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    Economia marxista eeconomia freudianaou política e pulsãoCLÁUDIO OLIVEIRA1

    Esta economia para a qual Freud produziu a palavra libido. J. Lacan, D’un Autre à l’autre , p.250.

    Falar de Marx após Freud implica dois problemas: o de falar da relação entreMarx e Freud, mas também o de falar dessa relação em termos de um “após” –umapós de Marx em relação a Freud. É claro que pensar oapós nesses termosimplica, ao mesmo tempo, uma certa compressão da temporalidade histórica. Oselementos para essa nova compreensão da temporalidade histórica já estão dadosem Marx e Freud.

    Vou partir, para ilustrar isso, de uma passagem da primeira lição do SeminárioV, As formações do inconsciente , em que Lacan apresenta pela primeira vez a célulabásica daquilo que se tornará seu famoso grafo do desejo. Trata-se do esquemado ponto de basta, que ele extrai da técnica do estofador.Lacan se utiliza desse esquema para falar da relação entre o significante e o sig-nificado, que ele descreve como “o duplo fluxo paralelo do significante e do signi-ficado, distintos e fadados a um perpétuo deslizamento um sobre o outro”2. Semos pontos de basta, não saberíamos a que nos atermos, “pelo menos nos limites

    1 Universidade Federal Fluminense. 2 Jacques Lacan.O seminário, livro 5: As formações do inconsciente (1957-1958). Trad. Vera Ribeiro.

    Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p.15.

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    possíveis desses deslizamentos”3. É preciso, portanto, que haja pontos de basta,que em algum ponto o tecido do significante se prenda sobre o tecido do signifi-cado, mas sem esquecer que “os pontos de basta deixam uma certa elasticidadenas ligações entre os dois termos”4.

    Essa primeira descrição espacial ou topológica ganha, no entanto, imedi-atamente, uma descrição temporal, quando Lacan afirma que “um discurso não éum evento puntiforme [...]. Um discurso não é apenas uma matéria, uma textura,mas requer tempo, tem uma dimensão no tempo, uma espessura” (p.17). Essatemporalidade é, no entanto, uma temporalidade lógica, uma necessidade internaà estruturação do próprio discurso. Como ilustração dessa necessidade internaLacan, na ocasião, nos dá a definição de frase: “é absolutamente necessário –essa é a definição de frase – que eu tenha dito a última palavra para que vocêscompreendam a situação da primeira”5. Essa definição de frase sob seu aspecto

    temporal, e que implica que eu a pense não apenas como um fato da linguagem,mas, sobretudo, desde a perspectiva da fala, mostra-nos como o próprio discurso,em sua realização, implica um tempo, mas um tempo que se define pelo fato deque é umapós que define umantes . Há um efeito retroativo de significação queos significantes que se sucedem dão aos significantes que vêmantes .

    Ao mesmo tempo, essa temporalidade lógica, descrita como definindo a es-trutura do discurso, tem um sentido histórico indissociável. Como diz Lacan, atemporalidade lógica que se pode mostrar no texto da própria experiência analíticafica ainda mais visível “numa escala infinitamente maior, quando se trata da históriado passado”6. Essa temporalidade e historicidade lógicas são definidas por aquiloque Lacan chama de “açãonachträglich do significante”7.Tomemos por exemplo uma cadeia significante, a história do pensamento, emque o significante Marx é sucedido pelo significante Freud. Dá-se então a açãonachträglich do significante Freud sobre o significante Marx. Freud produz umefeito de significação sobre Marx. Neste texto eu gostaria de falar precisamentedo efeito de significação que Freud produz sobre Marx.

    O próprio Freud, enquanto ainda não é sucedido por nenhum significante,mantém-se como um significante enigmático, à espera de um significado. Épreciso que nessa cadeia advenha, por exemplo, em um tempo, o significante La-

    can, para que uma significação se dê para Freud. Antes de Lacan, é claro, outrossignificantes (Anna Freud, Melanie Klein, Adorno, Althusser) produziram outrassignificações. Por isso é importante que lembremos a observação de Lacan em“Função e campo”:quando reordenamos as contingências passadas damos a elas

    3 Ibidem. 4 Ibidem. 5 Ibidem. 6 Ibidem. 7 Ibidem.

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    o sentido das necessidades por vir . Isto é, ao interpretar o passado, decidimo-nosquanto ao futuro, pois toda interpretação é sempre uma interpretação do desejo.Na açãonachträglich que descrevemos aqui, trata-se portanto de um Marx nachFreud , mas também de umFreud nach Lacan 8.

    O termo alemãonachträglich , que Lacan elevará à condição de conceitoestruturante da temporalidade discursiva e, por conseqüência, da temporalidadehistórica, é encontrado, em seu uso por Freud, numa passagem doProjeto .Mesmo que Freud não tenha transformado o termo em conceito, como o fez Lacan,o uso que dele faz na passagem justifica inteiramente a apropriação lacaniana.

    Freud está tratando do caso Emma, que ele descreve assim:

    Emma está atualmente sob a compulsão de que não pode irsozinha a uma loja.Como fundamentação da mesma, uma recordação de quando tinha doze anos (poucodepois da puberdade). Ela foi a uma loja para comprar algo, viu os dois balconistas,dos quais há nela uma recordação de um deles, rindo entre si, e fugiu num certoafeto de terror. Em relação a isso, pensamentos despertam, de que ambos riram deseu vestido e de que um deles lhe agradara sexualmente9.

    Freud continua a investigação e descobre uma segunda recordação, que Emmacontesta ter tido no momento da primeira cena descrita. Freud chama essa segundarecordação de “Cena II”, e a primeira, de “Cena I”. A Cena II, que Emma descreveagora, conta o seguinte:

    Quando criança, aos oito anos, foi sozinha duas vezes na loja de um merceeiropara comprar gulodices. A nobre figura a beliscou nos genitais através do vestido.Apesar da primeira experiência ela foi lá uma segunda vez. Após a segunda vez,não foi mais. Agora faz a si censuras por ter ido lá uma segunda vez, como se comisso tivesse querido provocar o atentado10.

    A proposta de interpretação de Freud consiste em levar em consideração aCena I, a dos balconistas, tomando-a ao lado da Cena II, a do merceeiro. Apa-rentemente, parece que a Cena I, que vem após, é explicada pela Cena II, que vem

    antes. Mas Freud nos ensina que a Cena II, que vem antes, só pode ter influênciasobre a Cena I, que vem depois, a partir de uma modificação que a própria CenaI produz sobre a Cena II, a qual não tinhaa priori o significado que veio a ter

    8 Lacan permanece um enigma como significante em nosso tempo, a despeito dos esforços de al-guns para dar a eleuma significação. Ao contrário, a significação que Lacan deu a Freud é hojeincontestavelmente dominante, mesmo que haja muita resistência a ela (o que não é senão um dossinais inequívocos de seu domínio).

