edição 119

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Edição 119 - Junho de 2010 ISSN 1807-779X 9 7718 0 7 779000 00119> R$ 16,90

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ISSN 1807-779X Edição 119 - Junho de 2010 9 7718 07 779000 0 0 1 1 9 > 2 JUSTIÇA & CIDADANIA | JUNHO 2010

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Edição 119 - Junho de 2

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ISSN 1807-779X

9 7718 0 7 779000

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R$ 16,90

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2 JUSTIÇA & CIDADANIA | JUNHO 2010

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2010 JUNHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 3

7 Três exemplos de idealismo

S umário

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30

24

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O ficha limpa

Angelina e Maria da Penha

Bernardo Cabral, “uma história de heroísmo”

O juízo da história

Foto: Arquivo PessoalFoto: Luiz Antonio/SCO/STJ

Foto: Maiesse Gram

achoFoto: Nelson Jr./SCO/STF

ediTOriAl

MONOPÓliO e OS SerViÇOS PÚBliCOS

dOM QuixOTe:

‘Cárcere é um problema social’

ASPeCTOS releVANTeS dO iNTerrOGATÓriO

ii CONGreSSO BrASileirO dAS CArreirAS JurídiCAS de eSTAdO

SuCeSSÃO x iNVeSTiMeNTOS

A ruPTurA dA AFFeCTiO SOCieTATiS e O PriNCíPiO dA PreSerVAÇÃO

dA eMPreSA

eM FOCO: Tribunais adotam cultura da paz

6

26

34

36

40

42

45

48

Foto: Aldo DiasFoto: RosaneNaylor

Foto: Christina Bocayuva

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4 JUSTIÇA & CIDADANIA | JUNHO 2010

EDIÇÃO 119 • JUNHO DE 2010

CONsElHO EDItOrIal

ORPHEU SANTOS SALLESEDITOR

TIAGO SANTOS SALLESDIRETOR EXECUTIVO

ERIkA BRANCODIRETORA DE REDAÇÃO

DAVID SANTOS SALLESEDITOR ASSISTENTE

DIOGO TOMAZDIAGRAMADOR

GISELLE SOUZAJORNAlISTA COlAbORADORA

LUCIANA PERESREVISORA

EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIAAV. NIlO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOlIRIO DE JANEIRO – RJ CEP: 20020-906TEl./FAX (21) 2240-0429

SUCURSAIS

SÃO PAULORAPHAEL SANTOS SALLES AV. PAUlISTA, 1765 / 13°ANDARSÃO PAUlO – SP CEP: 01311-200TEl. (11) 3266-6611

PORTO ALEGREDARCI NORTE REBELO RUA RIACHUElO, 1038 / Sl.1102ED. PlAZA FREITAS DE CASTRO CENTRO – PORTO AlEGRE – RS CEP: 90010-272TEl. (51) 3211-5344

BRASÍLIAARNALDO GOMESSCN, Q.1 – bl. E / Sl. 715 EDIFÍCIO CENTRAl PARK bRASÍlIA – DF CEP: 70711-903TEl. (61) 3327-1228/29

CORRESPONDENTEARMANDO CARDOSOTEl. (61) 9674-7569

[email protected]

CTP, IMPRESSÃO E ACABAMENTOZIT GRÁFICA E EDITORA lTDA

ISSN 1807-779X

AdilSON VieirA MACABu

AlVArO MAiriNk dA COSTA

ANdrÉ FONTeS

ANTONiO CArlOS MArTiNS SOAreS

ANTôNiO SOuzA PrudeNTe

ArNAldO eSTeVeS liMA

ArNAldO lOPeS SüSSekiNd

AurÉliO wANder BASTOS

BeNediTO GONÇAlVeS

CArlOS ANTôNiO NAVeGA

CArlOS AyreS BriTTO

CArlOS MáriO VellOSO

CeSAr ASFOr rOCHA

dAlMO de ABreu dAllAri

dArCi NOrTe reBelO

edSON CArVAlHO VidiGAl

elliS HerMydiO FiGueirA

eNriQue riCArdO lewANdOwSki

erOS rOBerTO GrAu

FáBiO de SAlleS MeirelleS

FerNANdO NeVeS

FrANCiSCO PeÇANHA MArTiNS

FrederiCO JOSÉ GueirOS

GilMAr FerreirA MeNdeS

HuMBerTO GOMeS de BArrOS

iVeS GANdrA MArTiNS

JerSON kelMAN

JOAQuiM AlVeS BriTO

JOSÉ AuGuSTO delGAdO

JOSÉ CArlOS MurTA riBeirO

luiS FeliPe SAlOMÃO

luiz Fux

MANOel CArPeNA AMOriM

MArCO AurÉliO MellO

MASSAMi uyedA

MAuriCiO diNePi

MAxiMiNO GONÇAlVeS FONTeS

Ney PrAdO

OrPHeu SANTOS SAlleS

PAulO FreiTAS BArATA

SerGiO CAVAlieri FilHO

SirO dArlAN

SylViO CAPANeMA de SOuzA

THiAGO riBAS FilHO

Foto: Alexandre Fatori e Maurino Borges

BerNArdO CABrAlPresidente

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2010 JUNHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 5

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6 JUSTIÇA & CIDADANIA | JUNHO 2010

editorial

Orpheu Santos SallesEditor

Desde quando, no ano de 776 antes de Cristo, a Grécia instituiu os jogos olímpicos em honra a Zeus, e mesmo depois, a partir de 1933, quando foram criados os jogos olímpicos modernos, a tocha foi acesa na pira

olímpica e passou a simbolizar, entre outros dons e significados, a propagação da paz no mundo e o congraçamento do idealismo universalista.

A lembrança do simbolismo da tocha vem num momento preciso e necessário, em que os valores éticos, morais e cívicos da Nação se encontram abalados pelos escândalos que explodem constantemente nas altas esferas da política e da administração pública, como o definido tristemente pelo eminente Ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, quando no julgamento do nauseabundo Governador de Brasília, Roberto José Arruda, pronunciou a frase que, como um ferrete, marcou impiedosamente a desgraça do infeliz e corrupto político: “Dói na alma e no coração ver um governante sair direto do palácio para a cadeia. Há quem chegue às maiores alturas para fazer as maiores baixezas.” Assim como o Governador de Brasília foi cuspido do cargo pela Justiça, outros tantos, senadores, deputados federais e estaduais, prefeitos e vereadores, pilhados também pelos crimes praticados, graças às ações da Polícia Federal e do Ministério Público, já foram eliminados e, finalmente, expulsos da vida

pública. Os movimentos populares propugnando pela Ficha Limpa dos candidatos a mandatos do Executivo e Legislativo, já sancionado, constituem o início de novos rumos na condução ética nas próximas eleições. Oxalá isso aconteça.

Entretanto, esse vestígio de moralidade deve ser cultivado e incentivado com a divulgação de exemplos edificantes de personalidades que granjearam o respeito público pelas ações e trabalhos que realizam, na maioria das vezes, anonimamente ou apenas no seu meio.

O jornalista, por mais de uma vez, tem propalado um dito que lhe foi dado num momento difícil de sua existência, quando inconformado com humilhações, amarguras, perseguições e sofrimentos recebidos injusta e indevidamente, procurou o conforto de palavras amigas que lhe trouxessem ânimo, confiança e coragem para continuar resistindo, lutando e sobreviver. Foi numa das muitas viagens, entre São Paulo e Rio de Janeiro, na Rodovia Presidente Dutra, que, passando pela cidade de Aparecida, resolvi visitar o notável religioso e afável amigo, Cardeal Carlos Carmelo de Vasconcellos Mota, de quem me havia afeiçoado pela cordialidade com que sempre recebia, quando de sua ação apostólica no Arcebispado de São Paulo. Depois de ouvir queixas, lamentações e quase desespero, ele, muito circunspecto, fez mais ou menos a seguinte peroração: “Caríssimo Orpheu: todos nós, durante a vida, passamos por alegrias e sofrimentos e, às vezes, quando compartilhamos desses sentimentos, eles se tornam por demais contagiantes pela empatia que nos envolve; entretanto essas vicissitudes, quando pungentes, têm que ser suplantadas com coragem e ânimo forte. Quem, como você, que vivencia a moralidade, a ética, a coragem e principalmente o destemor, como tem demonstrado com estoicismo e inclusive com resignação, tem que se conduzir na vida como uma vela, de pé, iluminando e se consumindo até o fim, porque pessoas com o seu caráter e determinação não podem fraquejar nunca.”

Quantas pessoas humildes ou potentado, ricos ou pobres, negros ou brancos, que pervagam por esse Brasil afora e se conduzem não como uma vela, como disse o digno Cardeal Mota, mas como uma tocha, arrancada da pira e levada pela vida, iluminando os caminhos e espargindo esperanças e otimismo.

A TOCHA DO IDEALISMO

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2010 JUNHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 7

TrêS ExEMpLOS DE IDEALISMO

A revista “Justiça & Cidadania” realizou, no último dia 24 de maio, uma homenagem póstuma a Amador Aguiar, fundador do banco Bradesco. Em solenidade na sede da instituição, em Osasco, São Paulo, a

direção da publicação inaugurou a estátua de Dom Quixote.

Nesse dia, premiou ainda Lázaro Brandão, Presidente do Conselho de Administração do Bradesco, com o troféu Dom Quixote, pelos relevantes serviços que prestou ao País, em prol do desenvolvimento econômico e social.

Ambas as homenagens ocorreram com anuência da Confraria

Foto: Alexandre Fatori e Maurino Borges

Sr. Lázaro Brandão recebendo o Troféu Dom Quixote das mãos do Chanceler da Confraria Dom Quixote, Bernardo Cabral

Da Redação

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8 JUSTIÇA & CIDADANIA | JUNHO 2010

& Cidadania”, com o oferecimento da estátua de Dom Quixote, perpetuando a memória do saudoso e celebrado Amador Aguiar, e outorgando ao eminente cidadão Lazaro de Mello Brandão, o troféu de Dom Quixote, externam os agradecimentos ao Sr. Luiz Carlos Trabuco Cappi, Presidente do Banco Bradesco e membro emérito da Confraria Dom Quixote, pela oportunidade concedida para que as justas e devidas homenagens pudessem ser prestadas”, afirmou Opheu Salles, na solenidade.

Dom Quixote, que integra a revista “Justiça & Cidadania”.Esta edição traz os detalhes do evento, que reuniu

importantes nomes do mundo jurídico e empresarial. A seguir, confira os discursos de Tiago Salles, diretor da revista “Justiça & Cidadania”; Orpheu Santos Salles, editor da revista “Justiça & Cidadania”; Massami Uyeda, Ministro do Superior Tribunal de Justiça; e Lázaro Brandão, Presidente do Conselho de Administração do Bradesco.

“A Confraria Dom Quixote e a direção da revista “Justiça

Foto: Alexandre Fatori e Maurino Borges

Auditório do Salão Nobre da sede do Banco Bradesco em Osasco, São Paulo

Foto: Alexandre Fatori e Maurino Borges

Foto: Alexandre Fatori e Maurino Borges

Ouvintes durante pronunciamento de Orpheu Salles, Editor da revista

“Justiça & Cidadania”

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2010 JUNHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 9

Continuador da obra de Amador Aguiar, ele é outro desses seres humanos que transformam positivamente a história.

Exemplo é a Fundação Bradesco, que já formou mais de quatro milhões de alunos, dando significativa contribuição ao ensino, elemento fundamental ao desenvolvimento!

Movido pelo ideal e competência de seus principais dirigentes, o Bradesco é uma instituição exemplar. Embora privado, é o único banco presente em todos os municípios do Brasil, prestando inestimáveis serviços à população. Uma atitude coerente com a mensagem central de sua atual campanha publicitária, que diz: “Atender é ser presente”.

Esta, também, é meta da revista ‘Justiça & Cidadania’. Queremos ser presentes em cem por cento dos gabinetes dos magistrados do Brasil. Para o sucesso nessa conquista, precisamos amealhar apoios e nos espelhamos na trajetória do Bradesco e de seus grandes dirigentes.

Como eles, acreditamos na capacidade de transformar sonhos em realidade, na ética acima de tudo e na fidelidade aos princípios, valores simbolicamente expressos na figura de Dom Quixote! É por isso que valorizamos e disseminamos a Justiça, esta fiadora dos direitos e deveres e um dos alicerces básicos da democracia!

Muito obrigado!

Dando início às solenidades, falou o Diretor da Revista, Tiago Salles:

“’Entre o cafezal e o sonho, o garoto pinta uma estrela dourada na parede da capela. E nada mais resiste à mão pintora...’.

Este verso do poema “A mão”, uma homenagem do grande Carlos Drummond de Andrade ao fabuloso artista Cândido Portinari, aplica-se a todas as pessoas que souberam transformar sonhos em realidade.

São homens e mulheres talentosos, abnegados e com espírito empreendedor, que impulsionam gerações, revolucionam conceitos e contribuem para a melhoria da vida de suas comunidades e o progresso de seus países.

São protagonistas de transformações positivas. Por isso, sua obra e seus legados são infinitos e imortais.Este é exatamente o exemplo de Amador Aguiar, fundador do Bradesco, a quem a Confraria Dom Quixote e a revista ‘Justiça & Cidadania’ têm a honra de prestar esta homenagem póstuma.

É o nosso mais profundo reconhecimento à contribuição de Amador Aguiar à prosperidade do Brasil.

Meus amigos, é também com imensa alegria e emoção que entregamos o Troféu Dom Quixote a Lázaro de Mello Brandão, presidente do Conselho de Administração do Bradesco.

Foto: Alexandre Fatori e Maurino Borges

Tiago Salles, Diretor da revista “Justiça & Cidadania”; e Lázaro Brandão, Presidente do Conselho de Administração do Bradesco

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resultados proporcionados em benefício do progresso econômico, comercial e industrial do País, além da incomensurável obra social e educacional que promovem através da Fundação Bradesco.

Bernardo Cabral realçou a lembrança que o Editor da Revista teve nas homenagens prestadas pela Confraria Dom Quixote e direção da revista “Justiça & Cidadania” às duas grandes personalidades de Lázaro Brandão e do saudoso Amador Aguiar, que Orpheu conheceu quando participante da comitiva do Presidente Getúlio Vargas, na visita à cidade de Marília. Orpheu teve em seus longos 89 anos de vida glórias e percalços: no final do governo do Presidente Vargas, após sua morte, por divergências funcionais com autoridades da Marinha, pela efetiva participação na conciliação da greve da Marinha Mercante, foi perseguido e demitido. No dia 31 de março de 1964, Diretor de Jornalismo na Rádio Marconi, São Paulo, defendendo no microfone o governo constituído de João Goulart e contestando o golpe militar, foi o primeiro preso político a ser recolhido aos cárceres do Dops, tendo papel de destaque político na luta pela restauração democrática, tendo sofrido perseguições, humilhações, amarguras, sofrimentos, prisões e inclusive torturas. No navio Raul Soares, onde ficou trancafiado pela ditadura militar, produziu um poema épico que serviu de prefácio do livro “Navio Presídio”, do jornalista Nelson Gato. São versos lancinantes sobre as misérias acontecidas a bordo, como declamou:

O NAVIO PRESÍDIOE quando a noite pesada de silêncioChegou torturando as multidões aflitas,O Torquemada indígena reeditou a sina,Que afligiu a terra ibérico-latina.

E a Inquisição renasceu em nossa pátria,Ferindo forte, com ódio, vingança e infâmia,Como se este povo não fosse só de irmãos,Trabalhadores, poetas, professores e cristãos.

Da Guanabara, loira, radiosa e bela,A opressão mandou o carcomido barco,Com seu casco negro, infecto, apodrecido,Para encarcerar pais, irmãos, filhos e netos.

Ó negro navio de triste sina,Antes de houvera o mar tragado,Quando navegas impávido e imponente,A te transformares no terror da tua gente!

As merecidas e reconhecidas homenagens que o saudoso Amador Aguiar e essa grande personalidade de Lázaro Brandão recebem por iniciativa de Orpheu Salles, em nome da revista “Justiça & Cidadania” e participação da Confraria Dom Quixote, com a grata aquiescência do Presidente Luiz Carlos Trabuco, se consubstanciam no pleno e devido reconhecimento dessas duas importantes pessoas, às quais o Brasil tanto deve pelo muito que fizeram em benefício da sociedade e da Nação.

Após a exposição de Tiago Salles, o Presidente do Banco Bradesco, Sr. Luiz Carlos Trabuco, em nome da Organização, deu as boas-vindas aos promotores da festividade e às personalidades presentes, agradecendo, em nome da Organização Bradesco e da família do Sr. Amador Aguiar, o comparecimento e as honrarias prestadas ao fundador do Bradesco, com a inauguração da Estátua de Dom Quixote, em tributo ao trabalho e às realizações do saudoso presidente, e ao seu amigo e companheiro, Sr. Lázaro Brandão, Presidente do Conselho de Administração do Bradesco, continuador e grande realizador da expansão e engrandecimento da Organização Bradesco, pelo recebimento da merecida outorga do Troféu Dom Quixote.

Em seguida ao pronunciamento do Sr. Luiz Carlos Trabuco, discursou o Sr. Bernardo Cabral, Presidente da Confraria Dom Quixote, ressaltando a importância do significado da inauguração da Estátua e da outorga do troféu Dom Quixote, homenageando as figuras do saudoso Amador Aguiar e de Lázaro Brandão, seus velhos amigos desde quando exerceu a presidência nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, e ainda Senador da república, enaltecendo a pregação cívica e social a que os homenageados se dedicaram, e implantaram em todo o Brasil, colhendo os resultados, tanto na grandeza do Banco Bradesco como nos

Luiz Carlos Trabuco Cappi, Diretor-Presidente do Bradesco

Foto: Alexandre Fatori e Maurino Borges

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por homens e mulheres que se destacam na defesa dos valores da ética, da justiça, da cidadania, do amor, da fidelidade, da coragem, da renúncia, da determinação e no respeito à dignidade humana.

Sua sede social se localiza onde se congreguem pessoas imbuídas do mesmo ideal e propósito e suas assembleias realizam-se em foros previamente eleitos. Ou seja, ela está sediada em todo lugar onde se reúnam pessoas que vibram nesta mesma sintonia.

Sua denominação ostenta como dísticos as figuras magistrais de Dom Quixote e Sancho Pança, criações geniais

Após o pronunciamento de Bernardo Cabral, falaram o Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Massami Uyeda, e o Editor da Revista, Orpheu Salles, cujos discursos são adiante transcritos:

Discurso proferido pelo Ministro Massami Uyeda

“A Confraria Dom Quixote, na forma como se apresenta, foi concebida por Orpheu Santos Salles, Editor da Revista “Justiça & Cidadania”, e, se pudermos conceituá-la, diríamos tratar-se de uma organização não-

governamental, na sua mais pura acepção, pois não recebe qualquer auxílio, subvenção ou patrocínio oficial, constituída

Foto: Alexandre Fatori e Maurino Borges

Massami Uyeda, Ministro do STJ

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de Miguel de Cervantes, ao retratar a “aspiração de D. Quixote à aventura, o seu desejo de renovar, no mundo povoado de injustiças, do seu tempo, a ação purificadora da andante cavalaria, e de operar essa ação pelo dom de si mesmo, é, em si, um dos anseios a que tendeu o espírito humano”, no dizer de San Tiago Dantas (in “D. Quixote – Uma apologia da alma ocidental”, Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 27).

Ao traçar o perfil de Sancho Pança, o qual, ao se referir a seu amo, o tinha na conta de louco rematado, pelos desatinos e pela insensatez de seus atos e palavras, para, em síntese conclusiva, arrematar tratar-se seu senhor, Dom Quixote, de mentecapto, mas, por fim, ao cabo de sua convivência estreita, em diálogos confidenciais, e que constituem toda a trama da novela cervantina, ao longo das jornadas pelos ensolarados caminhos da Espanha, convivendo com o ideal de salvar a todos, como aspirava seu senhor, tal qual um salvador, o escudeiro assim contagiado, torna-se mais sério, mais sábio e mais sensato, conservando sua condição humana, porém aderindo à nobre causa, para proclamar, em verdadeiro e autêntico édito de fidelidade, que sua sorte: “...não está na minha mão: tenho de segui-lo. Somos da mesma aldeia: tenho comido do seu pão, quero-lhe bem, sou agradecido, deu-me as crias de sua égua, e, sobretudo, sou fiel. Portanto, é impossível que nenhuma outra circunstância nos separe, a não ser a pá e a enxada do coveiro”.

