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ECOLOGIA SOCIAL TEXTOS E TRECHOS DE BOOKCHIN + ANEXOS

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ECOLOGIA SOCIALTEXTOS E TRECHOS DE BOOKCHIN + ANEXOS

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seleção canto libertário

www.cedap.assis.unesp.br/cantolibertario/textos/textos.html

compilação e diagramação juno

www.incandescencia.org

autorammurray bookchin

j. m. carvalho ferreiramanuel portela

joão freiremimmo pucciarelli

andré gorzvictor fucks

você pode requerer um arquivo odt editável deste documento através do e-mail [email protected]

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ECOLOGIA E PENSAMENTO REVOLUCIONÁRIO

Condensado e adaptado de "Ecology and Revolutionary Thought".Em "Post-Scarcity Anarchism"

Uma das características da Ecologia é a de não estar perfeitamente contidano nome - cunhado por Haeckel, em 1866, para indicar a "investigação datotalidade das relações do animal tanto com seu ambiente inorgânico comoorgânico". No entanto, concebida de maneira ampla, a Ecologia lida com oequilíbrio da natureza. Visto que a natureza inclui o homem, esta ciênciatrata da harmonização da natureza e do homem. Esta abordagem, mantidaem todas as suas implicações, conduz às áreas do pensamento socialanarquista. Em última análise, é impossível conseguir a harmonização dohomem com a natureza sem criar uma comunidade que viva em equilíbriopermanente com o seu meio ambiente.

As questões com que a Ecologia lida são permanentes: não se pode ignorá-las sem pôr em risco a sobrevivência do homem e do próprio planeta. Noentanto, hoje, a ação humana altera virtualmente todos os ciclos básicos danatureza e ameaça solapar a estabilidade ambiental em todo o mundo.

As sociedades modernas, como as dos Estados Unidos e Europa,organizam-se em torno de imensos cinturões urbanos, de uma agriculturaalta mente industrializada e controlando tudo, um inchado, burocratizado eanônimo aparelho de estado. Se colocarmos todas as considerações deordem moral de lado e examinarmos a estrutura física desta sociedade, oque nos impressionará são os incríveis problemas logísticos que ela deveresolver: transporte, densidade, suprimentos, organização política eeconômica e outros. O peso qu tal tipo de sociedade urbanizada ecentralizada acarreta sobre qualquer área oriental é enorme.

A noção de que o homem deve dominar a natureza vem diretamente dadominação do homem pelo homem. Esta tendência, antiga de séculos,encontra seu mais exarcebado desenvolvimento no capitalismo moderno.Assim como os homens, todos os aspectos da natureza são convertidos embens, um recurso para ser manufaturado e negociado desenfreadamente.

Do ponto de vista de Ecologia, o homem está hipersimplificandoperigosamente o seu ambiente. O processo de simplificação do ambiente,levando ao aumento do seu caráter elementar - sintético sobre o natural,inorgânico sobre o orgânico - tem tanto uma dimensão física quanto cultural.A necessidade de manipular imensas populações urbanas, densamente

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concentradas, leva a um declínio nos padrões cívicos e sociais. Umaconcepção massificadora das relações humanas tende a se impôr sobre osconceitos mais individualizados do passado.

A mesma simplificação ocorre na agricultura moderna. O cultivo deve permitirum alto grau de mecanização - não para reduzir o trabalho estafante maspara aumentar a produtividade e maximizar os investimentos. O crescimentodas plantas é controlado como em uma fábrica: preparo do solo, plantio ecolheitas manipulados em escala maciça, muitas vezes inadequados àecologia local. Grandes áreas são cultivadas com uma única espécie - umaforma de agricultura que facilita não só a mecanização mas também ainfestação das pragas. Por fim, os agentes químicos são usados paraeliminar as pragas e doenças das plantas, maximizando a exploração dosolo.

Este processo de simplificação continua na divisão regional do trabalho. Oscomplexos ecossistemas regionais de um continente são submersos pelaorganização de nações inteiras em entidades economicamenteespecializadas (fornecedoras de matéria-prima, zonas industriais, centros decomércio).

O homem está desfazendo o trabalho orgânico da evolução. Substituindo asrelações ecológicas complexas, das quais todas as formas avançadas devida dependem, por relações mais elementares, o homem está restaurando abiosfera a um estágio que só é capaz de manter formas simples de vida, eincapaz de manter o próprio homem.

Até recentemente, as tentativas de resolver contradições criadas pelaurbanização, centralização, crescimento burocrático e estatização eramvistas como contrárias ao progresso e até reacionárias. O anarquista eraolhado como um visionário cheio de nostalgia de uma aldeia camponesa oude uma comuna medieval. O desenvolvimento histórico, no entanto, tornouvirtualmente sem sentido todas as objeções ao pensamento anarquista nosdias de hoje. Os conceitos anarquistas de uma comunidade equilibrada, deuma democracia direta e interpessoal, de uma tecnologia humanística e deuma sociedade descentralizada não são apenas desejáveis, eles constituemagora as pré-condições para a sobrevivência humana. O processo dedesenvolvimento social tirou-os de uma dimensão ético-subjetiva para umadimensão objetiva.

A essência da mensagem reconstrutiva da Ecologia pode ser resumida napalavra "diversidade". Na visão ecológica, o equilíbrio e a harmonia nanatureza, na sociedade e, por inferência, no comportamento, é alcançado

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não pela padronização mecânica, mas pelo seu oposto, a diferenciaçãoorgânica.

Vamos considerar o princípio ecológico da diversidade no que se ele aplica àbiologia e à agricultura. Alguns estudos demonstram claramente que aestabilidade é urna função da variedade e da diversidade: se o ambiente ésimplificado e a variabilidade de espécies animais e vegetais diminui, asflutuações nas populações tornam-se marcantes, tendem a se descontrolar ea alcançar as proporções de uma peste.

O ambiente de um ecossistema é variado, complexo e dinâmico. Ascondições especiais que permitem grandes populações de uma únicaespécie são eventos raros. Conseguir, portanto, gerenciar adequadamenteos ecossistemas deve ser o nosso objetivo.

Manipular de tato o ecossistema pressupõe uma enorme descentralização daagricultura. Onde for possível, a agricultura industrial deve ceder lugar àagricultura doméstica. Sem abandonar os ganhos da agricultura em largaescala e da mecanização, deve-se, contudo, cultivar a terra como se fosseum jardim. A descentralização é importante tanto para o desenvolvimento daagricultura quanto do agricultor. O motivo ecológico pressupõe afamiliaridade do agricultor com o terreno que cultiva. Ele deve desenvolversua sensibilidade para as possibilidades e necessidades do terreno, aomesmo tempo que se torna parte orgânica do meio agrícola. Dificilmentepoderemos alcançar este alto grau de sensibilidade e integração do agricultorsem reduzir a agricultura ao nível do indivíduo, das grandes fazendasindustriais para as unidades de tamanho médio.

O mesmo raciocínio se aplica ao desenvolvimento racional dos recursosenergéticos. A Revolução Industrial aumentou a quantidade de energiautilizada pelo homem, primeiro por um sistema único de energia (carvão) emais tarde por um duplo (carvão-petróleo, ambos poluentes). No entanto,podemos aplicar os princípios ecológicos na solução do problema. Pode-setentar restabelecer os antigos modelos regionais de uso integrado de energiabaseado nos recursos locais usando um sofisticado sistema que combine aenergia fornecida pelo vento, a água e o sol.

Essas alternativas em separado não podem solucionar os problemasecológicos criados pelos combustíveis convencionais. Unidos, contudo, numpadrão orgânico de energia desenvolvido a partir das potencialidades daregião, elas podem satisfazer as necessidades de uma sociedadedescentralizada.

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Manter uma grande cidade requer imensas quantidades de carvão epetróleo. No entanto, as fontes alternativas fornecem apenas pequenasquantidades de energia para usá-las de modo efetivo, a megalópolis deveser descentralizada e dispersa. Um novo tipo de comunidade, adaptada àscaracterísticas e recursos da região e com todas as amenidades dacivilização industrial, deve substituir os extensos cinturões urbanos atuais.

Resumindo a mensagem critica da Ecologia: a diminuição da variedade nomundo natural retira a base de sua unidade e totalidade, destruindo as forçasresponsáveis pelo equilíbrio e introduz uma retrogressão absoluta nodesenvolvimento do mundo natural, a qual pode resultar num ambienteinadequado a formas avançadas de vida. Resumindo a mensagemreconstrutiva: se desejamos avançar na unidade e estabilidade do mundonatural, devemos conservar e promover a variedade.

Como aplicar estes conceitos à teoria social? Tendo-se em mente o princípioda totalidade e do equilíbrio como produto da diversidade, a primeira coisaque chama a atenção é que tanto ecólogo como anarquista colocam umaênfase muito grande sobre a espontaneidade. O ecólogo tende a rejeitar anoção de "poder sobre a natureza". O anarquista, por sua vez, fala emtermos de espontaneidade social, dando liberdade a criatividade da pessoas.Ambos, ao seu modo, vêm a autoridade como inibidora, como um limitante àcriatividade potencial dos meios social e natural.Tanto o ecólogo como o anarquista vêem a diferenciação como uma medida

de progresso, para ambos uma unidade sempre maior é alcançada pelo

crescimento da diferenciação. Uma crescente totalidade é criada pela

diversificação e aprimoramento das partes.

Assim corno o ecólogo busca ampliar um ecossistema e promover a livre

interação entre as espécies, o anarquista busca ampliar as experiências

sociais e remover as restrições ao seu desenvolvimento. O anarquismo é

urna sociedade harmônica que expõe o homem aos estímulos tanto da vida

agrária como urbana, da atividade física e da mental, da sensualidade não

reprimida e da espiritualidade autodirigida, da espontaneidade e da auto-

disciplina etc. Hoje, esses objetivos são vistos como mutuamente

excludentes devido à própria lógica da sociedade atual -- a separação da

cidade e do campo, a especialização do trabalho, a atomização do homem.

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Uma comunidade anarquista deverá aproximar-se de um ecossistema bem

definido: será diversificada, equilibrada e harmônica. A procura da auto

suficiência levará a um uso mais inteligente e amoroso do meio-ambiente,

permitindo o contato dos indivíduos com uma vasta gama de estímulos

agrícolas e industriais. O engenheiro nãu estará separado do solo, nem o

pensador do arado ou o fazendeiro da indústria. A alternância de

responsabilidades cívicas e profissionais criará uma nova matriz para o

desenvolvimento individual e comunitário, evitando a hiperespecialização

profissional e vocacional que impediria a sociedade de alcançar seu objetivo

vital: a humanização da natureza pelo técnico e a naturalização da sociedade

pelo biólogo.

Nas comunidades ecológicas a vida social levará ao incremento da

diversidade humana e natural, unidas em harmônica totalidade. Haverá uma

colorida diferenciação dos grupos humanos e ecossistemas, cada um

desenvolvendo suas potencialidades únicas e expondo os membros das

comunidades a um leque de estímulos econômicos, culturais e

comportamentais. A mentalidade que hoje organiza as diferenças entre o

homem e outras formas de vida em esquemas hierárquicos e definições de

"superioridade" e "inferioridade", dará lugar a uma visão ecológica da

diversidade. As diferenças entre as pessoas não só serão respeitadas mas

estimuladas. As relações tradicionais que opõem sujeito e objeto serão

alteradas qualitativamente, o "outro" será concebido como parte individual do

todo que se aprimora pela complexidade. Este sentido de unidade refletirá a

harmonização dos interesses entre indivíduos e grupo, comunidade e

ambiente, humanidade e natureza.

Murray Bookchin

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A FILOSOFIA DA ECOLOGIA SOCIAL

Os ecologistas têm geralmente considerado a diversidade como fonte de

estabilidade ecológica, uma abordagem que, acrescentarei, era bastante

inovadora há cerca de vinte e cinco anos atrás. Experiências no domínio da

agricultura mostraram que o tratamento de monoculturas por pesticidas podia

facilmente atingir proporções alarmantes e parecia sugerir que, quanto mais

diversificadas fossem as culturas, mais a interacção entre espécies vegetais

e animais conduziria a resistência natural às pragas. Hoje, tanto esta noção

como o valor dos métodos de agricultura biológica, tornou-se lugar comum

no pensamento ecológico e ambiental dos nossos dias — uma opinião de

que o autor foi pioneiro com alguns poucos colegas, como Charles S. Elton.

Mas a noção que a evolução biótica — e social, como veremos — tem sido

marcada até há pouco pelo desenvolvimento de espécies e ecocomunidades

(ou "ecossistemas", para usar um termo muito pouco satisfatório) cada vez

mais complexas, levanta uma questão ainda mais difícil. A diversidade pode

ser encarada como fonte de maior estabilidade ecocomunitária, mas pode

também ser encarada em sentido mais profundo como fonte de liberdade

dentro da natureza, embora incipiente sempre em expansão, meio de fixar

objectivamente vários graus de escolha, de autodirecção e de participação

das formas de vida na sua própria evolução. Gostaria de propor como

hipótese que a evolução dos seres vivos não é um processo passivo, o

produto de conjunções de acaso entre alterações genéticas ocasionais e

"forças" ambientais "selectivas", que a "origem das espécies" não é o mero

resultado de influências externas que determinam a "aptidão" para

"sobreviver" duma forma de vida como resultado de factores ocasionais em

que a vida é meramente "objecto" dum processo "selectivo" indeterminável.

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Gostaria de ir além da noção muito popularizada de que a simbiose é tão

importante como a "luta", e sustentar que o aumento de diversidade na

biosfera abre cada vez mais novas vias evolutivas, na realidade sentidos

evolutivos alternativos em que as espécies desempenham um papel activo

na sua própria sobrevivência e mudança. Ainda que incipiente e rudimentar,

a escolha não está totalmente ausente na evolução biótica. Na verdade

aumenta à medida que os animais se tornam estrutural, fisiológica e,

sobretudo, neurologicamente mais complexos. A mente tem a sua própria

história evolutiva no mundo natural e, à medida que nas formas de vida

aumenta a capacidade neurológica para funcionar de maneira mais activa e

flexível, também a própria vida ajuda a criar novos sentidos evolutivos que

conduzem a maior consciência de si mesmo e maior actividade própria.

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UM MANIFESTO ECOLÓGICO

O Poder de Destruir - O Poder de Criar

O poder que esta sociedade tem para destruir atingiu uma escala sem

precedentes na história da humanidade - e este poder está a ser usado,

quase sistematicamente, para causar uma destruição insensata em todo o

mundo da vida natural e nas suas bases materiais.

Em quase todas as regiões, o ar está a ser viciado, as águas poluídas, o solo

está a ser levado pela água, a terra foi drenada e a vida natural destruída. As

áreas costeiras e mesmo as profundezas do mar não são imunes ao

alastramento da poluição. Com maior significância no fim de contas, os ciclos

biológicos básicos, tais como o ciclo do carbono e do nitrogênio, dos quais

todas as coisas vivas (incluindo os humanos) dependem para a manutenção

e renovação da vida, estão a ser alterados até um ponto irreversível.

A introdução arbitrária dos desperdícios radioativos, pesticidas de longa

atividade, resíduos de chumbo e milhares de produtos químicos tóxicos ou

potencialmente tóxicos na comida, água e ar; a expansão das cidades em

vastas cinturas urbanas com concentrações densas de populações

comparáveis em tamanho a nações inteiras; o aumento de ruído ambiente;

as pressões criadas pela congestão, pela aglomeração e manipulação das

massas; as imensas acumulações de lixo, refugo, dejetos e desperdícios

industriais; o congestionamento do trânsito nas auto-estradas e nas ruas

citadinas; a destruição pródiga de preciosos metais em bruto; a cicatrização

da terra feita pelos especuladores da propriedade, os barões das indústrias

mineira e da madeira, os burocratas da construção de auto-estradas. Todos

eles fizeram tais estragos numa simples geração, que excede os que foram

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feitos em milhares de anos pela habitação humana no seu planeta. Se

tivermos em mente este ritmo de destruição, é aterrador refletir acerca do

que acontecerá no futuro, à geração vindoura.

A essência da crise ecológica do nosso tempo é que esta sociedade - mais

do que qualquer outra no passado - está a desfazer literalmente o trabalho

da evolução orgânica. É um axioma dizer que a humanidade faz parte do

edifício da vida. É talvez mais importante, nesta fase tardia, sublinhar que a

humanidade depende perigosamente da complexidade e variedade da vida,

e que o bem-estar e a sobrevivência humanas assentam sobre uma longa

evolução de organismos em formas crescentemente complexas e

interdependentes. O desenvolvimento da vida num tecido complexo, a

criação dos animais e plantas primordiais em formas altamente variadas, tem

sido a condiçãso prévia para a evolução e sobrevivência da própria

humanidade e para uma relação harmônica entre a humanidade e a

natureza.

Tecnologia e População

Uma vez que a geração passada tem testemunhado a expoliação do planeta,

que ultrapassa todos os estragos feitos pelas gerações primitivas, pouco

mais do que uma geração poderá restar antes que a destruição do meio

ambiente se torne irreversível. Por esta razão, devemos debruçar-nos sobre

as origens da crise ecológica com honestidade implacável. O tempo corre

precipitadamente e as décadas que restam do século XX podem bem ser a

última oportunidade que teremos para restaurar o equilíbrio entre a

humanidade e a natureza.

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Assentarão as origens da crise ecológica no desenvolvimento da tecnologia?

A tecnologia tem-se tornado um alvo fácil para aqueles que querem evitar

encarar as condições sociais profundamente marcadas por máquinas e

processos técnicos perigosos.

É tão conveniente esquecer que a tecnologia tem servido não só para

subverter o meio ambiente como também para o melhorar. A Revolução

Neolítica, a qual produziu o período mais harmonioso entre a natureza e a

humanidade pós-paleolítica, foi acima de tudo uma revolução tecnológica.

Foi este período que trouxe à humanidade as artes da agricultura,

tecelagem, cerâmica, da domesticação dos animais, a descoberta da roda e

muitos outros melhoramentos básicos. É verdade que existem técnicas e

atitudes tecnológicas que são inteiramente destruidoras do equilíbrio entre a

humanidade e a natureza. É responsabilidade nossa separar a promessa da

tecnologia - o potencial criativo - da capacidade da tecnologia para destruir.

Na verdade, não existe tal palavra como "tecnologia" que presida a todas as

condições e relações sociais. Existem sim, diferentes tecnologias e atitudes

para com a tecnologia, algumas das quais são indispensáveis para restaurar

o equilíbrio, e outras que têm contribuido profundamente para a sua

destruição. Do que a humanidade necessita não é rejeitar em grande escala

as tecnologias avançadas, mas sim peneira-las, necessita realmente de um

maior desenvolvimento da tecnologia a par com os princípios ecológicos, o

que contribuirá para uma nova harmonização da sociedade e do mundo

natural.

Será o crescimento da população, a origem da crise ecológica? Esta tese é a

mais inquietante, e de muitas maneiras a mais sinistra, a ser formulada pelos

movimentos ecológicos ativos nos E.U.A. Neste sentido, um efeito chamado

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"crescimento populacional" baralhado na base de estatísticas e projeções

superficiais, transforma-se numa causa. É dada assim supremacia a um

problema de proporções secundárias no momento presente, obscurecendo

as razões fundamentais da crise ecológica. De fato, se as atuais condições

econômicas, políticas e sociais prevalecerem, a humanidade irá com o tempo

superpovoar o planeta, e pelo puro peso dos números transformar-se-á num

flagelo no seu próprio

habitat global. Há qualquer coisa de obsceno, contudo, acerca do fato de que

a um efeito "crescimento populacional", é concedida supremacia na crise

ecológica por uma nação que tem pouco mais do que 7% da população

mundial mas que consome prodigamente mais de 50% dos recursos

mundiais, e que está atualmente ocupada no despovoamento de um povo do

Oriente, que tem vivido à séculos em equilíbrio apurado com o seu meio

ambiente.

Devemos fazer uma pausa para examinar o problema populacional tão

amplamente observado pelas raças brancas da América do Norte e da

Europa - raças que têm explorado arbitrariamente os povos da Ásia, África,

América Latina e do Pacífico Sul. Os explorados têm explorado

delicadamente os seus exploradores que, do que eles necessitam não são

dispositivos anticoncepcionais, nem "libertadores" armados, nem do Prof. R.

Ehrlich para resolverem os seus problemas populacionais; precisam antes,

de uma devolução justa dos imensos recursos que foram roubados das suas

terras, pela América do Norte e pela Europa. Equilibrar estas contas é mais

premente no momento, do que equilibrar as taxas de nascimentos e mortes.

Os povos da Ásia, África, América Latina e do Pacífico Sul podem justamente

apontar que os seus "conselheiros" Americanos têm mostrado ao mundo

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como expoliar um continente virgem em menos de um século e têm

acrescentado ao vocabulário da humanidade palavras como "esgotamento

precoce"

Isto é claro: quando grandes reservas de mão-de-obra foram necessárias

durante a Revolução Industrial dos princípios do século XIX para equipar as

fábricas e diminuir os salários, o crescimento populacional foi saudado

entusiasticamente pela nova burguesia industrial. E o crescimento

populacional ocorreu apesar do fato que, devido ao pesado horário de

trabalho e às cidades altamente superpovoadas, a tuberculose, cólera e

outras doenças eram epidemicas na Europa e nos Estados Unidos. Se as

taxas de nascimento excederam as da morte nessa altura, não foi porque os

progressos feitos ao nível de cuidados médicos e sanitários tenham

produzido qualquer declínio dramático na mortalidade humana; antes, o

excesso de nascimentos em relação às mortes pode ser explicado pela

destruição das formas da família pré-industrial, instituições de vila, ajuda

mútua e padrões de vida estáveis e tradicionais, às mãos da "empresa"

capitalista. O declínio da moral social introduzido pelos horrores do sistema

fabril, o aviltamento das populações agrárias tradicionais transformadas em

proletários e moradores urbanos, brutalmente explorados, produziu uma

atitude concomitantemente responsável para com a família e a procriação. A

sexualidade tornou-se um refúgio de uma vida de trabalho duro, bem como o

consumo do gin barato; o novo proletariado gerou crianças (muitas das quais

nunca sobreviveram até a idade adulta), tão inconscientemente como foi

levado ao alcoolismo. É muito semelhante o caso ocorrido quando as vilas

Africanas, Asiáticas e Latino-Americanas foram sacrificadas ao santo altar do

imperialismo.

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Hoje a burguesia "vê" as coisas de uma forma diferente. Os anos dourados

da "livre empresa" e do "trabalho livre" declinam perante uma era de

monopólio, cartéis, economias controladas pelo estado, formas

institucionalizadas de mobilização operária (sindicatos), e de máquinas

automáticas ou cibernéticas. Largas reservas de mão-de-obra

desempregada não são já necessárias para ir ao encontro das necessidades

de expansão do capital, e os salários são em grande parte mais negociados

do que deixados à livre atuação do mercado de trabalho. Anteriormente

necessárias, as reservas de mão-de-obra inútil acabaram por tornar-se numa

ameaça à estabilidade de uma economia burguesa manipulada. A lógica

desta nova "perspectiva" encontrou a sua mais aterradora expressão no

fascismo alemão. Para os nazis, a Europa estava já "superpovoada" nos

anos trinta e o "problema populacional" foi "resolvido" nas câmaras de gás de

Auschwitz. A mesma lógica está implícita em muitos dos argumentos neo-

Malthusianos que se mascaram hoje como ecologia. Que não haja dúvida

quanto a esta conclusão.

Mais tarde ou mais cedo a proliferação descuidada de seres humanos terá

de ser detida, mas, ou o controle populacional terá de ser feito por meio de

"controles sociais" (métodos autoritários ou racistas e, no fim, ser um

genocídio sistemático), ou por uma sociedade libertária, ecologicamente

orientada (uma sociedade que desenvolva um novo equilíbrio com a

natureza fora da veneração pela vida). A sociedade moderna encontra-se

perante estas alternativas mutuamente restritas e deve fazer uma escolha

sem dissimulação. A ação ecológica é fundamentalmente ação social. Ou

vamos diretamente às origens sociais da atual crise ecológica, ou seremos

logrados por uma era de totalitarismo.

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Ecologia e Sociedade

A concepção básica de que a humanidade deve dominar e explorar a

natureza, provém da dominação e exploração do homem pelo homem. Na

verdade, esta concepção vem de tempos remotos em que o homem

começou a dominar e explorar as mulheres dentro da família patriarcal.

Desde essa altura os seres humanos foram olhados, cada vez mais, como

meros recursos, como objetos em vez de sujeitos. As hierarquias, classes,

sistemas de propriedade e instituições políticas que emergiram com o

domínio social foram transferidas conceitualmente para a relação entre a

humanidade e a natureza. Esta, também foi cada vez mais olhada como

mero recurso, um objeto, uma matéria bruta a ser explorada tão

implacavelmente como escravos num latifúndio. Esta "visão do mundo"

impregnou não só a cultura oficial da sociedade hierárquica; tornou-se na

maneira como os escravos, servos, trabalhadores da indústria e as mulheres

de todas as classes sociais se começaram a considerar a eles mesmos.

Contida na "ética do trabalho", na moralidade baseada na recusa e na

renúncia, num modo de comportamento baseado na sublimação dos desejos

eróticos e noutros aspectos mundanos (sejam eles Europeus ou Asiáticos),

os escravos, servos, trabalhadores e metade das mulheres da humanidade

foram ensinadas a vigiarem-se a si próprios, a talharem as suas próprias

cadeias, a fechar as portas das suas prisões.

Se a "visão do mundo" da sociedade hierárquica começa hoje a declinar é

especialmente porque a enorme produtividade da moderna tecnologia abriu

uma nova visão: a possibilidade de abundância material, um fim á escassez

de uma era de tempos livres (o chamado "lazer") com um mínimo de trabalho

duro. A nossa sociedade está a ser impregnada por uma tensão entre "o que

é" e "o que poderia ser", uma tensão exacerbada pela exploração e

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destruição irracional e desumana da terra e dos seus habitantes. O maior

obstáculo que dificulta a solução desta tensão é a extensão até à qual a

sociedade hierárquica ainda modela os novos pontos de vista e as nossas

ações. É mais fácil refugirmo-nos nas críticas à tecnologia e ao crescimento

populacional; tratar com um sistema social arcaico, destrutivo sobre as suas

próprias condições e dentro da sua própria estrutura. Quase desde o berço

temos sido socializados pela família, instituições religiosas, escolas e pelo

próprio trabalho, aceitando a hierarquia, renúncia e sistemas políticos, como

premissas sobre as quais todo o pensamento deve apoiar-se. Sem

esclarecer essas premissas, todas as discussões, sobre o equilíbrio

ecológico permanecerão meros paliativos e serão contraproducentes.

Em virtude da sua excepcional bagagem cultural, a sociedade moderna -

sociedade burguesa orientada para os lucros - tende a exacerbar o conflito

entre a humanidade e a natureza, de uma forma mais crítica do que as

sociedades pré-industriais do passado. Na sociedade burguesa, os humanos

não só se transformam em objetos mas também em mercadorias; em objetos

claramente destinados a serem vendidos no mercado. A competição entre os

seres humanos, como mercadorias, torna-se um fim em si, em conjunto com

a produção de artigos totalmente inúteis. A qualidade transformou-se em

quantidade, a cultura individual em cultura de massas, a comunicação

pessoal em comunicação de massas. O meio ambiente natural tornou-se

numa fábrica gigantesca e a cidade num imenso mercado: tudo, desde uma

floresta Redwood até ao corpo de uma mulher tem "um preço". É tudo

equacionado em dólares, seja uma catedral consagrada ou a honra

individual. A tecnologia deixa de ser uma extensão da tecnologia. A máquina

não amplia o poder do trabalhador; é o trabalhador que amplia o poder da

máquina e na verdade ele mesmo se torna numa simples parte da máquina.

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É assim tão surpreendente que esta sociedade exploradora, degradante e

quantificada oponha a humanidade a si própria e à natureza, numa escala

mais assombrosa do que qualquer outra no passado?

Sim, necessitamos mudar, mas mudar tão fundamentalmente e em tão

grande escala que mesmo os conceitos de revolução e liberdade devem ser

ampliados para além de todos os primitivos horizontes. Não é já suficiente

falar das novas técnicas para a conservação e promoção do ambiente

natural; devemos tratar a terra comunalmente, como uma coletividade

humana, sem aquelas peias da propriedade privada, que têm distorcido a

visão da vida e da natureza da humanidade, desde a rutura da sociedade

tribal. Devemos eliminar não só a hierarquia burguesa mas a hierarquia

como tal; não só a família patriarcal, mas também todas as formas de

domínio familiar e sexual; não só a classe burguesa e o sistema de

propriedade, mas sim todas as classes sociais e a propriedade. A

Humanidade deve tomar posse de si própria, individual e coletivamente, para

que todos os seres humanos obtenham o controle de suas vidas diárias. As

nossas cidades devem ser descentralizadas em comunidades ou

ecocomunidades talhadas, fina e habilidosamente, para o aproveitamento da

capacidade dos ecossistemas nos quais elas estão localizadas. As nossas

tecnologias devem ser readaptadas e formuladas em ecotecnologias, fina e

inteligentemente adaptadas para usarem as fontes de energia local e os

materiais, com um mínimo ou sem poluição do ambiente. Necessitamos

recuperar um novo sentimento das nossas necessidades - necessidades que

fomentem uma vida saudável e que exprimam as nossas inclinações

individuais, não as "necessidades" ditadas pelos meios de comunicação.

Temos que restaurar a escala humana no nosso ambiente e nas nossas

relações pessoais, substituto medianeiro das relações pessoais diretas na

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gestão da sociedade. Finalmente, todas as formas de domínio - social ou

pessoal - devem ser banidas das nossas concepções, de nós próprios, dos

nossos semelhantes e da natureza. A administração dos humanos deve

ser substituída pela administração das coisas. A revolução que pretendemos

deve envolver não só as instituições políticas e as relações econômicas, mas

também a consciência, o estilo de vida, os desejos eróticos e a nossa

interpretação do significado da vida.

O balanço aqui, é o espírito antiquado e os sistemas de domínio e repressão

que não só opuseram o homem ao homem, mas a humanidade à natureza.

O conflito entre estas é uma extensão do conflito entre o ser humano. A não

ser que o movimento ecológico envolva o problema do domínio em todos os

seus aspectos, ele não contribuirá em nada para a eliminação da origem das

causas da crise ecológica do nosso tempo. Se o movimento ecológico se

detém em simples reformas de controle da poluição e conservação, sem

tratar radicalmente da necessidade de ampliação de um conceito de

revolução, ele servirá meramente como uma válvula de segurança do

sistema existente da exploração humana e natural.

Objetivos

Sobre certos aspectos o movimento ecológico de hoje está a mover uma

ação tardia, contra a destruição desenfreada do ambiente. Noutros aspectos

os seus elementos mais conscientes estão envolvidos num movimento

criativo, pronto a revolucionar totalmente as relações sociais dos indivíduos

para com os outros e da humanidade para com a natureza.

Embora elas se interpenetrem intimamente, os dois esforços devem

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distinguir-se um do outro. Ecology Action East (Ação Ecológica Leste) apoia

qualquer esforço para a conservação do ambiente: preservar a água e o ar

puros; limitar o uso dos pesticidas e adubos químicos nos alimentos; reduzir

o trânsito de veículos nas ruas e auto-estradas; tornar as cidades mais

saudáveis fisicamente; impedir que os desperdícios radioativos penetram no

ambiente; proteger e aumentar as áreas desertas e os territórios para a vida

selvagem; e defender as espécies animais da depredação humana.

Mas a Ecology Action East não se ilude a si própria pensando que estas

ações tardias constituem uma solução para o conflito fundamental que existe

entre a atual ordem social e o mundo natural. Nem tão pouco que estas

ações tardias possam deter o ímpeto esmagador de destruição existente

nesta sociedade.