    9 S. Freud, “Projeto para uma psicologia científica” [1950 [1895]]. In: S. Freud, Edição standard brasileiradas obras psicológicas completas de Sigmund Freud . Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. I, p.445.

    10 Ibidem.

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    depois . É essa modificação que justifica que Freud chame de Cena I a cena que,no entanto, vem, cronologicamente, depois da Cena II. Freud descreve a modifi-cação nestes termos:

    Trata-se aqui do caso em que uma recordação desperta um afeto que não despertaraenquanto vivência [isto é, enquanto atual] porque nesse intervalo a transformaçãoda puberdade possibilitou uma outra compreensão do recordado11.

    Trata-se, portanto, não tanto do que é recordado, mas de como ele é com-preendido. Freud lembra que “apenas posteriormente [nachträglich ]” aquelarepresentação recalcada “se tornou um trauma”12. Temos aqui a ilustração dissoque Lacan chama de “açãonachträglich do significante”.

    Ora, Marx utiliza um procedimento homólogo ao de Freud ao tratar de seu

    objeto de estudo: as categorias econômicas. Estas não aparecem, em sua obra,“na ordem segundo a qual tiveram historicamente uma ação determinante”13. Aordem em que elas se sucedem, por exemplo, emPara a crítica da economia

    política , é “precisamente o inverso do que parece ser uma relação natural ou doque corresponde à série do desenvolvimento histórico”14. Marx parte da socie-dade burguesa, a “organização histórica mais desenvolvida, mais diferenciada daprodução”, para

    penetrar na articulação e nas relações de produção de todas as formas de sociedadedesaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos se acha edificada, e cujos vestígios,não ultrapassados ainda, leva de arrastão desenvolvendo tudo o que fora antesapenas indicado, que toma assim toda a sua significação15.

    Destaco o termosignificação no texto de Marx. Ele autoriza que utilizemos oesquema lacaniano da relação entre significante e significado também para pensar oprocesso histórico tal como descrito por Marx. Creio que podemos ler a passagemcomo uma descrição precisa do que Lacan chama de açãonachträglich do signifi-cante. Como no caso Emma, o capitalismo desenvolve tudo o que, em sociedadesdesaparecidas, era apenas indicado. Portanto, só no capitalismo esses vestígios eelementos significantes ganham, nas palavras de Marx, suasignificação .

    11 Ibidem, p.447. 12 Ibidem, p.448. 13 K. Marx, “Para a Crítica da Economia Política” [1857]. In: K. Marx,Manuscritos econômico-filosóficos

    e outros textos . Seleção de textos de José Arthur Giannotti; trad. José Carlos Bruni et al. São Paulo:Abril Cultural, 1978 (Col. Os Pensadores), p.122.

    14 Ibidem. 15 Ibidem, p.120.

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    Marx se serve igualmente (como o faz muitas vezes Freud16) do exemplodas espécies animais para explicitar essa estrutura temporal. Ele diz: “O que nasespécies animais inferiores indica uma forma superior não pode, ao contrário, sercompreendido senão quando se conhece a forma superior”17. Em outras palavras,o presente não é imediatamente explicado pelo passado. Ao contrário, só o pre-sente pode explicar o passado, o qual, através dessa explicação presente, só depoispode se mostrar como tendo sido o passado do presente que temos hoje. Mas o“só depois” indica que essa causalidade não pode ser estabelecidaa priori , masapenasa posteriori , nachträglich . É o que Marx cunha em sua célebre fórmula:“A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco”, que para ele significa:“A economia burguesa é a chave da economia da Antigüidade”18.

    Para nos utilizarmos dessa fórmula, diremos que a economia psíquica de Freudé a chave da economia política de Marx, e esse é o sentido do Marx após Freud que

    tentamos abordar aqui. Se podemos com justiça dizer que algo já estava lá, emMarx, disso que podemos ver agora, em Freud, podemos dizê-lo, com justiça, sódepois,nachträglich .

    O Marx após Freud ao qual nos referimos tem seu ponto de partida no próprioFreud, na medida em que Freud dá os primeiros passos para a constituição desseapós . Em outras palavras, ele já se sabe umapós , desde o qual fala, quando falasobre Marx. E mesmo que esseapós mal tenha começado com ele – como sabe-mos, por exemplo, pelas leituras que fizeram de Marx, a partir desseapós , tanto aEscola de Frankfurt quanto Althusser –, Freud, ao se pronunciar sobre Marx, dizcoisas fundamentais. Freud já sabe que há um outro Marx após Freud.

    Um dos poucos lugares, senão o único, em sua obra, em que Freud se refereexplicitamente a Marx, é na conferência escrita em 1932,Sobre uma Weltanschau-ung . Freud considerava o marxismo um dos fenômenos que, sobretudo naquelesdias, não se podia negligenciar. Lembremos que se vivia, naquele momento, comoafirma Freud, “uma crise econômica, que sucedeu a grande guerra”19. Ao mesmotempo que confessa a insuficiência de suas informações sobre o assunto, Freudnão deixa de fazer elogios e críticas a Marx.

    Ele começa elogiando a inegável autoridade adquirida, segundo ele, pelas“investigações de Karl Marx sobre a estrutura econômica da sociedade e so-bre a influência de diferentes formas econômicas em todos os setores da vida

    16 Por exemplo, no primeiro capítulo deO mal-estar na civilização . 17 K. Marx, “Para a Crítica da Economia Política”, op.cit., p.120. 18 Ibidem. 19 S. Freud, “Novas Conferências Introdutórias sobre psicanálise. Conferência XXXV: A questão de uma

    Weltanschauung ” [1932]. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completasde Sigmund Freud . Rio de Janeiro: Imago, 1996, v.XXII, p.173.