Com estas considerações, reúne-se a Confraria para entregar os Troféus Dom Quixote e Sancho Pança às personalidades que se destacaram na defesa da ética, da justiça, dos valores da cidadania, defesa esta que, ante cenário hostil ao culto e preservação destes valores, faz com que se assome a figura do Cavaleiro da Triste Figura, portador da mensagem de purificação do mundo pelo dom de si mesmo, cujas ações frutificam pelo exemplo e pela força espiritual que irradiam, em luta contra o Cavaleiro dos Espelhos.

“Este mundo de hoje reclama a volta de Dom Quixote, pelo sentido de pureza, fidelidade, amor, coragem, renúncia, dignidade e determinação — por sentir que sem eles a sua vida não teria sentido. De todos os lados, sob os mais variados e diversos nomes e as mais contraditórias aparências, o que o homem de nossos dias pede e reclama, o que ansiosamente espera, é o retorno de Dom Quixote”, no dizer de Orpheu Santos Salles.

Homenageiam-se personalidades que se destacam nas mais variadas áreas de atuação humana: nos cenários jurídico, político, empresarial e na seara educacional; todas elas tendo em comum o ideal de darem-se de si para a causa do bem comum. Esta doação de si mesmo em prol dos demais é, na essência, a prática do amor, e o amor é o ponto de partida e o ponto de chegada da razão de existir.

A história da humanidade demonstra claramente que seu desenvolvimento está intimamente ligado ao crédito. Onde há crédito há desenvolvimento. Onde o sistema bancário é sólido, as crises não existem ou são superadas com maior rapidez.

Sem crédito as coisas não andam. O pequeno e o médio produtor ou empresário não conseguem se manter e os empreendedores não conseguem iniciar seus novos negócios

e todo mundo perde. O país não cresce, o dinheiro não circula e não há aumento de renda. É ruim para todos.

É com satisfação que me encontro nesta tarde na sede de um dos maiores bancos da América Latina, que se iniciou, há 67 anos, no interior de São Paulo, na cidade de Marília, e que, através da visão empreendedora de Amador Aguiar, se faz presente em todas as Unidades Federativas do Brasil e em milhares de municípios.

Destaco, dentre os muitos fatos de contribuição para o crescimento do Brasil, algo que me é muito significativo e que ocorreu na década de 40 e inícios dos anos 50. Falo da então ousadia do Bradesco em oferecer crédito aos imigrantes e descendentes de imigrantes japoneses, alemães e italianos, os quais, em consequência da 2ª Guerra Mundial, sofreram restrição de crédito por determinação governamental.

O oferecimento de crédito àquelas famílias transformou suas vidas e proporcionou a geração de riqueza advinda da agricultura, do comércio e da indústria, setores aos quais aqueles empreendedores se dedicaram. Isso foi benéfico para eles e para o Brasil.

Sou testemunha viva dessa realidade. Meu saudoso pai, Ichiro Uyeda, foi cliente do Bradesco nesta ocasião e, como empreendedor que era, foi um dos pioneiros da industrialização no interior paulista, nas cidades de Lins e Guaiçara, onde montou uma fábrica de carroceria de ônibus e também se dedicou ao comércio.

Certamente milhares e milhares de cidadãos têm histórias para contar, de como o crédito transformou suas vidas.

Outro destaque que faço é a respeito do importante papel social do Bradesco através de sua Fundação, contribuindo na educação e formação de milhares de crianças e jovens, dando-lhes um novo futuro, oferecendo-lhes novas perspectivas de vida. Quem põe no bom caminho uma criança está plantando uma semente que transforma e tem influência não somente na vida daquela criança, mas também e com consequência nas gerações futuras, ou seja, nos seus descendentes.

O que relatei acima é o espírito de Dom Quixote, que a Confraria Dom Quixote valoriza e estimula.

O monumento que se erige com a figura de Dom Quixote na sede desta portentosa organização, e que, na realidade, é a família Bradesco, representa a identidade de Amador Aguiar com os seus nobres ideais e sua visão empreendedora. Ele servirá de marco referencial não só para a geração de quantos com ele conviveram, mas também para as futuras gerações, como farol de propagação do idealismo e da confiança na força do trabalho.

No futuro, se alguém por aqui passar, neste belo jardim, e indagar o que significa esse monumento, receberá a resposta de que é uma homenagem em reconhecimento aos serviços prestados para a sociedade brasileira por um homem de nobres ideais, empreendedor, de origem humilde e que não mediu esforços para realizar seus sonhos através do trabalho.

A história de vida de Amador Aguiar é um poderoso exemplo e estímulo para quem tem sonhos. Ele realizou os seus sonhos através do trabalho. Não podemos parar de sonhar, e, de modo algum, devemos desistir de conquistá-los.

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2010 JUNHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 13

Lázaro de Mello Brandão, seu amigo fiel e companheiro de todas as horas, continuador e propulsor das grandes realizações da organização, especialmente na Fundação Bradesco, onde, com profícuo trabalho e ação nas áreas sociais e educacionais, proporcionou ser a Fundação a maior entidade de ensino privada no Brasil. O exemplo de vida, ética e civismo, aliado ao trabalho diuturno, em especial às ações dedicadas à educação, lhe conferem a outorga do troféu Dom Quixote, entregue pelo senador Bernardo Cabral. Acresce ainda que o cidadão Lázaro de Mello Brandão, pelo padrão de dignidade cívica que ostenta, personifica e irradia, se constitui também na própria imagem de uma estátua andante.

Os discursos pronunciados pelo presidente da Confraria Dom Quixote, Bernardo Cabral, e pelo eminente Ministro Massami Uyeda, trazem à minha lembrança, por oportuna e coincidente, uma outra grande personalidade, o Cardeal Carlos Carmelo de Vasconcellos Mota, Arcebispo de São Paulo em 1964, quando, face o seu comprometimento com a democracia e amizade com o Presidente João Goulart, foi forçado a se transferir para o município de Aparecida, onde seu trabalho e sua ação propiciaram a construção da grande catedral erigida nessa cidade.

De uma feita, ao visitá-lo, relatei as amarguras, humilhações e prisões que vinha sofrendo, e trago ainda na memória o consolo e ânimo que deu e transmitiu para enfrentar as vicissitudes por que passava: ‘um homem de dignidade e coragem tem que se portar com ânimo e esperanças, enfrentando adversidades e se conduzindo como uma vela acesa: de pé e iluminando até o fim.’ A lembrança desse magnífico, culto e sábio prelado,

Discurso proferido pelo Editor da revista “Justiça & Cidadania, Orpheu Salles

“Os versos épicos declamados pelo Senador Bernardo Cabral rememoraram os tempos em que a ditadura militar assombrava o País com as atrocidades prati-cadas indistintamente contra aqueles que não se

conformavam com a queda do regime democrático e as prisões indiscriminadas feitas contra a população. Lembraram também o poema que fiz retratando aspectos dolorosos por que passavam os prisioneiros nos porões do navio Raul Soares, fundeado no estuário do porto de Santos, e que serviu de prefácio do livro “Navio-Presídio”, do jornalista Nelson Gato, prisioneiro também torturado na fatídica embarcação. Esses versos trazem hoje, nesta festividade, a lembrança de vultos históricos de passado recente, para vinculá-los com as homenagens que são prestadas pela Confraria Dom Quixote e a revista ‘Justiça & Cidadania’ a duas personalidades que dignificaram e dignificam o gênero humano.

Amador Aguiar, saudoso varão, verdadeiro Bandeirante do século XX, e que em sua honra e memória perpetuamos, inaugurando a estátua de Dom Quixote de La Mancha, cujos dogmas e simbolismo de coragem, ética, dignidade, amor, renúncia e determinação se lhe coadunam pelos mesmos princípios que adotou em vida. E foi com trabalho e obstinação que da cidade de Marília, interior de São Paulo, transformou em 1943 uma pequena Casa Bancária na maior organização financeira do País, constituindo o estabelecimento que denominou Banco Brasileiro de Desconto – Bradesco.

Foto: Alexandre Fatori e Maurino Borges

Orpheu Santos Salles, Editor da revista “Justiça & Cidadania”

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14 JUSTIÇA & CIDADANIA | JUNHO 2010

vem à mente neste momento e solenidade, em que a Confraria Dom Quixote e a direção da revista ‘Justiça & Cidadania’ homenageiam duas personalidades extraordinárias, Amador Aguiar e Lázaro de Mello Brandão, cujo trabalho e ação sublimam pelos resultados e praticidade que identificam e consagram no mundo os grandes homens.

Da citação evocada pelo eminente Cardeal Mota, pode-se dizer que Amador Aguiar foi mais que uma vela; simbolicamente ele foi uma tocha que empunhou durante sua vida, e a manteve bem acesa no alto de uma pira, iluminando e traçando destinos e realizações, alcançando e conseguindo, através do trabalho, perseverança e determinação, as grandes vitórias e progressos que se constituíram na Organização Bradesco.

Amador Aguiar e Lázaro Brandão. Lembro-me de tê-los conhecido há mais de meio século, participando da comitiva do Presidente Getúlio Vargas, que visitava o município de Marília, a instâncias do político Arquimedes Manhães, para conhecer plantações de algodão e de amoreira e uma indústria têxtil de seda, do fazendeiro e industrial Iasutiro Matsubara. Amador Aguiar já se foi, mas deixou plantada não somente em Osasco, mas em todo o Brasil, essas grandes obras que são a Organização Bradesco e a Fundação Bradesco. Aqui neste mesmo salão, no dia 12 de fevereiro de 1990, Lázaro Brandão recebeu de Amador Aguiar o comando da Organização, representada pela presidência do Conselho de Administração, entregando-lhe simbolicamente, a mesma tocha que iluminou sua trajetória à frente do Bradesco, confiando-lhe a mesma missão de continuar o trabalho de engrandecimento da Organização financeira e da Fundação Bradesco, no atendimento social e especialmente no educacional, valendo lembrar esta sua oração cívica: ‘Cremos na educação como fator decisivo do desenvolvimento e instrumento indispensável à realização pessoal do ser humano, através da sua integração na força do trabalho’.

Nestes 20 anos à frente do Conselho de Administração, o Sr. Lázaro de Mello Brandão excedeu em muito a confiança que lhe foi entregue por Amador Aguiar: o Bradesco se tornou a maior organização financeira e a Fundação Bradesco é hoje a maior entidade de ensino privada no Brasil, tendo atendido

desde sua fundação a mais de 2.288 milhões de alunos em seus 40 estabelecimentos de ensino, que somados em outras modalidades de ensino, em cursos presenciais e à distância, ultrapassam 3.452 milhões de atendimentos,

valendo afirmar que somente no ano de 2009 superou o atendimento para 431 mil atendimentos, dos quais 108.825 foram a alunos em suas escolas próprias. Que o simbolismo da tocha, significativa do otimismo, trabalho, realização e determinação, empunhada com galhardia pelo Sr. Lázaro Brandão, continue, com denodo e determinação, a iluminar a grande trajetória da Organização Bradesco.

A Confraria Dom Quixote e a direção da revista ‘Justiça & Cidadania’, com o oferecimento da estátua de Dom Quixote, perpetuando a memória do saudoso e celebrado Amador Aguiar, e outorgando ao eminente cidadão Lazaro de Mello Brandão, o troféu de Dom Quixote, externam os agradecimentos ao Sr. Luiz Carlos Trabuco Cappi, presidente do Banco Bradesco e membro emérito da Confraria Dom Quixote, pela oportunidade concedida para que as justas e devidas homenagens pudessem ser prestadas.

Na solenidade foi exibido o filme da Fundação Bradesco, com aspectos dos serviços sociais e educacionais prestados aos funcionários e seus familiares, com destaque aos ensinos básico e técnico, prestados nas 40 Escolas próprias, aos 180.825 alunos, no ano de 2009.

A estátua de Dom Quixote de La Mancha foi descerrada pelo Sr. Lázaro Brandão, familiares do Sr. Amador Aguiar, Sr. Luiz Carlos Trabuco, Sr. Bernardo Cabral e Sr. Orpheu Salles. A outorga do troféu Dom Quixote ao Sr. Lázaro Brandão foi procedida pelo Sr. Bernardo Cabral.

O Sr. Laudo Natel — que possui entre as suas honrarias ter sido, juntamente com Amador Aguiar e Lázaro Brandão, um dos incentivadores e financiadores da construção do estádio do Morumbi — membro do Conselho de Administração do Bradesco, ex-governador do Estado de São Paulo, companheiro de Amador Aguiar, relembrou passagens da convivência com o saudoso amigo e a sua persistência cotidiana no exercício do trabalho. O Sr. Laudo Natel, encerrando a solenidade, discursou o Sr. Lázaro de Mello Brandão, Presidente do Conselho de Administração do Bradesco.

Da esquerda: Luiz Carlos Trabuco Cappi, Diretor-Presidente do Bradesco; Bernardo Cabral, Chanceler da Confraria Dom Quixote; Lázaro de Mello Brandão, Presidente do Conselho de Administração do Bradesco; Lina Aguiar Alvarez, Filha do Sr. Amador Aguiar, Fundador do Bradesco; Orpheu Santos Salles, Presidente da Confraria Dom Quixote De La Mancha; Denise Aguiar Alvarez, Membro do Conselho de Administração e Diretora da Fundação Bradesco

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2010 JUNHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 15

Discurso proferido pelo Presidente do Conselho de Administração do Bradesco, Sr. Lázaro Brandão

“Caríssimos membros da Confraria Dom Quixote e revista ‘Justiça & Cidadania’, autoridades presentes, senhoras e senhores,

Em nome da Organização Bradesco, agradeço à Confraria pelo honroso troféu Dom Quixote a mim conferido, e que muito me envaidece. Os valores que se cultuam nesta Confraria são dignos, perenes e imprescindíveis, como a crença na humanidade, na coragem, na justiça e na lealdade.

Ao longo dos anos, partilhei da frutífera convivência com Amador Aguiar, um homem de ação e decisão. Com otimismo e determinação, concretizou seus ideais, acreditou na vocação brasileira para o progresso. O Bradesco e a Fundação Bradesco são resultados de sua visão positiva da vida.

Neste momento em que a Confraria Dom Quixote e a Revista “Justiça & Cidadania” o homenageiam, invocamos sua ação como um paradigma, uma referência.

A presença aqui, hoje, é um ato de generosidade desta Confraria, que estará sempre em minha memória.

Muito obrigado!

Foto: Alexandre Fatori e Maurino Borges

Lázaro Brandão, Presidente do Conselho de Administração do Bradesco

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16 JUSTIÇA & CIDADANIA | MAIO 2010

BErnArDO CABrAL “UMA HISTóRIA DE HEROÍSMO”

brasileiro, apaixonado por ideais, e um exemplo de combatividade e destemor na defesa dos princípios, principalmente quando ameaçados pelo arbítrio.

Julgo, todavia, prudente e oportuno falar brevemente a respeito das peculiaridades da nossa Academia.

Poder-se-ia perguntar o porquê de mais uma Academia, em especial de Direito. Ocorre que, não obstante o Direito seja um valioso instrumento civilizatório, no sentido de regular as relações entre indivíduos, grupos e nações, ele não é, por si só, tão autônomo a ponto de o intérprete desconsiderar outras áreas do saber, em particular a Economia.

Foi dentro desta perspectiva que notáveis juristas e economistas, brasileiros e estrangeiros, resolveram agregar ao Direito o pensamento econômico em uma única instituição.

Mas não fica aqui a peculiaridade da Academia. Em um mundo globalizado, tanto o Direito como a Economia deixaram de ser tratados meramente no plano interno e da soberania nacional. Daí porque, nos congressos e estudos que produzimos, está sempre presente esse novo mundo envolto por tratados internacionais e economias internacionalizadas.

Quanto à representatividade do nosso sodalício, basta consultar a lista de sua composição, toda ela preenchida por personalidades de grande prestígio e de notável saber jurídico e econômico.

Meu caro Bernardo, pelos seus inegáveis méritos, creio que a melhor homenagem que os Acadêmicos poderiam lhe prestar é dar-lhe a merecida posse como imortal, na vaga aberta com o falecimento do inesquecível Benedicto Ferri de Barros.

Parabéns, do sempre amigo e permanente admirador, Ney Prado

O Chanceler da Confraria Dom Quixote, Bernardo Cabral, é o mais novo imortal da Academia Internacional de Direito e Economia. Ele tomou posse no último dia 10 de maio, em solenidade realizada no Rio de Janeiro. Esta

edição traz, além do agradecimento do homenageado e as boas-vindas do imortal Ernane Galvêas, o discurso proferido por Ney Prado, Presidente da Academia, que destacou a “inteligência, a vasta cultura geral e alentada produção jurídica” do jurista. “A Academia Internacional de Direito e Economia sente-se, portanto, enaltecida em receber em seus quadros um talentoso brasileiro, apaixonado por ideais, e um exemplo de combatividade e destemor na defesa dos princípios, principalmente quando ameaçados pelo arbítrio”, disse Prado.

Discurso proferido por Ney Prado, Presidente da Academia Internacional de Direito e Economia

“Em uma solenidade como a presente há que se seguir uma liturgia protocolar. A rigor, não cabe a mim, nesta oportunidade, prestar homenagem ao novo titular da Academia a qual presido. Essa tarefa está a cargo do

Ministro e também Acadêmico, Ernane Galvêas.Desejo, no entanto, tecer breve, mas sincero, elogio à figura

de Bernardo Cabral, e cumprimentá-lo enfaticamente por mais esta conquista em sua já rica biografia.

O brilho de sua inteligência, a vasta cultura geral, sua alentada produção jurídica, a notória competência profissional, comprovada no exercício da Advocacia, do Magistério, da Política, e, em especial, na relatoria do texto de nossa Constituição atual o tornam merecedor do honroso título de Membro Efetivo outorgado pela Academia.

A Academia Internacional de Direito e Economia sente-se, portanto, enaltecida em receber em seus quadros um talentoso

Da Redação

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2010 JUNHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 17

Discurso proferido por Ernane Galvêas, Consultor Econômico da Confederação Nacional do Comércio

“Meu querido e fraternal amigo Bernardo Cabral, certamente poderei encontrar razões plenas que justifiquem o alto privilégio e a subida honra que me conferiram os companheiros da Diretoria e do Conselho

para, em nome de todos, fazer-lhe esta saudação de boas-vindas ao quadro de nossa Academia Internacional de Direito e Economia.

Essas razões se assentam, claramente, na sólida e fraternal amizade que nos une e que construímos e cultivamos ao longo do tempo, mais intensamente nos últimos sete anos em que vimos trabalhando, lado a lado, diariamente, na Presidência da CNC, sob o esclarecido comando de nosso amigo comum, o Presidente Antonio Oliveira Santos.

O currículo de Bernardo Cabral é uma odisseia, uma história de heroísmo inserida brilhantemente na História do Brasil, contando coisas da vida de um verdadeiro Ulisses, que venceu na Amazônia, sua terra natal, ganhou todas as batalhas em Brasília e chegou vitorioso ao Rio de Janeiro, onde vive cercado pelas legiões de amigos e admiradores, daqui do Rio, de São Paulo e de todos os recantos do Brasil, uma constelação de notáveis como ele, Bernardo, que se reúnem hoje nesta honrosa Casa do Comércio, para homenageá-lo.

“Efusivas congratulações por seu ingresso

na Academia Internacional de Direito e

Economia, que, certamente, se enriquecerá

com o brilho de sua cultura e vivência de

uma carreira pontuada de sucessivos e

continuados êxitos.

Muito cordialmente,

Ministro João Oreste Dalazen

Vice-Presidente do Tribunal Superior do Trabalho”

Foto: Christina Bocayuva

Ney Prado, Presidente da Academia Internacional de Direito e Economia; Antonio Oliveira Santos, Presidente da Confederação Nacional do Comércio; e Ernane Galvêas, Consultor Econômico da Confederação Nacional do Comércio

Foto: Christina Bocayuva

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18 JUSTIÇA & CIDADANIA | JUNHO 2010

Bernardo Cabral não é apenas um amigo leal, sincero, dedicado e prestativo. Igual força de sua inteligência e personalidade o acompanha desde os bancos escolares, desde a infância e a juventude em sua Manaus querida. Aluno exemplar, desde cedo destacou-se nos estudos, até chegar à Universidade Federal do Amazonas, onde, como primeiro aluno entre colegas brilhantes, recebeu, em 1954, o merecido diploma de bacharel em Direito. Era a porta que se abria para o Brasil, um salto para o mundo, para uma carreira profissional vitoriosa e gloriosa.

