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1 ECOLOGIA DE SABERES: Um estudo do diálogo entre o conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Açaí. EDIELSO MANOEL MENDES DE ALMEIDA SÃO PAULO 2016

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1

ECOLOGIA DE SABERES

Um estudo do diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o

saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute

EDIELSO MANOEL MENDES DE ALMEIDA

SAtildeO PAULO

2016

2

Almeida Edielso Manoel Mendes de

Um estudo do diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber

popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute Edielso Manoel Mendes de

Almeida 2016

227 f

Tese (doutorado) ndash Universidade Nove de Julho - UNINOVE Satildeo

Paulo 2016

Orientador (a) Profordf Drordf Ana Maria Haddad Baptista

1 Ecologia de saberes 2 Diversidade epistemoloacutegica 3 Saber

popular 4 Amazocircnia

I Baptista Ana Maria Haddad II Titulo

CDU 37

3

ECOLOGIA DE SABERES

Um estudo do diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o

saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute

___________________________________________________________________

Orientadora Prof Dra Ana Maria Haddad Baptista (UNINOVE)

________________________________________________________________

Examinador I Prof Dra Diana Navas (PUCSP)

________________________________________________________________

Examinador II Prof Dra Mocircnica Rebecca Ferrari Nunes (ESPM)

________________________________________________________________

Examinador III Prof Dr Mauriacutecio Silva(UNINOVE)

________________________________________________________________

Examinador IV Prof Dr Manuel Tavares Gomes (UNINOVE)

________________________________________________________________

Suplente Prof Dra Carminda Mendes Andreacute (UNESP)

________________________________________________________________

Suplente Prof Dr Joseacute Eduardo de Oliveira Santos (UNINOVE)

Aprovadoem __________________

Tese apresentada agrave Universidade Nove de Julho

junto ao Programa de Mestrado e Doutorado em

Educaccedilatildeo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em

Educaccedilatildeo pela banca examinadora formada por

4

AGRADECIMENTOS

A todos os meus professores do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo

da Universidade Nove de Julho (UNINOVE) que socializaram seus conhecimentos e

experiecircncias

A professora Ana Maria Haddad Baptista por acreditar em mim aceitando-

me como orientando e pelo apoio moral nos momentos difiacuteceis que vivenciei em Satildeo

Paulo

A diretora da Escola Poacutelo e aos professores e professoras da Ilha do Accedilaiacute pela

recepccedilatildeo companheirismo e acolhimento no periacuteodo da pesquisa de campo

A todos os ribeirinhos e ribeirinhas que vivemconvivem na Ilha do Accedilaiacute

Aos membros da banca de qualificaccedilatildeo professores Diana Navas e Manuel

Tavares Gomes pela leitura criteriosa do trabalho o que contribuiu significativamente

no processo de construccedilatildeo e conclusatildeo da tese

Aos professoresMauricio Silva e Mocircnica Rebecca Ferrari Nunes que se

disponibilizaram em compor a banca de defesacom os demais professores

A minha famiacutelia em especial a querida matildeezinhaMaria Joseacute Mendes de

Almeida que sempre acreditou na capacidade de seus filhos eIn memoriam ao meu

paiMerciacutedio Gomes de Almeida pelos ensinamentos que me proporcionou durante

sua existecircncia neste mundo

A Edmar Souza das Neves grande amigo companheiro de viagem e de

caminhada neste doutorado que sempre me incentivou a ldquovoarrdquo mais alto

E a todos que contribuiacuteram com a realizaccedilatildeo deste trabalho mas que natildeo

foram citadossintam-se contemplados pois esta conquista eacute um pouco de cada um

de noacutes

5

RESUMO

Estapesquisa apresenta como temaacutetica a Ecologia de Saberes um estudo do

diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute

na qual investigamos como ocorre o diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos professores

que atuam em classes multisseriadas entre o conhecimento escolar e o saber popular

das comunidades ribeirinhas da referida ilha Numa perspectiva mais ampla a

pesquisa objetiva analisar o modo como o saber escolar dialoga com os outros

saberes de caraacuteter popular decorrentes da diversidade cultural e por isso

epistemoloacutegicaDe forma mais especiacutefica a pesquisa objetivarealizar um estudo a

partir das memoacuterias dos moradores da ilha do Accedilaiacute em relaccedilatildeo aos saberes presentes

no discurso e nas praacuteticas cotidianas dos ribeirinhos bem como identificar na praacutetica

pedagoacutegica do professor a presenccedila do saber popular dos ribeirinhos e as formas

como dialogam com o saber escolar e averiguar como as populaccedilotildees ribeirinhas

foram se constituindona Amazocircnia brasileira e a relaccedilatildeo entre o saber popular

produzido por essa populaccedilatildeo com os aspectos culturais sociais e econocircmicos do

municiacutepio de Afuaacute Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa do tipo estudo

etnograacutefico realizado em cinco comunidades ribeirinhas que compotildeem a ilha do Accedilaiacute

no municiacutepio de Afuaacute no Estado do Paraacute tendo como base para fundamentaccedilatildeo

teoacuterica a Ecologia de Saberes proposta por Boaventura de Souza Santos e o diaacutelogo

na concepccedilatildeo de Paulo Freire Os resultados indicam que o saber popular dos

ribeirinhos estaacute relacionado com o contexto social econocircmico cultural e religioso no

qual estatildeo imersosesses povos estabelecem entre si e com os outros relaccedilotildees de

trocas materiais e simboacutelicas No tocante ao diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos

professores esteocorre de forma vertical (colonizadora) e horizontal

(descolonizadora) com a predominacircncia das praacuteticas colonizadoras nas quais o

diaacutelogo ocorre verticalmente por meio da imposiccedilatildeo do saber escolar e o natildeo

reconhecimento do saber popular

Palavras-chave Ecologia de Saberes Diversidade Epistemoloacutegica Saber Popular

Amazocircnia

6

ABSTRACT

This research brings as a theme ldquoEcologyrsquos Knowledge a study about the dialog

between school and popular knowledge by people that live in Accedilai Island (called in

Portuguese ldquoRibeirinhosrdquo) it was done a survey to investigate how is the teachers

pedagogic practice considering teachers that work with different levels in the same

class and how is the dialog between school and popular knowledge in ldquoRibeirinhos

communityrdquo in Accedilai Island In a holistic view the research aims to analyze how the

school knowledge dialog with others popular knowledge considering cultural diversity

and epistemological In specific way this study tries to understand the Accedilai residents

memories about knowledge presents in daily ldquoRibeirinhosrdquo discuss and practice As

well as aims to identify the popular presence and the way that occur the knowledge

dialog in teachers pedagogic practice and to inquire how ldquoRibeirinhosrdquo people were

compounded in Brazilian Amazon and the relation between popular knowledge that

these people produced with cultural social and economic aspects in Afuaacute district It is

a qualitative search with ethnographic study produced in five (05) ldquoRibeirinhasrdquo

Community that are in Accedilai Island in Afuaacute district in Paraacute state As theory base this

search used the Ecologyrsquos knowledge suggestion by Boaventura de Souza Santos and

the dialog Paulo Freirersquos concept The results present that popular knowledge is linked

with social economical cultural and religion contexts where they are These people

establish themselves a kind of material and symbolic transposition relation About

dialogs teacherrsquos pedagogic practice there is a vertical (colonizer) and horizontal

(decolonized) way where Colonizer practices are predominate and the dialogs occur

vertically by school knowledge imposition and the popular knowledge itrsquos not

recognized

Key words Knowledge Ecology Epistemological diversityPopular Knowledge

Amazon

7

RESUMEN

Esta investigacioacuten presenta el tema de la ecologiacutea del conocimiento un estudio

del diaacutelogo entre el conocimiento escolar y el saber popular de los riberentildeos de la isla

del Accedilaiacute en la cual investigamos coacutemo el diaacutelogo en la praacutectica pedagoacutegica de los

docentes que trabajan en multisseriadas clases entre el conocimiento y el saber de

las comunidades riberentildeas de esta isla En una perspectiva maacutes amplia la

investigacioacuten pretende examinar coacutemo el saber de la escuela dialoga con otros

conocimientos derivados de la diversidad cultural y epistemoloacutegica por lo tanto de

caraacutecter popular Maacutes especiacuteficamente la investigacioacuten tiene como objetivo realizar

un estudio de los recuerdos de los habitantes de la isla de Accedilaiacute en relacioacuten a los

conocimiento presente en el discurso y en las praacutecticas diarias de los riberentildeos bien

como identificar en la praacutectica pedagoacutegica del maestro la presencia de los

conocimientos populares de riberentildeos y como es el diaacutelogo con la escuela y su

conocimiento descubrir coacutemo las poblaciones reasentadas si constituyeron en

Amazonia brasilentildea y la relacioacuten entre el conocimiento de las personas producidas

por esta poblacioacuten con los aspectos culturales sociales y econoacutemicos del municipio

de Afuaacute Es una investigacioacuten cualitativa de tipo etnograacutefico estudio en cinco

comunidades riberentildeas que conforman la isla de Accedilaiacute en el municipio de Afuaacute en el

estado de Paraacute la base para la fundamentacioacuten teoacuterica la Ecologiacutea del Conocimiento

propuesta por Boaventura de Souza Santos y el diaacutelogo desde la concepcioacuten en Paulo

Freire Los resultados indican que el saber de la poblacioacuten riberentildea estaacute relacionado

con el contexto social econoacutemico cultural y religioso en el que estaacute inmerso Estas

pueblos establecen entre siacute y con otros intercambio de materiales y simboacutelicas En

relacioacuten con el diaacutelogo sobre la praacutectica pedagoacutegica de docentes se produce

verticalmente (colonizacioacuten) y horizontal (descolonizadora) con el predominio de

praacutecticas coloniales en el que el diaacutelogo se produce verticalmente a traveacutes de la

imposicioacuten de conocimiento y el no reconocimiento del saber popular

Palabras clave Ecologiacutea del conocimiento Diversidad epistemoloacutegica Saber Popular

Amazonia

LISTA DE FOTOGRAFIAS

8

Fotografia 1 -Mina de ferro Carajaacutes no Estado do Paraacute

Fotografia 2 - Reassentamento coletivo urbano para os atingidos pela usina

Fotografia 3 - Vista aeacuterea da construccedilatildeo da barragem de Belo Monte em Altamira

Paraacute

Fotografia 4 - Peixes mortos ao longo das margens do Rio Araguari no municiacutepio de

Ferreira Gomes estado do Amapaacute

Fotografia 5 - Passarela de madeira no bairro Capimarinho

Fotografia 6 ndash Trabalhador autocircnomo (carreteiro) transportando mercadoria

Fotografia 7 - Igreja de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo

Fotografia 8 ndash Ribeirinho jogando a tarrafa no rio

Fotografia 9 ndashAacuterea desmatada para o plantio de milho

Fotografia 10 ndash Casas construiacutedas em aacuterea de invasatildeo no bairro Capimarinho

Fotografia 11 ndash Centro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery

Fotografia 12 ndash Classe multisseriada

Fotografia 13 ndash Laboratoacuterio de Informaacutetica da EMEF Frei Faustino Lagarda

Fotografia 14 -Escola ribeirinha que funciona como anexo

Fotografia 15 - Sala de aula de uma escola ribeirinha que funciona como anexo

Fotografia 16 - Escola Polo

Fotografia 17 - Preacutedio da Escola B

Fotografia 18 - Preacutedio da Escola E

Fotografia 19 ndash Cascos feitos de madeira Cedro

Fotografia 20 ndash Ribeirinho levando o filho para a escola no casco

Fotografia 21 ndash Ribeirinha pescando com o caniccedilo

Fotografia 22 ndash Ribeirinho com o filho colocando a malhadeira no rio

Fotografia 23 - Ribeirinho tecendo a malhadeira

Fotografia 24 ndash Matapi

Fotografia 25 - Benzedor benzendo uma crianccedila com susto

Fotografia 26 ndash Ribeirinha cuidando da horta

Fotografia 27 ndash Marupazinho

Fotografia 28 ndash Peacute de Mastruz

Fotografia 29 ndash Peacute de Capim Marinho

Fotografia 30 ndash Peacute de Noni

Fotografia 31 ndash Sementes de Cacau

9

Fotografia 32 ndash Erva Cidreira

Fotografia 33ndash Catinga de Mulata

Fotografia 34 ndash Palmeira de Buriti

Fotografia 35 - Peacutes de Accedilaiacute

Fotografia 36 ndash Menino subindo no Accedilaizeiro

Fotografia 38 ndash Instrumentos utilizados para a colheita de accedilaiacute

Fotografia 39 ndash Menina debulhando o cacho de accedilaiacute

Fotografia 40 ndash Amassadeira eleacutetrica

Fotografia 41 ndash Amassadeira manual

Fotografia 42 ndash Ribeirinha amassando o accedilaiacute com as matildeos

Fotografia 43 ndash Lista de conteuacutedos da disciplina Ciecircncias

Fotografia 44 ndash Fragmentos do conteuacutedo sobre ldquoecossistemardquo no caderno de aluno

Fotografia 45 ndash Fragmentos do conteuacutedo sobre ldquoos animaisrdquo no caderno de aluno

Fotografia 46 ndash Conteuacutedo referente ao tem ldquomoradiardquo abordado no livro didaacutetico da

disciplina Artes para o 1ordm 2ordm e 3ordm ano do ensino fundamental

Fotografia 47 ndash Sala de aula multisseriada

LISTA DE TABELAS

10

Tabela 01 - Membros do grupo ModernidadeColonialidade

Tabela 02 ndash Comparaccedilatildeo da produccedilatildeo de accedilaiacute no intervalo de quatro anos

Tabela 03 ndash Quantidade de Alunos matriculados no CEI

Tabela 04 ndash Percentual de atendimento das crianccedilas de 0 a 3 anos

Tabela 05 - Percentual de atendimento das crianccedilas de 4 a 5 anos em Afuaacute

Tabela 06 ndash Estabelecimentos de ensino fundamental por dependecircncia administrativa

Tabela 07 - Distorccedilatildeo idadeseacuterie no ensino fundamental

Tabela 08 - Taxa de rendimento escolar no ensino fundamental em 2015 ndash aacuterea

urbana

Tabela 09 ndash Escolas que compotildeem o Regional Madeira com o nuacutemero de alunos no

ano de 2016

Tabela 10 ndash Distribuiccedilatildeo das turmas da Educaccedilatildeo Infantil e anos iniciais do ensino

fundamental por professor

Tabela 11 ndash Os professores sujeitos da pesquisa

Tabela 12 ndash Os moradores sujeitos da pesquisa

Tabela 13 ndash Categorias aprioriacutesticas

Tabela 14 ndash Categorias aprioriacutesticas

Tabela 15 ndash Categorias natildeo aprioriacutesticas

LISTA DE MAPAS

11

Mapa 01 Localizaccedilatildeo Geograacutefica do municiacutepio de Afuaacute

Mapa 02 Mapa da ilha de Marajoacute indicando a proximidade de Afuaacute com o Macapaacute

LISTA DE SIGLAS

12

CAETA - Comissatildeo Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a

Amazocircnia

CEI- Centro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery

EJA - Educaccedilatildeo de Jovens e Adultos

ECA - Estatuto da Crianccedila e do Adolescente

ICOMI ndash Sociedade Brasileira de Industria e Comercio de Mineacuterios de Ferro e

Manganecircs

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica

IDH ndash Iacutendice de Desenvolvimento Humano

INEP ndash Instituto Nacional de Ediccedilotildees Pedagoacutegicas

IDEB ndash Iacutendice de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo Baacutesica

LDBEN ndash Lei de Diretrizes e Base da Educaccedilatildeo Nacional

MEC - Ministeacuterio da Educaccedilatildeo

NEC - Nuacutecleo de Educaccedilatildeo do Campo

PME - Plano Municipal de Educaccedilatildeo

PNAD ndash Pesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelio

PNDU -Programa das Naccedilotildees Unidas para o Desenvolvimento

PNLD- Programa Nacional do Livro Didaacutetico

SEMED - Secretaacuterias Municipais de Educaccedilatildeo

SEED - Secretaria de Estado da Educaccedilatildeo do Amapaacute

SEMTA - Serviccedilo Especial de Mobilizaccedilatildeo de Trabalhadores para a Amazocircnia

UEPA - Universidade do Estado do Paraacute

UNIFAP - Universidade Federal do Amapaacute

SUMAacuteRIO

13

APRESENTACcedilAtildeO 15

INTRODUCcedilAtildeO 19

1ESTUDOS TEOacuteRICOS DA PESQUISA 24

11A ECOLOGIA DE SABERES 24

111O Paradigma hegemocircnico 24

112 A crise do paradigma hegemocircnico 26

113 O Conhecimento Prudente para uma Vida Decente 28

114 A criacutetica da razatildeo indolente 30

115 Ecologia de Saberes o reconhecimento dos saberes nascido das lutas

dosoprimidos

38

12 A DESCOLONIZACcedilAtildeO EPISTEMOLOacuteGICA 42

121Os Estudos Poacutes-Coloniais 42

122A colonialidade do poder 47

123 Gnose ou pensamento liminar 53

13O DIAacuteLOGO ponto de partida para praacuteticas transformadoras 59

2 A EDUCACcedilAtildeO DAS POPULACcedilOtildeES RIBEIRINHAS NA AMAZOcircNIA 64

21 UM MERGULHO NA AMAZOcircNIA BRASILEIRA 64

22 POVOS DA AMAZOcircNIA os ribeirinhos 80

23 AFUAacute a Veneza Marajoara 85

231 Aspectos Histoacutericos Geograacuteficos e Econocircmicos 86

24 A EDUCACcedilAtildeO RIBEIRINHA NO MUNICIacutePIO DE AFUAacute 99

241 Educaccedilatildeo Infantil 99

242 Ensino Fundamental e Meacutedio 106

3 PERCURSO METODOLOacuteGICO 115

31 TIPO E LOCAL DA PESQUISA 115

32 PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS PARA A COLETA DE DADOS 120

33 CARACTERIZACcedilAtildeO DOS SUJEITOS DA PESQUISA 124

34 TEacuteCNICA DE ANAacuteLISE DOS DADOS 125

341 A emergecircncia das categorias de anaacutelise da Pesquisa 127

4ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS 130

41 O SABER POPULAR DOS RIBEIRINHOS DA ILHA DO ACcedilAIacute 130

411 Saberes das Aacuteguas 134

412 Saberes da Terra e da Mata 147

14

413 Saberes do Accedilaiacute 156

42 O DIAacuteLOGO ENTRE O CONHECIMENTO ESCOLAR E O SABER POPULAR 164

421 O Conhecimento Escolar 164

4211 O conhecimento escolar na oacutetica dos professores 166

422O Livro Didaacutetico 173

423O Planejamento das Aulas 180

4231 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma

perspectiva colonizadora

181

4232 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma

perspectiva descolonizadora

183

424 Metodologias de Ensino e Aprendizagem 186

4241 Professores que desenvolveram praacuteticas colonizadoras 187

4242 Professores que desenvolveram praacuteticas descolonizadoras 193

5CONCLUSAtildeO 206

REFERENCIAS 214

APEcircNDICES

APEcircNDICE A ndash Roteiro de entrevista para a comunidade 223

APEcircNDICE B ndash Roteiro de entrevista para os professores 224

APEcircNDICE C ndash Roteiro de observaccedilatildeo das aulas 226

APEcircNDICE D ndash Roteiro de observaccedilatildeo das atividades na comunidade 227

APRESENTACcedilAtildeO

15

Investigar a Amazocircnia eacute um desafio devido ao vasto territoacuterio que a compotildee e

a diversidade eacutetnica e cultural que a caracteriza A vastidatildeo geograacutefica e os aspectos

multiculturais das populaccedilotildees que habitam a regiatildeo fazem com que a Amazocircnia natildeo

seja concebida como uniacutevoca mas sim como espaccedilo pluralizado e multicultural

Nesses espaccedilos a populaccedilatildeo que eacute diversificada constroacutei e reconstroacutei

cotidianamente as Amazocircnias Nesta tese investigamos a Amazocircnia ribeirinha na

qual o rio e a mata tecircm um papel preponderante nos aspectos econocircmicos sociais

culturais e religiosos dos povos que habitam esta regiatildeo

Como oriundo da Amazocircnia Ribeirinha vivenciei desde a infacircncia a convivecircncia

com o rio por meio da pesca do peixe e camaratildeo dos banhos e brincadeiras nas

aacuteguas com a mata atraveacutes da caccedila de animais silvestres e feitura de roccedila para plantar

milho melancia mandioca macaxeira e maxixe para o consumo bem como trocar e

vender Tambeacutem aprendi a confeccionar os utensiacutelios necessaacuterios agrave produccedilatildeo

econocircmica dentre os quais o paneiro para colocar camaratildeo e o accedilaiacute o casco para

navegar nos rios o matapi para pegar o camaratildeo a malhadeira e o caniccedilo para

pescar dentre outros necessaacuterios para a sobrevivecircncia neste contexto

Minha famiacutelia era ribeirinha oriunda da Ilha dos Caraacutes no municiacutepio de Afuaacute

que pertence ao estado do Paraacute Como na ilha natildeo havia escola os pais que

quisessem que seus filhos estudassem tinham que mudar para cidade foi o que os

meus fizeram pois acreditavam que com acesso agrave educaccedilatildeo escolar seus filhos

poderiam ter uma vida melhor da que eles levavam Aos sete anos jaacute estava morando

em Macapaacute capital do estado do Amapaacute e matriculado na 1ordf seacuterie do ensino

fundamental

Inicialmentea convivecircncia com a escola natildeo foi muito boafui muitas vezes

repreendido pelas minhas professoras devido agrave forma como falava a minha

linguagem era oriunda do meio social no qual vivia ou seja dos ribeirinhos

considerada pela escola como ldquofeiardquo ldquoincorretardquo Assim dificilmente abria a boca nas

aulas geralmente apenas respondia ldquopresenterdquo na hora da chamada quando meu

nome era citado Isso me fez ter vergonha da minha proacutepria linguagem e para

sobreviver neste meio foi preciso reaprender a falar de acordo com a liacutengua dominante

considerada correta culta e hegemocircnica

Conclui o ensino fundamental e em 1985fui aprovado no teste de seleccedilatildeo para

o curso de formaccedilatildeo de professores a niacutevel meacutedio no Instituto de Educaccedilatildeo do

Territoacuterio do Amapaacute (IETA) instituiccedilatildeo puacuteblica que formava professores para atuar na

16

educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do ensino fundamental Durante o referido curso fui

aos poucos motivado pela professora da disciplina Didaacutetica e principalmente pelos

meus colegas de turma perdendo a timidez e ficando mais a vontade para falar pois

nas aulas a professora fazia perguntas queria saber nossa opiniatildeo sobre os temas

das aulas abria espaccedilo para o debate garantia a todos o direito agrave palavra

No ano de 1988 iniciei a carreira docente em uma escola ribeirinha no

Municiacutepio de Macapaacute Tinha acabado de concluir o curso de formaccedilatildeo de professores

para ldquoaprender a ensinarrdquo1e fui encaminhado juntamente com meus colegas receacutem-

formados para o interior2 O meio de transporte que utilizaram para nos distribuir nas

comunidades foi o caminhatildeo e onde o carro natildeo podia entrar trocaacutevamos o

caminhatildeo por barcos voadeiras ou catraios3 para chegar ao futuro local de trabalho

Era professor receacutem-formado sem experiecircncia de sala de aula tendo a

responsabilidade de ministrar aulas de 1ordf a 4ordf seacuteries em classes multisseriadas4

sozinho sem ter nenhum colega de trabalho para dividir as duacutevidas as anguacutestias e

as dificuldades Assim a docecircncia foi aprendida na praacutetica pois no curso de

formaccedilatildeo natildeo estudamos o processo de ensino e de aprendizagem com classes

multisseriadas Aliaacutes nunca discutimos a educaccedilatildeo ribeirinha apesar de vivermos na

Amazocircnia uma regiatildeo repleta de rios e florestas Trabalhei na escola para a qual fui

designado durante seis anos e vim para a cidade apoacutes a aprovaccedilatildeo no vestibular para

o curso de Pedagogia na Universidade Federal do Amapaacute (UNIFAP)

Concluiacuteda a graduaccedilatildeo passei a trabalhar como docente em uma instituiccedilatildeo

de formaccedilatildeo de professores para educaccedilatildeo infantil e seacuteries iniciais do ensino

fundamental Nesta escola formamos um grupo de estudos para discutir e refletir

sobre a educaccedilatildeo do campo na Amazocircnia e especificamente no Amapaacute A literatura

era escassa e tiacutenhamos acesso a poucas obras sobre o assunto Essa escassez

reflete os poucos estudos e investigaccedilotildees referentes a essa temaacutetica Em relaccedilatildeo a

isso explica Arroyo (2004 p 8) que ldquosomente 2 das pesquisas dizem respeito a

questotildees do campo natildeo chegando a 1 as que tratam especificamente da educaccedilatildeo

1 Expressatildeo usada pelo gestor do setor de Educaccedilatildeo do campo da Secretaria de Educaccedilatildeo na primeira e uacutenica reuniatildeo na qual fomos informados de que iriacuteamos trabalhar na zona rural 2 Expressatildeo comumente utilizada para se referir agraves escolas localizadas fora da aacuterea urbana do muniacutecipio 3 Pequenos barcos movidos a motor que fazem o transporte de pessoas e pequenas cargas nos rios da Amazocircnia 4 Escolas nas quais somente um professor (a) atua ao mesmo tempo e no mesmo espaccedilo com todas as turmas das seacuteries iniciais do ensino fundamental Em algumas comunidades o professor ou a professora assume tambeacutem a educaccedilatildeo infantil

17

escolar no meio ruralrdquo Isso nos fez criar um projeto no qual convidaacutevamos professores

das escolas ribeirinhas dos assentamentos das comunidades quilombolas das

regiotildees de garimpos dentre outras para dialogarem com os professores e os alunos

do magisteacuterio (como chamaacutevamos o curso de formaccedilatildeo de professores) Em seguida

decidimos ir ateacute essas escolas Foi um projeto ousado Enfrentamos muitos

obstaacuteculos que geralmente os educadores que atuam nessas instituiccedilotildees enfrentam

constantemente eles abrangem desde o apoio logiacutestico ateacute a burocracia das

Secretaacuterias Municipais de Educaccedilatildeo (SEMED)

Posteriormente em 2002 assumi a disciplina Estrutura e Funcionamento da

Educaccedilatildeo Baacutesica no curso de Pedagogia no polo5 de Afuaacute como professor substituto

na UNIFAP Este foi o primeiro contato que tive com o municiacutepio conhecido como a

ldquoVeneza Marajoarardquo famoso por seu Festival do Camaratildeo que atrai milhares de

pessoas de todos os cantos do paiacutes e do exterior no mecircs de julho

O polo universitaacuterio ao qual fui designado funcionava apenas nos meses de

janeiro e julho em uma escola puacuteblica de ensino fundamental e meacutedio Os alunos da

turma de Pedagogia eram todos professores nas escolas ribeirinhas6 pertencentes ao

sistema de ensino de Afuaacute As nossas aulas partiam das discussotildees das garantias

constitucionais sobre a educaccedilatildeo da Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional

e das receacutem-aprovadas Diretrizes Operacionais para a Educaccedilatildeo Baacutesica nas Escolas

do Campo uma vez que para eles estas leis ainda natildeo tinham ldquonascidordquo naquele

lugar visto que a realidade educacional vivenciada nas escolas ribeirinhas estava

longe do que estabelecem as leis

No ano de 2009 conclui o mestrado em Educaccedilatildeo pela Universidade do Estado

do Paraacute (UEPA) no qual investiguei a praacutetica pedagoacutegica do professor em escolas

ribeirinhas na Amazocircnia Paraense Em seguida comecei a trabalhar na Secretaria de

Estado da Educaccedilatildeo do Amapaacute (SEED) especificamente no Nuacutecleo de Educaccedilatildeo do

Campo (NEC) setor responsaacutevel pelo planejamento execuccedilatildeo e avaliaccedilatildeo dos cursos

de formaccedilatildeo continuada dos professores das escolas do campo da rede estadual de

ensino Trabalhei neste setor ateacute a minha aprovaccedilatildeo para cursar o doutorado

5 Os polos universitaacuterios funcionavam nos municiacutepios que firmavam convecircnio com a UNIFAP para a formaccedilatildeo em niacutevel superior dos professores do seu sistema de ensino 6 Utilizaremos a expressatildeo ldquoescolas ribeirinhasrdquo pois todas as escolas situadas no meio rural de Afuaacute satildeo ribeirinhas Acreditamos que assim destacaremos as singularidades da realidade vivenciada pelos atores sociais que vivem e sobrevivem do rio e da mata

18

Portanto a incursatildeo na temaacutetica da educaccedilatildeo ribeirinha na Amazocircnia faz parte

da minha histoacuteria de vida pessoal e profissional Neste estudo investigamos uma

faceta desta regiatildeo denominada de Amazocircnia Afuaense que aprofundamos no

decorrer desta tese

INTRODUCcedilAtildeO

Esta tese intituladaEcologia de Saberes um estudo do diaacutelogo entre o

conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute analisa no

acircmbito da educaccedilatildeo baacutesica especificamente na educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do

ensino fundamental o diaacutelogo entre diferentes tipos de conhecimentos Tecircm como

19

objeto de estudo investigar como dialogam o saber popular dos ribeirinhos da ilha do

Accedilaiacute e o saber escolar (saber hegemocircnico) na praacutetica pedagoacutegica dos professores

que atuam em classes multisseriadas nas escolas da referida ilha

Utilizamos como referencial teoacutericopara fundamentar a pesquisa a concepccedilatildeo

de ecologia de saberes proposta por Boaventura de Souza Santos e o diaacutelogo na

visatildeode Paulo Freire Na ecologia de saberes o mundo eacute um arco-iacuteris policromaacutetico

(SANTOS 2008) sendo assim haacute uma diversidade de culturas com diferentes formas

de produzir saberes que orientam suas atividades produtivas sociais culturais e

religiosas O reconhecimento da diversidade epistemoloacutegica existente no mundoeacute

essencial para que se efetivem praacuteticas nas quais os saberes possam dialogar numa

relaccedilatildeo de igualdade sem a imposiccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico como hegemocircnico

O termo ecologia de acordo com Santos (2008 p 157) ldquoassenta no reconhecimento

da pluralidade de saberes heterogecircneos da autonomia de cada um deles e da

articulaccedilatildeo sistemaacutetica dinacircmica e horizontal entre elesrdquo

Para Freire (2014) o diaacutelogo se constitui no encontro entre educador e

educandos que refletem e agem sobre o mundo a ser transformado e humanizado

Portanto o diaacutelogo eacute comunicaccedilatildeo pois conhecemos a realidade na interaccedilatildeo com

nossos semelhantes o que o torna tambeacutem social apesar da dimensatildeo individual

haja vista que eacute por meio dele que podemos atuar criticamente para transformar a

realidade na qual vivemos

O diaacutelogo segundo Freire (2014) para ser um elemento de humanizaccedilatildeo e

transformaccedilatildeo precisa ser repleto de amor humildade feacute e confianccedila nos homens

bem como esperanccedila aliada agrave luta pela mudanccedila No diaacutelogo todos tecircm que ter

garantido o direito agrave palavra que para o autor eacute considerada praacutexis (accedilatildeo-reflexatildeo-

accedilatildeo)

Assim investigamos o diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber popular

dos ribeirinhos na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam em classes

multisseriadas e desenvolvem suas atividades profissionais nas escolas situadas na

ilha do Accedilaiacute pertencente ao municiacutepio de Afuaacute no estado do Paraacute

A opccedilatildeo pelo referido municiacutepio deu-se por trecircs motivos O primeiro foi o contato

que tive como docente no polo da Universidade Federal do Amapaacute (UNIFAP) periacuteodo

em que vivenciei a formaccedilatildeo em niacutevel superior no curso de Pedagogia dos

professores do referido muniacutecipio Os constantes diaacutelogos dentro e fora da sala de

aula aguccedilaram-me o interesse em investigar a praacutetica pedagoacutegica com turmas

20

multisseriadas nas quais somente um professor assume a responsabilidade pelo

ensino de crianccedilas da educaccedilatildeo infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental e

tambeacutem de adolescentes e adultos porque nas comunidades ribeirinhas eacute comum

encontraacute-los estudando nas turmas do 1ordm ao 5ordm ano Sendo assim ldquoas classes

multisseriadas satildeo espaccedilos marcados predominantemente pela heterogeneidade ao

reunirem grupos com diferenccedilas de sexo de idade de interesses de domiacutenio de

conhecimentos de niacuteveis de aproveitamento etcrdquo (HAGE 2005 p 6)

O segundo motivo foi o nuacutemero significativo de escolas ribeirinhas de acordo

com os dados obtidos na Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo (SEMED) em 2015 foram

contabilizadas 207 escolas localizadas na zona rural7 Neste estudo satildeo

consideradas escolas ribeirinhas pois estatildeo situadas agraves margens de rios lagos furos

ou igarapeacutes nas comunidades ribeirinhas Este montante corresponde a 982 do

total de escolas do sistema municipal de ensino de Afuaacute que estaacute organizado

administrativa e pedagogicamente em 24 regionais Os regionais satildeo agrupamentos

de escolas de acordo com a sua localizaccedilatildeo geograacutefica Esta foi a estrateacutegia adotada

pela Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo (SEMED) para atender agrave diversidade

geograacutefica da regiatildeo

O terceiro motivo estaacute voltado para a continuidade da pesquisa que realizei no

mestrado na qual investiguei ldquoos saberes mobilizados e produzidos na praacutetica

pedagoacutegica dos professores ribeirinhos em classes multisseriadas que atuam na

referida ilhardquo Neste estudo cheguei agrave conclusatildeo de que os professores produzem

saberes a partir do contexto no qual desenvolvem suas atividades profissionais no

doutorado resolvi investigar como acontece o diaacutelogo entre o saber popular e o

escolar compreendendo que a maneira como o diaacutelogo ocorre na praacutetica pedagoacutegica

do professor estaacute vinculado com o saber produzido por este docente

Dentre os regionais optamos por continuar a investigaccedilatildeo no Regional

Madeira devido a algumas caracteriacutesticas que o distinguem dos outros regionais

dentre elas o horaacuterio das aulas nas escolas eacute de acordo com a mareacute ou seja os rios

e igarapeacutes da regiatildeo na mareacute vazante inviabilizam a entrada dos catraios para o

transporte dos alunos sendo necessaacuterio esperar a mareacute encher para poder adentraacute-

los a economia das comunidades que compotildeem o regional eacute baseada quase que

7 Os teacutecnicos da SEMED chamam escolas da zona rural mas todas as 207 escolas estatildeo localizadas em ilhas ou as margens de rios furos ou igarapeacutes por isso as consideramos ribeirinhas

21

exclusivamente na colheita do accedilaiacute Outra caracteriacutestica que nos fez optar pelo citado

regional foi a proximidade com Macapaacute onde reside o pesquisador o que viabilizou a

pesquisa de campo devido agrave facilidade de transporte (a viagem de catraio ateacute as

escolas do regional dura em meacutedia 90 a 120 minutos) e permanecircncia no local da

pesquisa8

Diante deste contexto partimos nesta investigaccedilatildeo da seguinte questatildeo

problema Como ocorre o diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam

em classes multisseriadas entre o conhecimento escolar e o saber popular das

comunidades ribeirinhas da ilha do Accedilaiacute

Como objetivo geral propomos analisar o modo como o saber escolar dialoga

com os outros saberes de caraacuteter popular decorrentes da diversidade cultural e por

isso epistemoloacutegica E como especiacuteficos Cartografar a partir das memoacuterias dos

moradores da ilha do Accedilaiacute os saberes presentes no discurso e nas praacuteticas cotidianas

dos ribeirinhos identificar na praacutetica pedagoacutegica do professor a presenccedila do saber

popular dos ribeirinhos e as formas como dialogam com o saber escolar averiguar

como as populaccedilotildees ribeirinhas foram se constituindona Amazocircnia brasileira e a

relaccedilatildeo entre o saber popular produzido por essa populaccedilatildeo com os aspectos

culturais sociais e econocircmicos do municiacutepio de Afuaacute

O municiacutepio de Afuaacute pertence ao estado do Paraacute Estaacute situado no arquipeacutelago

do Marajoacute que eacute uma ilha com uma aacuterea de aproximadamente 40100 kmsup2 eacute a maior

ilha do Brasil e tambeacutem a maior fluviomariacutetima do mundo

Afuaacute fica agraves margens dos rios Cajuuna Afuaacute e Marajozinho como a maioria

das cidades ribeirinhas na Amazocircnia nasceu ao redor de uma igreja catoacutelica

denominada Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo atraveacutes de terras doadas por Micaela

Ferreira no final do seacuteculo XIX Possui forte viacutenculo com os rios atraveacutes da pesca do

lazer e do uso como via para o meio de transporte Eacute uma cidade pequena de acordo

com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) de 2013 possuiacutea

em torno de 15 mil habitantes Localmente a prefeitura e alguns grupos de

propagandistas a definem como Veneza Marajoara ou Veneza Amazonense pois

a cidade se levanta sobre as aacuteguas Embora a comparaccedilatildeo seja supeacuterflua eacute fato que

8 Durante a pesquisa de campo fiquei hospedado nas escolas ribeirinhas onde fui gentilmente recebido pelos professores e comunidade local

22

a pequena cidade levantou-se pouco a pouco sobre o terreno de vaacuterzea criando uma

formosa obra em palafitas

O sistema de ensino do municiacutepio de Afuaacute eacute composto por escolas ribeirinhas

divididas em vinte e quatro regionais Os regionais satildeo agrupamentos de escolas que

estatildeo localizadas geograficamente proacuteximas Cada regional possui uma escola Poacutelo

que eacute responsaacutevel pela administraccedilatildeo de todas as demais que compotildeem o respectivo

regional Realizamos a pesquisa no Regional Madeira9 que abrange cinco escolas

situadas na ilha do Accedilaiacute10

Organizamos o texto destatese em quatro capiacutetulos No primeiroabordamos a

construccedilatildeo de um quadro teoacuterico para a anaacutelise do diaacutelogo entre o saber escolar e o

saber popular que consiste no referencial teoacuterico para discutir as categorias

aprioriacutesticas e natildeo aprioriacutesticas que emergiram da pesquisa de campo No segundo

capiacutetulo fizemos uma imersatildeo histoacuterica das populaccedilotildees ribeirinhas na Amazocircnia

realizamos um mergulho na Amazocircnia brasileira com ecircnfase nos povos das aacuteguas

em seguidaabordamos o municiacutepio de Afuaacutenosseus aspectos histoacutericos geograacuteficos

e econocircmicos com destaque paraa dimensatildeo educacional

No terceiro capiacutetulo descrevemos o percurso metodoloacutegico com o tipo e local

da pesquisa os procedimentos e instrumentos para a coleta de dados caracterizaccedilatildeo

dos sujeitos e a teacutecnica de anaacutelise dos dados No quarto capituloapresentamos a

cartografia a partir das memoacuterias dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute do saber popular o

qual classificamos em trecircs categorias saberes das aacuteguas saberes da terra e da mata

e saberes do accedilaiacute Efinalizamos o referido capiacutetulo analisando como ocorre o diaacutelogo

entre o conhecimento escolar e o saber popular na praacutetica pedagoacutegica dos

professores que atuam em classes multisseriadas nas escolas da ilha do accedilaiacute

classificamos essas praacuteticas em duas categorias natildeo aprioriacutesticas as colonizadoras

e as descolonizadoras

9 Nome fictiacutecio para preservar o anonimato do gestor e dos professores que atuam nas escolas pertencentes ao regional 10 Nome fictiacutecio para preservar o anonimato dos sujeitos da pesquisa que residem na ilha

23

1ESTUDOS TEOacuteRICOS DA PESQUISA

Nestecapiacutetulo fizemos a discussatildeo do referencial teoacuterico da pesquisa que

balizou as inferecircncias e interpretaccedilotildees das categorias aprioriacutesticas e natildeo aprioriacutesticas

11 A ECOLOGIA DE SABERES

Nesta seccedilatildeo com o objetivo de compreendermos a gecircnese da proposta

apresentada por Boaventura de Sousa Santos quanto agrave ecologia de saberes fizemos

24

uma abordagem referente ao paradigma hegemocircnico sua crise e a assunccedilatildeo de um

novo paradigma bem como a criacutetica da razatildeo indolente para chegarmos agrave concepccedilatildeo

das ecologias

111O Paradigma hegemocircnico

Segundo Santos (2008) o modelo hegemocircnico da ciecircncia moderna eacute oriundo

do modelo de racionalidade que se constituiu a partir da revoluccedilatildeo cientiacutefica do seacuteculo

XVI Gruumln (2002) considera que esta revoluccedilatildeo de cunhocientiacutefico e filosoacutefico sofreu

marcadas influecircncias de Galileu Galilei (1564-1642) Francis Bacon (1561-1626)Reneacute

Descartes (1596-1650) e de Isaac Newton (1642-1727) e guiaram as accedilotildees dos

sujeitos na civilizaccedilatildeoocidental

De acordo com Perez Filho(2003) Galileu foi quem primeiro descreveu a

Natureza em uma linguagem fiacutesico-matemaacutetica No seacuteculo XVI estabeleceu

matematicamente a Lei dos Corpos em seu manuscrito De MotuAfirma Gruumln (2002)

que a qualidade dos os objetos para Galileu natildeo eram semelhantes e sim diferentes

sendo elas primaacuterias e secundaacuterias As primaacuterias satildeo concretas e natildeo estatildeo

diretamente relacionadas ao pensamento As secundaacuterias por serem subjetivas estatildeo

ligadas a sensibilidade Galileu achava que a experimentaccedilatildeo era fundamental para a

comprovaccedilatildeo (MORAES 1997) assim determinava a importacircncia da quantificaccedilatildeo

dos fenocircmenos

Para Francis Bacon de acordo com Moraes (1997) a experiecircncia nos conduz

ao correto e exato conhecimento dos fenocircmenos logo o empirismo e sua loacutegica

dedutiva criados por Bacon trouxeram uma nova metodologia baseada na

experimentaccedilatildeo cientiacutefica Nesse sentido rompe com o antigo modo de pensamentoe

fortalece a superioridade do Homem em relaccedilatildeo agrave Natureza (GRUumlN 2002)

Diferentemente de Bacon para Descartes o conhecimentoeacute obtido a partir da

intuiccedilatildeo e da deduccedilatildeo anatureza humana tem suaessecircnciano pensamento e de a

verdade estaacute nas coisas que concebemos de forma clara e distintaA obra Discurso

do Meacutetodo apresenta a divisatildeo dopensamento e dos fenocircmenos em infinitas partes

sendo que a disposiccedilatildeo delas ocorre a partir de uma sequecircncia loacutegicaNa visatildeo

cartesiana a ecircnfase nas partes em detrimento do todo caracteriza a divisibilidade do

objeto que eacute compartimentado em partes infinitas (DESCARTES 1996)

Na referida obra Descartes assinala a oposiccedilatildeo entre homem-natureza na

qual o homem passa definitivamente a ser visto como centro do mundo e um sujeito

superior agrave Naturezasujeito-objeto mente-corpo e espiacuterito-mateacuteria bem como o

25

caraacuteter pragmaacutetico do conhecimento como recurso infinito e ilimitado no domiacutenio dos

processos afirma o autor ldquo[] conhecimentos que sejam uacuteteis agrave vida em vez dessa

filosofia especulativa que se ensina nas escolas []rdquo (DESCARTES 1996 p 69)

Isaac Newton dando continuidade ao pensamento de Descartes sedimentou

a visatildeo de mundo como uma maacutequina governada por leis imutaacuteveis fortalecendo

desta forma o paradigma mecanicista Para o fiacutesico o mundo considerado

umsistema mecacircnico pode ser descrito objetivamenteo que levou a descriccedilatildeo objetiva

da Natureza como o ideal para a ciecircncia (MORAES 1996)

Dentre os pressupostos do pensamento cartesiano-newtoniano estaacute a divisatildeo

e a modelagem do fenocircmeno em estudo em diversas partes para compreendecirc-lo Esta

forma de conceber a ciecircncia vai ao encontro dos interesses do capital que o utiliza

para organizaccedilatildeo da sociedade burguesa Outro fator de relevacircncia para o avanccedilo da

ciecircncia moderna na concepccedilatildeo de Ribeiro (2007 p 58) foi o movimento iluminista

na Europa que

[] em meados doseacuteculo XVIII reforccedilou o pensamento cartesiano-newtonianoOs iluministas consideram que o Homem eacute um ser dotado de razatildeo e que essedeveria se emancipar atraveacutes do seu saber O Iluminismo expurga os resquiacutecios religiosos medievais e autentica a visatildeoantropocecircntrica e pragmaacutetica no imaginaacuterio cultural e no universo ideoloacutegico apartir do momento em que haacute uma transposiccedilatildeo agraves regras loacutegico-formais daperspectiva mecanicista das ciecircncias naturais para as ciecircncias humanasculminando no movimento conhecido como positivismo

Nesse intento o que natildeo se pode transformar em nuacutemeros eacutedesconsiderado

pelo positivismo moderno e o conhecimento que natildeo tem utilidade e tambeacutem natildeo pode

ser calculado eacute descartado pela visatildeo iluminista Desta maneira soacute pode ser

considerado verdadeiro aquilo que eacutequantitativamente medido

Desta maneira a quantificaccedilatildeo dos fenocircmenos pelo emprego rigoroso de

mediccedilotildees se consolidou sem levar em consideraccedilatildeo as qualidades do objeto pois o

objetivo era quantificar e reduzir a complexidade do mundo por meio da divisatildeo

classificaccedilatildeo e posterior determinaccedilatildeo de relaccedilotildees entre o que foi separado Assim o

conhecimento eacute validado se for dirigido pelos preceitos dessa racionalidade cientiacutefica

Para Santos (2008) o paradigma moderno estabelece a separaccedilatildeo entre o que eacute

cientiacutefico e que eacute senso comum separa natureza e humanidade natildeo aceita como

vaacutelidas o conhecimento oriundo das experiecircnciascotidianas

Desta forma a ciecircncia moderna elabora as leis a partir de uma visatildeo do

conhecimento cientiacutefico como causal e que guiam as pesquisas nas ciecircncias naturais

26

e sociais de acordo com os preceitos mecanicistas baseados na seguranccedila

previsibilidade ordem e estabilidade

Esse paradigma das ciecircncias naturais foi aplicado tambeacutem nas ciecircncias sociais

emergentes pois ldquotal como foi possiacutevel descobrir as leis da natureza seria igualmente

possiacutevel descobrir as leis da sociedaderdquo (SANTOS 2008 p 45) Tornando-se

hegemocircnico e negando as outras formas de conhecimento que natildeo se guiam

pelosseus princiacutepios epistemoloacutegicos Segundo o autor as pesquisas na aacuterea das

ciecircncias sociais no seacuteculo XIX abrangem duas vertentes A primeira com a aplicaccedilatildeo

da metodologia das ciecircncias da natureza dentre os seus percussores estaacute Durkheim

que concebia as ciecircncias sociais como parte das naturais A segunda preconizava

uma epistemologia e metodologia de acordo com o objeto de estudo das ciecircncias

sociais teve como principais representantes Max Weber e Peter WinchPara Santos

(2010)as duas correntes estavam atreladas ao paradigma da ciecircncia moderna por

mais que a segunda representasse a crise e inicio da transiccedilatildeo para outro paradigma

cientiacutefico

112 A crise do paradigma hegemocircnico

Apenas no desenrolar do seacuteculo XX a soberania da ciecircncia moderna comeccedila a

ser coloca em discussatildeo afirma Santos (2008) que o questionamento da soberania

epistemoloacutegica hegemocircnica fruto da sua crise traz no seu interior o paradigma

emergente

Paradoxalmente eacute o avanccedilo da ciecircncia moderna que a levaraacute a sua crise

[hellip] a identificaccedilatildeo dos limites das insuficiecircncias estruturais do paradigmacientiacutefico moderno eacute o resultado do grande avanccedilo no conhecimento que elepropiciou O aprofundamento do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda (SANTOS 2008 p 41)

Segundo Santos (2008)esta crise profunda e irreversiacutevel foi paulatinamente

gerada por diversas condiccedilotildees teoacutericas e sociais Dentre as teoacutericas estatildeo ateoria da

relatividade de Einsteinque relativizou as leis de Newton a mecacircnica quacircntica os

questionamentos da matemaacutetica e os avanccedilos tecnoloacutegicos da microfiacutesica quiacutemica e

biologia Em relaccedilatildeo agrave mecacircnica quacircntica para Santos (2008) natildeo eacute possiacutevel natildeo

interferi no objeto de investigaccedilatildeo mesmo quando estamos observando-o ou

quantificando-o Desta maneira o limite do conhecimento torna-se evidente

mostrando que as leis da fiacutesica satildeo meramente probabiliacutesticaso que demonstra a

inviabilidade do determinismo mecanicista fica evidente que ldquoa totalidade do real natildeo

27

se reduz agrave soma das partes e a distinccedilatildeo entre o sujeito e o objeto eacute complexardquo (idem

p 56)

Outro fator que evidencia a crise deste paradigma eacute a possibilidade de

formulaccedilatildeo de proposiccedilotildees que natildeo podem ser demonstradas muito menos refutadas

pela medicaccedilatildeo e quantificaccedilatildeo A teoria de Ilya Prigogine vem revolucionar a

concepccedilatildeo de mateacuteria e de natureza contribuindo para o avanccedilo cientifico da

microfiacutesica da quiacutemica e da biologia

Segundo Morin (2003) os princiacutepios do paradigma hegemocircnico se tornaram

cada vez mais cegos ldquoo princiacutepio de ordem que o determinismo absoluto traduzia natildeo

reina mais no universo O princiacutepio da separabilidade ou disjunccedilatildeo encontrou seus

limites em qualquer acepccedilatildeo teoacutericardquo (2003 p 43) Em relaccedilatildeo ao objeto o referido

autor destaca que o seu isolamento do contexto no qual se encontra e a sua inclusatildeo

num ambiente artificial perde a validade para tudo que eacute vivo A induccedilatildeo e a deduccedilatildeo

demonstraram seus limites assim como a contradiccedilatildeo natildeo sinaliza mais o erro o que

caracteriza a emergecircncia de um novo tipo de verdade

Deste modo para Morin (2010) a impossibilidade de uma visatildeo global do

fenocircmeno dar-se-ia pela disjunccedilatildeo e pela reduccedilatildeo que constituem uma ignoracircncia do

pensamento

A ciecircncia claacutessica havia dissolvido o Cosmo a Natureza e o Sujeito Humano O Cosmos poreacutem ressuscitou a partir de uma cosmologia oriunda da descoberta da expansatildeo do universo A Natureza ressuscitou com a ciecircncia ecoloacutegica Se o sujeito foi expulso da ciecircncia objetiva o retorno do sujeito eacute indispensaacutevel isso porque o objeto do conhecimento eacute coproduzido por nossas projeccedilotildees mentais sobre a realidade exterior e pela introduccedilatildeo via traduccedilatildeo e reconstruccedilatildeo dessa realidade exterior em nossa mente (MORIN 2010 p 244)

No que concerne agraves possiblidades de uma visatildeo global Santos (2008) defende

a transdisciplinaridade que abrange conjuntamente as ciecircncias da natureza e as

sociais que vai de encontro ao modelo mecanicista linear da ciecircncia moderna O

questionamento das leis da natureza faz parte da crise do paradigma dominante

dentre elas a ideia de que os fenocircmenos observados independem de tudopara Santos

(2008) as leis da ciecircncia moderna simplificam de forma arbitraria a realidade

Dentre as condiccedilotildees sociais que contribuiacuteram para a crise do paradigma

moderno destaca a industrializaccedilatildeo da ciecircncia e o seu compromisso com o poder

econocircmico social e poliacutetico os quais passaram a definir as prioridades cientiacuteficas as

relaccedilotildees de poder autoritaacuterias e desiguais entre os cientistas a proletarizaccedilatildeo no

interior dos laboratoacuterios e centros de estudos o acesso aos equipamentos

28

contribuindo para o aprofundamento do fosso cientiacutefico entre paiacuteses centrais e paiacuteses

perifeacutericos (SANTOS2008)

113 O Conhecimento Prudente para uma Vida Decente

Contrapondo-se ao paradigma da ciecircncia moderna em 1987 na obra Um

discurso sobre as ciecircncias Santos (2008) apresenta um novo paradigma que

denominou de ldquoum conhecimento prudente para uma vida decenterdquo que natildeo eacute

somente cientiacutefico mas tambeacutem um paradigma social Quatro teses satildeo defendidas

pelo autor para justificaacute-lo Na primeira afirma que todo conhecimento cientiacutefico-

natural eacute cientiacutefico-social aglutinando desta maneira as ciecircncias naturais e as

ciecircncias sociais com ecircnfase na segunda

[hellip] trata-se de saber qual seraacute o lsquoparacircmetro de ordemrsquo segundo Haken ou o lsquoatractorrsquo segundo Prigogine dessa superaccedilatildeo se as ciecircncias naturais se as ciecircncias sociais [hellip] Para natildeo irmos mais longe quer a teoria das estruturas dissipativas de Prigogine quer a teoria sinergeacutetica de Haken explica o comportamento das partiacuteculas atraveacutes dos conceitos de revoluccedilatildeo social violecircncia escravatura dominaccedilatildeo democracia nuclear todos eles originaacuterios das ciecircncias sociais [hellip] (SANTOS 2010 p 40-41)

Assim o autor esclarece que a superaccedilatildeo da dicotomia entre ciecircncias naturais

e sociais ocorreraacute com a preponderacircncia das ciecircncias sociais a valorizaccedilatildeo dos

estudos humaniacutesticos a rejeiccedilatildeo dos preceitos do positivismoo fim dahierarquia entre

os tipos de conhecimentos O sujeito nesta tese estaacute como protagonista do

conhecimento

Na tese ldquotodo conhecimento eacute local e totalrdquo o conhecimento poacutes-moderno

caracteriza-se pela pluralidade metodoloacutegica interdisciplinaridade

etransdisciplinaridade envolvendo as diversas ciecircncias Assim Santos (2010 p

46)exemplifica ldquoo direito que reduziu a complexidade da juriacutedica agrave secura da

dogmaacutetica redescobre o mundo filosoacutefico e socioloacutegico em busca da prudecircncia

perdidardquo A ampliaccedilatildeo da medicina com um o olhar mais abrangente jaacute que ldquoa

hiperespecializaccedilatildeo do saber meacutedico transformou o doente numa quadriacutecula sem

sentidordquo (Idem p 46) A divisatildeo do conhecimento que passa de disciplinar para ser

temaacutetica ldquoOstemas satildeo galerias por onde os conhecimentos progridem ao encontro

uns dos outrosrdquo (SANTOS 2010 p 76) Temas que satildeo gerados e adotados pelos

grupos sociais e assim tornam-se projetos de vida locais

Na terceira tese o autor explica que ldquotodo conhecimento eacute autoconhecimentordquo

Deixa claro a ligaccedilatildeo entre sujeito e objeto poisno ato de produccedilatildeo do conhecimento

as trajetoacuterias de vida os valores e crenccedilas do pesquisador estatildeo presentes Desta

29

forma ldquoo caraacuteter autobiograacutefico e auto referenciaacutevel da ciecircncia eacute plenamente

assumidordquo(SANTOS 2010 p 83) Assim o objeto passa a ser uma extensatildeo do

sujeito implicando que em uma pesquisa seja adquirido conhecimento sobre o objeto

e sobre o proacuteprio sujeito

Na uacuteltima tese Santos (2010) afirma que ldquotodo conhecimento cientiacutefico visa

constituir-se em senso comumrdquo O autor destaca que a conversatildeo do conhecimento

cientiacutefico poacutes-moderno em senso comum possibilitaraacute a sua valorizaccedilatildeo e o seu

reconhecimento

A ciecircncia poacutes-moderna ao sensocomunizar-se natildeo despreza o conhecimentoque produz tecnologia mas entende que tal como o conhecimentose deve traduzir em autoconhecimento o desenvolvimento tecnoloacutegico devetraduzir-se em sabedoria de vida Eacute esta que assinala o marco da prudecircnciaagrave nossa aventura cientiacutefica (SANTOS 2010 p 91)

As quatro teses defendidassuscitam novas formas de racionalidades

sustentadasem vertentes holiacutesticas Inter e transdisciplinar Em uma reflexatildeo criacutetica

feita apoacutes duas deacutecadas da publicaccedilatildeo do Discurso sobre as Ciecircncias11 o autor

destaca que nas transiccedilotildees as mudanccedilas no paradigma dominante satildeo mais

evidentes que aemergecircncia de um novo paradigmaLevanta a hipoacutetese de que ldquoo

paradigma emergente seja de facto um conjunto de paradigmas ou seja a

coexistecircncia de uma pluralidade de epistemologias irredutiacuteveis a uma epistemologia

geralrdquo (SANTOS 2007 p 2)

Os conhecimentos que satildeo elaborados e reelaborados pelos ribeirinhos na

Amazocircnia que orientam as suas accedilotildees sociais culturais econocircmicas e religiosas

fazem parte destas epistemologias que dialogam de forma vertical ou horizontal

Verticalmente quando natildeo satildeo reconhecidos como vaacutelidos neste caso a

epistemologia dominante eacute imposta como a uacutenica maneira de conceber o mundo

Horizontalmente quando haacute o reconhecimento e a valorizaccedilatildeo desse saber eacute o

queSantos (2007) chama de conhecimento prudente poisbrotados diaacutelogos e das

constelaccedilotildees de saberes que permitem construir enquantoque as epistemologias

dominantes impossibilitam a comunicaccedilatildeo entre os conhecimentos pois ldquoO importante

eacute salientar a incompletude de todos os conhecimentos e o potencialque existe nos

diaacutelogos entre eles []rdquo (SANTOS 2012 p 3)

11Em torno de um novo paradigma soacutecio-epistemoloacutegico Manuel Tavares conversa com Boaventura de Sousa Santos Revista Lusoacutefona de Educaccedilatildeo Lisboa n10 p131-140 2007

30

O mundo segundo o autor eacute um arco-iacuteris policromaacutetico com diversidades de

culturas que produzem infinitas epistemologias daiacute a importacircncia de torna-las visiacuteveis

Eacute o que pretendemos nesta tese ao dar visibilidade aos saberes dos povos das

aacuteguas12 ao trazecirc-los para a reflexatildeo e problematizaccedilatildeo demonstrar que tais saberes

possuem uma racionalidade e uma loacutegica proacutepria de construccedilatildeo (satildeo praacuteticos

construiacutedos e reconstruiacutedos de acordo com as necessidades dos sujeitos)

socializaccedilatildeo (transmitidos por meio da oralidade) e validaccedilatildeo (baseada na utilidade

crenccedila e nos costumes locais) aleacutem de contribuiacuterem para a formaccedilatildeo de identidades

e subjetividades

Ao defender a diversidade epistemoloacutegica Santos (2012) problematiza

questotildees referentes ao colonialismo poacutes-colonialismo e a interculturalidade a partir

da criacutetica agrave razatildeo moderna que abordamos a seguir

114 A criacutetica da razatildeo indolente

A razatildeo indolente segundo Santos (2007) eacute uma racionalidade que norteia

nossa maneira de pensar a forma como concebemos a vida e o mundo bem como a

produccedilatildeo da ciecircncia considerada uma razatildeo uacutenica eurocecircntrica e ocidental

excluindo outras formas de conhecimento A exclusatildeo dar-se-aacute pela natildeo aceitaccedilatildeo da

validade dos conhecimentos alternativos por natildeo terem passado pelos rigores que

requer o conhecimento cientiacutefico O desenvolvimento desta razatildeo afirma o autor deu-

se dentro de contextos que possibilitaram a sua emergecircncia dentre os quais

destacam-se a consolidaccedilatildeo do Estado Liberal na Europa e na Ameacuterica do Norte as

revoluccedilotildees industriais o desenvolvimento capitalista o colonialismo e o imperialismo

A indolecircncia da razatildeo criticada neste ensaio ocorre em quatro formas diferentes a razatildeo impotente aquela que natildeo se exerce porque pensa que nada pode fazer contra uma necessidade concebida como exterior a ela proacutepria a razatildeo arrogante que natildeo sente necessidade de exercer-se porque se imagina incondicionalmente livre e por conseguinte livre da necessidade de demonstrar a sua proacutepria liberdade a razatildeo metoniacutemica que se reivindica como a uacutenica forma de racionalidade e por conseguinte natildeo se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade ou se o faz faacute-lo apenas para tornaacute-los em mateacuteria-prima e a razatildeo proleacuteptica que natildeo se aplica a pensar o futuro porque julga que sabe tudo a respeito dele e o concebe como uma superaccedilatildeo linear automaacutetica e infinita do presente (SANTOS 2002 p 240)

A razatildeo indolente portanto eacute a hegemocircnicade base epistemoloacutegica positivista

que desconsidera outras epistemoloacutegicas assim como exclui toda diversidade

cultural deixando-as na invisibilidade

12 Como satildeo conhecidos os ribeirinhos na Amazocircnia

31

Estermann (2009 p 54) estabelece a diferenccedila entre colonizaccedilatildeo e

colonialismo

Mientras que ldquocolonizacioacutenrdquo es el proceso (imperialista) de ocupacioacuten ydeterminacioacuten externa de territorios pueblos economiacuteas y culturas por partede un poder conquistador que usa medidas militares poliacuteticas econoacutemicasculturales religiosas y eacutetnicas lsquocolonialismorsquo se refiere a la ideologia concomitante que justifica y hasta legitima el orden asimeacutetrico y hegemoacutenicoestablecido por el poder colonial

Desta forma o colonizador impocircs a todos os povos a sua cultura os seus

modos de ver o mundo o seu conhecimento a sua epistemologia universalizando-os

e absolutizando-os assim moldou e formatou consciecircncias colonizou o pensamento

por meio de uma uacutenica loacutegica a eurocecircntrica

Corroborando com esta visatildeo Santos (2014 p 28) afirma que ldquo[] o fim do

colonialismo enquanto relaccedilatildeo poliacutetica natildeo acarretou o fim do colonialismo enquanto

relaccedilatildeo social enquanto mentalidade e forma de sociabilidade autoritaacuteria e

discriminatoacuteria []rdquo As contradiccedilotildees geradas pelo colonialismo ainda estatildeo presentes

e se manifestam na cultura no racismo no autoritarismo nas relaccedilotildees sociais e

dominam as relaccedilotildees internacionais

Mas segundo o autor eacute no vieacutes epistemoloacutegico que o colonialismo assume

maior centralidade por meio da imposiccedilatildeo do conhecimento hegemocircnico o que

caracteriza uma perspectiva redutora do conhecimento que impede o surgimento de

outras perspectivas epistemoloacutegicas

O colonialismo para aleacutem de todas as dominaccedilotildees por que eacute conhecido foi tambeacutem uma dominaccedilatildeo epistemoloacutegica uma relaccedilatildeo extremamente desigual de saber-poder que conduziu agrave supressatildeo de muitas formas de saber proacuteprias dos povos e naccedilotildees colonizados relegando muitos outros saberes para um espaccedilo de subalternidade (SANTOS MENESES 2010 p 11)

Efetivamente o conhecimento tornou-se um instrumento imperial de

colonizaccedilatildeo Desta maneira uma das tarefas necessaacuterias segundo Quijano (1994) e

Mignolo (2003) eacute a de descolonizar o conhecimento o que requer descolonizar a

loacutegica e o modelo de racionalidade excludente ldquodescolonizar o imaginaacuterio

reprogramar o pensamento no sentido de desmantelar a matriz colonial do poderrdquo

(MIGNOLO 2003 p12) reconhecendo que em outros lugares tambeacutemocorre

manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas

Para Santos (2010) o motivo da preponderacircncia da razatildeo indolente estaacute na

supressatildeo da diversidade epistemoloacutegica dos outros povos pela exclusatildeo e

32

silenciamento de toda riqueza presente na diversidade cultural que natildeo atenda aos

interesses do capitalismo fato que ocorreu por meio da dominaccedilatildeo politica

econocircmica e militar nas sociedades colonizadas Balandier (1995) acrescenta a accedilatildeo

missionaacuteria tambeacutem como forma de dominaccedilatildeo ideoloacutegica O problema da dominaccedilatildeo

colonial foi analisado por Gruzinski (2003) a partir do que ficou oculto do que se

passou na esfera do invisiacutevel da mentalidade que resultou na colonizaccedilatildeo do

imaginaacuterio e construiu a maneira atraveacutes da qual os povos colonizados veem o mundo

e a si mesmos

O rompimento desta hegemonia requer ldquomudanccedilas profundas na estruturaccedilatildeo

dos conhecimentos para isso eacute necessaacuterio comeccedilar por mudar a razatildeo que preside

tanto aos conhecimentos como a estruturaccedilatildeo delesrdquo (SANTOS 2002 p 241) O

propoacutesito desta pesquisa eacute exatamente contribuir para este desafio por meio do

reconhecimento de outras racionalidades que estruturam os conhecimentos locais a

partir de pressupostos voltados para as questotildees culturais sociais e religiosas natildeo

somente as econocircmicas

Aponta o citado autor as consequecircncias dessa monocultura do saber assim

como a possibilidade de outras epistemologias em outros lugares onde existem

manifestaccedilotildees e epistemologias proacuteprias denominadas de epistemologias do sul

Trata-se do conjunto de intervenccedilotildees epistemoloacutegicas que denunciam asupressatildeo dos saberes levada a cabo ao longo dos uacuteltimos seacuteculos pelanorma epistemoloacutegica dominante valorizam os saberes que resistiram comecircxito e as reflexotildees que estes tecircm produzido e investigam as condiccedilotildees deum diaacutelogo horizontal entre conhecimentos A esse diaacutelogo entre sabereschamamos ecologias de saberes (SANTOS MENESES 2010 p 7)

Toda essa diversidade que caracteriza as epistemologias do sul foi omitida

pela dominaccedilatildeo capitalista do mundo Para o autor as epistemologias satildeo geradas

nas relaccedilotildees sociais por isso todo conhecimento eacute fruto da relaccedilatildeo entre sujeitos

situados num contexto histoacuterico politico e cultural Desta forma o criteacuterio de validade

do conhecimento deve estaacute ligado a sua contextualidade Assim as experiecircncias

sociais englobam uma gama de conhecimentos com seus criteacuterios de validade

individual sendo instituiacutedos por conhecimentos rivais (SANTOS2008)

Conclui-se entatildeo que se produz e reproduz conhecimento a partir da

experiecircncia social por meio de diversas epistemologias eacute o que ocorre nas

comunidades ribeirinhas na Amazocircnia nas quais os sujeitos em muacutetua interaccedilatildeo

produzem e reproduzem saberes nas suas praacuteticas sociais Assim a proposta do

33

autor eacute dar visibilidade aos conhecimentos construiacutedos nas diversas praacuteticas sociais

e que foram excluiacutedos pelo exclusivismo da ciecircncia moderna

O conceito de Sul natildeo eacute geograacutefico eacute ldquoo sul anti-imperial anti-patriarcal anti-

colonial eacute esse sul que se transforma numa experiecircncia fundadora de uma proposta

mitoloacutegica que obviamente se parte do sofrimento soacute tem um objetivo que eacute atacar

as causas desse sofrimentordquo (SANTOS 2008 p 24) Portanto a metaacutefora do

sofrimento humano fruto do capitalismo eacute que o caracteriza Aprender com o Sul

requer um rompimento com o Norte imperial

[] Mas admito que o Sul eacute ele proacuteprio um produto do impeacuterio e por isso a

aprendizagem com o Sul exige igualmente a desfamiliarizaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao

Sul imperial ou seja em relaccedilatildeo a tudo que no Sul eacute o resultado da relaccedilatildeo

colonial capitalista (SANTOS 2008 p 33)

Neste sentido o aprender com o Sul requer a descolonizaccedilatildeo das nossas

mentes que foram colonizadas pelo Norte desta maneira poderemos eliminar os

restiacutecios deixados pelo colonizador assim soacute se aprende com o Sul ldquo[] na medida

em que se contribui para a sua eliminaccedilatildeo enquanto produto do impeacuteriordquo (SANTOS

2008 p 33) Isto pede o reconhecimento da diversidade e a afirmaccedilatildeo das diferenccedilas

bem com o combate da visatildeo segundo Tavares (2014 p 1) de ldquoum saber

institucionalizado no Ocidente a um repositoacuterio axioloacutegico esteacutetico e cognitivo que foi

produzido pela humanidade e que se auto define como universalrdquo

Essa racionalidade tem grande influecircncia na nossa forma de pensar ler e ver

o mundo por isso a leitura que fazemos da realidade estaacute imbricada por uma razatildeo

que direciona o nosso olhar que natildeo nos possibilita vislumbrar a riqueza

epistemoloacutegica presente no entorno Esta visatildeo unilateral monocultural eacute produzida

de acordo com Santos (2007) pela razatildeo indolente que se manifesta principalmente

por meio de duas razotildees a metoniacutemica e a proleacuteptica

Segundo o autor a razatildeo metoniacutemica eacute uma figura da teoria literaacuteria e da

retoacuterica que significa tomar a parte pelo todo ldquoE essa eacute uma racionalidade que

facilmente toma a parte pelo todo porque tem um conceito de totalidade feito de partes

homogecircneas e nada do que fica fora dessa totalidade interessardquo (SANTOS 2008 p

25) Onatildeo existente eacute o que estaacute fora desta totalidade para isso faz-se a contraccedilatildeo

do presente ldquoporque deixa de fora muita realidade muita experiecircncia e ao deixaacute-las

de fora ao tornaacute-las invisiacuteveis desperdiccedila a experiecircnciardquo(idem p 26) As experiecircncias

cotidianas por natildeo estarem atreladas a esta razatildeo impossibilitam outras leituras do

mundo que diferem da hegemocircnica

34

Esse reducionismo eacute gerado por ideias alicerccediladas na simetria dicotocircmica e a

hierarquia que impossibilitam visotildees mais abrangentes do tempo presente e assim

acabam por limitar condicionar e ate mesmo inviabilizar o conhecimento das demais

experiecircncias

[] Entatildeo a razatildeo metoniacutemica tem essa dupla ideia das dicotomias e das hierarquias por isso natildeo eacute possiacutevel pensar fora das totalidades natildeo posso pensar no sul sem o norte a mulher sem o homem natildeo posso pensar o escravo sem o amo Mas o que devemos inquirir eacute que se nessas realidades natildeo haacute coisas que estatildeo fora dessa totalidade o que haacute na mulher que natildeo depende da relaccedilatildeo com o homem [] ou seja pensar fora da totalidade [] (SANTOS 2007 p 28)

Assim a compreensatildeo do mundo vai aleacutem da visatildeo eurocecircntrica haacute outras

maneiras de enxergar o mundo que transcende a razatildeo metoniacutemica na qual as partes

satildeo pensadas em relaccedilatildeo direta com a totalidade Para pensar fora dessa totalidade

que eacute homogecircnea e excludente o autor propotildee a sociologia das ausecircncias que eacute

ldquouma sociologia insurgente para tentar mostrar que o que natildeo existe eacute produzido como

natildeo existente invisiacutevel agrave realidade hegemocircnica do mundordquo (idem p 30) O que eacute

ausente eacute produzido propositalmente para reduzir a realidade ao que existe As

ausecircncias satildeo produzidas afirma Santos (2008) a partir de cinco monoculturas do

saber e do rigor do tempo linear da naturalizaccedilatildeo das diferenccedilas da escala

dominante e a do produtivismo capitalista

Na primeira monocultura a do saber e do rigor os conhecimentos populares

natildeo satildeo visibilizados porque natildeo passam pelos rigores da ciecircncia positivista

reconhecido como uacutenico criteacuterio de validaccedilatildeo portanto as praacuteticas sociais alicerccediladas

nesses saberes dentre elas as dos ribeirinhos natildeo existem agrave luz da ciecircncia ocidental

Isso gera o que Santos (2007) denomina de epistemiciacutedio a morte de conhecimentos

que natildeo se encaixam nos rigores do meacutetodo cientifico Esses saberes satildeo

invisibilizados subalternizados natildeo sendo aceitos como diferentes maneiras de ver

ler e interpretar o mundo e que estatildeo ligadas agrave histoacuteria e a cultura dos diferentes

povos Desta maneiranatildeo faz sentido dizer que esses conhecimentos natildeo satildeo

cientiacuteficos pois para o autor satildeo outras maneiras de fazer ciecircncia dentro de um

contexto simboacutelico de que fazem parte os saberes da maioria da populaccedilatildeo

marginalizada pela ciecircncia eurocecircntrica O saber popular neste estudo os das

populaccedilotildees ribeirinhas tem seus proacuteprios criteacuterios de validaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo Ao levar

seus filhos que foram acometidos por doenccedilas causadas por seres encantados para

35

o benzedor benzecirc-los a crenccedila no poder de cura emanado pelo curandeiro eacute o criteacuterio

de validaccedilatildeo do seu saber

A monocultura do tempo linear estaacute relacionada ao capitalismo Como assegura

Santos (2002 p 243) ldquoa razatildeo metoniacutemica eacute juntamente com a razatildeo proleacuteptica a

resposta do Ocidente apostado na transformaccedilatildeo capitalista do mundordquo pois tem

como foco o desenvolvimento e a mercantilizaccedilatildeo Nessa oacutetica os paiacuteses menos

desenvolvidos satildeo inferiorizados e estigmatizados como preacute-modernos primitivos

selvagens dentre outros adjetivos que os tornam inferiores Por natildeo se incluiacuterem

totalmente dentro desta loacutegica capitalista os ribeirinhos satildeo tachados de preguiccedilosos

e demais adjetivos pejorativos

Em relaccedilatildeo agrave mercantilizaccedilatildeo o que predomina eacute o tempo linear como

referencia agrave produccedilatildeo e circulaccedilatildeo de mercadorias As diversas formas de

organizaccedilatildeo temporal que envolve outros mundos que vatildeo aleacutem do terreno natildeo satildeo

reconhecidas o que prevalece eacute a linearidade com presente passado e futuro Com

isso o tempo das mareacutes que predomina na Amazocircnia Ribeirinha o mundo dos seres

encantados que povoam os rios e as florestas satildeo invisibilizados

A divisatildeo da populaccedilatildeo nas categorias de raccedila sexo e eacutetnica satildeo maneiras de

naturalizar as diferenccedilas e justificar as hierarquias Para o autor as hierarquias natildeo

satildeo causa das diferenccedilas mas suas consequecircncias Desta maneira as diferenccedilas

satildeo veladas e naturalizadas a partir de uma escala baseada na inferiorizaccedilatildeo do que

difere do padratildeo dominante

A monocultura da escala dominante que eacute mais uma maneira de produzir as

ausecircncias parte do princiacutepio de que ldquoo global e universal eacute hegemocircnico o particular

e o local natildeo conta eacute invisiacutevel descartaacutevel despreziacutevelrdquo (SANTOS 2007 p 31) Em

decorrecircncia disso os saberes natildeo hegemocircnicos satildeo tidos como locais portanto

inferiores O considerado universal eacute valido em qualquer contexto por isso que o

hegemocircnico eacute dominante independente do lugar daiacute a predominacircncia no curriacuteculo

escolar de somente uma forma de conhecimento e a natildeo aceitaccedilatildeo por parte de

alguns professores da inclusatildeo dos saberes locais na sua praacutetica pedagoacutegica fruto

de um processo de formaccedilatildeo profissional colonizadora

No tocante agrave monocultura do produtivismo capitalista o autor afirma que pode

ser empregada para o trabalho e para a natureza A utilizaccedilatildeo das novas tecnologias

satildeo as bases para a organizaccedilatildeo da produtividade a partir da loacutegica hegemocircnica

capitalista As outras loacutegicas de produccedilatildeo dentre elas as dos povos das aacuteguas satildeo

36

consideradas improdutivas Dessa maneira satildeo produzidas as cinco formas de

ausecircncias ldquoo ignorante o residual o inferior o local e particular e o

improdutivordquo(SANTOS 2007 p 32) que satildeo contrapostas a formas universais e

globalmente reconhecidas o cientiacutefico o avanccedilado o superior o global e o produtivo

Tais monoculturas satildeo responsaacuteveis pela produccedilatildeo das ausecircncias suprimindo

as demais experiecircncias vivecircncias e conhecimentos que foram e satildeo historicamente

invisibilizados Com o objetivo de tornar presente o que estaacute ausente e dar visibilidade

agraves experiecircncias o autor propotildee a substituiccedilatildeo das monoculturas pelas ecologias

consideradas ldquoa praacutetica de agregaccedilatildeo da diversidade pela promoccedilatildeo de interaccedilotildees

sustentaacuteveis entre entidades parciais e heterogecircneasrdquo (SANTOS 2008 p 105) Satildeo

cinco as ecologias dos saberes13 das temporalidades do reconhecimento da

transescala e das produtividades

A ecologia das temporalidades parte do princiacutepio de que aleacutem do tempo linear

existem outras formas de organizaccedilatildeo temporal Na Amazocircnia Ribeirinha por

exemplo o tempo das aulas em algumas comunidades eacute regido pelas mareacutes a

derrubada e a plantaccedilatildeo das roccedilas nas comunidades camponesas dependem das

estaccedilotildees do ano no veratildeo satildeo feitas as derrubadas e a limpeza da aacuterea onde seraacute

plantada a mandioca no inverno eacute realizada a plantaccedilatildeo por causa das chuvas que

possibilitam o crescimento das manivas14 Em certas comunidades indiacutegenas a

presenccedila concomitante de espiacuteritos da mata e das aacuteguas juntamente com os seres

vivos eacute constante a relaccedilatildeo com esses entes ocorre de maneira que para entrar em

determinadas horas na mata ou no rio faz-se necessaacuterio pedir licenccedila e solicitar que

nos acompanhem durante a caminhada na mata ou remada pelo rio no sentido de

proteccedilatildeo contra os possiacuteveis males Essas loacutegicas precisam ser reconhecidas eacute o

jeito amazocircnida de ser e de lidar com o tempo que vai aleacutem da linearidade Como

afirma Santos (2007 p 34) ldquose vou reduzir tudo a temporalidade linear estou

afastando todas as outras coisas que tem uma loacutegica distinta da minhardquo

No tocante agrave ecologia do reconhecimento que se refere agrave produccedilatildeo das

desigualdades faz-se necessaacuterio a descolonizaccedilatildeo das mentes que foram

colonizadas com a imposiccedilatildeo de valores e estereoacutetipos gerados por meio da

categorizaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo da populaccedilatildeo tendo como referencia as diferenccedilas

13 Abordaremos numa seccedilatildeo especiacutefica a ecologia de saberes por ser objeto de estudo do nosso trabalho 14 Nome dado ao caule do peacute de mandioca o qual cortado em pedaccedilos eacute usado no plantio

37

sexuais culturais raciais sociais etc Nesse intento a ecologia proposta ldquo[] procura

uma nova articulaccedilatildeo entre o princiacutepio da igualdade e o princiacutepio da diferenccedila abrindo

espaccedilo para a possibilidade de diferenccedilas iguais ndash uma ecologia de diferenccedilas feita

de reconhecimentos reciacuteprocosrdquo (SANTOS 2008 p 110) Nesta ecologia a

pluralidade e a diversidade como parte do reconhecimento dos direitos humanos eacute

ressaltada Assim ldquoTemos o direito a ser iguais quando a diferenccedila nos inferioriza

temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracterizardquo (SANTOS

1997 p 31)

Para ir aleacutem da escala dominante eacute proposta a ecologia da transescala que

parte da integraccedilatildeo do local do nacional e do global nos projetos contra hegemocircnicos

como estrateacutegia de combate a globalizaccedilatildeo ldquoatraveacutes destas ligaccedilotildees as formaccedilotildees

locais desligam-se da seacuterie inerte de impactos globais e religam-se como pontos de

resistecircncia e geraccedilatildeo de globalizaccedilatildeo alternativardquo(SANTOS 2008 p 113) Algumas

experiecircncias jaacute foram e estatildeo sendo desenvolvidas por movimentos sociais com

atuaccedilatildeo local e que se expandiram a niacutevel nacional e mundial como frente de luta

contra a exclusatildeo social

Em oposiccedilatildeo agrave monocultura do produtivismo capitalista eacute apresentada a

ecologia das produtividades que consistem no

[] acircmbito das alternativas que engloba desde microiniciativas levadas a cabo por grupos sociais marginalizados do Sul global procurando reconquistar algum controle das suas vidas e bens ateacute propostas para uma coordenaccedilatildeo econocircmica e juriacutedica de acircmbito internacional destinada a garantir o respeito por padrotildees baacutesicos de trabalho decente e de proteccedilatildeo ambiental novas formas de controle do capital financeiro global bem como tentativas de construccedilatildeo de economias regionais baseadas em princiacutepios de cooperaccedilatildeo e solidariedade (SANTOS 2008 p114)

A concepccedilatildeo abrangente de economia estaacute no bojo destas iniciativas pois

abarcam valores organizacionais e poliacuteticos que vatildeo de encontro ao capitalismo

global tais como questotildees relacionadas agrave sustentabilidade ambiental participaccedilatildeo

democraacutetica aleacutem da equidade social racial eacutetnica e cultural Eacute a favor dessa

equidade que precisamos romper com as visotildees estereotipadas que persistem em

relaccedilatildeo aos homens e mulheres que constituem os povos das aacuteguas da Amazocircnia As

pesquisas realizadas na regiatildeo Amazocircnica vem tornando visiacuteveis as experiecircncias

que satildeo ativamente produzidas por esses sujeitos dentre elas o cuidado com os rios

e a mata no sentido de preservar a biodiversidade para garantia da sobrevivecircncia

Segundo Boaventura o objetivo das diversas ecologias eacute ldquo[] revelar a

diversidade e multiplicidade das praacuteticas sociais e credibilizar esse conjunto por

38

contraposiccedilatildeo agrave credibilidade exclusiva das praacuteticas hegemocircnicasrdquo (2008 p 115) A

seguir abordaremos com mais profundidade a ecologia de saberes por ser nosso

objeto de estudo

115 Ecologia de Saberes o reconhecimento dos saberesnascido das lutas dos

oprimidos

A ecologia de saberes parte do reconhecimento da diversidade epistemoloacutegica

que caracteriza o mundo no qual vivemos e de que a ciecircncia natildeo eacute a uacutenica forma de

explicaccedilatildeo da realidade reconhecendo a existecircncia de outros conhecimentos que

norteiam as praacuteticas sociais e datildeo sentido agrave nossa vida Assim ldquoa ecologia de saberes

eacute um conjunto de epistemologias que partem da possibilidade da diversidade e da

globalizaccedilatildeo contra hegemocircnicas e pretendem contribuir para as credibilizar e

fortalecerrdquo (SANTOS 2008 p154) Fortalecer e credibilizar no intuito de reconhecer

os saberes das populaccedilotildees que foram historicamente invizibilizados e excluiacutedos

dentre eles os dos povos indiacutegenas populaccedilotildees do campo ribeirinhos em suma os

saberes que nasceram da luta dos oprimidos e marginalizados

Portanto natildeo haacute saber maior ou menor mais importante ou menos valioso o

que existe satildeo conhecimentos que explicam a natureza a sociedade e os diversos

fenocircmenos que diferem ou complementam o cientiacutefico Nesse sentido para que

ocorra o diaacutelogo numa perspectiva intercultural pois o diaacutelogo natildeo seraacute somente entre

esses diferentes saberes mas tambeacutem entre culturas diferentes o autor propotildee a

hermenecircutica diatoacutepica15 que natildeo visa atingir

[] a completude ndash objetivo inatingiacutevel ndash mas pelo contraacuterio ampliar ao maacuteximo a consciecircncia de incompletude muacutetua por meio de um diaacutelogo que se desenrola por assim dizer com um peacute numa cultura e outro noutra Nisso reside o seu caraacuteter diatoacutepico (SANTOS 2009 p 15)

Neste sentido a perspectiva intercultural objetiva estimular o diaacutelogo entre os

diferentes saberes e conhecimentos partindo do princiacutepio de que a incompletude eacute o

que os caracteriza Assim os conhecimentos cientiacuteficos natildeo satildeo considerados

superiores e simmais uma forma de expressatildeo epistemoloacutegica A reciprocidade o

respeito e o reconhecimento da diversidade satildeo os alicerces que balizam o diaacutelogo

intercultural

15A hermenecircutica diatoacutepica baseia-se na ideia de que os topoi de uma dada cultura por mais fortes que sejam

satildeo tatildeo incompletos quanto agrave proacutepria cultura a que pertencem Tal incompletude natildeo eacute visiacutevel do interior dessa cultura uma vez que a aspiraccedilatildeo agrave totalidade induz a que se tome a parte pelo todo (SANTOS 2009)

39

Para aprofundarmos a nossa compreensatildeo em relaccedilatildeo agrave perspectiva

intercultural Walsh (2011) estabelece a diferenccedila entre os tipos de interculturalidade

a relacional a funcional e a criacutetica A interculturalidade relacional sempre existiu ao

longo da histoacuteria por meio do encontro entre as culturas mas sem a ocorrecircncia do

diaacutelogo entre elas A interculturalidade funcional existe nas sociedades capitalistas

na qual a multiculturalidade eacute encaixada nas estruturas de dominaccedilatildeo mas nos

discursos oficiais satildeo concebidas como praacuteticas interculturais numa visatildeo neoliberal

E a interculturalidade criacutetica que para a autora eacute indissociaacutevel do processo de

descolonizaccedilatildeo Walsh (2011) afirma que natildeo eacute possiacutevel a interculturalidade criacutetica

sem a dissoluccedilatildeo das estruturas de dominaccedilatildeo nesse sentido enquanto estas

estruturas existirem natildeo seraacute possiacutevel o diaacutelogo entre o saber popular e o saber

dominante ou entre qualquer tipo de saber

A perspectiva da interculturalidade criacutetica proposta por Walsh (2011) difere do

diaacutelogo intercultural apresentado por Santos (2009) na ecologia de saberes Para o

autor o diaacutelogo entre as culturas natildeo requer necessariamente a dissoluccedilatildeo das

estruturas do poder

Segundo Catherine Walsh (2006 p11) a interculturalidade eacute

[] um processo dinacircmico e permanente de relaccedilatildeo comunicaccedilatildeo e aprendizagem entre culturas em condiccedilotildees de respeito legitimidade muacutetua simetria e igualdade Um intercacircmbio que se constroacutei entre pessoas conhecimentos saberes e praacuteticas culturalmente diferentes buscando desenvolver um novo sentido entre elas na sua diferenccedila

Esta concepccedilatildeo de interculturalidade eacute necessaacuteria para a efetivaccedilatildeo da

construccedilatildeo de um pensamento criacutetico pois surge da experiecircncia vivida na

colonialidade parte tambeacutem de um pensamento gerado no Sul e muda os rumos da

geopoliacutetica do conhecimento dominante (WALSH 2006) Segundo a citada autora a

interculturalidadepode contribuir para a construccedilatildeo de sociedades diversificadas por

meio da explicitaccedilatildeoe abertura de espaccedilos conhecimentos e praacuteticas Para Walsh

(2006 p 21)

mais do que um simples conceito de inter-relaccedilatildeo ainterculturalidade assinala e significa processos deconstruccedilatildeo de conhecimentos lsquooutrosrsquo de uma praacuteticapoliacutetica lsquooutrarsquo de um poder social lsquooutrorsquo e de umasociedade lsquooutrarsquo formas diferentes de pensar e atuarem relaccedilatildeo e contra a modernidadecolonialidade umparadigma que eacute pensado atraveacutes da praacutetica poliacutetica

Desta forma a interculturalidade criacutetica reconhece as desigualdades sociais

econocircmicas poliacuteticas e de poder bem como a dominaccedilatildeo em que estamos

40

submetidos pelas condiccedilotildees institucionais Assim no diaacutelogo intercultural numa

perspectiva criacutetica as assimetrias sociais econocircmicas e poliacuteticas sempre estaratildeo

permeando as discussotildees entre pessoas e grupos culturais diversificados sem a

negaccedilatildeo ou sobreposiccedilatildeo de suas diferenccedilas

Corroborando com esta visatildeo Candau (2006) afirma que a interculturalidade

indica a edificaccedilatildeo de sociedades que assumam as diferenccedilas como constitutivas da

democracia bem como a possibilidade de construccedilatildeo de relaccedilotildees igualitaacuterias entre os

diferentes grupos socioculturais que foram historicamente inferiorizados

Na perspectiva da ecologia de saberes Santos (2010) propotildee cinco imperativos

transculturais que precisam ser aceitos pelos grupos sociais e culturais para o diaacutelogo

intercultural O primeiro chama-se Da completude agrave incompletude que eacute o ponto de

partidapara o diaacutelogo e consiste no nosso interesse em conhecer outras culturas

como reflexo da necessidade e do descontentamento com a nossa cultura Assim ldquoA

hermenecircutica diatoacutepica aprofunda agrave medida que progride a incompletude cultural

transformando a consciecircncia inicial de incompletude em grande medida difusa e

pouco articulada numa consciecircncia autorreflexivardquo (p 46)

Jaacute o segundo denominado Das versotildees culturais estreitas agraves versotildees amplas

o referido autor afirma que devemos evidenciar dentro de uma determinada cultura

aquilo que estaacute voltado para o reconhecimento do outro O terceiro De tempos

unilaterais a tempos partilhados o autor assegura que a decisatildeo em estar aberto para

o dialogo cabe a cada grupo cultural

A cultura ocidental durante seacuteculos natildeo teve qualquer disponibilidade para diaacutelogos interculturais mutuamente acordados e agora ao ser atravessado por uma consciecircncia difusa de incompletude tende a crer que todas as outras culturas estatildeo igualmente disponiacuteveis para reconhecer a sua incompletude e mais do que isso ansiosas para se envolver em diaacutelogos interculturais com o Ocidente(SANTOS 2010 p47)

O quarto imperativo De parceiros e temas unilateralmenteimpostos a parceiros

e temas escolhidospor muacutetuo acordo parte da ideia de que para o diaacutelogo os

protagonistas e o assunto precisam ser acordados mutuamente Segundo o autor no

tocante aos temas em todas as culturas haacute temas que necessariamente precisam ser

incluiacutedos no diaacutelogo com outras culturas pois ldquoo importante para a

hermenecircuticadiatoacutepica eacute a direccedilatildeo a noccedilatildeo eo sentimento de incompletude da

culturardquo (SANTOS 2010 p 47) O ultimo imperativotransculturalDa igualdade ou

diferenccedila agrave igualdadee diferenccedila parte da aceitaccedilatildeo de que o direito a igualdade deve

41

ser garantido quando a diferenccedila nos inferioriza e o direito a ser diferente quando a

igualdade nos descaracteriza

Aleacutem dos imperativos transculturais essenciais para o diaacutelogo intercultural

Santos (2008 p 154) ratifica que a ecologia de saberes se alicerccedila em dois

pressupostos ldquonatildeo haacute epistemologias neutras e as que clamam secirc-lo satildeo as menos

neutras a reflexatildeo epistemoloacutegica deve incidir natildeo nos conhecimentos em abstratos

mas nas praacuteticas de conhecimento e seus impactos noutras praacuteticas sociaisrdquo Posto

isso fica evidente de que natildeo haacute neutralidade no conhecimento cientiacutefico pois atende

aos interesses da ideologia dominante que o produz Quanto ao segundo pressuposto

refere-se agrave praacutetica dos conhecimentos agrave sua aplicabilidade na realidade social Nessa

loacutegica

Natildeo haacute duacutevidas de que para levar o homem ou a mulher a lua natildeo haacute conhecimento melhor do que o cientifico o problema eacute que hoje tambeacutem sabemos que para preservar a biodiversidade de nada serve a ciecircncia moderna Ao contraacuterio ela a destroacutei Porque o que vem conservando e mantendo a biodiversidade satildeo os conhecimentos indiacutegenas e camponeses (SANTOS 2007 p 33)

Fica evidente que a importacircncia de determinado conhecimento estaacute na sua

capacidade e utilidade para resolver os problemas sociais ambientais entre outros

No exemplo acima cada conhecimento produz um tipo de resultado quando aplicado

para atingir determinados objetivos A hierarquia entre eles ocorre pela intervenccedilatildeo

concreta nas praacuteticas sociais

A nossa intenccedilatildeo nesta tese foi conferir legitimidade acadecircmica e

epistemoloacutegica aos saber popular dos ribeirinhos que este possa juntamente com o

saber escolar fazer parte do curriacuteculo da escola de educaccedilatildeo baacutesica frequentada

pelas crianccedilas jovens e adultos das comunidades ribeirinhas na Amazocircnia e desta

maneira contribuir para a formaccedilatildeo de identidades e subjetividades

12 A DESCOLONIZACcedilAtildeO EPISTEMOLOacuteGICA UM ESTUDO DAS PROPOSICcedilOtildeES

TEOacuteRICAS

Nesta seccedilatildeo procuramos fazer uma discussatildeo entre autores que discutem os

conceitos de colonialidade gnosepensamento liminar e pensamento fronteiriccedilo com

o intuito de analisaacute-los criticamente a partir da abordagem teoacuterica baseada nos

Estudos Poacutes-Coloniais do grupo modernidadecolonialidade que emerge com a

finalidade de questionar a constituiccedilatildeo da modernidade a partir de suas concepccedilotildees

dominantes Finalizamos com uma discussatildeo referente agrave categoria Diaacutelogo na visatildeo

Freireana

42

121Os Estudos Poacutes-Coloniais

Os estudos poacutes-coloniais podem ser considerados como um movimento

intelectual e tambeacutem poliacutetico com a finalidade de questionar a hegemonia

epistemoloacutegica e fazer emergir os saberes subalternizados dos povos colonizados

Segundo Ribeiro e Escobar (2012) os impactos do processo de colonizaccedilatildeo satildeo

abordados por autores oriundos dos paiacuteses colonizados como grito de alerta para o

rompimento das amarras impostas pela colonizaccedilatildeo

Para Costa (2006 p 84) o colonialismo ldquoalude a situaccedilotildees de opressatildeo

diversas definidas a partir de fronteiras de gecircnero eacutetnicas ou raciaisrdquo Neste sentido

o colonialismo gerou a opressatildeo dos povos dominados que foram classificados de

acordo com os estigmas impostos pelo colonizador e ainda reforccedilou as jaacute existentes

situaccedilotildees de opressatildeo

Ballestrin (2012 p 4) no tocante ao argumento poacutes-colonial apresenta-o como

um movimento poliacutetico e intelectual natildeo necessariamente linear disciplinado e

articulado

Neste sentido defendemos que o argumento poacutes-colonial em toda sua amplitude histoacuterica geograacutefica e disciplinar percebe a diferenccedila colonial e intercede pelo colonizado Isto significa dizer que o argumento poacutes-colonial eacute em maior ou menor grau comprometido Pelo argumento poacutes-colonial o resgate da histoacuteria do conhecimento do discurso do sujeito e da memoacuteria do status ldquocolonizadordquo nunca pretende atraveacutes de sua visibilidade e da vocalizaccedilatildeo fortalecer o ldquooutrordquo colonizador Em termos de teoria poliacutetica contemporacircnea a relaccedilatildeo colonial eacute uma relaccedilatildeo antagocircnica e natildeo agocircnica

Desta forma o resgate da histoacuteria do conhecimento e do discurso do

colonizado foram protagonizados por autores como Albert Memmi Aimeacute Cesaacuterie e

Franz Fanon que foram os pioneiros a iniciar as reflexotildees referentes agraves situaccedilotildees de

opressatildeo para desvendar o antagonismo entre colonizador e colonizado Outro autor

que questionou a ordem poliacutetica e ideoloacutegica imposta pelo ocidente foi Edward Said

que comeccedila a discutir a teoria poacutes-colonial para aleacutem do vieacutes culturalista assim como

o orientalismo como um movimento cientiacutefico cujo anaacutelogo no mundo da poliacutetica seria

a acumulaccedilatildeo e a aquisiccedilatildeo colonial do oriente pela Europa (AMADEO 2014) As

abordagens e ideias discutidas por esses autores fomentaram uma revoluccedilatildeo nos

modos de pensar o outro o racismo e o sofrimento

O emergir do Grupo de Estudos Subalternos na deacutecada de 1970 composto

por pensadores do sul-asiaacutetico discutiam as questotildees relacionadas ao poacutes-

colonialismo como relaccedilotildees de poder a partir do aporte teoacuterico marxista baseado no

pensamento gramisciano A finalidade do grupo era afirma Grosfoguel (2008 p116)

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ldquoanalisar criticamente natildeo soacute a historiografia colonial da Iacutendia feita por ocidentais

europeus mas tambeacutem a historiografia eurocecircntrica nacionalista indianardquo A atuaccedilatildeo

do grupo se restringiu agrave Iacutendia Paquistatildeo e demais paiacuteses do entorno

Na deacutecada de 1980 houve a expansatildeo da teoria poacutes-colonial contribuiacuteram

para isso as obras de Homi Bhabha O local da cultura e de Stuart Hall com Da

diaacutespora O subalterno eacute conceituado por Gayatri Spivak na obra Pode o subalterno

falarComo ldquoas camadas mais baixas da sociedade constituiacutedas pelos modos

especiacuteficos de exclusatildeo dos mercados da representaccedilatildeo poliacutetica e legal e da

impossibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominanterdquo

(SPIVAK 2010 p 12)

Segundo Ballestrin (2012) sob a influecircncia e expansatildeo dessas teorias por

volta de 1990 surge o Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos Dentre as

obras que foram fundamentais para o aprofundamento do debate estaacute a Colonialidad

y modernidad-racionalidad de 1992 de Aniacutebal Quijano ldquo[] Inspirados no Grupo Sul-

asiaacutetico dos Estudos Subalternos e no Centro de Estudos Culturais dirigidos por Stuart

Hall em Birmingham o Manifesto Inaugural do Grupo Latino-americano de Estudos

Subalternos publicado originalmente em 1995 inseriu a Ameacuterica Latina no debate

poacutes-colonialrdquo (BALLESTRIN 2012 p 6)

Em 1998 Walter Mignolo cria o Grupo ModernidadeColonialidade com o intuito

de trazer para os estudos subalternos as ideias dos autores natildeo eurocecircntricos para

discutir os problemas da Ameacuterica Latina o trecho retirado do manifesto abaixo retrata

essa concepccedilatildeo

Walter Mignolo aprovecha tambieacuten algunos elementos de las teoriacuteas poscoloniales para realizar una criacutetica de los legados coloniales en Ameacuterica Latina Pero a diferencia de Ileana Rodriacuteguez y de otros miembros del Grupo de Estudios Subalternos Mignolo piensa que las tesis de Ranajit Guha Gayatri Spivak Homi Bhabha y otros teoacutericos indios no debieran ser asumidas y trasladadas sin maacutes para un anaacutelisis del caso latinoamericano Hacieacutendose eco de las criacuteticas tempranas de Vidal y Klor de Alva Mignolo afirma que las teoriacuteas poscoloniales tienen su locus enuntiationis en las herencias coloniales del imperio britaacutenico y que es preciso por ello buscar uma categorizacioacuten criacutetica del occidentalismo que tenga su locus en Ameacuterica Latina(CASTRO-GOacuteMEZ amp MENDIETA 1998 p 16)

Para Mignolo a Ameacuterica foi a pioneira a ser vitimada pelo colonialismo sendo

nela implantada o modelo de exploraccedilatildeo do capitalismo imperial que se expandiu para

o mundo Nesse sentido a histoacuteria da Ameacuterica Latina natildeo eacute a mesma da Indiana

motivo pelo qual natildeo serviria de modelo para lutar contra o colonialismo

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Grosfoguel (2008) corrobora com as ideias de Mignolo ao afirmar que o grupo

Latino-americano de Estudos Subalternos natildeo consegue se desvencilhar do

pensamento estadunidense e dos estudos subalternos indianos

[] Os latino-americanistas deram preferecircncia epistemoloacutegica ao que chamaram os ldquoquatro cavaleiros do Apocalipserdquo ou seja a Foucault Derrida Gramsci e Guha Entre estes quatro contam-se trecircs pensadores eurocecircntricos fazendo dois deles (Derrida e Foucault) parte do cacircnone poacutes-estruturalistapoacutes-moderno ocidental Apenas um Rinajit Guha eacute um pensador que pensa a partir do Sul Ao preferirem pensadores ocidentais como principal instrumento teoacuterico traiu o seu objetivo de produzir estudos subalternos [] Entre as muitas razotildees que conduziram agrave desagregaccedilatildeo do Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos uma delas foi a que veio opor os que consideravam a subalternidade uma criacutetica poacutes-moderna (o que representa uma criacutetica eurocecircntrica ao eurocentrismo) agravequeles que a viam como uma criacutetica descolonial (o que representa uma criacutetica do eurocentrismo por parte dos saberes silenciados e subalternizados) Para todos noacutes que tomamos o partido da criacutetica descolonial o diaacutelogo com o Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos tornou evidente a necessidade de transcender epistemologicamente ndash ou seja de descolonizar ndash a epistemologia e o cacircnone ocidentais

Dentre os autores que fazem parte do grupo ModernidadeColonialidade

destacam-se Edgardo Lander Arthuro Escobar Enrique Dussel Fernando Coronil

Immanuel Wallerstein e Aniacutebal Quijano Em 2000 Edgardo Lander organiza uma das

principais coletacircneas publicada pelo grupo Colonialidade do saber eurocentrismo e

ciecircncias sociais perspectivas latino-americanas lanccedilada em portuguecircs em 2005 pelo

Conselho Latino Americano de Ciecircncias Sociais ndash (CLACSO) A seguir apresentamos

uma tabela elaborada por Ballestrin (2012) que retrata o perfil dos membros do citado

grupo

Tabela 01 - Membros do grupo ModernidadeColonialidade

Integrante

Aacuterea

Nacionalidade

Universidade onde leciona

Aniacutebal Quijano Sociologia Peruana Universidad Nacional de San Marcos Peru

Enrique Dussel

Filosofia Argentina Universidad Nacional Autoacutenoma de Meacutexico

Walter Mignolo Semioacutetica Argentina Duke University Eua

Immanuel Wallerstein

Sociologia Estadounidense Yale University Eua

Santiago Castro-Goacutemez

Filosofia Colombiana Pontificia Universidad Javeriana Colocircmbia

Nelson Maldonado-Torres

Filosofia Porto-riquenha University of California Berkeley Eua

Ramoacuten Grosfoacuteguel

Sociologia Porto-riquenha University of California Berkeley Eua

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Edgardo Lander

Sociologia Venezuelana UniversidadCentral de Venezuela

Arthuro Escobar

Antropologia Colombiana University of North Carolina Eua

Fernando Coronil

Antropologia Venezuelana University of New York Eua

Catherine Walsh

Linguiacutestica Estadounidense UniversidadAndina Simoacuten Boliacutevar Equador

Boaventura Santos

Direito Portuguesa Universidade de Coimbra Portugal

Zulma Palermo Semioacutetica Argentina Universidad Nacional de Salta Argentina

Fonte Luciana Ballestrin 2012

Para Ballestrin (2012 p 21) o grupo desenvolveu accedilotildees que foram marcantes

para a renovaccedilatildeo criacutetica das Ciecircncias Sociais na Ameacuterica Latina no seacuteculo XXI dentre

elas ldquoa inserccedilatildeo do continente no debate poacutes-colonial a ruptura com os estudos

culturais subalternos - indianos e latino-americanos - e poacutes-coloniais e a radicalizaccedilatildeo

do argumento poacutes-colonial atraveacutes do movimento giro decolonialrdquo

Dentre as concepccedilotildees teoacutericas produzidas pelo grupo destacamos a de

Immanuel Wallerstein que criou uma definiccedilatildeo de sistema-mundo que foi a base para

a elaboraccedilatildeo do conceito de colonialidade do poder por Anibal Quijano Para

Wallerstein a interdependecircncia seja econocircmica ou poliacutetica eacute gerada pelo mercado

O sistema-mundo corresponde assim a uma unidade espaccedilo-temporal cujo horizonte

espacial eacute coextensivo agrave reproduccedilatildeo de suas bases econocircmico-materiais sobre aacutereas

externas e que engloba outras entidades poliacuteticas e sistemas culturais A estrutura

para a manutenccedilatildeo da soberania dos Estados foi criada para alicerccedilar a economia-

mundo capitalista

Como nem sempre existiu essa foi uma estrutura que teve que ser construiacuteda O processo de sua construccedilatildeo tem sido contiacutenuo sob inuacutemeros aspectos A estrutura foi criada de iniacutecio num uacutenico segmento do globo primordialmente a Europa mais ou menos no periacuteodo que vai de 1497 a 1648 Passou entatildeo por expansotildees esporaacutedicas incorporando uma zona geograacutefica sempre mais ampla Esse processo que poderiacuteamos chamar de lsquoincorporaccedilatildeorsquo de novas zonas agrave economia-mundo capitalista envolveu a reformulaccedilatildeo de fronteiras e estruturas poliacuteticas nas zonas incorporadas e a criaccedilatildeo em seu acircmbito de lsquoEstados soberanos membros do sistema interestatalrsquo ou ao menos aquilo que poderiacuteamos chamar de lsquocandidatos a estados soberanosrsquo ndash as colocircnias (WALLERSTEIN 2006 p 154)

O sistema-mundo moderno entatildeo surgiu como parte de um processo de

expansatildeo da economia-mundo capitalista e tambeacutem da sua relaccedilatildeo com um sistema

interestatal De acordo com o autor a ordem econocircmica militar e poliacutetica satildeo

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delimitadas pelos paiacuteses centrais assim o desenvolvimento dos Estados perifeacutericos

se fez a partir da dinacircmica de expansatildeo do sistema-mundo

Entatildeo o sistema-mundo eurocecircntrico abarcou todo o planeta com as

desigualdades imperando nas relaccedilotildees entre os paiacuteses sejam elas econocircmicas

poliacuteticas ou culturais O sistema-mundo estaacute diretamente vinculado aos sistemas

histoacutericos que tecircm uma fronteira na qual ldquoo sistema e as pessoas satildeo regularmente

reproduzidos por meio de algum tipo de divisatildeo contiacutenua do trabalhordquo

(WALLERSTEIN 1999 p459)

Para o referido autor existiram diferentes sistemas histoacutericos com suas loacutegicas

de funcionamento totalizando trecircs

Os lsquominissistemasrsquo assim chamados porque satildeo espacialmente pequenos e com toda a probabilidade relativamente breves no tempo (uma duraccedilatildeo de cerca de seis geraccedilotildees) satildeo altamente homogecircneos em termos de estruturas culturais e de governo A loacutegica baacutesica eacute a da lsquoreciprocidadersquo nas trocas Os lsquoimpeacuterios mundiaisrsquo satildeo vastas estruturas poliacuteticas (pelo menos no aacutepice do processo de expansatildeo e contraccedilatildeo que parece ser o destino de todos eles) e abarcam uma ampla variedade de padrotildees lsquoculturaisrsquo A loacutegica baacutesica do sistema eacute a extraccedilatildeo de tributo daqueles que de outra forma satildeo produtores diretos localmente auto-administrado (sobretudo rurais) que eacute passado para o centro e redistribuiacutedo entre uma fina mais crucial rede de funcionaacuterios As lsquoeconomias-mundorsquo satildeo vastas e desiguais cadeias de estruturas de produccedilatildeo dissecadas por muacuteltiplas estruturas poliacuteticas A loacutegica baacutesica eacute que o excedente acumulado eacute distribuiacutedo desigualmente em favor daqueles que satildeo capazes de realizar vaacuterios monopoacutelios temporaacuterios nas redes de mercado Eacute uma loacutegica lsquocapitalistarsquo (WALLERSTEIN 1999 p459-460)

O autor enfatiza dois aspectos o primeiro referente ao caraacuteter histoacuterico dos

sistemas Portanto o atual sistema-mundo que nasceu na Europa acerca de cinco

seacuteculos atraacutescomo os outros sistemas poderaacute desaparecer O segundo eacute que a

soberania dos Estados paiacuteses naccedilotildees e economias nacionais estatildeo delimitadas no

acircmbito do sistema-mundo vigente

A seguir abordamos a colonialidade do poder no qual a concepccedilatildeo de sistema-

mundo foi a base para as discussotildees e debates referentes ao conceito de

colonialidade bem como a construccedilatildeo da concepccedilatildeo de raccedila por meio da

classificaccedilatildeo da populaccedilatildeo mundial de acordo com a cor da pele o que garantiu o

domiacutenio e a supremacia da raccedila brancaeuropeia sobre as demais

122A colonialidade do poder

A colonialidade do poder eacute um conceito criado pelo socioacutelogo peruano Aniacutebal

Quijanoutilizado como referecircncia nas reflexotildees teoacutericas e praacuteticas no tocante ao

poder na Ameacuterica Latina bem como para analisar o processo de globalizaccedilatildeo e suas

relaccedilotildees com o capital e o trabalho

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Segundo Quijano (2007) o colonialismo cria em seu bojo a colonialidade que

atua sobre vaacuterias dimensotildees do colonizado mas o autor estabelece as diferenccedilas

entre esses dois conceitos para demonstrar como se forjou e se sustenta a estrutura

global de poder Ocolonialismo baseava-se na dominaccedilatildeo e exploraccedilatildeo com o total

controle da autoridade poliacutetica dos recursos de produccedilatildeo e do trabalho de uma

determinada populaccedilatildeo com identidades diferentes e situados em jurisdiccedilatildeo territorial

diferente Configura-se assim em uma relaccedilatildeo poliacutetica e econocircmica na qual a

soberania de uma naccedilatildeo eacute subjugada por outra Jaacute a colonialidade se caracteriza

como um padratildeo de poder que interfere nas relaccedilotildees intersubjetivas bem como nas

formas de valorizaccedilatildeo do conhecimento aleacutem da divisatildeo do trabalho baseado em

uma hierarquia racial inventada para justificar a hegemonia branca eurocecircntrica

Apresenta-se a partir de quatro formas colonialidade do poder do saber do ser e da

matildee-natureza(QUIJANO 2005 MIGNOLO 2005 WALSH 2007)

Todavia a colonialidade do poder inclina-se sobre as relaccedilotildees de colonialidade

nas esferas econocircmica e poliacutetica realccedilando a presenccedila das formas de colonizaccedilatildeo

por meio de um padratildeo de controle global tambeacutem de recursos e produtos por

intermeacutedio do controle do trabalho Desta forma Quijano (2005) anuncia sua dupla

pretensatildeo denunciar a continuidade das formas coloniais de dominaccedilatildeo via cultura e

pelas estruturas do sistema-mundo capitalista modernocolonial e por outro lado a

necessidade da atualizaccedilatildeo dessa discussatildeo que prolonga processos que

teoricamente teriam sido superados na modernidade

Assim constata-se que as relaccedilotildees de colonialidade nas esferas econocircmica e

poliacutetica natildeo findaram com a destruiccedilatildeo do colonialismo a colonialidade do poder daacute

visibilidade agraves formas coloniais de dominaccedilatildeo mesmo com o fim das administraccedilotildees

poliacutetico-juriacutedicas coloniais e tambeacutem ldquopossui uma capacidade explicativa que atualiza

e contemporiza processos que supostamente teriam sido apagados assimilados ou

superados pela modernidaderdquo (BALLESTRIN 2012 p 13)

A colonialidade de poder segundo Quijano (2000) eacute constitutiva da

modernidade Corroborando com essa ideia Dussel (1994) afirma que se a

modernidade tem um sentido emancipador para a Europa ela natildeo tem a mesma

positividade para o outro natildeo europeu para este ela significou a origem de uma

violecircncia sacrificial travestida nos projetos de cristianizaccedilatildeo civilizaccedilatildeo

desenvolvimento e democratizaccedilatildeo

ParaQuijano (2000 p342)

48

La colonialidade es uno de los elementos constitutivos y especiacuteficos del patroacuten mundial de poder capitalista Se funda en la imposicioacuten de una clasificacioacuten racialeacutetnica de la problacioacuten del mundo como piedra anguar de dicho patroacuten de poder y opera en cada uno de los planos aacutembitos y dimensiones materiales y subjetivas de la existecircncia social cotidiana y a escala societal Se origina y mundializa a partir de America

A colonialidade do poder carrega em si uma perspectiva que integra elementos

histoacutericos econocircmicos poliacuteticos e ideoloacutegicos que formaram e ainda estruturam as

relaccedilotildees de poder global na atualidade

No que concerne ao elemento histoacuterico a concepccedilatildeo da ideia de raccedila foi

construiacuteda para inferiorizar e naturalizar as diferenccedilas entre colonizador e colonizado

De acordo com Quijano (2005) a racializaccedilatildeo e a racionalizaccedilatildeo foram as bases nas

quais se instituiacuteram a modernidade Para o autor a racializaccedilatildeo foi a normatizaccedilatildeo da

sociedade em raccedilas como regra global para a classificaccedilatildeo da populaccedilatildeo e os niacuteveis

de ocupaccedilatildeo econocircmica poliacutetica e social Isso possibilitou a articulaccedilatildeo do controle

do trabalho de seus recursos e de seus produtos fundada numa racionalidade

eurocentrada

A ideia de raccedila foi a base da relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo por meio da classificaccedilatildeo

da populaccedilatildeo inicialmente da Ameacuterica e depois para o restante do mundo colonizado

Esta classificaccedilatildeo gerou novas identidades os dominados foram agrupados em

categorias tendo como criteacuterio a cor da pele iacutendios negros mesticcedilos olivaacuteceos e

amarelos O colonizador se auto identificou como branco e mais tarde por volta do

seacuteculo XVIII europeu

E na medida em que as relaccedilotildees sociais que se estavam configurando eram relaccedilotildees de dominaccedilatildeo tais identidades foram associadas agraves hierarquias lugares e papeacuteis sociais correspondentes como constitutivas delas e consequentemente ao padratildeo de dominaccedilatildeo que se impunha Em outras palavras raccedila e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificaccedilatildeo social baacutesica da populaccedilatildeo (QUIJANO 2005 p 3)

Destamaneira naturalizou-se as diferenccedilas como mais uma forma de

legitimaccedilatildeo acrescida agraves ideias e praacuteticas jaacute desenvolvidas para garantir a

superioridade entre dominantes e dominados A classificaccedilatildeo hieraacuterquica

inicialmente se consolidou nas caracteriacutesticas fenoacutetipas e posteriormente na cor da

pele como uacutenico criteacuterio para categorizaccedilatildeo racial da populaccedilatildeo assim fundamenta-

se em explicaccedilotildees de cunho bioloacutegico que buscou naturalizar as diferenccedilas que satildeo

construiacutedas socialmente gerando a discriminaccedilatildeo o preconceito e o racismo

49

Eacute a colonialidade do poder que expressa a noccedilatildeo de raccedila com o objetivo de

afirmar a hegemonia da raccedila branca Logo ldquoa ideia de raccedila eacute uma construccedilatildeo mental

que expressa a experiecircncia baacutesica da dominaccedilatildeo colonial e que desde entatildeo permeia

as dimensotildees mais importantes do poder mundial [] o eurocentrismordquo (QUIJANO

2005 p 227) Dessa maneira o crescimento do colonialismo europeu levou agrave

elaboraccedilatildeo da perspectiva eurocecircntrica do conhecimento culminando com a

construccedilatildeo teoacuterica da ideia de raccedila que foi o mais eficaz e duraacutevel instrumento de

dominaccedilatildeo social universal como naturalizaccedilatildeo dessas relaccedilotildees coloniais de

dominaccedilatildeo entre europeus e natildeo-europeusAfirma Quijano (2005 p 228) que ldquoos

povos conquistados e dominados foram postos numa situaccedilatildeo natural de inferioridade

e consequentemente tambeacutem seus traccedilos fenotiacutepicos bem como suas descobertas

mentais e culturaisrdquo Eacute a negaccedilatildeo do estatuto de humanidade aos povos

subalternizados nesta relaccedilatildeo se identifica a colonialidade do Ser que de acordo

com Walsh (2008 p 138) ldquoes la que se ejerce por medio de la inferiorizacioacuten

subalternizacion y la deshumanizacioacuten a lo que Frantz Fanon (1999) se refiere como

el trato de la lsquono existenciarsquo rdquo Para Grosfoguel (2008 p 123) a colonialidade do poder

carrega em seu bojo a leitura da raccedila e do racismo como ldquoo princiacutepio organizador que

estrutura todas as muacuteltiplas hierarquias do sistema-mundordquo

Os criteacuterios para classificaccedilatildeo da espeacutecie humana foi avanccedilando no decorrer

do tempo No seacuteculo XVIII teve a cor da pele como um criteacuterio fundamental em

seguida no seacuteculo XIX acrescentou-se ao criteacuterio da cor outros aspectos

morfoloacutegicos tais como a forma do nariz dos laacutebios do queixo do formato do cracircnio

e o acircngulo facial para aperfeiccediloar a classificaccedilatildeo e aumentar a discriminaccedilatildeo

Somente no seacuteculo XX com os avanccedilos das ciecircncias os proacuteprios bioacutelogos geneticistas cientistas da biologia molecular e da bioquiacutemica chegaram agrave conclusatildeo de que a raccedila natildeo eacute uma realidade bioloacutegica mas um conceito inoperante para explicar a diversidade humana e para dividi-la em raccedilas estanques Ou seja bioloacutegica e cientificamente as raccedilas natildeo existem (MUNANGA 2003 p 67)

Poreacutem a ideia de que a populaccedilatildeo estaacute dividida em raccedilas teve a funccedilatildeo de

ratificar o poder do colonizador que utilizou vaacuterias estrateacutegias para controlar toda a

diversidade humana e incorporaacute-la ao uacutenico mundo dominado pela Europa por meio

do controle das subjetividades da cultura do conhecimento e de suas maneiras de

produccedilatildeo Afirma Quijano (2005) que dentre as estrateacutegias destacam-se a repressatildeo

das formas de produccedilatildeo do conhecimento dos povos colonizados e a apropriaccedilatildeo dos

que contribuiacutessem para o crescimento do capital a condenaccedilatildeo do seu universo

50

simboacutelico e dos padrotildees de expressatildeo e de objetivaccedilatildeo da subjetividade e a

imposiccedilatildeo da cultura necessaacuteria para a dominaccedilatildeo e reproduccedilatildeo do capital nos

aspectos materiais tecnoloacutegico inclusive da subjetividade com destaque para a

religiosa

Aleacutem das estrateacutegias para o controle e dominaccedilatildeo o referido autor evidencia

os fatores que contribuiacuteram para que a Europa se tornasse o centro do capitalismo

mundial e conseguisse ecircxito nas suas conquistas

A progressiva monetarizaccedilatildeo do mercado mundial que os metais preciosos da Ameacuterica estimulavam e permitiam bem como o controle de tatildeo abundantes recursos possibilitou aos brancos o controle da vasta rede preacute-existente de intercacircmbio que incluiacutea sobretudo China Iacutendia Ceilatildeo Egito Siacuteria os futuros Orientes Meacutedio e Extremo Isso tambeacutem lhes permitiu concentrar o controle do capital comercial do trabalho e dos recursos de produccedilatildeo no conjunto do mercado mundial E tudo isso foi posteriormente reforccedilado e consolidado atraveacutes da expansatildeo e da dominaccedilatildeo colonial branca sobre as diversas populaccedilotildees mundiais (QUIJANO 2005 p 232)

Desta forma o controle do capital comercial do trabalho e dos recursos de

produccedilatildeo no conjunto do mercado mundial permitiu agrave Europa tornar-se o centro do

capital global A articulaccedilatildeo de todas as possiacuteveis formas de controle do trabalho se

baseou na divisatildeo racial do trabalho na qual as raccedilas colonizadas foram destinadas

agraves funccedilotildees natildeo remuneradas pois eram consideradas inferiores e por consequecircncia

natildeo dignas de receberem salaacuterios Aos negros foi determinada a escravidatildeo aos

iacutendios a servidatildeo somente os espanhoacuteis e portugueses recebiam salaacuterios e quando

nobres ocupavam os mais altos cargos da administraccedilatildeo civil e militar Quanto aos

mesticcedilos estes exerciam os mesmos ofiacutecios dos brancos mas sem pagamento pelos

seus serviccedilos Esta mesma estrutura desenvolvida com ecircxito na Ameacuterica foi

transposta para o resto do mundo colonizado pois nas regiotildees dominadas a uacutenica

raccedila assalariada era a branca enquanto que aos colonizados estava reservado o

trabalho natildeo pago em razatildeo de sua natural inferioridade

Nesse sentido os interesses da raccedila branca eram totalmente antagocircnicos com

os dos dominados (iacutendios negros e mesticcedilos) Elaborou-se uma teoria racial na qual

iacutendios e negros natildeo eram considerados humanos mas vistos como baacuterbaros natildeo

dignos de receber salaacuterios Esse imaginaacuterio serviu para exploraacute-los oprimi-los e

dominaacute-los

A colonialidade do controle do trabalho de acordo com Quijano (2005 p 238)

ldquodeterminou a geografia social do capitalismordquo tornando-se o capital o eixo no qual

estavam ligadas todas as formas de controle do trabalho de seus recursos e produtos

51

ldquoEssa relaccedilatildeo social especiacutefica foi geograficamente concentrada na Europa

sobretudo e socialmente entre os europeus em todo o mundo do capitalismordquo (idem

p 238) Para Wallerstein o racismo eacute um elemento constitutivo da colonialidade e da

economia do mundo capitalista e tem como objetivo ldquomanter as pessoas dentro do

sistema mas com o estatuto de [] seres inferiores passiacuteveis de serem explorados

economicamente e usados como bodes-expiatoacuterios poliacuteticosrdquo (2000 p 13)