Esta ordem social joga conosco. Ela concede reformas a longo prazo, aos

poucos e dolorosamente inadequadas, a fim de desviar os nossos esforços e

atenção de atos destruidores ainda mais vastos. Em certo sentido, é-nos

oferecido um pedaço de terreno da floresta Redwood em troca das

Cascades. Visto numa maior perspectiva, esta tentativa para reduzir a

ecologia a uma relação de permuta não salva nada; é um modus operandi

barato de negociar a maior parte do planeta por umas quantas ilhas

desertas, por parques de bolso num mundo devastado de betão.

A Ecology Action East tem dois objetivos principais: um é incrementar no

movimento revolucionário, o conhecimento de que a consequência mais

urgente e destrutiva da nossa sociedade exploradora e alienante é a crise

ambiente, e que a verdadeira sociedade revolucionária deve ser construída

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de acordo com preceitos ecológicos; o outro objetivo é provocar na mente de

milhões de Americanos que estão preocupados com a destruição do nosso

ambiente, uma tomada de consciência de que os princípios da ecologia,

levados até ao final lógico, exigem mudanças radicais na nossa sociedade e

no nosso modo de olhar o mundo.

A Ecology Action East fundamenta-se na revolução do estilo de vida que, no

máximo, pretende uma consciência aumentada de experiência e de liberdade

humanas. Nós pretendemos a libertação das mulheres, das ciranças, dos

homossexuais, dos povos negros e colonizados, dos trabalhadores de todas

as profissões, como parte da crescente luta social contra as tradições e

instituições que têm tão destruidoramente modelado a atitude da

humanidade para com o mundo natural. Nós apoiamos comunidades

libertárias e lutas pela liberdade aonde quer que surjam; apoiamos também

qualquer esforço para promover o auto-desenvolvimento espontâneo dos

jovens; opomo-nos a qualquer esforço para reprimir a sexualidade humana e

negar à humanidade a experiência do erótico em todas as suas formas.

Unimos todos os esforços para fomentar um artifício feliz, na vida e no

trabalho: a promoção dos ofícios e da qualidade de produção; o

planejamento de novas ecocomunidades e ecotecnologias; o direito à

experiência, numa base diária da beleza do mundo natural, o parzer aberto,

espontâneo e sensual que os humanos podem oferecer uns aos outros, o

respeito crescente pelo mundo da vida.

Em resumo, nós temos esperanças numa revolução que produza

comunidades politicamente independentes cujas fronteiras e populações

sejam definidas por uma nova consciência ecológica; comunidades cujos

habitantes determinarão por si mesmos, dentro da estrutura desta nova

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consciência, a natureza e o nível das suas tecnologias, as formas tomadas

pelas suas estruturas sociais, visões do mundo, estilos de vida, artes

expressivas e todos os outros aspectos das suas vidas diárias.

Mas nós não nos iludimos a nós mesmos de que este mundo orientado para

a vida possa ser desenvolvido, inteiramente ou mesmo parcialmente

conseguido, através de uma sociedade orientada para a morte. A sociedade

Americana como hoje está constituída, está penetrada de racismo e ergue-se

no topo do mundo inteiro não só como consumidora de sua riqueza e

recursos, mas como um obstáculo a todas as tentativas de auto-

determinação no interior e no estrangeiro. Os seus objetivos inerentes são a

produção pela produção, a manutenção da hierarquia e do trabalho árduo à

escala mundial, manipulação das massas e controle por meio de instituições

políticas centralizadas. Este tipo de sociedade contrapõe-se inalteravelmente

a um mundo orientado para a vida. Se o movimento ecológico não tira estas

conclusões dos seus esforços para conservar o ambiente natural, então a

conservação torna-se um mero obscurantismo. Se o movimento ecológico

não dirige os seus esforços principais para uma revolução em todos os

aspectos da vida - social bem como natural - então o movimento tornar-se-á

gradualmente numa válvula de segurança para a ordem estabelecida. A

nossa esperança está em que os grupos como nós, brotarão através do país,

organizados como nós próprios numa base humanista e libertária,

empenhada na ação conjunta e com um espírito de cooperação baseado no

apoio mútuo. É também esperança nossa que eles tentem fomentar uma

nova atitude ecológica, não só para com a natureza mas também para com

os humanos: uma concepção de relações espontâneas variegadas dentro e

entre grupos, dentro da sociedade e entre os indivíduos.

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Nós esperamos que os grupos ecológicos evitarão todos os apelos aos

"chefes de governo" e às instituições estatais nacionais e internacionais, os

verdadeiros corpos criminosos e políticos que têm contribuído materialmente

para a crise ecológica do nosso tempo. Cremos que os apelos devem ser

feitos ao povo e à sua capacidade para a ação direta, que lhe possa permitir

tomar o controle das suas próprias vidas e destinos. Porque só desta

maneira pode emergir a sociedade sem hierarquia e domínio, a sociedade na

qual cada indivíduo é o dono ou a dona da sua própria sorte.

As grandes cisões que dividiram os humanos dos humanos, a humanidade

da natureza, o indivíduo da sociedade, a cidade do campo, a atividade

mental da física, a razão da emoção e geração de geração devem ser agora

ultrapassadas. O cumprimento da luta antiquada pela sobrevivência e

segurança material num mundo de escassez foi uma vez olhado como a

condição prévia para a liberdade e para uma vida inteiramente humana. Para

viver nós tivemos que sobreviver. Como Brecht disse: "Primeiro a

alimentação e depois a moralidade".

A situação começou agora a modificar-se. A crise ecológica do nosso tempo,

crescentemente, inverteu esta máxima tradicional. Hoje, se nós temos que

sobreviver, devemos começar por viver. As nossas soluções devem ser

proporcionais ao nível do problema, ou então a natureza vingar-se-á,

terrivelmente, da humanidade.

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PARA UM NOVO MUNICIPALISMO

Dada a crescente centralização do estado e a depressão de todas as formas

sociais, o problema do desenvolvimento de formas populares de organização

social tornou-se a responsabilidade histórica de um movimento anarquista

importante. O mito do "estado mínimo" proposto pelos neo-marxistas, pelos

descentralizadores da "Nova Era" e pelos "libertários" de direita - por bem

intencionadas que sejam as suas noções - é, em última instância, uma

justificação do estado enquanto tal. Dentro do conceito da crise presente,

qualquer estado mínimo torna-se uma ideologia ingénua para o único tipo de

estado que é possível numa sociedade cibernética de grandes empresas - de

fato, um estado máximo. Faz parte da própria dialética da presente situação

que qualquer estado não possa ser mais "mínimo" , tal como uma bomba de

hidrogênio não se pode transformar num instrumento pacífico. Discutir o

"tamanho" de um estado - as suas dimensões, grau de controle e funções -

reflete a mesma sabedoria que é inerente ás discussões sobre o tamanho da

arma que só pode levar ao extermínio da sociedade e da biosfera. O grau

das discussões acerca do estado focando os seus objetivos e autoridade

permanece num nível de discurso que é tão racional como as discussões

sobre o nosso arsenal nuclear conterá armas para destruir o mundo, cinco,

dez ou cinquenta vezes. Uma vez chega, quer para os arsenais nucleares,

quer para o estado.

Se uma oposição descentralizadora ao estado, à arregimentação e

militarização da sociedade americana quer ser de fato significativa, o termo

"descentralização" deve então adquirir forma, estrutura, substância e

coerência. Expressões como "escala humana" e "holism" tornam-se clichés

enfraquecidos quando não são compreendidas em termos da sua plena

lógica revolucionária, isto é, como reconstrução revolucionária de todas as

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relações e instituições sociais; A criação de uma economia inteiramente

nova, baseada não só na "democracia no local de trabalho" mas na

esteticização das capacidades produtivas humanas; a abolição da hierarquia

e dominação em todas as esferas da vida pessoal e social; a reintegração de

todas as comunidades sociais e naturais num ecossistema comum. Esta

projeto implica um corte total com a sociedade de mercado, as tecnologias

dominantes, o estatismo, as sensibilidades patricêntricas e prometaicas para

com os humanos e a natureza, que foram absorvidas e realçadas pela

sociedade burguesa. Cada falso passo nesta direção, é uma falta grosseira

em relação ao projeto e à sua essência. Ele admitiria inevitavelmente uma

traição total, um apoio ideológico à centralização disfarçada em

"descentralização". Ou o projeto é levado à prática até aos seus mais

radicais fins, ou ele entrará em conflito consigo próprio e com os seus

objetivos originais.

Qual é o lugar autêntico deste projeto? Não é certamente o local de trabalho

atual - a fábrica e o escritório- o qual tem que ser, ele próprio, reconstruído

fundamentalmente, partindo do atual campo (hierárquico e tecnologicamente

obsoleto) de mobilização da mão de obra, para um mundo criativo que se

combine ricamente com a esfera pública e que transcenda o mero conflito de

interesses econômicos. Neste sentido, o sindicalismo e o comunismo

conselhista, ao perpetuarem o mito do local de trabalho como esfera

revolucionária, tornam-se numa forma tosca de marxismo sem as suas

manifestas características autoritárias. Tão pouco pede a localização deste

projeto situar-se na comunidade isolada ou na cooperativa, a despeito das

suas inestimáveis qualidades como escola para aprendizagem dos

conhecimentos e resolução dos problemas de ação direta, autogestão e

interação social. Nenhuma cooperativa de alimentação substituirá jamais as

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grandes cadeias de produtos alimentares como o Pão de Açucar, e nenhuma

fazenda de agricultura biológica substituirá os negociantes agrícolas sem que

haja mudanças fundamentais na sociedade em geral. Como núcleos numa

sociedade de mercado invasora, elas mal podem esperar enfrentar

significativamente uma economia sólida e politizada, baseada em ótimos

recuros materiais e, se necessário, na coerção física. Elas podem ser focos

de resistência indispensáveis para enfrentar os novos desafios com que hoje

se confronta uma oposição revolucionária. Mas a noção proudhoniana de

que elas seriam o manancial material de uma nova sociedade que iria

gradualmente substituir a velha é totalmente mítica - ou pior, obscurantista.

Daí a sutil corrupção da visão do Stanford Research Institute de uma dupla

sociedade: uma, pequena e auto-complacente, que viverá pelo cânones da

"simplicidade voluntária"; a outra, sólida e esmagadora em números, que

viverá pelas necessidades engendradas pela produção de massa e por uma

sociedade de massa. Em última análise, esta imagem serve para desviar

qualquer conflito que a esfera pessoal, com o argumento da confrontação

com os media massificados que esmagam o espírito de resistência da

grande maioria da sociedade.

A resistência e a recolonização da sociedade devem surgir da lógica de um

conflito baseado claramente entre a sociedade e o estado centralizado, e não

de esforços singulares que estão incorporados em esforços comunitários e

pessoais. Todas as revoluçòes têm sido isso mesmo: um conflito entre a

sociedade e o estado. E, tal como atualmente o estado centralizado significa

o estado nacional, também a sociedade de hoje está a ser cada vez mais

representada pela comunidade local - o distrito, a freguesia e o município. A

exigência de um "controle local" deixou de significar paroquialismo e

insularidade, com a estreiteza de visão que despertou os receios de Marx.

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No terreno gerado pelo crescimento de uma economia centralizada e

cartelizada, o grito para a descoberta da comunidade, da autonomia, de uma

relativa auto-suficiência, auto-confiança e democracia direta, tornou-se o

último reduto de resistência social e crescente autoridade do estado. O

esmagador acento que os media têm posto na autonomia local e no

municipalismo militante como refúgios para um paroquialismo de classe

média - muitas vezes com restrições exclusivamente racistas e econômicas -

esconde a latente ofensiva radical que pode dar uma nova vitalidade às

aldeias, subúrbios e cidades, contra o estado nacional. Ainda que

escolhamos termos como "socialismo" e "anarquismo" para marcar o

contraste com as conotações paroquiais de termos como "municipalismo",

convém não esquecer que mesmo "socialismo" e "anarquismo" têm o seu

lado negativo, se realçarmos os aspectos autoritários do primeiro e o

falhanço crónico do último para se consolidar organizacionalmente na maior

parte dos países do mundo. A verdade é, finalmente, uma linha muito fina

que pode facilmente serpentear ao longo do seu curso. Neste aspecto, não

existem regras, dogmas e tradições que substituam a consciência.

Deste modo, o município pode facilmente tornar-se o ponto de partida para

uma constelação de instituições sociais largamente assentes na democracia

direta, verdadeiramente popular e à escala humana, que, pela sua própria

lógica, se encontrem em oposição aguda às crescentemente invasoras

instituições políticas. Isto deve ser claro: o potencial de um radicalismo

libertário é inerente ao municipalismo. Este constitui a base para relações

sociais diretas, democracia frontal e a intervenção pessoal do indivíduo, para

que as freguesias, comunidades e cooperativas convirjam na formação de

uma nova esfera pública. Liberto das suas próprias instituições políticas, tais

como a sua estrutura presidencial, a burocracia civil e o seu monopólio

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organizado da violência, ele conserva ainda os seus elementos históricos

para a reconstrução (e ulterior superação) da polis, da comuna livre

medieval, do sistema de assembleia da Nova Inglaterra, das seções

parisienses, da estrutura descentralizada cantonal e da Comuna de Paris.

De certeza que, em si, o município é tão inutil como força social como o são

a fazenda comunitária e a cooperativa. Além disso, desde que ele preserve

as instituições políticas do estado, permanece não só como uma entidade

social ineficaz, mas também um estado em miniatura. Mas a partir do

momento em que os municípios se federam para formar uma nova rede

social; que interpretem o controle local com o significado de assembleias

populares livres; que a auto-confiança signifique a coletivização dos

recursos; e que, finalmente, a coordenação administrativa dos seus

interesses comuns seja feita por delegados - não por "representantes" - que

são livremente escolhidos e mandatados pelas suas assembleias, sujeitos a

rotação, revogáveis e as suas atividades severamente limitadas à

administração das políticas sempre decididas nas assembleias populares - a

partir deste momento os municípios deixam de ser instituições políticas ou

estatais em qualquer sentido do termo. A confederação destes municípios -

uma comuna de comunas - é o único movimento social anarquista de ampla

base que pode ser visionado hoje, aquele que poderá lançar um movimento

verdadeiramente popular que produzirá a abolição do estado. É o único

movimento que pode responder às crescentes exigências de todos os

setores dominados da sociedade para dar poder e propôr pragmaticamente a

reconstrução de uma sociedade comunista libertária nos termos viscerais da

nossa problemática social atual - a recuperação de uma personalidade

poderosa, de uma esfera pública autêntica e de um conceito ativo e

participatório de cidadania.

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O anarquismo inspirou desde há várias gerações a visão de uma

confederação de municipalidades, em parte desde os escritos de Proudhon,

e mais notavelmente na obra de Kropotkine. Tragicamente, os teóricos

anarquistas do passado foram demasiado sensíveis às armadilhas políticas

dos municípios do seu tempo para darem a necessária atenção à anatomia

social da municipalidade que jaz por debaixo da sua aparente fachada

estatal.

Historicamente, o próprio município foi sempre um campo de batalha entre a

sociedade e o estado. De fato, ele antecede historicamente o estado e tem

permanecido sempre em conflito com ele. Tem sido um campo de batalha

porque o estado, até data relativamente recente, nunca reclamou por inteiro

o município, devido à sua vida socialmente rica - famílias, corporações, a

igreja, as freguesias, as sociedades locais, os bairros e as assembleias

populares. Estas estruturas ricas de núcleos, apesar das suas divisões

internas, têm sido espantosamente impenetráveis à institucionalização

política. Ironicamente, a tensão entre sociedade e estado a nível municipal

nunca atingiu a situação grave de hoje porque as forças internas da cidade e

dos subúrbios possuiam os meios materiais, culturais e espirituais para

resistir às tendências invasoras das forças políticas. A vida municipal -

ricamente texturada por redes familiares, compromissos locais, organizações

profissionais, sociedades populares e até estabelecimentos de convívio,

como cafés - proporcionava um refúgio humano contra as forças burocráticas

e homogeneizadoras do aparelho estatal. Hoje, o estado, particularmente o

da forma de economia de mercado, ameaça destruir este refúgio e o

municipalismo tornou-se o terreno mais significativo da luta contra o estado

num terreno não-político. O próprio conceito de cidadania, e não só o de

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autonomia cívica, está em jogo neste conflito.

É neste momento crucial para qualquer movimento anarquista que procure

ser socialmente relevante perante a natureza única da crise americana,

reconhecer o significado e a importância do terreno cívico - para explorar,

desenvolver e ajudar a reconstruir o seu fundamento social. A política urbana

não está predestinada a tornar-se política de estado. Para um anarquista,

tornar-se Ministro da Saúde ou Ministro da Justiça num governo republicano

é imperdoável. Mas para um anarquista, ajudar a organizar uma assembleia

de freguesia, a avnçar a sua consciência numa linha libertária, apresentar

reivindicações sobre a revogabilidade e a rotatividade dos delegados

escolhidos pela assembleia, fazer distinções claras entre formulações de

políticas e coordenação administrativa, recusar o burocratismo civil em todas

as suas formas, educar a comunidade para o coletivismo e a ajuda mútua e,

finalmente, encorajar relações confederais entre assembleias populares e

municipalidade e entre municipalidades, em desafio aberto ao estado

nacional - este programa constitui uma "política" anarquista que, na sua

lógica própria, contém a negação da política. Para os anarquistas,

candidatar-se às eleições... sim, usemos a palavra abertamente - tendo em

vista a reformulação das cartas cívicas das cidades e vilas americanas na

linha deste programa, não é diferente, em princípio, do que candidatar-se

nos sindicatos e locais de trabalho com vista a criar estruturas anarco-

sindicalistas. A diferença de situações não é sobre o ponto dos anarquistas

se candidatarem a "eleições" ou se envolverem na política. A diferença real

está em se o terreno do seu "elitoralismo" e da sua "política" se situa na

esfera estatal ou na esfera social. O argumento sindicalista tradicional de que

é perfeitamente válido os libertários apresentarem-se às eleições no local de

trabalho e nos sindicatos, assenta no pressuposto duvidoso de que este

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terreno está fora do aparelho de estado e permanece uma arena

revolucionária. Perante a crescente interrogação posta pelas realidades, eles

mantêm a afirmação de que o local de trabalho e os sindicatos, como

organizações de classe, não são nem instituições burguesas nem estatais.

Encerrar a discussão sobre estas propostas com o argumento de que as

atividades cívicas são uma capitulação perante a política burguesa é ignorar

realidades muito fortes sobre a própria esfera cívica - ou, para usar termos

mais tradicionalmente anarquistas, sobre a esfera comunitária. Como

resultado disto, aparências como "eleições", "deputados", e "coordenação"

são tirados do contexto no qual ganham todo o sentido e conteúdo. Tornam-

se termos autônomos e flutuantes que determinam uma política sem

discernimento nem a matéria da realidade.

Isto deve ser muito claro: nos Estados Unidos, as fábricas são virtualmente

mudas, enquanto que as cidades, particularmente os ghetos e os subúrbios

não estão. Hoje, os trabalhadores americanos podem ser atingidos mais

rápida e receptivamente como vizinhos e cidadãos do que como

trabalhadores assalariados das fábricas - uma situação que envolve

consequências muito graves numa discussão sobre a classe operária

americana. Se os grupos anarquistas dos Estados Unidos - apoiando-se nas

suas tradições do século XIX, no seu ligeiro anti-estatismo e no seu

economicismo - ignorarem o conflito histórico entre as periferias sociais

chamadas vilas, freguesias e cidades, por um lado, e o estado, por outro,

eles ganharão as suas bandeiras negras, não como bandeiras de protesto,

mas como mortalhas. A demarcação entre estatismo e anarquismo deve ser

sempre clara, mas também o deve ser a demarcação entre sociedade e

estado, ou então não conheceremos nunca o tempo em que a batalha terá

lugar. Na crise histórica com que nos confrontamos, que a própria vida

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pública ameaça fazer desaparecer, a recriação de uma esfera pública - à

escala humana, diretamente democrática, e composta de cidadãos ativos - é

talvez a responsabilidade mais premente do nosso tempo. Porque sem essa

esfera pública, que deve ter tangibilidade cívica e substância se quiser ser

mais do que simples metáfora, as prórpias condições e substância para o

protesto teriam desaparecido.

Postscriptum

O último número de Comment terminava com uma discussão sobre o "novo

municipalismo"como projeto focal do anarquismo para os anos futuros.

Parece apropriada uma discussão sobre o tema "anarquismo: passado e

presente", tratando, embora levemente, os problemas que este projeto

levanta e a filosofia libertária que lhe serve de base.

Existem dois campos que o anarquismo reclamou historicamente para a sua

intervenção: o local de trabalho e a comunidade. Tanto na oficina artesanal

como na povoação, na fábrica como no concelho, a teoria anarquista sugere,

quando não afirma explicitamente, que ambos estes campos são mais

sociais do que estatais. O local de trabalho, particularmente a fábrica

industrial, encontrou a sua apoteose nos sindicatos anarco-sindicalistas e

nos diversos movimentos para a "democracia no local de trabalho". Se este

campo pode olhar-se hoje como "necessariamente" ou "potencialmente"

revolucionário, é uma questão em aberto que requer uma discussão aparte e

é agora assunto de largo debate, quer nos meios marxistas, quer nos meios

anarquistas. Que lideres anarco-sindicalistas possam ter ocupado altos

cargos estatais não é argumento que invalide a interpretação sindicalista das

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idéias anarquistas, tal como o não é o fato de que os mutualistas e

possibilistas do século XIX - que privilegiaram a atividade municipal - possam

ter sido atraídos para a política parlamentar.

Será que o que é realmente importante é o significado por nós atribuído ao

novo municipalismo? os anarquistas tradicionais tinham da vida municipal a

visão de um parlamentarismo local, cujos fins últimos estavam na plítica

eleitoral. Será assim? Também se poderá argumentar que o sindicalismo, de

qualquer tipo, envolve uma adaptação à hierarquia industrial e à

racionalização, e conduz em última instância, a uma política de sindicatos

burocratizados - um argumento que tem mais história atrás de si, do que a

atividade municipal. Nós devemos ser muito honestos connosco mesmos,

neste período crucial da história. Se um movimento anarquista nos Estados

Unidos não se torna uma coligação livre de indivíduos, comunidades,

cooperativas e grupos de afinidade - vitais como são a própria natureza e

integridade de um tal movimento - ele não poderá implantar-se numa larga

base de desenvolvimento social. E tal desenvolvimento compreende a

esmagadora realidade de que a grande maioria dos americanos vive numa

ou noutra forma de fixação urbana. Convém realçar que, se um novo

municipalismo apenas significar uma política liberal, social-democrática ou

mesmo "radical", confinada à melhoria dos serviços para os pobres, idosos e

desprotegidos, então ele será um remendo do reformismo paroquial que,

finalmente, fornecerá uam maquilhagem ao sistema, em vez de o desafiar.

Mas se um novo municipalismo for guiado por um programa radicalmente

diferente, ele pode tornar-se numa visão revolucionária praticável e muito

necessária que engloba respostas ecológicas, feministas, étnicas,

homossexuais e cívicas libertárias - com o carater fundamental de serem

respostas cívicas, ou, mais precisamente, comunitárias.

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Os requisitos minimamente indispensáveis para a realização desta visão são:

1- a formação de um movimento anarquista de elevado comprometimento e

altamente consciente. Sem o desenvolvimento desse movimento, antes de

tudo, o municipalismo degenerará inevitavelmente em reformismo e

parlamentarismo; 2- o encorajamento e desnvolvimento de assembleias

populares em áreas urbanas e concelhos; 3- e só então, poderia esta visão

ser corporizada num movimento consciente largamente apoiado, uma

Confederação de Municípios, que interligasse aquelas assembleias com

comunidades urbanas mais vastas e, por fim, entre municipalidades que

contestassem o estado e o governo nacionais, consciente e radicalmente. As

suas reivinvicações: a reformulação das cartas cívicas de todas as cidades e

vilas, para eleger (com direito a revogação e com rotatividade) os deputados

concelhios a partir das assembleias populares, encarregando-os de funções

mais administrativas do que políticas. Estas novas cartas, estando em franca

contradição com a "Constituição" Federal, dariam às municipalidades o

direito de municipalizar a indústria, os solos e o comércio; de determinar as

suas necessidades sociais e de satisfazê-las; e finalmente de suplantar as

instituições nacionais do estado pelas instituições confederais das

comunidades locais.

É nesta base que um novo anarquismo americano se pode e deve

fundamentar para adquirir a relevância, a influência e o potencial

revolucionário capaz de enfrentar a crise que se lhe deparará. Não perceber

que o anarquismo pode orientar a maré de um ódio popular irresistível (não

se pode descrevê-lo de outra maneira) contra a centralização, burocratização

e interferência governamental em todos os aspetos da vida; não perceber

este fato determinante, seria uma incrível miopia e condenaria o anarquismo

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ao destino de uma mera tendência periférica na orla de uma monumental

tempestade social.

Em 19 de Abril de 1871, a Comuna de Paris proclamou no seu Programa

Oficial ao Povo de França: "Exigimos a total autonomia da Comuna,

extensiva a todo o território de França, assegurando a cada um a plenitude

dos seus direitos, e a todos os franceses a livre expressão das suas

faculdades como homem, como cidadão e como trabalhador". Sabendo que

estas proclamações foram feitas há um século, podemos pedir menos do que

isto?

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MUNICIPALISMO LIBERTÁRIO

Local de trabalho e comunidade são os pólos em que se tem centrado, ao

longo da história, a teoria e pratica social radical. Com o aparecimento do

Estado-Nação e da revolução industrial, a economia adquiriu proeminência

sobre a comunidade, não só na ideologia capitalista como também nas

várias modalidades de socialismo libertário e

autoritário surgidas no século passado. Esta mudança de tônica do pólo ético

para o econômico foi de enorme alcance, conferindo aos diversos

socialismos inquietantes atributos burgueses. Tal evolução foi

particularmente

nítida no conceito marxista de emancipação humana através do domínio da

natureza, projeto que implicando o domínio do homem pelo homem,

justificava o aparecimento da sociedade de classes como condição prévia

dessa emancipação.

Infelizmente, a ala libertaria do socialismo não propôs com a necessária

coerência, o primado da moral sobre o econômico, provavelmente em razão

do nascimento do sistema de fábrica ( lugar clássico da exploração

capitalista) e do proletariado industrial como agente de uma nova sociedade.

O próprio sindicalismo revolucionário, apesar de todo o seu fervor moral,

concebeu a organização social sindicalista pós-revolucionária nos moldes da

sociedade industrial, o que testemunha bem a mudança de tônica do

comunitarismo para o industrialismo, dos valores comunitários para os da

fábrica. Obras que gozaram de prestigio quase sagrado no meio sindicalista

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revolucionário, como “O organismo econômico da revolução” de Santillan,

exaltam o significado da fábrica e do posto de trabalho, para não falar já do

papel messiânico do proletariado. Todavia, o local de trabalho ( a fábrica na

sociedade industrial) foi, ao longo da história, não só lugar de exploração,

mas de subordinação hierárquica. Não serviu para “disciplinar”, “unir” e

“organizar” o proletariado para mudança revolucionária mas, pelo contrario,

para acostumar à obediência. O proletariado, como qualquer setor oprimido

da sociedade, liberta-se abandonando os hábitos industriais e participando

ativamente na vida comunitária.

Da Tribo à cidade

O município é espaço econômico e espaço humano de transformação do

grupo quase tribal em corpo político de cidadãos. A política – gestão da

cidade (polis) – tem sido desvirtuada em governo do estado tal como a

palavra polis tem sido impropriamente traduzida por estado. Esta degradação

da cidade em estado repugna aos antiautoritários, dado que o estado é

instrumento das classes dominantes, monopólio institucionalizado da

violência necessária para assegurar o domínio e a exploração do homem

pelo homem. O estado desenvolveu-se lentamente a partir de base mais

ampla de relações hierárquicas até se converter no Estado-Nação e, mais

modernamente, no estado totalitário. Por outro lado, a família, o local de

trabalho, as associações, as relações interpessoais e, de modo geral, a

esfera privada da vida, são fenômenos especificamente sociais, distintos do

âmbito estatal. O social e o estatal misturam-se; os despotismos arcaicos

não foram senão ampliação da estrutura familiar patriarcal e, na atualidade, a

absorção do social pelo estado totalitário nada mais é que o alargamento da

burocracia a esferas não meramente administrativas. Esta mistura do social

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e do estatal apenas prova que os modos de organização social não existem

em formas puras. A “pureza” é termo que só pode ser introduzido no

pensamento social a expensas da realidade concreta. A História na

apresenta a categoria política como forma pura,m assim como não oferece

qualquer exemplo de relações sociais não hierárquicas (acima do nível do

bando ou aldeia) ou de instituições estatais puras (até época recente). O

aparecimento da cidade abre espaço a uma humanidade universal distinta da

tribo agro-pastoril, a um civismo inovador distinto da comunidade fechada na

tradição e que exprime na gestão da polis por um corpo de cidadãos livres.

Aproximações a uma política não estatal encontram-se na democracia

ateniense, no town meetings da Nova Inglaterra ou nas assembléias de

seção da comuna de Paris de 1793,. Experiências por vezes duradouras, por

vezes efêmeras, que embora inquinada por traços opressivos característicos

das relações sociais do seu tempo, permitem conceber um modelo político

não parlamentar (burocrático e centralizado), mas cívico.

A Cidade e a Urbe

A era moderna caracteriza-se pela urbanização, degradação do conceito de

cidade (civitas, corpo político de cidadãos livres) em urbe (conjunto de

edifícios, praças, isto é, o fato físico da cidade). Os dois conceitos foram

distintos em Roma até a época imperial e é elucidativo que a sua confusão

corresponda ao declínio da cidadania. Os Gracos tinham procurado

transformar a urbe em cidade, dar primazia ao cidadão, ao político sobre o

econômico. Fracassaram e, sob o império, a urbe devorou a cidade. A

distinção entre os conceitos de cidade e urbe encontra-se em outros países

como a França, onde Rousseau já assinalava que “as casas fazem o

aglomerado urbano (ville) mas só os cidadãos fazem a cidade (cité)”. Vistos

como simples eleitores ou contribuintes – quase um eufemismo para súditos

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– os habitantes da urbe tornam-se abstrações, meras criaturas do estado.

Um povo cuja única função política é eleger deputados não é, de fato povo,

mas “massa”. A politica entendida como categoria distinta do estatal, implica

a reencarnação das massas num sistema articulado de assembléias, a

constituição de um corpo político atuando num espaço de livre expressão, de

racionalidade comum e de decisão radicalmente democrática. Sem

autogestão nas esferas econômicas, ética e política, não será possível

transformar os homens de objetos

passivos à sujeitos ativos. O espaço cívico (bairro, cidade) é o berço em que

o homem se civiliza e civilizar é sinônimo de politizar, de transformar a

“massa”em corpo político deliberativo, racional e ético. Formando e fazendo

funcionar tais assembléias, os cidadãos formam-se a si mesmos, porque a

política nada é se não for educativa e não promover a formação do caráter.

O município não é apenas o local onde se vive, a casa, serviços de higiene e

salubridade, de previdência, emprego e cultura. A passagem da tribo à

cidade representa uma transformação radical da sociedade primitiva ( de

caça e colheita)à sociedade agrícola e desta à de manufatura,. A revolução

urbana não foi menos profunda que a revolução agrícola ou que a industrial.

Município e democracia direta

Ao exaltar a atividade legislativa e executiva por delegados na comuna de

Paris de 1871, Marx prestou um péssimo serviço ao pensamento social

radical. Já Rousseau afirmava que o poder popular não pode se delegado

sem ser destruído. Ou há assembléia popular dotada de plenos poderes ou o

poder pertence ao estado. A delegação deturpou a comuna de Paris de 1871,

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os sovietes e, mais geralmente, os sistemas republicanos em nível municipal

e nacional. A expressão democracia representativa é, em si mesma,

contraditória. O povo, ao delegar em órgãos que o excluem da discussão e

decisão e definem o âmbito das funções administrativas, lança as bases do

poder estatal. A supremacia da assembléia sobre os órgãos administrativos é

a única garantia da supremacia do cidadão sobre o

estado, crucial numa sociedade como a nossa, repletos de peritos que a

extrema especialização e complexidade torna indispensáveis. A supremacia

da assembléia é particularmente importante no período de transição de uma

sociedade administrativamente centralizada para uma sociedade

descentralizada. A democracia libertária só é concebível se assembléias

populares, em todos os níveis, mantiverem sob a maior vigilância e

escrupuloso controle os seus órgãos federais ou confederais de

coordenação.isto não suscita problemas importantes do ponto de vista

estrutural. Desde tempos remotos que as comunidades utilizam peritos e

administradores sem perda da sua liberdade. A destruição das comunidades

teve em geral origem estatal e não administrativa. Corporações sacerdotais e

chefes serviram –se da ideologia e da ingenuidade publica, mais que da

força, para reduzir primeiro e depois eliminar o poder popular.

