me!, Os oceanossão caminhos de regresso que querofazer depressa, muito depressa para tereencontrar! Por isso, não, nunca tetraí!

Ela olhou-o com um desprezo sim-ples e transparente, Não entendesnada! Traíste-me, sim! Quando te per-guntava se tinhas uma mulher emcada porto e me dizias que não, acre-ditava que me mentias. Que era umamor de marinheiro. Nunca penseique falasses verdade! Porque, se ti-vesses outras mulheres, regressavassempre para mim. Para mim, enten-des? A prova de que me amavas até aofim do mundo era, tendo tu outras, euser a única. Mas afinal, não. Não meamavas como eu pensava. Não meamas!

E as águas separaram-se.

VII

O que é o amor? Já não há quemfaça apostas ou finca-pé, sabe-seagora que o amor é o que é e nadamais.

E eles? Ela está na busca do amor ede ser a única, ousando nós adivinharque jamais o conseguirá; ele, tendovisto a vida desfeita num dia de chuvafina, continua marinheiro e em cadaporto não tem mais uma mulher. Temquatro ou cinco. Mas nos silêncios dasondas que batem no casco sussurrapara o horizonte, Hei-de amar-te atéao fim do mundo!

solTAs23 de maio de 2012 | quarta-feira | a cabra | 21

Amo-Te ATé Ao fim do mundo (um Amor de mArinheiro em 7 CAPíTulos)Por fernando José rodrigues miCro-ConTo

Atlético de Coimbra foiao Jamor ganhar a taça,num jogo que teve por

árbitro um indivíduo de sobre-nome “Batista”. A festa foi bo-nita, com momentos de salutarconvívio entre adeptos do Ben-fica e do Porto, regados por umBairrada ou um Dão, a acompa-nhar um leitão ou um frango dechurrasco. Não sei se estava bomporque ninguém me ofereceu umbocado.

Veio muita gente para ver oAtlético. Mas há duas ausênciasque são notadas. Não veio o Pre-sidente da República nem o rei-tor – podem traçar osparalelismos que quiserem. Dizque estão em Timor, o que é umapena, dado que havia muito maispara ver no Jamor que o futebol.Esse foi muito pouco, uns vinteminutos se tanto.

No entanto, o Paço das Escolasfez-se representar. Desta vez, areitoria e a académica pareciamvestir as mesmas cores. Mas seráque alguém tomou nota dos di-chotes das faixas que foram

sendo abertas, ou a unidade é sóuma questão de futebóis?

Estavam também muitos co-nhecidos, do mundo da comuni-cação social, da academia, unsque parece que já se tinham idoembora mas que ainda por láandam, ex-activistas estudantisda esquerda revolucionária acompetir na distribuição de pro-paganda partidária com as me-ninas do Destak, grandeshomens do futebol de garbososbigodes, como o João Alves ou oToni. Surpreendente a quanti-dade de tias da linha tambémvieram, arejar as fitas e as capas,no jogo contra a equipa dos vis-condes.

Dizia alguém que aquilo pare-cia a Queima. Percebo a compa-ração: era o número de borlas,eram os dirigentes (actuais, ex,proto, de outras academias), eraa cerveja e a comida excessiva-mente caras para a qualidadecorrespondente, era a música degosto duvidoso a ser debitadapelo sistema de som do estádio,e era mole humana em movi-

mento como no cortejo, dei-xando atrás de sim um rasto degarrafas e copos com o propósitocumprido.

Mas no Jamor houve umacoisa que na Queima não há. Po-litização. Bem-feita, e com im-pacto. Salvé! É o que dá ganharum bocado de coragem e recor-rer a uma boa dose de criativi-dade e persistência –

arriscamo-nos a que as coisascorram bem. Não é a primeiravez que a DG consegue desen-volver acções com visibilidade,normalmente depois das acçõesfica a dormir um bocado à som-bra da bananeira, tipo Polga, edepois, com medo de “banali-zar”, não volta à carga. Não sepreocupem que esta acção é difí-cil de banalizar, é tipo cometa

Halley – o Atlético só vai a umafinal a cada 70 anos.