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    humana”20. Mas estranha certas assertivas de Marx, que ele considerava muitopouco “materialistas” e, na verdade, “[...] um precipitado daquela obscura filosofiahegeliana”21. Freud acredita que “a força do marxismo está, evidentemente, não emsua compreensão da história” que Freud entende não como expus anteriormente,mas como determinada pela visão hegeliana da história, aquela que, segundoele, Freud, permitiria “profecias de futuro baseadas nela”22. Freud acredita quea força do marxismo está, ao contrário, “na arguta demonstração da influênciadecisiva [ zwingenden ] que as relações econômicas dos homens têm sobre as suasatitudes intelectuais, éticas e artísticas”23. Mesmo que Freud não aceite que “osmotivos econômicos sejam os únicos que determinam o comportamento dos sereshumanos em sociedade”24, ao centrar-se no valor do pensamento econômico deMarx, o isola tanto daquilo que o antecede quanto daquilo que o sucede, istoé, tanto da filosofia de Hegel, na qual Marx se baseia, segundo Freud, “em sua

    visão da história”, quanto do bolchevismo russo, que visa cumprir “as profeciasde futuro baseadas nela”. Freud, portanto, não vê na compreensão de história deMarx aquela mesma compreensão de história que ele decifrou na estrutura doinconsciente. Por isso o interesse dele se atém ao Marx economista. A leitura deFreud, podemos dizer, vai, num certo sentido, na mesma direção do comentáriofeito algumas décadas mais tarde, por Lacan, ao afirmar:

    o que a psicanálise nos permite conceber não é nada senão isto, que está sobre avia que o marxismo abria, a saber, que o discurso é ligado aos interesses do sujeito.É o que Marx chama, na ocasião, de economia25.

    Lacan se mostra, igualmente, bem freudiano, ao afirmar, em A ciência e averdade , que “uma ciência econômica inspirada noCapital não conduz necessa-riamente a usá-lo como poder de revolução”26. A afirmação de Lacan reproduz, defato, um posicionamento explícito de Freud na conferência de 1932, pois é exata-mente a idéia de uma ação revolucionária fundada na descoberta da importânciadas relações econômicas que Freud condena:

    A recente descoberta da importância extraordinária das relações econômicas trouxeconsigo a tentação de não deixar que as alterações nelas ficassem ao curso do desen-volvimento histórico, mas sim de pô-las em execução pela ação revolucionária27.

    20 Ibidem, p.172. 21 Ibidem. 22 Ibidem, p.173. 23 Ibidem. 24 Ibidem. 25 J. Lacan.Le Séminaire, livre XVII: L’envers de la psychanalyse(1969-1970). Texte établi par Jacques-

    Alain Miller. Paris: Seuil, 1991, p.105. 26 J. Lacan,Escritos . Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.884. 27 S. Freud, A questão de umaWeltanschauung . In: S. Freud, op.cit., v.XXII, p.175.

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    É preciso atentar para o fato de que Freud faz, nesta conferência, uma distinçãode valor muito clara entre “os escritos de Marx” e o que ele chama de “marxismoteórico, tal como foi concebido no bolchevismo russo”, no qual aqueles escritos“assumiram o lugar da Bíblia e do Alcorão, como fonte de revelação”28. É somentenesse marxismo teórico do bolchevismo russo que ele reconhece todos os traços deumaWeltanschauung de tipo religioso e que é objeto de sua crítica29. O pensamentode Marx, Freud o entende, ao contrário, como “sendo originalmente uma parcelada ciência, e construído, em sua implementação, sobre a ciência e a tecnologia”30.Nesse sentido, a seu ver, os escritos de Marx, como a psicanálise, não criariam umaWeltanschauung e adeririam àWeltanschauung científica. Mas Freud acha que, paraque o marxismo se torne autêntica ciência social, ele precisaria ser suplementadopela psicanálise, levando em consideração os fatores psicológicos.

    Esses “fatores psicológicos” seriam: o modo como as reações dos seres huma-

    nos vivos concorrem para o estabelecimento das condições econômicas; o modocomo seus impulsos pulsionais originais são postos em execução sob o domíniodessas condições econômicas; o modo como o supereu, como representante dastradições e dos ideais do passado, resiste a uma situação econômica nova31; e,por fim, o modo como se dá o processo civilizatório sofrido pela massa de sereshumanos sujeitos às necessidades econômicas. Em todos esses fatores, me parececlaro que as situações, condições e necessidades econômicas se mantêm como oelemento inquestionado da teoria de Marx. O suplemento psicanalítico oferecidoao marxismo em nenhum momento questiona “as investigações de Karl Marx sobrea estrutura econômica da sociedade e sobre a influência de diferentes sistemaseconômicos em todos os setores da vida humana”32.Ao contrário, há uma identificação de Freud com o Marx economista, o quetalvez se explique pelo fato de que o próprio Freud, desde muito cedo, tambémprocurou abordar os fenômenos de que tratou desde uma perspectiva econômica.

    28 Ibidem. 29 Permito-me enviar o leitor ao meu artigo “Freud, Marx e aWeltanschauung ”. In: Bernardes, A.

    (Org.).10 x Freud . Rio de Janeiro: Azougue, 2005, onde essa questão é mais extensamente desen-volvida.

    30 S. Freud, A questão de umaWeltanschauung . In: S. Freud, op.cit., v.XXII, p.175. 31 Freud se refere a esse papel do supereu e ao fato de o materialismo histórico não levá-lo emconsideração já na Conferência XXXI: “Parece provável que aquilo que se conhece como visãomaterialista da história peque por subestimar esse fator. Eles o põem de lado, com o comentário deque as ‘ideologias’ do homem nada mais são do que produto e superestrutura de suas condiçõeseconômicas contemporâneas. Isto é verdade, mas muito provavelmente não a verdade inteira. Ahumanidade nunca vive inteiramente no presente. O passado, a tradição da raça e do povo, vivenas ideologias do supereu e só lentamente cede às influências do presente, no sentido de mudançasnovas; e, enquanto opera através do supereu, desempenha um poderoso papel na vida do homem,independente de condições econômicas”. S. Freud, “A dissecação da personalidade psíquica”. In:op.cit., p.72. É claro que a crítica de Freud certamente poderia ser questionada por uma leituramais atenta de Marx, uma leitura que, obviamente, não encontramos em Freud.

    32 S. Freud, A questão de umaWeltanschauung . In: S. Freud, op.cit., v.XXII, p.172.

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    Em uma carta a Fliess, de 25 de maio de 1895, ele fala de suas intenções com essa“psicologia” para fisiólogos que ele estava escrevendo então e que nós conhecemoshoje como o “Projeto”:

    Vivo atormentado por duas intenções: descobrir que forma tomará a teoria dofuncionamento psíquico se nela for introduzido um método de abordagem quanti-tativo, uma espécie de economia de força nervosa, e, em segundo lugar, extrair dapsicopatologia tudo o que puder ser útil à psicologia normal33.