O Estado Contra a Cidade

O estado nunca absorveu, no passado, a totalidade da vida social. Fato que

Kropotkin assinalou implicitamente em O apoio mutuo, ao descrever a rica e

complexa vida cívica das comunidades medievais. A cidade foi a principal

força de oposição aos estados imperiais e nacionais, da antiguidade aos

nossos dias. Augusto e seus sucessores fizeram

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da supressão da autonomia municipal a chave da administração imperial

romana e o mesmo fizeram os monarcas absolutos da época da reforma.

“Abater os muros da cidade” foi uma constante da política de Luis XIII e de

Richelieu, política que ressurge em 1793-94, com a progressiva e implacável

restrição dos poderes da Comuna pelo Comitê de Salvação Publica

robespierrista. A “revolução urbana”, enquanto poder alternativo, isto é,

desafio potencial ao poder central, foi uma obsessão do estado ao longo da

história. Esta tensão subsiste ainda, como o demonstram os conflitos entre o

estado e as municipalidades na Inglaterra e América. Quando a urbanização

tiver anulado a vida da cidade a ponto de sta não ter mais identidade, cultura

e espaço associativos próprios, as bases para uma democracia terão

desaparecido e a questão das formas revolucionárias será mero jogo de

sombras. Qualquer perspectiva radical em moldes libertários perderá

significado. Por outro lado, é ingênuo supor que assembléias

populares (de aldeia, de bairro, de cidade) possam alcançar o nível de uma

vida publica libertária sem a existência de um movimento libertário

consciente, bem organizado e com programa claro. E este não poderá surgir

sem a contribuição de uma intelectualidade radical, vibrante de vida

comunitária, como a intelectualidade francesa do Iluminismo, com a sua

tradicional presença ns cafés e bairros de Paris. Intelectualidade bem diversa

da que

povoa academias e outras instituições culturais da sociedade ocidental. Se

os anarquistas não reforçarem esse extrato de pensadores em declínio, com

vida publica vivaz, em comunicação ativa com o ambiente social, terão de

enfrentar o risco de uma transformação das idéias em dogmas e de si

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próprios em herdeiros presunçosos das grandes personalidades vivas do

passado.

As Classes Sociais em Reformulação

Pode-se jogar com palavras como município, comunidade, assembléia e

democracia direta, negligenciando diferenças de classes, étnicas e de sexo,

que fizeram de termos como povo abstrações insignificantes. As assembléias

de secção parisienses de 1793 não só estavam em oposição à comuna e à

convenção mais burguesas, como eram, internamente campo de batalha

entre assalariados e proprietário, democratas e realistas, radicais e

moderados. Reduzir esta conflitualidade a meros interesses econômicos é

tão incorreto como ignorar diferenças de classe e falar de fraternidade,

liberdade e igualdade como se estas fossem meras expressões retóricas,

esquecendo sua dimensão populista e utópica. Tanto se escreveu já sobre os

conflitos econômicos nas revoluções inglesa, americana e francesa, que os

historiadores futuros fariam melhor serviço se revelassem o medo burguês

da revolução o seu conservadorismo inato e sua tendência para o

compromisso com a ordem instituída.

Mais útil ainda seria revelar como as classes oprimidas da era revolucionária

empurraram as revoluções “burguesas” para fora das balizas estabelecidas

pela burguesia, para espaços de democracia a que esta sempre se

acomodou com dificuldade e suspeição. Os vários “direitos” então

alcançados foram-no apesar da burguesia e não graças a ela; graças sim

aos agricultores americanos de 1770 e aos sans-culottes parisienses de

1790. E o futuro destes direitos torna-se cada vez mais incerto.

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A recente evolução tecnológica, social e cultural e seu desenvolvimento

futuro poderá alterar a tradicional estrutura de classes criada pela revolução

industrial e permitir que, da redefinição do interesse geral daí resultante,

possa emergir novamente a palavra Povo no vocabulário radical. Não como

abstração obscurantista, mas como expressão extratos desenraizados,

fluídos e tecnologicamente deslocados, não integrados numa sociedade

cibernética e automatizada. A estas camadas desprezadas pela tecnologia

poderão juntar-se os idosos e os jovens, para que o futuro se apresenta

incerto por difícil definição do seu papel na economia e na cultura. Estas

camadas já não se enquadram na elegante e simplista divisão de classes

correspondente ao trabalho assalariado e ao capital.

O povo pode voltar, ainda, como referência ao interesse geral que se criou

em torno de mobilizações publicas sobre temática ecológica, comunitária,

moral, de igualdade de sexos ou cultural. Seria insensato subvalorizar o

papel crucial destes problemas ideológicos, aparentemente marginais. Há 50

anos, já Borkenau fazia notar que a história do ultimo século mostrava que o

proletariado podia enamorar-se mais do nacionalismo que do socialismo e

ser mais facilmente conduzido pelo interesse patriótico que pelo de classe.

Note-se também que a ideologia como o cristianismo e o islamismo ainda

hoje mantém frente a ideologia sociais progressistas, nomeadamente

ecológicas, feministas, étnicas, morais e contraculturais em que navegam

elementos pacifistas e de cariz anárquico que

aguardam ser integrados numa perspectiva coerente. Estão a desenvolver-

se à nossa volta novos movimentos sociais que ultrapassam as tradicionais

fronteiras de classe. Deste fermento pode nascer um interesse geral mais

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amplo pela sua finalidade, novidade e criatividade que os interesses

economicamente orientados do passado.

A Comunidade e a fábrica

O “1984” Orwelliano traduz-se hoje pela megalópole de um estado muito

centralizado e de uma sociedade profundamente institucionalizada. É nossa

obrigação tentar opor a esta evolução social estatizante a ação

política municipal. A revolução tradus-se sempre pelo aparecimento de um

poder alternativo – sindicato, soviete, comuna – orientado contra o estado. O

exato atento da história mostra que a fábrica, produto da racionalização

burguesa, deixou de ser o local da revolução. Os operários mais

revolucionários (espanhóis, russos, franceses e

italianos) pertenceram sobretudo a estratos em transição, estratos agrários

tradicionalmente em decomposição submetidos ao impacto corrosivo de uma

cultura industrial. A luta operaria de hoje, que reflete os últimos sobressaltos

de uma economia em extinção, é sobretudo defensiva, visando conservar um

sistema industrial que esta sendo substituído por uma tecnologia de capital

intensivo e cada vez mais cibernética. A fábrica deixou de ser o reino da

liberdade (de fato foi sempre o reino da necessidade, da sobrevivência). Ao

seu nascimento opuseram-se os setores artesanais, agrícolas e, em geral,o

mundo comunitário. Obcecados pela idéia de socialismo cientifico e pela

ingênua concepção de Marx e Engels, segundo a qual a fábrica servia para

disciplinar, unir e organizar o proletariado, muitos radicais ignoraram o seu

papel autoritário e hierarquizaste. A abolição da fábrica e sua substituição por

uma ecotécnica (caracterizada por trabalho criativo e aparelhos cibernéticos

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projetados para responder às necessidades humanas) é auspiciosa na

perspectiva do socialismo libertário.

A revolução urbana desempenhou um papel bem diferente do da fábrica.

Criou a idéia de uma humanidade universal e da sua socialização segundo

linhas racionais e éticas. Removeu as limitações ao seu desenvolvimento

decorrentes dos vínculos do parentesco e do peso sufocante do costume. A

dissolução do município representaria grave regressão social, pela

destruição da vida civil e do corpo de cidadãos que confere sentido ao

conceito de política.

Para Um Municipalismo libertário

O anarquismo sempre sublinhou a necessidade de uma regeneração moral e

de uma contracultura (no melhor sentido do termo), antagônica da cultura

dominante. Daí a importância a.ética, a coerência entre meios e fins e à

defesa dos direitos humanos e cívicos contra qualquer forma de opressão e

em qualquer aspecto da vida. A idéia de contra-instituíção é mais

problemática. Vale a pena relembrar que no anarquismo houve sempre a par

das tendências individualista e sindicalista, uma tendência comunalista. Esta

ultima com forte orientação municipalista, como se depreende das obras de

Proudhon e Kropotikin.

Todas as tendências radicais sofrem de certa dose de inércia intelectual, a

libertária não menos que a socialista autoritária. A segurança da tradição

pode ser suficientemente reconfortante para bloquear qualquer possibilidade

inovadora. O anarquismo tem estado obcecado pelo problema do

parlamentarismo e do estatismo, preocupação historicamente justificada mas

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que pode conduzir a uma mentalidade de estado de sítio, de cariz dogmático.

O municipalismo libertário pode ser o ultimo reduto de um socialismo

orientado para instituições populares descentralizadas. É curioso que muitos

anarquistas que se entusiasma com qualquer chácara coletivizada no

contexto de uma economia burguesa encare com desgosto uma ação política

municipal que comporte qualquer tipo de eleições, mesmo se estruturadas

em assembléias de bairro e com mandatos revogáveis, radicalmente

democráticos. Se anarquista viessem a integrar conselhos comunais, nada

obrigaria a que sua politica se orientasse para um modelo parlamentar,

sobretudo se confinada ao âmbito local, em oposição consciente ao estado e

visando a legitimação de formas avançadas de democracia direta. A cidade e

o estado não se identificam. As suas origens são diversas e os seus papeis

históricos diferentes. O fato de o estado permear hoje todos os aspectos da

vida, da família à fábrica, do sindicato à cidade, não significa que se deva

abandonar toda e qualquer forma de relação humana.

Os fantasmas que devemos temer são os do dogmatismo e do imobilismo

ritualístico.estes representam para a autoridade sucesso mais completo que

o obtido através da coação, pois significariam que o seu controle está

próximo de bloquear a capacidade de pensar livre e criticamente e de resistir

com as idéias, mesmo quando a capacidade de agir se encontra bloqueada

pelos acontecimentos.

Murray Bookchin

Viva a Anarquia!!

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POR QUE ECOLOGIA SOCIAL?

É hoje impossível considerar pouco importantes, marginais ou "burgueses"

os problemas ecológicos. O aumento da temperatura do planeta em virtude

do teor crescente de anidrido carbônico na atmosfera, a descoberta de

enormes buracos na camada de ozônio - atribuíveis ao uso exagerado de

clorofluorcarbonetos - que permitem a passagem das radiações ultravioletas,

a poluição maciça dos oceanos, do ar, da água potável e dos alimentos, a

extensa deflorestação causada pelas chuvas ácidas e pelo abate

incontrolado, a disseminação de material radioativo ao longo de toda a

cadeia alimentar... tudo isto conferiu à ecologia uma importância que não

tinha no passado. A sociedade atual está a danificar o planeta a níveis que

superam a sua capacidade de auto-depuração. Avizinhamo-nos do momento

em que a Terra não terá condições de manter a espécie humana nem as

complexas formas de vida não humana, que se desenvolveram ao longo de

milhões de anos de evolução orgânica.

Face a este cenário catastrófico há o risco, a julgar pelas tendências em

curso na América do Norte e nalguns países da Europa ocidental, de se

tentar curar os sintomas em vez das causas e de pessoas ecologicamente

empenhadas procurarem soluções cosméticas em vez de respostas

duradouras. O crescimento dos movimentos "verdes" um pouco por todo o

mundo - inclusive no Terceiro Mundo- testemunha a existência de novo

impulso para combater corretamente o desastre ecológico. Mas torna-se

cada vez mais evidente que se necessita de bastante mais que de um

"impulso". Por importante que seja deter a construção de centrais nucleares,

de auto-estradas, de grandes aglomerações urbanas ou reduzir a utilização

de produtos químicos na agricultura e na indústria alimentar, é necessário

darmo-nos conta que as forças que conduzem a sociedade para a destruição

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planetária têm as suas raízes na economia mercantil do "cresce ou morres",

num modo de produção que tem de expandir-se enquanto sistema

concorrencial. O que está em causa não é a simples questão de

"moralidade", de "psicologia" ou de "cobiça". Neste mundo competitivo em

que cada um se acha reduzido a ser comprador ou vendedor e em que cada

empresa se deve expandir para sobreviver, o crescimento limitado é

inevitável. Adquiriu a inexorabilidade duma lei física, funcionando

independentemente de intenções individuais, de propensões psicológicas ou

de considerações éticas.

Hecatombes de Quarenta Milhões de Bizontes

Atribuir toda a culpa dos nossos problemas ecológicos à tecnologia ou à

"mentalidade tecnológica" e ao crescimento demográfico (para citar dois dos

argumentos que mais freqüentemente emergem na mídia) é como castigar a

porta que nos trancou ou o cimento em que caímos e nos machucamos. A

tecnologia - mesmo a má como os reatores nucleares- amplifica problemas

existentes, não os cria. O crescimento populacional é um problema relativo,

se efetivamente o é. Não é possível dizer com segurança quantas pessoas

poderiam viver decentemente no planeta sem produzir transtornos

ecológicos. Os Estados Unidos, na última metade do século XIX, chacinaram

quarenta milhões de bisontes, exterminaram espécies como o pombo

correio, cujos bandos obscureciam o céu, destruiram vastas áreas de floresta

original e entregaram à erosão ótima terra cultivável, de superfície

comparável à de um grande país europeu... e todo este dano foi levado a

cabo com uma população de menos de cem milhões de habitantes e uma

tecnologia atrasada,

pelos padrões atuais. Em suma, Havia outros fatores em jogo além da

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tecnologia e da pressão demográfica quando este drama se desenrolou. A

praga que afligiu o continente americano era mais devastadora que uma

praga de gafanhotos. Era uma ordem social que se deve chamar sem

cerimônias pelo nome que tinha e tem: capitalismo, na sua versão privada a

Ocidente e na sua forma burocrática a Oriente. Eufemismos como

"sociedade tecnológica" ou "sociedade industrial", termos muito difundidos na

literatura ecológica contemporânea, tendem a mascarar com expressões

metafóricas a brutal realidade duma economia baseada na competição e não

nas necessidades dos seres humanos e da vida não humana. Assim a

tecnologia e a indústria são representadas como os protagonistas perversos

deste drama, em vez do mercado e da ilimitada acumulação de capital,

sistema de "crescimento" que por fim devorará toda a biosfera se para tanto

se lhe consentir sobrevivência suficiente.

Sem Hierarquia e Sem Classes

Aos enormes problemas criados por esta ordem social devem juntar-se os

criados por uma mentalidade que começou a desenvolver-se muito antes do

nascimento do capitalismo e que este absorveu completamente. Refiro-me à

mentalidade estruturada em torno de hierarquia e do domínio, em que o

domínio do homem sobre o homem originou o conceito do domínio sobre a

natureza como destino e necessidade da humanidade. É reconfortante que

se haja insinuado no pensamento ecológico a idéia de que esta concepção

do destino humano é perniciosa. Contudo, não se compreendeu claramente

como surgiu, persiste e como pode ser eliminada esta concepção. E se se

quer achar remédio para o cataclismo ecológico, deve procurar-se a origem

da hierarquia e do domínio. O fato da hierarquia sob todas as formas

-domínio do jovem pelo velho, da mulher pelo homem, do homem pelo

homem na forma de subordinação de classe, de casta, de etnia ou de

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qualquer outra estratificação da sociedade - não haver sido identificada como

tendo âmbito mais amplo que o mero domínio de classe, tem sido uma das

carências cruciais do pensamento radical. Nenhuma libertação será

completa, nenhuma tentativa de criar harmonia entre os seres humanos e

entre a humanidade e a natureza poderá ter êxito se não forem erradicadas

todas as hierarquias e não apenas a de classe, todas as formas de domínio e

não apenas a exploração econômica.

Estas idéias constituem o núcleo essencial da minha concepção de ecologia

social e do meu livro A Ecologia da Liberdade. Sublinho cuidadosamente o

uso que faço do termo "social", quando me ocupo de questões ecológicas,

para introduzir outro conceito fundamental: nenhum dos principais problemas

ecológicos que hoje defrontamos se pode resolver sem profunda mutação

social. Esta é uma idéia cujas implicações não foram ainda plenamente

assimiladas pelo movimento ecológico. Levada ás suas conclusões lógicas

significa que se não pode transformar a sociedade presente aos poucos, com

pequenas alterações. Quando muito estas pequenas mudanças são entraves

que apenas reduzem a velocidade louca a que se está a destruir a biosfera.

Devemos certamente ganhar o máximo tempo possível nesta corrida contra

o biocídio e fazer todo o possível para a deter. Não obstante o biocídio

prosseguirá, a menos que as pessoas se convençam da necessidade duma

mudança radical e da de se organizarem para esse efeito. Deve aceitar-se a

substituição da sociedade capitalista atual pelo que denomino "sociedade

ecológica", isto é, por uma sociedade que implique as mutações sociais

indispensáveis para eliminar os abusos ecológicos.

É imprescindível refletir e debater profundamente sobre a natureza de tal

"sociedade ecológica". Algumas conclusões são quase óbvias. Uma

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sociedade ecológica deve ser não-hierárquica e sem classes, deve eliminar

mesmo o conceito de domínio da natureza. A este propósito têm de se

retomar os fundamentos do eco-anarquismo de Kropotkin e dos grandes

ideais iluministas da razão, liberdade e força emancipadora da instrução,

defendidos por Malatesta e Berneri. Melhor, os ideais humanistas que

guiaram os pensadores anarquistas do passado devem ser recuperados na

globalidade e transformados num humanismo ecológico que incarne nova

racionalidade, nova ciência e nova tecnologia.

O motivo pelo qual sublinhei os ideais iluministas libertários não é redutível

aos meus gostos e predileções ideológicas. Trata-se realmente de ideais que

não podem dispensar atenta consideração de qualquer indivíduo empenhado

ecologicamente. Oferecem-se, hoje em todo o mundo, alternativas

inquietantes ao movimento ecológico. Por um lado vai-se difundindo,

sobretudo na América do Norte, mas também na Europa, uma espécie de

doença espiritual, uma atitude contra iluminista que, em nome do "regresso à

natureza", evoca racionalismos atávicos, misticismos e religiosidade de

índole "pagã". Culto de "divindades femininas", "tradições paleolíticas" (ou

"neolíticas", consoante os gostos), rituais "ecológicos" (espécie de ecologia

vodu da administração Reagan) vão tomando forma deste e do outro lado do

Atlântico em nome duma nova "espiritualidade". Este revivalismo do

primitivismo não é fenômeno inócuo: frequentemente está imbuído de um

neo-malthusianismo pérfido que se propõe, no essencial, deixar morrer de

fome os pobres, vítimas principais da carestia do Terceiro Mundo, com a

finalidade de "reduzir a população". A Natureza, diz-se, deve ser deixada livre

para "seguir o seu curso". A fome e a carestia não são causadas, diz-se,

pelos negócios agrários, pelo saque levado a cabo pelas grandes empresas,

pelas rivalidades imperialistas, pelas guerras civis nacionalistas, mas têm a

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sua origem na superpopulação. Deste modo o problema econômico é

completamente esvaziado de conteúdo social e reduzido à interação mítica

das forças naturais, freqüentemente com forte carga racista de pendor

fascistizante. Por outro lado está em construção o mito tecnocrático segundo

o qual a ciência e a engenharia resolveriam todos os males ecológicos.

Como nas utopias de H. G. Wells procura-se fazer acreditar na necessidade

duma nova elite para planificar a solução da crise ecológica. Fantasias deste

tipo estão implícitas na concepção da terra como "astronave" (segundo a

grotesca metáfora de Buckiminister Fuller), que pode ser manipulada pela

engenharia genética, nuclear eletrônica e política (para dar um nome

altissonante à burocracia). Fala-se da necessidade de maior centralização do

Estado, desembocando na formação de "mega-Estados", em paralelo

arrepiante com as empresas multinacionais. E como a mitologia se tornou

popular entre os eco-místicos, promotores dum primitivismo em versão

ecológica, o sistema tecnoburocrático logrou grande popularidade entre os

"eco-tecnocratas", criadores dum futurismo em versão ecológica. Nos dois

casos o ideal libertário do iluminismo - valorização da liberdade, da instrução,

da autonomia individual – são negados pela pretensão de nos impedir a

quatro patas para um "passado" obscuro, mistificado e sinistro, ou de nos

catapultar como míssil para um "futuro" radioso, igualmente mistificante e

sinistro.

O Que É a Natureza

A ecologia social, tal como a concebo, não é mensagem primitivista

tecnocrática. Tenta definir o lugar da humanidade "na" natureza - posição

singular, extraordinária - sem cair num mundo de cavernícolas anti-

tecnológicos, nem levantar voo do planeta com fantasiosas astronaves e

estações orbitais de fição científica. A humanidade faz parte da natureza,

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embora difira profundamente da vida não humana pela sua capacidade de

pensar conceitualmente e de comunicar simbólicamente. A natureza, por sua

vez, não é simplesmente cena panorâmica a olhar passivamente através da

janela, é a evolução na sua totalidade, tal como o indivíduo é a sua própria

biografia e não a simples edição de dados numéricos que exprimem o seu

peso, altura, talvez "inteligência" e assim por diante. Os seres humanos não

são unicamente uma entre muitas formas de vida, forma especializada para

ocupar um dos muitos nichos ecológicos no mundo natural. São seres que,

pelo menos potencialmente, podem tornar auto-consciente e, por

conseguinte, auto-dirigida a evolução biótica. Com isto não quero dizer que a

humanidade chegue a ter conhecimento suficiente da complexidade do

mundo natural para poder ser o tomoneiro da sua evolução, dirigindo-a à sua

vontade. As minhas reflexões sobre a espontaneidade sugeram prudência

nas intervenções sobre o mundo natural, (sustentam que se requer) grande

cautela nas modificações a empreender. Mas, como disse em "Pensar

Ecologicamente", o que verdadeiramente nos faz únicos é podermos intervir

na natureza com um grau de auto-consciência e flexibilidade desconhecido

nas outras espécies. Que a intervenção seja criadora ou destrutiva é

problema que devemos enfrentar em toda a reflexão sobre a nossa interação

com a natureza. Se as potencialidades humanas de auto-direção consciente

da natureza são enormes devemos contudo recordar que somos hoje ainda

menos que humanos.

A nossa espécie é uma espécie dividida - dividida antagonisticamente por

idade, carácter, classe, rendimento, etnia, etc. - e não uma espécie unida.

Falar de "humanidade" em termos zoológicos, como fazem atualmente tantos

ecologistas - inclusivamente tratar as pessoas como espécie e não como

seres sociais que vivem em complexas criações institucionais – é

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ingenuamente absurdo. Uma humanidade iluminada, reunida para se dar

conta das suas plenas potencialidades numa sociedade ecologicamente

harmoniosa, é apenas uma esperança e não apenas uma realidade, um

"dever ser" e não um "ser". Enquanto não tivermos criado uma sociedade

ecológica, a capacidade de nos matarmos uns aos outros e de devastar o

planeta fará de nós - como efetivamente faz - uma espécie menos evoluída

do que as outras. Não conseguir ver que atingir a humanidade plena é

problema social que depende de mutações institucionais e culturais

fundamentais é reduzir a ecologia radical à zoologia e tornar quimérica

qualquer tentativa de realizar uma sociedade ecológica.

Vínculos Comunitários

Como é possível conseguir as transformações sociais de grande alcance que

preconizo? Não creio que possam vir do aparelho de Estado, quer dizer, num

sistema parlamentar de substituição dum partido por outro (por altamente

inspirado que este último possa parecer durante o seu período heróico de

formação). A minha experiência com o movimento verde alemão demonstrou-

me (partindo do princípio que teria necessidade dessa demonstração) que o

parlamentarismo é moralmente nocivo no melhor dos casos e totalmente

corrupto na pior das hipóteses. A representação dos verdes no Bundestag

confirmou, nestes últimos tempos, os meus piores temores: a sua maioria

"realista" é favorável à participação da Alemanha Ocidental na NATO e apoia

uma forma de "eco-capitalismo" (contradição nos termos) incompatível com

qualquer abordagem ecológica radical.

Além disso o parlamentarismo mina invariavelmente a participação popular

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na política, no significado que há muitos séculos lhe é atribuído. Para os

antigos atenienses política significava a gestão da polis, isto é, da cidade,

diretamente pelos cidadãos reunidos em assembléia e não através de

burocratas ou de representantes eleitos. É verdade que somente os homens

eram cidadãos e que, além das mulheres, estrangeiros e escravos eram

igualmente excluídos. É ainda verdade que os cidadãos ricos dispunham de

recursos materiais e gozavam de privilégios recusados aos cidadãos pobres.

Mas é também verdade que a antiga cidade mediterrânea não havia ainda

alcançado, há dois mil e tantos anos, o seu pleno desenvolvimento, a "sua

verdade" como diria Hegel. A liberdade do cidadão participar na vida política

não dependia da tecnologia mas do trabalho: dos escravos, das mulheres e

do seu próprio. Aristóteles não via qualquer dificuldade em admitir que

quando os teares tecessem sozinhos os gregos não necessitariam de

escravos, nem - acrescento eu - de explorar o trabalho alheio para dispôr de

tempo livre para si mesmos. Hoje as máquinas fazem o que Aristóteles dizia

e muito mais. Podemos finalmente fruir o tempo livre necessário para nos

desenvolvermos e participar amplamente na vida pública sem precisarmos

de pôr em perigo o mundo natural nem explorar o trabalho alheio. A ecologia

radical não pode ser indiferente ás relações sociais e econômicas. O

delicado equilíbrio entre o uso da tecnologia com fins libertadores e o seu

uso com fins destrutivos para o planeta é matéria de apreciação social, mas

tal apreciação é grandemente ofuscada quando ecologias sui generis

denunciam a tecnologia como mal irrecuperável ou a exaltam como virtude

indiscutível. Curiosamente, místicos e tecnocratas têm importante

característica em comum: nem uns nem outros examinam a fundo os

problemas nem seguem a lógica para além das premissas mais elementares

e simplistas.

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Uma nova política deveria, quanto a mim, implicar a criação duma esfera

pública "de base" extremamente participativa, a nível da cidade, do campo,

das aldeias e bairros. Decerto o capitalismo provocou destruição tanto dos

vínculos comunitários como do mundo natural. Em ambos os casos

encontramo-nos face a simplificação das relações humanas e não humanas,

à sua redução a formas interativas e comunitárias elementares. Mas onde

existam ainda laços comunitários e onde - mesmo nas grandes cidades -

possam nascer interesses comuns, esses devem ser cultivados e

desenvolvidos. Estudei este tipo de política comunal (repito: entendo política

no sentido helenico, não no seu significado atual que denomino

"estatalidade") no meu livro "O Progresso da Urbanização e o Declínio da

Cidadania". Por difícil que pareça, na Europa (e em menor grau, creio, nos

Estados Unidos) acredito na possibilidade duma confederação de municípios

livres como contra-poder de base à centralização crescente do poder por

parte do Estado-nação. Quero fazer notar que, neste campo, a política

ecológica é em muitos casos não apenas possível mas também coerente

com a ecologia concebida como estudo da comunidade, quer humana quer

não humana. Uma sociedade ecológica pressupõe formas participativas de

base, comunitárias, que tal política se propõe realizar no futuro. A ecologia

não é nada se se não ocupar do modo como interatuam as formas de vida

para construir e se desenvolverem como comunidades.

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ANARQUISMO E ECOLOGIA

O anarquismo não se limita apenas a idéia de criar comunas independentes.

E, se me detive a examinar esta possibilidade, foi apenas para demostrar

que, longe de ser um ideal remoto, a sociedade anarquista tornou-se um pré-

requisito para a prática dos princípios ecológicos. Sintetizando a mensagem

crucial da ecologia, diremos que, ao reduzir a variedade no mundo natural,

estaremos aviltando sua unidade e integridade, destruindo as forças que

contribuem para a harmonia natural e para o equilíbrio duradouro e, o que é

ainda mais importante, estaremos provocando um retrocesso no

desenvolvimento do mundo natural. Retrocesso que poderá eventualmente,

impedir o aparecimento de outras formas mais avançadas de vida.

Sintetizando a mensagem reformadora da ecologia, poderíamos afirmar

que, se desejamos promover a unidade e estabilidade do mundo natural,

tornando-o mais harmonioso, precisamos estimular e preservar a variedade.

Mas estimular a variedade pela variedade seria um vazio. Na natureza, ela

surge espontaneamente.

As possibilidades de sobrevivência de uma nova espécie são testadas

pelos rigores do clima, pela sua habilidade em enfrentar seu inimigos, pela

sua capacidade de estabelecer e ampliar o espaço que ocupa no meio

ambiente. Entretanto, qualquer espécie que consegue aumentar seu território

estará, ao mesmo tempo, ampliando a situação ecológica como um todo.

Citando A. Gutkind, ela estará "ampliando o meio ambiente tanto para si

própria quanto para qualquer outra espécie com a qual mantenha um relação

equilibrada".

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Como aplicar este conceito a teoria social? Creio que para muitos leitores

bastaria dizer que, na medida que o homem é parte da natureza, a

ampliação do meio ambiente natural implicaria um maior desenvolvimento

social. Mas a resposta para essa pergunta é bem mais profunda do que

poderiam supor ecológicos e libertários. Permintam-me retornar mais um vez

a idéia ecológica que afirma ser a diversidade uma consequência da

integridade e do equilíbrio. Tendo em mente essa idéia, o primeiro passo

para encontrar a resposta seria a leitura de um trecho da Filosofia do

anarquismo de Herbert Read, onde, ao apresentar seus "critérios de

progresso", ele observa que o progresso pode ser mediado pelo grau de

diferenciação existente na sociedade. Se o indivíduo é apenas uma unidade

da massa coletiva, sua vida será limitada, monótona e mecânica. Mas, se ele

for uma unidade independente, poderá estar sujeito a acidentes ou azares da

sorte, mas ao menos terá a chance de crescer e expressar-se. Poderá

desenvolver-se - no único sentido real do termo - na consciência de sua

própria força, vitalidade e alegria.

Embora não tenha encontrado seguidores, as idéias de Read nos

fornecem um importante ponto de partida. O que primeiro nos chama a

atenção é o fato de que, tanto ecologista como anarquista ressaltam a

importancia da espontaneidade.

Na medida em que é mais que um simples técnico, o ecologista tem um

tendência a desprezar o conceito de "domínio sobre a natureza" preferindo

falar em "conduzir" uma situação ecológica, em gerir um ecossistema, em

vez de recría-lo. O anarquista, por sua vez, fala em espontaneidade social,

em libertar o potencial da sociedade e da humanidade, em dar rédeas soltas

a criatividade humana. Ambos vêem na autoridade uma força inibidora, um

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peso que limita o pontencial criativo de uma situação natural ou social.

Assim como o ecologista procura ampliar o alcance de um ecossistema e

estimular a livre ação recíproca entre as espécie, o anarquista busca ampliar

o alcance da experiência social e remover os obstáculos que possam impedir

seu desenvolvimento. O anarquismo não é apenas uma sociedade sem

governo, mas uma sociedade harmoniosa que procura expor o homem a

todos os estímulos da vida urbana e rural, da atividade física e mental, da

sensualidade não reprimida e da espiritualidade, da solidariedade ao grupo e

do desenvolvimento individual. Na sociedade esquizóide em que vivemos,

tais objetivos não só são considerados irreconciliáveis, como diametralmente

opostos.

Uma sociedade anaquista deveria ser descentralizada, não apenas para

que tivesse condições de criar bases duradouras que garantissem o

estabelecimento de relações harmoniosas entre o homem e a natureza, mas

para que fosse possível dar uma nova dimensão ao relacionamente

harmônico entre os próprios homens. Há uma necessidade evidente de

reduzir as dimensões das comunidades humanas - em parte para solucionar

os problemas da poluição e em parte para que pudéssemos criar verdadeiras

comunidades. Num certo sentido, seria necessário humanizar a humanidade.