Deputado Estadual em 1962, ingressou na carreira política pelas razões do Destino, como a provar que a vida pública também pode ser exercida com altivez, dignidade e elevado espírito público, para exemplo de seus pares e compatriotas.

Bernardo Cabral foi cassado durante a contra Revolução de 1964, mas sempre insisto em dizer que não foram os desígnios da Revolução nem o destempero de alguns militares radicais que o levaram à cassação, e sim mesquinharias políticas regionais, de adversários inescrupulosos, que não foram capazes de abatê-lo, pois apenas adiaram a gloriosa carreira que a Vida já lhe havia reservado desde o berço.

Em 1981, foi eleito Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, onde exerceu uma gestão única, sem par. Não é preciso mencionar os feitos de nosso herói à frente do órgão máximo dos advogados do Brasil, basta saber das legiões de juristas, de promotores, desembargadores de todos os rincões

Acadêmico Bernardo Cabral

“Caro Ministro,

Foi com grande satisfação que soube da

sua eleição e posse na prestigiosa Academia

Internacional de Direito e Economia, na qual

figuram tantos nomes ilustres. Ao felicitá-lo

pela nomeação, aproveito a oportunidade para

transmitir-lhe os meus mais sinceros votos de

sucesso nessa nova atividade, que se acrescenta a

um curriculum pleno de grandes realizações.

Afetuoso abraço,

Ruy Nogueira

Embaixador “

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“Impossibilitado de comparecer em virtude de uma viagem, agradeço

convite ao tempo que envio cumprimentos posse de Vossa Excelência

na Academia Internacional de Direito e Economia.

Atenciosamente,

Ministro Cesar Asfor Rocha

Presidente do Superior Tribunal de Justiça”

2010 MAIO | JUSTIÇA & CIDADANIA 19

do País, que permanentemente rendem suas homenagens ao Presidente ilustre.

Em 1987, numa disputa memorável, que honra e dignifica sua fé de ofício, Bernardo Cabral, já então eleito Senador da República pelo Amazonas, foi escolhido Relator do Projeto da Constituição da República Brasileira, que viria à luz em outubro de 1988. Cada capítulo da nossa atual Carta Magna é uma história de luta, embate, convicções, ideologias e patriotismo. Naqueles dias tumultuados de retorno aos quadros da democracia sem amarras, foi pelas mãos de Bernardo Cabral que se escreveram páginas lapidares, que se mantêm de pé nesses quase 25 anos e que respondem, ainda hoje, pela garantia e segurança de um processo eleitoral livre e ordeiro, que caminha sem tropeços para as próximas eleições democráticas de outubro.

O Presidente Lula declarou, em uma oportunidade, que deve a sua eleição para a Presidência da República à plena liberdade de imprensa, liberdade essa que poderia não existir, se não tivesse sido expressamente inserida na Constituição Federal pelas mãos de Bernardo Cabral.

O Professor Ives Gandra arrematou, em outra ocasião: “Graças à sua excepcional capacidade de articulação, aliada à de Ulysses Guimarães, é que hoje temos um texto constitucional de excepcional qualidade no cenário internacional. Pode-se dizer que a lei suprema brasileira é, fundamentalmente, fruto do trabalho de Bernardo e Ulysses”.

Ao entregar-lhe o primeiro exemplar da Constituição de 88, o lendário Deputado Ulysses Guimarães, um outro Ulisses, redigiu a seguinte dedicatória: “Ao Bernardo Cabral, relator histórico da Constituição de 1988, que tem a marca do seu talento e da sua cultura, o abraço fraterno do amigo e admirador”.

Em maio de 2005, por ocasião da homenagem que lhe rendeu o Conselho Superior da UNIRIO – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, conferindo-lhe o diploma de Doutor Honoris Causa, disse o professor Aurélio Wander Bastos, aqui presente: “A confiança na Justiça, a certeza compreensiva do papel dos juízes no encaminhamento de dissídios e conflitos humanos, permitiu que o Senador Bernardo Cabral fizesse da Reforma do Poder Judiciário o projeto central das suas esperanças, dos tantos anos dedicados ao Senado Federal e ao Congresso Nacional”.

Presente àquela solenidade, concluiu o nosso querido amigo comum, Orpheu Santos Salles, competente e criterioso Editor da Revista “Justiça & Cidadania”: “Bernardo Cabral tem seu espaço na História do Brasil, pela grandeza e competência com que exerceu os cargos de Deputado, Senador, Presidente da OAB, Ministro da Justiça e muitos outros que assinalaram sua destacada atuação como homem público de tantos serviços prestados ao seu Estado e ao seu País”.

Bernardo Cabral é, sem dúvida, um dos mais festejados e consagrados profissionais do Direito, no Brasil e no exterior. Não vou estender-me por uma odisseia consagradora de

Foto: Christina Bocayuva

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sua vida exemplar. Mas não me furto de lembrar o que, em março de 2007, ao outorgar-lhe o honroso título de Doutor Honoris Causa de sua querida Universidade Federal do Amazonas, disse o Professor Clynio de Araújo Brandão: “Diante de todo o País, vosso trabalho na Constituinte, Doutor Bernardo, foi consagração da inteligência e vitória do espírito. Inteligência que se esmerou na missão filosófico-científica de fazer coincidir a verdade e o bem na justiça constitucional”.

E, continuando: “Eis aqui entre nós, senhores, o advogado da redemo cratização e o grande constituinte de 1988. Eis o defensor do ensino jurídico. Eis aquele que já foi chamado de patrono das águas. Eis aquele que completou o nosso próprio nome: Universidade Federal do Amazonas. Eis um homem integral: seus talentos se doaram às instituições, ao povo, à natureza, desenvolvendo em torno de seus contemporâneos um círculo de completa honra”.

Presente àquela solenidade na UFAM, em 27/3/2009, no mesmo dia em que Bernardo Cabral completava seu 77º aniversário, seu querido amigo e irmão Claudio Chaves, nosso amigo comum, ressaltou que: “Como prova de gratidão, a UFAM lhe outorga o seu maior galardão, o título de Doutor Honoris Causa, no mais justo reconhecimento da comunidade universitária amazonense”.

E, por já ter citado Orpheu Salles, vale dizer também que Bernardo Cabral, Chanceler da Confraria Dom Quixote, é um Dom Quixote brasileiro. Sonhador, idealista, com o espírito

e a imaginação voltados para a Nação brasileira, para o povo do Brasil. Mas Bernardo Cabral é um Dom Quixote com os pés plantados na realidade nacional. Que sonha e realiza. Assim tem sido toda sua vida e sua fulgurante carreira profissional.

A pátria brasileira tem todo um acervo de conquistas que deve a Bernardo Cabral. E nós, brasileiros, temos a registrar o nosso respeito pelo seu trabalho patriótico, assim como nós, seus amigos, exultamos pelo privilégio e pela glória de partilharmos de sua amizade.

Esta Casa do Comércio, a CNC e todo o complexo sindical empresarial do Brasil, especialmente o Sistema S, têm uma dívida de gratidão para com Bernardo Cabral, pelo que ele registrou nos artigos 8º e 240 da Constituição da República, disciplinando a livre associação profissional e sindical e consagrando a natureza privada das entidades de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical.

É evidente que o sideral currículo de Bernardo Cabral não cabe nesta modesta saudação, que me tocou fazer, nesta oportunidade. Meu caro Bernardo, como costumamos dizer, não é por vaidade profissional, que não tenho em demasia, mas devo registrar que me sinto orgulhoso e possuído da maior alegria e satisfação por ter sido escolhido pelos companheiros do Conselho para lhe fazer esta saudação e lhe dar as boas-vindas à nossa Academia Internacional de Direito e Economia.

Seja bem-vindo, Bernardo Cabral.

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Discurso proferido por Bernardo Cabral, Consultor da Confederação Nacional do Comércio

“O conceito humanístico tem prevalecido de que nada se busca no território brumoso do futuro senão através do gênio e da compreensão. E, para tanto, é necessário voltar ao passado, a fim de pôr em destaque que, desde

a Academia de Platão, o imperativo de semear ideias ganhou a consistência de um modo de vida que, após o Renascimento, acabou por detonar o processo de libertação da inteligência.

A partir daí, os Centros Acadêmicos consagram a inteligência como dote supremo da vida, sem que as adjacências da mediocridade insidiosa e iníqua conturbem o perfil límpido da estética e da cultura.

Por essa razão, participando, agora, deste templo de cultura, as emoções me embargam por saber que vim situar-me entre ilustres expoentes do Direito e da Economia, entendendo que os meus destacados pares, em decisão espontânea e unânime, quiseram prestar-me um ato de homenagem, expressivo e consagrador, embora timbrado por uma indisfarçada generosidade.

Venho de longe... do meu imenso Amazonas... Manaus foi meu berço, onde vivi minha infância e mocidade, a quem o sonho e a esperança floriram, de modo a poder eu arrostar os percalços que se ocultaram e ficaram à espreita nas grutas do tempo.

E foi, sem dúvida, a expressão telúrica da Amazônia — fascinante, imensa, montando na sinfonia do seu mapa geográfico o mais belo bailado orográfico do mundo — que teria de induzir-me aos ideais mais altos. E, assim, o menino, dentro de uma ilha humana, ainda minguada, despertou seu espírito para que nele crescessem sentimentos mais fortes a fim de poder, um dia, defender a incolumidade da gigantesca planície Rio-Mar.

À medida que se ampliavam esses sentimentos, deixei de lado — com natural desprezo — os eventuais desencantos e me fixei nos sorrisos que adornaram a minha casa de criança, como se eu tivesse de ser um andarilho da história.

Aprendi muito com Cervantes. Ele, imperecível monumento da Hispanidade, um dia voltara a Madri com as feridas de Lepanto e as angústias de um mundo tragediado. E ele mesmo, no seu “Dom Quixote de La Mancha”, tentara diluir a dúvida pertinaz de Sancho Pança, o leal Amigo e fiel Escudeiro, que encontrara um elmo e acreditava ser do rei mouro, Mambrino. E a versão clarividente de Dom Quixote é que o curioso objeto não era o elmo do monarca, mas a bacia de algum Fígaro. A transcendente intervenção sardônica de Dom Quixote visava apenas reduzir a uma dimensão exata a figura de um potentado efêmero, tão fugaz como as orgias de Paço.

Evidentemente, algo de sublime sobrepaira à veleidade dos espíritos vulgares, incapazes de ouvir o sussurro mágico da eternidade. Quantos milênios foram esgotados e quantas tempestades desfizeram a frivolidade ou arruinaram as estruturas de um elitismo artificial e insolente? E, então, por que resiste o poder da inteligência, brilhando em seu universo?

Victor Hugo afirmava que “Paris é a praça do pensamento humano”, destacando sua coerência por saber o autor de “Os Miseráveis” que a sede mundial da cultura indicava traços de

“Prezado Ministro Bernardo Cabral,

parabenizo caro Ministro pela posse junto

à Academia Internacional de Direito e

Economia. Agradeço o convite e lamento

não poder comparecer ao evento, em face de

compromissos assumidos anteriormente.

Ubiratan Aguiar

Presidente do Tribunal de Contas da União”

Acadêmico Bernardo Cabral

Foto: Christina Bocayuva

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22 JUSTIÇA & CIDADANIA | JUNHO 2010

compreensão diante de tantas instituições de governo que se aviltaram nas ceias bestiais do obscurantismo, impondo a morte civil dos talentos ou encarcerando artistas ou sábios.

Por isso mesmo, não reluto nem me omito do dever de exaltar esta respeitável e respeitada Academia Internacional de Direito e Economia pelo senso de equilíbrio e pela superioridade ética de abrir seu pórtico glorioso a um homem público, que, em determinado ciclo da vida republicana, fora parlamentar e depois teve cassado seu mandato, suspensos os direitos políticos por um decênio e interrompida sua carreira no Magistério, em face de um édito arbitrário e incompatível com a meridiana dignidade dos direitos humanos.

Cultor das letras da infância, postulante do Jornalismo na juventude, integrante da oficina cultural do colégio, jamais me afastei das lides do espírito. Mais tarde, advogado e representante do povo, inspirei-me na essência filosófica da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em sintonia plena com a alma da civilização contemporânea, que recusa e condena a subordinação da cidadania aos delírios de todas as tipicidades do absolutismo.

Membro efetivo — a partir deste instante — desta Academia, faço-me dignitário entre personalidades tão ilustres, que souberam derramar clarões de sabedoria sobre este recinto, quando a sua própria tribuna se converte em púlpito de místicos predestinados.

Curvo-me, por essa razão, diante da memória de Benedicto Ferri de Barros, titular da Cadeira nº 12, sem saber por onde devo começar a traçar-lhe o perfil, o que me leva a impetrar perante esta Augusta Assembleia uma ordem de bondade e tolerância para que possa, aqui e acolá, pinçar traços da vida daquele que foi professor, jornalista, poeta, ensaísta, polímata e empresário.

Nascido em Formoso, São José do Barreiro, SP (pai inspetor escolar e mãe professora), em 9 de setembro de 1920, faleceu na cidade de São Paulo aos 88 anos, no dia 12 de setembro de 2009, deixando do casamento — que festejou com Bodas de Ouro — três filhos, oito netos e três bisnetos. Por oportuno, registro a presença, nesta solenidade, do seu filho, Prof. Dr. Luiz Ferri de Barros, Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo e Administrador de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas.

Benedicto Ferri de Barros era Bacharel e Licenciado pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de

São Paulo, e também em Ciências Sociais, com estágios de especialização em Finanças e Mercado de Capitais em várias instituições norte-americanas. Aliás, quando a USP estava se estruturando, seus professores eram alemães, italianos, franceses e cada um proferia as suas aulas no respectivo idioma pátrio. O que resultou na sua formação em alemão, francês e italiano.

Atividade Intelectual Lecionou Política e Economia na USP e Mercado de Capitais

na Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas. Manteve coluna semanal em “O Estado de São Paulo” e no “Jornal da Tarde” e compareceu em seus suplementos literários por mais de 50 anos, publicando mais de 1.500 trabalhos relacionados à Literatura, Antropologia, Sociologia, Economia e Política.

Integrou o Simpósio sobre “O Desenvolvimento Econômico da Europa no Pós-Guerra”, promovido em Bad Godesberg pela Friedrich Nauman Stiftung.

Especializou-se em História e Cultura Japonesa, e em virtude de publicações nessa área foi correspondente cultural para o Brasil da “The Japan Foundation”, em 1987, expositor no Simpósio sobre “Tradução e Edição de Obras Japonesas no Brasil”, São Paulo (1989), e integrante de outros simpósios sobre Cultura Japonesa. Recebeu o Prêmio de Jornalismo de 1988, concedido pela Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa (1989) e em 1988 visitou o Japão a convite do governo daquele país. Nessa viagem recebeu a chave de Osaka, concedida pelo governador da Província de Hyogo, e foi agraciado com o título de “City Friendship Fellow”, pela Prefeitura da cidade de Utsunomiya (Tochigi).

Fundador da Revista “Essência” (poesia), com Geraldo Vidigal, Betty Vidigal, Nogueira Moutinho e Eros Roberto Grau (1983); membro e Diretor Secretário do Clube de Poesia de São Paulo (1992); autor, entre outras, das seguintes obras: “O Mercado de Capitais dos Estados Unidos – Organizações e seu Funcionamento” (trad.); “Mercado de Capitais e ABC de Investimentos”; “Mudanças Econômicas Mundiais e a Crise Brasileira”; “Japão – A harmonia dos contrários”; “Viagem ao Japão: Rapsódia de Ouro Preto” (poesia); “Porque sou um liberal” (in “A façanha da liberdade”).

Possui 15 obras inéditas, de histórias infantis, poesia, contos, novelas, ensaios de Antropologia, Política e Economia: “O fio e o furo” (contos); “Zig-Zag – o bichinho procurador”; “Dom Cri-cri

“Impossibilitado de participar da cerimônia de posse na Academia Internacional de Direito e

Economia, em virtude de compromissos assumidos para a mesma data, agradeço o envio de convite,

ao tempo em que envio meus cordiais cumprimentos parabenizando-o por mais esta conquista.

Um forte abraço,

José Gomes Temporão

Ministro de Estado de Saúde”

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2010 JUNHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 23

e outras histórias” (infanto-juvenil); “Companheiro de lazer”; “A mentira” (teatro); “O viandante e sua viagem” (poesia – 5 vols.); “Poemas ingleses e americanos” (trad. 3 vols.); “Poesia, poetas e poemas” (ensaios, artigos e crítica); “O Liberalismo: Estudos humanistas: Que Brasil é este? – Lord Acton”.

Atividade Empresarial 48 anos de atuação na área financeira, imobiliária e na

montagem dos mais variados projetos empresariais. Na área financeira, organizou, na década de 50, um dos primeiros fundos de investimentos do País. Administrou o “underwriting” da Refinaria de Petróleo União S.A. Colaborou ativamente na reestruturação da Bolsa de Valores de São Paulo. Promoveu a abertura de capital de várias empresas. Deu cursos sobre Mercado de Capitais em todo o País, preparando grande número dos atuais diretores e executivos do setor.

Na área imobiliária, incorporou empreendimentos que produziram mais de 5.000 unidades imobiliárias. Em associação, participou da realização do Edifício e Galeria Califórnia, Edifício Nações Unidas, Copan. Foi um dos idealizadores do plano condomínio a preço de custo na década de 50 e o criador dos grupos fechados de empreendimentos na década de 70. Incorporou L’Habitare, Transurb, entre dezenas de outros empreendimentos. Foi pioneiro na industrialização da laranja e na produção do leite homegeneizado e esterilizado.

Foi membro do Centro de Estudos Políticos e Sociais da Associação Comercial de São Paulo; fundador e primeiro Presidente da Anaai – Associação Nacional dos Agentes Autônomos de Investimentos; membro da Abamec – Associação Brasileira dos Analistas do Mercado de Capitais; membro do Conselho Consultivo do Instituto Liberal de São Paulo.

Quando me encontrava a preparar este discurso, queria, a todo custo, resumir a grandeza de Benedicto Ferri de Barros com algo que ele próprio dissera a seu respeito, a fim de que este retrato pobre, esmaecido mais pela falta de aptidão do pintor do que pelo colorido das tintas que usa, não ficasse muito aquém da consagradora atuação do patrono da Cadeira nº 12.

Deixarei no silêncio das suas próprias palavras o clamor de tudo o que não poderia eu exprimir a seu respeito. Reproduzo-as:

Consegui escapar na mocidade ao niilismo do começo do século porque vivi minha infância no seio de uma família organizada e feliz, numa pequena comunidade, em contato constante com a natureza; escapei da anarquia na maturidade, por haver adquirido na adolescência e mocidade a experiência da Literatura e da História; a anomia não me pegou na velhice porque a essa altura já havia alcançado uma filosofia pessoal, produto de uma vida variada e intensa e de uma reflexão crítica continuada, que me permitiram recuperar os valores humanos fundamentais que induzem o homem e sua civilização a superar suas contingências, suas dúvidas, seus erros e seus limites. Sou um crente da verdade, da beleza e da bondade.

Senhores Acadêmicos, assinalava eu, ao começo desta oração, a decisão espontânea e unânime que proferistes, atendendo à sugestão desses três excepcionais amigos: Ernane Galvêas,

Ives Gandra da Silva Martins e Ney Prado, confirmada, a seguir, pela comunicação oficial desta Augusta Presidência.

Agora, em caráter solene e oficial, quero agradecer as palavras do Acadêmico Ernane Galvêas, com quem convivo, diária e ininterruptamente, ao longo destes últimos quase oito anos, e, em nenhum momento, jamais vislumbrei nos seus lábios o sorriso rasteiro da subserviência.

Autor de uma dezena de livros, de inúmeros artigos e estudos de Economia e Política Econômica, em jornais, revistas nacionais e estrangeiras, além de advogado, Ernane Galvêas tem uma formação acadêmica notável, que se iniciou no Brasil, continuou no México, se ampliou nos Estados Unidos da América do Norte, tendo se consagrado profissionalmente na Sumoc, hoje extinta; como Diretor do Banco do Brasil – Cacex –, onde ingressou muito jovem, em 1942; na Presidência do Banco Central; na Presidência da Aracruz Celulose; como Ministro de Estado da Fazenda; e, atualmente, como Consultor Econômico da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo.

Sua biografia comprova que passou a vida dedicado aos estudos e ajudando o Brasil a resguardar sua soberania, sem concessões e sem ser prosélito de qualquer ideologia extremada.