Quanto ao jogo em si, não hágrande coisa a dizer: o Atléticojogou o que pôde, ou o que sabe,e o Sporting não jogou nada, oque também não é propriamentesurpreendente. Acabou quaseantes de começar verdadeira-mente, o que permitiu a algunsespectadores passar o tempo asondar as bancadas, conferen-ciar com os adeptos da equipaadversária discutindo qual dasduas equipas tinha a defesa maisinepta ou a tirar fotografias comos famosos (tenho uma com o ZéPedro dos Xutos –o Keith Ri-chards português!).

Ainda há a reter que a taça seescangalhou, tenho o presidentedo Atlético, José Eduardo Si-mões, revelado um grande ta-lento para estes arranjinhos.Depois disso não mais largou ataça, não fosse alguém a roubar.

monumenTAis PAnAdos soCiAisPor doutorando Paulo fernando • facebook.com/paulofernandophd

Ofotomontagem

Vou esCreVer sobre bolA (mAis ou menos)

nasceu em Coimbra em 1956, for-mou-se em Filologia germânica emLisboa e marcou estadia em inglaterrae na suécia como leitor de língua eculturas portuguesas pelo instituo Ca-mões. em estocolmo, foi responsáveltambém pela tradução para inglês dotexto de José saramago para a ceri-mónia de entrega do nobel da Lite-ratura, trabalho de que se orgulha.não vive da escrita. senhor de umfarto bigode, é professor do ensinosecundário a tempo inteiro e, entre oslivros e o ensino, ainda tem tempopara ser ator na companhia “o gato”,de Leiria, cidade onde vive. Publicouaté agora três livros. “d. sebastiãochega sempre a horas”, em 1999,“novas do achamamento do inferno”,em 2001, e “gestos esquecidos”, de2006, que venceu o Prémio Literárioalmeida Firmino. nos livros deixa asua crítica à sociedade e à política,sendo que Fernando Venâncio, críticoliterário, descreveu-o nas Correntesd’escrita de 2002, como alguém que“escreve depois de saramago, depoisde Fernando Campos, e o que conse-gue é uma narrativa que aproveitaestas duas lições e acaba por superá-las, com brilho, e com um tremendogozo”.

Ana Morais

Fernando José rodrigues

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opinião22 | a cabra | 23 de maio de 2012 | quarta-feira

Quando pensamos numa casade velharias o que imaginamos?Certamente um espaço onde todoo género de objetos, a maioria en-ferrujados, amontoados uns emcima dos outros, se compra evende. Poucos cogitam que estaslojas, para além de serem ummuseu vivo e um relembrar damemória, sinalizada entre gera-ções, onde de certo modo o visi-tante pode tocar nos objetos, étambém uma espécie de bolsa devalores onde, e em paridade, con-soante os ciclos económicos, o ín-dice sobe ou desce. Se a economiaestá em franco desenvolvimentohaverá menos gente a querer ven-der e o seu preço mantém-se es-tável ou subirá conforme araridade. Se, pelo contrário, estáem queda acentuada, haverámais pessoas a quererem desfa-zer-se de bens que lhes estão co-lados na recordação, e, na lei daoferta e da procura, em subse-quência pelo excesso da primeira,

para além de perderem valor,como “tsunami”, arrastam tudona sua passagem sôfrega e vorazpara serem transformados em di-nheiro.

Porém, acontece que, como aoferta é maior do que a procura,para além de provocar uma des-valorização acentuada nos produtos, uma deflação, inevita-velmente, estas casas, porque dei-xam de alienar, irá chegar umaaltura em que, mesmo a um euro,não poderão adquirir seja o quefor. E é aqui, neste estádio, que osdramas começam para ambos oslados. Por parte do particular,que quer vender por motivos vá-rios, por exemplo para comprarum medicamento, perante a es-perança frustrada, vê-se impo-tente e, como rio em tempo deenxurrada a saltar a margem, aslágrimas soltam-se pelo rostoamargurado com rugas de soli-dão. Por outro lado, porque quemestá à frente destes estabeleci-