O uso de aparelhos eletrônicos, tais como telefones, telégrafos, rádios e

televisão, como forma de intermedia a relação entre as pessoas, deveria ser

reduzido ao mínimo necessário.

As comunidade menores teriam uma economia equilibrada e vigorosa, em

parte para que pudessem utilizar devidamente as matérias-primas e as

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energias locais, e em parte para ampliar os estímulos agrícolas e industrias.

O membro da comunidade que tiver inclinação para engenharia, deveria ser

encorajado a mergulhar suas mãos na terra, o intelectual a usar seu

músculos, o fazendeiro a conhecer o funcionamento da fábrica. Separa o

engenheiro da terra, o pensador da espada, o fazendeiro da fábrica, gera um

grau de superespecialização, onde os especialistas assumem um perigoso

controle da sociedade.

Uma comunidade auto-suficiente, que dependesse do meio ambiente

para sua subsistência, passaria a sentir um novo respeito pelas inter-

relações orgânicas que garantem sua sobrevivência. Creio que longe de

resultar em provincianismo, essa relativa auto-suficiencia criaria uma nova

matriz para o desenvolvimento do indivíduo e da comuna - uma integração

com a natureza que revitalizaria a comunidade.

Se algum dia tivermos conseguido ter na prática uma verdadeira

comunidade ecológica, ela produzirá um sensível desenvolvimento na

diversidade natural, formando um todo harmônico e equilibrado. E,

estendendo-se pelas comunidades, regiões e continentes, veremos surgir

diferentes territórios humanos e diferente ecossistemas, cada um deles

desenvolvendo suas próprias potencialidades e expondo seus membros a

uma grande variedade de estímulos econômicos, culturais e de conduta. As

diferenças que existem entre indivíduos serão respeitadas como elementos

que enriquecem a unidade da experiência e do fenômeno. Libertos de uma

rotina monótona e repressiva, das inseguranças e opressões, da carga de

um trabalho demasiado penoso e das falsas necessidades, dos obstáculos

impostos pela autoridade e das compulsões irracionais, os indivíduos

estarão, pela primeira vez na história, numa posição que lhes permitirá

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realizar seu potencial como membros da comunidade humana e do mundo

natural.

(em: O Anarquismo Pós-Escassez, 1974)

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ANEXOS

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David Watson

Além de Bookchin: Prefácio para uma Ecologia Social do Futuro:

Detroit, EUA. Black&Red/Autonomedia, 1996

Resenha de Manuel Portela

Este livro de David Watson faz uma análise e uma crítica do conjunto da obra

do pensador norte-americano Murray Bookchin, um dos principais

teorizadores do movimento da ecologia social. Bookchin, que começou a

publicar no início dos anos 70, tentou ligar a teoria do movimento ecologista,

a teoria marxista e a crítica anarquista da tecnologia e da civilização. Além de

diversos artigos, entre as obras de Bookchin que são minuciosamente

escrutinadas nesta análise contam-se: Toward an Ecological Society (1980),

The Ecology of Freedom (1982), The Modern Crisis (1986), The Rise of

Urbanization and the Decline of Citizenship (1987), Remaking Society:

Pathways to a Green Future (1990), Which Way for the Ecology Movement?

(1994) e The Philosophy of Social Ecology (1995). Watson, por seu lado,

além de colaborador e editor da revista de Detroit Fifth Estate, é também

autor de How Deep Is Deep Ecology? (1989).

A ecologia social tem como programa construir uma representação capaz de

transcender as dicotomias ser humano/natureza, numa visão holística da

actividade social humana enquanto elemento da esfera ecológica. Uma tal

teoria implica uma profunda crítica da organização social do trabalho, do

desenvolvimento urbano e da coisificação da natureza, que resultaram do

desenvolvimento tecnológico, da ideologia do progresso e da glorificação da

civilização.

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Segundo David Watson, a ecologia social de Bookchin, no entanto, fica muito

aquém das suas intenções. Ao mesmo tempo que identifica exaustiva e

claramente muitas limitações e contradições na obra de Bookchin, Watson é

particularmente demolidor em relação ao autoritarismo de Bookchin, que se

tem furtado ao confronto com outras versões da ecologia social dentro dos

movimentos ecologista e anarquista norte-americanos. Esta obra tem

portanto um carácter eminentemente polémico, mas está longe de se esgotar

aí.

A sua estrutura é definida, em boa parte, por uma série de conceitos que

Watson vai expor e criticar na formulação bookchiniana: razão, civilização,

técnica, progresso, natureza, espiritualidade, cidade e primitivo. Watson

mostra, nomeadamente, até que ponto a ecologia social de Bookchin está

prisioneira da racionalidade tecnocrática e da ideologia do progresso, não

apenas nos conceitos muito restritos de razão e de civilização, ou através de

uma confiança contraditória na tecnologia, mas também por via de uma

conceptualização logocêntrica da natureza e da espiritualidade. Há também

um capítulo dedicado à injustificada profissão de fé de Bookchin nas virtudes

do municipalismo democrático norte-americano, em face da organização das

cidades contemporâneas e da natureza burocrática da política. Nos dois

últimos capítulos, dedicados à representação das culturas ditas primitivas,

Watson contesta as análises economicistas das duas últimas décadas,

considerando que as teorias revisionistas da antropologia pós-moderna

acabam por re-mistificar as culturas primitivas.

Uma das grandes qualidades desta obra está em fazer plena justiça ao seu

título, tornando-se uma excelente introdução para quem, como eu,

desconhecia quase por completo a ecologia social norte-americana. Em vez

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de oferecer uma doutrina panfletária, auto-satisfeita com as suas próprias

análises e palavras de ordem, Watson optou por inspeccionar atentamente o

vocabulário crítico de um dos seus expoentes e mostrar como a ecologia

radical de Bookchin se encontra ainda ideologicamente dependente das

categorias que quer contestar, o que compromete muitas das suas intuições

mais valiosas.

David Watson conseguiu assim uma relativa descolonização dos conceitos

da ecologia social de Bookchin, revelando as insuficiências da sua linguagem

erigida em sistema e abrindo caminho para outras ecologias sociais. A

técnica de fazer falar de outro modo as inúmeras citações de Bookchin tem,

de resto, um elucidativo paralelo visual: cada capítulo é introduzido por uma

gravura dos Caprichos de Francisco Goya, através da qual a interpelação

céptica de David Watson comenta o dogmatismo de Murray Bookchin. A

argumentação polémica do livro abre-se por isso inteiramente para o leitor,

que ganha uma viva consciência dos problemas de uma conceptualização

ecológica da razão, da natureza e da sociedade.

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J. M. Carvalho Ferreira

ECOLOGIA SOCIAL E DESENVOLVIMENTO

É indubitável que em pleno apogeu do progresso e da razão, a

complexidade da mudança sócio-cultural, política e económica mergulhou

todas as sociedades numa crise profunda que tende inclusive a pôr em

causa a sobrevivência da espécie humana.

Estamos, portanto, num período histórico de paradoxos estruturados pela

sofisticação e o desenvolvimento gigantesco das capacidades e

possibilidades científicas e tecnológicas. Entre as várias manifestações em

que se corporiza essa realidade, emerge a atividade econômica com um

desenvolvimento ininterrupto das funções de produção e de consumo de

bens e serviço. Paradoxalmente, no entanto, a riqueza produzida não se

traduz numa distribuição e apropriação equitativa pelos diferentes indivíduos,

grupos e classes sociais que constituem as diferentes sociedades. Por outro

lado, a relação do homem com a natureza tende a agravar-se no sentido de

um desequilíbrio irreversível, destruindo progressivamente a harmonia

ecossistémica que subsistia há vários milénios.

Hoje, face à gravidade dos problemas existentes, para além de perceber os

sintomas dessa crise, interessa-nos explicitar os factores e as condições que

se revelam mais emblemáticos para o devir da natureza e da humanidade.

Assim, quando nos debruçamos na análise do sistema social global,

deparamos, quase sempre, com uma situação sócio-cultural que põe em

risco as hipóteses de interacção social que fundamentam os processos de

sociabilidade e de socialização dos indivíduos à escala planetária. Para tal

basta olharmos para os níveis de pobreza e de desemprego, de

marginalidade e de miséria social, pressão demográfica, fome e guerra que

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persistem à escala mundial. Simultaneamente, quando observamos as

modalidades de intervenção e de transformação do homem nas suas

relações com a natureza e o ambiente em geral, questionamos até que ponto

ainda nos é possível sobreviver no planeta Terra.

Cientistas e políticos são pródigos em interpretações que indiciam que

caminhamos para o abismo, caso nos mantenhamos com o mesmo modelo

de desenvolvimento económico e social (ROBIN, 1977). Essas hipóteses são

de tal modo negativas que, face à impotência das soluções racionais-

instrumentais da sociedade capitalista para inverter essa evolução, revela-se

cada vez mais banal a função utilitária das alternativas ecologistas até há

pouco tempo consideradas utópicas pelo mercado e o poder normativo

vigente. Tendo presente essa realidade, mais do que enumerar e pretender

superar as contradições existentes através das múltiplas soluções

terapêuticas normativas que pretendem superar os efeitos da crise social e

humana e da natureza, sem se preocuparem de extinguirem as causas da

mesma, torna-se imperioso e urgente analisar o modelo de desenvolvimento

económico, social, cultural e político que está na origem do dilema histórico

em que nos encontramos.

Infelizmente, nos dias que correm, as análises científicas tendem a reflectir

os desígnios ideológicos da racionalidade instrumental do capitalismo e a

servirem como um produto circunscrito aos sucessos conjunturais da moda

intelectual e espectáculo informativo dos "mass media". Acresce a esse

facto, revestirem-se ainda de uma pseudo-neutralidade científica identificada

com as necessidades intrínsecas da sociedade, esquecendo-se que foram

objecto de uma institucionalização, cuja legitimidade foi outorgada em função

dos interesses das classes dominantes e do Estado. Os paradigmas

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científicos mais representativos são, neste domínio, o exemplo mais acabado

desse tipo de posição.

É muito fácil chegar a essa conclusão. Verifique-se a "objectividade" e a

"neutralidade" dos milhares de artigos e livros escritos sobre os temas

sublinhados e tenha-se presente, a esse respeito, os milhares de análises

que se realizaram sobre a natureza e a história dos países denominados

"socialistas". Numa outra perspectiva, observe-se o sentido meta-histórico de

uma evolução unilinear pretensamente harmoniosa que se pretende dar ao

modelo de sociedade capitalista, enquanto processo histórico distintivo do

desenvolvimento sócio-cultural, económico e político das sociedades. Contra

esta hegemonia totalitária, persistem um conjunto de autores que se revelam

excepções marginais às regras científicas predominantes. Por opções éticas,

morais e científicas têm analisado, de forma radical, esse modelo de

desenvolvimento, demonstrando as suas contradições e limites históricos.

Não obstante saber do peso dessas posições hegemónicas e contradições

paradigmáticas, perante os desafios que se nos apresentam, mais do nunca,

torna-se imperioso compreender e explicitar as características e tendências

do modelo de desenvolvimento que está na origem da crise que

atravessamos.

Quase sempre, em situações históricas semelhantes, quando assistimos a

este tipo de fenómenos, os sintomas críticos do modelo de desenvolvimento

capitalista, tendem a ser resolvidos pela via da reforma ou de uma hipotética

revolução. Ambas coexistem num processo de interdependência e

complementaridade, estimulando e estruturando soluções de ultrapassagem

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da crise social, humana e ecológica. Tendo presente os sucessivos

insucessos das reformas e revoluções já realizadas, assunção, os cenários

de mudança ou de transformação radical da sociedade capitalista que

possamos deduzir, revestem-se de contingências e ensinamentos históricos

que não podemos descurar. Numa óptica estrita de sobrevivência histórica e

de intervenção social pautada pela coerência e a eficácia, nada mais nos

resta do que evoluir no sentido da construção de uma outra sociedade. Esta

terá que ser ser dinamizada com base em transformações económicas,

sociais, políticas e culturais de características radicais. Na emergência deste

quadro revolucionário, a ecologia social assente nos princípios e práticas do

anarquismo, tantas vezes esquecida e adulterada como um modelo utópico,

revela-se, hoje, com virtualidades inesgotáveis.

A ecologia social aparece, assim, como uma hipótese histórica de superação

das incongruências funcionais do atual modelo de desenvolvimento que

subsiste à escala planetária. Nesse sentido, ela introduz novas perspectivas

de equilíbrio ecossistémico entre as diferentes espécies animais e vegetais

e, sobretudo, entre o homem e a natureza. Finalmente, pela sua essência

anarquista, ela aparece como uma potencialidade real de construirmos um

novo mundo, o que nos indicia desenvolvermos uma ética e uma filosofia

apoiada em princípios humanistas e fraternais em relação à sociedade e à

natureza.

1. Características da crise do sistema social global no limiar do século XXI

A generalidade das análises que se debruçam sobre a atual crise da

evolução das sociedades contemporâneas sublinham, com especial

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significado, os problemas relacionados com a explosão demográfica, a

destruição do ambiente, a guerra, o desemprego, a marginalidade social, a

fome e a pobreza.

Se pensarmos na pertinência desses diferentes flagelos no contexto

estrutural e institucional das atuais sociedades, verifica-se que todos eles

estão em estreita sintonia, quer nas causas que estão na sua origem, quer

nos seus efeitos perversos. Todos esses fenómenos resultam de uma lógica

competitiva e concorrencial, na qual os objectivos do lucro e da exploração

estão sempre presentes. Em termos de uma racionalidade pautada por fins e

meios, todos eles estão submetidos a um sistema de eficácia e eficiência

capitalista. Na maneira como estão articulados entre si, cada um deles

desenvolve-se num sentido interdependente e complementar. Os resultados

lógicos da interacção que resulta desse sistema complexo são visíveis

através da produção e consumo de bens e serviços, na transformação e

esgotamento dos recursos naturais e num crescendo populacional inaudito. A

outra versão dessa interacção produzida pelos diferentes componentes do

sistema social global observa-se através da explosão dos fenómenos

migratórios, da pobreza, da segregação e marginalidade social provenientes

da catástrofe ambiental, da guerra, do desemprego e da fome à escala

universal (PNUD, 1994).

As projeções da população mundial para o ano de 2050 apontam para cerca

de 10.000 milhões de pessoas no planeta Terra. Entre as várias

consequências, importa referir as suas incidências geográficas e ambientais.

O continente africano, que conta atualmente com 12% da população

mundial, no ano de 2050 passará a deter 27% da referida população. Em

comparação, para o mesmo ano de 2050, a Ásia manter-se-á ligeiramente

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acima dos 50% da população total, enquanto que a América Latina passará

dos 9% actuais para 10% da população total no ano de 2050 e a população

total dos países considerados desenvolvidos tenderá a decrescer dos 23%

actuais para 13% (FNUAP, 1992).

Sem descrever as profundas implicações que resultam da pressão

demográfica em termos ambientais, económicos, políticos, sociais e

culturais, importa, para já, pensar em alguns dos seus aspectos mais

significativos. Segundo as projeções do Relatório sobre a População Mundial

de 1992 elaborado pelas Nações Unidas, a manter-se essa evolução

demográfica, persiste a necessidade de aumentar em 56% a área de terreno

cultivável que os países "considerados em desenvolvimento" actualmente

dispõem: isto é, só para as necessidades de terrenos não agrícolas ter-se-á

que recorrer a 4,5 milhões de quilómetros quadrados de "habitat" da fauna

selvagem considerados para fins agrícolas. Dito de outro modo, cada pessoa

nos países em desenvolvimento terá possivelmente à sua disposição 11% de

1 (um) hectare de terra cultivável.

A destruição do ambiente é visível a diferentes níveis. Para essa averiguação

basta olharmos para o grau de destruição dos recursos renováveis até agora

considerados "ilimitados": água, terra, espécies vegetais e animais. A erosão

dos solos, a desertificação das zonas semi-áridas, a salinização das áreas

irrigadas e a poluição dos rios e dos mares são disso uma prova irrefutável

(SACHS, 1980). Acresce a essa realidade ambiental negativa, a poluição

atmosférica e hídrica, o sobre-aquecimento da terra, a destruição progressiva

da camada do ozono, a destruição das florestas e de milhares de outras

espécies vegetais e animais (WEINER, 1991).

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O esgotamento e a erosão dos recursos naturais considerados "renováveis",

como é o caso da água e dos solos aráveis, são previsíveis nessas

projecções e sobretudo apontam para uma eventual catástrofe ecológica. Em

presença de um crescente agravamento da poluição atmosférica e hídrica,

da destruição progressiva da camada do ozono, do sobre-aquecimento

global do planeta Terra, das calamidades naturais que estão ocorrer nos

países mais industrializados e urbanizados, etc..., essas tendências

negativas desenvolvem-se, cada vez mais, com maior acuidade.

Não se pode analisar a destruição do ambiente em função exclusiva da

erosão e esgotamento dos recursos naturais. A lógica racional da sociedade

capitalista assente numa economia de produção e consumo de bens e

serviços efémeros, e a guerra que emerge em inúmeros países, estão a

contribuir enormemente para essa situação. O número de refugiados

internacionais é neste aspecto muito elucidativo. Para fugir à guerra ou à

miséria provocada por cataclismos naturais de uma economia depradadora,

percebe-se, de certa maneira, porque dos 2,8 milhões de refugiados em

1976, passou-se para 17,3 milhões em 1990. Com o agravamento da crise

económica e a proliferação dos conflitos bélicos à escala regional, o número

de refugiados tende a aumentar assustadoramente. Se juntarmos a esta

realidade o número de emigrantes clandestinos, depreende-se de como a

África, a América Latina, a Ásia e a África estão a tornar-se um laboratório

experimental migratório para outras regiões geográficas. Vivendo em

condições infra-humanas, sujeitam-se a emigrar para os países vizinhos, ou

em última análise para os EUA e a Europa ocidental, de modo a evitarem o

genocídio provocado pela guerra e a fome. Se tivermos, ainda, em linha de

conta a desintegração social e económica que subsiste nos países do leste

europeu que tinham enveredado pelo "socialismo real", os problemas das

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migrações clandestinas assumem proporções alarmantes no continente

europeu. Acresce que os fenómenos migratórios resultam também da miséria

existencial que abunda numa parte significativa desses países. O número de

pobres que era de 944 milhões em 1970, segundo o relatório das Nações

Unidas já mencionado, subiu para 1.156 milhões em 1985 e na perspectiva

de outras fontes recentes esse número não pára de aumentar (PNUD,1994).

Em termos da sua situação geográfica, 273 milhões vivem na África, 204

milhões na América Latina e 737 milhões na Ásia.

É notória a intenção dos referidos relatórios em demonstrarem as incidências

negativas da pobreza nos países em desenvolvimento. Ora este panorama

não é muito brilhante nos países "considerados desenvolvidos". Segundo

estimativas recentes (Diário de Notícias, 1992), havia 53 milhões de pobres

na CEE numa população de 340 milhões, enquanto que nos EUA, para uma

população de 245 milhões, existiam 31,5 milhões de pobres. Este tipo de

pobreza embora possa ser considerado diferente daquela que ocorre nos

países em desenvolvimento, na medida em que podem usufruir de

educação, saúde, da segurança social e habitação num limiar de

sobrevivência mínima, ela revela-se fundamentalmente uma chaga social

que não pára de crescer e de se identificar com as causas e os efeitos

perversos do funcionamento normativo dos países capitalistas desenvolvidos

(PNUD, 1994).

Torna-se claro, cada vez mais, que a crise actual da sociedade capitalista e

do seu modelo de desenvolvimento não afeta exclusivamente os países em

vias de desenvolvimento. O desemprego e a marginalidade social, a

violência, a droga, o crime, a guerra, a xenofobia, o racismo e o etnocídio,

assim como a segregação social, também fazem parte do mundo "civilizado"

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do ocidente.

Numa perspectiva sociológica, todos esses fenómenos resultam de um

conjunto de fatores cuja evolução tende a agravar a crise do modelo de

desenvolvimento da sociedade capitalista. Sem querer dar-lhes uma base

determinista, entre os mais importantes, sublinhe-se: a pressão demográfica;

a urbanização e burocratização das relações sociais e dos processos de

socialização dos indivíduos e grupos sociais; pobreza e desigualdade social;

nacionalismos e integrismos religiosos; anomia e desintegração social.

As manifestações sócio-culturais da pressão demográfica não se coadunam

com os pressupostos analíticos das teses malthusianas e darwinistas. A

espécie humana vê-se constrangida a lutar pela sobrevivência, utilizando

formas relacionais de tipo coletivo e individual alienantes. É uma luta

traduzida por uma racionalidade espaço-temporal mercantil, regulada, em

parte, por processos migratórios conflitantes, fomentadores de uma

segregação ecológica e social.

Porém, com base nas virtualidades explicativas dessas teses, nem a função

estruturante da racionalidade económica, nem as virtualidades do

determinismo biológico da natureza humana têm impedido que o crescimento

da população mundial evolua de modo caótico e as excrecências

comportamentais das elites governamentais sejam irracionalmente

competitivas.

Em contextos estruturantes da pobreza e da miséria e em situações

contingenciais ambientais adversas, é natural que as taxas de fecundidade e

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de natalidade aumentem de forma desproporcionada. Na Europa Ocidental e

nos EUA passa-se um fenómeno inverso: as taxas de fecundidade e da

natalidade tendem para a estacionaridade. Esta realidade aponta para a

importante função da diversidade dos valores sócio-culturais, quase sempre

identificados com comportamentos humanos estandardizados no domínio da

procriação e reprodução da sua espécie.

Num outro plano, importa referir que os princípios e práticas do mimetismo

polarizado no sistema capitalista à escala universal tem gerado processos de

êxodo rural e de urbanização desequilibrados. O desenvolvimento

discrepante dos sectores agrícola, industrial e terciário, para além de gerar

uma desigualdade social, económica, política e cultural de características

negativas, transformou os aglomerados urbanos num antro de miséria e de

marginalidade social. Destruindo-se as relações sociais comunitárias,

diminuindo-se as bases de coesão social, desintegrando-se os laços de

solidariedade social, criam-se as condições que fomentam um acréscimo

gigantesco das taxas de fecundidade e de natalidade. Como consequência, a

pressão demográfica nos grandes aglomerados urbanos desenvolve-se em

termos de uma dimensão, heterogeneidade e densidade populacionais que

conduzem à desintegração e à anomia social.

Uma das outras vertentes da pressão demográfica e do processo de

industrialização e urbanização das sociedades expressa-se em tipologias de

ordenamento do território e na utilização do solo de forma caótica e

desordenada. A distribuição e organização espacial das zonas de residência

e de trabalho, assim como das infraestruturas e equipamentos coletivos, não

se coadunam com uma organização social harmoniosa e, por outro lado,

transforma a cidade num amontoado caótico de cimento, vidro e ferro, na

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qual se torna impossível viver.

O processo de urbanização das sociedades, ao mesmo tempo que induz à

transformação da matéria orgânica em matéria inorgânica (ou seja, através

da transformação dos elementos naturais em elementos de construção do

"habitat", fábricas, hipermercados estradas, infraestruturas e equipamentos

colectivos, etc.), traduz-se, por outro lado, numa organização social

perpassada por uma crise de identidade e de representatividade social. O

isolamento dos indivíduos e dos grupos no contexto da complexidade

organizacional dos grandes aglomerados urbanos assume proporções

inauditas. As relações sociais não se fazem numa base directa em situações

de co-presença física e visibilidade relacional, o que impossibilita a

construção social de diálogos baseados na fraternidade e na solidariedade.

Os indivíduo e os grupos, estando sós e sendo dependentes de um poder

dominante que lhes escapa, entram num processo de desintegração social.

Pode-se compreender esses fenómenos se tivermos presente as

dificuldades de uma interacção social positiva e funcional em contextos

urbanos que atingiram uma grande dimensão, níveis de densidade e de

heterogeneidade populacionais altíssimas. Desse contexto, depreende-se as

contingências e os constrangimentos provindos do exercício burocrático da

representatividade formal para suprir as exigências funcionais de uma

sociedade, cada vez mais, complexa e sofisticada. A anomia e a

desintegração social são passíveis de observar tendo presente o peso da

burocratização e da centralização dos processos de regulação social.

A outra versão moderna da desintegração social e da anomia subsistem ao

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nível das perdas de referência e de identidade social. Esta realidade é não

só perceptível no âmbito da especificidade das relações sociais corporizadas

na superficialidade e transitoriedade relacional nos contextos urbanos, mas

também ao nível da destruição progressiva das relações sociais baseadas no

interconhecimento e nos processos de aprendizagem social e de aculturação

que só podem ser dinamizados pelos pequenos grupos e as comunidades

locais (CHOMBART DE LAUWE, 1982).

Na ausência desses requisitos de organização social, formaram-se,

entretanto, estruturas burocráticas gigantescas que decidem

anacronicamente do governo e da gestão das cidades. Simultaneamente, a

longiquidade espaço-temporal que persiste entre a sociedade global e os

indivíduos, entre o Estado, instituições, organizações, os grupos e indivíduos,

leva a que o sistema de representatividade formal de natureza burocrática e

centralista não permita uma socialização e sociabilidade positivas dos

indivíduos e dos grupos, razão pela qual os fenómenos de desintegração

social e de marginalidade social crescem em exponencial e certas

instituições e cientistas sociais reivindiquem uma maior participação dos

indivíduos nos mecanismos processuais de integração social (PNUD, 1993).

Desde que não haja uma participação e decisão dos indivíduos e grupos

sobre a governação das cidades, persiste um alheamento generalizado dos

mesmos sobre todas as contingências negativas que daí resultam. As

relações de identidade entre o que é do foro individual e colectivo não existe.

A interação entre os diferentes elementos humanos que constituem o

sistema urbano revela-se difícil de realizar, o que condiciona enormemente

as relações de interdependência e de complementaridade relacionadas com

as tarefas e funções do seu funcionamento global.

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Um outro fator da crise do modelo de desenvolvimento capitalista emerge do

desemprego. Este, como todo o trabalho baseado num vínculo contratual

precário, exprime o estádio normativo de regulação das necessidades do

mercado de trabalho capitalista à escala da economia global. Corresponde,

estruturalmente, aos ditames do crescimento e progresso económico e está

articulado deterministicamente às vicissitudes da revolução tecnológica em

curso, com especial incidência na informática, micro-electrónica,

biotecnologia, telemática, robótica, indústria espacial, etc. Estes factores

desintegram o sistema de relações sócio-profissionais e das relações

industriais que perdurava há vários decénios, por via das restruturações

sistemáticas realizadas no âmbito das qualificações e divisão social do

trabalho do trabalho e, por outro lado, desenvolvem-se novos saberes

técnicos e humanos nos sectores terciário e industrial à escala universal, em

detrimento progressivo dos saberes e práticas relacionadas com a actividade

dos sector primário. No fundo, as bases estruturais e institucionais, do que foi

denominada a segunda revolução industrial, estão a desintegrar-se, dando

origem à formação de um mercado de trabalho segmentado numa regulação

sustentada por trabalhadores desqualificados, qualificados, desempregados

ou com vínculo contratual precário.

Em parte, enquanto consequência lógica do mundo dos desempregados que

pululam nos grandes aglomerados urbanos, a marginalidade e a segregação

social são também a expressão genuína da competição e da concorrência

desenfreada que decorrem de uma regulação social apoiada num

crescimento económico desenfreado. Esta racionalidade económica levada

ao extremo tem custos irreversíveis. Quem não consegue posicionar-se no

mercado do trabalho em situação privilegiada de concorrência ou de

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vantagem competitiva, facilmente soçobrará na pobreza ou na exclusão

social. Quem não consegue adaptar-se aos padrões competitivos das

funções de produção e de consumo mercantil identificado com a lógica

normativa de capitalização humana, ver-se-á impossibilitado de apropriar-se

do conjunto de necessidades que lhe permitem sobreviver, o que geralmente

se traduz a evoluir para formas de existência pautadas pela marginalidade

social e, logicamente, a ser objecto de exclusão e segregação social

(PASSET, 1979).

Não podemos, porém, confinar os problemas da marginalidade e da

segregação social ao determinismo económico da sociedade capitalista.

Ambas as realidades são também o produto de modelos sócio-culturais e

políticos predominantes que se estruturam através de um processo social

fundamentado na inclusão e de exclusão de grupos sociais diferenciados e

contrastantes.

A alteridade sócio-cultural não é passível de socializar com base em

identidades comunitárias diferenciadas. No período histórico que

atravessamos, em que a interacção social no sistema social global se

objetiva com base nas capacidades de competição e de segregação social,

quando as comunidades nacionais, regionais e étnicas se vêem

incapacitadas de subsistir, utilizam as outras como bode expiatório das suas

situações negativas. A "guerra contra o outro" assume uma preponderância

capital na manutenção do poder por parte das classes dominantes e, por

outro lado, alimenta a coesão e a identidade das comunidades nacionais que

tendem a desintegrar-se socialmente. Nestas condições, apercebemo-nos

como certas elites que lideram os nacionalismos e os integrismos religiosos

socializam e controlam ideológica e politicamente os fenómenos da

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marginalidade e da segregação social existentes nos seus países.

Os problemas da pobreza e da desigualdade social demonstram, de forma

inequívoca, a tragédia existencial humana actual (PNUD, 1994). Sem cair na

averiguação fácil da existência de "sub-espécies humanas" estratificadas por

níveis de vida abaixo do mínimo de subsistência vital, torna-se, no entanto,

pacífica a afirmação de que a grande maioria dos 4.000 milhões de seres

humanos dos países em vias de desenvolvimento estão submergidos pela

fome, a pobreza e a exclusão social. Em contrapartida, grande parte dos

1.000 milhões que existem nos países desenvolvidos são constrangidos a

levar uma vida quotidiana baseada na ostentação, produção e consumo de

bens e serviços efémeros.

Tendo em atenção os milhões de seres humanos que pululam no pântano do

genocídio, da miséria e da pobreza gerada nos grandes aglomerados

urbanos da África, da Ásia e da América Latina, há também que não

esquecer a outra versão da miséria e da pobreza urbana existente no

"eldorado" dos países do mundo capitalista considerado desenvolvido. Estes

últimos, muito embora demonstrem que têm "estatísticas positivas, com

indicadores sociais sobre o saneamento básico, políticas assistenciais nos

domínios da educação, saúde e segurança social estatais para a maioria da

população, estão, no entanto, mergulhados no asfalto do desemprego, da

indiferença e da exclusão social.

Um outro fenómeno crítico da modernidade do desenvolvimento capitalista à

escala mundial é visível na emergência dos movimentos sociais e guerras

regionais estruturados pelo nacionalismos e integrismos religiosos actuais. O

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etnocídio, o racismo e a xenofobia são outras manifestações articuladas com

uma realidade socioeconómica, política e cultural que evolui no mesmo

sentido racional-instrumental capitalista.

Como primeira abordagem desses fenómenos, dir-se-ia que todos eles têm

causas lógicas comuns, se pensarmos nas consequências geradas pelo

desmembramento do "socialismo real" nos países do leste europeu e,

sobretudo, olharmos para o desemprego que afectam todos os estratos

sócio-profissionais clássicos na Europa Ocidental. Importa, por outro lado,

pensar as próprias consequências da fome e da pobreza que atravessam

certas regiões na África, América Latina e Ásia e as suas correlações com os

surtos migratórios e a segregação social existente entre as diferentes

identidades étnicas e nacionais.

A explicação mais plausível das suas causas não deve, não obstante, servir

para omitir a função negativa que assumem esses fenómenos. O

nacionalismo, o integrismo religioso, o racismo e a xenofobia, na medida em

que se apoiam em modelos sociais tendentes a estruturar-se numa

perspectiva unidimensional e segregacional negam, com facilidade, a

alteridade sócio-cultural, política, económica e religiosa a identidade dos

outros povos, etnias e comunidades que compõem as múltiplas sociedades

humanas do planeta Terra. As práticas humanas de cooperação e da

solidariedade inter-étnicas e inter-comunitárias dos povos e nações são

destruídas. Em alternativa, persiste a lógica de uma guerra imperialista

confinada a interesses económicos e políticos geo-estratégicos, mas

simultaneamente fundamentada no extermínio das diferenças sócio-culturais

que as outras comunidades étnicas personificam.