Corroborando com esta concepccedilatildeo Fanon (1956) aponta o racismo como uma

forma de opressatildeo na qual o dominante se sente superior e usa a sua superioridade

para desumanizar o outro Para o autor o racismo nunca eacute oculto inconsciente natildeo

sendo tambeacutem uma disposiccedilatildeo do espiacuterito algo psicoloacutegico embora a questatildeo

psiacutequica tambeacutem esteja presente

Na visatildeo de Walsh (2008) a discriminaccedilatildeo da categoria raccedila remete tambeacutem

agrave repressatildeo dos conhecimentos e saberes dos oprimidos que satildeo diversos dos

eurocecircntricos por meio da colonialidade do saber Concordando com a citada autora

Mignolo (2011) afirma que o eurocentrismo lanccedila qualquer epistemologia que esteja

fora de sua estrutura ao status de mito folclore lenda ou conhecimento local jaacute que

se coloca sempre no presente e no centro do espaccedilo projetando-se universalmente

Segundo Quijano (2005) a postura etnocecircntrica e a classificaccedilatildeo racial da

populaccedilatildeo do planeta satildeo fatores que contribuiacuteram para compreender os motivos dos

europeus se sentirem naturalmente superiores em relaccedilatildeo agraves outras raccedilas bem como

os uacutenicos autores da modernidade Isso os levou a se considerarem os mais

avanccedilados enquanto que o restante foi considerado inferior e primitivo no processo

de desenvolvimento da espeacutecie humana Para o autor a modernidade eacute um fenocircmeno

possiacutevel em todas as culturas e eacutepocas histoacutericas se partirmos do princiacutepio de que ela

estaacute ligada agrave ideia de novidade do avanccedilado racional-cientiacutefico laico e secular Desse

modo natildeo se pode atribuir agraves culturas natildeo europeias uma mentalidade primitiva pois

[hellip] aleacutem dos possiacuteveis ou melhor conjecturados conteuacutedos simboacutelicos as cidades os templos e palaacutecios as piracircmides ou as cidades monumentais seja Machu Pichu ou Boro Budur as irrigaccedilotildees as grandes vias de transporte as tecnologias metaliacuteferas agropecuaacuterias as matemaacuteticas os calendaacuterios a escritura a filosofia as histoacuterias as armas e as guerras mostram o desenvolvimento cientiacutefico e tecnoloacutegico em cada uma de tais altas culturas desde muito antes da formaccedilatildeo da Europa como nova id-entidade (QUIJANO 2005 p 230)

Portanto fica evidente a postura etnocentrista e eurocecircntrica ao afirmar ter

exclusividade em relaccedilatildeo agrave modernidade configurando-se como um discurso que visa

sedimentar a sua superioridade enquanto raccedila dominadora civilizadora e avanccedilada

52

em termos de racionalidade tecnologia e ciecircncia O referido autor ressalta que existe

uma gama de elementos demonstraacuteveis que apontam para um conceito de

modernidade diferente que daacute conta de um processo histoacuterico especiacutefico ao atual

sistema-mundo mas que porta todas as caracteriacutesticas que foram definidas Destaca

que carrega tambeacutem as relaccedilotildees sociais materiais e intersubjetivas cuja questatildeo

central eacute a libertaccedilatildeo humana como interesse histoacuterico da sociedade e em

consequecircncia seu campo central de conflito

Para Quijano (2005)o atual padratildeo de poder mundial eacute o primeiro efetivamente

global da histoacuteria conhecida O autor aponta quatro caracteriacutesticas que balizam sua

tese

Um eacute o primeiro em que cada um dos acircmbitos da existecircncia social estatildeo articuladas todas as formas historicamente conhecidas de controle das relaccedilotildees sociais correspondentes configurando em cada aacuterea uma uacutenica estrutura com relaccedilotildees sistemaacuteticas entre seus componentes e do mesmo modo em seu conjunto Dois eacute o primeiro em que cada uma dessas estruturas de cada acircmbito de existecircncia social estaacute sob a hegemonia de uma instituiccedilatildeo produzida dentro do processo de formaccedilatildeo e desenvolvimento deste mesmo padratildeo de poder Assim no controle do trabalho de seus recursos e de seus produtos estaacute a empresa capitalista no controle do sexo de seus recursos e produtos a famiacutelia burguesa no controle da autoridade seus recursos e produtos o Estado-naccedilatildeo no controle da intersubjetividade

o eurocentrismo Trecircs cada uma dessas instituiccedilotildees existe em relaccedilotildees de interdependecircncia com cada uma das outras Por isso o padratildeo de poder estaacute configurado como um sistema Quatro finalmente este padratildeo de poder mundial eacute o primeiro que cobre a totalidade da populaccedilatildeo do planeta

Assim o eurocentrismo tem como objetivo de tornar semelhante as formas

baacutesicas de existecircncia social de todas as populaccedilotildees colonizadas por intermeacutedio de

praacuteticas sociais comuns e uma esfera intersubjetiva que existe e atua como esfera

central de orientaccedilatildeo valorativa do conjunto Daiacute a universalizaccedilatildeo do Estado-naccedilatildeo

da famiacutelia burguesa da empresa da racionalidade eurocecircntrica como as instituiccedilotildees

hegemocircnicas de cada acircmbito de existecircncia social como modelos intersubjetivos

O eurocentrismo eacute tambeacutem uma loacutegica fundamental para a reproduccedilatildeo da

Colonialidade do Saber pois afirma Quijano (2005 p 9) ldquoa elaboraccedilatildeo intelectual do

processo de modernidade produziu uma perspectiva de conhecimento e um modo de

produzir conhecimento que demonstram o caraacuteter do padratildeo mundial de poder

colonialmoderno capitalista e eurocentradordquo O autor denomina de Eurocentrismo

esse modo de construir conhecimento

[] Eurocentrismo eacute aqui o nome de uma perspectiva de conhecimento cuja elaboraccedilatildeo sistemaacutetica comeccedilou na Europa Ocidental antes de meados do seacuteculo XVII ainda que algumas de suas raiacutezes satildeo sem duacutevida mais velhas ou mesmo antigas e que nos seacuteculos seguintes se tornou mundialmente

53

hegemocircnica percorrendo o mesmo fluxo do domiacutenio da Europa burguesa Sua constituiccedilatildeo ocorreu associada agrave especiacutefica secularizaccedilatildeo burguesa do pensamento europeu e agrave experiecircncia e agraves necessidades do padratildeo mundial de poder capitalista colonialmoderno eurocentrado estabelecido a partir da Ameacuterica

Como alternativa para questionar a validade somente do conhecimento

hegemocircnico e com a finalidade de tornar visiacutevel outras formas de conhecimentos

Mignolo (2003) propotildee a gnosepensamento liminar que tem como base a razatildeo

subalterna com outras racionalidades que diferem da concepccedilatildeo ocidental de

conhecimento

No que concerne agrave educaccedilatildeo dos ribeirinhos as pesquisas demonstram

segundo Hage (2014) que a colonialidade do poder impotildee curriacuteculos

descontextualizados ou seja que natildeo contemplam saberes oriundos do contexto

social econocircmico religioso e cultural dos povos das aacuteguas Os motivos estatildeo

relacionados ao natildeo reconhecimento do saber popular desses povos por serem

considerados como mitos lendas ou folclore portanto inferiores

123 Gnose ou pensamento liminar

Gnose ou pensamento liminar eacute um conceito criado por Mignolo que consiste em

[] o conhecimento concebido das margens externas do sistema mundial colonialmoderno gnosiologia marginal enquanto discurso sobre o saber colonial concebe-se na interseccedilatildeo conflituosa de conhecimento produzido na perspectiva dos colonialismos modernos (retorica filosofia ciecircncia) e do conhecimento produzido na perspectiva das modernidades coloniais na Aacutesia Aacutefrica nas Ameacutericas e no Caribe A gnosiologia liminar eacute uma reflexatildeo critica sobre a produccedilatildeo do conhecimento a partir tanto das margens internas do sistema mundial colonialmoderno (conflitos imperiais liacutenguas hegemocircnicas direcionalidade de traduccedilotildees etc) quanto das margens externas (conflitos imperiais com culturas que estatildeo sendo colonizadas bem como as etapas subsequentes de independecircncia ou descolonizaccedilatildeo) (MIGNOLO 2003 p 34)

Assim a gnose liminar representa o conhecimento dos excluiacutedos que

historicamente foi subalternizado por estar fora dos rigores da ciecircncia eurocecircntrica

constituindo-se numa razatildeo dos oprimidos em reaccedilatildeo ao processo de colonizaccedilatildeo

opressora Para o autor ldquoa gnose liminar constroacutei-se em diaacutelogo com a epistemologia

a partir de saberes que foram subalternizados nos processos imperiais coloniaisrdquo

(MIGNOLO 2003 p 34)

Assim o autor natildeo usa a gnose como doxa nem como ciecircnciaepisteme  no

sentido de um saber instrumental e muito menos como hermenecircutica A gnose

enquanto pensamento fronteiriccedilo torna-se um espaccedilo aberto para os saberes

54

marginalizados pelo ocidente Natildeo se constitui como recusa da ciecircncia ou da

hermenecircutica Eacute um saber que atua no tracircnsito entre fronteiras

Para que possamos entender a gnose liminar faz-se necessaacuterio de acordo

com Mignolo (2003) compreendermos a diferenccedila colonial pois ela surge como

formas de reaccedilatildeo a esta diferenccedila Desta maneira a diferenccedila colonial exprime a

categorizaccedilatildeo do planeta ldquono imaginaacuterio colonial moderno praticado pela colonialidade

do poder uma energia e um maquinaacuterio que transformam diferenccedilas em valoresrdquo

(MIGNOLO 2003 p 34)

A diferenccedila colonial foi construiacuteda historicamente Inicialmente os missionaacuterios

espanhoacuteis no seacuteculo XVI categorizavam os povos colonizados por meio do domiacutenio

da escrita alfabeacutetica os que natildeo a dominava eram considerados inferiores No fim do

seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX a categoria para avaliaccedilatildeo passou a ser a Histoacuteria Desta

maneira os povos sem histoacuteria situavam-se em um tempo anterior ao presente logo

a sua histoacuteria era escrita pelos que a tinham Destarte a diferenccedila colonial respeitava

a distinccedilatildeo claacutessica entre centros e periferias que prevaleceu ateacute o meio do seacuteculo

XX jaacute na segunda metade do mesmo seacuteculo a emergecircncia do colonialismo global

gerenciado pelas corporaccedilotildees transnacionais apagou a distinccedilatildeo que era vaacutelida para

as formas iniciais de colonialismo e a colonialidade do poder Portanto ldquoNo passado

a diferenccedila colonial situava-se laacute fora distante do centro Hoje emerge em toda parte

nas periferias dos centros e nos centros da periferiardquo(MIGNOLO 2003 p 09)

O colonialismo global que emerge com o fim da Guerra Fria e perpetua a

reproduccedilatildeo da diferenccedila colonial a niacutevel planetaacuterio sem situar-se em determinado

territoacuterio mostra a diferenccedila colonial ldquoem escala mundial quando o lsquoocidentalismorsquo se

defronta com o Oriente como precisamente sua proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade - da

mesma forma que paradoxalmente nos seacuteculos 18 e 19 o Ocidentalismo foi agrave

condiccedilatildeo da possibilidade do Orientalismordquo (MIGNOLO 2003 p10)

O pensamento liminar torna-se desta maneira uma reaccedilatildeo agrave diferenccedila

colonial que eacute concebida como

[] o espaccedilo onde emerge a colonialidade do poder A diferenccedila colonial eacute o espaccedilo onde as histoacuterias locais que estatildeo inventando e implementando os projetos globais encontram aquelas histoacuterias locais que os recebem eacute o espaccedilo onde os projetos globais satildeo forccedilados a adaptar-se integrar-se ou onde satildeo adotados rejeitados ou ignorados A diferenccedila colonial eacute finalmente o local ao mesmo tempo fiacutesico e imaginaacuterio onde atua a colonialidade do poder no confronto de duas espeacutecies de histoacuterias locais visiacuteveis em diferentes espaccedilos e tempos do planeta (MIGNOLO 2003 p10)

55

Neste sentido a diferenccedila colonial cria condiccedilotildees para situaccedilotildees dialoacutegicas nas

quais se encena do ponto de vista subalterno segundo Mignolo (2003 p 11)ldquouma

enunciaccedilatildeo fraturada como reaccedilatildeo ao discurso e agrave perspectiva hegemocircnicardquo Assim

enfatiza o autor que o pensamento liminar se constitui num instrumento para a

descolonizaccedilatildeo intelectual e portanto para a descolonizaccedilatildeo poliacutetica e econocircmica

ele nos leva a perceber como nossa formaccedilatildeo estaacute enraizada num imaginaacuterio

marcado por uma colonizaccedilatildeo intelectual eurocecircntrica

No processo de desconstruccedilatildeo desse imaginaacuterio Mignolo (2003) propotildee o

questionamento das teorias aceitas como verdades absolutas soacute porque satildeo oriundas

dos paiacuteses que foram historicamente dominantes enquanto que as produzidas em

paiacuteses que foram colonizados natildeo satildeo reconhecidas ou satildeo vistas com desconfianccedila

O entendimento dessas questotildees estaacute segundo o autor na colonialidade do poder e

na diferenccedila colonial que configuram a geopoliacutetica do conhecimento na qual somente

uma elite intelectual tem o privilegio de teorizar

Esta colonizaccedilatildeo epistemoloacutegica eurocecircntrica e etnocecircntrica foi se formando

no processo de constituiccedilatildeo do sistema moderno colonial (MIGNOLO 2003) Desta

maneira foi instalada uma geopoliacutetica do conhecimento na qualuma elite

pensanteoriunda de um determinado lugar cultura e liacutengua exerce unanimemente o

direito agrave filosofia e agrave ciecircncia

Esses satildeo os motivos do natildeo reconhecimento dos saberes produzido em

liacutenguas e histoacuterias locais subalternizadas Assim a Europa tornou-se o locus

privilegiado de produccedilatildeo e avaliaccedilatildeo do conhecimento E cosmologias e

conhecimentos milenares foram reduzidos a supersticcedilotildees conhecimento popular

folclore entre outros Trata-se aqui do processo de colonizaccedilatildeo da memoacuteria do qual

fala Mignolo (2006) A emergecircncia de outro pensamento o liminar aponta para outra

razatildeo a poacutes-ocidental que implica no reconhecimento dos saberes subalternizados e

na sua redistribuiccedilatildeo geopoliacutetica

Assim para Mignolo (2003 p 35) a gnose liminar enquanto conhecimento

natildeo se trata de uma forma ldquode sincretismo ou hibridismo mas de um sangrento campo

de batalha na longa histoacuteria da subalternizaccedilatildeo colonial do conhecimento e da

legitimaccedilatildeo da diferenccedila colonialrdquo Em decorrecircncia disso eacute uma poderosa e

emergente gnosiologia que na perspectiva do subalterno estaacute deslocando e

absorvendo as formas hegemocircnicas do conhecimento Ela eacute construiacuteda nos espaccedilos

liminares nas fronteiras da diferenccedila colonial Desta maneira a diferenccedila colonial soacute

56

pode ser transposta por via da subalternidade expressa por meio do pensamento

liminar

[] somente se pode transcender a diferenccedila colonial da perspectiva da subalternidade da descolonizaccedilatildeo e portanto de um novo terreno epistemoloacutegico que o pensamento liminar estaacute descortinando [] O pensamento liminar na perspectiva da subalternidade eacute uma maacutequina para a descolonizaccedilatildeo [] (MIGNOLO 2003 p 76)

Nesse sentido a gnose liminar eacute a razatildeo subalternaque visa o enfrentamento

da colonialidade do poder por meio do reconhecimento e valorizaccedilatildeo dos saberes

subalternizados durante a colonizaccedilatildeo Assim a partir da perspectiva epistemoloacutegica

eurocecircntrica o saber dominantefoi globalizado por meio de todo um processo

construiacutedo historicamente o autor propotildee a gnose liminar como ldquomaacutequinardquo necessaacuteria

agrave descolonizaccedilatildeo

Dentre os pressupostos apresentados pelo citado autor estaacute a relaccedilatildeo entre

modernidade e colonialidade que jamais podem ser concebidas separadamente pois

uma natildeo existe sem a outra Eacute a partir desse prisma que pode ser analisada a

formaccedilatildeo do sistema-mundo tendo como referecircncia a modernidadecolonialidade em

suas vaacuterias histoacuterias locais simultaneamente configuradas nos colonialismos

modernos e nas modernidades coloniais e natildeo apenas como uma histoacuteria mundial

universal e abstrata (MIGNOLO 2003)

Consequentemente a relaccedilatildeo entre a colonialidade do poder e a diferenccedila

colonial eacute permeada pela vinculaccedilatildeo entre o que se teoriza e a partir de onde se

teoriza desta maneira a produccedilatildeo e validaccedilatildeo do conhecimento estaacute vinculada com

a localizaccedilatildeo geograacutefica

No tocante agrave redefiniccedilatildeo da geopoliacutetica do conhecimento que consiste na

descolonizaccedilatildeo epistecircmica eacute preciso que seja pautada em novos locide enunciaccedilatildeo

a partir dos saberes subalternos em confronto com as formas dosaber hegemocircnico

Essa tarefa eacute mediar entre as praacuteticas filosoacuteficas no interior das histoacuterias coloniais modernas [] e formas lsquotradicionaisrsquo de pensamento ndash isto eacute formas de pensamento coexistentes com a definiccedilatildeo institucional de filosofia mas natildeo consideradas como tal na perspectiva institucional que define a filosofia (MIGNOLO 2003 p98)

Para isso a gnose liminar como forma de descolonizaccedilatildeo epistecircmica eacute

diferenciada das teorias criacuteticas poacutes-modernas A poacutes-modernidade eacute vista enquanto

discurso criacutetico sobre a ecircnfase no imaginaacuterio da modernidade como uma descriccedilatildeo

do presente histoacuterico em que eacute possiacutevel tal discurso Em oposiccedilatildeo a poacutes-colonialidade

eacute concebida como um discurso criacutetico que torna visiacutevel o vieacutes colonial do sistema

57

mundial moderno e a colonialidade do poder que estaacute encravada na proacutepria

modernidade Destaca Mignolo (2003) que eacute tambeacutem um discurso que muda a

extensatildeo entre os locais geoistoacutericos e a produccedilatildeo de conhecimentos Isto tem como

consequecircncia o reordenamento desta geopoliacutetica hegemocircnica por meio da

articulaccedilatildeo da racionalidade subalterna compreendida como um conjunto diverso das

praacuteticas teoacutericas na interseccedilatildeo das histoacuterias locais e dos projetos globais A

preocupaccedilatildeo do autor eacute

[] enfatizar a ideia de que lsquoo discurso colonial e poacutes-colonialrsquo natildeo eacute apenas um novo campo de estudo ou uma mina de ouro para a extraccedilatildeo de novas riquezas mas condiccedilatildeo para a possibilidade de se construiacuterem novos loci de enunciaccedilatildeo e para a reflexatildeo de que o lsquoconhecimento e compreensatildeorsquo acadecircmicos devem ser complementados pelo lsquoaprender comrsquo aqueles que vivem e refletem a partir de legados coloniais e poacutes-coloniais de Rigoberta Menchuacute a Angel Rama Do contraacuterio corremos o risco de estimular a macaqueaccedilatildeo a exportaccedilatildeo de teorias o colonialismo (cultural) interno em vez de promover novas formas de criacutetica cultural de emancipaccedilatildeo intelectual e poliacutetica mdash de transformar os estudos coloniais e poacutes-coloniais em um campo de estudo em vez de loacutecus de enunciaccedilatildeo liminar e criacutetico O lsquoponto de vista nativorsquo tambeacutem inclui os intelectuais [] o terceiro mundo produz natildeo apenas lsquoculturasrsquo a serem estudadas por antropoacutelogos e etno-historiadores mas tambeacutem intelectuais que geram teorias e refletem sobre sua proacutepria historia e cultura (MIGNOLO 1993 p 131)

Os novos locusde enunciaccedilatildeo natildeo teratildeo mais como centro o sistema moderno-

colonial e sim as suas margens O aprender proposto pelo autor eacute um dos objetivos

deste trabalho aprender com os ribeirinhos da Amazocircnia que produzem

conhecimentos que retratam suas histoacuterias e culturas Conhecimentos referentes agrave

mata aos rios ao accedilaiacute agrave pesca agrave confecccedilatildeo dos instrumentos para as atividades

econocircmicas sociais e religiosas que foram e satildeo subalternizados suprimidos e

silenciados Desta formaa emergecircncia de um pensamento liminar altera e ultrapassa

as configuraccedilotildees histoacutericas e geopoliacuteticas que marcaram historicamente o sistema

moderno colonial regulado pela colonizaccedilatildeo epistecircmica e subalternizaccedilatildeo de

saberes liacutenguas culturas e povos

O pensamento fronteiriccedilo eacute outro conceito apresentado pelo referido autor que

assim como o pensamento liminar

[] desde la perspectiva de la subalternidad colonial es um pensamiento que no puede ignorar el pensamiento de la modernidad pero que no puede tampoco subyugarse a eacutel aunque tal pensamiento moderno sea de izquierda o progresista El pensamiento fronterizo es el pensamiento que afirma el espacio donde el pensamiento fue negado por el pensamiento de la modernidad de izquerda o de derecha (MIGNOLO 2003 p 52)

58

O pensamento fronteiriccedilo juntamente com o liminar corresponde agrave razatildeo

subalterna que evidenciam e procuram tornar perceptiacutevel a potencialidade dos

saberes subalternizados rompendo dessa forma com a uniformizaccedilatildeo imposta pelo

eurocentrismo Tem como caracteriacutestica ser epistemoloacutegico porque eacute constituiacutedo a

partir da criacutetica do conhecimento hegemocircnico que se considera universal e tambeacutem eacute

eacutetico porque eacute uma maneira de pensar que natildeo eacute inspirada ldquonas suas proacuteprias

limitaccedilotildees e natildeo pretende humilhar uma maneira de pensar que eacute universalmente

marginal fragmentaacuteria e abertardquo (MIGNOLO 2003 p 104)

O pensamento fronteiriccedilo como consequecircncia da diferenccedila colonial natildeo eacute

uacutenico e uniforme pois resulta da luta e do reconhecimento das diferenccedilas e das

diversidades Assim natildeo haacute um fundamentalismo teoacuterico e praacutetico que rejeita tudo e

qualquer coisa que seja europeia ao inveacutes disso leva em conta a duplicidade de

consciecircncia que o sistema mundo colonialmoderno gera Portanto Mignolo (2003)

reconhece a importacircncia da ciecircncia e das formas de saberes ocidentais hegemocircnicas

para o autor as diversas histoacuterias saberes e epistemologias locais satildeo resultados da

diferenccedila colonial resultante da colonialidade do poder e do saber afirmando que natildeo

se trata de negar o paradigma hegemocircnico mas sim de admitir que existam outros

paradigmas frutos da diversidade epistemoloacutegica do mundo

O diaacutelogo entre os paradigmas deve ocorrer a partir do reconhecimento e

validaccedilatildeo de outras epistemologias que satildeo resultado da diversidade de culturas

existente no mundo Dentre as concepccedilotildees para o desenvolvimento do diaacutelogo

discutimos a seguir a proposta por Paulo Freire

13O DIAacuteLOGO ponto de partida para praacuteticas transformadoras

Para Freire (1986) o diaacutelogo faz parte da natureza histoacuterica dos seres

humanos Eacute momento de encontro com vistas agrave reflexatildeo da realidade na qual vivemos

para poder transformaacute-la Desta forma o diaacutelogo ldquoeacute este encontro dos homens

mediatizados pelo mundo para pronunciaacute-lo natildeo se esgotando portanto na relaccedilatildeo

eu-turdquo (FREIRE 2014 p 109) A pronuacutencia se daacute pela palavra composta pela accedilatildeo e

reflexatildeo tornando-se praacutexis que segundo Freire (2014 p109) ldquoeacute reflexatildeo e accedilatildeo

doshomens sobre o mundo para transformaacute-lo Sem ela eacute impossiacutevel a superaccedilatildeo da

contradiccedilatildeo opressor-oprimidordquo Quando haacute a dicotomia entre essas duas dimensotildees

a accedilatildeo vira ativismo e a reflexatildeo verbalismo o que segundo o autor inviabiliza o

diaacutelogo pois a transformaccedilatildeo ocorre pela palavra ao pronunciar o mundo daiacute sua

importacircncia como percurso no qual o ser humano ganha significaccedilatildeo

59

A palavra natildeo pode ser muda nem silenciosa precisa ter o poder de criar

transformar potencializar e libertar O mutismo da palavra somentetem sentido

quando submerge o sujeito de sua realidade e o faz emergir no seu acircmago um imenso

amor ao mundo e agrave humanidade Para Freire (2014 p 111) ldquoexistir humanamente eacute

pronunciar o mundo eacute modificaacute-lo O mundo pronunciado por sua vez se volta

problematizado aos sujeitos pronunciantes a exigir deles novo pronunciarrdquo

Desta maneira para que ocorra o diaacutelogo eacute preciso garantir o direito agrave palavra

a todos

Por isto o diaacutelogo eacute uma exigecircncia existencial E se ele eacute o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereccedilados ao mundo a ser transformado e humanizado natildeo pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito num outro nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes(FREIRE 2014 p 109)

Nesse sentido constitui-se numa perspectiva horizontal na qual todos devem

ter direito agrave palavra caso ela seja negada precisa ser conquistada para que se possa

exercer o direito de pronunciaacute-la Por meio do diaacutelogo podemos refletir coletivamente

sobre o que conhecemos e tambeacutem referente ao que ainda natildeo sabemos para

posteriormente de forma criacutetica mudarmos nossa realidade Nesse processo o

diaacutelogo eacute comunicaccedilatildeo por meio da qual conhecemos o mundo na interaccedilatildeo com o

outro o que caracteriza um ato social mesmo com dimensotildees individuais ldquoO que eacute o

diaacutelogo neste momento de comunicaccedilatildeo de conhecimento e de transformaccedilatildeo

social O diaacutelogo sela o relacionamento entre os sujeitos cognitivos podemos a

seguir atuar criticamente para transformar a realidaderdquo (FREIRE 1986 p 123) Para

que ocorra de fato o diaacutelogo requer amor humildade feacute e confianccedila nos homens

bem como esperanccedila aliada a luta pela mudanccedila

Para Freire (2014) o diaacutelogo exige um imenso amor ao mundo e aos homens

e eacute necessariamente uma atitude de coragem e compromisso Desta maneira ldquoeacute

impossiacutevel haver diaacutelogo se natildeo haacute uma profunda relaccedilatildeo de amorrdquo (p 111) A relaccedilatildeo

amorosa estaacute baseada em um compromisso com o outro o qual eacute estimulado pelo

amor que o sustenta e o impulsiona

O amor eacute ingrediente para a constituiccedilatildeo do mundo que eacute criado e recriado

pelos sujeitos tornando-se ldquoao mesmo tempo o fundamento do diaacutelogo e o proacuteprio

diaacutelogordquo (FREIRE 2014 p 112) Assim o diaacutelogo eacute movido pelo interesse muacutetuo o

que natildeo ocorre na relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e opressatildeo nela impera o egoiacutesmo com a

imposiccedilatildeo de ideias e accedilotildees tornando-se verticalizado Nessa perspectiva qualquer

60

mudanccedila que venha a afetar as nossas emoccedilotildees consequentemente afetaraacute e

modificaraacute tambeacutem as nossas accedilotildees Maturana (2004 p 45) reforccedila esse pensamento

ao dizer que eacute a emoccedilatildeo que define a accedilatildeo ldquo[] Eacute a emoccedilatildeo a partir da qual se faz

ou se recebe certo fazer que o transforma numa ou noutra accedilatildeo ou que o qualifica

como um comportamento dessas ou daquela classerdquo Consequentemente continua o

autor o conversar perpassa pela convivecircncia amorosa mesclada pela emoccedilatildeo e

linguagem de maneira dialoacutegicaNa oacutetica da educaccedilatildeo essa conversa gera uma

reflexatildeo coletiva direcionada a criar e aprimorar accedilotildees emancipadoras motivo pelo

qual o direito agrave palavra aos educandos eacute condiccedilatildeo fundamental

Na educaccedilatildeo escolar o diaacutelogo freireano eacute baseado na amorosidade e no

respeito agrave dignidade dos envolvidos isso natildeo requer que o professor segundo

Oliveira (2008) abra matildeo de sua competecircncia teacutecnica no fazer pedagoacutegico com receio

de natildeo ser amoroso pois o saber teacutecnico e a amorosidade natildeo eacute incompatiacutevel e

ambos satildeo necessaacuterios agraves relaccedilotildees educativas uma vez que

[] na convivecircncia amorosa com seus alunos e na postura curiosa e aberta que assume e ao mesmo tempo provoca-os assumirem enquanto sujeitos soacutecio-histoacuterico-culturais do ato de conhecer eacute que ele pode falar do respeito agrave dignidade e autonomia do educando (OLIVEIRA 2008 p 15)

O respeito a dignidade e a autonomia fazem parte do rigor do processo

educativo envolvidos pelo diaacutelogo amoroso no qual educador e educando satildeo sujeitos

encharcados de afetividade e vistos numa perspectiva horizontal no ato dialoacutegico

Assim para Freire (2001) a compreensatildeo de uma nova forma de ensinar aprender e

conhecer decorreraacute da visatildeo do mundo enquanto produzido e reproduzido pelo ser

humano numa relaccedilatildeo dialoacutegica com outros homens e com o mundo No fazer

pedagoacutegico a relaccedilatildeo dialoacutegica estaacute balizada pelo entendimento poliacutetico e

competecircncia teacutecnica dos educadores afetividade seriedade e alegria que podem

estar a serviccedilo da permanecircncia ou mudanccedila da sociedade (FREIRE 1998) Ser seacuterio

natildeo significa ser autoritaacuterio ou severo a seriedade pode caminhar junto com a

afetividade conforme Freire (1998 p 32) afirma

Na verdade preciso descartar como falsa a separaccedilatildeo radical entre seriedade docente e afetividade Natildeo eacute certo sobretudo do ponto de vista democraacutetico que serei tatildeo melhor professor quanto mais severo mais frio mais distante e ldquocinzentordquo me ponha nas minhas relaccedilotildees com os alunos no trato dos objetos cognosciacuteveis que devo ensinar A afetividade natildeo se acha excluiacuteda da cognoscibilidade []

O ato cognosciacutevel eacute seacuterio e amoroso o educador numa perspectiva freireana

expressa sua afetividade sem receio e ao mesmo tempo com seriedade dialoga com

61

os educandos a partir de suas realidades problematizando-as ldquoa professora

progressista ensina os conteuacutedos de sua disciplina com rigor e com rigor cobra a

produccedilatildeo dos educandos mas natildeo esconde sua opccedilatildeo poliacutetica na neutralidade

impossiacutevel de seu quefazerrdquo (FREIRE 2000 p 44) Portanto continua o autor o

diaacutelogo ocorre no interior de um determinado contexto neste caso a escola assim para

alcanccedilar os objetivos da transformaccedilatildeo o diaacutelogo implica responsabilidade

direcionamento determinaccedilatildeo disciplina e objetivos

Outra condiccedilatildeo para a existecircncia do diaacutelogo eacute a humildade pois a criaccedilatildeo e

recriaccedilatildeo do mundo natildeo podem ser realizadas com arrogacircncia

A autossuficiecircncia eacute incompatiacutevel com o diaacutelogo Os homens que natildeo tem humildade ou a perdem natildeo podem aproximar-se do povo Natildeo podem ser seus companheiros de pronuacutencia do mundo Se algueacutem natildeo eacute capaz de sentir-se e soube-se tatildeo homem quanto os outros eacute que lhe falta ainda muito para caminhar para chegar ao lugar de encontro com eles Neste lugar de encontro natildeo haacute ignorantes absolutos nem saacutebios absolutos haacute homens que em comunhatildeo buscam saber mais (FREIRE 2014 p112)

O reconhecimento de que natildeo somos ignorantes tampouco saacutebios absolutos

possibilita-nos estar abertos a aprender com o outro ateacute porque somos seres

inacabados em constante processo de aprendizagem O educador eacute portador de um

saber que faz parte de sua competecircncia teacutecnica de acordo com a formaccedilatildeo que

possui Isso natildeo significa que o educando eacute ignorante que natildeo sabe nada ao

contraacuterio numa comunidade ribeirinha ele domina os saberes necessaacuterios para

sobreviver neste contexto o que denota que existem diversidades de saberes Nessa

oacutetica o educador por meio do diaacutelogo aprende com os alunos os saberes locais e

ensina a partir desses saberes os cientiacuteficos Mas para que o diaacutelogo se efetive

precisa ser humilde e admitir a sua ignoracircncia em relaccedilatildeo a esses saberes

Assim a humildade implica dar a palavra ouvir e respeitar as ideias e os

pensamentos do outro As diferenccedilas neste caso natildeo nos tornam inferiores apenas

enriquecem-nos enquanto seres cognitivos O educador dialoacutegico estaacute aberto agraves

contribuiccedilotildees e incentiva a participaccedilatildeo e autonomia do educando que eacute formado para

o diaacutelogo No diaacutelogo a partir de sua realidade consegue desvendar aspectos que

estavam ocultos

A feacute nos homens constitui outro componente do diaacutelogo Eacute essencial crer no

homem e em seu poder de transformar criar e recriar em todos os momentos Afirma

Freire (2014 p112)

O diaacutelogo exige igualmente uma feacute intensa no homem feacute em seu poder de fazer e refazer de criar e recriar feacute em sua vocaccedilatildeo de ser mais humano []

62

O homem de diaacutelogo eacute criacutetico e sabe que embora tenha o poder de criar e de transformar tudo numa situaccedilatildeo completa de alienaccedilatildeo podem-se impedir os homens de fazer uso deste poder

A feacute no poder de transformaccedilatildeo independente do contexto que quando eacute

desfavoraacutevel o homem dialoacutegico que tem uma visatildeo criacutetica de mundo a concebe

como um desafio que eacute possiacutevel superaacute-lo por meio da conscientizaccedilatildeo e da luta para

a libertaccedilatildeo ldquosem esta feacute nos homens o diaacutelogo eacute uma farsa Transforma-se na

melhor das hipoacuteteses em manipulaccedilatildeo adocicadamente paternalistardquo (FREIRE 2014

p 113)

Portanto o diaacutelogo para o referido autor eacute amoroso humilde e repleto de feacute

sustentado na confianccedila que tornam os homens mais companheiros na luta pela

libertaccedilatildeo da opressatildeo Desta maneira a palavra para ter confianccedila tem que se

materializar na accedilatildeo no exemplo

O diaacutelogo tambeacutem natildeo pode existir sem esperanccedila ldquose os sujeitos do diaacutelogo

nada esperam do seu quefazer jaacute natildeo pode haver diaacutelogo O seu encontro eacute vazio e

esteacuteril Eacute burocraacutetico e fastidiosordquo (FREIRE 2014 p 114) A esperanccedila estaacute na raiz

da inconclusatildeo dos homens a partir da qual almejam algo melhor para os seus

semelhantes A inconclusatildeo gera a vontade da mudanccedila O problema eacute quando este

almejar eacute egoiacutesta neste caso natildeo serve agrave visatildeo dialoacutegica

As situaccedilotildees de adversidades onde prevalece a opressatildeo natildeo devem gerar a

desesperanccedila considerando que a mudanccedila gerada pela reflexatildeo-accedilatildeo tem como

estiacutemulo a esperanccedila Desta forma a educaccedilatildeo torna-se primordial visto que natildeo se

nasce esperanccediloso por esta razatildeo precisamos de uma educaccedilatildeo para a esperanccedila

refletida numa pedagogia da esperanccedila Destaca Freire (1992) que eacute

ingecircnuoacharmos que somente a esperanccedila transformaraacute o mundo mas sem ela

torna-se pura ilusatildeo haja vista que se fundamenta na eacutetica e na verdade

O essencial como diz mais no corpo desta Pedagogia da esperanccedila eacute que ela enquanto necessidade ontoloacutegicaprecisa de ancorar-se na praacutetica Enquanto necessidade ontoloacutegicaa esperanccedila precisa da praacutetica para tornar-se concretude histoacutericaEacute por isso que natildeo haacute esperanccedila na pura espera nem tampoucose alcanccedila o que se espera na espera pura que vira assim esperavatilde Sem um miacutenimo de esperanccedila natildeo podemos sequer comeccedilaro embate mas sem o embate a esperanccedila como necessidade ontoloacutegicase desendereccedila e se torna desesperanccedila que agraves vezes sealonga em traacutegico desespero Daiacute a precisatildeo de certa educaccedilatildeoda esperanccedila Eacute que ela tem tal importacircncia em nossa existecircnciaindividual e social que natildeo devemos experimentaacute-la de formaerrada deixando que ela resvale para a desesperanccedila e o desesperoDesesperanccedila e desespero consequecircncia e razatildeo de ser da inaccedilatildeoou do imobilismo (FREIRE 1992 p11)

63

A esperanccedila estaacute aliada agrave luta visto que se cruzarmos os braccedilos esperando

as coisas acontecerem caiacutemos no imobilismo O autor destaca a importacircncia da

educaccedilatildeo dialoacutegica encharcada de esperanccedila na mudanccedila que vem com a luta pela

libertaccedilatildeo da opressatildeo por meio de um pensamento verdadeiro que eacute criacutetico

Concebe a realidade como mutante em constante mudanccedila e transformaccedilatildeo o

homem estaacute no mundo assim como o mundo estaacute no homem natildeo existe ldquodicotomia

entre mundo-homensrdquo (FREIRE 2014 p 114)

2 A EDUCACcedilAtildeO DAS POPULACcedilOtildeES RIBEIRINHAS NA AMAZOcircNIA

Neste capiacutetulo fizemos uma imersatildeo histoacuterica das populaccedilotildees ribeirinhas na

Amazocircnia realizamos um mergulho na Amazocircnia brasileira com ecircnfase nos povos

das aacuteguas em seguida abordamos o municiacutepio de Afuaacutenosseus aspectos histoacutericos

geograacuteficos e econocircmicos com destaque paraa dimensatildeo educacional

21 UM MERGULHO NA AMAZOcircNIA BRASILEIRA

Mergulhar na Amazocircnia eacute imergir na diversidade tanto econocircmica geograacutefica

ecoloacutegica como cultural Para compreendermos esta regiatildeo faz-se necessaacuterio

concebecirc-la no plural como afirma Gonccedilalves (2005 p 8)

Para os de fora a imagem que se tem da Amazocircnia eacute mais homogecircnea [] Para os habitantes da proacutepria regiatildeo a lsquoAmazocircniarsquo eacute um termo vago que adquire muacuteltiplos significados correspondentes aos mais diferentes contextos soacutecio-ecoloacutegico-culturais especiacuteficos que satildeo os espaccedilos do seu cotidiano Assim enquanto para uns ndash os de fora lsquoAmazocircniarsquo aparece no singular para outros isto eacute para os que nela mora ndash ela eacute plural e multifacetada

A pluralidade eacute a principal caracteriacutestica desta regiatildeo A diversidade e a

complexidade do seu territoacuterio satildeo tatildeo vastas que para falarmos sobre ela eacute preciso

estar no seu interior para identificar qual eacute a Amazocircnia a que estamos nos referindo

Assim este vasto territoacuterio eacute habitado por caboclos garimpeiros posseiros

ribeirinhos quilombolas povos indiacutegenas pescadores coletores agricultores rurais

colonos imigrantes atingidos por barragens dentre outros povos que reconstroem o

espaccedilo amazocircnico Esta diversidade de povos caracteriza a Amazocircnia como um lugar

heterogecircneo que eacute formado por um universo cultural pluralizado Como afirma Fares

(2004 p 86) ldquonatildeo existe uma cultura uma identidade amazocircnica no singular A

64

concepccedilatildeo deste espaccedilo eacute plural As diferentes manifestaccedilotildees culturais trazem

marcas do hiacutebrido16 e da mesticcedilagem17rdquo

Para Rodrigues et al (2007 p 29) a cultura popular amazocircnica refere-se [] aos diversos modos das classes e dos grupos populares da Amazocircnia de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo social da realidade assentadas nas condiccedilotildees de vida locais nos saberes nos valores nas praacuteticas sociais e educativas no simboacutelico e no imaginaacuterio de uma variedade de sujeitos habitantes de aacuterea de terra firme vaacuterzea e igapoacute em localidades rurais e urbanas da regiatildeo

Neste trabalho a Amazocircnia Paraense especificamente a Amazocircnia rural-

ribeirinha foi o lugar onde realizamos a pesquisa de campo lugar no qual imergimos

no universo cultural e convivemos e dialogamos com moradores das comunidades e

professores da Ilha do Accedilaiacute De acordo com Loureiro (2001 p 65) a cultura ribeirinha

eacute a que mais expressa a cultura amazocircnica ldquoseja quanto aos seus traccedilos de

originalidade seja como produto da acumulaccedilatildeo de experiecircncias sociais e da

criatividade de seus habitantes resultante do hibridismordquo Criatividade que comeccedila na

produccedilatildeo de artefatos que compotildeem o universo cultural que satildeo apreendidos pelos

mais jovens atraveacutes da oralidade e estatildeo presentes nas relaccedilotildees sociais religiosas e

econocircmicas Portanto o hibridismo cultural estaacute fortemente presente nas diversas

amazocircnias

Essa marca hiacutebrida teve seu aacutepice a partir do contato com os natildeos iacutendios

contato esse permeado pela violecircncia Segundo Loureiro (2002) o primeiro ato de

violecircncia contra os povos da Amazocircnia ocorreu por meio do contato com o europeu

o espanhol Vicente Pinzon em 1500 que apesar de ser bem recebido pelos nativos

os aprisionou e os vendeu como escravos na Europa A origem dos mitos referentes

agrave regiatildeo tambeacutem eacute produto europeu

A viagem de Orellana (em 1549) instaura o momento fundador dos primeiros mitos como o das Amazonas ndash iacutendias guerreiras bravas habitantes de uma aldeia sem homens Outros viajantes aventureiros e exploradores que procuravam riquezas espalharam mundo afora mitos e fantasias De todo o mito mais persistente parece ter sido sempre o da superabundacircncia e da resistecircncia da natureza da regiatildeo florestas com aacutervores altiacutessimas que

16Para Canclini (2006 p 19) o hibridismo ldquoabrange diversas mesclas interculturais - natildeo apenas raciais agraves quais costuma limitar-se o termo lsquomesticcedilagemrsquo - e porque permite incluir as formas modernas de hibridaccedilatildeo melhor do que lsquosincretismorsquo foacutermula que se refere quase sempre a fusotildees religiosas ou de movimentos simboacutelicos tradicionaisrdquo 17Gruzinski (2001 p 62) utiliza a mesticcedilagempara designar ldquoas misturas que ocorreram em solo

americano no seacuteculo XVI entre seres humanos imaginaacuterios e formas de vida vindos de quatro

continentes Ameacuterica Europa Aacutefrica e Aacutesia Enquanto que a hibridaccedilatildeo o autor utiliza na anaacutelise das

misturas que se desenvolvem dentro de uma mesma civilizaccedilatildeo ou de um mesmo conjunto histoacuterico

65

penetravam nas nuvens frutos e flores de cores e sabores indescritiacuteveis rios largos a se perderem no horizonte (povoados de monstros engolidores de navios nas noites escuras) animais estranhos e abundantes por todo o chatildeo paacutessaros cobrindo o ceacuteu e colorindo-o em nuvens de penas e plumas de todas as cores (LOUREIRO 2001 p 108)

Assim os mitos resultado da visatildeo do estrangeiro permearam e ainda estatildeo

presentes no imaginaacuterio sobre a populaccedilatildeo nativa considerada primitiva baacuterbara

rude preguiccedilosa e desprovida de alma O preconceito em relaccedilatildeo ao homem e agrave

natureza foi construiacutedo desde a chegada do europeu destaca Loureiro (2001 p 109)

ldquo[] de um lado a visatildeo paradisiacuteaca criada pela magia dos mitos da regiatildeo e sobre a

regiatildeo de outro a violecircncia cotidiana gestada pela permanente exploraccedilatildeo da

naturezardquo Outro mito relativo agrave natureza tambeacutem concebido externamente eacute o de

que a Amazocircnia eacute a terra da superabundacircncia o celeiro e o pulmatildeo do mundo no

entanto as poliacuteticas puacuteblicas direcionadas para a regiatildeo natildeo levam em consideraccedilatildeo

a sua biodiversidade o que prevalece satildeo praacuteticas contraditoacuterias entre

desenvolvimento e preservaccedilatildeo ambiental

A referida autora destaca que os ecossistemas amazocircnicos pela sua

fragilidade requerem o equiliacutebrio e a articulaccedilatildeo entre chuva mata e solo mas o

modelo de desenvolvimento natildeo tem considerado esses fatores e partem do princiacutepio

de que os ecossistemas satildeo ricos e autorregeneraacuteveis O desperdiacutecio de recursos

naturais gerados pelas atividades econocircmicas dentre as quais a pecuaacuteria exploraccedilatildeo

madeireira mineraccedilatildeo garimpagem e outras que apresentam diferentes impactos

sobre a natureza ldquovecircm sendo desenvolvidas indiferentemente sobre aacutereas de

florestas densas nascentes e margens de rios regiotildees de manguezais nas planiacutecies

em encostas em solos fraacutegeis ou nos raros solos bem estruturadosrdquo (LOUREIRO

2001 p 113)

Gonccedilalves (2005) identifica a coexistecircncia de dois padrotildees que foram utilizados

para a exploraccedilatildeo da Amazocircnia Rio-vaacuterzea-floresta e Rodovia-terra firmendashsubsolo O

primeiro padratildeo eacute assinalado pela exploraccedilatildeo econocircmica da floresta e sua

organizaccedilatildeo agraves margens dos rios que prevaleceu na regiatildeo ateacute a deacutecada de 1950 O

segundo caracteriza-se por um rumo diferente de ocupaccedilatildeo da regiatildeo tendo como

referecircncia a construccedilatildeo da rodovia Beleacutem-Brasiacutelia no final da deacutecada de 1950 com

atividades voltadas para a exploraccedilatildeo econocircmica da terra firme (pecuaacuteria e

agricultura) e do subsolo (atividades minerais)

66

Nesse sentido Loureiro (2001) diz que a riqueza gerada na Amazocircnia natildeo eacute

usufruiacuteda pelos seus habitantes o processo de exploraccedilatildeo da regiatildeo vem desde a

colonizaccedilatildeo inicialmente explorada economicamente pela Metroacutepole e na

atualidade pela Federaccedilatildeo A citada autora faz uma abordagem histoacuterica do processo

de exclusatildeo da populaccedilatildeo amazonida do potencial econocircmico desde o periacuteodo da

colonizaccedilatildeo ateacute a contemporaneidade

A Amazocircnia foi no passado ldquoum lugar com um bom estoque de iacutendiosrdquo para servirem de escravos uma fonte de lucros no periacuteodo das ldquodrogas do sertatildeordquo enriquecendo a Metroacutepole ou ainda a maior produtora e exportadora de borracha tornando-se uma das regiotildees mais rentaacuteveis do mundo numa certa fase Mas eacute mais recentemente que ela tem sido mais explorada seja como fonte de ouro como em Serra Pelada seja como geradora de energia eleacutetrica para exportar para outras regiotildees do Brasil e para os grandes projetos que a consomem a preccedilos subsidiados enquanto o morador da regiatildeo paga pela mesma energia um preccedilo bem mais elevado seja como uacuteltima fronteira econocircmica para a qual milhotildees de brasileiros tecircm acorrido nas uacuteltimas deacutecadas com vistas a fugirem da persistente crise econocircmica do paiacutes buscando na Amazocircnia um destino melhor (o que infelizmente poucos encontram) (LOUREIRO 2002 p 107)

No auge da borracha na Segunda metade do seacuteculo XIX os lucros natildeo ficaram

na regiatildeo as uacutenicas cidades beneficiadas foram Beleacutem e Manaus por serem sede

das empresas multinacionais que exploravam o produto Quem realmente enriqueceu

foram os empresaacuterios norte americanos e os europeus donos das grandes

corporaccedilotildees internacionais Em relaccedilatildeo agrave utilizaccedilatildeo do laacutetex extraiacutedo das seringueiras

os iacutendiosCambebes ou Omaguas que ocupavam uma vasta aacuterea do Solimotildees-

Maranon jaacute o utilizavam para fabricaccedilatildeo de utensiacutelios como sapatos capas e

couraccedilas na fabricaccedilatildeo de remeacutedios queimavam-no para clarear os dias de festas

durante a noite ldquoou dele se valiam para as flechas incendiadas que lanccedilavam sobre

as tabas inimigas por ocasiatildeo dos ataques nas guerras que se faziam Havia ainda

um uso interessante o untamento dos receacutem-nascidos no laacutetex para livraacute-los do friordquo

(REIS 1997 p 80-81)

A exploraccedilatildeo predatoacuteria provocou o raacutepido esgotamento dos seringais o que

levou agrave procura de novas aacutereas para retirada do laacutetex adentrando a mata rumo a

devastaccedilatildeo De acordo com Tavares (2011 p 107) ldquoOs seringais localizavam-se na

regiatildeo das Ilhas inclusive o Marajoacute alcanccedilando o rio Xingu o Jari o Capim o Guamaacute

o Acaraacute e o Moju Aacutereas que logo se esgotavam em decorrecircncia da precariedade do

corte das aacutervoresrdquo

A demanda do mercado internacional pela borracha em decorrecircncia do

desenvolvimento tecnoloacutegico poacutes-revoluccedilatildeo industrial a descoberta da teacutecnica da

67

vulcanizaccedilatildeo que permitiria a utilizaccedilatildeo do produto em qualquer temperatura o

incentivo agrave migraccedilatildeo nordestina que foi utilizada como a matildeo de obra a implantaccedilatildeo

de um sistema de transporte a vapor que faria a interligaccedilatildeo do interior com Beleacutem e

com a Europa a implantaccedilatildeo de firmas exportadoras e a construccedilatildeo de um porto que

escoaria o produto para o mercado externo e finalmente o sistema de aviamento

que permitiu o controle da matildeo de obra a expansatildeo de novos locais de exploraccedilatildeo e

o controle do excedente da produccedilatildeo nas pontas do sistema foram condicionantes

poliacuteticos econocircmicos e sociais relevantes para o desenvolvimento da atividade na

regiatildeo (TAVARES 2011)

A riqueza produzida pela exploraccedilatildeo da borracha natildeo beneficiou a regiatildeo como

um todo apenas as cidades que ofereciam a infraestrutura necessaacuteria para o

escoamento da produccedilatildeo rumo ao mercado externo De acordo com Tavares (2011

p 115) ldquoo sistema extrativista produziu uma estrutura social diversa ndash milhares de

pobres e uma minoria rica uma vez que a renda se formava pelo trabalho de muitos

mas se concentrava nas matildeos de pouca ndash burguesia e seringalistasrdquo Quanto agrave exploraccedilatildeo dos minerais segundo Santos (2002) ateacute o iniacutecio da

deacutecada de 1960 o conhecimento do subsolo da Amazocircnia estava restrito aos

relatoacuterios de viagem de poucos pesquisadores normalmente limitados agrave calha dos

grandes rios A atividade mineral resumia-se a alguns garimpos de diamante ouro ou

cassiterita e o maior empreendimento era a exploraccedilatildeo de mineacuterio de manganecircs no

entatildeo Territoacuterio Federal do Amapaacute pela Sociedade Brasileira de Induacutestria e Comeacutercio

de Mineacuterios de Ferro e Manganecircs (ICOMI) associados agravecompanhia estadunidense

Bethlehem Steel considerado o maior e duradouro empreendimento mineral

desenvolvido na Amazocircnia durou mais de quatro deacutecadas compreendeu os anos de

1957 a 1998 nesse periacuteodo foram extraiacutedas por volta de sessenta milhotildees de

toneladas de mineacuterio de manganecircs das minas do municiacutepio de Serra do Navio

O tamanho a confiabilidade e a produtividade da produccedilatildeo de Serra do Navio ajudaram o Brasil a ganhar e a manter durante trinta anos uma posiccedilatildeo de destaque no mercado global de produtores de mineacuterio de manganecircs Desde 1957 o Brasil produz entre 7 a 12 de todo o mineacuterio de manganecircs do mundo (DRUMMOND 2000 p 768)

Os lucros natildeo ficaram e tambeacutem natildeo foram investidos na Amazocircnia A

produccedilatildeo era dedicada ao mercado externo e internacional embora o

empreendimento tenha tido sucesso como ressalta o citado autor natildeo beneficiou a

populaccedilatildeo local muito menos a economia do Amapaacute que continuou baseada no

68

extrativismo ldquo[] estimei a receita bruta da ICOMI entre 1957 e 1994 em mais de trecircs

bilhotildees de doacutelares norte-americanos []rdquo (idem p 760) Constata-se desta forma

que a regiatildeo serviu como fornecedora de mateacuteria-prima para o mercado mundial

confirmando a tese defendida por Loureiro (2002 p 107) de que ldquoa Amazocircnia foi

sempre mais rentaacutevel e por isso mais uacutetil economicamente agrave Metroacutepole no passado

e hoje agrave Federaccedilatildeo do que ela o tem sido para a regiatildeordquo

O impacto ambiental com danos irreparaacuteveis aos ecossistemas tambeacutem foram

levantados por Drummond (2000) dentre os quais destancam-se desmatamento

escavaccedilatildeo de solos desmonte de morros erosatildeo assoreamento de rios mudanccedila

de curso de pequenos rios construccedilatildeo de lagoas artificiais para deposiccedilatildeo disposiccedilatildeo

final de rejeitos gerados pelo processamento do mineacuterio disposiccedilatildeo de mineacuterios de

baixo teor e de esteacuteril Esses dados enfatizam que o modelo econocircmico posto em

accedilatildeo na regiatildeo tem ignorado e menosprezado a diversidade dos inuacutemeros

ecossistemas amazocircnicos

Segundo Monteiro (2005) as minas de manganecircs da Serra do Navio foi o uacutenico

mineacuterio explorado industrialmente por aproximadamente duas deacutecadas na Amazocircnia

oriental brasileira Este quadro mudou em decorrecircncia das poliacuteticas desencadeadas

pelo governo militar de 1964 baseadas na entrada de capitais destinados agrave ocupaccedilatildeo

do espaccedilo amazocircnico assim como nos investimentos em projetos para a exploraccedilatildeo

mineral com consequente atraccedilatildeo dos fluxos migratoacuterios por meio de uma poliacutetica

governamental voltada para a integraccedilatildeo da Amazocircnia apoiada pelos incentivos

fiscais e da melhoria dos meios de comunicaccedilatildeo e transporte

Assim os primeiros investimentos na Amazocircnia foram feitos por grandes corporaccedilotildees industriais multinacionais Tinham como objetivo principal a verificaccedilatildeo das potencialidades minerais dessa vasta regiatildeo ainda desconhecida considerando apenas o seu uso futuro Estava presente a visatildeo estrateacutegica dos recursos minerais pois se buscava alternativas de suprimento para atender ao futuro crescimento do mercado ou prevenir a escassez decorrente de eventual crise nos paiacuteses produtores como decurso das poliacuteticas nacionalistas em vigor na eacutepoca Dessa forma eacute que os primeiros investimentos foram destinados agrave busca de mineacuterio de alumiacutenio (cujo mercado estava em expansatildeo) e de manganecircs (essencial para a induacutestria do accedilo) ambos dependentes da produccedilatildeo de poucos paiacuteses (SANTOS 2002 p 125)

Ainda como poliacutetica de desenvolvimento de acordo com Monteiro (2005) o

Governo Federal criou o Programa Grande Carajaacutes no ano de 1980 com a finalidade

de acelerar o desenvolvimento dos projetos minero-metaluacutergicos O referido programa

foi financiado pelos recursos estatais e os advindos dos incentivos fiscais e de

69

creacuteditos e consistiu na monitoraccedilatildeo e aplicabilidade dos projetos de exploraccedilatildeo

mineral em desenvolvimento dentre os quais Ferro Carajaacutes a Albras a Alunorte a

Alumar e a Usina de Tucuruiacute O autor destaca a extraccedilatildeo do mineacuterio de ferro da Serra

dos Carajaacutes em 1977 no Estado do Paraacute pela Companhia Vale do Rio Doce

Para tanto montou-se uma grandiosa estrutura que ocasionou desmatamento

poluiccedilatildeo dos recursos hiacutedricos com a construccedilatildeo ldquode minas instalaccedilotildees de

beneficiamento e um paacutetio de estocagem as instalaccedilotildees portuaacuterias e a Estrada de

Ferro Carajaacutes cujos 890 quilocircmetros de extensatildeo interligam a Serra dos Carajaacutes ao

terminal mariacutetimo da Ponta da Madeira em Satildeo Luiacutes (MA)rdquo(MONTEIRO 2005 p

190)

Fotografia 1 -Mina de ferro Carajaacutes no Estado do Paraacute

Na foto o impacto ambiental causado pela extraccedilatildeo do mineacuterio de ferro como a abertura de grandes crateras que modificam o relevo e removem totalmente a cobertura vegetal deixando as aacutereas deseacuterticas O uso de produtos quiacutemicos contaminam a rede hiacutedrica e o solo bem como os lenccediloacuteis freaacuteticosFonte T Photography

O ouro foi outro mineral bastante explorado desde o seacuteculo XIX cuja

exploraccedilatildeo comeccedilou a ser intensificada na deacutecada de 1960 principalmente no Paraacute

Neste Estado a partir da deacutecada de 1980 em Carajaacutes a corrida pelo ouro atraiu

milhotildees de garimpeiros incentivada segundo Santos (2002) pelo agravamento da

miseacuteria de boa parte da populaccedilatildeo brasileira principalmente a rural e nordestina

decorrente da falta de uma soluccedilatildeo adequada para a questatildeo agraacuteria O autor enfatiza

outros fatores que contribuiacuteram para a expansatildeo da atividade garimpeira por toda a

Amazocircnia dentre os quaisressalta-se a elevaccedilatildeo do preccedilo do ouro o atrativo

70

despertado pela ampla divulgaccedilatildeo na imprensa da descoberta de depoacutesitos ricos

como serra Pelada e os estiacutemulos das autoridades governamentais Entretanto

devido agrave exaustatildeo dos depoacutesitos superficiais mais ricos agrave queda do preccedilo do ouro e

agrave sensiacutevel reduccedilatildeo da diferenccedila cambial esse modelo social e econocircmico de

ocupaccedilatildeo da Amazocircnia encontra-se em decliacutenio Quanto agrave situaccedilatildeo social dos

garimpeiros

Na Amazocircnia os milhares de migrantes que foram atraiacutedos pela lsquofebre do ourorsquo da deacutecada passada estatildeo engrossando as legiotildees dos lsquosem terrarsquo que clamam por uma soluccedilatildeo para a questatildeo agraacuteria num paiacutes com dimensotildees continentais mas onde as elites dominantes desde o tempo das ldquocapitanias hereditaacuteriasrdquo tecircm na posse de grandes extensotildees territoriais uma das formas de seu poder poliacutetico O garimpo na Amazocircnia correspondeu a simples paliativo apenas adiando por duas deacutecadas ndash conforme jaacute era previsiacutevel na eacutepoca ndash a necessidade de uma soluccedilatildeo para a questatildeo agraacuteria (SANTOS 2002 p 127)

Aleacutem do manganecircs do ferro e do ouro outro mineral bastante explorado foi a

cassiterita Afirma Santos (2002) que a cassiterita tambeacutem na deacutecada de 1960 em

Rondocircnia atraiu milhares de garimpeiros Posteriormente em 1970 apareceram

outros distritos estaniacuteferos que foram explorados por mineradoras jaacute em 1976 os

garimpeiros invadiram terras indiacutegenas dos Yanomami para exploraccedilatildeo do mineral

Segundo Albert (2004) o contato inicial desta etnia com os natildeo iacutendios ocorreu por

volta de 1955 Os programas e projetos desenvolvidos na regiatildeo bem como

construccedilatildeo de estradas as fazendas serrarias canteiros de obras e os garimpos

intensificaram os contatos e interfeririam substantivamente na cultura desse povo

bem como gerou conflitos constantes pela posse da terra Enfatiza o citado autor que

a corrida do ouro dos anos 1980 em Roraima dizimou 15 da populaccedilatildeo indiacutegena

e que no periacuteodo de 1987 a 1990 a quantidade de garimpeiros cerca de 40000

(quarenta mil) equivalia a cinco vezes o numero de iacutendios yanomami ldquoEmbora a

intensidade dessa corrida do ouro tenha diminuiacutedo muito a partir do comeccedilo dos anos

1990 ateacute hoje nuacutecleos de garimpagem continuam encravados na terra yanomami de

onde seguem espalhando violecircncia e graves problemas sanitaacuterios e sociaisrdquo

(ALBERT 2004 p 3) De acordo com os documentos e pesquisas arqueoloacutegicas foi

estimado o total de trecircs a cinco milhotildees de iacutendios na Amazocircnia brasileira no iniacutecio da

colonizaccedilatildeo

Para Almeida Junior (1996) a gecircnese desses conflitos estaacute no mercantilismo e

no capitalismo colonial Atualmente os conflitos entre povos indiacutegenas versus grupos

econocircmicos que desejam explorar e capitalizar os recursos existentes em suas

71

terrastecircm produzido natildeo somente a violecircncia fiacutesica com casos que culminam em

mortes dos indiacutegenas ldquomas muitas vezes a violecircncia simplesmente eacute expressa na

subjugaccedilatildeo do direito dos povos de determinar o uso de seu ambiente e o brutal

padratildeo de extraccedilatildeo de recursosrdquo (idem p 563)

Ademais os danos ambientais nas terras indiacutegenas nos uacuteltimos anos

decorrentes de desmatamentos ilegais da instalaccedilatildeo irregular de madeireiras e

principalmente da presenccedila constante de atividades agropecuaacuterias no entorno das

aldeias vecircm contribuindo para fomentar os conflitos agraacuterios Afirma Heck et al

(2005 p 238) que as mineradoras e companhias de petroacuteleo ldquoestatildeo afiando suas

unhas para cavar cada vez mais fundo e mais raacutepido para acumular ao maacuteximo seu

capital globalizadordquo Continua o referido autor dizendo que as empresas que exploram

mineacuterios fazem barganha junto aos poliacuteticos para regulamentar a exploraccedilatildeo mineral

em terras indiacutegenas

Haacute pedidos de pesquisa e exploraccedilatildeo mineral sobre terras indiacutegenas de toda a Amazocircnia [] Hoje o avanccedilo capitalista sobre a Amazocircnia eacute como uma fera quase indomaacutevel Motosserras e tratores fazem parte de programas oficiais de devastaccedilatildeo As grandes serrarias que jaacute exauriram o potencial madeireiro em outras regiotildees do mundo agora seguem resolutas em direccedilatildeo agrave Amazocircnia vestidas em peles de cordeiro com o discurso da ldquoexploraccedilatildeo devastaccedilatildeo sustentaacutevelrdquo ostentando diplomas de ldquocertificaccedilatildeo verderdquo e com projetos de ldquoauto sustentabilidaderdquo na Amazocircnia (2005 p 238)

Mas eacute na atualidade que a Amazocircnia tem sido mais explorada principalmente

o potencial de seus rios e cachoeiras O governo Federal e as empresas que exploram

o setor eleacutetrico estatildeo investindo massivamente na construccedilatildeo de Hidreleacutetricas na

regiatildeo Somente em 2012 foram planejadas a construccedilatildeo de vinte e trecircs novas

hidreleacutetricas totalizando vinte e nove somando com as jaacute existentes que juntas vatildeo

gerar 38292 MW o equivalente a metade da energia gerada pelas hidreleacutetricas do

paiacutes Dentre as maiores hidreleacutetricas destacam-se Balbina Tucuruiacute Belo Monte

Curuaacute-Una e Teles Pires

Segundo Bittencourt (2012) somente no estado do Amazonas a construccedilatildeo

dessas hidreleacutetricas iraacute inundar em meacutedia de 300 a 400 kmsup2 em cada aacuterea de

barragem construiacuteda e transferir por volta de 112 mil pessoas que vivem nas aacutereas do

entorno da construccedilatildeo Em toda Amazocircnia ficaratildeo debaixo drsquoaacutegua cerca de 937555

kmsup2 de floresta

No Estado do Paraacute estaacute sendo construiacuteda a Hidreleacutetrica de Belo Monte

considerada a terceira maior do mundo Suas obras foram iniciadas em 2011 e de

72

acordo com um dossiecirc elaborado pelo Instituto Socioambiental (ISA) eacute a principal

obra do Plano de Aceleraccedilatildeo do Crescimento (PAC) ldquoinstalada em uma regiatildeo com

ausecircncia histoacuterica do Estado Belo Monte continua a ser cinco anos depois do leilatildeo

para construccedilatildeo e operaccedilatildeo da usina siacutembolo de inadimplecircncia socioambiental e

desrespeito agraves populaccedilotildees atingidasrdquo(ISA p 4 2015) O dossiecirc apresenta dados

referentes ao aumento da populaccedilatildeo do municiacutepio de Altamira que saltou de cem mil

para cento e cinquenta mil habitantes atraiacutedos pela geraccedilatildeo de empregos diretos e

indiretos A licenccedila foi concedida pelo governo federal com a promessa de execuccedilatildeo

de medidas de mitigaccedilatildeo e compensaccedilatildeo conhecidas como condicionantes

socioambientais de viabilidade da usina

Dentre as medidas compensatoacuterias previstas estavam as lsquoaccedilotildees antecipatoacuteriasrsquo de sauacutede educaccedilatildeo e saneamento baacutesico que segundo o discurso oficial deveriam preparar a regiatildeo para receber a obra prevenindo e minimizando os principais impactos sobre esses serviccedilos puacuteblicos decorrentes do aumento populacional Estimava-se que aproximadamente 74 mil pessoas seriam atraiacutedas pela obra em apenas cinco anos o que deveria praticamente dobrar a populaccedilatildeo da regiatildeo (conforme o Censo 2010 cerca de 100 mil habitantes) (ISA 2015 p 6)

Em relaccedilatildeo ao impacto ambiental

[] foi definido um Projeto Baacutesico Ambiental(PBA) detalhando os planos

programas e projetos socioambientais previstos nos Estudos de Impacto Ambiental e respectivo Relatoacuterio de Impacto Ambiental (EIA-Rima) destinados a prevenir mitigar e compensar os impactos da obra inclusive em relaccedilatildeo aos povos indiacutegenas (Projeto Baacutesico Ambiental do Componente Indiacutegena - PBA-CI) No caso de Belo Monte os custos para a implementaccedilatildeo do PBA (incluindo o PBA-CI) foram estimados no valor de R$ 32 bilhotildees(ISA 2015 p 6)

O que natildeo ocorreu a contento de acordo com o referido dossiecirc as obras e

accedilotildees previstas nas medidas compensatoacuterias que deveriam ser desenvolvidas pela

empresa Norte Energia responsaacutevel pela obra natildeo impediram os impactos negativos

sobre a populaccedilatildeo dos municiacutepios atingidos principalmente de Altamira Foram

registrados aumentos nos casos de violecircncia entre 2011 e 2014 que cresceu em 80

No que concerne agrave sauacutede as obras de construccedilatildeo e reforma natildeo foram suficientes

para evitar a superlotaccedilatildeo de postos de sauacutede e hospitais No caso da infraestrutura

de educaccedilatildeo os equipamentos construiacutedos e reformados tampouco conseguiram

atingir plenamente os objetivos de responder ao aumento de demanda e evitar perda

de qualidade do ensino

Quanto ao reassentamento da populaccedilatildeo das aacutereas rural e urbana mais de

oito mil famiacutelias atingidas pela barragem foram obrigadas a abandonar suas terras e

73

casas ldquoseja em razatildeo do iniacutecio da construccedilatildeo das estruturas da usina seja devido ao

futuro enchimento do reservatoacuteriordquo (ISA 2014 p 8) Este processo de saiacuteda do local

onde sempre viveram tem sido traumaacutetico para a populaccedilatildeo local

O programa de realocaccedilatildeo urbanatem sido desorganizado inadequado e pouco transparente Haacute mais de um ano praticamente 3000 famiacutelias jaacute residem nos novos loteamentos (chamados de Reassentamentos Urbanos Coletivos - RUCs) sem serviccedilos puacuteblicos adequados incluindo transporte sauacutede e educaccedilatildeo Outras tantas por sua vez esperam a realocaccedilatildeo em um processo aparentemente subdimensionado pelo empreendedor que inicialmente cadastrou 5141 ocupaccedilotildees consideradas atingidas mas contratou a construccedilatildeo de apenas 4100 casas Note-se ainda que haacute famiacutelias que denunciam sequer terem sido cadastradas (ISA 2014 p 8)

As famiacutelias que natildeo aceitaram ir para o loteamento foram indenizadas mas o

valor recebido revelou-se insuficiente para a compra de outros terrenos ou casas O

dossiecirc afirma que essas famiacutelias natildeo receberam assistecircncia juriacutedica por parte do

poder puacuteblico em relaccedilatildeo aos seus direitos ficando agrave mercecirc do que a empresa

resolveu pagar

Em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo rural ribeirinhos e agricultores uma das maiores

viacutetimas da hidreleacutetrica o Projeto Baacutesico Ambiental apresentado pela empresa

garantia os reassentamentos rurais coletivos quena praacuteticanatildeo foram

desenvolvidos segundo o plano as famiacutelias deveriam escolher uma forma de

compensaccedilatildeo mas sem informaccedilatildeo adequada sem compreender realmente o

verdadeiro interesse da empresa e ainda pressionada para sair ou vender suas terras

[] acabaram aceitando as baixas indenizaccedilotildees Natildeo aceitaacute-las significaria litigar judicialmente contra uma grande empresa sem acesso a assistecircncia juriacutedica gratuita ndash natildeo haacute Defensoria Puacuteblica fixada na regiatildeo e a itinerante soacute atende casos urbanos ndash ou aceitar a transferecircncia para um reassentamento que aleacutem de estar localizado a quilocircmetros do rio Xingu sequer comeccedilou a ser implantado (ISA 2014 p 8)

Assim a transformaccedilatildeo da populaccedilatildeo ribeirinha em populaccedilotildees

exclusivamente urbanas ou agricultoras vem se consolidando devido agrave ausecircncia de

opccedilotildees que assegurem sua manutenccedilatildeo na beira do rio

Fotografia 2 - Reassentamento coletivo urbano para os atingidos pela usina

74

De acordo com o dossiecirc do ISA o loteamento natildeo atende as necessidades baacutesicas da populaccedilatildeo reassentada pois os serviccedilos puacuteblicos ofertados incluindo transporte sauacutede e educaccedilatildeo satildeo insuficientes para a demanda Fonte Andreacute Villas-BocircasISA

Os ribeirinhos que natildeo foram atingidos pela barragem tambeacutem sofrem os

impactos ambientais do empreendimento tais como a diminuiccedilatildeo e o

desaparecimento de determinadas espeacutecies de peixes provocado pelo barulho

emanado das dinamites e das luzes dos gigantescos holofotes que iluminam a noite

no canteiro da obra de forma que os peixes que viviam na escuridatildeo da noite migram

para outros lugares Pela ausecircncia de fiscalizaccedilatildeo o consumo de quelocircnios que faz

parte da culinaacuteria local estaacute ameaccedilado devido agrave caccedila predatoacuteria das tartarugas

Quanto agrave populaccedilatildeo indiacutegena a empresa para conseguir o licenciamento do

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) propocircs-se a executar um Plano Baacutesico

Ambiental do Componente Indiacutegena (PBA-CI) e tambeacutem a Fundaccedilatildeo Nacional do

Iacutendio (Funai) apresentou algumas medidas que precisavam ser tomadas pela empresa

e pelo poder puacuteblico para diminuiacuterem os impactos na qualidade de vida dos iacutendios

afetados pelo empreendimento O dossiecirc aponta que a maioria dessas accedilotildees ainda

natildeo foi efetivada e que a execuccedilatildeo plena do PBA-CI comeccedilou com mais de dois anos

de atraso em relaccedilatildeo ao iniacutecio da instalaccedilatildeo da usina

As despesas da empresa com os povos indiacutegenas foram contestadas pelo

Ministeacuterio Puacuteblico Federal que ldquoCondenou a estrateacutegia da Norte Energia de entregar

produtos como TVs barcos alimentos industrializados e oacuteleo diesel agraves comunidades

indiacutegenas aleacutem de uma lsquomesadarsquo de R$ 30 mil por aldeiardquo (ISA 20015 p 10) Assim

os recursos financeiros que deveriam ser investidos num plano de Etno-

desenvolvimento como forma de amenizar os impactos socioambientais foram

usados para doaccedilatildeo de bens materiais com o intuito de controlar temporariamente os

75

processos de organizaccedilatildeo e resistecircncia indiacutegena ldquodeixando como legado a

desestruturaccedilatildeo social e o enfraquecimento dos sistemas de produccedilatildeo de alimentos

nas aldeias colocando em risco a sauacutede a seguranccedila alimentar e a autonomia desses

povosrdquo (ISA 20015 p 10)

Em vez da oferta de serviccedilos puacutebicos verificou-se uma poliacutetica clientelista que

teve como reflexo o abandono de roccedilas da pesca e da caccedila aumento no periacuteodo de

2010 a 2012 em 200no atendimento agrave sauacutede dos indiacutegenas na cidade resultado da

mudanccedila nos haacutebitos alimentares com a introduccedilatildeo massiva de alimentos

industrializados no mesmo periacuteodo registrou-se o crescimento em 127 de

desnutriccedilatildeo infantil nas aldeias onde ainda faltam escolas e postos de sauacutede O

dossiecirc elaborado pelo ISA descreve a quantidade de produtos que foram distribuiacutedos

aos onze povos indiacutegenas da regiatildeo ldquo21milhotildees de litros de combustiacuteveis e

lubrificantes 366 barcos e voadeiras 42 veiacuteculos 578 motores para barcos 98

geradores e inuacutemeros outros bens de consumo que vatildeo desde TVs de plasma a

refrigerantesrdquo (idem p 12)

Fotografia 3 - Vista aeacuterea da construccedilatildeo da barragem de Belo Monte em Altamira Paraacute

Fonte Juan DoblasISAReutersVEJA

A imagem acima retrata que a construccedilatildeo da hidreleacutetrica modificou a paisagem

natural mudou o curso dos rios inundou as terras dos iacutendios ribeirinhos pescadores

e garimpeiros interferiu na migraccedilatildeo e reproduccedilatildeo de vaacuterias espeacutecies de peixes e

causa a morte de outras assim como o desaparecimento de animais que dependem

da floresta que passou a ficar inundada pelas aacuteguas represadas No tocante ao peixe

76

principal alimento das populaccedilotildees tradicionais assim como da populaccedilatildeo urbana da

regiatildeo a aacutegua liberada pelas represas por natildeo terem mais oxigecircnio causam a morte

das espeacutecies locais Fearnside (2014 p 18) cita o caso da hidreleacutetrica de Balbina ldquoA

perda praticamente total de peixes por falta de oxigecircnio se estendeu para 145 km em

Balbina enquanto em Tucuruiacute por 60 km []rdquo Isso gera fome pois sem ter o que

comer e como sobreviver essas populaccedilotildees satildeo obrigadas a migrarem para a cidade

e engrossam os bolsotildees de pobreza

Essa situaccedilatildeo tambeacutem foi vivenciada pelos moradores do municiacutepio de Ferreira

Gomes no estado do Amapaacute no ano de 2015 Dados da Secretaria de Meio Ambiente

estimam que morreram em media 150 quilos de peixe ao longo da margem do rio

Araguari Segundo Santiago (2015) a morte dos peixes pode ter sido causada pela

abertura das comportas da hidreleacutetrica Ferreira Gomes Energia ldquoa suspeita eacute que

manobras irregulares nas comportas podem ter liberado aacutegua acima do permitido

resultando no excesso de oxigecircnio em determinado periacutemetro do riordquo (p 1)

Fotografia 4 - Peixes mortos ao longo das margens do Rio Araguari no municiacutepio de Ferreira Gomes estado do Amapaacute

Fonte Raimundo Silva 2015

Desta forma o impacto nas condiccedilotildees de vida dos moradores do entorno eacute

brutal pois a subsistecircncia baseada na pesca e na agricultura que dependiam do rio

e da floresta torna-se inviaacutevel Segundo Fearnside (2014) quando uma represa eacute

construiacuteda os residentes a jusante ao longo do rio sofrem impactos severos

77

enquanto o reservatoacuterio estaacute enchendo o trecho abaixo da represa frequentemente

seca completamente assim negando aos residentes ribeirinhos o acesso agrave aacutegua e agrave

pesca A floresta aleacutem de ser inundada pelas aacuteguas das barragens tambeacutem eacute

desmatada para construccedilatildeo de estradas para o acesso agraves barragens e pela populaccedilatildeo

deslocada para outros pontos da regiatildeo Assegura ainda o autor que as barragens

emitem gases de efeito estufa ldquoo dioacutexido de carbono eacute emitido pela decomposiccedilatildeo de

aacutervores mortas por inundaccedilatildeo e o oacutexido nitroso e especialmente o metano satildeo

emitidos pela aacutegua nos reservatoacuterios e da aacutegua que passa atraveacutes das turbinas e

vertedourosrdquo (FEARNSIDE 2014 p 10)

Dentre as populaccedilotildees nativas os povos indiacutegenas satildeo as maiores viacutetimas As

construccedilotildees das barragens geraram a diminuiccedilatildeo dos recursos pesqueiros da caccedila

de animais silvestres e a contaminaccedilatildeo das aacuteguas dos rios lagos e igarapeacutes

A barragem de Tucuruiacute no Rio de Tocantins inundou parte de trecircs reservas indiacutegenas (Parakanatilde Pucuruiacute e Montanha) e sua linha de transmissatildeo cortou outras quatro (Matildee Maria Trocaraacute Krikati e Cana Brava) A Aacuterea Indiacutegena Trocaraacute habitada pelos Asuriniacute do Tocantins estaacute situada a 24 km ajusante da represa [] No caso da hidreleacutetrica de Balbina foi inundada parte da reserva Waimiri-Atroari Mais dramaacutetica eacute a previsatildeo de impactos sobre povos indiacutegenas caso que sejam construiacutedas represas no rio Xingu (FEARNSIDE 2014 p 16)

De acordo com Guerra (2007) a Hidreleacutetrica de Tucuruiacute mudou drasticamente

o potencial hidroviaacuterio da bacia do rio Tocantins os ecossistemas dos rios e florestas

e contribuiu para o desaparecimento de espeacutecies animais e vegetais Fearnside

(2014) tambeacutem destaca a retirada de 23871 pessoas para a construccedilatildeo da referida

hidreleacutetrica assim como a construccedilatildeo da barragem de Marabaacute prevista para ser

concluiacuteda ainda este ano que deslocou aproximadamente 40000 (quarenta mil)

pessoas A retirada da populaccedilatildeo natildeo ocorre pacificamente mas apesar da

resistecircncia o poder poliacutetico e econocircmico do governo federal e das empresas que

exploram o setor energeacutetico imperam O deslocamento abrange a populaccedilatildeo

tradicional da Amazocircnia que vive e sobrevive as margens dos rios e dele tiram sua

subsistecircncia ou seja dependem do rio para sobreviver O autor problematiza

questotildees ligadas ao impacto social da expulsatildeo de pessoas que viveram por geraccedilotildees

em um determinado lugar cuja habilidade como a pesca a caccedila e a roccedila natildeo os torna

adequados para viverem em outros contextos

Desta forma a Amazocircnia foi marcada por conflitos sociais e impactos

ambientais oriundo dos projetos desenvolvidos tanto pelo governo Federal como

pelas empresas multinacionais Segundo Becker (2007) dentre os conflitos destaca-

78

se as disputas pela posse de terras que envolveram iacutendios fazendeiros e

garimpeiros desmatamento das florestas para a construccedilatildeo da malha viaacuteria e tambeacutem

para a agricultura capitalista (plantaccedilatildeo de soja eucalipto entre outras monoculturas

destinadas ao mercado internacional) poluiccedilatildeo dos rios por meio da extraccedilatildeo de

mineacuterios e dos produtos quiacutemicos utilizados pela mineraccedilatildeo e na agricultura etc

Os impactos ambientais gerados pela exploraccedilatildeo econocircmica dos recursos

naturais agravado pela visatildeo homogecircnea do espaccedilo amazocircnico exterminaram vaacuterias

espeacutecies que poderiam ser preservadas a partir da valorizaccedilatildeo dos saberes das

populaccedilotildees tradicionais (iacutendios ribeirinhos comunidades quilombolas) que

conviveram e convivem haacute seacuteculos explorando a floresta sem causar grandes danos

aos ecossistemas No entanto por serem saberes subalternizados considerados

inferiores satildeo invisibilizados O que prevaleceu no passado foi o conhecimento do

colonizador no periacuteodo da colonizaccedilatildeoe na contemporaneidade a visatildeo das grandes

empresas nacionais e multinacionais que decidem sobre os rumos que daratildeo a regiatildeo

sem levar em consideraccedilatildeo a populaccedilatildeo local Assim como criam os mitos da

Amazocircnia como reserva ecoloacutegica natureza exuberante futuro do mundo dentre

outros que permeiam o imaginaacuterio social a partir de uma concepccedilatildeo colonialista

Essa concepccedilatildeo se embasa na diferenccedila colonial que natildeo leva em

consideraccedilatildeo a pluralidade a diversidade e a heterogeneidade como as principais

caracteriacutesticas da regiatildeo daiacute o olhar monocultural e eurocecircntrico A heterogeneidade

humana dos povos que habitam as Amazocircnias eacute marcante bem como a diversidade

geograacutefica pois existem as Amazocircnias dos rios dos lagos e igarapeacutes as das

florestas as dos campos as dos cerrados a urbana e rural O que nos leva a afirmar

que estes territoacuterios satildeo multiculturais constituiacutedos na sua gecircnese a partir da

mesticcedilagem entre iacutendios negros e brancos que segundo Adams et al (2006) gerou

o caboclo tipo humano caracteriacutestico da regiatildeo O caboclo foi e eacute ainda visto de

maneira pejorativa como descreve Souza (2012 p 28) ao afirmar que no discurso

antropoloacutegico ele eacute visto como produto nocivo da civilizaccedilatildeo

Esta mesma ideia estaacute presente nos dicionaacuterios que apresenta o caboclo como iacutendio mesticcedilo e trabalhador do meio rural visto pelo senso comum e descrito pelos viajantes que passaram pela regiatildeo no periacuteodo da colonizaccedilatildeo como apaacuteticos e indolentes responsaacuteveis pela proacutepria pobreza Portanto o termo caboclo vem carregado de uma grande carga de discriminaccedilatildeo As diversas formas de racismo que ainda existem no Brasil contribuem com a ideia de superioridade das raccedilas ldquopurasrdquo e inferioridade dos mesticcedilos ndash caboclos

79

Essa visatildeo preconceituosa gerou no imaginaacuterio social a imagem de que os

povos da Amazocircnia satildeo primitivos atrasados em termos de desenvolvimento a partir

de uma visatildeo capitalista considerados inferiores em relaccedilatildeo aos natildeo amazonidas

que para serem distinguidos dos outros ldquosuperioresrdquo satildeo denominados de caboclos

responsaacuteveis pela pobreza em que se encontram por serem preguiccedilosos e indolentes

daiacute o socorro vindo das empresas multinacionais e do governo federal por meio dos

projetos para a exploraccedilatildeo do potencial econocircmico da regiatildeo o que retrata a

colonialidade do poder18

Dentre os que satildeo chamados de caboclos estatildeo os ribeirinhos povos que

habitam as margens dos rios lagos e igarapeacutes que compotildeem a hidrografia da regiatildeo

A seguir retratamos a gecircnese desse sujeito bem como sua maneira de

viverconviversobreviver na Amazocircnia ribeirinha

22 POVOS DA AMAZOcircNIA os ribeirinhos

Jeito Tucuju19

Quem nunca viu o Amazonas Nunca iraacute entender a vida de um povo

De alma e cor brasileiras Suas conquistas ribeiras

Seu ritmo novo Natildeo contaraacute nossa histoacuteria por natildeo saber e por natildeo fazer juz

Natildeo curtiraacute nossas festas tucujus Quem avistar o Amazonas nesse momento e souber transbordar de tanto amor

Este teraacute entendido o jeito de ser do povo daqui

Quem nunca viu o Amazonas Jamais iraacute compreender a crenccedila de um povo

Sua ciecircncia caseira a reza das benzedeiras o dom milagroso

Natildeo contaraacute nossa histoacuteria

Realmente quem nunca viu o Amazonas jamais vai entender a vida e a crenccedila

de um povo sua ciecircncia caseira e a crenccedila na reza das benzedeiras capazes de curar

as doenccedilas causadas pelos seres encantados que vivem na mata e nas aacuteguas O ver

eacute o mergulhar no universo sociocultural dos povos ribeirinhos que (re) constroem

cotidianamentesuas vidas nas margens desse majestoso Rio consideradoo maior

em volume de aacutegua eem extensatildeo do mundo o qualpossuiaproximadamente 1100

afluentes que formam a maior bacia hidrograacutefica mundial O rio Amazonas atravessa

18A colonialidade do poder refere-se aos padrotildees de poderbaseados na hierarquia na formaccedilatildeo e distribuiccedilatildeode

identidades (brancos mesticcedilos iacutendios negros) Aprofundamos a discussatildeo em relaccedilatildeo a colonialidade do poder no primeiro capitulo 19 Musica dos compositores Amapaenses Val MilhomemJoatildeozinho Gomes

80

o Peru Brasil Colocircmbia Boliacutevia Equador Guiana e Venezuela No Brasil banha os

estados do Acre Amazonas Amapaacute Rondocircnia Roraima Paraacute e Mato Grosso

Para ldquoentender a vida de um povordquo primeiro eacute preciso saber que o Rio tem papel

vital na organizaccedilatildeo social cultural religiosa e econocircmica dos ribeirinhos Os rios satildeo

as ruas estradas rodovias por onde se navega para ir agrave escola agrave cidade e a outros

lugares do rio se retira o peixe o camaratildeo a lagosta a aacutegua para beber fazer

comida higiene pessoal e da casa No rio tambeacutem estatildeo os seres encantados que

fazem parte do imaginaacuterio desse povo

Neste estudo fizemos uma abordagem histoacuterica referente agrave constituiccedilatildeo da

populaccedilatildeo que vive agraves margens dos rios na Amazocircnia Iniciamos com uma abordagem

referente agrave gecircnese do brasileiro a partir das matrizes eacutetnicas que lhe deram origem

para posteriormente situar a populaccedilatildeo amazocircnica

O povo brasileiro de acordo com Ribeiro (2006) eacute resultado do encontro do

colonizador com os iacutendios e negros africanos que deram origem a um povo mesticcedilo

com traccedilos culturais distintos de suas matrizes formadoras

A sociedade e a cultura brasileira satildeo conformadas como variantes da versatildeo lusitana da tradiccedilatildeo civilizatoacuteria europeia ocidental diferenciadas por coloridos herdados dos iacutendios americanos e dos negros africanos O Brasil emerge assim como um renovo mutante remarcado de caracteriacutesticas proacuteprias mas atado geneticamente agrave matriz portuguesa cujas potencialidades insuspeitadas de ser e de crescer soacute aqui se realizariam plenamente (RIBEIRO 2006 p 18)

O brasileiro remarcado por caracteriacutesticas proacuteprias como afirma o autor eacute um

povo em que a diversidade eacute o aspecto fundamental para issoa imigraccedilatildeo

principalmente europeia aacuterabe e japonesa bem como os vieses ecoloacutegico e

econocircmico contribuiacuteram significativamente O ecoloacutegico gerou paisagens humanas

distintas nas quais as condiccedilotildees ambientais obrigaram a adaptaccedilotildees eacute o caso do

sertatildeo nordestino e da Amazocircnia por exemplo O econocircmico criou formas de

produccedilatildeo que acirraram a divisatildeo social do trabalho e os papeis sociais

correspondentes Por conseguinte esses fatores permitem distinguir os brasileiros

ldquosertanejos do Nordeste caboclos da Amazocircnia crioulos do litoral caipiras do

Sudeste e Centro do paiacutes gauacutechos das campanhas sulinas aleacutem de iacutetalo-brasileiros

teuto-brasileiros nipo-brasileirosrdquo (RIBEIRO 2006 p 19) Dentre as identidades

apontadas pelo citado autor focalizamos neste estudo a cabocla considerada tiacutepica

da Amazocircnia

81

A origem da populaccedilatildeo ribeirinha estaacute atrelada ao processo de povoamento da

Amazocircnia Segundo Bezerra Neto(2013) a apropriaccedilatildeo pelos portugueses desta

regiatildeo envolveu as diversas etnias indiacutegenas por meio de variadas estrateacutegias de

dominaccedilatildeo assim como os colonizadores europeus e os escravos oriundos da Aacutefrica

Para o autor ldquoa mesticcedilagem envolvia diversos segmentos sociais e eacutetnicos da

Colocircnia A constituiccedilatildeo de mocambos formados por iacutendios africanos colonos brancos

e mesticcedilos de todos os tons constituiu-se exemplo desta realidaderdquo (p 34)

A Coroa portuguesa estimulou o casamento dos colonizadores com os nativos

o que gerou uma populaccedilatildeo mesticcedila fato ocorrido em 1755 quando o Rei de Portugal

D Joseacute I por meio de seu ministro Marquecircs de Pombal autoriza e daacute feacute ao documento

redigido por Francisco Xavier de Mendonccedila Furtado chamado Diretoacuterio no qual

estabelece ldquo[] o incentivo ao casamento de colonos brancos com indiacutegenas [] a

substituiccedilatildeo da liacutengua geral pela liacutengua portuguesa [] e puniccedilatildeo contra

discriminaccedilotildees []rdquo(FURTADO 1997 p 117)

Sobre este assunto afirma Rodrigues (2004 p 23) ldquoO bioacutetipo caracteriacutestico do

ribeirinho amazocircnida e seu modo de vida [] satildeo frutos da mescla de indiviacuteduos de

etnias e culturas diferentes que conformaram o processo histoacuterico de formaccedilatildeo

territorial e populacionalrdquo Jaacute Ribeiro (2006) ao abordar o processo de ocupaccedilatildeo e

constituiccedilatildeo das populaccedilotildees da Amazocircnia conclui que a formaccedilatildeo cultural deste povo

estaacute fundada nas mesmas matrizes baacutesicas citadas acima e pela migraccedilatildeo oriunda do

nordeste ao final do seacuteculo XIX e no periacuteodo de 1943 a 1945 motivada pela batalha

da borracha

As migraccedilotildees nordestinas para a Amazocircnia sempre estiveram ligadas agraves questotildees de conflitos no campo coincidindo com os periacuteodos de seca e os pequenos agricultores satildeo os que primeiro sentem os efeitos da mesma Aleacutem de ser a maioria da populaccedilatildeo rural sertaneja ela natildeo tinha alternativa a natildeo ser migrar (SILVA 2000 p 48)

A autora destaca que a seca era utilizada para ocultar o problema da questatildeo

fundiaacuteria como principal fator de migraccedilatildeo do nordestino pois as terras estavam

concentradas nas matildeos da elite agraacuteria natildeo restando alternativa aleacutem da migraccedilatildeo

da populaccedilatildeo para outras regiotildees O ciclo da borracha foi utilizado pelo governo

federal para atrair os nordestinos para a Amazocircnia vaacuterios artifiacutecios foram usados

dentre os quais propagandas que exaltavam o patriotismo e o nacionalismo ateacute

promessas de retorno agrave terra natal Eacute o que se observa no trecho abaixo discurso do

presidente Getuacutelio Vargas na eacutepoca da segunda guerra mundial com o intuito de

82

atrair e incentivar os seringueiros a se empenharem na produccedilatildeo da borracha em

defesa da ldquopaacutetria amadardquo

Seringueiros Dediquei todas as energias a batalha da borracha Precisamos de mais borracha pois eacute sobre ela que se encontra a guerra moderna pois satildeo grandes os equipamentos que necessitam da goma elaacutestica produzidos sem repouso colhendo o laacutetex abundante das seringueiras do Vale Amazocircnico Nas guerras modernas natildeo fazem parte somente os soldados que estatildeo no campo de batalha mas toda naccedilatildeo homens e mulheres velhos e crianccedilas A voacutes desbravadores da Amazocircnia sois o mais importante soldados Unidos veremos sibilar a bandeira do Brasil (ACRE 1943 p 58)

Afirma Silva (2000) que essas formas de persuasatildeo foram divulgadas

massivamente na regiatildeo Nordeste com isso mobilizou verdadeiros ldquoexeacutercitos de

extratores como se fossem realmente soldados indo para os campos de batalha em

defesa da paacutetria procedendo-se ao alistamento e ateacute a concessatildeo de uniformes para

aqueles que seriam os soldados que lutariam nas selvas da Amazocircniardquo (p 59)

Embalados pelo discurso ideoloacutegico governamental aliado agraves condiccedilotildees de

pobreza extrema vieram para a Amazocircnia no periacuteodo de 1890 a 1910 cerca de meio

milhatildeo de nordestinos (TEIXEIRA 1980) No periacuteodo do auge da produccedilatildeo do

produto vaacuterios oacutergatildeos foram criados pelo governo para atrair e manter os migrantes

nos seringais dentre os quais o Serviccedilo Especial de Mobilizaccedilatildeo de Trabalhadores

para a Amazocircnia (SEMTA) posteriormente substituiacutedo pela Comissatildeo Administrativa

de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazocircnia (CAETA) Entre 1943 e 1945

utilizando propaganda nos meios de comunicaccedilatildeo o SEMTA e a CAETA trouxeram

aproximadamente cinquenta mil trabalhadores

Os nordestinos optavam pela Amazocircnia alistando-se no exeacutercito da borracha pois acreditavam nas propagandas que afirmavam que correriam menos riscos de vida e ainda contavam com a possibilidade de enriquecimento produzindo borracha no esforccedilo de guerra para os aliados para entatildeo retornarem a sua terra vitoriosa (SILVA 2000 p 60)

A propaganda do governo era enganosa dentre os engodos estavam a

possibilidade de soldados ficarem ricos com a extraccedilatildeo da borracha e ao mesmo

tempo servirem agrave paacutetria Muitos foram mortos nos conflitos com os iacutendios outros

pelas doenccedilas pois natildeo tinham acesso aos serviccedilos de sauacutede em siacutentese foram

abandonados pelo governo ficaram nas matildeos dos seringalistas que os escravizavam

por meio das diacutevidas com o barracatildeo20

20 O seringueiro soacute podia vender a produccedilatildeo da borracha para o seringalista em troca natildeo recebia dinheiro levava em gecircneros alimentiacutecios do barracatildeo que era mantido pelo seringalista que ditava o preccedilo dos produtos Desta forma o seringueiro sempre ficava devendo para o patratildeo Os seringalistas atuavam com toda a autoridade sobre seus seringueiros reclamar era decretar a proacutepria pena de morte

83

Quanto agrave divisatildeo espacial os seringueiros foram distribuiacutedos no final do seacuteculo

XIX de acordo com Silva (2000) nos seringais agraves margens dos rios Amazonas Negro

Madeira Abunatilde Ji-Paranaacute Acre Purus Gaporeacute e outros da regiatildeo o que para

Bittencout (1989) caracteriza um modelo de ocupaccedilatildeo linear e nas margens dos rios

em busca das seringueiras nativasldquoNesse primeiro momento da migraccedilatildeo estes

nordestinos natildeo foram para o interior da floresta devido ao ataque dos indiacutegenas que

era constante e tambeacutem pelo isolamento pois com a famiacutelia geralmente numerosa

era mais difiacutecil entrar na floresta (SILVA 2000 p 85)

Com a decadecircncia do preccedilo da borracha no mercado internacional diminuiacuteram

as atividades de extraccedilatildeo do produto na Amazocircnia isso fez com que muitos

seringueiros passassem a morar nas margens dos rios lagos e igarapeacutes e

ldquopaulatinamente tiveram que readaptar seu modo de vida de tal forma que a atividade

de extraccedilatildeo do laacutetex foi abandonada passando a adotar a atividade da pesca e da

agriculturardquo (SILVA 2000 p 91)

Desta maneira foi constituindo-se a populaccedilatildeo ribeirinha na Amazocircnia mesticcedila

e hiacutebrida culturalmente Nessa mesticcedilagem a presenccedila indiacutegena eacute marcante como

afirma Benchimol (1999) ao abordar aheranccedila cultural indiacutegena-cabocla dos povos

ribeirinhos O autor faz consideraccedilotildees sobre o periacuteodo inicial de ocupaccedilatildeo e

colonizaccedilatildeo da Amazocircnialdquoo conhecer o saber o vivere o fazerna Amazocircnia colonial

foi um processo predominantemente indiacutegenardquo (p 21) Segundo o autor ameriacutendios

e seus descendentes caboclos viviam em iacutentimo contato com o ambiente fiacutesico e

bioloacutegico de acordo com as peculiaridades regionais de onde retiravam os recursos

para sua subsistecircncia

A desintegraccedilatildeo das identidades culturais indiacutegenas deflagrada pelo

colonizador possibilitou a dizimaccedilatildeo de diversas etnias Com a resistecircncia indiacutegena

contra a invasatildeo de suas terras muitas tribos e etnias ameriacutendias foram exterminadas

O mesmo aconteceu com a propagaccedilatildeo da agricultura e pecuaacuteria que ocupou as

terras dos eixos rodoviaacuterios dos projetos de colonizaccedilatildeo e dos assentamentos de

garimpeiro em toda a regiatildeo Destaca Benchimol (1999 p 22) que as matrizes

culturais iacutendio-caboclas foram cedendo espaccedilo e economia ldquonos beiradotildees e nos

centros dos seringais e castanhais ao novo grupo lsquocearensersquo e depois aos lsquogauacutechosrsquo

ficando cada vez mais isolados nas suas reservas e malocas ou nos seus siacutetios e

roccedilados dos baixos riosrdquo

84

Sem a contribuiccedilatildeo dos iacutendios o colonizador natildeo teria tido ecircxito na ocupaccedilatildeo

e exploraccedilatildeo da Amazocircnia Foram os indiacutegenas que ensinaram aos novos senhores

e imigrantes os segredos dos rios da terra e da floresta (GONCcedilALVES 2005) Essas

praacuteticas e usos deram origem ao estabelecimento de uma base de subsistecircncia e de

mercado ldquoque serviu de apoio para a formaccedilatildeo da sociedade amazocircnica no seu

singular processo histoacuterico-culturalrdquo (BENCHIMOL 1999 p10)

Tambeacutem natildeo podemos deixar de levar em consideraccedilatildeo a contribuiccedilatildeo dos

negros africanos para a cultura e constituiccedilatildeo da populaccedilatildeo na Amazocircnia Conforme

Salles (1971) no periacuteodo da colonizaccedilatildeo foram traficados para a Regiatildeo em meacutedia

53 mil escravos pela coroa portuguesa bem como pelo comeacutercio interno de escravos

e migraccedilotildees por ocasiatildeo da Cabanagem no Paraacute e Balaiada no MaranhatildeoNessas

proviacutencias os negros trabalhavam principalmente nos canaviais e lavouras de arroz e

algodatildeo

Foster (2004) destaca a importacircncia e a contribuiccedilatildeo da populaccedilatildeo negra na

formaccedilatildeo do povo amazocircnida Para a autora a cultura negra embora matizada pela

grande diversidade de negros que vieram para a regiatildeo e hibridizada pelo contato com

os iacutendios colonos portugueses e migrantes tambeacutem integra a ldquomemoacuteria da

Amazocircniardquo (p 178) Pacheco (2009) corrobora com esta tese quando afirma que

ldquohomens e mulheres filhos da diaacutespora africana que se esparramaram apropriaram-

se resignificaram e compartilharam em contatos e trocas culturais experiecircncias de

vida nos campos marajoarasrdquo (p 283)

Isto posto podemos concluir que a populaccedilatildeo ribeirinha na Amazocircnia eacute

constituiacuteda damescla de indiviacuteduos de etnias e culturas diferentesdentre as quais

indiacutegenas negras europeia e nordestina

23 AFUAacute a Veneza Marajoara

O municiacutepio de Afuaacute eacute conhecido na Ilha do Marajoacute como a Veneza Marajoara

em analogia com a cidade italiana de Veneza A cidade foi construiacuteda sobre as aacuteguas

num terreno de vaacuterzea que eacute totalmente inundado com as enchentes das aacuteguas de

marccedilo Devido a essa caracteriacutestica as ruas satildeo pontes a maioria delas de madeira

e poucas em concreto chamadas pelos moradores de passarelas Eacute uma cidade

ribeirinha cercada por rios de onde satildeo retirados os alimentos por meio da pesca e

por onde navegam os moradores comerciantes e turistas Nesta seccedilatildeo faremos uma

abordagem histoacuterica e econocircmica para compreendermos o modo de serviver dos

85

moradores tambeacutem realizamos uma anaacutelise da educaccedilatildeo baacutesica com enfoque na

educaccedilatildeo infantil e ensino fundamental

231 Aspectos histoacutericos geograacuteficos e econocircmicos

Afuaacute eacute uma das cidades amazocircnicas construiacuteda dentro dacuteaacutegua sobre palafitas

que compotildee o arquipeacutelago do Marajoacute As ruas satildeo pontes chamadas de passarelas

que ligam as casas e os bairros a Central e o Capimarinho A imagem abaixo retrata

uma passarela de madeira por onde caminham os moradores e brincam as crianccedilas

No periacuteodo das enchentes as aacuteguas do rio adentram os quintais

Fotografia 5 - Passarela de madeira no bairro Capimarinho

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Devido agraves caracteriacutesticas da cidade natildeo haacute automoacuteveis e o meio de transporte

utilizado eacute a bicicleta comumente encontrada circulando nas passarelas O

transporte coletivo eacute um tipo de charrete chamado de bicitaacutexi que foi inventado por

um morador nativo Como natildeo haacute caminhotildees ou veiacuteculo similar para carregar cargas

e bagagens satildeo utilizados carros de matildeo puxados por trabalhadores autocircnomos

chamados de carreteiros

Fotografia 6ndashTrabalhador autocircnomo (carreteiro) transportando mercadoria

86

Fonte Edielso M M de Almeida 2016 Quanto agrave origem do Municiacutepio sua histoacuteria remonta ao periacuteodo colonial e faz

parte da poliacutetica de colonizaccedilatildeo da Amazocircnia traccedilada pela coroa portuguesa que

visava agrave dominaccedilatildeo dos povos nativos e agrave exploraccedilatildeo das riquezas da regiatildeo

Segundo Gonccedilalves (2005 p82) ldquoa partir de 1750 no governo do primeiro-

ministro Marquecircs de Pombal comeccedila uma nova fase na adequaccedilatildeo da Amazocircnia ao

domiacutenio colonial portuguecircsrdquo Este domiacutenio objetivou garantir o desenvolvimento da

regiatildeo atraveacutes do comeacutercio dos produtos agriacutecolas e fomento da agricultura comercial

Para isso foi criada em 1755 a Companhia Geral do Comeacutercio do Gratildeo-Paraacute e

Maranhatildeo O monopoacutelio concedido agrave Companhia entrou em atrito com os interesses

das ordens religiosas que atuavam na Amazocircnia no processo de catequizaccedilatildeo e

exploraccedilatildeo dos iacutendios O conflito chegou no aacutepice e em 1759 os jesuiacutetas a maior

ordem religiosa atuante na regiatildeo foram expulsos e seus bens confiscados dentre

eles a matildeo de obra indiacutegena

Com a implantaccedilatildeo da Companhia Geral do Comeacutercio vaacuterias medidas foram

tomadas para modernizar a regiatildeo dentre elas destaca Gonccedilalves (2005 p82)

Doaccedilatildeo de terras (sesmarias) a colonos e a soldados que se

comprometessem a cultivaacute-las introduccedilatildeo do trabalho escravo (1756)

procurando reforccedilar a agricultura do cacau cafeacute algodatildeo cana-de-accediluacutecar

fumo anil e arroz estimulo agrave implantaccedilatildeo da pecuaacuteria nos campos de Rio

Branco (Roraima) baixo Amazonas e na Regiatildeo das Ilhas (Marajoacute inclusive)

Neste contexto soacutecio-poliacutetico-econocircmico gerado a partir da administraccedilatildeo

pombalina comeccedilou ldquouma dinacircmica de povoamento e desenvolvimento que

permitiram integraccedilatildeo poliacutetica administrativa econocircmica social e tambeacutem cultural do

Estado []rdquo (RODRIGUES 2004 p 21)

87

Esta poliacutetica de povoamento fez surgir e crescer as vilas e cidades no interior

da Amazocircnia entre elas o municiacutepio de Afuaacute que faz parte do arquipeacutelago do Marajoacute

Haacute poucos estudos relacionados agrave Histoacuteria de Afuaacute Tivemos acesso durante a

pesquisa bibliograacutefica ao Plano Diretor Participativo do Municiacutepio elaborado pela

Prefeitura no ano de 2007 e eacute com base neste documento que descreveremos a sua

evoluccedilatildeo histoacuterica e poliacutetica

Afuaacute assim como algumas cidades da Amazocircnia cresceu em torno de uma

igreja denominada Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo O terreno para a construccedilatildeo foi

doado por Micaela Archanja Ferreira uma donataacuteria portuguesa a qual tomou posse

das terras que denominou Santo Antocircnio em 1845 que na eacutepoca fazia parte do

distrito da Vila de Chaves

O local onde foi construiacuteda a igreja foi doado por Dona Micaela em 1899 ao

patrimocircnio de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo O terreno comeccedilava no Igarapeacute Divisa

no Rio Marajoacute descia pelo Rio Afuaacute ateacute o Igarapeacute Jaranduba no Rio Cajuuacutena (PLANO

DIRETOR PARTICIPATIVO DE AFUAacute 2007 p 2)

Fotografia 7 - Igreja de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A presenccedila de templos catoacutelicos no processo de colonizaccedilatildeo da Amazocircnia e

como consequecircncia no surgimento de povoados vilas e cidades deu-se segundo

Trindade Juacutenior (2008 p 33) devido ao sentido da colonizaccedilatildeo na regiatildeo que

88

inicialmente foi levada a cabo pela igreja catoacutelica que criou aldeamento e definiu um

povoamento articulado ao interesse cristatildeo daiacute a paisagem dessas cidades ateacute hoje

ser fortemente marcada pelos templos religiosos que logo chamam a atenccedilatildeo das

pessoas que as observam desde os rios

De acordo com imagem acima a primeira vista que temos quando chegamos

agrave cidade pelo rio eacute a da igreja Avistamos o preacutedio religioso de longe eacute o primeiro

sinal de que estamos chegando ao Municiacutepio A fotografia 07 tambeacutem mostra a

localizaccedilatildeo da igreja agraves margens do rio esta foi uma das estrateacutegias de povoamento

adotadas pelo governo portuguecircs que visava a ocupaccedilatildeo da Amazocircnia assim como

agrave defesa das terras apropriadas Os rios possibilitavam a saiacuteda dos produtos da

floresta e a entrada de mercadorias para consumo

[] o ideal de penetraccedilatildeo no territoacuterio amazocircnico vinculado a sua

necessidade de ocupaccedilatildeo e defesa traduziu-se soacutecio-espacialmente nas

gecircneses das cidades agrave beira dos principais rios que davam acesso agrave regiatildeo

(TRINDADE JUacuteNIOR 2008 p 33)

As vilas e povoamentos edificados agraves margens dos rios tornaram-se estrateacutegias

eficientes de povoamento Com as dificuldades do controle da terra afirma Gonccedilalves

(2005 p 35) ocorreu o efetivo controle das aacuteguas o que resultou em vaacuterios

ldquopovoamentos dispersos ao longo dos rios sustentados pelo extrativismo das drogas

do sertatildeo por uma agricultura de subsistecircncia e pela pesca artesanal base da cultura

do caboclo da Amazocircniardquo

Assim cresceu um povoado em torno da construccedilatildeo da igreja ateacute que em 14

de abril de 1874 pela Lei nordm 811 recebeu a categoria de Freguesia Como Freguesia

entrou para o periacuteodo da Repuacuteblica passando para Vila em 1890 com o Decreto nordm

170 de 2 de agosto No mesmo dia outro Decreto-Lei nordm 171 elevou-a a categoria

de Municiacutepio No ano de 1896 a Vila foi elevada agrave condiccedilatildeo de cidade

De 1891 a 1926 o Municiacutepio foi administrado por intendentes que eram

nomeados pelo governo estadual posteriormente passaram a ser eleitos

constitucionalmente por voto aberto e direto do povo No ano de 1927 passou a ser

governado por prefeitos nomeados A partir da Constituiccedilatildeo de 1988 os prefeitos

passaram a ser eleitos pelo voto direto do povo

Em relaccedilatildeo agrave localizaccedilatildeo Afuaacute encontra-se ao norte da Ilha do Marajoacute na

microrregiatildeo dos furos de Breves conforme o mapa abaixo

Mapa 01 Localizaccedilatildeo Geograacutefica do municiacutepio de Afuaacute

89

Fontelthttp3bpblogspotcom_O_r-gkdiqDYSumbWwIY-IAAAAAAAAAhwEhILXVXz97Es1600-

hmapa+MARAJOANDOJPG Acesso 16 de maio de 2016

O arquipeacutelago do Marajoacute estaacute situado no extremo norte do Estado do Paraacute na

foz do rio Amazonas sendo considerado o maior complexo de ilhas fluviais do mundo

com 49606 kmsup2 composto por 12 municiacutepios Afuaacute Chaves Anajaacutes Breves

Curralinho Satildeo Sebastiatildeo da Boa Vista Muanaacute Ponta de Pedras Cachoeira do Ariri

Salvaterra Soure e Santa Cruz do Ariri

O mapa 01 indica os limites de Afuaacute ao norte com a Ilha Caviana a nordeste

com o Municiacutepio de Chaves ao sul com o Municiacutepio de Anajaacutes e Breves ao sudeste

com o Municiacutepio de Anajaacutes ao sudoeste com os Municiacutepios de Breves e Gurupaacute a

leste com os Municiacutepios de Chaves e a oeste e noroeste com o Estado do Amapaacute

(com os Municiacutepios de Mazagatildeo Macapaacute e Itauacutebal)

Mapa 02 Mapa da ilha de Marajoacute indicando a proximidade de Afuaacutecom o Macapaacute

90

Fonte Google Mapas Disponiacutevel em

lthttpmapsgooglecombrmapsgtAcesso 17 de maio de

2016

Na imagem o Municiacutepio estaacute representado pela letra A (no balatildeo) Em meacutedia

a viagem de barco dura de trecircs a quatro horas ateacute Macapaacute capital do Estado do

Amapaacute enquanto que para Beleacutem dura aproximadamente 24 horas A proximidade

com Macapaacute possibilita um intenso intercacircmbio comercial de Afuaacute chegam

constantemente peixe (pescada gurijuba tamuataacute acaraacute traiacutera pirarucu entre

outros) camaratildeo accedilaiacute bacaba madeira e outros produtos extraiacutedos dos rios e

florestas Os comerciantes afuaenses compram em Macapaacute produtos alimentiacutecios

roupas sapatos eletrodomeacutesticos produtos importados etc para revenderem no

Municiacutepio Haacute tambeacutem uma procura pelos serviccedilos puacuteblicos ofertados em Macapaacute

principalmente nas aacutereas de sauacutede e educaccedilatildeo reflexo da falta de investimento

nessas aacutereas pelos Poderes Municipal Estadual e Federal Existe somente um

hospital na sede do Municiacutepio que natildeo atende agrave demanda da populaccedilatildeo o que

provoca a saiacuteda constante de pessoas em busca de atendimento meacutedico nos

Municiacutepios mais proacuteximos

No que concerne agrave flora a floresta amazocircnica que compotildee o territoacuterio afuaense

conteacutem diversas espeacutecies com destaque para a virola andiroba anani pracuuacuteba

macacauacuteba pau mulato sucupira de vaacuterzea e acapu e palmeiras como o accedilaiacute o

miriti o murumuru o tucumatildes e inuacutemeras outras espeacutecies de plantas aquaacuteticas

A riqueza da flora amazocircnica garante o sustento da maioria da populaccedilatildeo

atraveacutes do extrativismo que segundo Gonccedilalves (2005 p 89) eacute uma atividade ldquoque

91

marca a organizaccedilatildeo social do espaccedilo amazocircnico mesmo antes da presenccedila colonialrdquo

De fato os iacutendios antes da apropriaccedilatildeo de suas terras pelos colonizadores jaacute

negociavam com espanhoacuteis franceses e holandeses os produtos da floresta entre

eles o pau-brasil Braga (1911) afirma que a exploraccedilatildeo da madeira faz parte da

histoacuteria do Marajoacute desde 1900 as induacutestrias madeireiras se instalaram na regiatildeo para

exploraccedilatildeo e beneficiamento da madeira

Segundo Meirelles Filho (2004) a Regiatildeo Amazocircnica eacute a maior produtora de

madeira tropical do mundo e o Estado do Paraacute estaacute incluiacutedo no que o autor chama de

ldquoarco do desmatamentordquo 21 (p 178) O desmatamento tambeacutem gera emprego ldquoA

exploraccedilatildeo da madeira eacute a principal atividade econocircmica de mais de cem municiacutepios

da Amazocircnia Trata-se da terceira maior geradora de empregos na Regiatildeo com mais

de meio milhatildeo de pessoas vivendo da atividaderdquo (p178)

Esta atividade geralmente natildeo respeita as leis ambientais e trabalhistas pois

as condiccedilotildees de trabalho satildeo severas Haacute pouco equipamento disponiacutevel e os

acidentes satildeo comuns Aleacutem disso a ausecircncia da fiscalizaccedilatildeo contribui para a

violaccedilatildeo dos Direitos Humanos tanto nas serralherias como na operaccedilatildeo de corte

com a ocorrecircncia de trabalho infantil condiccedilotildees inadequadas e horas excessivas de

trabalho (LIMA 2003 p 43)

Na sede do Municiacutepio de Afuaacute estaacute localizada a maior madeireira da localidade

denominada Exportaccedilatildeo Materiais e Alimentos do Paraacute (EMAPA) Cerca de 99 de

sua produccedilatildeo eacute exportada para o Japatildeo Itaacutelia Argentina Inglaterra Estados Unidos

e Canadaacute apenas 1 destina-se ao mercado interno (PLANO DIRETOR

PARTICIPATIVO 2007 p 9) O que caracteriza uma produccedilatildeo voltada para a oferta

de mateacuteria-prima para o mercado externo

A exploraccedilatildeo de madeira tambeacutem eacute feita pelos ribeirinhos Segundo

levantamento da Secretaria do Meio Ambiente existem na zona rural

aproximadamente 146 pequenas serrarias que cortam madeira Muitas dessas

serrarias comercializam seus produtos com a EMAPA e com as madeireiras do

Municiacutepio de Macapaacute A derrubada da madeira eacute feita na sua grande maioria sem

projeto de reflorestamento e sem orientaccedilatildeo teacutecnica para o desmatamento pelos

21Seus limites se estendem do sudoeste do Estado do Maranhatildeo ao norte de Tocantins Paraacute norte de

Mato Grosso Rondocircnia sul do Amazonas e sudoeste do Estado do Acre Pelo mapa este itineraacuterio de devastaccedilatildeo da floresta tem forma de um arco

92

ribeirinhos e tambeacutem por madeireiras instaladas no interior pertencentes a

empresaacuterios principalmente das regiotildees Sul e Sudeste do paiacutes

A ausecircncia de orientaccedilotildees teacutecnicas para a derrubada de madeira gera como

consequecircncia o desperdiacutecio pois quando a aacutervore tomba apoacutes o corte do machado

ou da motosserra acaba danificando ou matando outras que estatildeo ao seu redor Se

forem em floresta com maior presenccedila de cipoacutes os danos podem ainda ser maiores

ldquo[] as estradas para a retirada da madeira sem planejamento destroacutei inuacutemeras

aacutervores jovens que poderiam fornecer boa madeira no futuro entopem riachos

mudam cursos drsquoaacutegua e provocam erosotildeesrdquo (MEIRELLES FILHO 2010 p173)

Explica o referido autor que a exploraccedilatildeo de madeira passa por etapas que

inicialmente produzem a geraccedilatildeo de emprego e renda e posteriormente o

desemprego e a miseacuteria da populaccedilatildeo e do espaccedilo explorado

O primeiro momento da atividade predatoacuteria eacute de euforia crescimento raacutepido

geraccedilatildeo de emprego e renda No segundo momento quando terminam os

estoques de madeira mais faacutecil de coletar as serrarias satildeo transferidas para

outras fronteiras deixando um rastro de destruiccedilatildeo e desemprego Para a

regiatildeo fica o prejuiacutezo uma vez que a matildeo-de-obra natildeo iraacute se transferir

tampouco as propriedades rurais onde a madeira foi escolhida a dedo

(MEIRELLES FILHO 2010 p 178)

A transferecircncia das serrarias causa imensos problemas sociais gerados pelo

desemprego Desempregado sem ter como manter a famiacutelia muitos ribeirinhos vatildeo

para a cidade em busca de trabalho de melhores condiccedilotildees de sobrevivecircncia e de

educaccedilatildeo para seus filhos Na cidade acabam morando na periferia sem as miacutenimas

condiccedilotildees de habitaccedilatildeo sem aacutegua encanada esgoto luz eleacutetrica e outros direitos

sociais A realidade com a qual passam a conviver eacute a da violecircncia prostituiccedilatildeo

mendicacircncia entre outras

Aleacutem da extraccedilatildeo da madeira outra forma de exploraccedilatildeo da floresta acontece

atraveacutes da retirada do palmito do accedilaizeiro

[] eacute realizada sem nenhum criteacuterio de manejo ocasionando a escassez de

accedilaizeiros nas aacutereas onde satildeo realizados os cortes para a extraccedilatildeo de

palmito A comercializaccedilatildeo do produto eacute feita ldquoin naturardquo para as faacutebricas de

beneficiamento existentes no municiacutepio (PLANO DIRETOR PARTICIPATIVO

DE AFUAacute 2007 p 26)

Existem seis induacutestrias de palmito registradas na prefeitura que estatildeo

espalhadas pelo municiacutepio localizadas em sua maioria nas aacutereas rurais-ribeirinhas

devido agrave facilidade de acesso agrave matildeo-de-obra e a mateacuteria-prima

Tabela 02 ndash Comparaccedilatildeo da produccedilatildeo de accedilaiacute no intervalo de quatro anos

93

Produto

Quantidade Produzida

Valor (Mil reais)

2010 2014 2010 2014

Accedilai (fruto) 4100 6125 4510 17151

Palmito 120 119 90 263 Fonte Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica 2014

Pela leitura da tabela podemos verificar que a quantidade de accedilaiacute produzida

em 2014aumentou em relaccedilatildeo agrave de 2010 houve um acreacutescimo de 2025 toneladas no

intervalo de quatro anos Um dos motivos foi diminuiccedilatildeo da derrubada em massa de

accedilaizeiros para a retirada de palmito que pela leitura dos mesmos dados tambeacutem

diminuiu Apesar de natildeo haver uma poliacutetica puacuteblica de manejo do accedilaiacute a produccedilatildeo

aumentou

Os ribeirinhos recebem em meacutedia um real por unidade de palmito com toda a

casca poreacutem um vidro deste produto beneficiado eacute encontrado no comeacutercio de

Macapaacute com o peso bruto de 550g e peso drenado de 300g ndash sem o liacutequido de

conserva ndash com o custo meacutedio de R$ 7 50 (sete reais e cinquenta centavos) a R$

1000 (dez reais) dependendo do tipo do palmito A B ou C O preccedilo tambeacutem pode

variar eou aumentar se for vendido para outras regiotildees do paiacutes

A derrubada de accedilaizeiros para a extraccedilatildeo de palmito diminui a oferta do accedilaiacute

que faz parte da alimentaccedilatildeo tanto dos ribeirinhos como dos amazocircnidas que vivem

nas cidades ldquoObserva-se em Beleacutem o aumento excessivo do preccedilo desse fruto o

que provoca a diminuiccedilatildeo de seu consumo principalmente pela populaccedilatildeo de baixa

rendardquo (SANTOS 2014 p 74) Como consequecircncia haacute o aumento no preccedilo do

produto ocasionando a falta nas mesas das famiacutelias mais pobres O que antes se

tinha em abundacircncia hoje estaacute cada vez mais raro O litro do produto em Afuaacute na

entressafra chega a custar R$ 1000 (dez reais) Vale ressaltar que o accedilaiacute aleacutem de

alimento tambeacutem eacute fonte de renda para os ribeirinhos

A pesca tambeacutem eacute outra atividade econocircmica do municiacutepio com destaque para

o camaratildeo e a lagosta aleacutem de vaacuterias espeacutecies de peixes que acompanhados com

accedilaiacute e o camaratildeo tornam-se os principais alimentos consumidos pelos afuaenses Eacute

habitual encontrar esses alimentos nas mesas dos ribeirinhos Como afirma Santos

(2014 p 72) satildeo caracteriacutesticos da culinaacuteria amazocircnica pela especificidade da

regiatildeo ldquocomo por exemplo a presenccedila de rios que facilitam a pesca ou a presenccedila

da mata []rdquo Os saberes necessaacuterios para a colheita do accedilaiacute e a pesca satildeo

aprendidos desde a infacircncia na convivecircncia diaacuteria e nas relaccedilotildees de trabalho Parte

94

do pescado eacute vendida nas feiras e mercados locais a outra eacute comercializada em

Macapaacute Os instrumentos mais utilizados para a pesca satildeo linha tarrafa malhadeira

matapi caniccedilo arpatildeo pari22 entre outros

Fotografia 8ndashRibeirinho jogando a tarrafa no rio

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A pesca do camaratildeo eacute intensa no Municiacutepio nos meses de maio a julho eacute o

periacuteodo de safra O camaratildeo eacute um dos principais produtos que movimenta a economia