Por essa razão, meu caro Acadêmico Ernane Galvêas — de quem me honro de ser Amigo —, estejais certo de que os homens de bem — como é o vosso caso — quando julgam o que foi a sua vida ao longo da existência, pagam o tributo alto da sua responsabilidade, mas guardam consigo, como me ensinava meu saudoso Pai, as cicatrizes orgulhosas do dever cumprido.

Portanto, ao deixar Galvêas há pouco esta tribuna — eis que o Presidente Ney Prado, fazendo valer a sua autoridade, entregou a ele, para gáudio meu, o cometimento da saudação —, com o fulgor do seu verbo e a qualidade de exímio expositor, conseguiu me absolver, por antecipação, do pecado deste discurso.

Resta-me, portanto, com as escusas mais altiloquentes, concluir. Mas não quero fazê-lo sem registrar meus sensibilizados agradecimentos ao Presidente da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, Doutor Antonio Oliveira Santos, meu querido Amigo — Professor Catedrático durante tantos da Faculdade de Engenharia do Estado do Espírito Santo —, por ter proporcionado nesta Sede tal confraternização e por ter orientado sua Chefe de Gabinete, Doutora Lenoura Schmidt, que a ela desse todo o brilho que a Academia merece.

Ainda, por oportuno, peço a todos que me permitam partilhar com Zuleide e Júlio, esposa e filho, e com os netos Márcia, Ana Carolina, Júlio e Gabriela, e a bisneta Maria Júlia, a incomensurá-vel alegria de integrar uma Academia que tem sabido zelar pelas prerrogativas qualificadas e fascinantes do Direito e da Econo-mia, como poderoso instrumento antropocultural.

Por fim, colocar no mais alto dos relevos que muito me honra pertencer à Academia cujo Presidente é Ney Prado e que tem como Presidente de Honra Ives Gandra da Silva Martins, ambos professores de renome internacional. Orgulha-me ser um de seus membros, dentre tantos notáveis, pois estou certo de que tudo o que se fizer neste Cenáculo terá o eco consagrador na voz dos nossos pósteros.

Eu vos saúdo.

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O FICHA LIMpA

Mozart Valadares PiresJuiz de Direito do Estado de PernambucoPresidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)

Foto: U. Dettmar/SCO/STF

Já se vão vinte e cinco anos desde que a população brasileira jogou a última pá de cal sobre o túmulo da ditadura militar. Da luta pelas Diretas e Constituinte aos dias de hoje, vamos moldando, paulatinamente, a

democracia almejada. Não é um processo fácil. E a campanha pela aprovação do projeto de lei Ficha Limpa é um exemplo das dificuldades que a sociedade enfrenta ao propor mudanças que julga fundamentais para a consolidação do processo democrático. Se não fosse a forte mobilização popular, o projeto talvez tivesse sucumbido. Mas o resultado obtido na Câmara e no Senado deve ser comemorado, pois reafirma que os parlamentares respondem positivamente quando pressionados pela sociedade.

Ninguém pode negar que houve um avanço considerável, apesar das mudanças no texto proposto originalmente, assinado por quase dois milhões de eleitores. As mudanças foram pontuais e preservam direitos constitucionais. Não houve alteração no mérito e, por isso, o espírito do texto original está preservado, o que configura uma vitória importante da sociedade.

O projeto aprovado é um golpe na impunidade e fortalece a democracia brasileira, que ainda está sendo construída. A lei não tem objetivo de punir quem foi corrupto no passado, já foi condenado com sentenças transitadas em julgado e cumpridas. Se os culpados obedeceram ao que a legislação à época determinava, como uma lei agora pode aplicar outra pena a quem já cumpriu a sentença? O espírito da sociedade não pode ser de revanchismo, mas sim de vanguarda. A partir de agora os costumes vão mudar. Ninguém vai mais se utilizar do cargo eletivo, de um cargo público conseguido através de um voto popular, para enriquecimento ilícito, para malversação do dinheiro público. As pessoas vão ter mais zelo no exercício da atividade pública.

Além disso, o país obteve um ganho político extraordinário, que foi a reafirmação da força da mobilização popular para o avanço da democracia e saneamento dos territórios ocupados por agentes públicos, eleitos ou não. A reafirmação desta força como elemento fundamental de mudanças evoca, uma vez mais,

a necessidade de as entidades que representam os diversos segmentos da sociedade assumirem o compromisso de levar adiante as lutas por uma sociedade melhor.

A Associação dos Magistrados Brasileiros tem feito a sua parte. Em 2006, lançou as campanhas contra a Corrupção e pela Ética na Política e Eleições Limpas, ambas de caráter permanente, que propõem, entre outras coisas, a criação de varas especializadas no julgamento de casos de corrupção. E, em 2008, prestou um grande serviço à nação ao disponibilizar em seu site a lista dos candidatos a prefeito e vice-prefeito que respondiam a processos. Na primeira semana de divulgação dos dados, a página da AMB permaneceu congestionada devido ao número de acessos. Durante o período de campanha eleitoral, jornais de todo o país usaram a lista para produzir cerca de sete mil matérias.

Ainda em 2008, a AMB propôs ao Supremo Tribunal Federal a reinterpretação da legislação eleitoral, por meio de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), a fim de tornar autoaplicável o § 9º, art. 14, da Constituição. Esse parágrafo afirma que a vida pregressa do candidato tem que ser considerada fator de inelegibilidade para proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato. O preceito está lá, mas nunca foi cumprido porque o Congresso não aprovou uma lei complementar regulamentando sua aplicação. No entendimento da AMB, a reinterpretação permitiria ao juiz eleitoral impugnar candidatos réus em processos por improbidade administrativa ou criminal.

Seria um avanço, mas prevaleceu no Supremo o entendimento de que aos candidatos cujos processos não haviam transitado em julgado — ou seja, confirmado em última instância, sem possibilidade de novos recursos — caberia sempre a presunção de inocência. O que é um equívoco, pois na Justiça Eleitoral o preceito que deve prevalecer é o da conduta ilibada. Isso porque o voto é um cheque em branco que o eleitor passa ao político. E ninguém é obrigado a assumir esse risco frente a alguém que já deu sinais de desonestidade. Esse ponto de vista, originado na ação da AMB, foi confirmado com a aprovação da lei Ficha Limpa.

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O preceito está lá, mas nunca foi cumprido porque o Congresso não aprovou

uma lei complementar regulamentando sua

aplicação. No entendimento da AMB, a reinterpretação permitiria ao juiz eleitoral

impugnar candidatos réus em processos por improbidade administrativa ou criminal.

As ações da AMB foram executadas concomitantes às promovidas pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), do qual faz parte junto com outras mais de 40 entidades. Seriam ações inócuas se não fossem precedidas pelo anseio da população em mudar a situação do País, tomado por ondas frequentes de denúncias de corrupção. A Magistratura representada pela AMB deu sua parcela de contribuição para a aprovação do projeto de lei popular, mas tem consciência de que a vitória pertence à sociedade, que se uniu em torno de uma proposta relevante para a democracia brasileira. Cabe agora ao Presidente da República a sanção rápida da lei, para que ela possa vigorar ainda este ano. É provável que as discussões em torno do tema — se a legislação vale para as eleições de outubro e se é ou não retroativa — parem no Supremo Tribunal Federal. Mas só a aprovação já foi um avanço considerável, é preciso reconhecer. A mobilização em torno do Ficha Limpa foi o exemplo de qual é o papel da sociedade brasileira na atividade política. Porque quando a sociedade se mobiliza, o Congresso dá uma resposta positiva. Foi assim no caso das Diretas Já, no impeachment de Fernando Collor de Mello e agora na aprovação do Ficha Limpa. Agora, efetivado o primeiro passo, a sociedade e suas entidades organizadas, entre elas a AMB, estarão em campo para garantir o cumprimento do texto aprovado.

Foto: Maiesse Gram

acho

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MOnOpÓLIO E OS SERVIÇOS PÚblICOS

Em magnífica palestra proferida no Seminário “Ques-tões Jurídicas Relevantes no Transporte Coletivo”, realizado na cidade de Campos do Jordão (SP), no ano de 2007, o Procurador Marcos Juruena destacou,

com proficiência e singularidade, que “toda a questão que envolve uma concessão e uma permissão envolve uma relação com o mercado”1.

Há, consoante enfatizou o ilustre Professor, problemas que causam instabilidades às delegações (concessões e permissões), como, v.g., quem é o poder concedente nas regiões metropolitanas; qual o entendimento prevalente acerca da regra do art. 2º, da chamada “lei das concessões e permissões” (nº 8.987/95), se, efetivamente, somente contemplaria com a qualidade jurídica de poder concedente as pessoas políticas (União, Estado, Distrito Federal e Municípios) e não outros entes ou órgãos; qual o sentido em se declarar a inconstitucionalidade de dispositivos legais que admitem a transferência de concessão ou de permissão, uma vez que não teria sido a vencedora do certame licitatório, quando se sabe que a regra do art. 175 atenuou sobremaneira a ideia de execução personalíssima dos contratos de concessão, ao exigir que o contrato fosse executado por pessoas jurídicas, de modo que a ideia no âmbito da reforma do Estado é viabilizar o investimento privado.

Para que o investimento privado ocorra onde haja recursos privados disponíveis, é preciso tratar a concessão como um negócio que tenha liquidez, a permitir a transferência do fundo de comércio, observado o padrão de qualidade que tenha sido fixado na licitação2.

É, nesse mesmo contexto, que exsurge o tema ora proposto, “monopólio”, igualmente abordado pelo ilustre Procurador, quando afirma que: “No caso de concessões de serviços, especialmente os que envolvem o setor de transporte, dada a limitação de equipamento urbano, não raro envolvem a atribuição do serviço público por meio da previsão de monopólios.”

Com efeito, o termo “monopólio” tem sido empregado, muitas vezes, em leis infraconstitucionais, a versarem sobre serviços públicos de transporte coletivo de passageiros, sendo literalmente interpretado pelo Poder Concedente, para, com sua

acepção econômica, utilizá-lo como argumento para desconstituir delegação para execução desses serviços, ou mesmo impedir sua delegação quando se trata de uma única empresa.

Manifesta, contudo, a ambiguidade com que tem sido empregado o termo monopólio, no seio da linguagem jurídica e no texto constitucional.

É, nessa moldura, que se promoverá o debate, em breves considerações, destacando-se, desde logo, que, no seu sentido mais amplo, a atividade econômica do Estado engloba não só a atuação empresarial, como também a prestação de serviços públicos.

A atividade econômica do Estado, em seu sentido estrito, conforme acentua Eros Roberto Grau, referido por Nelson Eizirik3, significa a sua ação propriamente como agente econômico.

Tal ação pode ocorrer em duas modalidades: em regime de competição ou em regime de monopólio. Assim, a atuação monopolística do Estado na economia importa em exercício de atividade econômica em sentido estrito, enquanto que a exclusividade da prestação de serviços públicos constitui expressão de uma situação de privilégio.

Logo, um e outro são distintos entre si, como afirma Eros Roberto Grau4.

Enfatize-se, com o atual e eminente Ministro do STF, que monopólio é de atividade econômica em sentido estrito. Já a exclusividade da prestação de serviços públicos não é expressão, senão de uma situação de privilégio.

Ainda que esses serviços públicos sejam prestados, sob concessão ou permissão, por mais de um concessionário ou permissionário, o que conduziria a suposição de haver um regime de competição entre eles, o prestador do serviço o empreende, em clima diverso daquele que caracteriza a competição, tal como praticada no campo da atividade econômica em sentido estrito.

Ressalte-se, a propósito, que a doutrina tem feito adequada distinção entre o monopólio e o serviço público, institutos submetidos a regimes jurídicos diversos.

Para tanto, é o conceito de serviço público, segundo Celso Antonio Bandeira de Mello, “toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestados pelo Estado ou por quem lhe faça,

Maximino Gonçalves Fontes NetoAdvogado

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as vezes, sob um regime de direito público — portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais — instituído pelo Estado em favor dos interesses que houver definido como próprios no sistema normativo”5.

Há serviços públicos privativos do Estado que somente podem ser prestados pelo Estado (União, Estados, Distrito Federal, Municípios) diretamente, sendo admitida a possibilidade de sua prestação por particulares apenas em regime de concessão ou de permissão (art. 175, da Constituição de 1988). Já os serviços públicos não privados podem ser prestados tanto pelo Estado quanto pelos particulares, como ocorre com os serviços de educação, saúde, conforme observa Celso Antônio Bandeira de Mello6.

Nesta última categoria, aduz, ingressam os serviços que o Estado pode desempenhar, imprimindo-lhes regime de direito público, sem, entretanto, proscrever a livre iniciativa do ramo de atividades em que se inserem.

Aqui, afigura-se lícito aos particulares desempenhá-los, independentemente de concessão, submetendo-se, no entanto, à fiscalização do Poder Público, que a executa no exercício normal de sua polícia administrativa.

Conforme enfatiza Celso Antônio Bandeira de Mello, referido por Nelson Eizirik, o traço caracterizador do serviço público é de natureza formal, consistente no específico regime de direito público, do qual são exemplos significativos: a estrita submissão ao princípio da legalidade; a utilização de técnicas autoritárias por parte do Estado, como possibilidade de constituir obrigações mediante ato unilateral; a presunção de legitimidade dos atos praticados; a auto-executoriedade dos atos praticados; a impossibilidade de o concessionário invocar a exceptio non adimpleti contractus para eximir-se de suas obrigações; a continuidade necessária das atividades tidas como públicas7.

Consoante adverte Celso Ribeiro Bastos, não se deve confundir, no nosso Sistema Constitucional, o monopólio com

serviço público8, porquanto este se submete a regime jurídico especial, de direito público.

O exercício de atividade econômica sob o regime de monopólio, ao contrário, constitui atuação empresarial do Estado, regido pelo direito privado. Tem-se, neste caso, atividade econômica do Estado em sentido estrito, como agente econômico, não se tratando de serviço público, como de fato não se trata, porém de serviço governamental, desenvolvido sob as regras de direito privado9.

Quando o Estado atua no domínio econômico, na explo-ração direta de determinada atividade econômica, seja de maneira monopolística ou não, não há qualquer traço de direito público em tal atuação10. Trata-se de intervenção excepcional, que somente se justifica quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei (art. 173, caput, da CR/88).

Por força da Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998, foi dada nova redação ao § 1º desse artigo, estatuindo, in verbis:

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Art. 173 § 1º. A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:I – sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; II – a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;III – licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;IV – a constituição e funcionamento dos conselhos de administração e fiscal com a participação de acionistas minoritários;V – os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores.

Assim, nota-se, por esse texto, que, na exploração direta de atividade econômica, quando através das chamadas estatais, o Estado atua como se fora empresário privado, submetendo-se a regras de direito privado, sem privilégios, em que pese se lhe aplicarem princípios normativos da administração pública (art. 37, da CR/88), pertinentes à licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações.

Conforme anteriormente se ressaltou nestas considerações, o termo monopólio tem sido empregado de forma ambígua, não sendo assim unívoco, o que evidencia a necessidade de se estabelecer o seu significado.

Dessa forma, segundo Ferrara: “No direito, algumas palavras revestem uma acepção técnica que não coincide nem corresponde ao seu significado popular, como as palavras ‘posse’, usufruto, boa-fé, diligência, hipoteca, caso fortuito, legado e semelhantes. Em tal caso, deve escolher-se, na dúvida, a significação técnica jurídica, pois é de presumir que o legislador usou das palavras com plena reflexão e, portanto, se serviu delas no seu significado técnico, de preferência ao vulgar”11.

Na hipótese vertente, verifica-se que, na linguagem comum, o termo monopólio pode significar monopólio de propriedade, o que resultaria no exercício de um direito de propriedade, ou seja, a exclusividade da exploração econômica de determinado bem, como no caso da Petrobrás, tendo o monopólio do petróleo.

Por isso, observa Eros Roberto Grau, que monopólio é de atividade econômica em sentido estrito, e não de propriedade12.

Na pesquisa do seu significado técnico, Nelson Eizirik entende que a linguagem jurídica recebeu o termo monopólio da teoria econômica e adotou o mesmo significado, que não se confunde com aquele, impreciso, da linguagem comum13.

Desse modo, a noção de monopólio na teoria econômica constitui a antítese à de concorrência perfeita.

No modelo da concorrência, cada unidade produtiva tem que aceitar preço de mercado como algo posto, inalterável

pela ação individual. O mercado é quem dita os preços e cada unidade econômica é uma tomadora de preços.

O monopólio, no entanto, constitui o mercado, no qual toda a mercadoria é fornecida por uma única empresa. No caso, desaparece por inteiro a competição; a característica essencial do monopolista é que a curva de procura individual de sua empresa é idêntica à curva de procura de seu produto.

O monopolista tem a prerrogativa de fixar o preço de seu produto, mas seu único problema é estabelecer a mais lucrativa equação preço-quantidade na sua curva de procura.

No monopólio, o preço não é fixado pelo mercado. A característica básica do monopólio é o poder de influenciar preço ou quantidade produzida. O monopolista, portanto, é o controlador da oferta de um determinado produto que não possui substituto. Seu poder básico é o de fixar preço e quantidade de determinado produto.

Em determinado Município deste Estado, há regra, na sua lei orgânica, contida no seguinte texto: “Fica proibido o monopólio no serviço de transporte coletivo no município”.

Nesse ponto, impõe-se observar que essa alusão tem por destinatária única operadora desses serviços que, por operar há muitos anos os serviços de transporte coletivo de passageiros no Município, deteria “monopólio”, que, como continuamente tem-se afirmado, deveria ser quebrado.

Cotejando-se tais afirmações com as considerações até aqui expendidas, nota-se certo baralhamento sobre dois conceitos: o de monopólio, de natureza econômica, e o de exclusividade, que não se confundem e são diversos.

Desde logo, pode-se, com rigor, afirmar que em momento algum existiu, por parte da referida prestadora de serviços públicos, “monopólio”. O que houve foi exclusividade na execução dos serviços, pois quem o detém é o titular, o dono dos serviços, ou seja, o próprio Município, delegante da execução dos serviços.

Literalmente, há, de fato, no texto da lei orgânica em pauta, vedação à existência de monopólio no serviço de transporte coletivo daquela cidade.

Ante essa proibição, opõe-se esse óbice à delegação da execução indireta dos serviços de transporte coletivo de passageiros por ônibus pela operadora de serviços daquela comuna, que, neste caso, segundo se alega, estaria promovendo a dominação do mercado nela existente.

Em que pese o respeito pelos que assim pensam, lastreados na mencionada regra legal, há de se objetar, em primeiro lugar, que não se pode confundir serviços públicos com atividades econômicas, conforme restou amplamente demonstrado.

Com efeito, os serviços públicos, de titularidade do Estado, ou seja, dos Municípios, Estados, Distrito Federal e a União, como parte, estão fora do regime de livre iniciativa (da concorrência, onde é o mercado quem dita os preços), tendo por sede o art. 175, da Constituição da República, regulamentado pela Lei nº 8.987, de 13 de novembro de 1995, denominada de “lei das concessões e permissões”.

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Por seu turno, as atividades econômicas, que caracterizam a aludida livre iniciativa, estão sob a titularidade de particulares, cujo acompanhamento cabe ao Poder Público, a teor do art. 173, da Carta Magna, regulamentado pela Lei n° 8.884, de 11 de junho de 1994, a dispor sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica.

Vale enfatizar, a esse respeito, o ensinamento de Rui Barbosa, referido por Marcos Juruena Villela Souto14, por Eros Roberto Grau15, acerca da necessidade de se distinguir entre monopólio da atividade econômica e serviço público, verbis:

Absolutamente diversa, nos seus elementos materiais e legais, de outros privilégios, que não desfalcando por modo algum o território do direito individual, confiam a indivíduos ou corporações especiais o exercício de certas faculdades reservadas, de seu natural, ao uso da administração, no País, no Estado ou no Município, e por elas delegadas, em troco de certas compensações, a estes concessionários privativos. Num ou noutro caso, pois, todos esses serviços hão de ser, necessariamente, objeto de privilégios exclusivos, quer os retenha em si o governo local, quer os confie a executores por ele autorizados. De modo que são privilégios exclusivos, mas não são monopólios, na significação má e funesta da palavra.

Além dessa aguda observação, ainda há de se enfatizar que, quando a atividade realizada pelo particular tem a natureza de serviço público, a regulamentação substitui o sistema concorrencial. Assim, nos serviços públicos, o sistema regulamentar passa a estabelecer as variáveis, tais como o preço, ou seja, a tarifa, e a quantidade e qualidade dos serviços a serem prestados, sendo o prestador do serviço fiscalizado pelo próprio órgão governamental, dotado do poder regulamentar.