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2. Características do modelo de desenvolvimento que funciona como

paradigma dominante

Genericamente, o conceito de desenvolvimento, situado nos parâmetros da

lógica do progresso e da razão, consubstancia-se na melhoria progressiva e

equilibrada do homem em termos de "bem-estar" económico, social, cultural

e político. Esta visão apoia-se na quantificação e comparação de um

conjunto de indicadores qualitativos específicos, considerados os mais

representativos para um dado período histórico do desenvolvimento. Assim,

quando se comparam o nível de desenvolvimento entre países, tem-se

presente os índices que especificam o produto nacional bruto, o produto

interno bruto, o rendimento "per capita", taxas de alfabetização, taxas de

mortalidade e natalidade, número de telefones e automóveis por habitante,

número de hospitais e médicos por habitante, etc...

O desenvolvimento, nestas circunstâncias, avalia-se em função de um "bem-

estar" instrumentalizado pela quantidade de bens e serviços que uma dada

sociedade pode usufruir. O conceito de "países desenvolvidos" e "países

subdesenvolvidos" ou ainda de "países em desenvolvimento" é concebido

em função dessa visão analítica.

Esta concepção histórica da evolução das sociedades traduz-se num modelo

de desenvolvimento que procura explicar o passado, em função do presente

e o devir harmónico da sociedade capitalista. As variáveis que estruturam o

modelo de desenvolvimento capitalista expressam a eliminação progressiva

da dependência do homem em relação ao poder divino no sentido da sua

transformação em uma entidade antropocêntrica. A base materialista da

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produção de bens e serviços de características capitalistas provoca

progressivamente a separação do sagrado e do profano, ao mesmo tempo

que estrutura a independência e a autonomia dos indivíduos na esfera do

mercado e a sua adesão ideológica às normas e valores sócio-culturais

identificados com uma racionalidade económica baseada na maximização do

lucro.

O processo interactivo do progresso e da razão materializou-se também na

formação do "Welfare State" e no Estado-providência. Estes, conjugados

com acção da racionalidade económica mercantil aumentou os índices de

produção e consumo de saúde, educação e habitação, como inclusivé,

sancionaram as inovações e mudanças operadas no campo do trabalho, da

tecnologia e da ciência. Essas funções permitem que haja simultaneamente

um crescendo progressivo de produção e consumo de bens e serviços

múltiplos. Deste modo, o modelo de desenvolvimento do capitalismo satisfaz,

como sistema paradigmático, as necessidades básicas dos indivíduos e

grupos que compõem as sociedades actuais. Para tal basta que haja uma

repartição de rendimentos propiciadora de um consumo de um conjunto de

necessidades básicas padronizadas num conjunto típico de bens e serviços

circunscritos à alimentação, habitação, saúde, educação e transportes.

Esgotando-se esse patamar de necessidades padronizadas, o modelo de

desenvolvimento capitalista alarga e aprofunda a sua matriz do progresso e

da razão. Novas necessidades básicas são criadas e não admira que hoje se

corporizem no lazer, turismo, actividades lúdicas, jogos de guerra, espaços

livres, ambiente despoluído, etc... (PASSET, 1979).

Averiguando, no entanto, a realidade política, cultural, económica e social

que sustenta e reproduz esse modelo de desenvolvimento, deparamos com

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grandes contradições e antagonismos.

Em primeiro lugar, assiste-se à desintegração das virtualidades positivas do

homem antropocêntrico capitalista. Este para além de ser um objecto

produtor e consumidor de bens e serviços, transformou-se basicamente

numa entidade depredadora e destruidora de si próprio e da natureza. Esta

contradição não somente alienou o homem das suas funções criativas

cruciais nos domínios da actividade política, cultural e social, mas sobretudo

transformou-o numa função competitiva e concorrencial de todos os outros

que com ele interagem às escalas local, regional, nacional e transnacional.

Em segundo lugar, as relações sociais capitalistas baseiam-se em funções

hierarquizadas, onde tarefas e funções, assim como o poder e a autoridade

obedecem a uma lógica de dominação. Indivíduos e grupos com tarefas,

funções, poder e autoridade sustentadas pela dominação e a exploração do

homem pelo homem, fomentam uma desigualdade social corporizada em

privilégios, rendimentos, propriedade, exercício do poder e apropriação de

riqueza diferenciada, etc... Essa exploração e dominação observa-se

fundamentalmente nas relações sócio-organizacionais entre empresários,

gestores e assalariados subalternos, na relações entre homem e mulher, nas

relações entre estratos sócio-profissionais, entre o Estado, indivíduos e

grupos que compõem a sociedade civil, etc..., e, quando nos situamos numa

escala geográfica universal, entre etnias, o Estado-Nação e instituições

transnacionais.

Em terceiro lugar, o sistema democrático representativo capitalista não

funciona em exclusiva sintonia com as virtualidades do mercado e da

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liberdade humanas. A racionalidade sociobiológica do ser humano

"capitalista" e os predicados de regulação do mercado tão queridos de

Darwin e Malthus, como dos liberais modernos, não funcionam plenamente.

Por tais motivos, para suprir as insuficiências da integração e controlo social

subjacentes à dinâmica social das sociedades actuais, o Estado, indivíduos e

grupos recorrem a formas violentas e irracionais a fim de manterem o "status

quo".

Nestes termos, observamos que as relações sociais nos planos institucional

e organizacional são perpassadas por tipologias de exercício de poder

baseadas na dominação, na qual a participação, a decisão e a concepção

das actividades económica, política, cultural e social são arbitrariamente

assumidas e partilhadas, sem que se nos apercebamos do carácter

prescritivo e funcional das regras e normas que determinam o exercício da

autoridade hierárquica formal.

O exemplo do Estado, de instituições e organizações com vocações

repressivas, quando exercem as suas funções de socialização, são bem

patentes na forma insuficiente e arbitrária como controlam, integram e

sancionam todas as transgressões e potenciais desvios normativos

desenvolvidos pelos indivíduos e grupos em relação à ordem social vigente.

Finalmente, a expansão universal do capitalismo tornou-o mais complexo e

sofisticado. Como sistema social, as suas diferentes componentes quando

estão em interacção, nem sempre funcionam como função de

complementaridade e interdependência, de forma a construir sínteses

positivas. A sua expansão geográfica revela-se demasiado abstracta e

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formal.

A longiquidade espaço-temporal embora seja mediatizada por uma interação

social personificada pelas novas tecnologias e poder comunicacional dos

"mass media", não tem evitado a artificialidade e a contradição nas relações

sociais entre as diferentes partes que constituem a sociedade global. Por

outro lado, as características competitivas do "homo economicus" atingiu um

grande paroxismo. A sobrevivência da espécie humana persiste, mas à custa

de uma socialização muito difícil. Os exemplos são elucidativos. Incapazes

de se inserirem nos grupos, colectividades e sociedade, os indivíduos

evoluem para múltiplas formas de morte e de desintegração social:

desemprego, guerra, pobreza, violência, crime, droga, prostituição, etc.

Desde que o desenvolvimento capitalista erigiu o homem em entidade

antropocêntrica, o progresso e a razão associados à racionalidade

económica assumiram-se como função de espoliação e de transformação da

natureza de forma abrupta e irreversível (WEINER, 1991). O capitalismo ao

transformar o homem em objecto de produção e de consumo de

mercadorias, transformou a natureza num espaço vital de parasitismo, na

qual os recursos naturais tornaram-se uma fonte inesgotável dos desígnios

de uma sociedade insaciável.

Como consequência, o homem deixou progressivamente os últimos laços de

identidade que ainda mantinha com a natureza. Em vez de adaptar-se, reagir

e regular as leis da natureza numa perspectiva de equilíbrio ecossistémico,

transforma e destrói a unidade da diversidade criativa e dialógica dos

diferentes seres que compõem o universo. Em função dos parâmetros

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determinísticos do modelo de desenvolvimento capitalista, a natureza em

geral e todas as espécies vegetais e animais, em particular, são

constrangidos a evoluir dentro dos parâmetros totalitários da racionalidade

económica capitalista. Esta tem um objectivo central: transformação da

matéria orgânica em matéria inorgânica, produzir, distribuir e consumir

mercadorias.

O que hoje os políticos, cientistas, profetas e ideólogos da salvação do

impossível denominam de "mau ambiente", decorre da sua visão apocalíptica

e reformista. Facilmente chegam à conclusão de que se caminha para uma

catástrofe ecológica, caso a sociedade não consiga inverter os efeitos da

crise ambiental polarizada à volta do efeito estufa, da degradação da camada

do ozono, da extinção da biodiversidade e do esgotamento e poluição dos

recursos naturais (ROYAL, 1992). Está-se perante uma visão em que a

degradação do ambiente é algo que pode ser objecto de reparação,

regulação e controlo, bastando para tal reconstituir os equilíbrios

ecossistémicos que, entretanto, foram destruídos.

Em presença de tais terapêuticas, tantas vezes testadas e frustradas, o

mínimo que delas se pode depreender é a sua inoperância, já que após

sucessivas aplicações, tudo isso não consegue evitar a mesma tendência

suicidária.

Mais do que encontrar nos sintomas da crise ecológica uma forma airosa

ideológica de omitir as causas que estão na origem da destruição do planeta

Terra, torna-se necessário inferir que os problemas do ambiente não

decorrem de causas exteriores à sociedade capitalista e que, desse modo,

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há que situar toda a análise na lógica normativa do desenvolvimento do

capitalismo e, mais concretamente, na sua esfera de actividade económica

mercantil (PASSET, 1992).

Objectiva e subjectivamente, o que importa referir radica no sentido da

transposição mecânica que o capitalismo pratica, ao transformar a natureza

num objecto de dominação e de hierarquização idêntico à ordem social que

estrutura os processos de socialização e de regulação das relações sociais

da sociedade capitalista (BOOKCHIN, 1989). A dominação e a

hierarquização relacional que a espécie humana mantém com a natureza é

modelada e projectada pelas exigências e contigências de uma a

racionalidade mercantil concorrencial e competitiva. Recursos humanos e

naturais fazem parte de uma lógica indissociável, em que meios e fins, se

integram na consecução dos mesmos objectivos (SACHS, 1986). Não

admira, portanto, que a ordem social capitalista transposta para o campo das

relações do homem com a natureza resultem em transformações e

configurações espaciais e físicas enquadradas numa determinada utilização

do solo e do ordenamento do território e que estes, por sua vez,

desenvolvam a crise ambiental e a destruição progressiva dos recursos

naturais ainda disponíveis (PELT, 1991).

Esta evolução tem, no entanto, custos, limites físicos e sociais. A natureza

não pode ser modelada impunemente através de uma entidade

antropocêntrica orientada pelos objectivos imperativos do progresso e da

razão que estão identificados com a racionalidade económica capitalista.

Mantendo-se a irreversibilidade deste modelo de desenvolvimento,

assistiremos inevitavelmente a um crescendo progressivo da deterioração

ambiental a todos os níveis.

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Não se pode, porém, racionar como se não persistissem interdependências e

complementaridades entre os fenómenos ambientais e os que relevam da

realidade sócio-organizacional. Nesse aspecto, assim como somos capazes

de observar os efeitos negativos que relevam da ordem social sobre a

natureza, interessa, por outro lado, também perceber as incidências que a

própria destruição do ambiente tem sobre o modelo sócio-organizacional

vigente.

A utilização e a apropriação do solo e as suas articulações com o

ordenamento do território, assim como a poluição hídrica e atmosférica,

como já referimos, estão bem patentes no processo de urbanização das

sociedades.

As configurações sociais e físicas da urbanização traduzem-se num aumento

da competitividade e da concorrência interpessoais e intergrupais, dando azo

à construção de tipologias de interacção social padronizadas em formas

específicas de apropriação e utilização do espaço vital que é imprescindível

à vida quotidiana dos indivíduos e colectividades. Essa interacção social

torna-se propícia à construção de territórios segregacionais que se

identificam com a capacidade competitiva dos grupos e indivíduos e que, por

sua vez, permitem a dinamização de uma acção individual colectiva

orientada pela força constrangedora da sua representatividades social no

contexto da sociedade global.

Por outro lado, a complexidade organizacional resultante das configurações

físicas e sociais que emergem da regulação do mercado e do Estado

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constrange os sistemas de decisão e de controlo da sociedade civil a

evoluirem para uma crescente burocratização e centralização. As relações

entre os diferentes poderes instituídos, os indivíduos, as comunidades locais

e regionais, as sociedades nacionais e transnacionais revelam-se

progressivamente conflituais. O paradoxo é no mínimo contraproducente. É

no mínimo contraditório que um sistema global, cada vez mais hegemónico e

totalitário, crie instituições supra-nacionais, viva vicissitudes de crise

ambiental de natureza universal e, na ocorrência, não consiga legitimar de

forma idónea e funcional o seu sistema político.

Finalmente, a regulação e controlo das complementaridades e das

interdependências físicas e sociais que subsistem à escala universal

revelam-se difíceis de realizar pela entidade Estado-Nação. Em presença da

destruição do ambiente gerado pela lógica do desenvolvimento capitalista, o

Estado-Nação, enquanto entidade fiscalizadora dos recursos naturais e, por

outro lado, gestor e planificador das políticas económicas, revela-se

impotente perante a acção estruturante das economias subterrâneas de

âmbito nacional e transnacional.

Este aspecto revela-nos que o Estado-Nação e as comunidades nacionais,

regionais e locais não têm capacidade política e económica suficiente para

adaptarem o ambiente à sua identidade sócio-cultural e fronteiras

específicas, conseguindo um controlo eficiente na utilização e ordenamento

dos seus espaços físico e social. No momento histórico actual verifica-se que

a regulação do ambiente não é passível de gerir dentro dos limites das

fronteiras territoriais, institucionais e administrativas do Estado-Nação

clássico. Este último não é funcional e idóneo, não tem legitimidade nem

poder suficiente para inverter o processo de destruição da natureza.

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Depreende-se, por outro lado, que o Estado circunscrito ao espaço nacional

tem extrema dificuldade em controlar atempadamente as variáveis sócio-

culturais, económicas e políticas em que se apoia o actual desenvolvimento

capitalista, de forma a poder inverter os factores relacionais humanos que

originam a destruição do ambiente. Nesta assunção, a atomização da acção

social das comunidades locais, regionais e nacionais só é explicável pela

crescente subalternização e dependência hierárquica que mantêm em

relação Estado supra-nacional emergente. O indivíduo, por outro lado, ao ser

transformado num puro objecto de produção e consumo de mercadorias com

simbologia e proveniência universal, revela-se, cada vez mais, uma entidade

amorfa e alienada, o que o leva a comportar-se como uma entidade anómica

desprovida de sentido, de participação e decisão em todos os níveis

espaciais em que se encontra inserido.

Em presença desta nova configuração mundial estabelecida entre um Estado

totalitário e o crescente amorfismo da capacidade das comunidades

nacionais, regionais e locais, não é de admirar que as grandes organizações

supra-nacionais assumam a liderança dos processos de transformação,

controlo e regulação do sistema social global, a fim de inverter o colapso

apocalíptico da natureza e a destruição do ambiente provocado pelo

desenvolvimento capitalista. O exemplo dos últimos relatórios do Banco

Mundial e a Eco-92 do Brasil, organizado sob os auspícios da ONU, é bem a

demonstração da impossibilidade e fragilidade da acção do Estado, das

instituições, organizações e indivíduos que se inserem nessas escalas sócio-

espaciais.

3. Potencialidades de uma ecologia social anarquista face à crise do modelo

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de desenvolvimento capitalista

Como verificámos nos capítulos precedentes, uma parte substancial dos

cientistas que abordam as relações do homem com o ambiente, omitem o

carácter indissolúvel dessa relação no quadro de categorias conceptuais

sistémicas. Assim, tanto encontramos análises que vão no sentido de uma

naturalização absoluta e conservadora do homem, referenciando este como

uma entidade exclusivamente biológica e natural, perdendo-se dessa forma a

sua essência criativa sócio-cultural que se manifesta na capacidade e

possibilidade de construir modelos de organização social diferentes daqueles

que são próprios às outras espécies animais e vegetais. (MALTHUS, s/d).

Num sentido oposto, encontramos análises que estipulam

deterministicamente a autonomia da espécie humana em relação ao seu

ambiente, transformando-a numa espécie de sociologismo orgânico que se

explica de forma específica e autónoma, sem para tal sujeitar-se às

contingências da interacção e interdependência com o meio ambiente

(DURKHEIM, 1975)

É facto que não podemos prescindir de analisar a contribuição de alguns

autores que ultrapassaram esta visão dicotómica das articulações e

integrações dos espaços social e físico. Desde a década de 1920 que um

grupo de investigadores da universidade de Chicago observou e analisou a

influência do ambiente sobre os comportamentos humanos, referenciando as

formas e conteúdos das configurações espaciais físicas e sociais que

decorriam de uma matriz social diversificada corporizada na acção colectiva

das múltiplas comunidades e etnias, com identidades sócio-culturais e

capacidades concorrenciais e segregacionais específicas. Robert Park,

Ernest Burgess, Louis Wirth e outros puderam, desse modo, enveredar por

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uma abordagem sociológica que permitia percepcionar e explicar o homem e

a natureza numa perspectiva ecológica e humana (PARK, BURGESS,

McKENZIE, 1967).

Na continuidade desta linha de pensamento científico, hoje, persiste uma

abordagem mais sistematizada e enquadrada na crise ecológica da

sociedade capitalista ao ponto de alguns investigadores contemporâneos, a

partir da década de 1970, desenvolverem um conjunto de postulados

teóricos conducentes à criação de uma disciplina denominada Sociologia

Ambiental e, inclusivé, com intenções de a transformarem num novo

paradigma ecológico (CATTON e DUNLAP, 1980).

Estes trabalhos científicos têm indiscutivelmente um grande mérito. Face à

crise interpretativa e explicativa dos múltiplos fenómenos relacionados com

ambiente, eles tentam averiguar, de forma pertinente, os efeitos perversos

mais representativos que emergem da actual crise ecológica do modelo de

desenvolvimento capitalista. As suas análises pecam, no entanto, por uma

série de limitações e contradições. Circunscrever os problemas da crise

ecológica a uma racionalidade populacional e humana, de forma alguma

pode-nos permitir culpabilizar e responsabilizar a espécie humana, os grupos

e os indivíduos como um todo identitário e homogéneo na sua condição-

função de depredadora do equilíbrio ecossistémico. A acção colectiva e

individual não pode ser analisada fora do tipo de sociedade em que elas se

inscrevem. A ordem social capitalista, com as suas estruturas e modelos

institucionalizados de cultura normativa, só legitima relações sociais

hierárquicas e de dominação que se identificam com as funções de produção

e de consumo de bens e serviços e, logicamente, com o consequente

agravamento da crise ambiental.

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Por estas razões, essas análises são redutoras. Nestas circunstâncias,

torna-se impossível omitir as causas sócio-culturais, políticas e económicas

que corporizam o modelo de desenvolvimento capitalista e, logicamente, a

sua função estruturante na modelação das estruturas sociais hierarquizadas

e de dominação que se traduzem num conjunto de regras e normas

tipificadas por comportamentos humanos que, em última instância,

determinam os seus padrões de interacção com a natureza. O ambiente é o

resultado desse processo interactivo.

Partindo desta perspectiva, observa-se que as contradições e antagonismos

subsistentes residem no modelo de produção e de consumo de bens e

serviços que acompanha a evolução da racionalidade económica capitalista.

Esta é perpassada pela concorrência e competição mercantil e regulada

socialmente por estruturas e relações sociais pautadas pela opressão e

exploração do homem pelo homem. A personificação dessa realidade é

averiguável pela condição-função de classes sociais, estratos sociais, etnias

e castas hierarquizadas e estratificadas por escalas de rendimento, prestígio

social, poder e posse de riqueza, como também pelas relações sociais de

âmbito mais geral personificadas por uma condição/função de nível etário

(velho/jovem), sexual (homem/mulher), e social (empregado/desempregado),

etc ...

Como não se pode percepcionar a crise do ambiente e da sociedade

exclusivamente a partir de uma visão ecológica naturalista, também não nos

parece possível fazer o mesmo através de análises centradas num

sociologismo com os seus efeitos perversos e disfuncionais.

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Em relação ao pensamento de outros autores procura-se associar a crise do

ambiente e da sociedade a partir das características estruturantes da

revolução tecnológica em curso e a natureza da pressão demográfica

(FNUAP, 1992). Segundo estes, para superar a actual crise social e

ecológica, bastaria reestruturar as tecnologias e adaptá-las ao meio

ambiente de modo a torná-las menos depredadoras dos recursos naturais e

menos poluidoras da biosfera. Se possível, elas deveriam não causar tantas

mortes através das diversas guerras regionais e locais e, inclusivé, deveriam

adaptar-se a funções circunscritas à saúde e educação e, sobretudo,

fortalecer e aperfeiçoar a sua utilização sistemática em métodos científicos

anti-concepcionais, de forma a inverterem e/ou estacionarem o surto de

crescimento demográfico, miséria e a fome que ocorre na generalidade dos

países do hemisfério Sul.

Esta hipótese científico-tecnicista que pretende superar as excrecências

populacionais mais significativas da crise do modelo de desenvolvimento da

sociedade capitalista à escala mundial é, muitas vezes, confrontada outras

que têm menor representatividade social: a naturalista-conservadora e a eco-

tecnocrática. A primeira procura solucionar a crise do modelo de

desenvolvimento capitalista, com um retorno às configurações sócio-

históricas do passado, tentando fazer tábua rasa da historicidade dos

construídos sociais que foram estruturados por uma matriz sócio-cultural

secular. A segunda procura transformar o homem antropocêntrico numa

categoria divina semelhante ao poder das máquinas e dos deuses.

Estamos, neste caso, a pensar o "homem" como uma realidade omnipotente

e omnisciente, com capacidades e possibilidades ilimitadas de inovação e de

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mudança em todos os aspectos da vida social e humana. Os defensores da

sociobiologia dão-nos algumas pistas nos campos da engenharia genética e

social (BOOKCHIN, 1990).

Todas essas perspectivas são redutoras e enfermam de um conjunto de

contradições. A visão naturalista-conservadora, que é actualmente

personificada pela maioria dos grupos ecologistas, esquece que o homem

enquanto entidade auto-consciente e auto-reflexiva evolui num processo

histórico, da qual é impossível dissociar o presente do passado e do futuro.

Todo esse processo é um elo com laços contínuos e descontínuos. Nesta

dimensão, só pode ser analisado e interpretado como um fenómeno

estruturado por factores de natureza reversível e irreversível.

A visão eco-tecnocrática pensa que é possível re-equacionar a relação do

homem com a natureza através de uma função ilimitada do poderio dos

meios técnicos e científicos, atribuindo-se um poder diabólico à espécie

humana, como se esta pudesse assumir um domínio absoluto e arbitrário

sobre si, sobre as outras espécies e própria natureza (PASSET, 1979). Nesta

perspectiva, poderíamos até pensar num "admirável mundo novo"

personificado por uma espécie humana modelada geneticamente,

adquirindo, posteriormente, ela mesmo uma capacidade e possibilidade de

criar e modelar a natureza à sua imagem e semelhança.

Face ao actual cenário da crise do modelo de desenvolvimento capitalista

não se vislumbra que o pragmatismo conjuntural das políticas económicas

dos estados, nem a racionalidade económica do mercado capitalista, possam

inverter ou superar essa realidade. Por outro lado, manifestamente, todos os

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modelos analíticos, que se identificam científica e ideologicamente com o

paradigma explicativo dominante, não conseguem interpretar de forma

eficiente e coerente a crise que atravessamos, de forma a que se possa

eventualmente verificar remediar algumas das contradições e antagonismos

da sociedade capitalista.

Tendo presente o legado histórico do pensamento e da acção social

emancipalista, em face dos problemas que estamos a presenciar à escala

mundial, surge-nos um dilema ambiental e social de proporções gravíssimas.

Neste contexto, a ecologia social de características anarquistas tem um

conjunto de virtualidades que urge referenciar e potenciar nas nossas

sociedades.

Mais do que inverter a lógica de evolução do sistema social global, importa,

desde já, referir que a espécie humana é, acima de tudo, uma entidade que

evolui através de um processo histórico pautado pela estruturação de uma

auto-consciência progressiva e que, em função das suas capacidades e

possibilidades ontológicas, adopta modelos de auto-governação e de auto-

organização que a pode racionalmente diferenciar das outras espécies

vegetais e animais. É nesta especificidade estrutural ontológica que

podemos compreender, em grande parte, a sua evolução gregária no sentido

da construção da sociedade, passando de modelos sociais simples para

modelos sociais complexos. Os pressupostos da socialização e da

sociabilidade humana, nessa assunção, só foram possíveis de concretizar na

medida em que o ser humano conseguiu articular-se com a natureza de uma

forma dialógica.

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Com base nestes princípios básicos, facilmente chegamos à conclusão que

as relações do homem com a natureza não são deduzíveis de meras

reacções adaptativas contingenciais impostas pelo poder inerente à

natureza. A relação do homem com a natureza, neste sentido, não pode

apoiar-se numa visão restritiva circunscrita às necessidades da sua

sobrevivência material. Enquanto elemento da natureza que interage com

milhões de seres vegetais e animais, o homem só pode partilhar e viver

nessa mesma natureza como parte de um todo indissolúvel ecossistémico.

Assim sendo, esse imperativo crucial só é passível de realizar através da

transformação do homem numa entidade auto-consciente e humanizada,

com a capacidade virtual e real de construir um modelo sócio-organizacional

identificado com a sua essência humanista e emancipalista, alicerçada em

relações sociais pautados pela fraternidade e a solidariedade.

Nesta perspectiva, torna-se impossível pensar a ecologia sem alargar a sua

dimensão fenomenal ao quadro epistemológico e metodológico da sociedade

global em que persistimos. Na estrita medida em que as relações do homem

com a natureza são mediatizadas por relações de tipo reflexivo e

organizacional, a ecologia, em última instância, é e só pode ser de natureza

social.

Integrando-me no princípio tantas vezes já demonstrado de que é possível

racionar e agir de uma maneira radicalmente diferente a que estamos

habituados, a tragédia da crise social e ecológica que vivemos é passível de

ser superada. Neste sentido, para tornar operacional o conceito de ecologia

social, enquanto fenómeno de auto-consciência, de auto-governação e de

auto-organização do ser humano, somos constrangidos à admissibilidade da

exigência de uma transformação radical da sociedade em que persistimos

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(KROPOTKINE,1906; BOOKCHIN,1976). Essa transformação radical da

sociedade capitalista à escala universal implica a desestruturação da

organização social, política, cultural e económica baseada em relações

sociais hierarquizadas e na dominação. Ela passará, ainda, por uma

redefinição radical do homem em relação à natureza, o que implica a criação

e a dinamização de novos padrões de interacção social, tipificados por

comportamentos humanos conducentes à manutenção e regulação de um

novo equilíbrio ecossistémico assente na biodiversidade das diferentes

espécies animais e vegetais (BOOKCHIN, 1976).

De maneira a dar forma e conteúdo a essa exigência de transformação

radical da sociedade capitalista e, por conseguinte, do seu modelo de

desenvolvimento, o projecto de sociedade de ecologia social anarquista deve

apoiar-se essencialmente na criação de eco-comunidades às escalas local,

regional, nacional e transnacional. A integração e a articulação dessas

realidades singulares estruturar-se-ão num sistema global de relações

sociais fraternas e solidárias através de uma rede orgânica coordenada e

regulada por laços federativos e confederais à escala universal. É uma

alternativa de sociedade que supera os antagonismos e contradições da

exploração e opressão capitalista, mas que também supera as causas e os

efeitos perversos de um conjunto de factores: centralização, burocratização,

concentração e complexidade organizacional e social; inexistência de

participação e de decisão dos indivíduos e grupos nas colectividades e

sociedade; desintegração e anomia social.

O quadro epistemológico e metodológico da ecologia social tem as suas

raízes históricas nos princípios e práticas do anarquismo. Essa plausibilidade

é pacífica de demonstrar através dos indícios de certas experiências

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históricas já realizadas (Comuna de Paris- 1871, Revolução Russa-1917-

1921, Guerra Civil em Espanha-1936-1939, etc...) como, ainda, é

personificada pelas obras de alguns autores anarquistas mais emblemáticos:

Proudhon, Bakunine, Kroptokine, Malatesta e, modernamente, Murray

Bookchin. Hoje, a ecologia social baseada nos princípios e práticas

anarquistas, que tem sido analisada e dinamizada desde o século XIX,

revela-se reforçada nas suas potencialidades históricas, nos domínios

científico e social, a partir de várias dimensões.

Em primeiro lugar, a dicotomia que subsiste entre a cidade e o campo

chegou ao extremo de um paroxismo sem fim. As cidades, enquanto

construídos sociais gigantescos, transformaram-se progressivamente em

objectos de desintegração e segregação social, de violência, de

marginalidade social e alienação. Por outro lado, revelam-se um mundo de

miséria e de promiscuidade física e social, onde pessoas, objectos, resíduos

sólidos, líquidos e gasosos se confundem e atrofiam num labirinto que

caminha inexoravelmente para uma catástrofe ecológica (MUMFORD, 1982).

Perante o seu gigantismo, complexidade sócio-organizacional e

irreversibilidade destruidora dos aglomerados urbanos, os habitantes que

neles vivem, estando desprovidos do exercício de uma cidadania plena, não

participam, não concebem, nem planeiam, nem decidem sobre o governo e a

gestão das suas cidades.

Para a ecologia social anarquista impõe-se criar as condições sócio-

organizacionais que possibilitem extinguir progressivamente os atuais

aglomerados urbanos, de forma a tornar compatíveis as articulações e

regulações da organização dos espaços físico e social e, por conseguinte,

viabilizar as hipóteses de construção de um equilíbrio harmonioso entre o

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homem e a natureza e permitir o restabelecimento da biodiversidade

ecossistémica. As cidades devem configurar-se em comunidades

populacionais geríveis no sentido da sua auto-governação e auto-

organização. Quer em relação aos equipamentos colectivos, quer no tocante

a infra-estruturas, produção e distribuição de bens e serviços, etc..., sem

exceção, devem ser objecto de uma auto-regulação confinada à soberania

do agregado populacional urbano. Todos os aspectos económicos, sócio-

culturais e políticos estão integrados nesse processo de modo harmonioso,

estando os habitantes, das respectivas comunidades urbanas, dotados de

uma ação social inteligível e construtiva. Acima de tudo, ela é soberana em

todos os aspectos relacionados com a decisão e a participação nas múltiplas

funções e tarefas que estão envolvidas na cidadania urbana.

Essas comunidades urbanas não podem atingir uma dimensão populacional

que ponha em causa a soberania dos seus habitantes. Os princípios e as

práticas da democracia directa, implicam que as relações sociais sejam

visíveis e directas e os pressupostos relacionais de toda a organização social

não se coadunam com funções e tarefas assentes na hierarquia de uma

hipotética autoridade formal. O poder de decisão sobre toda a governação e

gestão das cidades está nas mãos dos habitantes da cidade. Indivíduos e

grupos interagem no sentido da sua liberdade específica, tendo sempre

presente que existe a liberdade dos outros e que as próprias comunidades

urbanas livres são a sua síntese genuína. As relações sociais informais

atravessam todo o tecido social urbano, submetendo as funções

coordenação e regulação de tipo formal a uma reversibilidade e rotatividade

sistemática.

Neste aspecto, certas virtualidades intrínsecas do campo que ainda

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perduram, pode-nos servir de exemplo. Para tal, basta observá-lo como

espaço potencial de recursos naturais e, por outro, como modelo hipotético

de organização social estruturado por relações e interacções sociais

baseadas no interconhecimento, na concepção, decisão e participação das

pessoas no quadro da sua vida quotidiana e comunitária. Isso, no entanto,

não obsta a que a actual realidade sócio-organizacional, económica e política

do espaço rural tenha também que sofrer uma transformação radical.