    Nós sabemos que, nesse momento, a perspectiva quantitativa, isto é, econômi-ca, Freud a extrai, por comparação, sobretudo da termodinâmica, que funcionacomo uma espécie de ciência ideal para ele. Algumas décadas mais tarde, maisprecisamente em 1968, Lacan, sem questionar o lugar dado à termodinâmica porFreud, afirmará, no entanto, já se referindo explicitamente a Marx, que talvez “asreferências e configurações econômicas [no sentido da economia política] sejamaqui [no momento em que ele fala], de outro modo, mais propícias que aquelasque se ofereciam a Freud, vindo da termodinâmica, e que são mais longínquas, naocasião”34. No seminário do ano seguinte,O avesso da psicanálise , Lacan afirmaráque a importância de ler os economistas e o interesse que os analistas têm nessaleitura teria a ver com o fato de que, “se há algo a ser feito na análise é a instituiçãodesse outro campo energético, que necessitaria de outras estruturas que não as dafísica”35. Esse outro campo energético, Lacan o chamará, neste seminário, de “ocampo do gozo”. Em Freud, esse campo econômico é definido por um conjunto

    de nomes, entre os quais se destacam os conceitos de pulsão e libido.Talvez se possa mostrar que já em Freud a abordagem do econômico migrade uma apropriação do campo energético termodinâmico para uma analogia como campo da economia política: uma analogia que, mais tarde, Lacan entenderácomo uma homologia. De qualquer modo, uma leitura atenta de Freud mostra quea referência à economia política (e por conseqüência a Marx), já presente desdeo início de sua obra, se adensa nos textos mais tardios de oFuturo de uma ilusão (1927) eO mal-estar na civilização (1930 [1929]), nos quais a referência a Marx,mesmo sem ser explícita, não pode ser desconsiderada.

    Bem antes disso, no entanto, já no Capítulo VII de A interpretação dossonhos , que trata do papel desempenhado nos sonhos pelo desejo inconsciente,Freud, tomando como analogia situações econômicas que encontram paralelo nosprocessos oníricos, compara os restos diurnos ao empresário que “não pode fazernada sem o capital”36. O empresário, resto diurno, diz Freud,

    33 S. Freud, “Projeto para um psicologia científica”. In: S. Freud, op.cit., v.I, p.335. 34 J. Lacan,Lé Séminaire, livre XVI: D’un Autre à l’autre(1968-1969). Texte établi par Jacques-Alain

    Miller. Paris: Seuil, 2006, p.21. 35 J. Lacan.Le Séminaire, livre XVII: L’envers de la psychanalyse, op.cit., p.34. 36 S. Freud, “A interpretação dos sonhos” [1900]. In: S. Freud, op.cit., v.IV/V, p.590.

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    precisa de um capitalista que possa arcar com o gasto, e o capitalista que forneceo desembolso psíquico para o sonho é, invariável e indiscutivelmente, sejam quaisforem os pensamentos do dia anterior, um desejo oriundo do inconsciente37.

    Mais à frente, Freud menciona uma série de outras situações econômicas quepoderiam encontrar equivalente na produção de sonhos:

    Por vezes, o próprio capitalista é o empresário, e sem dúvida, no caso dos sonhos,isso é o mais comum; um desejo inconsciente é estimulado pela atividade diurnae passa a formar um sonho. Do mesmo modo, as outras variações possíveis nasituação econômica que tomei como analogia também encontram paralelo nosprocessos oníricos. O próprio empresário pode fazer uma pequena contribuiçãopara o capital; diversos empresários podem recorrer ao mesmo capitalista; várioscapitalistas podem reunir-se para fornecer ao empresário o que é preciso. Do mesmomodo, encontramos sonhos que são sustentados por mais de um desejo onírico;e o mesmo se dá com outras variações semelhantes que poderiam ser facilmenteenumeradas38.

    Salta aos olhos nessas passagens o vocabulário econômico (gasto, capital,desembolso) do qual Freud vai pouco a pouco se servindo para descrever os pro-cessos psíquicos inconscientes – um vocabulário que irá se ampliar ainda mais naobra de 1905,Os chistes e sua relação com o insconsciente . A técnica do chistedescrita nessa obra visa explicar, acima de tudo, como é possível, através do pro-cesso lingüístico envolvido na produção do chiste, obter prazer. Trata-se de sabercomo o ganho de prazer [ Lustgewinn ] pode originar-se desse processo.

    Um chiste, nos ensina Freud, contorna um obstáculo interno ou externo quese opõe à satisfação de um propósito. No caso em que o obstáculo é interno, oque ocorre é que, através do chiste, é suspensa uma inibição. Ora, Freud sustentaque “tanto para erigir como para manter uma inibição psíquica se requer alguma‘despesa psíquica’”39. No uso dos chistes, o ganho de prazer, explica Freud, “cor-responde à despesa psíquica que é economizada”40. Há portanto um princípioeconômico presente na técnica dos chistes. Não se trata apenas de uma economia de

    palavras, mas de uma economia de despesa psíquica. Mesmo que Freud considere,em princípio, obscuro o conceito de “despesa psíquica”, ele não deixa de atentarpara o fato de que “‘a economia na despesa relativa à inibição ou à supressão ’parece ser o segredo do efeito de prazer dos chistes”41.

    37 Ibidem. 38 Ibidem.39 S. Freud, “O chiste e sua relação com o inconsciente” [1905]. In: S. Freud, op.cit., v.VIII, p.116.

    40 Ibidem. 41 Ibidem, p.117.

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    Esse modo econômico de descrever os processos psíquicos do sonho e do chistese repete quando Freud aborda a formação do sintoma e o papel desempenhado,na histeria, pelos motivos da doença. No caso Dora isso pode ser observado, porexemplo, na passagem em que Freud introduz a idéia de um lucro secundárioobtido pelo sintoma:

    No início, [o sintoma] não tem nenhum emprego útil na economia domésticapsíquica, porém com muita freqüência encontra serventia secundariamente. Umaou outra corrente psíquica acha cômodo servir-se do sintoma, que assim adquireuma função secundária42.