Desnecessário é ressaltar que, nessa moldura, se encontra a referida operadora de serviços, pois o Poder Concedente é o próprio Município, aliás, o titular do serviço, por força do art. 175, da Carta Magna, sendo-lhe cometida a competência para organizar os serviços (art. 30, inciso V), fixar a tarifa e fiscalizar a sua execução indireta pela referida permissionária.

Portanto, incogitável, neste caso, a figura do monopólio, pois não é a operadora quem fixa preços, pois sequer pode alterar itinerários, locais de atendimento, não podendo, inclusive, aumentar ou reduzir o número de veículos para o atendimento dos usuários. A operadora não tem disposição sobre as principais características dos serviços.

A segunda observação diz respeito à previsão dessa figura na Lei Orgânica do Município, que, conforme a maioria das demais leis, com idêntico teor, datam de 1990.

Naquela época, possivelmente por ainda não vigorar a Lei n° 8.987, que foi promulgada em 13 de fevereiro de 1995, não percebeu o legislador municipal que a hipótese não era de monopólio, que se refere às atividades econômicas, conforme se acentuou, porém de exclusividade, figura bem diversa que se aplica aos serviços públicos.

Efetivamente, segundo preconiza o art. 16, do referido diploma legal federal, a exclusividade é expressamente admitida, devendo, no entanto, ser justificada quando houver a sua imposição ante a

impossibilidade de desempenho do serviço público em regime de competição, o que se dará por motivos técnicos e econômicos. Mormente, este último quando residir na impossibilidade de obtenção de resultados econômicos capazes de manter o desempenho da atividade, especialmente se estabelecidos determinados parâmetros mínimos de qualidade.

Observa-se, pois, que o fato de haver somente uma empresa a operar com exclusividade os serviços de transporte coletivo de passageiros na cidade, provavelmente, deve-se à circunstância política de que, caso se estabelecesse competição com pluralidade de empresas, talvez os resultados econômicos por elas auferidos acabassem por comprometer a qualidade desses serviços, em prejuízo dos munícipes.

Esse fato, aliado aos motivos técnicos, respaldaria a exclusividade prevista na “lei das concessões e das permissões”, existente na cidade onde opera empresa transportadora, na execução indireta dos aludidos serviços.

Portanto, a questão não é de monopólio, porém de exclusividade.

Por derradeiro, nunca é demais invocar os ensinamentos, sempre brilhantes e necessários de Luís Roberto Barroso, para quem somente atividades econômicas podem ser objeto de monopólio estatal, porquanto o Estado o institui exatamente para subtrair da iniciativa privada o exercício de determinada atividade econômica.

O serviço público é, por sua própria natureza e definição, titularizado pelo Estado, de modo que não há necessidade de um regime de monopólio.

NOTAS1 Marcos Juruena Villela Souto, in “Concessões e Permissões nos Serviços Públicos”, palestra proferida no Seminário “Questões Jurídicas Relevantes no Transporte Coletivo”, realizado em 1º de junho de 2007, em Campos do Jordão, Revista Justiça & Cidadania, setembro de 2007, págs. 26/31; 2 Marcos Juruena Villela Souto, ob. cit. p. 27;3 Eros Roberto Grau, in “ A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (interpretação e aplicação), São Paulo: RT, 1990, p.154, referido por Nelson Eizirik, RDA v. 194, p.70;4 Eros Roberto Grau, in “Monopólio Estatal da Atividade Econômica – Petrobrás – Propriedade e empresa – Bens Públicos”, RDA v. 222, p. 359;5 Celso Antônio Bandeira de Mello, in “Prestação de Serviços Públicos e Administração Indireta”, 2. ed., São Paulo: RT, 1983, p. 20;6 Celso Antônio Bandeira de Mello, in “O Conteúdo do Regime Jurídico-Administrativo e seu Valor Metodológico”, RDA v. 2, p. 49;7 Neloson Eizirik, in “Monopólio Estatal da Atividade Econômica”, RDA v. 194, 63-76;8 Celso Ribeiro Bastos, in “Comentários à Constituição do Brasil”, São Paulo: Saraiva, 1990, págs. 164 e segs.;9 Nelson Eizirik, ob. cit. p. 70;10 Idem;11 Francesco Ferrara, in “Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis”, Armênio Amado – Editor: Coimbra, 1978, pág. 139;12 Eros Roberto Grau, ob. cit. 365;13 Nelson Eizirik, ob. cit. p. 71;14 Marcos Juruena Villela Souto, in “Desestatização, Privatização, Concessões e Terceirizações”, Rio: Lúmen Júris, 2000, pág. 19715 Eros Roberto Grau, ob. cit. pág. 361;16 Luis Roberto Barroso, in Regime Constitucional do Serviço Postal. Legitimidade da atuação da iniciativa privada “, RDA v. 222, pág. 179-212.

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O JUÍZO DA HISTÓrIA

ética?” (p. VII). Francamente (pensei), como podia o ilustre acadêmico português confundir História com Ética, o ser com o dever ser? Quase abandonei, de chofre, a leitura, decepcionado. No entanto, as linhas e páginas que se seguiram foram para mim uma descoberta e um alento.

Respondia o autor à última de suas perguntas iniciais dizendo: “Para outros, consiste em apresentar uma galeria de modelos na qual se possa distinguir o bem do mal, o exemplo a seguir e o erro a evitar e, portanto, donde resulte uma série de normas úteis à orientação dos contemporâneos: é a História-Ética” (p. VII). Confesso que nunca me havia ocorrido tal concepção da narrativa histórica. No entanto, a ideia do aproveitamento da experiência histórica para bem agir já me vinha de certo modo incutida tanto pela leitura da “Evolução da Cidade de Deus”, de Etienne Gilson (Herder – 1965 – São Paulo), quanto das aulas do mestrado na UnB com o Ministro Moreira Alves e de seu livro “Direito Romano” (Forense – 1990 – Rio).

Mas o encanto com a História de Portugal de João Ameal não parou por aí. As ideias que se seguiram foram ainda mais impactantes, quando escrevia: “A História é vida — tal o axioma inicial a propor. E não apenas vida dos outros — de outros tempos, de outros seres — mas a nossa vida, antes de nós (...) Se nos pedissem que arriscássemos uma definição, sugeriríamos: a História constitui, para o verdadeiro historiador, um exame de consciência” (p. VII).

1) Introdução

Quando ingressei no Tribunal Superior do Trabalho na qualidade de Ministro, nos idos de 1999, já tendo lá servido como funcionário e procurador desde 1983, tive a ventura de ver presente em minha posse não

apenas meus pais, mas principalmente meu avô português, que, aos 101 anos, era só orgulho e felicidade. Na ocasião, lembrando as raízes lusitanas, recebi de presente de uma amiga de minha mãe, a Sarita, um belíssimo livro, ricamente encadernado, tendo por título “História de Portugal”, de João Ameal (Livraria Tavares Martins – 1958 – Porto, 4ª edição), verdadeira relíquia de família.

O acervo de processos recebido e o desejo de enfrentá-lo, com todas as energias do corpo e da alma, fizeram-me depositar o livro na estante de casa e lá deixá-lo, engalanando a sala de estar com o visual de sua grossa lombada, onde permaneceu por 10 anos, até despertar-me sinceramente o interesse e a curiosidade, sem uma razão determinada. Ou melhor, tendo lido “São Tomás de Aquino”, do mesmo autor, e o prefácio que escreveu para a edição portuguesa do “Ortodoxia”, de Chesterton, tais circunstâncias já me haviam feito namorar essa volumosa obra, que anunciava narrar a história portuguesa, dos seus primórdios até o ano de 1940, em que foi publicada sua 1ª edição.

Apanhando recentemente o livro e decidido a lê-lo, chocaram-me as primeiras linhas da introdução, nas quais o autor se perguntava: “Que é a História? Uma ciência? Uma arte? Uma

Ives Gandra da Silva Martins FilhoMinistro do Tribunal Superior do TrabalhoMembro do Conselho Nacional de Justiça

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Eis aí descrito, da forma mais apropriada que já vi, o juízo da História: seremos julgados pelos nossos atos e decisões, nas suas consequências e motivações, não apenas por Deus (que é o que mais importa), mas também pelas gerações que nos sucederão, que, com a perspectiva do tempo, poderão aquilatar melhor nossos acertos e erros, grandezas e misérias, heroísmos e vilanias, pois terão a objetividade que nos falta para julgar das próprias ações.

Mas podemos já deflagrar esse exame de consciência pessoal, como o fazia João Ameal ao reconhecer a insuficiência do resultado de seu trabalho em ordem à grandeza do objeto estudado: “Salve-nos ainda o desassombro e a boa-fé com que nos sujeitamos à triste e honrosa lei da condição humana: o hábito incurável que todos temos de lançar ombros a tarefas maiores do que nós...” (p. XV).

2) As causas e motivações dos fatos históricosMax Weber (1864-1920), ilustre sociólogo alemão,

que reconhecia, na esteira de Aristóteles, que a ciência é o conhecimento pelas causas, perquiria sobre as causas dos fenômenos sociais, resumindo-as em sua obra “Economia e Sociedade” (1922), numa tipologia ideal, assim expressa:

• comportamento racional em relação a um fim – objetivo claramente fixado pelo agente, planejado e perseguido,

como o engenheiro que constrói uma casa, tendo em vista um projeto prévio;

• ação racional em relação a um valor – motivação transcendente ao sujeito, como o marido que afasta a tentação de adultério por fidelidade à esposa;

• ação afetiva – ditada pela paixão ou estado de espírito do momento;

• ação tradicional – ditada pelos hábitos e costumes adquiridos.

No caso da História, dizia Weber que o pesquisador pode, para explicar os fatos históricos, buscar na Sociologia (ocupada com as regularidades do comportamento humano) as possíveis causas do agir concreto dos protagonistas do fato, devendo determinar o peso que cada causa isoladamente teve no acontecimento: constroem possibilidades do que teria ocorrido sem determinada causa. Se for verossímil que o acontecimento não teria ocorrido sem ela, trata-se de causa principal, senão pode ser causa secundária ou nem ser causa.

Weber, nessa linha, rejeitava o determinismo marxista de reduzir as causas históricas ao fator econômico (ainda que seja fator relevante), chegando a aplicar a sua teoria a um caso concreto de causalidade religiosa sobre fenômeno econômico em “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” (1905). Em sua visão, o capitalismo, que conjugaria a vontade do lucro com a disciplina racional do trabalho (e não por conquista ou aventura), tivera sua força propulsora na ética calvinista:

• crença na predestinação universal para céu ou inferno;• o sucesso nos negócios seria o sinal da predestinação

para o céu;• empenho no trabalho, para superar a angústia sobre a

salvação;• desapego do mundo, que leva a não consumir, mas

reinvestir o lucro.Posteriormente, as 3 Escolas Vienenses de Psicoterapia

ofereceram, sucessivamente, diferentes explicações sobre a motivação do agir humano:

a) Sigmund Freud (1856-1939) – Considerava o instinto sexual (a libido) o principal fator motivador do comportamento humano (“O Ego e o Id”);

b) Alfred Adler (1870-1937) – Discípulo de Freud, rompeu com o mestre e rejeitou a psicanálise, sustentando que não seria o “princípio do prazer” que explicaria o comportamento humano, mas a “vontade de poder”, ou seja, o desejo de se sobrepor aos outros e de que reconheçam sua superioridade. A competição com os outros geraria o “complexo de inferioridade”, cuja superação se daria através do mecanismo da “compensação”, de buscar atividades diferentes nas quais possa se sobressair (“Compreendendo a Natureza Humana”).

c) Viktor Frankl (1905-1997) – Fundador da Logoterapia, que esteve preso num campo de concentração nazista por ser judeu, opôs-se às explicações de Freud e Adler, sustentando que o comportamento humano tem por motor a “sede de sentido”, isto é, a necessidade de encontrar utilidade e sentido para a própria existência (“Psicoterapia e Sentido da Vida”).

Foto: Aldo Dias

Ministro Ives Gandra autografando seu livro “Ética e Ficção” em noite de lançamento

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32 JUSTIÇA & CIDADANIA | JUNHO 2010

Em que pese a teoria de Frankl ser mais abrangente das motivações do agir humano e menos reducionista, poderíamos estabelecer relação entre as teorias psicológicas e a teoria sociológica de Weber, quanto às motivações ou causas dos fenômenos sociais, compactando-as em 3 espécies:

a) motivação racional – por fins (como o poder) ou valores (como ser útil);

b) motivação passional – pelo amor (libido) ou pelo ódio (inveja, vingança);

c) motivação habitual – por tradição (assumida) ou comodismo (simples inércia).

Ora, ao se tentar compreender os fatos sociais do presente e do passado, a causalidade assim dissecada apresenta-se em 2 planos básicos:

a) plano retórico ostensivo – do discurso que busca justificar racionalmente a ação e que, na maioria dos casos, esconde as reais intenções ou motivações do agente;

b) plano real subjacente – do verdadeiro motivo que ensejou a ação, de caráter mais passional que racional e, justamente por isso, inconfessável, sendo, muitas vezes, sequer admitido pelo agente.

Cabe, pois, ao historiador e aos que analisam, para tentar compreender os acontecimentos do presente e do passado, perquirir sobre quais as verdadeiras causas do sucesso ou insucesso de determinadas políticas, projetos e ações. O juízo da História, que já começa no presente — ainda que sem a perspectiva do tempo, essencial para se aquilatar a verdadeira dimensão das escolhas e opções feitas — e se consuma no futuro, leva em conta, desse modo, as ações e suas causas: não apenas o que aconteceu, mas também, como dizia Sir Hugh Trevor-Roper (n. 1914-2003), catedrático de História da Universidade de Oxford, a visão das possibilidades perdidas, do que poderia ter acontecido e não aconteceu e por quê (“History and Imagination” – 1980).

Ora, Carl Schmitt (1888-1985), filósofo político alemão, era contundente ao afirmar que, da mesma forma que a Ética dividia os homens em bons e maus e a Estética em belos e feios, a Política os dividia em amigos e inimigos, sendo pura retórica os programas ideológicos ou humanitários dos partidos políticos, já que o seu objetivo era simplesmente a conquista do poder, não para servir a sociedade, mas para servir-se dela (cfr. “O Conceito do Político”, Vozes – 1992 – Petrópolis, tradução de Álvaro Valls). Ives Gandra Martins (pai), em sua “Uma Breve Teoria do Poder” (RT - 2009 - São Paulo), apresenta essa mesma visão pessimista do homem no Poder, analisando historicamente regimes e governos e mostrando como é generalizada a tendência dos detentores do poder de se servirem da sociedade e não de estarem a serviço desta.

Traçada a moldura causal para enquadrar e julgar os fatos sociais sob a perspectiva histórica, cabe indagar se o modelo corresponde à realidade, ou seja, as políticas públicas, os empreendimentos sociais, as grandes realizações econômicas, culturais e artísticas têm como motor a razão ou a paixão.

Estou cada vez mais convencido, pelo estudo da História e pela vivência concreta no setor público — Judiciário, Executivo e Legislativo —, de que os modelos sociológicos traçados por Weber

e Schmitt não se distanciam da realidade. Os grandes estadistas, os verdadeiros homens públicos, os empresários com sensibilidade social, os sindicalistas com capacidade de harmonização, os artistas com consciência e responsabilidade por seu papel de ícones comportamentais não são a regra, porque a “ação racional em relação a valores” também não o é. Para isso seria necessário, como o fez João Ameal, um exame de consciência, sincero e diário, sobre as próprias ações, não visando ao lucro, à vantagem pessoal, ao modo de subir, vencer, dominar ou prevalecer, mas ao juízo de Deus e dos homens sobre o que engrandece e enobrece o homem e o que o avilta e corrompe.

A História recorda sem número de exemplos emblemáticos de causas passionais explicativas dos eventos históricos, mais ou menos revestidas com a retórica de uma motivação racional, podendo-se referir, entre tantos, a paixão de Marco Aurélio (83-30 a.C.) por Cleópatra, levando à guerra civil contra Otávio Augusto; a inveja de Herodes (73-4 a.C.) em relação a Cristo, mandando matar as crianças de Belém; a depravação de Nero (37-68), desencadeando a primeira grande perseguição e martírio dos cristãos; a avareza de Felipe IV, o Belo (1268-1314), da França, perseguindo e destruindo a Ordem dos Templários, com base nas mais infames acusações falsas, para se apoderar de seus bens; a luxúria de Henrique VIII (1491-1547), que provocou o cisma da Igreja Anglicana; o caso de D. Pedro I (1798-1834) com a Marquesa de Santos, que o fez maltratar a Imperatriz D. Leopoldina, perdendo o apoio popular e tendo que renunciar ao trono; o ódio de Adolf Hitler (1889-1945) aos judeus, causa de seu extermínio em massa; a vaidade dos Generais George S. Patton (1885-1945) e Bernard L. Montgomery (1887-1976), sacrificando muitos soldados na disputa para ver quem chegaria primeiro a Berlim na 2ª Guerra Mundial, vindo a perder para os russos; a prepotência do General Leopoldo Galtieri (1926-2003), que levou a Argentina à fracassada Guerra das Malvinas contra os ingleses em 1982, custando tantas vidas a dois países cristãos...

Na literatura de ficção, o exemplo paradigmático do agir passional, pautado pela inveja, é o de Morgoth e Sauron, sempre empenhados em destruir tudo o que de bom faz Eru e os Vala, tal como contado nos livros “O Silmarillion” e “O Senhor dos Anéis”, de J.R.R. Tolkien. Impressiona pensar que, para alguns seres, o sentido da existência possa ser o de destruir o que outros constroem, apenas por ódio, inveja, ciúme ou desejo de vingança. O clássico de Alexandre Dumas, “O Conde de Monte Cristo”, é outro exemplo emblemático de como o desejo de vingança que pauta a vida de muitas pessoas não realiza nem satisfaz ninguém, trazendo apenas mais tristeza e desconsolo, para si e para os outros.

3) Progresso, Estagnação, Decadência e RetrocessoNo fundo, o comportamento passional, justamente pela sua

irracionalidade, não contribui diretamente para o progresso civilizatório da Humanidade. Pode, ocasionalmente, atendê-lo, de forma oblíqua e inesperada. No geral, conduz ao retrocesso e à decadência das civilizações, tal como ensinava Arnold Toynbee (1889-1975), catedrático de História da Universidade de Oxford, em seu “Um Estudo da História” (Martins Fontes

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– 1980 – São Paulo), no qual desenvolve sua concepção da gênese, desenvolvimento e declínio das civilizações, ligando as respostas criativas aos desafios que o meio, quer ambiental, quer humano, apresenta ao homem de cada época ou lugar.

Pelo mecanismo da mimese, os líderes (minoria criativa) atrairiam a massa social para sua imitação, sendo seguidos mecanicamente pela grande maioria não criativa. Nesse sentido, enquanto houver respostas criativas por parte da minoria dominante, que engendram novos desafios e novas respostas bem-sucedidas, haverá desenvolvimento da civilização. A decadência das civilizações teria por sintoma básico o cisma social entre a minoria dominante, antes criativa, mas que agora tenta manter a liderança, já não pelo prestígio e serviço, mas pela força, pois que preocupada apenas com a satisfação de seus vícios (decadência moral), e o proletariado interno, constituído pela massa social que antes seguia por mimese os líderes criativos e agora, despida de seus direitos básicos, incuba seus próprios líderes.

O comportamento meramente habitual, da maioria amorfa e mimética, que se deixa conduzir, sem refletir, por modismos e padrões estabelecidos pelos mass media, aferrada às rotinas e tradições, temerosa das mudanças e inovações que não sejam aplaudidas pelos meios de comunicação social, só conduz à estagnação da sociedade e das civilizações. Sobre ele nos fala, ainda que indiretamente, mas com expressões impactantes, Gaston Bachelard (1884-1962), catedrático de Filosofia da Ciência na Sorbone, em seu “A Formação do Espírito Científico” (1938): “O espírito nunca é jovem quando se apresenta à cultura científica. Pelo contrário, é muito velho, porque tem a idade dos seus preconceitos”. Por isso, completava, ironicamente: “Os grandes homens são úteis para a ciência na primeira metade de sua vida e nocivos na segunda metade”. E por quê? Porque se deixam levar por seus preconceitos e outras paixões menos nobres, como a inveja e a vaidade, para não admitirem soluções melhores do que as suas.