Com virtualidades específicas próprias, o espaço rural deve ser concebido e

construído num sentido sócio-organizacional autónomo e equilibrado.

Enquanto contexto particular inserido numa realidade sócio-organizacional

global só pode subsistir numa base de complementaridade e de

interdependência com o espaço urbano. As comunidades rurais não podem

ser o prolongamento lógico da estruturação unidimensional imposta pela

urbanização capitalista. Na medida em que as comunidades rurais tem

menor complexidade sócio-organizacional, só nesse capítulo se pode

diferenciar das comunidades urbanas. A auto-suficiência económica, sócio-

cultural e política traduzir-se-á inevitavelmente numa realidade semelhante

àquelas que se desenvolvem nos contextos considerados urbanos.

Em segundo lugar, a oposição que subsiste entre o Estado e as diferentes

comunidades urbanas e rurais deriva de um sistema hierárquico centralizado

e burocratizado. São relações de coordenação e de controlo dos indivíduos e

das colectividades legitimadas pelo uso da função repressiva da

jurisprudência e da coação física das instituições militar e policial.

Simultaneamente, a própria manutenção do Estado implica que o mesmo

exerça uma espoliação sistemática dos recursos humanos naturais,

financeiros e humanos que pertencem, em geral, à sociedade civil, às

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comunidades locais e regionais e, particularmente, aos indivíduos.

O Estado, para além disso, transformou-se num aparelho burocratizado e

totalitário através das suas funções de representatividade social e de

autoridade formal, no exercício tutelar das actividades políticas, sócio-

culturais e económicas. Esse facto, levou-o a distanciar-se e a oprimir a

sociedade civil que "legitimamente" dirige e representa. Tornou-se inútil e

disfuncional, mas simultaneamente demasiado perigoso, na medida em que

mantém nas suas mãos poderes discricionários absolutos que resultam na

utilização massiva de meios tecnológicos e militares sofisticados. As guerras

fomentadas pelos estados levam à destruição irracional de recursos

humanos e naturais. Elas atingem proporções inauditas, ao ponto de

revelarem-se catastróficas para a sobrevivência da própria humanidade.

Tudo isso é explicável, segundo aqueles que defendem a perpetuação do

Estado, porque os indivíduos e as respectivas comunidades não são

capazes de se auto-organizarem e auto-governarem. No sentido da

perspectiva de Hobbes, o homem transformar-se-ia em lobo do próprio

homem. Na ocorrência, os indivíduos e os grupos criaram e desenvolveram o

Estado.

É no mínimo uma posição que não se coaduna com a realidade. Hoje, os

fenómenos de desintegração e marginalidade social são genuinamente

efeitos perversos de causas que residem na função e acção do Estado.

Olhe-se para o exemplo da droga e da violência que perpassam as

sociedades actuais. A polícia, os tribunais, os serviços de saúde e educação

actuam no sentido de eliminarem e controlarem esses "flagelos" da

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sociedade. No mínimo são medidas aberrantes para um Estado e uma

sociedade que funciona nos parâmetros da lógica da racionalidade mercantil.

Se a droga e o crime são objectos de compra e venda deduzida da liberdade

dos indivíduos no espaço do mercado. Se os mesmos estão em consonância

estreita com a racionalidade dos meios e dos fins para se obterem lucros,

não se compreende porque é que o Estado e as suas instituições são

chamados a intervir nesse processo.

No fundo, a função e a acção do Estado confina-se a controlar e a reprimir

indivíduos e grupos que não pensam, não decidem, nem reflectem sobre as

suas vidas em termos autónomos e livres. O que o Estado controla e reprime

são indivíduos e grupos amputados de uma motivação assente em princípios

e práticas fundamentados na liberdade, fraternidade e na solidariedade. No

sentido amplo, a plausibilidade da erradicação hipotética da droga e do

crime, passa previamente pela destruição das suas causas: o Estado.

Em oposição a essa realidade estatal, as comunidades e colectividades de

âmbito local e regional têm capacidades e possibilidades de auto-

organização e de auto-governação superiores ao Estado. São entidades

capazes de reflectir e organizar os recursos naturais e os recursos humanos

com maior facilidade (CASTORIADIS, 1990).

Com relações sociais baseadas no interconhecimento e uma identidade com

o meio ambiente, torna-se possível produzir, distribuir e consumir bens e

serviços em termos harmoniosos. Todas as relações internas e externas

dinamizadas pelas diferentes colectividades devem ser pautadas com base

na reciprocidade e igualdade, extinguindo-se as razões da trocas baseadas

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no lucro, na opressão e exploração do homem pelo homem. Nesta assunção,

pode-se prescindir do Estado e de outras instituições, na estrita medida que

à escala espacial local, regional, nacional e transnacional, os indivíduos,

grupos e colectividades diferenciadas assumiam uma soberania plena numa

federação universal de povos e etnias.

Em terceiro lugar, os modelos de produção e de consumo centrados nos

sectores industrial e terciário tendem a destruir progressivamente as

virtualidades reais do sector agrícola e, simultaneamente, desenvolvem

assustadoramente a destruição do meio ambiente e, naturalmente, a

desintegração do tecido social através da marginalidade social e do

desemprego.

Nunca é demais referir que as causas dessa evolução radicam

essencialmente no modelo de desenvolvimento capitalista apoiado numa

racionalidade económica que se alimenta de uma competição e de uma

concorrência mercantil desenfreada. Esta lógica normativa só pode manter-

se com a produção e o consumo gigantesco de bens e serviços.

No entanto, o crescendo progressivo desse processo chegou a um

paroxismo tal que o homem, enquanto entidade produtora e consumidora de

objectos, destruiu milhares de espécies, esgotou os recursos naturais,

transformou a matéria orgânica em matéria inorgânica de forma absurda e

está, simultaneamente, a auto-destruir-se como ser humano. O risco é,

portanto, duplo. Destrói-se a Terra e os seres que nela vivem e desintegram-

se as estruturas sociais que compõem as sociedades. O retorno a um

equilíbrio entre os sectores agrícola, industrial e terciário implica que os

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modelos de produção e de consumo deixem de estar orientados e

submetidos aos imperativos do lucro, da concorrência e da competição entre

os seres humanos (GORZ, 1991). O mercado e o Estado funcionam como

entidades externas dos interesses e motivações dos indivíduos e grupos que

compõem a sociedade capitalista. São eles que decidem, em última

instância, como se produz, consome e distribui a riqueza. Ou seja, quem

trabalha, quem não trabalha. Quem é rico ou pobre. Quem detém poder ou

não.

Para os indivíduos e grupos que vivem nas actuais sociedades, torna-se

imperioso extinguir as funções e as estruturas de socialização e de

sociabilidade dos indivíduos e grupos, cuja proveniência decorre da

racionalidade económica capitalista e do Estado. A autogestão da produção,

da distribuição e o consumo de bens e serviços, estritamente identificada

com as necessidades soberanas dos indivíduos e colectividades inseridas

nos diferentes espaços locais e regionais à escala universal, revela-se,

nestas condições, cada vez mais, pertinente. A participação e a decisão dos

indivíduos e grupos em todo o processo autogestionário desenvolve-se

harmoniosamente. A democracia directa impõe-se como modelo relacional

básico, dando lugar a que todos os indivíduos e grupos tenham uma

participação e decisão efectiva em todos os aspectos do funcionamento

interno e externo das colectividades em que estão inseridos. A autogestão

torna-se uma função pacífica de socializar entre todos os membros das

diferentes colectividades, na medida em que a sua essência intrínseca apela

à criatividade, à espontaneidade, à liberdade e responsabilidade de todos os

indivíduos. Por outro lado, a autogestão de características anarquistas induz

a que persista uma identidade real entre o produtor, o consumidor e o

homem trabalhador.

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Como consequência lógica dessas hipóteses, haverá que olhar para a

natureza como a mãe de tudo aquilo que se produz e consome. A

depredação do ambiente e apropriação e utilização de bens e serviços como

objectos efémeros, como inclusivé o desperdício e o lixo que resultam das

diferentes actividades humanas terão que ser totalmente reestruturados, ou

substancialmente extintos, de forma a reencontrar o equilíbrio entre o homem

e a natureza. O ordenamento do território e a utilização do solo, os

equipamentos colectivos e as infra-estruturas, tecnologias, etc, serão sempre

expressão de um modelo de produção e de consumo que se orienta e traduz

em práticas humanas pautadas pela solidariedade e o apoio mútuo, onde

coexistem a liberdade individual e social, mas onde também a criatividade e

a responsabilidade estarão sempre presente.

Finalmente, a organização social, económica, política e cultural identificada

com os parâmetros da ecologia social anarquista terá que generalizar-se à

escala universal e estruturar-se organicamente em termos autogestionários e

federativos. Qualquer hipótese de emergência organizacional centralista ou

burocrática, neste contexto, não se afigura plausível, na medida que a força

estruturante das múltiplas colectividades, grupos e indivíduos federados nas

diferentes escalas espaciais assumem uma soberania plena. A motivação e a

identificação entre o homem e a natureza, neste âmbito, assume-se a uma

escala universal. Bens e serviços, recursos naturais, florestas, rios, mares,

etc..., fazem parte de um todo indissolúvel, que não pertence a uma

colectividade específica, mas a um legado indelével da natureza e da

comunidade universal.

Mais de qualquer outra razão e mais além de qualquer pressuposto realista

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da sociedade capitalista, é na sua essência universal e emancipação

humana que o anarquismo se fundamenta. Assim sendo, há espaço

interventivo de construção social sustentado pela auto-organização dos

indivíduos e dos grupos, com uma interacção social suficientemente capaz

de apoiar-se no interconhecimento e na democracia directa e dinamizar, por

essa via, uma auto-consciência e um auto-governo corporizados em acções

individuais e colectivas identitárias nas múltiplas colectividades que

compõem a sociedade global.

As diferentes colectividades, grupos e indivíduos localizadas aos níveis

espaciais local, regional, nacional e transnacional, opor-se-ão ao centralismo

burocrático e repressivo do Estado-Nação e do imperialismo das entidades

estatais supra-nacionais. Elas têm virtualidades que podem-se tornar reais.

Através dos indivíduos, grupos e movimentos sociais podem-se difundir

práticas, teorias, manifestações, etc..., que decorrem de um projecto de

sociedade anarquista. Mais do que nunca, as hipóteses de auto-organização

e auto-reflexão no sentido da libertação da espécie humana impõem-se.

Na medida em que toda a acção individual e colectiva inserida nos espaços

locais, regionais, nacionais e transnacionais são progressivamente mais

interdependentes e complementares, a construção de sínteses no âmbito do

espaço mundial revela-se fulcral. Essa virtualidade, tantas vezes considerada

utópica, pode tornar-se real. Hoje, podermos pensar e praticar a anarquia

como algo natural e do domínio do possível. É pacífico começarmos a

construirmos um movimento social suficientemente forte de forma a darmos

início à extinção da sociedade em que persistimos. Para isso, basta aprender

com o passado, olhar para o presente e lutar pela construção de uma

sociedade futura baseada nos princípios e práticas da democracia directa,

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fraternidade, igualdade, solidariedade e liberdade.

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João Freire

CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE ECOLOGIA SOCIAL E SUAS

PERSPECTIVAS POLÍTICAS

Realizou-se em Lisboa nos dias 26, 27 e 28 de Agosto de 1998 um encontro

internacional subordinado à temática que figura no título deste texto: a

ecologia social, as perspectivas políticas que esta teoria pode abrir e a

conceptualização de um municipalismo marcado pelos valores do

libertarismo e pelas referências ideológicas do anarquismo.

A iniciativa desta conferência partiu dos libertários de Montreal e do Instituto

de Ecologia Social de Plainfield, no Estado norte-americano do Vermont,

onde ensina Murray Bookchin, tendo sido apoiada em Lisboa por um grupo

informal de pessoas que puderam contar com uma base logística no centro

de pesquisa Socius, do Instituto Superior de Economia e Gestão da

Universidade Técnica de Lisboa. Na realidade, para dar o devido

reconhecimento às contribuições de cada um, deve confessar-se que o

sucesso desta realização caberá, na sua maior parte aos esforços de Dimitri

Roussopoulos, no plano americano e internacional, e de Carvalho Ferreira,

no plano da organização em Lisboa. De resto, no próximo ano, a conferência

prolongar-se-á com um outro encontro internacional em Vermont, que deverá

desenvolver e aprofundar as ideias e perspectivas entreabertas em Lisboa.

Nos meses e semanas que antecederam o evento, assistiu-se em alguns

meios do militantismo anarquista a uma incompreensível campanha de

imprensa para condenar politicamente a iniciativa. Tal atitude partiu dos

anarquistas espanhóis da CNT e da FAI, contou em Lisboa com o olho e a

mão do grupo "Acção Directa" e utilizou os sempre desagradáveis e

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condenáveis métodos de caluniar pessoas, de fazer especulação afectiva e

da veiculação de algumas inverdades.

É natural que aqueles anarquistas que continuam a defender, contra ventos e

marés, os princípios do anti-estatismo, do sindicalismo de de acção directa e

da revolução insurrecionalista como pontos de doutrina absolutamente

indiscutíveis se manifestem contra uma orientação ecologista libertária que

se baseia mais no interclassismo, numa gestão alternativa territorialista e não

desdenha a acção eleitoral no plano comunal ou municipal. É natural,

embora fosse mais interessante e saudável que se dispuzessem a discutir

racionalmente os vários temas e argumentos em causa. Mas já causa

desgosto constatar como, numa época em que o anarquismo militante não

tem qualquer peso nem reconhecimento social, em nenhum país ou região

do mundo, existem militantes aferrados ao papel de sacerdotes guardiães

duma ortodoxia cuja principal missão consiste precisamente em combater os

ténues ensaios de discussão e experimentação de alternativas que possam

remediar tal estado de coisas e descobrir modos de actualizar e melhorar a

postura desta filosofia política nas sociedades existentes nos finais do Século

XX, tão diferentes já daquelas em que Proudhon e Bakunin viveram e para

as quais congeminaram respostas progressistas e emancipadoras.

Tirando estes àpartes, a conferência revelou alguns motivos de interesse,

mas também dificuldades e fragilidades que não seria bom esconder. Com

efeito, por um lado, uma certa síndrome de pecado, desvio ou cisão pairou

sobre parte dos debates, revelando que se tratava, antes do mais, de um

conclave de anarquistas que estavam ensaiando terrenos de alguma

infracção ideológica. Neste aspecto, ficaram frustrados aqueles que haviam

tomado a iniciativa pelo seu valor facial, isto é, que esperavam da ecologia

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social mais, ou outra coisa, do que uma variação nova sobre velhos temas

anárquicos.

No primeiro dia, os trabalhos começaram com as boas vindas de Carvalho

Ferreira aos cerca de sessenta participantes presentes, a que se seguiu uma

longa intervenção de Janet Biehl sobre o tema do encontro: "The Politics of

Social Ecology: Libertarian Municipalism". Tratou-se duma exposição dos

pontos essenciais da filosofia política desenvolvida há mais de vinte anos por

Murray Bookchin, através da palavra e do texto de uma (aparentemente) sua

fiel discípula e próxima colaboradora. Chaia Heller (também de Vermont,

USA), Roger Jacobs (de Hasselt, Bélgica), Eirik Eigland (de Porsgunn,

Noruega), Dimitri Roussopoulos e Maria Magos Jorge compuzeram o painel

que, ainda nessa manhã, discutiu um ou outro aspecto particular do

pensamento de Bookchin. E da parte da tarde, novas comunicações

apresentadas por Chaia Heller e pelo canadiano do Quebeque Marcel

Sevigny prolongaram este tipo de reflexão. Na realidade, durante todo este

primeiro dia da conferência, foram efectivamente as ideias de Bookchin que

estiveram postas a debate, questionadas sobretudo pelas teses do

anarquismo mais tradicional, como por exemplo a questão da defesa das

situações de influência social hipoteticamente alcançadas, perante o contra-

ataque das forças e dos interesses sociais adversos. No final da jornada,

pôde ver-se um vídeo contendo uma entrevista com Murray Bookchin,

impossibilitado de deslocar-se à Europa por motivos de saúde.

No segundo dia, os trabalhos decorreram basicamente em três workshops

temáticos. No grande auditório – onde se dispunha de um sistema de

tradução simultânea inglês-espanhol-português – o tema era "Problemas

sociais e movimentos sociais urbanos". Na parte da manhã aí apresentaram

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comunicações o australiano Hamish Alcorn, o espanhol Garcia Rey, e os

portugueses José Tavares e José Luís Félix. Garcia falou sobre a

necessidade de uma perspectiva territorial nos projectos de emancipação

social, sobre a importância dos cenários urbano-territoriais na crise dos

sistemas actuais e sobre a importância dos movimentos sociais em torno de

práticas de resistência aos processos de mundialização e de imposição dum

pensamento único simultâneo ao desenvolvimento de iniciativas de

autogestão territorial. Tavares apresentou uma comunicação sobre "O

trabalho e a sua ultrapassagem" e Félix interveio sobre "Processos de auto-

organização em meio urbano", enfatizando as possibilidades existentes para

formas de participação, mau grado o clima existente adverso à criatividade e

à iniciativa solidária.

Na parte da tarde, prosseguiram os debates nesta secção com uma

comunicação do sociólogo espanhol Miguel Martinez sobre "A invenção

estratégica: auto-planeamento popular e autogestão ecológica urbana", onde

o autor apontou os limites do chamado planeamento estratégico no

urbanismo, evidenciando as dimensões não planificáveis, para propor outras

categorias adequadas como a de "invenção estratégica" na qual a acção

precede ou é simultânea à reflexão. A esta se seguiu a comunicação dos

turcos Sureya Evren e Rahmi Ogdul e, por fim, a de Carvalho Ferreira sobre

"Tendências da marginalidade social e dos movimentos sociais no contexto

urbano". Na secção "Cultura e vida social no Século XIX: o local e o global",

da parte da manhã, puderam escutar-se as seguintes comunicações: de

António Cândido Franco, acerca do despovoamento e desertificação do Sul

de Portugal, enfocada na problemática das relações entre o mundo urbano e

rural; do uruguaio Alberto Villareal; de Carlos Sousa, presidente da Câmara

Municipal de Palmela, sobre a participação popular na gestão municipal; do

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advogado Alfredo Gaspar, sobre o modo como os municípios estão

integrados na ordem jurídica constitucional, concluindo que a tutela

administrativa dos mesmos não é compatível com o conceito de

municipalismo libertário; e do sociólogo António Pedro Dores sobre "As

prisões e a acção cívica", questionando as actuais políticas prisionais (em

relação à droga e à imigração clandestina, por exemplo) que, mesmo se

marcadas por preocupações humanistas, podem legitimar práticas

estigmatizantes e descuidadas com os direitos humanos, preocupando-se

com este "lado fechado" da vida colectiva urbana.

À tarde, a discussão do tema foi prosseguida pelo americano Bob Spivey, por

Mário Rui Pinto, com uma exposição sobre as diferenças entre o contexto

onde emergiu o "velho anarquismo" e aquele em que hoje nos encontramos,

que apela à invenção de um "novo anarquismo", por Mimmo Pucciarelli, que

igualmente acentuou as diferenças entre os velhos e os novos anarquistas,

mas sobretudo no plano das suas respectivas inserções sociais; pelo

canadiano anglófono Frank Harrison, que apresentou uma comunicação

sobre os grandes pontos de contacto existentes entre os pensamentos de

Kropotkin e de Bookchin, tais como o papel do território e da comunidade e

os conceitos de evolução/re-volução; e, por último, por Ilídio Santos, com

uma intervenção sobre "Socialização, conformidade, desvio", na qual foram

postas em destaque as actuais "culturas psicotizantes" e a "função hipnótica

e narcótica das máquinas de imagens".

"Marx, como Bookchin tem reiterado desde o seu estimulante Escuta

Marxista!, aceitou a estrutura produtiva, baseada em preceitos hierárquicos.

Consequentemente, a sua solução política assentava na hierarquia; e

quando os marxistas se apoderaram finalmente do poder político (em

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sociedades onde Marx nunca sonhara que tal poderia acontecer) procuraram

simplesmente reproduzir a estrutura do capitalismo num sistema de

propriedade estatal. O resultado, como vimos nas duas últimas décadas, foi

uma devastação do ambiente ainda mais excessiva e horrível do que a do

capitalismo no Ocidente."

Frank Harrison

in Bookchin e Kropotkin: alguns temas intelectuais e organizativos comuns

Na secção "A economia das pequenas e das grandes cidades" foram

apresentadas e discutidas quatro comunicações: os noruegueses Eiglad e

Legard expuseram os fundamentos do municipalismo libertário, num registo

sobretudo político e ideológico; em seguida o espanhol Carlos Ramos

interveio sobre "O municipalismo libertário, alternativa ao municipalismo

capitalista" enfatizando o quadro político democrático existente em países

como a Espanha actual, a rica experiência de vinte anos de "associações de

vizinhos", a necessidade de "tradução" dos orçamentos municipais para os

tornar compre-ensíveis para o cidadão comum, as possibilidades existentes

de oposição – através da mobilização popular – à gestão capitalista dos

municípios (tanto os geridos por partidos de direita como por partidos de

esquerda), o conceito de movimento social municipal e, por último, a

necessidade de estruturar formas de participação política municipal mais

avançadas, estáveis e eficazes, embora sempre assentes em redes de

associações populares de base, de natureza diversa mas onde a

participação directa dos cidadãos seja uma realidade; o americano Dan

Chordokoff relatou a experiência de mobilização popular dum bairro pobre de

Nova Iorque com cerca de 30.000 habitantes, desde os anos 70, assente na

colaboração estabelecida entre uma centena de associações populares de

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base influenciadas por diversos grupos e ideologias políticas, mas que foram

capazes de estruturar uma economia local a partir da inventariação de

recursos e necessidades – de alojamentos, creches, escolas, clínicas e

centros de saúde, emprego, marginalidade, etc. – e da mobilização das

pessoas comuns, embora tal experiência tivesse, no entender do autor,

demonstrado duas insuficiências importantes da acção desenvolvida, a

saber, a dependência local da "grande economia" (a que determina os

preços das casas ou o desemprego, por exemplo), e a incapacidade em

apresentar alternativas políticas credíveis na altura das eleições para os

órgãos do poder municipal; por último, o escossês Mike Small falou sobre o

caso histórico do urbanista Patrick Geddes e da acção desenvolvida em

Edimburgo nos finais do século passado tentando conjugar iniciativas

populares de habitação, educação e trabalho, e articulando as identidades de

base geográfica como os "regionalismos" às práticas políticas e cívicas da

democracia directa, que estão na base do moderno pensamento da ecologia

social.

Este segundo dia encerrou com uma sessão plenária na qual os

coordenadores dos diferentes seminários apresentaram sínteses das

comunicações e dos debates havidos.

No dia 28 os trabalhos decorreram de novo em plenário permanente (com o

inestimável benefício da tradução simultânea). A parte da manhã foi

consagrada à apresentação de relatórios das situações e experiências locais

de ecologia social relativos a dezasseis cidades: Amsterdão, Brisbane

(Austrália), Burlington e Plainfield (no Vermont, USA), Lyon, Montevideo,

Salónica, Montreal, Madrid, Málaga, Valência, Porsgunn (na Noruega),

Grafenau (na Alemanha), Antuérpia, Istambul e Edimburgo.

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"O ideal tecnológico-racional, que guia a evolução brutal da nossa

sociedade, cria um divórcio, cada vez mais pronunciado, entre uma vida

profissional impessoal, submetida unicamente ao critério da eficácia, e uma

vida emotiva extremamente restrita quanto à sua extensão e empobrecida

quanto à sua intensidade. A maior parte dos nossos contemporâneos vive na

fascinação de um optimismo tecnológico falso e de um pseudo-racionalismo

insensato que servem de justificação e de disfarce para as angústias – bem

reais desta vez – no que respeita à incerteza em relação ao futuro."

Ilídio dos Santos

in Socialização, conformidade e desvio

À tarde, foram discutidos mais em particular dois temas cuja importância

havia ressaltado dos relatos feitos das várias experiências locais: as relações

entre as organizações populares de bairro ou vizinhança e as estruturas

oficiais do poder municipal; e as experiências, mais ou menos frustradas, de

candidaturas a eleições municipais por listas ou movimentos ecologistas,

alternativos e libertários.

Carvalho Ferreira e Dan Chordokoff encerraram os trabalhos da conferência,

que, como se disse, irá ter continuação no Verão de 1999 em Vermont e para

a preparação da qual foram designadas várias pessoas que compõem agora

a respectiva comissão organizadora internacional.

A Batalha - VI Série, Ano XXIV, Julho – Agosto, 1998. #170

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Mimmo Pucciarelli

QUE PRÁTICA LIBERTÁRIA NA CIDADE DOS NOSSOS DIAS?

Entre 26 e 28 de Agosto realizou-se em Lisboa uma conferência

internacional sobre a ecologia social e as suas perspectivas políticas, o

municipalismo libertário. Este conferência foi organizada por uma comissão

constituída por várias pessoas activas no movimento libertário internacional,

apoiadas por centros de estudos libertários (como o de Milão ou a Fundação

Salvador Ségui, de Madrid), por casas editoras, como a Black Rose Books

(gostaria de precisar que se trata de uma das mais antigas e activas editoras

libertárias actuais, com sede em Montréal) e a Trotzem verlag / Scharwz

faden, da Alemanha, o Instituto de Ecologia Social, de Vermont, o Instituto

por uma Eco-sociedade, de Montréal, ou o colectivo Los Arenalejos, de

Espanha. O SOCIUS, centro de investigação em sociologia económica e das

organizações, dirigido por José Maria Carvalho Ferreira, encarregou-se de

forma admirável da organização prática destes três dias, enfim, a conferência

teve ainda o apoio do departamento de Sociologia do Instituto Superior de

Ciências do Trabalho e da Empresa, de Lisboa, entre outras instituições

locais.

Cerca de cento e trinta pessoas vieram assistir a estas jornadas.

Deslocaram-se de vários países europeus (Alemanha, Espanha, Portugal,

França, Holanda, Bélgica, Noruega, Escócia), da Turquia, da América Latina,

dos Estados Unidos e do Canadá. Alguns representavam grupos locais ou

organizações nacionais (por exemplo, da CGT espanhola estiveram

presentes cerca de uma vintena de militantes), mas tantos outros aí

estiveram a título individual.

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A ideia desta conferência, segundo o que pude entender da leitura do

manifesto publicado por vários jornais libertários e ecologistas, era reflectir

sobre a questão da ecologia social e sobre aquela que parece ser a sua

implicação prática e política mais provável, o municipalismo libertário.

Entendo que com esta conferência se quis, por um lado, prestar homenagem

à obra de Murray Bookchin, inspirador destes dois conceitos que ajudaram

os libertários, a nível internacional, a enfrentar a problemática ecologista nos

anos 70 e 80; por outro lado, quis-se igualmente procurar levar mais longe a

reflexão sobre este tema, levando em conta o livro que Janet Biehl publicou

recentemente e que retoma a ideia do municipalismo libertário de Bookchin,

ampliando-o e estruturando-o a partir do conhecimento de algumas

experiências que várias pessoas e grupos têm levado à prática, deste e

daquele lado, desde há uma vintena de anos. Para dizer a verdade, tive a

impressão de que se alguns dos organizadores do encontro tiveram, antes

do mais, a ideia de reunir um grande número de libertários, a nível

internacional, para uma reflexão conjunta, outros houve que desejavam que

no final da conferência se tivesse podido estabelecer os fundamentos de

uma rede dedicada ao municipalismo libertário, afinal criar uma organização

específica.

Durante os três dias do encontro, nas belas instalações do Instituto Superior

de Economia e Gestão, em Lisboa, e graças à tradução simultânea a

funcionar numa das salas, foi possível assistir a debates, se não ricos pelo

menos bastante prometedores. Com efeito, à parte a diferença que já referi

nos propósitos dos membros da organização, diferença que se tornou

perceptível também nas intervenções de alguns dos participantes, deve

dizer-se que o conjunto de pessoas que interveio exprimiu uma mesma

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preocupação no que concerne ao que podemos considerar a preocupação

quanto a uma intervenção política libertária na cidade. Se alguns o fizeram a

partir de um ponto de vista "ideológico", outros trouxeram-nos exemplos

concretos que nos mostraram a actualidade desta questão, e mesmo, de

certa maneira, a urgência de a enfrentar, para responder ao mesmo tempo a

uma necessidade do movimento e àqueles e aquelas que querem participar

na via política, nos assuntos de uma outra cidade, ou se preferem, de um

modo alternativo.

No final da conferência, como lá diria Agustin Garcia Calvo, "estávamos

todos um pouco mais ignorantes", pois se as nossas intenções nos

mostraram que, por um lado, no movimento libertário somos capazes de

enfrentar cada vez mais serenamente assuntos da delicadeza de uma

intervenção política na cidade, como seja a própria participação em eleições

locais, por outro lado constatamos que ainda não temos do nosso lado a

resolução ou, se preferirem, todas as respostas práticas e teóricas a

questões como estas. É certo que na assistência estavam, por exemplo,

jovens companheiros aparentemente muito activos na sua cidade ou região e

que não tinham dúvidas quanto à eficácia do "municipalismo libertário e das

suas últimas consequências, ou seja, a revolução social", mas havia também

quem, como eu próprio, procura desde há muito questionar os conceitos

desse anarquismo clássico de que nos servimos ainda para apreender a

realidade do ano 2000.

Na verdade, desde que li as obras de Bookchin, e que com o Atelier de

Création Libertaire contribuímos para o seu conhecimento em França,

sempre pensei que a ecologia social e o municipalismo libertário poderiam

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ser um dos meios para avançar nas nossas reflexões e nas nossas práticas.

No entanto, nesta última conferência a que assisti, voltei a assinalar "uma

lenta evolução" do pensamento libertário face ao que foram os propósitos

definidos já há uma quinzena de anos nos nossos meios militantes "puros e

duros", e pude também constatar que nos faz falta, absolutamente, um

trabalho de reactualização dos conceitos como revolução, antiestatismo,

antiparlamentarismo, luta de classes, movimento de massas, anarco-

sindicalismo, comunismo libertário ou a própria anarquia... Mas atenção, não

se trata de retomar aqui o velho discurso sobre o tema mítico que opunha

ideologicamente os "revolucionários" e os "reformistas", mas de confrontar as

nossas práticas quotidianas com as nossas ideias, e de construir à sua volta

um corpus que não atire para um beco tudo o que se passou no mundo nos

últimos trinta anos.

Enfim, e para lá de todas as críticas que sempre é possível fazer neste tipo

de iniciativas (por exemplo, a pouca representação daqueles grupos que têm

uma real prática local, ou a pouca presença de países como a Itália, a

Inglaterra ou os países do Leste europeu, para não falar já de África ou da

Ásia, ou ainda esta ânsia de avançar para uma estruturação formal de um

movimento, sem levar em conta o que é que ele podia representar a um nível

real, e os debates internos que continuam a sofrer de personalismo e por

vezes de dogmatismo...), pareceu-me ter sido uma iniciativa bem

conseguida.

De facto, depois de três dias de debate e de algumas questões importantes

levantadas por parte da assembleia (como por exemplo a defesa armada de

uma hipotética municipalidade libertária atacada pelos seus inimigos...), os

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participantes acordaram numa nova reunião, a realizar como previsto em

Vermont, nos Estados Unidos, para uma segunda conferência durante o

próximo verão de 1999. Até lá, irão promover a leitura do livro de Janet Biehl

sobre o municipalismo libertário (de que existe uma edição alemã, uma

espanhola e a francesa publicada pela Eco-sociedade em Montréal,

enquanto se prevê a sua próxima tradução em Grego e em Italiano), em

debates, conferências locais e, se possível, encontros que permitam

continuar o debate sobre estas questões, por exemplo a criação de grupos

de reflexão da hoc... o que acabou por ser a razão da minha participação

pessoal nesta conferência.