mentos comerciais quase sempresão pessoas com uma sensibili-dade acima da média, a tocar osensitivo, é muito natural que,com os olhos a lacrimejar e o co-ração a latejar, puxe de uma notae a dê sem nada comprar. Con-tudo, na análise, porque prefiro irpela vereda psicológica mais si-nuosa, a meu ver, neste ato de ge-nerosidade, para além doaltruísmo, em catarse, estão vá-rios sentimentos em conflito. Porum lado, neste dar sem aparente-mente nada exigir em troca, es-tará muito da “caridade” de quefalava Nietzsche, em que em todaa atitude filantrópica está im-buído um espírito de interessepróprio de autossatisfação. Poroutro, nesta bondade do dador,haverá muito medo à mistura.Isto é, a maioria destes comer-ciantes que vendem coisas usadasou são pessoas que emergem dasraias da pobreza, ou, em muitoscasos, desde a infância trazem

consigo uma alma carecente deafeto e, este “dar”, não é mais doque a projeção egoísta que esseamor oferecido ao outro dá aopróprio. É evidente que podere-mos perguntar se, afinal, todo oato de dar, contrariamente ao quese pensa, não passa de umaforma narcisista de mostrar oafeto? Não sei. O espírito hu-mano é muito complexo. E quemsou eu para aventar teorias?

o particular, que quervender por motivosvários, perante a esperança frustrada, vê-se impotente e, comorio em tempo de enxurrada a saltar amargem, as lágrimassoltam-se pelo rostoamargurado com rugasde solidão.

Vender a aLma em tempo de crise

Luís Quintans

PuBLiCidade

Mara rodrgiues.

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opinião23 de maio de 2012 | quarta-feira | a cabra | 23

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editoriaL

a redundância de um jogo

ideia não é nova. Aconteceu na final de 1969, estávamos em ditadura.Entretanto veio Abril e o país mudou. Mudou para que houvesse li-berdade, o que pressupunha a livre expressão, a igualdade de opor-

tunidades. Se percorremos um longo caminho no desenvolvimento social foinesse sentido e o acesso ao ensino superior, bem como outros setores da so-ciedade portuguesa, democratizou-se. Depois, as propinas foram apenas oprimeiro passo. E entretanto o país mudou. Algures no caminho, entre a re-volução e o agora, não se sabe bem quando começámos a andar para trás, aregredir. Alguém questionou a utilização da mesma forma de reivindicaçãocontra um governo democraticamente eleito? Não na academia. Sinal dostempos que não se repetem, mas deixam uma sensação de déjà vu. Esta de-cisão, tomada em Assembleia Magna - que está longe de ser leviana - devesuscitar uma séria e profunda reflecção relativamente ao ponto a que chegá-mos.

Podemos começar pelo ensino secundário, e pelos objetivos de quem queraceder ao superior. Muitos já adiam esse passo, esperando uma melhor con-juntura que torne o ensino superior economicamente viável. A repetida di-minuição de bolsas de ação social escolar enegrece o cenário. Vai valendo acaridade dos fundos de apoio, que pouco serve para atenuar as estatísticas.

Com o desemprego galopante, a perspetiva de saídas profissionais para um

jovem licenciado é escassa. A alternativa? Fazer um mestrado e esperar queisso ajude. E fá-lo quem ainda consegue suportar as propinas do segundociclo. Quando há poucos meios, de que vale investir na formação se o destinomais provável é o desemprego?

Os sinais vão-se arrastando, não é de agora. Voltou a acontecer na épocapassada, quando a Académica – Organismo Autónomo de Futebol (OAF) che-gou às meias-finais da competição. Também já se falava em faixas no Jamor.A Académica ficou-se por aí, assim como as faixas. Este ano, a Académica foimesmo à final e a ideia foi retomada. As faixas foram mesmo ao Estádio Na-cional e por pouco não entravam. Sinal de um estado com laivos pidescos.