Ele eacute tatildeo importante que haacute 33 anos eacute realizado o festival do camaratildeo que ocorre no

mecircs de julho O evento acontece agraves margens do Rio Afuaacute no camaroacutedromo23 e faz

parte do calendaacuterio turiacutestico da cidade

Segundo a Secretaria Municipal de Turismo Esporte Lazer e Culturaem 2015

o festival contou com participaccedilatildeo de aproximadamente 50000 (cinquenta mil)

pessoas oriundas dos municiacutepios do arquipeacutelago do Marajoacute de outros Estados e

paiacuteses Em 2005 comeccedilou a fazer parte do festival a batalha camaroeira que consiste

na disputa entre camarotildees Convencido (camaratildeo cru da cor verde) e Pavulagem

(camaratildeo cozido cor vermelha) A batalha visa retratar os costumes a originalidade

e a regionalidade da cultura cabocla ribeirinha

22O pari eacute uma espeacutecie de armadilha feita de tala pelos pescadores Quando a mareacute seca os peixes

ficam presos nela 23No mecircs de julho a uacutenica quadra de esportes existentes no municiacutepio se transforma no camaroacutedromo

que eacute um espaccedilo para apresentaccedilotildees de bandas desfiles salatildeo de danccedila e para a batalha dos camarotildees Convencido e Pavulagem

95

O trabalho na roccedila garante tambeacutem o alimento do afuaense Eacute uma atividade

laboral que envolve toda a famiacutelia crianccedilas jovens adultos idosos mulheres e

homens todos desempenham funccedilotildees que garantem a produccedilatildeo o sustento e a

venda do que eacute produzido Eacute o que podemos considerar uma agricultura familiar na

qual a prioridade eacute a subsistecircncia Nos solos do municiacutepio satildeo plantados com maior

abundacircncia abacaxi arroz cana-de-accediluacutecar mandioca melancia e milho

O sistema de corte-e-queima ainda prevalece nas praacuteticas da agricultura

familiar que consiste em

[] escolher uma aacuterea de terras uacutemidas desmatar uma pequena aacuterea no fim

da estaccedilatildeo chuvosa e deixar as aacutervores secarem Apoacutes dois meses eacute

colocado fogo e em seguida realizado o plantio de diferentes espeacutecies numa

mesma aacuterea Aproveita-se a aacuterea para o plantio por um a trecircs anos A cada

ano uma nova limpeza e queima eacute realizada (MEIRELLES FILHO 2004 p

86)

Essa praacutetica empobrece o solo tendo como efeito a diminuiccedilatildeo da produccedilatildeo a

cada ano o que leva o agricultor-ribeirinho24 a desmatar e queimar novas aacutereas para

o plantio comprometendo a sobrevivecircncia da floresta e consequentemente a sua

permanecircncia nela

Fotografia 9 ndashAacuterea desmatada para o plantio de milho

Fonte Comissatildeo Pastoral da Terra 2015

24Utilizaremos este termo porque todas as comunidades onde se pratica a agricultura no municiacutepio satildeo

ribeirinhas

96

Na fotografia temos parte da mata derrubada e queimada para o plantio do

milho esta eacute a forma como o agricultor-ribeirinho pratica a agricultura Aprendeu com

os pais que aprenderam com os avoacutes e agora estatildeo ensinando para os seus filhos

que continuaratildeo a perpetuaacute-la Segundo Gonccedilalves (2005 p 156) ldquoAs populaccedilotildees

ribeirinhas de pescadores-agricultores-extrativistas manipulam haacute vaacuterios anos

ecossistemas extremamente delicados sem que nenhum esforccedilo sistemaacutetico de

poliacuteticas puacuteblicas tenha existido em seu apoiordquo Sendo assim a falta de apoio agrave

populaccedilatildeo ribeirinha eacute reflexo do descaso do poder puacuteblico em desenvolver poliacuteticas

que assegurem o desenvolvimento de praacuteticas produtivas coerentes com a

biodiversidade da regiatildeo

Em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo segundo o censo de 2015 do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatiacutestica (IBGE) a estimativa eacute de que o municiacutepio tenha 37398

habitantes sendo que mais de 60 residem na zona rural em comunidades rurais-

ribeirinhas (vilas e povoados)

No tocante agrave definiccedilatildeo de urbano e rural Veiga (2002) afirma que no Brasil natildeo

haacute no estatuto das cidades por exemplo um artigo que defina cidade Essa lacuna

gera confusatildeo entre a classificaccedilatildeo adotada pelo governo e a usada em estudos

demograacuteficos Segundo o autor em nosso paiacutes o mapa oficial de urbanizaccedilatildeo

publicado no Atlas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) de 2000

adota um criteacuterio administrativo Este criteacuterio ainda eacute baseado no decreto-lei assinado

por Getuacutelio Vargas em 1938 que considera urbanas as sedes dos municiacutepios e as

vilas natildeo levando em consideraccedilatildeo sua densidade populacional

Desta maneira ldquoapoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica a classificaccedilatildeo urbana

passa a se relacionar com o conceito de cidade e cada vila passa a adotar um criteacuterio

pois se tornar cidade confere statusrdquo (VEIGA 2002 p34) Para o referido autor a

densidade demograacutefica talvez seja o principal indicador da maior ou menor pressatildeo

antroacutepica mas natildeo deve ser o uacutenico pois ldquose usarmos o criteacuterio analiacutetico a populaccedilatildeo

urbana do Brasil natildeo chega a 70rdquo (ibidem p35)

Fotografia 10ndashCasas construiacutedas em aacuterea de invasatildeo no bairroCapimarinho

97

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

As invasotildees para a construccedilatildeo de casas visualizadas na fotografia ocorrem

atraveacutes do desmatamento limpeza e ocupaccedilatildeo desordenada do espaccedilo

Paulatinamente vatildeo surgindo as casas cobertas de palha telhas de brasilit ou de

barro Na imagem acima ainda ficaram poucas espeacutecies da floresta nativa o restante

galhos e troncos das aacutervores estatildeo no chatildeo Sem condiccedilotildees econocircmicas os

ribeirinhos acabam invadindo aacutereas de ressacas para construir suas moradias na

cidade e assim vatildeo surgindo os bairros nas periferias sem aacutegua tratada esgoto

energia eleacutetrica coleta de lixo etc O bairro mais populoso eacute o Capimarinho que

nasceu atraveacutes das constantes invasotildees de ribeirinhos fugindo da miseacuteria e da fome

geradas pelas accedilotildees predatoacuterias de madeireiras e faacutebricas de palmito

A pobreza dos cidadatildeos afuaenses eacute evidenciada pelo Iacutendice de

Desenvolvimento Humano (IDH)25 O IDH Municipal varia de 0 a 1 considerando

indicadores de longevidade como sauacutede renda e educaccedilatildeo Quanto mais proacuteximo de

0 (zero) pior eacute o desenvolvimento humano do municiacutepio Quanto mais proacuteximo de 1

(um) mais alto eacute o desenvolvimento do municiacutepio O IDH de Afuaacuteem 2014 foi de

0489 considerado portanto muito baixo e a expectativa de vida dos moradores em

25A pesquisa foi elaborada a partir do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil 2014 divulgado pelo Programa das Naccedilotildees Unidas para o Desenvolvimento - PNUD Instituto de Pesquisa Econocircmica Aplicada - IPEA e Fundaccedilatildeo Joatildeo Pinheiro - FJP com dados extraiacutedos dos Censos Demograacuteficos de 1991 2000 e 2010

98

meacutedia de 69 anos (IBGE 2010) A ausecircncia de poliacuteticas puacuteblicas sociais e econocircmicas

que beneficiem a populaccedilatildeo mais pobre reflete o iacutendice apresentado Segundo o

estudo do Programa das Naccedilotildees Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) em 2014

dos oito municiacutepios com IDH mais baixo no Estado do Paraacute seis estatildeo situados na

Ilha do Marajoacute Afuaacute (0489) Anajaacutes (0484) Portel (0483) Bagre (0471) Chaves

(0453) e Melgaccedilo (0418) este com o pior IDH do Brasil (PNUD 2013)

A seguir apresentamos o retrato da educaccedilatildeo formal ofertada agravepopulaccedilatildeo que

reside no Municiacutepio

24 A EDUCACcedilAtildeO RIBEIRINHA NO MUNICIacutePIO DE AFUAacute

A populaccedilatildeo de Afuaacute eacute atendida educacionalmente com a educaccedilatildeo infantil

ensino fundamental educaccedilatildeo de jovens e adultos educaccedilatildeo especial e o ensino

meacutedio Segundo censo escolar de 2014 do Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatiacutestica 2130 da populaccedilatildeo acima de 15 anos de idade satildeo analfabetas Isso

significa que nunca frequentaram a escola um direito que eacute garantido

constitucionalmente e natildeo estaacute sendo cumprido nem cobrado pelos oacutergatildeos

competentes A grande parte dos excluiacutedos do sistema formal de ensino mora agraves

margens dos rios lagos e igarapeacutes nas aacutereas ribeirinhas Enquanto no nosso paiacutes

de acordo com dados do IBGE (2014) houve aumento no niacutevel de escolaridade nos

uacuteltimos anos ainda encontramos principalmente nos municiacutepios mais pobres um

elevado iacutendice de analfabetismo e como consequecircncia baixos indicadores de

escolarizaccedilatildeo

A rede municipal de ensino tem como caracteriacutestica ser rural ribeirinha pois

98 das escolas estatildeo localizadas nestas aacutereas das 211 instituiccedilotildees escolares

somente 5 (cinco) se encontram na aacuterea urbana A seguir apresentamos o retrato da

educaccedilatildeo baacutesica iniciamos pela educaccedilatildeo infantil e posteriormente mostramos o

ensino fundamental e meacutedio

241 Educaccedilatildeo Infantil

A educaccedilatildeo infantil enquanto poliacutetica puacuteblica foi garantida legalmente a partir

da constituiccedilatildeo de 1988 as constituiccedilotildees anteriores limitaram-se ao amparo e agrave

assistecircncia e as promulgadas no periacuteodo imperial natildeo abrangeram nada referente agrave

infacircncia (CURY 2012) O cidadatildeo crianccedila de acordo com Angotti (2010) eacute

reconhecido na Carta Magna de 1988 com direitos garantidos o que requer o

investimento e o desenvolvimento de accedilotildees em niacutevel Federal Estadual e Municipal

99

A educaccedilatildeo infantil com a Constituiccedilatildeo passa a ser responsabilidade do

Estado ofertada em creches e preacute-escolas poreacutem a partir da emenda constitucional

nordm 592009 a obrigatoriedade e gratuidade foi concedida somente para as crianccedilas a

partir de quatro anos de idade

A Emenda Constitucional nordm 59 de 2009 que modificou a definiccedilatildeo da educaccedilatildeo obrigatoacuteria apesar de sua importacircncia foi aprovada sem que fosse precedida por maiores discussotildees na sociedade nos meios especializados e no proacuteprio Congresso Nacional De certa forma essa medida jaacute estava anunciada em metas definidas por uma mobilizaccedilatildeo de empresaacuterios o Movimento Todos pela Educaccedilatildeo que vem exercendo grande influecircncia nas orientaccedilotildees da poliacutetica educacional no Paiacutes Essa novidade foi adotada na esteira da anterior configurando uma verdadeira cascata de mudanccedilas que incidiram sobre a gestatildeo municipal da educaccedilatildeo nesta primeira deacutecada do seacuteculo (CAMPOS 2012 p 11)

Para a garantia do padratildeo miacutenimo de qualidade e a equalizaccedilatildeo das

oportunidades foi mantido como competecircncia da Uniatildeo prestar assistecircncia teacutecnica e

financeira aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios que ficaram com a

responsabilidade de atuar prioritariamente no ensino fundamental e na educaccedilatildeo

infantil Nesta divisatildeo coube agrave esfera Estadual o atendimento ao ensino meacutedio e agrave

Federal a oferta da educaccedilatildeo superiorA delegaccedilatildeo por meio das competecircncias entre

os poderes puacuteblicos definidas constitucionalmente fomentou o princiacutepio da

descentralizaccedilatildeo que segundo Gagnebin (2011) compromete a efetivaccedilatildeo do

atendimento educacional de qualidade agraves crianccedilas pequenas como tambeacutem a todos

os outros niacuteveis de ensino o que denota uma visatildeo reducionista do papel do Estado

em relaccedilatildeo agraves poliacuteticas puacuteblicas

Em relaccedilatildeo agraves instituiccedilotildees que poderatildeo ofertar educaccedilatildeo infantil a crecheeacute

reconhecida como espaccedilo educativo e de direito para as crianccedilas principalmente das

famiacutelias trabalhadoras Desta forma os pais legalmente passam a usufruir de um

espaccedilo coletivo para os cuidados e educaccedilatildeo de seus filhos Mas na realidade este

princiacutepio legal ainda natildeo saiu do papel e natildeo se concretizou no municiacutepio de Afuaacute As

crianccedilas na idade de dois a trecircs anos satildeo atendidas na uacutenica escola de Educaccedilatildeo

Infantil denominada Centro Theopompo Nery(CEI) localizada na aacuterea urbanano

bairro Central O nuacutemero de vagas ofertadas por ano totalizam 40 sendo 20 para o

turno da manhatilde e 20 para o da tarde Sabe-se que a demanda eacute muito maior do que

as vagas disponiacuteveis o que requer do poder puacuteblico investimento para a construccedilatildeo

de creches que atendam o que a lei estabelece

100

Vale ressaltar a importacircncia da creche que para Didonet (2014) estaacute centrada

no desenvolvimento na promoccedilatildeo da aprendizagem assim como na mediaccedilatildeo do

processo de construccedilatildeo conhecimentos e habilidades por parte da crianccedila

procurando ajudaacute-la a ir o mais longe possiacutevel nesse processo Desta forma

reconhece a importacircncia da infacircncia no desenvolvimento humano por meio da

educaccedilatildeo na construccedilatildeo da cidadania Constata-se a finalidade da creche que deve

ser centrada na crianccedila para a formaccedilatildeo do cidadatildeo desde o nascimento direito

constitucionalmente garantido

Mas segundo Cury (2012) as instituiccedilotildees que ofertam a educaccedilatildeo infantil em

nosso paiacutes precisam de investimentos tanto na aacuterea pedagoacutegica como em

infraestrutura recursos didaacuteticos formaccedilatildeo continuada de professores projeto

poliacutetico pedagoacutegico entre outros para colocar em accedilatildeo os avanccedilos propostos pela lei

e tornarem-se espaccedilos de promoccedilatildeo e defesa da cidadania

Outro documento legal que trata do direito das crianccedilas agrave creche e agrave preacute-escola

eacute o Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA) Lei n 80691990 A referida lei

corrobora o que jaacute foi garantido constitucionalmente ou seja a obrigatoriedade do

Estado no atendimento agraves crianccedilas de 0 a 5anos em creches e preacute-escolas e a

incumbecircncia do municiacutepio na oferta da educaccedilatildeo infantil Avanccedila ainda ao propor a

criaccedilatildeo de instrumentos na defesa do atendimento aos direitos das crianccedilas e dos

adolescentes que satildeo os Conselhos dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente

A Constituiccedilatildeo Federal de 1988 ao dispor sobre a competecircncia da Uniatildeo para

legislar sobre as diretrizes e bases da educaccedilatildeo nacional deu iniacutecio a todo o processo

para promulgaccedilatildeo da Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional (LDB) Lei n

93941996 de 20 de dezembro de 1996 considerada a lei maacutexima da educaccedilatildeo

Nela a educaccedilatildeo infantil eacute concebida como a primeira etapa da educaccedilatildeo baacutesica

Desta forma o direito das crianccedilas de 0 a 5 anos agrave educaccedilatildeo em creches e preacute-

escolas que jaacute estava assegurado na Constituiccedilatildeo de 1988 e reafirmado no Estatuto

da Crianccedila e do Adolescente agora tambeacutem estaacute traduzido em diretrizes e normas no

acircmbito da educaccedilatildeo nacional o que representa um marco histoacuterico de grande

importacircncia para a educaccedilatildeo infantil em nosso paiacutes

A referida lei apresenta como finalidade da educaccedilatildeo baacutesica o

desenvolvimento do educando assegurando-lhe uma formaccedilatildeo para a cidadania

aleacutem de fornecer meios para a progressatildeo no mundo do trabalho e nos estudos Nela

101

haacute o reconhecimento de que a educaccedilatildeo comeccedila nos primeiros anos de vida por meio

da sua primeira etapa e eacute fundamental para a efetivaccedilatildeo de sua finalidade

O destaque atribuiacutedo pela nova LDB agrave educaccedilatildeo infantil o que natildeo ocorreu nas

legislaccedilotildees anteriores refere-se agrave sua finalidade ldquoo desenvolvimento integral da

crianccedila ateacute os cinco anos de idade em seus aspectos fiacutesico psicoloacutegico intelectual e

social complementando a accedilatildeo da famiacutelia e da comunidaderdquo (BRASIL 2015 p 4)

ofertada em creches ou entidades equivalentes para crianccedilas de ateacute trecircs anos de

idade e em preacute-escolas para as crianccedilas de quatro a cinco anos

A nova LDB ratificou o que estabeleceu a constituiccedilatildeo federal a educaccedilatildeo

infantil eacute responsabilidade do Municiacutepio mas incumbe a Uniatildeo no artigo 9ordm inciso III

o dever de ldquoprestar assistecircncia teacutecnica e financeira aos Estados ao Distrito Federal e

aos Municiacutepios para o desenvolvimento de seus sistemas de ensino e o atendimento

prioritaacuterio agrave escolaridade obrigatoacuteria exercendo sua funccedilatildeo redistributiva e

supletivardquo(BRASIL 2015 p 3)

Sendo prioridade o ensino fundamental a educaccedilatildeo infantilacaba ficando em

segundo plano principalmente nos municiacutepios daAmazocircnia que possuem poucos

recursos financeiros para atender todasas crianccedilas em idade escolar Isso fica

evidente na quantidade de escolasque oferecem esta etapa da educaccedilatildeo baacutesica que

de acordo com o IBGE em 2014 foram 132 escolas que ofertavam a educaccedilatildeo

infantil Estes nuacutemeros no entanto natildeo correspondem ao de escolas de educaccedilatildeo

infantil pois no referido municiacutepio existe somente uma especiacutefica que eacute o Centro de

Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery (CEI) A tabela a seguir mostra o atendimento no

periacuteodo de 2014 a 2016

Tabela 03 ndash Quantidade de Alunos matriculados no CEI

EDUCACcedilAtildeO

INFANTIL

ANO

2014 2015 2016

Creche 182 190 190

Preacute-escolar 659 403 403

Fonte Direccedilatildeo do Centro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery 2016

O decreacutescimo da quantidade de alunos do preacute-escolar a partir de 2015 ocorreu

devido agrave saiacuteda das crianccedilas com 6 anos de idade que passaram para o ensino

fundamental Assim o Centro atende atualmente crianccedilas de 2 a 5 anos de idade as

102

turmas do preacute-escolar ecreche satildeo formadas por 25 a 30 alunos com dois professores

por turma

No Plano Municipal de Educaccedilatildeo de Afuaacute (PME) para o periacuteodo de 2015-2025

consta como primeira Meta universalizar ateacute 2016 a educaccedilatildeo infantil na preacute-escola

para as crianccedilas de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade e ampliar a oferta de educaccedilatildeo

infantil em creches de forma a atender no miacutenimo 10 (dez por cento) das crianccedilas

ateacute 2025 Estamos em 2016 e ainda natildeo foram construiacutedas novas escolas de

educaccedilatildeo infantil tanto na aacuterea urbana como no campo condiccedilatildeo necessaacuteria para

expandir o nuacutemero de vagas com vistas a universalizar a preacute-escola

Na tabela abaixo apesentamos o percentual de atendimento das crianccedilas em

creches pelo municiacutepio bem como pela ilha do Marajoacute Paraacute Regiatildeo e Paiacutes

Tabela 04 ndash Percentual de atendimento das crianccedilas de 0 a 3 anos

META BRASIL 50 META AFUAacute 10

Populaccedilatildeo de Afuaacute de 0 a 3 anos

BRASIL

NORTE

PARAacute

MARAJOacute

AFUAacute

Crianccedilas de 0 a 3 anos natildeo atendidas pela creche em Afuaacute

3786

232

92

112

109

48

952

Fonte IBGEPesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelios (PNAD) ndash 2014

Segundo o PNAD em 2014 952 das crianccedilas estavam fora da creche

apenas uma minoria 48 teve acesso sendo a grande maioria excluiacuteda Na tabela

acima a meta de atendimento estabelecida para o Brasil eacute cinco vezes superior agrave

pretendida pelo Municiacutepio para um periacuteodo de 10 anos Caso seja concretizada ainda

teremos 90 das crianccedilas fora da escola a maioria oriunda da aacuterea rural-ribeirinha

fruto da ausecircncia do governo para essa etapa tatildeo importante da educaccedilatildeo das

crianccedilas na Amazocircnia

A Educaccedilatildeo infantil eacute um direito reconhecido na atual Constituiccedilatildeo Federal

incluso na educaccedilatildeo baacutesica pela Lei maacutexima da educaccedilatildeo e como princiacutepio da

proteccedilatildeo integral agrave infacircnciapelo ECA Para os gestores dos municiacutepios a oferta da

creche natildeo eacute obrigatoacuteria mas entendemos que o direito se aplica a todos os niacuteveis e

modalidades de ensino Apesar daemenda constitucional nordm 592009 estabelecer a

obrigatoriedade e gratuidade para as crianccedilas a partir de quatro anos de idade para

as de 0 a 3 anos haacute o direito e natildeo a obrigaccedilatildeo mas a partir do momento em que

103

existe demanda e os pais exigem vaga para seus filhos nasce o dever do Estado de

garantir o atendimento com qualidade

Fotografia 11ndashCentro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

No tocante agrave estrutura fiacutesica o preacutedio do CEI eacute todo em alvenariacom uma

infraestrutura composta de 12 (doze) salas de aula bibliotecabrinquedoteca

auditoacuterio sala de leitura e dos professoresO corpo docente eacute formado por 46

(quarenta e seis) professores sendo 20 com niacutevel meacutedio 26com niacutevel superior em

diversas licenciaturas como Letras Histoacuteria Geografia Artes Biologia Matemaacutetica

Educaccedilatildeo Fiacutesica e Pedagogia Nacoordenaccedilatildeo pedagoacutegica haacute uma orientadora e

uma supervisoraeducacional Aescola possui uma excelente estrutura fiacutesica e a

proposta pedagoacutegica tem como base o desenvolvimento de habilidades para a

alfabetizaccedilatildeo (SEMED 2016)

Como a meta do PME 2015-2025 eacute atender todas as crianccedilas de 4 a 5 anos

abaixo apresentamos o total de crianccedilas nessa faixa etaacuteria de acordo com dados do

IBGE

Tabela 05 -Percentual de atendimento das crianccedilas de 4 a 5 anos em Afuaacute

META BRASIL 100 META AFUAacute 100

POPULACcedilAtildeO 4 A 5 ANOS

BRASIL NORTE PARAacute MARAJOacute AFUAacute

1957 814 679 739 573 522 Fonte Estado Regiatildeo e Brasil - IBGEPesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelios (PNAD) ndash 2014

104

Os dados demonstram que ateacute o ano de 2013 somente 522 das crianccedilas

de 4 a 5 anos estavam matriculadas na preacute-escola a meta de garantir o acesso a

todas elas vai requerer investimento na construccedilatildeo de preacutedios concurso puacuteblico para

professores aquisiccedilatildeo de materiais pedagoacutegicos entre outros e para isso a

educaccedilatildeo infantil teraacute que ser prioridade do governo

Nas aacutereas ribeirinhas onde estaacute o maior nuacutemero de crianccedilas excluiacutedas da

creche e da preacute-escola natildeo existe escola especiacutefica para a educaccedilatildeo infantil Neste

trabalho retratamos especificamente a realidade da educaccedilatildeo no Regional Madeira

por motivo de ele ser o locus no qual realizamos a pesquisa de campo

A realidade da educaccedilatildeo infantil no Regional Madeira eacute totalmente diversa da

que evidenciamos acima natildeo haacute escolas especiacuteficasde educaccedilatildeo infantil e o

atendimento agrave preacute-escola eacute realizado nos estabelecimentos que oferecem o ensino

fundamentalQuando o nuacutemero chega a um total de 20 alunos26 na comunidade

forma-seuma turma multisseriada com crianccedilas de 4 e 5 anos Se natildeo houver

onuacutemero de alunos para se fechar uma turma especiacutefica as crianccedilas satildeoinseridas

nas classes multisseriadas do 1ordm ao 5ordm ano contrariando aResoluccedilatildeo nordm 2 de 28 de

abril de 2008 que estabelece as diretrizescomplementares normas e princiacutepios para

o desenvolvimento depoliacuteticas puacuteblicas de atendimento da Educaccedilatildeo Baacutesica do

Campo Em seuart 3ordm paraacutegrafo 2ordm ela afirma que ldquoem nenhuma hipoacutetese

seratildeoagrupadas em uma mesma turma crianccedilas de educaccedilatildeo infantil comcrianccedilas do

ensino fundamentalrdquo (BRASIL 2008 p 02)

Fotografia 12 ndash Classe multisseriada

26Nuacutemero de alunos estipulados pela SEMED para formar uma turma especiacutefica daeducaccedilatildeo infantil

105

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Na imagem acima temos uma sala de aula multisseriada de umaescola rural-

ribeirinha com alunos do preacute-escolar (crianccedilas de 4 e 5 anos)e dos anos inicias do

ensino fundamental Aturma eacute composta de um total de 35 alunos Na sala haacute

somente um quadro com atividade para o 3ordm e 4ordm ano enquanto o 1ordm e 2ordm estatildeo

resolvendoexerciacutecios no caderno Esta eacute a realidade de muitas escolas que oferecema

educaccedilatildeo infantil nas comunidades ribeirinhasA falta de recursos didaacuteticos de

merenda escolar e deassessoramento pedagoacutegico satildeo alguns dos problemas

enfrentados peloseducadores Como podemos perceber na fotografiaa escola

funcionaem uma casa cedida pela comunidade na qual reside tambeacutem aprofessora

Eacute um espaccedilo improvisado sem a estrutura fiacutesica de uma salade aula e o espaccedilo

reduzido inviabiliza que a docente circule na sala deaula Essa realidade tambeacutem se

estende ao ensino fundamental e meacutedioque descrevemos a seguir

242 Ensino Fundamental e Meacutedio

A inclusatildeo das crianccedilas a partir de seis anos de idade no ensino fundamental

teve impacto na composiccedilatildeo das classes multisseriadas e consequentemente na

organizaccedilatildeo do trabalho pedagoacutegico do professor anteriormente essas crianccedilas

estavam matriculadas na educaccedilatildeo infantil e nas escolas ribeirinhas poucas tinham

acesso a esta etapa da educaccedilatildeo baacutesica Com a lei nordm 112742006 houve alteraccedilatildeo

na idade miacutenima para a matriacutecula inicial que passou de sete para seis anos de idade

com duraccedilatildeo de nove anos Esta etapa da educaccedilatildeo baacutesica tem por objetivo

106

I - o desenvolvimento da capacidade de aprender tendo como meios baacutesicos o pleno domiacutenio da leitura da escrita e do caacutelculo II - a compreensatildeo do ambiente natural e social do sistema poliacutetico da tecnologia das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade III - o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem tendo em vista a aquisiccedilatildeo de conhecimentos e habilidades e a formaccedilatildeo de atitudes e valores IV - o fortalecimento dos viacutenculos de famiacutelia dos laccedilos de solidariedade humana e de toleracircncia reciacuteproca em que se assenta a vida social (BRASIL 2015 p 4)

Portanto antes da lei nordm 112742006 as crianccedilas de seis anos pertenciam agrave

educaccedilatildeo infantil mas atualmente devem estar matriculadas no primeiro ano do

Ensino Fundamental Essa alteraccedilatildeo provocou e ainda provoca uma seacuterie de

indagaccedilotildees e posicionamentos tanto contraacuterios como favoraacuteveis ao Ensino de Nove

Anos

Segundo Arelaro etal (2011) para o Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) a

obrigatoriedade do ensino fundamental a partir dos seis anos de idade traz a garantia

do acesso principalmente para as crianccedilas oriundas da classe menos favorecida

economicamente Verificou-se por meio de pesquisas que as crianccedilas de 6 anos das

classes meacutedia e alta jaacute estavam matriculadas em escolas e que seria necessaacuterio incluir

as classes desfavorecidas Dentre os fatores de exclusatildeo escolar estava a falta de

vagas na educaccedilatildeo infantil puacuteblica diante da constataccedilatildeo dessa realidade o ensino

fundamental de nove anos assegurariao aumento de matriacuteculas nas escolas

brasileiras eo cumprimento do direito das crianccedilas agrave educaccedilatildeo

A legislaccedilatildeo e os documentos norteadores da implantaccedilatildeo da politica do ensino

fundamental de nove anos corroboram com esta visatildeo

[] a ampliaccedilatildeo do ensino fundamental para nove anos que significa bem mais que a garantia de mais um ano de escolaridade obrigatoacuteria eacute uma oportunidade histoacuterica de a crianccedila de seis anos pertencente agraves classes populares ser introduzida a conhecimentos que foram fruto de um processo soacutecio-histoacuterico de construccedilatildeo coletiva (BRASIL 2007 p 61-62)

Discurso natildeo condizente com a Constituiccedilatildeo Federal no art 208 assegura que

eacute dever do Estado e direito das crianccedilas e das famiacutelias a matriacutecula na educaccedilatildeo

infantil portanto a crianccedila com seis anos de idade tem direito agrave educaccedilatildeo infantil na

preacute-escola Para Arelaro et al (2011) o reconhecimento por parte do governo da natildeo

oferta de vagas suficientes para atender a demanda desta etapa da educaccedilatildeo baacutesica

serviria para intervir com apoio teacutecnico-financeiro junto aos municiacutepios para o

cumprimento de sua responsabilidade constitucional ldquoNo entanto a opccedilatildeo foi por uma

poliacutetica nacional de novo loacutecus de estudo dessa crianccedila uma transferecircncia de etapa

107

de ensino que significou uma mudanccedila radical de diversos aspectos no atendimentordquo

(p 5)

Para Angotti (2014) o ensino Fundamental de Nove Anos vai de encontro aos

avanccedilos conseguidos legalmente em relaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo infantil demonstrando em

seus estudos que a inclusatildeo da crianccedila aos seis anos de idade no ensino

fundamental de certa forma contrapotildee-se agraves conquistas da Educaccedilatildeo Infantil

ocorridas lentamente ao longo de deacutecadas

Essa mudanccedila teve como principal consequecircncia a inclusatildeo das crianccedilas de 6

anos na faixa da educaccedilatildeo considerada obrigatoacuteria diminuindo as matriacuteculas no

uacuteltimo ano da preacute-escola e engrossando aquelas nas classes iniciais afirma Campos

(2012) Segundo a autora natildeo aconteceu a transiccedilatildeo que eacute importante do ponto de

vista pedagoacutegico e outros aspectos dentre os quais a preparaccedilatildeo dos professores em

serviccedilo para trabalhar com os alunos mais novos a explicaccedilatildeo aos pais referente aos

motivos dessa mudanccedila a adaptaccedilatildeo de preacutedios equipamentos mobiliaacuterios e

materiais escolares Diante de todas essas necessidades que natildeo foram levadas em

consideraccedilatildeo o ensino fundamental de nove anos apresenta problemas natildeo

solucionados ateacute hoje ldquoTalvez um dos mais seacuterios seja a antecipaccedilatildeo da repetecircncia

para nuacutemero expressivo de alunos do primeiro ano pois os curriacuteculos natildeo foram

revistos de forma generalizada e muitas redes de ensino natildeo adotam o sistema de

ciclosrdquo (CAMPOS 202 p 11) Consequentemente escola de nove anos tem a

obrigaccedilatildeo de ser para os educandos um espaccedilo de aprendizagem e natildeo a

antecipaccedilatildeo de experiecircncias de fracasso

Kramer (2006)por seu turno considera uma conquista a inclusatildeo das crianccedilas

de 6 anos no ensino fundamental para a autora eacute a garantia do ingresso de todas

elas na escola fato que natildeo acontecia anteriormente haja vista que a educaccedilatildeo

infantil natildeo atendia agrave demanda da clientela dos municiacutepios e com a inclusatildeo no

ensino fundamental torna-se direito puacuteblico subjetivo Para o sucesso da crianccedila

nessa nova etapa da educaccedilatildeo baacutesica faz-se necessaacuterio

[] que o planejamento e o acompanhamento pelos adultos que atuam na educaccedilatildeo infantil e no ensino fundamental devem levar em conta a singularidade das accedilotildees infantis e o direito agrave brincadeira agrave produccedilatildeo cultural na educaccedilatildeo infantil e no ensino fundamental (KRAMER 2006 p 805)

Nesta perspectiva o diaacutelogo entre essas duas etapas da educaccedilatildeo baacutesica eacute

fundamental para o desenvolvimento infantil mas precisa ir aleacutem da escola

abarcando a dimensatildeo poliacutetica visando agrave construccedilatildeo de curriacuteculos e propostas

108

pedagoacutegicas que possam atender agraves suas especificidades Nesse sentido Miranda

(2010) acrescenta que o ensino fundamental de nove anos possibilita um tempo maior

para a aprendizagem mas para isso faz-se necessaacuterio repensaro preparo da equipe

pedagoacutegica e a formaccedilatildeo continuada dos professores

Quanto agrave oferta desta etapa da educaccedilatildeo baacutesica no municiacutepio de Afuaacute os

dados abaixo retratam a saiacuteda paulatina do Estado queculminou com a

municipalizaccedilatildeo que de acordo com a tabela 3 intensificou-se a partir de 1998 Em

vez de promover auniversalizaccedilatildeo do ensino atraveacutes de accedilotildees de cooperaccedilatildeo e

colaboraccedilatildeoentre os respectivos sistemas o que eacute permitido pela nova LDB optou-

sepor transferir para o Municiacutepioas obrigaccedilotildees que originariamente foram do

EstadoAfuaacute que ateacute 1998 atendia somente aos alunos da educaccedilatildeo infantil e dos

anos iniciais do ensino fundamentalassumiu a partir de 2000 todo o segmento do

ensino fundamental

Tabela 06 ndash Estabelecimentos de ensino fundamental por dependecircncia administrativa

ANOS

ESTABELECIMENTOS

Estadual Municipal Particular Total

1996 17 136 - 153

1997 17 115 1 133

1998 15 158 1 174

1999 13 192 1 206

2000 - 197 1 198

Fonte MECINEPSEDUC 2000

Na aacuterea urbana foram matriculados em 2016 2765 alunos do 1ordm ao 9ordm ano do

ensino fundamental nas quatro escolas existentes na cidade desse total somente uma

escola atende duas turmas de Educaccedilatildeo de Jovens e Adultos (EJA) uma com 10 (1ordf

etapa) e outra com 23 (2ordf etapa) alunos A justificativa dos gestores para a natildeo oferta

da EJA estaacute na ausecircncia de alunos ou seja de clientela para a referida modalidade

da educaccedilatildeo baacutesica Segundo o IBGE o iacutendice de analfabetismo da populaccedilatildeo acima

de 15 anos no referido municiacutepio foi de 208 em 2014 De acordo com a Pesquisa

Nacional por Amostra de Domiciacutelios a taxa de analfabetismo entre brasileiros com 15 anos

ou mais em 2014 foi estimada em 83 (IBGE 2014) Os dados da anaacutelise situacional do

PME 2015-2025 indicam que a escolaridade meacutedia da populaccedilatildeo da aacuterea urbana de 18 a

29 anos eacute de 48 e da rural na mesma faixa etaacuteria eacute de 36 Portanto existe uma demanda

109

de jovens e adultos aleacutem de que o ensino fundamental eacute direito puacuteblico subjetivo inclusive

para aqueles que natildeo tiveram acesso na idade proacutepria (BRASIL 2016) A ausecircncia do

Estado e do Municiacutepio deixa a populaccedilatildeo agrave margem dos direitos legalmente garantidos no

art 37 paraacutegrafo 1ordm da nova LDB

Os sistemas de ensino asseguraratildeo gratuitamente aos jovens e aos adultos que natildeo puderam efetuar os estudos na idade regular oportunidades educacionais apropriadas consideradas as caracteriacutesticas do alunado seus interesses condiccedilotildees de vida e de trabalho mediante cursos e exames (BRASIL 2016 p 4)

A diminuiccedilatildeo das matriacuteculas e as altas taxas de evasatildeo na EJA requerem por parte

do poder puacuteblico accedilotildees voltadas para o desenvolvimento de programas mais eficazes

para esta clientela Segundo Sanches (2014 p 78) Os programas de Educaccedilatildeo de

Jovens e Adultos estatildeo sofrendo queda de matriacuteculas e natildeo haacute como mudar a realidade

do analfabetismo sem programas especiacuteficos para esta faixa etaacuteriaTais programas

deveratildeo estar baseados em propostas pedagoacutegicas que levem em consideraccedilatildeo as

caracteriacutesticas do alunado seus interesses condiccedilotildees de vida e de trabalho desta

forma responderatildeo agrave realidade dessa populaccedilatildeo

Consta no PME 2015-2025 do municiacutepio que a meta seraacute o atendimento de toda

demanda do ensino fundamental ldquoUniversalizar o Ensino Fundamental de 9 (nove)

anos para toda a populaccedilatildeo de 6 (seis) a 14 (quatorze) anos e garantir que pelo menos

50 (cinquenta) dos alunos concluam essa etapa na idade recomendadardquo (PME

2015 p 4)

No municiacutepio eacute elevado o iacutendice de alunos com distorccedilatildeo idade-seacuterie que

ocorre quando a diferenccedila entre a idade do aluno e a idade prevista para a seacuterie eacute

de dois anos ou mais

Tabela 07 - Distorccedilatildeo idadeseacuterie no ensino fundamental

ENSINO FUNDAMENTAL NUMERO DE ALUNOS DISTORCcedilAtildeO IDADE

SEacuteRIE

Anos Iniciais 8206

449

Anos Finais 4279

607

Fonte Plano Municipal de Educaccedilatildeo do municiacutepio de Afuaacute 2015-2025

Nos anos iniciais do ensino fundamental a distorccedilatildeo idade-seacuterie equivale a quase

metade dos alunos matriculados enquanto que nos finais equivale a mais da metade dos

alunos As pesquisas retratam que os principais motivos tanto da evasatildeo como da

110

distorccedilatildeo idade-seacuterie nas aacutereas rurais ribeirinhas estatildeo relacionados ao trabalho de

extraccedilatildeo de madeira corte de palmito coleta do accedilaiacute pesca roccedila entre outras

atividades econocircmicas (HAGE 2013)

No tocante ao aproveitamento escolar a tabela a seguir apresenta os dados do

desempenho nas escolas da aacuterea urbana no ano de 2015

Tabela 08 - Taxa de rendimento escolar no ensino fundamental em 2015 ndash aacuterea urbana

Nordm DE ALUNOS APROVADOS REPROVADOS EVADIDOS

2964 2239 440 285

Fonte Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo de Afuaacute 2016

Alguns fatores satildeo responsaacuteveis pelo aumento do desempenhodos alunos das

escolas situadas na aacuterea urbana Entre eles estatildeo aestabilidade dos professores que

a partir dos concursos puacuteblicos realizados passaram a fazer parte do quadro de

servidores efetivos doMuniciacutepio assim sendo natildeo haacute docentes do contrato

administrativoatuando nas escolas da cidade Com a estabilidade as questotildees

deinterferecircncias poliacutetico-partidaacuterias ficaram mais fragilizadas e oprofessor mais livre

para desenvolver o seu trabalho aumentando a suapermanecircncia em uma

determinada escola

Outro fator importante eacute a quantidade de alunos por sala de aulaque varia de

30 a 35 As escolas satildeo todas em alvenaria possuem nos seusquadros de recursos

humanos 70 dos docentes com graduaccedilatildeo diretor serventes pessoal de apoio

administrativo secretaacuterio escolar supervisor e orientador educacional Mesmo com

os fatores acima listados ainda eacuteexpressivo o iacutendice de evasatildeo e reprovaccedilatildeo escolar

Dentre as escolas da aacuterea urbana somente a uacutenica situada nobairro perifeacuterico

o Capimarinho natildeo possui um espaccedilo fiacutesico para abiblioteca ficando os livros

distribuiacutedos no laboratoacuterio de informaacutetica que tambeacutem natildeo funciona devido agrave rede

eleacutetrica que natildeo eacute adequada para comportar a carga de energia necessaacuteria para o

funcionamento das maacutequinas

Fotografia 13ndashLaboratoacuterio de Informaacutetica da EMEF Frei Faustino Lagarda

111

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

O laboratoacuterio de informaacutetica serve como depoacutesito para guardar livros e demais

materiais aleacutem de espaccedilo para aulas de muacutesica Na fotografia o professor estaacute

escolhendo os livros que estatildeo na estante acima da bancada dos computadorespara

trabalhar com seus alunos na sala de aula Os computadores jaacute estatildeo haacute mais de

cinco anos na escola e nunca foram utilizados por alunos e professores

O bairro Capimarinho como afirmado anteriormente surgiude invasotildees e eacute

habitado por famiacutelias pobres muitas oriundas das aacutereasrurais-ribeirinhas e a uacutenica

instituiccedilatildeo de ensino ali localizada natildeo tem aestrutura fiacutesica que as outras trecircs situadas

no bairro central possuemcomo laboratoacuterio de informaacutetica sala de leitura biblioteca

e sala deviacutedeo Mas o diferencial natildeo estaacute somente na escola da periferia as escolas

rurais ribeirinhas tambeacutem natildeo dispotildeem de estrutura fiacutesica e derecursos humanos

necessaacuterios

As escolas de ensino fundamental ribeirinhas totalizam 206 Amaioria tem

preacutedio proacuteprio construiacutedo pelaprefeitura com uma ou mais salas de aula banheiro

secretaria despensae local para o preparo da merenda e mais 35 anexos (salas de

aula quefuncionam em barracotildees igrejas centros comunitaacuterios casa doprofessor ou

do representante da comunidade) Na realidade os anexossatildeo escolas pois natildeo haacute

um contato intensivo com a gestatildeo da escola agravequal satildeo anexados o professor fica

112

isolado e assume a gestatildeoadministrativa e pedagoacutegica sozinho aleacutem de lecionar para

as turmas deeducaccedilatildeo infantil e os anos iniciais do ensino fundamental de

formamultisseriada

Fotografia 14 -Escola ribeirinha que funciona como anexo

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A casa na imagemeacute a residecircncia do representante dacomunidade e a sala foi

cedida para a escola funcionar O professorreside com a famiacutelia do proprietaacuterio pois

assim como natildeo existe preacutedioescolar tambeacutem natildeo haacute alojamento

Fotografia 15 - Sala de aula de uma escola ribeirinha que funciona como anexo

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A imagem acima retrata a sala de aula que funciona na residecircncia cedida pelo

representante da comunidade Observe que natildeo haacute cartazes pregados na parede

113

issoocorre porque as crianccedilas filhas do proprietaacuterio os rasgam e arrancam Antes de

pregaacute-los o professor tem que pedirautorizaccedilatildeo ao dono da casa As cadeiras no

teacutermino da aula devem serarrumadas em ciacuterculo desta forma os moradores teratildeo

espaccedilo paracircular e atar as redes para dormir agrave noite

As aulas neste ambiente sofrem vaacuterias interferecircncias passagemde visitas

pela sala choro de crianccedilas barulho de muacutesicas e de programasde raacutedio conflitos

entre os moradores da casa entre outros O professornatildeo tem autonomia para discutir

os assuntos referentes agraves diversasdisciplinas pois precisa ter cuidado com o que fala

aos alunos quandoo(a) dono(a) natildeo concorda com o que estaacute sendo ensinado

acabainterferindo na aula emitindo opiniatildeo contraacuteria

Nas escolas ribeirinhas do Regional investigado haacute escassez de recursos

didaacuteticos a merenda escolar natildeo eacute suficiente paraatender a demanda durante todo o

mecircs natildeo existe biblioteca nemalojamento mesmo nas que tecircm preacutedio proacuteprio Isto

leva os professores amorarem na sala de aula ou com famiacutelias que gentilmente os

acolhem pois se assim natildeo fizerem acabam ficando sem professor e os filhos

semestudar

3 PERCURSO METODOLOacuteGICO

31 TIPO E LOCAL DA PESQUISA

114

O problema e os objetivos levaram-nos a desenvolver uma pesquisa baseada

na abordagem qualitativa pois necessitou de uma imersatildeo no contexto no qual se

desenvolve a praacutetica docente Bogdan e Biklen (1994 p 48) afirmam que os

investigadores qualitativos ldquofrequentam os locais de estudo porque se preocupam com

o contexto Entendem que as accedilotildees podem ser melhor compreendidas quando

observadas no seu ambiente natural de ocorrecircnciardquo O ambiente natural onde ocorre

a praacutetica docente eacute a sala de aula concebida como os vaacuterios espaccedilos utilizados para

ensinar e aprender neste ambiente eacute possiacutevel interpretar a realidade dos sujeitos

investigados atraveacutes da descriccedilatildeo de dados que vatildeo aleacutem das falas e dos espaccedilos

ocupados pelos sujeitos que satildeo situados em um contexto histoacuterico social

econocircmico poliacutetico e cultural Todos os dados desse contexto satildeo importantes

A abordagem da investigaccedilatildeo qualitativa exige que o mundo seja examinado com a ideacuteia de que nada eacute trivial que tudo tem potencial para constituir uma pista que nos permita estabelecer uma compreensatildeo mais esclarecedora do nosso objecto de estudo (BOGDAN BIKLEN 1994 p 49)

Aleacutem do ambiente natural explicam os autores que a pesquisa qualitativa

requer o contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente e a situaccedilatildeo que

estaacute sendo investigada o que pressupotildee um tempo significativo a ser passado na

escola aplicando as teacutecnicas para a produccedilatildeo dos dados haja vista que ldquoo processo

de conduccedilatildeo de investigaccedilatildeo qualitativa reflecte uma espeacutecie de diaacutelogo entre os

investigadores e os respectivos sujeitos dados estes natildeo serem abordados por

aqueles de uma forma neutrardquo (BOGDAN BIKLEN 1994 p 51)

Sobre a neutralidade para Chizzotti (2003 p 79) a abordagem qualitativa

parte do princiacutepio de que

[] haacute uma relaccedilatildeo dinacircmica entre o mundo real e o sujeito uma interdependecircncia viva entre sujeito e objeto um vinculo indissociaacutevel entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito O conhecimento natildeo se reduz a um rol de dados isolados [] o sujeito observador eacute parte integrante do processo de conhecimento e interpreta os fenocircmenos atribuindo-lhes um significado O objeto natildeo eacute um dado inerte e neutro estaacute possuiacutedo de significados e relaccedilotildees que sujeitos concretos criam em suas relaccedilotildees

Portanto fica evidente que nesta abordagem o pesquisador exerce um papel

fundamental suas concepccedilotildees valores e representaccedilotildees estaratildeo presentes nos

significados que atribuiraacute aos fenocircmenos analisados

Dentre os pressupostos epistemoloacutegicos que embasam a abordagem

qualitativa optamos pela perspectiva dialeacutetica que segundo Chizzotti (2003 p 81)

[] valoriza a contradiccedilatildeo dinacircmica do fato observado e a atividade criadora do sujeito que observa as oposiccedilotildees contraditoacuterias entre o todo e a parte e os

115

viacutenculos do saber e do agir com a vida social dos homens O pesquisador eacute um ativo descobridor do significado das accedilotildees e das relaccedilotildees que se ocultam nas estruturas sociais

Trivintildeos (2007 p 129) apresenta algumas caracteriacutesticas desta perspectiva

que ele chama de histoacuterico-estrutural-dialeacutetica Satildeo elas

[] parte da descriccedilatildeo que intenta captar natildeo soacute a aparecircncia do fenocircmeno como tambeacutem sua essecircncia Busca poreacutem a causa da existecircncia dele procurando explicar sua origem suas relaccedilotildees suas mudanccedilas [] aprecia o desenvolvimento do fenocircmeno natildeo soacute em sua visatildeo atual que marca apenas o iniacutecio da anaacutelise como tambeacutem penetra em sua estrutura iacutentima latente inclusive natildeo visiacutevel ao observaacutevel para descobrir suas relaccedilotildees e avanccedilar no conhecimento de seus aspectos evolutivos tratando de identificar as forccedilas decisivas responsaacuteveis por seu desenrolar [] o fenocircmeno tem sua proacutepria realidade fora da consciecircncia Ele eacute real concreto e como tal eacute estudado

Dentre os tipos de pesquisa qualitativa optamos pela etnograacutefica por

possibilitar investigar de forma mais abrangente os aspectos relacionados agrave cultura

dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute dentre os quais os valores os haacutebitos as crenccedilas

linguagens e significados que estatildeo diretamente ligados agrave produccedilatildeo do saber popular

que norteia as praacuteticas dos povos das aacuteguas A pesquisa etnograacutefica segundo Andreacute

(2013 p 25) envolve

[] um trabalho de campo O pesquisador aproxima-se de pessoas situaccedilotildees locais eventos mantendo com eles um contato direto e prolongado Como se daacute esse contato Primeiro natildeo haacute pretensatildeo de mudar o ambiente introduzindo modificaccedilotildees que seratildeo experimentalmente controladas como na pesquisa experimental Os eventos as pessoas as situaccedilotildees satildeo observados em sua manifestaccedilatildeo natural

Desenvolvemos o trabalho de campo na ilha do Accedilaiacute que pertence ao

municiacutepio de Afuaacute Passamos quatro meses imersos nas cinco comunidades

ribeirinhas que formam o arquipeacutelago nesse periacuteodo participamos das atividades

produtivas culturais religiosas e sociais Por meio dos instrumentos para coleta de

dados e da convivecircncia com os moradores da ilha procuramos retratar a maneira

como os sujeitos vivem e convivem assim como as suas experiecircncias e o mundo que

ascerca Na etnografia

Os dados satildeo mediados pelo instrumento humano o pesquisador O fato de ser uma pessoa o potildee numa posiccedilatildeo bem diferente de outros tipos deinstrumentos porque permite que ele responda ativamente agraves circunstacircncias que o cercam modificando teacutecnicas de coleta se necessaacuterio revendo as questotildees que orientam a pesquisa localizando novos sujeitos revendo toda a metodologia ainda durante o desenrolar do trabalho (ANDRE 2013 p 25)

116

Foi o que aconteceu no decorrer desta investigaccedilatildeo modificamos algumas

teacutecnicas de coleta de dados pois inicialmente pretendiacuteamos aplicar o formulaacuterio mas

no decorrer da pesquisa percebemos que este instrumento natildeo atenderia aos

objetivos propostos bem como apoacutes a execuccedilatildeo de algumas entrevistas

percebemos a necessidade de incluir ou retirar questotildees do roteiro ou ainda tornaacute-las

mais claras e objetivas para a compreensatildeo dos entrevistados

Realizamos o trabalho de campo nas cinco comunidades ribeirinhas e nas

escolas localizadas nessas comunidades que pertencem ao Regional Madeira

descritas na tabela abaixo

Tabela 09 ndash Escolas que compotildeem o Regional Madeira com o nuacutemero de alunos no ano de 201627

Escola

Ed

Infantil

Ensino Fundamental Nordm de

Alunos 1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm 7ordm 8ordm 9ordm

A 10 12 10 13 9 7 12 11 19 12 140

B 14 15 10 10 9 8 8 7 7 6 94

C 04 12 9 8 7 7 6 5 - - 58

D 9 10 9 8 7 8 8 7 - - 66

E 6 10 8 7 5 3 - - - - 39

FONTE Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo do Municiacutepio de Afuaacute ndash SEMED2016

De acordo com a tabela todas as escolas oferecem a educaccedilatildeo infantil e as

seacuteries iniciais do ensino fundamental Os dados acima tambeacutem mostram que somente

duas oferecem todos os anos do ensino fundamental as escolas A e B A primeira eacute

a polo na qual reside o diretor que eacute responsaacutevel pela gestatildeo administrativa e

pedagoacutegica das outras escolas pertencentes ao Regional A segunda eacute a mais

distante do Regional motivo pelo qual atende aos alunos das seacuteries finais do ensino

fundamental do seu entorno Quanto agrave infraestrutura a escola polo eacute a uacutenica com o

preacutedio totalmente em alvenaria e com as seguintes dependecircncias duas salas de aula

secretaria escolar cozinha e depoacutesito O quadro de funcionaacuterios natildeo docentes eacute

composto por uma secretaacuteria escolar duas serventes e uma merendeira todas

residentes na comunidade

Fotografia 16 - Escola Polo

27Para garantir o anonimato das escolas que compotildeem o Regional Madeira utilizamos letras para identificaacute-las

117

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Em relaccedilatildeo agraves outras escolas a B estaacute situada agrave margem do rio Caetano com

quatro salas de aula cozinha e depoacutesito Natildeo haacute alojamento para os professores que

dormem nas salas de aula agrave noite e guardam seus pertences (roupas sapatos e

produtos de higiene pessoal entre outros) no depoacutesito O quadro de profissionais natildeo

docentes eacute formado por uma servente e uma merendeira

Fotografia 17 - Preacutedio da Escola B

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Os preacutedios das escolas C e D seguem o mesmo padratildeo da fotografia acima

O preacutedio da escola E natildeo apresentava condiccedilotildees de funcionamento no periacuteodo

em que fizemos a pesquisa de campo motivo pelo qual os alunos estavam tendo aula

118

na casa do representante da comunidade desde o mecircs de fevereiro do corrente ano

o que gerou vaacuterios problemas em relaccedilatildeo agrave gestatildeo pedagoacutegica e ao espaccedilo escolar

tais como interferecircncias das pessoas da famiacutelia que passavam constantemente pela

sala tirando a atenccedilatildeo dos alunos barulho com choro das crianccedilas da casa briga

entre os membros da famiacutelia do dono do espaccedilo entre outros Fotografia 18 - Preacutedio da Escola E

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Na tabela abaixo descrevemos cada instituiccedilatildeo de ensino com os respectivos

niacuteveis de atendimento da educaccedilatildeo baacutesica

Tabela 10 ndash Distribuiccedilatildeo das turmas da Educaccedilatildeo Infantil e anos iniciais do ensino fundamental por professor

Escolas Ed Infantil Ensino Fundamental Nordm de Professores

A 1ordm e 2ordm periacuteodos 1ordm e 2ordm ano 01

3ordm4ordm e 5ordm ano 01

B 1ordm e 2ordm periacuteodos 1ordm e 2ordm ano 01

3ordm4ordm e 5ordm ano 01

C 2ordm periacuteodo 1ordm e 2ordm ano 01

3ordm4ordm e 5ordm ano 01

D 1ordm 2ordm periacuteodos 1ordm e 2ordm ano 01

3ordm4ordm e 5ordm ano 01

E 2ordm periacuteodo 1ordm 2ordm 3ordm 4 e 5ordm ano 01

FONTE Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo do Municiacutepio de Afuaacute ndash SEMED2016

119

Ao analisar a tabela acima constatamos que todas as escolas do regional

possuem turmas multisseriadas28 do preacute-escolar ao 5ordm ano motivo pelo qual

realizamos a pesquisa de campo em todas elas bem como fizemos observaccedilatildeo da

praacutetica docente e as entrevistas semiestruturadas

32 PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS PARA A COLETA DE DADOS NA

PESQUISA

As pesquisas qualitativas de acordo com Alves-Mazzotti (2002 p 163) satildeo

ldquomultimetodoloacutegicas isto eacute usam uma grande variedade de procedimentos e

instrumentos para coleta de dadosrdquo Assim sendo para a produccedilatildeo dos dados foram

realizadas entrevistas semiestruturadas a observaccedilatildeo analiacutetica e participante29 e a

fotografia

A entrevista semiestruturada eacute concebida por Laville e Dione (2000) como uma

seacuterie de perguntas feitas verbalmente em uma ordem prevista mas na qual o

pesquisador pode acrescentar perguntas de esclarecimento agraves questotildees

fundamentais Tendo como referecircncia o problema de pesquisa e os objetivos

propostos elaboramos o roteiro das entrevistas

Realizamos inicialmente um teste piloto com quatro professores objetivando

testar o referido roteiro A partir desta avaliaccedilatildeo reorganizamos o roteiro das

entrevistas Tambeacutem efetivamos um teste piloto do roteiro da entrevista para os

moradores Aplicamos o teste para trecircs moradores e em seguida fizemos a

reformulaccedilatildeo das perguntas para tornaacute-las mais compreensiacuteveis por parte dos

sujeitos

As entrevistas foram gravadas mediante a autorizaccedilatildeo dos entrevistados ldquoa

gravaccedilatildeo direta tem a vantagem de registrar todas as expressotildees orais

imediatamente deixando o entrevistador livre para prestar toda atenccedilatildeo ao

entrevistadordquo (LUDKE ANDREacute 2006 p 37) As entrevistas com os professores foram

realizadas em diferentes momentos antes e apoacutes as aulas e em diferentes espaccedilos

como na casa do professorprofessora e na escola (sala de aula) Ressaltamos este

detalhe para enfatizar a disponibilidade dos sujeitos em colaborar com nosso estudo

Entrevistamos 9 (nove) professores que trabalham com a educaccedilatildeo infantil e

os anos iniciais do ensino fundamental sendo 6 (seis) mulheres e 3 (trecircs) homens

28Consideramos neste estudo como classes multisseriadas as que satildeo formadas por mais de um ano do ensino fundamental na qual somente um docente leciona no mesmo espaccedilo e tempo 29 Ver roteiro em anexo

120

com idade entre 22 a 45 anos O tempo de experiecircncia docente com classes

multisseriadas variou em torno de 6 a 25 anos Adotamos como criteacuterio para a seleccedilatildeo

dos sujeitos somente a atuaccedilatildeo com turmas da educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do

ensino fundamental organizadas de forma multisseriada nas escolas ribeirinhas

pertencentes ao Regional

Quanto aos moradores sujeitos da pesquisa realizamos as entrevistas em

diversos espaccedilos como na residecircncia do entrevistado e no desenvolvimento das

praacuteticas produtivas Para realizar um estudo a partir das memoacuterias dos moradores da

ilha do Accedilaiacute em relaccedilatildeo aos saberes presentes no discurso e nas praacuteticas cotidianas

dos ribeirinhos entrevistamos dez moradores das comunidades que compotildeem a ilha

do Accedilaiacute Os criteacuterios para a seleccedilatildeo foram morador mais antigo na comunidade

participante de praacuteticas produtivas (pesca caccedila e colheita do accedilaiacute) idosos e

curandeiros (benzedores e parteiras) e aluno regularmente matriculado na escola no

ano de 2016 Todos os moradores entrevistados participam das praacuteticas produtivas e

satildeo identificados na pesquisa por pseudocircnimos para preservar o anonimato

Aleacutem das entrevistas fizemos a observaccedilatildeo participante que eacute definida por

Minayo ( 2004 p 62) como

[] um processo pelo qual se manteacutem a presenccedila do observador numa situaccedilatildeo social com a finalidade de realizar uma investigaccedilatildeo cientiacutefica na qual o observador estaacute face a face com os observados Ao participar da vida deles no seu cenaacuterio cultural colhe dados e se torna parte do contexto sob observaccedilatildeo ao mesmo tempo modificando e sendo modificado por este

Para a realizaccedilatildeo da observaccedilatildeo participante nas comunidades ribeirinhas que

formam a ilha a minha inserccedilatildeo deu-se de forma gradual Inicialmente apresentei-me

como pesquisador explicando os motivos e os objetivos da pesquisa Em seguida

para a aproximaccedilatildeo com os ribeirinhos envolvi-me nas atividades cotidianas tais

como apanhar accedilaiacute pescar caccedilar plantar na roccedila ajudar na confecccedilatildeo de paneiros

e matapi bem como na venda do accedilaiacute na rampa da Santa Inecircs30 remar para os

pescadores quando saiam para fachiar31 agrave noite jogar futebol dominoacute baralho entre

outras

Como assinala Trivintildeos (2007) a observaccedilatildeo permite que o pesquisador

chegue mais perto da perspectiva dos sujeitos agrave medida queo observador

30Trapiche no qual os catraios que vem das ilhas do Marajoacute atracam para vender peixe camaratildeo

frutas verduras e principalmente accedilaiacute 31 Pescar a noite com a zagaia

121

acompanha in loco as experiecircncias diaacuterias dos sujeitos por tentar apreender a sua

visatildeo de mundo isto eacute o significado que eles atribuem agrave realidade que os cerca e agraves

suas proacuteprias accedilotildees

Alves-Mazzotti (2002 p 164) elenca as vantagens atribuiacutedas agrave observaccedilatildeo

enquanto teacutecnica para produccedilatildeo de dados

[] a) permite checar na praacutetica a sinceridade de certas respostas que agraves vezes satildeo dadas soacute para causar boa impressatildeo b) permite identificar comportamentos natildeo intencionais ou inconscientes e explorar toacutepicos que os informantes natildeo se sentem agrave vontade para discutir c) permite o registro do comportamento em seu contexto temporal-espacial

Em relaccedilatildeo aos professores realizamos a observaccedilatildeo analiacutetica da praacutetica

pedagoacutegica dos nove professores totalizando 100 da amostra As observaccedilotildees

foram realizadas no iniacutecio do mecircs de fevereiro ateacute o final do mecircs de maio do corrente

ano Passamos em meacutedia 20 dias em cada escola com 4 (quatro horas) diaacuterias na

sala de aula de cada professor realizando as observaccedilotildees Para preservar o

anonimato dos sujeitos optamos por identificaacute-los como Prof1 Prof2 Prof3 Prof4

Prof5 Prof6 Prof7 Prof8 e Prof9

Neste estudo partimos do princiacutepio de que a praacutetica pedagoacutegica docente se

desenvolve na escola que estaacute inserida em um contexto histoacuterico econocircmico social

poliacutetico e cultural e natildeo podemos estudaacute-la dissociada desse contexto (LUCKESI

2003)

Corroborando a afirmaccedilatildeo acima Andreacute (2003) apresenta trecircs dimensotildees que

necessitam ser consideradas quanto ao estudo da praacutetica escolar cotidiana entre elas

estaacute a institucional que envolve o contexto no qual esta praacutetica acontece ldquoA dimensatildeo

institucional age assim como um elo entre a praacutexis social mais ampla e aquilo que

ocorre no interior da escolardquo (ibidem p 43) Assim para compreender e analisar o

que ocorre no interior da escola os fatores externos a ela devem ser levados em

consideraccedilatildeo entre esses fatores estaacute no nosso estudo especiacutefico a realidade da

comunidade ribeirinha na qual ela estaacute localizada

A outra dimensatildeo eacute a instrucional ou pedagoacutegica que engloba as situaccedilotildees de

ensino e aprendizagem Este processo eacute dialoacutegico composto por dois polos de um

lado estaacute o professor que eacute educador e tambeacutem educando do outro lado estatildeo os

alunos que ao aprender tambeacutem ensinam portanto professor e alunos interagem

mediatizados pelo conhecimento Ao analisarmos as formas de mediaccedilatildeo que satildeo as

122

metodologias utilizadas para tornar o objeto cognosciacutevel faz-se necessaacuterio segundo

Andreacute (2003 p 43)

Considerar a situaccedilatildeo concreta dos alunos (processos cognitivos procedecircncia econocircmica linguagem imaginaacuterio) a situaccedilatildeo concreta do professor (condiccedilotildees de vida e de trabalho expectativas valores concepccedilotildees) e sua inter-relaccedilatildeo com o ambiente em que se processa o ensino (forccedilas institucionais estrutura administrativa rede de relaccedilotildees inter e extra-escolar)

A situaccedilatildeo concreta tanto do aluno como do professor32 estaacute ligada aos

aspectos sociais econocircmicos culturais e religiosos nos quais satildeo desenvolvidas as

relaccedilotildees de trabalho na comunidade ribeirinha A procedecircncia econocircmica (praacuteticas

produtivas) linguagem e imaginaacuterios (praacuteticas culturais) dos alunos soacute tecircm sentido a

partir do local onde satildeo desenvolvidas e vivenciadas

A terceira dimensatildeo proposta pela autora eacute a sociopoliacuteticocultural que ldquose

refere ao contexto sociopoliacutetico e cultural mais amplo ou seja aos determinantes

macroestruturais da praacutetica educativardquo (ibidem p 44) Portanto natildeo podemos isolar

a escola do contexto em que estaacute inserida

Utilizamos tambeacutem na pesquisa a fotografia como fonte de leitura e

interpretaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo onde vivem os sujeitos amazocircnidas

especificamente os que habitam agraves margens dos rios lagos e igarapeacutes de Afuaacute

Segundo Alves (2008 p 28)

A fotografia comunica por meio de mensagens natildeo verbais cujo signo constitutivo eacute a imagem Portanto sendo a produccedilatildeo da imagem um trabalho humano de comunicaccedilatildeo pauta-se enquanto tal em coacutedigos convencionalizados socialmente possuindo um caraacuteter conotativo que remete agraves formas de ser a agir do contexto no qual estatildeo inseridas como mensagens

Retratamos atraveacutes da imagem fotograacutefica os aspectos histoacutericos

econocircmicos e educacionais do municiacutepio de Afuaacute bem como o modo de ser e de viver

dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute

33 CARACTERIZACcedilAtildeO DOS SUJEITOS DA PESQUISA

Na tabela abaixo apresentamos as caracteriacutesticas dos professores que fizeram

parte da pesquisa

Tabela 11 ndash Os professores sujeitos da pesquisa

32Todos os professores sujeitos desta pesquisa residem nas comunidades ribeirinhas

123

Professor

Anos do Ensino Fundamental que Lecionam

Experiecircncia com Classes

Multisseriadas

Formaccedilatildeo

Prof 1

3ordm 4ordm e 5ordm ano

6 anos

Licenciatura em Pedagogia com especializaccedilatildeo em Psicopedagogia Escolar

Prof 2 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano

15 anos Curso normal de niacutevel meacutedio e Licenciatura em Pedagogia

Prof 3 3ordm 4ordm e 5ordm ano 7 anos Licenciatura em Pedagogia com especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Inclusiva

Prof 4 3ordm 4ordm e 5ordm ano 10 anos Licenciatura em Pedagogia

Prof 5 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano

8 anos Licenciatura em Pedagogia

Prof 6 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano

25 anos Curso normal de niacutevel meacutedio e Licenciatura em Pedagogia

Prof 7 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano

9 anos Licenciatura em Pedagogia com Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Infantil

Prof 8 3ordm 4ordm e 5ordm ano 20 anos Curso normal de niacutevel meacutedio e Licenciatura em Pedagogia

Prof 9 preacute-escolar 1ordm 2ordm 3ordm 4ordm e 5ordm ano

11 anos Licenciatura em Pedagogia com Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Infantil

Somente os Prof 2 Prof 6 e o Prof 8 fizeram o curso normal de niacutevel meacutedio

ou seja o curso de formaccedilatildeo de professores Cursaram Pedagogia na Universidade

Federal do Amapaacute no periacuteodo de feacuterias (meses de janeiro e julho) por meio de um

convecircnio entre a UNIFAP e a Prefeitura de Afuaacute para a formaccedilatildeo do quadro da

SEMED Os referidos professores satildeo oriundos das comunidades nas quais

trabalham ou seja satildeo ribeirinhos Os outros docentes fizeram a formaccedilatildeo

pedagoacutegica na educaccedilatildeo superior em instituiccedilotildees privadas de ensino e satildeo oriundos

de outros lugares como Macapaacute Beleacutem e a sede do municiacutepio de Afuaacute

A seguir descrevemos as caracteriacutesticas dos moradores que entrevistamos

Tabela 12 ndash Os moradores sujeitos da pesquisa

Morador Caracteriacutesticas

Maria

Adolescente e aluna regularmente matriculada na escola A

124

Tiago Adolescente e aluno regularmente matriculado na escola C

Joseacute Idoso e um dos moradores mais antigos na comunidade do rio Santo Antocircnio

Joana Participante das atividades produtivas sociais religiosas e culturais na comunidade do rio Santo Antocircnio

Pedro

Idoso e um dos moradores mais antigos na comunidade do rio Caetano

Luzia Idosa e uma das moradoras mais antigas na comunidade do rio Caraacutes

Benedito Idoso e benzedor residente na ilha do amor proacuteximo da comunidade do rio Caraacutes (distante 10 minutos de catraio)

Antocircnia Idosa benzedeira e parteira residente na comunidade do rio Cajueiro

Francisca

Participante das atividades produtivas sociais religiosas e culturais na comunidade do rio Furo Seco

Raimundo

Participante das atividades produtivas sociais religiosas e culturais na comunidade do rio Furo Seco

34 TEacuteCNICA DE ANAacuteLISE DOS DADOS

Como teacutecnica para analisar os dados coletados nas entrevistas

semiestruturadas e tambeacutem nas observaccedilotildees realizadas utilizamos a anaacutelise de

conteuacutedo desenvolvida por Bardin (2004 p 41) que consiste em

Um conjunto de teacutecnicas de anaacutelise das comunicaccedilotildees visando obter por procedimentos sistemaacuteticos e objetivos de descriccedilatildeo do conteuacutedo das mensagens indicadores (quantitativos ou natildeo) que permitam a inferecircncia de conhecimentos relativos agraves condiccedilotildees de produccedilatildeorecepccedilatildeo (variaacuteveis inferidas) destas mensagens

Desta maneira a anaacutelise de conteuacutedo tem como base a comunicaccedilatildeo com a

utilizaccedilatildeo de preceitos para analisar o conteuacutedo das falas (entrevistas) e dos registros

de campo (observaccedilatildeo) para que posteriormente sejam feitas as inferecircncias como

afirma a referida autoraldquoO ato de inferir significa a realizaccedilatildeo de uma operaccedilatildeo loacutegica

pela qual se admite uma proposiccedilatildeo em virtude de sua ligaccedilatildeo com outras proposiccedilotildees

jaacute aceitas como verdadeirasrdquo (BARDIN 2004 p 39)

Pelas inferecircncias dialogamos com o referencial teoacuterico e os conteuacutedos das

mensagens oriundas das entrevistas e observaccedilotildees coletadas na pesquisa de campo

Para Trivintildeos (2007) a inferecircncia parte das informaccedilotildees que fornece o conteuacutedo da

mensagem e das premissas oriundas dos dados coletados na comunicaccedilatildeo o autor

ressalta as classificaccedilotildees dos conceitos a codificaccedilatildeo e a categorizaccedilatildeo como

procedimentos para se fazer uma anaacutelise clara de conteuacutedo

125

A codificaccedilatildeo segundo Franco (2006 p 34) ldquoeacute o processo atraveacutes do qual os

dados brutos satildeo sistematicamente transformados em categorias e que permitam

posteriormente a discussatildeo precisa das caracteriacutesticas relevantes do conteuacutedordquo E o

procedimento de categorizaccedilatildeo eacute ldquouma operaccedilatildeo de classificaccedilatildeo de elementos

constitutivos de um conjunto por diferenciaccedilatildeo e seguidamente por reagrupamento

segundo o gecircnerordquo (BARDIN 2004 p 117)

As categorias abrangem uma variedade de temas de acordo com as

aproximaccedilotildees entre si que por meio da anaacutelise expressam sentido e elaboraccedilotildees

voltados para os objetivos da pesquisa e podem ser classificadas em aprioriacutesticas ou

natildeo aprioriacutesticas As aprioriacutesticas satildeo preacute-definidas tendo como base o referencial

teoacuterico e a experiecircncia do investigador assim o pesquisadorfaz a classificaccedilatildeo das

unidades de anaacutelises dentro destas categorias e a partir daiacutedividi-las em

subcategorias As natildeo aprioriacutesticas emergem da anaacutelise dos dados coletados na

pesquisa de campo

A codificaccedilatildeo que pode ser feita com sinais ou outra espeacutecie de siacutembolos eacute

fundamental para a organizaccedilatildeo do material coletado para em seguida ser

classificado nas categorias e subcategorias Neste estudo codificamos as unidades

de anaacutelise temaacuteticas que satildeo recortes do texto das entrevistas e observaccedilotildees de

acordo com o problema e os objetivos da pesquisa assim como o referencial teoacuterico

adotado

A relevacircncia da rigorosidade eacute destacada por Bardin (2004) no uso da anaacutelise

de conteuacutedo para alcanccedilar os objetivos e responder o problema de pesquisa Portanto

com o objetivo de averiguar a significaccedilatildeo dos dados coletados a autora apresenta

as etapas de desenvolvimento da teacutecnica composta de 1) preacute-anaacutelise 2) exploraccedilatildeo

do material e 3) tratamento dos resultados inferecircncia e interpretaccedilatildeo

A preacute-anaacutelise consiste na leitura flutuante do corpus a ser analisado no nosso

caso as entrevistas transcritas e o diaacuterio de campo das observaccedilotildees Foi nesta fase

que organizamos e fizemos a leitura do material a ser investigado com a finalidade

de identificar os aspectos importantes para as outras fases que compotildeem a anaacutelise

ldquoNa leitura flutuante toma-se contato com os documentos a serem analisados

conhece-se o contexto e deixa-se fluir impressotildees e orientaccedilotildeesrdquo (BARDIN 2004 p

118)

126

Apoacutes a conclusatildeo da preacute-anaacutelise seguimos para a segunda faseque eacute a

exploraccedilatildeo do material Nesta fase eacute que realizamos a codificaccedilatildeo33 do material lido

por meio dos recortes dos textos em unidades de registros bem como a ordenaccedilatildeo

das informaccedilotildees em categorias temaacuteticas Os textos das entrevistas e observaccedilotildees

foram recortados em paraacutegrafos e frases para constituir as unidades de registros Em

seguida fizemosa categorizaccedilatildeo das categorias iniciaisque posteriormenteforam

aglutinadas de acordo com o temas comuns para dar origem as categorias

intermediaacuterias que tambeacutemforam aglutinadas em funccedilatildeo da ocorrecircncia dos temas

resultando nas categorias finais

Na terceira fase fizemos o tratamento dos resultados inferecircncia e

interpretaccedilatildeo na qual foram captados os conteuacutedos manifestos e latentes presentes

no material coletado e organizado nas categorias para se estabelecer o diaacutelogo com

o referencial teoacuterico adotado Franco (2006 p 45) destaca que ldquoeacute importante que os

resultados da anaacutelise de conteuacutedo devam refletir os objetivos da pesquisa e ter como

apoio indiacutecios manifestos no conteuacutedo das comunicaccedilotildeesrdquo

341 A emergecircncia das categorias de anaacutelise da pesquisa

Neste estudo partimos das seguintes categorias de anaacutelise aprioriacutesticas

Tabela 13 ndash Categorias aprioriacutesticas

Categoria Conceito Norteador

Saber Popular

Saberes oriundos da experiecircncia

existencial desenvolvida na relaccedilatildeo

dialoacutegica entre os ribeirinhos e que balizam

as suas atividades diaacuterias para a garantia

da sobrevivecircncia bem como a leitura de

mundo

Diaacutelogo

Numa perspectiva freiriana como o

momento de encontro com vistas agrave reflexatildeo

da realidade na qual vivemos para poder

transformaacute-la ldquoeacute este encontro dos

homens mediatizados pelo mundo para

33A codificaccedilatildeo para o agrupamento em categorias ou subcategorias foi feita utilizando o sistema

alfanumeacuterico

127

pronunciaacute-lo natildeo se esgotando portanto

na relaccedilatildeo eu-turdquo (FREIRE 2014 p 109)

Apoacutes a anaacutelise dos dados a categoria Saber Popular foi desmembrada em trecircs

subcategorias de acordo com a tabela abaixo

Tabela 14 ndash Categorias aprioriacutesticas

Categoria Subcategoria Conceito Norteador

Saber Popular

Saberes das Aacuteguas

Saberes oriundos do universo

cultural criadosrecriados no

cotidiano dos ribeirinhos que tecircm

como referecircncia as aacuteguas dos rios

igarapeacutes e furos da Ilha

Saberes da Terra e da Mata

Saberes oriundos do universo

cultural criadosrecriados no

cotidiano dos ribeirinhos que tecircm

como referecircncia a terra e a mata da

Ilha

Saberes do Accedilaiacute

Saberes oriundos do universo

cultural criadosrecriados no

cotidiano dos ribeirinhos que tecircm

como referecircncia o accedilaiacute

Na anaacutelise das entrevistas e das observaccedilotildees foram realizadas a categorizaccedilatildeo

das categorias iniciais e intermediaacuterias ateacute chegarmos agraves finais descritas na tabela

abaixo

Tabela 15 ndash Categorias natildeo aprioriacutesticas

Categoria Conceito Norteador

Praacuteticas Colonizadoras

A perspectiva colonizadora caracteriza-se pela

imposiccedilatildeo do conhecimento escolar e a negaccedilatildeo

do saber popular configurando a colonialidade do

saber pois eacute no vieacutes epistemoloacutegico que o

colonialismo assume maior centralidade com

uma perspectiva redutora do conhecimento

128

Praacuteticas Descolonizadoras

As praacuteticas descolonizadoras reconhecem que nas

comunidades ribeirinhas existem manifestaccedilotildees

culturais e epistemoloacutegicas proacuteprias entatildeo essas

praacuteticas procuram dar visibilidade a essas

manifestaccedilotildees

No capiacutetulo anterior fizemos a discussatildeo do referencial teoacuterico que baliza as

inferecircncias e interpretaccedilotildees das categorias aprioriacutesticas e natildeo aprioriacutesticas e no

proacuteximocapiacutetulo organizamosas falas dos entrevistados e as anotaccedilotildees do diaacuterio de

campo para estabelecer o diaacutelogo entre a empiria e a teoria

4ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

129

Neste capiacutetulo iniciamos discutindo a categoria aprioriacutestica saber popular

juntamente com as suas subcategorias saberes das aacuteguas da terra e da mata e

saberes do accedilaiacute Procuramos estabelecer um diaacutelogo com a ecologia de saberes

proposta por Boaventura de Souza Santos Trabalhamos com as falas dos sujeitos

no sentido de dar visibilidade aos seus discursos suas praacuteticas seus valores crenccedilas

e costumes Como afirma Santos (2010 p 34) a ecologia de saberes acontece por

meio do diaacutelogo ldquoprolongado calmo e tranquilordquo para que as vozes que foram e satildeo

historicamente silenciadas possam se manifestar para isso a diversidade de saberes

precisa ser reconhecida A valorizaccedilatildeo e a visibilidade desses saberes tornam-se

essencial para que isso ocorra

A seguir damos visibilidade ao saber popular dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute e

posteriormente analisamos como ocorre o diaacutelogo entre este saber e o saber escolar

na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam nas escolas ribeirinhas na referida

ilha organizamos essas praacuteticas a partir das seguintes categorias natildeo aprioriacutesticas

praacuteticas colonizadoras e praacuteticas descolonizadoras que emergiram da pesquisa de

campo

41 O SABER POPULAR DOS RIBEIRINHOS DA ILHA DO ACcedilAIacute

Nesta seccedilatildeo apresentamos um levantamento a partir da memoacuteria dos

moradores da ilha do Accedilaiacute referente aos saberes que norteiam suas accedilotildees cotidianas

nas relaccedilotildees sociais religiosas e produtivas Satildeo saberes praacuteticos que balizam as

atividades diaacuterias para a garantia da sobrevivecircncia e a leitura de mundo na qual os

ribeirinhos estatildeo inseridos Esses saberes constituem uma epistemologia no sentido

de que

Conhecer eacute tarefa de sujeitos natildeo de objetos E eacute como sujeito esomente enquanto sujeito que o homem pode realmenteconhecer [] Nestas relaccedilotildees com o mundo atraveacutes de suaaccedilatildeo sobre ele o homem se encontra marcado pelos resultadosde sua proacutepria accedilatildeo [] Atuando transforma transformandocria uma realidade que por sua vez envolvendo-ocondiciona sua forma de atuar [] Natildeo haacute por isto mesmopossibilidade de dicotomizar o homem do mundo pois que natildeoexiste um sem o outro (FREIRE 1983 p17)

Um conhecimento que eacute construiacutedo na relaccedilatildeo do sujeito (ribeirinhos) com o

mundo (Amazocircnia Ribeirinha) Neste processo os ribeirinhos atuam transformam

criam uma realidade que tambeacutem os transforma e direciona suas maneiras de agir e

pensar pois ao transformar o mundo sofrem os efeitos de sua proacutepria transformaccedilatildeo

Por isso natildeo podemos analisar esses saberes dicotomizados do mundo no qual vivem

esses protagonistas

130

Satildeo elaborados e reelaborados nas relaccedilotildees familiares com a vizinhanccedila na

comunidade no contexto das atividades produtivas (pesca caccedila colheita do accedilaiacute)

nas relaccedilotildees com outras vilas municiacutepios e cidades na produccedilatildeo dos recursos

materiais e natildeo materiais que criam e recriam (casco remo matapi malhadeira

paneiros etc) Na visatildeo de Freire (2003) tudo isso caracteriza um universo inacabado

construiacutedo por homens e mulheres com linguagens modo de ser ver e viver no mundo

que os caracteriza como sujeitos histoacutericos sociais e culturais

Essa gama de conhecimento que guia a vida dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute eacute

denominada por Freire (1987) de saberes da experiecircncia feito construiacutedo e

reconstruiacutedo na experiecircncia existencial e desenvolvidos na relaccedilatildeo dialoacutegica entre

crianccedilas-jovens-adultos-idosos mediatizados pelo mundo ldquoSoacute existe saber na

invenccedilatildeo na reinvenccedilatildeo na busca inquieta impaciente permanente que os homens

fazem no mundo com o mundo e com os outrosrdquo (FREIRE 1987 p 58) E desta

maneira os ribeirinhos vatildeo criando e recriando fazendo e se fazendo sujeitos

amazonidas uns com os outros

Satildeo tambeacutem concebidos pela ciecircncia como senso comum que ao se

aproximar do conhecimento cientiacutefico torna-se novo praacutetico esclarecido ou

emancipatoacuterio como afirma Santos (2002) para quem o senso comum ldquoeacute praacutetico e

pragmaacutetico reproduz-se colado agraves trajetoacuterias e as experiecircncias de vida de um dado

grupo social e nessa correspondecircncia afirma-se de confianccedila e daacute seguranccedilardquo (p

44) O autor propotildee uma ruptura da ciecircncia moderna que possa aproximar o senso

comum do conhecimento cientiacutefico no qual a transformaccedilatildeo seja muacutetua e dessa

forma possam produzir tecnologias e sabedoria

Sabedoria fruto do fazer o mundo e fazendo o mundo os ribeirinhos produzem

cultura assim ldquoa cultura soacute eacute enquanto estaacute sendo Soacute permanece porque muda Ou

talvez dizendo melhor a cultura soacute dura no jogo contraditoacuterio da permanecircncia e da

mudanccedilardquo (FREIRE 1977 p 54) Desta maneira diz o referido autor o mundo eacute

criado e recriado pela praacutexis humana Por meio da problematizaccedilatildeo da relaccedilatildeo ser

humano e o universo somos determinados determinantes e determinadores dos

modos de ser-no-mundo e estar-no-mundo

Sendo o ser humano criador de cultura ao mesmo tempo faz e refaz o seu

saber num processo de invenccedilatildeo e reinvenccedilatildeo Nesse sentido a cultura eacute concebida

como

131

Tudo aquilo que noacutes criamos a partir do que nos eacute dadoquando tomamos as coisas da natureza e a recriamoscomo os objetos e os utensiacutelios da vida social representauma das muacuteltiplas dimensotildees daquilo que em outrachamamos de cultura (BRANDAtildeO 2007 p 22)

O mundo que nos eacute dado eacute construiacutedo e recriado por noacutes Transformamos a

natureza atraveacutes do trabalho em cultura Osribeirinhos para pescarem o camaratildeo

transformaram uma palmeirachamada buriti em matapi34 que passou a ser

incorporado agraves praacuteticasprodutivas desenvolvidas pela comunidade bem como a

malhadeira o paneiro entre outrosO significado que esses instrumentos possuem eacute

tecido no interior de uma cultura pelos sujeitos que a criam e recriam E soacute podem ser

interpretados dentro e a partir deste contexto Nesse sentido afirma Geertz (1978 p

15) que ldquoo homem eacute um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo

teceurdquo e para entender esses significados eacute necessaacuterio mergulhar no universo cultural

desses sujeitos que produzem uma gama de conhecimentos que segundo

Oliveira(2004 p 54) satildeo

[] provenientes de sua relaccedilatildeo de trabalho com a terra com a mata e com as aacuteguas e a sua relaccedilatildeo com as comunidades populaccedilotildees e culturas locais Saberes que expressam dimensotildees educacionais religiosas medicinais produtivas culturais etc

Esses saberes tambeacutem chamados por Brandatildeo (2000) de saber popular

servem de base para a leitura e a interpretaccedilatildeo da realidade dos sujeitos Satildeo

transmitidos atraveacutes da cultura de conversa caracterizada pela oralidade que de

acordo com Oliveira (2004 p 58) ldquoapresenta-se como a forma tiacutepica das populaccedilotildees

rurais ribeirinhas de expressaremsuas vivecircncias transmitirem seus saberes valores

e haacutebitos das geraccedilotildeesmais antigas agraves geraccedilotildees mais novasrdquo Tambeacutem satildeo

apreendidos pela observaccedilatildeo e envolvimento nas tarefas diaacuterias desde a tenra idade

Convivi durante quatro meses com os ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute Neste

periacuteodo pude identificar diversidades de saberes oriundos do universo cultural

criadosrecriados no cotidiano que balizam os aspectos sociais culturais e

econocircmicos Para isso envolvi-me na caccedila pesca e coleta do accedilaiacute e demais accedilotildees

praticadas pelos sujeitos do lugar Tambeacutem na conversa sempre regada a cafeacute e

sentado geralmente num banco na cozinha ao lado do fogatildeo a lenha com o fogo

aceso soltando fumaccedila para espantar os maruins e carapanatildes fui sistematizando

34Instrumento feito de talas de buriti tem formato ciliacutendrico com uma entrada chamada de boca por onde entra o

camaratildeo na mareacute cheia

132

paulatinamente os saberes praacuteticos estruturados numa loacutegica totalmente diferente

dos conhecimentos acadecircmicos

Muitos desses saberes foram lembrados a partir da memoria dos mais velhos

por isso os fatos satildeo relatados natildeo de forma cronoloacutegica pois ao descrever algo

vivenciado dificilmente conseguimos colocar ordem no pensamento ateacute porque natildeo

existe uma cronologia no nosso tempo subjetivo a partir das memoacuterias as

lembranccedilas dos fatos vatildeo ligando-os uns aos outros numa espeacutecie de rede e assim

organizam-se em nossa mente e tornam-se inteligiacuteveis Como afirma Baptista (2013)

o tempo estaacute vinculado agrave nossa subjetividade e experiecircncias e assim foge aos

padrotildees da objetividade cronoloacutegica

Consequentemente as falas os relatos e histoacuterias contadas estatildeo permeados

pela subjetividade pois satildeo feitos de maneira singular por cada um dos sujeitos fato

explicado por Deleuze (2012 p 44) quando aborda os cinco aspectos da subjetividade

apresentados por Bergson especificamente a subjetividade-ceacuterebro que consiste

em

[] momento do intervalo ou da indeterminaccedilatildeo o ceacuterebro nos daacute o meio de lsquoescolherrsquo no objeto aquilo que corresponde as nossas necessidades introduzindo um intervalo entre o movimento recebido e o movimento executado o proacuteprio ceacuterebro eacute duas maneiras escolha porque em si mesmo em virtude de suas vias nervosas ele divide ao infinito a excitaccedilatildeo e tambeacutem porque em relaccedilatildeo agraves ceacutelulas motrizes da medula ele nos deixa a escolha entre vaacuterias reaccedilotildees possiacuteveis

Por conseguinte fazemos uma leitura particular das situaccedilotildees que

presenciamos ou vivenciamos As histoacuterias que envolvem os encantados do rio e da

mata como o Boto a matildee drsquoaacutegua e o caboclo gritador satildeo contados com o do olhar

de cada narrador a partir de suas lembranccedilas niacutetidas e agraves vezes quase apagadas da

memoacuteria ateacute porque o presente segundo Deleuze (2012 p 44) apaga as imagens

criadas no passado ldquoseja sobretudo porque ele pela contiacutenua mudanccedila de

qualidade daacute testemunho de carga cada vez mais pesada que algueacutem carregue em

suas costas agrave medida que vai cada vez mais envelhecendordquo

Tendo a consciecircncia de que qualquer exame que se faccedila do passado seraacute

sempre na oacutetica do tempo presente a sistematizaccedilatildeo dos saberes foi feita a partir do

tempo presente com toda a subjetividade que eacute peculiar agrave memoacuteria

Apoacutes a anaacutelise dos dados a categoria aprioriacutestica Saber Popular foi dividida

em trecircs subcategorias saberes das aacuteguas da terra e mata e os saberes do accedilaiacute que

emergiram das falas dos sujeitos na pesquisa de campo que discutimos a seguir

133

411 Saberes das Aacuteguas

O cotidiano dos moradores da ilha do Accedilaiacute estaacute diretamente ligado ao

movimento das aacuteguas - enchente vazante e seca da mareacute -que regulam os horaacuterios

de encher aacutegua para as atividades domeacutesticas e para beber pois na enchente a aacutegua

eacute mais saudaacutevel para o consumo assim como lavar roupa e tomar banho As mareacutes

determinam tambeacutem o horaacuterio de aula da pesca do peixe e do camaratildeo bem como

da colheita do accedilaiacute As aacuteguas compotildeem o imaginaacuterio dos ribeirinhos nelas vivem os

seres encantados Nesse vai e vem do rio acontece a reproduccedilatildeo da vida social

econocircmica cultural e religiosa desses sujeitos Para Ribeiro (2007 p 111) a aacutegua eacute

suprema nesse espaccedilo ldquofaz parte da paisagem natural da vida e das caracteriacutesticas

da regiatildeo que eacute encontrada por grandes e pequenos rios furos lagos e inuacutemeros

igarapeacutesrdquo

Na relaccedilatildeo com as aacuteguas o ribeirinho produz e reproduz diversidades de

saberes que norteiam as suas relaccedilotildees sociais culturais religiosas e econocircmicas

Nas entrevistas e observaccedilotildees registramos algumas atividades nas quais esses

saberes foram mobilizados e socializados entre os membros da comunidade Esses

saberes foram categorizados como das aacuteguas satildeo eles pesca e dos seres

encantados

Segundo Furtado (1993) quanto mais o pescador estaacute inserido no meio em que

vive mais saberes ele produz para desvendar e se apropriar da natureza e desta

forma tem acesso ao conhecimento ldquodas relaccedilotildees existentes entre as faunas aquaacutetica

e terrestre a flora os ventos e os mares as nuvens e a chuva e assim por diante

cujos sinais satildeo identificados com sabedoriardquo (p 206)

Satildeo os saberes populares como o de Pedro ribeirinho que mora na

comunidade do rio Caetano haacute mais de trinta anos Ele sabe quando vai chover pelo

movimento que o vento faz nas aacutervores e o cheiro que delas exala e avisa ldquotaacute vindo

um tororo35 daacutegua aiacute vai cair daqui com dois a trecircs diasrdquo E dona Luzia ribeirinha

idosa que sabe quando a mareacute vai crescer ldquotaacute vendo como a aacutegua taacute mais barrenta

Cheia de limo Eacute sinar di que jaacute ta invandindu a mata temo que ficar de bubuia36

purque esse ano ela vai ser disconforme37rdquo

35Chuva muito intensa 36 Atentos 37 Crescer muito

134

Trata-se de saberes usados para a leitura de mundo por meio deles a natureza

eacute interpretada sua loacutegica difere do conhecimento cientiacutefico pois eacute resultado de

experiecircncias de trocas e conviacutevio com os rios e a mata Nessa oacutetica o saber popular

pode dialogar com o cientiacutefico sem ldquodesqualificar previamente tudo o que natildeo se

ajuste ao cacircnoneepistemoloacutegico da ciecircncia modernardquo (SANTOS 2005 p 26)

Na ilha a pesca eacute realizada por crianccedilas jovens adultos e idosos As mulheres

pescam no rio ou igarapeacute proacuteximo da vila sempre acompanhadas de crianccedilas

Custumo pescar na vazante da mareacute pego o casco o remo o caniccedilo e as isca uso a minhoca ou o camaratildeo como isca tiro a minhoca aqui mermo no quintal Natildeo me afasto muito de casa tenho medo e levo sempre um muleque cumigo (JOANA)

A pesca eacute realizada segundo a moradora quando a mareacute estaacute vazando

porque nesse momento os peixes acompanham o movimento das aacuteguas entatildeo a

possibilidade de uma farta pescaria eacute maior Na fala da entrevistada os instrumentos

utilizados para a realizaccedilatildeo desta atividade satildeo confeccionados na proacutepria vila assim

como as iscas que satildeo retiradas do rio ou do quintal O casco eacute feito de madeira da

seguinte forma

Natildeo eacute qualquer madeira que daacute para fazer o casco tem que ser uma resistente agrave aacutegua e que natildeo seja muito pesada porque se for pesada o casco natildeo boacuteia na aacutegua por isso agente usa o Cedro ou o Mogno que satildeo bem levinho Se tiver muito noacute natildeo serve porque natildeo vai dobrar direito Tem que escolher uma madeira que natildeo demore muito pra secar A taacutebua tem que ser retinha (JOSEacute)

Fotografia 19 ndash Cascos feitos de madeira Cedro

135

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A seleccedilatildeo da madeira para a confecccedilatildeo do casco comeccedila pela aacutervore a qual

natildeo pode ter muitos noacutes fendas ou cicatrizes O ribeirinho bate com um pedaccedilo de

pau na aacutervore pra saber se ela estaacute podre ou se tem cupim dentro Apoacutes a derrubada

verifica-se a cor da madeira se estiver muito verde vai demorar mais tempo pra secar

por isso eacute preferiacutevel cortaacute-las no inverno pois secam mais raacutepido Isso ocorre devido

agrave circulaccedilatildeo da seiva que alimenta as folhas flores e frutos do vegetal no periacuteodo da

primavera veratildeo e outono o que ocasiona a demora na secagem e prejudica a

conservaccedilatildeo da madeira atraindo fungos e insetos Apoacutes o corte a madeira ldquoeacute

colocada pra secar aqui do lado de casa mesmo tem que pegar bastante sol natildeo

pode deixar encostar as taacutebuas no chatildeo pra natildeo daacute bolocirc38rdquo (Joseacute)

Apoacutes a secagem comeccedila a confecccedilatildeo do casco as taacutebuas satildeo pregadas e

calafetadas39 com cola usada na marcenaria que eacute comprada em Macapaacute pelo seu

Joatildeo ldquocompro a cola em poacute em Macapaacute e depois do casco pronto esquento uma

aacutegua e coloco um pouco da cola em poacute espero esfriar e comeccedilo a calafetar o cascordquo

Depois de seca a cola torna-se impermeaacutevel e veda todas as brechas entre as taacutebuas

e os furos deixados pelos pregos Na vila os cascos natildeo satildeo pintados em vez de

tinta usa-se ldquooacuteleo de peixe e cera de abelha para demorar apodrecer a madeira mas

38 Fungos 39 Tapar as brechas e buracos do casco

136

tem que passar com a taacutebua bem seca se natildeo o cupim come tudo rapidinhordquo Essas

substacircncias servem para evitar que a madeira encharque ou seque completamente

Como a aacutegua natildeo estraga a madeira para o casco ter mais durabilidade quando natildeo

estaacute sendo usado ele eacute mergulhado dentro drsquoaacutegua para natildeo apodrecer

Pelo exposto nota-se que os saberes para pesca e confecccedilatildeo do casco satildeo

praacuteticos e utilizados para resolver as situaccedilotildees cotidianas Assim podemos afirmar

que satildeocontextualizados situados e uacuteteis o que caracteriza a predominacircncia no

diaacutelogo com outros tipos de conhecimentos na ecologia de saberes (SANTOS 2010)

O casco eacute a bicicleta do ribeirinho no rio lago ou igarapeacute ele o utiliza para

pescar passear caccedilar para o lazer visitar parentes amigos e outras atividades

cotidianas Nesse sentido o rio eacute a rua ldquoEsse rio eacute minha rua minha e tua murureacute

piso no peito da lua deito no chatildeo da mareacuterdquo40

Fotografia 20 ndash Ribeirinho levando o filho para a escola no casco

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

O remo eacute a ferramenta utilizada para conduzir o casco o qual eacute feito da mesma

madeira Para pilotaacute-lo o remador precisa ter muita habilidade atividade que se

aprende na infacircncia Diz Antocircnio que ldquoo remador jaacute nasce no cascordquo Isso significa

que desde receacutem-nascida a crianccedila jaacute anda de casco nos braccedilos da matildee e carrega

no sangue ldquoo jeito de ser do povo daquirdquo41

40 Trecho da letra da musica Esse rio eacute minha rua de Paulo Andreacute e Rui Barata 41 Trecho da letra da muacutesica Jeito Tucuju

137

Em relaccedilatildeo agrave pesca o caniccedilo eacute uma das ferramentas mais utilizadas

juntamente com o arpatildeo a zagaia a malhadeira e o matapi

O caniccedilo eacute feito do galho da caniceira ou do bambu por causa de sua

flexibilidade e resistecircncia Uma linha transparente de monofilamento de naacuteilon eacute

amarrada na ponta da vara e no final da linha eacute amarrado tambeacutem um pedaccedilo de

chumbo para manter a linha reta e em meacutedia 30 centiacutemetros apoacutes coloca-se o anzol

Observamos na vila a presenccedila desta ferramenta em todas as casas O seu uso eacute

constante todos os dias encontrei moradores pescando com caniccedilo no rio

Pesco com o caniccedilo todo dia uso como isca a minhoca e o camaratildeo o peixe quando a mareacute vaza fica na beira do rio e do igarapeacute debaixo dos troncos e datouccedilada aacutervore de capim e barranco por isso prefiro pescar na vazante (Antocircnio)

Para pescar o peixe o ribeirinho vai remando devagar para natildeo espantar a

presa Joga a linha do caniccedilo com o anzol42 preso na isca na parte onde o peixe se

esconde (debaixo do tronco das aacutervores nas sombras da vegetaccedilatildeo da beira do rio e

nos barrancos) Comonatildeo pode fazer barulho o casco fica longe da beira do rio e por

isso a linha do caniccedilo tem que ser comprida em meacutedia de dois a dois metros e meio

para chegar ateacute o local onde os peixinhos estatildeo

Fotografia 21 ndash Ribeirinha pescando com o caniccedilo

Matildee e filho pescando no rio as mulheres pescam proacuteximo da vila e sempre acompanhadas pelos filhos menores assim se sentem mais seguras Fonte Edielso M M de Almeida 2016

42 O tamanho do anzol varia de acordo com a espeacutecie e tamanho do peixe

138

Nos rios da ilha do Accedilaiacute vive o maior peixe de escama de aacutegua doce do mundo

que eacute o pirarucu devido agrave sua carne saborosa eacute considerado o bacalhau da

Amazocircnia Pratos deliciosos satildeo feitos com esse peixe temperado com as ervas

retiradas da floresta ou cultivadas nos quintais Para pegaacute-lo satildeo usados o caniccedilo e

o arpatildeo

Ele gosta de ficar na parte do rio em que a aacutegua eacute transparente Tem que aproveitar a primeira hora do dia porque quando o sol esquenta muito ele procura se esconder no mato aiacute ningueacutem consegue tirar ele de laacute Para pescar esse peixe tem que usar linha muito resistente por causa do peso e forccedila dele e colocamos uma boia perto do anzol pra quando ele morder a isca que eacute um pedaccedilo de peixe pequeno a boia avisa Tambeacutem usamos o arpatildeo pois o peixe tem que subir de tempo em tempo pra respirar aiacute aproveitamos para arpoaacute-lo (JOAtildeO)

O arpatildeo eacute feito de madeira retirada da paracuuacuteba abundante na regiatildeo na sua

haste tem uma ponta aguda de ferro semelhante agrave de uma flecha seu Joseacute me explica

detalhadamente como ele pesca o pirarucu com esta ferramenta

Tresontocircnti43 eu arpoei um fui no casco remando devagarinho para natildeo espantar o bicho com uma matildeo no remo e outra segura no arpatildeo esperando o peixe buiaacute44 Na hora que ele buiou languei o arpatildeo bem no lombo dele Tem que ser ligeiro se natildeo tu perde o bichatildeo deu trabalho para puxaacute-lo para o casco porque ele era disconforme45rdquo

Ele continua a histoacuteria e puxando pela memoacuteria disse que antigamente era

faacutecil encontrar o peixe nos rios bastava sair de casa passar um tempinho esperando

no casco que aparecia logo um Hoje estaacute mais difiacutecil pescar pirarucu eacute raro algueacutem

encontrar um no rio ele acredita que eacute por causa do preccedilo alto pago pelo quilo do

referido peixe o que leva os pescadores a pescarem direto esta espeacutecie ocasionando

a escassez para os que moram na Ilha Natildeo eacute somente os moradores da Ilha que

pescam eacute constante a presenccedila de pessoas vindas de outras localidades

principalmente de Macapaacute para pescar nos rios

A zagaia eacute outra ferramenta usada na captura do peixe Assim como o arpatildeo

eacute feita de madeira retirada da paracuuacuteba e consiste em uma haste com um tridente

amarrado na sua extremidade sendo usada para fachear durante a noite O ribeirinho

para enxergar o peixe na escuridatildeo usa uma lanterna presa na cabeccedila Seu Antocircnio

nos contou como faz para fachear46

43Haacute trecircs dias atraacutes 44 Vir agrave superfiacutecie para respirar ou pegar peixe 45 Muito grande 46 Pescar a noite com a zagaia

139

A noite no igarapeacute o peixe gosta de ficar na flor drsquoaacutegua perto di onde tem galho de arvore tronco e anhinga entatildeo quando agente vecirc o peixe di longe a gente vai remando bem devagarinho pra natildeo fazer barulho vai de mansinho ateacute chegar numa altura em que decirc pra jogar a zagaia sem errar A traiacutera47 eacute mais arisca entatildeo tem que ser ligeiro para ela natildeo escapar

A pesca com a zagaia natildeo deve ser realizada nas noites de lua cheia porque

com a claridade o peixe foge rapidamente quando percebe a aproximaccedilatildeo do casco

Na chuva tambeacutem fica difiacutecil devido agrave aacutegua que fica turva com os pingos de chuva o

que impossibilita a visatildeo dos peixes pelo pescador Portanto para pescar com a

zagaia as noites ideais satildeo as bem escuras e nubladas que dificultam a visatildeo dos

peixes e facilita a do pescador que usa uma lanterna para iluminar Tambeacutem se deve

fachear em rio ou igarapeacute de aacutegua parada transparente e durante a enchente da

mareacute

A pesca com a malhadeira eacute bastante utilizada na ilha Durante os quatro meses

que passei na vila presenciei a realizaccedilatildeo desta praacutetica diariamente principalmente

durante a vazante da mareacute

Fotografia 22 ndash Ribeirinho com o filho colocando a malhadeira no rio

Na foto a crianccedila acompanha o pai para a armaccedilatildeo da malhadeira no rio por meio da observaccedilatildeo ela aprende na praacutetica essa atividade que futuramente desenvolveraacute para sobreviver neste lugar Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A malhadeira requer o trabalho de duas pessoas como retrata a fotografia

acima No caso o pai com o filho a crianccedila rema o casco e o pai vai soltando as

47 Espeacutecie de peixe de aacutegua doce encontrada nos rios lagos e igarapeacutes na Amazocircnia

140

malhas no rio para que ela fique bem reta Observe na fotografia que a malhadeira

atravessa todo o rio Acaraacute e eacute amarrada nos galhos as suas margens A rede eacute

colocada na vazante da mareacute e retirada na proacutexima vazante ou seja seis horas depois

que eacute o intervalo de uma mareacute Suas malhas satildeo feitas de linha transparente de

monofilamento de nylon de maneira uniforme e os peixes ficam presos nas malhas

pela cabeccedila O tamanho das malhas estaacute relacionado agraves espeacutecies de peixe por isso

existem malhadeiras para pegar peixes pequenos meacutedios e grandes

Fotografia 23 - Ribeirinho tecendo a malhadeira

Na imagem o ribeirinho tecendo as malhas e fazendo o entralhamento que consiste na amarraccedilatildeo das malhas no entralho que eacute o fio esticado As malhas satildeo amarradas com linha de seda Na imagem tambeacutem temos duas crianccedilas observandoFonte Edielso M M de Almeida 2016

Para pegar o camaratildeo eacute usado o matapi que funciona como uma armadilha

na qual o camaratildeo entra e natildeo consegue mais sair Eacute confeccionado pelos ribeirinhos

da ilha A moradora Francisca me ensina como fazecirc-lo

Primeiro tem que saber tirar a tala do Jupati48 depois raspar ela direitinho pra ficar bem lisa A amarraccedilatildeo das tala eacute feita com o cipoacute titica Se tu queres fazer um para pegar camaratildeo porrudo49 entatildeo a distacircncia das tala eacute maior em relaccedilatildeo ao que foi feito para pegar camaratildeo jito50 A amarraccedilatildeo tem que ser bem feita pras tala natildeo sai do lugar quando o camaratildeo comeccedilar a pular

Fotografia 24 ndash Matapi

48 Palmeira tiacutepica da floresta Amazocircnica 49 Grande maior 50 Pequeno menor

141

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Raimundo marido de Francisca diz-me como se deve colocar o matapi

Coloca o matapi na mareacute seca amarrado numa vara na beira do rio se for soacute um matapi se tu colocares mais de um entatildeo tu amarras duas varas longe uma da outra e vai pendurando o matapi com o barbante na distacircncia de um metro de um para o outro Dentro dele tu colocas a isca que eacute a punqueca que tu fazes com o babaccedilu enrolado num plaacutestico e amarra com o grecirclo do buriti51 Tu colocas na mareacute seca e tira na mareacute seca tambeacutem jaacute deixei ateacute seis meses o matapi de molho no rio ia laacute soacute para tirar o camaratildeo

Isso denota que o saber eacute contextualizado localizado repleto de significados

para os sujeitos que os constroem e os reconstroem nas relaccedilotildees sociais

mediatizadas pelo mundo Na visatildeo hegemocircnica de ciecircncia que defende a

monocultura do saber por ser local esses saberes natildeo satildeo legitimados pelo motivo

de serem limitados e natildeo utilizaacuteveis em outros contextos O que estaacute oculto neste

discurso eacute a universalizaccedilatildeo do saber e a legitimaccedilatildeo da ciecircncia enquanto a uacutenica

capaz de explicar o mundo (SANTOS 2005)

Dentre os saberes locais estatildeo os relacionados aos seres encantados das

aacuteguas que permeiam o imaginaacuterio dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute A presenccedila no

cotidiano dos seres sobrenaturais por meio das crenccedilas lendas e mitos exerce

grande influecircncia na vida desses sujeitos O mito para Oliveira (2004 p 42) tem

uma dimensatildeo educativa para o ribeirinho

51 Palmeira tiacutepica da floresta Amazocircnica

142

Adimensatildeo educativa do mito estaacute presente tambeacutem emseu poder de orientar a praacutetica social das populaccedilotildeesrurais Nas comunidades ribeirinhas [] o meio ambienteincorpora um simbolismo expresso na existecircncia deentidades ou encantados protetores da floresta e dasaacuteguas Ensina-se desde a tenra idade que se deve respeitara natureza cuidaacute-la para que sejam preservados osrecursos naturais e tambeacutem para natildeo despertar a ira dosencantados

Assim atraveacutes das histoacuterias contadas pelos moradores da ilha aos seus filhos

e netos educam-seas crianccedilas os jovens e adultos para a preservaccedilatildeo dos recursos

naturais de onde satildeo retirados osmeios para a manutenccedilatildeo da vida Osencantados

que satildeo os protagonistas dessas histoacuterias protegem anatureza e punem quem ousa

desobedececirc-los

Seres como o Boto a Matintapereira o caboclo gritador e a matildee drsquoaacutegua

habitam os rios lagos igarapeacutes e a mata O Boto eacute um encantado que seduz as

mulheres solteiras e casadas O mamiacutefero se transforma em um lindo e galanteador

rapaz que ldquodeixa as mulheres fora de si mesmas fazendo-as esquecerem de todas

as normas para seguirem somente o impulso desse ser de puro gozo de amor sem

ontem nem amanhatilderdquo (FRAXE 2010 p 326)

Metamorfoseado em um rapaz vestido de branco sempre com um chapeacuteu para

esconder o buraco que tem no meio da cabeccedila aparece em festas realizadas nas

comunidades ribeirinhas Nas festas o boto eacute gentil cavalheiro e usa suas habilidades

de danccedilarino para seduzir a cabocla mais bonita e levaacute-la para a praia ou beira52 do

rio Cheio de encanto e magia os dois fazem amor agrave luz do luar e depois ele

desaparece e nunca mais eacute visto pelas redondezas Diz-nos Joseacute que ldquoele gosta da

menina mais viccedilosa e cheirosa do lugar ela fica doida por ele natildeo tem como evitar

que ela seja possuiacutedardquo Aleacutem das festas o boto pode aparecer tambeacutem na casa e vai

direto para o quarto da mulher que deseja fazer amor

Encontrei na comunidade do rio Caraacutesa dona Luzia que me disse como ia

sendo seduzida pelo priacutencipe das aacuteguas Ela natildeo lembra ao certo o dia em que

aconteceu ateacute porque o tempo subjetivo segundo Baptista (2014 p 45)ldquo[] foge aos

padrotildees adotados comumente ou seja estaacute ritmado e sincronizado de acordo com

nossas sensaccedilotildees internas diretamente ligado agrave nossa subjetividade e nossas

experiecircnciasrdquo mas natildeo esqueceu alguns detalhes do fato

Meu marido tinha saiacutedo para fachear agrave noite e eu fiquei com os filhos dormindo Jaacute tarde da noite vi um rapaz subindo no trapiche ele entra na casa a casa natildeo tinha porta Pensava que era um dos filhos que saiu para

52 Margem do rio

143

mijar no rio Mas era o boto que tentou entrar no meu mosquiteiro mas consegui escapar dando um grito e acordando os meus filhos que botaram o safado para correr Acho que ele veio atraacutes de mim porque fui pegar aacutegua no rio quando estava menstruada ele veio pelo cheiro

Na referida vila as mulheres quando estatildeo menstruadas natildeo pegam aacutegua ou

tomam banho no rio com medo do boto Isso acontece tambeacutem com os homens de

qualquer idade seja novo ou velho Apoacutes as 18 horas raramente encontrava algueacutem

pegando aacutegua ou tomando banho no rio Para Fares (2004 p 96) ldquoO tempo da

epifania quase sempre eacute noturno a partir das seis horas da tarde e o inverno eacute a

estaccedilatildeo preferidaporque escurece mais cedo Os comunitaacuterios respeitamessas leis

pois tecircm medo dos castigos []rdquoO castigo para dona Luzia foi a visita do boto

Na comunidade do rio Santo Antocircnio a moradora Joana me contou que

quando a mareacute seca aparecem as praias entatildeo os homens vatildeo jogar bola na praia ostordia53 tiveram uns homens que ficaram gritando agrave noite laacute naprainha tinham bebido muita cachaccedila Quandochegaram em casa natildeo conseguiram dormir ficavamouvindo os gritos do Caboclo Gritador que natildeo deixaram eles dormir

Depois desse episoacutedio ningueacutem mais jogou futebol apoacutes as dezoito horas nas

praias com receio de natildeo conseguir dormir agrave noite devido aos gritos do caboclo

gritador

Outro caso conhecido na ilha eacute o do senhor Pedro que ficou panema porque

tomou banho no rio apoacutes as dezoito horas sem pedir permissatildeo para a matildee drsquoaacutegua

Procurei-o para saber mais dessa histoacuteria ele vive haacute mais de vinte anos na

comunidade do rio Caetano e em conversa me falou que esse fato ocorreu quando

era mais moccedilo mas ainda as lembranccedilas estatildeo guardadas na memoacuteria Para Bergson

(2012 p 20) ldquosatildeo as lembranccedilas da memoacuteria que ligam os instantes uns aos outros

e intercalam o passado no presenterdquo O que ele me contou aconteceu no passado

mas ele o relata na oacutetica do presente sentados na beira do fogatildeo a lenha

Cheguei de tardinha da cidade onde fui vender accedilaiacute carreguei todo o mantimento que trouxe no barco de Macapaacute quando terminei jaacute era de noitinha54 e ningueacutem encheu aacutegua para eu tomar banho entatildeo tomei no rio Depois desse banho as coisas pioraram saia pra pescar e natildeo pegava nada colocava o matapi e soacute camaratildeo jitinho a malhadeira natildeo pegava nada estava panema55

53 Outro dia eferente ao dia que passou 54 Tarde da noite depois das dezoito horas 55 Significa natildeo ter sorte a panemeira eacute causada pelos seres encantados do rio e da mata

144

A panemeira soacute eacute curada apoacutes o benzedor benzer Foi o que aconteceu com

Pedro que depois de benzido e de ter feito tudo o que o benzedor receitou ele ficou

curado e nunca mais tomou banho no rio agrave noite Presenciei o trabalho do benzedor

o senhor Benedito A neta da secretaacuteria da escola estava doente com ldquosustordquo56 Entatildeo

fui junto com eles levaacute-la para benzer na ilha do Amor onde mora o benzedor A ilha

fica distante cerca de vinte minutos da vila indo na rabeta57 O morador Raimundo

avocirc da crianccedila justifica o motivo da escolha do benzedor ldquoAqui na ilha do Accedilaiacute temos

duas pessoas que benzem o cumpadre Benedito que mora na ilha do Amor e a dona

Antocircnia que vive no rio Cajueiro Levo sempre meus filhos pro cumpadre Beneacute benzer

tenho mais feacute nele Sempre cura as doenccedilas dos piquenosrdquo

Fotografia 25 - Benzedor benzendo uma crianccedila com susto

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Na imagem acima o senhor Benedito benze a crianccedila viacutetima de ldquosustordquo no paacutetio

de sua casa Ele benze em qualquer lugar basta que o doente fique quieto para que

seja feita a reza em sua cabeccedila O tratamento consiste em rezar na cabeccedila ou noutras

partes do corpo do doente e em seguida a indicaccedilatildeo de ervas medicinais Existe

oraccedilatildeo especiacutefica para cada tipo de doenccedila o benzedor demonstrou conhecer muito

bem a utilidade das ervas medicinais para curar uma diversidade delas

56 A crianccedila assustada natildeo dorme bem acorda agrave noite aos prantos assim como vive o tempo todo agitada durante o dia e chora constantemente 57 Pequeno barco movido a motor

145

Fiquei quatro dias na ilha para conhecer melhor o curandeiro Ao perguntar

sobre onde aprendeu a rezar respondeu ldquocom ningueacutem saiu da minha cabeccedila eacute um

dom que carrego comecei a benzer aos15 anos de idade e natildeo posso passar pra

ningueacutem nem pros meus filhosrdquo e natildeo quis revelar os motivos de natildeo poder transmitir

os saberes da reza que satildeo guardados em segredo

Ele natildeo cobra pelos serviccedilos A pessoa daacute o que quiser em troca No periacuteodo

em que estive na sua casa ele atendeu seis pessoas sendo cinco crianccedilas e uma

mulher adulta

Dentre as doenccedilas curadas pelo benzedor as mais comuns satildeo dor de

cabeccedila panemeira susto quebranto58 dor de barriga febre mau-olhado e espinhela

caiacuteda59 Mas para que a cura aconteccedila eacute preciso que o doente tenha feacute e acredite

nopoder do remeacutedio e no seu curador ldquoA cultura tambeacutem eacute capaz de provocar cura

de doenccedilasreais e imaginaacuterias Estas curas ocorrem quando existe afeacute do doente na

eficaacutecia do remeacutedio e no poder dos agentes culturaisrdquo (LARAIA 2009 p 78)

Na comunidade do rio Caraacutes encontrei dona Luzia uma senhora idosa

conhecida como a contadora de histoacuterias Ao chegar a sua residecircncia jaacute havia

algumas crianccedilas com o uniforme escolar sentadas ouvindo-a contar uns causos

acompanhadas da professora60 A histoacuteria era a seguinte

Quando era jovem meu irmatildeo saiu agrave noite no casco para ir agrave casa da namorada Todas as noites ele saia pra namorar Uma dessas noites ele ouviu um assobio bem alto (dona Luzia imita o assobio) vaacuterias vezes Era a Matinta Perecircra ela estava em forma de coruja voando perto do casco O caboclo ficou tremendo de medo e pra ela parar de assobiar ele ofereceu tabaco No outro dia pela manhatilde apareceu uma velhinha toda de preto perguntando pra ele se tinha tabaco

Para descobrir quemeacute a Matinta Perecircra diz dona Luzia basta que a pessoa

que ouviu o seu assobio convide-a para vir agrave sua casa pela manhatilde para tomar cafeacute

ou pegar tabaco Na manhatilde seguinte a primeira pessoa que chegar pedindo cafeacute ou

tabaco eacute a Matinta Perecircra Acredita-se que ela possui poderes sobrenaturais Seus

feiticcedilos satildeo capazes de causar seacuterios prejuiacutezos agraves suas viacutetimas principalmente com

respeito agrave sauacutede causando-lhes fortes dores fiacutesicas e ateacute a morte Motivo pelo qual

tem que dar o que prometeu a ela

58Doenccedila que acomete principalmente as crianccedilas causada por susto mau-olhado ou pessoa adulta que chega suada e com fome da mata ou do rio e agrada a crianccedila 59 Fraqueza fiacutesica e mental 60 Nesse dia a professora levou os alunos para ouvirem as histoacuterias do lugar contadas pela dona Luzia

146

Segundo Fraxe (2010 p 325) ldquoa aceitaccedilatildeo espontacircnea de episoacutedios como

esses reflexo de uma espeacutecie de aceitaccedilatildeo de dois mundos (material e simboacutelico)

representa um dos suportes psicoloacutegicos de compreensatildeo de relatos verdadeiros []rdquo

Essas e outras histoacuterias contadas pelos mais velhos tem um cunho educativo

procuram trazer exemplos do que natildeo deve ser feito portanto as histoacuterias miacuteticas que

envolvem os seres encantados influenciam o comportamento dos ribeirinhos bem

como as formas de pensar e agir na comunidade natildeo pegar aacutegua e tomar banho no

rio depois das seis horas da tarde natildeo partir lenha agrave noite com receio de ser castigado

pela matildee da mata natildeo jogar futebol agrave noite nas praias mesmo na lua cheia para natildeo

ter problemas de dormir com os gritos do caboclo gritador sair a noite sozinho no

riopara natildeo correr o risco de encontrar Matinta Perecircra entre outros

Esses saberes satildeo invisibilizados vistos como ausentes sem importacircncia e

natildeo reconhecidos pelos fundamentoshegemocircnicos O que estamos fazendo nesta

pesquisa eacute tornaacute-los presentes existentes como outras maneiras de compreender o

universo Concordamos com Santos (2005 p 56) quando afirma que ldquoNatildeo haacute nem

conhecimentos puros nem conhecimentos completos haacute constelaccedilotildees de

conhecimentosrdquo Dentre elas os saberes oriundos da relaccedilatildeo entre os ribeirinhos da

Amazocircnia com os rios lagos e igarapeacutes O que se faz necessaacuterio eacute eliminar as

relaccedilotildees desiguais entre as constelaccedilotildees de conhecimentos e o conhecimento

hegemocircnico Para isso a sociologia das ausecircncias proposta pelo autor tem papel

fundamental

41 2 Saberes da Terra e da Mata

Neste item descrevemos os saberes oriundos da relaccedilatildeo que o ribeirinho

estabelece com a terra e a mata por meio destas relaccedilotildees satildeo produzidos e

reproduzidos novos saberes ligados a cultura local Para Santos (2003) o

reconhecimento da diversidade socioculturalconduz agrave diversidade epistemoloacutegica de

saberes existentes no mundo

Desta maneira na ilha do Accedilaiacute a terra eacute fonte para a produccedilatildeo de alimentos e

remeacutedios Haacute poucas roccedilas nas quais satildeo plantadas melancia maxixe e jerimum O

ribeirinho evita fazer roccedila para natildeo desmatar a mata e preservar os peacutes de accedilaiacute que

satildeo fonte de renda da populaccedilatildeo Os produtos retirados da roccedila servem somente para

o consumo local

Nos quintais encontramos as hortas presentes em quase todas as residecircncias

As mulheres e crianccedilas cuidam das plantas molham e fazem a limpeza retirando os

147

matos e as ervas daninhas que possam impedir o desenvolvimento da cebolinha

chicoacuteria couve quiabo pimentatildeo pimentinhas e outros

Fotografia 26 ndash Ribeirinha cuidando da horta

Os canteiros satildeo feitos no alto para proteger das enchentes e dos animais domeacutesticos patos galinhas e porcos Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Da terra tambeacutem satildeo retiradas as plantas para a cura de doenccedilas O benzedor

senhor Benedito apoacutes benzer o doente sempre passa remeacutedios feitos das ervas que

estatildeo no seu quintal tais como o chaacute de hortelatildeozinho para dor de barriga e gases

chaacute de marupazinho para ameba e diarreia suco do matruz para problemas de barriga

inchada cheiura verme e fiacutegado Segundo Maueacutes (1990) existem dois tipos de

doenccedilas as naturais e sobrenaturais Dentre as doenccedilas sobrenaturais causadas

pelos seres encantados da mata e do rio estatildeo o quebranto ventre-caiacutedo mau-

olhado e panemeira No processo de cura para essas doenccedilas os remeacutedios extraiacutedos

das plantas medicinais bem como o trabalho do curandeirobenzedor satildeo

fundamentais As doenccedilas naturais satildeo explicadas pela ciecircncia

Fotografia 27 ndash Marupazinho

148

Na imagem o peacute de marupazinho planta da horta do benzedor usada para combater a diarreia e verminose como a amebiacutease em crianccedilas jovens e adultosFonte Edielso M M de Almeida 2016