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André Gorz

A IDEOLOGIA SOCIAL DO CARRO A MOTOR

O que tem de pior nos carros é serem como castelos ou mansões à beira do

mar: bens luxuosos inventados para o prazer exclusivo de uma minoria muito

rica, os quais em concepção e natureza nunca foram direcionados para o

povo. Ao contrário do aspirador de pó, do rádio, ou da bicicleta, que retêm

seu valor de uso quando todos possuem um, o carro, como uma mansão à

beira do mar, é somente desejável e útil a partir do momento que as massas

não têm um. Por isso, tanto em concepção quanto na sua finalidade original

o carro é um bem de luxo. E a essência do luxo é a de que ele não pode ser

democratizado. Se todos puderem ter o luxo, ninguém obtém as vantagens

dele. Do contrário, todos logram, enganam e frustram os demais, e é logrado,

enganado e frustrado por sua vez.

Isto é de muitíssimo conhecimento comum no caso das mansões à beira

mar. Nenhum político ousou ainda reivindicar que democratizar o direito às

férias significasse uma mansão com praia particular para cada família. Todos

compreendem que se cada uma entre 13 ou 14 milhões de famílias

devessem usar somente 10 metros da costa, tomaria-se 140.000km de praia

para que todos tivessem sua parte! Para dar a todos sua parte teria-se que

cortar as praias em tiras pequenas - ou espremer tão fortemente as mansões

- que seu valor de uso seria nulo e sua vantagem sobre um complexo

hoteleiro desapareceria. De fato, a democratização do acesso às praias

aponta a somente uma solução: a solução coletivista. E esta solução está

necessariamente em guerra com o luxo da praia particular, que é um

privilégio que uma minoria pequena toma como seu direito às custas de

todos.

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Agora, por que aquilo que é perfeitamente óbvio no caso das praias não é

geralmente visto da mesma forma no caso do transporte? Como a casa de

praia, um carro também não ocupa espaço escasso? Não priva os outros

que usam as estradas (pedestres, ciclistas, motoristas de ônibus, etal.)? Não

perde seu valor de uso quando todos usam os seus próprios? No entanto há

uma abundância de políticos que insistem que cada família tem o direito ao

menos a um carro e que é até encargo do "governo" tornar possível que

todos possam estacionar convenientemente, dirijam facilmente na cidade, e

possam viajar no feriado ao mesmo tempo que todos outros, indo a 70 mph

nas estradas, às estações de férias.

A monstruosidade deste absurdo demagógico é imediatamente aparente, no

entanto, mesmo a esquerda não desdém de recorrer a ela. Por que o carro é

tratado como uma vaca sagrada? Por que, ao contrário de outros bens

"privados", ele não é reconhecido como um luxo anti-social? A resposta deve

ser procurada nos dois aspectos seguintes da atividade de dirigir:

A massificação do automóvel efetua um triunfo absoluto do ideologia

burguesa no nível da vida diária. Dá e sustenta em todos a ilusão de que

cada indivíduo pode procurar o seu próprio benefício às custas de todos os

demais. Leva ao egoísmo cruel e agressivo do motorista que em todos os

momentos está figurativamente matando os "outros", que aparecem

meramente como obstáculos físicos à sua velocidade. Este egoísmo

competidor e agressivo marca a chegada do comportamento universal

burguês, e tem existido desde que dirigir tornou-se lugar comum. ("você

nunca terá o socialismo com aquele tipo de pessoas", um amigo alemão

ocidental me disse, triste ao ver o espetáculo do tráfego de Paris).

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O automóvel é o exemplo paradoxal de um objeto luxuoso que tem sido

desvalorizado por sua própria propagação. Mas esta desvalorização prática

não foi seguida ainda por uma desvalorização ideológica. O mito do prazer e

benefício do carro persiste, embora se o transporte de massa fosse

difundido, sua dominação seria golpeada. A persistência deste mito é

explicado facilmente. A propagação do carro particular deslocou o transporte

de massa e alterou o planejamento da cidade e da habitação de tal maneira

que transfere ao carro o exercício de funções que sua própria propagação

tornou necessárias. Uma revolução ideológica ("cultural ") seria necessária

para quebrar este círculo. Obviamente não se deve esperar isto da classe

dirigente (direita ou esquerda).

Permita-nos olhar mais de perto agora estes dois pontos.

Quando o carro foi inventado, ele o foi para prover poucos dos muito ricos

com um privilégio completamente sem precedentes: viajar muito mais

rapidamente do que todos os demais. Ninguém até então tinha sonhado com

isso. A velocidade de todas as carroças era essencialmente a mesma, fosse

você rico ou pobre. As carruagens dos ricos não eram mais velozes do que

as carroças dos camponeses, e trens carregavam todos na mesma

velocidade (não possuíam velocidades diferentes até eles começarem a

competir com o automóvel e o avião). Assim, até a virada do século, a elite

não viajava em uma velocidade diferente do povo. O carro a motor iria mudar

tudo isto. Pela primeira vez as diferenças de classe foram estendidas à

velocidade e aos meios de transporte.

Este meio de transporte no início parecia inacessível às massas - ele era

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muito diferente dos meios de transporte comuns. Não havia nenhuma

comparação entre o carro a motor e os outros: o bonde, o trem, a bicicleta,

ou a carroça. Seres excepcionais saíam em veículos com auto-propulsão

que pesavam pelo menos uma tonelada e cujos órgãos mecânicos

extremamente complicados eram tão misteriosos quanto escondidos das

vistas. Um aspecto importante do mito do automóvel é que pela primeira vez

as pessoas andavam em veículos particulares cujos mecanismos de

funcionamento eram completamente desconhecidos deles, e cuja

manutenção e alimentação tiveram que confiar a especialistas. Aqui está o

paradoxo do automóvel: parece conferir aos seus proprietários liberdade

ilimitada, permitindo que viajem quando e a onde quiserem em uma

velocidade igual ou maior que a do trem. Mas de fato, esta aparência de

independência tem por debaixo uma dependência radical. Ao contrário do

cavaleiro, do carroceiro, ou do ciclista, o motorista iria depender para suprir

combustível, assim como para o menor tipo de reparo, dos negociantes e

dos especialistas em motores, lubrificação e ignição, e da possibilidade de

troca das peças. Ao contrário de todos os proprietários anteriores de meios

de locomoção, o relacionamento do motorista com seu veículo viria a ser

aquele do usuário e consumidor - e não do proprietário e do mestre. Este

veículo, em outras palavras, obrigaria o proprietário a consumir e usar uma

gama de serviços comerciais e produtos industriais que somente poderiam

ser fornecidos por um terceiro. A independência aparente do proprietário do

automóvel apenas escondia a dependência radical real.

Os magnatas do petróleo foram os primeiros a perceber o ganho que poderia

ser extraído da distribuição em escala do carro a motor. Se as pessoas

pudessem ser induzidas a viajar em carros, eles poderiam vender o

combustível necessário para movê-los. Pela primeira vez na história, as

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pessoas tornar-se-iam dependentes de uma fonte comercial de energia para

sua locomoção. Haveriam tantos clientes para a indústria de petróleo quanto

houvessem motoristas - e uma vez que haveriam tantos motoristas quanto

houvessem famílias, a população inteira se transformaria em cliente dos

comerciantes de petróleo. O sonho de todo capitalista estava a ponto de se

realizar. Todos iriam depender para suas necessidades diárias de um produto

que uma única indústria possuía em monopólio.

Tudo que se deveria fazer era deixar a população dirigir carros. Pouca

persuasão seria necessária. Seria suficiente baixar o preço do carro usando

a produção em massa e a linha de montagem. As pessoas atropelariam

umas as outras para comprá-lo. Correriam sem perceber que estavam sendo

conduzidas pelo nariz. O que, de fato, a indústria do automóvel lhes

ofereceu? Apenas isto: "de agora em diante, como a nobreza e a burguesia,

você também terá o privilégio de dirigir tão rápido quanto qualquer um. Em

uma sociedade de carro a motor o privilégio da elite é tornado disponível a

você".

As pessoas se apressaram para comprar carros até que, quando a classe

trabalhadora começou a os comprar também, os motoristas perceberam que

haviam sido enganados. Tinha sido prometido a eles um privilégio de

burgueses, tinham entrado em débito para adquiri-lo, e agora viam que

qualquer um poderia também obter um. Qual é o gosto de um privilégio se

todos puderem o ter? É um jogo de tolo. Pior, ele coloca todos em posição

antagônica contra todos. A paralisação geral é criada por um engarrafamento

geral. Quando todos reivindicam o direito de dirigir na velocidade privilegiada

da burguesia, tudo pára, e a velocidade do tráfego da cidade cai

vertiginosamente - em Boston como em Paris, Roma, ou Londres - abaixo

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daquele da carroça; no horário do rush a velocidade média nas estradas

abertas cai abaixo da velocidade de uma bicicleta.

Nada ajuda. Todas as soluções foram tentadas. Todas elas terminam

piorando as coisas. Não importa se elas aumentam o número de vias

expressas, túneis, elevados, estradas de 16 pistas e estradas com pedágio

na cidade, o resultado é sempre o mesmo. Quanto mais estradas a serviço,

mais os carros as obstruem, e o tráfego da cidade torna-se mais

paralisantemente congestionado. Enquanto houverem cidades, o problema

permanecerá sem solução. Não importa quão larga e rápida uma

superhighway seja, a velocidade na qual os veículos podem sair dela para

entrar na cidade não pode ser maior do que a velocidade média nas ruas da

cidade. Enquanto a velocidade média em Paris é 10 a 20 kmh, dependendo

da hora, ninguém poderá sair delas em torno e na capital a mais do que 10 a

20 kmh.

O mesmo é verdadeiro para todas as cidades. É impossível dirigir a mais do

que uma média de 20kmh na embaraçada rede de ruas, de avenidas, e de

bulevares que caracterizam as cidades tradicionais. A introdução de veículos

mais rápidos inevitavelmente atrapalha o tráfego da cidade, causando

gargalos - e por fim uma paralisação completa.

Se o carro deve prevalecer, há ainda uma solução: livre-se das cidades. Isto

é, enfileire-os por centenas de milhas ao longo de enormes estradas,

fazendo delas subúrbios de estradas. Isto é o que está sendo feito nos

Estados Unidos. Ivan Illich mostra a conseqüência deste modo: "O

americano típico devota mais de 1500 horas no ano (que são 30 horas por

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semana, ou 4 horas por dia, incluindo domingos) a seu carro. Isto inclui o

tempo gasto atrás do volante, andando e parado, as horas de trabalho para

pagar por ele e para pagar pelo combustível, pneus, pedágios, seguro,

bilhetes e taxas. Deste modo ele toma deste americano 1500 horas para

andar 6000 milhas (no curso de um ano). Três milhas e meia custam-lhe uma

hora. Nos países que não têm uma indústria do transporte, as pessoas

viajam exatamente nesta velocidade a pé, com a vantagem que podem ir

onde quiserem e de não estarem restritas às estradas de asfalto".

É verdade, Illich aponta, que em países não-industrializados a viagem usa

somente 3 a 8% do tempo livre da pessoa (que é aproximadamente duas a

seis horas na semana). Assim uma pessoa a pé anda tantas milhas em uma

hora gasta em viagem quanto uma pessoa em um carro, mas devota 5 a 10

vezes menos tempo na viagem. Moral: Quanto mais difundidos veículos

rápidos estão dentro de uma sociedade, mais tempo - a partir de um

determinado ponto - as pessoas gastarão e perderão viajando. Isto é um fato

matemático.

A razão? Nós acabamos de vê-la: As cidades foram divididas em infinitos

subúrbios de estrada, porque esta era a única maneira de evitar o

congestionamento em centros residenciais. Mas o lado oculto desta solução

é óbvio: finalmente as pessoas não podem se deslocar convenientemente

porque estão distantes de tudo. Para construir espaço para os carros, as

distâncias foram aumentadas. As pessoas vivem longe de seu trabalho,

longe da escola, longe do supermercado - que requer então um segundo

carro para que as compras possam ser feitas e para as crianças irem à

escola. Passeios? Fora da questão. Amigos? Há os vizinhos... e só. Na

análise final, o carro desperdiça mais tempo do que economiza e cria mais

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distâncias do que supera. Naturalmente, você pode ir ao trabalho a 60 mph,

mas isto porque você vive a 30 milhas de seu trabalho e está disposto a dar

meia hora às últimas 6 milhas. Somando tudo: "uma boa parte do trabalho

diário é gasto para pagar pela viagem necessária para ir ao trabalho". (Ivan

Illich).

Talvez você esteja dizendo, "mas ao menos desta maneira você pode

escapar do inferno da cidade após o fim do dia de trabalho". Lá nós estamos,

agora nós sabemos: "a cidade", a grande cidade que por gerações foi

considerada uma maravilha, o único lugar que vale a pena viver, é

considerada agora um "inferno". Todos querem escapar dela para viver no

campo. Por que esta reversão? Por uma única razão. O carro fez a cidade

grande inabitável. A fez fedorenta, barulhenta, sufocante, empoeirada,

congestionada, tão congestionada que ninguém quer sair mais de tardinha.

Assim, uma vez que os carros mataram a cidade, nós necessitamos carros

mais rápidos para fugir em superestradas para os subúrbios que estão ainda

mais distantes. Que argumento circular impecável: dê-nos mais carros de

modo que nós possamos escapar da destruição causada pelos carros.

De um artigo luxuoso e uma marca de privilégio, o carro transformou-se

assim numa necessidade vital. Você tem que ter um para escapar do inferno

urbano dos carros. A indústria capitalista ganhou assim o jogo: o supérfluo

tornou-se necessário. Não há mais a necessidade de persuadir as pessoas

de quererem um carro; sua necessidade é um fato da vida. É verdadeiro que

alguém possa ter suas dúvidas ao prestar atenção à fuga motorizada ao

longo das estradas do êxodo. Entre 8 e 9:30 da manhã., entre 5:30 e 7 da

tarde, e em fins de semana por cinco ou seis horas as rotas de fuga se

prolongam nas procissões de para-choque-à-para-choque que vão (no

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máximo) à velocidade de um ciclista e em uma nuvem densa de emanações

da gasolina. O que sobra das vantagens do carro? O que é deixado quando,

inevitavelmente, a velocidade superior nas estradas é limitada exatamente

pela velocidade do carro mais lento?

Nítido suficiente. Após ter matado a cidade, o carro está matando o carro.

Prometendo a todos poderem andar mais rapidamente, a indústria do

automóvel termina com o resultado previsível de que todos tem que andar

tão lentamente quanto o mais lento, em uma velocidade determinada pelas

leis simples da dinâmica dos fluidos. Pior: sendo inventado para permitir que

seu proprietário vá a onde deseja, na velocidade e tempo que deseja, o carro

transforma-se, de todos os veículos, no mais servil, perigoso, não

dependente e incômodo. Mesmo se você deixa uma extravagante

quantidade de tempo, você nunca sabe quando os gargalos o deixarão

chegar lá. Você está limitado à estrada tão inexoravelmente quanto o trem a

seus trilhos. Não mais do que o viajante de trem, pode você parar em um

impulso, e como o trem você deve ir em uma velocidade decidida por outra

pessoa. Concluindo, o carro não tem nenhuma das vantagens do trem e

possui todas as suas desvantagens, mais algumas próprias: vibração,

espaço apertado, o perigo dos acidentes, o esforço necessário para dirigi-lo.

No entanto, você pode dizer, as pessoas não tomam trem. Claro! Como

poderiam? Você já tentou alguma vez ir de Boston a New York de trem? Ou

de Ivry a Treport? Ou de Garches a Fountainebleau? Ou de Colombes a

l'Isle-Adam? Você tentou em um sábado ou domingo de verão? Bem, então

tente e boa sorte! Você observará que o capitalismo do automóvel pensou

em tudo. Tão logo o carro matou o carro, ele fez com que as alternativas

desaparecessem, tornando compulsório, deste modo, o carro. Assim,

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primeiramente o estado capitalista permitiu que as conexões de trilho entre

as cidades e o campo circunvizinho se deteriorassem, e então acabou com

elas. As únicas que foram poupadas foram as conexões inter-municipais de

alta velocidade que competem com as linhas aéreas para uma clientela de

burgueses. Há um progresso para você!

A verdade é que ninguém tem realmente qualquer escolha. Você não é livre

para ter um carro ou não porque o mundo dos bairros é projetado em função

do carro - e, cada vez mais, é assim o mundo da cidade. É por isso que a

solução revolucionária ideal, que é afastar o carro em proveito da bicicleta,

do ônibus, e do bonde, não é sequer mais aplicável nas cidades grandes

como Los Angeles, Detroit, Houston, Trappes, ou Bruxelas, que são

construídas por e para o automóvel. Estas cidades estilhaçadas são

formadas por alinhadas ruas vazias possuindo desenvolvimentos idênticos; e

sua paisagem urbana (um deserto) diz, "estas ruas são feitas para se dirigir

tão rapidamente quanto possível do trabalho para casa e vice-versa. Você

anda através daqui, você não vive aqui. No fim do dia de trabalho todos

devem permanecer em casa, e qualquer um encontrado na rua depois do

anoitecer deve ser considerado suspeito de ‘fazer o mal’". Em algumas

cidades americanas o ato de dar uma volta nas ruas à noite é vista como

suspeita de crime.

Então estamos fritos? Não, mas a alternativa ao carro terá que ser

abrangente. Para que as pessoas possam abandonar seus carros, não será

suficiente lhes oferecer um transporte de massa mais confortável. Terão que

poder dispensar o transporte por se sentirem em casa nos seus bairros, nas

suas comunidades, nas suas cidades de tamanho humano, e por sentirem

prazer em andar do trabalho para casa a pé, ou se preciso for, de bicicleta.

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Nenhum meio de transporte e fuga veloz jamais compensará a vexação de

viver em uma cidade inabitável na qual ninguém se sente em casa, ou a

irritação de somente ir à cidade para trabalhar ou, por outro lado, de estar

sozinho e dormir.

"As pessoas", escreve Illich, "quebrarão as correntes do domínio do

transporte quando voltarem a amar, como se fosse seu próprio território, seu

próprio ritmo particular, e temer ficar demasiado distante dele". Mas a fim de

amar "o seu território" ele deve antes de mais nada ser habitável, e não

congestionável. O bairro ou a comunidade devem novamente transformar-se

em um microcosmo esculpido por e para todas as atividades humanas, onde

as pessoas possam trabalhar, viver, relaxar, aprender, se comunicar, e

discutir sobre ela, e no qual elas controlem conjuntamente como o lugar de

sua vida em comum. Quando alguém lhe perguntou como as pessoas

gastariam seu tempo após a revolução, quando o desperdício capitalista

tivesse sido eliminado, Marcuse respondeu, "nós traremos à baixo as

grandes cidades e construiremos novas. Isso manter-nos-á ocupados por

enquanto".

Estas novas cidades poderiam ser federações de comunidades (ou de

bairros) cercadas por cinturões verdes nos quais cidadãos - e em especial

crianças em idade escolar - passariam diversas horas da semana cultivando

os alimentos frescos de que necessitam. Para se locomoverem todos os dias

poderiam usar todos os tipos do transporte adaptados a uma cidade de

tamanho médio: bicicletas, bondes ou bondes elétricos municipais, táxis

elétricos sem motoristas. Para longas viagens no país, assim como para

convidados, uma quantidade de automóveis comunais estaria disponível em

garagens do bairro. O carro não seria mais uma necessidade. Tudo teria

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mudado: o mundo, a vida, as pessoas. E isto não virá por si só.

Entretanto, o que deve ser feito para se chegar lá? Sobretudo, nunca faça do

transporte um assunto em si mesmo. Conecte-o sempre ao problema da

cidade, da divisão social do trabalho, e à maneira que isto compartimentaliza

as muitas dimensões da vida. Um lugar para o trabalho, outro para "viver",

um terceiro para as compras, um quarto para aprender, um quinto para

entretenimento. A maneira que nosso espaço é arranjado dá continuidade à

desintegração das pessoas que começa com a divisão de trabalho na

fábrica. Corta uma pessoa em fatias, corta nosso tempo, nossa vida, em

fatias separadas de modo que em cada uma você seja um consumidor

passivo a mercê dos comerciantes, de modo que nunca lhe ocorra que o

trabalho, a cultura, a comunicação, o prazer, a satisfação das necessidades,

e a vida pessoal podem e deveriam ser uma e mesma coisa: uma vida

unificada, sustentada pelo tecido social da comunidade.

Le Sauvage, Setembro-Outubro de 1973

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Victor Fucks

ECOLOGIA ALTERNATIVA: APRENDENDO COM OS ÍNDIOS TUPI

GUARANI

O Nível de sofisticação e desenvolvimento tecnológico alcançado pelas

civilizações ocidentais contemporâneas constitui algo admirável e de grandes

proporções. O controle de várias forcas e fenômenos naturais, a ênfase no

individualismo, o culto quase ritualístico ao estimulo de "progressos,"

quantificações analíticas e resultados práticos, nos afetam em todos os

sentidos, surpreendendo até Bacon, o criador desta filosofia. O impacto de

diversas "maravilhas tecnológicas " indubitavelmente se faz sentir em nosso

dia a dia. Essa ideologia acoplada ao sistema capitalista, cria uma constante

geração e acumulo de riquezas, distribuição desigual de diversos recursos,

dominação, exploração, superpopulação, poluição e "subprodutos." Como

resultado outros , tais "maravilhas " perdem sua aura especial e passam a

nos ameaçar, tornando-se "monstros" dos quais temos dificuldade de

escapar. Estas ameaças não se restringem apenas à civilização Ocidental -

que as criou - mas se estendem a outros povos, em outras regiões,

eventualmente ameaçando a própria sobrevivência da vida, na terra.

Praticamente tudo o que fazemos, nossas opções e até mesmo criações

estão ligadas a essa complexa estrutura, independente de nossas intenções.

Este texto, por exemplo, está sendo escrito em um computador que por si só

sintetiza parte do processo tecnológico. Este, por sua vez, se relaciona às

técnicas de impressão, diagramação e distribuição da revista Utopia que,

eventualmente, chega às mãos dos prezados leitores e, assim, por diante. As

fábricas de computadores, acessórios etc. se relacionam em um complexo

sistema econômico; do qual também fazemos parte. Deste sistema surgem

diversos produtos que utilizamos em nossas vidas mas, ao mesmo tempo,

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geram-se problemas diversos como poluição e eventuais explorações

capitalistas. Assim sendo, nos vemos em uma situação paradoxal, pois, se

de um lado, apreciamos grande parte dos implementos tecnológicos, frutos

de nossa civilização, por outro, nos achamos presos a esta maquina"

deliciosa " e "terrível" ao mesmo tempo. Como usufruir dos diversos

implementos tecnológicos sendo que nos tornemos vítimas de um sistema

perverso e nocivo? As alternativas demandam modelos ainda mais

complexos pois não seria desejável e suficiente abandonarmos nosso

conforto e prazeres cosmopolitanos –ou não -, para irmos viver

isoladamente, em regiões remotas ou entre sociedades que não interagem

com o sistema ocidental. Movimentos sociais independentes que encararam

este problema lograram apenas sucesso limitado, como no caso das

fazendas socialistas Kibutz em Israel e as comunidades e atividades ligadas

ao movimento da contra-cultura, nos Estados Unidos (Zicklin 1983). O

isolamento também se torna praticamente impossível, pois o impacto

ocidental se faz sentir, nas regiões mais remotas do planeta, como por

exemplo, entre tribos Amazônicas, Africanas e Asiáticas, mesmo antes

destas sociedades estabelecerem contato direto com a nossa sociedade. Um

exemplo dessa questão refere-se ao uso de objetos metálicos e outros

produtos industrializados por comunidades indígenas isoladas na Amazônia.

Quando certos grupos indígenas foram "oficialmente" contatados pela

FUNAI, vários indivíduos já dispunham de facas, sandálias de plástico e

tecidos diversos. Estes foram adquiridos por contatos intermediários, ou

abandonados por garimpeiros e viajantes.

A posição "ecológica" sugerida por Bookchin merece maiores considerações,

uma vez que nos fornece um modelo teórico e não simplista. Neste modelo,

o conceito de ecologia social propicia uma forma balanceada de relação

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entre todas as espécies biológicas e diversos fenômenos naturais e, ao

mesmo tempo, considera a viabilidade de implementação deste processo de

equilíbrio ecológico, através do uso de tecnologia. A visão de Bookchin

envolve fatores e processos adicionais que consideram a complexidade dos

fenômenos sociais e naturais em suas formas globais (holísticas) e

interrelacionadas. Uma das virtudes do modelo de Bookchin é a

consideração de fatores não diretamente ligados a imediata sobrevivência

biológica de cada indivíduo, ou à visão utilitária e funcionalista de cada

atividade humana, pois afinal fazemos mais do que simplesmente procurar

alimentos e buscar proteções a fenômenos naturais. Bookchin refere-se às

"sensibilidades preliterais " características de certas sociedades tribais. Os

esparcos dados antropológicos contribuem pouco para engrandecer a

argumentação do autor, dando a impressão de uma visão utópica e

romantizada destas sociedades. Ou seja, faltam dados para demonstrar a

transição das "sensibilidades preliterais" para as "sociedades orgânicas, com

intensa solidariedade interna e com a natureza" (Bookchin 1982:44). As

idéias de Bookchin poderiam adquirir maior relevância se pudessem ser

testadas ou investigadas em contextos sociais específicos, para terem um

profundo impacto em nosso "modus vivendi". Neste artigo procuro continuar

o diálogo proposto por Bookchin, com exemplos específicos de uma

sociedade tribal.

A seguir, tentarei abordar uma alternativa não tão utópica, pois vem sendo

utilizada, com relativo sucesso e há séculos por comunidades indígenas

amazônicas e, em particular, entre os Índios Tupi Guarani (Fuks 1989, Hill

1984, Kracke 1981 ). Este modelo de interação social e ecológico, longe de

ser simplista, envolve interações diversas, em níveis diferentes e, ao mesmo

tempo, preserva a individualidade de cada membro da sociedade. Nele a

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importância de bens materiais se torna irrelevante e secundária às artes e às

emoções. Com isso, deixa de existir a noção ocidental de acúmulo de bens

ou capital, que por sua vez, gera um ciclo hierárquico, com diversas relações

desiguais. Evidências etnográficas ajudam a identificar este sistema entre as

tribos Waiapi. Para os indivíduos dessa sociedade não há importância

material e acúmulo de bens. A irrelevância da noção de acúmulo de bens

pode ser evidenciada pelo fato dos Waiapi contarem apenas até 4. Tudo

além de 4 cai na categoria genérica e distante chamada "iro ironte" que seria

traduzível por nossa noção de "muitos".

Através dos meios de expressão artística, cada indivíduo aprende a conviver

harmonicamente em grupo e com a natureza, mas mantendo sua

individualidade a níveis dificilmente alcançáveis, no ocidente. Nestes

contextos artísticos e de caráter festivo, cada indivíduo pode encontrar-se em

situações nas quais cada um se relaciona entre si e com outras espécies de

animais, insetos e peixes (Fuks 1989). Ao invés de perpetuar a visão

ocidental de "dominação da natureza e desafios ao Cosmos," que por si só

reflete a dominação da humanidade pela humanidade, o modelo Tupi-

Guarani procura incorporar diversos conhecimentos sociais e naturais, de

forma interativa. Neste, todos os indivíduos se relacionam entre si e com

outras espécies. É importante frizar que estas relações mantêm um equilíbrio

dinâmico no qual todos estão no mesmo plano, tanto no meio social quanto

entre os Waiapi e outras espécies. Em diversos contextos, percebe-se a

visão cíclica de complementariedade biológica, onde certas espécies

protegem outras e geram produtos necessários para a sobrevivênica humana

e de outras espécies. No ecossistema da aldeia onde se relacionam diversos

indivíduos, de idéias, sexos e idades diferentes, existe também uma certa

harmonia com o solo que lhes proporciona os alimentos e outros bens, com

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os rios e florestas, e com as diversas espécies que neles habitam.

Há vários anos, venho pesquisando uma pequena sociedade tribal no Amapá

que emprega um sistema social compatível com as prioridades e dilemas

individuais e sociais, mantém uma estreita relação com a natureza, estimula

prazeres e diversas emoções. Trata-se da comunidade Indígena Waiapi, que

pertence ao grupo lingüístico Tupi-Guarani. Os Waiapi vivem entre Brasil e a

Guiana Francesa, sendo que meus estudos se concentram nas comunidades

do Amapá que totalizam pouco mais de 300 habitantes. Estes, por sua vez,

se dividem em diversas aldeias independentes e distantes várias horas ou

dias entre si. O modelo social Waiapi possui ainda espaço para maiores

subdivisões, com casas construídas em várias localidades e freqüentes

migrações. A importância da fissão social se estende a outras comunidades

Tupi-Guarani, como é o caso dos Índios Arawete (Viveiros de Castro, 1986).

Este modelo não apenas cria as condições necessárias para contornar

possíveis conflitos mas funciona, também, como forma de administração

agro-florestal, ou seja, os recursos naturais de uma determinada região

podem manter indefinidamente um determinado grupo de indivíduos. Em

casos de explosão populacional estes recursos passam a ser utilizados ao

extremo, causando sua exaustão e, freqüentemente, profundas mudanças no

ecossistema. Especialmente na Amazônia, que se caracteriza por solos

inadequados à agricultura de larga escala, a necessidade de se utilizar

modelos que preservam a diversidade biológica e evitam a extinção de

espécies, apontam cada vez mais para as soluções e técnicas desenvolvidas

por sociedades tribais da região. Um certo equilíbrio populacional e

demográfico, em uma determinada região, pode ser alcançado sem que seja

necessário explorar o meio ambiente ao extremo, como demonstram os

índios Waiapi.

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Além do aspecto relativo a conhecimentos gerais da natureza amazônica, os

Waiapi são encorajados a criar novas formas de expressão para serem

compartilhadas, durante as festas coletivas. Esta expressão artística

freqüentemente possui a função de ensinar à comunidade em geral aspectos

do comportamento de certas espécies e de fenômenos naturais, gerando

benefícios e, ao mesmo tempo, estimulando a liberdade artística e

expressiva de cada membro da sociedade. Complementando a relação com

o domínio natural, as festas coletivas dos Waiapi possuem, também, a

possibilidade de acessar ou aumentar o conhecimento do domínio

sobrenatural. Note-se que estes conhecimentos embasados em tradições

orais e transmitidos de geração em geração permanecem flexíveis, podendo

incorporar também os espíritos dos ancestrais Waiapi, novas espécies de

peixes, insetos e animais, mudanças no seu comportamento e suas relações

com os Waiapi. Como no meio natural e social, o meio espiritual também

permanece flexível e ágil o suficiente para incorporar modificações das mais

diversas.

Como veremos a seguir, os diversos mecanismos sociais, ecológicos e

emocionais se relacionam e fazem parte de um complexo que cria um certo

"ethos" dos Waiapi (Bateson 1980). Para podermos entender como estas três

dimensões (social, ecológica e emocional) se relacionam, é importante que

observemos aspectos gerais da sociedade Waiapi, suas estruturas, conceitos

e mecanismos diversos.

A estrutura social dos Waiapi basicamente envolve famílias nucleares,

grupos locais, liderança descentralizada e relações concretas e subjetivas

entre si, com espíritos diversos e com outras espécies de animais, peixes e

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insetos. Como foi dito, anteriormente, os Waiapi vivem em grupos locais

identificados por conexões com uma certa região e relações diretas com um

líder. Este, por sua vez, não assume a posição hierárquica que o termo

significa em nossa sociedade, e refere-se principalmente ao fato de esse

"líder" ser uma pessoa de conhecimento. Na sociedade Waiapi, só existem

especializações para os líderes das aldeias, os shamas e os "organizadores

de festas," sendo que todas estas posições possuem caráter transitório e

negam qualquer forma de hierarquia ou possível dominação. Esta sutil

separação de classes relaciona se mais a um processo de socialização de

conhecimento. Como enfatizam os Waiapi, os alunos de cada festa serão os

professores das futuras gerações.