Apenas o comportamento racional, especialmente se ligado a valores, tem o condão de promover o progresso da sociedade e da civilização, uma vez que, para a razão, o que importa é a solução do problema, independentemente de quem a tenha proposto ou engendrado.

Dizia um amigo — e o repito amiúde — que os grandes problemas profissionais não são questões técnicas, mas de relacionamento. Os problemas técnicos se estudam e se resolvem, com engenho e arte. O que atrapalha são as vaidades, suscetibilidades, invejas, ciúmes e outros defeitos que fazem com que as melhores soluções sejam, muitas vezes, preteridas, já que combatidas por aqueles que não as engendraram, e pelo simples fato de que a ideia não é própria, mas alheia. Assim, a pior das escravidões é a da vaidade e a da ambição, pois fruto do primeiro e raiz dos pecados, que são o orgulho e a soberba.

A descontinuidade no campo das obras públicas, em regimes democráticos de alternância no poder, é sinal claro de que a motivação é passional e não racional, pois o bem não é bem em si, mas quando feito pelo seu partido; e o mal não é mal em si, mas quando praticado pelo adversário. Quantos não têm que dizer, ao assumirem cargos públicos eletivos: “Esqueçam o que eu disse, fiz ou escrevi...”. Sinal de incongruência entre discurso e vida.

Já nos regimes despóticos, a luta pela formação de grupos ou partidos hegemônicos, não afeitos ao diálogo e ao pluralismo de ideias, as obras e realizações acabam sendo efêmeras, fadadas ao insucesso e à revisão, uma vez que a violência, física ou psicológica, não é apta nem a vencer, nem a convencer.

Se a História, como dizia Sir Hugh Trevor-Roper, é também o que não aconteceu, poderemos julgar muitos pelo que deixaram de fazer ou impediram que outros fizessem, escravos que foram de seus preconceitos, dos quais não conseguiram se libertar.

4) ConclusãoHeraldo das glórias de Portugal, Camões escrevia logo no

início de “ Os Lusíadas”:“E aqueles que por obras valorosasse vão da lei da morte libertando,cantando espalharei por toda parte,se a tanto me ajudar engenho e arte”.

Não é demais pensar que obras valorosas só se realizam por um agir racional fundado em valores. Esse é o ideal a ser buscado e vivenciado.

Assim, voltando à concepção da História-Ética de João Ameal, concluímos que o juízo que se fará dos nossos atos, omissões e realizações, não deixará de levar em conta as motivações, nobres ou vis, altruístas ou egoístas, magnânimas ou mesquinhas, agregadoras ou partidaristas, bem como os resultados, positivos ou negativos, duradouros ou efêmeros, reais ou aparentes, de nosso decidir e agir.

Se conseguirmos realizar diariamente o exame de consciência que nos propõe, será possível reconhecer as motivações menos nobres e retificar o rumo de nossos projetos e planos, de modo a que possamos ser eficazes em nosso agir, em prol da sociedade em que vivemos, e não meramente usufrutuários do patrimônio cultural e econômico por outros edificado. Tudo dependerá da sinceridade do exame e da coragem na retificação. Nesse caso, o juízo da História será benévolo e justo para conosco, pois a dureza ficou por nossa conta ao nos julgarmos a nós mesmos.

Não é demais pensar que obras valorosas só se realizam por um agir

racional fundado em valores. Esse é o ideal a ser

buscado e vivenciado.

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Entrevista: Erivaldo Ribeiro dos Santos, Juiz Federal da 2ª Vara do Juizado Especial Federal Cível de Maringá (PR)

‘CárCErE é UM PROblEMA SOCIAl’

“Ninguém pode nada sozinho”. Essa foi a principal lição que o Juiz Erivaldo Ribeiro dos Santos aprendeu à frente do Programa Mutirão Carcerário, desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça, órgão de fiscalização e

planejamento estratégico do Judiciário brasileiro. O Magistrado esteve à frente da iniciativa durante os dois anos da gestão do Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, que em abril último deixou a presidência do conselho. Durante todo esse período, ele pôde perceber que a ineficiência do sistema prisional não se limitava apenas aos muros das penitenciárias, de forma a causar transtornos somente àqueles que se encontravam encarcerados. “Não há dúvida de que é um problema social, pois interfere diretamente na questão da segurança pública. Da maneira como encarceramos, estamos produzindo mais criminalidade. As pessoas não têm a mínima chance de recuperação no sistema prisional caótico que temos hoje”, afirmou.

De acordo com Santos, o projeto chamou a atenção para o problema. E mais: mostrou que todos — órgãos envolvidos com a Justiça Criminal e a sociedade — são corresponsáveis pelas condições do sistema carcerário brasileiro. Segundo ele, a iniciativa do CNJ rendeu vários bons frutos. Um deles é o Projeto Começar de Novo, que tem por objetivo assegurar oportunidades de emprego e capacitação profissional para egressos do sistema prisional. “O Projeto Começar de Novo foi a grande novidade. Por meio dele, conseguimos uma articulação muito interessante e consistente com a sociedade civil. O CNJ chamou a sociedade civil para essa integração e a resposta foi muito positiva. Quando terminamos a gestão, em abril último, tínhamos abertas, aproximadamente, 2 mil vagas de trabalho e capacitação profissional”, disse o Magistrado, em entrevista à revista “Justiça & Cidadania”.

Revista Justiça & Cidadania – Quanto tempo o senhor ficou à frente do Mutirão Carcerário e no que consistiu o seu trabalho?Erivaldo Ribeiro – Iniciamos o trabalho em agosto de 2008 e seguimos até abril de 2010, quando houve a troca de gestão

no CNJ. Esse trabalho consistia em fazer a abordagem nos tribunais, constituir as equipes (de trabalho) e promover uma ampla revisão das prisões e dos processos das pessoas encarceradas, ou em razão do cumprimento de pena ou porque aguardavam julgamento.

JC – Durante esse tempo, qual caso o impressionou mais?ER – O relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário, de autoria do Deputado Domingos Dutra (PT-MA), mostrou uma série de irregularidades nas prisões. Não tínhamos, no entanto, nenhuma constatação ou dado específico para aferir as situações descritas no documento. Mesmo assim, preocupava-nos a situação descrita. Afinal de contas, o Deputado havia elaborado o relatório a partir de uma série de visitas que fizera às penitenciárias. Então, o caso que me marcou foi o de uma pessoa encontrada na Penitenciária de Pedrinhas, em São Luiz do Maranhão, que fora condenada a cinco anos, mas já estava presa mais de três anos além da pena. Esse caso me marcou porque foi o primeiro verificado no Mutirão envolvendo pessoas presas muito além da pena prevista na sentença. Depois verificamos outros casos semelhantes. O primeiro, no entanto, marcou mais porque realmente foi a constatação (das irregularidades) e, ao mesmo tempo, um constrangimento para nós juízes. Agora veja: todas as revisões e alvarás de solturas, ao todo 21 mil, foram feitos por juízes. É o próprio Judiciário fazendo seu dever de casa.

JC – O que o senhor constatou ao longo das inspeções em presídios? De uma forma geral, como é o sistema carcerário no País?ER – É muito fácil dizer que o sistema carcerário é falido ou é uma tragédia. Preocupo-me, no entanto, com essa questão da adjetivação, porque ela não nos leva a lugar algum. Isso tudo é público e notório. Por muito tempo, o sistema carcerário brasileiro está sob abandono total. E esse abandono não ocorre apenas por parte do Poder Executivo, ao qual compete a construção e manutenção dos presídios, assim como a gestão e a contratação de agentes penitenciários.

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JC – O problema envolvendo os presídios, em sua opinião, é social?ER – Não há duvida de que é social, pois interfere diretamente na questão da segurança pública. Da maneira como encarceramos, estamos produzindo mais criminalidade. As pessoas não têm a mínima chance de recuperação no sistema prisional caótico que temos hoje.

JC – Que outras iniciativas sociais foram possíveis desen­volver no campo criminal?ER – O Projeto Começar de Novo foi a grande novidade. Por meio dele, conseguimos uma articulação muito interessante e consistente com a sociedade civil. O CNJ chamou a sociedade civil para essa integração e a resposta foi muito positiva. Quando terminamos a gestão, em abril último, tínhamos abertas, aproximadamente, 2 mil vagas de trabalho e capacitação profissional. A Lei de Execução Penal, que é de 1984, foi muito ousada nesse aspecto. Ela já previa a responsabilidade da sociedade civil quanto à ressocialização do preso, com ofertas de emprego e oportunidade de capacitação e formação profissional. Com o Começar de Novo, foi impressionante a resposta que tivemos de tantas empresas que aderiram e são hoje nossas parceiras. Clubes de futebol, só para citar um exemplo, oferecem para os adolescentes em conflito com a lei a possibilidade de recreação e de aprender as técnicas de determinado esporte. Tudo isso é uma resposta muito positiva. Sou um otimista incorrigível, acho realmente que podemos mudar esse quadro.

JC – O senhor aprendeu muito com os mutirões?ER – Aprendi que ninguém pode nada sozinho, mas que podemos tudo quando estamos integrados. Não só no Mutirão Carcerário, mas também no Começar de Novo isso foi comprovado. Podemos tudo quando trabalhamos em conjunto.

Isso dá a impressão de que a responsabilidade é somente do Poder Executivo, mas não é dessa forma. Imagino que não haja tema no serviço público que seja mais interinstitucional que aquele envolvendo o sistema carcerário. Afinal, pouco adianta funcionar bem o Poder Executivo nesse tema se o Poder Judiciário não verifica a regularidade das prisões que decreta. Verificamos pessoas há anos sem julgamento. No Piauí, por exemplo, o percentual de presos provisórios aguardando julgamento beirava aos 80%. Ou seja, apenas 20% dos presos tinham sido condenados pela Justiça. Essa é uma situação muito grave.

Assim também, pouco adianta o Judiciário funcionar bem se o Ministério Público não funciona. Encontramos presos há três anos sem denúncia formalizada pela instituição. Então, o MP também não estava fazendo seu dever de casa. Tantas prisões irregulares e excessos também não ocorreriam se tivéssemos uma Defensoria Pública que funcionasse adequadamente. Também aí temos um déficit.

Um preso também não ficaria dentro do presídio anos e anos sem julgamento se o diretor do presídio fosse atento. Se prestasse atenção, ele iria constantemente avisar ao juiz, ao promotor ou ao defensor sobre a situação dos detidos. Portanto, a falha é sistêmica. São anos e anos de abandono, e isso por todos nós que integramos o sistema de Justiça Criminal. Então, apenas dizer que é caótico ou uma tragédia — enfim, adjetivar — é também uma omissão. Temos que dizer, mas também fazer a nossa parte, como fez o CNJ, que não poupou ninguém, nem a si próprio, nem ao Judiciário, em relação às irregularidades que constatou. Antes, promoveu um amplo movimento de revisão dessas prisões e acabou difundindo, para o bem, essa parceria muito positiva dos demais órgãos. Hoje percebemos uma Defensoria mais atuante. O Conselho Nacional do Ministério Público também está liderando esse movimento dentro da instituição. E o governo anunciou a liberação de R$480 milhões para as cadeias públicas.

Foto: Agência CNJ

Juiz Federal Erivaldo Ribeiro dos Santos

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ASpECTOS rELEVAnTES DO INTERROGATóRIO

A visão probatória, predominante do processo penal à época da promulgação do CPP, encontra-se ultrapassada. A Constituição Federal de 1988, que consagrou as diversas garantias inerentes a um processo acusatório,

sobretudo assegurou expressamente o direito ao silêncio, em seu art. 5º, LXIII, a presença do defensor no interrogatório, garantiu a autodefesa e a obrigatoriedade da defesa técnica, apontando para uma mudança de paradigma no Processo Penal, enxergando o interrogatório como meio de defesa.

O Código de Processo Penal previu o interrogatório a partir do art. 185, e estabelece uma ordem que deve ser seguida em sua condução, disposta nos artigos 187 e 188 do CPP, todavia não estabeleceu uma ritualização específica para este ato.

Como o interrogatório visa possibilitar ao Magistrado um contato direto com o acusado, podendo, não apenas através de suas palavras, mas também através de sua expressão, antes de tudo oportunizar-lhe a defesa, e, em segundo plano, fornecer ao Juiz elementos relevantes que possam influenciar no julgamento, acredito que deixar o ato à livre discrição do Magistrado, respeitados obviamente os limites legais, seja a melhor forma de se atingir o objetivo a que se propõe o interrogatório.

Tive a oportunidade de discorrer com maior profundidade sobre o tema em trabalho de minha lavra “O interrogatório

Adalto Dias TristãoDesembargador do TJEES

O direito ao silêncio está ligado ao princípio da não

autoincriminação, com previsão expressa na

Constituição da República. Logo, o réu pode optar por

não responder determinadas perguntas da Autoridade, judicial ou policial, que

o incriminem.

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Gilmar Mendes, Presidente do STF

como meio de defesa – Enfoque Constitucional e Processual Penal”, no qual procurei conceituar o tema da seguinte maneira: “Interrogatório judicial é o ato processual, personalíssimo, presidido pelo Juiz Criminal, realizado através de perguntas dirigidas ao acusado, objetivando a coleta de dados acerca do fato delituoso e que oportuniza ao acusado apresentar a sua versão dos fatos que lhe estão sendo imputados, defendendo-se deles, caso queira.”1

O interrogatório é ato que possui como características: ato personalíssimo, judicialidade, oralidade, publicidade, indivi-dualidade e probidade.

O direito ao silêncio está ligado ao princípio da não autoincriminação, com previsão expressa na Constituição da República. Logo, o réu pode optar por não responder determinadas perguntas da Autoridade, judicial ou policial, que o incriminem.

O interrogatório inaugurava a fase de instrução na audiência perante o Conselho de Sentença, nos julgamentos diante do Tribunal do Júri.

Talvez uma das mais profundas alterações seja a prevista no novel art. 474 do CPP, ou seja, o deslocamento do interrogatório do acusado do primeiro para o último ato da instrução na audiência, semelhante ao modo como já era

adotado no procedimento dos Juizados Especiais Criminais.

A instrução processual se iniciava com o interrogatório do acusado, que nada mais é que um resquício do sistema inquisitório, cujo objetivo central era obter a confissão do acusado, considerada rainha soberana das provas, e que praticamente colocava fim ao processo, não sendo necessário ao julgador-acusador perscrutar em profundidade os demais meios de prova, nem relativizar o valor probante deste meio de convicção.

Os parágrafos primeiro e segundo do citado artigo estabelecem que o Ministério Público, o assistente, o querelante e o defensor, nessa ordem, poderão formular, diretamente, perguntas ao acusado, e que os jurados formularão perguntas por intermédio do juiz presidente.

A essência da novidade deste disposi-tivo é a relativização do princípio da pre-sidencialidade do Magistrado na condução da audiência.

Deve o juiz ficar atento e chamar atenção para que o julgamento siga sempre de forma imparcial, evitando qualquer tipo de manifestação antecipada do jurado que quiser fazer perguntas ao acusado.

Finalmente, o parágrafo terceiro do art. 474 do CPP passa a dispor expressamente sobre a utilização de algemas na audiência de julgamento perante o Tribunal do Júri.

Entendo agora que, com este dispositivo, a utilização de algemas pelo acusado deve passar a ser medida de exceção, somente sendo aplicada em casos excepcionais, e devendo ser bem fundamentada pelo Juiz-Presidente do Tribunal do Júri. Este é o espírito de que se imbuiu o legislador ao efetuar esta alteração conforme o próprio dispôs na exposição de motivos desta lei: “Em plenário dá-se tratamento humanitário ao acusado, proibindo, como regra, o uso de algemas.”2

O Código de Processo Penal, no artigo 284, disciplina o uso da força. Disposição semelhante traz o Código de Processo Penal Militar, em seu artigo 234, §1º.

Se por um lado o réu apresentar-se algemado para o interrogatório não configura nenhuma afronta ao Estado de Inocência, também a exposição simbólica do réu portando este apetrecho deve ser evitada, quando não se revele necessário, salvo nos casos excepcionais, na forma da Súmula Vinculante nº 11 do STF: “Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.

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NOTAS1 TRISTÃO. Adalto Dias. “O interrogatório como meio de defesa”. RJ : Ed. Lumen Juris. 2009.2 SENADO FEDERAL. Diário do Senado Federal. 28.3.2007. p. 6865.3 CASTELO BRANCO, Fernando. “A Pessoa Jurídica no Processo Penal.” São Paulo: Ed. Saraiva, 2001. p. 145.

De fato, a autoridade que decidir utilizar as algemas deverá justificar por escrito, sob risco de responsabilidade funcional. Deverá ser adotado nas delegacias um livro de ocorrência onde serão registradas as justificativas.

Já o Magistrado deverá fazer constar do termo as devidas justificativas, podendo constar inclusive a manifestação do Ministério Público, bem como do agente policial que acompanha o denunciado.

Outro aspecto relevante diz respeito ao interrogatório por videoconferência. A adoção deste novo tipo de procedimento significa uma quebra de paradigma, eis que um dos pontos de maior tensão a respeito do tema seja a colisão entre celeridade processual e presença física do Juiz na audiência do interrogatório.

Desta forma, o interrogatório de criminosos perigosos, ligados ao crime organizado, à criminalidade transnacional, ou para os interrogatórios de acusados que necessitem da mobilização de um grande aparato policial poderiam ter fim, utilizando-se desta valiosa ferramenta.

Neste sentido, no mês de janeiro de 2009, foi aprovada a Lei 11.900, de 8 de janeiro de 2009. Em sua essência, o projeto alterou o §1º e acrescentou mais outros 8 parágrafos ao art. 185, acrescentou o § 3º ao art. 222, e criou o art. 222-A no Código de Processo Penal.

Deve este ser realizado somente em caráter excepcional, desde que caracterizada uma das situações previstas em um dos incisos do mesmo § 2º. São elas: prevenção à segurança

pública; inviabilização da participação do réu no referido ato processual, quando haja relevante dificuldade para seu comparecimento em juízo, por enfermidade ou outra circunstância pessoal; impedimento da influência do réu no ânimo de testemunha ou da vítima, desde que não seja possível colher o depoimento destas por videoconferência, nos termos do art. 217 deste Código; ou, finalmente, gravíssima questão de ordem pública.

Cabe salientar, neste mister, que a Lei 5.250/67 (Lei de Imprensa) prevê o interrogatório, em seu artigo 45, como ato facultativo.

Já nos interrogatórios realizados pelas CPI’s, indiciados e testemunhas possuem o direito de se fazerem acompanhar por advogado, todavia não é obrigatório.

Nos Juizados Especiais Criminais o interrogatório já era realizado como último ato da instrução processual antes do advento da reforma do processo penal, reforçando sua índole defensiva, fazendo com que a doutrina considerasse esse o sentido a ser seguido pela norma que estabelecia o procedimento ordinário.

Em relação à pessoa jurídica no banco dos réus, grande celeuma se deu na doutrina, relativa a quem seria a pessoa a representar o réu, já que “o interrogatório no processo penal brasileiro é todo ele voltado para a pessoa física”3. Revisitando as características que compõem o interrogatório, temos que este é ato personalíssimo, não admitindo representação, substituição nem sucessão, não podendo nem mesmo o defensor do acusado prestar o interrogatório mediante mandato.

A melhor solução para o caso seria a indicação do representante legal da pessoa jurídica para ser sujeito do interrogatório, este entendimento é o que melhor se harmoniza com a nova disciplina do interrogatório proposta pela Lei 10.792/2003.

Já no Tribunal Penal Internacional, o Estatuto de Roma prevê garantias ao interrogado como o direito ao ‘nemo tenetur se detegere’ (não produzir provas contra si mesmo), e em decorrência também ao direito ao silêncio, ao direito de ser assistido por advogado, bem como de ser interrogado em língua que compreenda, podendo para tanto serem utilizados tradutores. A confissão deve ser corroborada pelos demais meios de prova constante do processo e a presunção de inocência também é prevista.

No Capítulo VI, que trata do julgamento, no artigo 67, que trata dos direitos do arguido, do Estatuto de Roma, encontram-se as disposições referentes ao interrogatório no âmbito do Tribunal Penal Internacional.

Em linhas gerais, são essas as breves considerações sobre o tema.

A melhor solução para o caso seria a indicação do

representante legal da pessoa jurídica para ser sujeito do interrogatório, este entendimento é o

que melhor se harmoniza com a nova disciplina do interrogatório proposta pela Lei 10.792/2003.