Na comunidade do rio Caraacutes haacute um posto de sauacutede Os moradores utilizam os

remeacutedios farmacecircuticos e tambeacutem dependendo da gravidade da doenccedila os

remeacutedios caseiros De acordo com JoanaldquoQuando o doente taacute passando muito ruim

eacute sinal que a doenccedila eacute grave entatildeo toma remeacutedio do posto ou leva pra Macapaacute mas

quando eacute uma gripe a gente faz um chaacute de limatildeo alho gengibre e coloca um pouco

de mel e tomardquo O limatildeo eacute retirado do quintal e o gengibre da horta o mel e o alho satildeo

comprados na cidade Em relaccedilatildeo agrave preparaccedilatildeo dos remeacutedios podem ser em forma

de chaacutes garrafadas com infusatildeo no aacutelcool ou cachaccedila afumentadores (para

massagear) e banhos

Na comunidade do rio Cajueiro entrevistei a moradora Antocircnia que aleacutem de

benzer ainda eacute parteira

Aprendi a fazer parto com minha avoacute Sou de Breves e sempre morei no interior se hoje natildeo tem meacutedico imagina na eacutepoca da vovoacute Entatildeo a mulherada paria61 nas matildeos da parteira do lugar Eu a ajudava a pegar a crianccedila quando estava saindo do ventre da matildee nessa hora tem que ter demais cuidado pegar com jeitinho primeiro passa a cabeccedila bem devagar agente tem que ter paciecircncia nada de pressa quando sai a cabeccedila tem que ajudar a puxar porque o moleque natildeo sai sozinho mas precisa puxar com

61 Ter a crianccedila dar a luz ao bebecirc

149

jeitinho pra natildeo ferir e deslocar o pescoccedilo da crianccedila Jaacute peguei62 muito moleque nessa vida Graccedilas a Deus nunca perdi um

Dona Antocircnia se fez parteira na praacutetica auxiliando sua voacute nos partos e desta

maneiratornou-se parteira experiente De dia ou agrave noite embaixo de sol ou chuva ela

estaacute sempre disponiacutevel para ajudar as mulheres que estatildeo prestes a ldquodar a luzrdquo sem

cobrar nenhum tostatildeo Ela crecirc que partejar eacute um dom divino e por isso natildeo cobra

nada o reconhecimento vem em forma de agradecimento A parteiradedica seu tempo

para ajudar as mulheres ldquoagraves vezes acompanho a gestaccedilatildeo faccedilo o parto e fico durante

uns sete dias na casa da mulher ajudando a cuidar do muleque e fazendo a comida

pra paridardquo Mas haacute situaccedilotildees em que ela eacute chamada apenas para fazer o parto

ficando sob a responsabilidade dos familiares os cuidados do poacutes-parto

Segundo o Ministeacuterio da Sauacutede (BRASIL 2014 p23)

[] estima-se que existe um nuacutemero expressivo de parteiras tradicionais principalmente das regiotildees Norte e Nordeste Entretanto natildeo se dispotildee de dados que expressem o real quantitativo das parteiras pois existe um cadastramento insuficiente destas por parte das secretarias estaduais e municipais de sauacutede visto que ainda eacute predominante a situaccedilatildeo de natildeo articulaccedilatildeo do trabalho das parteiras tradicionais com o sistema de sauacutede formal

Na ilha do Accedilaiacute natildeo haacute articulaccedilatildeo do poder puacuteblico por meio da secretaria de

sauacutede com o trabalho da parteira nem com o do rezador Ambos atuam sem nenhum

apoio seja financeiro ou material por parte do poder puacuteblico

Foram quatro dias de aprendizado que tive com Dona Antocircnia dentre os quais

como ela faz os partos e os cuidados que tem com a parturiente antes durante e

depois do fato

Antes de sai de casa peccedilo logo ajuda pra Deus e a minha santa protetora Santa Rita de Cassia para me guiar e ajudar na hora de pegar o muleque Quando chego na casa da gestante se ela tiver deitada na rede e natildeo tiver cama peccedilo pro marido arrumar uma esteira e forrar com lenccedilol fica melhor pra ela fazer forccedila pra empurrar o muleque pra fora e coloco aacutegua pra ferver junto com a tesoura que uso pra cortar o cordatildeo do umbigo Entatildeoponho ela deitada na esteira com as pernas abertas Quando a dor aperta63 faccedilo massagem na barriga pra ajudar e rezo a oraccedilatildeo do bom parto A parte mais difiacutecil eacute cortar o cordatildeo do umbigo pra isso coloco trecircs dedos da matildeo como medida entre a crianccedila e o cordatildeo e passo a tesoura depois amarro com um barbante e passo oacuteleo de andiroba com tabaco pra natildeo inflamar

Apoacutes o parto vem o periacuteodo de resguardo os cuidados e a dieta Como eximia

conhecedora das ervas passa banhos com a casca de paricaacute64 para ajudar a

62Fez parto de muitas crianccedilas 63 Aumentar a intensidade da dor 64 Aacutervore predominante na floresta amazocircnica

150

desinflamar ldquoa parte iacutentimardquo e afumentaccedilatildeo65 com oacuteleo de copaiacuteba para a parida

Durante no miacutenimo sete dias deve evitar sair do quarto e tem que comer carne magra

principalmente galinha com bastante caldo natildeo comer porco ou caccedila do mato

Deveria ser por quarenta dias mas ningueacutem respeita o resguardo entatildeo peccedilo pra resguardar pelo menos sete dias sem sai no sereno tomar banho dentro de casa natildeo carregar peso O marido soacute deve usar66 a mulher depois dos quarenta dias quando ela vai estaacute recuperada do parto

As mulheres comumente procuram a parteira para pedir remeacutedio para dor de

coacutelica prisatildeo de ventre e atraso das regras67 Assisti a uma consulta na qual uma

moccedila estava menstruada e com muita coacutelica o remeacutedio indicado foi o chaacute de

hortelatildeozinho com a semente da buchinha que deveria ser tomado pela manhatilde e agrave

noite antes de deitar As que estatildeo graacutevidas vecircm trazer a barriga para puxar com

o intuito ldquode colocar a crianccedila no lugarrdquo68 e saber o seu sexo Dona Antocircnia afirma que

sempre acerta ldquoquando a barriga eacute demais pontuda vai ser menino quando eacute muito

redonda seraacute meninardquo

A parteira afirma que jaacute faz algum tempo que natildeo realiza parto ldquohoje em dia

as mulheres vatildeo parir pra Macapaacute tem medo de ter o filho aqui na vilardquo A proximidade

favorece a ida das graacutevidas para a cidade a viagem dura em meacutedia uma hora e meia

de catraio A mesma observaccedilatildeo eacute feita em relaccedilatildeo ao consumo de remeacutedios caseiros

ldquoantigamente a procura por remeacutedio da mata era maior agora eacute mais os da farmaacutecia

O remeacutedio daqui da natureza natildeo ataca o fiacutegado nem o estocircmago como os da

farmaacutecia mas o povo natildeo acredita mais na cura desses remeacutediosrdquo

A seguir algumas fotografias de plantas que satildeo utilizadas pelos moradores da

ilha para fazer remeacutedios com as respectivas receitas relatadas pelos moradores

sujeitos da pesquisa

Fotografia 28 ndash Peacute de Mastruz

65 Massagear neste caso passar levemente oacuteleo de copaiacuteba nas partes iacutentimas isso ajuda no processo desinflamatoacuterio 66 Fazer sexo 67 Menstruaccedilatildeo 68 Quando sentem dores dizem que eacute porque a crianccedila estaacute atravessada na barriga aiacute tem que levar para a parteira puxar e colocar no lugar

151

Na imagem um peacute de matruz do qual se retira as folhas para bater com leite do Amapaacute (aacutervore da qual se extrai o leite) vira remeacutedio para as pessoas que estatildeo com fraqueza indisposiccedilatildeo e mal-estarFonte Edielso M M de Almeida 2016

Fotografia 29 ndash Peacute de Capim Marinho

Na imagem um peacute capim marinho do qual se faz o chaacute para tomar contra o cansaccedilo fiacutesico e mental Deve-setomaacute-lo todos os dias pela manhatilde em jejumFonte Edielso M M de Almeida 2016

Fotografia 30 ndash Peacute de Noni

152

Peacute de Noni da fruta eacute feito o suco para problemas de prisatildeo de ventre diabetes pressatildeo alta e tambeacutem funciona como um excelenteanti-inflamatoacuterio Deve-se tomar o suco duas vezes por dia durante vinte dias consecutivosFonte Edielso M M de Almeida 2016

Fotografia 31 ndash Sementes de Cacau

No paneiro sementes de cacau colocadas para secar Quando secas satildeo piladas e misturadas com sementes de aboacutebora para fazer chaacute ou suco e serve para combater verminoses Deve-se tomar em jejum e antes de deitar agrave noite Fonte Edielso M M de Almeida 2016

153

O cacau eacute retirado da mata assim como a mateacuteria-prima para a produccedilatildeo do

matapi para pegar o camaratildeo o paneiro que serve para colocar accedilaiacute peixe

camaratildeo guardar roupas plantar as mudas das plantas medicinais entre tantas

outras utilidades a peneira para peneirar o accedilaiacute casco e remos

Fotografia 32 ndash Erva Cidreira

O chaacute da erva cidreira eacute usado no tratamento de gastrite dor no estocircmago coacutelica intestinal e insocircnia Tomar uma xiacutecara duas a trecircs vezes ao dia ateacute parar as dores Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Fotografia 33ndash Catinga de Mulata

Das folhas da catinga da mulata se faz chaacute para tratar de asma gases e vermes O banho ajuda no tratamento da gripeFonte Edielso M M de Almeida 2016

154

Observei durante o periacuteodo em que estive na ilha que uma palmeira chamada

buriti eacute bastante utilizada pelos ribeirinhos Das talas satildeo feitos paneiros esteiras e

peneiras do caule se faz trapiches (o caule boia quando a mareacute estaacute cheia) as folhas

satildeo usadas para cobrir hortas casas de galinhas e de outros animais domeacutesticos do

fruto se faz um delicioso suco que tomei todos os dias durante as refeiccedilotildees

Fotografia 34 ndash Palmeira de Buriti

Palmeira Buriti no meio das demais espeacutecies de vegetaccedilatildeo de vaacuterzea na Floresta Amazocircnica Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A Floresta tambeacutem eacute habitada pelos seres encantados

Aqui na ilha as meninas quando estatildeo menstruadas natildeo tomam banho e nem pegam aacutegua no rio tambeacutem natildeo saem pra andar na mata porque se aparecer alguma crianccedila doente a culpa eacute delas Natildeo saem pra andar na mata porque tem a caruara que sente o cheiro do sangue e lanccedila flechas que podem acertar os piquenos69 que vivem na redondeza (JOANA)

No periacuteodo em que estatildeo menstruadas as meninas tambeacutem natildeo vatildeo para a

escola exatamente para evitar os problemas citados acima O proacuteprio termo

ldquomenstruaccedilatildeordquo recebe vaacuterias denominaccedilotildees minhas regras estaacute vazando estaacute

furada e taacute de bode Alguns homens me confessaram que nesse periacuteodo natildeo mantecircm

relaccedilotildees sexuais com suas mulheres ou namoradas porque elas satildeo ldquopoucos limpas

e podem passar doenccedila pra noacutesrdquo (JOAtildeO)

Para adentrar a mata eacute necessaacuterio se benzer (fazer o sinal da cruz) e pedir

permissatildeo para os seres encantados que moram no lugar Vaacuterias vezes fui

advertidopelos meus entrevistados por natildeo me benzer ao entrar na mata Os

69 Crianccedilas

155

caccediladores que satildeo poucos na ilha desenvolveram vaacuterios saberes referente aos

animais que habitam a floresta seus haacutebitos alimentares cheiro marcas deixadas na

lama praia e galhos de aacutervores horaacuterio que estatildeo mais propiacutecios para serem

capturados entre outros

A cutia e a paca costumam comer as sementes e frutas que caem das aacutervores perto do rio o tatu aproveita a enchente pra vim beber aacutegua o veado sai bem cedinho pra comer Isso a gente aprende com os caccediladores mais velhos como meu avocirc meu pai meus irmatildeos (RAIMUNDO)

O processo de aprendizagem segundo o caccedilador ocorre na praacutetica no dia a

dia vivenciando observando seu avocirc pai e irmatildeos mais velhos Esses saberes

orientam as atividades de caccedila na ilha o bom caccedilador passa por todo um processo

de aprendizagem que ocorre na praacutetica da caccedila

Esses saberes satildeo frutos da relaccedilatildeo dos ribeirinhos com a natureza e

geralmente ignorados pela instituiccedilatildeo escolar na qual esses sujeitos passam grande

parte de sua vida desde a educaccedilatildeo baacutesica ateacute o ensino superior Desta maneira os

desqualificam e os desvalorizam por natildeo serem cientiacuteficos Assim sendo ldquoAo

submeter outros saberes a seus proacuteprios criteacuterios de verdade e eficaacutecia o

conhecimento cientiacutefico os rejeitae marginalizardquo (SANTOS 2005 p 45)

Da mata tambeacutem eacute retirado o accedilaiacute fonte de renda e alimento presente na

mesa de todos os ribeirinhos Devido agrave sua importacircncia abordamos especificamente

este saber a seguir

413 Saberes do Accedilaiacute

O accedilaiacute eacute a principal fonte de renda dos ribeirinhos e tornou-se a base

econocircmica dos moradores da ilha cuja vegetaccedilatildeo predominante eacute a palmeira

conforme imagem a baixo

Fotografia 35 - Peacutes de Accedilaiacute

156

As beiradas dos rios que formam a ilha satildeo repletas de peacutes de accedilaiacute que eacute uma palmeira tiacutepica da Amazocircnia Seu fruto eacute rico em vitaminas ferro fibras foacutesforo potaacutessio minerais e gordura vegetal Eacute uma vegetaccedilatildeo predominante nas aacutereas de vaacuterzea Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A safra do produto compreende os meses de marccedilo a agosto Na mesa o accedilaiacute

com a farinha de mandioca eacute o prato principal acompanhado do peixe camaratildeo ou

charque frito O produto eacute consumido praticamente todo dia na eacutepoca da safra agraves

vezes eacute o uacutenico alimento da famiacutelia Nas cidades amazocircnidas o accedilaiacute eacute um dos

alimentos mais sorvidos pela populaccedilatildeo Para a antropoacuteloga Woodward (2008 p 42)

ldquoaquilo que comemos pode dizer muito sobre quem somos e sobre a cultura da qual

vivemos A comida eacute um meio pelo qual as pessoas podem fazer afirmaccedilotildees sobre si

proacutepriasrdquo Devido ao seu teor energeacutetico o accedilaiacute eacute tomado por crianccedilas jovens adultos

e idosos para recuperar as energias e as forccedilas gastas no cotidiano como afirma o

morador Pedro ldquo Bebo accedilaiacute todo dia se tiver tomo de manhatilde na merenda da tarde e

na janta agrave noite ele me daacute forccedila e disposiccedilatildeo pra trabalharrdquo

A colheita do produto eacute feita na sua maioria pelos homens mas encontrei na

comunidade do rio Caraacutes uma adolescente de doze anos que tambeacutem ldquoapanha70rdquo

accedilaiacute Segundo sua matildee ldquoela apanha accedilaiacute desde os seis anos natildeo gosta dos afazeres

domeacutesticos mas adora tirar accedilaiacuterdquo Nesse extrativismo os pais levam os filhos mais

velhos para ajudaacute-los os quais ao mesmo tempo aprendem os saberes necessaacuterios

por meio de uma educaccedilatildeo natildeo formal ou seja aprende-se na praacutetica no dia a dia

por meio do envolvimento nas atividades produtivas

70 Tirar o cacho e accedilaiacute da palmeira

157

Fotografia 36 ndash Menino subindo no Accedilaizeiro

Na ilha as crianccedilas e adolescentes tambeacutem participam da colheita do accedilaiacute Eles sobem nas aacutervores mais finas nas quais os adultos natildeo conseguem por causa do risco de quebraacute-las devido ao peso como as crianccedilas e os adolescentes satildeo mais leves acabam tirando o accedilaiacute dessas palmeirasFonte Edielso M M de Almeida 2016

A palmeira do accedilaizeiro mede aproximadamente de 35 a 40 cm de diacircmetro e

pode chegar ateacute 16 metros de altura Quanto agrave produccedilatildeo o morador Joatildeo diz queldquode

um peacute de accedilaiacute novo daacute pra tirar ateacute nove cachos por safra a produccedilatildeo vai diminuindo

assim que a accedilaizeira vai ficando velha por isso a gente faz o manejo do accedilaizalrdquo A

idade entatildeo eacute determinada pela produccedilatildeo de cada palmeira e quando comeccedila a

diminuir eacute feito o corte da mais velha para que os peacutes mais jovens possam se

desenvolver

Aqui na ilha agente faz o manejo da seguinte forma quando fica um accedilaizal muito fechado ele natildeo produz accedilaiacute fica abafado com muitas aacutervores juntas eacute preciso que desabafe e isso se faz cortando as aacutervores mais altas para que as menores possam crescer assim como os filhototildees que satildeo os peacutes pequenos de accedilaiacute Desta maneira o accedilaizal vai produzindo cada vez mais Porisso que o accedilaiacute nunca falhou todo mundo aqui se sustenta dele haacute mais de trinta anos venho fazendo isso

O objetivo do manejo eacute garantir a produccedilatildeo para o ano seguinte Desta forma

os peacutes mais velhos satildeo arrancados para dar espaccedilo aos filhototildees71 e assim assegura-

se a produccedilatildeo e a existecircncia do accedilaizal Esses cuidados satildeo necessaacuterios natildeo soacute para

71 Satildeo os peacutes pequenos de accedilaiacute necessitam de sol para crescer motivo pelo qual as palmeiras mais velhas satildeo derrubadas para que eles possam pegar sol e se desenvolver

158

o aumento da produccedilatildeo pois quanto mais jovem for a palmeira mais ela produz como

tambeacutem para a sobrevivecircncia da populaccedilatildeo ribeirinha na ilha

A gente tem que cuidar do accedilaizal limpar fazer o manejo todos os anos natildeo deixar ningueacutem derrubar pra tirar palmito nem pra fazer roccedila que deixa a mata nua onde se faz roccedila natildeo nasce peacute de accedilaiacute acho que eacute porque a gente queima a terra aiacute mata o que o accedilaizeiro precisa pra nascer (ANTOcircNIO)

A roccedila deixa a mata ldquonuardquo sem nenhum tipo de vegetaccedilatildeo nativa de modo que

a terra fica improdutiva infeacutertil por alguns anos daiacute a preocupaccedilatildeo com o meio

ambiente os cuidados para que a mata continue feacutertil Afinal a permanecircncia da

populaccedilatildeo na ilha depende da preservaccedilatildeo da natureza O palmito eacute retirado somente

das aacutervores que satildeo derrubadas

Os instrumentos utilizados para apanhar o accedilaiacute satildeo a peconha o facatildeo o

paneiro e a debulhadeira A peconha pode ser feita de saca de farroupilha ou com as

folhas da proacutepria palmeira que eacute enrolada e amarrada em forma de um circulo A

medida depende do tamanho do peacute do apanhador e da grossura do accedilaizeiro sua

funccedilatildeo eacute ajudar a subir e descer dar estabilidade e seguranccedila apoiar os peacutes para

evitar que se deslize rapidamente O apanhador de accedilaiacute coloca a peconha nos peacutes e

com o corpo daacute impulso para subir paulatinamente na palmeira Eacute preciso ter forccedila

nas pernas e nos peacutes para poder sair do lugar trabalho que exige aleacutem de equiliacutebrio

atenccedilatildeo e agilidade Eacute o que nos diz Tiago ldquoapanho uns 16 paneiros de accedilaiacute por dia

com quatro paneiros a gente tem uma saca Pra subir no accedilaizeiro coloco a peconha

nos peacutes o facatildeo na cintura preso no short e na cueca e dou um impulso para subir de

uma soacute vez pra natildeo perder o equiliacutebrio tem ser ligeirordquo

Fotografia 38 ndash Instrumentos utilizados para a colheita de accedilaiacute

Na imagem o facatildeo a peconha e a debulhadeira os instrumentos que os ribeirinhos utilizam para apanhar accedilaiacuteFonte Edielso M M de Almeida 2016

159

Na fotografia acima temos a debulhadeira que consiste em uma saca de

serapilheira na qual eacute debulhado72 o accedilaiacute para evitar que caia no chatildeo Dentro dela

temos alguns caroccedilos de accedilaiacute uma peconha tambeacutem feita de serapilheira e o facatildeo

Para debulhar eacute preciso todo um saber para natildeo desperdiccedilar os caroccedilos

primeiro tem que escolher o lugar pra estender a debulhadeira que natildeo pode ficar totalmente estendida no chatildeo tem que ser num lugar firme porque agente faz forccedila pra tirar o accedilaiacute do cacho depois colocar o cacho no meio dela pros caroccedilos natildeo caiacuterem no chatildeo tem que ter equiliacutebrio e ser raacutepido porque satildeo muitos cachos pra debulhar(MARIA)

Fotografia 39 ndash Menina debulhando o cacho de accedilaiacute

Na imagem menina debulhando o cacho de accedilaiacute Observe que a debulhadeira natildeo estaacute totalmente estendida no chatildeo e se encontra numa aacuterea de terra firme O cacho estaacute no lado do quala menina tem mais agilidade com as matildeos Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Acompanhei de perto durante vaacuterios dias o trabalho da coleta do accedilaiacute na

beira dos rios e na mata Percebi que haacute sintonia dos movimentos das matildeos com

o restante do corpo no ato de apanhar e debulhar o fruto Nesse sentido Freire

(2005 p 70) afirma que

O corpo humano eacute um corpo consciente porque eacute dotado de capacidades e habilidades que auxiliam o ser humano no trabalho e o corpo sente e aprende as dinacircmicas desse trabalho educando-se no modo de interagirem com a natureza por isso estaacute errado separar o que chama de trabalho manual do que se chama trabalho intelectual

72 Tirar os caroccedilos do accedilaiacute do cacho

160

A coleta do accedilaiacute eacute planejada desde o local a escolha das accedilaizeiras o

tamanho das peconhas entre outros portanto natildeo eacute um ato mecacircnico ao

contrario haacute um processo de accedilatildeo-reflexatildeo-accedilatildeo na execuccedilatildeo desta atividade

produtiva

Apoacutes a colheita parte do produto eacute vendido em Macapaacute o que garante a

compra de alimentos e utensiacutelios domeacutesticos como fogatildeo botijatildeo de gaacutes panelas

televisatildeo geladeira e ferramentas para o trabalho facatildeo sacas de serapilheira

rabeta catraios machados etc Na ilha muitas casas jaacute estatildeo com o motor de luz

movido a oacuteleo diesel Todas essas mercadorias satildeo compradas com a renda

obtida do accedilaiacute

A outra parte eacute consumida pelos ribeirinhos Para o consumo o accedilaiacute passa

por todo um processo Inicialmente eacute colocado de molho na aacutegua morna para

amolecer a polpa em seguida eacute batido na amassadeira eleacutetrica nas casas onde

haacute motor de luz na manual ou amassado nas matildeos onde natildeo haacute a tecnologia

Encontrei alguns ribeirinhos que socam o accedilaiacute em um paneiro para retirar a tinta

antes de batecirc-lo para o consumo ldquosoco o accedilaiacute pra tirar a tinta porque ela faz mal

pro estocircmago daacute gases e cheiurardquo(JOSEacute)

Fotografia 40 ndash Amassadeira eleacutetrica

Na imagem a amassadeira eleacutetrica foi limpa apoacutes o uso Em cima as bacias usadas para aparar o liacutequido Os caroccedilos satildeo colocados na batedeira com a maacutequina ligada em seguida eacute depositada aacutegua que dependendo da quantidade produziraacute o vinho73 grosso ou fino O batedor tem que ser aacutegil para

73 O vinho eacute o suco retirado da polpa do accedilaiacute

161

natildeo estragar os caroccedilos dentro da batedeira Quando grosso coloca-se pouca aacutegua ficando uma papa Caso queria fino adiciona-se bastante aacutegua Na safra do produto toma-se o grosso Na entressafra o fino para servir a toda famiacuteliaFonte Edielso M M de Almeida 2016

Fotografia 41 ndash Amassadeira manual

Na imagem a amassadeira manual encontrei-a somente na casa do morador Benedito o curandeiro Os caroccedilos satildeo colocados na batedeira e amassados com a forccedila humana por meio da manivela paulatinamente eacute colocada a aacutegua para diluir a poupa que se transforma em vinho Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Fotografia 42 ndash Ribeirinha amassando o accedilaiacute com as matildeos

Para amassar o accedilaiacute com as matildeos primeiro ele eacute colocado para amolecer na aacutegua morna em seguida eacute colocado em uma bacia sem aacutegua posteriormente os caroccedilos satildeo amassados com as matildeos para retirada da polpa Eacute um processo que demanda forccedila sincronia das matildeos e agilidade Apoacutes a retirada da polpa coloca-se aacutegua para lavar os caroccedilos assim vai se fazendo o vinho Para separar o vinho dos

162

caroccedilos eacute usada a peneira que eacute feita de tala de buritiFonte Edielso M M de Almeida 2016

Durante a pesquisa observei que na Ilha satildeo poucas as pessoas que ainda

amassam com as matildeos o accedilaiacute Quem natildeo tem amassadeira usa a do vizinho mais

proacuteximo como contribuiccedilatildeo deixauma porccedilatildeo de accedilaiacute batido ou em caroccedilos Neste

processo participam homens e mulheres jovens adultos e idosos As crianccedilas

tambeacutem satildeo envolvidas direta e indiretamente seja como espectadoras ou em

trabalhos de preparaccedilatildeo do beneficiamento colocam aacutegua para ferver lavam as

bacias e a amassadeira antes e apoacutes o uso carregam os baldes com aacutegua pra diluir

o accedilaiacute e jogam fora os caroccedilos apoacutes a retirada da polpa

Agrave vista de toda essa diversidade de saberes que satildeo produzidos pelos povos

das aacuteguas na Amazocircnia na relaccedilatildeo que estabelecem com a natureza (aacutegua terra e

mata) e com seus semelhantes haacute a necessidade de validaacute-los pela instituiccedilatildeo

escolar bem como reconhecer a sua incompletude como condiccedilatildeo para o diaacutelogo

com outros saberes ldquoO confronto e o diaacutelogo entre os saberes eacute um confronto e

diaacutelogo entre diferentes processos atraveacutes dos quais praacuteticas diferentemente

ignorantes se transformam em praacuteticas diferentemente saacutebiasrdquo (SANTOS 2005 p

25)

Neste estudo fizemos uma hermenecircutica diatoacutepica por meio do levantamento

dostopoi (saber popular) da cultura ribeirinha O que preconiza a hermenecircutica

diatoacutepica satildeo as maneiras de interpretaccedilatildeo e de diaacutelogos entre culturas diversas que

tem como paracircmetro a consciecircncia de sua incompletudee desta forma possibilita a

evoluccedilatildeo e a construccedilatildeo segundo Santos (2005 p 56) de ldquoformas hiacutebridas de

dignidade humana mais rica e mais amplamente partilhadardquo

Na proacutexima seccedilatildeo apresentamos como ocorre o diaacutelogo entre os saberes da

cultura ribeirinha e os saberes escolares na praacutetica pedagoacutegica dos professores que

atuam na educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do ensino fundamental em escolas situadas

nas comunidades ribeirinhas que formam a ilha do Accedilaiacute

163

42 O DIAacuteLOGO ENTRE O CONHECIMENTO ESCOLAR E O SABER POPULAR

Nesta seccedilatildeo analisamos como acontece o diaacutelogo entre os saberes oriundos

das comunidades ribeirinhas com o conhecimento escolar na praacutetica pedagoacutegica dos

professores nas cinco escolas que compotildeem o regional Madeira situadas na ilha do

Accedilaiacute Estabelecemos diaacutelogos a partir das categorias diaacutelogo saber popular praacuteticas

colonizadoras e praacuteticas descolonizadoras e o referencial teoacuterico deste estudo

Iniciamos a discussatildeo com a concepccedilatildeo de conhecimento escolar e o livro

didaacutetico como elemento norteador do conhecimento nas escolas ribeirinhas e em

seguida dialogamos com os elementos que fazem parte da praacutetica pedagoacutegica do

educador dentre os quais o planejamento das aulas e a metodologia de ensino e

aprendizagem

421 O Conhecimento Escolar

Segundo Santos (1995 p 30) o conhecimento escolar eacute ldquoum tipo de

conhecimento produzido pelo sistema escolar e pelo contexto social e econocircmico mais

amplo produccedilatildeo essa que se daacute em meio a relaccedilotildees de poder estabelecidas no

aparelho escolar e entre esse aparelho e a sociedaderdquo Portanto o conhecimento

escolar estaacute imbricado por questotildees ideoloacutegicas e poliacuteticas sendo assim a definiccedilatildeo

do que deve ser ensinado na escola natildeo eacute somente uma questatildeo educacional e sim

poliacutetica

A decisatildeo de se definir o conhecimento de alguns grupos como digno de ser transmitido agraves geraccedilotildees futuras enquanto a histoacuteria e a cultura de outros grupos mal vecircem a luz do dia revela algo extremamente importante acerca de quem deteacutem o poder na sociedade (APPLE 2006 p 42)

Quem deteacutem o poder na sociedade capitalista privilegia e legiacutetima

conhecimentos que socialmente satildeo reconhecidos bem como ignora e estigmatiza os

que natildeo o satildeo dentre eles os saberes populares Assim hierarquiza os

conhecimentos que podem ser transmitidos pelo sistema escolar Na visatildeo de Moreira

e Candau (2008 p 25) ldquoNessahierarquia silenciam-se as vozes de muitos indiviacuteduos

e grupos sociais classificam-se seus saberes como indignos de entrarem na sala de

aula e de serem ensinados e aprendidosrdquo Essa maneira de agir estaacute alicerccedilada

segundo Santos (2007) na razatildeo indolente que guia o pensar a nossa visatildeo da vida

e do mundo bem como a produccedilatildeo da ciecircncia baseada no paradigma eurocecircntrico

Desta maneira o conhecimento oriundo de uma base cientiacutefico-cultural eacute

organizado de acordo com as disciplinas que compotildeem as etapas da educaccedilatildeo baacutesica

164

para fazerem parte do curriacuteculo escolar que deveratildeo ser transmitidos por meio da

utilizaccedilatildeo de meacutetodos e teacutecnicas para a realizaccedilatildeo da praacutetica docente constituindo-

se numa visatildeo racionalista de conhecimento que nega a complexidade do ato de

ensinar e de aprender ao mesmo tempo impotildee o conhecimento cientiacutefico como a

uacutenica maneira de compreender o mundo

Para Santos (2007) a ciecircncia natildeo eacute a uacutenica forma de interpretar o

mundoexistem outros saberes que historicamente foram negados e que precisam ser

reconhecidos Essa ausecircncia eacute gerada pela monocultura do saber e do rigorque

considera ignorante o que natildeo eacute cientiacutefico Desta maneira ossaberes populares natildeo

satildeo reconhecidos como conhecimentos porque natildeo tecircm o rigor do cientiacutefico o que

caracteriza uma visatildeo colonialista ou seja eacute no plano epistemoloacutegico que o

colonialismo assume maior centralidade Desse modo ldquoo que natildeo existe eacute produzido

como natildeo existente invisiacutevel agraverealidade hegemocircnica do mundordquo (p 78)

Consequentemente o conhecimento escolar tem como base o que Santos

(2010 p 71) chama de cacircnone literaacuterio74

Entende-se por cacircnone literaacuterio na cultura ocidental um conjunto de obras literaacuterias que num determinado momento histoacuterico os intelectuais e as instituiccedilotildees dominantes ou hegemocircnicos consideram ser os mais representativos e os de maior valor e autoridade numa dada cultura oficial

Somente o conjunto de obras e autores reconhecidos como hegemocircnicos pela

classe dominante satildeo declaradamente valorizados e reconhecidos como dignos de

serem ensinados nas escolas desde a educaccedilatildeo infantil ensino fundamental meacutedio

e educaccedilatildeo superior ldquo[] o processo de intensificaccedilatildeo que estas obras sofrem dota-

as do capital cultural necessaacuterio para que possam finalmente patentear a

exemplaridade o caraacuteter uacutenico e a inimitabilidade que as distinguerdquo (SANTOS 2010

p 72)

O cacircnone literaacuterio impotildee uma identidade elitista e nega os saberes e as

identidades locais Para dar visibilidade aos diversos conhecimentos e epistemologias

invisiacuteveis o citado autor propotildee a ldquoSociologia das Ausecircnciasrdquo Esta aleacutem do desafio

de conceber um conhecimento como princiacutepio de solidariedade compreende que todo

conhecimento eacute um percurso que vai de um ponto de ignoracircncia a um ponto de saber

no qual o outro eacute sempre sujeito e natildeo objeto Nesse sentido ldquoconhecer eacute reconhecer

74 O cacircnone literaacuterio consiste em um conjunto de obras que abrange as diversas aacutereas do conhecimento e por fazerem parte da cultura ocidental eurocecircntrica satildeo reconhecidos como universais

165

eacute progredir no sentido de elevar o outro da condiccedilatildeo de objeto agrave condiccedilatildeo de sujeito

Esse conhecimento-reconhecimento eacute o que designo por solidariedaderdquo (SANTOS

2011 p 30)

Quando o processo eacute inverso satildeo solidificadas as desigualdades e

consequentemente as diferenccedilas que assinalam a estrutura social baseada em um

modelo econocircmico capitalista Esta colonialidade do saber estruturada num

conhecimento eurocecircntrico e monoliacutetico parte do princiacutepio de que a razatildeo a verdade

e a ciecircncia satildeo atributos da classe hegemocircnica enquanto os outros no caso os

ribeirinhos satildeo classificados como objetos como saber popular leigo e ignorante

Como afirma Quijano (2008) a colonialidade do saber eacute uma das dimensotildees da

colonialidade do poder e visa a subalternizaccedilatildeo e invisibilizaccedilatildeo da multiplicidade de

saberes com seus processos proacuteprios de subjetivaccedilatildeo e seus modos singulares de

pensar a sauacutede a economia a natureza e outros aspectos da realidade social

A colonialidade do saber materializada no saber escolar direciona os curriacuteculos

disciplinas e a organizaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo na escola Desse modo a cultura

erudita e etnocecircntrica instituiacuteda nos conteuacutedos escolares socialmente reconhecidos eacute

sobreposta aos conteuacutedos advindos da cultura popular que eacute marginalizada e ausente

no interior da instituiccedilatildeo escolar Os movimentos de resistecircncia certificam que a

descolonizaccedilatildeo requer propostas baseadas na transdisciplinaridade e na

transculturalidade (CASTRO-GOMEacuteZ 2007) bem como ldquoposturas posicionamientos

horizontes y proyectos de resistir transgredir intervenir in-surgir crear e incidirrdquo

(WALSH 2013 p 3) na colonialidade no contexto da escola Para Dussel (2005)

existem transiccedilotildees e alternativas possiacuteveis construiacutedas com base no diaacutelogo de

saberes Enquanto natildeo obtemos tal ldquoutopia pluriversardquo (p 18) fazem-se necessaacuterios

diaacutelogos que vislumbrem trocas e negociaccedilotildees capazes de beneficiar visotildees e

entendimentos distintos do mundo

4211 O conhecimento escolar na oacutetica dos professores

O conhecimento escolar denominado pelos professores ribeirinhos como

conteuacutedos compotildee a matriz curricular da educaccedilatildeo baacutesica (educaccedilatildeo infantil ensino

fundamental e meacutedio) e satildeo organizados por ano distribuiacutedos nos quatro bimestres

De acordo com a fala dos entrevistados esses conteuacutedos jaacute vecircm estabelecidos pela

Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo esatildeo entregues no iniacutecio das aulas e devem ser

trabalhados com os alunos

166

Por conseguinte os saberes socialmente reconhecidos e legitimados pelo

sistema municipal de educaccedilatildeo de Afuaacute acabam por negar os saberes oriundos da

cultura ribeirinha As vozes dos ribeirinhos satildeo silenciadas e seus saberes natildeo satildeo

dignos de entrarem na sala de aula o que caracteriza uma colonialidade do saber

Acho que quem escolhe os conteuacutedos satildeo os teacutecnicos da SEMED agente aqui apenas trabalha eles com os alunos quer dizer o que daacute tempo de trabalhar ateacute porque satildeo muitos assuntos e pouco tempo entatildeo seleciono o que considero mais importante (Prof 1) A seleccedilatildeo de conteuacutedos vem da SEMED jaacute vem distribuiacuteda por bimestre natildeo sei quem elabora Tem assuntos que satildeo totalmente fora da realidade da gente Eu vou introduzindo os conteuacutedos conforme as necessidades porque tem alguns assuntos que satildeo muitos avanccedilados para eles (Prof2) Noacutes recebemos a lista de conteuacutedos das matildeos da diretora do regional Algumas coisas que na minha maneira de ver natildeo satildeo importantes aiacute a gente tira Para mim seria mais interessante se os conteuacutedos fossem baseados na realidade deles pois as pessoas que selecionam esses conteuacutedos natildeo conhecem a realidade dos alunos ribeirinhos (Prof3) No iniacutecio de cada ano letivo vou ateacute a SEMED procuro os teacutecnicos do setor pedagoacutegico e solicito a lista de conteuacutedos de todas as seacuteries e anos por disciplinas para repassar aos nossos professores do regional (Diretora)

Os professores foram unacircnimes em afirmar que natildeo participam da seleccedilatildeo dos

conteuacutedos e nem sabem quem os elabora apenas os recebem das matildeos da diretora

do Regional que tambeacutem recebe das matildeos dos teacutecnicos da SEMED Os

conhecimentos escolares denominado pelo sistema educacional como conteuacutedos jaacute

vecircm prontos listados por ano e divididos nos bimestres para serem ensinados

independentemente do contexto no qual a escola estaacute inserida Isto colabora para a

exclusatildeo dos alunos que natildeo se adaptam ao processo de transmissatildeo de

conhecimento sem sentido e significado para eles

Fotografia 43 ndash Lista de conteuacutedos da disciplina Ciecircncias

SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCACcedilAtildeO

LISTA DE CONTEUacuteDOS PARA O 4ordm ANO DO

ENSINO FUNDAMENTAL

DISCIPLINA CIEcircNCIAS

1ordm BIMESTRE

1 Planeta Terra e Ambiente

11 A atmosfera terrestre

12 A aacutegua no planeta

13 O solo tipos de solo

22 Os seres vivos dos ecossistemas

2ordm BIMETRE

1 O corpo humano

11 Sustentaccedilatildeo e movimento

12 As partes do corpo humano

13 Os microrganismos

167

Fonte Escola Poacutelo do Regional Madeira 2016

A fotografia acima retrata a lista dos conteuacutedos jaacute divididos por bimestre da

disciplina Ciecircncias para o 4ordm ano do ensino fundamental como afirmam os

professores ela eacute encaminhada pela SEMED para ser desenvolvida em todas as

escolas pertencentes ao sistema municipal de ensino A imagem abaixo mostra o

registro de fragmentos do conteuacutedo desenvolvido nas aulas transcrito no caderno de

um aluno do 4ordm ano do ensino fundamental

Fotografia 44 ndash Fragmentos do conteuacutedo sobre ldquoecossistemardquo no caderno de

aluno

Fonte Anotaccedilotildees de aula do caderno de aluno 2016

O conteuacutedo foi transcrito para o caderno sem fazer a relaccedilatildeo com o

ecossistema da ilha do Accedilaiacute75 Nesse sentido no curriacuteculo oficial natildeo haacute espaccedilo para

o saber popular oriundo das comunidades ribeirinhas Essa forma de exclusatildeo dos

saberes locais eacute o que Mignolo (2000) denomina de Geopoliacutetica do conhecimento que

se refere agraves relaccedilotildees entre espaccedilo e poder que geram as hierarquias entre os

diferentes sistemas de conhecimento quando relacionamos espaccedilo poder e saber

75 O professor copiou o conteuacutedo no quadroque foi posteriormente transcrito para o caderno pelos alunos Natildeo houve uma discussatildeo referente ao ecossistema presente nas comunidades ribeirinhas que fazem parte do cotidiano dos alunos

Ecossistemas O conjunto de seres vivos e de elementos natildeo vivos que se relacionam no ambiente chamamos de Ecossistemas Os ecossistemas podem ser naturais ou artificiais Florestas campos desertos mares e rios satildeo exemplos de ecossistemas naturais porque se formam espontaneamente na natureza Accediludes aquaacuterios jardins campos cultivados satildeo alguns exemplos de ecossistemas artificiais porque satildeo criados pelo ser humano No ecossistema de um jardim por exemplo vivem seres que dependem uns dos outros as minhocas dependem do solo as plantas dependem da aacutegua e da luz as formigas dependem das plantas e as aranhas dependem das formigas para se alimentar O conjunto de todos os ecossistemas do planeta Terra eacute chamado de biosfera Portanto a biosfera compreende o meio aquaacutetico e o meio terrestre

168

Assim os ribeirinhos falam da regiatildeo Norte Amazocircnia (espaccedilo) onde ainda predomina

no imaginaacuterio da populaccedilatildeo de outras regiotildees do Brasil e de outros paiacuteses (poder) que

aqui somos inferiores atrasados e ignorantes Eacute a configuraccedilatildeo do que afirma Castro-

Goacutemez (2006) ser uma reconhecida supremacia eacutetnica e cognitiva do colonizador em

relaccedilatildeo ao colonizado

O curriacuteculo nunca eacute apenas um conjunto neutro de conhecimentos [] Ele eacute sempre parte de uma tradiccedilatildeo seletiva resultado da seleccedilatildeo de algueacutem da visatildeo de algum grupo acerca do que seja conhecimento legiacutetimo Eacute produto de tensotildees conflitos e concessotildees culturais poliacuteticas e econocircmicas que organizam e desorganizam um povo (APPLE 1994 p 59)

Neste sentido a cultura hegemocircnica eacute imposta por meio dos valores haacutebitos e

costumes o que contribui para a baixa autoestima dos alunos que natildeo veem os seus

saberes contemplados no curriacuteculo desenvolvido pela escola Nessa loacutegica Moreira e

Candau (2008) admitem que as situaccedilotildees de opressatildeo e discriminaccedilatildeo tambeacutem satildeo

materializadas no curriacuteculo cotidianamente mas tambeacutem essas situaccedilotildees podem ser

contestadas desveladas e visibilizadas pelo educador e educando

As praacuteticas pedagoacutegicas baseadas na pedagogia bancaacuteria contribuem para

reproduzir preconceitos e discriminaccedilotildees em relaccedilatildeo aos sujeitos do campo

especificamente da Amazocircnia ribeirinha taxados como preguiccedilosos e ignorantes O

estigma de preguiccediloso fruto de uma visatildeo etnocecircntrica e colonizadora no entanto eacute

desconstruiacutedo quando passamos a olhar o outro a partir de sua cultura no caso da

ilha do Accedilaiacute o inverno periacuteodo das chuvas eacute a eacutepoca da colheita e venda do accedilaiacute e

o veratildeo eacutepoca de sobreviver a partir da renda gerada pela comercializaccedilatildeo do

produto Desta forma a vida dos ribeirinhos na Ilha estaacute ligada aos ciclos da

natureza

O resto do tempo eacute ocupado com atividades que geralmente estatildeo pouco articuladas com o mercado limpeza de algum igarapeacute preparaccedilatildeo de festas de santos etc garantindo parte de auto-suficiecircncia em termos modestos Daiacute alguns estereoacutetipos que comumente lhes atribuem preguiccedila inadaptaccedilatildeo para o trabalho falta de aspiraccedilatildeo pessoal (LOUREIRO 2001 p 39)

No que concerne aos conteuacutedos escolares encontramos na

pesquisaprofessores que questionam os arranjos sociais em que essas situaccedilotildees se

sustentam Dentre os mecanismos de luta estaacute o fortalecimento das identidades dos

sujeitos amazocircnidas a partir do reconhecimento dos seus saberes como dignos de

dialogar com os saberes escolares e compor a ldquolistardquo de conteuacutedos a serem

trabalhados no ano letivo

169

Na hora de definir os conteuacutedos que irei trabalhar no bimestre pego a lista da SEMED e vejo o que daacute pra trabalhar e mesclo com os saberes da comunidade (peccedilo para o professor dar exemplo de como ele faz isso) Tem o assunto O Rio na disciplina Geografia ai eu acrescento os rios lagos igarapeacutes e furos aqui da Ilha (Prof10) Pego a lista da SEMED e vejo os conteuacutedos que realmente satildeo mais importantes pros meus alunos acho importante que eles saibam os assuntos necessaacuterios pra sobreviver bem aqui na Ilha ou em outro lugar Entatildeo acrescento outros conteuacutedos relacionados a geografia do lugar a histoacuteria da comunidade e de sua famiacutelia a religiatildeo predominante na comunidade em Ensino Religioso os animais e os alimentos da regiatildeo em Ciecircncias e assim por diante (Prof2) Quem elabora essa tal lista de conteuacutedos com certeza nunca trabalhou numa escola ribeirinha e natildeo conhece a realidade daqui Os meus alunos precisam aprender a Matemaacutetica mas a Matemaacutetica pra usar na vida o Portuguecircs as Ciecircncias a Geografia e a Histoacuteria tambeacutem E esses assuntos natildeo estatildeo nos livros Entatildeo na hora de elaborar essa lista de conteuacutedos eu natildeo entendo porque natildeo nos chamam Por isso que na hora de definir que conteuacutedos trabalhar eu priorizo os da vida (Prof4)

A preocupaccedilatildeo dos professores estaacute voltada para a aprendizagem de

conteuacutedos que sejam significativos para os alunos A lista de conteuacutedos da SEMED eacute

enriquecida com os saberes populares dos alunos e da comunidade pois eles

retratam a realidade local Na fotografia a seguir uma atividade que requer a

mobilizaccedilatildeo do saber local

Fotografia 45 ndashFragmentos do conteuacutedo sobre ldquoos animaisrdquo no caderno de

aluno

Fonte Anotaccedilotildees de aula do caderno de aluno 2016

O reconhecimento de que o saber popular juntamente com os conteuacutedos da

lista encaminhada as escolas pela SEMED satildeo elementos essenciaisque precisam

fazer parte do curriacuteculo tornando-se o cerne do trabalho docente ldquosua aprendizagem

constitui condiccedilatildeo indispensaacutevel para que os conhecimentos socialmente produzidos

possam ser apreendidos criticados e reconstruiacutedos por todosas osas estudantesrdquo

Atividade

1 Preencha a tabela com os nomes dos

animais encontrados aqui na ilha e seus

respectivos haacutebitos alimentares Animal Carniacutevoro Herbiacutevoro Oniacutevoro

Paca X

Tatu X

Jacareacute X

Capiva

ra

X

Porco X

170

(MOREIRA CANDAU 2008 p 21) Desta maneira os professores procuram

selecionar o conhecimento escolar levando em consideraccedilatildeo alguns criteacuterios dentre

os quais

Importacircncia para o cotidiano dos alunos entatildeo procuro favorecer a leitura quando aprendem a ler ajudam seus pais nas atividades diaacuterias que requer esse conhecimento Como a maioria dos pais natildeo satildeo alfabetizados as crianccedilas jaacute alfabetizadas eacute quem escrevem as cartas bilhetes registram as contas feitas na mercearia e outras atividades que requerem a leitura e a escrita O domiacutenio das quatro operaccedilotildees (adiccedilatildeo subtraccedilatildeo multiplicaccedilatildeo e divisatildeo) para dar troco e natildeo deixar se enganar ou enganarem seus pais na hora de vender a saca ou paneiro de accedilaiacute entre outros (Prof6) Eu seleciono aqueles que eu acho mais importantes por exemplo o substantivo eacute importante o aluno conhecer o aluno tem que saber como conjugar um verbo quando ele se dirigir a uma pessoa o aluno tem que conhecer alguns pronomes Eu acho isso muito importante aleacutem de trabalhar textos para eles saberem interpretar (Prof9) Uso como criteacuterio na hora de selecionar os assuntos o que acho mais significativo pra eles aprenderem assim dou prioridade a Liacutengua Portuguesa e Matemaacutetica Faccedilo a relaccedilatildeo dos conteuacutedos com a realidade deles trabalho as quatro operaccedilotildees fundamentais assim como as unidades de medida como o quilograma o metro e outros para usar nas atividades da venda do camaratildeo peixe e accedilaiacute e nas compras na cidade (Prof2)

Os conteuacutedos satildeo selecionados segundo a relevacircncia para as atividades

sociais e produtivas De acordo com Libacircneo (2004) os conhecimentos satildeo relevantes

para a vida concreta quando ampliam o conhecimento da realidade instrumentalizam

os alunos a pensar metodicamente a raciocinar a desenvolver a capacidade de

abstraccedilatildeo enfim a pensar a proacutepria praacutetica Isso implica a incorporaccedilatildeo das

experiecircncias e vivecircncias dos educandos a partir de situaccedilotildees concretas contrapondo-

se a uma visatildeo idealizada e valores distanciados do cotidiano Para Freire (2003 p

31) eacute essencial conhecer a realidade para transformaacute-la

Eacute importante fazer ver que a reflexatildeo natildeo eacute suficiente para o processo de libertaccedilatildeo Necessitamos da praacutexis ou em outras palavras necessitamos transformar a realidade em que nos encontramos Mas para transformar a realidade para desenvolver minha accedilatildeo sobre a realidade transformando-a eacute necessaacuterio conhecer a realidade Por isso em minha praacutexis eacute necessaacuterio que haja constante unidade entre minha accedilatildeo e minha reflexatildeo (grifo nosso)

Corroborando com esse ponto de vista Moreira e Candau (2008 p 21)

destacam que relevacircncia estaacute na importacircncia ldquoem tornar as pessoas capazes de

compreender o papel que devem ter na mudanccedila de seus contextos imediatos e da

sociedade em geral bem como ajudaacute-las a adquirir os conhecimentos e as habilidades

necessaacuterias para que isso aconteccedilardquo Os conhecimentos escolares servem como

171

suporte para pensar a proacutepria praacutetica a partir do questionamento sobre a realidade na

qual estamos inseridos mas para isso faz-se necessaacuterio que sejam relevantes Nesse

sentido o domiacutenio da leitura e da escrita assim como das operaccedilotildees fundamentais

na Matemaacutetica satildeo habilidades essenciais para a mudanccedila de postura frente aos

comerciantes e atravessadores que barganham o fruto da produccedilatildeo do trabalho

ribeirinho

Os professores tambeacutem questionam a natildeo participaccedilatildeo na definiccedilatildeo dos

conhecimentos a serem trabalhados nas diversas disciplinas que compotildeem o curriacuteculo

da educaccedilatildeo baacutesica das escolas ribeirinhas Hage (2004) acredita que aleacutem dos

professores os estudantes pais e membros da comunidade tambeacutem devem fazer

parte desta escolha pois eles tecircm muito a dizer e ensinar ldquosobre os conhecimentos

que devem ser selecionados para a educaccedilatildeoescolarizaccedilatildeo dos seres humanos os

quais contribuiratildeo significativamente para a produccedilatildeo da identidade individual e

coletiva dos sujeitos (p 4)

Para que o conhecimento escolar seja relevante e significativo torna-se

necessaacuterio o envolvimento dos sujeitos que fazem parte da comunidade escolar na

sua definiccedilatildeo Nas escolas que compotildeem o Regional Madeira esses conhecimentos

jaacute satildeo preestabelecidos de forma homogecircnea pelos especialistas que natildeo conhecem

e talvez nunca tenham estado em uma escola ribeirinha Na pesquisa encontramos

professores que seguem literalmente o que eacute estabelecido deixando claro a

colonialidade do saber pois soacute reconhecem como vaacutelido o conhecimento escolar Mas

tambeacutem encontramos outros que procuram romper com esta colonialidade e incluem

conteuacutedos que tenham relevacircncia e significado para os educandos em uma

perspectiva dialoacutegica assim ldquoos saberes da experiecircncia cotidiana no diaacutelogo com os

conhecimentos selecionados pela escola propiciaratildeo o avanccedilo na construccedilatildeo e

apropriaccedilatildeo do conhecimento por parte dos educandos e dos educadoresrdquo (HAGE

2004 p 4)

A seguir analisamos a partir das falas dos professores um dos instrumentos

mais utilizados para a transmissatildeo do conhecimento escolar nas classes

multisseriadas o livro didaacutetico presente em todas as escolas investigadas

422O Livro Didaacutetico

Geacuterard e Roegiers (2000 p19) definem o livro didaacutetico como ldquoum instrumento

impresso intencionalmente estruturado para se inscrever num processo de

aprendizagem com o fim de lhe melhorar a eficaacuteciardquo A intencionalidade eacute expliacutecita

172

ele carrega uma concepccedilatildeo de ensino e aprendizagem de conhecimento assim como

visotildees de mundo e valores Como nos diz Lopes (2007 p 208) ldquoeacute uma versatildeo

didatizada do conhecimento para fins escolares eou com o propoacutesito de formaccedilatildeo de

valoresrdquo

Conforme depoimento dos professores ribeirinhos o livro eacute um dos materiais

didaacuteticos mais utilizados para o ensino e aprendizagem dos alunos ldquouso todos os dias

o livro didaacutetico ateacute porque eacute o uacutenico recurso que tenho disponiacutevel aqui na escola e

cada aluno tem o seu ele serve tambeacutem para planejar as aulasrdquo (Prof5) Desta

maneira o livro serve como orientador do trabalho docente nas classes

multisseriadas Este instrumento pedagoacutegico possibilita a compreensatildeo do conteuacutedo

por conter mapas ilustraccedilotildees graacuteficos e outros recursos visuais de acordo com os

docentes

Portanto diante da escassez de recursos didaacuteticos tais como mapas globos

jogos pedagoacutegicos e outros assim como de cartolina cola tesoura papel laacutepis de

cor e demais recursos necessaacuterios para a mediaccedilatildeo da aprendizagem o professor

acaba preso ao livro como uacutenico recurso disponiacutevel para trabalhar com todos os seus

alunos

Aqui no interior natildeo temos material didaacutetico entatildeo soacute nos resta o livro que os alunos recebem no iniacutecio do ano Agraves vezes queremos fazer uma aula diferente mas natildeo temos material pra isso falta cartolina cola e ateacute tesoura para trabalhos praacuteticos (Prof 5) O uacutenico mapa que agente encontra eacute o que estaacute no livro didaacutetico Jaacute pedi tanto pra diretora trazer um mapa do Brasil laacute da SEMED mas ainda natildeo fui ouvido Jaacute fizemos alguns jogos com cartolina laacutepis de cor pincel cola e tesoura que comprei em Macapaacute Como o nosso salaacuterio mal daacute pra comer entatildeo natildeo tem como comprar direto estes materiais (Prof 8)

Quanto ao uso o livro didaacutetico tem sido utilizado de diferentes formas Segundo

as observaccedilotildees feitas na sala de aula para a maioria dos professores o livro eacute a

buacutessola que norteia a sua praacutetica em todas as atividades desde as de sala de aula

ateacute os deveres de casa Presenciei situaccedilotildees didaacuteticas nas quais os alunos foram

organizados por ano para fazer a leitura oral na mesa do professor e quando natildeo

conseguiam ler a palavra76 do texto em estudo retornavam agraves suas cadeiras para

treinar a pronuacutencia correta Era o dia da leitura durante um dia na semana o professor

escolhia um texto do livro didaacutetico e os alunos faziam a leitura individual O livro

tambeacutem direciona o curriacuteculo

76 Geralmente eram palavras que natildeo faziam parte do universo vocabular dos educandos ribeirinhos

173

Os assuntos estatildeo todos no livro entatildeo eacute soacute pedir para que os alunos abram nas paacuteginas que iremos estudar de acordo com cada disciplina Por exemplo na segunda-feira temos aula de Liacutengua Portuguesa Ciecircncias e Histoacuteria entatildeo eacute soacute abrir a paacutegina dos livros que constam os conteuacutedos dessas disciplinas O dever de casa tambeacutem eacute no livro (Prof 3) Para os alunos do preacute-escolar uso direto a cartilha e tambeacutem com os da 1ordf seacuterie que ainda natildeo leem Isso ajuda muito a gente que precisa de tempo para dar atenccedilatildeo para as outras seacuteries Enquanto os do preacute-escolar estatildeo ocupados com atividade da cartilha aproveito para tirar duacutevidas das outras seacuteries (Prof7)

A fala do prof 7 descreve as estrateacutegias que utiliza para conseguir ministrar

aula para trecircs seacuteries ao mesmo tempo e no mesmo espaccedilo para que isso ocorra o

livro didaacutetico eacute peccedila fundamental O uso da cartilha guia o processo de alfabetizaccedilatildeo

atraveacutes da resoluccedilatildeo das atividades propostas com o objetivo do ensino da leitura e

da escrita de forma mecacircnica e linear Os conteuacutedos satildeo provenientes do livro e aos

alunos cabe a reproduccedilatildeo da leitura de siacutelabas palavras frases e textos sem

significado e vazios dos saberes oriundos de sua cultura Desta maneira o curriacuteculo

eacute direcionado pelo livro didaacutetico por meio das atividades propostas orienta-se a

praacutetica do professor

Romanatto (2007) ratifica essa posiccedilatildeo quando afirma que o livro didaacutetico assim

utilizado substitui o professor em vez de ser elemento de apoio ao seu trabalho Assim

os conteuacutedos e meacutetodos utilizados satildeo os mesmo do livro ldquoum livro que promete tudo

pronto tudo detalhado bastando mandar o aluno abrir a paacutegina e fazer exerciacutecios eacute

uma atraccedilatildeo irresistiacutevelrdquo (p 67) principalmente quando se trabalha com vaacuterias seacuteries

na mesma sala e somente quatro horas de aula para ministrar os conteuacutedos Para

Santos e Carneiro (2006 p 206) o livro didaacutetico tem trecircs principais finalidades na

escola

[] de informaccedilatildeo de estruturaccedilatildeo e organizaccedilatildeo da aprendizagem e finalmente a funccedilatildeo de guia do aluno no processo de apreensatildeo do mundo exterior Deste modo a uacuteltima funccedilatildeo depende de o livro permitir que aconteccedila uma interaccedilatildeo da experiecircncia do aluno e atividades que instiguem o estudante desenvolver seu proacuteprio conhecimento ou ao contraacuterio induzi-lo aacute repeticcedilotildees ou imitaccedilotildees do real Entretanto o professor deve estar preparado para fazer uma anaacutelise criacutetica e julgar os meacuteritos do livro que utiliza ou pretende utilizar assim como para introduzir as devidas correccedilotildees eou adaptaccedilotildees que achar conveniente e necessaacuterias

O reconhecimento da importacircncia do livro didaacutetico para a sistematizaccedilatildeo das

aulas e por ser um dos recursos a que todos os estudantes tecircm acesso poderia ser

um instrumento para a construccedilatildeo de um ambiente de sala de aula que represente o

ensino como um processo de elaboraccedilatildeo coletiva e cooperativa entre educador e

174

educandos Mas para isso faz-se necessaacuterio reconhecer que ele natildeo eacute suficiente

precisa de outras fontes de informaccedilatildeo que possam contribuir na aprendizagem dos

conteuacutedos dentre elas os saberes populares

Acreditamos que o livro didaacutetico possa possibilitar ao professor mediar a

construccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico pelo aluno para que este se aproprie dessa

linguagem e desenvolva valores eacuteticos mediante os avanccedilos da ciecircncia

contextualizada e socialmente relevante mas sem negar os seus valores e saberes

Santos (2000) propotildee que esses saberes dialoguem entre si de uma maneira em que

natildeo haja hierarquias entre eles

O livro didaacutetico tambeacutem veicula uma realidade diferente das que vive os alunos

na Ilha pois eacute produzido em outras regiotildees do paiacutes

As cartilhas trazem nome de frutas e animais que as crianccedilas natildeo conhecem e eacute a partir das letras iniciais dessas palavras que inicia o processo da leitura e escrita Sei que as crianccedilas devem conhecer que existem outros tipos de frutas e animais mas acho que se iniciarmos a alfabetizaccedilatildeo com o que elas jaacute conhecem o caminho natildeo seria tatildeo suado para aprender (Prof 3) O livro eacute muito importante para o nosso trabalho e aprendizagem dos alunos mesmo porque eacute o uacutenico material impresso para a leitura que temos mas natildeo aborda os nossos problemas ateacute que tento fazer a ponte entre o conteuacutedo que ele traz e a realidade que vivemos aqui na Ilha mas nem sempre eacute possiacutevel (Prof 8)

Os professores frisam a relevacircncia de abordar conteuacutedos significativos e

contextualizados de acordo com a realidade dos estudantes para que possam

relacionaacute-los com o seu dia-a-dia o que os conteuacutedos do livro didaacutetico nem sempre

permitem por serem globais natildeo contextualizam os saberes e as problemaacuteticas

regionais bem como as locais

Fotografia 46 ndash Conteuacutedo referente ao tem ldquomoradiardquo abordado no livro didaacutetico

da disciplina Artes para o 1ordm 2ordm e 3ordm ano do ensino fundamental

175

Fonte Livro didaacutetico da disciplina Artes 2016

Na imagem acima o conteuacutedo ldquomoradiardquo aborda a realidade da aacuterea urbana da

cidade de Paragominas no Estado do Paraacute bem como de uma cidade situada em

outro paiacutes a Alemanha Ambas as imagens retratam moradias em apartamentos o

que difere da realidade habitacional dos ribeirinhos As criacuteticas ao livro didaacutetico vatildeo

aleacutem das questotildees relacionadas agrave realidade ribeirinha pois abordam tambeacutem uma

avaliaccedilatildeo dos conteuacutedos que natildeo proporcionam uma abordagem mais aprofundada

do assunto

Como o assunto no livro didaacutetico vem resumido natildeo apresenta uma abordagem aprofundada eu pesquiso nos livros que tenho para eu aprender e depois ensinar aos alunos e desta maneira procuro orientar meus alunos para aprender mais sobre determinado conteuacutedo os exerciacutecios que ele traz tambeacutem contribuem para a verificaccedilatildeo da aprendizagem (Prof 4) Uma das maiores dificuldades para noacutes professores do interior estaacute na aquisiccedilatildeo de livros para pesquisar os assuntos O livro que os alunos recebem vem com o assunto resumido demais e aiacute como eacute que a gente vai ensinar um assunto que natildeo entendemos e que natildeo tem onde pesquisar Por isso que alguns colegas acabam dando o livro para os alunos e pedem para transcrever o assunto do livro paro o caderno e depois fazer os exerciacutecios (Prof2) Admito que o livro didaacutetico eacute muito importante pra noacutes que lecionamos aqui ele contribui para o processo de ensino Eacute a forma mais faacutecil de ter acesso aos conteuacutedos Por outro lado alguns colegas ficam presos a ele o que acaba prejudicando no aprendizado do aluno pois muitos apresentam conteuacutedos fragmentados Agraves vezes natildeo trazem questionamentos que instiguem o aluno a raciocinar sobre o que estaacute sendo discutido (Prof 6)

Aleacutem do livro didaacutetico os professores procuram na medida do possiacutevel

pesquisar em outras fontes para entender primeiro o conteuacutedo e posteriormente

ensinaacute-los aos alunos Segundo Lajolo (2001) se faz necessaacuterio que o professor

MUITAS PESSOAS VIVEM EM PREacuteDIOS SAtildeO CONSTRUCcedilOtildeES COM MUITAS HABITACcedilOtildeES CHAMADAS APARTAMENTOS PREacuteDIO 1 (Imagem) OBSERVE BEM ESTE PREacuteDIO PREacuteDIO 2 (imagem) VOCEcirc JAacute HAVIA VISTO UMA CONSTRUCcedilAtildeO COMO ESTAacute PARECE DE MENTIRINHA NAtildeO Eacute MESMO MAS NAtildeO Eacute ESSE PREacuteDIO Eacute DE VERDADE E FOI CONSTRUIacuteDO NA ALEMANHA TEM 105 APARTAMENTOS UM DIFERENTE DO OUTROSEU IDEALIZADOR Eacute O ARTISTAHUNDERTWASSER ELE NASCEU EM 1928 NA AUSTRIA E SEMPRE SE PREOCUPOU COM O

176

utilize outros recursos pedagoacutegicos para o desenvolvimento de suas aulas ldquopois

nenhum livro por melhor que seja deve ser utilizado sem adaptaccedilotildees e

complementaccedilotildeesrdquo(p 8) O problema estaacute nas condiccedilotildees de trabalho docente as

escolas da Ilha do Accedilaiacute natildeo possuem bibliotecas entatildeo os uacutenicos materiais de

pesquisa satildeo os livros que os professores compram e o que os alunos possuem no

caso os entregues no iniacutecio das aulas de cada ano letivo Na maioria das escolas o

livro didaacutetico torna-se a uacutenica referecircncia para o trabalho do professor e direciona a

seleccedilatildeo planejamento e desenvolvimento dos conteuacutedos em sala de aula

O livro nas classes multisseriadas eacute o siacutembolo que caracteriza a seriaccedilatildeo para

cada ano um livro especiacutefico com conhecimentos sistematizados e reconhecidos

como verdades absolutas que servem para escamotear a realidade atendendo aos

interesses econocircmicos sociais e culturais dominantes na sociedade Ao professor

cabe romper com as viseiras que escondem os reais interesses poliacuteticos e ideoloacutegicos

veiculados nos textos e imagens impressos nesses livros Os professores utilizam

diversas estrateacutegias para rompecirc-las de acordo com os depoimentos abaixo

Uso o livro mais como fonte de informaccedilatildeo e para dar outra visatildeo sobre o conteuacutedo que estamos estudando Procuro explorar o maacuteximo que posso as situaccedilotildees e os problemas do dia a dia da comunidade relacionados com o conteuacutedo (Prof 2) Procuro explorar os textos e as imagens de forma criacutetica os alunos precisam aprender a lecirc-las e interpretaacute-las soacute assim seratildeo capazes de fazer a relaccedilatildeo do mundo em que vivem com os outros mundos (Prof 4) Eu pego o assunto do livro faccedilo uma seleccedilatildeo do que eacute mais importante de acordo com a realidade da localidade que a gente vive da vida que levamos acredito que o professor necessita ter essa leitura criacutetica de mundo (Prof 6) Os livros natildeo trazem textos que falam da mata do rio das coisas da Amazocircnia dos problemas que fazem parte da nossa vida entatildeo o livro didaacutetico serve como um instrumento para o exerciacutecio da leitura e reflexatildeo em relaccedilatildeo agraves outras realidades diferente da que vivemos (Prof 8)

Mesmo para os professores ribeirinhos com uma visatildeo mais criacutetica da

educaccedilatildeo o livro didaacutetico continua sendo um instrumento indispensaacutevel para a praacutetica

pedagoacutegica mas eles tecircm a consciecircncia de que os conteuacutedos das disciplinas que

compotildeem o curriacuteculo escolareacute um veiacuteculo de inculcaccedilatildeo dos valores ideoloacutegicos e

culturais hegemocircnicos portanto torna-se poliacutetico na medida em que produz valores

da sociedade em relaccedilatildeo agrave sua visatildeo de ciecircncia da histoacuteria da interpretaccedilatildeo dos fatos

e do proacuteprio processo de transmissatildeo do conhecimento Ainda que contribua para a

177

mediaccedilatildeo dos conteuacutedos ele natildeo se limita somente aos da dimensatildeo pedagoacutegica e

as suas possiacuteveis influecircncias na aprendizagem e no desempenho dos educandos

Dentre os livros mais utilizados na praacutetica docente estatildeo os de Alfabetizaccedilatildeo

Liacutengua Portuguesa e Matemaacutetica

Uso mais o de alfabetizaccedilatildeo e no segundo semestre o de Matemaacutetica e de Liacutengua Portuguesa que eacute utilizado para fazer leitura Os alunos escolhem neste livro uma leitura para fazer todos os dias (Prof5) Soacute trabalho com o livro de Matemaacutetica natildeo utilizo os outros porque os assuntos satildeo resumidos demais entatildeo uso os livros que trago sempre comigo para aonde vou (Prof9) Os livros didaacuteticos que mais uso satildeo os de Liacutengua Portuguesa e Matemaacutetica Satildeo os mais necessaacuterios noacutes precisamos mais de Portuguecircs e da Matemaacutetica Para mim as duas disciplinas mais importantes para eles satildeo estas as outras eu trabalho menos (Prof 3)

O domiacutenio da leitura e da escrita eacute o objetivo da alfabetizaccedilatildeo tanto na

educaccedilatildeo infantil como no 1ordm ano por isso a cartilha eacute um recurso fundamental para

a praacutetica docente A prioridade concedida agrave Liacutengua Portuguesa e agrave Matemaacutetica em

detrimento das outras disciplinas estaacute relacionada agrave questatildeo do poder que essas

mateacuterias exercem dentro do curriacuteculo Como afirmam Moreira e Candau (2008 p 25)

[] nessa hierarquia se supervalorizam as chamadas disciplinas cientiacuteficas secundarizando-se os saberes referentes agraves artes e ao corpo Nessa hierarquia separa-se a razatildeo da emoccedilatildeo a teoria da praacutetica o conhecimento da cultura

O professor parte do princiacutepio de que o domiacutenio da leitura da escrita e das

quatro operaccedilotildees fundamentais (adiccedilatildeo subtraccedilatildeo multiplicaccedilatildeo divisatildeo) eacute a base

para a aprendizagem dos conhecimentos de Histoacuteria Geografia Artes e outras

disciplinas Tal visatildeo estaacute balizada em uma concepccedilatildeo bancaacuteria de educaccedilatildeo que natildeo

reconhece os saberes que emergem das praacuteticas sociais dos educandos natildeo os

concebe como produtores desses saberes e sim como meros reprodutores dos

conhecimentos oriundos do livro didaacutetico assim para reproduzi-los eacute preciso saber

ler para transcrevecirc-los

Os professores tambeacutem satildeo excluiacutedos da escolha do livro didaacutetico adotado no

ano letivo esta competecircncia fica a cargo dos teacutecnicos em educaccedilatildeo lotados na

Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo que decidem qual a melhor cartilha para alfabetizar

e os melhores livros para educar os ribeirinhos As criacuteticas soam como um protesto

contra a exclusatildeo e a alienaccedilatildeo de que satildeo viacutetimas enquanto uma elite intelectual

decide eles executam o que foi decidido

178

Trabalho haacute mais de 15 anos como professora em escolas ribeirinhas e nunca fui chamada para escolher o livro que gostaria de trabalhar com os meus alunos Nunca ningueacutem perguntou minha opiniatildeo sobre os livros que vecircm para a escola Apenas mandam e a gente obedece (Prof2) Noacutes recebemos os livro das matildeos da diretora do Regional natildeo sei quem eacute que escolhe Agente natildeo tem nenhuma participaccedilatildeo na escolha tanto que vecircm muitas coisas que satildeo mais para a zona urbana que rural praticamente da zona rural natildeo tem nada (Prof4)

Aleacutem de natildeo escolherem o livro de acordo com a sua concepccedilatildeo de ensino e

de aprendizagem ainda precisam utilizar os que foram selecionados pois satildeo os

uacutenicos recursos disponiacuteveis para atender agrave diversidade de seacuteries em uma turma

multisseriada

O Programa Nacional do Livro Didaacutetico (PNLD) apresenta dentre os seus

objetivos a participaccedilatildeo ativa e democraacutetica do professor no processo de seleccedilatildeo e

escolha dos livros didaacuteticos portanto eacute funccedilatildeo do professor garantido pelo PNLD

em escolher o livro que gostaria de trabalhar com seus alunos de acordo com a sua

concepccedilatildeo de educaccedilatildeo O uso pedagoacutegico deste recurso requer um planejamento

para que possa estabelecer o diaacutelogo entre os conhecimentos disponibilizados pelos

livros didaacuteticos e osconhecimentos trazidos pelos estudantes pois eacute na interaccedilatildeo

entre o saber que se traz do mundo e o saber trazido pelos livros que o conhecimento

avanccedila (LAJOLO 2001) A seguir discutimos o planejamento realizado pelos

docentes das escolas da ilha do Accedilai

423O Planejamento das Aulas

Entendemos como plano de aula a organizaccedilatildeo das accedilotildees didaacuteticas por meio

das atividades que norteiam a praacutetica diaacuteria do professor em interaccedilatildeo com os alunos

nos diversos espaccedilos de aprendizagem seja a sala de aula ou outros ambientes de

acordo com os objetivos propostos para a aula Segundo Libacircneo (2004 p 221) ldquoo

planejamento escolar eacute uma tarefa docente que inclui tanto a previsatildeo das atividades

didaacuteticas em termos de organizaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo em face dos objetivos propostos

quanto a sua revisatildeo e adequaccedilatildeo no decorrer do processo de ensinordquoPor intermeacutedio

do planejamento o professor define o que ensinar como ensinar e tambeacutem o avaliar

assim racionaliza organiza e projeta a articulaccedilatildeo entre a escola e o contexto no qual

ela estaacute inserida

Nesse sentido planejar vai aleacutem do pedagoacutegico tornando-se um ato poliacutetico

ldquonatildeo haacute educaccedilatildeo neutra toda neutralidade afirmada eacute uma opccedilatildeo escondidardquo

(FREIRE 1980 p 49) O professor ao planejar faz opccedilotildees de educar para a

179

conscientizaccedilatildeo e mudanccedila ou para a manutenccedilatildeo das relaccedilotildees de dominaccedilatildeo

poliacutetica econocircmica e cultural que caracterizam a sociedade capitalista Nesse prisma

o planejamento pode ser utilizado como uma ferramenta capaz de interferir no real

para transformaacute-lo para isso tem como atribuiccedilatildeo dar rumo agrave accedilatildeo docente de

maneira consciente e organizada com vistas a proporcionar as devidas mudanccedilas

O planejamento sem duacutevida pode colocar-se como um instrumento teoacuterico-metodoloacutegico para a intervenccedilatildeo na realidade Todavia mais do que instrumento ou ferramenta queremos apontar para a possibilidade de entendermos e vivenciarmos o planejamento como meacutetodo de trabalho do educador qual seja como postura (algo reelaborado interiorizado pelo sujeito) como forma de organizar a reflexatildeo e a accedilatildeo como estrateacutegia global de posicionamento diante da realidade (VASCONCELOS 2006 p 75)

Para o autor o planejamento eacute um ato poliacutetico e pedagoacutegico por ser intencional

porque descreve o que se deseja realizar e atingir por meio dos objetivos que se

corporificam nas accedilotildees planejadas para intervir na realidade Os elementos do

planejamento segundo o autor trazem em seu bojo a opccedilatildeo poliacutetica do educador

amparada em uma concepccedilatildeo pedagoacutegica de transmissatildeo ou problematizaccedilatildeo do

conhecimento a partir da realidade na qual a escola estaacute imersa e dos valores sociais

eacuteticos e culturais dos professores alunos e pais

Para isso as aulas devem ser planejadas de acordo com a realidade

sociocultural e conhecimento dos educandos bem como o plano precisa ter clareza e

objetividade conhecimento dos recursos disponiacuteveis para professores e alunos

conexatildeo entre a teoria e a praacutetica flexibilidade frente a situaccedilotildees imprevistas

realizaccedilatildeo de pesquisas buscando diferentes fontes bibliograacuteficas e utilizaccedilatildeo de

metodologias que proporcionem a participaccedilatildeo ativa dos educandos no processo de

ensino e aprendizagem (VASCONCELOS 2006 LIBANEO2004)

A seguir apresentamos as maneiras como os professores do Regional Madeira

elaboram o planejamento Classificamos em duas categorias a partir da perspectiva

colonizadora e a partir da perspectiva descolonizadora

4231 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma perspectiva

colonizadora

A perspectiva colonizadora caracteriza-se pela imposiccedilatildeo do conhecimento

escolar no ato de planejar e a negaccedilatildeo do saber popular configurando a colonialidade

do saber pois eacute no vieacutes epistemoloacutegico que o colonialismo assume maior

centralidade com uma perspectiva redutora do conhecimento impossibilitando o

surgimento de outras perspectivas epistemoloacutegicas

180

O que prevalece eacute o conhecimento escolar baseado na razatildeo indolente

considerada uacutenica e hegemocircnica silenciando excluindo e tornando ausente as outras

formas de saber como as dos povos da Amazocircnia dentre eles os ribeirinhos Dessa

maneiraacabam colonizando o pensamento por meio de uma uacutenica loacutegica a

eurocecircntrica Isso foi produzido historicamente segundo Mignolo (2003) no processo

de formaccedilatildeo do sistema colonialmoderno que gerou esta geopoliacutetica do

conhecimento na qual as teorias dominantes satildeo as produzidas nos paiacuteses

hegemocircnicos e impostas como universais aos paiacuteses colonizados

epistemologicamente

Dentre os professores sujeitos desta pesquisa enfatizamos as falas dos que

consideramos estarem incluiacutedos numa visatildeo colonizadora do saber Lembrando que

os professores trabalham no acircmbito de uma estrutura de dominaccedilatildeo portanto suas

praacuteticas natildeo satildeo totalmente descolonizadoras muitas carregam em si reflexos da

estrutura de dominaccedilatildeo o que se reflete nas praacuteticas colonizadoras No periacuteodo em

que foi realizada a pesquisa de campo identificamos praacuteticas pedagoacutegicas

colonizadoras e tambeacutem as descolonizadoras desenvolvidas por um mesmo

professor Mas procuramos destacar nesta seccedilatildeo as que consideramos

colonizadoras Em relaccedilatildeo a elaboraccedilatildeo do planejamento

Trabalho com o preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano entatildeo elaboro um plano pra cada ano pego a lista de conteuacutedos que jaacute vem dividido os assuntos por bimestre e planejo como vou trabalhaacute-los O preacute-escolar eu tambeacutem trabalho a alfabetizaccedilatildeo entatildeo eacute o mesmo plano do 1ordm ano (Prof 5) Planejo de acordo com os conteuacutedos do livro as atividades de avaliaccedilatildeo tambeacutem satildeo as do livro ateacute porque natildeo daacute tempo de fazer um planejamento para preacute-escolar 1ordm 2ordm 3ordm 4ordm e 5ordm ano Se eu for fazer um para cada ano passarei o dia todo planejando(Prof 9) Faccedilo um plano para cada ano Elaboro o horaacuterio das disciplinas que trabalho na semana por exemplo na segunda-feira trabalho Portuguecircs Ciecircncias Histoacuteria em todos os anos Aiacute elaboro o plano dessas disciplinas com os conteuacutedos que vecircm da SEMED (Prof 3) O meu plano estaacute de acordo com os conteuacutedos do livro didaacutetico por isso organizo a turma por ano e peccedilo para que leiam os textos relacionados ao assunto que vamos trabalhar no dia e que faccedilam as atividades que tambeacutem estatildeo no livro Temos pouco tempo para fazer outras tarefas pois trabalho com 3ordm 4ordm e 5ordm ano e precisamos cumprir o programa estipulado pela SEMED (Prof 1)

O planejamento eacute feito para cada ano separadamente os conteuacutedos satildeo os

oriundos da proposta elaborada pela Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo sem levar em

consideraccedilatildeo o contexto no qual a escola estaacute imersa O livro didaacutetico eacute o guia para o

181

planejamento dos professores Dentre os motivos para que isso ocorra estatildeo lecionar

para os vaacuterios anos do ensino fundamental no mesmo horaacuterio de aula o que

impossibilita o professor de elaborar um plano para cada ano o livro didaacutetico ser o

uacutenico recurso pedagoacutegico disponiacutevel para o processo de ensino e aprendizagem na

escola e o fato de todos os alunos terem acesso a este material

Pelas falas dos docentes o planejamento mesmo direcionado pelo livro

didaacutetico tem como base a divisatildeo da classe de acordo com o ano Desta maneira a

turma multisseriada eacute dividida em partes e cada uma dessas partes com atividades

especiacuteficas o que impossibilita a realizaccedilatildeo de trabalhos nos quais os alunos possam

interagir com colegas de outros anos

Nesse sentido para Hage (2004 p 35) ldquoa seriaccedilatildeo eacute considerada um

problema em face da rigidez com que trata o tempo escolar impondo a fragmentaccedilatildeo

em seacuteries anuais []rdquo Assim o conteuacutedo e os alunos satildeo divididos e fragmentadosde

acordo com os anos do ensino fundamental bem como o tempo linear cronoloacutegico

das quatro horasaula diaacuterias amarra o professor que precisa transmitir os respectivos

conteuacutedos em determinado momento para o preacute-escolar e em outros para o 1ordm 2ordm

3ordm 4ordm e 5ordm ano

No planejamento a imposiccedilatildeo do conhecimento escolar por meio da lista de

conteuacutedos emanada da SEMED e do livro didaacutetico caracteriza a colonialidade do

poder (o sistema municipal de ensino define o que deve ser ensinado aos alunos

ribeirinhos)e do saber (o natildeo reconhecimento do saber popular dos educandos e a

negaccedilatildeo das praacuteticas sociais que norteiam e datildeo sentido ao cotidiano das crianccedilas e

adolescentes ribeirinhos)

Esta geopoliacutetica do conhecimento que torna ausente o saber popular por ser

oriundo de uma regiatildeo perifeacuterica possibilita-nos identificar as estruturas de poder

(quem decide que conhecimento deve ser reconhecido como vaacutelido para fazer parte

do curriacuteculo escolar) e tambeacutem do saber (o conhecimento hegemocircnico considerado

oficial) Ambas visam perpetuar a colonizaccedilatildeo epistecircmica por meio da ausecircncia e

invisibilidade de todas as formas de saberes que natildeo atendam aos interesses

hegemocircnicos

A geopoliacutetica do conhecimento desta forma hierarquiza os saberes e fortalece

as diferenccedilas entre os sistemas de conhecimento ao privilegiar o espaccedilo onde ele eacute

produzido tornando-o universalmente legiacutetimo para todos os contextos Umas das

maneiras de se contrapor a essa visatildeo poderia ser por meio da problematizaccedilatildeo do

182

mapa epistecircmico vigente no mundo a partir dos espaccedilos privilegiados das fronteiras

dos fluxos e das direccedilotildees que o criaram bem como o naturalizaram Outros caminhos

tambeacutem passam pelo reconhecimento da diversidade epistemoloacutegica por meio da

valorizaccedilatildeo dos saberes alternativos Alguns passos jaacute estatildeo sendo dados nesta

direccedilatildeo na praacutetica do planejamento das aulas de alguns professores ribeirinhos do

regional Madeira que descrevemos a seguir

4232 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma perspectiva

descolonizadora77

As praacuteticas de planejamento que denominamos descolonizadora reconhecem

que nas comunidades ribeirinhas existem manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas

proacuteprias satildeo praacuteticas que procuram dar visibilidade a essas manifestaccedilotildees aleacutem do

reconhecimento valorizam os saberes locais e os incluem nas aulas por meio de

accedilotildees pedagoacutegicas planejadas

Essas praacuteticas podem ser concebidas como formas de descolonizaccedilatildeo

intelectual no sentido de mostrar que existem outros saberes oriundos do contexto

histoacuterico econocircmico social religioso e cultural no qual vivem os educandos saberes

fronteiriccedilos como afirma Mignolo (2003) e que constituem a gnose ou pensamento

liminar

Descolonizar natildeo significa de acordo com Walsh Schiwy e Castro-Goacutemez

(2002 p 14) se desfazer ldquodas ferramentas conceituais das ciecircncias nem tampouco

das hermenecircuticas criacuteticas da sociedade mas repensar sua utilidade ou seus efeitos

sobre as relaccedilotildees coloniais perguntando ateacute que ponto perpetuam

(involuntariamente talvez) a loacutegica vigenterdquo Nessa perspectiva Santos e Meneses

(2010 p 12) afirmam que descolonizar requer intervenccedilotildees epistemoloacutegicas que

denunciam a supressatildeo dos saberes levada a cabo ao longo dos uacuteltimos seacuteculos

pela norma epistemoloacutegica dominante e que valorizam os saberes que resistiram com

ecircxito [] agraves condiccedilotildees de um diaacutelogo horizontal entre conhecimentos A proposta de

um diaacutelogo horizontal foi evidenciado na fala de alguns professores em relaccedilatildeo ao

planejamento por meio da inclusatildeo nas aulas do saber popular dos educandos da

ilha do Accedilaiacute

No planejamento aleacutem dos conteuacutedos da SEMED procuro inclui o conhecimento aqui da comunidade Nas aulas de Artes incluo a arte da

77 Como afirmamos na seccedilatildeo anterior os professores atuam dentro de uma estrutura de dominaccedilatildeo Dentro dessas estruturas as praacuteticas colonizadoras satildeo mecanismo que visam agrave descolonizaccedilatildeo epistemoloacutegica

183

comunidade como a tecelagem o artesanato a marcenaria e as manifestaccedilotildees religiosas (Prof 2) No ato de planejar o que irei trabalhar durante a semana pego a lista dos conteuacutedos verifico o que daacute pra relacionar com a realidade dos alunos vejo os problemas que estamos vivenciando e de que maneira esses conteuacutedos podem nos ajudar a entendecirc-los Agraves vezes esses conteuacutedos natildeo servem aiacute o jeito eacute extrair dos proacuteprios alunos a partir dos seus saberes (Prof 6) Procuro adequar o planejamento agrave realidade dos alunos o foco eacute a aprendizagem e tambeacutem os conteuacutedos que eles precisam aprender para usar no dia a dia aqui na comunidade e quando forem vender accedilaiacute peixe e camaratildeo em Macapaacute (Prof 4)

O planejamento de acordo com a fala dos professores parte das necessidades

dos alunos do que eles precisam no cotidiano em termos de conhecimentos daiacute a

valorizaccedilatildeo tanto do conhecimento escolar quanto dos seus saberes locais Esses

alunos participam diretamente das atividades produtivas seja com os pais ou outros

membros da famiacutelia desde a coleta do accedilaiacute bem como na venda do produto em

Macapaacute Participam tambeacutem da pesca do peixe e camaratildeo e na caccedila de animais

silvestres ou seja estatildeo envolvidos diretamente na extraccedilatildeo e comercializaccedilatildeo dos

produtos da mata e dos rios A realidade dos educandos estaacute impregnada pelo

trabalho coletivo e o envolvimento nas atividades socioculturais o que para a

professora eacute fundamental fazer parte do planejamento ldquoo processo de ensino estaacute

sempre em movimento estaacute sempre sofrendo as modificaccedilotildees face agraves condiccedilotildees

reaisrdquo (LIBAcircNEO 2004 p 223) Por isso faz-se necessaacuterio que esteja relacionado

com o contexto social econocircmico e cultural dos sujeitos envolvidos

Ao incluir no planejamento o saber popular nas aulas de Artes o professor

reconhece esses saberes como parte do universo sociocultural dos educandos e sua

importacircncia para aprendizagem significativa e contextualizada Os alunos utilizam

constantemente os produtos oriundos da tecelagem (paneiro peneira malhadeira

matapi) e da marcenaria (casco remo) os quais participam das manifestaccedilotildees

artiacutesticas e religiosas Ao incluiacute-los no planejamento das aulas o professor cria

espaccedilos para que os alunos possam ensinaacute-los e aprendecirc-los por meio da troca de

experiecircncias entre si pois satildeo ldquosaberes socialmente construiacutedos na praacutetica

comunitaacuteria ndash mas tambeacutem [] discutir com os alunos a razatildeo de ser de alguns desses

saberes em relaccedilatildeo com o ensino dos conteuacutedosrdquo (FREIRE 2007 p 30) Ao discutir

com os alunos as questotildees sociais politicas culturais e econocircmicas nas quais esses

saberes juntamente com o conhecimento escolar estatildeo inseridos o educador estaacute

contribuindo para a leitura criacutetica do mundo

184

A fala do Prof 6 ldquovejo os problemas que estamos vivenciando e de que maneira

esses conteuacutedos podem nos ajudar a entendecirc-losrdquo retrata a importacircncia do

conhecimento no sentindo de intervir no mundo real ou seja na sua utilidade a que

nem sempre o conhecimento escolar consegue responder Daiacute o reconhecimento de

outras intervenccedilotildees no real possiacuteveis por outras formas de conhecimento e por uma

ldquonecessaacuteria reavaliaccedilatildeo das intervenccedilotildees e relaccedilotildees concretas na sociedade e na

natureza que os diferentes conhecimentos proporcionamrdquo (SANTOS 2010 p 60) Um

dos exemplos eacute o manejo do accedilaiacute realizado para preservar a espeacutecie assim como os

animais silvestres e a proibiccedilatildeo de fazer roccedila para evitar a derrubada de accedilaizeiros e

a queimada da mata nativa Esses satildeo saberes que preservam a biodiversidade da

floresta Amazocircnica e ao mesmo tempo garantem a sobrevivecircncia dos ribeirinhos na

Ilha do Accedilaiacute ldquoe natildeo deveraacute espantar-nos a riqueza dos conhecimentos que

conseguiram preservar modos de vida universos simboacutelicos e informaccedilotildees vitais para

a sobrevivecircncia em ambientes hostis com base exclusivamente na tradiccedilatildeo oralrdquo

(SANTOS 2010 p 58)

O planejamento como um dos elementos da praacutetica pedagoacutegica docente eacute o

instrumento pelo qual o professor seleciona os conhecimentos que os alunos teratildeo

acesso na escola que faratildeo parte de suas aulas Desta maneira ele define qual

conhecimento deve ser ensinado o que os alunos devem saber qual conhecimento

eacute considerado importante ou vaacutelido Nesse sentido o curriacuteculo eacute sempre resultado de

uma seleccedilatildeo de uma gama de conhecimentos e saberes seleciona-se aquela parte

que vai constituir precisamente o curriacuteculo (SILVA 2009)

Nessa seleccedilatildeoprivilegia-se determinados conteuacutedos e se excluem outros Na

praacutetica descolonizadora os professores ao selecionarem os conteuacutedos privilegiam

tambeacutem os oriundos da cultura ribeirinha os que fazem parte do contexto social

econocircmico cultural e religioso assim contribuem para fortalecer as identidades

desses sujeitos Ao agir desta maneira o professor rompe com a diferenccedila colonial e

faz emergir a gnose liminar ao criar espaccedilo na sua praacutetica pedagoacutegica para a razatildeo

subalterna dialogar com a hegemocircnica sem hierarquia

No planejamento tambeacutem se definem os objetivos e os procedimentos

metodoloacutegicos para alcanccedilaacute-los bem como os recursos humanos e materiais que

seratildeo necessaacuterios para um melhor ensino e aprendizagem A seguir abordamos o

desenvolvimento do plano elaborado pelos professores que se materializa nas

metodologias de ensino

185

424 Metodologias de Ensino e Aprendizagem

A metodologia consiste no estudo dos meacutetodos ou seja dos caminhos e accedilotildees

que seratildeo adotados para alcanccedilar os objetivos finalidades ou metas Na educaccedilatildeo

as metodologias abarcam os meacutetodos procedimentos e teacutecnicas de ensino

selecionados pelo professor com o objetivo de facilitar a aprendizagem dos alunos

Desta forma diante da multiplicidade de meacutetodos a escolha dependeraacute dos objetivos

que se pretende alcanccedilar levando em consideraccedilatildeo as especificidades socioculturais

dos educandos No meacutetodo tambeacutem estatildeo impliacutecitos concepccedilotildees de educaccedilatildeo

relacionadas com uma visatildeo ingecircnua ou criacutetica da sociedade assim podemos utilizar

determinado meacutetodo para a permanecircncia ou para a transformaccedilatildeo social

Nesta perspectiva os meacutetodos segundo Martins (2006) estatildeo imbricados por

concepccedilotildees pedagoacutegicas que balizam as praacuteticas docentes que poderatildeo estar

embasadas na reproduccedilatildeo do conhecimento no qual o professor eacute visto como o dono

da verdade o uacutenico detentor do saber que tem como missatildeo ensinar aos alunos o

conhecimento dogmaacutetico que de forma passiva assimila-os numa relaccedilatildeo professor

e aluno verticalizada A realidade social eacute idealizada como imutaacutevel e estaacutetica assim

a educaccedilatildeo tem como finalidade adequar o indiviacuteduo a esta sociedade sem questionaacute-

la

As concepccedilotildees pedagoacutegicas que balizam as praacuteticas docentes tambeacutem podem

estar embasadas em um meacutetodo dialoacutegico no qual o conhecimento eacute problematizado

a partir dos saberes dos alunos e relacionados com a sua realidade histoacuterica cultural

econocircmica e poliacutetica Desta maneira a educaccedilatildeo problematiza a sociedade e

desmistifica as relaccedilotildees de poder e dominaccedilatildeo

Nas accedilotildees didaacuteticas o meacutetodo se desenvolve por meio das teacutecnicas que satildeo

ldquoinstacircncias intermediaacuterias os componentes operacionais de cada proposta

metodoloacutegica os quais viabilizaratildeo a implementaccedilatildeo do meacutetodo em situaccedilotildees

concretasrdquo (MARTINS 2006 p 41) Destarte as teacutecnicas de ensino consistem no

desenvolvimento do meacutetodo nos diversos espaccedilos de aprendizagem Luckesi (2003

p 153) esclarece nitidamente a relaccedilatildeo entre meacutetodo e teacutecnicas

Por exemplo o meacutetodo expositivo que eacute o meio pelo qual levamos ao educando os conhecimentos jaacute elaborados pode ser executado atraveacutes de vaacuterias teacutecnicas exposiccedilatildeo oral pelo professor exposiccedilatildeo escrita atraveacutes de um texto demonstraccedilatildeo de como proceder agrave execuccedilatildeo de uma experiecircncia em laboratoacuterio apresentaccedilatildeo de um exemplo a ser imitado etc

186

Assim o desenvolvimento de um meacutetodo pode abarcar vaacuterias teacutecnicas Temos

que ter consciecircncia de que natildeo existe neutralidade no processo de escolha do meacutetodo

e das teacutecnicas de ensino pois os selecionamos de acordo com nossas concepccedilotildees

de ser humano e sociedade que por sua vez estatildeo relacionados aos interesses de

classe em razatildeo de que o meacutetodo estaacute ligado a concepccedilotildees epistemoloacutegicas

atreladas a visotildees de mundo Desta maneira a utilizaccedilatildeo de um meacutetodo e das teacutecnicas

para o seu desenvolvimento estaacute imbricada pela concepccedilatildeo de educaccedilatildeo de ensino

e de aprendizagem que norteia a nossa praacutetica docente Isso significa que podemos

usaacute-los para transmitir conteuacutedos ou para problematizar desafiar provocar reflexotildees

e anaacutelises sobre determinado assunto

4241 Professores que desenvolveram praacuteticas colonizadoras78

As praacuteticas metodoloacutegicas colonizadoras foram agrave concretizaccedilatildeo do

planejamento baseado nesta mesma perspectiva Assim as metodologias

desenvolvidas pelos professores consistiram em um conjunto padronizado de

procedimentos destinados a transmissatildeo do conhecimento escolar Eacute o que Freire

(2014 p 79) denomina de pedagogia bancaacuteria baseada na

[] narraccedilatildeo de conteuacutedos que por isto mesmo tendem a petrificar-se ou a fazer-se algo quase morto sejam valores ou dimensotildees concretas da realidade Narraccedilatildeo ou dissertaccedilatildeo que implica um sujeito ndash o narrador ndash e objetos pacientes ouvintes ndash os educandos

O autoritarismo de quem deteacutem o conhecimento define o que os educandos

devem fazer e responder eles natildeo satildeo instigados a pensar porque as respostas jaacute

estatildeo preacute-determinadas o professor eacute o narrador do conhecimento escolar natildeo eacute

permitido realizar criacuteticas assim como natildeo se deve questionar e nem duvidar do que

eacute narrado A educaccedilatildeo nesse prisma ldquoeacute puro treino eacute pura transferecircncia de conteuacutedo

eacute quase adestramento eacute puro exerciacutecio de adaptaccedilatildeo ao mundordquo (FREIRE 2014 p

81)

Por meio das entrevistas e observaccedilotildees da praacutetica docente destacamos as

praacuteticas metodoloacutegicas que consideramos colonizadoras Estas praacuteticas estatildeo

intimamente relacionadas com a organizaccedilatildeo do espaccedilo da sala de aula que tem no

quadro (branco ou verde) a sua referecircncia conforme fotografia a baixo

Fotografia 47 ndash Sala de aula multisseriada

78 Como afirmamos nas praacuteticas colonizadoras de planejamento encontramos no trabalho do mesmo professor praacuteticas metodoloacutegicas colonizadoras e tambeacutem descolonizadoras Nesta seccedilatildeo destacamos as praacuteticas que prevaleceram na accedilatildeo pedagoacutegica docente no decorrer da pesquisa de campo

187

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Na fotografia acima temos uma sala de aula multisseriada com alunos do 4ordm e

5ordm ano do ensino fundamental sendo que os trecircs alunos do 5ordm ano estatildeo sentados do

lado direito do quadro no qual constam as atividades copiadas pela professora Os

quatro alunos do 4ordm ano estatildeo sentados agrave esquerda do quadro com suas atividades

correspondentes Observe que o quadro estaacute dividido ao meio com os conteuacutedos

especiacuteficos O motivo desta organizaccedilatildeo de acordo com os professores eacute para

facilitar a coacutepia dos conteuacutedos e das atividades transcritas no quadro A organizaccedilatildeo

da classe eacute feita de acordo com o ano em que se encontram os alunos

Organizo a turma por ano coloco os alunos do preacute-escolar na frente porque satildeo menores entatildeo eles natildeo empatam a visatildeo do quadro para os do 1ordm ano que sentam atraacutes pois satildeo crianccedilas maiores os do 2ordm ano sentam do outro lado do quadro (Prof 5) Aqui na sala tem dois quadros entatildeo eu divido a turma de acordo com os quadros O maior quadro eu reparto ao meio aiacute fica um lado para o 1ordm 2ordm e outro para o 3ordm ano e o quadro menor eu divido tambeacutem ao meio sendo uma parte para o 4ordm e a outra para o 5ordm ano (Prof 9)

O paradigma da seriaccedilatildeo portanto eacute a base da organizaccedilatildeo dos alunos e o

quadro corresponde ao espaccedilo que eles ocuparatildeo na sala de aula Em termos

metodoloacutegicos o que prevalece eacute o meacutetodo expositivo por meio da teacutecnica da

exposiccedilatildeo oral dos conteuacutedos Nesse processo os alunos satildeo meros espectadores

receptores do conhecimento de acordo com as disciplinas que compotildeem a matriz

curricular Os passos das aulas satildeo o professor copia o assunto no quadro apoacutes

188

todos os alunos copiarem o conteuacutedo ele apaga o quadro para copiar os exerciacutecios

para verificaccedilatildeo da aprendizagem Apoacutes os alunos terem copiado o conteuacutedo e o

exerciacutecio o professor explica o conteuacutedo e como o exerciacutecio deveraacute ser realizado

Como moro na escola vou para a sala de aula antes dos alunos chegarem aproveito para dividir o quadro de acordo com os anos e copio logo os conteuacutedos da aula para cada ano Isso agiliza o trabalho e quando os alunos chegam na escola eles jaacute tem atividade pra fazer eacute soacute sentar na fila de seu ano e copiar(Prof 3) Copio os conteuacutedos no quadro passo o exerciacutecio quando eles terminam de copiar explico o assunto e tiro duacutevidas sobre as questotildees do exerciacutecio Os que terminam logo o trabalho peccedilo pra ajudar os que estatildeo com dificuldades trabalho com o preacute-escolar e os cinco anos do ensino fundamental Os melhores alunos me ajudam com os outros (Prof 9)

A organizaccedilatildeo do espaccedilo da sala de aula inviabiliza o diaacutelogo pois o professor

monopoliza a palavra natildeo abrindo espaccedilo para que os alunos possam ter o direito de

exercecirc-lo Nesse sentido para Freire (2014 p 81) natildeo eacute possiacutevel o diaacutelogo ldquoentre os

que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste

direito Eacute preciso primeiro que os que assim se encontram negados no direito

primordial de dizer a palavra reconquistem esse direito proibindo que este assalto

desumanizante continuerdquo

Pela aula expositiva eacute imposto o saber hegemocircnico como verdade absoluta e

a uacutenica maneira de compreender e explicar o mundo Natildeo haacute o diaacutelogo entre os

saberes porque natildeo interessa para o professor os saberes que os alunos trazem do

seu meio sociocultural o que importa satildeo os conteuacutedos transmitidos

mecanicamentedivididos em disciplinas especiacuteficas para cada campo do

conhecimento e esses por sua vez satildeo subdivididos nos cinco anos do ensino

fundamental assim fica evidente a colonialidade do saber Esta forma de organizaccedilatildeo

eacute exclusivamente temporal pois fica estabelecido que determinados conteuacutedos

devam ser aprendidos indistintamente por todos os alunos em um tempo

predeterminado Hage (2004 p 3) ao fazer uma anaacutelise do modelo de organizaccedilatildeo

multisseriada afirma que

[] se pauta por uma loacutegica lsquotransmissivarsquo que organiza todos os tempos e espaccedilos dos professores e dos alunos em torno dos ldquoconteuacutedosrdquo a serem transmitidos e aprendidos transformando os conteuacutedos no eixo vertebrador da organizaccedilatildeo dos graus seacuteries disciplinas grades avaliaccedilotildees recuperaccedilotildees aprovaccedilotildees ou reprovaccedilotildees (grifo do autor)

A organizaccedilatildeo dos alunos por ano impossibilita a interaccedilatildeo com os colegas dos

outros anos apesar de ser uma turma multisseriada na praacutetica satildeo trecircs quatro ou

189

cinco turmas dividindo o mesmo espaccedilo O conteuacutedo eacute o eixo vertebrador como nos

diz o autor dessa divisatildeo e transmitido de forma alienada descontextualizada das

atividades produtivas sociais e culturais dos educandos Dessa maneira o mundo

que eacute um arco-iacuteris policromaacutetico (SANTOS 2007) repleto de uma diversidade

cognitiva eacute reduzido agrave epistemologia hegemocircnica sustentada pela razatildeo indolente A

negaccedilatildeo da complexidade da accedilatildeo educativa e da aprendizagem caracteriza esta

visatildeo racionalista de educaccedilatildeo na qual o uacutenico conhecimento vaacutelido eacute o que passa

pelos rigores do meacutetodo cientiacutefico e atende aos interesses dominantes

Aleacutem do quadro outro recurso bastante utilizado para ministrar as aulas eacute o

livro didaacutetico

Uso o livro todos os dias como leciono pro 3ordm 4ordm e 5ordm ano e soacute tem um quadro na sala peccedilo para os alunos do 5ordm ano irem lendo e copiando o assunto que estaacute no livro enquanto copio o conteuacutedo no quadro para o 3ordm e 4ordm ano com o livro didaacutetico consigo desenvolver o planejamento que faccedilo para trabalhar os conteuacutedos diariamente (Prof 5) Todos os alunos tecircm o livro eu natildeo deixo eles levarem pra casa soacute levam quando passo dever de casa porque eles podem esquecer de trazer pra aula e aiacute complica Vai ficar difiacutecil trabalhar sem o livro entatildeo fica aqui mesmo na sala de aula (Prof 1) Quando todos entram na sala cada um senta na fila do seu ano em seguida faccedilo a chamada e peccedilo para pegarem o livro da mateacuteria que vamos estudar no dia de acordo com o planejamento No dia da leitura eles escolhem um texto do livro fazem a coacutepia no caderno depois os chamo ateacute a minha mesa para fazerem a leitura oral do texto escolhido (Prof 7)

Pela fala dos professores as metodologias satildeo direcionadas de acordo com o

livro didaacutetico As aulas satildeo desenvolvidas seguindo os seus passos primeiro o aluno

faz a leitura do assunto posteriormente copia-o no caderno juntamente com o

exerciacutecio para em seguida resolvecirc-lo O receio de que os alunos esqueccedilam o livro

em casa faz com que ele fique guardado na escola o que denota a dependecircncia da

praacutetica pedagoacutegica docente em relaccedilatildeo a esta ferramenta

Esses procedimentos denotam uma metodologia colonizadora na qual o

conhecimento escolar por meio do livro didaacutetico eacute inculcado nas mentes dos alunos

e dessa formaconstroacuteem subjetividades identidades imaginaacuterios sociais

sentimentos atitudes visotildees de mundo e maneiras de intervir em cada contexto A

imposiccedilatildeo de somente uma maneira de ler e explicar o mundo a cientiacutefica eacute uma

forma de colonizaccedilatildeo das mentes que menospreza outras racionalidades e razotildees

que natildeo seja a dominante

190

Nessa perspectiva os alunos satildeo meros receptoresconsumidores do

conhecimento oficial difundido como universal Diante disso o espaccedilo fiacutesico (a ilha do

Accedilaiacute) eacute descontextualizado em nome da suposta universalidade contida no processo

de produccedilatildeo de conhecimentos Daiacute a importacircncia em entender que o espaccedilo

geograacutefico em que atuamos como educadores natildeo eacute somente um espaccedilo fiacutesico e sim

poliacutetico tambeacutem

Segundo Mignolo (2000) o conhecimento traz consigo valores condizentes

com as caracteriacutesticas do contexto no qual eacute gerado por isso eacute marcado geo-

historicamente Essa produccedilatildeo eacute permeada por valores princiacutepios eacuteticos e morais

compreensotildees de ser humano de sociedade e de natureza eacute a partir deles que

passamos a elaborar nossas representaccedilotildees da realidade na qual vivemos De acordo

com a praacutetica pedagoacutegica colonizadora dos professores caracterizada pela

colonialidade do saber a representaccedilatildeo da realidade na qual vivem os alunos

ribeirinhos eacute feita a partir do conhecimento hegemocircnico assim como os valores eacuteticos

e morais

Em relaccedilatildeo a esses valores nas observaccedilotildees realizadas em sala de aula notei

algumas situaccedilotildees em que a linguagem falada no cotidiano pelos alunos foi taxada

como inferior em comparaccedilatildeo com a linguagem erudita A situaccedilatildeo foi a seguinte o

professor fez a chamada e perguntou por que um determinado aluno faltou trecircs dias

seguidos na escola O referido aluno respondeu dizendo que ldquotresontonte natildeo veio

porque estava ajudando o pai a tirar accedilaiacute e doisontonte porque estava com dor de

barrigardquo E o professor retrucou

Natildeo existe tresontonte e nem doisontonte e sim trecircs dias atraacutes e dois dias atraacutes natildeo sei de onde vocecircs tiram essas palavras esquisitas e feias repita comigo a forma certa de falar (o aluno repetiu em voz alta) e escreva no seu caderno pra natildeo esquecer natildeo quero mais ouvir vocecircs falando assim(Prof 8)

No horaacuterio do intervalo fui conversar com o professor sobre a questatildeo da

linguagem Ele respondeu que ainda eacute um dos maiores problemas que encontra pois

ensina a forma correta de falar nas aulas soacute que quando chegam em casa os alunos

esquecem e falam da mesma forma que seus pais e irmatildeos como passam pouco

tempo na escola e mais tempo com a famiacutelia e as pessoas da comunidade voltam a

falar ldquoerradordquo

Para Santos (2007) essa visatildeo monocultural eacute produzida pela razatildeo indolente

que naturaliza as diferenccedilas e hierarquiza a populaccedilatildeo como fez o professor ldquogente

191

que natildeo sabe falar direito fala tudo errado e usa uma linguagem chulardquo Os ribeirinhos

desta maneira satildeo inferiores porque falam diferente da linguagem culta Desta

maneira as diferenccedilas satildeo veladas e naturalizadas a partir de uma escala baseada

na inferiorizaccedilatildeo do que difere do padratildeo dominante

Segundo Calvet (2000) as liacutenguas natildeo existem sem as pessoas que as falam

e a histoacuteria de uma liacutengua eacute a histoacuteria de seus falantes Desta maneira a liacutengua tem

um papel preponderante na construccedilatildeo das identidades dos sujeitos identificando-os

geograficamente e tambeacutem culturalmente Sendo assim as liacutenguas natildeo satildeo

uniformes mas variaacuteveis dinacircmicas e muacuteltiplas Natildeo haacute somente uma forma

delinguagem existem outras variaccedilotildees faladas pelos sujeitos que quando satildeo

oprimidos tecircm seu jeito de falar subalternizado inferiorizado natildeo reconhecido como

forma de expressatildeo da realidade por isso a educaccedilatildeo colonizadora as nega e

determina a linguagem dominante como a oficial

As falas silenciadas oprimidas e negadas precisam ser reconhecidas na

sociedade e principalmente na instituiccedilatildeo escolar como mais uma variaccedilatildeo da nossa

liacutengua portuguesa vista natildeo mais como errada feia e chula como disseram alguns

docentes entrevistados O processo educacional formal assim conduzido faz com que

os alunos ribeirinhos tenham vergonha da proacutepria linguagem e para sobreviver na

escola tenham que reaprender a falar de acordo com a liacutengua dominante considerada

correta culta e hegemocircnica

Para Bagno (2004) a abordagem referente agrave variaccedilatildeo linguiacutestica abrange

questotildees culturais sociais poliacuteticas e econocircmicas e requer de noacutes professores uma

nova postura diante de uma concepccedilatildeo de liacutengua uma vez que o assunto diz respeito

agrave luta por uma educaccedilatildeo mais justa capaz de favorecer aos que precisam ter acesso

agrave comunicaccedilatildeo para transformar a sua realidade social sentindo-se mais letrados e

menos excluiacutedos

4242 Professores que desenvolveram praacuteticas descolonizadoras

Segundo Santos (2002) as accedilotildees descolonizadoras estatildeo fundamentadas nas

praacuteticas e discursos que objetivam mostrar as visotildees do colonizado sobre as

narrativas escritas pelo colonizador desta maneira essas narrativas satildeo

paulatinamente desconstruiacutedas pelos colonizados O processo de desconstruccedilatildeo

dar-se-ia pela sociologia das ausecircncias por meio da qual tornamos presente o que

estaacute ausente Na pesquisa de campo observamos algumas praacuteticas que

192

consideramos descolonizadoras nas quais por meio de metodologias dialoacutegicas

educador e educandos problematizaram o contexto no qual vivem

Iniciamos com a narrativa de uma aula de Artes do Prof 2 que trabalha com

alunos do preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano na qual discutiram e vivenciaram o conteuacutedo ldquoos

elementos plaacutesticos visuais cores formas e linhasrdquo

Professor a aula de Arte hoje vai ser sobre tecelagem e o seu Joseacute estaacute aqui na sala pra nos ensinar algumas teacutecnicas que ele utiliza para tecer o matapi Nesse momento um dos alunos faz uma pergunta Aluno mas o seu Joseacute eacute o avocirc do Manoel o que ele tem pra ensinar pra gente aqui na escola Professor O seu Joseacute jaacute trabalha haacute muitos anos fazendo matapi e paneiro entatildeo ele tem muito a nos ensinar quase todos aqui na sala devem ter alguns desses utensiacutelios nas suas casas feitos por ele Joseacute obrigado professor pela oportunidade de poder dividi com o senhor e com essas crianccedilas que vi nascer aqui na vila o que eu sei sobre o matapi Nesse momento o professor pede para que os alunos levantem de suas cadeiras deem as matildeos para formar um circulo seu Joseacute fica no meio do circulo todos sentados e uma aluna faz uma pergunta Aluna mas antes de comeccedilar agente precisa desenhar como vai ser o matapi neacute Joseacute bem eu natildeo desenho porque jaacute tenho na cabeccedila como vai ser e como vou fazer satildeo muitos anos tecendo matapi Mas se vocecircs quiserem desenhar Professor vamos primeiro prestar atenccedilatildeo para aprender a fazer o matapi depois quem quiser desenha como vai fazer quem quiser anotar tambeacutem pode ficar agrave vontade O professor daacute a palavra ao seu Joseacute que pega as talas de jupati o cipoacute titicaa faca e comeccedila explicar aos alunos como retirar a tala para fazer o matapi Joseacute a gente tira a tala raspa direitinho com a faca e coloca pra secar tem que taacute bem seca pra natildeo empenar depois Quando tiver bem seca agente comeccedila a tecer tem que cortar as talas de acordo com o tamanho do matapi depois agente amarra as talas com o cipoacute titica e vai tecendo tala por tala E vai demonstrando como tecer as talas e dando formato ao matapi Joseacute a boca do matapi a gente deixa por uacuteltimo depois que vocecirc tecer o corpo do matapi aiacute agente tece a boca fora do corpo depois agente junta os dois e amarra com o cipoacute Ele vai demonstrando passo a passo as formas de tecer ateacute chegar ao matapi pronto Professor agora eacute a vez de vocecircs tecerem o matapi Formem grupos com os colegas peguem o material e cada grupo vai tecer um matapi E o seu Joseacute vai acompanhar e tirar as duacutevidas de vocecircs E os alunos formaram grupo com colegas de outros anos

No final da aula todos os grupos apresentaram o matapi que confeccionaram

e as dificuldades que encontraram para fazecirc-lo Durante cada apresentaccedilatildeo o

professor foi destacando os elementos plaacutesticos visuais cores formas linhas dentre

193

outros que fizeram parte da obra construiacuteda Para finalizar a aula o professor

agradeceu ao seu Joseacute por ter ensinado os alunos e a ele tambeacutem como tecer o

matapi

A valorizaccedilatildeo do saber popular por meio da tecelagem do matapi instrumento

fundamental para a captura do camaratildeo foi o cerne da aula O diaacutelogo entre o

conhecimento popular e o escolar ocorreu de forma horizontal O professor a partir

do matapi confeccionado pelos alunos sobre a orientaccedilatildeo do seu Joseacute abordou o

conteuacutedo ldquoos elementos plaacutesticos visuais cores formas linhas dentre outrosrdquo tendo

como objeto de anaacutelise a arte de um artesatildeo da comunidade Ao mesmo tempo houve

o reconhecimento do saber local e da pessoa portadora desse saber que atuou como

mediador atraveacutes da socializaccedilatildeo junto aos alunos que precisam deste saber para

garantir sua permanecircncia e sobrevivecircncia na ilha do Accedilaiacute poiso matapi eacute uma das

ferramentas utilizadas nas atividades produtivas

Outro ponto importante a ser destacado foi a organizaccedilatildeo do espaccedilo da sala

de aula os alunos natildeo foram organizados por ano tiveram a liberdade na escolha dos

colegas para formar os grupos Nesse momento prevaleceu a turma unida para juntos

encararem um desafio que consistia em tecer um matapi

O professor natildeo foi o transmissor de conhecimentos nem o centro das

atenccedilotildees ao contraacuterio foi um aprendiz que junto com os seus alunos aprendeu a

tecer o matapi ensinado por um membro da comunidade ribeirinha que detinha esse

saber o que prova que natildeo haacute saber maior ou menor o que existe satildeo saberes

diferentes (FREIRE 2014) E a arte enquanto expressatildeo da vida esteve nessa aula

associada ao processo de criaccedilatildeo e a construccedilatildeo do conhecimento se efetivou na

relaccedilatildeo entre o esteacutetico e o artiacutestico materializada nas representaccedilotildees artiacutesticas

locais Como afirma Freire (2014 p 39)

Desta maneira o educador jaacute natildeo eacute o que apenas educa mas o que enquanto educa eacute educado em diaacutelogo com o educando que ao ser educado tambeacutem educa Ambos assim se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os ldquoargumentos de autoridaderdquo jaacute natildeo valem Em que para ser-se funcionalmente autoridade se necessita de estar sendo com as liberdades e natildeo contra elas

Liberdade para abrir espaccedilo em sua praacutetica enquanto educador para o saber

popular que dentro deste contexto eacute o mais importante para os sujeitos envolvidos

na praacutexis educativa Na ecologia de saberes Santos (2000) fala do criteacuterio de utilidade

do saber como fator de preponderacircncia Neste caso a hierarquia entre eles daacute-se pelo

criteacuterio de intervenccedilatildeo no mundo Quem sabe tecer o matapi eacute o seu Joseacute este

194

conhecimento natildeo estaacute no livro didaacutetico e nem o professor eacute conhecedor deste saber

Os alunos precisam se apropriar desse saber enquanto sujeitos ribeirinhos pois a

pesca do camaratildeo eacute uma das formas de subsistecircncia ao mesmo tempo sentem-se

valorizados enquanto sujeitos possuidores de um saber considerado importante pela

escola

A aula foi repleta do pensamento liminar por meio do reconhecimento e

visibilidade do saber da comunidade que teve como protagonista um intelectual que

construiu todo um arcabouccedilo praacutetico e teoacuterico pois toda praacutetica estaacute embasada numa

determinada teoria durante sua experiecircncia enquanto ribeirinho

Outra praacutetica pedagoacutegica em que houve o diaacutelogo entre os saberes foi

desenvolvida pela Prof 4 na aula de Ciecircncias que eacute uma turma multisseriada com

alunos do 3ordm 4ordm e 5ordm ano

Professora hoje vamos estudar sobre os alimentos peguem o livro de Ciecircncias e abram na paacutegina 140 Joatildeo79 leia o primeiro paraacutegrafo e em seguida escolha um colega para ler o paraacutegrafo seguinte e assim sucessivamente Apoacutes a leitura a professora explicou o assunto ldquoalimentaccedilatildeo adequadardquo de acordo como estava no livro Em seguida pediu para que os alunos independente do ano escrevessem o que geralmente comem durante o dia desde o cafeacute da manhatilde ateacute o jantar Apoacutes a resoluccedilatildeo da tarefa foi feita a socializaccedilatildeo da seguinte maneira Professora agora vocecircs vatildeo ler o que escreveram quem quer comeccedilar Maria professora ontem pela manhatilde tomei cafeacute com bolacha no almoccedilo comi accedilaiacute com peixe e camaratildeo no jantar accedilaiacute com peixe de novo Benedito de manhatilde cafeacute com leite rosca e cacetinho almocei accedilaiacute com galinha frita e na janta tomei accedilaiacute com peixe assado Pedro tomo cafeacute com bolacha almoccedilo accedilaiacute com peixe frito e camaratildeo janto accedilaiacute com o que sobrou do almoccedilo Mario gosto de accedilaiacute pela manhatilde no almoccedilo tambeacutem accedilaiacute com charque frito ou peixe na janta o que sobra do almoccedilo Francisco professora eu como o que os colegas jaacute falaram Joaquina eu tambeacutem professora Bernardo aleacutem do accedilaiacute e do peixe gosto de comer paca cutia e tatu no almoccedilo e na janta Alfredo como o que os colegas jaacute falaram Mariana no almoccedilo comi jacareacute com accedilaiacute ontem e na janta tambeacutem

Os alimentos consumidos diariamente pelos alunos satildeo o accedilaiacute peixe e o

camaratildeo Todos tomam o cafeacute com bolacha rosca ou cacetinho porque satildeo alimentos

que natildeo precisam ser conservados em geladeiras e tem extenso prazo de validade

Esporadicamente consomem caccedila como a cutia paca tatu ou jacareacute que satildeo raros

79 O nome dos alunos eacute fictiacutecio para preservar o anonimato

195

encontraacute-los na mata O peixe e o camaratildeo satildeo os mais consumidos devido serem

pescados nos rios e o accedilaiacute eacute a base econocircmicae nos meses de janeiro a julho

encontrado em abundacircncia na Ilha

O conteuacutedo do livro didaacutetico apresenta a alimentaccedilatildeo adequada que inclui os

alimentos energeacuteticos reguladores e os construtores que devem ser consumidos

diariamente Apoacutes a exposiccedilatildeo dos haacutebitos alimentares dos alunos a professora deu

os seguintes encaminhamentos

Professora agora que jaacute fizeram o levantamento dos seus haacutebitos alimentares vocecircs vatildeo classificar o que comem diariamente na tabela que estaacute no livro De um lado iratildeo escrever os alimentos energeacuteticos no meio os reguladores e no final os construtores Apoacutes a resoluccedilatildeo desta atividade foi feita a discussatildeo Professora Agora vamos apresentar as tabelas que vocecircs preencheram(apoacutes a apresentaccedilatildeo os alunos fizeram questionamentos) Maria professora eu coloquei o accedilaiacute como regulador mas o Bernardo colocou como energeacutetico o Joatildeo como construtor e agora No livro natildeo tem o accedilaiacute soacute tem o peixe Professora bem pra tirar essa duacutevida vamos ter que pesquisar Mas me falem como vocecircs se sentem quando tomam o accedilaiacute Alfredo eu me sinto forte o accedilaiacute me daacute sustacircncia por isso acho que ele eacute energeacutetico Joaquina o accedilaiacute me daacute sono e preguiccedila Professora entatildeo vamos fazer uma pesquisa para conhecer melhor o accedilaiacute

Os alunos comeccedilaram a sugerir o que gostariam de saber sobre o accedilaiacute e juntos

com a professora foram definindo os passos para a pesquisa Como no livro didaacutetico

natildeo tinha nenhuma informaccedilatildeo referente ao produto entatildeo ficou definido que se faria

uma pesquisa com os moradores da Vila E assim foram elaboradas as seguintes

questotildees de acordo com a curiosidade dos alunos a) por que vocecirc toma accedilaiacute todo

dia b) o accedilaiacute lhe daacute preguiccedila ou te deixa esperto pra trabalhar c) vocecirc toma accedilaiacute

acompanhado de que d) quem apanha o accedilaiacute na sua casa e) quantos paneiros de

accedilaiacute vocecircs colhem por dia f) vocecircs vendem o accedilaiacute para o marreteiro ou vendem

direto para o consumidor em Macapaacute

Este trabalho foi realizado por todos os alunos da turma que foram organizados

em dupla para fazer as entrevistas juntos aos moradores Na semana seguinte os

alunos trouxeram os dados coletados e apresentaram na sala Durante as

apresentaccedilotildees ocorreram as discussotildees

De acordo com a pesquisa feita o accedilaiacute eacute consumido diariamente por todos os

moradores da Vila acompanhado de peixe frango ou charque frito e camaratildeo a meacutedia