O líder de uma aldeia, segundo os Waiapi, é aquele que "achou um lugar" e

que, por meio de relações familiares e demonstração da validade de seu

conhecimento, pode atrair um grupo de famílias nucleares para uma certa

região. O conhecimento do líder refere-se, principalmente, a fatores

ecológicos que propiciam a escolha de solos adequados à agricultura, à falta

de formigas e a outras espécies prejudiciais ao cultivo, bem como a fartura

na caça, pesca e uso de demais recursos naturais (Fuks 1989). Este líder é,

também, aquele que possui um vasto repertório de canções utilizadas nas

festas coletivas (Fuks 1988). Estas canções não apenas representam mas

freqüentemente descrevem características e propriedades ligadas às

espécies honradas em cada festa. É importante frisar que a liderança Waiapi

possui caráter passageiro e que, nas festas coletivas, todos os indivíduos

são encorajados a serem "líderes" em performances diferentes. Desta forma,

o conceito de liderança passa a ser diluído entre todos os membros da

sociedade, o que eventualmente estimula níveis igualitários e desencoraja

hierarquizações. Com isso, e com a ausência de posições dominadoras, a

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sociedade Waiapi cria um modelo neutro e interno que, por sua vez, será

refletido na visão não antropocêntrica dos Waiapi e suas relações com outras

espécies. Em nível de comunidade, o líder nunca ordena nada a ninguém

mas, através de uma retórica sofisticada, pode ou não persuadir certos

indivíduos a fazerem o que ele deseja. Este aspecto de liderança é

genenlizável entre comunidades Tupi Guarani (Kracke 1978, 1981, Viveiros

de Castro, 1986). Crianças podem recusar pedidos de favores feitos por

adultos, bem como homens e mulheres de idades diferentes nunca são

forçadas a aceitarem ou fazerem nada para ninguém. Tais "favores" são

feitos por livre e espontânea vontade, estimulados apenas pelo uso de

técnicas de sedução e persuasão oral.

Ducante as festas coletivas, esta liderança flexível se torna ainda mais

aparente, com o resultado gradual de uma performance simultânea de

diversos instrumentos musicais e vozes, levando a uma "cacofonia" ou

polissincronia multisensorial envolvendo música, dança, caxiri (cerveja de

mandioca), pintura corporal, etc. (Fuks 1988, 1989). Nesta estética, que

funciona paralelamente a outros sistemas, cada indivíduo pode tocar ou

cantar o que bem entender, seguindo apenas a estrutura básica de cada

festa. Tais festas coletivas podem envolver um grande número de

participantes, podendo até serem estendidas a outras aldeias. Em uma

ocasião quatro aldeias organizaram um grande evento em reverência ao

peixe paku açu. Em alguns casos, porém, apenas um pequeno número de

participantes realizam festas coletivas, com o mínimo registrado envolvendo

apenas três participantes. A importância destas festas e da música ,em geral,

torna-se aparente quando observamos que elas constituem a atividade à

qual os Waiapi dedicam a maior parte de seu tempo (Fuks 1989). Mesmo a

agricultura somada às outras atividades de subsistência totalizam um

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número menor de horas. Alem de nos surpreendermos como os Waiapi

podem se dar a esse luxo, ficamos perplexos, ao tentarmos entender como e

por que as festas coletivas adquirem tamanha importância.

Uma razão para tanto refere-se a uma certa consciência ecológica (se

usarmos nossos termos) refletida nestes eventos e aliada à possibilidade de

expressar e sentir diversas emoções. Estes conhecimentos ecológicos e a

expressão de emoções adquirem, também, um caráter didático, ilustrando-os

às futuras gerações. A importância das formas de expressão orais em

sociedade "preliteradas" não deve ser subestimada. Portanto as festas dos

Waiapi adquirem uma certa função de ensino, em uma atmosfera prazeirosa

que, freqüentemente chega ao êxtase. Estes aspectos (sociais, ecológicos

emocionais) e suas interações ficam mais claros se observarmos detalhes da

festa do mangengan, uma dentre as várias comemorações Waiapi.

A abelha mangangan aparece em grande número, no início da estação das

chuvas, época que indica transformações marcantes na floresta amazônica,

o início do plantio e atividades agrícolas subsequentes. A relação entre o

complexo natural e ecológico com o modelo de organização social dos

Waiapi e dos mangangan, é refletida nesta festa. Isto ocorre, após os

participantes terem chamado os "mangangan", através de danças e canções

alternadas com os sons das flautas chamadas "mangangan ra'anga ". O

termo rá´anga indica uma certa imitação auditiva e multissensorial das

espécies representadas. Para cada festa coletiva, os Waiapi fazem novos

instrumentos musicais que, por sua vez, pertencem à classe também

chamada ra'anga. As flautas da festa do mangangan são chamadas

mangangan ra'anga, e as da festa do jaguar (onça) jawarun ra'anga. Com a

chegada dos mangangan, os participantes se transformam neste "outro" e

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passam a agir de acordo com as características próprias, no caso, o

mangangan. Uma dessas características é representada pela picada de

"abelhas " que assume uma relação metonimica, pois um cinto de palha com

formigas é colocado em volta dos participantes e dos membros da audiência.

Outra modificação no comportamento regular Waiapi (humano), passando

para o comportamento dos mangangan (inseto), é indicada pela forma com

que a cerveja de mandioca é servida aos participantes. Convém frisar que

todas as festas coletivas dos Waiapi são marcadas, também, pelo consumo

de cerveja de mandioca ou caxiri. As festas são avaliadas pela quantidade e

qualidade da cerveja. Nestas, emerge sempre a pessoa do "caxiri jara" ou

dono da cerveja caxiri. São suas esposas que preparam e servem o caxiri,

durante as festas, seguindo uma ética elaborada e organizada no preparar e

servir, de acordo com o conhecimento de cada participante sobre o tema

(como por exemplo o mangangan) de cada festa (Fuks 1989). Após a

transformação em mangangan, os Waiapi adquirem uma "licença artística "

e, teatralmente, passam a beber o caxiri direto de um pilão e de forma

aleatória. Assim sendo, as abelhas vivem, cantam, dançam e bebem caxiri,

de maneira diferente dos Waiapi, mas os Waiapi se mostram dispostos a

aprenderem algo com os mangangan, e fazem isso, usando todos os

sentidos. Se não bastasse o efeito catártico das festas coletivas, cada

participante pode reinterpretar o "cenário natural" e agir, de forma não usual.

Estas formas não Waiapi, podem então ser testadas por indivíduos ou pela

comunidade e, dependendo de sua validade pratica, podem vir a ser

incorporadas à sociedade Waiapi, já que esta propicia espaço para

constantes modificações.

Uma lição exposta na festa do mangangan se relaciona ao fato de as

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abelhas serem atraídas pelo cheiro e beleza visual de certas flores, que

passam a ser abundantes na época das chuvas. Desta forma, em uma seção

da performance, os participantes dançam com um buquê de flores. A seguir,

as mulheres ou parceiras de cada participante recolhem estes buquê.

Segundo os Waiapi, isso é a ´forma utilizada pelos mangangan que após

recolherem o néctar das flores, levam-no a sua "casa", passando-o para

suas famílias e amigos.' Neste caso, observamos a visão não

antropocêntrica dos Waiapi, que observam o comportamento das abelhas e

suas relações complementares com as flores. O efeito da polinização

simultâneo à extração do néctar das flores pelas abelhas, é representado

através da música, dança e representações visuais, olfativas e táteis. Tudo

isso ocorre em uma atmosfera festiva, com muitas gargalhadas, reflexões e

comentários sobre as "coisas de mangangan" que somados a um efeito

quase anestésico da música, dança e caxirí gera um contexto marcado por

fortes emoções. Ao mesmo tempo, festas como a do mangangan, ilustram

como um grande ecossistema composto de diversos fatores se relaciona a

um complexo "drama social". Neste modelo o homem não é apenas um

simples ator, mas interage em termos de igualdade com outras espécies.

Esta mesma atitude se reflete na forma não hierarquizada de organização

social dos Waiapi. O poder quando emerge e permanece por muito tempo é

ridicularizado e passa a ser repudiado (Clastres 1979, Fuks 1991). Isto

acontece na realidade com a temível é venerável onça (também honrada, na

festa do jawarun).

Segundo os Waiapi, a onça representa o pajé em sua eterna liminalidade

entre os domínios humanos e espirituais. Tanto a onça quanto o pajé

possuem poderes supernaturais que os distinguem dos outros. Tais poderes

podem ser utilizados para o bem ou o mal dos Waiapi e de outras espécies

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de animais, peixes e insetos.

Assim sendo, as festas coletivas dos Waiapi se encaixam com outras

instituições liberalizantes que, ao mesmo tempo, criam uma forma auto-

suficiente e descentralizada de organização social, semelhante à "ecologia

da liberdade" sugerida por Bookchin (1982). Esta autosuficiência, aliada à

ênfase na criatividade artística, estimula a individualidade entre os Waiapi,

mas considerando sempre o equilíbrio social na aldeia, o equilíbrio em

relação a outras culturas e sociedades, o equilíbrio com outras espécies e

espíritos, criando um super "multiecosistema global". Volto a frisar a

complexidade deste sistema que, de maneira sutil, preza a interdependência

e complementariedade de fatores sociais, emocionais e ecológicos. Neste

complexo ecossistema, os Waiapi apenas contribuem com uma pequena

parte sem se sobressaírem aos demais, ajudando-se uns aos outros.

CONCLUSÕES

As diferenças entre nossa sociedade industrial e a sociedade tribal dos

Waiapi são evidentes e transplantar um modelo de um contexto para outro

tende a ser impraticável. Mas, se observarmos nossas aspirações e

necessidades básicas (incluindo não apenas nossa sobrevivência em termos

de alimentação, moradia, desejos sexuais e outros) passamos a observar um

número de semelhanças com os Waiapi. É importante frisar que a sociedade

Waiapi não vive em um paraíso idealizado pela visão romântica criada sobre

certas sociedades tribais. Os Waiapi freqüentemente se vêem forcados a

enfrentar crises e catástrofes sociais e ecológicas.

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De maneira análoga ao nosso conhecimento prático das condições

climáticas, meteorológicas e geológicas, incapaz de prever com exatidão e

evitar enchentes, terremotos e furacões, o conhecimento Waiapi também é

vítima de erros e de elementos indeterminados. A suscetibilidade a doenças

diversas e a capacidade parcial de curá-las ou controlá-las é outra

semelhança entre a nossa sociedade e a dos Waiapi.

Apesar das semelhanças e diferenças entre nossa sociedade e a dos Waiapi,

algumas sugestões de formas alternativas de controle ecológico, social e

emocional podem ser inferidas. Creio que várias destas sugestões são

perfeitamente compatíveis com nossos modelos e nos permitem encarar

certos problemas sociais, econômicos, e ambientais, bem como as crises de

razão, economia e ciência apontadas por Theodore Adorno, Karl Marx e Max

Webern. Estas sugestões focalizam-se em idéias Waiapi que se assemelham

ao modelo da ecologia social proposto por Bookchin e se ajustam as nossas

necessidades e aspirações:

1. Manter um equilíbrio com aqueles que fazem parte de nosso "milieu" e

com os quais interagimos regularmente, e com o meio ambiente em geral.

De certa forma, vivemos nestas condições buscando tais equilíbrios, mas

nos concentramos em nossos pequenos e isolados microcosmos. No modelo

Waiapi, não apenas nossas relações com familiares e amigos mais próximos

se mostram necessárias mas em um amplo contexto socio-ecológico. Neste

modelo homeostático relativo existe espaço, também, para possíveis

conflitos, suas resoluções, separações e eventuais interações. A relação

refletida na consciência ecológica mais ampla pode ser esclarecida se

observarmos a relação metafórica que mantemos com animais de estimação.

O mesmo afeto e falta de exploração que demonstramos com nossos

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animais de estimação podem ser estendidos a outras espécies das quais

usufruímos os subprodutos. Com moderação, podemos continuar a utilizar

estes benefícios sem impor, subjugar, explorar e dominar "outros", humanos

ou não.

2. Interação: Combinar os três elementos básicos do ethos Waiapi -

igualdade social, consciência ecológica e liberdade emocional - constitui algo

que podemos aprender. Segundo a abrangente "Ecologia Social" de

Bookchin, existe uma certa compatibilidade entre possíveis igualdades

sociais e consciências ecológicas, unidas pela falta de exploração e

dominação, seja ela intra ou extra humana. Como vimos antes, no modelo

Waiapi, isto também ocorre, mas para manter a sociedade em sua vitalidade

plena é necessário um certo "tempero" a ser compartilhado por todos. Este

"tempero" emerge justamente das emoções expressadas nos contextos

artísticos, e levando junto um corpo de conhecimento que, por sua vez,

reenfatiza as relações sociais igualitárias e as diversas formas de interação

com o meio ambiente e com outras espécies. Esta visão não antropocêntrica,

até nas sensações daquilo que consideramos marcadamente humano

(emoções), mais uma vez afirma a falta de hierarquia na sociedade Waiapi,

tanto internamente quanto em relação às outras espécies. Esta visão

interativa poderia ser aplicada à nossa sociedade, de maneira análoga a uma

grande orquestra, sem maestro e tocando uma grande sinfonia composta (de

maneira não dogmática) ou improvisada por todos. Nesta grande orquestra,

para que se faça música em conjunto, é necessário passar por processos e

experiências semelhantes à afinação dos instrumentos musicais. Cada um

se coloca à disposição, para ceder um pouco, até que se encontrem em um

denominador comum, para então poderem expressar sua arte e,

eventualmente chegarem a um estado de equilíbrio ou "communitas". Assim

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sendo, aplicando o modelo Waiapi, poderíamos tocar outras músicas com os

temas que enfatizam a "harmonia" ou interação entre as consciências sociais

e ecológicas e os "temperos" emocionais.

Minha intenção, neste artigo, foi mostrar a viabilidade de um modelo social

utilizado por uma pequena sociedade tribal Amazônica. Através de forças

socioculturais, pode-se criar uma sociedade que mantém um equilíbrio entre

seus membros e em relação a outras espécies e ao meio ambiente. Nesse

modelo interativo todos possuem liberdade para fazerem o que quiserem,

mantendo suas individualidades e, ao mesmo tempo, considerando as

formas de interação com "outros". Assim sendo, a expressão de emoções

assume posição essencial no modus vivendi", e se relaciona com o

conhecimento social e ecológico. Assim sendo, podemos aprender a ser

índio e refletir sobre as idéias Waiapi, com resultados benéficos para todos.

Referências

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Chadler Pub. Co.

Bookchin, Murny. 1982 The Ecology of Freedom: An Eminent Social Thinker's

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Viveiros de Castro, Eduardo B. 1986 Araweta: Os Deuses Canibais. Rio de

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Coletivo Domingos Passos

Ecologia Social é Pelegagem!?

A Ecologia Social é pelegagem ou a Pedagogia Libertária é mera retórica,

para um falar e agir intelectualmente "confortante"?

Todas as idéias novas e constatação de fatos quando concebidos ou

descobertos, a princípio, sempre são recebidos com a "desconfiança" do

preconceito e a sua decorrente animosidade e desvalorização. Isto para

apresentar uma forma mais amena de contrariedade.

Vide o que ocorreu com "livres–pensadores" como Copérnico, Giordano

Bruno e Galileu Galilei na assim chamada idade média. Homens que podem

representar o advento da série de questionamentos em diversos setores do

saber e na visão de mundo que desembocou no "Renascimento" cultural e a

redescoberta do próprio Ocidente.

No caso de Copérnico foi uma profunda e radical mudança de paradigma,

chamada de revolução Copernicana, que consistiu na teoria de que a terra

move-se em torno do sol e não o inverso, que era postulado dogmaticamente

pela igreja. Consiste na oposição do geocentrismo da igreja ao

heliocentrismo de Copérnico, pela qual a detentora do monopólio ideológico

perdia, e perdeu, muito de sua influência e poder.

Em seguida, com o "Renascimento", como autoproclamado pelos estetas da

época, surgiram novos paradigmas como o antropocentrismo, que colaborou

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para a desconstrução do teocentrismo até este momento dominante neste

processo de transformações do Ocidente.

Decorreu em seguida o mercantilismo, a reforma protestante e o

racionalismo cartesiano, de base "mecanicista" e etc. sendo que este último

erigiu–se como uma "nova moral religiosa da modernidade" e sua

conseqüência direta foi uma visão extremamente utilitarista do mundo,

subordinando–o à sua lógica "analógica", "analítica" e "digital", antes da

cibernética, com os seus: racional ou irracional, certo ou errado, lucrativo ou

não.

Este tipo de visão tem como prioridade secionar, atomizar o conhecimento e

a sua experiência. Ele vê as partes de uma árvore ao invés da árvore, ou de

um bosque. "Adestra" a visão do homem em relação ao mundo e à

"natureza", das coisas a uma determinada lógica. Este paradigma gera um

"conforto", uma "conformidade" do pensamento no que ele poderia inspirar

de reflexões mais instigantes, obscuras e ansiosas, pois as grandes

questões não-eleitas como utilitárias ou importantes, e a própria reflexão

sobre esses valores, são deixadas de lado. É um "conforto" que gera

"conformismo" intelectual e pensamento estático. Ela divide, escrutina,

separa, seciona o conhecimento e conquista o imaginário social diminuindo o

poder de intervenção e elaboração simbólica de outros saberes como as

culturas e tradições ancestrais em relação à natureza, sua ética e visão do

mundo e para com o mundo.

Estamos numa época de profundos conflitos, gerados pela "globalização".

Também dentro desta conjuntura há o florescimento, e o resgate de outras

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visões de mundo, ou o surgimento de outras. Podemos afirmar que estamos

caminhando, se não houver nenhum "acidente", para uma provável nova

"revolução Copernicana". Mas deixemos este ponto para mais adiante.

Falemos agora das polêmicas surgidas dentro do "movimento libertário" a

partir destas novas conjunturas.

Com a derrocada dos regimes do capitalismo estatal, como ex–URSS e leste

europeu, ou seja, o fim da "guerra fria", com o mundo todo se tornando um

imenso burgo lamacento, onde espaços antes ocupados no imaginário

social, e antes de tudo nos movimentos sociais, em que esquerda fetichizava

o operário industrial urbano e colonizava com o seu programa outros setores,

tais como camponeses, favelados e contestações de fundo étnico, dando–

lhes uma dinâmica monolítica e unidimensional, e com a falência deste

projeto, novos movimentos e alternativas começaram a surgir ocupando

estes espaços, dentro de uma enorme multiplicidade. Estes movimentos são

de todos os tipos e aspectos. Muitos são meras reivindicações como

princípios em si mesmos, como o movimento dos consumidores

"conscientes". Outros de perfil que poderíamos chamar "não rigidamente" de

"libertários". E muitos outros fundamentalistas, como os religiosos,

nacionalistas e "Nazis".

Dos anos 60, séc. XX, até a atualidade, popularizou–se a revalorização das

teses e práticas "libertárias anarquistas", o surgimento e valorização de

movimentos étnicos, indígena e negro por exemplo, de gênero e anti–

patriarcais, gays, lésbicas e mulheres, e a verdadeira "febre"” que é o

"movimento ecológico internacional", sendo isto, em muito, herdeiro de um

arcabouço teórico de origem anarquista, tendo como exemplo evidente a

obra "Campos, fábricas e oficinas", de Pedro Kropotkin, e um dos seus lemas

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mais importantes é sintomático em relação a isto, "pensar globalmente, agir

localmente". Apesar deste florescimento de movimentos, ousadias

intelectuais e ativistas, o mundo não se tornou uma grande "aldeia–livre".

Estas novas concepções, e as resgatadas, de movimentos e visões de

mundo ainda estão sendo digeridas, e talvez o seu pleno potencial ainda seja

embrionário e contraditório. Conflitos entre estes elementos não foram

totalmente superados, e isto somente a prática social quotidiana poderá

silenciosamente responder.

Para assinalar a partir do campo da ação e reflexão anarquista pode ser

exemplificada brevemente ao nível geral a polêmica surgida recentemente a

respeito da Ecologia social e da Ecologia profunda. Tentar-se-á tratar deste

tema como um todo.

Com a popularização das "teses" políticas e ecológicas colocadas em pauta

em todo mundo, mais fortemente a partir dos anos 60, nasceram duas

vertentes neste debate de pensamento e ação radical que são a ecologia

social, de influência nitidamente e diretamente anarquista, vide a obra de

Murray Boockchin, anarquista norte–americano membro fundador do Instituto

de Ecologia Social de Nova Iorque, e a chamada “Ecologia Profunda”,

inicialmente sem ligações diretas com o anarquismo, inspirada na obra do

filósofo norueguês Arne Naess e posteriormente adotada pela "eco-

guerrilha", ou sabotagem ecológica, pela organização chamada Earth First!,

"A Terra Primeiro!", fundada inicialmente nos EUA em 1979, pelo fuzileiro

veterano da guerra do Vietnã, Dave Foreman, cujos princípios básicos da

organização são: estrutura federalista e radicalmente descentralizada, não–

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violência, ação direta e ecologia profunda.

Entre estas duas vertentes existe uma certa animosidade mútua

principalmente no campo teórico, já que a militância da EF! é mais forte e

contem muitas individualidades e organizações ácratas. A EF! acusa os

ecologistas sociais de excessivamente "antropocêntricos", preocupados

apenas com a remediação dos problemas ecológicos, vendo apenas uma

parte da vida, o homem, e não atentando para o todo do planeta, a Mãe

Terra, categoria forte na EF!. Da parte dos Ecologistas sociais, aviso, nem

todos de matriz anarquista já que a ecologia social se pretende enquanto

uma das diversas subdivisões da ciência, acusam a Ecologia profunda de

misantrópica, alienada das questões sociais e excessivamente "biocêntrica".

Na linha de frente desta crítica está o próprio M. Boockchin. Como podem

ver, está formada uma querela. Embora o próprio M. Boockchin no seu

trabalho "Por uma ecologia social", reconheça a proximidade nos últimos

tempos da EF! com a IWW, órgão sindical de orientação libertária, fato

deveras inovador neste país onde o sindicalismo tem a tendência e tradição

de ser corporativo e atrelado ao paradigma do credo industrial capitalista.

Para complicar um pouquinho mais este quadro, há a posição de setores

anarco–sindicalistas portugueses da FAI que acusam os signatários das

teses do Boockchin de "neo–anarquistas" de direita, que abandonaram "a

luta dos trabalhadores". Fazendo uma breve análise destas questões, no

caso específico dos anarco–sindicalistas, existe um equívoco em relação a

este assunto. Primeiro por que estes não consideram estas questões. As

suas avaliações são realizadas em categorias cristalizadas, desconectadas

com o real, feitas na maioria das vezes de forma apriorística, e não que os

companheiros sejam obrigados a uma “concordância” inexorável e a se

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tornarem PhDs em ecologia social, mas um pouquinho de sensibilidade e

menos ortodoxias ajudariam bastante a sensibilizarem–se a novas e

pertinentes questões. Talvez em Portugal seja um pouco como no Brasil. Em

segundo, o anarco–sindicalismo ainda está atrelado ao paradigma da "luta

econômica industrialista", sendo que é observado que esta tendência e as

suas organizações não são mais um movimento preponderante, e nem

representam mais uma alternativa concreta de transformação social. Sua

preocupação primordial é promover a luta econômica industrial com tintas

"anárquicas", mas estes hoje apenas sobrevivem em formas mumificadas e

em discursos radicalmente ultrapassadas, convertendo–os assim em

ortodoxos.

Em relação à dicotomia Ecologia Profunda e Ecologia Social, a questão às

vezes é meio espinhosa, mas mesmo assim há de se aprender muito com a

prática e a teoria das duas vertentes. A princípio, deve-se observar e

esclarecer que no caso da Ecologia social esta não consiste numa

organização e sim em uma elaboração teórica e proposta, como tantas

outras teses anarquistas: o apoio mútuo, a desobediência civil, a ação direta,

a autogestão etc. Nos EUA esta prática habita duas esferas: a acadêmica,

como uma espécie sui generis de transdiciplinaridade, e o ponto

programático, idéia-força, tese e princípio dos grupos organizados

anarquistas. Porém existem grandes polêmica sobre os limites desta última

esfera por parte de outros ecólogos sociais.

No caso da Ecologia Profunda, esta pode ser considerada como um conjunto

de princípios éticos sobre toda forma de vida no planeta, seja humana ou

não-humana, como são trabalhadas as categorias de discurso por parte dos

ecólogos profundos. Como foi dito antes, a principal organização política que

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adota esta teoria é a já referida EF!, mas também há a incorporação de

pequenos grupos pacifistas e de direitos e liberação animal.

A EF! advoga uma profunda transformação nas estruturas econômicas,

políticas e das mentalidades. As suas "ações diretas" de eco-sabotagem são

contra os agentes diretos da poluição e depredação da natureza. O alvo

principal é o grande capital das megacorporações transnacionais e também

nacionais. Tem se observado que nos últimos anos, nas fileiras da EF!, tem

crescido bastante o número de militantes de orientação anarquista.

Visto isso, pode-se interpretar que as posições de luta pela melhoria da

qualidade de vida das comunidades humanas com uma conseqüente

transformação "profunda" da sociedade a pressupostos de defesa de

quaisquer formas de vida e seus ecossistemas não são contraditórios e nem

oponentes. A dicotomia entre antropocentrismo e biocentrismo é falsa. Mas

ocorre um fato além da vaidade e briga por espaço político. Acontece

realmente que adeptos da Ecologia profunda, eventualmente, e alguns

setores, têm a tendência há um certo "fundamentalismo biológico

preservacionista", e talvez isto seja reflexo das proposições do próprio

Foreman. Mas o seu empenho ativista, dedicação e base ética bem

constituída na esfera da condução filosófica do ativismo, são invejáveis,

mesmo se estes ainda engatinharem na clareza de sua análise social para a

"comunidade humana". Enquanto que com a ecologia social, esta tem claras

e objetivas propostas em relação ao social, mas apenas principia-se em uma

visão mais holística com outros elementos vitais ao ser humano e à vida.

Prendem-se a vícios do passado que também atrapalham com que esta

visão se amplie.

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Estas teses e proposições ideológicas, metodológicas, filosóficas, científicas,

práticas e éticas devidamente criticizadas são possivelmente intercambiáveis

aqui no Brasil. Jamais devemos ser certos de nossas certezas em demais

pois isto atrofia a prática, esteriliza a reflexão e dogmatiza o espírito, mas

mesmo assim nas condições tropicais brasileiras talvez seja possível

florescer uma "Ecologia social de visão profunda" como uma linha de

interpretação do mundo e linha de ação. O nosso patrimônio biológico,

multicultural, humano e social podem contribuir muito para com a nossa

própria sociedade e por que não com o próprio planeta. Esta temática e este

tipo de proposta com certeza enfrentaram (e enfrentam) resistências

infundadas ou talvez preconceituosas.

Dado que os anarquistas brasileiros, muitos, mas não todos, sofrem de uma

estranha doença "da auto-afirmação", depois de anos de inação e auto-

enclausuramento em conventos culturalistas, agora que estes estão

começando a despertar para a ação nas gerações mais recentes sofrem

desta estranha patologia, que é repetir retoricamente um anarco-comunismo

datado combinado aos vícios da visão anarco-sindicalista com práticas de

análise em “dogmatismos principistas” da esquerda tradicional. Mas esta

crítica está associada apenas aos reprodutores da “velha escola” e

“culturalistas de classe média” por que já existe uma nova geração composta

de elementos sinceros e tolerantes que estão trabalhando para alavancar as

lutas sociais vitais para a nossa sociedade.

Pois é nítido, empiricamente comprovado, que o paradigma cartesiano-

mecanicista, “industrialista” e utilitarista-econômico hoje, com o processo de

globalização, porá em cheque a humanidade e quaisquer formas de vida

ameaçando severamente a Mãe Terra.

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A militância libertária para este princípio de terceiro milênio além de não

transigir com os seus princípios vitais incorporados nas lutas populares, deve

ter uma atuação prática dentro de uma visão multidimensional, ou seja,

signatária de novos paradigmas Holísticos e transdiciplinares filosóficos-

científicos como também otimisadores de outras tradições, saberes; o

intuitivo com o racional conjugado com os saberes populares e comunitários,

e também dos saberes milenares dos povos ancestrais “originários”,

africanos, indígenas e etc. Pois urge cada vez mais o rompimento com as

metafísicas mistificadoras religiosas tanto quanto com os vícios e males do

materialismo. Deixemos isto para o marxismo.

Neste tempo de demanda por transformações politico–sociais, é contatado

que novas formas de conhecimento como a ecologia, que por acaso significa

o “estudo da casa”, ou seja ambiente, universo, requer o trabalho sócio-

cultural da consciência ambiental irmanado com a questão econômica.

Economia significa administração da casa, do ambiente. Para continuarmos

a viver e não meramente sobreviver como humanos devemos entender e

lutar por quem vai “administrar”, respeitar ou arrumar a casa. Nós todos ou

uma casta genocida?

Tanto se fala entre os anarquistas brasileiros e outros ativistas populares na

defesa de uma concepção de acordo com a cultura popular brasileira e

latino-americana e se faz tão pouco para implementá-la. O paradigma

Holístico é uma janela que se abre para esta questão.

Afinal de contas o termo libertário hoje é um conceito muito amplo. Ele não é

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mais de nenhuma forma monopólio dos anarquistas, devemos ter

consciência disto, pois dentro dos próprios princípios dos “autonomistas”

europeus, por exemplo, admite-se que em outras culturas, de outros

continentes surjam formas diversas de “libertários”. Os “Resistentes”,

“Magonistas” e “Zapatistas” podem enquadrar-se neste caso, ou seja,

sermos globais, internacionalistas, sem esquecermos de quem somos ou dos

nossos rituais culturais comunitários.

O que se entende por "libertários" são aqueles que lutam e ao mesmo tempo

têm como princípio a liberdade. Isto dado não apenas numa forma idealizada

e abstrata, metafísica, e sim com práticas concretas como, ação direta,

descentralização, democracia direta horizontalizada, fóruns coletivos

públicos de deliberação e federalismo. Dentro destes princípios existe hoje

uma grande multiplicidade de correntes e movimentos sociais adeptos tais

como os autonomistas, movimento Zapatista no México, movimento Okupas

na Espanha, movimentos ecológicos, ação global dos povos, movimentos

indígenas etc. Somente dialogando apoiando, agindo conjuntamente e

incentivando estas iniciativas contra o verdadeiro adversário da humanidade

que é o capitalismo “globalitarista” promotor de guerras, genocídios e

ecocídios, somente através de alianças em “rede” e horizontalizadas que as

pessoas poderão resistir “globalmente.”

Desconstruindo quaisquer formas de obscurantismos, mentalidades

confortantes e acomodadas mal-disfarçadas de principismo, poderá se

construir uma democratização econômica com a descentralização produtiva,

com gestão comunitária em rede gerando empregos saudáveis e para todos

em oposição às concentrações da produção industrial que é hierárquica,

sexista, anti-humana e poluidora. Características típicas da economia

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capitalista.

Pode-se afirmar que a vida na terra seja humana e não-humana, seja

comunitária e que os ecossistemas estão além do que nossas arbitrárias

medidas de valores supõem.

Para esclarecer melhor o que foi discutido neste ensaio é recomendada a

leitura de obras dos autores clássicos tais como Petr Kropotkin, os irmãos

Reclus e de autores recentes como Felix Guatarri, Cornelius Castoriadis,

Fritjof Capra, Michel Foucault, Arne Naess, Murray Boockchin, Lewis Munford

e Pierre Clastres.

Concluindo, para se trabalhar de forma concreta a consciência ambiental e

ecológica, de nossa casa que é o mundo, com um processo de

aprofundamento da tomada de consciência social é pertinente se trabalhar

na educação popular incluindo na sua área temática e didática a educação

ambiental. E esta Educação popular pode apoiar-se no seguinte tripé

temático: pedagogia libertária, estudo e aplicação da ecologia social

mesclada à ecologia profunda e práticas técnicas para a melhoria direta da

comunidade feita em regime de mutirão.

A pedagogia libertária é a educação na vida e a ecologia é a ética na ciência

conjugando um “modo de vida” voltado para a vida.

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viva a revolução social!

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