    Em 1923, no entanto, após ter escrito Além do princípio do prazer e ter intro-duzido o conceito de pulsão de morte, Freud acrescenta, em nota de rodapé a essapassagem, que os motivos da doença não são secundários, mas estão presentesdesde o início. Ele lembra a distinção introduzida por ele mais tarde entre lucrosecundário e lucro primário da doença:

    O motivo para adoecer, naturalmente, é sempre a obtenção de algum lucro. O quesegue nas frases subseqüentes deste parágrafo diz respeito ao lucro secundário, masem todo adoecimento neurótico deve-se reconhecer também um lucro primário.Em primeiro lugar, o adoecimento poupa uma operação psíquica, emerge como asolução economicamente mais cômoda em caso de conflito psíquico (é a “fuga paraa doença”), ainda que, na maioria das vezes, depois se revele de maneira inequívocaa inoportunidade dessa saída. Essa parte do lucro primário pode ser descrita como

    interna ou psicológica, e é, por assim dizer, constante43

    .

    Essas passagens, do início de sua obra, que pediriam por si sós visando a tantoscomentários, trago-as aqui, visando apenas mostrar que, desde cedo, Freudconstitui uma teoria da economia psíquica que não se constrói sem paraleloscom a teoria da economia política, mesmo que não fique claro se esse paralelo sedá com a economia política clássica, que Marx critica, ou com a crítica da econo-mia política propriamente dita, empreendida por Marx. Mas em obras posteriores,sobretudo a partir deO futuro de uma ilusão , creio que a referência a Marx, mesmo

    que velada, não possa mais deixar de ser levada em consideração. A partir dessaobra, o paralelismo entre a economia psíquica e a economia política começa a seintensificar, tornando o fenômeno econômico descrito em ambos os domínios, opsíquico e o político, um mesmo fenômeno indiscernível. Só que agora, o paralelocom a economia política aparece aqui já a partir de ressonâncias da crítica marxista a

    42 S. Freud, Fragmento da análise de um caso de histeria [1905 [1901]]. In: S. Freud, op.cit., v.VII,p.50.

    43 Ibidem.

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    essa economia. É o que ainda não pode ser visto emPsicologia das massas e análisedo eu (1921) mesmo que seja aqui que essas paralelas comecem a se encontrar, namedida em que Freud parte de sua teoria da libido para descrever o laço social.

    Logo na abertura dessa obra, Freud questiona qualquer possibilidade de es-tabelecer entre a psicologia individual e a psicologia social uma fronteira nítida.Ele fala de uma perda de nitidez no contraste entre elas, quando examinadas maisde perto. À medida que a psicologia individual trata dos “caminhos pelos quaisele [o homem] busca encontrar satisfação para seus impulsos pulsionais”44, ela nãopode desprezar as relações do indivíduo com os outros, pois “na vida psíquica ooutro comparece regularmente”45. Por isso, ele conclui: “A psicologia individual,nesse sentido ampliado mas inteiramente justificável das palavras, é, ao mesmotempo, também psicologia social”46. Não cabe mais, portanto, a oposição entreindividual e social. Freud propõe, em seu lugar, a distinção entre atos psíquicosnarcisistas e atos psíquicos sociais, mas ambos incidindo dentro do domínio dapsicologia, dentro do campo do psíquico. O campo social, nesse sentido, pertenceao campo psíquico, não coincidindo com o mundo externo, pois o mundo externoseria externo tanto ao psíquico quanto ao social.

    Mas o mais importante aqui, para nós, é que Freud dá a essa distinção umaexplicação econômica. A tese que Freud defende nessa obra é a de que “os laçoslibidinais são o que caracteriza um grupo”47. Não existe portanto o indivíduo, deum lado, e a sociedade, de outro, mas o narcisismo, de um lado, e a libido, de outro,como duas forças psíquicas que se opõem mutuamente no jogo da satisfação pul-

    sional. O laço libidinal com outras pessoas introduz um limite ao narcisismo48.À objeção daqueles que consideram que a comunidade de interesse em si

    própria é suficiente para produzir o laço social, sem qualquer adição de libido,Freud responde “que nenhuma limitação duradoura do narcisismo é efetuada dessamaneira, visto que essa tolerância não persiste por mais tempo do que o lucroimediato obtido pela colaboração de outras pessoas”49.

    A palavralibido , Freud a retira de sua teoria dos afetos. Ele a define como“a energia, considerada como uma magnitude quantitativa (embora não seja narealidade presentemente mensurável), daquelas pulsões que têm a ver com tudo o

    que pode ser abrangido sob a palavra ‘amor’”50

    , dando a essas pulsões amorosaso nome de pulsões sexuais, na medida em que os laços com objetos feitos pelaspulsões amorosas perseguem objetivos sexuais. Mas nos laços sociais, Freud

    44 S. Freud, “Psicologia de grupo e a análise do ego” [1921]. In: S. Freud, op.cit., v.XVIII, p.81. 45 Ibidem. Tradução modificada a partir do original. 46 Ibidem. 47 Ibidem. 48 Ibidem, p.113. 49 Ibidem. 50 Ibidem, p.101.

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    lembra que se trata de pulsões amorosas que foram desviadas de seus objetivosoriginais, “embora não atuem com menor energia devido a isso”51.

    Entre os autores que Freud cita emPsicologia das massas , não encontramosMarx. Esses autores são sobretudo estudiosos do fenômeno de formação de massasou formação de grupo, sobre o qual Freud aí se detém longamente. Mas acredita-mos que, a partir deO futuro de uma ilusão (1927), há uma referência de Freuda Marx para pensar o laço social, mesmo que Marx aí só seja visado a partir dereferências gerais à revolução comunista, ao materialismo histórico etc.

    Ao fim do primeiro capítulo deO futuro de uma ilusão , Freud diz que nãogostaria de dar a impressão de ter-se extraviado da linha estabelecida para a suainvestigação. Ele percebe que pouco a pouco cedeu à tentação, a ser evitada se-gundo ele, de emitir uma opinião sobre o provável futuro de nossa civilização. Porisso, fornece ao leitor uma garantia expressa de que não tem a menor intenção de

    formular juízos sobre o grande “experimento cultural” que se encontrava entãoem desenvolvimento “no imenso país que se estende entre a Europa e a Ásia”52.A observação de Freud sobre o “experimento cultural” então em marcha na

    Rússia, ao fim desse primeiro capítulo, representa quase uma confissão do fatode que, desde as primeiras linhas deste livro, a presença de Marx é evidente. Emoutras palavras, para qualquer leitor mais informado, o próprio modo como Freudtrata, nessa obra, o problema da civilização remete inevitavelmente às obras deMarx e aos acontecimentos históricos suscitados por ela.