196

de paneiros diaacuterios colhidos de accedilaiacute foi de 20 quase a metade dos moradores

vendem o accedilaiacute para o marreteiro80 o que demonstra a exploraccedilatildeo da qual eacute viacutetima o

ribeirinho que natildeo tendo condiccedilotildees de vender o produto do seu trabalho na cidade eacute

obrigado a vendecirc-lo para o atravessador a preccedilos irrisoacuterios A ausecircncia de poliacuteticas

puacuteblicas para os sujeitos do campo na Amazocircnia os deixa nas matildeos dos

atravessadores pois eacute a uacutenica alternativa que eles tecircm de vender o que produzem

A fala de um aluno na apresentaccedilatildeo da pesquisa retrata essa situaccedilatildeo de

dependecircncia ldquonoacutes natildeo temos barco pra levar o accedilaiacute e vender em Macapaacute professora

entatildeo o papai tem que vender pro marreteiro aqui cada paneiro eacute vendido por R$

1000 em Macapaacute o marreteiro vende a R$ 2000rdquo A professora perguntou aos

alunos como essa realidade poderia ser mudada

Maria acho que se agente conseguisse vender o accedilaiacute em Macapaacute agente ganharia mais dinheiro e poderia comprar um barco que serviria para transportar o accedilaiacute sem precisar do marreteiro Alfredo aqui na Vila tem alguns moradores que tem barco entatildeo agente poderia se unir pra ajudar uns aos outros Joaquina professora aqui cada um olha soacute pro seu umbigo natildeo estatildeo nem aiacute pros outros Noacutes natildeo somos unidos acho difiacutecil fazerem o que o Alfredo taacute dizendo Mario Na vila do Cajueiro eles criaram uma cooperativa de coletores do accedilaiacute laacute eles entregam o accedilaiacute na cooperativa que leva pra vender na cidade e desconta 10 de cada saca vendida dos cooperados Francisco jaacute que com quatro paneiros agente tem uma saca de accedilaiacute entatildeo a saca sai a R$ 8000 e 10 de 80 daacute R$ 800 um valor muito menor do que R$ 4000 que eacute o dinheiro que agente perde vendendo pro marreteiro Entatildeo a cooperativa seria a nossa soluccedilatildeo professora

Pela palavra os alunos pronunciaram o mundo no qual vivem os ribeirinhos

que historicamente foram viacutetimas da exploraccedilatildeo do seu trabalho e provocados a

refletir sobre essa exploraccedilatildeo e vislumbrarem as possiacuteveis alternativas de libertaccedilatildeo

assim foi identificado o problema buscou-se explicaccedilatildeo e as possiacuteveis soluccedilotildees pelo

diaacutelogo O ponto inicial foi a anaacutelise criacutetica e ao mesmo tempo reflexiva sobre a

realidade concreta vista como um problema que requer respostas A educaccedilatildeo nessa

perspectiva visa agrave libertaccedilatildeo da ignoracircncia da dependecircncia da submissatildeo e de

vaacuterios meios de opressatildeo (FREIRE 2014) Todavia natildeo podemos esquecer que

como agentes poliacuteticos teremos que lutar com esperanccedila por uma sociedade mais

justa e igualitaacuteria Isso requer para Santos (2009 p 19) um projeto educativo

emancipatoacuterio uma educaccedilatildeo para o inconformismo e a rebeldia amparada em ldquoum

80 Atravessador

197

tipo de subjetividade que submete a uma hermenecircutica de suspeita a repeticcedilatildeo do

presente que recusa a trivializaccedilatildeo do sofrimento e da opressatildeo []rdquo Educaccedilatildeo que foi aleacutem dos conteuacutedos sobre alimentaccedilatildeo contidos no livro

didaacutetico e que provocou nos alunos por meio da pesquisa a possibilidade de

aprenderem mais sobre seus proacuteprios haacutebitos alimentares e fazerem a relaccedilatildeo entre

o conhecimento escolar e o saber popular por meio da complementaccedilatildeo haja vista

que no livro natildeo havia informaccedilatildeo referente ao accedilaiacute

O diaacutelogo tambeacutem esteve permeando a praacutetica pedagoacutegica da Prof 6 que atua

com alunos do preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano numa classe multisseriada O conteuacutedo do dia

foi ldquoo riordquo na aula de Geografia Como o assunto eacute o mesmo para o 1ordm e 2ordm ano a

professora fez somente um planejamento e incluiu as crianccedilas da preacute-escola

Professora crianccedilas hoje vamos estudar sobre os rios Respondam o que eacute um rio Acredito que minha presenccedila na sala deixou os alunos tiacutemidos Professor Natildeo estou ouvindo nada algueacutem quer falar alguma coisa sobre o rio Jorge o rio eacute onde tem muita aacutegua (aluno do 2ordm ano comeccedila a falar) Marta no rio moram os peixes e o camaratildeo professora Os alunos comeccedilam a rir da colega Joel eacute no rio que tomo banho pego aacutegua pra mamatildee fazer comida lavar a casa e a roupa suja Benedita no rio agente anda de rabeta casco e catraio tambeacutem Lucia no rio agente brinca de pira-matildee de pega pega e briga de galo Isaura No fundo do rio mora a Iara e o boto que quando agente estaacute menstruada natildeo podemos nadar tomar banho nem pegar aacutegua no rio por causa dele Marcos jaacute fui ferrado por arraia aqui na boca do rio perdi a mareacute e fiquei atolado aiacute tive que vim empurrando o casco e a arraia me pegou de jeito Luan professora a minha voacute mora noutra vila pra chegar ateacute laacute tem que varar por outro rio foi na varada que eu acabei me perdendo porque passa por um regono meio da mata e tambeacutem jaacute eraboca da noiteestava escuro e a minha sorte eacute que eu levei uma lanterna Vera professora eu coloco matapi na ilharga do rio com minha matildee ela sabe onde tem muito camaratildeo e sempre quando vamos tirar o matapi ele estaacute cheio de camaratildeo soacute do purrudo E a aula foi acontecendo com os relatos dos alunos Em seguida a professora explicou o assunto e fez a relaccedilatildeo com as falas dos alunos sobre suas experiecircncias com o rio

O conteuacutedo ldquoriordquo foi abordado a partir das experiecircncias e conhecimentos dos

alunos referente aos rios da ilha do Accedilaiacute O saber popular dialogou horizontalmente

com o conhecimento escolar palavras como ldquoboca do rio rio que vara por outro rio

rego ilharga do riordquo satildeo utilizadas para se referir a este majestoso universo das aacuteguas

repleto de seres encantados como a Iara e o Boto e do qual os ribeirinhos retiram seu

198

sustento (peixe camaratildeo) transitam para outros lugares como Macapaacute e Afuaacute visitam

parentes navegam para trabalhar e ir para a escola retiram aacutegua pra higiene pessoal

e domeacutestica fazer comida lavar roupa etc

O rio faz parte da vida dessas crianccedilas que estatildeo cotidianamente mergulhadas

em suas aacuteguas Ningueacutem conhece melhor os rios da Ilha do que os moradores deste

lugar por isso a professora nos disse que ldquoprocuro primeiro verificar o que eles sabem

sobre o assunto que vamos estudar entatildeo agente conversa faccedilo perguntas e deixo

eles agrave vontade para falar nas falas deles dizem o que sabem e eu vou dando cordardquo

O ldquodar cordardquo eacute garantir o direito agrave palavra condiccedilatildeo essencial para o diaacutelogo

O conteuacutedo de Geografia foi discutido a professora explicou os nomes

geograacuteficos das expressotildees utilizadas pelos alunos ao se referirem aos rios pois ldquoeles

precisam tambeacutem conhecer que existe outra forma de expressaacute-losrdquo (Prof 6) que satildeo

os conceitos geograacuteficos oriundos da ciecircncia e aceitos como universais Desta forma

a boca do rio eacute chamada pela ciecircncia de foz o rio que vara para o outro eacute oafluente

o regoeacute aconfluecircnciae a ilharga corresponde agravemargem do rio Nesse caso a

dialogicidade

[] natildeo nega a validade de momentos explicativos narrativos em que o professor expotildee ou fala do objeto O fundamental eacute que professor e alunos saibam que a postura deles do professor e dos alunos eacute dialoacutegica aberta curiosa indagadora e natildeo apassivada enquanto fala ou enquanto ouve (FREIRE 2014 p 86)

Corroborando com essa concepccedilatildeo Brandatildeo (2006) diz que o acesso ao saber

escolar tem uma importacircncia poliacutetica para as classes populares mas este saber

necessita estar articulado com o saber por ela produzido pois ldquoo respeito ao saber

popular implica necessariamente o respeito ao contexto culturalrdquo (FREIRE 1993 p

86) Para Mignolo (2000) eacute pelo conhecimento que passamos a elaborar nossas

representaccedilotildees da realidade na qual vivemos os ribeirinhos fazem essa

representaccedilatildeo a partir do conhecimento popular os que tecircm acesso a educaccedilatildeo

formal o fazem tambeacutem a partir do conhecimento escolar

Desta maneira foi por meio do diaacutelogo entre educador e educandos que os

falares dos ribeirinhos foi reconhecido como outra forma de expressatildeo da realidade

Na sala de aula o diaacutelogo desses saberes com o conhecimento validado pela ciecircncia

abre possibilidades para a leitura criacutetica de mundo Poreacutem isto postula como nos diz

Santos (2009) que a dialogicidade entre o saber popular e a ciecircncia elaborada esteja

alicerccedilada numa racionalidade hermenecircutica tendo no histoacuterico das escolhas feitas

199

no passado as respostas para as condiccedilotildees vividas no presente Assim se expressa

o referido autor

[] A reflexatildeo hermenecircutica visa transformar o distante em proacuteximo o estranho em familiar atraveacutes de um discurso racional [] orientado pelo desejo de diaacutelogo com o objeto de reflexatildeo para que ele ldquonos falerdquo numa liacutengua natildeo necessariamente a nossa mas que nos seja compreensiacutevel e nessa medida se nos torne relevante nos enriqueccedila e contribua para aumentar a autocomprensatildeo do nosso papel na construccedilatildeo da sociedade ou na expressatildeo cara agrave hermenecircutica do mundo da vida (Santos 1999 p15)

Desta maneira a histoacuteria passa a ser vista como possibilidadee natildeo como

determinismo E esta visatildeo natildeo seria possiacutevel sem o sonho da educaccedilatildeo como uma

praacutetica da liberdade partindo de uma pedagogia do oprimido como nos alerta

FreirePedagogia vivenciada pela professora e os alunos ribeirinhos numa perspectiva

intercultural que estabeleceu o diaacutelogo entre os diferentes saberesnesta praacutetica natildeo

houve conhecimento superior nem inferior e sim mais uma forma de expressatildeo

epistemoloacutegica sustentados pelo respeito e o reconhecimento de outras formas de

explicaccedilatildeo do mundo ou o que Walsh (2006) intitula de interculturalidade na qual a

comunicaccedilatildeo entre as culturaseacute baseada no ldquorespeito legitimidade simetria e

igualdaderdquo (idem p 11)

Nessa perspectiva a prof 6 trabalhou na disciplina Histoacuteria o conteuacutedo

ldquoHistoacuteria da Amazocircniardquo especificamente a histoacuteria da comunidade Furo dos Porcos

Professora o nosso assunto de hoje eacute a historia da Amazocircnia Noacutes moramos na comunidade Furo dos Porcos no municiacutepio de Afuaacute que pertence ao estado do Paraacute que faz parte da Amazocircnia Brasileira Jorge entatildeo professora noacutes vamos estudar a histoacuteria da nossa comunidade que fica na Amazocircnia neacute Professora bem natildeo foi exatamente isso que planejei mas eacute uma boa ideia ateacute porque a comunidade Furo dos Porcos faz parte da Amazocircnia como vocecirc disse Marta mas natildeo tem nada aqui no livro que fale sobre nossa comunidade professora como vamos estudar se natildeo tem no livro Professora vocecirc tem toda razatildeo mas noacutes podemos escrever a histoacuteria da nossa comunidade para isso vamos ter que verificar as primeiras famiacutelias que vieram morar aqui Joel professora quem criou essa vila foi meu bisavocirc que veio pra caacute quando casou com minha bisavoacute meu avocirc que conta essa histoacuteria Professora entatildeo vamos fazer um levantamento das primeiras pessoas que vieram morar aqui na comunidade Os alunos comeccedilaram a dizer o nome das pessoas mais velhas que moram na comunidade Em seguida a professora pediu para que formassem grupos para entrevistar essas pessoas Benedita mas o que vamos perguntar pra elas Professora o que vocecircs querem saber sobre a comunidade do Furo dos Porcos Lucia eu quero saber por que esse nome

200

Isaura i eu se aqui antes tinha mais animais na mata como macaco veado paca tatu e demais Luan eu quero saber por que as pessoas vieram pra caacute E assim os alunos foram falando sobre o que queriam saber sobre a histoacuteria da comunidade onde vivem

A aula partiu da curiosidade dos alunos referente ao local onde vivem a vila

Furo dos Porcos que pertence ao municiacutepio de Afuaacute localizada na Amazocircnia O

planejamento foi flexiacutevel a professora natildeo havia planejado esse conteuacutedo entatildeo

houve mudanccedilas no rumo da aula com a inclusatildeo de um assunto de interesse dos

educandos O reconhecimento por parte da professora da curiosidade dos

educandos em conhecer melhor o espaccedilo onde vivemconvivemsobrevivem foi

fundamental para o ecircxito da aula

A curiosidade como inquietaccedilatildeo indagadora como inclinaccedilatildeo ao desvelamento de algo como pergunta verbalizada ou natildeo como procura de esclarecimento como sinal de atenccedilatildeo que sugere alerta faz parte integrante do fenocircmeno vital (FREIRE 2014 p 32)

A curiosidade instigou os alunos a investigar a histoacuteria da Vila como natildeo estava

escrito no livro didaacutetico Entatildeo o jeito foi produzir esse conhecimento por meio da

pesquisa de campo Os sujeitos cognoscentes levantaram as questotildees que

despertavam sua curiosidade epistemoloacutegica e com base nelas foram em busca das

respostas junto aos moradores mais antigos do lugar ldquo[] quanto mais criticamente

se exerccedila a capacidade de aprender tanto mais se constroacutei e desenvolve o que venho

chamando curiosidade epistemoloacutegicardquo (FREIRE 2009 p27)

A curiosidade epistemoloacutegica parte do princiacutepio de que somos seres

inacabados que aprendemos na relaccedilatildeo com os outros mediatizados pelo mundo

Entretanto faz-se necessaacuterio o reconhecimento do outro como um ser que possui uma

gama de saberes e compreensatildeo da realidade soacute assim podemos nos permitir a

dialogar e aprendermos juntos Foi o que ocorreu entre os educandos e os moradores

mais antigos da comunidade do Furo dos Porcos

Ao propor o desafio contra a razatildeo indolente Santos (2002) destaca que

existem outros saberes chamados de alternativos com razotildees que os diferem do

hegemocircnico Assim natildeo podemos admitir que exista uma uacutenica epistemologia pois

haacute diversas formas de conhecimento dentre eles os relativos agrave histoacuteria contada pelos

moradores em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo da vila do Furo dos Porcos seus mitos lendas entre

outros

201

Assim o reconhecimento do saber popular dos moradores da Vila natildeo retira a

autoridade da professora por conseguinte ambos possuem saberes diferentes e no

diaacutelogo colocam algo em discussatildeo

Os professores natildeo satildeo iguais aos alunos por ldquonrdquo razotildees entre elas porque a diferenccedila entre eles os faz ser como estatildeo sendo [] O diaacutelogo tem significaccedilatildeo precisamente porque os sujeitos dialoacutegicos natildeo apenas conservam sua identidade mas a defendem e assim crescem um com o outro( FREIRE 2009 p 118)

Crescem na medida em que se predispotildeem a dialogar com humildade

reconhecendo o outro como um ser humano dotado de experiecircncias que podem

contribuir para esse crescimento emocional afetivo e cognitivo

Desta maneira rompe-se com a colonialidade do saber a partir do momento

em que outras epistemologias estatildeo sendo reconhecidas no caso os conhecimentos

dos idosos da vila tiradas da invisibilidade tomando-as visiacuteveis fazendo-as

emergirem eacute a sociologia da emergecircncia como propotildee Santos (2009)

A seguir outra praacutetica pedagoacutegica que observamos na qual o saber popular foi

visibilizado

Professora bom dia crianccedilas Alunos bom dia professora Todos cantaram a muacutesica de boas vindas Professora peguem a ficha com seus nomes e coloquem no nosso quadro de chamada jaacute sabem que tem que ser por ordem alfabeacutetica Os alunos foram um por um pegar as fichas com seus respectivos nomes que estavam na mesa da professora Professora pelo jeito soacute faltou o Raimundo algueacutem sabe me dizer qual o motivo da falta dele (Raimundo eacute aluno do preacute-escolar) Rafael professora ele natildeo veio porque taacute doente Professora doente de que Baacuterbara ele taacute com vomito e diarreia a matildee dele levou ele pro papai benzer ontem laacute em casa E o papai disse que ele taacute com quebranto Marta eu jaacute tive quebranto professora passei muito mal e foi o pai da Baacuterbara que me benzeu e eu fiquei boa Ele passou um chaacute que a mamatildee fez pra eu beber vaacuterias vezes no dia Pedro eu sei como se pega quebranto eacute quando uma pessoa agrada agente e essa pessoa taacute com fome ou chega suada da rua ai agente fica doente e soacute cura quando eacute benzido Cristiane eu jaacute fui flechada o bicho da mata flecha agente Isso acontece quando uma mulher menstruada sai de casa O papai disse que ela atrai os bichos pelo cheiro aiacute os bichos flecha agente aiacute agente fica doente com febre e dor de cabeccedila tem que ir pro benzedor tambeacutem Fabriacutecio professora meu irmatildeo tambeacutem jaacute foi flechado ele foi tomar banho no rio agrave noite e natildeo pediu permissatildeo pros encantados aiacute a Iara flechou ele

202

Fernando minha irmatilde quase foi encantada pelo boto professora Ela foi tomar banho no rio menstruada agrave noite o bicho foi visitar ela e o papai botou ele pra correr com o terccedilado Professora bem pelo jeito vocecircs tecircm muitas histoacuterias pra contar entatildeo vamos fazer o seguinte como hoje eacute nossa aula de Portuguecircs vocecircs vatildeo escrever essas histoacuterias Os alunos do preacute-escolar e do 1ordm ano desenham e os outros podem escrever desenhar ou dramatizar Apoacutes a resoluccedilatildeo desta atividade os alunos apresentaram na sala e a professora aproveitou as produccedilotildees textuais para trabalhar os conteuacutedos da gramaacutetica sinais de pontuaccedilatildeo tempos verbais substantivos entre outros

Acompanhei o desenvolvimento dessa aula e percebi o interesse e a dedicaccedilatildeo

dos alunos em escrever desenhar e falar sobre as histoacuterias que fazem parte do seu

cotidiano Tudo isso reflete a forma como eles veem leem e interpretam o mundo (as

doenccedilas os seres encantados o comportamento em relaccedilatildeo a esses seres para natildeo

ficarem doentes entre outros) A professora ao valorizar e reconhecer o significado

das crenccedilas nos seres encantados para a comunidade contribui para a construccedilatildeo

de uma educaccedilatildeo voltada para os povos da Amazocircnia ribeirinha Hage (2004 p 4)

chama a atenccedilatildeo para as consequecircncias da natildeo valorizaccedilatildeo da cultura amazocircnica

nas accedilotildees educativas

O conjunto de crenccedilas valores siacutembolos e conhecimentos das populaccedilotildees da Amazocircnia e seus padrotildees de referecircncia e sociabilidade que satildeo construiacutedos e reconstruiacutedos nas relaccedilotildees sociais no trabalho e na vivecircncia e convivecircncia nos espaccedilos sociais em que participam natildeo tecircm sido valorizados e incorporados nas accedilotildees educativas das classes multisseriadas constituindo-se num fator que produz o fracasso escolar

O fracasso escolar a que se refere o autor eacute produzido pelo natildeo reconhecimento

do saber popular como digno de fazer parte do curriacuteculo da escola ribeirinha por natildeo

passar pelos rigores da ciecircncia hegemocircnica Assim vai se produzindo o que Santos

(2007) chama de epistemiciacutedio o desaparecimento dos conhecimentos natildeo cientiacuteficos

que satildeo divergentes maneiras de se fazer ciecircncia Isso ocorre pela monocultura da

escala dominante que produz as ausecircncias do particular do local e torna universal o

conhecimento global

No entanto a praacutetica pedagoacutegica da professora fez o caminho oposto agrave razatildeo

indolente partiu da descolonizaccedilatildeo epistemoloacutegica dando vez e voz aos saberes dos

alunos as suas maneiras de explicar a realidade que permeiam a praacutetica social das

pessoas que vivem naquele lugar Eacute o que Santos (2008) denomina de ecologia que

se edifica na pluralidade e autonomia dos variados saberes Ao trabalhar os conteuacutedos

203

gramaticais a partir das produccedilotildees escritas e apresentadas pelos alunos a professora

estabeleceu o diaacutelogo entre esses dois tipos de conhecimento o popular e o escolar

porque os educandos fizeram uma nova leitura a partir dos conteuacutedos apreendidos

Esta praacutetica se constituiu numa gnose liminar pois deu visibilidade aos saberes

que historicamente foram subalternizados e no diaacutelogo com a epistemologia

hegemocircnica foram visibilizados Segundo Mignolo (2003) a gnose enquanto

pensamento fronteiriccedilo eacute o espaccedilo para os saberes locais se manifestarem e

garantirem seu reconhecimento Natildeo se afirma enquanto oposiccedilatildeo agrave ciecircncia mas atua

no tracircnsito entre fronteiras Dessa forma o pensamento liminar se tornou um

instrumento para a descolonizaccedilatildeo intelectual a presenccedila dos encantados para

explicar a realidade a cura das doenccedilas por meio do agente cultural (benzedor) e os

remeacutedios para a cura vindos da mata e das aacuteguas satildeo exemplos de formas de

existecircnciaresistecircncias em lugares onde o poder puacuteblico natildeo atua com poliacuteticas na

aacuterea da sauacutede Os remeacutedios indicados pelo benzedor fruto de sua experiecircncia de

vida satildeo saberes fronteiriccedilos pois existem e resistem apesar de todo avanccedilo da

ciecircncia farmacecircutica

Outra praacutetica pedagoacutegica que rompeu com a monocultura do tempo linear e

com a do produtivismo capitalista foi vivenciada com os alunos da prof 2 Nessa aula

o conteuacutedo foi as estaccedilotildees do ano Como amazocircnidas sabemos que soacute observamos

duas que satildeo o inverno e o veratildeo quando a professora apresentou o conteuacutedo os

alunos questionaram

Nelso professora aqui agente soacute vecirc a chuva no veratildeo e a quentura do inverno natildeo da pra ver a primavera nem o outono Pedro professora aqui na vila agente faz a derrubada da mata pra fazer roccedila no final do veratildeo ai agente espera secar a mata derrubada e toca fogo no inverno agente comeccedila a plantar Maria aqui no inverno alaga tudo a aacutegua sobe e invade os quintais aiacute vecircm as cobras e comem as galinhas e patos No inverno fica difiacutecil pegar peixe porque a aacutegua cresce muito Francisco o que salva agente eacute o accedilaiacute que tem bastante na mata entatildeo agente tira pra tomar e pra vender Joaquina por isso que no veratildeo agente trabalha pouco porque natildeo tem muita coisa pra fazer Margarete o inverno com o veratildeo mexe no horaacuterio de aula porque no veratildeo o rio fica mais seco e no inverno tem muita aacutegua Professora muito bem entatildeo todos aqui sabem que natildeo temos um horaacuterio fixo de aula devido agraves mareacutes eu soacute natildeo sabia que o accedilaiacute natildeo produz no veratildeo e que pra fazer roccedila tem que derrubar no veratildeo e plantar no inverno falem mais sobre isso e outras coisas relacionadas com as estaccedilotildees do ano aqui na ilha

204

A fala da uacuteltima aluna retrata um dos preconceitos em relaccedilatildeo aos ribeirinhos

que satildeo taxados de preguiccedilosos devido natildeo trabalharem direto para a produccedilatildeo e

voltados para o mercado como propotildee a monocultura do tempo linear que natildeo

reconhece outras formas de organizaccedilatildeo temporal como as dos ribeirinhos que no

veratildeo se dedicam a limpar os peacutes de accedilaiacute para facilitar o crescimento das aacutervores ou

fazer o manejo para garantir o aumento da produccedilatildeo no inverno e dessa maneira

satildeo vistos pelos de fora como preguiccedilosos e vagabundos O tempo das aacuteguas

determina o horaacuterio das aulas que eacute tambeacutem influenciado pelas estaccedilotildees do ano

assim o tempo ecoloacutegico sobressai em relaccedilatildeo ao tempo linear na ilha do Accedilaiacute

5CONCLUSAtildeO

Ao pesquisar a Amazocircnia Ribeirinha especificamente a ilha do Marajoacute

territoacuterio no qual nasci e vivi a infacircncia e parte da adolescecircncia representou um

mergulho na minha proacutepria histoacuteria As lembranccedilas permearam todos os momentos

que foram tensos e intensos na convivecircncia com os moradores das comunidades da

ilha do Accedilaiacute Foram imensos momentos de aprendizagem nos quais mergulhava

profundamente nas caudalosas aacuteguas dos rios e emergia repleto de saberes

apreendidos na cultura da conversa com os caboclos e caboclas marajoaras No

diaacutelogo com as crianccedilas jovens adultos e idosos mediatizados pelo mundo construiacute

e reconstruiacute conhecimentos referentes agrave Amazocircnia ribeirinha que descrevo nas

conclusotildees deste estudo

De acordo com a pesquisa realizada que teve como objeto de estudo investigar

como ocorre o diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos

na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam em classes multisseriadas na ilha

do Accedilaiacute chegamos agraves seguintes conclusotildees a) o saber popular dos ribeirinhos povos

das aacuteguas estaacute relacionado com o contexto social econocircmico cultural e religioso no

qual estatildeo imersos Esses povos estabelecem entre si e com os outros relaccedilotildees de

trocas materiais e simboacutelicas b) o diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos professores

entre o saber popular e o conhecimento escolar ocorre de forma vertical por meio das

praacuteticas colonizadoras que predominam nas accedilotildees de grande parte dos educadores

mas tambeacutem em menor quantidade satildeo desenvolvidas praacuteticas descolonizadoras

205

nas quais o diaacutelogo eacute produzido horizontalmente o que denota uma ecologia de

saberes

Quanto ao saberpopular dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute ele eacute construiacutedo e

reconstruiacutedo nas relaccedilotildees sociais que envolvem crianccedilas jovens adultos e idosos

numa relaccedilatildeo de respeito uns com outros e com a natureza o que confirma a tese de

Santos (2010) de acordo com a qual as epistemologias satildeo engendradas nas

relaccedilotildees sociais pelos sujeitos por meio de suas praacuteticas dentro do contexto no qual

as desenvolvem

Esses saberes tecircm toda uma ciecircncia baseada numa loacutegica e racionalidade

diferentes da ciecircncia hegemocircnica como afirmou um ribeirinho ldquopara fazer um casco

tem que ter toda uma ciecircncia tem que saber para que vai ser usado quantas pessoas

vai carregar que tipo de madeira e muito maisrdquo O casco natildeo eacute desenhado no papel

(como fazem os engenheiros) mas estaacute planejado na cabeccedila do pescador que vai

fazecirc-lo e atende agraves necessidades de quem o encomendou Por isso afirmamos que

esses saberes satildeo outras maneiras alternativas e estrateacutegias de se produzir ciecircncia

que foram e ainda satildeo marginalizadas nos curriacuteculos escolares desde a educaccedilatildeo

baacutesica ateacute a superior reflexo da monocultura do saber

Nestes saberes existe tambeacutem toda uma tecnologia tais como variadas

teacutecnicas para tecer paneiro matapi malhadeira e peneiras Diversificados materiais

oriundos da mata para construir cascos remos barcos que constituem extensatildeo das

matildeos e das pernas dos povos das aacuteguas Conhecimento da fauna e da flora para a

feitura dos remeacutedios que curam as doenccedilas do corpo e do espiacuterito causadas pelos

encantados Conhecimento da biodiversidade que engloba os animais que vivem na

mata a diversidade de peixes que habitam os rios lagos e igarapeacutes bem como dos

haacutebitos alimentares de cada espeacutecie

No tocante agraves aacuteguas seus ciclos (vazantesecacheia) produzem todo um ritmo

de vida e expressam os saberes do ribeirinho na sua relaccedilatildeo com a natureza Assim

a vida se plasma nos movimentos das mareacutes enchente vazante e seca que guiam o

tempo para plantar coletar o accedilaiacute pescar o peixe o camaratildeo e caccedilar O ribeirinho

sabe quando a mareacute vai ser lanccedilante pelo vento que movimenta as aacuteguas sabe onde

encontrar no rio determinadas espeacutecies de peixes (traiacutera tamuataacute acaraacute matupiri

entre outros) pelo cheiro das aacuteguas sabe onde estatildeo os cardumes o que eles

comem bem como os seus costumes e desta forma constroem estrateacutegias e

ferramentas para aprisionaacute-los

206

Destarte haacute um conhecimento estruturado sobre as mareacutes que orienta as

atividades sociais e produtivas guiada pelo tempo das aacuteguas que define inclusive o

horaacuterio das aulas nas escolas da ilha do Accedilaiacute Essa ruptura com a monocultura do

tempo linear gera outros tempos com a produccedilatildeo de diversidades de saberes como

os relacionados ao vento ao cheiro das aacuteguas agraves espeacutecies de peixes agraves iscas mais

adequadas para pescaacute-los aleacutem de orientar as suas accedilotildees de acordo as fases das

mareacutes Diante de tais evidecircncias o que prevalece na ilha do Accedilaiacute eacute o tempo ecoloacutegico

fundamental para entendermos como vivem esses povos

Nas aacuteguas vivem tambeacutem os seres encantados que satildeo invisiacuteveis e quando

se materializam podem se tornar animais (boto) homens ou mulheres (caboclo

gritador Matinta Pereira e outros) como nas histoacuterias narradas pelos moradores das

comunidades por meio da cultura da conversa histoacuterias que tecircm um cunho educativo

pois fazem parte da educaccedilatildeo do cuidar Por meio delas os ribeirinhos orientam os

filhos para que se comportem da maneira adequada aos seus valores e influenciam

no modo de vida dos povos das aacuteguas As lendas e os mitos satildeo contados para as

crianccedilas desde o nascimento com o intuito de respeitar e preservar o meio ambiente

No que concerne aos saberes da mata e da terra existe toda uma ciecircncia e

tecnologia para a produccedilatildeo dos remeacutedios que curam as doenccedilas e os males causados

pelos entes sobrenaturais O saber do benzedor e da parteira satildeo frutos de toda uma

experiecircncia de vida na ilha do Marajoacute e a cura se efetiva por meio do reconhecimento

da autoridade desses sujeitos e da feacute que os doentes e seus familiares tecircm nos

remeacutedios oriundos da terra e da mata

Da mata eacute retirado o accedilaiacute que alimenta e daacute forccedila para os ribeirinhos

enfrentarem os desafios do cotidiano tambeacutem eacute a fonte de renda dos moradores da

ilha Na colheita uma diversidade de saberessatildeo mobilizados e constituem uma

epistemologia construiacuteda na relaccedilatildeo desses sujeitos com os rios a terra e a mata Ao

transformar a natureza para atender agraves suas necessidades o ribeirinho transforma

cria uma realidade que tambeacutem o transforma e direciona sua maneira de agir e pensar

pois ao transformar o mundo sofre os efeitos de sua proacutepria transformaccedilatildeo

Deste modo o saber produzido e reproduzido pelos ribeirinhos tem como

criteacuterio de validaccedilatildeo a aceitaccedilatildeo da comunidade e credibilidade dos seus autores

Como afirma Santos (2010) essas epistemologias satildeo construiacutedas e reconstruiacutedas

por meio da experiecircncia social diferente dos rigores da ciecircncia hegemocircnica Destarte

o criteacuterio de validade do conhecimento estaacute relacionado agrave sua contextualidade e

207

aplicabilidade para resolver as situaccedilotildees vivenciadas Ressaltamos que esses

saberes estatildeo inteiramente relacionados com a histoacuteria e a cultura dos povos das

aacuteguas

Na pesquisa identificamos que esses saberes dialogam com o conhecimento

escolar na praacutetica pedagoacutegica dos professores de forma vertical e tambeacutem

horizontalmente

O diaacutelogo numa perspectiva verticalizada a qual denominamos de

colonizadora nega os saberes locais ou seja o saber popular dos educandos

ribeirinhos e impotildee o conhecimento escolar como a uacutenica visatildeo de mundo e de

ciecircnciao que representa a colonialidade do saber O saber popular eacute invisibilizado

natildeo reconhecido concebido como mito lenda supersticcedilatildeo que fazem parte do

imaginaacuterio dos sujeitos da Ilha Nas praacuteticas de planejamento das aulas a razatildeo

indolente prevalece como hegemocircnica excluindo as razotildees subalternizadas dentre

elas as dos povos das aacuteguas Eacute a geopoliacutetica do conhecimento que natildeo reconhece

esses saberes por emergirem dos sujeitos que historicamente foram excluiacutedos

consequentemente gera a hierarquizaccedilatildeo dos saberes e a consolidaccedilatildeo das

diferenccedilas entre os sistemas de conhecimento ao privilegiar o espaccedilo onde ele eacute

produzido tornando-o universalmente legiacutetimo para todos os contextos definindo a

monocultura da escala dominante que torna hegemocircnico o global suprimindo o local

Eacute no planejamento que a geopoliacutetica do conhecimento e a monocultura da

escala dominante se materializam por meio da definiccedilatildeo dos conteuacutedos que faratildeo

parte do curriacuteculo nas diversas disciplinas que compotildeem a educaccedilatildeo baacutesica Nele o

contexto no qual vivem e sobrevivem os educandos natildeo satildeo levados em

consideraccedilatildeo Nas praacuteticas colonizadoras ocorre o epistemiciacutedio como afirma Santos

(2010) ao se referir agrave morte dos conhecimentos alternativos no caso os dos povos

das aacuteguas da Amazocircnia

O conhecimento hegemocircnico eacute transmitido pelo educador aos educandos por

meio do livro didaacutetico recurso pedagoacutegico mais utilizado nas escolas pesquisadas o

que caracteriza a pedagogia bancaacuteria na qual as metodologias desenvolvidas pelos

docentes visavam a transmissatildeo do conhecimento escolar de forma autoritaacuteria com

a predominacircncia das aulas expositivas por meio da narraccedilatildeo sem a participaccedilatildeo e

intervenccedilatildeo dos educandos desta maneira o saber hegemocircnico eacute concebido como

verdade absoluta O diaacutelogo eacute verticalizado somente o professor tem o direito de

pronunciar a palavra aos alunos eacute negado esse direito porque natildeo interessa os

208

saberes que eles trazem do seu meio sociocultural Para esta visatildeo racionalista de

educaccedilatildeo o uacutenico conhecimento vaacutelido eacute o que passa pelos rigores do meacutetodo

cientiacutefico e atende aos interesses dominantes

Portanto a pesquisa mostrou que por intermeacutedio de metodologias

colonizadoras81 o conhecimento escolar tendo como suporte o livro didaacutetico foi

imposto como uacutenica maneira de ler e explicar o mundo baseado na ciecircncia

colonizando as mentes e menosprezando outras racionalidades e razotildees

invisibilizadas e dessa forma construindo subjetividades identidades imaginaacuterios

sociais sentimentos atitudes e visotildees de mundo para acatar as propensotildees

hegemocircnicas

Tudo isso eacute reflexo da colonialidade do saber que define os curriacuteculos as

mateacuterias escolares e a organizaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo na escola Assim existe

uma sobreposiccedilatildeo da cultura erudita e etnocecircntrica sobre os conteuacutedos advindos da

cultura popular que eacute marginalizada e ausente no interior da instituiccedilatildeo escolar O

diaacutelogo nesta perspectiva natildeo possibilita a ecologia de saberes por negar os saberes

locais natildeo lhes concedendo credibilidade e visibilidade tornando-os ausentes nas

escolas ribeirinhas da ilha do Accedilaiacute

Apesar dos professores atuarem dentro de uma estrutura de dominaccedilatildeo seja

ela poliacutetica econocircmica cultural e epistemoloacutegica houve momentos na accedilatildeo

docente82 em que foram desenvolvidas praacuteticas nas quais o diaacutelogo ocorreu de forma

horizontal que denominamos de descolonizadoras Nelas houve o reconhecimento

das manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas das comunidades ribeirinhas da ilha do

Accedilaiacute

Praacuteticas nas quais os saberes locais foram visibilizados valorizados e

reconhecidos como conhecimento que norteia a vida dos ribeirinhos nas atividades

sociais religiosas culturais e produtivas Nela o planejamento partiu das

necessidades dos educandos em termos de conhecimentos para enfrentar os desafios

do cotidiano daiacute a valorizaccedilatildeo tanto do conhecimento escolar quanto dos saberes

locais

81 Planejamento e metodologias de ensino e aprendizagem desenvolvidas principalmente pelos professores Prof1 Prof3 Prof5 Prof7 Prof8 e Prof9 sujeitos da pesquisa descritas no capitulo 6 Isso natildeo significa que esses professores natildeo tenham desenvolvido tambeacutem praacuteticas descolonizadoras mas o que predominou no trabalho desses docentes durante o periacuteodo de observaccedilatildeo foi as colonizadoras 82 Com maior predominacircncia nas praacuteticas dos professores Prof2 Prof4 e Prof6

209

Um fato interessante eacute que os alunos estatildeo envolvidos nas atividades

produtivas desde a coleta do accedilaiacute da pesca do peixe camaratildeo e na caccedila de animais

silvestres ateacute nas atividades socioculturais e os professores desenvolveram praacuteticas

descolonizadoras que incluiacuteram esses saberes no planejamento das aulas Nas

metodologias esses saberes foram problematizados o direito a palavra foi garantido

a todos os envolvidos na praacutexis pedagoacutegica os moradores detentores desses

saberes foram os protagonistas

O diaacutelogo como momento de encontro para refletir coletivamente sobre a

realidade na qual vivem os educandos fez parte de algumas praacuteticas observadas nas

escolas investigadas Pela palavra os educandos educadores e os moradores da

comunidade que participam das praacuteticas pedagoacutegicas na escola puderam criar

transformar potenciar e libertar o pensamento e a criatividade para inovar Os

moradores tiveram seus saberes validados pela escola no momento em que os

professores abriram espaccedilo para que eles participassem ativamente do processo de

ensino e aprendizagem por meio de praacuteticas dialoacutegicas baseadas na amorosidade e

respeito agrave sua dignidade

A humildade dos professores ao admitirem que natildeo satildeo ignorantes e nem

saacutebios absolutos mas seres inacabados em constante processo de aprendizagem

possibilitou que abrissem espaccedilo para os saberes locais adentrarem o curriacuteculo No

diaacutelogo na sala de aula o professor aprendeu com os alunos os saberes locais e

ensinou a partir desses saberes os escolares por meio da escuta da palavra e do

respeito agraves ideias e aos pensamentos do outro

Portanto o diaacutelogo na perspectiva descolonizadora ocorreu numa relaccedilatildeo

horizontal com amorosidade e humildade na esperanccedila de um mundo melhor como

afirmou um professor ribeirinho ldquoeu ensino e aprendo todos os dias com esses jovens

acredito que eles satildeo capazes de aprender e de mudar a realidade na qual vivemos

digo noacutes porque vivo aqui tambeacutemrdquo Isso demonstra a feacute e esperanccedila na capacidade

dos educandos para mudar a realidade para isso a educaccedilatildeo ancorada numa

pedagogia da esperanccedila possibilita aos ribeirinhos da ilha lutar por um mundo melhor

o que significa romper com a opressatildeo gerada pela exploraccedilatildeo fruto principalmente

da ausecircncia de poliacuteticas puacuteblicas voltadas para o escoamento da produccedilatildeo e tambeacutem

nas aacutereas de sauacutede e educaccedilatildeo direcionadas para os povos das aacuteguas No tocante agrave

educaccedilatildeo a ausecircncia de poliacuteticas puacuteblicas de formaccedilatildeo continuada para os

210

professores de recursos didaacuteticos e valorizaccedilatildeo dos profissionais da educaccedilatildeo pelo

poder puacuteblico contribuem para a prevalecircncia da colonizaccedilatildeo epistemoloacutegica

O reconhecimento das ecologias das temporalidades e dos saberes presentes

no discurso bem como na praacutetica dos professores possibilitou o emergir das

experiecircncias dos saberes dos valores da relaccedilatildeo com o outro e com o mundo no

qual vivem esses protagonistas

A ecologia das temporalidades se manifestou no momento em que os

educandos tiveram o usufruto da palavra para falar sobre como as suas vidas satildeo

influenciadas por outras temporalidadescom loacutegicas distintas da linear tais como o

tempo das mareacutes o tempo para a derrubada queimada e o plantio que estatildeo

relacionados com as chuvas na ilha e o tempo pertinente aos encantados que habitam

a mata e os rios e estabelecem os horaacuterios para a entrada nesses ambientes naturais

Esse eacute o jeito de ser do povo daqui que vai aleacutem do tempo linear como afirmam os

poetas Joaozinho Gomes e Val Milhomem ldquoQuem nunca viu o (rio) Amazonas jamais

iraacute compreender a crenccedila de um povo sua ciecircncia caseira a reza das benzedeiras o

dom milagroso83rdquo

Assim inferimos que as praacuteticas descolonizadoras ao reconhecer a pluralidade

de saberes heterogecircneos e a autonomia de cada um deles promoveu a conexatildeo

ordenada dinacircmica e horizontal entre ambos por meio do diaacutelogo Desta maneira

efetivou-se na praacutetica a ecologia de saberes proposta por Boaventura de Souza

Santos O diaacutelogo que segundo Freire (2014)pertence a nossa natureza histoacuterica foi

nas praacuteticas descolonizadoras vivenciado com amor humildade feacute e confianccedila nas

crianccedilas jovens e adultos que constroem e reconstroem cotidianamente as suas vidas

nas comunidades que compotildeem a ilha do Accedilaiacute

A predominacircncia das praacuteticas colonizadoras caracteriza um modelo

pedagoacutegico que tem como cerne o padratildeo de educaccedilatildeo monocultural que suprime

qualquer diversidade cultural e epistemoloacutegica oriunda dos povos das aacuteguas

Defendemos a presenccedila da diversidade epistemoloacutegica no curriacuteculo das escolas

ribeirinhas como mecanismo de reconhecimento e validaccedilatildeo dos saberes locais e

produccedilatildeo das identidades e subjetividades dos sujeitos amazocircnidas Como afirma

Morreira (2009) o eixo central do curriacuteculo escolar eacute o conhecimento entatildeo

83 Trecho da letra da muacutesica Jeito Tucujuacute

211

precisamos romper com a colonialidade do saber que define o que (conteuacutedo) e como

(metodologia) deve ser ensinado

Defendemos a participaccedilatildeo da comunidade local na seleccedilatildeo do que deve ser

ensinado na escola onde estudam seus filhos e netos Natildeo podemos mais aceitar a

imposiccedilatildeo de um conhecimento escolar descontextualizado que reflete a realidade

das regiotildees industrializadas e que eacute determinado pela geopoliacutetica do conhecimento

Ao longo deste trabalho realizamos a cartografia dos saberes populares e

provamos que existe uma gnose liminar um pensamento fronteiriccedilo pois satildeo saberes

que existem e resistem permeiam o cotidiano e orientam as accedilotildees sociais produtivas

religiosas e culturais na ilha Esses saberes precisam ser visibilizados mas para que

isso ocorra o envolvimento e a participaccedilatildeo democraacutetica da comunidade eacute

fundamental na gestatildeo escolar

No decorrer da pesquisa procuramos a partir do referencial teoacuterico adotado

refletir criticamente sobre a educaccedilatildeo que temos e pensar em uma nova educaccedilatildeo

que integre toda a diversidade epistemoloacutegica e que possa atender agraves necessidades

e interesses das comunidades (vivemos numa sociedade multicultural com

manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas proacuteprias) e natildeo somente do capital que

valoriza apenas as questotildees econocircmicas e menospreza as culturais sociais e

religiosas

212

REFEREcircNCIAS ALMEIDA JR Joseacute Maria Gonccedilalves de (org) Carajaacutes desafio poliacutetico ecologia e desenvolvimento Satildeo Paulo Brasiliense 1986 ALVES-MAZZOTTI Alda Judith GEWANDSZNAJDE Fernando O meacutetodo nas ciecircncias naturais e sociais pesquisa quantitativa e qualitativa 2 ed Satildeo Paulo Pioneira 2002 ANGOTTI M Educaccedilatildeo infantil para que para quem e por quecirc In___ (Org) Educaccedilatildeo infantil para que para quem e por quecirc Campinas Aliacutenea 2010 AGUIAR J D N SANTOS J Freire dos Neodesenvolvimentismo brasileiro e subimperialismo na Ameacuterica Latina XII Semana de Ensino Pesquisa e Extensatildeo do Centro de Humanidades Universidade Federal de Campina Grande 2013 AMADEO Javier Marxismo e teoria poacutes-colonialidade 6ordm Coloacutequio Internacional Marx e Engels IFCH - UNICAMP Satildeo Paulo 2009 Disponiacutevel em httpwwwifchunicampbrcemarxcoloquioDocsgt7Mesa3marxismo-e-teoria-pos-colonialpdf Acesso em 23 fev 2014 ARROYO M G et al (Org)Por Uma Educaccedilatildeo do Campo Petroacutepolis-RJ Vozes 2004 APPLE W Michael Ideologia e curriacuteculo 3 Ed Porto Alegre Artmed 2006 BAPTISTA A M H ROGERO R (Org) Tempo-Memoacuteria na Educaccedilatildeo Satildeo Paulo BT Acadecircmica 2014 BALLESTRIN Luciana Ameacuterica Latina e o giro decolonial Revista Brasileira de Ciecircncia Poliacutetica Brasiacutelia v11 2013 pp 89-117 BGNO Marcos A liacutengua de Eulaacutelia novela sociolinguiacutestica 3 Ed Satildeo Paulo Contexto Editora 2004 BARDIN L Anaacutelise de Conteuacutedo 12 ed Lisboa Ediccedilotildees 7 2004 BECKER Bertha K Amazocircnia geopoliacutetica na virada do III milecircnio 2 ed Rio de Janeiro Garamond 2007

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216

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219

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220

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221

APEcircNDICE A ndash Roteiro de entrevista para a comunidade

OBJETIVO PERGUNTAS

Roteiro de perguntas para os moradores

Cartografar a partir das memoacuterias

dos moradores da ilha do Accedilaiacute os

saberes presentes no discurso e

nas praacuteticas cotidianas dos

ribeirinhos

Nome Idade Tempo em que mora na comunidade 1 Por que vocecirc mora na beira do rio

2 Qual a importacircncia do rio para a sua vida

3 Vocecirc conhece alguma histoacuteriaque envolva os

seres encantados aqui na ilha do Accedilaiacute

4 Quais satildeo as doenccedilas causadas pelos seres

encantados

5 Quem cura as doenccedilas causadas pelos seres

encantados E como elas satildeo curadas

6 Vocecirc participa de alguma atividade social ou

produtiva (caccedila pesca colheita do accedilaiacute e

outras)

7 Como vocecirc desenvolve essa atividade

8 O que eacute necessaacuterio para realizaacute-la

9 Quais os instrumentos utilizados para a

execuccedilatildeo desta atividade

10 Com quem vocecirc aprendeu a desenvolver

essa atividade

11 Vocecirc desenvolve essa atividade sozinho ou

a sua famiacutelia tambeacutem participa Como ocorre a

participaccedilatildeo da famiacutelia

12 O que vocecirc faz com o que eacute produzido

222

APEcircNDICE B ndash Roteiro de entrevista para os professores

OBJETIVO PERGUNTAS

Roteiro de perguntas para os Professores

Identificar na praacutetica pedagoacutegica

do professor a presenccedila do saber

popular dos ribeirinhos e as formas

como dialogam com o saber

escolar

Nome Idade Formaccedilatildeo profissional Tempo de experiecircncia com classes multisseriadas 1 Vocecirc fez o curso normal a niacutevel meacutedio

(magisteacuterio)

2 Onde vocecirc fez a sua graduaccedilatildeo

3 Vocecirc tem curso de especializaccedilatildeo Caso

positivo em que aacuterea do conhecimento

4 Vocecirc eacute oriundo da ilha do Marajoacute ou de outro

Municiacutepio ou Estado

5 Quem define os conteuacutedos que satildeo

trabalhados nas disciplinas do curriacuteculo da

educaccedilatildeo infantil e dos anos iniciais do ensino

fundamental

6 Os saberes da comunidade ribeirinha satildeo

incluiacutedos na lista de conteuacutedos a serem

trabalhados nas disciplinas Quais os criteacuterios

que vocecirc utiliza para selecionaacute-los

7 Devido agrave extensatildeo da lista de conteuacutedos nem

todos satildeo trabalhados durante o ano letivo

Quais satildeo os criteacuterios que vocecirc adota para

selecionar os conteuacutedos a serem trabalhados

8 Vocecirc participou da escolha do livro didaacutetico

que os alunos receberam este ano

9 Como vocecirc utiliza o livro didaacutetico nas aulas

223

10 Como vocecirc elabora o planejamento das aulas

para a classe multisseriada

11 Vocecirc inclui os saberes da comunidade no

planejamento das aulas Caso positivo como

ocorre a inclusatildeo desses saberes

12 Como os alunos satildeo organizados na sala de

aula multisseriada

13 Quais satildeo as metodologias mais utilizadas

para trabalhar os conteuacutedos nas aulas

14 Quais os recursos didaacuteticos mais utilizados

nas aulas Como satildeo utilizados

15 Como vocecirc trabalha o saber da comunidade

em sala de aula

224

APEcircNDICE C ndash Roteiro de observaccedilatildeo das aulas dos professores

1 Os saberes da comunidade ribeirinha satildeo incluiacutedos na lista de conteuacutedos a serem

trabalhados nas disciplinas e os criteacuterios utilizados para selecionaacute-los

2 Como o livro didaacutetico eacute utilizado nas aulas

3 Como o planejamento eacute elaborado pelo professor para a classe multisseriada e se

satildeo incluiacutedos os saberes da comunidade

4 A organizaccedilatildeo dos alunos na sala de aula multisseriada

5 As metodologias e os recursos didaacuteticos mais utilizados pelos professores para

trabalhar os conteuacutedos nas aulas

6 Como satildeo trabalhados os saberes da comunidade nas diversas disciplinas do

curriacuteculo pelos professores

225

APEcircNDICE D ndash Roteiro de observaccedilatildeo das atividades na comunidade

1 A importacircncia do rio para os ribeirinhos

2 As histoacuterias e as doenccedilas relacionadas aos seres encantados

3 As praacuteticas do benzedor e da parteira assim como os remeacutedios que utilizam para

curar as doenccedilas

4 As atividades sociais e produtivas (caccedila pesca colheita do accedilaiacute e outras) e como

satildeo desenvolvidas

6 Os instrumentos confeccionados e utilizados para a execuccedilatildeo das atividades

produtivas

7 O processo de aprendizagem para a confecccedilatildeo dos instrumentos e utilizaccedilatildeo no

desenvolvimento das atividades produtivas

2

Almeida Edielso Manoel Mendes de

Um estudo do diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber

popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute Edielso Manoel Mendes de

Almeida 2016

227 f

Tese (doutorado) ndash Universidade Nove de Julho - UNINOVE Satildeo

Paulo 2016

Orientador (a) Profordf Drordf Ana Maria Haddad Baptista

1 Ecologia de saberes 2 Diversidade epistemoloacutegica 3 Saber

popular 4 Amazocircnia

I Baptista Ana Maria Haddad II Titulo

CDU 37

3

ECOLOGIA DE SABERES

Um estudo do diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o

saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute

___________________________________________________________________

Orientadora Prof Dra Ana Maria Haddad Baptista (UNINOVE)

________________________________________________________________

Examinador I Prof Dra Diana Navas (PUCSP)

________________________________________________________________

Examinador II Prof Dra Mocircnica Rebecca Ferrari Nunes (ESPM)

________________________________________________________________

Examinador III Prof Dr Mauriacutecio Silva(UNINOVE)

________________________________________________________________

Examinador IV Prof Dr Manuel Tavares Gomes (UNINOVE)

________________________________________________________________

Suplente Prof Dra Carminda Mendes Andreacute (UNESP)

________________________________________________________________

Suplente Prof Dr Joseacute Eduardo de Oliveira Santos (UNINOVE)

Aprovadoem __________________

Tese apresentada agrave Universidade Nove de Julho

junto ao Programa de Mestrado e Doutorado em

Educaccedilatildeo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em

Educaccedilatildeo pela banca examinadora formada por

4

AGRADECIMENTOS

A todos os meus professores do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo

da Universidade Nove de Julho (UNINOVE) que socializaram seus conhecimentos e

experiecircncias

A professora Ana Maria Haddad Baptista por acreditar em mim aceitando-

me como orientando e pelo apoio moral nos momentos difiacuteceis que vivenciei em Satildeo

Paulo

A diretora da Escola Poacutelo e aos professores e professoras da Ilha do Accedilaiacute pela

recepccedilatildeo companheirismo e acolhimento no periacuteodo da pesquisa de campo

A todos os ribeirinhos e ribeirinhas que vivemconvivem na Ilha do Accedilaiacute

Aos membros da banca de qualificaccedilatildeo professores Diana Navas e Manuel

Tavares Gomes pela leitura criteriosa do trabalho o que contribuiu significativamente

no processo de construccedilatildeo e conclusatildeo da tese

Aos professoresMauricio Silva e Mocircnica Rebecca Ferrari Nunes que se

disponibilizaram em compor a banca de defesacom os demais professores

A minha famiacutelia em especial a querida matildeezinhaMaria Joseacute Mendes de

Almeida que sempre acreditou na capacidade de seus filhos eIn memoriam ao meu

paiMerciacutedio Gomes de Almeida pelos ensinamentos que me proporcionou durante

sua existecircncia neste mundo

A Edmar Souza das Neves grande amigo companheiro de viagem e de

caminhada neste doutorado que sempre me incentivou a ldquovoarrdquo mais alto

E a todos que contribuiacuteram com a realizaccedilatildeo deste trabalho mas que natildeo

foram citadossintam-se contemplados pois esta conquista eacute um pouco de cada um

de noacutes

5

RESUMO

Estapesquisa apresenta como temaacutetica a Ecologia de Saberes um estudo do

diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute

na qual investigamos como ocorre o diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos professores

que atuam em classes multisseriadas entre o conhecimento escolar e o saber popular

das comunidades ribeirinhas da referida ilha Numa perspectiva mais ampla a

pesquisa objetiva analisar o modo como o saber escolar dialoga com os outros

saberes de caraacuteter popular decorrentes da diversidade cultural e por isso

epistemoloacutegicaDe forma mais especiacutefica a pesquisa objetivarealizar um estudo a

partir das memoacuterias dos moradores da ilha do Accedilaiacute em relaccedilatildeo aos saberes presentes

no discurso e nas praacuteticas cotidianas dos ribeirinhos bem como identificar na praacutetica

pedagoacutegica do professor a presenccedila do saber popular dos ribeirinhos e as formas

como dialogam com o saber escolar e averiguar como as populaccedilotildees ribeirinhas

foram se constituindona Amazocircnia brasileira e a relaccedilatildeo entre o saber popular

produzido por essa populaccedilatildeo com os aspectos culturais sociais e econocircmicos do

municiacutepio de Afuaacute Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa do tipo estudo

etnograacutefico realizado em cinco comunidades ribeirinhas que compotildeem a ilha do Accedilaiacute

no municiacutepio de Afuaacute no Estado do Paraacute tendo como base para fundamentaccedilatildeo

teoacuterica a Ecologia de Saberes proposta por Boaventura de Souza Santos e o diaacutelogo

na concepccedilatildeo de Paulo Freire Os resultados indicam que o saber popular dos

ribeirinhos estaacute relacionado com o contexto social econocircmico cultural e religioso no

qual estatildeo imersosesses povos estabelecem entre si e com os outros relaccedilotildees de

trocas materiais e simboacutelicas No tocante ao diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos

professores esteocorre de forma vertical (colonizadora) e horizontal

(descolonizadora) com a predominacircncia das praacuteticas colonizadoras nas quais o

diaacutelogo ocorre verticalmente por meio da imposiccedilatildeo do saber escolar e o natildeo

reconhecimento do saber popular

Palavras-chave Ecologia de Saberes Diversidade Epistemoloacutegica Saber Popular

Amazocircnia

6

ABSTRACT

This research brings as a theme ldquoEcologyrsquos Knowledge a study about the dialog

between school and popular knowledge by people that live in Accedilai Island (called in

Portuguese ldquoRibeirinhosrdquo) it was done a survey to investigate how is the teachers

pedagogic practice considering teachers that work with different levels in the same

class and how is the dialog between school and popular knowledge in ldquoRibeirinhos

communityrdquo in Accedilai Island In a holistic view the research aims to analyze how the

school knowledge dialog with others popular knowledge considering cultural diversity

and epistemological In specific way this study tries to understand the Accedilai residents

memories about knowledge presents in daily ldquoRibeirinhosrdquo discuss and practice As

well as aims to identify the popular presence and the way that occur the knowledge

dialog in teachers pedagogic practice and to inquire how ldquoRibeirinhosrdquo people were

compounded in Brazilian Amazon and the relation between popular knowledge that

these people produced with cultural social and economic aspects in Afuaacute district It is

a qualitative search with ethnographic study produced in five (05) ldquoRibeirinhasrdquo

Community that are in Accedilai Island in Afuaacute district in Paraacute state As theory base this

search used the Ecologyrsquos knowledge suggestion by Boaventura de Souza Santos and

the dialog Paulo Freirersquos concept The results present that popular knowledge is linked

with social economical cultural and religion contexts where they are These people

establish themselves a kind of material and symbolic transposition relation About

dialogs teacherrsquos pedagogic practice there is a vertical (colonizer) and horizontal

(decolonized) way where Colonizer practices are predominate and the dialogs occur

vertically by school knowledge imposition and the popular knowledge itrsquos not

recognized

Key words Knowledge Ecology Epistemological diversityPopular Knowledge

Amazon

7

RESUMEN

Esta investigacioacuten presenta el tema de la ecologiacutea del conocimiento un estudio

del diaacutelogo entre el conocimiento escolar y el saber popular de los riberentildeos de la isla

del Accedilaiacute en la cual investigamos coacutemo el diaacutelogo en la praacutectica pedagoacutegica de los

docentes que trabajan en multisseriadas clases entre el conocimiento y el saber de

las comunidades riberentildeas de esta isla En una perspectiva maacutes amplia la

investigacioacuten pretende examinar coacutemo el saber de la escuela dialoga con otros

conocimientos derivados de la diversidad cultural y epistemoloacutegica por lo tanto de

caraacutecter popular Maacutes especiacuteficamente la investigacioacuten tiene como objetivo realizar

un estudio de los recuerdos de los habitantes de la isla de Accedilaiacute en relacioacuten a los

conocimiento presente en el discurso y en las praacutecticas diarias de los riberentildeos bien

como identificar en la praacutectica pedagoacutegica del maestro la presencia de los

conocimientos populares de riberentildeos y como es el diaacutelogo con la escuela y su

conocimiento descubrir coacutemo las poblaciones reasentadas si constituyeron en

Amazonia brasilentildea y la relacioacuten entre el conocimiento de las personas producidas

por esta poblacioacuten con los aspectos culturales sociales y econoacutemicos del municipio

de Afuaacute Es una investigacioacuten cualitativa de tipo etnograacutefico estudio en cinco

comunidades riberentildeas que conforman la isla de Accedilaiacute en el municipio de Afuaacute en el

estado de Paraacute la base para la fundamentacioacuten teoacuterica la Ecologiacutea del Conocimiento

propuesta por Boaventura de Souza Santos y el diaacutelogo desde la concepcioacuten en Paulo

Freire Los resultados indican que el saber de la poblacioacuten riberentildea estaacute relacionado

con el contexto social econoacutemico cultural y religioso en el que estaacute inmerso Estas

pueblos establecen entre siacute y con otros intercambio de materiales y simboacutelicas En

relacioacuten con el diaacutelogo sobre la praacutectica pedagoacutegica de docentes se produce

verticalmente (colonizacioacuten) y horizontal (descolonizadora) con el predominio de

praacutecticas coloniales en el que el diaacutelogo se produce verticalmente a traveacutes de la

imposicioacuten de conocimiento y el no reconocimiento del saber popular

Palabras clave Ecologiacutea del conocimiento Diversidad epistemoloacutegica Saber Popular

Amazonia

LISTA DE FOTOGRAFIAS

8

Fotografia 1 -Mina de ferro Carajaacutes no Estado do Paraacute

Fotografia 2 - Reassentamento coletivo urbano para os atingidos pela usina

Fotografia 3 - Vista aeacuterea da construccedilatildeo da barragem de Belo Monte em Altamira

Paraacute

Fotografia 4 - Peixes mortos ao longo das margens do Rio Araguari no municiacutepio de

Ferreira Gomes estado do Amapaacute

Fotografia 5 - Passarela de madeira no bairro Capimarinho

Fotografia 6 ndash Trabalhador autocircnomo (carreteiro) transportando mercadoria

Fotografia 7 - Igreja de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo

Fotografia 8 ndash Ribeirinho jogando a tarrafa no rio

Fotografia 9 ndashAacuterea desmatada para o plantio de milho

Fotografia 10 ndash Casas construiacutedas em aacuterea de invasatildeo no bairro Capimarinho

Fotografia 11 ndash Centro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery

Fotografia 12 ndash Classe multisseriada

Fotografia 13 ndash Laboratoacuterio de Informaacutetica da EMEF Frei Faustino Lagarda

Fotografia 14 -Escola ribeirinha que funciona como anexo

Fotografia 15 - Sala de aula de uma escola ribeirinha que funciona como anexo

Fotografia 16 - Escola Polo

Fotografia 17 - Preacutedio da Escola B

Fotografia 18 - Preacutedio da Escola E

Fotografia 19 ndash Cascos feitos de madeira Cedro

Fotografia 20 ndash Ribeirinho levando o filho para a escola no casco

Fotografia 21 ndash Ribeirinha pescando com o caniccedilo

Fotografia 22 ndash Ribeirinho com o filho colocando a malhadeira no rio

Fotografia 23 - Ribeirinho tecendo a malhadeira

Fotografia 24 ndash Matapi

Fotografia 25 - Benzedor benzendo uma crianccedila com susto

Fotografia 26 ndash Ribeirinha cuidando da horta

Fotografia 27 ndash Marupazinho

Fotografia 28 ndash Peacute de Mastruz

Fotografia 29 ndash Peacute de Capim Marinho

Fotografia 30 ndash Peacute de Noni

Fotografia 31 ndash Sementes de Cacau

9

Fotografia 32 ndash Erva Cidreira

Fotografia 33ndash Catinga de Mulata

Fotografia 34 ndash Palmeira de Buriti

Fotografia 35 - Peacutes de Accedilaiacute

Fotografia 36 ndash Menino subindo no Accedilaizeiro

Fotografia 38 ndash Instrumentos utilizados para a colheita de accedilaiacute

Fotografia 39 ndash Menina debulhando o cacho de accedilaiacute

Fotografia 40 ndash Amassadeira eleacutetrica

Fotografia 41 ndash Amassadeira manual

Fotografia 42 ndash Ribeirinha amassando o accedilaiacute com as matildeos

Fotografia 43 ndash Lista de conteuacutedos da disciplina Ciecircncias

Fotografia 44 ndash Fragmentos do conteuacutedo sobre ldquoecossistemardquo no caderno de aluno

Fotografia 45 ndash Fragmentos do conteuacutedo sobre ldquoos animaisrdquo no caderno de aluno

Fotografia 46 ndash Conteuacutedo referente ao tem ldquomoradiardquo abordado no livro didaacutetico da

disciplina Artes para o 1ordm 2ordm e 3ordm ano do ensino fundamental

Fotografia 47 ndash Sala de aula multisseriada

LISTA DE TABELAS

10

Tabela 01 - Membros do grupo ModernidadeColonialidade

Tabela 02 ndash Comparaccedilatildeo da produccedilatildeo de accedilaiacute no intervalo de quatro anos

Tabela 03 ndash Quantidade de Alunos matriculados no CEI

Tabela 04 ndash Percentual de atendimento das crianccedilas de 0 a 3 anos

Tabela 05 - Percentual de atendimento das crianccedilas de 4 a 5 anos em Afuaacute

Tabela 06 ndash Estabelecimentos de ensino fundamental por dependecircncia administrativa

Tabela 07 - Distorccedilatildeo idadeseacuterie no ensino fundamental

Tabela 08 - Taxa de rendimento escolar no ensino fundamental em 2015 ndash aacuterea

urbana

Tabela 09 ndash Escolas que compotildeem o Regional Madeira com o nuacutemero de alunos no

ano de 2016

Tabela 10 ndash Distribuiccedilatildeo das turmas da Educaccedilatildeo Infantil e anos iniciais do ensino

fundamental por professor

Tabela 11 ndash Os professores sujeitos da pesquisa

Tabela 12 ndash Os moradores sujeitos da pesquisa

Tabela 13 ndash Categorias aprioriacutesticas

Tabela 14 ndash Categorias aprioriacutesticas

Tabela 15 ndash Categorias natildeo aprioriacutesticas

LISTA DE MAPAS

11

Mapa 01 Localizaccedilatildeo Geograacutefica do municiacutepio de Afuaacute

Mapa 02 Mapa da ilha de Marajoacute indicando a proximidade de Afuaacute com o Macapaacute

LISTA DE SIGLAS

12

CAETA - Comissatildeo Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a

Amazocircnia

CEI- Centro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery

EJA - Educaccedilatildeo de Jovens e Adultos

ECA - Estatuto da Crianccedila e do Adolescente

ICOMI ndash Sociedade Brasileira de Industria e Comercio de Mineacuterios de Ferro e

Manganecircs

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica

IDH ndash Iacutendice de Desenvolvimento Humano

INEP ndash Instituto Nacional de Ediccedilotildees Pedagoacutegicas

IDEB ndash Iacutendice de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo Baacutesica

LDBEN ndash Lei de Diretrizes e Base da Educaccedilatildeo Nacional

MEC - Ministeacuterio da Educaccedilatildeo

NEC - Nuacutecleo de Educaccedilatildeo do Campo

PME - Plano Municipal de Educaccedilatildeo

PNAD ndash Pesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelio

PNDU -Programa das Naccedilotildees Unidas para o Desenvolvimento

PNLD- Programa Nacional do Livro Didaacutetico

SEMED - Secretaacuterias Municipais de Educaccedilatildeo

SEED - Secretaria de Estado da Educaccedilatildeo do Amapaacute

SEMTA - Serviccedilo Especial de Mobilizaccedilatildeo de Trabalhadores para a Amazocircnia

UEPA - Universidade do Estado do Paraacute

UNIFAP - Universidade Federal do Amapaacute

SUMAacuteRIO

13

APRESENTACcedilAtildeO 15

INTRODUCcedilAtildeO 19

1ESTUDOS TEOacuteRICOS DA PESQUISA 24

11A ECOLOGIA DE SABERES 24

111O Paradigma hegemocircnico 24

112 A crise do paradigma hegemocircnico 26

113 O Conhecimento Prudente para uma Vida Decente 28

114 A criacutetica da razatildeo indolente 30

115 Ecologia de Saberes o reconhecimento dos saberes nascido das lutas

dosoprimidos

38

12 A DESCOLONIZACcedilAtildeO EPISTEMOLOacuteGICA 42

121Os Estudos Poacutes-Coloniais 42

122A colonialidade do poder 47

123 Gnose ou pensamento liminar 53

13O DIAacuteLOGO ponto de partida para praacuteticas transformadoras 59

2 A EDUCACcedilAtildeO DAS POPULACcedilOtildeES RIBEIRINHAS NA AMAZOcircNIA 64

21 UM MERGULHO NA AMAZOcircNIA BRASILEIRA 64

22 POVOS DA AMAZOcircNIA os ribeirinhos 80

23 AFUAacute a Veneza Marajoara 85

231 Aspectos Histoacutericos Geograacuteficos e Econocircmicos 86

24 A EDUCACcedilAtildeO RIBEIRINHA NO MUNICIacutePIO DE AFUAacute 99

241 Educaccedilatildeo Infantil 99

242 Ensino Fundamental e Meacutedio 106

3 PERCURSO METODOLOacuteGICO 115

31 TIPO E LOCAL DA PESQUISA 115

32 PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS PARA A COLETA DE DADOS 120

33 CARACTERIZACcedilAtildeO DOS SUJEITOS DA PESQUISA 124

34 TEacuteCNICA DE ANAacuteLISE DOS DADOS 125

341 A emergecircncia das categorias de anaacutelise da Pesquisa 127

4ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS 130

41 O SABER POPULAR DOS RIBEIRINHOS DA ILHA DO ACcedilAIacute 130

411 Saberes das Aacuteguas 134

412 Saberes da Terra e da Mata 147

14

413 Saberes do Accedilaiacute 156

42 O DIAacuteLOGO ENTRE O CONHECIMENTO ESCOLAR E O SABER POPULAR 164

421 O Conhecimento Escolar 164

4211 O conhecimento escolar na oacutetica dos professores 166

422O Livro Didaacutetico 173

423O Planejamento das Aulas 180

4231 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma

perspectiva colonizadora

181

4232 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma

perspectiva descolonizadora

183

424 Metodologias de Ensino e Aprendizagem 186

4241 Professores que desenvolveram praacuteticas colonizadoras 187

4242 Professores que desenvolveram praacuteticas descolonizadoras 193

5CONCLUSAtildeO 206

REFERENCIAS 214

APEcircNDICES

APEcircNDICE A ndash Roteiro de entrevista para a comunidade 223

APEcircNDICE B ndash Roteiro de entrevista para os professores 224

APEcircNDICE C ndash Roteiro de observaccedilatildeo das aulas 226

APEcircNDICE D ndash Roteiro de observaccedilatildeo das atividades na comunidade 227

APRESENTACcedilAtildeO

15

Investigar a Amazocircnia eacute um desafio devido ao vasto territoacuterio que a compotildee e

a diversidade eacutetnica e cultural que a caracteriza A vastidatildeo geograacutefica e os aspectos

multiculturais das populaccedilotildees que habitam a regiatildeo fazem com que a Amazocircnia natildeo

seja concebida como uniacutevoca mas sim como espaccedilo pluralizado e multicultural

Nesses espaccedilos a populaccedilatildeo que eacute diversificada constroacutei e reconstroacutei

cotidianamente as Amazocircnias Nesta tese investigamos a Amazocircnia ribeirinha na

qual o rio e a mata tecircm um papel preponderante nos aspectos econocircmicos sociais

culturais e religiosos dos povos que habitam esta regiatildeo

Como oriundo da Amazocircnia Ribeirinha vivenciei desde a infacircncia a convivecircncia

com o rio por meio da pesca do peixe e camaratildeo dos banhos e brincadeiras nas

aacuteguas com a mata atraveacutes da caccedila de animais silvestres e feitura de roccedila para plantar

milho melancia mandioca macaxeira e maxixe para o consumo bem como trocar e

vender Tambeacutem aprendi a confeccionar os utensiacutelios necessaacuterios agrave produccedilatildeo

econocircmica dentre os quais o paneiro para colocar camaratildeo e o accedilaiacute o casco para

navegar nos rios o matapi para pegar o camaratildeo a malhadeira e o caniccedilo para

pescar dentre outros necessaacuterios para a sobrevivecircncia neste contexto

Minha famiacutelia era ribeirinha oriunda da Ilha dos Caraacutes no municiacutepio de Afuaacute

que pertence ao estado do Paraacute Como na ilha natildeo havia escola os pais que

quisessem que seus filhos estudassem tinham que mudar para cidade foi o que os

meus fizeram pois acreditavam que com acesso agrave educaccedilatildeo escolar seus filhos

poderiam ter uma vida melhor da que eles levavam Aos sete anos jaacute estava morando

em Macapaacute capital do estado do Amapaacute e matriculado na 1ordf seacuterie do ensino

fundamental

Inicialmentea convivecircncia com a escola natildeo foi muito boafui muitas vezes

repreendido pelas minhas professoras devido agrave forma como falava a minha

linguagem era oriunda do meio social no qual vivia ou seja dos ribeirinhos

considerada pela escola como ldquofeiardquo ldquoincorretardquo Assim dificilmente abria a boca nas

aulas geralmente apenas respondia ldquopresenterdquo na hora da chamada quando meu

nome era citado Isso me fez ter vergonha da minha proacutepria linguagem e para

sobreviver neste meio foi preciso reaprender a falar de acordo com a liacutengua dominante

considerada correta culta e hegemocircnica

Conclui o ensino fundamental e em 1985fui aprovado no teste de seleccedilatildeo para

o curso de formaccedilatildeo de professores a niacutevel meacutedio no Instituto de Educaccedilatildeo do

Territoacuterio do Amapaacute (IETA) instituiccedilatildeo puacuteblica que formava professores para atuar na

16

educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do ensino fundamental Durante o referido curso fui

aos poucos motivado pela professora da disciplina Didaacutetica e principalmente pelos

meus colegas de turma perdendo a timidez e ficando mais a vontade para falar pois

nas aulas a professora fazia perguntas queria saber nossa opiniatildeo sobre os temas

das aulas abria espaccedilo para o debate garantia a todos o direito agrave palavra

No ano de 1988 iniciei a carreira docente em uma escola ribeirinha no

Municiacutepio de Macapaacute Tinha acabado de concluir o curso de formaccedilatildeo de professores

para ldquoaprender a ensinarrdquo1e fui encaminhado juntamente com meus colegas receacutem-

formados para o interior2 O meio de transporte que utilizaram para nos distribuir nas

comunidades foi o caminhatildeo e onde o carro natildeo podia entrar trocaacutevamos o

caminhatildeo por barcos voadeiras ou catraios3 para chegar ao futuro local de trabalho

Era professor receacutem-formado sem experiecircncia de sala de aula tendo a

responsabilidade de ministrar aulas de 1ordf a 4ordf seacuteries em classes multisseriadas4

sozinho sem ter nenhum colega de trabalho para dividir as duacutevidas as anguacutestias e

as dificuldades Assim a docecircncia foi aprendida na praacutetica pois no curso de

formaccedilatildeo natildeo estudamos o processo de ensino e de aprendizagem com classes

multisseriadas Aliaacutes nunca discutimos a educaccedilatildeo ribeirinha apesar de vivermos na

Amazocircnia uma regiatildeo repleta de rios e florestas Trabalhei na escola para a qual fui

designado durante seis anos e vim para a cidade apoacutes a aprovaccedilatildeo no vestibular para

o curso de Pedagogia na Universidade Federal do Amapaacute (UNIFAP)

Concluiacuteda a graduaccedilatildeo passei a trabalhar como docente em uma instituiccedilatildeo

de formaccedilatildeo de professores para educaccedilatildeo infantil e seacuteries iniciais do ensino

fundamental Nesta escola formamos um grupo de estudos para discutir e refletir

sobre a educaccedilatildeo do campo na Amazocircnia e especificamente no Amapaacute A literatura

era escassa e tiacutenhamos acesso a poucas obras sobre o assunto Essa escassez

reflete os poucos estudos e investigaccedilotildees referentes a essa temaacutetica Em relaccedilatildeo a

isso explica Arroyo (2004 p 8) que ldquosomente 2 das pesquisas dizem respeito a

questotildees do campo natildeo chegando a 1 as que tratam especificamente da educaccedilatildeo

1 Expressatildeo usada pelo gestor do setor de Educaccedilatildeo do campo da Secretaria de Educaccedilatildeo na primeira e uacutenica reuniatildeo na qual fomos informados de que iriacuteamos trabalhar na zona rural 2 Expressatildeo comumente utilizada para se referir agraves escolas localizadas fora da aacuterea urbana do muniacutecipio 3 Pequenos barcos movidos a motor que fazem o transporte de pessoas e pequenas cargas nos rios da Amazocircnia 4 Escolas nas quais somente um professor (a) atua ao mesmo tempo e no mesmo espaccedilo com todas as turmas das seacuteries iniciais do ensino fundamental Em algumas comunidades o professor ou a professora assume tambeacutem a educaccedilatildeo infantil

17

escolar no meio ruralrdquo Isso nos fez criar um projeto no qual convidaacutevamos professores

das escolas ribeirinhas dos assentamentos das comunidades quilombolas das

regiotildees de garimpos dentre outras para dialogarem com os professores e os alunos

do magisteacuterio (como chamaacutevamos o curso de formaccedilatildeo de professores) Em seguida

decidimos ir ateacute essas escolas Foi um projeto ousado Enfrentamos muitos

obstaacuteculos que geralmente os educadores que atuam nessas instituiccedilotildees enfrentam

constantemente eles abrangem desde o apoio logiacutestico ateacute a burocracia das

Secretaacuterias Municipais de Educaccedilatildeo (SEMED)

Posteriormente em 2002 assumi a disciplina Estrutura e Funcionamento da

Educaccedilatildeo Baacutesica no curso de Pedagogia no polo5 de Afuaacute como professor substituto

na UNIFAP Este foi o primeiro contato que tive com o municiacutepio conhecido como a

ldquoVeneza Marajoarardquo famoso por seu Festival do Camaratildeo que atrai milhares de

pessoas de todos os cantos do paiacutes e do exterior no mecircs de julho

O polo universitaacuterio ao qual fui designado funcionava apenas nos meses de

janeiro e julho em uma escola puacuteblica de ensino fundamental e meacutedio Os alunos da

turma de Pedagogia eram todos professores nas escolas ribeirinhas6 pertencentes ao

sistema de ensino de Afuaacute As nossas aulas partiam das discussotildees das garantias

constitucionais sobre a educaccedilatildeo da Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional

e das receacutem-aprovadas Diretrizes Operacionais para a Educaccedilatildeo Baacutesica nas Escolas

do Campo uma vez que para eles estas leis ainda natildeo tinham ldquonascidordquo naquele

lugar visto que a realidade educacional vivenciada nas escolas ribeirinhas estava

longe do que estabelecem as leis

No ano de 2009 conclui o mestrado em Educaccedilatildeo pela Universidade do Estado

do Paraacute (UEPA) no qual investiguei a praacutetica pedagoacutegica do professor em escolas

ribeirinhas na Amazocircnia Paraense Em seguida comecei a trabalhar na Secretaria de

Estado da Educaccedilatildeo do Amapaacute (SEED) especificamente no Nuacutecleo de Educaccedilatildeo do

Campo (NEC) setor responsaacutevel pelo planejamento execuccedilatildeo e avaliaccedilatildeo dos cursos

de formaccedilatildeo continuada dos professores das escolas do campo da rede estadual de

ensino Trabalhei neste setor ateacute a minha aprovaccedilatildeo para cursar o doutorado

5 Os polos universitaacuterios funcionavam nos municiacutepios que firmavam convecircnio com a UNIFAP para a formaccedilatildeo em niacutevel superior dos professores do seu sistema de ensino 6 Utilizaremos a expressatildeo ldquoescolas ribeirinhasrdquo pois todas as escolas situadas no meio rural de Afuaacute satildeo ribeirinhas Acreditamos que assim destacaremos as singularidades da realidade vivenciada pelos atores sociais que vivem e sobrevivem do rio e da mata

18

Portanto a incursatildeo na temaacutetica da educaccedilatildeo ribeirinha na Amazocircnia faz parte

da minha histoacuteria de vida pessoal e profissional Neste estudo investigamos uma

faceta desta regiatildeo denominada de Amazocircnia Afuaense que aprofundamos no

decorrer desta tese

INTRODUCcedilAtildeO

Esta tese intituladaEcologia de Saberes um estudo do diaacutelogo entre o

conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute analisa no

acircmbito da educaccedilatildeo baacutesica especificamente na educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do

ensino fundamental o diaacutelogo entre diferentes tipos de conhecimentos Tecircm como

19

objeto de estudo investigar como dialogam o saber popular dos ribeirinhos da ilha do

Accedilaiacute e o saber escolar (saber hegemocircnico) na praacutetica pedagoacutegica dos professores

que atuam em classes multisseriadas nas escolas da referida ilha

Utilizamos como referencial teoacutericopara fundamentar a pesquisa a concepccedilatildeo

de ecologia de saberes proposta por Boaventura de Souza Santos e o diaacutelogo na

visatildeode Paulo Freire Na ecologia de saberes o mundo eacute um arco-iacuteris policromaacutetico

(SANTOS 2008) sendo assim haacute uma diversidade de culturas com diferentes formas

de produzir saberes que orientam suas atividades produtivas sociais culturais e

religiosas O reconhecimento da diversidade epistemoloacutegica existente no mundoeacute

essencial para que se efetivem praacuteticas nas quais os saberes possam dialogar numa

relaccedilatildeo de igualdade sem a imposiccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico como hegemocircnico

O termo ecologia de acordo com Santos (2008 p 157) ldquoassenta no reconhecimento

da pluralidade de saberes heterogecircneos da autonomia de cada um deles e da

articulaccedilatildeo sistemaacutetica dinacircmica e horizontal entre elesrdquo

Para Freire (2014) o diaacutelogo se constitui no encontro entre educador e

educandos que refletem e agem sobre o mundo a ser transformado e humanizado

Portanto o diaacutelogo eacute comunicaccedilatildeo pois conhecemos a realidade na interaccedilatildeo com

nossos semelhantes o que o torna tambeacutem social apesar da dimensatildeo individual

haja vista que eacute por meio dele que podemos atuar criticamente para transformar a

realidade na qual vivemos

O diaacutelogo segundo Freire (2014) para ser um elemento de humanizaccedilatildeo e

transformaccedilatildeo precisa ser repleto de amor humildade feacute e confianccedila nos homens

bem como esperanccedila aliada agrave luta pela mudanccedila No diaacutelogo todos tecircm que ter

garantido o direito agrave palavra que para o autor eacute considerada praacutexis (accedilatildeo-reflexatildeo-

accedilatildeo)

Assim investigamos o diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber popular

dos ribeirinhos na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam em classes

multisseriadas e desenvolvem suas atividades profissionais nas escolas situadas na

ilha do Accedilaiacute pertencente ao municiacutepio de Afuaacute no estado do Paraacute

A opccedilatildeo pelo referido municiacutepio deu-se por trecircs motivos O primeiro foi o contato

que tive como docente no polo da Universidade Federal do Amapaacute (UNIFAP) periacuteodo

em que vivenciei a formaccedilatildeo em niacutevel superior no curso de Pedagogia dos

professores do referido muniacutecipio Os constantes diaacutelogos dentro e fora da sala de

aula aguccedilaram-me o interesse em investigar a praacutetica pedagoacutegica com turmas

20

multisseriadas nas quais somente um professor assume a responsabilidade pelo

ensino de crianccedilas da educaccedilatildeo infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental e

tambeacutem de adolescentes e adultos porque nas comunidades ribeirinhas eacute comum

encontraacute-los estudando nas turmas do 1ordm ao 5ordm ano Sendo assim ldquoas classes

multisseriadas satildeo espaccedilos marcados predominantemente pela heterogeneidade ao

reunirem grupos com diferenccedilas de sexo de idade de interesses de domiacutenio de

conhecimentos de niacuteveis de aproveitamento etcrdquo (HAGE 2005 p 6)

O segundo motivo foi o nuacutemero significativo de escolas ribeirinhas de acordo

com os dados obtidos na Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo (SEMED) em 2015 foram

contabilizadas 207 escolas localizadas na zona rural7 Neste estudo satildeo

consideradas escolas ribeirinhas pois estatildeo situadas agraves margens de rios lagos furos

ou igarapeacutes nas comunidades ribeirinhas Este montante corresponde a 982 do

total de escolas do sistema municipal de ensino de Afuaacute que estaacute organizado

administrativa e pedagogicamente em 24 regionais Os regionais satildeo agrupamentos

de escolas de acordo com a sua localizaccedilatildeo geograacutefica Esta foi a estrateacutegia adotada

pela Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo (SEMED) para atender agrave diversidade

geograacutefica da regiatildeo

O terceiro motivo estaacute voltado para a continuidade da pesquisa que realizei no

mestrado na qual investiguei ldquoos saberes mobilizados e produzidos na praacutetica

pedagoacutegica dos professores ribeirinhos em classes multisseriadas que atuam na

referida ilhardquo Neste estudo cheguei agrave conclusatildeo de que os professores produzem

saberes a partir do contexto no qual desenvolvem suas atividades profissionais no

doutorado resolvi investigar como acontece o diaacutelogo entre o saber popular e o

escolar compreendendo que a maneira como o diaacutelogo ocorre na praacutetica pedagoacutegica

do professor estaacute vinculado com o saber produzido por este docente

Dentre os regionais optamos por continuar a investigaccedilatildeo no Regional

Madeira devido a algumas caracteriacutesticas que o distinguem dos outros regionais

dentre elas o horaacuterio das aulas nas escolas eacute de acordo com a mareacute ou seja os rios

e igarapeacutes da regiatildeo na mareacute vazante inviabilizam a entrada dos catraios para o

transporte dos alunos sendo necessaacuterio esperar a mareacute encher para poder adentraacute-

los a economia das comunidades que compotildeem o regional eacute baseada quase que

7 Os teacutecnicos da SEMED chamam escolas da zona rural mas todas as 207 escolas estatildeo localizadas em ilhas ou as margens de rios furos ou igarapeacutes por isso as consideramos ribeirinhas

21

exclusivamente na colheita do accedilaiacute Outra caracteriacutestica que nos fez optar pelo citado

regional foi a proximidade com Macapaacute onde reside o pesquisador o que viabilizou a

pesquisa de campo devido agrave facilidade de transporte (a viagem de catraio ateacute as

escolas do regional dura em meacutedia 90 a 120 minutos) e permanecircncia no local da

pesquisa8

Diante deste contexto partimos nesta investigaccedilatildeo da seguinte questatildeo

problema Como ocorre o diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam

em classes multisseriadas entre o conhecimento escolar e o saber popular das

comunidades ribeirinhas da ilha do Accedilaiacute

Como objetivo geral propomos analisar o modo como o saber escolar dialoga

com os outros saberes de caraacuteter popular decorrentes da diversidade cultural e por

isso epistemoloacutegica E como especiacuteficos Cartografar a partir das memoacuterias dos

moradores da ilha do Accedilaiacute os saberes presentes no discurso e nas praacuteticas cotidianas

dos ribeirinhos identificar na praacutetica pedagoacutegica do professor a presenccedila do saber

popular dos ribeirinhos e as formas como dialogam com o saber escolar averiguar

como as populaccedilotildees ribeirinhas foram se constituindona Amazocircnia brasileira e a

relaccedilatildeo entre o saber popular produzido por essa populaccedilatildeo com os aspectos

culturais sociais e econocircmicos do municiacutepio de Afuaacute

O municiacutepio de Afuaacute pertence ao estado do Paraacute Estaacute situado no arquipeacutelago

do Marajoacute que eacute uma ilha com uma aacuterea de aproximadamente 40100 kmsup2 eacute a maior

ilha do Brasil e tambeacutem a maior fluviomariacutetima do mundo

Afuaacute fica agraves margens dos rios Cajuuna Afuaacute e Marajozinho como a maioria

das cidades ribeirinhas na Amazocircnia nasceu ao redor de uma igreja catoacutelica

denominada Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo atraveacutes de terras doadas por Micaela

Ferreira no final do seacuteculo XIX Possui forte viacutenculo com os rios atraveacutes da pesca do

lazer e do uso como via para o meio de transporte Eacute uma cidade pequena de acordo

com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) de 2013 possuiacutea

em torno de 15 mil habitantes Localmente a prefeitura e alguns grupos de

propagandistas a definem como Veneza Marajoara ou Veneza Amazonense pois

a cidade se levanta sobre as aacuteguas Embora a comparaccedilatildeo seja supeacuterflua eacute fato que

8 Durante a pesquisa de campo fiquei hospedado nas escolas ribeirinhas onde fui gentilmente recebido pelos professores e comunidade local

22

a pequena cidade levantou-se pouco a pouco sobre o terreno de vaacuterzea criando uma

formosa obra em palafitas

O sistema de ensino do municiacutepio de Afuaacute eacute composto por escolas ribeirinhas

divididas em vinte e quatro regionais Os regionais satildeo agrupamentos de escolas que

estatildeo localizadas geograficamente proacuteximas Cada regional possui uma escola Poacutelo

que eacute responsaacutevel pela administraccedilatildeo de todas as demais que compotildeem o respectivo

regional Realizamos a pesquisa no Regional Madeira9 que abrange cinco escolas

situadas na ilha do Accedilaiacute10

Organizamos o texto destatese em quatro capiacutetulos No primeiroabordamos a

construccedilatildeo de um quadro teoacuterico para a anaacutelise do diaacutelogo entre o saber escolar e o

saber popular que consiste no referencial teoacuterico para discutir as categorias

aprioriacutesticas e natildeo aprioriacutesticas que emergiram da pesquisa de campo No segundo

capiacutetulo fizemos uma imersatildeo histoacuterica das populaccedilotildees ribeirinhas na Amazocircnia

realizamos um mergulho na Amazocircnia brasileira com ecircnfase nos povos das aacuteguas

em seguidaabordamos o municiacutepio de Afuaacutenosseus aspectos histoacutericos geograacuteficos

e econocircmicos com destaque paraa dimensatildeo educacional

No terceiro capiacutetulo descrevemos o percurso metodoloacutegico com o tipo e local

da pesquisa os procedimentos e instrumentos para a coleta de dados caracterizaccedilatildeo

dos sujeitos e a teacutecnica de anaacutelise dos dados No quarto capituloapresentamos a

cartografia a partir das memoacuterias dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute do saber popular o

qual classificamos em trecircs categorias saberes das aacuteguas saberes da terra e da mata

e saberes do accedilaiacute Efinalizamos o referido capiacutetulo analisando como ocorre o diaacutelogo

entre o conhecimento escolar e o saber popular na praacutetica pedagoacutegica dos

professores que atuam em classes multisseriadas nas escolas da ilha do accedilaiacute

classificamos essas praacuteticas em duas categorias natildeo aprioriacutesticas as colonizadoras

e as descolonizadoras

9 Nome fictiacutecio para preservar o anonimato do gestor e dos professores que atuam nas escolas pertencentes ao regional 10 Nome fictiacutecio para preservar o anonimato dos sujeitos da pesquisa que residem na ilha

23

1ESTUDOS TEOacuteRICOS DA PESQUISA

Nestecapiacutetulo fizemos a discussatildeo do referencial teoacuterico da pesquisa que

balizou as inferecircncias e interpretaccedilotildees das categorias aprioriacutesticas e natildeo aprioriacutesticas

11 A ECOLOGIA DE SABERES

Nesta seccedilatildeo com o objetivo de compreendermos a gecircnese da proposta

apresentada por Boaventura de Sousa Santos quanto agrave ecologia de saberes fizemos

24

uma abordagem referente ao paradigma hegemocircnico sua crise e a assunccedilatildeo de um

novo paradigma bem como a criacutetica da razatildeo indolente para chegarmos agrave concepccedilatildeo

das ecologias

111O Paradigma hegemocircnico

Segundo Santos (2008) o modelo hegemocircnico da ciecircncia moderna eacute oriundo

do modelo de racionalidade que se constituiu a partir da revoluccedilatildeo cientiacutefica do seacuteculo

XVI Gruumln (2002) considera que esta revoluccedilatildeo de cunhocientiacutefico e filosoacutefico sofreu

marcadas influecircncias de Galileu Galilei (1564-1642) Francis Bacon (1561-1626)Reneacute

Descartes (1596-1650) e de Isaac Newton (1642-1727) e guiaram as accedilotildees dos

sujeitos na civilizaccedilatildeoocidental

De acordo com Perez Filho(2003) Galileu foi quem primeiro descreveu a

Natureza em uma linguagem fiacutesico-matemaacutetica No seacuteculo XVI estabeleceu

matematicamente a Lei dos Corpos em seu manuscrito De MotuAfirma Gruumln (2002)

que a qualidade dos os objetos para Galileu natildeo eram semelhantes e sim diferentes

sendo elas primaacuterias e secundaacuterias As primaacuterias satildeo concretas e natildeo estatildeo

diretamente relacionadas ao pensamento As secundaacuterias por serem subjetivas estatildeo

ligadas a sensibilidade Galileu achava que a experimentaccedilatildeo era fundamental para a

comprovaccedilatildeo (MORAES 1997) assim determinava a importacircncia da quantificaccedilatildeo

dos fenocircmenos

Para Francis Bacon de acordo com Moraes (1997) a experiecircncia nos conduz

ao correto e exato conhecimento dos fenocircmenos logo o empirismo e sua loacutegica

dedutiva criados por Bacon trouxeram uma nova metodologia baseada na

experimentaccedilatildeo cientiacutefica Nesse sentido rompe com o antigo modo de pensamentoe

fortalece a superioridade do Homem em relaccedilatildeo agrave Natureza (GRUumlN 2002)

Diferentemente de Bacon para Descartes o conhecimentoeacute obtido a partir da

intuiccedilatildeo e da deduccedilatildeo anatureza humana tem suaessecircnciano pensamento e de a

verdade estaacute nas coisas que concebemos de forma clara e distintaA obra Discurso

do Meacutetodo apresenta a divisatildeo dopensamento e dos fenocircmenos em infinitas partes

sendo que a disposiccedilatildeo delas ocorre a partir de uma sequecircncia loacutegicaNa visatildeo

cartesiana a ecircnfase nas partes em detrimento do todo caracteriza a divisibilidade do

objeto que eacute compartimentado em partes infinitas (DESCARTES 1996)

Na referida obra Descartes assinala a oposiccedilatildeo entre homem-natureza na

qual o homem passa definitivamente a ser visto como centro do mundo e um sujeito

superior agrave Naturezasujeito-objeto mente-corpo e espiacuterito-mateacuteria bem como o

25

caraacuteter pragmaacutetico do conhecimento como recurso infinito e ilimitado no domiacutenio dos

processos afirma o autor ldquo[] conhecimentos que sejam uacuteteis agrave vida em vez dessa

filosofia especulativa que se ensina nas escolas []rdquo (DESCARTES 1996 p 69)

Isaac Newton dando continuidade ao pensamento de Descartes sedimentou

a visatildeo de mundo como uma maacutequina governada por leis imutaacuteveis fortalecendo

desta forma o paradigma mecanicista Para o fiacutesico o mundo considerado

umsistema mecacircnico pode ser descrito objetivamenteo que levou a descriccedilatildeo objetiva

da Natureza como o ideal para a ciecircncia (MORAES 1996)

Dentre os pressupostos do pensamento cartesiano-newtoniano estaacute a divisatildeo

e a modelagem do fenocircmeno em estudo em diversas partes para compreendecirc-lo Esta

forma de conceber a ciecircncia vai ao encontro dos interesses do capital que o utiliza

para organizaccedilatildeo da sociedade burguesa Outro fator de relevacircncia para o avanccedilo da

ciecircncia moderna na concepccedilatildeo de Ribeiro (2007 p 58) foi o movimento iluminista

na Europa que

[] em meados doseacuteculo XVIII reforccedilou o pensamento cartesiano-newtonianoOs iluministas consideram que o Homem eacute um ser dotado de razatildeo e que essedeveria se emancipar atraveacutes do seu saber O Iluminismo expurga os resquiacutecios religiosos medievais e autentica a visatildeoantropocecircntrica e pragmaacutetica no imaginaacuterio cultural e no universo ideoloacutegico apartir do momento em que haacute uma transposiccedilatildeo agraves regras loacutegico-formais daperspectiva mecanicista das ciecircncias naturais para as ciecircncias humanasculminando no movimento conhecido como positivismo

Nesse intento o que natildeo se pode transformar em nuacutemeros eacutedesconsiderado

pelo positivismo moderno e o conhecimento que natildeo tem utilidade e tambeacutem natildeo pode

ser calculado eacute descartado pela visatildeo iluminista Desta maneira soacute pode ser

considerado verdadeiro aquilo que eacutequantitativamente medido

Desta maneira a quantificaccedilatildeo dos fenocircmenos pelo emprego rigoroso de

mediccedilotildees se consolidou sem levar em consideraccedilatildeo as qualidades do objeto pois o

objetivo era quantificar e reduzir a complexidade do mundo por meio da divisatildeo

classificaccedilatildeo e posterior determinaccedilatildeo de relaccedilotildees entre o que foi separado Assim o

conhecimento eacute validado se for dirigido pelos preceitos dessa racionalidade cientiacutefica

Para Santos (2008) o paradigma moderno estabelece a separaccedilatildeo entre o que eacute

cientiacutefico e que eacute senso comum separa natureza e humanidade natildeo aceita como

vaacutelidas o conhecimento oriundo das experiecircnciascotidianas

Desta forma a ciecircncia moderna elabora as leis a partir de uma visatildeo do

conhecimento cientiacutefico como causal e que guiam as pesquisas nas ciecircncias naturais

26

e sociais de acordo com os preceitos mecanicistas baseados na seguranccedila

previsibilidade ordem e estabilidade

Esse paradigma das ciecircncias naturais foi aplicado tambeacutem nas ciecircncias sociais

emergentes pois ldquotal como foi possiacutevel descobrir as leis da natureza seria igualmente

possiacutevel descobrir as leis da sociedaderdquo (SANTOS 2008 p 45) Tornando-se

hegemocircnico e negando as outras formas de conhecimento que natildeo se guiam

pelosseus princiacutepios epistemoloacutegicos Segundo o autor as pesquisas na aacuterea das

ciecircncias sociais no seacuteculo XIX abrangem duas vertentes A primeira com a aplicaccedilatildeo

da metodologia das ciecircncias da natureza dentre os seus percussores estaacute Durkheim

que concebia as ciecircncias sociais como parte das naturais A segunda preconizava

uma epistemologia e metodologia de acordo com o objeto de estudo das ciecircncias

sociais teve como principais representantes Max Weber e Peter WinchPara Santos

(2010)as duas correntes estavam atreladas ao paradigma da ciecircncia moderna por

mais que a segunda representasse a crise e inicio da transiccedilatildeo para outro paradigma

cientiacutefico

112 A crise do paradigma hegemocircnico

Apenas no desenrolar do seacuteculo XX a soberania da ciecircncia moderna comeccedila a

ser coloca em discussatildeo afirma Santos (2008) que o questionamento da soberania

epistemoloacutegica hegemocircnica fruto da sua crise traz no seu interior o paradigma

emergente

Paradoxalmente eacute o avanccedilo da ciecircncia moderna que a levaraacute a sua crise

[hellip] a identificaccedilatildeo dos limites das insuficiecircncias estruturais do paradigmacientiacutefico moderno eacute o resultado do grande avanccedilo no conhecimento que elepropiciou O aprofundamento do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda (SANTOS 2008 p 41)

Segundo Santos (2008)esta crise profunda e irreversiacutevel foi paulatinamente

gerada por diversas condiccedilotildees teoacutericas e sociais Dentre as teoacutericas estatildeo ateoria da

relatividade de Einsteinque relativizou as leis de Newton a mecacircnica quacircntica os

questionamentos da matemaacutetica e os avanccedilos tecnoloacutegicos da microfiacutesica quiacutemica e

biologia Em relaccedilatildeo agrave mecacircnica quacircntica para Santos (2008) natildeo eacute possiacutevel natildeo

interferi no objeto de investigaccedilatildeo mesmo quando estamos observando-o ou

quantificando-o Desta maneira o limite do conhecimento torna-se evidente

mostrando que as leis da fiacutesica satildeo meramente probabiliacutesticaso que demonstra a

inviabilidade do determinismo mecanicista fica evidente que ldquoa totalidade do real natildeo

27

se reduz agrave soma das partes e a distinccedilatildeo entre o sujeito e o objeto eacute complexardquo (idem

p 56)

Outro fator que evidencia a crise deste paradigma eacute a possibilidade de

formulaccedilatildeo de proposiccedilotildees que natildeo podem ser demonstradas muito menos refutadas

pela medicaccedilatildeo e quantificaccedilatildeo A teoria de Ilya Prigogine vem revolucionar a

concepccedilatildeo de mateacuteria e de natureza contribuindo para o avanccedilo cientifico da

microfiacutesica da quiacutemica e da biologia

Segundo Morin (2003) os princiacutepios do paradigma hegemocircnico se tornaram

cada vez mais cegos ldquoo princiacutepio de ordem que o determinismo absoluto traduzia natildeo

reina mais no universo O princiacutepio da separabilidade ou disjunccedilatildeo encontrou seus

limites em qualquer acepccedilatildeo teoacutericardquo (2003 p 43) Em relaccedilatildeo ao objeto o referido

autor destaca que o seu isolamento do contexto no qual se encontra e a sua inclusatildeo

num ambiente artificial perde a validade para tudo que eacute vivo A induccedilatildeo e a deduccedilatildeo

demonstraram seus limites assim como a contradiccedilatildeo natildeo sinaliza mais o erro o que

caracteriza a emergecircncia de um novo tipo de verdade

Deste modo para Morin (2010) a impossibilidade de uma visatildeo global do

fenocircmeno dar-se-ia pela disjunccedilatildeo e pela reduccedilatildeo que constituem uma ignoracircncia do

pensamento

A ciecircncia claacutessica havia dissolvido o Cosmo a Natureza e o Sujeito Humano O Cosmos poreacutem ressuscitou a partir de uma cosmologia oriunda da descoberta da expansatildeo do universo A Natureza ressuscitou com a ciecircncia ecoloacutegica Se o sujeito foi expulso da ciecircncia objetiva o retorno do sujeito eacute indispensaacutevel isso porque o objeto do conhecimento eacute coproduzido por nossas projeccedilotildees mentais sobre a realidade exterior e pela introduccedilatildeo via traduccedilatildeo e reconstruccedilatildeo dessa realidade exterior em nossa mente (MORIN 2010 p 244)

No que concerne agraves possiblidades de uma visatildeo global Santos (2008) defende

a transdisciplinaridade que abrange conjuntamente as ciecircncias da natureza e as

sociais que vai de encontro ao modelo mecanicista linear da ciecircncia moderna O

questionamento das leis da natureza faz parte da crise do paradigma dominante

dentre elas a ideia de que os fenocircmenos observados independem de tudopara Santos

(2008) as leis da ciecircncia moderna simplificam de forma arbitraria a realidade

Dentre as condiccedilotildees sociais que contribuiacuteram para a crise do paradigma

moderno destaca a industrializaccedilatildeo da ciecircncia e o seu compromisso com o poder

econocircmico social e poliacutetico os quais passaram a definir as prioridades cientiacuteficas as

relaccedilotildees de poder autoritaacuterias e desiguais entre os cientistas a proletarizaccedilatildeo no

interior dos laboratoacuterios e centros de estudos o acesso aos equipamentos

28

contribuindo para o aprofundamento do fosso cientiacutefico entre paiacuteses centrais e paiacuteses

perifeacutericos (SANTOS2008)

113 O Conhecimento Prudente para uma Vida Decente

Contrapondo-se ao paradigma da ciecircncia moderna em 1987 na obra Um

discurso sobre as ciecircncias Santos (2008) apresenta um novo paradigma que

denominou de ldquoum conhecimento prudente para uma vida decenterdquo que natildeo eacute

somente cientiacutefico mas tambeacutem um paradigma social Quatro teses satildeo defendidas

pelo autor para justificaacute-lo Na primeira afirma que todo conhecimento cientiacutefico-

natural eacute cientiacutefico-social aglutinando desta maneira as ciecircncias naturais e as

ciecircncias sociais com ecircnfase na segunda

[hellip] trata-se de saber qual seraacute o lsquoparacircmetro de ordemrsquo segundo Haken ou o lsquoatractorrsquo segundo Prigogine dessa superaccedilatildeo se as ciecircncias naturais se as ciecircncias sociais [hellip] Para natildeo irmos mais longe quer a teoria das estruturas dissipativas de Prigogine quer a teoria sinergeacutetica de Haken explica o comportamento das partiacuteculas atraveacutes dos conceitos de revoluccedilatildeo social violecircncia escravatura dominaccedilatildeo democracia nuclear todos eles originaacuterios das ciecircncias sociais [hellip] (SANTOS 2010 p 40-41)

Assim o autor esclarece que a superaccedilatildeo da dicotomia entre ciecircncias naturais

e sociais ocorreraacute com a preponderacircncia das ciecircncias sociais a valorizaccedilatildeo dos

estudos humaniacutesticos a rejeiccedilatildeo dos preceitos do positivismoo fim dahierarquia entre

os tipos de conhecimentos O sujeito nesta tese estaacute como protagonista do

conhecimento

Na tese ldquotodo conhecimento eacute local e totalrdquo o conhecimento poacutes-moderno

caracteriza-se pela pluralidade metodoloacutegica interdisciplinaridade

etransdisciplinaridade envolvendo as diversas ciecircncias Assim Santos (2010 p

46)exemplifica ldquoo direito que reduziu a complexidade da juriacutedica agrave secura da

dogmaacutetica redescobre o mundo filosoacutefico e socioloacutegico em busca da prudecircncia

perdidardquo A ampliaccedilatildeo da medicina com um o olhar mais abrangente jaacute que ldquoa

hiperespecializaccedilatildeo do saber meacutedico transformou o doente numa quadriacutecula sem

sentidordquo (Idem p 46) A divisatildeo do conhecimento que passa de disciplinar para ser

temaacutetica ldquoOstemas satildeo galerias por onde os conhecimentos progridem ao encontro

uns dos outrosrdquo (SANTOS 2010 p 76) Temas que satildeo gerados e adotados pelos

grupos sociais e assim tornam-se projetos de vida locais

Na terceira tese o autor explica que ldquotodo conhecimento eacute autoconhecimentordquo

Deixa claro a ligaccedilatildeo entre sujeito e objeto poisno ato de produccedilatildeo do conhecimento

as trajetoacuterias de vida os valores e crenccedilas do pesquisador estatildeo presentes Desta

29

forma ldquoo caraacuteter autobiograacutefico e auto referenciaacutevel da ciecircncia eacute plenamente

assumidordquo(SANTOS 2010 p 83) Assim o objeto passa a ser uma extensatildeo do

sujeito implicando que em uma pesquisa seja adquirido conhecimento sobre o objeto

e sobre o proacuteprio sujeito

Na uacuteltima tese Santos (2010) afirma que ldquotodo conhecimento cientiacutefico visa

constituir-se em senso comumrdquo O autor destaca que a conversatildeo do conhecimento

cientiacutefico poacutes-moderno em senso comum possibilitaraacute a sua valorizaccedilatildeo e o seu

reconhecimento

A ciecircncia poacutes-moderna ao sensocomunizar-se natildeo despreza o conhecimentoque produz tecnologia mas entende que tal como o conhecimentose deve traduzir em autoconhecimento o desenvolvimento tecnoloacutegico devetraduzir-se em sabedoria de vida Eacute esta que assinala o marco da prudecircnciaagrave nossa aventura cientiacutefica (SANTOS 2010 p 91)

As quatro teses defendidassuscitam novas formas de racionalidades

sustentadasem vertentes holiacutesticas Inter e transdisciplinar Em uma reflexatildeo criacutetica

feita apoacutes duas deacutecadas da publicaccedilatildeo do Discurso sobre as Ciecircncias11 o autor

destaca que nas transiccedilotildees as mudanccedilas no paradigma dominante satildeo mais

evidentes que aemergecircncia de um novo paradigmaLevanta a hipoacutetese de que ldquoo

paradigma emergente seja de facto um conjunto de paradigmas ou seja a

coexistecircncia de uma pluralidade de epistemologias irredutiacuteveis a uma epistemologia

geralrdquo (SANTOS 2007 p 2)

Os conhecimentos que satildeo elaborados e reelaborados pelos ribeirinhos na

Amazocircnia que orientam as suas accedilotildees sociais culturais econocircmicas e religiosas

fazem parte destas epistemologias que dialogam de forma vertical ou horizontal

Verticalmente quando natildeo satildeo reconhecidos como vaacutelidos neste caso a

epistemologia dominante eacute imposta como a uacutenica maneira de conceber o mundo

Horizontalmente quando haacute o reconhecimento e a valorizaccedilatildeo desse saber eacute o

queSantos (2007) chama de conhecimento prudente poisbrotados diaacutelogos e das

constelaccedilotildees de saberes que permitem construir enquantoque as epistemologias

dominantes impossibilitam a comunicaccedilatildeo entre os conhecimentos pois ldquoO importante

eacute salientar a incompletude de todos os conhecimentos e o potencialque existe nos

diaacutelogos entre eles []rdquo (SANTOS 2012 p 3)

11Em torno de um novo paradigma soacutecio-epistemoloacutegico Manuel Tavares conversa com Boaventura de Sousa Santos Revista Lusoacutefona de Educaccedilatildeo Lisboa n10 p131-140 2007

30

O mundo segundo o autor eacute um arco-iacuteris policromaacutetico com diversidades de

culturas que produzem infinitas epistemologias daiacute a importacircncia de torna-las visiacuteveis

Eacute o que pretendemos nesta tese ao dar visibilidade aos saberes dos povos das

aacuteguas12 ao trazecirc-los para a reflexatildeo e problematizaccedilatildeo demonstrar que tais saberes

possuem uma racionalidade e uma loacutegica proacutepria de construccedilatildeo (satildeo praacuteticos

construiacutedos e reconstruiacutedos de acordo com as necessidades dos sujeitos)

socializaccedilatildeo (transmitidos por meio da oralidade) e validaccedilatildeo (baseada na utilidade

crenccedila e nos costumes locais) aleacutem de contribuiacuterem para a formaccedilatildeo de identidades

e subjetividades

Ao defender a diversidade epistemoloacutegica Santos (2012) problematiza

questotildees referentes ao colonialismo poacutes-colonialismo e a interculturalidade a partir

da criacutetica agrave razatildeo moderna que abordamos a seguir

114 A criacutetica da razatildeo indolente

A razatildeo indolente segundo Santos (2007) eacute uma racionalidade que norteia

nossa maneira de pensar a forma como concebemos a vida e o mundo bem como a

produccedilatildeo da ciecircncia considerada uma razatildeo uacutenica eurocecircntrica e ocidental

excluindo outras formas de conhecimento A exclusatildeo dar-se-aacute pela natildeo aceitaccedilatildeo da

validade dos conhecimentos alternativos por natildeo terem passado pelos rigores que

requer o conhecimento cientiacutefico O desenvolvimento desta razatildeo afirma o autor deu-

se dentro de contextos que possibilitaram a sua emergecircncia dentre os quais

destacam-se a consolidaccedilatildeo do Estado Liberal na Europa e na Ameacuterica do Norte as

revoluccedilotildees industriais o desenvolvimento capitalista o colonialismo e o imperialismo

A indolecircncia da razatildeo criticada neste ensaio ocorre em quatro formas diferentes a razatildeo impotente aquela que natildeo se exerce porque pensa que nada pode fazer contra uma necessidade concebida como exterior a ela proacutepria a razatildeo arrogante que natildeo sente necessidade de exercer-se porque se imagina incondicionalmente livre e por conseguinte livre da necessidade de demonstrar a sua proacutepria liberdade a razatildeo metoniacutemica que se reivindica como a uacutenica forma de racionalidade e por conseguinte natildeo se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade ou se o faz faacute-lo apenas para tornaacute-los em mateacuteria-prima e a razatildeo proleacuteptica que natildeo se aplica a pensar o futuro porque julga que sabe tudo a respeito dele e o concebe como uma superaccedilatildeo linear automaacutetica e infinita do presente (SANTOS 2002 p 240)

A razatildeo indolente portanto eacute a hegemocircnicade base epistemoloacutegica positivista

que desconsidera outras epistemoloacutegicas assim como exclui toda diversidade

cultural deixando-as na invisibilidade

12 Como satildeo conhecidos os ribeirinhos na Amazocircnia

31

Estermann (2009 p 54) estabelece a diferenccedila entre colonizaccedilatildeo e

colonialismo

Mientras que ldquocolonizacioacutenrdquo es el proceso (imperialista) de ocupacioacuten ydeterminacioacuten externa de territorios pueblos economiacuteas y culturas por partede un poder conquistador que usa medidas militares poliacuteticas econoacutemicasculturales religiosas y eacutetnicas lsquocolonialismorsquo se refiere a la ideologia concomitante que justifica y hasta legitima el orden asimeacutetrico y hegemoacutenicoestablecido por el poder colonial

Desta forma o colonizador impocircs a todos os povos a sua cultura os seus

modos de ver o mundo o seu conhecimento a sua epistemologia universalizando-os

e absolutizando-os assim moldou e formatou consciecircncias colonizou o pensamento

por meio de uma uacutenica loacutegica a eurocecircntrica

Corroborando com esta visatildeo Santos (2014 p 28) afirma que ldquo[] o fim do

colonialismo enquanto relaccedilatildeo poliacutetica natildeo acarretou o fim do colonialismo enquanto

relaccedilatildeo social enquanto mentalidade e forma de sociabilidade autoritaacuteria e

discriminatoacuteria []rdquo As contradiccedilotildees geradas pelo colonialismo ainda estatildeo presentes

e se manifestam na cultura no racismo no autoritarismo nas relaccedilotildees sociais e

dominam as relaccedilotildees internacionais

Mas segundo o autor eacute no vieacutes epistemoloacutegico que o colonialismo assume

maior centralidade por meio da imposiccedilatildeo do conhecimento hegemocircnico o que

caracteriza uma perspectiva redutora do conhecimento que impede o surgimento de

outras perspectivas epistemoloacutegicas

O colonialismo para aleacutem de todas as dominaccedilotildees por que eacute conhecido foi tambeacutem uma dominaccedilatildeo epistemoloacutegica uma relaccedilatildeo extremamente desigual de saber-poder que conduziu agrave supressatildeo de muitas formas de saber proacuteprias dos povos e naccedilotildees colonizados relegando muitos outros saberes para um espaccedilo de subalternidade (SANTOS MENESES 2010 p 11)

Efetivamente o conhecimento tornou-se um instrumento imperial de

colonizaccedilatildeo Desta maneira uma das tarefas necessaacuterias segundo Quijano (1994) e

Mignolo (2003) eacute a de descolonizar o conhecimento o que requer descolonizar a

loacutegica e o modelo de racionalidade excludente ldquodescolonizar o imaginaacuterio

reprogramar o pensamento no sentido de desmantelar a matriz colonial do poderrdquo

(MIGNOLO 2003 p12) reconhecendo que em outros lugares tambeacutemocorre

manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas

Para Santos (2010) o motivo da preponderacircncia da razatildeo indolente estaacute na

supressatildeo da diversidade epistemoloacutegica dos outros povos pela exclusatildeo e

32

silenciamento de toda riqueza presente na diversidade cultural que natildeo atenda aos

interesses do capitalismo fato que ocorreu por meio da dominaccedilatildeo politica

econocircmica e militar nas sociedades colonizadas Balandier (1995) acrescenta a accedilatildeo

missionaacuteria tambeacutem como forma de dominaccedilatildeo ideoloacutegica O problema da dominaccedilatildeo

colonial foi analisado por Gruzinski (2003) a partir do que ficou oculto do que se

passou na esfera do invisiacutevel da mentalidade que resultou na colonizaccedilatildeo do

imaginaacuterio e construiu a maneira atraveacutes da qual os povos colonizados veem o mundo

e a si mesmos

O rompimento desta hegemonia requer ldquomudanccedilas profundas na estruturaccedilatildeo

dos conhecimentos para isso eacute necessaacuterio comeccedilar por mudar a razatildeo que preside

tanto aos conhecimentos como a estruturaccedilatildeo delesrdquo (SANTOS 2002 p 241) O

propoacutesito desta pesquisa eacute exatamente contribuir para este desafio por meio do

reconhecimento de outras racionalidades que estruturam os conhecimentos locais a

partir de pressupostos voltados para as questotildees culturais sociais e religiosas natildeo

somente as econocircmicas

Aponta o citado autor as consequecircncias dessa monocultura do saber assim

como a possibilidade de outras epistemologias em outros lugares onde existem

manifestaccedilotildees e epistemologias proacuteprias denominadas de epistemologias do sul

Trata-se do conjunto de intervenccedilotildees epistemoloacutegicas que denunciam asupressatildeo dos saberes levada a cabo ao longo dos uacuteltimos seacuteculos pelanorma epistemoloacutegica dominante valorizam os saberes que resistiram comecircxito e as reflexotildees que estes tecircm produzido e investigam as condiccedilotildees deum diaacutelogo horizontal entre conhecimentos A esse diaacutelogo entre sabereschamamos ecologias de saberes (SANTOS MENESES 2010 p 7)

Toda essa diversidade que caracteriza as epistemologias do sul foi omitida

pela dominaccedilatildeo capitalista do mundo Para o autor as epistemologias satildeo geradas

nas relaccedilotildees sociais por isso todo conhecimento eacute fruto da relaccedilatildeo entre sujeitos

situados num contexto histoacuterico politico e cultural Desta forma o criteacuterio de validade

do conhecimento deve estaacute ligado a sua contextualidade Assim as experiecircncias

sociais englobam uma gama de conhecimentos com seus criteacuterios de validade

individual sendo instituiacutedos por conhecimentos rivais (SANTOS2008)

Conclui-se entatildeo que se produz e reproduz conhecimento a partir da

experiecircncia social por meio de diversas epistemologias eacute o que ocorre nas

comunidades ribeirinhas na Amazocircnia nas quais os sujeitos em muacutetua interaccedilatildeo

produzem e reproduzem saberes nas suas praacuteticas sociais Assim a proposta do

33

autor eacute dar visibilidade aos conhecimentos construiacutedos nas diversas praacuteticas sociais

e que foram excluiacutedos pelo exclusivismo da ciecircncia moderna

O conceito de Sul natildeo eacute geograacutefico eacute ldquoo sul anti-imperial anti-patriarcal anti-

colonial eacute esse sul que se transforma numa experiecircncia fundadora de uma proposta

mitoloacutegica que obviamente se parte do sofrimento soacute tem um objetivo que eacute atacar

as causas desse sofrimentordquo (SANTOS 2008 p 24) Portanto a metaacutefora do

sofrimento humano fruto do capitalismo eacute que o caracteriza Aprender com o Sul

requer um rompimento com o Norte imperial

[] Mas admito que o Sul eacute ele proacuteprio um produto do impeacuterio e por isso a

aprendizagem com o Sul exige igualmente a desfamiliarizaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao

Sul imperial ou seja em relaccedilatildeo a tudo que no Sul eacute o resultado da relaccedilatildeo

colonial capitalista (SANTOS 2008 p 33)

Neste sentido o aprender com o Sul requer a descolonizaccedilatildeo das nossas

mentes que foram colonizadas pelo Norte desta maneira poderemos eliminar os

restiacutecios deixados pelo colonizador assim soacute se aprende com o Sul ldquo[] na medida

em que se contribui para a sua eliminaccedilatildeo enquanto produto do impeacuteriordquo (SANTOS

2008 p 33) Isto pede o reconhecimento da diversidade e a afirmaccedilatildeo das diferenccedilas

bem com o combate da visatildeo segundo Tavares (2014 p 1) de ldquoum saber

institucionalizado no Ocidente a um repositoacuterio axioloacutegico esteacutetico e cognitivo que foi

produzido pela humanidade e que se auto define como universalrdquo

Essa racionalidade tem grande influecircncia na nossa forma de pensar ler e ver

o mundo por isso a leitura que fazemos da realidade estaacute imbricada por uma razatildeo

que direciona o nosso olhar que natildeo nos possibilita vislumbrar a riqueza

epistemoloacutegica presente no entorno Esta visatildeo unilateral monocultural eacute produzida

de acordo com Santos (2007) pela razatildeo indolente que se manifesta principalmente

por meio de duas razotildees a metoniacutemica e a proleacuteptica

Segundo o autor a razatildeo metoniacutemica eacute uma figura da teoria literaacuteria e da

retoacuterica que significa tomar a parte pelo todo ldquoE essa eacute uma racionalidade que

facilmente toma a parte pelo todo porque tem um conceito de totalidade feito de partes

homogecircneas e nada do que fica fora dessa totalidade interessardquo (SANTOS 2008 p

25) Onatildeo existente eacute o que estaacute fora desta totalidade para isso faz-se a contraccedilatildeo

do presente ldquoporque deixa de fora muita realidade muita experiecircncia e ao deixaacute-las

de fora ao tornaacute-las invisiacuteveis desperdiccedila a experiecircnciardquo(idem p 26) As experiecircncias

cotidianas por natildeo estarem atreladas a esta razatildeo impossibilitam outras leituras do

mundo que diferem da hegemocircnica

34

Esse reducionismo eacute gerado por ideias alicerccediladas na simetria dicotocircmica e a

hierarquia que impossibilitam visotildees mais abrangentes do tempo presente e assim

acabam por limitar condicionar e ate mesmo inviabilizar o conhecimento das demais

experiecircncias

[] Entatildeo a razatildeo metoniacutemica tem essa dupla ideia das dicotomias e das hierarquias por isso natildeo eacute possiacutevel pensar fora das totalidades natildeo posso pensar no sul sem o norte a mulher sem o homem natildeo posso pensar o escravo sem o amo Mas o que devemos inquirir eacute que se nessas realidades natildeo haacute coisas que estatildeo fora dessa totalidade o que haacute na mulher que natildeo depende da relaccedilatildeo com o homem [] ou seja pensar fora da totalidade [] (SANTOS 2007 p 28)