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2010 JUNHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 39

BERGQVIST & ALVAREZ ADVOGADOS

O escritório tem sede na cidade do rio de Janeiro, com filiais em São Paulo e Salvador, além de manter estreito relacionamento operacional com outros proeminentes escritórios de advocacia nas principais cidades do Brasil, tais como Brasília e Belo Horizonte.

Nossa equipe de profissionais possui rigorosa formação técnica e experiência adquirida em inúmeros casos, de modo a apresentar soluções para os mais diversos problemas trazidos pelos clientes.

O escritório atua intensamente na área do direito empresarial, com grande ênfase no contencioso cível e fiscal. Nossos profissionais também estão aptos a prestar assessoria jurídica a pessoas físicas e jurídicas nas áreas societária, fiscal, trabalhista, previdenciária, comercial, administrativa, ambiental, imobiliária e defesa da concorrência, entre outras.

Rio de Janeiro: Rua Sete de Setembro, 99, 15º andar – Centro • Tel: (21) 2222-0107São Paulo: rua Padre João Manoel, 755, 15º andar, conj. 152 – Cerqueira César • Tel: (11) 3896-1777Bahia: Av. Tancredo Neves, 1.283, Sls. 403/404, Ed. Empresarial Ômega – Caminho das Árvores • Tel: (71) 3341-0707

ÁREAS dE AtuAçãO

Direito tributário

Direito Civil

Direito ComerCial

Direito SoCietário

Direito PreviDenCiário

Direito Do trabalho

www.ba-advogados.com.br

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40 JUSTIÇA & CIDADANIA | JUNHO 2010

II COngrESSO BrASILEIrO DAS CArrEIrAS JUrÍDICAS DE ESTADOAPROXIMAÇÃO DAS CARREIRAS JURÍDICAS DE ESTADO CONTRIbUI PARA QUAlIDADE E CElERIDADE DO SISTEMA JUDICIAl bRASIlEIRO

Tribunais Regionais, dos Tribunais Superiores e representantes dos poderes Executivo e Legislativo.

O II Congresso Brasileiro das Carreiras Jurídicas é realizado pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Associação Nacional dos Procuradores de Estado (Anape), Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF) e Fórum da Advocacia Pública Federal, e conta com o apoio de 23 entidades representativas das carreiras jurídicas de Estado.

MetodologiaO II CBCJE promoverá, sempre no período da manhã,

palestras proferidas por autoridades de expressão nacional e internacional. À tarde, serão realizadas, em salas separadas e especialmente preparadas para permitir as discussões entre os participantes, oficinas temáticas nas quais serão debatidos os temas propostos e elaboradas conclusões que serão submetidas à sessão plenária.

Durante a sessão plenária de encerramento, serão apresentadas as conclusões gerais do II CBCJE. Nessa atividade final, os representantes das carreiras jurídicas participantes terão a oportunidade de manifestar ideias de consenso sobre as conclusões e opiniões sobre a realização do evento.

O II Congresso Brasileiro das Carreiras Jurídicas de Estado (II CBCJE) será realizado entre os dias 6 e 9 de julho de 2010, no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília/DF. A segunda

edição do evento permitirá que se reafirme a importância de defender o interesse público como uma proposta real para o enfrentamento de inúmeras dificuldades do Estado na realização da justiça. O tema central é “O Papel das Carreiras Jurídicas para o Desenvolvimento do País”.

A aproximação e a integração entre as carreiras jurídicas de Estado estimula o intercâmbio de conhecimento sobre as atividades desempenhadas por cada uma dessas carreiras. Quem sai ganhando é a sociedade brasileira, que passa a ter acesso a serviços com mais qualidade e celeridade. Além da redução dos desperdícios de recursos públicos.

O enfrentamento, pelo Estado brasileiro, de problemas como a morosidade do Judiciário, a corrupção e a lavagem de dinheiro também sairá fortalecido. Afinal, o II CBCJE representa uma oportunidade para se discutirem questões que afetam as estruturas das carreiras jurídicas e tendem a dificultar o desenvolvimento do País. Não é raro que órgãos governamentais com atribuições semelhantes e com as mesmas dificuldades estejam fisicamente muito próximos, sem, contudo, estabelecer contato.

As discussões durante o II CBCJE envolvem o interesse do Estado Brasileiro e estarão focadas em questões sociais, políticas, econô micas e principalmente jurídicas, que tenham impacto no âmbito do Poder Judiciário e demandem pacificação social. Os diálogos travados durante o evento servirão de base para conclusões que poderão ser encaminhadas às diferentes instâncias dos Três Poderes e da própria sociedade civil organizada.

Ao longo do evento, serão debatidos temas importantes para o País e que têm relação com a atuação de profissionais das mais diversas carreiras jurídicas de Estado. O público estimado é de aproximadamente duas mil pessoas, envolvendo entidades e membros da Magistratura, do Ministério Público, da Defensoria Pública, das Procuradorias dos Estados e dos Municípios, dos Delegados de Polícia e da Advocacia Pública Federal. Além de dirigentes empresariais, lideranças da sociedade civil organizada, integrantes dos

O Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, participou da abertura do I Congresso Brasileiro das Carreiras Jurídicas de Estado, em 2008. A participação das mais altas autoridades da República na solenidade mostrou bem a importância do evento para o País

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Primeira ediçãoSuperar a ausência de diálogo institucional entre os integrantes

das carreiras jurídicas. Essa foi uma das grandes conquistas da primeira edição do Congresso Brasileiro das Carreiras Jurídicas de Estado, realizado em Brasília entre os dias 11 e 13 de junho de 2008. O evento reuniu cerca de dois mil integrantes das diferentes carreiras jurídicas de Estado e constituiu um marco importante na busca do bom funcionamento da máquina estatal e, consequentemente, para a concretização da justiça.

O primeiro Congresso foi organizado pela Advocacia-Geral da União (AGU) e mais 15 associações de carreiras jurídicas de Estado. O evento teve como temas os 20 anos da Constituição Federal e o papel dessas carreiras ao longo do período. “A grande constatação a que se chegou foi que essas carreiras ainda mantinham um relacionamento muito distante”, relembra o Coordenador Executivo das duas edições do Congresso Brasileiro de Carreiras Jurídicas de Estado, o Procurador Federal Mauro Luciano Hauschild.

“Também ficou claro que os serviços judiciários prestados à sociedade poderiam ser melhores se as carreiras se aproximassem e reduzissem formas e procedimentos que, muitas vezes, se repetem nos órgãos. A aproximação dessas carreiras faria o processo andar mais rápido e, assim, a prestação jurisdicional ou o atendimento ao cidadão se daria de forma mais célere”, prossegue Hauschild.

A partir daquela primeira edição do CBCJE, a AGU passou a aproximar todas as carreiras jurídicas nos inúmeros eventos que vem promovendo nesses últimos anos. Por meio da Escola da Advocacia-Geral da União (EAGU) e em parceria com associações de classe das carreiras jurídicas e outros órgãos públicos,

foram realizados eventos nas áreas de portos, previdência complementar, ambiental, combate à corrupção, patrimônio público e processo eletrônico e sobre a judicialização do PAC, além de juizados e transporte e logística, mineração, sistema financeiro e mercado de capitais.

Sempre baseados na perspectiva da aproxi-mação e integração das carreiras e na busca de um Estado mais eficiente e de um cidadão mais satisfeito, a Magistratura, o Ministério Público, a Advocacia Pública Federal, a Defensoria Pública, as carreiras das Polícias Judiciárias, das Procu-ra dorias dos Estados e dos Municípios passaram a participar de debates sobre o melhor funcio-namento do sistema de Justiça. “O objetivo é que todos saibam quais são os problemas e que, juntos, possam encontrar caminhos, soluções ou indicativos que melhorem a prestação do serviço à sociedade e façam com que o cidadão esteja mais satisfeito”, explica Hauschild.

Marco histórico para a JustiçaA realização do I CBCJE se deu em um cenário que teve

como base a reestruturação do aparato jurídico estatal com o advento da Constituição Federal de 1988. Essa mudança de paradigmas gerou novas demandas e desafios para a ainda recente organização estrutural dos atores estatais definidos como Funções Essenciais à Justiça.

Serviço: II Congresso Brasileiro das Carreiras Jurídicas de Estado (CBCJE)De 6 a 9 de julho de 2010Centro de Convenções Ulysses Guimarães Brasília/DF www.carreirasjuridicas.com.br

Idealizador e executor: na primeira edição do CBCJE, o Ministro Toffoli contou com a coordenação-executiva do Procurador Federal Mauro Luciano Hauschild, que também está à frente da organização desta segunda edição

O então Advogado-Geral da União, Ministro do STF José Antonio Dias Toffoli, idealizou o primeiro Congresso e ocupa o posto de presidente de honra e homenageado nesta edição de 2010

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SUCESSÃO x InVESTIMEnTOS

A empresa que cometeu o ilícito não deixou de existir, portanto deve permanecer como devedora, e no caso de não honrar com seus compromissos, em última análise, deve-se executar o Estado, responsável pela empresa.

É inadmissível atribuir o cumprimento de obrigação por ato ilícito contraída por empresa prestadora de serviços públicos a outra que não concorreu para o evento danoso apenas porque também é prestadora dos mesmos serviços públicos executados pela verdadeira devedora. Tal atribuição constitui um desvio do instituto da responsabilidade administrativa. Esse desvio pode comprometer a prestação do serviço público, porque, se todas as dívidas da antiga concessionária forem repassadas à nova, que por sua vez tem a obrigação de prestar um serviço de qualidade, o que ela vai fazer? Certamente terá muitas dificuldades de pagar funcionários, de investir, de desenvolver-se. E o que fica prejudicado? Fica prejudicado o transporte ferroviário. Fica prejudicado um serviço público essencial. Fica prejudicado, em muito, o interesse público.

Transporte é infraestrutura. Os passageiros do Estado do Rio de Janeiro não podem mais suportar aquele transporte deteriorado de outrora. A SuperVia assumiu em 1998 com 140 mil passageiros transportados. Hoje transportamos 500 mil pessoas por dia. Precisamos de mais investimentos. E o que os investidores privados querem simplesmente é seguir o contrato. Querem a garantia para fazer mais e novos investimentos,

A SuperVia, Concessionária de Transporte Ferroviário S.A, se investiu na qualidade de concessionária de serviços de transporte ferroviário em 1998, em decorrência de rigorosa licitação. Sua investidura foi,

portanto, originária e não por efeito de cessão, de forma que, exceto se previsto contratualmente, não cabe a ela responder por danos ocasionados pela antiga exploradora.

Apesar de estar escrito no contrato que a SuperVia não tem responsabilidade sobre passivos anteriores à data em que assumiu a concessão, em 1998, a grande preocupação que se apresenta hoje diz respeito à responsabilidade da concessão em confronto com uma pseudossucessão de empresas.

Temos hoje 342 ações cíveis e 495 ações trabalhistas. Ações essas que derivam da exploração do serviço de transporte ferroviário antes executado pela Companhia Fluminense de Trens Urbanos – Flumitrens/Companhia Estadual de Engenharia de Transporte e Logística – Central.

Ora, imagine uma concessionária que passou por uma licitação, leu o edital e previu no contrato os limites da sua responsabilidade. Essa concessionária então é surpreendida com a imputação de passivos anteriores à data em que assumiu a concessão, que são de responsabilidade de uma empresa que se encontra ativa, pois não houve extinção da pessoa jurídica originária, tendo em vista que a Flumitrens, posta em liquidação, foi cindida parcialmente, dando origem à Central Logística.

André Luiz NahassDiretor Jurídico da SuperVia

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Foto: Gil Ferreira/SCO/STF

que trarão benefícios imensos à população do Estado do Rio de Janeiro. O contrato de concessão deve ser respeitado, reduzindo o Risco Brasil em prol da sociedade.

A SuperVia está ultimando negociações com o Estado do Rio de Janeiro com o objetivo de prorrogar o contrato de concessão por mais 25 anos, possibilitando investimentos superiores a 1 bilhão de reais. Esses investimentos possibilitarão à concessionária transportar, já em 2015, mais de 1 milhão de passageiros por dia útil. Para que isso ocorra, torna-se imperioso que a concessionária tenha segurança jurídica para investir, que problemas pretéritos à sua existência não venham a recair sobre seu caixa, impossibilitando-lhe o desenvolvimento regular.

A imputação dessa pseudossucessão empresarial, além de não estar prevista em lei alguma — pelo contrário, afronta a Lei de Licitações e Contratos Administrativos —, leva muitas vezes a este estado de insegurança jurídica, que é um obstáculo grandioso ao desenvolvimento do Brasil, do Estado do Rio de Janeiro, como bem ressaltou o Desembargador Marcus Faver na palestra realizada pela Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro, em novembro de 2007, sobre o tema:

(...) Em sucessivas questões, os juízes se colocam ali como cidadão. E verificando que o Estado não está funcionando adequadamente, impõe às vezes decisões e condenações que não correspondem à estrutura jurídica prestada pelo país, levando muitas vezes a

este estado de insegurança jurídica, que é um obstáculo grandioso ao desenvolvimento do Brasil e dos estados brasileiros como nação e como estados federados. Essa insegurança decorrente em parte dessa vontade, dessas ânsias dos juízes em fazer da prestação jurisdicional uma substituição da obrigação do Estado, leva a decisões estapafúrdias sentimentais, às vezes caridosas, mas que não correspondem a uma estrutura jurídica que se espera de uma nação civilizada.

Para haver investimentos no serviço público é necessária uma equação em que os investidores conheçam o que vão enfrentar. A jurisprudência dos nossos Tribunais já está se posicionando em sentido contrário a essas ações de sucessão. A sociedade clama por melhores e mais abrangentes serviços público-privados e esse objetivo somente será atingido com investimentos. A população do Estado do Rio de Janeiro merece transporte público de qualidade, e a SuperVia irá cumprir o contrato, o seu contrato, e não responder pelo passado do qual não fez parte.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – STJ já vem se consolidando na rejeição da tese da sucessão e, com certeza, esse é o caminho que leva à redução do Risco Brasil.

Neste sentido, não há como não mencionar a ementa do acórdão proferido no julgamento do Recurso Especial n. 738.026 – RJ, realizado em 26/6/2007, em que foi relator o Ministro João Otávio Noronha, do seguinte teor:

Foto: Thiago Nehrer

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ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. RESPON-SABILIDADE CIVIL ADMINISTRATIVA. RESPONSABI-LIDADE OBJETIVA. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁ-RIA DO ESTADO. As regras de Direito Administrativo e Constitucional dispõem que as empresas criadas pelo Governo respon-dem por danos segundo as regras da responsabilidade objetiva, e, na hipótese de exaurimento dos recursos da prestadora de serviços, o Estado responde subsidiaria-mente (art. 37, par. 6º, da Constituição Federal).É defeso atribuir o cumprimento de obrigação por ato ilícito contraída por empresa prestadora de serviços públicos a outra que não concorreu para o evento danoso, apenas porque também é prestadora dos mesmos serviços públicos executados pela verdadeira devedora. Tal atribuição não encontra amparo no instituto da responsabilidade administrativa, assentado na responsabilidade objetiva da causadora do dano e na subsidiária do Estado, diante da impotência econômica ou financeira daquela.Recurso Especial provido.

A Segunda Seção do STJ, em julgamento recente sobre o tema, também esposou esse posicionamento nos autos do Conflito de Competência nº 101806:

Destarte, entendo que o direito indenizatório do obreiro, quando devido, não deve ser ignorado ou mesmo não cumprido. Contudo, há normas procedimentais a serem observadas, principalmente em face do princípio constitucional do devido processo legal.Por isso mesmo, não há de ser visto como absoluto quando em confronto com princípios constitucionais de que ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal, assegurando-lhe a ampla defesa e o contraditório. (CF, art. 5°, incisos LIV e LV), certo de que em muitos casos a SuperVia tem sido incluída na lide já na fase de execução, não se lhe tendo oportunizado direito do contraditório e ao devido processo legal na fase de conhecimento.A execução haveria de ser imposta à pessoa jurídica que figurasse no polo passivo do título ou sentença judicial executada, jamais a terceiro estranho à relação jurídica processual em respeito ao princípio da legalidade presente no Estado Democrático de Direito, e não como vem sendo praticado pela Justiça do Trabalho seguindo elementos destes autos e conhecidos, inovando a parte passiva na execução de sentença.Com efeito, não compreendo como se possa admitir uma sucessão de empresa em fase de execução, sendo a sucedida empresa pública capaz de honrar os seus compromissos trabalhistas.Penhoras on-line, que se ocorrentes ou vierem a acon-tecer, certamente comprometerão as atividades funcio-nais-empresariais da SuperVia, geradora de empregos e tributos no exercício de uma atividade essencial e social de transporte coletivo de trens urbanos de passageiros na cidade do Rio de Janeiro.

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro tem uma juris-prudência dividida. Já o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tem uma jurisprudência com percepção exata de que, se não tiver nenhuma cláusula contratual obrigando a concessionária a pagar prejuízos de terceiros, ela não tem que pagar nada.

O que ocorre é que muitas vezes, na aflição de fazer justiça, o magistrado realiza justamente o contrário. Faz com que os administradores, as concessionárias, as empresas, se retraiam nas atividades que têm e que devam ser feitas, porque não suportam os ônus indevidos que lhe são atribuídos.

Seguindo os ensinamentos do Ministro do STJ Luiz Fux, expostos na palestra realizada pela Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro, em novembro de 2007, “a sucessão no Direito Brasileiro não se presume. A sucessão está prevista na lei. Ou vai haver uma incorporação, uma cisão, alguma coisa tem que haver para que haja efetivamente uma sucessão. Você pode presumir uma sucessão em nome de absolutamente nenhum princípio.”

No campo do Direito Público, afronta o princípio da legalidade uma imputação graciosa de responsabilidade. E o que acontece na prática é a concessionária se deparar com um processo satisfatório de execução, uma penhora de bens da concessionária como se ela fosse responsável patrimonial por aquela dívida.

Além da sucessão ser equivocada no âmbito processual, igualmente o é no plano do direito material (obrigacional), uma vez que inexiste o nexo de causalidade. A concessionária não fez nada. O fato danoso não foi praticado por ela. Logo, não há como ter imputada essa responsabilidade objetiva.

Do que se conclui que, ainda que o fim seja satisfazer uma obrigação, achar um culpado, os meios utilizados não podem ser injustos, não podem atingir a quem não deve, sob pena de comprometer o avanço no transporte ferroviário, o desenvolvimento do Estado do Rio de Janeiro e o interesse geral da sociedade.

A empresa que cometeu o ilícito não deixou de existir, portanto deve permanecer como devedora, e no caso de não honrar com seus

compromissos, em última análise, deve-se executar

o Estado, responsável pela empresa.

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jurisdicionados entenderem o verdadeiro sentido da affectio societatis, sintetizada em confiança, harmonia, fidelidade e respeito mútuo entre os sócios.

E mais (talvez o mais difícil): fazê-los compreender que, possivelmente, a ruptura da affectio não acarretaria a disso-lução da sociedade, em que pese o rigorismo legislativo, pois imperiosa a manutenção de empregos, arrecadação de tributos e desenvolvimento econômico do país.

Encontrei respaldo, em especial, na doutrina de Fábio Konder Comparato, Modesto Carvalhosa, Rubens Requião e Fábio Ulhoa Coelho, bem como na jurisprudência.

Como magistrada de comarca situada no interior do Estado do Rio de Janeiro, São João da Barra, sin-ceramente não imaginava voltar meus pensamentos para o direito societário, até o dia em que me vi es-

crevendo sobre isso, por força do crescente desenvolvimento econômico da região onde exerço meu ofício.

Saltou-me aos olhos o instituto da affectio societatis, imprescindível na constituição e na dissolução das sociedades empresariais.

Isso porque me restava a certeza de que cabia a mim, no exercício das funções como Magistrada, fazer os

Luciana Cesario de Mello NovaisJuíza de Direito Titular da 1ª Vara Cível da Comarca de São João da Barra/RJ

A rUpTUrA DA AFFECTIO SOCIETATIS E O PRINCÍPIO DA

PRESERVAÇÃO DA EMPRESA

Foto: Arquivo Pessoal

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Atente-se para as lições de Fábio Konder Comparato, in verbis:Rejeitada pela doutrina moderna, como noção inútil à compreensão do mecanismo das sociedades mercantis, sobretudo das anônimas, a affectio societatis manifesta grande teimosia em sobreviver a essa universal condenação ao silêncio. Ela renasce, com o próprio nome ou outra terminologia, como elemento indefectível de estrutura e funcionamento das sociedades. Mais ainda: ela se instala em campo que tradicionalmente se lhe considera estranho, o das chamadas sociedades de capitais, em manifesta comprovação de sua operatividade, em termos de interpretação jurídica.1

Ora, a affectio societatis é um elemento intrínseco ao contrato de sociedade, caracterizado pela intenção dos sócios contratantes em constituir uma sociedade e pela aceitação dos mesmos aos objetivos comuns do negócio, sendo perfeitamente possível a dissolução parcial da sociedade quando a affectio não mais existe em relação a algum deles.