    Logo no início desse primeiro capítulo, após definir cultura como “tudo aquiloem que a vida humana se elevou acima de sua condição animal e difere da vidados animais”53, Freud nos surpreende ao afirmar que ela envolve dois aspectosfundamentais:

    Por um lado, inclui todo o conhecimento e a capacidade que o homem adquiriu como fim de controlar as forças da natureza e extrair a riqueza desta para a satisfaçãodas necessidades humanas; por outro, inclui todos os regulamentos necessários paraajustar as relações dos homens uns com os outros e, especialmente, a distribuiçãoda riqueza disponível54.

    Parece surpreendente que Freud introduza, para pensar a cultura, a questão daprodução e da distribuição da riqueza. É quase impossível não ver aí uma definição

    51 Ibidem, p.114. 52 S. Freud, “O futuro de uma ilusão” [1927]. In: S. Freud, op.cit., v.XXI, p.19. Lembremos uma vez

    mais que estávamos no ano de 1927, portanto bem cedo para qualquer avaliação, mas Freud jáatenta para dois fatores centrais daquilo que viria a ser o fracasso da revolução comunista na Rússia:a adequação dos métodos empregados e a amplitude do inevitável hiato existente entre intençãoe execução (Ibidem).

    53 Ibidem, p.15. 54 Ibidem, p.16.

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    bastante marxista da cultura, na qual o aspecto da produção e da distribuição dariqueza se destaca como fundamental. A definição de Freud surpreende porquecoloca a questão da satisfação das necessidades humanas articuladas à questão dariqueza do mesmo modo como Marx o faz, nas frases iniciais deO capital , mesmoque Freud não fale aqui em mercadorias. De qualquer modo, é uma definição dacivilização em que os termos fundamentais da teoria psicanalítica não estão pre-sentes, aparecendo, em seu lugar, os termos fundamentais da economia política.Talvez por isso, na frase seguinte, Freud se veja obrigado a incorporar a essadefinição questões que não podem ser formuladas em termos puramente marxistasou de economia política, mas freudianos ou de psicanálise. Dito de outro modo,não em termos de economia política, mas de economia psíquica.

    Freud chama atenção para o fato de que essas duas tendências da civilização,por ele apontadas, não são independentes. Em primeiro lugar, diz ele, “porque asrelações mútuas dos homens são profundamente influenciadas pela quantidade desatisfação pulsional que a riqueza existente torna possível”55. Com essa primeiraobservação, Freud substitui o termo “satisfação das necessidades humanas”, queele utilizara na frase anterior e que encontramos na página inicial deO capital , pelaexpressão “satisfação pulsional”. Ele produz assim uma espécie de curto-circuitoentre a economia política e a economia psíquica. Com essa pequena modificação,Freud começa a traduzir em termos psicanalíticos os termos da economia políticade Marx. Torna, com isso, ao mesmo tempo, necessária a discussão que, emOcapital , Marx relega como secundária, a saber: o fato de que a mercadoria “satis-

    faz necessidades humanas, seja qual for a natureza e a origem delas, provenhamdo estômago ou da fantasia”56. Ao afirmar que a riqueza disponível torna possívela satisfação pulsional, Freud fala da necessidade humana como algo que nuncavem nem apenas do estômago nem apenas da fantasia, mas de uma certa ligaçãointrínseca entre elas que o conceito de pulsão determina: um conceito entre osomático e o psíquico – ou, nos termos de Marx, entre o estômago e a fantasia57.

    55 Ibidem. 56 K. Marx, O capital . Crítica da economia política. 16.ed. Trad. Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro:

    Civilização Brasileira, 1998, v.I, p.57.

    57 Marx mostra-se, na verdade, bastante advertido dessa questão em uma passagem dePara a críticada economia política (p.110): “A fome é fome, mas a fome que se satisfaz com carne cozida, quese come com faca ou garfo, é uma fome muito distinta da que devora carne crua, com unhas edentes. A produção não produz, pois, unicamente, o objeto do consumo, mas também o modo doconsumo, ou seja, não só objetiva, como subjetivamente. Logo, a produção cria o consumidor”.

    Nesse sentido, não cabe a afirmação de Daniel Vives, na Discussão que se segue à exposição dePierre Bruno,Le nouveau de leur savoir (Bruno, Le nouveau de leur savoir. In: “Marx et Lenine,Freud et Lacan…” . Actes du 2º colloque de La Découverte Freudienne (16 et 17 décembre 1989).Séries de la Découverte Freudienne. Responsable: André SOUEIX. v.IX, Novembre 1991, p.20), deque “se olhamosO capital , desde suas primeiras linhas, se vê bem que Marx esmaga a diferençaentre necessidade [besoin] e desejo, quando ele diz que a mercadoria é um produto que responde auma necessidade humana, e que a origem desta necessidade, seja fisiológica ou venha da fantasia,isso não faz nenhuma diferença”.

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    Mas se com essa primeira observação Freud descreve o fenômeno descritopor Marx em termos psicanalíticos, com a segunda observação é a psicanáliseque tem um de seus objetos de investigação por excelência descrito em termosmarxistas: “em segundo [lugar]”, diz Freud, “porque um indivíduo humano pode,ele próprio, ser tratado como riqueza em relação a outro, na medida em que esteusa a sua força de trabalho ou o toma como objeto sexual”58. É uma frase bastantesurpreendente, em que Freud aponta para o fato de que a satisfação das necessi-dades humanas não se dá apenas através da extração da riqueza da natureza. Oshomens podem encontrar satisfação da pulsão através dos outros homens, o quesignifica o mesmo que dizer que eles podem extrair riqueza dos outros homens.Mas o que Freud acrescenta a essa constatação econômica elementar é descrevero ato sexual como um fenômeno de extração de riqueza.

    A expressão “força de trabalho”, que encontramos nessa passagem, seria

    suficiente, creio, para afirmar que estamos aqui num contexto em que Freud usaum aparato conceitual estranho à psicanálise e extraído diretamente da economiapolítica de Marx. Mas o que mais surpreende na passagem é o fato de que Freudpossa identificar as duas situações: há satisfação da pulsão no uso da força detrabalho e ao tomar alguém como objeto sexual. Em ambas as situações, alguémé tratado como riqueza, na medida em que definimos riqueza como aquilo atravésdo qual o homem obtém satisfação pulsional. Nesse sentido, Freud tem razão emtratar os objetos sexuais como riqueza, da mesma forma que, no modo de produçãocapitalista, a força de trabalho é uma riqueza especial, por ser a única que produzmais riqueza, ou seja, isso que Marx chama de mais-valia59.