Assim a compreensatildeo do mundo vai aleacutem da visatildeo eurocecircntrica haacute outras

maneiras de enxergar o mundo que transcende a razatildeo metoniacutemica na qual as partes

satildeo pensadas em relaccedilatildeo direta com a totalidade Para pensar fora dessa totalidade

que eacute homogecircnea e excludente o autor propotildee a sociologia das ausecircncias que eacute

ldquouma sociologia insurgente para tentar mostrar que o que natildeo existe eacute produzido como

natildeo existente invisiacutevel agrave realidade hegemocircnica do mundordquo (idem p 30) O que eacute

ausente eacute produzido propositalmente para reduzir a realidade ao que existe As

ausecircncias satildeo produzidas afirma Santos (2008) a partir de cinco monoculturas do

saber e do rigor do tempo linear da naturalizaccedilatildeo das diferenccedilas da escala

dominante e a do produtivismo capitalista

Na primeira monocultura a do saber e do rigor os conhecimentos populares

natildeo satildeo visibilizados porque natildeo passam pelos rigores da ciecircncia positivista

reconhecido como uacutenico criteacuterio de validaccedilatildeo portanto as praacuteticas sociais alicerccediladas

nesses saberes dentre elas as dos ribeirinhos natildeo existem agrave luz da ciecircncia ocidental

Isso gera o que Santos (2007) denomina de epistemiciacutedio a morte de conhecimentos

que natildeo se encaixam nos rigores do meacutetodo cientifico Esses saberes satildeo

invisibilizados subalternizados natildeo sendo aceitos como diferentes maneiras de ver

ler e interpretar o mundo e que estatildeo ligadas agrave histoacuteria e a cultura dos diferentes

povos Desta maneiranatildeo faz sentido dizer que esses conhecimentos natildeo satildeo

cientiacuteficos pois para o autor satildeo outras maneiras de fazer ciecircncia dentro de um

contexto simboacutelico de que fazem parte os saberes da maioria da populaccedilatildeo

marginalizada pela ciecircncia eurocecircntrica O saber popular neste estudo os das

populaccedilotildees ribeirinhas tem seus proacuteprios criteacuterios de validaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo Ao levar

seus filhos que foram acometidos por doenccedilas causadas por seres encantados para

35

o benzedor benzecirc-los a crenccedila no poder de cura emanado pelo curandeiro eacute o criteacuterio

de validaccedilatildeo do seu saber

A monocultura do tempo linear estaacute relacionada ao capitalismo Como assegura

Santos (2002 p 243) ldquoa razatildeo metoniacutemica eacute juntamente com a razatildeo proleacuteptica a

resposta do Ocidente apostado na transformaccedilatildeo capitalista do mundordquo pois tem

como foco o desenvolvimento e a mercantilizaccedilatildeo Nessa oacutetica os paiacuteses menos

desenvolvidos satildeo inferiorizados e estigmatizados como preacute-modernos primitivos

selvagens dentre outros adjetivos que os tornam inferiores Por natildeo se incluiacuterem

totalmente dentro desta loacutegica capitalista os ribeirinhos satildeo tachados de preguiccedilosos

e demais adjetivos pejorativos

Em relaccedilatildeo agrave mercantilizaccedilatildeo o que predomina eacute o tempo linear como

referencia agrave produccedilatildeo e circulaccedilatildeo de mercadorias As diversas formas de

organizaccedilatildeo temporal que envolve outros mundos que vatildeo aleacutem do terreno natildeo satildeo

reconhecidas o que prevalece eacute a linearidade com presente passado e futuro Com

isso o tempo das mareacutes que predomina na Amazocircnia Ribeirinha o mundo dos seres

encantados que povoam os rios e as florestas satildeo invisibilizados

A divisatildeo da populaccedilatildeo nas categorias de raccedila sexo e eacutetnica satildeo maneiras de

naturalizar as diferenccedilas e justificar as hierarquias Para o autor as hierarquias natildeo

satildeo causa das diferenccedilas mas suas consequecircncias Desta maneira as diferenccedilas

satildeo veladas e naturalizadas a partir de uma escala baseada na inferiorizaccedilatildeo do que

difere do padratildeo dominante

A monocultura da escala dominante que eacute mais uma maneira de produzir as

ausecircncias parte do princiacutepio de que ldquoo global e universal eacute hegemocircnico o particular

e o local natildeo conta eacute invisiacutevel descartaacutevel despreziacutevelrdquo (SANTOS 2007 p 31) Em

decorrecircncia disso os saberes natildeo hegemocircnicos satildeo tidos como locais portanto

inferiores O considerado universal eacute valido em qualquer contexto por isso que o

hegemocircnico eacute dominante independente do lugar daiacute a predominacircncia no curriacuteculo

escolar de somente uma forma de conhecimento e a natildeo aceitaccedilatildeo por parte de

alguns professores da inclusatildeo dos saberes locais na sua praacutetica pedagoacutegica fruto

de um processo de formaccedilatildeo profissional colonizadora

No tocante agrave monocultura do produtivismo capitalista o autor afirma que pode

ser empregada para o trabalho e para a natureza A utilizaccedilatildeo das novas tecnologias

satildeo as bases para a organizaccedilatildeo da produtividade a partir da loacutegica hegemocircnica

capitalista As outras loacutegicas de produccedilatildeo dentre elas as dos povos das aacuteguas satildeo

36

consideradas improdutivas Dessa maneira satildeo produzidas as cinco formas de

ausecircncias ldquoo ignorante o residual o inferior o local e particular e o

improdutivordquo(SANTOS 2007 p 32) que satildeo contrapostas a formas universais e

globalmente reconhecidas o cientiacutefico o avanccedilado o superior o global e o produtivo

Tais monoculturas satildeo responsaacuteveis pela produccedilatildeo das ausecircncias suprimindo

as demais experiecircncias vivecircncias e conhecimentos que foram e satildeo historicamente

invisibilizados Com o objetivo de tornar presente o que estaacute ausente e dar visibilidade

agraves experiecircncias o autor propotildee a substituiccedilatildeo das monoculturas pelas ecologias

consideradas ldquoa praacutetica de agregaccedilatildeo da diversidade pela promoccedilatildeo de interaccedilotildees

sustentaacuteveis entre entidades parciais e heterogecircneasrdquo (SANTOS 2008 p 105) Satildeo

cinco as ecologias dos saberes13 das temporalidades do reconhecimento da

transescala e das produtividades

A ecologia das temporalidades parte do princiacutepio de que aleacutem do tempo linear

existem outras formas de organizaccedilatildeo temporal Na Amazocircnia Ribeirinha por

exemplo o tempo das aulas em algumas comunidades eacute regido pelas mareacutes a

derrubada e a plantaccedilatildeo das roccedilas nas comunidades camponesas dependem das

estaccedilotildees do ano no veratildeo satildeo feitas as derrubadas e a limpeza da aacuterea onde seraacute

plantada a mandioca no inverno eacute realizada a plantaccedilatildeo por causa das chuvas que

possibilitam o crescimento das manivas14 Em certas comunidades indiacutegenas a

presenccedila concomitante de espiacuteritos da mata e das aacuteguas juntamente com os seres

vivos eacute constante a relaccedilatildeo com esses entes ocorre de maneira que para entrar em

determinadas horas na mata ou no rio faz-se necessaacuterio pedir licenccedila e solicitar que

nos acompanhem durante a caminhada na mata ou remada pelo rio no sentido de

proteccedilatildeo contra os possiacuteveis males Essas loacutegicas precisam ser reconhecidas eacute o

jeito amazocircnida de ser e de lidar com o tempo que vai aleacutem da linearidade Como

afirma Santos (2007 p 34) ldquose vou reduzir tudo a temporalidade linear estou

afastando todas as outras coisas que tem uma loacutegica distinta da minhardquo

No tocante agrave ecologia do reconhecimento que se refere agrave produccedilatildeo das

desigualdades faz-se necessaacuterio a descolonizaccedilatildeo das mentes que foram

colonizadas com a imposiccedilatildeo de valores e estereoacutetipos gerados por meio da

categorizaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo da populaccedilatildeo tendo como referencia as diferenccedilas

13 Abordaremos numa seccedilatildeo especiacutefica a ecologia de saberes por ser objeto de estudo do nosso trabalho 14 Nome dado ao caule do peacute de mandioca o qual cortado em pedaccedilos eacute usado no plantio

37

sexuais culturais raciais sociais etc Nesse intento a ecologia proposta ldquo[] procura

uma nova articulaccedilatildeo entre o princiacutepio da igualdade e o princiacutepio da diferenccedila abrindo

espaccedilo para a possibilidade de diferenccedilas iguais ndash uma ecologia de diferenccedilas feita

de reconhecimentos reciacuteprocosrdquo (SANTOS 2008 p 110) Nesta ecologia a

pluralidade e a diversidade como parte do reconhecimento dos direitos humanos eacute

ressaltada Assim ldquoTemos o direito a ser iguais quando a diferenccedila nos inferioriza

temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracterizardquo (SANTOS

1997 p 31)

Para ir aleacutem da escala dominante eacute proposta a ecologia da transescala que

parte da integraccedilatildeo do local do nacional e do global nos projetos contra hegemocircnicos

como estrateacutegia de combate a globalizaccedilatildeo ldquoatraveacutes destas ligaccedilotildees as formaccedilotildees

locais desligam-se da seacuterie inerte de impactos globais e religam-se como pontos de

resistecircncia e geraccedilatildeo de globalizaccedilatildeo alternativardquo(SANTOS 2008 p 113) Algumas

experiecircncias jaacute foram e estatildeo sendo desenvolvidas por movimentos sociais com

atuaccedilatildeo local e que se expandiram a niacutevel nacional e mundial como frente de luta

contra a exclusatildeo social

Em oposiccedilatildeo agrave monocultura do produtivismo capitalista eacute apresentada a

ecologia das produtividades que consistem no

[] acircmbito das alternativas que engloba desde microiniciativas levadas a cabo por grupos sociais marginalizados do Sul global procurando reconquistar algum controle das suas vidas e bens ateacute propostas para uma coordenaccedilatildeo econocircmica e juriacutedica de acircmbito internacional destinada a garantir o respeito por padrotildees baacutesicos de trabalho decente e de proteccedilatildeo ambiental novas formas de controle do capital financeiro global bem como tentativas de construccedilatildeo de economias regionais baseadas em princiacutepios de cooperaccedilatildeo e solidariedade (SANTOS 2008 p114)

A concepccedilatildeo abrangente de economia estaacute no bojo destas iniciativas pois

abarcam valores organizacionais e poliacuteticos que vatildeo de encontro ao capitalismo

global tais como questotildees relacionadas agrave sustentabilidade ambiental participaccedilatildeo

democraacutetica aleacutem da equidade social racial eacutetnica e cultural Eacute a favor dessa

equidade que precisamos romper com as visotildees estereotipadas que persistem em

relaccedilatildeo aos homens e mulheres que constituem os povos das aacuteguas da Amazocircnia As

pesquisas realizadas na regiatildeo Amazocircnica vem tornando visiacuteveis as experiecircncias

que satildeo ativamente produzidas por esses sujeitos dentre elas o cuidado com os rios

e a mata no sentido de preservar a biodiversidade para garantia da sobrevivecircncia

Segundo Boaventura o objetivo das diversas ecologias eacute ldquo[] revelar a

diversidade e multiplicidade das praacuteticas sociais e credibilizar esse conjunto por

38

contraposiccedilatildeo agrave credibilidade exclusiva das praacuteticas hegemocircnicasrdquo (2008 p 115) A

seguir abordaremos com mais profundidade a ecologia de saberes por ser nosso

objeto de estudo

115 Ecologia de Saberes o reconhecimento dos saberesnascido das lutas dos

oprimidos

A ecologia de saberes parte do reconhecimento da diversidade epistemoloacutegica

que caracteriza o mundo no qual vivemos e de que a ciecircncia natildeo eacute a uacutenica forma de

explicaccedilatildeo da realidade reconhecendo a existecircncia de outros conhecimentos que

norteiam as praacuteticas sociais e datildeo sentido agrave nossa vida Assim ldquoa ecologia de saberes

eacute um conjunto de epistemologias que partem da possibilidade da diversidade e da

globalizaccedilatildeo contra hegemocircnicas e pretendem contribuir para as credibilizar e

fortalecerrdquo (SANTOS 2008 p154) Fortalecer e credibilizar no intuito de reconhecer

os saberes das populaccedilotildees que foram historicamente invizibilizados e excluiacutedos

dentre eles os dos povos indiacutegenas populaccedilotildees do campo ribeirinhos em suma os

saberes que nasceram da luta dos oprimidos e marginalizados

Portanto natildeo haacute saber maior ou menor mais importante ou menos valioso o

que existe satildeo conhecimentos que explicam a natureza a sociedade e os diversos

fenocircmenos que diferem ou complementam o cientiacutefico Nesse sentido para que

ocorra o diaacutelogo numa perspectiva intercultural pois o diaacutelogo natildeo seraacute somente entre

esses diferentes saberes mas tambeacutem entre culturas diferentes o autor propotildee a

hermenecircutica diatoacutepica15 que natildeo visa atingir

[] a completude ndash objetivo inatingiacutevel ndash mas pelo contraacuterio ampliar ao maacuteximo a consciecircncia de incompletude muacutetua por meio de um diaacutelogo que se desenrola por assim dizer com um peacute numa cultura e outro noutra Nisso reside o seu caraacuteter diatoacutepico (SANTOS 2009 p 15)

Neste sentido a perspectiva intercultural objetiva estimular o diaacutelogo entre os

diferentes saberes e conhecimentos partindo do princiacutepio de que a incompletude eacute o

que os caracteriza Assim os conhecimentos cientiacuteficos natildeo satildeo considerados

superiores e simmais uma forma de expressatildeo epistemoloacutegica A reciprocidade o

respeito e o reconhecimento da diversidade satildeo os alicerces que balizam o diaacutelogo

intercultural

15A hermenecircutica diatoacutepica baseia-se na ideia de que os topoi de uma dada cultura por mais fortes que sejam

satildeo tatildeo incompletos quanto agrave proacutepria cultura a que pertencem Tal incompletude natildeo eacute visiacutevel do interior dessa cultura uma vez que a aspiraccedilatildeo agrave totalidade induz a que se tome a parte pelo todo (SANTOS 2009)

39

Para aprofundarmos a nossa compreensatildeo em relaccedilatildeo agrave perspectiva

intercultural Walsh (2011) estabelece a diferenccedila entre os tipos de interculturalidade

a relacional a funcional e a criacutetica A interculturalidade relacional sempre existiu ao

longo da histoacuteria por meio do encontro entre as culturas mas sem a ocorrecircncia do

diaacutelogo entre elas A interculturalidade funcional existe nas sociedades capitalistas

na qual a multiculturalidade eacute encaixada nas estruturas de dominaccedilatildeo mas nos

discursos oficiais satildeo concebidas como praacuteticas interculturais numa visatildeo neoliberal

E a interculturalidade criacutetica que para a autora eacute indissociaacutevel do processo de

descolonizaccedilatildeo Walsh (2011) afirma que natildeo eacute possiacutevel a interculturalidade criacutetica

sem a dissoluccedilatildeo das estruturas de dominaccedilatildeo nesse sentido enquanto estas

estruturas existirem natildeo seraacute possiacutevel o diaacutelogo entre o saber popular e o saber

dominante ou entre qualquer tipo de saber

A perspectiva da interculturalidade criacutetica proposta por Walsh (2011) difere do

diaacutelogo intercultural apresentado por Santos (2009) na ecologia de saberes Para o

autor o diaacutelogo entre as culturas natildeo requer necessariamente a dissoluccedilatildeo das

estruturas do poder

Segundo Catherine Walsh (2006 p11) a interculturalidade eacute

[] um processo dinacircmico e permanente de relaccedilatildeo comunicaccedilatildeo e aprendizagem entre culturas em condiccedilotildees de respeito legitimidade muacutetua simetria e igualdade Um intercacircmbio que se constroacutei entre pessoas conhecimentos saberes e praacuteticas culturalmente diferentes buscando desenvolver um novo sentido entre elas na sua diferenccedila

Esta concepccedilatildeo de interculturalidade eacute necessaacuteria para a efetivaccedilatildeo da

construccedilatildeo de um pensamento criacutetico pois surge da experiecircncia vivida na

colonialidade parte tambeacutem de um pensamento gerado no Sul e muda os rumos da

geopoliacutetica do conhecimento dominante (WALSH 2006) Segundo a citada autora a

interculturalidadepode contribuir para a construccedilatildeo de sociedades diversificadas por

meio da explicitaccedilatildeoe abertura de espaccedilos conhecimentos e praacuteticas Para Walsh

(2006 p 21)

mais do que um simples conceito de inter-relaccedilatildeo ainterculturalidade assinala e significa processos deconstruccedilatildeo de conhecimentos lsquooutrosrsquo de uma praacuteticapoliacutetica lsquooutrarsquo de um poder social lsquooutrorsquo e de umasociedade lsquooutrarsquo formas diferentes de pensar e atuarem relaccedilatildeo e contra a modernidadecolonialidade umparadigma que eacute pensado atraveacutes da praacutetica poliacutetica

Desta forma a interculturalidade criacutetica reconhece as desigualdades sociais

econocircmicas poliacuteticas e de poder bem como a dominaccedilatildeo em que estamos

40

submetidos pelas condiccedilotildees institucionais Assim no diaacutelogo intercultural numa

perspectiva criacutetica as assimetrias sociais econocircmicas e poliacuteticas sempre estaratildeo

permeando as discussotildees entre pessoas e grupos culturais diversificados sem a

negaccedilatildeo ou sobreposiccedilatildeo de suas diferenccedilas

Corroborando com esta visatildeo Candau (2006) afirma que a interculturalidade

indica a edificaccedilatildeo de sociedades que assumam as diferenccedilas como constitutivas da

democracia bem como a possibilidade de construccedilatildeo de relaccedilotildees igualitaacuterias entre os

diferentes grupos socioculturais que foram historicamente inferiorizados

Na perspectiva da ecologia de saberes Santos (2010) propotildee cinco imperativos

transculturais que precisam ser aceitos pelos grupos sociais e culturais para o diaacutelogo

intercultural O primeiro chama-se Da completude agrave incompletude que eacute o ponto de

partidapara o diaacutelogo e consiste no nosso interesse em conhecer outras culturas

como reflexo da necessidade e do descontentamento com a nossa cultura Assim ldquoA

hermenecircutica diatoacutepica aprofunda agrave medida que progride a incompletude cultural

transformando a consciecircncia inicial de incompletude em grande medida difusa e

pouco articulada numa consciecircncia autorreflexivardquo (p 46)

Jaacute o segundo denominado Das versotildees culturais estreitas agraves versotildees amplas

o referido autor afirma que devemos evidenciar dentro de uma determinada cultura

aquilo que estaacute voltado para o reconhecimento do outro O terceiro De tempos

unilaterais a tempos partilhados o autor assegura que a decisatildeo em estar aberto para

o dialogo cabe a cada grupo cultural

A cultura ocidental durante seacuteculos natildeo teve qualquer disponibilidade para diaacutelogos interculturais mutuamente acordados e agora ao ser atravessado por uma consciecircncia difusa de incompletude tende a crer que todas as outras culturas estatildeo igualmente disponiacuteveis para reconhecer a sua incompletude e mais do que isso ansiosas para se envolver em diaacutelogos interculturais com o Ocidente(SANTOS 2010 p47)

O quarto imperativo De parceiros e temas unilateralmenteimpostos a parceiros

e temas escolhidospor muacutetuo acordo parte da ideia de que para o diaacutelogo os

protagonistas e o assunto precisam ser acordados mutuamente Segundo o autor no

tocante aos temas em todas as culturas haacute temas que necessariamente precisam ser

incluiacutedos no diaacutelogo com outras culturas pois ldquoo importante para a

hermenecircuticadiatoacutepica eacute a direccedilatildeo a noccedilatildeo eo sentimento de incompletude da

culturardquo (SANTOS 2010 p 47) O ultimo imperativotransculturalDa igualdade ou

diferenccedila agrave igualdadee diferenccedila parte da aceitaccedilatildeo de que o direito a igualdade deve

41

ser garantido quando a diferenccedila nos inferioriza e o direito a ser diferente quando a

igualdade nos descaracteriza

Aleacutem dos imperativos transculturais essenciais para o diaacutelogo intercultural

Santos (2008 p 154) ratifica que a ecologia de saberes se alicerccedila em dois

pressupostos ldquonatildeo haacute epistemologias neutras e as que clamam secirc-lo satildeo as menos

neutras a reflexatildeo epistemoloacutegica deve incidir natildeo nos conhecimentos em abstratos

mas nas praacuteticas de conhecimento e seus impactos noutras praacuteticas sociaisrdquo Posto

isso fica evidente de que natildeo haacute neutralidade no conhecimento cientiacutefico pois atende

aos interesses da ideologia dominante que o produz Quanto ao segundo pressuposto

refere-se agrave praacutetica dos conhecimentos agrave sua aplicabilidade na realidade social Nessa

loacutegica

Natildeo haacute duacutevidas de que para levar o homem ou a mulher a lua natildeo haacute conhecimento melhor do que o cientifico o problema eacute que hoje tambeacutem sabemos que para preservar a biodiversidade de nada serve a ciecircncia moderna Ao contraacuterio ela a destroacutei Porque o que vem conservando e mantendo a biodiversidade satildeo os conhecimentos indiacutegenas e camponeses (SANTOS 2007 p 33)

Fica evidente que a importacircncia de determinado conhecimento estaacute na sua

capacidade e utilidade para resolver os problemas sociais ambientais entre outros

No exemplo acima cada conhecimento produz um tipo de resultado quando aplicado

para atingir determinados objetivos A hierarquia entre eles ocorre pela intervenccedilatildeo

concreta nas praacuteticas sociais

A nossa intenccedilatildeo nesta tese foi conferir legitimidade acadecircmica e

epistemoloacutegica aos saber popular dos ribeirinhos que este possa juntamente com o

saber escolar fazer parte do curriacuteculo da escola de educaccedilatildeo baacutesica frequentada

pelas crianccedilas jovens e adultos das comunidades ribeirinhas na Amazocircnia e desta

maneira contribuir para a formaccedilatildeo de identidades e subjetividades

12 A DESCOLONIZACcedilAtildeO EPISTEMOLOacuteGICA UM ESTUDO DAS PROPOSICcedilOtildeES

TEOacuteRICAS

Nesta seccedilatildeo procuramos fazer uma discussatildeo entre autores que discutem os

conceitos de colonialidade gnosepensamento liminar e pensamento fronteiriccedilo com

o intuito de analisaacute-los criticamente a partir da abordagem teoacuterica baseada nos

Estudos Poacutes-Coloniais do grupo modernidadecolonialidade que emerge com a

finalidade de questionar a constituiccedilatildeo da modernidade a partir de suas concepccedilotildees

dominantes Finalizamos com uma discussatildeo referente agrave categoria Diaacutelogo na visatildeo

Freireana

42

121Os Estudos Poacutes-Coloniais

Os estudos poacutes-coloniais podem ser considerados como um movimento

intelectual e tambeacutem poliacutetico com a finalidade de questionar a hegemonia

epistemoloacutegica e fazer emergir os saberes subalternizados dos povos colonizados

Segundo Ribeiro e Escobar (2012) os impactos do processo de colonizaccedilatildeo satildeo

abordados por autores oriundos dos paiacuteses colonizados como grito de alerta para o

rompimento das amarras impostas pela colonizaccedilatildeo

Para Costa (2006 p 84) o colonialismo ldquoalude a situaccedilotildees de opressatildeo

diversas definidas a partir de fronteiras de gecircnero eacutetnicas ou raciaisrdquo Neste sentido

o colonialismo gerou a opressatildeo dos povos dominados que foram classificados de

acordo com os estigmas impostos pelo colonizador e ainda reforccedilou as jaacute existentes

situaccedilotildees de opressatildeo

Ballestrin (2012 p 4) no tocante ao argumento poacutes-colonial apresenta-o como

um movimento poliacutetico e intelectual natildeo necessariamente linear disciplinado e

articulado

Neste sentido defendemos que o argumento poacutes-colonial em toda sua amplitude histoacuterica geograacutefica e disciplinar percebe a diferenccedila colonial e intercede pelo colonizado Isto significa dizer que o argumento poacutes-colonial eacute em maior ou menor grau comprometido Pelo argumento poacutes-colonial o resgate da histoacuteria do conhecimento do discurso do sujeito e da memoacuteria do status ldquocolonizadordquo nunca pretende atraveacutes de sua visibilidade e da vocalizaccedilatildeo fortalecer o ldquooutrordquo colonizador Em termos de teoria poliacutetica contemporacircnea a relaccedilatildeo colonial eacute uma relaccedilatildeo antagocircnica e natildeo agocircnica

Desta forma o resgate da histoacuteria do conhecimento e do discurso do

colonizado foram protagonizados por autores como Albert Memmi Aimeacute Cesaacuterie e

Franz Fanon que foram os pioneiros a iniciar as reflexotildees referentes agraves situaccedilotildees de

opressatildeo para desvendar o antagonismo entre colonizador e colonizado Outro autor

que questionou a ordem poliacutetica e ideoloacutegica imposta pelo ocidente foi Edward Said

que comeccedila a discutir a teoria poacutes-colonial para aleacutem do vieacutes culturalista assim como

o orientalismo como um movimento cientiacutefico cujo anaacutelogo no mundo da poliacutetica seria

a acumulaccedilatildeo e a aquisiccedilatildeo colonial do oriente pela Europa (AMADEO 2014) As

abordagens e ideias discutidas por esses autores fomentaram uma revoluccedilatildeo nos

modos de pensar o outro o racismo e o sofrimento

O emergir do Grupo de Estudos Subalternos na deacutecada de 1970 composto

por pensadores do sul-asiaacutetico discutiam as questotildees relacionadas ao poacutes-

colonialismo como relaccedilotildees de poder a partir do aporte teoacuterico marxista baseado no

pensamento gramisciano A finalidade do grupo era afirma Grosfoguel (2008 p116)

43

ldquoanalisar criticamente natildeo soacute a historiografia colonial da Iacutendia feita por ocidentais

europeus mas tambeacutem a historiografia eurocecircntrica nacionalista indianardquo A atuaccedilatildeo

do grupo se restringiu agrave Iacutendia Paquistatildeo e demais paiacuteses do entorno

Na deacutecada de 1980 houve a expansatildeo da teoria poacutes-colonial contribuiacuteram

para isso as obras de Homi Bhabha O local da cultura e de Stuart Hall com Da

diaacutespora O subalterno eacute conceituado por Gayatri Spivak na obra Pode o subalterno

falarComo ldquoas camadas mais baixas da sociedade constituiacutedas pelos modos

especiacuteficos de exclusatildeo dos mercados da representaccedilatildeo poliacutetica e legal e da

impossibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominanterdquo

(SPIVAK 2010 p 12)

Segundo Ballestrin (2012) sob a influecircncia e expansatildeo dessas teorias por

volta de 1990 surge o Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos Dentre as

obras que foram fundamentais para o aprofundamento do debate estaacute a Colonialidad

y modernidad-racionalidad de 1992 de Aniacutebal Quijano ldquo[] Inspirados no Grupo Sul-

asiaacutetico dos Estudos Subalternos e no Centro de Estudos Culturais dirigidos por Stuart

Hall em Birmingham o Manifesto Inaugural do Grupo Latino-americano de Estudos

Subalternos publicado originalmente em 1995 inseriu a Ameacuterica Latina no debate

poacutes-colonialrdquo (BALLESTRIN 2012 p 6)

Em 1998 Walter Mignolo cria o Grupo ModernidadeColonialidade com o intuito

de trazer para os estudos subalternos as ideias dos autores natildeo eurocecircntricos para

discutir os problemas da Ameacuterica Latina o trecho retirado do manifesto abaixo retrata

essa concepccedilatildeo

Walter Mignolo aprovecha tambieacuten algunos elementos de las teoriacuteas poscoloniales para realizar una criacutetica de los legados coloniales en Ameacuterica Latina Pero a diferencia de Ileana Rodriacuteguez y de otros miembros del Grupo de Estudios Subalternos Mignolo piensa que las tesis de Ranajit Guha Gayatri Spivak Homi Bhabha y otros teoacutericos indios no debieran ser asumidas y trasladadas sin maacutes para un anaacutelisis del caso latinoamericano Hacieacutendose eco de las criacuteticas tempranas de Vidal y Klor de Alva Mignolo afirma que las teoriacuteas poscoloniales tienen su locus enuntiationis en las herencias coloniales del imperio britaacutenico y que es preciso por ello buscar uma categorizacioacuten criacutetica del occidentalismo que tenga su locus en Ameacuterica Latina(CASTRO-GOacuteMEZ amp MENDIETA 1998 p 16)

Para Mignolo a Ameacuterica foi a pioneira a ser vitimada pelo colonialismo sendo

nela implantada o modelo de exploraccedilatildeo do capitalismo imperial que se expandiu para

o mundo Nesse sentido a histoacuteria da Ameacuterica Latina natildeo eacute a mesma da Indiana

motivo pelo qual natildeo serviria de modelo para lutar contra o colonialismo

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Grosfoguel (2008) corrobora com as ideias de Mignolo ao afirmar que o grupo

Latino-americano de Estudos Subalternos natildeo consegue se desvencilhar do

pensamento estadunidense e dos estudos subalternos indianos

[] Os latino-americanistas deram preferecircncia epistemoloacutegica ao que chamaram os ldquoquatro cavaleiros do Apocalipserdquo ou seja a Foucault Derrida Gramsci e Guha Entre estes quatro contam-se trecircs pensadores eurocecircntricos fazendo dois deles (Derrida e Foucault) parte do cacircnone poacutes-estruturalistapoacutes-moderno ocidental Apenas um Rinajit Guha eacute um pensador que pensa a partir do Sul Ao preferirem pensadores ocidentais como principal instrumento teoacuterico traiu o seu objetivo de produzir estudos subalternos [] Entre as muitas razotildees que conduziram agrave desagregaccedilatildeo do Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos uma delas foi a que veio opor os que consideravam a subalternidade uma criacutetica poacutes-moderna (o que representa uma criacutetica eurocecircntrica ao eurocentrismo) agravequeles que a viam como uma criacutetica descolonial (o que representa uma criacutetica do eurocentrismo por parte dos saberes silenciados e subalternizados) Para todos noacutes que tomamos o partido da criacutetica descolonial o diaacutelogo com o Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos tornou evidente a necessidade de transcender epistemologicamente ndash ou seja de descolonizar ndash a epistemologia e o cacircnone ocidentais

Dentre os autores que fazem parte do grupo ModernidadeColonialidade

destacam-se Edgardo Lander Arthuro Escobar Enrique Dussel Fernando Coronil

Immanuel Wallerstein e Aniacutebal Quijano Em 2000 Edgardo Lander organiza uma das

principais coletacircneas publicada pelo grupo Colonialidade do saber eurocentrismo e

ciecircncias sociais perspectivas latino-americanas lanccedilada em portuguecircs em 2005 pelo

Conselho Latino Americano de Ciecircncias Sociais ndash (CLACSO) A seguir apresentamos

uma tabela elaborada por Ballestrin (2012) que retrata o perfil dos membros do citado

grupo

Tabela 01 - Membros do grupo ModernidadeColonialidade

Integrante

Aacuterea

Nacionalidade

Universidade onde leciona

Aniacutebal Quijano Sociologia Peruana Universidad Nacional de San Marcos Peru

Enrique Dussel

Filosofia Argentina Universidad Nacional Autoacutenoma de Meacutexico

Walter Mignolo Semioacutetica Argentina Duke University Eua

Immanuel Wallerstein

Sociologia Estadounidense Yale University Eua

Santiago Castro-Goacutemez

Filosofia Colombiana Pontificia Universidad Javeriana Colocircmbia

Nelson Maldonado-Torres

Filosofia Porto-riquenha University of California Berkeley Eua

Ramoacuten Grosfoacuteguel

Sociologia Porto-riquenha University of California Berkeley Eua

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Edgardo Lander

Sociologia Venezuelana UniversidadCentral de Venezuela

Arthuro Escobar

Antropologia Colombiana University of North Carolina Eua

Fernando Coronil

Antropologia Venezuelana University of New York Eua

Catherine Walsh

Linguiacutestica Estadounidense UniversidadAndina Simoacuten Boliacutevar Equador

Boaventura Santos

Direito Portuguesa Universidade de Coimbra Portugal

Zulma Palermo Semioacutetica Argentina Universidad Nacional de Salta Argentina

Fonte Luciana Ballestrin 2012

Para Ballestrin (2012 p 21) o grupo desenvolveu accedilotildees que foram marcantes

para a renovaccedilatildeo criacutetica das Ciecircncias Sociais na Ameacuterica Latina no seacuteculo XXI dentre

elas ldquoa inserccedilatildeo do continente no debate poacutes-colonial a ruptura com os estudos

culturais subalternos - indianos e latino-americanos - e poacutes-coloniais e a radicalizaccedilatildeo

do argumento poacutes-colonial atraveacutes do movimento giro decolonialrdquo

Dentre as concepccedilotildees teoacutericas produzidas pelo grupo destacamos a de

Immanuel Wallerstein que criou uma definiccedilatildeo de sistema-mundo que foi a base para

a elaboraccedilatildeo do conceito de colonialidade do poder por Anibal Quijano Para

Wallerstein a interdependecircncia seja econocircmica ou poliacutetica eacute gerada pelo mercado

O sistema-mundo corresponde assim a uma unidade espaccedilo-temporal cujo horizonte

espacial eacute coextensivo agrave reproduccedilatildeo de suas bases econocircmico-materiais sobre aacutereas

externas e que engloba outras entidades poliacuteticas e sistemas culturais A estrutura

para a manutenccedilatildeo da soberania dos Estados foi criada para alicerccedilar a economia-

mundo capitalista

Como nem sempre existiu essa foi uma estrutura que teve que ser construiacuteda O processo de sua construccedilatildeo tem sido contiacutenuo sob inuacutemeros aspectos A estrutura foi criada de iniacutecio num uacutenico segmento do globo primordialmente a Europa mais ou menos no periacuteodo que vai de 1497 a 1648 Passou entatildeo por expansotildees esporaacutedicas incorporando uma zona geograacutefica sempre mais ampla Esse processo que poderiacuteamos chamar de lsquoincorporaccedilatildeorsquo de novas zonas agrave economia-mundo capitalista envolveu a reformulaccedilatildeo de fronteiras e estruturas poliacuteticas nas zonas incorporadas e a criaccedilatildeo em seu acircmbito de lsquoEstados soberanos membros do sistema interestatalrsquo ou ao menos aquilo que poderiacuteamos chamar de lsquocandidatos a estados soberanosrsquo ndash as colocircnias (WALLERSTEIN 2006 p 154)

O sistema-mundo moderno entatildeo surgiu como parte de um processo de

expansatildeo da economia-mundo capitalista e tambeacutem da sua relaccedilatildeo com um sistema

interestatal De acordo com o autor a ordem econocircmica militar e poliacutetica satildeo

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delimitadas pelos paiacuteses centrais assim o desenvolvimento dos Estados perifeacutericos

se fez a partir da dinacircmica de expansatildeo do sistema-mundo

Entatildeo o sistema-mundo eurocecircntrico abarcou todo o planeta com as

desigualdades imperando nas relaccedilotildees entre os paiacuteses sejam elas econocircmicas

poliacuteticas ou culturais O sistema-mundo estaacute diretamente vinculado aos sistemas

histoacutericos que tecircm uma fronteira na qual ldquoo sistema e as pessoas satildeo regularmente

reproduzidos por meio de algum tipo de divisatildeo contiacutenua do trabalhordquo

(WALLERSTEIN 1999 p459)

Para o referido autor existiram diferentes sistemas histoacutericos com suas loacutegicas

de funcionamento totalizando trecircs

Os lsquominissistemasrsquo assim chamados porque satildeo espacialmente pequenos e com toda a probabilidade relativamente breves no tempo (uma duraccedilatildeo de cerca de seis geraccedilotildees) satildeo altamente homogecircneos em termos de estruturas culturais e de governo A loacutegica baacutesica eacute a da lsquoreciprocidadersquo nas trocas Os lsquoimpeacuterios mundiaisrsquo satildeo vastas estruturas poliacuteticas (pelo menos no aacutepice do processo de expansatildeo e contraccedilatildeo que parece ser o destino de todos eles) e abarcam uma ampla variedade de padrotildees lsquoculturaisrsquo A loacutegica baacutesica do sistema eacute a extraccedilatildeo de tributo daqueles que de outra forma satildeo produtores diretos localmente auto-administrado (sobretudo rurais) que eacute passado para o centro e redistribuiacutedo entre uma fina mais crucial rede de funcionaacuterios As lsquoeconomias-mundorsquo satildeo vastas e desiguais cadeias de estruturas de produccedilatildeo dissecadas por muacuteltiplas estruturas poliacuteticas A loacutegica baacutesica eacute que o excedente acumulado eacute distribuiacutedo desigualmente em favor daqueles que satildeo capazes de realizar vaacuterios monopoacutelios temporaacuterios nas redes de mercado Eacute uma loacutegica lsquocapitalistarsquo (WALLERSTEIN 1999 p459-460)

O autor enfatiza dois aspectos o primeiro referente ao caraacuteter histoacuterico dos

sistemas Portanto o atual sistema-mundo que nasceu na Europa acerca de cinco

seacuteculos atraacutescomo os outros sistemas poderaacute desaparecer O segundo eacute que a

soberania dos Estados paiacuteses naccedilotildees e economias nacionais estatildeo delimitadas no

acircmbito do sistema-mundo vigente

A seguir abordamos a colonialidade do poder no qual a concepccedilatildeo de sistema-

mundo foi a base para as discussotildees e debates referentes ao conceito de

colonialidade bem como a construccedilatildeo da concepccedilatildeo de raccedila por meio da

classificaccedilatildeo da populaccedilatildeo mundial de acordo com a cor da pele o que garantiu o

domiacutenio e a supremacia da raccedila brancaeuropeia sobre as demais

122A colonialidade do poder

A colonialidade do poder eacute um conceito criado pelo socioacutelogo peruano Aniacutebal

Quijanoutilizado como referecircncia nas reflexotildees teoacutericas e praacuteticas no tocante ao

poder na Ameacuterica Latina bem como para analisar o processo de globalizaccedilatildeo e suas

relaccedilotildees com o capital e o trabalho

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Segundo Quijano (2007) o colonialismo cria em seu bojo a colonialidade que

atua sobre vaacuterias dimensotildees do colonizado mas o autor estabelece as diferenccedilas

entre esses dois conceitos para demonstrar como se forjou e se sustenta a estrutura

global de poder Ocolonialismo baseava-se na dominaccedilatildeo e exploraccedilatildeo com o total

controle da autoridade poliacutetica dos recursos de produccedilatildeo e do trabalho de uma

determinada populaccedilatildeo com identidades diferentes e situados em jurisdiccedilatildeo territorial

diferente Configura-se assim em uma relaccedilatildeo poliacutetica e econocircmica na qual a

soberania de uma naccedilatildeo eacute subjugada por outra Jaacute a colonialidade se caracteriza

como um padratildeo de poder que interfere nas relaccedilotildees intersubjetivas bem como nas

formas de valorizaccedilatildeo do conhecimento aleacutem da divisatildeo do trabalho baseado em

uma hierarquia racial inventada para justificar a hegemonia branca eurocecircntrica

Apresenta-se a partir de quatro formas colonialidade do poder do saber do ser e da

matildee-natureza(QUIJANO 2005 MIGNOLO 2005 WALSH 2007)

Todavia a colonialidade do poder inclina-se sobre as relaccedilotildees de colonialidade

nas esferas econocircmica e poliacutetica realccedilando a presenccedila das formas de colonizaccedilatildeo

por meio de um padratildeo de controle global tambeacutem de recursos e produtos por

intermeacutedio do controle do trabalho Desta forma Quijano (2005) anuncia sua dupla

pretensatildeo denunciar a continuidade das formas coloniais de dominaccedilatildeo via cultura e

pelas estruturas do sistema-mundo capitalista modernocolonial e por outro lado a

necessidade da atualizaccedilatildeo dessa discussatildeo que prolonga processos que

teoricamente teriam sido superados na modernidade

Assim constata-se que as relaccedilotildees de colonialidade nas esferas econocircmica e

poliacutetica natildeo findaram com a destruiccedilatildeo do colonialismo a colonialidade do poder daacute

visibilidade agraves formas coloniais de dominaccedilatildeo mesmo com o fim das administraccedilotildees

poliacutetico-juriacutedicas coloniais e tambeacutem ldquopossui uma capacidade explicativa que atualiza

e contemporiza processos que supostamente teriam sido apagados assimilados ou

superados pela modernidaderdquo (BALLESTRIN 2012 p 13)

A colonialidade de poder segundo Quijano (2000) eacute constitutiva da

modernidade Corroborando com essa ideia Dussel (1994) afirma que se a

modernidade tem um sentido emancipador para a Europa ela natildeo tem a mesma

positividade para o outro natildeo europeu para este ela significou a origem de uma

violecircncia sacrificial travestida nos projetos de cristianizaccedilatildeo civilizaccedilatildeo

desenvolvimento e democratizaccedilatildeo

ParaQuijano (2000 p342)

48

La colonialidade es uno de los elementos constitutivos y especiacuteficos del patroacuten mundial de poder capitalista Se funda en la imposicioacuten de una clasificacioacuten racialeacutetnica de la problacioacuten del mundo como piedra anguar de dicho patroacuten de poder y opera en cada uno de los planos aacutembitos y dimensiones materiales y subjetivas de la existecircncia social cotidiana y a escala societal Se origina y mundializa a partir de America

A colonialidade do poder carrega em si uma perspectiva que integra elementos

histoacutericos econocircmicos poliacuteticos e ideoloacutegicos que formaram e ainda estruturam as

relaccedilotildees de poder global na atualidade

No que concerne ao elemento histoacuterico a concepccedilatildeo da ideia de raccedila foi

construiacuteda para inferiorizar e naturalizar as diferenccedilas entre colonizador e colonizado

De acordo com Quijano (2005) a racializaccedilatildeo e a racionalizaccedilatildeo foram as bases nas

quais se instituiacuteram a modernidade Para o autor a racializaccedilatildeo foi a normatizaccedilatildeo da

sociedade em raccedilas como regra global para a classificaccedilatildeo da populaccedilatildeo e os niacuteveis

de ocupaccedilatildeo econocircmica poliacutetica e social Isso possibilitou a articulaccedilatildeo do controle

do trabalho de seus recursos e de seus produtos fundada numa racionalidade

eurocentrada

A ideia de raccedila foi a base da relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo por meio da classificaccedilatildeo

da populaccedilatildeo inicialmente da Ameacuterica e depois para o restante do mundo colonizado

Esta classificaccedilatildeo gerou novas identidades os dominados foram agrupados em

categorias tendo como criteacuterio a cor da pele iacutendios negros mesticcedilos olivaacuteceos e

amarelos O colonizador se auto identificou como branco e mais tarde por volta do

seacuteculo XVIII europeu

E na medida em que as relaccedilotildees sociais que se estavam configurando eram relaccedilotildees de dominaccedilatildeo tais identidades foram associadas agraves hierarquias lugares e papeacuteis sociais correspondentes como constitutivas delas e consequentemente ao padratildeo de dominaccedilatildeo que se impunha Em outras palavras raccedila e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificaccedilatildeo social baacutesica da populaccedilatildeo (QUIJANO 2005 p 3)

Destamaneira naturalizou-se as diferenccedilas como mais uma forma de

legitimaccedilatildeo acrescida agraves ideias e praacuteticas jaacute desenvolvidas para garantir a

superioridade entre dominantes e dominados A classificaccedilatildeo hieraacuterquica

inicialmente se consolidou nas caracteriacutesticas fenoacutetipas e posteriormente na cor da

pele como uacutenico criteacuterio para categorizaccedilatildeo racial da populaccedilatildeo assim fundamenta-

se em explicaccedilotildees de cunho bioloacutegico que buscou naturalizar as diferenccedilas que satildeo

construiacutedas socialmente gerando a discriminaccedilatildeo o preconceito e o racismo

49

Eacute a colonialidade do poder que expressa a noccedilatildeo de raccedila com o objetivo de

afirmar a hegemonia da raccedila branca Logo ldquoa ideia de raccedila eacute uma construccedilatildeo mental

que expressa a experiecircncia baacutesica da dominaccedilatildeo colonial e que desde entatildeo permeia

as dimensotildees mais importantes do poder mundial [] o eurocentrismordquo (QUIJANO

2005 p 227) Dessa maneira o crescimento do colonialismo europeu levou agrave

elaboraccedilatildeo da perspectiva eurocecircntrica do conhecimento culminando com a

construccedilatildeo teoacuterica da ideia de raccedila que foi o mais eficaz e duraacutevel instrumento de

dominaccedilatildeo social universal como naturalizaccedilatildeo dessas relaccedilotildees coloniais de

dominaccedilatildeo entre europeus e natildeo-europeusAfirma Quijano (2005 p 228) que ldquoos

povos conquistados e dominados foram postos numa situaccedilatildeo natural de inferioridade

e consequentemente tambeacutem seus traccedilos fenotiacutepicos bem como suas descobertas

mentais e culturaisrdquo Eacute a negaccedilatildeo do estatuto de humanidade aos povos

subalternizados nesta relaccedilatildeo se identifica a colonialidade do Ser que de acordo

com Walsh (2008 p 138) ldquoes la que se ejerce por medio de la inferiorizacioacuten

subalternizacion y la deshumanizacioacuten a lo que Frantz Fanon (1999) se refiere como

el trato de la lsquono existenciarsquo rdquo Para Grosfoguel (2008 p 123) a colonialidade do poder

carrega em seu bojo a leitura da raccedila e do racismo como ldquoo princiacutepio organizador que

estrutura todas as muacuteltiplas hierarquias do sistema-mundordquo

Os criteacuterios para classificaccedilatildeo da espeacutecie humana foi avanccedilando no decorrer

do tempo No seacuteculo XVIII teve a cor da pele como um criteacuterio fundamental em

seguida no seacuteculo XIX acrescentou-se ao criteacuterio da cor outros aspectos

morfoloacutegicos tais como a forma do nariz dos laacutebios do queixo do formato do cracircnio

e o acircngulo facial para aperfeiccediloar a classificaccedilatildeo e aumentar a discriminaccedilatildeo

Somente no seacuteculo XX com os avanccedilos das ciecircncias os proacuteprios bioacutelogos geneticistas cientistas da biologia molecular e da bioquiacutemica chegaram agrave conclusatildeo de que a raccedila natildeo eacute uma realidade bioloacutegica mas um conceito inoperante para explicar a diversidade humana e para dividi-la em raccedilas estanques Ou seja bioloacutegica e cientificamente as raccedilas natildeo existem (MUNANGA 2003 p 67)

Poreacutem a ideia de que a populaccedilatildeo estaacute dividida em raccedilas teve a funccedilatildeo de

ratificar o poder do colonizador que utilizou vaacuterias estrateacutegias para controlar toda a

diversidade humana e incorporaacute-la ao uacutenico mundo dominado pela Europa por meio

do controle das subjetividades da cultura do conhecimento e de suas maneiras de

produccedilatildeo Afirma Quijano (2005) que dentre as estrateacutegias destacam-se a repressatildeo

das formas de produccedilatildeo do conhecimento dos povos colonizados e a apropriaccedilatildeo dos

que contribuiacutessem para o crescimento do capital a condenaccedilatildeo do seu universo

50

simboacutelico e dos padrotildees de expressatildeo e de objetivaccedilatildeo da subjetividade e a

imposiccedilatildeo da cultura necessaacuteria para a dominaccedilatildeo e reproduccedilatildeo do capital nos

aspectos materiais tecnoloacutegico inclusive da subjetividade com destaque para a

religiosa

Aleacutem das estrateacutegias para o controle e dominaccedilatildeo o referido autor evidencia

os fatores que contribuiacuteram para que a Europa se tornasse o centro do capitalismo

mundial e conseguisse ecircxito nas suas conquistas

A progressiva monetarizaccedilatildeo do mercado mundial que os metais preciosos da Ameacuterica estimulavam e permitiam bem como o controle de tatildeo abundantes recursos possibilitou aos brancos o controle da vasta rede preacute-existente de intercacircmbio que incluiacutea sobretudo China Iacutendia Ceilatildeo Egito Siacuteria os futuros Orientes Meacutedio e Extremo Isso tambeacutem lhes permitiu concentrar o controle do capital comercial do trabalho e dos recursos de produccedilatildeo no conjunto do mercado mundial E tudo isso foi posteriormente reforccedilado e consolidado atraveacutes da expansatildeo e da dominaccedilatildeo colonial branca sobre as diversas populaccedilotildees mundiais (QUIJANO 2005 p 232)

Desta forma o controle do capital comercial do trabalho e dos recursos de

produccedilatildeo no conjunto do mercado mundial permitiu agrave Europa tornar-se o centro do

capital global A articulaccedilatildeo de todas as possiacuteveis formas de controle do trabalho se

baseou na divisatildeo racial do trabalho na qual as raccedilas colonizadas foram destinadas

agraves funccedilotildees natildeo remuneradas pois eram consideradas inferiores e por consequecircncia

natildeo dignas de receberem salaacuterios Aos negros foi determinada a escravidatildeo aos

iacutendios a servidatildeo somente os espanhoacuteis e portugueses recebiam salaacuterios e quando

nobres ocupavam os mais altos cargos da administraccedilatildeo civil e militar Quanto aos

mesticcedilos estes exerciam os mesmos ofiacutecios dos brancos mas sem pagamento pelos

seus serviccedilos Esta mesma estrutura desenvolvida com ecircxito na Ameacuterica foi

transposta para o resto do mundo colonizado pois nas regiotildees dominadas a uacutenica

raccedila assalariada era a branca enquanto que aos colonizados estava reservado o

trabalho natildeo pago em razatildeo de sua natural inferioridade

Nesse sentido os interesses da raccedila branca eram totalmente antagocircnicos com

os dos dominados (iacutendios negros e mesticcedilos) Elaborou-se uma teoria racial na qual

iacutendios e negros natildeo eram considerados humanos mas vistos como baacuterbaros natildeo

dignos de receber salaacuterios Esse imaginaacuterio serviu para exploraacute-los oprimi-los e

dominaacute-los

A colonialidade do controle do trabalho de acordo com Quijano (2005 p 238)

ldquodeterminou a geografia social do capitalismordquo tornando-se o capital o eixo no qual

estavam ligadas todas as formas de controle do trabalho de seus recursos e produtos

51

ldquoEssa relaccedilatildeo social especiacutefica foi geograficamente concentrada na Europa

sobretudo e socialmente entre os europeus em todo o mundo do capitalismordquo (idem

p 238) Para Wallerstein o racismo eacute um elemento constitutivo da colonialidade e da

economia do mundo capitalista e tem como objetivo ldquomanter as pessoas dentro do

sistema mas com o estatuto de [] seres inferiores passiacuteveis de serem explorados

economicamente e usados como bodes-expiatoacuterios poliacuteticosrdquo (2000 p 13)

Corroborando com esta concepccedilatildeo Fanon (1956) aponta o racismo como uma

forma de opressatildeo na qual o dominante se sente superior e usa a sua superioridade

para desumanizar o outro Para o autor o racismo nunca eacute oculto inconsciente natildeo

sendo tambeacutem uma disposiccedilatildeo do espiacuterito algo psicoloacutegico embora a questatildeo

psiacutequica tambeacutem esteja presente

Na visatildeo de Walsh (2008) a discriminaccedilatildeo da categoria raccedila remete tambeacutem

agrave repressatildeo dos conhecimentos e saberes dos oprimidos que satildeo diversos dos

eurocecircntricos por meio da colonialidade do saber Concordando com a citada autora

Mignolo (2011) afirma que o eurocentrismo lanccedila qualquer epistemologia que esteja

fora de sua estrutura ao status de mito folclore lenda ou conhecimento local jaacute que

se coloca sempre no presente e no centro do espaccedilo projetando-se universalmente

Segundo Quijano (2005) a postura etnocecircntrica e a classificaccedilatildeo racial da

populaccedilatildeo do planeta satildeo fatores que contribuiacuteram para compreender os motivos dos

europeus se sentirem naturalmente superiores em relaccedilatildeo agraves outras raccedilas bem como

os uacutenicos autores da modernidade Isso os levou a se considerarem os mais

avanccedilados enquanto que o restante foi considerado inferior e primitivo no processo

de desenvolvimento da espeacutecie humana Para o autor a modernidade eacute um fenocircmeno

possiacutevel em todas as culturas e eacutepocas histoacutericas se partirmos do princiacutepio de que ela

estaacute ligada agrave ideia de novidade do avanccedilado racional-cientiacutefico laico e secular Desse

modo natildeo se pode atribuir agraves culturas natildeo europeias uma mentalidade primitiva pois

[hellip] aleacutem dos possiacuteveis ou melhor conjecturados conteuacutedos simboacutelicos as cidades os templos e palaacutecios as piracircmides ou as cidades monumentais seja Machu Pichu ou Boro Budur as irrigaccedilotildees as grandes vias de transporte as tecnologias metaliacuteferas agropecuaacuterias as matemaacuteticas os calendaacuterios a escritura a filosofia as histoacuterias as armas e as guerras mostram o desenvolvimento cientiacutefico e tecnoloacutegico em cada uma de tais altas culturas desde muito antes da formaccedilatildeo da Europa como nova id-entidade (QUIJANO 2005 p 230)

Portanto fica evidente a postura etnocentrista e eurocecircntrica ao afirmar ter

exclusividade em relaccedilatildeo agrave modernidade configurando-se como um discurso que visa

sedimentar a sua superioridade enquanto raccedila dominadora civilizadora e avanccedilada

52

em termos de racionalidade tecnologia e ciecircncia O referido autor ressalta que existe

uma gama de elementos demonstraacuteveis que apontam para um conceito de

modernidade diferente que daacute conta de um processo histoacuterico especiacutefico ao atual

sistema-mundo mas que porta todas as caracteriacutesticas que foram definidas Destaca

que carrega tambeacutem as relaccedilotildees sociais materiais e intersubjetivas cuja questatildeo

central eacute a libertaccedilatildeo humana como interesse histoacuterico da sociedade e em

consequecircncia seu campo central de conflito

Para Quijano (2005)o atual padratildeo de poder mundial eacute o primeiro efetivamente

global da histoacuteria conhecida O autor aponta quatro caracteriacutesticas que balizam sua

tese

Um eacute o primeiro em que cada um dos acircmbitos da existecircncia social estatildeo articuladas todas as formas historicamente conhecidas de controle das relaccedilotildees sociais correspondentes configurando em cada aacuterea uma uacutenica estrutura com relaccedilotildees sistemaacuteticas entre seus componentes e do mesmo modo em seu conjunto Dois eacute o primeiro em que cada uma dessas estruturas de cada acircmbito de existecircncia social estaacute sob a hegemonia de uma instituiccedilatildeo produzida dentro do processo de formaccedilatildeo e desenvolvimento deste mesmo padratildeo de poder Assim no controle do trabalho de seus recursos e de seus produtos estaacute a empresa capitalista no controle do sexo de seus recursos e produtos a famiacutelia burguesa no controle da autoridade seus recursos e produtos o Estado-naccedilatildeo no controle da intersubjetividade

o eurocentrismo Trecircs cada uma dessas instituiccedilotildees existe em relaccedilotildees de interdependecircncia com cada uma das outras Por isso o padratildeo de poder estaacute configurado como um sistema Quatro finalmente este padratildeo de poder mundial eacute o primeiro que cobre a totalidade da populaccedilatildeo do planeta

Assim o eurocentrismo tem como objetivo de tornar semelhante as formas

baacutesicas de existecircncia social de todas as populaccedilotildees colonizadas por intermeacutedio de

praacuteticas sociais comuns e uma esfera intersubjetiva que existe e atua como esfera

central de orientaccedilatildeo valorativa do conjunto Daiacute a universalizaccedilatildeo do Estado-naccedilatildeo

da famiacutelia burguesa da empresa da racionalidade eurocecircntrica como as instituiccedilotildees

hegemocircnicas de cada acircmbito de existecircncia social como modelos intersubjetivos

O eurocentrismo eacute tambeacutem uma loacutegica fundamental para a reproduccedilatildeo da

Colonialidade do Saber pois afirma Quijano (2005 p 9) ldquoa elaboraccedilatildeo intelectual do

processo de modernidade produziu uma perspectiva de conhecimento e um modo de

produzir conhecimento que demonstram o caraacuteter do padratildeo mundial de poder

colonialmoderno capitalista e eurocentradordquo O autor denomina de Eurocentrismo

esse modo de construir conhecimento

[] Eurocentrismo eacute aqui o nome de uma perspectiva de conhecimento cuja elaboraccedilatildeo sistemaacutetica comeccedilou na Europa Ocidental antes de meados do seacuteculo XVII ainda que algumas de suas raiacutezes satildeo sem duacutevida mais velhas ou mesmo antigas e que nos seacuteculos seguintes se tornou mundialmente

53

hegemocircnica percorrendo o mesmo fluxo do domiacutenio da Europa burguesa Sua constituiccedilatildeo ocorreu associada agrave especiacutefica secularizaccedilatildeo burguesa do pensamento europeu e agrave experiecircncia e agraves necessidades do padratildeo mundial de poder capitalista colonialmoderno eurocentrado estabelecido a partir da Ameacuterica

Como alternativa para questionar a validade somente do conhecimento

hegemocircnico e com a finalidade de tornar visiacutevel outras formas de conhecimentos

Mignolo (2003) propotildee a gnosepensamento liminar que tem como base a razatildeo

subalterna com outras racionalidades que diferem da concepccedilatildeo ocidental de

conhecimento

No que concerne agrave educaccedilatildeo dos ribeirinhos as pesquisas demonstram

segundo Hage (2014) que a colonialidade do poder impotildee curriacuteculos

descontextualizados ou seja que natildeo contemplam saberes oriundos do contexto

social econocircmico religioso e cultural dos povos das aacuteguas Os motivos estatildeo

relacionados ao natildeo reconhecimento do saber popular desses povos por serem

considerados como mitos lendas ou folclore portanto inferiores

123 Gnose ou pensamento liminar

Gnose ou pensamento liminar eacute um conceito criado por Mignolo que consiste em

[] o conhecimento concebido das margens externas do sistema mundial colonialmoderno gnosiologia marginal enquanto discurso sobre o saber colonial concebe-se na interseccedilatildeo conflituosa de conhecimento produzido na perspectiva dos colonialismos modernos (retorica filosofia ciecircncia) e do conhecimento produzido na perspectiva das modernidades coloniais na Aacutesia Aacutefrica nas Ameacutericas e no Caribe A gnosiologia liminar eacute uma reflexatildeo critica sobre a produccedilatildeo do conhecimento a partir tanto das margens internas do sistema mundial colonialmoderno (conflitos imperiais liacutenguas hegemocircnicas direcionalidade de traduccedilotildees etc) quanto das margens externas (conflitos imperiais com culturas que estatildeo sendo colonizadas bem como as etapas subsequentes de independecircncia ou descolonizaccedilatildeo) (MIGNOLO 2003 p 34)

Assim a gnose liminar representa o conhecimento dos excluiacutedos que

historicamente foi subalternizado por estar fora dos rigores da ciecircncia eurocecircntrica

constituindo-se numa razatildeo dos oprimidos em reaccedilatildeo ao processo de colonizaccedilatildeo

opressora Para o autor ldquoa gnose liminar constroacutei-se em diaacutelogo com a epistemologia

a partir de saberes que foram subalternizados nos processos imperiais coloniaisrdquo

(MIGNOLO 2003 p 34)

Assim o autor natildeo usa a gnose como doxa nem como ciecircnciaepisteme  no

sentido de um saber instrumental e muito menos como hermenecircutica A gnose

enquanto pensamento fronteiriccedilo torna-se um espaccedilo aberto para os saberes

54

marginalizados pelo ocidente Natildeo se constitui como recusa da ciecircncia ou da

hermenecircutica Eacute um saber que atua no tracircnsito entre fronteiras

Para que possamos entender a gnose liminar faz-se necessaacuterio de acordo

com Mignolo (2003) compreendermos a diferenccedila colonial pois ela surge como

formas de reaccedilatildeo a esta diferenccedila Desta maneira a diferenccedila colonial exprime a

categorizaccedilatildeo do planeta ldquono imaginaacuterio colonial moderno praticado pela colonialidade

do poder uma energia e um maquinaacuterio que transformam diferenccedilas em valoresrdquo

(MIGNOLO 2003 p 34)

A diferenccedila colonial foi construiacuteda historicamente Inicialmente os missionaacuterios

espanhoacuteis no seacuteculo XVI categorizavam os povos colonizados por meio do domiacutenio

da escrita alfabeacutetica os que natildeo a dominava eram considerados inferiores No fim do

seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX a categoria para avaliaccedilatildeo passou a ser a Histoacuteria Desta

maneira os povos sem histoacuteria situavam-se em um tempo anterior ao presente logo

a sua histoacuteria era escrita pelos que a tinham Destarte a diferenccedila colonial respeitava

a distinccedilatildeo claacutessica entre centros e periferias que prevaleceu ateacute o meio do seacuteculo

XX jaacute na segunda metade do mesmo seacuteculo a emergecircncia do colonialismo global

gerenciado pelas corporaccedilotildees transnacionais apagou a distinccedilatildeo que era vaacutelida para

as formas iniciais de colonialismo e a colonialidade do poder Portanto ldquoNo passado

a diferenccedila colonial situava-se laacute fora distante do centro Hoje emerge em toda parte

nas periferias dos centros e nos centros da periferiardquo(MIGNOLO 2003 p 09)

O colonialismo global que emerge com o fim da Guerra Fria e perpetua a

reproduccedilatildeo da diferenccedila colonial a niacutevel planetaacuterio sem situar-se em determinado

territoacuterio mostra a diferenccedila colonial ldquoem escala mundial quando o lsquoocidentalismorsquo se

defronta com o Oriente como precisamente sua proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade - da

mesma forma que paradoxalmente nos seacuteculos 18 e 19 o Ocidentalismo foi agrave

condiccedilatildeo da possibilidade do Orientalismordquo (MIGNOLO 2003 p10)

O pensamento liminar torna-se desta maneira uma reaccedilatildeo agrave diferenccedila

colonial que eacute concebida como

[] o espaccedilo onde emerge a colonialidade do poder A diferenccedila colonial eacute o espaccedilo onde as histoacuterias locais que estatildeo inventando e implementando os projetos globais encontram aquelas histoacuterias locais que os recebem eacute o espaccedilo onde os projetos globais satildeo forccedilados a adaptar-se integrar-se ou onde satildeo adotados rejeitados ou ignorados A diferenccedila colonial eacute finalmente o local ao mesmo tempo fiacutesico e imaginaacuterio onde atua a colonialidade do poder no confronto de duas espeacutecies de histoacuterias locais visiacuteveis em diferentes espaccedilos e tempos do planeta (MIGNOLO 2003 p10)

55

Neste sentido a diferenccedila colonial cria condiccedilotildees para situaccedilotildees dialoacutegicas nas

quais se encena do ponto de vista subalterno segundo Mignolo (2003 p 11)ldquouma

enunciaccedilatildeo fraturada como reaccedilatildeo ao discurso e agrave perspectiva hegemocircnicardquo Assim

enfatiza o autor que o pensamento liminar se constitui num instrumento para a

descolonizaccedilatildeo intelectual e portanto para a descolonizaccedilatildeo poliacutetica e econocircmica

ele nos leva a perceber como nossa formaccedilatildeo estaacute enraizada num imaginaacuterio

marcado por uma colonizaccedilatildeo intelectual eurocecircntrica

No processo de desconstruccedilatildeo desse imaginaacuterio Mignolo (2003) propotildee o

questionamento das teorias aceitas como verdades absolutas soacute porque satildeo oriundas

dos paiacuteses que foram historicamente dominantes enquanto que as produzidas em

paiacuteses que foram colonizados natildeo satildeo reconhecidas ou satildeo vistas com desconfianccedila

O entendimento dessas questotildees estaacute segundo o autor na colonialidade do poder e

na diferenccedila colonial que configuram a geopoliacutetica do conhecimento na qual somente

uma elite intelectual tem o privilegio de teorizar

Esta colonizaccedilatildeo epistemoloacutegica eurocecircntrica e etnocecircntrica foi se formando

no processo de constituiccedilatildeo do sistema moderno colonial (MIGNOLO 2003) Desta

maneira foi instalada uma geopoliacutetica do conhecimento na qualuma elite

pensanteoriunda de um determinado lugar cultura e liacutengua exerce unanimemente o

direito agrave filosofia e agrave ciecircncia

Esses satildeo os motivos do natildeo reconhecimento dos saberes produzido em

liacutenguas e histoacuterias locais subalternizadas Assim a Europa tornou-se o locus

privilegiado de produccedilatildeo e avaliaccedilatildeo do conhecimento E cosmologias e

conhecimentos milenares foram reduzidos a supersticcedilotildees conhecimento popular

folclore entre outros Trata-se aqui do processo de colonizaccedilatildeo da memoacuteria do qual

fala Mignolo (2006) A emergecircncia de outro pensamento o liminar aponta para outra

razatildeo a poacutes-ocidental que implica no reconhecimento dos saberes subalternizados e

na sua redistribuiccedilatildeo geopoliacutetica

Assim para Mignolo (2003 p 35) a gnose liminar enquanto conhecimento

natildeo se trata de uma forma ldquode sincretismo ou hibridismo mas de um sangrento campo

de batalha na longa histoacuteria da subalternizaccedilatildeo colonial do conhecimento e da

legitimaccedilatildeo da diferenccedila colonialrdquo Em decorrecircncia disso eacute uma poderosa e

emergente gnosiologia que na perspectiva do subalterno estaacute deslocando e

absorvendo as formas hegemocircnicas do conhecimento Ela eacute construiacuteda nos espaccedilos

liminares nas fronteiras da diferenccedila colonial Desta maneira a diferenccedila colonial soacute

56

pode ser transposta por via da subalternidade expressa por meio do pensamento

liminar

[] somente se pode transcender a diferenccedila colonial da perspectiva da subalternidade da descolonizaccedilatildeo e portanto de um novo terreno epistemoloacutegico que o pensamento liminar estaacute descortinando [] O pensamento liminar na perspectiva da subalternidade eacute uma maacutequina para a descolonizaccedilatildeo [] (MIGNOLO 2003 p 76)

Nesse sentido a gnose liminar eacute a razatildeo subalternaque visa o enfrentamento

da colonialidade do poder por meio do reconhecimento e valorizaccedilatildeo dos saberes

subalternizados durante a colonizaccedilatildeo Assim a partir da perspectiva epistemoloacutegica

eurocecircntrica o saber dominantefoi globalizado por meio de todo um processo

construiacutedo historicamente o autor propotildee a gnose liminar como ldquomaacutequinardquo necessaacuteria

agrave descolonizaccedilatildeo

Dentre os pressupostos apresentados pelo citado autor estaacute a relaccedilatildeo entre

modernidade e colonialidade que jamais podem ser concebidas separadamente pois

uma natildeo existe sem a outra Eacute a partir desse prisma que pode ser analisada a

formaccedilatildeo do sistema-mundo tendo como referecircncia a modernidadecolonialidade em

suas vaacuterias histoacuterias locais simultaneamente configuradas nos colonialismos

modernos e nas modernidades coloniais e natildeo apenas como uma histoacuteria mundial

universal e abstrata (MIGNOLO 2003)

Consequentemente a relaccedilatildeo entre a colonialidade do poder e a diferenccedila

colonial eacute permeada pela vinculaccedilatildeo entre o que se teoriza e a partir de onde se

teoriza desta maneira a produccedilatildeo e validaccedilatildeo do conhecimento estaacute vinculada com

a localizaccedilatildeo geograacutefica

No tocante agrave redefiniccedilatildeo da geopoliacutetica do conhecimento que consiste na

descolonizaccedilatildeo epistecircmica eacute preciso que seja pautada em novos locide enunciaccedilatildeo

a partir dos saberes subalternos em confronto com as formas dosaber hegemocircnico

Essa tarefa eacute mediar entre as praacuteticas filosoacuteficas no interior das histoacuterias coloniais modernas [] e formas lsquotradicionaisrsquo de pensamento ndash isto eacute formas de pensamento coexistentes com a definiccedilatildeo institucional de filosofia mas natildeo consideradas como tal na perspectiva institucional que define a filosofia (MIGNOLO 2003 p98)

Para isso a gnose liminar como forma de descolonizaccedilatildeo epistecircmica eacute

diferenciada das teorias criacuteticas poacutes-modernas A poacutes-modernidade eacute vista enquanto

discurso criacutetico sobre a ecircnfase no imaginaacuterio da modernidade como uma descriccedilatildeo

do presente histoacuterico em que eacute possiacutevel tal discurso Em oposiccedilatildeo a poacutes-colonialidade

eacute concebida como um discurso criacutetico que torna visiacutevel o vieacutes colonial do sistema

57

mundial moderno e a colonialidade do poder que estaacute encravada na proacutepria

modernidade Destaca Mignolo (2003) que eacute tambeacutem um discurso que muda a

extensatildeo entre os locais geoistoacutericos e a produccedilatildeo de conhecimentos Isto tem como

consequecircncia o reordenamento desta geopoliacutetica hegemocircnica por meio da

articulaccedilatildeo da racionalidade subalterna compreendida como um conjunto diverso das

praacuteticas teoacutericas na interseccedilatildeo das histoacuterias locais e dos projetos globais A

preocupaccedilatildeo do autor eacute

[] enfatizar a ideia de que lsquoo discurso colonial e poacutes-colonialrsquo natildeo eacute apenas um novo campo de estudo ou uma mina de ouro para a extraccedilatildeo de novas riquezas mas condiccedilatildeo para a possibilidade de se construiacuterem novos loci de enunciaccedilatildeo e para a reflexatildeo de que o lsquoconhecimento e compreensatildeorsquo acadecircmicos devem ser complementados pelo lsquoaprender comrsquo aqueles que vivem e refletem a partir de legados coloniais e poacutes-coloniais de Rigoberta Menchuacute a Angel Rama Do contraacuterio corremos o risco de estimular a macaqueaccedilatildeo a exportaccedilatildeo de teorias o colonialismo (cultural) interno em vez de promover novas formas de criacutetica cultural de emancipaccedilatildeo intelectual e poliacutetica mdash de transformar os estudos coloniais e poacutes-coloniais em um campo de estudo em vez de loacutecus de enunciaccedilatildeo liminar e criacutetico O lsquoponto de vista nativorsquo tambeacutem inclui os intelectuais [] o terceiro mundo produz natildeo apenas lsquoculturasrsquo a serem estudadas por antropoacutelogos e etno-historiadores mas tambeacutem intelectuais que geram teorias e refletem sobre sua proacutepria historia e cultura (MIGNOLO 1993 p 131)

Os novos locusde enunciaccedilatildeo natildeo teratildeo mais como centro o sistema moderno-

colonial e sim as suas margens O aprender proposto pelo autor eacute um dos objetivos

deste trabalho aprender com os ribeirinhos da Amazocircnia que produzem

conhecimentos que retratam suas histoacuterias e culturas Conhecimentos referentes agrave

mata aos rios ao accedilaiacute agrave pesca agrave confecccedilatildeo dos instrumentos para as atividades

econocircmicas sociais e religiosas que foram e satildeo subalternizados suprimidos e

silenciados Desta formaa emergecircncia de um pensamento liminar altera e ultrapassa

as configuraccedilotildees histoacutericas e geopoliacuteticas que marcaram historicamente o sistema

moderno colonial regulado pela colonizaccedilatildeo epistecircmica e subalternizaccedilatildeo de

saberes liacutenguas culturas e povos

O pensamento fronteiriccedilo eacute outro conceito apresentado pelo referido autor que

assim como o pensamento liminar

[] desde la perspectiva de la subalternidad colonial es um pensamiento que no puede ignorar el pensamiento de la modernidad pero que no puede tampoco subyugarse a eacutel aunque tal pensamiento moderno sea de izquierda o progresista El pensamiento fronterizo es el pensamiento que afirma el espacio donde el pensamiento fue negado por el pensamiento de la modernidad de izquerda o de derecha (MIGNOLO 2003 p 52)

58

O pensamento fronteiriccedilo juntamente com o liminar corresponde agrave razatildeo

subalterna que evidenciam e procuram tornar perceptiacutevel a potencialidade dos

saberes subalternizados rompendo dessa forma com a uniformizaccedilatildeo imposta pelo

eurocentrismo Tem como caracteriacutestica ser epistemoloacutegico porque eacute constituiacutedo a

partir da criacutetica do conhecimento hegemocircnico que se considera universal e tambeacutem eacute

eacutetico porque eacute uma maneira de pensar que natildeo eacute inspirada ldquonas suas proacuteprias

limitaccedilotildees e natildeo pretende humilhar uma maneira de pensar que eacute universalmente

marginal fragmentaacuteria e abertardquo (MIGNOLO 2003 p 104)

O pensamento fronteiriccedilo como consequecircncia da diferenccedila colonial natildeo eacute

uacutenico e uniforme pois resulta da luta e do reconhecimento das diferenccedilas e das

diversidades Assim natildeo haacute um fundamentalismo teoacuterico e praacutetico que rejeita tudo e

qualquer coisa que seja europeia ao inveacutes disso leva em conta a duplicidade de

consciecircncia que o sistema mundo colonialmoderno gera Portanto Mignolo (2003)

reconhece a importacircncia da ciecircncia e das formas de saberes ocidentais hegemocircnicas

para o autor as diversas histoacuterias saberes e epistemologias locais satildeo resultados da

diferenccedila colonial resultante da colonialidade do poder e do saber afirmando que natildeo

se trata de negar o paradigma hegemocircnico mas sim de admitir que existam outros

paradigmas frutos da diversidade epistemoloacutegica do mundo

O diaacutelogo entre os paradigmas deve ocorrer a partir do reconhecimento e

validaccedilatildeo de outras epistemologias que satildeo resultado da diversidade de culturas

existente no mundo Dentre as concepccedilotildees para o desenvolvimento do diaacutelogo

discutimos a seguir a proposta por Paulo Freire

13O DIAacuteLOGO ponto de partida para praacuteticas transformadoras

Para Freire (1986) o diaacutelogo faz parte da natureza histoacuterica dos seres

humanos Eacute momento de encontro com vistas agrave reflexatildeo da realidade na qual vivemos

para poder transformaacute-la Desta forma o diaacutelogo ldquoeacute este encontro dos homens

mediatizados pelo mundo para pronunciaacute-lo natildeo se esgotando portanto na relaccedilatildeo

eu-turdquo (FREIRE 2014 p 109) A pronuacutencia se daacute pela palavra composta pela accedilatildeo e

reflexatildeo tornando-se praacutexis que segundo Freire (2014 p109) ldquoeacute reflexatildeo e accedilatildeo

doshomens sobre o mundo para transformaacute-lo Sem ela eacute impossiacutevel a superaccedilatildeo da

contradiccedilatildeo opressor-oprimidordquo Quando haacute a dicotomia entre essas duas dimensotildees

a accedilatildeo vira ativismo e a reflexatildeo verbalismo o que segundo o autor inviabiliza o

diaacutelogo pois a transformaccedilatildeo ocorre pela palavra ao pronunciar o mundo daiacute sua

importacircncia como percurso no qual o ser humano ganha significaccedilatildeo

59

A palavra natildeo pode ser muda nem silenciosa precisa ter o poder de criar

transformar potencializar e libertar O mutismo da palavra somentetem sentido

quando submerge o sujeito de sua realidade e o faz emergir no seu acircmago um imenso

amor ao mundo e agrave humanidade Para Freire (2014 p 111) ldquoexistir humanamente eacute

pronunciar o mundo eacute modificaacute-lo O mundo pronunciado por sua vez se volta

problematizado aos sujeitos pronunciantes a exigir deles novo pronunciarrdquo

Desta maneira para que ocorra o diaacutelogo eacute preciso garantir o direito agrave palavra

a todos

Por isto o diaacutelogo eacute uma exigecircncia existencial E se ele eacute o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereccedilados ao mundo a ser transformado e humanizado natildeo pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito num outro nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes(FREIRE 2014 p 109)

Nesse sentido constitui-se numa perspectiva horizontal na qual todos devem

ter direito agrave palavra caso ela seja negada precisa ser conquistada para que se possa

exercer o direito de pronunciaacute-la Por meio do diaacutelogo podemos refletir coletivamente

sobre o que conhecemos e tambeacutem referente ao que ainda natildeo sabemos para

posteriormente de forma criacutetica mudarmos nossa realidade Nesse processo o

diaacutelogo eacute comunicaccedilatildeo por meio da qual conhecemos o mundo na interaccedilatildeo com o

outro o que caracteriza um ato social mesmo com dimensotildees individuais ldquoO que eacute o

diaacutelogo neste momento de comunicaccedilatildeo de conhecimento e de transformaccedilatildeo

social O diaacutelogo sela o relacionamento entre os sujeitos cognitivos podemos a

seguir atuar criticamente para transformar a realidaderdquo (FREIRE 1986 p 123) Para

que ocorra de fato o diaacutelogo requer amor humildade feacute e confianccedila nos homens

bem como esperanccedila aliada a luta pela mudanccedila

Para Freire (2014) o diaacutelogo exige um imenso amor ao mundo e aos homens

e eacute necessariamente uma atitude de coragem e compromisso Desta maneira ldquoeacute

impossiacutevel haver diaacutelogo se natildeo haacute uma profunda relaccedilatildeo de amorrdquo (p 111) A relaccedilatildeo

amorosa estaacute baseada em um compromisso com o outro o qual eacute estimulado pelo

amor que o sustenta e o impulsiona

O amor eacute ingrediente para a constituiccedilatildeo do mundo que eacute criado e recriado

pelos sujeitos tornando-se ldquoao mesmo tempo o fundamento do diaacutelogo e o proacuteprio

diaacutelogordquo (FREIRE 2014 p 112) Assim o diaacutelogo eacute movido pelo interesse muacutetuo o

que natildeo ocorre na relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e opressatildeo nela impera o egoiacutesmo com a

imposiccedilatildeo de ideias e accedilotildees tornando-se verticalizado Nessa perspectiva qualquer

60

mudanccedila que venha a afetar as nossas emoccedilotildees consequentemente afetaraacute e

modificaraacute tambeacutem as nossas accedilotildees Maturana (2004 p 45) reforccedila esse pensamento

ao dizer que eacute a emoccedilatildeo que define a accedilatildeo ldquo[] Eacute a emoccedilatildeo a partir da qual se faz

ou se recebe certo fazer que o transforma numa ou noutra accedilatildeo ou que o qualifica

como um comportamento dessas ou daquela classerdquo Consequentemente continua o

autor o conversar perpassa pela convivecircncia amorosa mesclada pela emoccedilatildeo e

linguagem de maneira dialoacutegicaNa oacutetica da educaccedilatildeo essa conversa gera uma

reflexatildeo coletiva direcionada a criar e aprimorar accedilotildees emancipadoras motivo pelo

qual o direito agrave palavra aos educandos eacute condiccedilatildeo fundamental

Na educaccedilatildeo escolar o diaacutelogo freireano eacute baseado na amorosidade e no

respeito agrave dignidade dos envolvidos isso natildeo requer que o professor segundo

Oliveira (2008) abra matildeo de sua competecircncia teacutecnica no fazer pedagoacutegico com receio

de natildeo ser amoroso pois o saber teacutecnico e a amorosidade natildeo eacute incompatiacutevel e

ambos satildeo necessaacuterios agraves relaccedilotildees educativas uma vez que

[] na convivecircncia amorosa com seus alunos e na postura curiosa e aberta que assume e ao mesmo tempo provoca-os assumirem enquanto sujeitos soacutecio-histoacuterico-culturais do ato de conhecer eacute que ele pode falar do respeito agrave dignidade e autonomia do educando (OLIVEIRA 2008 p 15)

O respeito a dignidade e a autonomia fazem parte do rigor do processo

educativo envolvidos pelo diaacutelogo amoroso no qual educador e educando satildeo sujeitos

encharcados de afetividade e vistos numa perspectiva horizontal no ato dialoacutegico

Assim para Freire (2001) a compreensatildeo de uma nova forma de ensinar aprender e

conhecer decorreraacute da visatildeo do mundo enquanto produzido e reproduzido pelo ser

humano numa relaccedilatildeo dialoacutegica com outros homens e com o mundo No fazer

pedagoacutegico a relaccedilatildeo dialoacutegica estaacute balizada pelo entendimento poliacutetico e

competecircncia teacutecnica dos educadores afetividade seriedade e alegria que podem

estar a serviccedilo da permanecircncia ou mudanccedila da sociedade (FREIRE 1998) Ser seacuterio

natildeo significa ser autoritaacuterio ou severo a seriedade pode caminhar junto com a

afetividade conforme Freire (1998 p 32) afirma

Na verdade preciso descartar como falsa a separaccedilatildeo radical entre seriedade docente e afetividade Natildeo eacute certo sobretudo do ponto de vista democraacutetico que serei tatildeo melhor professor quanto mais severo mais frio mais distante e ldquocinzentordquo me ponha nas minhas relaccedilotildees com os alunos no trato dos objetos cognosciacuteveis que devo ensinar A afetividade natildeo se acha excluiacuteda da cognoscibilidade []

O ato cognosciacutevel eacute seacuterio e amoroso o educador numa perspectiva freireana

expressa sua afetividade sem receio e ao mesmo tempo com seriedade dialoga com

61

os educandos a partir de suas realidades problematizando-as ldquoa professora

progressista ensina os conteuacutedos de sua disciplina com rigor e com rigor cobra a

produccedilatildeo dos educandos mas natildeo esconde sua opccedilatildeo poliacutetica na neutralidade

impossiacutevel de seu quefazerrdquo (FREIRE 2000 p 44) Portanto continua o autor o

diaacutelogo ocorre no interior de um determinado contexto neste caso a escola assim para

alcanccedilar os objetivos da transformaccedilatildeo o diaacutelogo implica responsabilidade

direcionamento determinaccedilatildeo disciplina e objetivos

Outra condiccedilatildeo para a existecircncia do diaacutelogo eacute a humildade pois a criaccedilatildeo e

recriaccedilatildeo do mundo natildeo podem ser realizadas com arrogacircncia

A autossuficiecircncia eacute incompatiacutevel com o diaacutelogo Os homens que natildeo tem humildade ou a perdem natildeo podem aproximar-se do povo Natildeo podem ser seus companheiros de pronuacutencia do mundo Se algueacutem natildeo eacute capaz de sentir-se e soube-se tatildeo homem quanto os outros eacute que lhe falta ainda muito para caminhar para chegar ao lugar de encontro com eles Neste lugar de encontro natildeo haacute ignorantes absolutos nem saacutebios absolutos haacute homens que em comunhatildeo buscam saber mais (FREIRE 2014 p112)

O reconhecimento de que natildeo somos ignorantes tampouco saacutebios absolutos

possibilita-nos estar abertos a aprender com o outro ateacute porque somos seres

inacabados em constante processo de aprendizagem O educador eacute portador de um

saber que faz parte de sua competecircncia teacutecnica de acordo com a formaccedilatildeo que

possui Isso natildeo significa que o educando eacute ignorante que natildeo sabe nada ao

contraacuterio numa comunidade ribeirinha ele domina os saberes necessaacuterios para

sobreviver neste contexto o que denota que existem diversidades de saberes Nessa

oacutetica o educador por meio do diaacutelogo aprende com os alunos os saberes locais e

ensina a partir desses saberes os cientiacuteficos Mas para que o diaacutelogo se efetive

precisa ser humilde e admitir a sua ignoracircncia em relaccedilatildeo a esses saberes

Assim a humildade implica dar a palavra ouvir e respeitar as ideias e os

pensamentos do outro As diferenccedilas neste caso natildeo nos tornam inferiores apenas

enriquecem-nos enquanto seres cognitivos O educador dialoacutegico estaacute aberto agraves

contribuiccedilotildees e incentiva a participaccedilatildeo e autonomia do educando que eacute formado para

o diaacutelogo No diaacutelogo a partir de sua realidade consegue desvendar aspectos que

estavam ocultos

A feacute nos homens constitui outro componente do diaacutelogo Eacute essencial crer no

homem e em seu poder de transformar criar e recriar em todos os momentos Afirma

Freire (2014 p112)

O diaacutelogo exige igualmente uma feacute intensa no homem feacute em seu poder de fazer e refazer de criar e recriar feacute em sua vocaccedilatildeo de ser mais humano []

62

O homem de diaacutelogo eacute criacutetico e sabe que embora tenha o poder de criar e de transformar tudo numa situaccedilatildeo completa de alienaccedilatildeo podem-se impedir os homens de fazer uso deste poder

A feacute no poder de transformaccedilatildeo independente do contexto que quando eacute

desfavoraacutevel o homem dialoacutegico que tem uma visatildeo criacutetica de mundo a concebe

como um desafio que eacute possiacutevel superaacute-lo por meio da conscientizaccedilatildeo e da luta para

a libertaccedilatildeo ldquosem esta feacute nos homens o diaacutelogo eacute uma farsa Transforma-se na

melhor das hipoacuteteses em manipulaccedilatildeo adocicadamente paternalistardquo (FREIRE 2014

p 113)

Portanto o diaacutelogo para o referido autor eacute amoroso humilde e repleto de feacute

sustentado na confianccedila que tornam os homens mais companheiros na luta pela

libertaccedilatildeo da opressatildeo Desta maneira a palavra para ter confianccedila tem que se

materializar na accedilatildeo no exemplo

O diaacutelogo tambeacutem natildeo pode existir sem esperanccedila ldquose os sujeitos do diaacutelogo

nada esperam do seu quefazer jaacute natildeo pode haver diaacutelogo O seu encontro eacute vazio e

esteacuteril Eacute burocraacutetico e fastidiosordquo (FREIRE 2014 p 114) A esperanccedila estaacute na raiz

da inconclusatildeo dos homens a partir da qual almejam algo melhor para os seus

semelhantes A inconclusatildeo gera a vontade da mudanccedila O problema eacute quando este

almejar eacute egoiacutesta neste caso natildeo serve agrave visatildeo dialoacutegica

As situaccedilotildees de adversidades onde prevalece a opressatildeo natildeo devem gerar a

desesperanccedila considerando que a mudanccedila gerada pela reflexatildeo-accedilatildeo tem como

estiacutemulo a esperanccedila Desta forma a educaccedilatildeo torna-se primordial visto que natildeo se

nasce esperanccediloso por esta razatildeo precisamos de uma educaccedilatildeo para a esperanccedila

refletida numa pedagogia da esperanccedila Destaca Freire (1992) que eacute

ingecircnuoacharmos que somente a esperanccedila transformaraacute o mundo mas sem ela

torna-se pura ilusatildeo haja vista que se fundamenta na eacutetica e na verdade

O essencial como diz mais no corpo desta Pedagogia da esperanccedila eacute que ela enquanto necessidade ontoloacutegicaprecisa de ancorar-se na praacutetica Enquanto necessidade ontoloacutegicaa esperanccedila precisa da praacutetica para tornar-se concretude histoacutericaEacute por isso que natildeo haacute esperanccedila na pura espera nem tampoucose alcanccedila o que se espera na espera pura que vira assim esperavatilde Sem um miacutenimo de esperanccedila natildeo podemos sequer comeccedilaro embate mas sem o embate a esperanccedila como necessidade ontoloacutegicase desendereccedila e se torna desesperanccedila que agraves vezes sealonga em traacutegico desespero Daiacute a precisatildeo de certa educaccedilatildeoda esperanccedila Eacute que ela tem tal importacircncia em nossa existecircnciaindividual e social que natildeo devemos experimentaacute-la de formaerrada deixando que ela resvale para a desesperanccedila e o desesperoDesesperanccedila e desespero consequecircncia e razatildeo de ser da inaccedilatildeoou do imobilismo (FREIRE 1992 p11)

63

A esperanccedila estaacute aliada agrave luta visto que se cruzarmos os braccedilos esperando

as coisas acontecerem caiacutemos no imobilismo O autor destaca a importacircncia da

educaccedilatildeo dialoacutegica encharcada de esperanccedila na mudanccedila que vem com a luta pela

libertaccedilatildeo da opressatildeo por meio de um pensamento verdadeiro que eacute criacutetico

Concebe a realidade como mutante em constante mudanccedila e transformaccedilatildeo o

homem estaacute no mundo assim como o mundo estaacute no homem natildeo existe ldquodicotomia

entre mundo-homensrdquo (FREIRE 2014 p 114)

2 A EDUCACcedilAtildeO DAS POPULACcedilOtildeES RIBEIRINHAS NA AMAZOcircNIA

Neste capiacutetulo fizemos uma imersatildeo histoacuterica das populaccedilotildees ribeirinhas na

Amazocircnia realizamos um mergulho na Amazocircnia brasileira com ecircnfase nos povos

das aacuteguas em seguida abordamos o municiacutepio de Afuaacutenosseus aspectos histoacutericos

geograacuteficos e econocircmicos com destaque paraa dimensatildeo educacional

21 UM MERGULHO NA AMAZOcircNIA BRASILEIRA

Mergulhar na Amazocircnia eacute imergir na diversidade tanto econocircmica geograacutefica

ecoloacutegica como cultural Para compreendermos esta regiatildeo faz-se necessaacuterio

concebecirc-la no plural como afirma Gonccedilalves (2005 p 8)

Para os de fora a imagem que se tem da Amazocircnia eacute mais homogecircnea [] Para os habitantes da proacutepria regiatildeo a lsquoAmazocircniarsquo eacute um termo vago que adquire muacuteltiplos significados correspondentes aos mais diferentes contextos soacutecio-ecoloacutegico-culturais especiacuteficos que satildeo os espaccedilos do seu cotidiano Assim enquanto para uns ndash os de fora lsquoAmazocircniarsquo aparece no singular para outros isto eacute para os que nela mora ndash ela eacute plural e multifacetada

A pluralidade eacute a principal caracteriacutestica desta regiatildeo A diversidade e a

complexidade do seu territoacuterio satildeo tatildeo vastas que para falarmos sobre ela eacute preciso

estar no seu interior para identificar qual eacute a Amazocircnia a que estamos nos referindo

Assim este vasto territoacuterio eacute habitado por caboclos garimpeiros posseiros

ribeirinhos quilombolas povos indiacutegenas pescadores coletores agricultores rurais

colonos imigrantes atingidos por barragens dentre outros povos que reconstroem o

espaccedilo amazocircnico Esta diversidade de povos caracteriza a Amazocircnia como um lugar

heterogecircneo que eacute formado por um universo cultural pluralizado Como afirma Fares

(2004 p 86) ldquonatildeo existe uma cultura uma identidade amazocircnica no singular A

64

concepccedilatildeo deste espaccedilo eacute plural As diferentes manifestaccedilotildees culturais trazem

marcas do hiacutebrido16 e da mesticcedilagem17rdquo

Para Rodrigues et al (2007 p 29) a cultura popular amazocircnica refere-se [] aos diversos modos das classes e dos grupos populares da Amazocircnia de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo social da realidade assentadas nas condiccedilotildees de vida locais nos saberes nos valores nas praacuteticas sociais e educativas no simboacutelico e no imaginaacuterio de uma variedade de sujeitos habitantes de aacuterea de terra firme vaacuterzea e igapoacute em localidades rurais e urbanas da regiatildeo

Neste trabalho a Amazocircnia Paraense especificamente a Amazocircnia rural-

ribeirinha foi o lugar onde realizamos a pesquisa de campo lugar no qual imergimos

no universo cultural e convivemos e dialogamos com moradores das comunidades e

professores da Ilha do Accedilaiacute De acordo com Loureiro (2001 p 65) a cultura ribeirinha

eacute a que mais expressa a cultura amazocircnica ldquoseja quanto aos seus traccedilos de

originalidade seja como produto da acumulaccedilatildeo de experiecircncias sociais e da

criatividade de seus habitantes resultante do hibridismordquo Criatividade que comeccedila na

produccedilatildeo de artefatos que compotildeem o universo cultural que satildeo apreendidos pelos

mais jovens atraveacutes da oralidade e estatildeo presentes nas relaccedilotildees sociais religiosas e

econocircmicas Portanto o hibridismo cultural estaacute fortemente presente nas diversas

amazocircnias

Essa marca hiacutebrida teve seu aacutepice a partir do contato com os natildeos iacutendios

contato esse permeado pela violecircncia Segundo Loureiro (2002) o primeiro ato de

violecircncia contra os povos da Amazocircnia ocorreu por meio do contato com o europeu

o espanhol Vicente Pinzon em 1500 que apesar de ser bem recebido pelos nativos

os aprisionou e os vendeu como escravos na Europa A origem dos mitos referentes

agrave regiatildeo tambeacutem eacute produto europeu

A viagem de Orellana (em 1549) instaura o momento fundador dos primeiros mitos como o das Amazonas ndash iacutendias guerreiras bravas habitantes de uma aldeia sem homens Outros viajantes aventureiros e exploradores que procuravam riquezas espalharam mundo afora mitos e fantasias De todo o mito mais persistente parece ter sido sempre o da superabundacircncia e da resistecircncia da natureza da regiatildeo florestas com aacutervores altiacutessimas que

16Para Canclini (2006 p 19) o hibridismo ldquoabrange diversas mesclas interculturais - natildeo apenas raciais agraves quais costuma limitar-se o termo lsquomesticcedilagemrsquo - e porque permite incluir as formas modernas de hibridaccedilatildeo melhor do que lsquosincretismorsquo foacutermula que se refere quase sempre a fusotildees religiosas ou de movimentos simboacutelicos tradicionaisrdquo 17Gruzinski (2001 p 62) utiliza a mesticcedilagempara designar ldquoas misturas que ocorreram em solo

americano no seacuteculo XVI entre seres humanos imaginaacuterios e formas de vida vindos de quatro

continentes Ameacuterica Europa Aacutefrica e Aacutesia Enquanto que a hibridaccedilatildeo o autor utiliza na anaacutelise das

misturas que se desenvolvem dentro de uma mesma civilizaccedilatildeo ou de um mesmo conjunto histoacuterico

65

penetravam nas nuvens frutos e flores de cores e sabores indescritiacuteveis rios largos a se perderem no horizonte (povoados de monstros engolidores de navios nas noites escuras) animais estranhos e abundantes por todo o chatildeo paacutessaros cobrindo o ceacuteu e colorindo-o em nuvens de penas e plumas de todas as cores (LOUREIRO 2001 p 108)

Assim os mitos resultado da visatildeo do estrangeiro permearam e ainda estatildeo

presentes no imaginaacuterio sobre a populaccedilatildeo nativa considerada primitiva baacuterbara

rude preguiccedilosa e desprovida de alma O preconceito em relaccedilatildeo ao homem e agrave

natureza foi construiacutedo desde a chegada do europeu destaca Loureiro (2001 p 109)

ldquo[] de um lado a visatildeo paradisiacuteaca criada pela magia dos mitos da regiatildeo e sobre a

regiatildeo de outro a violecircncia cotidiana gestada pela permanente exploraccedilatildeo da

naturezardquo Outro mito relativo agrave natureza tambeacutem concebido externamente eacute o de

que a Amazocircnia eacute a terra da superabundacircncia o celeiro e o pulmatildeo do mundo no

entanto as poliacuteticas puacuteblicas direcionadas para a regiatildeo natildeo levam em consideraccedilatildeo

a sua biodiversidade o que prevalece satildeo praacuteticas contraditoacuterias entre

desenvolvimento e preservaccedilatildeo ambiental

A referida autora destaca que os ecossistemas amazocircnicos pela sua

fragilidade requerem o equiliacutebrio e a articulaccedilatildeo entre chuva mata e solo mas o

modelo de desenvolvimento natildeo tem considerado esses fatores e partem do princiacutepio

de que os ecossistemas satildeo ricos e autorregeneraacuteveis O desperdiacutecio de recursos

naturais gerados pelas atividades econocircmicas dentre as quais a pecuaacuteria exploraccedilatildeo

madeireira mineraccedilatildeo garimpagem e outras que apresentam diferentes impactos

sobre a natureza ldquovecircm sendo desenvolvidas indiferentemente sobre aacutereas de

florestas densas nascentes e margens de rios regiotildees de manguezais nas planiacutecies

em encostas em solos fraacutegeis ou nos raros solos bem estruturadosrdquo (LOUREIRO

2001 p 113)

Gonccedilalves (2005) identifica a coexistecircncia de dois padrotildees que foram utilizados

para a exploraccedilatildeo da Amazocircnia Rio-vaacuterzea-floresta e Rodovia-terra firmendashsubsolo O

primeiro padratildeo eacute assinalado pela exploraccedilatildeo econocircmica da floresta e sua

organizaccedilatildeo agraves margens dos rios que prevaleceu na regiatildeo ateacute a deacutecada de 1950 O

segundo caracteriza-se por um rumo diferente de ocupaccedilatildeo da regiatildeo tendo como

referecircncia a construccedilatildeo da rodovia Beleacutem-Brasiacutelia no final da deacutecada de 1950 com

atividades voltadas para a exploraccedilatildeo econocircmica da terra firme (pecuaacuteria e

agricultura) e do subsolo (atividades minerais)

66

Nesse sentido Loureiro (2001) diz que a riqueza gerada na Amazocircnia natildeo eacute

usufruiacuteda pelos seus habitantes o processo de exploraccedilatildeo da regiatildeo vem desde a

colonizaccedilatildeo inicialmente explorada economicamente pela Metroacutepole e na

atualidade pela Federaccedilatildeo A citada autora faz uma abordagem histoacuterica do processo

de exclusatildeo da populaccedilatildeo amazonida do potencial econocircmico desde o periacuteodo da

colonizaccedilatildeo ateacute a contemporaneidade

A Amazocircnia foi no passado ldquoum lugar com um bom estoque de iacutendiosrdquo para servirem de escravos uma fonte de lucros no periacuteodo das ldquodrogas do sertatildeordquo enriquecendo a Metroacutepole ou ainda a maior produtora e exportadora de borracha tornando-se uma das regiotildees mais rentaacuteveis do mundo numa certa fase Mas eacute mais recentemente que ela tem sido mais explorada seja como fonte de ouro como em Serra Pelada seja como geradora de energia eleacutetrica para exportar para outras regiotildees do Brasil e para os grandes projetos que a consomem a preccedilos subsidiados enquanto o morador da regiatildeo paga pela mesma energia um preccedilo bem mais elevado seja como uacuteltima fronteira econocircmica para a qual milhotildees de brasileiros tecircm acorrido nas uacuteltimas deacutecadas com vistas a fugirem da persistente crise econocircmica do paiacutes buscando na Amazocircnia um destino melhor (o que infelizmente poucos encontram) (LOUREIRO 2002 p 107)

No auge da borracha na Segunda metade do seacuteculo XIX os lucros natildeo ficaram

na regiatildeo as uacutenicas cidades beneficiadas foram Beleacutem e Manaus por serem sede

das empresas multinacionais que exploravam o produto Quem realmente enriqueceu

foram os empresaacuterios norte americanos e os europeus donos das grandes

corporaccedilotildees internacionais Em relaccedilatildeo agrave utilizaccedilatildeo do laacutetex extraiacutedo das seringueiras

os iacutendiosCambebes ou Omaguas que ocupavam uma vasta aacuterea do Solimotildees-

Maranon jaacute o utilizavam para fabricaccedilatildeo de utensiacutelios como sapatos capas e

couraccedilas na fabricaccedilatildeo de remeacutedios queimavam-no para clarear os dias de festas

durante a noite ldquoou dele se valiam para as flechas incendiadas que lanccedilavam sobre

as tabas inimigas por ocasiatildeo dos ataques nas guerras que se faziam Havia ainda

um uso interessante o untamento dos receacutem-nascidos no laacutetex para livraacute-los do friordquo

(REIS 1997 p 80-81)

A exploraccedilatildeo predatoacuteria provocou o raacutepido esgotamento dos seringais o que

levou agrave procura de novas aacutereas para retirada do laacutetex adentrando a mata rumo a

devastaccedilatildeo De acordo com Tavares (2011 p 107) ldquoOs seringais localizavam-se na

regiatildeo das Ilhas inclusive o Marajoacute alcanccedilando o rio Xingu o Jari o Capim o Guamaacute

o Acaraacute e o Moju Aacutereas que logo se esgotavam em decorrecircncia da precariedade do

corte das aacutervoresrdquo

A demanda do mercado internacional pela borracha em decorrecircncia do

desenvolvimento tecnoloacutegico poacutes-revoluccedilatildeo industrial a descoberta da teacutecnica da

67

vulcanizaccedilatildeo que permitiria a utilizaccedilatildeo do produto em qualquer temperatura o

incentivo agrave migraccedilatildeo nordestina que foi utilizada como a matildeo de obra a implantaccedilatildeo

de um sistema de transporte a vapor que faria a interligaccedilatildeo do interior com Beleacutem e

com a Europa a implantaccedilatildeo de firmas exportadoras e a construccedilatildeo de um porto que

escoaria o produto para o mercado externo e finalmente o sistema de aviamento

que permitiu o controle da matildeo de obra a expansatildeo de novos locais de exploraccedilatildeo e

o controle do excedente da produccedilatildeo nas pontas do sistema foram condicionantes

poliacuteticos econocircmicos e sociais relevantes para o desenvolvimento da atividade na

regiatildeo (TAVARES 2011)

A riqueza produzida pela exploraccedilatildeo da borracha natildeo beneficiou a regiatildeo como

um todo apenas as cidades que ofereciam a infraestrutura necessaacuteria para o

escoamento da produccedilatildeo rumo ao mercado externo De acordo com Tavares (2011

p 115) ldquoo sistema extrativista produziu uma estrutura social diversa ndash milhares de

pobres e uma minoria rica uma vez que a renda se formava pelo trabalho de muitos

mas se concentrava nas matildeos de pouca ndash burguesia e seringalistasrdquo Quanto agrave exploraccedilatildeo dos minerais segundo Santos (2002) ateacute o iniacutecio da

deacutecada de 1960 o conhecimento do subsolo da Amazocircnia estava restrito aos

relatoacuterios de viagem de poucos pesquisadores normalmente limitados agrave calha dos

grandes rios A atividade mineral resumia-se a alguns garimpos de diamante ouro ou

cassiterita e o maior empreendimento era a exploraccedilatildeo de mineacuterio de manganecircs no

entatildeo Territoacuterio Federal do Amapaacute pela Sociedade Brasileira de Induacutestria e Comeacutercio

de Mineacuterios de Ferro e Manganecircs (ICOMI) associados agravecompanhia estadunidense

Bethlehem Steel considerado o maior e duradouro empreendimento mineral

desenvolvido na Amazocircnia durou mais de quatro deacutecadas compreendeu os anos de

1957 a 1998 nesse periacuteodo foram extraiacutedas por volta de sessenta milhotildees de

toneladas de mineacuterio de manganecircs das minas do municiacutepio de Serra do Navio

O tamanho a confiabilidade e a produtividade da produccedilatildeo de Serra do Navio ajudaram o Brasil a ganhar e a manter durante trinta anos uma posiccedilatildeo de destaque no mercado global de produtores de mineacuterio de manganecircs Desde 1957 o Brasil produz entre 7 a 12 de todo o mineacuterio de manganecircs do mundo (DRUMMOND 2000 p 768)

Os lucros natildeo ficaram e tambeacutem natildeo foram investidos na Amazocircnia A

produccedilatildeo era dedicada ao mercado externo e internacional embora o

empreendimento tenha tido sucesso como ressalta o citado autor natildeo beneficiou a

populaccedilatildeo local muito menos a economia do Amapaacute que continuou baseada no

68

extrativismo ldquo[] estimei a receita bruta da ICOMI entre 1957 e 1994 em mais de trecircs

bilhotildees de doacutelares norte-americanos []rdquo (idem p 760) Constata-se desta forma

que a regiatildeo serviu como fornecedora de mateacuteria-prima para o mercado mundial

confirmando a tese defendida por Loureiro (2002 p 107) de que ldquoa Amazocircnia foi

sempre mais rentaacutevel e por isso mais uacutetil economicamente agrave Metroacutepole no passado

e hoje agrave Federaccedilatildeo do que ela o tem sido para a regiatildeordquo

O impacto ambiental com danos irreparaacuteveis aos ecossistemas tambeacutem foram

levantados por Drummond (2000) dentre os quais destancam-se desmatamento

escavaccedilatildeo de solos desmonte de morros erosatildeo assoreamento de rios mudanccedila

de curso de pequenos rios construccedilatildeo de lagoas artificiais para deposiccedilatildeo disposiccedilatildeo

final de rejeitos gerados pelo processamento do mineacuterio disposiccedilatildeo de mineacuterios de

baixo teor e de esteacuteril Esses dados enfatizam que o modelo econocircmico posto em

accedilatildeo na regiatildeo tem ignorado e menosprezado a diversidade dos inuacutemeros

ecossistemas amazocircnicos

Segundo Monteiro (2005) as minas de manganecircs da Serra do Navio foi o uacutenico

mineacuterio explorado industrialmente por aproximadamente duas deacutecadas na Amazocircnia

oriental brasileira Este quadro mudou em decorrecircncia das poliacuteticas desencadeadas

pelo governo militar de 1964 baseadas na entrada de capitais destinados agrave ocupaccedilatildeo

do espaccedilo amazocircnico assim como nos investimentos em projetos para a exploraccedilatildeo

mineral com consequente atraccedilatildeo dos fluxos migratoacuterios por meio de uma poliacutetica

governamental voltada para a integraccedilatildeo da Amazocircnia apoiada pelos incentivos

fiscais e da melhoria dos meios de comunicaccedilatildeo e transporte

Assim os primeiros investimentos na Amazocircnia foram feitos por grandes corporaccedilotildees industriais multinacionais Tinham como objetivo principal a verificaccedilatildeo das potencialidades minerais dessa vasta regiatildeo ainda desconhecida considerando apenas o seu uso futuro Estava presente a visatildeo estrateacutegica dos recursos minerais pois se buscava alternativas de suprimento para atender ao futuro crescimento do mercado ou prevenir a escassez decorrente de eventual crise nos paiacuteses produtores como decurso das poliacuteticas nacionalistas em vigor na eacutepoca Dessa forma eacute que os primeiros investimentos foram destinados agrave busca de mineacuterio de alumiacutenio (cujo mercado estava em expansatildeo) e de manganecircs (essencial para a induacutestria do accedilo) ambos dependentes da produccedilatildeo de poucos paiacuteses (SANTOS 2002 p 125)

Ainda como poliacutetica de desenvolvimento de acordo com Monteiro (2005) o

Governo Federal criou o Programa Grande Carajaacutes no ano de 1980 com a finalidade

de acelerar o desenvolvimento dos projetos minero-metaluacutergicos O referido programa

foi financiado pelos recursos estatais e os advindos dos incentivos fiscais e de

69

creacuteditos e consistiu na monitoraccedilatildeo e aplicabilidade dos projetos de exploraccedilatildeo

mineral em desenvolvimento dentre os quais Ferro Carajaacutes a Albras a Alunorte a

Alumar e a Usina de Tucuruiacute O autor destaca a extraccedilatildeo do mineacuterio de ferro da Serra

dos Carajaacutes em 1977 no Estado do Paraacute pela Companhia Vale do Rio Doce

Para tanto montou-se uma grandiosa estrutura que ocasionou desmatamento

poluiccedilatildeo dos recursos hiacutedricos com a construccedilatildeo ldquode minas instalaccedilotildees de

beneficiamento e um paacutetio de estocagem as instalaccedilotildees portuaacuterias e a Estrada de

Ferro Carajaacutes cujos 890 quilocircmetros de extensatildeo interligam a Serra dos Carajaacutes ao

terminal mariacutetimo da Ponta da Madeira em Satildeo Luiacutes (MA)rdquo(MONTEIRO 2005 p

190)

Fotografia 1 -Mina de ferro Carajaacutes no Estado do Paraacute

Na foto o impacto ambiental causado pela extraccedilatildeo do mineacuterio de ferro como a abertura de grandes crateras que modificam o relevo e removem totalmente a cobertura vegetal deixando as aacutereas deseacuterticas O uso de produtos quiacutemicos contaminam a rede hiacutedrica e o solo bem como os lenccediloacuteis freaacuteticosFonte T Photography

O ouro foi outro mineral bastante explorado desde o seacuteculo XIX cuja

exploraccedilatildeo comeccedilou a ser intensificada na deacutecada de 1960 principalmente no Paraacute

Neste Estado a partir da deacutecada de 1980 em Carajaacutes a corrida pelo ouro atraiu

milhotildees de garimpeiros incentivada segundo Santos (2002) pelo agravamento da

miseacuteria de boa parte da populaccedilatildeo brasileira principalmente a rural e nordestina

decorrente da falta de uma soluccedilatildeo adequada para a questatildeo agraacuteria O autor enfatiza

outros fatores que contribuiacuteram para a expansatildeo da atividade garimpeira por toda a

Amazocircnia dentre os quaisressalta-se a elevaccedilatildeo do preccedilo do ouro o atrativo

70

despertado pela ampla divulgaccedilatildeo na imprensa da descoberta de depoacutesitos ricos

como serra Pelada e os estiacutemulos das autoridades governamentais Entretanto

devido agrave exaustatildeo dos depoacutesitos superficiais mais ricos agrave queda do preccedilo do ouro e

agrave sensiacutevel reduccedilatildeo da diferenccedila cambial esse modelo social e econocircmico de

ocupaccedilatildeo da Amazocircnia encontra-se em decliacutenio Quanto agrave situaccedilatildeo social dos

garimpeiros

Na Amazocircnia os milhares de migrantes que foram atraiacutedos pela lsquofebre do ourorsquo da deacutecada passada estatildeo engrossando as legiotildees dos lsquosem terrarsquo que clamam por uma soluccedilatildeo para a questatildeo agraacuteria num paiacutes com dimensotildees continentais mas onde as elites dominantes desde o tempo das ldquocapitanias hereditaacuteriasrdquo tecircm na posse de grandes extensotildees territoriais uma das formas de seu poder poliacutetico O garimpo na Amazocircnia correspondeu a simples paliativo apenas adiando por duas deacutecadas ndash conforme jaacute era previsiacutevel na eacutepoca ndash a necessidade de uma soluccedilatildeo para a questatildeo agraacuteria (SANTOS 2002 p 127)

Aleacutem do manganecircs do ferro e do ouro outro mineral bastante explorado foi a

cassiterita Afirma Santos (2002) que a cassiterita tambeacutem na deacutecada de 1960 em

Rondocircnia atraiu milhares de garimpeiros Posteriormente em 1970 apareceram

outros distritos estaniacuteferos que foram explorados por mineradoras jaacute em 1976 os

garimpeiros invadiram terras indiacutegenas dos Yanomami para exploraccedilatildeo do mineral

Segundo Albert (2004) o contato inicial desta etnia com os natildeo iacutendios ocorreu por

volta de 1955 Os programas e projetos desenvolvidos na regiatildeo bem como

construccedilatildeo de estradas as fazendas serrarias canteiros de obras e os garimpos

intensificaram os contatos e interfeririam substantivamente na cultura desse povo

bem como gerou conflitos constantes pela posse da terra Enfatiza o citado autor que

a corrida do ouro dos anos 1980 em Roraima dizimou 15 da populaccedilatildeo indiacutegena

e que no periacuteodo de 1987 a 1990 a quantidade de garimpeiros cerca de 40000

(quarenta mil) equivalia a cinco vezes o numero de iacutendios yanomami ldquoEmbora a

intensidade dessa corrida do ouro tenha diminuiacutedo muito a partir do comeccedilo dos anos

1990 ateacute hoje nuacutecleos de garimpagem continuam encravados na terra yanomami de

onde seguem espalhando violecircncia e graves problemas sanitaacuterios e sociaisrdquo

(ALBERT 2004 p 3) De acordo com os documentos e pesquisas arqueoloacutegicas foi

estimado o total de trecircs a cinco milhotildees de iacutendios na Amazocircnia brasileira no iniacutecio da

colonizaccedilatildeo

Para Almeida Junior (1996) a gecircnese desses conflitos estaacute no mercantilismo e

no capitalismo colonial Atualmente os conflitos entre povos indiacutegenas versus grupos

econocircmicos que desejam explorar e capitalizar os recursos existentes em suas

71

terrastecircm produzido natildeo somente a violecircncia fiacutesica com casos que culminam em

mortes dos indiacutegenas ldquomas muitas vezes a violecircncia simplesmente eacute expressa na

subjugaccedilatildeo do direito dos povos de determinar o uso de seu ambiente e o brutal

padratildeo de extraccedilatildeo de recursosrdquo (idem p 563)

Ademais os danos ambientais nas terras indiacutegenas nos uacuteltimos anos

decorrentes de desmatamentos ilegais da instalaccedilatildeo irregular de madeireiras e

principalmente da presenccedila constante de atividades agropecuaacuterias no entorno das

aldeias vecircm contribuindo para fomentar os conflitos agraacuterios Afirma Heck et al

(2005 p 238) que as mineradoras e companhias de petroacuteleo ldquoestatildeo afiando suas

unhas para cavar cada vez mais fundo e mais raacutepido para acumular ao maacuteximo seu

capital globalizadordquo Continua o referido autor dizendo que as empresas que exploram

mineacuterios fazem barganha junto aos poliacuteticos para regulamentar a exploraccedilatildeo mineral

em terras indiacutegenas

Haacute pedidos de pesquisa e exploraccedilatildeo mineral sobre terras indiacutegenas de toda a Amazocircnia [] Hoje o avanccedilo capitalista sobre a Amazocircnia eacute como uma fera quase indomaacutevel Motosserras e tratores fazem parte de programas oficiais de devastaccedilatildeo As grandes serrarias que jaacute exauriram o potencial madeireiro em outras regiotildees do mundo agora seguem resolutas em direccedilatildeo agrave Amazocircnia vestidas em peles de cordeiro com o discurso da ldquoexploraccedilatildeo devastaccedilatildeo sustentaacutevelrdquo ostentando diplomas de ldquocertificaccedilatildeo verderdquo e com projetos de ldquoauto sustentabilidaderdquo na Amazocircnia (2005 p 238)

Mas eacute na atualidade que a Amazocircnia tem sido mais explorada principalmente

o potencial de seus rios e cachoeiras O governo Federal e as empresas que exploram

o setor eleacutetrico estatildeo investindo massivamente na construccedilatildeo de Hidreleacutetricas na

regiatildeo Somente em 2012 foram planejadas a construccedilatildeo de vinte e trecircs novas

hidreleacutetricas totalizando vinte e nove somando com as jaacute existentes que juntas vatildeo

gerar 38292 MW o equivalente a metade da energia gerada pelas hidreleacutetricas do

paiacutes Dentre as maiores hidreleacutetricas destacam-se Balbina Tucuruiacute Belo Monte

Curuaacute-Una e Teles Pires

Segundo Bittencourt (2012) somente no estado do Amazonas a construccedilatildeo

dessas hidreleacutetricas iraacute inundar em meacutedia de 300 a 400 kmsup2 em cada aacuterea de

barragem construiacuteda e transferir por volta de 112 mil pessoas que vivem nas aacutereas do

entorno da construccedilatildeo Em toda Amazocircnia ficaratildeo debaixo drsquoaacutegua cerca de 937555

kmsup2 de floresta

No Estado do Paraacute estaacute sendo construiacuteda a Hidreleacutetrica de Belo Monte

considerada a terceira maior do mundo Suas obras foram iniciadas em 2011 e de

72

acordo com um dossiecirc elaborado pelo Instituto Socioambiental (ISA) eacute a principal

obra do Plano de Aceleraccedilatildeo do Crescimento (PAC) ldquoinstalada em uma regiatildeo com

ausecircncia histoacuterica do Estado Belo Monte continua a ser cinco anos depois do leilatildeo

para construccedilatildeo e operaccedilatildeo da usina siacutembolo de inadimplecircncia socioambiental e

desrespeito agraves populaccedilotildees atingidasrdquo(ISA p 4 2015) O dossiecirc apresenta dados

referentes ao aumento da populaccedilatildeo do municiacutepio de Altamira que saltou de cem mil

para cento e cinquenta mil habitantes atraiacutedos pela geraccedilatildeo de empregos diretos e

indiretos A licenccedila foi concedida pelo governo federal com a promessa de execuccedilatildeo

de medidas de mitigaccedilatildeo e compensaccedilatildeo conhecidas como condicionantes

socioambientais de viabilidade da usina

Dentre as medidas compensatoacuterias previstas estavam as lsquoaccedilotildees antecipatoacuteriasrsquo de sauacutede educaccedilatildeo e saneamento baacutesico que segundo o discurso oficial deveriam preparar a regiatildeo para receber a obra prevenindo e minimizando os principais impactos sobre esses serviccedilos puacuteblicos decorrentes do aumento populacional Estimava-se que aproximadamente 74 mil pessoas seriam atraiacutedas pela obra em apenas cinco anos o que deveria praticamente dobrar a populaccedilatildeo da regiatildeo (conforme o Censo 2010 cerca de 100 mil habitantes) (ISA 2015 p 6)

Em relaccedilatildeo ao impacto ambiental

[] foi definido um Projeto Baacutesico Ambiental(PBA) detalhando os planos

programas e projetos socioambientais previstos nos Estudos de Impacto Ambiental e respectivo Relatoacuterio de Impacto Ambiental (EIA-Rima) destinados a prevenir mitigar e compensar os impactos da obra inclusive em relaccedilatildeo aos povos indiacutegenas (Projeto Baacutesico Ambiental do Componente Indiacutegena - PBA-CI) No caso de Belo Monte os custos para a implementaccedilatildeo do PBA (incluindo o PBA-CI) foram estimados no valor de R$ 32 bilhotildees(ISA 2015 p 6)

O que natildeo ocorreu a contento de acordo com o referido dossiecirc as obras e

accedilotildees previstas nas medidas compensatoacuterias que deveriam ser desenvolvidas pela

empresa Norte Energia responsaacutevel pela obra natildeo impediram os impactos negativos

sobre a populaccedilatildeo dos municiacutepios atingidos principalmente de Altamira Foram

registrados aumentos nos casos de violecircncia entre 2011 e 2014 que cresceu em 80

No que concerne agrave sauacutede as obras de construccedilatildeo e reforma natildeo foram suficientes

para evitar a superlotaccedilatildeo de postos de sauacutede e hospitais No caso da infraestrutura

de educaccedilatildeo os equipamentos construiacutedos e reformados tampouco conseguiram

atingir plenamente os objetivos de responder ao aumento de demanda e evitar perda

de qualidade do ensino

Quanto ao reassentamento da populaccedilatildeo das aacutereas rural e urbana mais de

oito mil famiacutelias atingidas pela barragem foram obrigadas a abandonar suas terras e

73

casas ldquoseja em razatildeo do iniacutecio da construccedilatildeo das estruturas da usina seja devido ao

futuro enchimento do reservatoacuteriordquo (ISA 2014 p 8) Este processo de saiacuteda do local

onde sempre viveram tem sido traumaacutetico para a populaccedilatildeo local

O programa de realocaccedilatildeo urbanatem sido desorganizado inadequado e pouco transparente Haacute mais de um ano praticamente 3000 famiacutelias jaacute residem nos novos loteamentos (chamados de Reassentamentos Urbanos Coletivos - RUCs) sem serviccedilos puacuteblicos adequados incluindo transporte sauacutede e educaccedilatildeo Outras tantas por sua vez esperam a realocaccedilatildeo em um processo aparentemente subdimensionado pelo empreendedor que inicialmente cadastrou 5141 ocupaccedilotildees consideradas atingidas mas contratou a construccedilatildeo de apenas 4100 casas Note-se ainda que haacute famiacutelias que denunciam sequer terem sido cadastradas (ISA 2014 p 8)

As famiacutelias que natildeo aceitaram ir para o loteamento foram indenizadas mas o

valor recebido revelou-se insuficiente para a compra de outros terrenos ou casas O

dossiecirc afirma que essas famiacutelias natildeo receberam assistecircncia juriacutedica por parte do

poder puacuteblico em relaccedilatildeo aos seus direitos ficando agrave mercecirc do que a empresa

resolveu pagar

Em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo rural ribeirinhos e agricultores uma das maiores

viacutetimas da hidreleacutetrica o Projeto Baacutesico Ambiental apresentado pela empresa

garantia os reassentamentos rurais coletivos quena praacuteticanatildeo foram

desenvolvidos segundo o plano as famiacutelias deveriam escolher uma forma de

compensaccedilatildeo mas sem informaccedilatildeo adequada sem compreender realmente o

verdadeiro interesse da empresa e ainda pressionada para sair ou vender suas terras

[] acabaram aceitando as baixas indenizaccedilotildees Natildeo aceitaacute-las significaria litigar judicialmente contra uma grande empresa sem acesso a assistecircncia juriacutedica gratuita ndash natildeo haacute Defensoria Puacuteblica fixada na regiatildeo e a itinerante soacute atende casos urbanos ndash ou aceitar a transferecircncia para um reassentamento que aleacutem de estar localizado a quilocircmetros do rio Xingu sequer comeccedilou a ser implantado (ISA 2014 p 8)

Assim a transformaccedilatildeo da populaccedilatildeo ribeirinha em populaccedilotildees

exclusivamente urbanas ou agricultoras vem se consolidando devido agrave ausecircncia de

opccedilotildees que assegurem sua manutenccedilatildeo na beira do rio

Fotografia 2 - Reassentamento coletivo urbano para os atingidos pela usina

74

De acordo com o dossiecirc do ISA o loteamento natildeo atende as necessidades baacutesicas da populaccedilatildeo reassentada pois os serviccedilos puacuteblicos ofertados incluindo transporte sauacutede e educaccedilatildeo satildeo insuficientes para a demanda Fonte Andreacute Villas-BocircasISA