Questão bastante controvertida se instalou no egrégio Superior Tribunal de Justiça quando do julgamento dos embargos de divergência (EREsp nº 111.294-PR), sob a relatoria do Ministro Castro Filho. A matéria posta em debate, e objeto da dissidência, versava sobre a possibilidade de dissolução parcial de sociedade anônima por quebra da affectio societatis, tese defendida pelo acórdão embargado (REsp 111.294/PR, rel. p/ acórdão Min. Cesar Asfor Rocha).

Contrapondo-se a esse entendimento, foi trazido à colação precedente da Terceira Turma (AGA 34.120/SP, rel. Min. Dias Trindade), o qual afirma que: “nas sociedades anônimas não se apresenta possível a aplicação do princípio da dissolução parcial, próprio das sociedades por quota de responsabilidade limitada”. Essa orientação foi também acolhida no julgamento do REsp 419.174/SP, cujo relator foi o Ministro Menezes Direito.

Foi assim que, iniciando o julgamento do aludido recurso, a 2ª Seção de Direito Privado, por maioria de votos, rejeitou os embargos de divergência e manteve o entendimento de que é possível a dissolução parcial de sociedade anônima quando houver quebra da affectio societatis, sopesadas as peculiaridades do caso em concreto.

O fundamento para tal decisão foi o seguinte: a premissa de que “as normas e os critérios próprios das sociedades limitadas (intuito personae) não devem ser aplicados às sociedades anônimas” deve ser recebida com temperamentos. Nessa esteira, deve-se lançar mão desses quando o elemento preponderante para a constituição da sociedade anônima foi a afeição pessoal que reinava entre todos os sócios, dado o caráter familiar da sociedade empresarial.

Merece transcrição trecho do segundo voto, relatoria do Ministro Castro Filho, seguido pela maioria:

embora não se discuta que as sociedades anônimas se constituam sociedades de capital, intuito pecuniae, próprio das grandes empresas, em que a pessoa dos sócios não têm papel preponderante, a realidade da economia brasileira revela a existência, em sua grande maioria, de sociedades anônimas de médio e pequeno porte, em

regra de capital fechado, que concentram na pessoa de seus sócios um de seus elementos preponderantes.É o que se verifica com as sociedades ditas familiares, cujas ações circulam entre os seus membros, e que são, por isso, constituídas intuito personae, já que o fator dominante em sua formação é a afinidade e identificação pessoal entre os acionistas, marcadas pela confiança mútua. Em tais circunstâncias, muitas vezes, o que se tem, na prática, é uma sociedade limitada travestida de sociedade anônima, sendo, por conseguinte, equivocado querer generalizar as sociedades anônimas em um único grupo, com características rígidas e bem definidas.Nessa linha de entendimento, observa Rubens Requião que, hodiernamente, “não se tem mais constrangimento em afirmar que a sociedade anônima fechada é cons-tituída nitidamente com intuitu personae. Sua concepção não se prende exclusivamente à formação do capital desconsiderando a qualidade pessoal dos sócios. Em nosso país, com efeito, prevalece sociedade anônima constituída tendo em vista o caráter pessoal dos sócios, ou a sua qualidade de parentesco, e por isso chamada de sociedade anônima familiar.” E a seguir conclui: “A affectio societatis surge nessas sociedades com toda nitidez, como em qualquer outra das sociedades de tipo personalista. Seus interesses estão, pois, regulados pelo contrato, o que explica a pouca ingerência da fiscalização de órgãos públicos em seus negócios”. (“Curso de Direito Comercial”, vol. II, 1982, Ed. Saraiva, 11. ed., p. 28).Em casos que tais, porquanto reconhecida a existência da affectio societatis como fator preponderante na constituição da empresa, não pode tal circunstância ser desconsiderada por ocasião de sua dissolução. Do contrário, e de que é exemplo a hipótese em tela, a ruptura da affectio societatis representa verdadeiro impedimento a que a companhia continue a realizar o seu fim, com a obtenção de lucros e distribuição de dividendos, em consonância com o artigo 206, II, “b”, da Lei nº 6.404/76, já que dificilmente pode prosperar uma sociedade em que a confiança, a harmonia, a fidelidade e o respeito mútuo entre os seus sócios tenham sido rompidos.

Em sentido contrário, a divergência vem consubstanciada no entendimento de que, em regra, a possibilidade de dissolução parcial, com a consequente apuração de haveres dos sócios dissidentes, é incompatível com esse tipo de sociedade (anônima), porque própria tal iniciativa das sociedades de pessoas e na sociedade por cotas.

A meu sentir, a regra da dissolução parcial, acaso não acolhida pela jurisprudência, em nada aproveitaria aos valores sociais envolvidos, no que diz respeito à preservação de empregos, arrecadação de tributos e desenvolvimento econômico do país.

Assim, vem decidindo o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Pelas juridicidades de suas razões, colaciona-se ementa do acórdão da Terceira Câmara Cível, sob a relatoria do ilustre Desembargador Antonio Eduardo F. Duarte, in verbis:

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Societário. Civil e Processual Civil. Ação de rito ordinário. Holding. Sociedade anônima de capital fechado. Existência de geração de lucros. Ausência de distribuição por razão justificada. Dissolução parcial. Perda da affectio societatis. Apuração de haveres através do real valor do ativo e do passivo. Sócios minoritários. Admissibilidade na hipótese. Manutenção da sentença. Recursos desprovidos. As sociedades “holding”, sobretudo as de capital fechado, cujo objetivo primordial é o de controlar outras sociedades, não visam à produção ou circulação de mercadorias e serviços, e frequentemente são constituídas de modo a atender ao interesse comum e particular de seus sócios, possibilitando uma melhor organização da estrutura social, o que as tornam, portanto, mais próximas das sociedades de pessoas do que das típicas sociedades de capital. Via de consequência, a dissolução parcial de sociedade dessa espécie atende não apenas o aspecto do interesse social na continuidade da empresa, mas também a posição dos acionistas minoritários dissidentes, na medida em que, sem a ação de dissolução (a parcial), não teriam eles como se desfazerem de suas participações acionárias, ficando submetidos à vontade dos acionistas controladores, já que dificilmente poderá interessar a terceiro. Tendo em vista as peculiaridades do caso concreto, em que se está a tratar de sociedade anônima holding de capital fechado, mostra-se viável o deferimento da dissolução parcial postulada, em conformidade com a melhor doutrina e jurisprudência, especificamente quando se verifica que já restou suficientemente caracterizada a quebra da affectio societatis, devendo a correspondente apuração de haveres acontecer através da definição do real valor do ativo e do passivo. (Apelação Cível nº 6.659/2007, DJ de 19.10.2007)

Sendo assim, conclui-se que o rigorismo legislativo deve ceder lugar para a materialização do princípio da preservação da empresa, cuja solução para a ruptura da affectio societatis é a dissolução parcial da sociedade, a permitir a retirada dos sócios dissidentes, após a devida apuração de haveres.

Tal posição, a meu ver, coaduna-se com o papel político que o magistrado deve exercer, o qual, na condição de agente público, deve se utilizar de sua parcela de poder para atingir certos objetivos sociais.

Termino citando Dalmo de Abreu Dallari, em “O Poder dos Juízes” (Editora Saraiva, 3. Ed., página 92), para quem “(...) o juiz não decide nem ordena como indivíduo e sim na condição de agente público, que tem uma parcela de poder discricionário, bem como de responsabilidade e de poder de coação, para a consecução de certos objetivos sociais. Daí vem sua força. (...)”

NOTAS1 COMPARATO, Fábio Konder. “Novos Ensaios e Pareceres de Direito Empresarial”. São Paulo: Forense, 1981.

A crise atual decorreu de um imperativo psicossocial clássico nas economias de mercado, ou seja, o envolvimento de toda a sociedade, sem intervenção adequada dos governos, na busca de resultados

financeiros e no mercado de capitais, em face do crescimento da economia em padrões acima das necessidades de consumo dos que têm capacidade de absorver a produção. Dessa forma, os investimentos foram valorizados também em patamar mais elevado do que seu intrínseco valor estrutural, com o que, em um determinado momento, tal evolução, sem sustentabilidade real, necessariamente, terminaria por explodir, gerando mais uma crise cíclica de capitalismo, em dimensões maiores do que aquelas que ocorrerem após 1929.

O efeito psicológico de uma percepção superficial dos elementos causadores da crise, indiscutivelmente, acabou por gerar um prolongamento ilusório de um “boom econômico”, já diagnosticado por especialistas como sem condições de permanência, a partir de 2006/2007.

Os mercados não são autorreguláveis, mas as regulações oficiais quase sempre são insuficientes para corrigir suas distorções, mormente quando as próprias autoridades iludem-se quanto à sua capacidade de conduzi-lo.

Por outro lado, os investidores que o alimentam e que, não poucas vezes, também se iludem com a fortaleza estrutural do progresso e do desenvolvimento, terminam sendo, simultaneamente, causa e efeito gerador daquele momento em que a constatação da impossibilidade de sua permanência em níveis elevados indefinidamente torna-se evidente.

Em outras palavras, há um ponto de equilíbrio, que seria o limite crítico entre uma realidade controlável, propiciadora da estabilidade dos mercados, e a atuação dos agentes econômicos e autoridades tanto para perceber, quanto para promover uma intervenção corretiva, sempre que esse limite crítico, precário por natureza, é ultrapassado. É que, de outra forma, a atuação dos agentes econômicos passa a ser aleatória e desordenada, na busca desesperada de salvar o que lhes parece em risco de se perder, terminando, a ação das autoridades com poder regulatório, por ser superada pela atuação de investidores e consumidores.

São estes, de rigor, aqueles que determinam os humores da realidade econômica, nas crises e nos tempos de bonança.

Assim, há um ponto de equilíbrio permanente, na economia de mercado, sempre que os investidores, os agentes produtivos (agricultura, indústria, comércio e serviços) e os agentes públicos atuam na perspectiva de um desenvolvimento projetado, detendo pleno conhecimento dos fatores sociais, políticos, econômicos, de consumo e emprego, e sendo capazes de mantê-los constantes mediante controle induzido, por meio de políticas creditícias e fiscais capazes de estimular ou desestimular setores que possam provocar os desequilíbrios definidos como indesejáveis pelos agentes econômicos e públicos em conjunto. Nesse contexto de adequada política de mercado, a própria conjunção de agentes públicos e privados conformará o nível de gastos públicos e despesas burocráticas, sempre que estes possam

lDireito Tributário

lDireito Previdenciário

lDireito das Relações de Consumo

lDireito Civil

lDireito do Trabalho

lDireito Penal Empresarial

lDireito Administrativo

lDireito Internacional

lMediação e Arbitragem

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e m foco

TrIBUnAIS ADOTAM CUlTURA DA PAZ

A conciliação incorporou-se de vez à cultura dos tribunais brasileiros. São diversas as cortes de Justiça que decidiram “incrementar” essa iniciativa criada pelo Conselho Nacional de Justiça, órgão de fiscalização e

estratégia do Poder Judiciário, para dar conta do número sem fim de processos que ocupam as prateleiras de juizados, varas, câmaras ou turmas de julgamento — isso em todos os ramos especializados do Direito, em qualquer grau de jurisdição. Dessa forma, o esforço para tentar fazer com que as partes resolvam seus conflitos por meio do consenso foi ampliado e não se restringe mais à Semana Nacional da Conciliação, coordenado pelo CNJ, sempre ao final de cada ano.

Exemplificam essa nova realidade as iniciativas do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJEMG), que visam a permitir a conciliação em qualquer fase do processo e a qualquer dia do ano. Um dos projetos mais recentes é o Quero Conciliar, lançado em 24 de maio último. Trata-se de um canal, disponível no portal da corte na Internet (www.tjmg.jus.br), que tem por objetivo facilitar o agendamento de audiência de conciliação. Ali, qualquer cidadão que seja parte de um processo judicial, assim como seu representante legal (advogado), tem à disposição um formulário por meio do qual pode informar seu desejo de tentar entrar em um acordo.

O pedido da parte é encaminhado diretamente à vara judicial onde tramita o processo, para verificação da possibilidade de agendamento da audiência de conciliação. Cumprida essa etapa, a parte recebe uma notificação do respectivo juízo, com informações sobre data, local e horário de sua audiência. Segundo a Desembargadora Márcia Melanez, uma das responsáveis pela iniciativa, são muitos os benefícios deste novo canal. Para citar alguns, a simplificação do acesso à Justiça, a consolidação de mais um espaço de interação com a sociedade e a disseminação da cultura da conciliação e da paz social.

A vantagem mais importante, no entanto, está relacionada à razoável duração do processo, que esta iniciativa visa a garantir, em conformidade ao texto constitucional. Atualmente somam 70 milhões o número de processos judiciais em tramitação no País. Conjugada à burocracia e às leis que permitem a interposição de uma quantidade imensurável de

recursos, em muitos casos que acabam sendo utilizados com fins procrastinatórios, a morosidade se tornou uma realidade difícil de ser combatida nos tribunais do País.

Esse quadro vem mudando com a realização de reforma nas leis. A comissão de juristas instituída pelo Senado para elaborar o anteprojeto de reforma do novo Código de Processo Civil, por exemplo, incluiu a conciliação como uma etapa obrigatória a ser cumprida antes do início do processo. O texto foi entregue pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Luiz Fux, ao presidente do Senado, José Sarney, em 8 de junho último, e agora será analisado pelo Congresso.

Junto às mudanças legislativas, destacam-se a adoção de medidas tais como a conciliação. E os tribunais vêm apostando nisso. No Tribunal de Justiça mineiro, a Desembargadora Márcia Melanez destaca outras iniciativas, além do canal Quero Conciliar, que têm por objetivo justamente promover a cultura da paz ou do consenso, ela destaca a Central de Conciliação, criada com o propósito de fornecer resposta rápida às demandas das partes, com redução do tempo de tramitação processual. A Magistrada cita ainda o Disque Conciliação, outro canal por meio do qual as partes também podem manifestar seu desejo de partir para esta via alternativa de solução de conflitos.

“Estamos investindo nessa forma alternativa de soluções de conflito. Os números mostram que o Judiciário está sobrecarregado, e a população insatisfeita. Muitas demandas em curso na Justiça poderiam muito bem ser resolvidas pelas próprias partes”, afirmou a Desembargadora, destacando que a conciliação tem permitido ao País romper com a excessiva cultura da judicialização, existente nos próprios tribunais.

“Considerando que estamos em busca da pacificação social, que o CNJ chama de Justiça da Paz, estamos realmente investindo na conciliação como solução alternativa do conflito. E para isso, temos que começar a romper paradigmas, mesmo entre nós, operadores do Direito. Então, fazem-se necessárias essas campanhas, para mostrar que é possível conciliar. Basta a pessoa adotar uma atitude positiva diante de seu problema e assumir responsabilidade por aquilo que se comprometeu”, completou.

Ao lado da conciliação, destacam-se os investimentos na área da mediação. É o caso do Tribunal de Justiça do Rio de

Foto: sxc.hu

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Janeiro (TJERJ), que no início de junho enviou uma delegação de magistrados a Buenos Aires, capital da Argentina, para conhecer o Programa Nacional de Mediação daquele país, um dos mais bem sucedidos do mundo. O grupo foi conduzido pela Desembargadora Marilene Melo Alves.

De acordo com a Desembargadora, a mediação se diferencia da conciliação. “A mediação é um procedimento que tem mais conteúdo da psicologia, sociologia e assistência social. O enfoque jurídico é mais em termos de procedimento. Um conflito é basicamente um desentendimento. Isso significa que, em determinado momento de suas relações, as partes não conseguiram fazer uma comunicação correta. A mediação visa a proporcionar um nível de entendimento entre as partes, restabelecendo os canais de comunicação entre elas”, afirmou.

E acrescentou: “Quando se propõe uma conciliação, em linhas gerais, propõe-se que as pessoas repartam seu prejuízo e parem de brigar. Na mediação, vamos tentar saber o que as pessoas querem com o conflito. Ou seja, na conciliação, encerramos o processo. Na mediação, quando bem sucedida, encerramos o conflito”.

A iniciativa ganhou forma no TJERJ, sobretudo a partir de dezembro do ano passado, com a criação de centros de mediação, com atuação maior nas varas de família e nos juizados especiais criminais de violência doméstica. Hoje são 17 em funcionamento na Região Serrana, Região dos Lagos e Baixada Fluminense. A iniciativa, que tem o apoio do Ministério da Justiça, conta com 200 conciliadores. Outros 90 estão em fase de formação.

“A mediação é um procedimento que instauramos e que está tendo muito sucesso. Recebi um oficio de uma juíza da vara de família, que em uma audiência de divórcio foi informada pelas

partes que estavam desistindo do processo de guarda de filhos e alimentos. Elas tinham sido encaminhadas para a mediação e ali se reconciliaram. Então, a mediação estabelece esse nível de comunicação entre os contendedores, de modo a fazer que os conflitos não sejam tão arraigados”, comentou.

A Desembargadora destacou a importância da mediação para conter o crescente número de processos. De acordo com Marilene, a demanda do Judiciário aumentou diante do crescimento da população e, principalmente, devido à cultura no Judiciário de se ampliar o acesso à Justiça e do fato de as pessoas estarem mais conscientes de seus direitos. “O Judiciário se vê diante de um dilema: permitir o maior acesso à Justiça e, ao mesmo tempo, garantir a qualidade do serviço, que não deve se traduzir apenas em decisões rápidas, e sim justas e ponderadas”, destacou.

De fato, as vias alternativas de solução do conflito vêm mostrando-se eficientes. Em relação à mediação, segundo a Desembargadora, as estatísticas mostram o sucesso da iniciativa no Rio. A média é de pleno acordo em 70% dos casos. Do restante, uma grande parte desiste da ação e o conflito não tem prosseguimento. Outra opta pelo consenso de forma parcial.

No que diz respeito à conciliação, dados do CNJ também confirmam o êxito da iniciativa. Os 122,9 mil acordos firmados durante a quarta edição da Semana Nacional de Conciliação, promovida pelo Conselho em dezembro do ano passado, resultaram em homologações no valor total de R$1 bilhão. Em todo o País, foram agendadas 333 mil audiências pelos 56 tribunais das justiças Federal, Estadual e do Trabalho. Destas, 260 mil foram realizadas (78,1%) e 123 mil resultaram em algum tipo de acordo (47,2%).

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AngELInA E MArIA DA pEnHA

“Irene preta, Irene boa,Irene sempre de bom humor.Imagino Irene entrando no céu:– Licença, meu branco.E São Pedro, bonachão:– Entra, Irene, você não precisa pedir licença.”

O que cantou Manuel Bandeira de Irene pode-se dizer de Angelina, que se pecado tem é o de fornecer-nos pretexto para o cometimento do pecado da gula. Angelina boa, suave, pura, simples, ingênua, sempre alegre e bem-humorada, de uma comovente ternura e boa vontade e, em suas poucas luzes, sagaz e inteligente.

Estava eu sentado à mesa da cozinha com minha mulher. Em dado momento, alertando-a sobre um fictício mosquito que teria pousado em seu cabelo, perguntei-lhe se poderia matá-lo. Diante de sua resposta afirmativa, distanciei a mão, fingindo que iria aplicar-lhe um tapa na cabeça com toda a força. Angelina, percebendo a brincadeira, sorriu, e, ante meu comentário de que parecia despreocupada com o que estaria prestes a acontecer, advertiu-me:

– O senhor conhece a Lei Maria da Penha, não conhece?

À minha resposta evidentemente afirmativa, acrescentou com candura:

– Pois é, não precisa bater, basta ameaçar...Angelina é do povo, Angelina conhece a Lei Maria da

Penha, o povo conhece a Lei Maria da Penha. Se há, pois, entre nós, como se costuma criticar, “leis que pegam” e “leis que não pegam”, dessa se pode seguramente dizer que “pegou”. Que o diga Angelina.

Manoel Alberto Rebêlo dos SantosDesembargador do TJERJDiretor da Emerj

Foto: Rosane Naylor

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