    Um outro exemplo desse tipo de superposição entre a abordagem de Freude a de Marx pode ser encontrada emO mal-estar na civilização , quando Freudestabelece uma relação entre a estrutura econômica da sociedade e a liberdadesexual remanescente. Os ecos marxistas no modo de colocação da questão pare-cem evidentes:

    Aqui, como já sabemos, a civilização está obedecendo às leis da necessidadeeconômica, visto que uma grande quantidade da energia psíquica que ela utilizapara seus próprios fins tem de ser retirada da sexualidade. Com relação a isso, acivilização se comporta diante da sexualidade da mesma forma que um povo, ouuma de suas camadas sociais, procede diante de outros que estão submetidos a sua

    58 S. Freud, “O futuro de uma ilusão” [1927]. In: S. Freud, op.cit., v.XXI, p.16. Tradução modificadaa partir do original alemão.

    59 Não estamos aqui a um passo da criação, por Lacan, do termo mais-de-gozar? Quanto a este ponto,Cf. Oliveira, C. “’O Capitalista Ri’: uma leitura d’O capital de Marx em Lacan”. In: A psicanálise eos discursos . Publicação da Escola Letra Freudiana. Ano XXIII. n.34/35, 2004. E também Oliveira,C. “Capitalismo e gozo: Marx e Lacan”. In: Tempo da Ciência. Revista de Ciências Humanas eSociais/Publicação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da UNIOESTE, câmpus de Toledo.v.11, n.22, 2º semestre de 2004.

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    exploração. O temor a uma revolta por parte dos elementos oprimidos a conduz àutilização de medidas de precaução mais estritas60.

    Creio que essas passagens tornam quase necessária a interpretação que farámais tarde Lacan sobre a relação entre o capitalismo e um determinado modo deregulação do gozo. No seminário XVII, Lacan parte de sua premissa de que “nãohá discurso, [...] senão do gozo”61. Na medida em que Lacan pensa o capitalismocomo um discurso, trata-se para ele de um modo de regular o gozo, ou, nos termosmarxistas de que se serve Freud emO futuro de uma ilusão , do modo como seproduz a riqueza e como se a distribui. O mérito de Freud, segundo Lacan, está nofato de que “ele está à altura de um discurso que se sustenta tão próximo quanto épossível do que se refere ao gozo – tão próximo quanto é possível até ele”62. Masantes de Freud, quem inegavelmente chegou mais perto disso, para Lacan, foi Marx.

    É por isso que ele os coloca juntos, como aqueles que não dizem besteira:Freud não diz besteira [ne déconne pas ]. É isso o que impôs este tipo de precedênciaque ele tem em nossa época. É provavelmente o que faz também que haja um outrodo qual se sabe que, apesar de tudo, ele sobrevive bastante bem. Um e outro, Freude Marx, o que os caracteriza, é que eles não dizem besteira [ne déconnent pas ]63.

    “Não dizer besteira” não é aqui uma expressão qualquer para definir o que háde essencial no pensamento de Freud e de Marx. O que caracteriza alguém quenós chamamos de besta, de babaca [con ], segundo Lacan, é o fato de que “não se

    sabe muito bem em que ele tem a ver com o gozo”64.Ora, Lacan lembra que, se Freud foi tão longe, isso, por outro lado, não foipara ele muito cômodo. E é nesse sentido que ele entende o que ele chama de“tentativa de redução econômica que Freud dá a seu discurso sobre o gozo”65, oque quer dizer, para Lacan, que, ao falar de economia, Freud está articulando seudiscurso sobre o gozo, mas de forma mascarada. Segundo Lacan, Freud mascaraseu discurso sobre o gozo, e com razão, pois há “um efeito que isso produz quandose o enuncia diretamente”66, como Lacan o faz nesse momento.

    Ao comparar a própria civilização com a classe exploradora e a sexualidade,com a classe explorada, Freud nos mostra que se dá conta das conseqüênciaspolíticas de um discurso sobre o gozo. Nos termos de sua análise, Freud atribui o

    60 S. Freud, “O mal-estar na civilização” [1930 [1929]]. In: S. Freud, op.cit., v.XXI, p.109. 61 J. Lacan.Le Séminaire, livre XVII: L’envers de la psychanalyse, cit., p.90. Para Lacan, o que há de

    mais candente é “o que, do discurso, faz referência ao gozo” (Ibidem, p.80). 62 Ibidem, p.81 63 Ibidem.64 Ibidem.

    65 Ibidem, p.82. 66 Ibidem.

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    mal-estar, em sua origem, a uma exploração, do mesmo modo como o faz Marx.A exploração da sexualidade, no caso de Freud, a da classe proletária, no casode Marx. Mesmo que a exploração de que fala Freud lhe pareça inevitável, elanão deixa de encontrar limites naquilo que o próprio Freud chama de Mal-Estarconstitutivo de uma civilização fundada nessa exploração, do mesmo modocomo o modo de produção capitalista não deixa de produzir, segundo Marx, umespectro que ronda a Europa67. Mas há uma distinção a ser feita aqui. A distinçãoa que se refere Freud atinge igualmente a todos os indivíduos que participam dacivilização, enquanto a exploração de que fala Marx parece atingir apenas a umaclasse específica da sociedade.

    Freud se refere a essa distinção quando, no segundo capítulo deO futuro deuma ilusão , propõe distinguir “entre privações que afetam a todos e privações quenão afetam a todos, mas apenas a grupos, classes ou mesmo indivíduos isolados”68.

    Apenas as primeiras são aquelas sem as quais a civilização não pode passar,pois foi com elas que a civilização começou a separar o homem de sua condiçãoanimal primordial. Freud fala, na passagem, de frustração, proibição e privação.Mais tarde ele falará de castração. São as operações que constituem propriamentea fundação da civilização que Freud descreve como renúncia à pulsão. Digamosque aqui podemos localizar aquela exploração inevitável que a civilização faz dasexualidade e que atinge todos os seres civilizados, tendo como conseqüênciainevitável o mal-estar. A resistência a essa frustração e a correspondente hostili-dade à civilização a ela devida, Freud considera neurótica.