Os ribeirinhos que natildeo foram atingidos pela barragem tambeacutem sofrem os

impactos ambientais do empreendimento tais como a diminuiccedilatildeo e o

desaparecimento de determinadas espeacutecies de peixes provocado pelo barulho

emanado das dinamites e das luzes dos gigantescos holofotes que iluminam a noite

no canteiro da obra de forma que os peixes que viviam na escuridatildeo da noite migram

para outros lugares Pela ausecircncia de fiscalizaccedilatildeo o consumo de quelocircnios que faz

parte da culinaacuteria local estaacute ameaccedilado devido agrave caccedila predatoacuteria das tartarugas

Quanto agrave populaccedilatildeo indiacutegena a empresa para conseguir o licenciamento do

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) propocircs-se a executar um Plano Baacutesico

Ambiental do Componente Indiacutegena (PBA-CI) e tambeacutem a Fundaccedilatildeo Nacional do

Iacutendio (Funai) apresentou algumas medidas que precisavam ser tomadas pela empresa

e pelo poder puacuteblico para diminuiacuterem os impactos na qualidade de vida dos iacutendios

afetados pelo empreendimento O dossiecirc aponta que a maioria dessas accedilotildees ainda

natildeo foi efetivada e que a execuccedilatildeo plena do PBA-CI comeccedilou com mais de dois anos

de atraso em relaccedilatildeo ao iniacutecio da instalaccedilatildeo da usina

As despesas da empresa com os povos indiacutegenas foram contestadas pelo

Ministeacuterio Puacuteblico Federal que ldquoCondenou a estrateacutegia da Norte Energia de entregar

produtos como TVs barcos alimentos industrializados e oacuteleo diesel agraves comunidades

indiacutegenas aleacutem de uma lsquomesadarsquo de R$ 30 mil por aldeiardquo (ISA 20015 p 10) Assim

os recursos financeiros que deveriam ser investidos num plano de Etno-

desenvolvimento como forma de amenizar os impactos socioambientais foram

usados para doaccedilatildeo de bens materiais com o intuito de controlar temporariamente os

75

processos de organizaccedilatildeo e resistecircncia indiacutegena ldquodeixando como legado a

desestruturaccedilatildeo social e o enfraquecimento dos sistemas de produccedilatildeo de alimentos

nas aldeias colocando em risco a sauacutede a seguranccedila alimentar e a autonomia desses

povosrdquo (ISA 20015 p 10)

Em vez da oferta de serviccedilos puacutebicos verificou-se uma poliacutetica clientelista que

teve como reflexo o abandono de roccedilas da pesca e da caccedila aumento no periacuteodo de

2010 a 2012 em 200no atendimento agrave sauacutede dos indiacutegenas na cidade resultado da

mudanccedila nos haacutebitos alimentares com a introduccedilatildeo massiva de alimentos

industrializados no mesmo periacuteodo registrou-se o crescimento em 127 de

desnutriccedilatildeo infantil nas aldeias onde ainda faltam escolas e postos de sauacutede O

dossiecirc elaborado pelo ISA descreve a quantidade de produtos que foram distribuiacutedos

aos onze povos indiacutegenas da regiatildeo ldquo21milhotildees de litros de combustiacuteveis e

lubrificantes 366 barcos e voadeiras 42 veiacuteculos 578 motores para barcos 98

geradores e inuacutemeros outros bens de consumo que vatildeo desde TVs de plasma a

refrigerantesrdquo (idem p 12)

Fotografia 3 - Vista aeacuterea da construccedilatildeo da barragem de Belo Monte em Altamira Paraacute

Fonte Juan DoblasISAReutersVEJA

A imagem acima retrata que a construccedilatildeo da hidreleacutetrica modificou a paisagem

natural mudou o curso dos rios inundou as terras dos iacutendios ribeirinhos pescadores

e garimpeiros interferiu na migraccedilatildeo e reproduccedilatildeo de vaacuterias espeacutecies de peixes e

causa a morte de outras assim como o desaparecimento de animais que dependem

da floresta que passou a ficar inundada pelas aacuteguas represadas No tocante ao peixe

76

principal alimento das populaccedilotildees tradicionais assim como da populaccedilatildeo urbana da

regiatildeo a aacutegua liberada pelas represas por natildeo terem mais oxigecircnio causam a morte

das espeacutecies locais Fearnside (2014 p 18) cita o caso da hidreleacutetrica de Balbina ldquoA

perda praticamente total de peixes por falta de oxigecircnio se estendeu para 145 km em

Balbina enquanto em Tucuruiacute por 60 km []rdquo Isso gera fome pois sem ter o que

comer e como sobreviver essas populaccedilotildees satildeo obrigadas a migrarem para a cidade

e engrossam os bolsotildees de pobreza

Essa situaccedilatildeo tambeacutem foi vivenciada pelos moradores do municiacutepio de Ferreira

Gomes no estado do Amapaacute no ano de 2015 Dados da Secretaria de Meio Ambiente

estimam que morreram em media 150 quilos de peixe ao longo da margem do rio

Araguari Segundo Santiago (2015) a morte dos peixes pode ter sido causada pela

abertura das comportas da hidreleacutetrica Ferreira Gomes Energia ldquoa suspeita eacute que

manobras irregulares nas comportas podem ter liberado aacutegua acima do permitido

resultando no excesso de oxigecircnio em determinado periacutemetro do riordquo (p 1)

Fotografia 4 - Peixes mortos ao longo das margens do Rio Araguari no municiacutepio de Ferreira Gomes estado do Amapaacute

Fonte Raimundo Silva 2015

Desta forma o impacto nas condiccedilotildees de vida dos moradores do entorno eacute

brutal pois a subsistecircncia baseada na pesca e na agricultura que dependiam do rio

e da floresta torna-se inviaacutevel Segundo Fearnside (2014) quando uma represa eacute

construiacuteda os residentes a jusante ao longo do rio sofrem impactos severos

77

enquanto o reservatoacuterio estaacute enchendo o trecho abaixo da represa frequentemente

seca completamente assim negando aos residentes ribeirinhos o acesso agrave aacutegua e agrave

pesca A floresta aleacutem de ser inundada pelas aacuteguas das barragens tambeacutem eacute

desmatada para construccedilatildeo de estradas para o acesso agraves barragens e pela populaccedilatildeo

deslocada para outros pontos da regiatildeo Assegura ainda o autor que as barragens

emitem gases de efeito estufa ldquoo dioacutexido de carbono eacute emitido pela decomposiccedilatildeo de

aacutervores mortas por inundaccedilatildeo e o oacutexido nitroso e especialmente o metano satildeo

emitidos pela aacutegua nos reservatoacuterios e da aacutegua que passa atraveacutes das turbinas e

vertedourosrdquo (FEARNSIDE 2014 p 10)

Dentre as populaccedilotildees nativas os povos indiacutegenas satildeo as maiores viacutetimas As

construccedilotildees das barragens geraram a diminuiccedilatildeo dos recursos pesqueiros da caccedila

de animais silvestres e a contaminaccedilatildeo das aacuteguas dos rios lagos e igarapeacutes

A barragem de Tucuruiacute no Rio de Tocantins inundou parte de trecircs reservas indiacutegenas (Parakanatilde Pucuruiacute e Montanha) e sua linha de transmissatildeo cortou outras quatro (Matildee Maria Trocaraacute Krikati e Cana Brava) A Aacuterea Indiacutegena Trocaraacute habitada pelos Asuriniacute do Tocantins estaacute situada a 24 km ajusante da represa [] No caso da hidreleacutetrica de Balbina foi inundada parte da reserva Waimiri-Atroari Mais dramaacutetica eacute a previsatildeo de impactos sobre povos indiacutegenas caso que sejam construiacutedas represas no rio Xingu (FEARNSIDE 2014 p 16)

De acordo com Guerra (2007) a Hidreleacutetrica de Tucuruiacute mudou drasticamente

o potencial hidroviaacuterio da bacia do rio Tocantins os ecossistemas dos rios e florestas

e contribuiu para o desaparecimento de espeacutecies animais e vegetais Fearnside

(2014) tambeacutem destaca a retirada de 23871 pessoas para a construccedilatildeo da referida

hidreleacutetrica assim como a construccedilatildeo da barragem de Marabaacute prevista para ser

concluiacuteda ainda este ano que deslocou aproximadamente 40000 (quarenta mil)

pessoas A retirada da populaccedilatildeo natildeo ocorre pacificamente mas apesar da

resistecircncia o poder poliacutetico e econocircmico do governo federal e das empresas que

exploram o setor energeacutetico imperam O deslocamento abrange a populaccedilatildeo

tradicional da Amazocircnia que vive e sobrevive as margens dos rios e dele tiram sua

subsistecircncia ou seja dependem do rio para sobreviver O autor problematiza

questotildees ligadas ao impacto social da expulsatildeo de pessoas que viveram por geraccedilotildees

em um determinado lugar cuja habilidade como a pesca a caccedila e a roccedila natildeo os torna

adequados para viverem em outros contextos

Desta forma a Amazocircnia foi marcada por conflitos sociais e impactos

ambientais oriundo dos projetos desenvolvidos tanto pelo governo Federal como

pelas empresas multinacionais Segundo Becker (2007) dentre os conflitos destaca-

78

se as disputas pela posse de terras que envolveram iacutendios fazendeiros e

garimpeiros desmatamento das florestas para a construccedilatildeo da malha viaacuteria e tambeacutem

para a agricultura capitalista (plantaccedilatildeo de soja eucalipto entre outras monoculturas

destinadas ao mercado internacional) poluiccedilatildeo dos rios por meio da extraccedilatildeo de

mineacuterios e dos produtos quiacutemicos utilizados pela mineraccedilatildeo e na agricultura etc

Os impactos ambientais gerados pela exploraccedilatildeo econocircmica dos recursos

naturais agravado pela visatildeo homogecircnea do espaccedilo amazocircnico exterminaram vaacuterias

espeacutecies que poderiam ser preservadas a partir da valorizaccedilatildeo dos saberes das

populaccedilotildees tradicionais (iacutendios ribeirinhos comunidades quilombolas) que

conviveram e convivem haacute seacuteculos explorando a floresta sem causar grandes danos

aos ecossistemas No entanto por serem saberes subalternizados considerados

inferiores satildeo invisibilizados O que prevaleceu no passado foi o conhecimento do

colonizador no periacuteodo da colonizaccedilatildeoe na contemporaneidade a visatildeo das grandes

empresas nacionais e multinacionais que decidem sobre os rumos que daratildeo a regiatildeo

sem levar em consideraccedilatildeo a populaccedilatildeo local Assim como criam os mitos da

Amazocircnia como reserva ecoloacutegica natureza exuberante futuro do mundo dentre

outros que permeiam o imaginaacuterio social a partir de uma concepccedilatildeo colonialista

Essa concepccedilatildeo se embasa na diferenccedila colonial que natildeo leva em

consideraccedilatildeo a pluralidade a diversidade e a heterogeneidade como as principais

caracteriacutesticas da regiatildeo daiacute o olhar monocultural e eurocecircntrico A heterogeneidade

humana dos povos que habitam as Amazocircnias eacute marcante bem como a diversidade

geograacutefica pois existem as Amazocircnias dos rios dos lagos e igarapeacutes as das

florestas as dos campos as dos cerrados a urbana e rural O que nos leva a afirmar

que estes territoacuterios satildeo multiculturais constituiacutedos na sua gecircnese a partir da

mesticcedilagem entre iacutendios negros e brancos que segundo Adams et al (2006) gerou

o caboclo tipo humano caracteriacutestico da regiatildeo O caboclo foi e eacute ainda visto de

maneira pejorativa como descreve Souza (2012 p 28) ao afirmar que no discurso

antropoloacutegico ele eacute visto como produto nocivo da civilizaccedilatildeo

Esta mesma ideia estaacute presente nos dicionaacuterios que apresenta o caboclo como iacutendio mesticcedilo e trabalhador do meio rural visto pelo senso comum e descrito pelos viajantes que passaram pela regiatildeo no periacuteodo da colonizaccedilatildeo como apaacuteticos e indolentes responsaacuteveis pela proacutepria pobreza Portanto o termo caboclo vem carregado de uma grande carga de discriminaccedilatildeo As diversas formas de racismo que ainda existem no Brasil contribuem com a ideia de superioridade das raccedilas ldquopurasrdquo e inferioridade dos mesticcedilos ndash caboclos

79

Essa visatildeo preconceituosa gerou no imaginaacuterio social a imagem de que os

povos da Amazocircnia satildeo primitivos atrasados em termos de desenvolvimento a partir

de uma visatildeo capitalista considerados inferiores em relaccedilatildeo aos natildeo amazonidas

que para serem distinguidos dos outros ldquosuperioresrdquo satildeo denominados de caboclos

responsaacuteveis pela pobreza em que se encontram por serem preguiccedilosos e indolentes

daiacute o socorro vindo das empresas multinacionais e do governo federal por meio dos

projetos para a exploraccedilatildeo do potencial econocircmico da regiatildeo o que retrata a

colonialidade do poder18

Dentre os que satildeo chamados de caboclos estatildeo os ribeirinhos povos que

habitam as margens dos rios lagos e igarapeacutes que compotildeem a hidrografia da regiatildeo

A seguir retratamos a gecircnese desse sujeito bem como sua maneira de

viverconviversobreviver na Amazocircnia ribeirinha

22 POVOS DA AMAZOcircNIA os ribeirinhos

Jeito Tucuju19

Quem nunca viu o Amazonas Nunca iraacute entender a vida de um povo

De alma e cor brasileiras Suas conquistas ribeiras

Seu ritmo novo Natildeo contaraacute nossa histoacuteria por natildeo saber e por natildeo fazer juz

Natildeo curtiraacute nossas festas tucujus Quem avistar o Amazonas nesse momento e souber transbordar de tanto amor

Este teraacute entendido o jeito de ser do povo daqui

Quem nunca viu o Amazonas Jamais iraacute compreender a crenccedila de um povo

Sua ciecircncia caseira a reza das benzedeiras o dom milagroso

Natildeo contaraacute nossa histoacuteria

Realmente quem nunca viu o Amazonas jamais vai entender a vida e a crenccedila

de um povo sua ciecircncia caseira e a crenccedila na reza das benzedeiras capazes de curar

as doenccedilas causadas pelos seres encantados que vivem na mata e nas aacuteguas O ver

eacute o mergulhar no universo sociocultural dos povos ribeirinhos que (re) constroem

cotidianamentesuas vidas nas margens desse majestoso Rio consideradoo maior

em volume de aacutegua eem extensatildeo do mundo o qualpossuiaproximadamente 1100

afluentes que formam a maior bacia hidrograacutefica mundial O rio Amazonas atravessa

18A colonialidade do poder refere-se aos padrotildees de poderbaseados na hierarquia na formaccedilatildeo e distribuiccedilatildeode

identidades (brancos mesticcedilos iacutendios negros) Aprofundamos a discussatildeo em relaccedilatildeo a colonialidade do poder no primeiro capitulo 19 Musica dos compositores Amapaenses Val MilhomemJoatildeozinho Gomes

80

o Peru Brasil Colocircmbia Boliacutevia Equador Guiana e Venezuela No Brasil banha os

estados do Acre Amazonas Amapaacute Rondocircnia Roraima Paraacute e Mato Grosso

Para ldquoentender a vida de um povordquo primeiro eacute preciso saber que o Rio tem papel

vital na organizaccedilatildeo social cultural religiosa e econocircmica dos ribeirinhos Os rios satildeo

as ruas estradas rodovias por onde se navega para ir agrave escola agrave cidade e a outros

lugares do rio se retira o peixe o camaratildeo a lagosta a aacutegua para beber fazer

comida higiene pessoal e da casa No rio tambeacutem estatildeo os seres encantados que

fazem parte do imaginaacuterio desse povo

Neste estudo fizemos uma abordagem histoacuterica referente agrave constituiccedilatildeo da

populaccedilatildeo que vive agraves margens dos rios na Amazocircnia Iniciamos com uma abordagem

referente agrave gecircnese do brasileiro a partir das matrizes eacutetnicas que lhe deram origem

para posteriormente situar a populaccedilatildeo amazocircnica

O povo brasileiro de acordo com Ribeiro (2006) eacute resultado do encontro do

colonizador com os iacutendios e negros africanos que deram origem a um povo mesticcedilo

com traccedilos culturais distintos de suas matrizes formadoras

A sociedade e a cultura brasileira satildeo conformadas como variantes da versatildeo lusitana da tradiccedilatildeo civilizatoacuteria europeia ocidental diferenciadas por coloridos herdados dos iacutendios americanos e dos negros africanos O Brasil emerge assim como um renovo mutante remarcado de caracteriacutesticas proacuteprias mas atado geneticamente agrave matriz portuguesa cujas potencialidades insuspeitadas de ser e de crescer soacute aqui se realizariam plenamente (RIBEIRO 2006 p 18)

O brasileiro remarcado por caracteriacutesticas proacuteprias como afirma o autor eacute um

povo em que a diversidade eacute o aspecto fundamental para issoa imigraccedilatildeo

principalmente europeia aacuterabe e japonesa bem como os vieses ecoloacutegico e

econocircmico contribuiacuteram significativamente O ecoloacutegico gerou paisagens humanas

distintas nas quais as condiccedilotildees ambientais obrigaram a adaptaccedilotildees eacute o caso do

sertatildeo nordestino e da Amazocircnia por exemplo O econocircmico criou formas de

produccedilatildeo que acirraram a divisatildeo social do trabalho e os papeis sociais

correspondentes Por conseguinte esses fatores permitem distinguir os brasileiros

ldquosertanejos do Nordeste caboclos da Amazocircnia crioulos do litoral caipiras do

Sudeste e Centro do paiacutes gauacutechos das campanhas sulinas aleacutem de iacutetalo-brasileiros

teuto-brasileiros nipo-brasileirosrdquo (RIBEIRO 2006 p 19) Dentre as identidades

apontadas pelo citado autor focalizamos neste estudo a cabocla considerada tiacutepica

da Amazocircnia

81

A origem da populaccedilatildeo ribeirinha estaacute atrelada ao processo de povoamento da

Amazocircnia Segundo Bezerra Neto(2013) a apropriaccedilatildeo pelos portugueses desta

regiatildeo envolveu as diversas etnias indiacutegenas por meio de variadas estrateacutegias de

dominaccedilatildeo assim como os colonizadores europeus e os escravos oriundos da Aacutefrica

Para o autor ldquoa mesticcedilagem envolvia diversos segmentos sociais e eacutetnicos da

Colocircnia A constituiccedilatildeo de mocambos formados por iacutendios africanos colonos brancos

e mesticcedilos de todos os tons constituiu-se exemplo desta realidaderdquo (p 34)

A Coroa portuguesa estimulou o casamento dos colonizadores com os nativos

o que gerou uma populaccedilatildeo mesticcedila fato ocorrido em 1755 quando o Rei de Portugal

D Joseacute I por meio de seu ministro Marquecircs de Pombal autoriza e daacute feacute ao documento

redigido por Francisco Xavier de Mendonccedila Furtado chamado Diretoacuterio no qual

estabelece ldquo[] o incentivo ao casamento de colonos brancos com indiacutegenas [] a

substituiccedilatildeo da liacutengua geral pela liacutengua portuguesa [] e puniccedilatildeo contra

discriminaccedilotildees []rdquo(FURTADO 1997 p 117)

Sobre este assunto afirma Rodrigues (2004 p 23) ldquoO bioacutetipo caracteriacutestico do

ribeirinho amazocircnida e seu modo de vida [] satildeo frutos da mescla de indiviacuteduos de

etnias e culturas diferentes que conformaram o processo histoacuterico de formaccedilatildeo

territorial e populacionalrdquo Jaacute Ribeiro (2006) ao abordar o processo de ocupaccedilatildeo e

constituiccedilatildeo das populaccedilotildees da Amazocircnia conclui que a formaccedilatildeo cultural deste povo

estaacute fundada nas mesmas matrizes baacutesicas citadas acima e pela migraccedilatildeo oriunda do

nordeste ao final do seacuteculo XIX e no periacuteodo de 1943 a 1945 motivada pela batalha

da borracha

As migraccedilotildees nordestinas para a Amazocircnia sempre estiveram ligadas agraves questotildees de conflitos no campo coincidindo com os periacuteodos de seca e os pequenos agricultores satildeo os que primeiro sentem os efeitos da mesma Aleacutem de ser a maioria da populaccedilatildeo rural sertaneja ela natildeo tinha alternativa a natildeo ser migrar (SILVA 2000 p 48)

A autora destaca que a seca era utilizada para ocultar o problema da questatildeo

fundiaacuteria como principal fator de migraccedilatildeo do nordestino pois as terras estavam

concentradas nas matildeos da elite agraacuteria natildeo restando alternativa aleacutem da migraccedilatildeo

da populaccedilatildeo para outras regiotildees O ciclo da borracha foi utilizado pelo governo

federal para atrair os nordestinos para a Amazocircnia vaacuterios artifiacutecios foram usados

dentre os quais propagandas que exaltavam o patriotismo e o nacionalismo ateacute

promessas de retorno agrave terra natal Eacute o que se observa no trecho abaixo discurso do

presidente Getuacutelio Vargas na eacutepoca da segunda guerra mundial com o intuito de

82

atrair e incentivar os seringueiros a se empenharem na produccedilatildeo da borracha em

defesa da ldquopaacutetria amadardquo

Seringueiros Dediquei todas as energias a batalha da borracha Precisamos de mais borracha pois eacute sobre ela que se encontra a guerra moderna pois satildeo grandes os equipamentos que necessitam da goma elaacutestica produzidos sem repouso colhendo o laacutetex abundante das seringueiras do Vale Amazocircnico Nas guerras modernas natildeo fazem parte somente os soldados que estatildeo no campo de batalha mas toda naccedilatildeo homens e mulheres velhos e crianccedilas A voacutes desbravadores da Amazocircnia sois o mais importante soldados Unidos veremos sibilar a bandeira do Brasil (ACRE 1943 p 58)

Afirma Silva (2000) que essas formas de persuasatildeo foram divulgadas

massivamente na regiatildeo Nordeste com isso mobilizou verdadeiros ldquoexeacutercitos de

extratores como se fossem realmente soldados indo para os campos de batalha em

defesa da paacutetria procedendo-se ao alistamento e ateacute a concessatildeo de uniformes para

aqueles que seriam os soldados que lutariam nas selvas da Amazocircniardquo (p 59)

Embalados pelo discurso ideoloacutegico governamental aliado agraves condiccedilotildees de

pobreza extrema vieram para a Amazocircnia no periacuteodo de 1890 a 1910 cerca de meio

milhatildeo de nordestinos (TEIXEIRA 1980) No periacuteodo do auge da produccedilatildeo do

produto vaacuterios oacutergatildeos foram criados pelo governo para atrair e manter os migrantes

nos seringais dentre os quais o Serviccedilo Especial de Mobilizaccedilatildeo de Trabalhadores

para a Amazocircnia (SEMTA) posteriormente substituiacutedo pela Comissatildeo Administrativa

de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazocircnia (CAETA) Entre 1943 e 1945

utilizando propaganda nos meios de comunicaccedilatildeo o SEMTA e a CAETA trouxeram

aproximadamente cinquenta mil trabalhadores

Os nordestinos optavam pela Amazocircnia alistando-se no exeacutercito da borracha pois acreditavam nas propagandas que afirmavam que correriam menos riscos de vida e ainda contavam com a possibilidade de enriquecimento produzindo borracha no esforccedilo de guerra para os aliados para entatildeo retornarem a sua terra vitoriosa (SILVA 2000 p 60)

A propaganda do governo era enganosa dentre os engodos estavam a

possibilidade de soldados ficarem ricos com a extraccedilatildeo da borracha e ao mesmo

tempo servirem agrave paacutetria Muitos foram mortos nos conflitos com os iacutendios outros

pelas doenccedilas pois natildeo tinham acesso aos serviccedilos de sauacutede em siacutentese foram

abandonados pelo governo ficaram nas matildeos dos seringalistas que os escravizavam

por meio das diacutevidas com o barracatildeo20

20 O seringueiro soacute podia vender a produccedilatildeo da borracha para o seringalista em troca natildeo recebia dinheiro levava em gecircneros alimentiacutecios do barracatildeo que era mantido pelo seringalista que ditava o preccedilo dos produtos Desta forma o seringueiro sempre ficava devendo para o patratildeo Os seringalistas atuavam com toda a autoridade sobre seus seringueiros reclamar era decretar a proacutepria pena de morte

83

Quanto agrave divisatildeo espacial os seringueiros foram distribuiacutedos no final do seacuteculo

XIX de acordo com Silva (2000) nos seringais agraves margens dos rios Amazonas Negro

Madeira Abunatilde Ji-Paranaacute Acre Purus Gaporeacute e outros da regiatildeo o que para

Bittencout (1989) caracteriza um modelo de ocupaccedilatildeo linear e nas margens dos rios

em busca das seringueiras nativasldquoNesse primeiro momento da migraccedilatildeo estes

nordestinos natildeo foram para o interior da floresta devido ao ataque dos indiacutegenas que

era constante e tambeacutem pelo isolamento pois com a famiacutelia geralmente numerosa

era mais difiacutecil entrar na floresta (SILVA 2000 p 85)

Com a decadecircncia do preccedilo da borracha no mercado internacional diminuiacuteram

as atividades de extraccedilatildeo do produto na Amazocircnia isso fez com que muitos

seringueiros passassem a morar nas margens dos rios lagos e igarapeacutes e

ldquopaulatinamente tiveram que readaptar seu modo de vida de tal forma que a atividade

de extraccedilatildeo do laacutetex foi abandonada passando a adotar a atividade da pesca e da

agriculturardquo (SILVA 2000 p 91)

Desta maneira foi constituindo-se a populaccedilatildeo ribeirinha na Amazocircnia mesticcedila

e hiacutebrida culturalmente Nessa mesticcedilagem a presenccedila indiacutegena eacute marcante como

afirma Benchimol (1999) ao abordar aheranccedila cultural indiacutegena-cabocla dos povos

ribeirinhos O autor faz consideraccedilotildees sobre o periacuteodo inicial de ocupaccedilatildeo e

colonizaccedilatildeo da Amazocircnialdquoo conhecer o saber o vivere o fazerna Amazocircnia colonial

foi um processo predominantemente indiacutegenardquo (p 21) Segundo o autor ameriacutendios

e seus descendentes caboclos viviam em iacutentimo contato com o ambiente fiacutesico e

bioloacutegico de acordo com as peculiaridades regionais de onde retiravam os recursos

para sua subsistecircncia

A desintegraccedilatildeo das identidades culturais indiacutegenas deflagrada pelo

colonizador possibilitou a dizimaccedilatildeo de diversas etnias Com a resistecircncia indiacutegena

contra a invasatildeo de suas terras muitas tribos e etnias ameriacutendias foram exterminadas

O mesmo aconteceu com a propagaccedilatildeo da agricultura e pecuaacuteria que ocupou as

terras dos eixos rodoviaacuterios dos projetos de colonizaccedilatildeo e dos assentamentos de

garimpeiro em toda a regiatildeo Destaca Benchimol (1999 p 22) que as matrizes

culturais iacutendio-caboclas foram cedendo espaccedilo e economia ldquonos beiradotildees e nos

centros dos seringais e castanhais ao novo grupo lsquocearensersquo e depois aos lsquogauacutechosrsquo

ficando cada vez mais isolados nas suas reservas e malocas ou nos seus siacutetios e

roccedilados dos baixos riosrdquo

84

Sem a contribuiccedilatildeo dos iacutendios o colonizador natildeo teria tido ecircxito na ocupaccedilatildeo

e exploraccedilatildeo da Amazocircnia Foram os indiacutegenas que ensinaram aos novos senhores

e imigrantes os segredos dos rios da terra e da floresta (GONCcedilALVES 2005) Essas

praacuteticas e usos deram origem ao estabelecimento de uma base de subsistecircncia e de

mercado ldquoque serviu de apoio para a formaccedilatildeo da sociedade amazocircnica no seu

singular processo histoacuterico-culturalrdquo (BENCHIMOL 1999 p10)

Tambeacutem natildeo podemos deixar de levar em consideraccedilatildeo a contribuiccedilatildeo dos

negros africanos para a cultura e constituiccedilatildeo da populaccedilatildeo na Amazocircnia Conforme

Salles (1971) no periacuteodo da colonizaccedilatildeo foram traficados para a Regiatildeo em meacutedia

53 mil escravos pela coroa portuguesa bem como pelo comeacutercio interno de escravos

e migraccedilotildees por ocasiatildeo da Cabanagem no Paraacute e Balaiada no MaranhatildeoNessas

proviacutencias os negros trabalhavam principalmente nos canaviais e lavouras de arroz e

algodatildeo

Foster (2004) destaca a importacircncia e a contribuiccedilatildeo da populaccedilatildeo negra na

formaccedilatildeo do povo amazocircnida Para a autora a cultura negra embora matizada pela

grande diversidade de negros que vieram para a regiatildeo e hibridizada pelo contato com

os iacutendios colonos portugueses e migrantes tambeacutem integra a ldquomemoacuteria da

Amazocircniardquo (p 178) Pacheco (2009) corrobora com esta tese quando afirma que

ldquohomens e mulheres filhos da diaacutespora africana que se esparramaram apropriaram-

se resignificaram e compartilharam em contatos e trocas culturais experiecircncias de

vida nos campos marajoarasrdquo (p 283)

Isto posto podemos concluir que a populaccedilatildeo ribeirinha na Amazocircnia eacute

constituiacuteda damescla de indiviacuteduos de etnias e culturas diferentesdentre as quais

indiacutegenas negras europeia e nordestina

23 AFUAacute a Veneza Marajoara

O municiacutepio de Afuaacute eacute conhecido na Ilha do Marajoacute como a Veneza Marajoara

em analogia com a cidade italiana de Veneza A cidade foi construiacuteda sobre as aacuteguas

num terreno de vaacuterzea que eacute totalmente inundado com as enchentes das aacuteguas de

marccedilo Devido a essa caracteriacutestica as ruas satildeo pontes a maioria delas de madeira

e poucas em concreto chamadas pelos moradores de passarelas Eacute uma cidade

ribeirinha cercada por rios de onde satildeo retirados os alimentos por meio da pesca e

por onde navegam os moradores comerciantes e turistas Nesta seccedilatildeo faremos uma

abordagem histoacuterica e econocircmica para compreendermos o modo de serviver dos

85

moradores tambeacutem realizamos uma anaacutelise da educaccedilatildeo baacutesica com enfoque na

educaccedilatildeo infantil e ensino fundamental

231 Aspectos histoacutericos geograacuteficos e econocircmicos

Afuaacute eacute uma das cidades amazocircnicas construiacuteda dentro dacuteaacutegua sobre palafitas

que compotildee o arquipeacutelago do Marajoacute As ruas satildeo pontes chamadas de passarelas

que ligam as casas e os bairros a Central e o Capimarinho A imagem abaixo retrata

uma passarela de madeira por onde caminham os moradores e brincam as crianccedilas

No periacuteodo das enchentes as aacuteguas do rio adentram os quintais

Fotografia 5 - Passarela de madeira no bairro Capimarinho

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Devido agraves caracteriacutesticas da cidade natildeo haacute automoacuteveis e o meio de transporte

utilizado eacute a bicicleta comumente encontrada circulando nas passarelas O

transporte coletivo eacute um tipo de charrete chamado de bicitaacutexi que foi inventado por

um morador nativo Como natildeo haacute caminhotildees ou veiacuteculo similar para carregar cargas

e bagagens satildeo utilizados carros de matildeo puxados por trabalhadores autocircnomos

chamados de carreteiros

Fotografia 6ndashTrabalhador autocircnomo (carreteiro) transportando mercadoria

86

Fonte Edielso M M de Almeida 2016 Quanto agrave origem do Municiacutepio sua histoacuteria remonta ao periacuteodo colonial e faz

parte da poliacutetica de colonizaccedilatildeo da Amazocircnia traccedilada pela coroa portuguesa que

visava agrave dominaccedilatildeo dos povos nativos e agrave exploraccedilatildeo das riquezas da regiatildeo

Segundo Gonccedilalves (2005 p82) ldquoa partir de 1750 no governo do primeiro-

ministro Marquecircs de Pombal comeccedila uma nova fase na adequaccedilatildeo da Amazocircnia ao

domiacutenio colonial portuguecircsrdquo Este domiacutenio objetivou garantir o desenvolvimento da

regiatildeo atraveacutes do comeacutercio dos produtos agriacutecolas e fomento da agricultura comercial

Para isso foi criada em 1755 a Companhia Geral do Comeacutercio do Gratildeo-Paraacute e

Maranhatildeo O monopoacutelio concedido agrave Companhia entrou em atrito com os interesses

das ordens religiosas que atuavam na Amazocircnia no processo de catequizaccedilatildeo e

exploraccedilatildeo dos iacutendios O conflito chegou no aacutepice e em 1759 os jesuiacutetas a maior

ordem religiosa atuante na regiatildeo foram expulsos e seus bens confiscados dentre

eles a matildeo de obra indiacutegena

Com a implantaccedilatildeo da Companhia Geral do Comeacutercio vaacuterias medidas foram

tomadas para modernizar a regiatildeo dentre elas destaca Gonccedilalves (2005 p82)

Doaccedilatildeo de terras (sesmarias) a colonos e a soldados que se

comprometessem a cultivaacute-las introduccedilatildeo do trabalho escravo (1756)

procurando reforccedilar a agricultura do cacau cafeacute algodatildeo cana-de-accediluacutecar

fumo anil e arroz estimulo agrave implantaccedilatildeo da pecuaacuteria nos campos de Rio

Branco (Roraima) baixo Amazonas e na Regiatildeo das Ilhas (Marajoacute inclusive)

Neste contexto soacutecio-poliacutetico-econocircmico gerado a partir da administraccedilatildeo

pombalina comeccedilou ldquouma dinacircmica de povoamento e desenvolvimento que

permitiram integraccedilatildeo poliacutetica administrativa econocircmica social e tambeacutem cultural do

Estado []rdquo (RODRIGUES 2004 p 21)

87

Esta poliacutetica de povoamento fez surgir e crescer as vilas e cidades no interior

da Amazocircnia entre elas o municiacutepio de Afuaacute que faz parte do arquipeacutelago do Marajoacute

Haacute poucos estudos relacionados agrave Histoacuteria de Afuaacute Tivemos acesso durante a

pesquisa bibliograacutefica ao Plano Diretor Participativo do Municiacutepio elaborado pela

Prefeitura no ano de 2007 e eacute com base neste documento que descreveremos a sua

evoluccedilatildeo histoacuterica e poliacutetica

Afuaacute assim como algumas cidades da Amazocircnia cresceu em torno de uma

igreja denominada Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo O terreno para a construccedilatildeo foi

doado por Micaela Archanja Ferreira uma donataacuteria portuguesa a qual tomou posse

das terras que denominou Santo Antocircnio em 1845 que na eacutepoca fazia parte do

distrito da Vila de Chaves

O local onde foi construiacuteda a igreja foi doado por Dona Micaela em 1899 ao

patrimocircnio de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo O terreno comeccedilava no Igarapeacute Divisa

no Rio Marajoacute descia pelo Rio Afuaacute ateacute o Igarapeacute Jaranduba no Rio Cajuuacutena (PLANO

DIRETOR PARTICIPATIVO DE AFUAacute 2007 p 2)

Fotografia 7 - Igreja de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A presenccedila de templos catoacutelicos no processo de colonizaccedilatildeo da Amazocircnia e

como consequecircncia no surgimento de povoados vilas e cidades deu-se segundo

Trindade Juacutenior (2008 p 33) devido ao sentido da colonizaccedilatildeo na regiatildeo que

88

inicialmente foi levada a cabo pela igreja catoacutelica que criou aldeamento e definiu um

povoamento articulado ao interesse cristatildeo daiacute a paisagem dessas cidades ateacute hoje

ser fortemente marcada pelos templos religiosos que logo chamam a atenccedilatildeo das

pessoas que as observam desde os rios

De acordo com imagem acima a primeira vista que temos quando chegamos

agrave cidade pelo rio eacute a da igreja Avistamos o preacutedio religioso de longe eacute o primeiro

sinal de que estamos chegando ao Municiacutepio A fotografia 07 tambeacutem mostra a

localizaccedilatildeo da igreja agraves margens do rio esta foi uma das estrateacutegias de povoamento

adotadas pelo governo portuguecircs que visava a ocupaccedilatildeo da Amazocircnia assim como

agrave defesa das terras apropriadas Os rios possibilitavam a saiacuteda dos produtos da

floresta e a entrada de mercadorias para consumo

[] o ideal de penetraccedilatildeo no territoacuterio amazocircnico vinculado a sua

necessidade de ocupaccedilatildeo e defesa traduziu-se soacutecio-espacialmente nas

gecircneses das cidades agrave beira dos principais rios que davam acesso agrave regiatildeo

(TRINDADE JUacuteNIOR 2008 p 33)

As vilas e povoamentos edificados agraves margens dos rios tornaram-se estrateacutegias

eficientes de povoamento Com as dificuldades do controle da terra afirma Gonccedilalves

(2005 p 35) ocorreu o efetivo controle das aacuteguas o que resultou em vaacuterios

ldquopovoamentos dispersos ao longo dos rios sustentados pelo extrativismo das drogas

do sertatildeo por uma agricultura de subsistecircncia e pela pesca artesanal base da cultura

do caboclo da Amazocircniardquo

Assim cresceu um povoado em torno da construccedilatildeo da igreja ateacute que em 14

de abril de 1874 pela Lei nordm 811 recebeu a categoria de Freguesia Como Freguesia

entrou para o periacuteodo da Repuacuteblica passando para Vila em 1890 com o Decreto nordm

170 de 2 de agosto No mesmo dia outro Decreto-Lei nordm 171 elevou-a a categoria

de Municiacutepio No ano de 1896 a Vila foi elevada agrave condiccedilatildeo de cidade

De 1891 a 1926 o Municiacutepio foi administrado por intendentes que eram

nomeados pelo governo estadual posteriormente passaram a ser eleitos

constitucionalmente por voto aberto e direto do povo No ano de 1927 passou a ser

governado por prefeitos nomeados A partir da Constituiccedilatildeo de 1988 os prefeitos

passaram a ser eleitos pelo voto direto do povo

Em relaccedilatildeo agrave localizaccedilatildeo Afuaacute encontra-se ao norte da Ilha do Marajoacute na

microrregiatildeo dos furos de Breves conforme o mapa abaixo

Mapa 01 Localizaccedilatildeo Geograacutefica do municiacutepio de Afuaacute

89

Fontelthttp3bpblogspotcom_O_r-gkdiqDYSumbWwIY-IAAAAAAAAAhwEhILXVXz97Es1600-

hmapa+MARAJOANDOJPG Acesso 16 de maio de 2016

O arquipeacutelago do Marajoacute estaacute situado no extremo norte do Estado do Paraacute na

foz do rio Amazonas sendo considerado o maior complexo de ilhas fluviais do mundo

com 49606 kmsup2 composto por 12 municiacutepios Afuaacute Chaves Anajaacutes Breves

Curralinho Satildeo Sebastiatildeo da Boa Vista Muanaacute Ponta de Pedras Cachoeira do Ariri

Salvaterra Soure e Santa Cruz do Ariri

O mapa 01 indica os limites de Afuaacute ao norte com a Ilha Caviana a nordeste

com o Municiacutepio de Chaves ao sul com o Municiacutepio de Anajaacutes e Breves ao sudeste

com o Municiacutepio de Anajaacutes ao sudoeste com os Municiacutepios de Breves e Gurupaacute a

leste com os Municiacutepios de Chaves e a oeste e noroeste com o Estado do Amapaacute

(com os Municiacutepios de Mazagatildeo Macapaacute e Itauacutebal)

Mapa 02 Mapa da ilha de Marajoacute indicando a proximidade de Afuaacutecom o Macapaacute

90

Fonte Google Mapas Disponiacutevel em

lthttpmapsgooglecombrmapsgtAcesso 17 de maio de

2016

Na imagem o Municiacutepio estaacute representado pela letra A (no balatildeo) Em meacutedia

a viagem de barco dura de trecircs a quatro horas ateacute Macapaacute capital do Estado do

Amapaacute enquanto que para Beleacutem dura aproximadamente 24 horas A proximidade

com Macapaacute possibilita um intenso intercacircmbio comercial de Afuaacute chegam

constantemente peixe (pescada gurijuba tamuataacute acaraacute traiacutera pirarucu entre

outros) camaratildeo accedilaiacute bacaba madeira e outros produtos extraiacutedos dos rios e

florestas Os comerciantes afuaenses compram em Macapaacute produtos alimentiacutecios

roupas sapatos eletrodomeacutesticos produtos importados etc para revenderem no

Municiacutepio Haacute tambeacutem uma procura pelos serviccedilos puacuteblicos ofertados em Macapaacute

principalmente nas aacutereas de sauacutede e educaccedilatildeo reflexo da falta de investimento

nessas aacutereas pelos Poderes Municipal Estadual e Federal Existe somente um

hospital na sede do Municiacutepio que natildeo atende agrave demanda da populaccedilatildeo o que

provoca a saiacuteda constante de pessoas em busca de atendimento meacutedico nos

Municiacutepios mais proacuteximos

No que concerne agrave flora a floresta amazocircnica que compotildee o territoacuterio afuaense

conteacutem diversas espeacutecies com destaque para a virola andiroba anani pracuuacuteba

macacauacuteba pau mulato sucupira de vaacuterzea e acapu e palmeiras como o accedilaiacute o

miriti o murumuru o tucumatildes e inuacutemeras outras espeacutecies de plantas aquaacuteticas

A riqueza da flora amazocircnica garante o sustento da maioria da populaccedilatildeo

atraveacutes do extrativismo que segundo Gonccedilalves (2005 p 89) eacute uma atividade ldquoque

91

marca a organizaccedilatildeo social do espaccedilo amazocircnico mesmo antes da presenccedila colonialrdquo

De fato os iacutendios antes da apropriaccedilatildeo de suas terras pelos colonizadores jaacute

negociavam com espanhoacuteis franceses e holandeses os produtos da floresta entre

eles o pau-brasil Braga (1911) afirma que a exploraccedilatildeo da madeira faz parte da

histoacuteria do Marajoacute desde 1900 as induacutestrias madeireiras se instalaram na regiatildeo para

exploraccedilatildeo e beneficiamento da madeira

Segundo Meirelles Filho (2004) a Regiatildeo Amazocircnica eacute a maior produtora de

madeira tropical do mundo e o Estado do Paraacute estaacute incluiacutedo no que o autor chama de

ldquoarco do desmatamentordquo 21 (p 178) O desmatamento tambeacutem gera emprego ldquoA

exploraccedilatildeo da madeira eacute a principal atividade econocircmica de mais de cem municiacutepios

da Amazocircnia Trata-se da terceira maior geradora de empregos na Regiatildeo com mais

de meio milhatildeo de pessoas vivendo da atividaderdquo (p178)

Esta atividade geralmente natildeo respeita as leis ambientais e trabalhistas pois

as condiccedilotildees de trabalho satildeo severas Haacute pouco equipamento disponiacutevel e os

acidentes satildeo comuns Aleacutem disso a ausecircncia da fiscalizaccedilatildeo contribui para a

violaccedilatildeo dos Direitos Humanos tanto nas serralherias como na operaccedilatildeo de corte

com a ocorrecircncia de trabalho infantil condiccedilotildees inadequadas e horas excessivas de

trabalho (LIMA 2003 p 43)

Na sede do Municiacutepio de Afuaacute estaacute localizada a maior madeireira da localidade

denominada Exportaccedilatildeo Materiais e Alimentos do Paraacute (EMAPA) Cerca de 99 de

sua produccedilatildeo eacute exportada para o Japatildeo Itaacutelia Argentina Inglaterra Estados Unidos

e Canadaacute apenas 1 destina-se ao mercado interno (PLANO DIRETOR

PARTICIPATIVO 2007 p 9) O que caracteriza uma produccedilatildeo voltada para a oferta

de mateacuteria-prima para o mercado externo

A exploraccedilatildeo de madeira tambeacutem eacute feita pelos ribeirinhos Segundo

levantamento da Secretaria do Meio Ambiente existem na zona rural

aproximadamente 146 pequenas serrarias que cortam madeira Muitas dessas

serrarias comercializam seus produtos com a EMAPA e com as madeireiras do

Municiacutepio de Macapaacute A derrubada da madeira eacute feita na sua grande maioria sem

projeto de reflorestamento e sem orientaccedilatildeo teacutecnica para o desmatamento pelos

21Seus limites se estendem do sudoeste do Estado do Maranhatildeo ao norte de Tocantins Paraacute norte de

Mato Grosso Rondocircnia sul do Amazonas e sudoeste do Estado do Acre Pelo mapa este itineraacuterio de devastaccedilatildeo da floresta tem forma de um arco

92

ribeirinhos e tambeacutem por madeireiras instaladas no interior pertencentes a

empresaacuterios principalmente das regiotildees Sul e Sudeste do paiacutes

A ausecircncia de orientaccedilotildees teacutecnicas para a derrubada de madeira gera como

consequecircncia o desperdiacutecio pois quando a aacutervore tomba apoacutes o corte do machado

ou da motosserra acaba danificando ou matando outras que estatildeo ao seu redor Se

forem em floresta com maior presenccedila de cipoacutes os danos podem ainda ser maiores

ldquo[] as estradas para a retirada da madeira sem planejamento destroacutei inuacutemeras

aacutervores jovens que poderiam fornecer boa madeira no futuro entopem riachos

mudam cursos drsquoaacutegua e provocam erosotildeesrdquo (MEIRELLES FILHO 2010 p173)

Explica o referido autor que a exploraccedilatildeo de madeira passa por etapas que

inicialmente produzem a geraccedilatildeo de emprego e renda e posteriormente o

desemprego e a miseacuteria da populaccedilatildeo e do espaccedilo explorado

O primeiro momento da atividade predatoacuteria eacute de euforia crescimento raacutepido

geraccedilatildeo de emprego e renda No segundo momento quando terminam os

estoques de madeira mais faacutecil de coletar as serrarias satildeo transferidas para

outras fronteiras deixando um rastro de destruiccedilatildeo e desemprego Para a

regiatildeo fica o prejuiacutezo uma vez que a matildeo-de-obra natildeo iraacute se transferir

tampouco as propriedades rurais onde a madeira foi escolhida a dedo

(MEIRELLES FILHO 2010 p 178)

A transferecircncia das serrarias causa imensos problemas sociais gerados pelo

desemprego Desempregado sem ter como manter a famiacutelia muitos ribeirinhos vatildeo

para a cidade em busca de trabalho de melhores condiccedilotildees de sobrevivecircncia e de

educaccedilatildeo para seus filhos Na cidade acabam morando na periferia sem as miacutenimas

condiccedilotildees de habitaccedilatildeo sem aacutegua encanada esgoto luz eleacutetrica e outros direitos

sociais A realidade com a qual passam a conviver eacute a da violecircncia prostituiccedilatildeo

mendicacircncia entre outras

Aleacutem da extraccedilatildeo da madeira outra forma de exploraccedilatildeo da floresta acontece

atraveacutes da retirada do palmito do accedilaizeiro

[] eacute realizada sem nenhum criteacuterio de manejo ocasionando a escassez de

accedilaizeiros nas aacutereas onde satildeo realizados os cortes para a extraccedilatildeo de

palmito A comercializaccedilatildeo do produto eacute feita ldquoin naturardquo para as faacutebricas de

beneficiamento existentes no municiacutepio (PLANO DIRETOR PARTICIPATIVO

DE AFUAacute 2007 p 26)

Existem seis induacutestrias de palmito registradas na prefeitura que estatildeo

espalhadas pelo municiacutepio localizadas em sua maioria nas aacutereas rurais-ribeirinhas

devido agrave facilidade de acesso agrave matildeo-de-obra e a mateacuteria-prima

Tabela 02 ndash Comparaccedilatildeo da produccedilatildeo de accedilaiacute no intervalo de quatro anos

93

Produto

Quantidade Produzida

Valor (Mil reais)

2010 2014 2010 2014

Accedilai (fruto) 4100 6125 4510 17151

Palmito 120 119 90 263 Fonte Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica 2014

Pela leitura da tabela podemos verificar que a quantidade de accedilaiacute produzida

em 2014aumentou em relaccedilatildeo agrave de 2010 houve um acreacutescimo de 2025 toneladas no

intervalo de quatro anos Um dos motivos foi diminuiccedilatildeo da derrubada em massa de

accedilaizeiros para a retirada de palmito que pela leitura dos mesmos dados tambeacutem

diminuiu Apesar de natildeo haver uma poliacutetica puacuteblica de manejo do accedilaiacute a produccedilatildeo

aumentou

Os ribeirinhos recebem em meacutedia um real por unidade de palmito com toda a

casca poreacutem um vidro deste produto beneficiado eacute encontrado no comeacutercio de

Macapaacute com o peso bruto de 550g e peso drenado de 300g ndash sem o liacutequido de

conserva ndash com o custo meacutedio de R$ 7 50 (sete reais e cinquenta centavos) a R$

1000 (dez reais) dependendo do tipo do palmito A B ou C O preccedilo tambeacutem pode

variar eou aumentar se for vendido para outras regiotildees do paiacutes

A derrubada de accedilaizeiros para a extraccedilatildeo de palmito diminui a oferta do accedilaiacute

que faz parte da alimentaccedilatildeo tanto dos ribeirinhos como dos amazocircnidas que vivem

nas cidades ldquoObserva-se em Beleacutem o aumento excessivo do preccedilo desse fruto o

que provoca a diminuiccedilatildeo de seu consumo principalmente pela populaccedilatildeo de baixa

rendardquo (SANTOS 2014 p 74) Como consequecircncia haacute o aumento no preccedilo do

produto ocasionando a falta nas mesas das famiacutelias mais pobres O que antes se

tinha em abundacircncia hoje estaacute cada vez mais raro O litro do produto em Afuaacute na

entressafra chega a custar R$ 1000 (dez reais) Vale ressaltar que o accedilaiacute aleacutem de

alimento tambeacutem eacute fonte de renda para os ribeirinhos

A pesca tambeacutem eacute outra atividade econocircmica do municiacutepio com destaque para

o camaratildeo e a lagosta aleacutem de vaacuterias espeacutecies de peixes que acompanhados com

accedilaiacute e o camaratildeo tornam-se os principais alimentos consumidos pelos afuaenses Eacute

habitual encontrar esses alimentos nas mesas dos ribeirinhos Como afirma Santos

(2014 p 72) satildeo caracteriacutesticos da culinaacuteria amazocircnica pela especificidade da

regiatildeo ldquocomo por exemplo a presenccedila de rios que facilitam a pesca ou a presenccedila

da mata []rdquo Os saberes necessaacuterios para a colheita do accedilaiacute e a pesca satildeo

aprendidos desde a infacircncia na convivecircncia diaacuteria e nas relaccedilotildees de trabalho Parte

94

do pescado eacute vendida nas feiras e mercados locais a outra eacute comercializada em

Macapaacute Os instrumentos mais utilizados para a pesca satildeo linha tarrafa malhadeira

matapi caniccedilo arpatildeo pari22 entre outros

Fotografia 8ndashRibeirinho jogando a tarrafa no rio

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A pesca do camaratildeo eacute intensa no Municiacutepio nos meses de maio a julho eacute o

periacuteodo de safra O camaratildeo eacute um dos principais produtos que movimenta a economia

Ele eacute tatildeo importante que haacute 33 anos eacute realizado o festival do camaratildeo que ocorre no

mecircs de julho O evento acontece agraves margens do Rio Afuaacute no camaroacutedromo23 e faz

parte do calendaacuterio turiacutestico da cidade

Segundo a Secretaria Municipal de Turismo Esporte Lazer e Culturaem 2015

o festival contou com participaccedilatildeo de aproximadamente 50000 (cinquenta mil)

pessoas oriundas dos municiacutepios do arquipeacutelago do Marajoacute de outros Estados e

paiacuteses Em 2005 comeccedilou a fazer parte do festival a batalha camaroeira que consiste

na disputa entre camarotildees Convencido (camaratildeo cru da cor verde) e Pavulagem

(camaratildeo cozido cor vermelha) A batalha visa retratar os costumes a originalidade

e a regionalidade da cultura cabocla ribeirinha

22O pari eacute uma espeacutecie de armadilha feita de tala pelos pescadores Quando a mareacute seca os peixes

ficam presos nela 23No mecircs de julho a uacutenica quadra de esportes existentes no municiacutepio se transforma no camaroacutedromo

que eacute um espaccedilo para apresentaccedilotildees de bandas desfiles salatildeo de danccedila e para a batalha dos camarotildees Convencido e Pavulagem

95

O trabalho na roccedila garante tambeacutem o alimento do afuaense Eacute uma atividade

laboral que envolve toda a famiacutelia crianccedilas jovens adultos idosos mulheres e

homens todos desempenham funccedilotildees que garantem a produccedilatildeo o sustento e a

venda do que eacute produzido Eacute o que podemos considerar uma agricultura familiar na

qual a prioridade eacute a subsistecircncia Nos solos do municiacutepio satildeo plantados com maior

abundacircncia abacaxi arroz cana-de-accediluacutecar mandioca melancia e milho

O sistema de corte-e-queima ainda prevalece nas praacuteticas da agricultura

familiar que consiste em

[] escolher uma aacuterea de terras uacutemidas desmatar uma pequena aacuterea no fim

da estaccedilatildeo chuvosa e deixar as aacutervores secarem Apoacutes dois meses eacute

colocado fogo e em seguida realizado o plantio de diferentes espeacutecies numa

mesma aacuterea Aproveita-se a aacuterea para o plantio por um a trecircs anos A cada

ano uma nova limpeza e queima eacute realizada (MEIRELLES FILHO 2004 p

86)

Essa praacutetica empobrece o solo tendo como efeito a diminuiccedilatildeo da produccedilatildeo a

cada ano o que leva o agricultor-ribeirinho24 a desmatar e queimar novas aacutereas para

o plantio comprometendo a sobrevivecircncia da floresta e consequentemente a sua

permanecircncia nela

Fotografia 9 ndashAacuterea desmatada para o plantio de milho

Fonte Comissatildeo Pastoral da Terra 2015

24Utilizaremos este termo porque todas as comunidades onde se pratica a agricultura no municiacutepio satildeo

ribeirinhas

96

Na fotografia temos parte da mata derrubada e queimada para o plantio do

milho esta eacute a forma como o agricultor-ribeirinho pratica a agricultura Aprendeu com

os pais que aprenderam com os avoacutes e agora estatildeo ensinando para os seus filhos

que continuaratildeo a perpetuaacute-la Segundo Gonccedilalves (2005 p 156) ldquoAs populaccedilotildees

ribeirinhas de pescadores-agricultores-extrativistas manipulam haacute vaacuterios anos

ecossistemas extremamente delicados sem que nenhum esforccedilo sistemaacutetico de

poliacuteticas puacuteblicas tenha existido em seu apoiordquo Sendo assim a falta de apoio agrave

populaccedilatildeo ribeirinha eacute reflexo do descaso do poder puacuteblico em desenvolver poliacuteticas

que assegurem o desenvolvimento de praacuteticas produtivas coerentes com a

biodiversidade da regiatildeo

Em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo segundo o censo de 2015 do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatiacutestica (IBGE) a estimativa eacute de que o municiacutepio tenha 37398

habitantes sendo que mais de 60 residem na zona rural em comunidades rurais-

ribeirinhas (vilas e povoados)

No tocante agrave definiccedilatildeo de urbano e rural Veiga (2002) afirma que no Brasil natildeo

haacute no estatuto das cidades por exemplo um artigo que defina cidade Essa lacuna

gera confusatildeo entre a classificaccedilatildeo adotada pelo governo e a usada em estudos

demograacuteficos Segundo o autor em nosso paiacutes o mapa oficial de urbanizaccedilatildeo

publicado no Atlas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) de 2000

adota um criteacuterio administrativo Este criteacuterio ainda eacute baseado no decreto-lei assinado

por Getuacutelio Vargas em 1938 que considera urbanas as sedes dos municiacutepios e as

vilas natildeo levando em consideraccedilatildeo sua densidade populacional

Desta maneira ldquoapoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica a classificaccedilatildeo urbana

passa a se relacionar com o conceito de cidade e cada vila passa a adotar um criteacuterio

pois se tornar cidade confere statusrdquo (VEIGA 2002 p34) Para o referido autor a

densidade demograacutefica talvez seja o principal indicador da maior ou menor pressatildeo

antroacutepica mas natildeo deve ser o uacutenico pois ldquose usarmos o criteacuterio analiacutetico a populaccedilatildeo

urbana do Brasil natildeo chega a 70rdquo (ibidem p35)

Fotografia 10ndashCasas construiacutedas em aacuterea de invasatildeo no bairroCapimarinho

97

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

As invasotildees para a construccedilatildeo de casas visualizadas na fotografia ocorrem

atraveacutes do desmatamento limpeza e ocupaccedilatildeo desordenada do espaccedilo

Paulatinamente vatildeo surgindo as casas cobertas de palha telhas de brasilit ou de

barro Na imagem acima ainda ficaram poucas espeacutecies da floresta nativa o restante

galhos e troncos das aacutervores estatildeo no chatildeo Sem condiccedilotildees econocircmicas os

ribeirinhos acabam invadindo aacutereas de ressacas para construir suas moradias na

cidade e assim vatildeo surgindo os bairros nas periferias sem aacutegua tratada esgoto

energia eleacutetrica coleta de lixo etc O bairro mais populoso eacute o Capimarinho que

nasceu atraveacutes das constantes invasotildees de ribeirinhos fugindo da miseacuteria e da fome

geradas pelas accedilotildees predatoacuterias de madeireiras e faacutebricas de palmito

A pobreza dos cidadatildeos afuaenses eacute evidenciada pelo Iacutendice de

Desenvolvimento Humano (IDH)25 O IDH Municipal varia de 0 a 1 considerando

indicadores de longevidade como sauacutede renda e educaccedilatildeo Quanto mais proacuteximo de

0 (zero) pior eacute o desenvolvimento humano do municiacutepio Quanto mais proacuteximo de 1

(um) mais alto eacute o desenvolvimento do municiacutepio O IDH de Afuaacuteem 2014 foi de

0489 considerado portanto muito baixo e a expectativa de vida dos moradores em

25A pesquisa foi elaborada a partir do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil 2014 divulgado pelo Programa das Naccedilotildees Unidas para o Desenvolvimento - PNUD Instituto de Pesquisa Econocircmica Aplicada - IPEA e Fundaccedilatildeo Joatildeo Pinheiro - FJP com dados extraiacutedos dos Censos Demograacuteficos de 1991 2000 e 2010

98

meacutedia de 69 anos (IBGE 2010) A ausecircncia de poliacuteticas puacuteblicas sociais e econocircmicas

que beneficiem a populaccedilatildeo mais pobre reflete o iacutendice apresentado Segundo o

estudo do Programa das Naccedilotildees Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) em 2014

dos oito municiacutepios com IDH mais baixo no Estado do Paraacute seis estatildeo situados na

Ilha do Marajoacute Afuaacute (0489) Anajaacutes (0484) Portel (0483) Bagre (0471) Chaves

(0453) e Melgaccedilo (0418) este com o pior IDH do Brasil (PNUD 2013)

A seguir apresentamos o retrato da educaccedilatildeo formal ofertada agravepopulaccedilatildeo que

reside no Municiacutepio

24 A EDUCACcedilAtildeO RIBEIRINHA NO MUNICIacutePIO DE AFUAacute

A populaccedilatildeo de Afuaacute eacute atendida educacionalmente com a educaccedilatildeo infantil

ensino fundamental educaccedilatildeo de jovens e adultos educaccedilatildeo especial e o ensino

meacutedio Segundo censo escolar de 2014 do Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatiacutestica 2130 da populaccedilatildeo acima de 15 anos de idade satildeo analfabetas Isso

significa que nunca frequentaram a escola um direito que eacute garantido

constitucionalmente e natildeo estaacute sendo cumprido nem cobrado pelos oacutergatildeos

competentes A grande parte dos excluiacutedos do sistema formal de ensino mora agraves

margens dos rios lagos e igarapeacutes nas aacutereas ribeirinhas Enquanto no nosso paiacutes

de acordo com dados do IBGE (2014) houve aumento no niacutevel de escolaridade nos

uacuteltimos anos ainda encontramos principalmente nos municiacutepios mais pobres um

elevado iacutendice de analfabetismo e como consequecircncia baixos indicadores de

escolarizaccedilatildeo

A rede municipal de ensino tem como caracteriacutestica ser rural ribeirinha pois

98 das escolas estatildeo localizadas nestas aacutereas das 211 instituiccedilotildees escolares

somente 5 (cinco) se encontram na aacuterea urbana A seguir apresentamos o retrato da

educaccedilatildeo baacutesica iniciamos pela educaccedilatildeo infantil e posteriormente mostramos o

ensino fundamental e meacutedio

241 Educaccedilatildeo Infantil

A educaccedilatildeo infantil enquanto poliacutetica puacuteblica foi garantida legalmente a partir

da constituiccedilatildeo de 1988 as constituiccedilotildees anteriores limitaram-se ao amparo e agrave

assistecircncia e as promulgadas no periacuteodo imperial natildeo abrangeram nada referente agrave

infacircncia (CURY 2012) O cidadatildeo crianccedila de acordo com Angotti (2010) eacute

reconhecido na Carta Magna de 1988 com direitos garantidos o que requer o

investimento e o desenvolvimento de accedilotildees em niacutevel Federal Estadual e Municipal

99

A educaccedilatildeo infantil com a Constituiccedilatildeo passa a ser responsabilidade do

Estado ofertada em creches e preacute-escolas poreacutem a partir da emenda constitucional

nordm 592009 a obrigatoriedade e gratuidade foi concedida somente para as crianccedilas a

partir de quatro anos de idade

A Emenda Constitucional nordm 59 de 2009 que modificou a definiccedilatildeo da educaccedilatildeo obrigatoacuteria apesar de sua importacircncia foi aprovada sem que fosse precedida por maiores discussotildees na sociedade nos meios especializados e no proacuteprio Congresso Nacional De certa forma essa medida jaacute estava anunciada em metas definidas por uma mobilizaccedilatildeo de empresaacuterios o Movimento Todos pela Educaccedilatildeo que vem exercendo grande influecircncia nas orientaccedilotildees da poliacutetica educacional no Paiacutes Essa novidade foi adotada na esteira da anterior configurando uma verdadeira cascata de mudanccedilas que incidiram sobre a gestatildeo municipal da educaccedilatildeo nesta primeira deacutecada do seacuteculo (CAMPOS 2012 p 11)

Para a garantia do padratildeo miacutenimo de qualidade e a equalizaccedilatildeo das

oportunidades foi mantido como competecircncia da Uniatildeo prestar assistecircncia teacutecnica e

financeira aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios que ficaram com a

responsabilidade de atuar prioritariamente no ensino fundamental e na educaccedilatildeo

infantil Nesta divisatildeo coube agrave esfera Estadual o atendimento ao ensino meacutedio e agrave

Federal a oferta da educaccedilatildeo superiorA delegaccedilatildeo por meio das competecircncias entre

os poderes puacuteblicos definidas constitucionalmente fomentou o princiacutepio da

descentralizaccedilatildeo que segundo Gagnebin (2011) compromete a efetivaccedilatildeo do

atendimento educacional de qualidade agraves crianccedilas pequenas como tambeacutem a todos

os outros niacuteveis de ensino o que denota uma visatildeo reducionista do papel do Estado

em relaccedilatildeo agraves poliacuteticas puacuteblicas

Em relaccedilatildeo agraves instituiccedilotildees que poderatildeo ofertar educaccedilatildeo infantil a crecheeacute

reconhecida como espaccedilo educativo e de direito para as crianccedilas principalmente das

famiacutelias trabalhadoras Desta forma os pais legalmente passam a usufruir de um

espaccedilo coletivo para os cuidados e educaccedilatildeo de seus filhos Mas na realidade este

princiacutepio legal ainda natildeo saiu do papel e natildeo se concretizou no municiacutepio de Afuaacute As

crianccedilas na idade de dois a trecircs anos satildeo atendidas na uacutenica escola de Educaccedilatildeo

Infantil denominada Centro Theopompo Nery(CEI) localizada na aacuterea urbanano

bairro Central O nuacutemero de vagas ofertadas por ano totalizam 40 sendo 20 para o

turno da manhatilde e 20 para o da tarde Sabe-se que a demanda eacute muito maior do que

as vagas disponiacuteveis o que requer do poder puacuteblico investimento para a construccedilatildeo

de creches que atendam o que a lei estabelece

100

Vale ressaltar a importacircncia da creche que para Didonet (2014) estaacute centrada

no desenvolvimento na promoccedilatildeo da aprendizagem assim como na mediaccedilatildeo do

processo de construccedilatildeo conhecimentos e habilidades por parte da crianccedila

procurando ajudaacute-la a ir o mais longe possiacutevel nesse processo Desta forma

reconhece a importacircncia da infacircncia no desenvolvimento humano por meio da

educaccedilatildeo na construccedilatildeo da cidadania Constata-se a finalidade da creche que deve

ser centrada na crianccedila para a formaccedilatildeo do cidadatildeo desde o nascimento direito

constitucionalmente garantido

Mas segundo Cury (2012) as instituiccedilotildees que ofertam a educaccedilatildeo infantil em

nosso paiacutes precisam de investimentos tanto na aacuterea pedagoacutegica como em

infraestrutura recursos didaacuteticos formaccedilatildeo continuada de professores projeto

poliacutetico pedagoacutegico entre outros para colocar em accedilatildeo os avanccedilos propostos pela lei

e tornarem-se espaccedilos de promoccedilatildeo e defesa da cidadania

Outro documento legal que trata do direito das crianccedilas agrave creche e agrave preacute-escola

eacute o Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA) Lei n 80691990 A referida lei

corrobora o que jaacute foi garantido constitucionalmente ou seja a obrigatoriedade do

Estado no atendimento agraves crianccedilas de 0 a 5anos em creches e preacute-escolas e a

incumbecircncia do municiacutepio na oferta da educaccedilatildeo infantil Avanccedila ainda ao propor a

criaccedilatildeo de instrumentos na defesa do atendimento aos direitos das crianccedilas e dos

adolescentes que satildeo os Conselhos dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente

A Constituiccedilatildeo Federal de 1988 ao dispor sobre a competecircncia da Uniatildeo para

legislar sobre as diretrizes e bases da educaccedilatildeo nacional deu iniacutecio a todo o processo

para promulgaccedilatildeo da Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional (LDB) Lei n

93941996 de 20 de dezembro de 1996 considerada a lei maacutexima da educaccedilatildeo

Nela a educaccedilatildeo infantil eacute concebida como a primeira etapa da educaccedilatildeo baacutesica

Desta forma o direito das crianccedilas de 0 a 5 anos agrave educaccedilatildeo em creches e preacute-

escolas que jaacute estava assegurado na Constituiccedilatildeo de 1988 e reafirmado no Estatuto

da Crianccedila e do Adolescente agora tambeacutem estaacute traduzido em diretrizes e normas no

acircmbito da educaccedilatildeo nacional o que representa um marco histoacuterico de grande

importacircncia para a educaccedilatildeo infantil em nosso paiacutes

A referida lei apresenta como finalidade da educaccedilatildeo baacutesica o

desenvolvimento do educando assegurando-lhe uma formaccedilatildeo para a cidadania

aleacutem de fornecer meios para a progressatildeo no mundo do trabalho e nos estudos Nela

101

haacute o reconhecimento de que a educaccedilatildeo comeccedila nos primeiros anos de vida por meio

da sua primeira etapa e eacute fundamental para a efetivaccedilatildeo de sua finalidade

O destaque atribuiacutedo pela nova LDB agrave educaccedilatildeo infantil o que natildeo ocorreu nas

legislaccedilotildees anteriores refere-se agrave sua finalidade ldquoo desenvolvimento integral da

crianccedila ateacute os cinco anos de idade em seus aspectos fiacutesico psicoloacutegico intelectual e

social complementando a accedilatildeo da famiacutelia e da comunidaderdquo (BRASIL 2015 p 4)

ofertada em creches ou entidades equivalentes para crianccedilas de ateacute trecircs anos de

idade e em preacute-escolas para as crianccedilas de quatro a cinco anos

A nova LDB ratificou o que estabeleceu a constituiccedilatildeo federal a educaccedilatildeo

infantil eacute responsabilidade do Municiacutepio mas incumbe a Uniatildeo no artigo 9ordm inciso III

o dever de ldquoprestar assistecircncia teacutecnica e financeira aos Estados ao Distrito Federal e

aos Municiacutepios para o desenvolvimento de seus sistemas de ensino e o atendimento

prioritaacuterio agrave escolaridade obrigatoacuteria exercendo sua funccedilatildeo redistributiva e

supletivardquo(BRASIL 2015 p 3)

Sendo prioridade o ensino fundamental a educaccedilatildeo infantilacaba ficando em

segundo plano principalmente nos municiacutepios daAmazocircnia que possuem poucos

recursos financeiros para atender todasas crianccedilas em idade escolar Isso fica

evidente na quantidade de escolasque oferecem esta etapa da educaccedilatildeo baacutesica que

de acordo com o IBGE em 2014 foram 132 escolas que ofertavam a educaccedilatildeo

infantil Estes nuacutemeros no entanto natildeo correspondem ao de escolas de educaccedilatildeo

infantil pois no referido municiacutepio existe somente uma especiacutefica que eacute o Centro de

Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery (CEI) A tabela a seguir mostra o atendimento no

periacuteodo de 2014 a 2016

Tabela 03 ndash Quantidade de Alunos matriculados no CEI

EDUCACcedilAtildeO

INFANTIL

ANO

2014 2015 2016

Creche 182 190 190

Preacute-escolar 659 403 403

Fonte Direccedilatildeo do Centro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery 2016

O decreacutescimo da quantidade de alunos do preacute-escolar a partir de 2015 ocorreu

devido agrave saiacuteda das crianccedilas com 6 anos de idade que passaram para o ensino

fundamental Assim o Centro atende atualmente crianccedilas de 2 a 5 anos de idade as

102

turmas do preacute-escolar ecreche satildeo formadas por 25 a 30 alunos com dois professores

por turma

No Plano Municipal de Educaccedilatildeo de Afuaacute (PME) para o periacuteodo de 2015-2025

consta como primeira Meta universalizar ateacute 2016 a educaccedilatildeo infantil na preacute-escola

para as crianccedilas de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade e ampliar a oferta de educaccedilatildeo

infantil em creches de forma a atender no miacutenimo 10 (dez por cento) das crianccedilas

ateacute 2025 Estamos em 2016 e ainda natildeo foram construiacutedas novas escolas de

educaccedilatildeo infantil tanto na aacuterea urbana como no campo condiccedilatildeo necessaacuteria para

expandir o nuacutemero de vagas com vistas a universalizar a preacute-escola

Na tabela abaixo apesentamos o percentual de atendimento das crianccedilas em

creches pelo municiacutepio bem como pela ilha do Marajoacute Paraacute Regiatildeo e Paiacutes

Tabela 04 ndash Percentual de atendimento das crianccedilas de 0 a 3 anos

META BRASIL 50 META AFUAacute 10

Populaccedilatildeo de Afuaacute de 0 a 3 anos

BRASIL

NORTE

PARAacute

MARAJOacute

AFUAacute

Crianccedilas de 0 a 3 anos natildeo atendidas pela creche em Afuaacute

3786

232

92

112

109

48

952

Fonte IBGEPesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelios (PNAD) ndash 2014

Segundo o PNAD em 2014 952 das crianccedilas estavam fora da creche

apenas uma minoria 48 teve acesso sendo a grande maioria excluiacuteda Na tabela

acima a meta de atendimento estabelecida para o Brasil eacute cinco vezes superior agrave

pretendida pelo Municiacutepio para um periacuteodo de 10 anos Caso seja concretizada ainda

teremos 90 das crianccedilas fora da escola a maioria oriunda da aacuterea rural-ribeirinha

fruto da ausecircncia do governo para essa etapa tatildeo importante da educaccedilatildeo das

crianccedilas na Amazocircnia

A Educaccedilatildeo infantil eacute um direito reconhecido na atual Constituiccedilatildeo Federal

incluso na educaccedilatildeo baacutesica pela Lei maacutexima da educaccedilatildeo e como princiacutepio da

proteccedilatildeo integral agrave infacircnciapelo ECA Para os gestores dos municiacutepios a oferta da

creche natildeo eacute obrigatoacuteria mas entendemos que o direito se aplica a todos os niacuteveis e

modalidades de ensino Apesar daemenda constitucional nordm 592009 estabelecer a

obrigatoriedade e gratuidade para as crianccedilas a partir de quatro anos de idade para

as de 0 a 3 anos haacute o direito e natildeo a obrigaccedilatildeo mas a partir do momento em que

103

existe demanda e os pais exigem vaga para seus filhos nasce o dever do Estado de

garantir o atendimento com qualidade

Fotografia 11ndashCentro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

No tocante agrave estrutura fiacutesica o preacutedio do CEI eacute todo em alvenariacom uma

infraestrutura composta de 12 (doze) salas de aula bibliotecabrinquedoteca

auditoacuterio sala de leitura e dos professoresO corpo docente eacute formado por 46

(quarenta e seis) professores sendo 20 com niacutevel meacutedio 26com niacutevel superior em

diversas licenciaturas como Letras Histoacuteria Geografia Artes Biologia Matemaacutetica

Educaccedilatildeo Fiacutesica e Pedagogia Nacoordenaccedilatildeo pedagoacutegica haacute uma orientadora e

uma supervisoraeducacional Aescola possui uma excelente estrutura fiacutesica e a

proposta pedagoacutegica tem como base o desenvolvimento de habilidades para a

alfabetizaccedilatildeo (SEMED 2016)

Como a meta do PME 2015-2025 eacute atender todas as crianccedilas de 4 a 5 anos

abaixo apresentamos o total de crianccedilas nessa faixa etaacuteria de acordo com dados do

IBGE

Tabela 05 -Percentual de atendimento das crianccedilas de 4 a 5 anos em Afuaacute

META BRASIL 100 META AFUAacute 100

POPULACcedilAtildeO 4 A 5 ANOS

BRASIL NORTE PARAacute MARAJOacute AFUAacute

1957 814 679 739 573 522 Fonte Estado Regiatildeo e Brasil - IBGEPesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelios (PNAD) ndash 2014

104

Os dados demonstram que ateacute o ano de 2013 somente 522 das crianccedilas

de 4 a 5 anos estavam matriculadas na preacute-escola a meta de garantir o acesso a

todas elas vai requerer investimento na construccedilatildeo de preacutedios concurso puacuteblico para

professores aquisiccedilatildeo de materiais pedagoacutegicos entre outros e para isso a

educaccedilatildeo infantil teraacute que ser prioridade do governo

Nas aacutereas ribeirinhas onde estaacute o maior nuacutemero de crianccedilas excluiacutedas da

creche e da preacute-escola natildeo existe escola especiacutefica para a educaccedilatildeo infantil Neste

trabalho retratamos especificamente a realidade da educaccedilatildeo no Regional Madeira

por motivo de ele ser o locus no qual realizamos a pesquisa de campo

A realidade da educaccedilatildeo infantil no Regional Madeira eacute totalmente diversa da

que evidenciamos acima natildeo haacute escolas especiacuteficasde educaccedilatildeo infantil e o

atendimento agrave preacute-escola eacute realizado nos estabelecimentos que oferecem o ensino

fundamentalQuando o nuacutemero chega a um total de 20 alunos26 na comunidade

forma-seuma turma multisseriada com crianccedilas de 4 e 5 anos Se natildeo houver

onuacutemero de alunos para se fechar uma turma especiacutefica as crianccedilas satildeoinseridas

nas classes multisseriadas do 1ordm ao 5ordm ano contrariando aResoluccedilatildeo nordm 2 de 28 de

abril de 2008 que estabelece as diretrizescomplementares normas e princiacutepios para

o desenvolvimento depoliacuteticas puacuteblicas de atendimento da Educaccedilatildeo Baacutesica do

Campo Em seuart 3ordm paraacutegrafo 2ordm ela afirma que ldquoem nenhuma hipoacutetese

seratildeoagrupadas em uma mesma turma crianccedilas de educaccedilatildeo infantil comcrianccedilas do

ensino fundamentalrdquo (BRASIL 2008 p 02)

Fotografia 12 ndash Classe multisseriada

26Nuacutemero de alunos estipulados pela SEMED para formar uma turma especiacutefica daeducaccedilatildeo infantil

105

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Na imagem acima temos uma sala de aula multisseriada de umaescola rural-

ribeirinha com alunos do preacute-escolar (crianccedilas de 4 e 5 anos)e dos anos inicias do

ensino fundamental Aturma eacute composta de um total de 35 alunos Na sala haacute

somente um quadro com atividade para o 3ordm e 4ordm ano enquanto o 1ordm e 2ordm estatildeo

resolvendoexerciacutecios no caderno Esta eacute a realidade de muitas escolas que oferecema

educaccedilatildeo infantil nas comunidades ribeirinhasA falta de recursos didaacuteticos de

merenda escolar e deassessoramento pedagoacutegico satildeo alguns dos problemas

enfrentados peloseducadores Como podemos perceber na fotografiaa escola

funcionaem uma casa cedida pela comunidade na qual reside tambeacutem aprofessora

Eacute um espaccedilo improvisado sem a estrutura fiacutesica de uma salade aula e o espaccedilo

reduzido inviabiliza que a docente circule na sala deaula Essa realidade tambeacutem se

estende ao ensino fundamental e meacutedioque descrevemos a seguir

242 Ensino Fundamental e Meacutedio

A inclusatildeo das crianccedilas a partir de seis anos de idade no ensino fundamental

teve impacto na composiccedilatildeo das classes multisseriadas e consequentemente na

organizaccedilatildeo do trabalho pedagoacutegico do professor anteriormente essas crianccedilas

estavam matriculadas na educaccedilatildeo infantil e nas escolas ribeirinhas poucas tinham

acesso a esta etapa da educaccedilatildeo baacutesica Com a lei nordm 112742006 houve alteraccedilatildeo

na idade miacutenima para a matriacutecula inicial que passou de sete para seis anos de idade

com duraccedilatildeo de nove anos Esta etapa da educaccedilatildeo baacutesica tem por objetivo

106

I - o desenvolvimento da capacidade de aprender tendo como meios baacutesicos o pleno domiacutenio da leitura da escrita e do caacutelculo II - a compreensatildeo do ambiente natural e social do sistema poliacutetico da tecnologia das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade III - o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem tendo em vista a aquisiccedilatildeo de conhecimentos e habilidades e a formaccedilatildeo de atitudes e valores IV - o fortalecimento dos viacutenculos de famiacutelia dos laccedilos de solidariedade humana e de toleracircncia reciacuteproca em que se assenta a vida social (BRASIL 2015 p 4)

Portanto antes da lei nordm 112742006 as crianccedilas de seis anos pertenciam agrave

educaccedilatildeo infantil mas atualmente devem estar matriculadas no primeiro ano do

Ensino Fundamental Essa alteraccedilatildeo provocou e ainda provoca uma seacuterie de

indagaccedilotildees e posicionamentos tanto contraacuterios como favoraacuteveis ao Ensino de Nove

Anos

Segundo Arelaro etal (2011) para o Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) a

obrigatoriedade do ensino fundamental a partir dos seis anos de idade traz a garantia

do acesso principalmente para as crianccedilas oriundas da classe menos favorecida

economicamente Verificou-se por meio de pesquisas que as crianccedilas de 6 anos das

classes meacutedia e alta jaacute estavam matriculadas em escolas e que seria necessaacuterio incluir

as classes desfavorecidas Dentre os fatores de exclusatildeo escolar estava a falta de

vagas na educaccedilatildeo infantil puacuteblica diante da constataccedilatildeo dessa realidade o ensino

fundamental de nove anos assegurariao aumento de matriacuteculas nas escolas

brasileiras eo cumprimento do direito das crianccedilas agrave educaccedilatildeo

A legislaccedilatildeo e os documentos norteadores da implantaccedilatildeo da politica do ensino

fundamental de nove anos corroboram com esta visatildeo

[] a ampliaccedilatildeo do ensino fundamental para nove anos que significa bem mais que a garantia de mais um ano de escolaridade obrigatoacuteria eacute uma oportunidade histoacuterica de a crianccedila de seis anos pertencente agraves classes populares ser introduzida a conhecimentos que foram fruto de um processo soacutecio-histoacuterico de construccedilatildeo coletiva (BRASIL 2007 p 61-62)

Discurso natildeo condizente com a Constituiccedilatildeo Federal no art 208 assegura que

eacute dever do Estado e direito das crianccedilas e das famiacutelias a matriacutecula na educaccedilatildeo

infantil portanto a crianccedila com seis anos de idade tem direito agrave educaccedilatildeo infantil na

preacute-escola Para Arelaro et al (2011) o reconhecimento por parte do governo da natildeo

oferta de vagas suficientes para atender a demanda desta etapa da educaccedilatildeo baacutesica

serviria para intervir com apoio teacutecnico-financeiro junto aos municiacutepios para o

cumprimento de sua responsabilidade constitucional ldquoNo entanto a opccedilatildeo foi por uma

poliacutetica nacional de novo loacutecus de estudo dessa crianccedila uma transferecircncia de etapa

107

de ensino que significou uma mudanccedila radical de diversos aspectos no atendimentordquo

(p 5)

Para Angotti (2014) o ensino Fundamental de Nove Anos vai de encontro aos

avanccedilos conseguidos legalmente em relaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo infantil demonstrando em

seus estudos que a inclusatildeo da crianccedila aos seis anos de idade no ensino

fundamental de certa forma contrapotildee-se agraves conquistas da Educaccedilatildeo Infantil

ocorridas lentamente ao longo de deacutecadas

Essa mudanccedila teve como principal consequecircncia a inclusatildeo das crianccedilas de 6

anos na faixa da educaccedilatildeo considerada obrigatoacuteria diminuindo as matriacuteculas no

uacuteltimo ano da preacute-escola e engrossando aquelas nas classes iniciais afirma Campos

(2012) Segundo a autora natildeo aconteceu a transiccedilatildeo que eacute importante do ponto de

vista pedagoacutegico e outros aspectos dentre os quais a preparaccedilatildeo dos professores em

serviccedilo para trabalhar com os alunos mais novos a explicaccedilatildeo aos pais referente aos

motivos dessa mudanccedila a adaptaccedilatildeo de preacutedios equipamentos mobiliaacuterios e

materiais escolares Diante de todas essas necessidades que natildeo foram levadas em

consideraccedilatildeo o ensino fundamental de nove anos apresenta problemas natildeo

solucionados ateacute hoje ldquoTalvez um dos mais seacuterios seja a antecipaccedilatildeo da repetecircncia

para nuacutemero expressivo de alunos do primeiro ano pois os curriacuteculos natildeo foram

revistos de forma generalizada e muitas redes de ensino natildeo adotam o sistema de

ciclosrdquo (CAMPOS 202 p 11) Consequentemente escola de nove anos tem a

obrigaccedilatildeo de ser para os educandos um espaccedilo de aprendizagem e natildeo a

antecipaccedilatildeo de experiecircncias de fracasso

Kramer (2006)por seu turno considera uma conquista a inclusatildeo das crianccedilas

de 6 anos no ensino fundamental para a autora eacute a garantia do ingresso de todas

elas na escola fato que natildeo acontecia anteriormente haja vista que a educaccedilatildeo

infantil natildeo atendia agrave demanda da clientela dos municiacutepios e com a inclusatildeo no

ensino fundamental torna-se direito puacuteblico subjetivo Para o sucesso da crianccedila

nessa nova etapa da educaccedilatildeo baacutesica faz-se necessaacuterio

[] que o planejamento e o acompanhamento pelos adultos que atuam na educaccedilatildeo infantil e no ensino fundamental devem levar em conta a singularidade das accedilotildees infantis e o direito agrave brincadeira agrave produccedilatildeo cultural na educaccedilatildeo infantil e no ensino fundamental (KRAMER 2006 p 805)

Nesta perspectiva o diaacutelogo entre essas duas etapas da educaccedilatildeo baacutesica eacute

fundamental para o desenvolvimento infantil mas precisa ir aleacutem da escola

abarcando a dimensatildeo poliacutetica visando agrave construccedilatildeo de curriacuteculos e propostas

108

pedagoacutegicas que possam atender agraves suas especificidades Nesse sentido Miranda

(2010) acrescenta que o ensino fundamental de nove anos possibilita um tempo maior

para a aprendizagem mas para isso faz-se necessaacuterio repensaro preparo da equipe

pedagoacutegica e a formaccedilatildeo continuada dos professores

Quanto agrave oferta desta etapa da educaccedilatildeo baacutesica no municiacutepio de Afuaacute os

dados abaixo retratam a saiacuteda paulatina do Estado queculminou com a

municipalizaccedilatildeo que de acordo com a tabela 3 intensificou-se a partir de 1998 Em

vez de promover auniversalizaccedilatildeo do ensino atraveacutes de accedilotildees de cooperaccedilatildeo e

colaboraccedilatildeoentre os respectivos sistemas o que eacute permitido pela nova LDB optou-

sepor transferir para o Municiacutepioas obrigaccedilotildees que originariamente foram do

EstadoAfuaacute que ateacute 1998 atendia somente aos alunos da educaccedilatildeo infantil e dos

anos iniciais do ensino fundamentalassumiu a partir de 2000 todo o segmento do

ensino fundamental

Tabela 06 ndash Estabelecimentos de ensino fundamental por dependecircncia administrativa

ANOS

ESTABELECIMENTOS

Estadual Municipal Particular Total

1996 17 136 - 153

1997 17 115 1 133

1998 15 158 1 174

1999 13 192 1 206

2000 - 197 1 198

Fonte MECINEPSEDUC 2000

Na aacuterea urbana foram matriculados em 2016 2765 alunos do 1ordm ao 9ordm ano do

ensino fundamental nas quatro escolas existentes na cidade desse total somente uma

escola atende duas turmas de Educaccedilatildeo de Jovens e Adultos (EJA) uma com 10 (1ordf

etapa) e outra com 23 (2ordf etapa) alunos A justificativa dos gestores para a natildeo oferta

da EJA estaacute na ausecircncia de alunos ou seja de clientela para a referida modalidade

da educaccedilatildeo baacutesica Segundo o IBGE o iacutendice de analfabetismo da populaccedilatildeo acima

de 15 anos no referido municiacutepio foi de 208 em 2014 De acordo com a Pesquisa

Nacional por Amostra de Domiciacutelios a taxa de analfabetismo entre brasileiros com 15 anos

ou mais em 2014 foi estimada em 83 (IBGE 2014) Os dados da anaacutelise situacional do

PME 2015-2025 indicam que a escolaridade meacutedia da populaccedilatildeo da aacuterea urbana de 18 a

29 anos eacute de 48 e da rural na mesma faixa etaacuteria eacute de 36 Portanto existe uma demanda

109

de jovens e adultos aleacutem de que o ensino fundamental eacute direito puacuteblico subjetivo inclusive

para aqueles que natildeo tiveram acesso na idade proacutepria (BRASIL 2016) A ausecircncia do

Estado e do Municiacutepio deixa a populaccedilatildeo agrave margem dos direitos legalmente garantidos no

art 37 paraacutegrafo 1ordm da nova LDB

Os sistemas de ensino asseguraratildeo gratuitamente aos jovens e aos adultos que natildeo puderam efetuar os estudos na idade regular oportunidades educacionais apropriadas consideradas as caracteriacutesticas do alunado seus interesses condiccedilotildees de vida e de trabalho mediante cursos e exames (BRASIL 2016 p 4)

A diminuiccedilatildeo das matriacuteculas e as altas taxas de evasatildeo na EJA requerem por parte

do poder puacuteblico accedilotildees voltadas para o desenvolvimento de programas mais eficazes

para esta clientela Segundo Sanches (2014 p 78) Os programas de Educaccedilatildeo de

Jovens e Adultos estatildeo sofrendo queda de matriacuteculas e natildeo haacute como mudar a realidade

do analfabetismo sem programas especiacuteficos para esta faixa etaacuteriaTais programas

deveratildeo estar baseados em propostas pedagoacutegicas que levem em consideraccedilatildeo as

caracteriacutesticas do alunado seus interesses condiccedilotildees de vida e de trabalho desta

forma responderatildeo agrave realidade dessa populaccedilatildeo

Consta no PME 2015-2025 do municiacutepio que a meta seraacute o atendimento de toda

demanda do ensino fundamental ldquoUniversalizar o Ensino Fundamental de 9 (nove)

anos para toda a populaccedilatildeo de 6 (seis) a 14 (quatorze) anos e garantir que pelo menos

50 (cinquenta) dos alunos concluam essa etapa na idade recomendadardquo (PME

2015 p 4)

No municiacutepio eacute elevado o iacutendice de alunos com distorccedilatildeo idade-seacuterie que

ocorre quando a diferenccedila entre a idade do aluno e a idade prevista para a seacuterie eacute

de dois anos ou mais

Tabela 07 - Distorccedilatildeo idadeseacuterie no ensino fundamental

ENSINO FUNDAMENTAL NUMERO DE ALUNOS DISTORCcedilAtildeO IDADE

SEacuteRIE

Anos Iniciais 8206

449

Anos Finais 4279

607

Fonte Plano Municipal de Educaccedilatildeo do municiacutepio de Afuaacute 2015-2025

Nos anos iniciais do ensino fundamental a distorccedilatildeo idade-seacuterie equivale a quase

metade dos alunos matriculados enquanto que nos finais equivale a mais da metade dos

alunos As pesquisas retratam que os principais motivos tanto da evasatildeo como da

110

distorccedilatildeo idade-seacuterie nas aacutereas rurais ribeirinhas estatildeo relacionados ao trabalho de

extraccedilatildeo de madeira corte de palmito coleta do accedilaiacute pesca roccedila entre outras

atividades econocircmicas (HAGE 2013)

No tocante ao aproveitamento escolar a tabela a seguir apresenta os dados do

desempenho nas escolas da aacuterea urbana no ano de 2015

Tabela 08 - Taxa de rendimento escolar no ensino fundamental em 2015 ndash aacuterea urbana

Nordm DE ALUNOS APROVADOS REPROVADOS EVADIDOS

2964 2239 440 285

Fonte Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo de Afuaacute 2016

Alguns fatores satildeo responsaacuteveis pelo aumento do desempenhodos alunos das

escolas situadas na aacuterea urbana Entre eles estatildeo aestabilidade dos professores que

a partir dos concursos puacuteblicos realizados passaram a fazer parte do quadro de

servidores efetivos doMuniciacutepio assim sendo natildeo haacute docentes do contrato

administrativoatuando nas escolas da cidade Com a estabilidade as questotildees

deinterferecircncias poliacutetico-partidaacuterias ficaram mais fragilizadas e oprofessor mais livre

para desenvolver o seu trabalho aumentando a suapermanecircncia em uma

determinada escola

Outro fator importante eacute a quantidade de alunos por sala de aulaque varia de

30 a 35 As escolas satildeo todas em alvenaria possuem nos seusquadros de recursos

humanos 70 dos docentes com graduaccedilatildeo diretor serventes pessoal de apoio

administrativo secretaacuterio escolar supervisor e orientador educacional Mesmo com

os fatores acima listados ainda eacuteexpressivo o iacutendice de evasatildeo e reprovaccedilatildeo escolar

Dentre as escolas da aacuterea urbana somente a uacutenica situada nobairro perifeacuterico

o Capimarinho natildeo possui um espaccedilo fiacutesico para abiblioteca ficando os livros

distribuiacutedos no laboratoacuterio de informaacutetica que tambeacutem natildeo funciona devido agrave rede

eleacutetrica que natildeo eacute adequada para comportar a carga de energia necessaacuteria para o

funcionamento das maacutequinas

Fotografia 13ndashLaboratoacuterio de Informaacutetica da EMEF Frei Faustino Lagarda

111

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

O laboratoacuterio de informaacutetica serve como depoacutesito para guardar livros e demais

materiais aleacutem de espaccedilo para aulas de muacutesica Na fotografia o professor estaacute

escolhendo os livros que estatildeo na estante acima da bancada dos computadorespara

trabalhar com seus alunos na sala de aula Os computadores jaacute estatildeo haacute mais de

cinco anos na escola e nunca foram utilizados por alunos e professores

O bairro Capimarinho como afirmado anteriormente surgiude invasotildees e eacute

habitado por famiacutelias pobres muitas oriundas das aacutereasrurais-ribeirinhas e a uacutenica

instituiccedilatildeo de ensino ali localizada natildeo tem aestrutura fiacutesica que as outras trecircs situadas

no bairro central possuemcomo laboratoacuterio de informaacutetica sala de leitura biblioteca

e sala deviacutedeo Mas o diferencial natildeo estaacute somente na escola da periferia as escolas

rurais ribeirinhas tambeacutem natildeo dispotildeem de estrutura fiacutesica e derecursos humanos

necessaacuterios

As escolas de ensino fundamental ribeirinhas totalizam 206 Amaioria tem

preacutedio proacuteprio construiacutedo pelaprefeitura com uma ou mais salas de aula banheiro

secretaria despensae local para o preparo da merenda e mais 35 anexos (salas de

aula quefuncionam em barracotildees igrejas centros comunitaacuterios casa doprofessor ou

do representante da comunidade) Na realidade os anexossatildeo escolas pois natildeo haacute

um contato intensivo com a gestatildeo da escola agravequal satildeo anexados o professor fica

112

isolado e assume a gestatildeoadministrativa e pedagoacutegica sozinho aleacutem de lecionar para

as turmas deeducaccedilatildeo infantil e os anos iniciais do ensino fundamental de

formamultisseriada

Fotografia 14 -Escola ribeirinha que funciona como anexo

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A casa na imagemeacute a residecircncia do representante dacomunidade e a sala foi

cedida para a escola funcionar O professorreside com a famiacutelia do proprietaacuterio pois

assim como natildeo existe preacutedioescolar tambeacutem natildeo haacute alojamento

Fotografia 15 - Sala de aula de uma escola ribeirinha que funciona como anexo

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A imagem acima retrata a sala de aula que funciona na residecircncia cedida pelo

representante da comunidade Observe que natildeo haacute cartazes pregados na parede

113

issoocorre porque as crianccedilas filhas do proprietaacuterio os rasgam e arrancam Antes de

pregaacute-los o professor tem que pedirautorizaccedilatildeo ao dono da casa As cadeiras no

teacutermino da aula devem serarrumadas em ciacuterculo desta forma os moradores teratildeo

espaccedilo paracircular e atar as redes para dormir agrave noite

As aulas neste ambiente sofrem vaacuterias interferecircncias passagemde visitas

pela sala choro de crianccedilas barulho de muacutesicas e de programasde raacutedio conflitos

entre os moradores da casa entre outros O professornatildeo tem autonomia para discutir

os assuntos referentes agraves diversasdisciplinas pois precisa ter cuidado com o que fala

aos alunos quandoo(a) dono(a) natildeo concorda com o que estaacute sendo ensinado

acabainterferindo na aula emitindo opiniatildeo contraacuteria

Nas escolas ribeirinhas do Regional investigado haacute escassez de recursos

didaacuteticos a merenda escolar natildeo eacute suficiente paraatender a demanda durante todo o

mecircs natildeo existe biblioteca nemalojamento mesmo nas que tecircm preacutedio proacuteprio Isto

leva os professores amorarem na sala de aula ou com famiacutelias que gentilmente os

acolhem pois se assim natildeo fizerem acabam ficando sem professor e os filhos

semestudar

3 PERCURSO METODOLOacuteGICO

31 TIPO E LOCAL DA PESQUISA

114

O problema e os objetivos levaram-nos a desenvolver uma pesquisa baseada

na abordagem qualitativa pois necessitou de uma imersatildeo no contexto no qual se

desenvolve a praacutetica docente Bogdan e Biklen (1994 p 48) afirmam que os

investigadores qualitativos ldquofrequentam os locais de estudo porque se preocupam com

o contexto Entendem que as accedilotildees podem ser melhor compreendidas quando

observadas no seu ambiente natural de ocorrecircnciardquo O ambiente natural onde ocorre

a praacutetica docente eacute a sala de aula concebida como os vaacuterios espaccedilos utilizados para

ensinar e aprender neste ambiente eacute possiacutevel interpretar a realidade dos sujeitos

investigados atraveacutes da descriccedilatildeo de dados que vatildeo aleacutem das falas e dos espaccedilos

ocupados pelos sujeitos que satildeo situados em um contexto histoacuterico social

econocircmico poliacutetico e cultural Todos os dados desse contexto satildeo importantes

A abordagem da investigaccedilatildeo qualitativa exige que o mundo seja examinado com a ideacuteia de que nada eacute trivial que tudo tem potencial para constituir uma pista que nos permita estabelecer uma compreensatildeo mais esclarecedora do nosso objecto de estudo (BOGDAN BIKLEN 1994 p 49)

Aleacutem do ambiente natural explicam os autores que a pesquisa qualitativa

requer o contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente e a situaccedilatildeo que

estaacute sendo investigada o que pressupotildee um tempo significativo a ser passado na

escola aplicando as teacutecnicas para a produccedilatildeo dos dados haja vista que ldquoo processo

de conduccedilatildeo de investigaccedilatildeo qualitativa reflecte uma espeacutecie de diaacutelogo entre os

investigadores e os respectivos sujeitos dados estes natildeo serem abordados por

aqueles de uma forma neutrardquo (BOGDAN BIKLEN 1994 p 51)

Sobre a neutralidade para Chizzotti (2003 p 79) a abordagem qualitativa

parte do princiacutepio de que

[] haacute uma relaccedilatildeo dinacircmica entre o mundo real e o sujeito uma interdependecircncia viva entre sujeito e objeto um vinculo indissociaacutevel entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito O conhecimento natildeo se reduz a um rol de dados isolados [] o sujeito observador eacute parte integrante do processo de conhecimento e interpreta os fenocircmenos atribuindo-lhes um significado O objeto natildeo eacute um dado inerte e neutro estaacute possuiacutedo de significados e relaccedilotildees que sujeitos concretos criam em suas relaccedilotildees

Portanto fica evidente que nesta abordagem o pesquisador exerce um papel

fundamental suas concepccedilotildees valores e representaccedilotildees estaratildeo presentes nos

significados que atribuiraacute aos fenocircmenos analisados

Dentre os pressupostos epistemoloacutegicos que embasam a abordagem

qualitativa optamos pela perspectiva dialeacutetica que segundo Chizzotti (2003 p 81)

[] valoriza a contradiccedilatildeo dinacircmica do fato observado e a atividade criadora do sujeito que observa as oposiccedilotildees contraditoacuterias entre o todo e a parte e os

115

viacutenculos do saber e do agir com a vida social dos homens O pesquisador eacute um ativo descobridor do significado das accedilotildees e das relaccedilotildees que se ocultam nas estruturas sociais

Trivintildeos (2007 p 129) apresenta algumas caracteriacutesticas desta perspectiva

que ele chama de histoacuterico-estrutural-dialeacutetica Satildeo elas

[] parte da descriccedilatildeo que intenta captar natildeo soacute a aparecircncia do fenocircmeno como tambeacutem sua essecircncia Busca poreacutem a causa da existecircncia dele procurando explicar sua origem suas relaccedilotildees suas mudanccedilas [] aprecia o desenvolvimento do fenocircmeno natildeo soacute em sua visatildeo atual que marca apenas o iniacutecio da anaacutelise como tambeacutem penetra em sua estrutura iacutentima latente inclusive natildeo visiacutevel ao observaacutevel para descobrir suas relaccedilotildees e avanccedilar no conhecimento de seus aspectos evolutivos tratando de identificar as forccedilas decisivas responsaacuteveis por seu desenrolar [] o fenocircmeno tem sua proacutepria realidade fora da consciecircncia Ele eacute real concreto e como tal eacute estudado

Dentre os tipos de pesquisa qualitativa optamos pela etnograacutefica por

possibilitar investigar de forma mais abrangente os aspectos relacionados agrave cultura

dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute dentre os quais os valores os haacutebitos as crenccedilas

linguagens e significados que estatildeo diretamente ligados agrave produccedilatildeo do saber popular

que norteia as praacuteticas dos povos das aacuteguas A pesquisa etnograacutefica segundo Andreacute

(2013 p 25) envolve

[] um trabalho de campo O pesquisador aproxima-se de pessoas situaccedilotildees locais eventos mantendo com eles um contato direto e prolongado Como se daacute esse contato Primeiro natildeo haacute pretensatildeo de mudar o ambiente introduzindo modificaccedilotildees que seratildeo experimentalmente controladas como na pesquisa experimental Os eventos as pessoas as situaccedilotildees satildeo observados em sua manifestaccedilatildeo natural

Desenvolvemos o trabalho de campo na ilha do Accedilaiacute que pertence ao

municiacutepio de Afuaacute Passamos quatro meses imersos nas cinco comunidades

ribeirinhas que formam o arquipeacutelago nesse periacuteodo participamos das atividades

produtivas culturais religiosas e sociais Por meio dos instrumentos para coleta de

dados e da convivecircncia com os moradores da ilha procuramos retratar a maneira

como os sujeitos vivem e convivem assim como as suas experiecircncias e o mundo que

ascerca Na etnografia

Os dados satildeo mediados pelo instrumento humano o pesquisador O fato de ser uma pessoa o potildee numa posiccedilatildeo bem diferente de outros tipos deinstrumentos porque permite que ele responda ativamente agraves circunstacircncias que o cercam modificando teacutecnicas de coleta se necessaacuterio revendo as questotildees que orientam a pesquisa localizando novos sujeitos revendo toda a metodologia ainda durante o desenrolar do trabalho (ANDRE 2013 p 25)

116

Foi o que aconteceu no decorrer desta investigaccedilatildeo modificamos algumas

teacutecnicas de coleta de dados pois inicialmente pretendiacuteamos aplicar o formulaacuterio mas

no decorrer da pesquisa percebemos que este instrumento natildeo atenderia aos

objetivos propostos bem como apoacutes a execuccedilatildeo de algumas entrevistas

percebemos a necessidade de incluir ou retirar questotildees do roteiro ou ainda tornaacute-las

mais claras e objetivas para a compreensatildeo dos entrevistados

Realizamos o trabalho de campo nas cinco comunidades ribeirinhas e nas

escolas localizadas nessas comunidades que pertencem ao Regional Madeira

descritas na tabela abaixo

Tabela 09 ndash Escolas que compotildeem o Regional Madeira com o nuacutemero de alunos no ano de 201627

Escola

Ed

Infantil

Ensino Fundamental Nordm de

Alunos 1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm 7ordm 8ordm 9ordm

A 10 12 10 13 9 7 12 11 19 12 140

B 14 15 10 10 9 8 8 7 7 6 94

C 04 12 9 8 7 7 6 5 - - 58

D 9 10 9 8 7 8 8 7 - - 66

E 6 10 8 7 5 3 - - - - 39

FONTE Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo do Municiacutepio de Afuaacute ndash SEMED2016

De acordo com a tabela todas as escolas oferecem a educaccedilatildeo infantil e as

seacuteries iniciais do ensino fundamental Os dados acima tambeacutem mostram que somente

duas oferecem todos os anos do ensino fundamental as escolas A e B A primeira eacute

a polo na qual reside o diretor que eacute responsaacutevel pela gestatildeo administrativa e

pedagoacutegica das outras escolas pertencentes ao Regional A segunda eacute a mais

distante do Regional motivo pelo qual atende aos alunos das seacuteries finais do ensino

fundamental do seu entorno Quanto agrave infraestrutura a escola polo eacute a uacutenica com o

preacutedio totalmente em alvenaria e com as seguintes dependecircncias duas salas de aula

secretaria escolar cozinha e depoacutesito O quadro de funcionaacuterios natildeo docentes eacute

composto por uma secretaacuteria escolar duas serventes e uma merendeira todas

residentes na comunidade

Fotografia 16 - Escola Polo

27Para garantir o anonimato das escolas que compotildeem o Regional Madeira utilizamos letras para identificaacute-las

117

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Em relaccedilatildeo agraves outras escolas a B estaacute situada agrave margem do rio Caetano com

quatro salas de aula cozinha e depoacutesito Natildeo haacute alojamento para os professores que

dormem nas salas de aula agrave noite e guardam seus pertences (roupas sapatos e

produtos de higiene pessoal entre outros) no depoacutesito O quadro de profissionais natildeo

docentes eacute formado por uma servente e uma merendeira

Fotografia 17 - Preacutedio da Escola B

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Os preacutedios das escolas C e D seguem o mesmo padratildeo da fotografia acima

O preacutedio da escola E natildeo apresentava condiccedilotildees de funcionamento no periacuteodo

em que fizemos a pesquisa de campo motivo pelo qual os alunos estavam tendo aula

118

na casa do representante da comunidade desde o mecircs de fevereiro do corrente ano

o que gerou vaacuterios problemas em relaccedilatildeo agrave gestatildeo pedagoacutegica e ao espaccedilo escolar

tais como interferecircncias das pessoas da famiacutelia que passavam constantemente pela

sala tirando a atenccedilatildeo dos alunos barulho com choro das crianccedilas da casa briga

entre os membros da famiacutelia do dono do espaccedilo entre outros Fotografia 18 - Preacutedio da Escola E

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Na tabela abaixo descrevemos cada instituiccedilatildeo de ensino com os respectivos

niacuteveis de atendimento da educaccedilatildeo baacutesica

Tabela 10 ndash Distribuiccedilatildeo das turmas da Educaccedilatildeo Infantil e anos iniciais do ensino fundamental por professor

Escolas Ed Infantil Ensino Fundamental Nordm de Professores

A 1ordm e 2ordm periacuteodos 1ordm e 2ordm ano 01

3ordm4ordm e 5ordm ano 01

B 1ordm e 2ordm periacuteodos 1ordm e 2ordm ano 01

3ordm4ordm e 5ordm ano 01

C 2ordm periacuteodo 1ordm e 2ordm ano 01

3ordm4ordm e 5ordm ano 01

D 1ordm 2ordm periacuteodos 1ordm e 2ordm ano 01

3ordm4ordm e 5ordm ano 01

E 2ordm periacuteodo 1ordm 2ordm 3ordm 4 e 5ordm ano 01

FONTE Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo do Municiacutepio de Afuaacute ndash SEMED2016

119

Ao analisar a tabela acima constatamos que todas as escolas do regional

possuem turmas multisseriadas28 do preacute-escolar ao 5ordm ano motivo pelo qual

realizamos a pesquisa de campo em todas elas bem como fizemos observaccedilatildeo da

praacutetica docente e as entrevistas semiestruturadas

32 PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS PARA A COLETA DE DADOS NA

PESQUISA

As pesquisas qualitativas de acordo com Alves-Mazzotti (2002 p 163) satildeo

ldquomultimetodoloacutegicas isto eacute usam uma grande variedade de procedimentos e

instrumentos para coleta de dadosrdquo Assim sendo para a produccedilatildeo dos dados foram

realizadas entrevistas semiestruturadas a observaccedilatildeo analiacutetica e participante29 e a

fotografia

A entrevista semiestruturada eacute concebida por Laville e Dione (2000) como uma

seacuterie de perguntas feitas verbalmente em uma ordem prevista mas na qual o

pesquisador pode acrescentar perguntas de esclarecimento agraves questotildees

fundamentais Tendo como referecircncia o problema de pesquisa e os objetivos

propostos elaboramos o roteiro das entrevistas

Realizamos inicialmente um teste piloto com quatro professores objetivando

testar o referido roteiro A partir desta avaliaccedilatildeo reorganizamos o roteiro das

entrevistas Tambeacutem efetivamos um teste piloto do roteiro da entrevista para os

moradores Aplicamos o teste para trecircs moradores e em seguida fizemos a

reformulaccedilatildeo das perguntas para tornaacute-las mais compreensiacuteveis por parte dos

sujeitos

As entrevistas foram gravadas mediante a autorizaccedilatildeo dos entrevistados ldquoa

gravaccedilatildeo direta tem a vantagem de registrar todas as expressotildees orais

imediatamente deixando o entrevistador livre para prestar toda atenccedilatildeo ao

entrevistadordquo (LUDKE ANDREacute 2006 p 37) As entrevistas com os professores foram

realizadas em diferentes momentos antes e apoacutes as aulas e em diferentes espaccedilos

como na casa do professorprofessora e na escola (sala de aula) Ressaltamos este

detalhe para enfatizar a disponibilidade dos sujeitos em colaborar com nosso estudo

Entrevistamos 9 (nove) professores que trabalham com a educaccedilatildeo infantil e

os anos iniciais do ensino fundamental sendo 6 (seis) mulheres e 3 (trecircs) homens

28Consideramos neste estudo como classes multisseriadas as que satildeo formadas por mais de um ano do ensino fundamental na qual somente um docente leciona no mesmo espaccedilo e tempo 29 Ver roteiro em anexo

120

com idade entre 22 a 45 anos O tempo de experiecircncia docente com classes

multisseriadas variou em torno de 6 a 25 anos Adotamos como criteacuterio para a seleccedilatildeo

dos sujeitos somente a atuaccedilatildeo com turmas da educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do

ensino fundamental organizadas de forma multisseriada nas escolas ribeirinhas

pertencentes ao Regional

Quanto aos moradores sujeitos da pesquisa realizamos as entrevistas em

diversos espaccedilos como na residecircncia do entrevistado e no desenvolvimento das

praacuteticas produtivas Para realizar um estudo a partir das memoacuterias dos moradores da

ilha do Accedilaiacute em relaccedilatildeo aos saberes presentes no discurso e nas praacuteticas cotidianas

dos ribeirinhos entrevistamos dez moradores das comunidades que compotildeem a ilha

do Accedilaiacute Os criteacuterios para a seleccedilatildeo foram morador mais antigo na comunidade

participante de praacuteticas produtivas (pesca caccedila e colheita do accedilaiacute) idosos e

curandeiros (benzedores e parteiras) e aluno regularmente matriculado na escola no

ano de 2016 Todos os moradores entrevistados participam das praacuteticas produtivas e

satildeo identificados na pesquisa por pseudocircnimos para preservar o anonimato

Aleacutem das entrevistas fizemos a observaccedilatildeo participante que eacute definida por

Minayo ( 2004 p 62) como

[] um processo pelo qual se manteacutem a presenccedila do observador numa situaccedilatildeo social com a finalidade de realizar uma investigaccedilatildeo cientiacutefica na qual o observador estaacute face a face com os observados Ao participar da vida deles no seu cenaacuterio cultural colhe dados e se torna parte do contexto sob observaccedilatildeo ao mesmo tempo modificando e sendo modificado por este

Para a realizaccedilatildeo da observaccedilatildeo participante nas comunidades ribeirinhas que

formam a ilha a minha inserccedilatildeo deu-se de forma gradual Inicialmente apresentei-me

como pesquisador explicando os motivos e os objetivos da pesquisa Em seguida

para a aproximaccedilatildeo com os ribeirinhos envolvi-me nas atividades cotidianas tais

como apanhar accedilaiacute pescar caccedilar plantar na roccedila ajudar na confecccedilatildeo de paneiros

e matapi bem como na venda do accedilaiacute na rampa da Santa Inecircs30 remar para os

pescadores quando saiam para fachiar31 agrave noite jogar futebol dominoacute baralho entre

outras

Como assinala Trivintildeos (2007) a observaccedilatildeo permite que o pesquisador

chegue mais perto da perspectiva dos sujeitos agrave medida queo observador

30Trapiche no qual os catraios que vem das ilhas do Marajoacute atracam para vender peixe camaratildeo

frutas verduras e principalmente accedilaiacute 31 Pescar a noite com a zagaia

121

acompanha in loco as experiecircncias diaacuterias dos sujeitos por tentar apreender a sua

visatildeo de mundo isto eacute o significado que eles atribuem agrave realidade que os cerca e agraves

suas proacuteprias accedilotildees

Alves-Mazzotti (2002 p 164) elenca as vantagens atribuiacutedas agrave observaccedilatildeo

enquanto teacutecnica para produccedilatildeo de dados

[] a) permite checar na praacutetica a sinceridade de certas respostas que agraves vezes satildeo dadas soacute para causar boa impressatildeo b) permite identificar comportamentos natildeo intencionais ou inconscientes e explorar toacutepicos que os informantes natildeo se sentem agrave vontade para discutir c) permite o registro do comportamento em seu contexto temporal-espacial

Em relaccedilatildeo aos professores realizamos a observaccedilatildeo analiacutetica da praacutetica

pedagoacutegica dos nove professores totalizando 100 da amostra As observaccedilotildees

foram realizadas no iniacutecio do mecircs de fevereiro ateacute o final do mecircs de maio do corrente

ano Passamos em meacutedia 20 dias em cada escola com 4 (quatro horas) diaacuterias na

sala de aula de cada professor realizando as observaccedilotildees Para preservar o

anonimato dos sujeitos optamos por identificaacute-los como Prof1 Prof2 Prof3 Prof4

Prof5 Prof6 Prof7 Prof8 e Prof9

Neste estudo partimos do princiacutepio de que a praacutetica pedagoacutegica docente se

desenvolve na escola que estaacute inserida em um contexto histoacuterico econocircmico social

poliacutetico e cultural e natildeo podemos estudaacute-la dissociada desse contexto (LUCKESI

2003)

Corroborando a afirmaccedilatildeo acima Andreacute (2003) apresenta trecircs dimensotildees que

necessitam ser consideradas quanto ao estudo da praacutetica escolar cotidiana entre elas

estaacute a institucional que envolve o contexto no qual esta praacutetica acontece ldquoA dimensatildeo

institucional age assim como um elo entre a praacutexis social mais ampla e aquilo que

ocorre no interior da escolardquo (ibidem p 43) Assim para compreender e analisar o

que ocorre no interior da escola os fatores externos a ela devem ser levados em

consideraccedilatildeo entre esses fatores estaacute no nosso estudo especiacutefico a realidade da

comunidade ribeirinha na qual ela estaacute localizada

A outra dimensatildeo eacute a instrucional ou pedagoacutegica que engloba as situaccedilotildees de

ensino e aprendizagem Este processo eacute dialoacutegico composto por dois polos de um

lado estaacute o professor que eacute educador e tambeacutem educando do outro lado estatildeo os

alunos que ao aprender tambeacutem ensinam portanto professor e alunos interagem

mediatizados pelo conhecimento Ao analisarmos as formas de mediaccedilatildeo que satildeo as

122

metodologias utilizadas para tornar o objeto cognosciacutevel faz-se necessaacuterio segundo

Andreacute (2003 p 43)

Considerar a situaccedilatildeo concreta dos alunos (processos cognitivos procedecircncia econocircmica linguagem imaginaacuterio) a situaccedilatildeo concreta do professor (condiccedilotildees de vida e de trabalho expectativas valores concepccedilotildees) e sua inter-relaccedilatildeo com o ambiente em que se processa o ensino (forccedilas institucionais estrutura administrativa rede de relaccedilotildees inter e extra-escolar)

A situaccedilatildeo concreta tanto do aluno como do professor32 estaacute ligada aos

aspectos sociais econocircmicos culturais e religiosos nos quais satildeo desenvolvidas as

relaccedilotildees de trabalho na comunidade ribeirinha A procedecircncia econocircmica (praacuteticas

produtivas) linguagem e imaginaacuterios (praacuteticas culturais) dos alunos soacute tecircm sentido a

partir do local onde satildeo desenvolvidas e vivenciadas

A terceira dimensatildeo proposta pela autora eacute a sociopoliacuteticocultural que ldquose

refere ao contexto sociopoliacutetico e cultural mais amplo ou seja aos determinantes

macroestruturais da praacutetica educativardquo (ibidem p 44) Portanto natildeo podemos isolar

a escola do contexto em que estaacute inserida

Utilizamos tambeacutem na pesquisa a fotografia como fonte de leitura e

interpretaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo onde vivem os sujeitos amazocircnidas

especificamente os que habitam agraves margens dos rios lagos e igarapeacutes de Afuaacute

Segundo Alves (2008 p 28)

A fotografia comunica por meio de mensagens natildeo verbais cujo signo constitutivo eacute a imagem Portanto sendo a produccedilatildeo da imagem um trabalho humano de comunicaccedilatildeo pauta-se enquanto tal em coacutedigos convencionalizados socialmente possuindo um caraacuteter conotativo que remete agraves formas de ser a agir do contexto no qual estatildeo inseridas como mensagens

Retratamos atraveacutes da imagem fotograacutefica os aspectos histoacutericos

econocircmicos e educacionais do municiacutepio de Afuaacute bem como o modo de ser e de viver

dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute

33 CARACTERIZACcedilAtildeO DOS SUJEITOS DA PESQUISA

Na tabela abaixo apresentamos as caracteriacutesticas dos professores que fizeram

parte da pesquisa

Tabela 11 ndash Os professores sujeitos da pesquisa

32Todos os professores sujeitos desta pesquisa residem nas comunidades ribeirinhas

123

Professor

Anos do Ensino Fundamental que Lecionam

Experiecircncia com Classes

Multisseriadas

Formaccedilatildeo

Prof 1

3ordm 4ordm e 5ordm ano

6 anos

Licenciatura em Pedagogia com especializaccedilatildeo em Psicopedagogia Escolar

Prof 2 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano

15 anos Curso normal de niacutevel meacutedio e Licenciatura em Pedagogia

Prof 3 3ordm 4ordm e 5ordm ano 7 anos Licenciatura em Pedagogia com especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Inclusiva

Prof 4 3ordm 4ordm e 5ordm ano 10 anos Licenciatura em Pedagogia

Prof 5 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano

8 anos Licenciatura em Pedagogia

Prof 6 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano

25 anos Curso normal de niacutevel meacutedio e Licenciatura em Pedagogia

Prof 7 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano

9 anos Licenciatura em Pedagogia com Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Infantil

Prof 8 3ordm 4ordm e 5ordm ano 20 anos Curso normal de niacutevel meacutedio e Licenciatura em Pedagogia

Prof 9 preacute-escolar 1ordm 2ordm 3ordm 4ordm e 5ordm ano

11 anos Licenciatura em Pedagogia com Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Infantil

Somente os Prof 2 Prof 6 e o Prof 8 fizeram o curso normal de niacutevel meacutedio

ou seja o curso de formaccedilatildeo de professores Cursaram Pedagogia na Universidade

Federal do Amapaacute no periacuteodo de feacuterias (meses de janeiro e julho) por meio de um

convecircnio entre a UNIFAP e a Prefeitura de Afuaacute para a formaccedilatildeo do quadro da

SEMED Os referidos professores satildeo oriundos das comunidades nas quais

trabalham ou seja satildeo ribeirinhos Os outros docentes fizeram a formaccedilatildeo

pedagoacutegica na educaccedilatildeo superior em instituiccedilotildees privadas de ensino e satildeo oriundos

de outros lugares como Macapaacute Beleacutem e a sede do municiacutepio de Afuaacute

A seguir descrevemos as caracteriacutesticas dos moradores que entrevistamos

Tabela 12 ndash Os moradores sujeitos da pesquisa

Morador Caracteriacutesticas

Maria

Adolescente e aluna regularmente matriculada na escola A

124

Tiago Adolescente e aluno regularmente matriculado na escola C

Joseacute Idoso e um dos moradores mais antigos na comunidade do rio Santo Antocircnio

Joana Participante das atividades produtivas sociais religiosas e culturais na comunidade do rio Santo Antocircnio

Pedro

Idoso e um dos moradores mais antigos na comunidade do rio Caetano

Luzia Idosa e uma das moradoras mais antigas na comunidade do rio Caraacutes

Benedito Idoso e benzedor residente na ilha do amor proacuteximo da comunidade do rio Caraacutes (distante 10 minutos de catraio)

Antocircnia Idosa benzedeira e parteira residente na comunidade do rio Cajueiro

Francisca

Participante das atividades produtivas sociais religiosas e culturais na comunidade do rio Furo Seco

Raimundo

Participante das atividades produtivas sociais religiosas e culturais na comunidade do rio Furo Seco

34 TEacuteCNICA DE ANAacuteLISE DOS DADOS

Como teacutecnica para analisar os dados coletados nas entrevistas

semiestruturadas e tambeacutem nas observaccedilotildees realizadas utilizamos a anaacutelise de

conteuacutedo desenvolvida por Bardin (2004 p 41) que consiste em

Um conjunto de teacutecnicas de anaacutelise das comunicaccedilotildees visando obter por procedimentos sistemaacuteticos e objetivos de descriccedilatildeo do conteuacutedo das mensagens indicadores (quantitativos ou natildeo) que permitam a inferecircncia de conhecimentos relativos agraves condiccedilotildees de produccedilatildeorecepccedilatildeo (variaacuteveis inferidas) destas mensagens

Desta maneira a anaacutelise de conteuacutedo tem como base a comunicaccedilatildeo com a

utilizaccedilatildeo de preceitos para analisar o conteuacutedo das falas (entrevistas) e dos registros

de campo (observaccedilatildeo) para que posteriormente sejam feitas as inferecircncias como

afirma a referida autoraldquoO ato de inferir significa a realizaccedilatildeo de uma operaccedilatildeo loacutegica

pela qual se admite uma proposiccedilatildeo em virtude de sua ligaccedilatildeo com outras proposiccedilotildees

jaacute aceitas como verdadeirasrdquo (BARDIN 2004 p 39)

Pelas inferecircncias dialogamos com o referencial teoacuterico e os conteuacutedos das

mensagens oriundas das entrevistas e observaccedilotildees coletadas na pesquisa de campo

Para Trivintildeos (2007) a inferecircncia parte das informaccedilotildees que fornece o conteuacutedo da

mensagem e das premissas oriundas dos dados coletados na comunicaccedilatildeo o autor

ressalta as classificaccedilotildees dos conceitos a codificaccedilatildeo e a categorizaccedilatildeo como

procedimentos para se fazer uma anaacutelise clara de conteuacutedo

125

A codificaccedilatildeo segundo Franco (2006 p 34) ldquoeacute o processo atraveacutes do qual os

dados brutos satildeo sistematicamente transformados em categorias e que permitam

posteriormente a discussatildeo precisa das caracteriacutesticas relevantes do conteuacutedordquo E o

procedimento de categorizaccedilatildeo eacute ldquouma operaccedilatildeo de classificaccedilatildeo de elementos

constitutivos de um conjunto por diferenciaccedilatildeo e seguidamente por reagrupamento

segundo o gecircnerordquo (BARDIN 2004 p 117)