Tendo em conta a atenção cega que os media nacional dão a um qualquerjogo de futebol, o balanço do impacto mediático das faixas na Final da Taçaparece positivo. O que também deixa transparecer é que, nitidamente, faltauma ação de maior cariz reivindicativo. Se o resultado de três meses de sen-sibilização e informação é este, então é claramente insuficiente, se ficar poraqui.

Não se pode comparar 2012 com 1969. A contestação em democracia as-sume contornos por demais distintos, apesar das aproximações recentes aoestado policial. Mas muito mais pode ser feito, já que quem deve não o faz. AAssociação Académica de Coimbra não pode esperar que entretanto o paísmude.

Camilo Soldado

o balanço do impacto mediático dasfaixas na final da taça parece positivo. o

que também deixa transparecer é que, nitidamente, falta uma ação de maior cariz reivindicativo.”

fotoMontageM Por CarLota reBeLo

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e

EstrElas quE dançam o vira por João Gaspar200

x 100Firma o seu olhar, sem que no

seu fundo encontre linhas firmes.

Perde-se então na festa veraniana,

no ar quente, na música que é as-

sobiada em jeitos toscos, no

cheiro a sardinha. Mas tudo pa-

rece ser pequeno para tão grande

olhar. Olhar de criança não per-

cebe essas coisas de limites. Di-

funde-se, como fumo-praga. Tudo

tem uma inegável magia. Como

aqui, de olhos postos nos dedos si-

rigaitos de um acordeonista. Vai

além dos dedos, do acordeão, do

que ouve, do que vê. Parece que

enquanto vê dedos bailantes, vê

também estrelas que dançam o

vira. Alheio de tudo. Alheio de ro-

dopios de casais a que as bodas já

lhes beijaram os anéis, alheio a

bêbados que perscrutam fantas-

mas, alheio a saudades imigrantes

feitas de tons de vinho. Olha, des-

nudo, entregue a poesias mudas

de um baile de Verão.

No meio de uma programação

cultural um pouco homogénea, eis

que O Teatrão presenteia a cidade

com uma mostra de teatro brasi-

leiro. Durante cinco dias, a popula-

ção terá oportunidade de ver aquilo

que de melhor se faz em São Paulo.

O teatro é um dos fortes da cidade

de Coimbra e esta aposta d’O Tea-

trão vem em boa altura, especial-

mente num ano em que se

comemora a presença de Portugal

no Brasil. Para quem se queixa que

em Coimbra não há muito para ver

e prefere viajar vários quilómetros

para ver um qualquer espetáculo

numa dita capital cultural, esta é al-

tura perfeita para reconsiderar tais

afirmações. A.D.

União Europeia

O Teatrão CHUC

Ao atentarmos na lógica político-

económica seguida pela Europa e

pela América Latina encontramos

sérios contrastes. A primeira segue

a filosofia desenfreado do capita-

lismo neoliberal, já a segunda busca

no marxismo os valores socialistas.

Com medidas opostas, quem ganha

mais? A resposta a esta questão

surge-nos quando olhamos para o

estado dos países que integram estes

conjuntos. A Europa está em regres-

são e a América Latina em cresci-

mento. Nos países europeus as

medidas radicais de privatizações

“não têm em conta os interesses dos

países em causa mas sim de quem os

financia”, como explica João Rodri-

gues. A.M.

Na mesma altura em que a fusão

dos hospitais ganha forma e as con-

sequências aparecem em catadupa -

o fecho das urgências no período no-

turno no Hospital dos Covões ou a

possível fusão das maternidades da

cidade -, é inaugurada a maior uni-

dade hospitalar privada da zona cen-

tro. A supremacia caricata do setor

privado ao Serviço Nacional de Saúde

que se quer gratuito e para todos é

uma realidade. A saúde parece assim

ser só para quem pode pagar e não

para quem precisa. Sem qualquer es-

tudo prévio divulgado, a fusão do

CHUC vem tirar à cidade e aos seus

habitantes as valências necessárias a

um direito vital - o acesso à saúde.

A.M.

PUBlICIDADe

Jornal Universitário de Coimbra

PUBlICIDADe

Chloë Bonet