    Mas Freud se refere também às frustrações do segundo tipo, àquelas restriçõesque só se aplicam a certas classes da sociedade e que as colocam na situação desubprivilegiadas, invejando os privilégios das favorecidas. Trata-se, para ele, nessecaso, de um excesso de privação ( Entbehrung ) da qual essas classes, grupos ouindivíduos farão de tudo para se libertar:

    Onde isso não for possível, uma permanente parcela de descontentamento persistirádentro da cultura interessada, o que pode conduzir a perigosas revoltas. Se, po-rém, uma cultura não foi além do ponto em que a satisfação de uma parte de seusparticipantes depende da opressão da outra parte, parte esta talvez maior – e esteé o caso em todas as culturas atuais –, é compreensível que as pessoas assim opri-midas desenvolvam uma intensa hostilidade para com uma cultura cuja existênciaelas tornam possível pelo seu trabalho, mas de cuja riqueza não possuem mais doque uma quota mínima. Em tais condições, não é de esperar uma internalizaçãodas proibições culturais entre as pessoas oprimidas. Pelo contrário, elas não estãopreparadas para reconhecer essas proibições, têm a intenção de destruir a própriacultura e, se possível, até mesmo aniquilar os postulados em que se baseia. A hos-

    67 Marx, K. e Engels, F.O manifesto comunista. Trad. Álvaro Pina. (Org. e Introd.) Osvaldo Coggiola.São Paulo: Boitempo, 2005, p.39.

    68 S. Freud, “O futuro de uma ilusão” [1927]. In: S. Freud, op.cit., v.XXI, p.20.

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    tilidade dessas classes para com a civilização é tão evidente, que provocou a maislatente hostilidade dos estratos sociais mais passíveis de serem desprezados. Nãoé preciso dizer que uma civilização que deixa insatisfeito um número tão grandede seus participantes e os impulsiona à revolta, não tem nem merece a perspectiva de

    uma existência duradoura69

    .

    Freud distingue, portanto, uma hostilidade à civilização de tipo neurótico,de outra completamente justificável. Em uma outra passagem deO mal-estar nacivilização , ele afirma que, ao considerarmos falho o estado atual de nossa civi-lização, por criticarmos e tentarmos pôr à mostra as raízes da sua imperfeição,não estamos nos mostrando inimigos da civilização. Freud crê que possamos“efetuar,gradativamente , em nossa civilização alterações tais que satisfaçammelhor nossas necessidades e escapem às nossas críticas”70. Mas alerta: “Talvez

    possamos nos familiarizar com a idéia de existirem dificuldades ligadas à na-tureza da civilização, que não se submeterão a qualquer tentativa de reforma”71.Falando sobre o sofrimento que tem uma fonte social, Freud suspeita de que,considerando quanto fomos malsucedidos exatamente nesse campo de prevençãodo sofrimento, “também aqui é possível jazer, por trás desse fato, uma parcela denatureza inconquistável – dessa vez, uma parcela de nossa própria constituiçãopsíquica”72. Em outras palavras, há algo que faz resistência ao laço social, issoque Freud chama, emO mal-estar na civilização , não mais de narcisismo, masde pulsão de morte.

    Sem questionar ou discutir a grandiosidade e a importância de constituir nofuturo uma civilização cujos regulamentos culturais não produzam uma hostili-dade à civilização do segundo tipo, o não neurótico, Freud acha que, mesmo queesse objetivo seja satisfeito, o mal-estar inerente à civilização e a hostilidade àcivilização de fundo neurótico provavelmente sempre existirão, pois “uma certapercentagem da humanidade (devido a uma disposição patológica ou a um excessode força pulsional) permanecerá sempre associal”73. Ele propõe então um projetomenos ambicioso, mais modesto: “se fosse viável simplesmente reduzir a umaminoria a maioria que hoje é hostil à civilização, já muito teria sido realizado –talvez tudo o que pode ser realizado”74. A questão então que temos que nos colocar

    é: em que medida o pensamento de Marx estaria apto a aceitar esse projeto maismodesto e menos ambicioso? Em que medida o comunismo, como projeto, levaem consideração a pulsão de morte?

    69 Ibidem, p.22. 70 S. Freud, “ O mal-estar na civilização” [1930 [1929]]. In: S. Freud, op.cit., v.XXI, p.120. 71 Ibidem. 72 Ibidem, p.93. 73 S. Freud, “O futuro de uma ilusão” [1927]. In: S. Freud, op.cit., v.XXI, p.18-9. 74 Ibidem.

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    Economia marxista eeconomia freudiana ou

    política e pulsão CLÁUDIO OLIVEIRA

    Resumo : Ler Marx após Freud obriga-nos a pensar o capitalismo como um fenômeno nãoapenas político mas também pulsional. A própria cultura, segundo Freud, “inclui todosos regulamentos necessários para ajustar as relações dos homens uns com os outros e,especialmente, a distribuição da riqueza disponível”, mas, ele lembra, ao mesmo tempo,que “as relações mútuas dos homens são profundamente influenciadas pela quantidadede satisfação pulsional que a riqueza existente torna possível”. Nesse sentido, para usarum conceito extraído da psicanálise de Lacan, podemos pensar o capitalismo como umdiscurso que instaura uma determinada regulação do gozo. A idéia deste trabalho é tentarincluir na reflexão sobre o fenômeno econômico a dimensão pulsional descoberta porFreud, pensando o econômico como um conceito de fronteira entre a economia políticae a psicanálise.Palavras-chave : Freud, Marx, Lacan, capitalismo, economia política, gozo. Abstract : Reading Marx after Freud forces us to think capitalism as a phenomenon notonly in terms of politics but also in terms of drive [Trieb]. The culture itself, according toFreud, “includes all regulations necessary to adjust the relations of men with each otherand, especially, the distribution of wealth available” but, he recalls, at the same time, that

    “the mutual relations of men are deeply influenced by the amount of drive satisfaction thatthe existing wealth makes possible”. In that sense, to use a concept taken from psycho-analysis of Lacan, we can think capitalism as a speech introducing a specific regulationof enjoyment [juissance]. The idea of this work is to try to include into the reflection onthe economic phenomenon the dimension of drive [Trieb] discovered by Freud, thinking theeconomic as a concept of a border between political economy and psychoanalysisKeywords: Freud, Marx, Lacan, capitalism, political economy, enjoyment [juissansse].

    Poulantzas, o Estado e arevolução

    ADRIANO CODATO

    Resumo : O artigo expõe a teoria do Estado capitalista formulada por Nicos Poulantzas. Épossível encontrar, em sua obra, três formulações sucessivas e diferentes sobre o que é oEstado: uma estrutura, um aparelho e uma relação social. A cada uma dessas definiçõescorresponde uma estratégia política sobre como derrubar o Estado capitalista, de sorte