As categorias abrangem uma variedade de temas de acordo com as

aproximaccedilotildees entre si que por meio da anaacutelise expressam sentido e elaboraccedilotildees

voltados para os objetivos da pesquisa e podem ser classificadas em aprioriacutesticas ou

natildeo aprioriacutesticas As aprioriacutesticas satildeo preacute-definidas tendo como base o referencial

teoacuterico e a experiecircncia do investigador assim o pesquisadorfaz a classificaccedilatildeo das

unidades de anaacutelises dentro destas categorias e a partir daiacutedividi-las em

subcategorias As natildeo aprioriacutesticas emergem da anaacutelise dos dados coletados na

pesquisa de campo

A codificaccedilatildeo que pode ser feita com sinais ou outra espeacutecie de siacutembolos eacute

fundamental para a organizaccedilatildeo do material coletado para em seguida ser

classificado nas categorias e subcategorias Neste estudo codificamos as unidades

de anaacutelise temaacuteticas que satildeo recortes do texto das entrevistas e observaccedilotildees de

acordo com o problema e os objetivos da pesquisa assim como o referencial teoacuterico

adotado

A relevacircncia da rigorosidade eacute destacada por Bardin (2004) no uso da anaacutelise

de conteuacutedo para alcanccedilar os objetivos e responder o problema de pesquisa Portanto

com o objetivo de averiguar a significaccedilatildeo dos dados coletados a autora apresenta

as etapas de desenvolvimento da teacutecnica composta de 1) preacute-anaacutelise 2) exploraccedilatildeo

do material e 3) tratamento dos resultados inferecircncia e interpretaccedilatildeo

A preacute-anaacutelise consiste na leitura flutuante do corpus a ser analisado no nosso

caso as entrevistas transcritas e o diaacuterio de campo das observaccedilotildees Foi nesta fase

que organizamos e fizemos a leitura do material a ser investigado com a finalidade

de identificar os aspectos importantes para as outras fases que compotildeem a anaacutelise

ldquoNa leitura flutuante toma-se contato com os documentos a serem analisados

conhece-se o contexto e deixa-se fluir impressotildees e orientaccedilotildeesrdquo (BARDIN 2004 p

118)

126

Apoacutes a conclusatildeo da preacute-anaacutelise seguimos para a segunda faseque eacute a

exploraccedilatildeo do material Nesta fase eacute que realizamos a codificaccedilatildeo33 do material lido

por meio dos recortes dos textos em unidades de registros bem como a ordenaccedilatildeo

das informaccedilotildees em categorias temaacuteticas Os textos das entrevistas e observaccedilotildees

foram recortados em paraacutegrafos e frases para constituir as unidades de registros Em

seguida fizemosa categorizaccedilatildeo das categorias iniciaisque posteriormenteforam

aglutinadas de acordo com o temas comuns para dar origem as categorias

intermediaacuterias que tambeacutemforam aglutinadas em funccedilatildeo da ocorrecircncia dos temas

resultando nas categorias finais

Na terceira fase fizemos o tratamento dos resultados inferecircncia e

interpretaccedilatildeo na qual foram captados os conteuacutedos manifestos e latentes presentes

no material coletado e organizado nas categorias para se estabelecer o diaacutelogo com

o referencial teoacuterico adotado Franco (2006 p 45) destaca que ldquoeacute importante que os

resultados da anaacutelise de conteuacutedo devam refletir os objetivos da pesquisa e ter como

apoio indiacutecios manifestos no conteuacutedo das comunicaccedilotildeesrdquo

341 A emergecircncia das categorias de anaacutelise da pesquisa

Neste estudo partimos das seguintes categorias de anaacutelise aprioriacutesticas

Tabela 13 ndash Categorias aprioriacutesticas

Categoria Conceito Norteador

Saber Popular

Saberes oriundos da experiecircncia

existencial desenvolvida na relaccedilatildeo

dialoacutegica entre os ribeirinhos e que balizam

as suas atividades diaacuterias para a garantia

da sobrevivecircncia bem como a leitura de

mundo

Diaacutelogo

Numa perspectiva freiriana como o

momento de encontro com vistas agrave reflexatildeo

da realidade na qual vivemos para poder

transformaacute-la ldquoeacute este encontro dos

homens mediatizados pelo mundo para

33A codificaccedilatildeo para o agrupamento em categorias ou subcategorias foi feita utilizando o sistema

alfanumeacuterico

127

pronunciaacute-lo natildeo se esgotando portanto

na relaccedilatildeo eu-turdquo (FREIRE 2014 p 109)

Apoacutes a anaacutelise dos dados a categoria Saber Popular foi desmembrada em trecircs

subcategorias de acordo com a tabela abaixo

Tabela 14 ndash Categorias aprioriacutesticas

Categoria Subcategoria Conceito Norteador

Saber Popular

Saberes das Aacuteguas

Saberes oriundos do universo

cultural criadosrecriados no

cotidiano dos ribeirinhos que tecircm

como referecircncia as aacuteguas dos rios

igarapeacutes e furos da Ilha

Saberes da Terra e da Mata

Saberes oriundos do universo

cultural criadosrecriados no

cotidiano dos ribeirinhos que tecircm

como referecircncia a terra e a mata da

Ilha

Saberes do Accedilaiacute

Saberes oriundos do universo

cultural criadosrecriados no

cotidiano dos ribeirinhos que tecircm

como referecircncia o accedilaiacute

Na anaacutelise das entrevistas e das observaccedilotildees foram realizadas a categorizaccedilatildeo

das categorias iniciais e intermediaacuterias ateacute chegarmos agraves finais descritas na tabela

abaixo

Tabela 15 ndash Categorias natildeo aprioriacutesticas

Categoria Conceito Norteador

Praacuteticas Colonizadoras

A perspectiva colonizadora caracteriza-se pela

imposiccedilatildeo do conhecimento escolar e a negaccedilatildeo

do saber popular configurando a colonialidade do

saber pois eacute no vieacutes epistemoloacutegico que o

colonialismo assume maior centralidade com

uma perspectiva redutora do conhecimento

128

Praacuteticas Descolonizadoras

As praacuteticas descolonizadoras reconhecem que nas

comunidades ribeirinhas existem manifestaccedilotildees

culturais e epistemoloacutegicas proacuteprias entatildeo essas

praacuteticas procuram dar visibilidade a essas

manifestaccedilotildees

No capiacutetulo anterior fizemos a discussatildeo do referencial teoacuterico que baliza as

inferecircncias e interpretaccedilotildees das categorias aprioriacutesticas e natildeo aprioriacutesticas e no

proacuteximocapiacutetulo organizamosas falas dos entrevistados e as anotaccedilotildees do diaacuterio de

campo para estabelecer o diaacutelogo entre a empiria e a teoria

4ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

129

Neste capiacutetulo iniciamos discutindo a categoria aprioriacutestica saber popular

juntamente com as suas subcategorias saberes das aacuteguas da terra e da mata e

saberes do accedilaiacute Procuramos estabelecer um diaacutelogo com a ecologia de saberes

proposta por Boaventura de Souza Santos Trabalhamos com as falas dos sujeitos

no sentido de dar visibilidade aos seus discursos suas praacuteticas seus valores crenccedilas

e costumes Como afirma Santos (2010 p 34) a ecologia de saberes acontece por

meio do diaacutelogo ldquoprolongado calmo e tranquilordquo para que as vozes que foram e satildeo

historicamente silenciadas possam se manifestar para isso a diversidade de saberes

precisa ser reconhecida A valorizaccedilatildeo e a visibilidade desses saberes tornam-se

essencial para que isso ocorra

A seguir damos visibilidade ao saber popular dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute e

posteriormente analisamos como ocorre o diaacutelogo entre este saber e o saber escolar

na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam nas escolas ribeirinhas na referida

ilha organizamos essas praacuteticas a partir das seguintes categorias natildeo aprioriacutesticas

praacuteticas colonizadoras e praacuteticas descolonizadoras que emergiram da pesquisa de

campo

41 O SABER POPULAR DOS RIBEIRINHOS DA ILHA DO ACcedilAIacute

Nesta seccedilatildeo apresentamos um levantamento a partir da memoacuteria dos

moradores da ilha do Accedilaiacute referente aos saberes que norteiam suas accedilotildees cotidianas

nas relaccedilotildees sociais religiosas e produtivas Satildeo saberes praacuteticos que balizam as

atividades diaacuterias para a garantia da sobrevivecircncia e a leitura de mundo na qual os

ribeirinhos estatildeo inseridos Esses saberes constituem uma epistemologia no sentido

de que

Conhecer eacute tarefa de sujeitos natildeo de objetos E eacute como sujeito esomente enquanto sujeito que o homem pode realmenteconhecer [] Nestas relaccedilotildees com o mundo atraveacutes de suaaccedilatildeo sobre ele o homem se encontra marcado pelos resultadosde sua proacutepria accedilatildeo [] Atuando transforma transformandocria uma realidade que por sua vez envolvendo-ocondiciona sua forma de atuar [] Natildeo haacute por isto mesmopossibilidade de dicotomizar o homem do mundo pois que natildeoexiste um sem o outro (FREIRE 1983 p17)

Um conhecimento que eacute construiacutedo na relaccedilatildeo do sujeito (ribeirinhos) com o

mundo (Amazocircnia Ribeirinha) Neste processo os ribeirinhos atuam transformam

criam uma realidade que tambeacutem os transforma e direciona suas maneiras de agir e

pensar pois ao transformar o mundo sofrem os efeitos de sua proacutepria transformaccedilatildeo

Por isso natildeo podemos analisar esses saberes dicotomizados do mundo no qual vivem

esses protagonistas

130

Satildeo elaborados e reelaborados nas relaccedilotildees familiares com a vizinhanccedila na

comunidade no contexto das atividades produtivas (pesca caccedila colheita do accedilaiacute)

nas relaccedilotildees com outras vilas municiacutepios e cidades na produccedilatildeo dos recursos

materiais e natildeo materiais que criam e recriam (casco remo matapi malhadeira

paneiros etc) Na visatildeo de Freire (2003) tudo isso caracteriza um universo inacabado

construiacutedo por homens e mulheres com linguagens modo de ser ver e viver no mundo

que os caracteriza como sujeitos histoacutericos sociais e culturais

Essa gama de conhecimento que guia a vida dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute eacute

denominada por Freire (1987) de saberes da experiecircncia feito construiacutedo e

reconstruiacutedo na experiecircncia existencial e desenvolvidos na relaccedilatildeo dialoacutegica entre

crianccedilas-jovens-adultos-idosos mediatizados pelo mundo ldquoSoacute existe saber na

invenccedilatildeo na reinvenccedilatildeo na busca inquieta impaciente permanente que os homens

fazem no mundo com o mundo e com os outrosrdquo (FREIRE 1987 p 58) E desta

maneira os ribeirinhos vatildeo criando e recriando fazendo e se fazendo sujeitos

amazonidas uns com os outros

Satildeo tambeacutem concebidos pela ciecircncia como senso comum que ao se

aproximar do conhecimento cientiacutefico torna-se novo praacutetico esclarecido ou

emancipatoacuterio como afirma Santos (2002) para quem o senso comum ldquoeacute praacutetico e

pragmaacutetico reproduz-se colado agraves trajetoacuterias e as experiecircncias de vida de um dado

grupo social e nessa correspondecircncia afirma-se de confianccedila e daacute seguranccedilardquo (p

44) O autor propotildee uma ruptura da ciecircncia moderna que possa aproximar o senso

comum do conhecimento cientiacutefico no qual a transformaccedilatildeo seja muacutetua e dessa

forma possam produzir tecnologias e sabedoria

Sabedoria fruto do fazer o mundo e fazendo o mundo os ribeirinhos produzem

cultura assim ldquoa cultura soacute eacute enquanto estaacute sendo Soacute permanece porque muda Ou

talvez dizendo melhor a cultura soacute dura no jogo contraditoacuterio da permanecircncia e da

mudanccedilardquo (FREIRE 1977 p 54) Desta maneira diz o referido autor o mundo eacute

criado e recriado pela praacutexis humana Por meio da problematizaccedilatildeo da relaccedilatildeo ser

humano e o universo somos determinados determinantes e determinadores dos

modos de ser-no-mundo e estar-no-mundo

Sendo o ser humano criador de cultura ao mesmo tempo faz e refaz o seu

saber num processo de invenccedilatildeo e reinvenccedilatildeo Nesse sentido a cultura eacute concebida

como

131

Tudo aquilo que noacutes criamos a partir do que nos eacute dadoquando tomamos as coisas da natureza e a recriamoscomo os objetos e os utensiacutelios da vida social representauma das muacuteltiplas dimensotildees daquilo que em outrachamamos de cultura (BRANDAtildeO 2007 p 22)

O mundo que nos eacute dado eacute construiacutedo e recriado por noacutes Transformamos a

natureza atraveacutes do trabalho em cultura Osribeirinhos para pescarem o camaratildeo

transformaram uma palmeirachamada buriti em matapi34 que passou a ser

incorporado agraves praacuteticasprodutivas desenvolvidas pela comunidade bem como a

malhadeira o paneiro entre outrosO significado que esses instrumentos possuem eacute

tecido no interior de uma cultura pelos sujeitos que a criam e recriam E soacute podem ser

interpretados dentro e a partir deste contexto Nesse sentido afirma Geertz (1978 p

15) que ldquoo homem eacute um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo

teceurdquo e para entender esses significados eacute necessaacuterio mergulhar no universo cultural

desses sujeitos que produzem uma gama de conhecimentos que segundo

Oliveira(2004 p 54) satildeo

[] provenientes de sua relaccedilatildeo de trabalho com a terra com a mata e com as aacuteguas e a sua relaccedilatildeo com as comunidades populaccedilotildees e culturas locais Saberes que expressam dimensotildees educacionais religiosas medicinais produtivas culturais etc

Esses saberes tambeacutem chamados por Brandatildeo (2000) de saber popular

servem de base para a leitura e a interpretaccedilatildeo da realidade dos sujeitos Satildeo

transmitidos atraveacutes da cultura de conversa caracterizada pela oralidade que de

acordo com Oliveira (2004 p 58) ldquoapresenta-se como a forma tiacutepica das populaccedilotildees

rurais ribeirinhas de expressaremsuas vivecircncias transmitirem seus saberes valores

e haacutebitos das geraccedilotildeesmais antigas agraves geraccedilotildees mais novasrdquo Tambeacutem satildeo

apreendidos pela observaccedilatildeo e envolvimento nas tarefas diaacuterias desde a tenra idade

Convivi durante quatro meses com os ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute Neste

periacuteodo pude identificar diversidades de saberes oriundos do universo cultural

criadosrecriados no cotidiano que balizam os aspectos sociais culturais e

econocircmicos Para isso envolvi-me na caccedila pesca e coleta do accedilaiacute e demais accedilotildees

praticadas pelos sujeitos do lugar Tambeacutem na conversa sempre regada a cafeacute e

sentado geralmente num banco na cozinha ao lado do fogatildeo a lenha com o fogo

aceso soltando fumaccedila para espantar os maruins e carapanatildes fui sistematizando

34Instrumento feito de talas de buriti tem formato ciliacutendrico com uma entrada chamada de boca por onde entra o

camaratildeo na mareacute cheia

132

paulatinamente os saberes praacuteticos estruturados numa loacutegica totalmente diferente

dos conhecimentos acadecircmicos

Muitos desses saberes foram lembrados a partir da memoria dos mais velhos

por isso os fatos satildeo relatados natildeo de forma cronoloacutegica pois ao descrever algo

vivenciado dificilmente conseguimos colocar ordem no pensamento ateacute porque natildeo

existe uma cronologia no nosso tempo subjetivo a partir das memoacuterias as

lembranccedilas dos fatos vatildeo ligando-os uns aos outros numa espeacutecie de rede e assim

organizam-se em nossa mente e tornam-se inteligiacuteveis Como afirma Baptista (2013)

o tempo estaacute vinculado agrave nossa subjetividade e experiecircncias e assim foge aos

padrotildees da objetividade cronoloacutegica

Consequentemente as falas os relatos e histoacuterias contadas estatildeo permeados

pela subjetividade pois satildeo feitos de maneira singular por cada um dos sujeitos fato

explicado por Deleuze (2012 p 44) quando aborda os cinco aspectos da subjetividade

apresentados por Bergson especificamente a subjetividade-ceacuterebro que consiste

em

[] momento do intervalo ou da indeterminaccedilatildeo o ceacuterebro nos daacute o meio de lsquoescolherrsquo no objeto aquilo que corresponde as nossas necessidades introduzindo um intervalo entre o movimento recebido e o movimento executado o proacuteprio ceacuterebro eacute duas maneiras escolha porque em si mesmo em virtude de suas vias nervosas ele divide ao infinito a excitaccedilatildeo e tambeacutem porque em relaccedilatildeo agraves ceacutelulas motrizes da medula ele nos deixa a escolha entre vaacuterias reaccedilotildees possiacuteveis

Por conseguinte fazemos uma leitura particular das situaccedilotildees que

presenciamos ou vivenciamos As histoacuterias que envolvem os encantados do rio e da

mata como o Boto a matildee drsquoaacutegua e o caboclo gritador satildeo contados com o do olhar

de cada narrador a partir de suas lembranccedilas niacutetidas e agraves vezes quase apagadas da

memoacuteria ateacute porque o presente segundo Deleuze (2012 p 44) apaga as imagens

criadas no passado ldquoseja sobretudo porque ele pela contiacutenua mudanccedila de

qualidade daacute testemunho de carga cada vez mais pesada que algueacutem carregue em

suas costas agrave medida que vai cada vez mais envelhecendordquo

Tendo a consciecircncia de que qualquer exame que se faccedila do passado seraacute

sempre na oacutetica do tempo presente a sistematizaccedilatildeo dos saberes foi feita a partir do

tempo presente com toda a subjetividade que eacute peculiar agrave memoacuteria

Apoacutes a anaacutelise dos dados a categoria aprioriacutestica Saber Popular foi dividida

em trecircs subcategorias saberes das aacuteguas da terra e mata e os saberes do accedilaiacute que

emergiram das falas dos sujeitos na pesquisa de campo que discutimos a seguir

133

411 Saberes das Aacuteguas

O cotidiano dos moradores da ilha do Accedilaiacute estaacute diretamente ligado ao

movimento das aacuteguas - enchente vazante e seca da mareacute -que regulam os horaacuterios

de encher aacutegua para as atividades domeacutesticas e para beber pois na enchente a aacutegua

eacute mais saudaacutevel para o consumo assim como lavar roupa e tomar banho As mareacutes

determinam tambeacutem o horaacuterio de aula da pesca do peixe e do camaratildeo bem como

da colheita do accedilaiacute As aacuteguas compotildeem o imaginaacuterio dos ribeirinhos nelas vivem os

seres encantados Nesse vai e vem do rio acontece a reproduccedilatildeo da vida social

econocircmica cultural e religiosa desses sujeitos Para Ribeiro (2007 p 111) a aacutegua eacute

suprema nesse espaccedilo ldquofaz parte da paisagem natural da vida e das caracteriacutesticas

da regiatildeo que eacute encontrada por grandes e pequenos rios furos lagos e inuacutemeros

igarapeacutesrdquo

Na relaccedilatildeo com as aacuteguas o ribeirinho produz e reproduz diversidades de

saberes que norteiam as suas relaccedilotildees sociais culturais religiosas e econocircmicas

Nas entrevistas e observaccedilotildees registramos algumas atividades nas quais esses

saberes foram mobilizados e socializados entre os membros da comunidade Esses

saberes foram categorizados como das aacuteguas satildeo eles pesca e dos seres

encantados

Segundo Furtado (1993) quanto mais o pescador estaacute inserido no meio em que

vive mais saberes ele produz para desvendar e se apropriar da natureza e desta

forma tem acesso ao conhecimento ldquodas relaccedilotildees existentes entre as faunas aquaacutetica

e terrestre a flora os ventos e os mares as nuvens e a chuva e assim por diante

cujos sinais satildeo identificados com sabedoriardquo (p 206)

Satildeo os saberes populares como o de Pedro ribeirinho que mora na

comunidade do rio Caetano haacute mais de trinta anos Ele sabe quando vai chover pelo

movimento que o vento faz nas aacutervores e o cheiro que delas exala e avisa ldquotaacute vindo

um tororo35 daacutegua aiacute vai cair daqui com dois a trecircs diasrdquo E dona Luzia ribeirinha

idosa que sabe quando a mareacute vai crescer ldquotaacute vendo como a aacutegua taacute mais barrenta

Cheia de limo Eacute sinar di que jaacute ta invandindu a mata temo que ficar de bubuia36

purque esse ano ela vai ser disconforme37rdquo

35Chuva muito intensa 36 Atentos 37 Crescer muito

134

Trata-se de saberes usados para a leitura de mundo por meio deles a natureza

eacute interpretada sua loacutegica difere do conhecimento cientiacutefico pois eacute resultado de

experiecircncias de trocas e conviacutevio com os rios e a mata Nessa oacutetica o saber popular

pode dialogar com o cientiacutefico sem ldquodesqualificar previamente tudo o que natildeo se

ajuste ao cacircnoneepistemoloacutegico da ciecircncia modernardquo (SANTOS 2005 p 26)

Na ilha a pesca eacute realizada por crianccedilas jovens adultos e idosos As mulheres

pescam no rio ou igarapeacute proacuteximo da vila sempre acompanhadas de crianccedilas

Custumo pescar na vazante da mareacute pego o casco o remo o caniccedilo e as isca uso a minhoca ou o camaratildeo como isca tiro a minhoca aqui mermo no quintal Natildeo me afasto muito de casa tenho medo e levo sempre um muleque cumigo (JOANA)

A pesca eacute realizada segundo a moradora quando a mareacute estaacute vazando

porque nesse momento os peixes acompanham o movimento das aacuteguas entatildeo a

possibilidade de uma farta pescaria eacute maior Na fala da entrevistada os instrumentos

utilizados para a realizaccedilatildeo desta atividade satildeo confeccionados na proacutepria vila assim

como as iscas que satildeo retiradas do rio ou do quintal O casco eacute feito de madeira da

seguinte forma

Natildeo eacute qualquer madeira que daacute para fazer o casco tem que ser uma resistente agrave aacutegua e que natildeo seja muito pesada porque se for pesada o casco natildeo boacuteia na aacutegua por isso agente usa o Cedro ou o Mogno que satildeo bem levinho Se tiver muito noacute natildeo serve porque natildeo vai dobrar direito Tem que escolher uma madeira que natildeo demore muito pra secar A taacutebua tem que ser retinha (JOSEacute)

Fotografia 19 ndash Cascos feitos de madeira Cedro

135

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A seleccedilatildeo da madeira para a confecccedilatildeo do casco comeccedila pela aacutervore a qual

natildeo pode ter muitos noacutes fendas ou cicatrizes O ribeirinho bate com um pedaccedilo de

pau na aacutervore pra saber se ela estaacute podre ou se tem cupim dentro Apoacutes a derrubada

verifica-se a cor da madeira se estiver muito verde vai demorar mais tempo pra secar

por isso eacute preferiacutevel cortaacute-las no inverno pois secam mais raacutepido Isso ocorre devido

agrave circulaccedilatildeo da seiva que alimenta as folhas flores e frutos do vegetal no periacuteodo da

primavera veratildeo e outono o que ocasiona a demora na secagem e prejudica a

conservaccedilatildeo da madeira atraindo fungos e insetos Apoacutes o corte a madeira ldquoeacute

colocada pra secar aqui do lado de casa mesmo tem que pegar bastante sol natildeo

pode deixar encostar as taacutebuas no chatildeo pra natildeo daacute bolocirc38rdquo (Joseacute)

Apoacutes a secagem comeccedila a confecccedilatildeo do casco as taacutebuas satildeo pregadas e

calafetadas39 com cola usada na marcenaria que eacute comprada em Macapaacute pelo seu

Joatildeo ldquocompro a cola em poacute em Macapaacute e depois do casco pronto esquento uma

aacutegua e coloco um pouco da cola em poacute espero esfriar e comeccedilo a calafetar o cascordquo

Depois de seca a cola torna-se impermeaacutevel e veda todas as brechas entre as taacutebuas

e os furos deixados pelos pregos Na vila os cascos natildeo satildeo pintados em vez de

tinta usa-se ldquooacuteleo de peixe e cera de abelha para demorar apodrecer a madeira mas

38 Fungos 39 Tapar as brechas e buracos do casco

136

tem que passar com a taacutebua bem seca se natildeo o cupim come tudo rapidinhordquo Essas

substacircncias servem para evitar que a madeira encharque ou seque completamente

Como a aacutegua natildeo estraga a madeira para o casco ter mais durabilidade quando natildeo

estaacute sendo usado ele eacute mergulhado dentro drsquoaacutegua para natildeo apodrecer

Pelo exposto nota-se que os saberes para pesca e confecccedilatildeo do casco satildeo

praacuteticos e utilizados para resolver as situaccedilotildees cotidianas Assim podemos afirmar

que satildeocontextualizados situados e uacuteteis o que caracteriza a predominacircncia no

diaacutelogo com outros tipos de conhecimentos na ecologia de saberes (SANTOS 2010)

O casco eacute a bicicleta do ribeirinho no rio lago ou igarapeacute ele o utiliza para

pescar passear caccedilar para o lazer visitar parentes amigos e outras atividades

cotidianas Nesse sentido o rio eacute a rua ldquoEsse rio eacute minha rua minha e tua murureacute

piso no peito da lua deito no chatildeo da mareacuterdquo40

Fotografia 20 ndash Ribeirinho levando o filho para a escola no casco

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

O remo eacute a ferramenta utilizada para conduzir o casco o qual eacute feito da mesma

madeira Para pilotaacute-lo o remador precisa ter muita habilidade atividade que se

aprende na infacircncia Diz Antocircnio que ldquoo remador jaacute nasce no cascordquo Isso significa

que desde receacutem-nascida a crianccedila jaacute anda de casco nos braccedilos da matildee e carrega

no sangue ldquoo jeito de ser do povo daquirdquo41

40 Trecho da letra da musica Esse rio eacute minha rua de Paulo Andreacute e Rui Barata 41 Trecho da letra da muacutesica Jeito Tucuju

137

Em relaccedilatildeo agrave pesca o caniccedilo eacute uma das ferramentas mais utilizadas

juntamente com o arpatildeo a zagaia a malhadeira e o matapi

O caniccedilo eacute feito do galho da caniceira ou do bambu por causa de sua

flexibilidade e resistecircncia Uma linha transparente de monofilamento de naacuteilon eacute

amarrada na ponta da vara e no final da linha eacute amarrado tambeacutem um pedaccedilo de

chumbo para manter a linha reta e em meacutedia 30 centiacutemetros apoacutes coloca-se o anzol

Observamos na vila a presenccedila desta ferramenta em todas as casas O seu uso eacute

constante todos os dias encontrei moradores pescando com caniccedilo no rio

Pesco com o caniccedilo todo dia uso como isca a minhoca e o camaratildeo o peixe quando a mareacute vaza fica na beira do rio e do igarapeacute debaixo dos troncos e datouccedilada aacutervore de capim e barranco por isso prefiro pescar na vazante (Antocircnio)

Para pescar o peixe o ribeirinho vai remando devagar para natildeo espantar a

presa Joga a linha do caniccedilo com o anzol42 preso na isca na parte onde o peixe se

esconde (debaixo do tronco das aacutervores nas sombras da vegetaccedilatildeo da beira do rio e

nos barrancos) Comonatildeo pode fazer barulho o casco fica longe da beira do rio e por

isso a linha do caniccedilo tem que ser comprida em meacutedia de dois a dois metros e meio

para chegar ateacute o local onde os peixinhos estatildeo

Fotografia 21 ndash Ribeirinha pescando com o caniccedilo

Matildee e filho pescando no rio as mulheres pescam proacuteximo da vila e sempre acompanhadas pelos filhos menores assim se sentem mais seguras Fonte Edielso M M de Almeida 2016

42 O tamanho do anzol varia de acordo com a espeacutecie e tamanho do peixe

138

Nos rios da ilha do Accedilaiacute vive o maior peixe de escama de aacutegua doce do mundo

que eacute o pirarucu devido agrave sua carne saborosa eacute considerado o bacalhau da

Amazocircnia Pratos deliciosos satildeo feitos com esse peixe temperado com as ervas

retiradas da floresta ou cultivadas nos quintais Para pegaacute-lo satildeo usados o caniccedilo e

o arpatildeo

Ele gosta de ficar na parte do rio em que a aacutegua eacute transparente Tem que aproveitar a primeira hora do dia porque quando o sol esquenta muito ele procura se esconder no mato aiacute ningueacutem consegue tirar ele de laacute Para pescar esse peixe tem que usar linha muito resistente por causa do peso e forccedila dele e colocamos uma boia perto do anzol pra quando ele morder a isca que eacute um pedaccedilo de peixe pequeno a boia avisa Tambeacutem usamos o arpatildeo pois o peixe tem que subir de tempo em tempo pra respirar aiacute aproveitamos para arpoaacute-lo (JOAtildeO)

O arpatildeo eacute feito de madeira retirada da paracuuacuteba abundante na regiatildeo na sua

haste tem uma ponta aguda de ferro semelhante agrave de uma flecha seu Joseacute me explica

detalhadamente como ele pesca o pirarucu com esta ferramenta

Tresontocircnti43 eu arpoei um fui no casco remando devagarinho para natildeo espantar o bicho com uma matildeo no remo e outra segura no arpatildeo esperando o peixe buiaacute44 Na hora que ele buiou languei o arpatildeo bem no lombo dele Tem que ser ligeiro se natildeo tu perde o bichatildeo deu trabalho para puxaacute-lo para o casco porque ele era disconforme45rdquo

Ele continua a histoacuteria e puxando pela memoacuteria disse que antigamente era

faacutecil encontrar o peixe nos rios bastava sair de casa passar um tempinho esperando

no casco que aparecia logo um Hoje estaacute mais difiacutecil pescar pirarucu eacute raro algueacutem

encontrar um no rio ele acredita que eacute por causa do preccedilo alto pago pelo quilo do

referido peixe o que leva os pescadores a pescarem direto esta espeacutecie ocasionando

a escassez para os que moram na Ilha Natildeo eacute somente os moradores da Ilha que

pescam eacute constante a presenccedila de pessoas vindas de outras localidades

principalmente de Macapaacute para pescar nos rios

A zagaia eacute outra ferramenta usada na captura do peixe Assim como o arpatildeo

eacute feita de madeira retirada da paracuuacuteba e consiste em uma haste com um tridente

amarrado na sua extremidade sendo usada para fachear durante a noite O ribeirinho

para enxergar o peixe na escuridatildeo usa uma lanterna presa na cabeccedila Seu Antocircnio

nos contou como faz para fachear46

43Haacute trecircs dias atraacutes 44 Vir agrave superfiacutecie para respirar ou pegar peixe 45 Muito grande 46 Pescar a noite com a zagaia

139

A noite no igarapeacute o peixe gosta de ficar na flor drsquoaacutegua perto di onde tem galho de arvore tronco e anhinga entatildeo quando agente vecirc o peixe di longe a gente vai remando bem devagarinho pra natildeo fazer barulho vai de mansinho ateacute chegar numa altura em que decirc pra jogar a zagaia sem errar A traiacutera47 eacute mais arisca entatildeo tem que ser ligeiro para ela natildeo escapar

A pesca com a zagaia natildeo deve ser realizada nas noites de lua cheia porque

com a claridade o peixe foge rapidamente quando percebe a aproximaccedilatildeo do casco

Na chuva tambeacutem fica difiacutecil devido agrave aacutegua que fica turva com os pingos de chuva o

que impossibilita a visatildeo dos peixes pelo pescador Portanto para pescar com a

zagaia as noites ideais satildeo as bem escuras e nubladas que dificultam a visatildeo dos

peixes e facilita a do pescador que usa uma lanterna para iluminar Tambeacutem se deve

fachear em rio ou igarapeacute de aacutegua parada transparente e durante a enchente da

mareacute

A pesca com a malhadeira eacute bastante utilizada na ilha Durante os quatro meses

que passei na vila presenciei a realizaccedilatildeo desta praacutetica diariamente principalmente

durante a vazante da mareacute

Fotografia 22 ndash Ribeirinho com o filho colocando a malhadeira no rio

Na foto a crianccedila acompanha o pai para a armaccedilatildeo da malhadeira no rio por meio da observaccedilatildeo ela aprende na praacutetica essa atividade que futuramente desenvolveraacute para sobreviver neste lugar Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A malhadeira requer o trabalho de duas pessoas como retrata a fotografia

acima No caso o pai com o filho a crianccedila rema o casco e o pai vai soltando as

47 Espeacutecie de peixe de aacutegua doce encontrada nos rios lagos e igarapeacutes na Amazocircnia

140

malhas no rio para que ela fique bem reta Observe na fotografia que a malhadeira

atravessa todo o rio Acaraacute e eacute amarrada nos galhos as suas margens A rede eacute

colocada na vazante da mareacute e retirada na proacutexima vazante ou seja seis horas depois

que eacute o intervalo de uma mareacute Suas malhas satildeo feitas de linha transparente de

monofilamento de nylon de maneira uniforme e os peixes ficam presos nas malhas

pela cabeccedila O tamanho das malhas estaacute relacionado agraves espeacutecies de peixe por isso

existem malhadeiras para pegar peixes pequenos meacutedios e grandes

Fotografia 23 - Ribeirinho tecendo a malhadeira

Na imagem o ribeirinho tecendo as malhas e fazendo o entralhamento que consiste na amarraccedilatildeo das malhas no entralho que eacute o fio esticado As malhas satildeo amarradas com linha de seda Na imagem tambeacutem temos duas crianccedilas observandoFonte Edielso M M de Almeida 2016

Para pegar o camaratildeo eacute usado o matapi que funciona como uma armadilha

na qual o camaratildeo entra e natildeo consegue mais sair Eacute confeccionado pelos ribeirinhos

da ilha A moradora Francisca me ensina como fazecirc-lo

Primeiro tem que saber tirar a tala do Jupati48 depois raspar ela direitinho pra ficar bem lisa A amarraccedilatildeo das tala eacute feita com o cipoacute titica Se tu queres fazer um para pegar camaratildeo porrudo49 entatildeo a distacircncia das tala eacute maior em relaccedilatildeo ao que foi feito para pegar camaratildeo jito50 A amarraccedilatildeo tem que ser bem feita pras tala natildeo sai do lugar quando o camaratildeo comeccedilar a pular

Fotografia 24 ndash Matapi

48 Palmeira tiacutepica da floresta Amazocircnica 49 Grande maior 50 Pequeno menor

141

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Raimundo marido de Francisca diz-me como se deve colocar o matapi

Coloca o matapi na mareacute seca amarrado numa vara na beira do rio se for soacute um matapi se tu colocares mais de um entatildeo tu amarras duas varas longe uma da outra e vai pendurando o matapi com o barbante na distacircncia de um metro de um para o outro Dentro dele tu colocas a isca que eacute a punqueca que tu fazes com o babaccedilu enrolado num plaacutestico e amarra com o grecirclo do buriti51 Tu colocas na mareacute seca e tira na mareacute seca tambeacutem jaacute deixei ateacute seis meses o matapi de molho no rio ia laacute soacute para tirar o camaratildeo

Isso denota que o saber eacute contextualizado localizado repleto de significados

para os sujeitos que os constroem e os reconstroem nas relaccedilotildees sociais

mediatizadas pelo mundo Na visatildeo hegemocircnica de ciecircncia que defende a

monocultura do saber por ser local esses saberes natildeo satildeo legitimados pelo motivo

de serem limitados e natildeo utilizaacuteveis em outros contextos O que estaacute oculto neste

discurso eacute a universalizaccedilatildeo do saber e a legitimaccedilatildeo da ciecircncia enquanto a uacutenica

capaz de explicar o mundo (SANTOS 2005)

Dentre os saberes locais estatildeo os relacionados aos seres encantados das

aacuteguas que permeiam o imaginaacuterio dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute A presenccedila no

cotidiano dos seres sobrenaturais por meio das crenccedilas lendas e mitos exerce

grande influecircncia na vida desses sujeitos O mito para Oliveira (2004 p 42) tem

uma dimensatildeo educativa para o ribeirinho

51 Palmeira tiacutepica da floresta Amazocircnica

142

Adimensatildeo educativa do mito estaacute presente tambeacutem emseu poder de orientar a praacutetica social das populaccedilotildeesrurais Nas comunidades ribeirinhas [] o meio ambienteincorpora um simbolismo expresso na existecircncia deentidades ou encantados protetores da floresta e dasaacuteguas Ensina-se desde a tenra idade que se deve respeitara natureza cuidaacute-la para que sejam preservados osrecursos naturais e tambeacutem para natildeo despertar a ira dosencantados

Assim atraveacutes das histoacuterias contadas pelos moradores da ilha aos seus filhos

e netos educam-seas crianccedilas os jovens e adultos para a preservaccedilatildeo dos recursos

naturais de onde satildeo retirados osmeios para a manutenccedilatildeo da vida Osencantados

que satildeo os protagonistas dessas histoacuterias protegem anatureza e punem quem ousa

desobedececirc-los

Seres como o Boto a Matintapereira o caboclo gritador e a matildee drsquoaacutegua

habitam os rios lagos igarapeacutes e a mata O Boto eacute um encantado que seduz as

mulheres solteiras e casadas O mamiacutefero se transforma em um lindo e galanteador

rapaz que ldquodeixa as mulheres fora de si mesmas fazendo-as esquecerem de todas

as normas para seguirem somente o impulso desse ser de puro gozo de amor sem

ontem nem amanhatilderdquo (FRAXE 2010 p 326)

Metamorfoseado em um rapaz vestido de branco sempre com um chapeacuteu para

esconder o buraco que tem no meio da cabeccedila aparece em festas realizadas nas

comunidades ribeirinhas Nas festas o boto eacute gentil cavalheiro e usa suas habilidades

de danccedilarino para seduzir a cabocla mais bonita e levaacute-la para a praia ou beira52 do

rio Cheio de encanto e magia os dois fazem amor agrave luz do luar e depois ele

desaparece e nunca mais eacute visto pelas redondezas Diz-nos Joseacute que ldquoele gosta da

menina mais viccedilosa e cheirosa do lugar ela fica doida por ele natildeo tem como evitar

que ela seja possuiacutedardquo Aleacutem das festas o boto pode aparecer tambeacutem na casa e vai

direto para o quarto da mulher que deseja fazer amor

Encontrei na comunidade do rio Caraacutesa dona Luzia que me disse como ia

sendo seduzida pelo priacutencipe das aacuteguas Ela natildeo lembra ao certo o dia em que

aconteceu ateacute porque o tempo subjetivo segundo Baptista (2014 p 45)ldquo[] foge aos

padrotildees adotados comumente ou seja estaacute ritmado e sincronizado de acordo com

nossas sensaccedilotildees internas diretamente ligado agrave nossa subjetividade e nossas

experiecircnciasrdquo mas natildeo esqueceu alguns detalhes do fato

Meu marido tinha saiacutedo para fachear agrave noite e eu fiquei com os filhos dormindo Jaacute tarde da noite vi um rapaz subindo no trapiche ele entra na casa a casa natildeo tinha porta Pensava que era um dos filhos que saiu para

52 Margem do rio

143

mijar no rio Mas era o boto que tentou entrar no meu mosquiteiro mas consegui escapar dando um grito e acordando os meus filhos que botaram o safado para correr Acho que ele veio atraacutes de mim porque fui pegar aacutegua no rio quando estava menstruada ele veio pelo cheiro

Na referida vila as mulheres quando estatildeo menstruadas natildeo pegam aacutegua ou

tomam banho no rio com medo do boto Isso acontece tambeacutem com os homens de

qualquer idade seja novo ou velho Apoacutes as 18 horas raramente encontrava algueacutem

pegando aacutegua ou tomando banho no rio Para Fares (2004 p 96) ldquoO tempo da

epifania quase sempre eacute noturno a partir das seis horas da tarde e o inverno eacute a

estaccedilatildeo preferidaporque escurece mais cedo Os comunitaacuterios respeitamessas leis

pois tecircm medo dos castigos []rdquoO castigo para dona Luzia foi a visita do boto

Na comunidade do rio Santo Antocircnio a moradora Joana me contou que

quando a mareacute seca aparecem as praias entatildeo os homens vatildeo jogar bola na praia ostordia53 tiveram uns homens que ficaram gritando agrave noite laacute naprainha tinham bebido muita cachaccedila Quandochegaram em casa natildeo conseguiram dormir ficavamouvindo os gritos do Caboclo Gritador que natildeo deixaram eles dormir

Depois desse episoacutedio ningueacutem mais jogou futebol apoacutes as dezoito horas nas

praias com receio de natildeo conseguir dormir agrave noite devido aos gritos do caboclo

gritador

Outro caso conhecido na ilha eacute o do senhor Pedro que ficou panema porque

tomou banho no rio apoacutes as dezoito horas sem pedir permissatildeo para a matildee drsquoaacutegua

Procurei-o para saber mais dessa histoacuteria ele vive haacute mais de vinte anos na

comunidade do rio Caetano e em conversa me falou que esse fato ocorreu quando

era mais moccedilo mas ainda as lembranccedilas estatildeo guardadas na memoacuteria Para Bergson

(2012 p 20) ldquosatildeo as lembranccedilas da memoacuteria que ligam os instantes uns aos outros

e intercalam o passado no presenterdquo O que ele me contou aconteceu no passado

mas ele o relata na oacutetica do presente sentados na beira do fogatildeo a lenha

Cheguei de tardinha da cidade onde fui vender accedilaiacute carreguei todo o mantimento que trouxe no barco de Macapaacute quando terminei jaacute era de noitinha54 e ningueacutem encheu aacutegua para eu tomar banho entatildeo tomei no rio Depois desse banho as coisas pioraram saia pra pescar e natildeo pegava nada colocava o matapi e soacute camaratildeo jitinho a malhadeira natildeo pegava nada estava panema55

53 Outro dia eferente ao dia que passou 54 Tarde da noite depois das dezoito horas 55 Significa natildeo ter sorte a panemeira eacute causada pelos seres encantados do rio e da mata

144

A panemeira soacute eacute curada apoacutes o benzedor benzer Foi o que aconteceu com

Pedro que depois de benzido e de ter feito tudo o que o benzedor receitou ele ficou

curado e nunca mais tomou banho no rio agrave noite Presenciei o trabalho do benzedor

o senhor Benedito A neta da secretaacuteria da escola estava doente com ldquosustordquo56 Entatildeo

fui junto com eles levaacute-la para benzer na ilha do Amor onde mora o benzedor A ilha

fica distante cerca de vinte minutos da vila indo na rabeta57 O morador Raimundo

avocirc da crianccedila justifica o motivo da escolha do benzedor ldquoAqui na ilha do Accedilaiacute temos

duas pessoas que benzem o cumpadre Benedito que mora na ilha do Amor e a dona

Antocircnia que vive no rio Cajueiro Levo sempre meus filhos pro cumpadre Beneacute benzer

tenho mais feacute nele Sempre cura as doenccedilas dos piquenosrdquo

Fotografia 25 - Benzedor benzendo uma crianccedila com susto

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Na imagem acima o senhor Benedito benze a crianccedila viacutetima de ldquosustordquo no paacutetio

de sua casa Ele benze em qualquer lugar basta que o doente fique quieto para que

seja feita a reza em sua cabeccedila O tratamento consiste em rezar na cabeccedila ou noutras

partes do corpo do doente e em seguida a indicaccedilatildeo de ervas medicinais Existe

oraccedilatildeo especiacutefica para cada tipo de doenccedila o benzedor demonstrou conhecer muito

bem a utilidade das ervas medicinais para curar uma diversidade delas

56 A crianccedila assustada natildeo dorme bem acorda agrave noite aos prantos assim como vive o tempo todo agitada durante o dia e chora constantemente 57 Pequeno barco movido a motor

145

Fiquei quatro dias na ilha para conhecer melhor o curandeiro Ao perguntar

sobre onde aprendeu a rezar respondeu ldquocom ningueacutem saiu da minha cabeccedila eacute um

dom que carrego comecei a benzer aos15 anos de idade e natildeo posso passar pra

ningueacutem nem pros meus filhosrdquo e natildeo quis revelar os motivos de natildeo poder transmitir

os saberes da reza que satildeo guardados em segredo

Ele natildeo cobra pelos serviccedilos A pessoa daacute o que quiser em troca No periacuteodo

em que estive na sua casa ele atendeu seis pessoas sendo cinco crianccedilas e uma

mulher adulta

Dentre as doenccedilas curadas pelo benzedor as mais comuns satildeo dor de

cabeccedila panemeira susto quebranto58 dor de barriga febre mau-olhado e espinhela

caiacuteda59 Mas para que a cura aconteccedila eacute preciso que o doente tenha feacute e acredite

nopoder do remeacutedio e no seu curador ldquoA cultura tambeacutem eacute capaz de provocar cura

de doenccedilasreais e imaginaacuterias Estas curas ocorrem quando existe afeacute do doente na

eficaacutecia do remeacutedio e no poder dos agentes culturaisrdquo (LARAIA 2009 p 78)

Na comunidade do rio Caraacutes encontrei dona Luzia uma senhora idosa

conhecida como a contadora de histoacuterias Ao chegar a sua residecircncia jaacute havia

algumas crianccedilas com o uniforme escolar sentadas ouvindo-a contar uns causos

acompanhadas da professora60 A histoacuteria era a seguinte

Quando era jovem meu irmatildeo saiu agrave noite no casco para ir agrave casa da namorada Todas as noites ele saia pra namorar Uma dessas noites ele ouviu um assobio bem alto (dona Luzia imita o assobio) vaacuterias vezes Era a Matinta Perecircra ela estava em forma de coruja voando perto do casco O caboclo ficou tremendo de medo e pra ela parar de assobiar ele ofereceu tabaco No outro dia pela manhatilde apareceu uma velhinha toda de preto perguntando pra ele se tinha tabaco

Para descobrir quemeacute a Matinta Perecircra diz dona Luzia basta que a pessoa

que ouviu o seu assobio convide-a para vir agrave sua casa pela manhatilde para tomar cafeacute

ou pegar tabaco Na manhatilde seguinte a primeira pessoa que chegar pedindo cafeacute ou

tabaco eacute a Matinta Perecircra Acredita-se que ela possui poderes sobrenaturais Seus

feiticcedilos satildeo capazes de causar seacuterios prejuiacutezos agraves suas viacutetimas principalmente com

respeito agrave sauacutede causando-lhes fortes dores fiacutesicas e ateacute a morte Motivo pelo qual

tem que dar o que prometeu a ela

58Doenccedila que acomete principalmente as crianccedilas causada por susto mau-olhado ou pessoa adulta que chega suada e com fome da mata ou do rio e agrada a crianccedila 59 Fraqueza fiacutesica e mental 60 Nesse dia a professora levou os alunos para ouvirem as histoacuterias do lugar contadas pela dona Luzia

146

Segundo Fraxe (2010 p 325) ldquoa aceitaccedilatildeo espontacircnea de episoacutedios como

esses reflexo de uma espeacutecie de aceitaccedilatildeo de dois mundos (material e simboacutelico)

representa um dos suportes psicoloacutegicos de compreensatildeo de relatos verdadeiros []rdquo

Essas e outras histoacuterias contadas pelos mais velhos tem um cunho educativo

procuram trazer exemplos do que natildeo deve ser feito portanto as histoacuterias miacuteticas que

envolvem os seres encantados influenciam o comportamento dos ribeirinhos bem

como as formas de pensar e agir na comunidade natildeo pegar aacutegua e tomar banho no

rio depois das seis horas da tarde natildeo partir lenha agrave noite com receio de ser castigado

pela matildee da mata natildeo jogar futebol agrave noite nas praias mesmo na lua cheia para natildeo

ter problemas de dormir com os gritos do caboclo gritador sair a noite sozinho no

riopara natildeo correr o risco de encontrar Matinta Perecircra entre outros

Esses saberes satildeo invisibilizados vistos como ausentes sem importacircncia e

natildeo reconhecidos pelos fundamentoshegemocircnicos O que estamos fazendo nesta

pesquisa eacute tornaacute-los presentes existentes como outras maneiras de compreender o

universo Concordamos com Santos (2005 p 56) quando afirma que ldquoNatildeo haacute nem

conhecimentos puros nem conhecimentos completos haacute constelaccedilotildees de

conhecimentosrdquo Dentre elas os saberes oriundos da relaccedilatildeo entre os ribeirinhos da

Amazocircnia com os rios lagos e igarapeacutes O que se faz necessaacuterio eacute eliminar as

relaccedilotildees desiguais entre as constelaccedilotildees de conhecimentos e o conhecimento

hegemocircnico Para isso a sociologia das ausecircncias proposta pelo autor tem papel

fundamental

41 2 Saberes da Terra e da Mata

Neste item descrevemos os saberes oriundos da relaccedilatildeo que o ribeirinho

estabelece com a terra e a mata por meio destas relaccedilotildees satildeo produzidos e

reproduzidos novos saberes ligados a cultura local Para Santos (2003) o

reconhecimento da diversidade socioculturalconduz agrave diversidade epistemoloacutegica de

saberes existentes no mundo

Desta maneira na ilha do Accedilaiacute a terra eacute fonte para a produccedilatildeo de alimentos e

remeacutedios Haacute poucas roccedilas nas quais satildeo plantadas melancia maxixe e jerimum O

ribeirinho evita fazer roccedila para natildeo desmatar a mata e preservar os peacutes de accedilaiacute que

satildeo fonte de renda da populaccedilatildeo Os produtos retirados da roccedila servem somente para

o consumo local

Nos quintais encontramos as hortas presentes em quase todas as residecircncias

As mulheres e crianccedilas cuidam das plantas molham e fazem a limpeza retirando os

147

matos e as ervas daninhas que possam impedir o desenvolvimento da cebolinha

chicoacuteria couve quiabo pimentatildeo pimentinhas e outros

Fotografia 26 ndash Ribeirinha cuidando da horta

Os canteiros satildeo feitos no alto para proteger das enchentes e dos animais domeacutesticos patos galinhas e porcos Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Da terra tambeacutem satildeo retiradas as plantas para a cura de doenccedilas O benzedor

senhor Benedito apoacutes benzer o doente sempre passa remeacutedios feitos das ervas que

estatildeo no seu quintal tais como o chaacute de hortelatildeozinho para dor de barriga e gases

chaacute de marupazinho para ameba e diarreia suco do matruz para problemas de barriga

inchada cheiura verme e fiacutegado Segundo Maueacutes (1990) existem dois tipos de

doenccedilas as naturais e sobrenaturais Dentre as doenccedilas sobrenaturais causadas

pelos seres encantados da mata e do rio estatildeo o quebranto ventre-caiacutedo mau-

olhado e panemeira No processo de cura para essas doenccedilas os remeacutedios extraiacutedos

das plantas medicinais bem como o trabalho do curandeirobenzedor satildeo

fundamentais As doenccedilas naturais satildeo explicadas pela ciecircncia

Fotografia 27 ndash Marupazinho

148

Na imagem o peacute de marupazinho planta da horta do benzedor usada para combater a diarreia e verminose como a amebiacutease em crianccedilas jovens e adultosFonte Edielso M M de Almeida 2016

Na comunidade do rio Caraacutes haacute um posto de sauacutede Os moradores utilizam os

remeacutedios farmacecircuticos e tambeacutem dependendo da gravidade da doenccedila os

remeacutedios caseiros De acordo com JoanaldquoQuando o doente taacute passando muito ruim

eacute sinal que a doenccedila eacute grave entatildeo toma remeacutedio do posto ou leva pra Macapaacute mas

quando eacute uma gripe a gente faz um chaacute de limatildeo alho gengibre e coloca um pouco

de mel e tomardquo O limatildeo eacute retirado do quintal e o gengibre da horta o mel e o alho satildeo

comprados na cidade Em relaccedilatildeo agrave preparaccedilatildeo dos remeacutedios podem ser em forma

de chaacutes garrafadas com infusatildeo no aacutelcool ou cachaccedila afumentadores (para

massagear) e banhos

Na comunidade do rio Cajueiro entrevistei a moradora Antocircnia que aleacutem de

benzer ainda eacute parteira

Aprendi a fazer parto com minha avoacute Sou de Breves e sempre morei no interior se hoje natildeo tem meacutedico imagina na eacutepoca da vovoacute Entatildeo a mulherada paria61 nas matildeos da parteira do lugar Eu a ajudava a pegar a crianccedila quando estava saindo do ventre da matildee nessa hora tem que ter demais cuidado pegar com jeitinho primeiro passa a cabeccedila bem devagar agente tem que ter paciecircncia nada de pressa quando sai a cabeccedila tem que ajudar a puxar porque o moleque natildeo sai sozinho mas precisa puxar com

61 Ter a crianccedila dar a luz ao bebecirc

149

jeitinho pra natildeo ferir e deslocar o pescoccedilo da crianccedila Jaacute peguei62 muito moleque nessa vida Graccedilas a Deus nunca perdi um

Dona Antocircnia se fez parteira na praacutetica auxiliando sua voacute nos partos e desta

maneiratornou-se parteira experiente De dia ou agrave noite embaixo de sol ou chuva ela

estaacute sempre disponiacutevel para ajudar as mulheres que estatildeo prestes a ldquodar a luzrdquo sem

cobrar nenhum tostatildeo Ela crecirc que partejar eacute um dom divino e por isso natildeo cobra

nada o reconhecimento vem em forma de agradecimento A parteiradedica seu tempo

para ajudar as mulheres ldquoagraves vezes acompanho a gestaccedilatildeo faccedilo o parto e fico durante

uns sete dias na casa da mulher ajudando a cuidar do muleque e fazendo a comida

pra paridardquo Mas haacute situaccedilotildees em que ela eacute chamada apenas para fazer o parto

ficando sob a responsabilidade dos familiares os cuidados do poacutes-parto

Segundo o Ministeacuterio da Sauacutede (BRASIL 2014 p23)

[] estima-se que existe um nuacutemero expressivo de parteiras tradicionais principalmente das regiotildees Norte e Nordeste Entretanto natildeo se dispotildee de dados que expressem o real quantitativo das parteiras pois existe um cadastramento insuficiente destas por parte das secretarias estaduais e municipais de sauacutede visto que ainda eacute predominante a situaccedilatildeo de natildeo articulaccedilatildeo do trabalho das parteiras tradicionais com o sistema de sauacutede formal

Na ilha do Accedilaiacute natildeo haacute articulaccedilatildeo do poder puacuteblico por meio da secretaria de

sauacutede com o trabalho da parteira nem com o do rezador Ambos atuam sem nenhum

apoio seja financeiro ou material por parte do poder puacuteblico

Foram quatro dias de aprendizado que tive com Dona Antocircnia dentre os quais

como ela faz os partos e os cuidados que tem com a parturiente antes durante e

depois do fato

Antes de sai de casa peccedilo logo ajuda pra Deus e a minha santa protetora Santa Rita de Cassia para me guiar e ajudar na hora de pegar o muleque Quando chego na casa da gestante se ela tiver deitada na rede e natildeo tiver cama peccedilo pro marido arrumar uma esteira e forrar com lenccedilol fica melhor pra ela fazer forccedila pra empurrar o muleque pra fora e coloco aacutegua pra ferver junto com a tesoura que uso pra cortar o cordatildeo do umbigo Entatildeoponho ela deitada na esteira com as pernas abertas Quando a dor aperta63 faccedilo massagem na barriga pra ajudar e rezo a oraccedilatildeo do bom parto A parte mais difiacutecil eacute cortar o cordatildeo do umbigo pra isso coloco trecircs dedos da matildeo como medida entre a crianccedila e o cordatildeo e passo a tesoura depois amarro com um barbante e passo oacuteleo de andiroba com tabaco pra natildeo inflamar

Apoacutes o parto vem o periacuteodo de resguardo os cuidados e a dieta Como eximia

conhecedora das ervas passa banhos com a casca de paricaacute64 para ajudar a

62Fez parto de muitas crianccedilas 63 Aumentar a intensidade da dor 64 Aacutervore predominante na floresta amazocircnica

150

desinflamar ldquoa parte iacutentimardquo e afumentaccedilatildeo65 com oacuteleo de copaiacuteba para a parida

Durante no miacutenimo sete dias deve evitar sair do quarto e tem que comer carne magra

principalmente galinha com bastante caldo natildeo comer porco ou caccedila do mato

Deveria ser por quarenta dias mas ningueacutem respeita o resguardo entatildeo peccedilo pra resguardar pelo menos sete dias sem sai no sereno tomar banho dentro de casa natildeo carregar peso O marido soacute deve usar66 a mulher depois dos quarenta dias quando ela vai estaacute recuperada do parto

As mulheres comumente procuram a parteira para pedir remeacutedio para dor de

coacutelica prisatildeo de ventre e atraso das regras67 Assisti a uma consulta na qual uma

moccedila estava menstruada e com muita coacutelica o remeacutedio indicado foi o chaacute de

hortelatildeozinho com a semente da buchinha que deveria ser tomado pela manhatilde e agrave

noite antes de deitar As que estatildeo graacutevidas vecircm trazer a barriga para puxar com

o intuito ldquode colocar a crianccedila no lugarrdquo68 e saber o seu sexo Dona Antocircnia afirma que

sempre acerta ldquoquando a barriga eacute demais pontuda vai ser menino quando eacute muito

redonda seraacute meninardquo

A parteira afirma que jaacute faz algum tempo que natildeo realiza parto ldquohoje em dia

as mulheres vatildeo parir pra Macapaacute tem medo de ter o filho aqui na vilardquo A proximidade

favorece a ida das graacutevidas para a cidade a viagem dura em meacutedia uma hora e meia

de catraio A mesma observaccedilatildeo eacute feita em relaccedilatildeo ao consumo de remeacutedios caseiros

ldquoantigamente a procura por remeacutedio da mata era maior agora eacute mais os da farmaacutecia

O remeacutedio daqui da natureza natildeo ataca o fiacutegado nem o estocircmago como os da

farmaacutecia mas o povo natildeo acredita mais na cura desses remeacutediosrdquo

A seguir algumas fotografias de plantas que satildeo utilizadas pelos moradores da

ilha para fazer remeacutedios com as respectivas receitas relatadas pelos moradores

sujeitos da pesquisa

Fotografia 28 ndash Peacute de Mastruz

65 Massagear neste caso passar levemente oacuteleo de copaiacuteba nas partes iacutentimas isso ajuda no processo desinflamatoacuterio 66 Fazer sexo 67 Menstruaccedilatildeo 68 Quando sentem dores dizem que eacute porque a crianccedila estaacute atravessada na barriga aiacute tem que levar para a parteira puxar e colocar no lugar

151

Na imagem um peacute de matruz do qual se retira as folhas para bater com leite do Amapaacute (aacutervore da qual se extrai o leite) vira remeacutedio para as pessoas que estatildeo com fraqueza indisposiccedilatildeo e mal-estarFonte Edielso M M de Almeida 2016

Fotografia 29 ndash Peacute de Capim Marinho

Na imagem um peacute capim marinho do qual se faz o chaacute para tomar contra o cansaccedilo fiacutesico e mental Deve-setomaacute-lo todos os dias pela manhatilde em jejumFonte Edielso M M de Almeida 2016

Fotografia 30 ndash Peacute de Noni

152

Peacute de Noni da fruta eacute feito o suco para problemas de prisatildeo de ventre diabetes pressatildeo alta e tambeacutem funciona como um excelenteanti-inflamatoacuterio Deve-se tomar o suco duas vezes por dia durante vinte dias consecutivosFonte Edielso M M de Almeida 2016

Fotografia 31 ndash Sementes de Cacau

No paneiro sementes de cacau colocadas para secar Quando secas satildeo piladas e misturadas com sementes de aboacutebora para fazer chaacute ou suco e serve para combater verminoses Deve-se tomar em jejum e antes de deitar agrave noite Fonte Edielso M M de Almeida 2016

153

O cacau eacute retirado da mata assim como a mateacuteria-prima para a produccedilatildeo do

matapi para pegar o camaratildeo o paneiro que serve para colocar accedilaiacute peixe

camaratildeo guardar roupas plantar as mudas das plantas medicinais entre tantas

outras utilidades a peneira para peneirar o accedilaiacute casco e remos

Fotografia 32 ndash Erva Cidreira

O chaacute da erva cidreira eacute usado no tratamento de gastrite dor no estocircmago coacutelica intestinal e insocircnia Tomar uma xiacutecara duas a trecircs vezes ao dia ateacute parar as dores Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Fotografia 33ndash Catinga de Mulata

Das folhas da catinga da mulata se faz chaacute para tratar de asma gases e vermes O banho ajuda no tratamento da gripeFonte Edielso M M de Almeida 2016

154

Observei durante o periacuteodo em que estive na ilha que uma palmeira chamada

buriti eacute bastante utilizada pelos ribeirinhos Das talas satildeo feitos paneiros esteiras e

peneiras do caule se faz trapiches (o caule boia quando a mareacute estaacute cheia) as folhas

satildeo usadas para cobrir hortas casas de galinhas e de outros animais domeacutesticos do

fruto se faz um delicioso suco que tomei todos os dias durante as refeiccedilotildees

Fotografia 34 ndash Palmeira de Buriti

Palmeira Buriti no meio das demais espeacutecies de vegetaccedilatildeo de vaacuterzea na Floresta Amazocircnica Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A Floresta tambeacutem eacute habitada pelos seres encantados

Aqui na ilha as meninas quando estatildeo menstruadas natildeo tomam banho e nem pegam aacutegua no rio tambeacutem natildeo saem pra andar na mata porque se aparecer alguma crianccedila doente a culpa eacute delas Natildeo saem pra andar na mata porque tem a caruara que sente o cheiro do sangue e lanccedila flechas que podem acertar os piquenos69 que vivem na redondeza (JOANA)

No periacuteodo em que estatildeo menstruadas as meninas tambeacutem natildeo vatildeo para a

escola exatamente para evitar os problemas citados acima O proacuteprio termo

ldquomenstruaccedilatildeordquo recebe vaacuterias denominaccedilotildees minhas regras estaacute vazando estaacute

furada e taacute de bode Alguns homens me confessaram que nesse periacuteodo natildeo mantecircm

relaccedilotildees sexuais com suas mulheres ou namoradas porque elas satildeo ldquopoucos limpas

e podem passar doenccedila pra noacutesrdquo (JOAtildeO)

Para adentrar a mata eacute necessaacuterio se benzer (fazer o sinal da cruz) e pedir

permissatildeo para os seres encantados que moram no lugar Vaacuterias vezes fui

advertidopelos meus entrevistados por natildeo me benzer ao entrar na mata Os

69 Crianccedilas

155

caccediladores que satildeo poucos na ilha desenvolveram vaacuterios saberes referente aos

animais que habitam a floresta seus haacutebitos alimentares cheiro marcas deixadas na

lama praia e galhos de aacutervores horaacuterio que estatildeo mais propiacutecios para serem

capturados entre outros

A cutia e a paca costumam comer as sementes e frutas que caem das aacutervores perto do rio o tatu aproveita a enchente pra vim beber aacutegua o veado sai bem cedinho pra comer Isso a gente aprende com os caccediladores mais velhos como meu avocirc meu pai meus irmatildeos (RAIMUNDO)

O processo de aprendizagem segundo o caccedilador ocorre na praacutetica no dia a

dia vivenciando observando seu avocirc pai e irmatildeos mais velhos Esses saberes

orientam as atividades de caccedila na ilha o bom caccedilador passa por todo um processo

de aprendizagem que ocorre na praacutetica da caccedila

Esses saberes satildeo frutos da relaccedilatildeo dos ribeirinhos com a natureza e

geralmente ignorados pela instituiccedilatildeo escolar na qual esses sujeitos passam grande

parte de sua vida desde a educaccedilatildeo baacutesica ateacute o ensino superior Desta maneira os

desqualificam e os desvalorizam por natildeo serem cientiacuteficos Assim sendo ldquoAo

submeter outros saberes a seus proacuteprios criteacuterios de verdade e eficaacutecia o

conhecimento cientiacutefico os rejeitae marginalizardquo (SANTOS 2005 p 45)

Da mata tambeacutem eacute retirado o accedilaiacute fonte de renda e alimento presente na

mesa de todos os ribeirinhos Devido agrave sua importacircncia abordamos especificamente

este saber a seguir

413 Saberes do Accedilaiacute

O accedilaiacute eacute a principal fonte de renda dos ribeirinhos e tornou-se a base

econocircmica dos moradores da ilha cuja vegetaccedilatildeo predominante eacute a palmeira

conforme imagem a baixo

Fotografia 35 - Peacutes de Accedilaiacute

156

As beiradas dos rios que formam a ilha satildeo repletas de peacutes de accedilaiacute que eacute uma palmeira tiacutepica da Amazocircnia Seu fruto eacute rico em vitaminas ferro fibras foacutesforo potaacutessio minerais e gordura vegetal Eacute uma vegetaccedilatildeo predominante nas aacutereas de vaacuterzea Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A safra do produto compreende os meses de marccedilo a agosto Na mesa o accedilaiacute

com a farinha de mandioca eacute o prato principal acompanhado do peixe camaratildeo ou

charque frito O produto eacute consumido praticamente todo dia na eacutepoca da safra agraves

vezes eacute o uacutenico alimento da famiacutelia Nas cidades amazocircnidas o accedilaiacute eacute um dos

alimentos mais sorvidos pela populaccedilatildeo Para a antropoacuteloga Woodward (2008 p 42)

ldquoaquilo que comemos pode dizer muito sobre quem somos e sobre a cultura da qual

vivemos A comida eacute um meio pelo qual as pessoas podem fazer afirmaccedilotildees sobre si

proacutepriasrdquo Devido ao seu teor energeacutetico o accedilaiacute eacute tomado por crianccedilas jovens adultos

e idosos para recuperar as energias e as forccedilas gastas no cotidiano como afirma o

morador Pedro ldquo Bebo accedilaiacute todo dia se tiver tomo de manhatilde na merenda da tarde e

na janta agrave noite ele me daacute forccedila e disposiccedilatildeo pra trabalharrdquo

A colheita do produto eacute feita na sua maioria pelos homens mas encontrei na

comunidade do rio Caraacutes uma adolescente de doze anos que tambeacutem ldquoapanha70rdquo

accedilaiacute Segundo sua matildee ldquoela apanha accedilaiacute desde os seis anos natildeo gosta dos afazeres

domeacutesticos mas adora tirar accedilaiacuterdquo Nesse extrativismo os pais levam os filhos mais

velhos para ajudaacute-los os quais ao mesmo tempo aprendem os saberes necessaacuterios

por meio de uma educaccedilatildeo natildeo formal ou seja aprende-se na praacutetica no dia a dia

por meio do envolvimento nas atividades produtivas

70 Tirar o cacho e accedilaiacute da palmeira

157

Fotografia 36 ndash Menino subindo no Accedilaizeiro

Na ilha as crianccedilas e adolescentes tambeacutem participam da colheita do accedilaiacute Eles sobem nas aacutervores mais finas nas quais os adultos natildeo conseguem por causa do risco de quebraacute-las devido ao peso como as crianccedilas e os adolescentes satildeo mais leves acabam tirando o accedilaiacute dessas palmeirasFonte Edielso M M de Almeida 2016

A palmeira do accedilaizeiro mede aproximadamente de 35 a 40 cm de diacircmetro e

pode chegar ateacute 16 metros de altura Quanto agrave produccedilatildeo o morador Joatildeo diz queldquode

um peacute de accedilaiacute novo daacute pra tirar ateacute nove cachos por safra a produccedilatildeo vai diminuindo

assim que a accedilaizeira vai ficando velha por isso a gente faz o manejo do accedilaizalrdquo A

idade entatildeo eacute determinada pela produccedilatildeo de cada palmeira e quando comeccedila a

diminuir eacute feito o corte da mais velha para que os peacutes mais jovens possam se

desenvolver

Aqui na ilha agente faz o manejo da seguinte forma quando fica um accedilaizal muito fechado ele natildeo produz accedilaiacute fica abafado com muitas aacutervores juntas eacute preciso que desabafe e isso se faz cortando as aacutervores mais altas para que as menores possam crescer assim como os filhototildees que satildeo os peacutes pequenos de accedilaiacute Desta maneira o accedilaizal vai produzindo cada vez mais Porisso que o accedilaiacute nunca falhou todo mundo aqui se sustenta dele haacute mais de trinta anos venho fazendo isso

O objetivo do manejo eacute garantir a produccedilatildeo para o ano seguinte Desta forma

os peacutes mais velhos satildeo arrancados para dar espaccedilo aos filhototildees71 e assim assegura-

se a produccedilatildeo e a existecircncia do accedilaizal Esses cuidados satildeo necessaacuterios natildeo soacute para

71 Satildeo os peacutes pequenos de accedilaiacute necessitam de sol para crescer motivo pelo qual as palmeiras mais velhas satildeo derrubadas para que eles possam pegar sol e se desenvolver

158

o aumento da produccedilatildeo pois quanto mais jovem for a palmeira mais ela produz como

tambeacutem para a sobrevivecircncia da populaccedilatildeo ribeirinha na ilha

A gente tem que cuidar do accedilaizal limpar fazer o manejo todos os anos natildeo deixar ningueacutem derrubar pra tirar palmito nem pra fazer roccedila que deixa a mata nua onde se faz roccedila natildeo nasce peacute de accedilaiacute acho que eacute porque a gente queima a terra aiacute mata o que o accedilaizeiro precisa pra nascer (ANTOcircNIO)

A roccedila deixa a mata ldquonuardquo sem nenhum tipo de vegetaccedilatildeo nativa de modo que

a terra fica improdutiva infeacutertil por alguns anos daiacute a preocupaccedilatildeo com o meio

ambiente os cuidados para que a mata continue feacutertil Afinal a permanecircncia da

populaccedilatildeo na ilha depende da preservaccedilatildeo da natureza O palmito eacute retirado somente

das aacutervores que satildeo derrubadas

Os instrumentos utilizados para apanhar o accedilaiacute satildeo a peconha o facatildeo o

paneiro e a debulhadeira A peconha pode ser feita de saca de farroupilha ou com as

folhas da proacutepria palmeira que eacute enrolada e amarrada em forma de um circulo A

medida depende do tamanho do peacute do apanhador e da grossura do accedilaizeiro sua

funccedilatildeo eacute ajudar a subir e descer dar estabilidade e seguranccedila apoiar os peacutes para

evitar que se deslize rapidamente O apanhador de accedilaiacute coloca a peconha nos peacutes e

com o corpo daacute impulso para subir paulatinamente na palmeira Eacute preciso ter forccedila

nas pernas e nos peacutes para poder sair do lugar trabalho que exige aleacutem de equiliacutebrio

atenccedilatildeo e agilidade Eacute o que nos diz Tiago ldquoapanho uns 16 paneiros de accedilaiacute por dia

com quatro paneiros a gente tem uma saca Pra subir no accedilaizeiro coloco a peconha

nos peacutes o facatildeo na cintura preso no short e na cueca e dou um impulso para subir de

uma soacute vez pra natildeo perder o equiliacutebrio tem ser ligeirordquo

Fotografia 38 ndash Instrumentos utilizados para a colheita de accedilaiacute

Na imagem o facatildeo a peconha e a debulhadeira os instrumentos que os ribeirinhos utilizam para apanhar accedilaiacuteFonte Edielso M M de Almeida 2016

159

Na fotografia acima temos a debulhadeira que consiste em uma saca de

serapilheira na qual eacute debulhado72 o accedilaiacute para evitar que caia no chatildeo Dentro dela

temos alguns caroccedilos de accedilaiacute uma peconha tambeacutem feita de serapilheira e o facatildeo

Para debulhar eacute preciso todo um saber para natildeo desperdiccedilar os caroccedilos

primeiro tem que escolher o lugar pra estender a debulhadeira que natildeo pode ficar totalmente estendida no chatildeo tem que ser num lugar firme porque agente faz forccedila pra tirar o accedilaiacute do cacho depois colocar o cacho no meio dela pros caroccedilos natildeo caiacuterem no chatildeo tem que ter equiliacutebrio e ser raacutepido porque satildeo muitos cachos pra debulhar(MARIA)

Fotografia 39 ndash Menina debulhando o cacho de accedilaiacute

Na imagem menina debulhando o cacho de accedilaiacute Observe que a debulhadeira natildeo estaacute totalmente estendida no chatildeo e se encontra numa aacuterea de terra firme O cacho estaacute no lado do quala menina tem mais agilidade com as matildeos Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Acompanhei de perto durante vaacuterios dias o trabalho da coleta do accedilaiacute na

beira dos rios e na mata Percebi que haacute sintonia dos movimentos das matildeos com

o restante do corpo no ato de apanhar e debulhar o fruto Nesse sentido Freire

(2005 p 70) afirma que

O corpo humano eacute um corpo consciente porque eacute dotado de capacidades e habilidades que auxiliam o ser humano no trabalho e o corpo sente e aprende as dinacircmicas desse trabalho educando-se no modo de interagirem com a natureza por isso estaacute errado separar o que chama de trabalho manual do que se chama trabalho intelectual

72 Tirar os caroccedilos do accedilaiacute do cacho

160

A coleta do accedilaiacute eacute planejada desde o local a escolha das accedilaizeiras o

tamanho das peconhas entre outros portanto natildeo eacute um ato mecacircnico ao

contrario haacute um processo de accedilatildeo-reflexatildeo-accedilatildeo na execuccedilatildeo desta atividade

produtiva

Apoacutes a colheita parte do produto eacute vendido em Macapaacute o que garante a

compra de alimentos e utensiacutelios domeacutesticos como fogatildeo botijatildeo de gaacutes panelas

televisatildeo geladeira e ferramentas para o trabalho facatildeo sacas de serapilheira

rabeta catraios machados etc Na ilha muitas casas jaacute estatildeo com o motor de luz

movido a oacuteleo diesel Todas essas mercadorias satildeo compradas com a renda

obtida do accedilaiacute

A outra parte eacute consumida pelos ribeirinhos Para o consumo o accedilaiacute passa

por todo um processo Inicialmente eacute colocado de molho na aacutegua morna para

amolecer a polpa em seguida eacute batido na amassadeira eleacutetrica nas casas onde

haacute motor de luz na manual ou amassado nas matildeos onde natildeo haacute a tecnologia

Encontrei alguns ribeirinhos que socam o accedilaiacute em um paneiro para retirar a tinta

antes de batecirc-lo para o consumo ldquosoco o accedilaiacute pra tirar a tinta porque ela faz mal

pro estocircmago daacute gases e cheiurardquo(JOSEacute)

Fotografia 40 ndash Amassadeira eleacutetrica

Na imagem a amassadeira eleacutetrica foi limpa apoacutes o uso Em cima as bacias usadas para aparar o liacutequido Os caroccedilos satildeo colocados na batedeira com a maacutequina ligada em seguida eacute depositada aacutegua que dependendo da quantidade produziraacute o vinho73 grosso ou fino O batedor tem que ser aacutegil para

73 O vinho eacute o suco retirado da polpa do accedilaiacute

161

natildeo estragar os caroccedilos dentro da batedeira Quando grosso coloca-se pouca aacutegua ficando uma papa Caso queria fino adiciona-se bastante aacutegua Na safra do produto toma-se o grosso Na entressafra o fino para servir a toda famiacuteliaFonte Edielso M M de Almeida 2016

Fotografia 41 ndash Amassadeira manual

Na imagem a amassadeira manual encontrei-a somente na casa do morador Benedito o curandeiro Os caroccedilos satildeo colocados na batedeira e amassados com a forccedila humana por meio da manivela paulatinamente eacute colocada a aacutegua para diluir a poupa que se transforma em vinho Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Fotografia 42 ndash Ribeirinha amassando o accedilaiacute com as matildeos

Para amassar o accedilaiacute com as matildeos primeiro ele eacute colocado para amolecer na aacutegua morna em seguida eacute colocado em uma bacia sem aacutegua posteriormente os caroccedilos satildeo amassados com as matildeos para retirada da polpa Eacute um processo que demanda forccedila sincronia das matildeos e agilidade Apoacutes a retirada da polpa coloca-se aacutegua para lavar os caroccedilos assim vai se fazendo o vinho Para separar o vinho dos

162

caroccedilos eacute usada a peneira que eacute feita de tala de buritiFonte Edielso M M de Almeida 2016

Durante a pesquisa observei que na Ilha satildeo poucas as pessoas que ainda

amassam com as matildeos o accedilaiacute Quem natildeo tem amassadeira usa a do vizinho mais

proacuteximo como contribuiccedilatildeo deixauma porccedilatildeo de accedilaiacute batido ou em caroccedilos Neste

processo participam homens e mulheres jovens adultos e idosos As crianccedilas

tambeacutem satildeo envolvidas direta e indiretamente seja como espectadoras ou em

trabalhos de preparaccedilatildeo do beneficiamento colocam aacutegua para ferver lavam as

bacias e a amassadeira antes e apoacutes o uso carregam os baldes com aacutegua pra diluir

o accedilaiacute e jogam fora os caroccedilos apoacutes a retirada da polpa

Agrave vista de toda essa diversidade de saberes que satildeo produzidos pelos povos

das aacuteguas na Amazocircnia na relaccedilatildeo que estabelecem com a natureza (aacutegua terra e

mata) e com seus semelhantes haacute a necessidade de validaacute-los pela instituiccedilatildeo

escolar bem como reconhecer a sua incompletude como condiccedilatildeo para o diaacutelogo

com outros saberes ldquoO confronto e o diaacutelogo entre os saberes eacute um confronto e

diaacutelogo entre diferentes processos atraveacutes dos quais praacuteticas diferentemente

ignorantes se transformam em praacuteticas diferentemente saacutebiasrdquo (SANTOS 2005 p

25)

Neste estudo fizemos uma hermenecircutica diatoacutepica por meio do levantamento

dostopoi (saber popular) da cultura ribeirinha O que preconiza a hermenecircutica

diatoacutepica satildeo as maneiras de interpretaccedilatildeo e de diaacutelogos entre culturas diversas que

tem como paracircmetro a consciecircncia de sua incompletudee desta forma possibilita a

evoluccedilatildeo e a construccedilatildeo segundo Santos (2005 p 56) de ldquoformas hiacutebridas de

dignidade humana mais rica e mais amplamente partilhadardquo

Na proacutexima seccedilatildeo apresentamos como ocorre o diaacutelogo entre os saberes da

cultura ribeirinha e os saberes escolares na praacutetica pedagoacutegica dos professores que

atuam na educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do ensino fundamental em escolas situadas

nas comunidades ribeirinhas que formam a ilha do Accedilaiacute

163

42 O DIAacuteLOGO ENTRE O CONHECIMENTO ESCOLAR E O SABER POPULAR

Nesta seccedilatildeo analisamos como acontece o diaacutelogo entre os saberes oriundos

das comunidades ribeirinhas com o conhecimento escolar na praacutetica pedagoacutegica dos

professores nas cinco escolas que compotildeem o regional Madeira situadas na ilha do

Accedilaiacute Estabelecemos diaacutelogos a partir das categorias diaacutelogo saber popular praacuteticas

colonizadoras e praacuteticas descolonizadoras e o referencial teoacuterico deste estudo

Iniciamos a discussatildeo com a concepccedilatildeo de conhecimento escolar e o livro

didaacutetico como elemento norteador do conhecimento nas escolas ribeirinhas e em

seguida dialogamos com os elementos que fazem parte da praacutetica pedagoacutegica do

educador dentre os quais o planejamento das aulas e a metodologia de ensino e

aprendizagem

421 O Conhecimento Escolar

Segundo Santos (1995 p 30) o conhecimento escolar eacute ldquoum tipo de

conhecimento produzido pelo sistema escolar e pelo contexto social e econocircmico mais

amplo produccedilatildeo essa que se daacute em meio a relaccedilotildees de poder estabelecidas no

aparelho escolar e entre esse aparelho e a sociedaderdquo Portanto o conhecimento

escolar estaacute imbricado por questotildees ideoloacutegicas e poliacuteticas sendo assim a definiccedilatildeo

do que deve ser ensinado na escola natildeo eacute somente uma questatildeo educacional e sim

poliacutetica

A decisatildeo de se definir o conhecimento de alguns grupos como digno de ser transmitido agraves geraccedilotildees futuras enquanto a histoacuteria e a cultura de outros grupos mal vecircem a luz do dia revela algo extremamente importante acerca de quem deteacutem o poder na sociedade (APPLE 2006 p 42)

Quem deteacutem o poder na sociedade capitalista privilegia e legiacutetima

conhecimentos que socialmente satildeo reconhecidos bem como ignora e estigmatiza os

que natildeo o satildeo dentre eles os saberes populares Assim hierarquiza os

conhecimentos que podem ser transmitidos pelo sistema escolar Na visatildeo de Moreira

e Candau (2008 p 25) ldquoNessahierarquia silenciam-se as vozes de muitos indiviacuteduos

e grupos sociais classificam-se seus saberes como indignos de entrarem na sala de

aula e de serem ensinados e aprendidosrdquo Essa maneira de agir estaacute alicerccedilada

segundo Santos (2007) na razatildeo indolente que guia o pensar a nossa visatildeo da vida

e do mundo bem como a produccedilatildeo da ciecircncia baseada no paradigma eurocecircntrico

Desta maneira o conhecimento oriundo de uma base cientiacutefico-cultural eacute

organizado de acordo com as disciplinas que compotildeem as etapas da educaccedilatildeo baacutesica

164

para fazerem parte do curriacuteculo escolar que deveratildeo ser transmitidos por meio da

utilizaccedilatildeo de meacutetodos e teacutecnicas para a realizaccedilatildeo da praacutetica docente constituindo-

se numa visatildeo racionalista de conhecimento que nega a complexidade do ato de

ensinar e de aprender ao mesmo tempo impotildee o conhecimento cientiacutefico como a

uacutenica maneira de compreender o mundo

Para Santos (2007) a ciecircncia natildeo eacute a uacutenica forma de interpretar o

mundoexistem outros saberes que historicamente foram negados e que precisam ser

reconhecidos Essa ausecircncia eacute gerada pela monocultura do saber e do rigorque

considera ignorante o que natildeo eacute cientiacutefico Desta maneira ossaberes populares natildeo

satildeo reconhecidos como conhecimentos porque natildeo tecircm o rigor do cientiacutefico o que

caracteriza uma visatildeo colonialista ou seja eacute no plano epistemoloacutegico que o

colonialismo assume maior centralidade Desse modo ldquoo que natildeo existe eacute produzido

como natildeo existente invisiacutevel agraverealidade hegemocircnica do mundordquo (p 78)

Consequentemente o conhecimento escolar tem como base o que Santos

(2010 p 71) chama de cacircnone literaacuterio74

Entende-se por cacircnone literaacuterio na cultura ocidental um conjunto de obras literaacuterias que num determinado momento histoacuterico os intelectuais e as instituiccedilotildees dominantes ou hegemocircnicos consideram ser os mais representativos e os de maior valor e autoridade numa dada cultura oficial

Somente o conjunto de obras e autores reconhecidos como hegemocircnicos pela

classe dominante satildeo declaradamente valorizados e reconhecidos como dignos de

serem ensinados nas escolas desde a educaccedilatildeo infantil ensino fundamental meacutedio

e educaccedilatildeo superior ldquo[] o processo de intensificaccedilatildeo que estas obras sofrem dota-

as do capital cultural necessaacuterio para que possam finalmente patentear a

exemplaridade o caraacuteter uacutenico e a inimitabilidade que as distinguerdquo (SANTOS 2010

p 72)

O cacircnone literaacuterio impotildee uma identidade elitista e nega os saberes e as

identidades locais Para dar visibilidade aos diversos conhecimentos e epistemologias

invisiacuteveis o citado autor propotildee a ldquoSociologia das Ausecircnciasrdquo Esta aleacutem do desafio

de conceber um conhecimento como princiacutepio de solidariedade compreende que todo

conhecimento eacute um percurso que vai de um ponto de ignoracircncia a um ponto de saber

no qual o outro eacute sempre sujeito e natildeo objeto Nesse sentido ldquoconhecer eacute reconhecer

74 O cacircnone literaacuterio consiste em um conjunto de obras que abrange as diversas aacutereas do conhecimento e por fazerem parte da cultura ocidental eurocecircntrica satildeo reconhecidos como universais

165

eacute progredir no sentido de elevar o outro da condiccedilatildeo de objeto agrave condiccedilatildeo de sujeito

Esse conhecimento-reconhecimento eacute o que designo por solidariedaderdquo (SANTOS

2011 p 30)

Quando o processo eacute inverso satildeo solidificadas as desigualdades e

consequentemente as diferenccedilas que assinalam a estrutura social baseada em um

modelo econocircmico capitalista Esta colonialidade do saber estruturada num

conhecimento eurocecircntrico e monoliacutetico parte do princiacutepio de que a razatildeo a verdade

e a ciecircncia satildeo atributos da classe hegemocircnica enquanto os outros no caso os

ribeirinhos satildeo classificados como objetos como saber popular leigo e ignorante

Como afirma Quijano (2008) a colonialidade do saber eacute uma das dimensotildees da

colonialidade do poder e visa a subalternizaccedilatildeo e invisibilizaccedilatildeo da multiplicidade de

saberes com seus processos proacuteprios de subjetivaccedilatildeo e seus modos singulares de

pensar a sauacutede a economia a natureza e outros aspectos da realidade social

A colonialidade do saber materializada no saber escolar direciona os curriacuteculos

disciplinas e a organizaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo na escola Desse modo a cultura

erudita e etnocecircntrica instituiacuteda nos conteuacutedos escolares socialmente reconhecidos eacute

sobreposta aos conteuacutedos advindos da cultura popular que eacute marginalizada e ausente

no interior da instituiccedilatildeo escolar Os movimentos de resistecircncia certificam que a

descolonizaccedilatildeo requer propostas baseadas na transdisciplinaridade e na

transculturalidade (CASTRO-GOMEacuteZ 2007) bem como ldquoposturas posicionamientos

horizontes y proyectos de resistir transgredir intervenir in-surgir crear e incidirrdquo

(WALSH 2013 p 3) na colonialidade no contexto da escola Para Dussel (2005)

existem transiccedilotildees e alternativas possiacuteveis construiacutedas com base no diaacutelogo de

saberes Enquanto natildeo obtemos tal ldquoutopia pluriversardquo (p 18) fazem-se necessaacuterios

diaacutelogos que vislumbrem trocas e negociaccedilotildees capazes de beneficiar visotildees e

entendimentos distintos do mundo

4211 O conhecimento escolar na oacutetica dos professores

O conhecimento escolar denominado pelos professores ribeirinhos como

conteuacutedos compotildee a matriz curricular da educaccedilatildeo baacutesica (educaccedilatildeo infantil ensino

fundamental e meacutedio) e satildeo organizados por ano distribuiacutedos nos quatro bimestres

De acordo com a fala dos entrevistados esses conteuacutedos jaacute vecircm estabelecidos pela

Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo esatildeo entregues no iniacutecio das aulas e devem ser

trabalhados com os alunos

166

Por conseguinte os saberes socialmente reconhecidos e legitimados pelo

sistema municipal de educaccedilatildeo de Afuaacute acabam por negar os saberes oriundos da

cultura ribeirinha As vozes dos ribeirinhos satildeo silenciadas e seus saberes natildeo satildeo

dignos de entrarem na sala de aula o que caracteriza uma colonialidade do saber

Acho que quem escolhe os conteuacutedos satildeo os teacutecnicos da SEMED agente aqui apenas trabalha eles com os alunos quer dizer o que daacute tempo de trabalhar ateacute porque satildeo muitos assuntos e pouco tempo entatildeo seleciono o que considero mais importante (Prof 1) A seleccedilatildeo de conteuacutedos vem da SEMED jaacute vem distribuiacuteda por bimestre natildeo sei quem elabora Tem assuntos que satildeo totalmente fora da realidade da gente Eu vou introduzindo os conteuacutedos conforme as necessidades porque tem alguns assuntos que satildeo muitos avanccedilados para eles (Prof2) Noacutes recebemos a lista de conteuacutedos das matildeos da diretora do regional Algumas coisas que na minha maneira de ver natildeo satildeo importantes aiacute a gente tira Para mim seria mais interessante se os conteuacutedos fossem baseados na realidade deles pois as pessoas que selecionam esses conteuacutedos natildeo conhecem a realidade dos alunos ribeirinhos (Prof3) No iniacutecio de cada ano letivo vou ateacute a SEMED procuro os teacutecnicos do setor pedagoacutegico e solicito a lista de conteuacutedos de todas as seacuteries e anos por disciplinas para repassar aos nossos professores do regional (Diretora)

Os professores foram unacircnimes em afirmar que natildeo participam da seleccedilatildeo dos

conteuacutedos e nem sabem quem os elabora apenas os recebem das matildeos da diretora

do Regional que tambeacutem recebe das matildeos dos teacutecnicos da SEMED Os

conhecimentos escolares denominado pelo sistema educacional como conteuacutedos jaacute

vecircm prontos listados por ano e divididos nos bimestres para serem ensinados

independentemente do contexto no qual a escola estaacute inserida Isto colabora para a

exclusatildeo dos alunos que natildeo se adaptam ao processo de transmissatildeo de

conhecimento sem sentido e significado para eles

Fotografia 43 ndash Lista de conteuacutedos da disciplina Ciecircncias

SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCACcedilAtildeO

LISTA DE CONTEUacuteDOS PARA O 4ordm ANO DO

ENSINO FUNDAMENTAL

DISCIPLINA CIEcircNCIAS

1ordm BIMESTRE

1 Planeta Terra e Ambiente

11 A atmosfera terrestre

12 A aacutegua no planeta

13 O solo tipos de solo

22 Os seres vivos dos ecossistemas

2ordm BIMETRE

1 O corpo humano

11 Sustentaccedilatildeo e movimento

12 As partes do corpo humano

13 Os microrganismos

167

Fonte Escola Poacutelo do Regional Madeira 2016

A fotografia acima retrata a lista dos conteuacutedos jaacute divididos por bimestre da

disciplina Ciecircncias para o 4ordm ano do ensino fundamental como afirmam os

professores ela eacute encaminhada pela SEMED para ser desenvolvida em todas as

escolas pertencentes ao sistema municipal de ensino A imagem abaixo mostra o

registro de fragmentos do conteuacutedo desenvolvido nas aulas transcrito no caderno de

um aluno do 4ordm ano do ensino fundamental

Fotografia 44 ndash Fragmentos do conteuacutedo sobre ldquoecossistemardquo no caderno de

aluno

Fonte Anotaccedilotildees de aula do caderno de aluno 2016

O conteuacutedo foi transcrito para o caderno sem fazer a relaccedilatildeo com o

ecossistema da ilha do Accedilaiacute75 Nesse sentido no curriacuteculo oficial natildeo haacute espaccedilo para

o saber popular oriundo das comunidades ribeirinhas Essa forma de exclusatildeo dos

saberes locais eacute o que Mignolo (2000) denomina de Geopoliacutetica do conhecimento que

se refere agraves relaccedilotildees entre espaccedilo e poder que geram as hierarquias entre os

diferentes sistemas de conhecimento quando relacionamos espaccedilo poder e saber

75 O professor copiou o conteuacutedo no quadroque foi posteriormente transcrito para o caderno pelos alunos Natildeo houve uma discussatildeo referente ao ecossistema presente nas comunidades ribeirinhas que fazem parte do cotidiano dos alunos

Ecossistemas O conjunto de seres vivos e de elementos natildeo vivos que se relacionam no ambiente chamamos de Ecossistemas Os ecossistemas podem ser naturais ou artificiais Florestas campos desertos mares e rios satildeo exemplos de ecossistemas naturais porque se formam espontaneamente na natureza Accediludes aquaacuterios jardins campos cultivados satildeo alguns exemplos de ecossistemas artificiais porque satildeo criados pelo ser humano No ecossistema de um jardim por exemplo vivem seres que dependem uns dos outros as minhocas dependem do solo as plantas dependem da aacutegua e da luz as formigas dependem das plantas e as aranhas dependem das formigas para se alimentar O conjunto de todos os ecossistemas do planeta Terra eacute chamado de biosfera Portanto a biosfera compreende o meio aquaacutetico e o meio terrestre

168

Assim os ribeirinhos falam da regiatildeo Norte Amazocircnia (espaccedilo) onde ainda predomina

no imaginaacuterio da populaccedilatildeo de outras regiotildees do Brasil e de outros paiacuteses (poder) que

aqui somos inferiores atrasados e ignorantes Eacute a configuraccedilatildeo do que afirma Castro-

Goacutemez (2006) ser uma reconhecida supremacia eacutetnica e cognitiva do colonizador em

relaccedilatildeo ao colonizado

O curriacuteculo nunca eacute apenas um conjunto neutro de conhecimentos [] Ele eacute sempre parte de uma tradiccedilatildeo seletiva resultado da seleccedilatildeo de algueacutem da visatildeo de algum grupo acerca do que seja conhecimento legiacutetimo Eacute produto de tensotildees conflitos e concessotildees culturais poliacuteticas e econocircmicas que organizam e desorganizam um povo (APPLE 1994 p 59)

Neste sentido a cultura hegemocircnica eacute imposta por meio dos valores haacutebitos e

costumes o que contribui para a baixa autoestima dos alunos que natildeo veem os seus

saberes contemplados no curriacuteculo desenvolvido pela escola Nessa loacutegica Moreira e

Candau (2008) admitem que as situaccedilotildees de opressatildeo e discriminaccedilatildeo tambeacutem satildeo

materializadas no curriacuteculo cotidianamente mas tambeacutem essas situaccedilotildees podem ser

contestadas desveladas e visibilizadas pelo educador e educando

As praacuteticas pedagoacutegicas baseadas na pedagogia bancaacuteria contribuem para

reproduzir preconceitos e discriminaccedilotildees em relaccedilatildeo aos sujeitos do campo

especificamente da Amazocircnia ribeirinha taxados como preguiccedilosos e ignorantes O

estigma de preguiccediloso fruto de uma visatildeo etnocecircntrica e colonizadora no entanto eacute

desconstruiacutedo quando passamos a olhar o outro a partir de sua cultura no caso da

ilha do Accedilaiacute o inverno periacuteodo das chuvas eacute a eacutepoca da colheita e venda do accedilaiacute e

o veratildeo eacutepoca de sobreviver a partir da renda gerada pela comercializaccedilatildeo do

produto Desta forma a vida dos ribeirinhos na Ilha estaacute ligada aos ciclos da

natureza

O resto do tempo eacute ocupado com atividades que geralmente estatildeo pouco articuladas com o mercado limpeza de algum igarapeacute preparaccedilatildeo de festas de santos etc garantindo parte de auto-suficiecircncia em termos modestos Daiacute alguns estereoacutetipos que comumente lhes atribuem preguiccedila inadaptaccedilatildeo para o trabalho falta de aspiraccedilatildeo pessoal (LOUREIRO 2001 p 39)

No que concerne aos conteuacutedos escolares encontramos na

pesquisaprofessores que questionam os arranjos sociais em que essas situaccedilotildees se

sustentam Dentre os mecanismos de luta estaacute o fortalecimento das identidades dos

sujeitos amazocircnidas a partir do reconhecimento dos seus saberes como dignos de

dialogar com os saberes escolares e compor a ldquolistardquo de conteuacutedos a serem

trabalhados no ano letivo

169

Na hora de definir os conteuacutedos que irei trabalhar no bimestre pego a lista da SEMED e vejo o que daacute pra trabalhar e mesclo com os saberes da comunidade (peccedilo para o professor dar exemplo de como ele faz isso) Tem o assunto O Rio na disciplina Geografia ai eu acrescento os rios lagos igarapeacutes e furos aqui da Ilha (Prof10) Pego a lista da SEMED e vejo os conteuacutedos que realmente satildeo mais importantes pros meus alunos acho importante que eles saibam os assuntos necessaacuterios pra sobreviver bem aqui na Ilha ou em outro lugar Entatildeo acrescento outros conteuacutedos relacionados a geografia do lugar a histoacuteria da comunidade e de sua famiacutelia a religiatildeo predominante na comunidade em Ensino Religioso os animais e os alimentos da regiatildeo em Ciecircncias e assim por diante (Prof2) Quem elabora essa tal lista de conteuacutedos com certeza nunca trabalhou numa escola ribeirinha e natildeo conhece a realidade daqui Os meus alunos precisam aprender a Matemaacutetica mas a Matemaacutetica pra usar na vida o Portuguecircs as Ciecircncias a Geografia e a Histoacuteria tambeacutem E esses assuntos natildeo estatildeo nos livros Entatildeo na hora de elaborar essa lista de conteuacutedos eu natildeo entendo porque natildeo nos chamam Por isso que na hora de definir que conteuacutedos trabalhar eu priorizo os da vida (Prof4)

A preocupaccedilatildeo dos professores estaacute voltada para a aprendizagem de

conteuacutedos que sejam significativos para os alunos A lista de conteuacutedos da SEMED eacute

enriquecida com os saberes populares dos alunos e da comunidade pois eles

retratam a realidade local Na fotografia a seguir uma atividade que requer a

mobilizaccedilatildeo do saber local

Fotografia 45 ndashFragmentos do conteuacutedo sobre ldquoos animaisrdquo no caderno de

aluno

Fonte Anotaccedilotildees de aula do caderno de aluno 2016

O reconhecimento de que o saber popular juntamente com os conteuacutedos da

lista encaminhada as escolas pela SEMED satildeo elementos essenciaisque precisam

fazer parte do curriacuteculo tornando-se o cerne do trabalho docente ldquosua aprendizagem

constitui condiccedilatildeo indispensaacutevel para que os conhecimentos socialmente produzidos

possam ser apreendidos criticados e reconstruiacutedos por todosas osas estudantesrdquo

Atividade

1 Preencha a tabela com os nomes dos

animais encontrados aqui na ilha e seus

respectivos haacutebitos alimentares Animal Carniacutevoro Herbiacutevoro Oniacutevoro

Paca X

Tatu X

Jacareacute X

Capiva

ra

X

Porco X

170

(MOREIRA CANDAU 2008 p 21) Desta maneira os professores procuram

selecionar o conhecimento escolar levando em consideraccedilatildeo alguns criteacuterios dentre

os quais

Importacircncia para o cotidiano dos alunos entatildeo procuro favorecer a leitura quando aprendem a ler ajudam seus pais nas atividades diaacuterias que requer esse conhecimento Como a maioria dos pais natildeo satildeo alfabetizados as crianccedilas jaacute alfabetizadas eacute quem escrevem as cartas bilhetes registram as contas feitas na mercearia e outras atividades que requerem a leitura e a escrita O domiacutenio das quatro operaccedilotildees (adiccedilatildeo subtraccedilatildeo multiplicaccedilatildeo e divisatildeo) para dar troco e natildeo deixar se enganar ou enganarem seus pais na hora de vender a saca ou paneiro de accedilaiacute entre outros (Prof6) Eu seleciono aqueles que eu acho mais importantes por exemplo o substantivo eacute importante o aluno conhecer o aluno tem que saber como conjugar um verbo quando ele se dirigir a uma pessoa o aluno tem que conhecer alguns pronomes Eu acho isso muito importante aleacutem de trabalhar textos para eles saberem interpretar (Prof9) Uso como criteacuterio na hora de selecionar os assuntos o que acho mais significativo pra eles aprenderem assim dou prioridade a Liacutengua Portuguesa e Matemaacutetica Faccedilo a relaccedilatildeo dos conteuacutedos com a realidade deles trabalho as quatro operaccedilotildees fundamentais assim como as unidades de medida como o quilograma o metro e outros para usar nas atividades da venda do camaratildeo peixe e accedilaiacute e nas compras na cidade (Prof2)

Os conteuacutedos satildeo selecionados segundo a relevacircncia para as atividades

sociais e produtivas De acordo com Libacircneo (2004) os conhecimentos satildeo relevantes

para a vida concreta quando ampliam o conhecimento da realidade instrumentalizam

os alunos a pensar metodicamente a raciocinar a desenvolver a capacidade de

abstraccedilatildeo enfim a pensar a proacutepria praacutetica Isso implica a incorporaccedilatildeo das

experiecircncias e vivecircncias dos educandos a partir de situaccedilotildees concretas contrapondo-

se a uma visatildeo idealizada e valores distanciados do cotidiano Para Freire (2003 p

31) eacute essencial conhecer a realidade para transformaacute-la

Eacute importante fazer ver que a reflexatildeo natildeo eacute suficiente para o processo de libertaccedilatildeo Necessitamos da praacutexis ou em outras palavras necessitamos transformar a realidade em que nos encontramos Mas para transformar a realidade para desenvolver minha accedilatildeo sobre a realidade transformando-a eacute necessaacuterio conhecer a realidade Por isso em minha praacutexis eacute necessaacuterio que haja constante unidade entre minha accedilatildeo e minha reflexatildeo (grifo nosso)

Corroborando com esse ponto de vista Moreira e Candau (2008 p 21)

destacam que relevacircncia estaacute na importacircncia ldquoem tornar as pessoas capazes de

compreender o papel que devem ter na mudanccedila de seus contextos imediatos e da

sociedade em geral bem como ajudaacute-las a adquirir os conhecimentos e as habilidades

necessaacuterias para que isso aconteccedilardquo Os conhecimentos escolares servem como

171

suporte para pensar a proacutepria praacutetica a partir do questionamento sobre a realidade na

qual estamos inseridos mas para isso faz-se necessaacuterio que sejam relevantes Nesse

sentido o domiacutenio da leitura e da escrita assim como das operaccedilotildees fundamentais

na Matemaacutetica satildeo habilidades essenciais para a mudanccedila de postura frente aos

comerciantes e atravessadores que barganham o fruto da produccedilatildeo do trabalho

ribeirinho

Os professores tambeacutem questionam a natildeo participaccedilatildeo na definiccedilatildeo dos

conhecimentos a serem trabalhados nas diversas disciplinas que compotildeem o curriacuteculo

da educaccedilatildeo baacutesica das escolas ribeirinhas Hage (2004) acredita que aleacutem dos

professores os estudantes pais e membros da comunidade tambeacutem devem fazer

parte desta escolha pois eles tecircm muito a dizer e ensinar ldquosobre os conhecimentos

que devem ser selecionados para a educaccedilatildeoescolarizaccedilatildeo dos seres humanos os

quais contribuiratildeo significativamente para a produccedilatildeo da identidade individual e

coletiva dos sujeitos (p 4)

Para que o conhecimento escolar seja relevante e significativo torna-se

necessaacuterio o envolvimento dos sujeitos que fazem parte da comunidade escolar na

sua definiccedilatildeo Nas escolas que compotildeem o Regional Madeira esses conhecimentos

jaacute satildeo preestabelecidos de forma homogecircnea pelos especialistas que natildeo conhecem

e talvez nunca tenham estado em uma escola ribeirinha Na pesquisa encontramos

professores que seguem literalmente o que eacute estabelecido deixando claro a

colonialidade do saber pois soacute reconhecem como vaacutelido o conhecimento escolar Mas

tambeacutem encontramos outros que procuram romper com esta colonialidade e incluem

conteuacutedos que tenham relevacircncia e significado para os educandos em uma

perspectiva dialoacutegica assim ldquoos saberes da experiecircncia cotidiana no diaacutelogo com os

conhecimentos selecionados pela escola propiciaratildeo o avanccedilo na construccedilatildeo e

apropriaccedilatildeo do conhecimento por parte dos educandos e dos educadoresrdquo (HAGE

2004 p 4)

A seguir analisamos a partir das falas dos professores um dos instrumentos

mais utilizados para a transmissatildeo do conhecimento escolar nas classes

multisseriadas o livro didaacutetico presente em todas as escolas investigadas

422O Livro Didaacutetico

Geacuterard e Roegiers (2000 p19) definem o livro didaacutetico como ldquoum instrumento

impresso intencionalmente estruturado para se inscrever num processo de

aprendizagem com o fim de lhe melhorar a eficaacuteciardquo A intencionalidade eacute expliacutecita

172

ele carrega uma concepccedilatildeo de ensino e aprendizagem de conhecimento assim como

visotildees de mundo e valores Como nos diz Lopes (2007 p 208) ldquoeacute uma versatildeo

didatizada do conhecimento para fins escolares eou com o propoacutesito de formaccedilatildeo de

valoresrdquo

Conforme depoimento dos professores ribeirinhos o livro eacute um dos materiais

didaacuteticos mais utilizados para o ensino e aprendizagem dos alunos ldquouso todos os dias

o livro didaacutetico ateacute porque eacute o uacutenico recurso que tenho disponiacutevel aqui na escola e

cada aluno tem o seu ele serve tambeacutem para planejar as aulasrdquo (Prof5) Desta

maneira o livro serve como orientador do trabalho docente nas classes

multisseriadas Este instrumento pedagoacutegico possibilita a compreensatildeo do conteuacutedo

por conter mapas ilustraccedilotildees graacuteficos e outros recursos visuais de acordo com os

docentes

Portanto diante da escassez de recursos didaacuteticos tais como mapas globos

jogos pedagoacutegicos e outros assim como de cartolina cola tesoura papel laacutepis de

cor e demais recursos necessaacuterios para a mediaccedilatildeo da aprendizagem o professor

acaba preso ao livro como uacutenico recurso disponiacutevel para trabalhar com todos os seus

alunos

Aqui no interior natildeo temos material didaacutetico entatildeo soacute nos resta o livro que os alunos recebem no iniacutecio do ano Agraves vezes queremos fazer uma aula diferente mas natildeo temos material pra isso falta cartolina cola e ateacute tesoura para trabalhos praacuteticos (Prof 5) O uacutenico mapa que agente encontra eacute o que estaacute no livro didaacutetico Jaacute pedi tanto pra diretora trazer um mapa do Brasil laacute da SEMED mas ainda natildeo fui ouvido Jaacute fizemos alguns jogos com cartolina laacutepis de cor pincel cola e tesoura que comprei em Macapaacute Como o nosso salaacuterio mal daacute pra comer entatildeo natildeo tem como comprar direto estes materiais (Prof 8)

Quanto ao uso o livro didaacutetico tem sido utilizado de diferentes formas Segundo

as observaccedilotildees feitas na sala de aula para a maioria dos professores o livro eacute a

buacutessola que norteia a sua praacutetica em todas as atividades desde as de sala de aula

ateacute os deveres de casa Presenciei situaccedilotildees didaacuteticas nas quais os alunos foram

organizados por ano para fazer a leitura oral na mesa do professor e quando natildeo

conseguiam ler a palavra76 do texto em estudo retornavam agraves suas cadeiras para

treinar a pronuacutencia correta Era o dia da leitura durante um dia na semana o professor

escolhia um texto do livro didaacutetico e os alunos faziam a leitura individual O livro

tambeacutem direciona o curriacuteculo

76 Geralmente eram palavras que natildeo faziam parte do universo vocabular dos educandos ribeirinhos

173

Os assuntos estatildeo todos no livro entatildeo eacute soacute pedir para que os alunos abram nas paacuteginas que iremos estudar de acordo com cada disciplina Por exemplo na segunda-feira temos aula de Liacutengua Portuguesa Ciecircncias e Histoacuteria entatildeo eacute soacute abrir a paacutegina dos livros que constam os conteuacutedos dessas disciplinas O dever de casa tambeacutem eacute no livro (Prof 3) Para os alunos do preacute-escolar uso direto a cartilha e tambeacutem com os da 1ordf seacuterie que ainda natildeo leem Isso ajuda muito a gente que precisa de tempo para dar atenccedilatildeo para as outras seacuteries Enquanto os do preacute-escolar estatildeo ocupados com atividade da cartilha aproveito para tirar duacutevidas das outras seacuteries (Prof7)

A fala do prof 7 descreve as estrateacutegias que utiliza para conseguir ministrar

aula para trecircs seacuteries ao mesmo tempo e no mesmo espaccedilo para que isso ocorra o

livro didaacutetico eacute peccedila fundamental O uso da cartilha guia o processo de alfabetizaccedilatildeo

atraveacutes da resoluccedilatildeo das atividades propostas com o objetivo do ensino da leitura e

da escrita de forma mecacircnica e linear Os conteuacutedos satildeo provenientes do livro e aos

alunos cabe a reproduccedilatildeo da leitura de siacutelabas palavras frases e textos sem

significado e vazios dos saberes oriundos de sua cultura Desta maneira o curriacuteculo

eacute direcionado pelo livro didaacutetico por meio das atividades propostas orienta-se a

praacutetica do professor

Romanatto (2007) ratifica essa posiccedilatildeo quando afirma que o livro didaacutetico assim

utilizado substitui o professor em vez de ser elemento de apoio ao seu trabalho Assim

os conteuacutedos e meacutetodos utilizados satildeo os mesmo do livro ldquoum livro que promete tudo

pronto tudo detalhado bastando mandar o aluno abrir a paacutegina e fazer exerciacutecios eacute

uma atraccedilatildeo irresistiacutevelrdquo (p 67) principalmente quando se trabalha com vaacuterias seacuteries

na mesma sala e somente quatro horas de aula para ministrar os conteuacutedos Para

Santos e Carneiro (2006 p 206) o livro didaacutetico tem trecircs principais finalidades na

escola

[] de informaccedilatildeo de estruturaccedilatildeo e organizaccedilatildeo da aprendizagem e finalmente a funccedilatildeo de guia do aluno no processo de apreensatildeo do mundo exterior Deste modo a uacuteltima funccedilatildeo depende de o livro permitir que aconteccedila uma interaccedilatildeo da experiecircncia do aluno e atividades que instiguem o estudante desenvolver seu proacuteprio conhecimento ou ao contraacuterio induzi-lo aacute repeticcedilotildees ou imitaccedilotildees do real Entretanto o professor deve estar preparado para fazer uma anaacutelise criacutetica e julgar os meacuteritos do livro que utiliza ou pretende utilizar assim como para introduzir as devidas correccedilotildees eou adaptaccedilotildees que achar conveniente e necessaacuterias

O reconhecimento da importacircncia do livro didaacutetico para a sistematizaccedilatildeo das

aulas e por ser um dos recursos a que todos os estudantes tecircm acesso poderia ser

um instrumento para a construccedilatildeo de um ambiente de sala de aula que represente o

ensino como um processo de elaboraccedilatildeo coletiva e cooperativa entre educador e

174

educandos Mas para isso faz-se necessaacuterio reconhecer que ele natildeo eacute suficiente

precisa de outras fontes de informaccedilatildeo que possam contribuir na aprendizagem dos

conteuacutedos dentre elas os saberes populares

Acreditamos que o livro didaacutetico possa possibilitar ao professor mediar a

construccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico pelo aluno para que este se aproprie dessa

linguagem e desenvolva valores eacuteticos mediante os avanccedilos da ciecircncia

contextualizada e socialmente relevante mas sem negar os seus valores e saberes

Santos (2000) propotildee que esses saberes dialoguem entre si de uma maneira em que

natildeo haja hierarquias entre eles

O livro didaacutetico tambeacutem veicula uma realidade diferente das que vive os alunos

na Ilha pois eacute produzido em outras regiotildees do paiacutes

As cartilhas trazem nome de frutas e animais que as crianccedilas natildeo conhecem e eacute a partir das letras iniciais dessas palavras que inicia o processo da leitura e escrita Sei que as crianccedilas devem conhecer que existem outros tipos de frutas e animais mas acho que se iniciarmos a alfabetizaccedilatildeo com o que elas jaacute conhecem o caminho natildeo seria tatildeo suado para aprender (Prof 3) O livro eacute muito importante para o nosso trabalho e aprendizagem dos alunos mesmo porque eacute o uacutenico material impresso para a leitura que temos mas natildeo aborda os nossos problemas ateacute que tento fazer a ponte entre o conteuacutedo que ele traz e a realidade que vivemos aqui na Ilha mas nem sempre eacute possiacutevel (Prof 8)

Os professores frisam a relevacircncia de abordar conteuacutedos significativos e

contextualizados de acordo com a realidade dos estudantes para que possam

relacionaacute-los com o seu dia-a-dia o que os conteuacutedos do livro didaacutetico nem sempre

permitem por serem globais natildeo contextualizam os saberes e as problemaacuteticas

regionais bem como as locais

Fotografia 46 ndash Conteuacutedo referente ao tem ldquomoradiardquo abordado no livro didaacutetico

da disciplina Artes para o 1ordm 2ordm e 3ordm ano do ensino fundamental

175

Fonte Livro didaacutetico da disciplina Artes 2016

Na imagem acima o conteuacutedo ldquomoradiardquo aborda a realidade da aacuterea urbana da

cidade de Paragominas no Estado do Paraacute bem como de uma cidade situada em

outro paiacutes a Alemanha Ambas as imagens retratam moradias em apartamentos o

que difere da realidade habitacional dos ribeirinhos As criacuteticas ao livro didaacutetico vatildeo

aleacutem das questotildees relacionadas agrave realidade ribeirinha pois abordam tambeacutem uma

avaliaccedilatildeo dos conteuacutedos que natildeo proporcionam uma abordagem mais aprofundada

do assunto

Como o assunto no livro didaacutetico vem resumido natildeo apresenta uma abordagem aprofundada eu pesquiso nos livros que tenho para eu aprender e depois ensinar aos alunos e desta maneira procuro orientar meus alunos para aprender mais sobre determinado conteuacutedo os exerciacutecios que ele traz tambeacutem contribuem para a verificaccedilatildeo da aprendizagem (Prof 4) Uma das maiores dificuldades para noacutes professores do interior estaacute na aquisiccedilatildeo de livros para pesquisar os assuntos O livro que os alunos recebem vem com o assunto resumido demais e aiacute como eacute que a gente vai ensinar um assunto que natildeo entendemos e que natildeo tem onde pesquisar Por isso que alguns colegas acabam dando o livro para os alunos e pedem para transcrever o assunto do livro paro o caderno e depois fazer os exerciacutecios (Prof2) Admito que o livro didaacutetico eacute muito importante pra noacutes que lecionamos aqui ele contribui para o processo de ensino Eacute a forma mais faacutecil de ter acesso aos conteuacutedos Por outro lado alguns colegas ficam presos a ele o que acaba prejudicando no aprendizado do aluno pois muitos apresentam conteuacutedos fragmentados Agraves vezes natildeo trazem questionamentos que instiguem o aluno a raciocinar sobre o que estaacute sendo discutido (Prof 6)

Aleacutem do livro didaacutetico os professores procuram na medida do possiacutevel

pesquisar em outras fontes para entender primeiro o conteuacutedo e posteriormente

ensinaacute-los aos alunos Segundo Lajolo (2001) se faz necessaacuterio que o professor

MUITAS PESSOAS VIVEM EM PREacuteDIOS SAtildeO CONSTRUCcedilOtildeES COM MUITAS HABITACcedilOtildeES CHAMADAS APARTAMENTOS PREacuteDIO 1 (Imagem) OBSERVE BEM ESTE PREacuteDIO PREacuteDIO 2 (imagem) VOCEcirc JAacute HAVIA VISTO UMA CONSTRUCcedilAtildeO COMO ESTAacute PARECE DE MENTIRINHA NAtildeO Eacute MESMO MAS NAtildeO Eacute ESSE PREacuteDIO Eacute DE VERDADE E FOI CONSTRUIacuteDO NA ALEMANHA TEM 105 APARTAMENTOS UM DIFERENTE DO OUTROSEU IDEALIZADOR Eacute O ARTISTAHUNDERTWASSER ELE NASCEU EM 1928 NA AUSTRIA E SEMPRE SE PREOCUPOU COM O

176

utilize outros recursos pedagoacutegicos para o desenvolvimento de suas aulas ldquopois

nenhum livro por melhor que seja deve ser utilizado sem adaptaccedilotildees e

complementaccedilotildeesrdquo(p 8) O problema estaacute nas condiccedilotildees de trabalho docente as

escolas da Ilha do Accedilaiacute natildeo possuem bibliotecas entatildeo os uacutenicos materiais de

pesquisa satildeo os livros que os professores compram e o que os alunos possuem no

caso os entregues no iniacutecio das aulas de cada ano letivo Na maioria das escolas o

livro didaacutetico torna-se a uacutenica referecircncia para o trabalho do professor e direciona a

seleccedilatildeo planejamento e desenvolvimento dos conteuacutedos em sala de aula

O livro nas classes multisseriadas eacute o siacutembolo que caracteriza a seriaccedilatildeo para

cada ano um livro especiacutefico com conhecimentos sistematizados e reconhecidos

como verdades absolutas que servem para escamotear a realidade atendendo aos

interesses econocircmicos sociais e culturais dominantes na sociedade Ao professor

cabe romper com as viseiras que escondem os reais interesses poliacuteticos e ideoloacutegicos

veiculados nos textos e imagens impressos nesses livros Os professores utilizam

diversas estrateacutegias para rompecirc-las de acordo com os depoimentos abaixo

Uso o livro mais como fonte de informaccedilatildeo e para dar outra visatildeo sobre o conteuacutedo que estamos estudando Procuro explorar o maacuteximo que posso as situaccedilotildees e os problemas do dia a dia da comunidade relacionados com o conteuacutedo (Prof 2) Procuro explorar os textos e as imagens de forma criacutetica os alunos precisam aprender a lecirc-las e interpretaacute-las soacute assim seratildeo capazes de fazer a relaccedilatildeo do mundo em que vivem com os outros mundos (Prof 4) Eu pego o assunto do livro faccedilo uma seleccedilatildeo do que eacute mais importante de acordo com a realidade da localidade que a gente vive da vida que levamos acredito que o professor necessita ter essa leitura criacutetica de mundo (Prof 6) Os livros natildeo trazem textos que falam da mata do rio das coisas da Amazocircnia dos problemas que fazem parte da nossa vida entatildeo o livro didaacutetico serve como um instrumento para o exerciacutecio da leitura e reflexatildeo em relaccedilatildeo agraves outras realidades diferente da que vivemos (Prof 8)

Mesmo para os professores ribeirinhos com uma visatildeo mais criacutetica da

educaccedilatildeo o livro didaacutetico continua sendo um instrumento indispensaacutevel para a praacutetica

pedagoacutegica mas eles tecircm a consciecircncia de que os conteuacutedos das disciplinas que

compotildeem o curriacuteculo escolareacute um veiacuteculo de inculcaccedilatildeo dos valores ideoloacutegicos e

culturais hegemocircnicos portanto torna-se poliacutetico na medida em que produz valores

da sociedade em relaccedilatildeo agrave sua visatildeo de ciecircncia da histoacuteria da interpretaccedilatildeo dos fatos

e do proacuteprio processo de transmissatildeo do conhecimento Ainda que contribua para a

177

mediaccedilatildeo dos conteuacutedos ele natildeo se limita somente aos da dimensatildeo pedagoacutegica e

as suas possiacuteveis influecircncias na aprendizagem e no desempenho dos educandos

Dentre os livros mais utilizados na praacutetica docente estatildeo os de Alfabetizaccedilatildeo

Liacutengua Portuguesa e Matemaacutetica

Uso mais o de alfabetizaccedilatildeo e no segundo semestre o de Matemaacutetica e de Liacutengua Portuguesa que eacute utilizado para fazer leitura Os alunos escolhem neste livro uma leitura para fazer todos os dias (Prof5) Soacute trabalho com o livro de Matemaacutetica natildeo utilizo os outros porque os assuntos satildeo resumidos demais entatildeo uso os livros que trago sempre comigo para aonde vou (Prof9) Os livros didaacuteticos que mais uso satildeo os de Liacutengua Portuguesa e Matemaacutetica Satildeo os mais necessaacuterios noacutes precisamos mais de Portuguecircs e da Matemaacutetica Para mim as duas disciplinas mais importantes para eles satildeo estas as outras eu trabalho menos (Prof 3)

O domiacutenio da leitura e da escrita eacute o objetivo da alfabetizaccedilatildeo tanto na

educaccedilatildeo infantil como no 1ordm ano por isso a cartilha eacute um recurso fundamental para

a praacutetica docente A prioridade concedida agrave Liacutengua Portuguesa e agrave Matemaacutetica em

detrimento das outras disciplinas estaacute relacionada agrave questatildeo do poder que essas

mateacuterias exercem dentro do curriacuteculo Como afirmam Moreira e Candau (2008 p 25)

[] nessa hierarquia se supervalorizam as chamadas disciplinas cientiacuteficas secundarizando-se os saberes referentes agraves artes e ao corpo Nessa hierarquia separa-se a razatildeo da emoccedilatildeo a teoria da praacutetica o conhecimento da cultura

O professor parte do princiacutepio de que o domiacutenio da leitura da escrita e das

quatro operaccedilotildees fundamentais (adiccedilatildeo subtraccedilatildeo multiplicaccedilatildeo divisatildeo) eacute a base

para a aprendizagem dos conhecimentos de Histoacuteria Geografia Artes e outras

disciplinas Tal visatildeo estaacute balizada em uma concepccedilatildeo bancaacuteria de educaccedilatildeo que natildeo

reconhece os saberes que emergem das praacuteticas sociais dos educandos natildeo os

concebe como produtores desses saberes e sim como meros reprodutores dos

conhecimentos oriundos do livro didaacutetico assim para reproduzi-los eacute preciso saber

ler para transcrevecirc-los

Os professores tambeacutem satildeo excluiacutedos da escolha do livro didaacutetico adotado no

ano letivo esta competecircncia fica a cargo dos teacutecnicos em educaccedilatildeo lotados na

Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo que decidem qual a melhor cartilha para alfabetizar

e os melhores livros para educar os ribeirinhos As criacuteticas soam como um protesto

contra a exclusatildeo e a alienaccedilatildeo de que satildeo viacutetimas enquanto uma elite intelectual

decide eles executam o que foi decidido

178

Trabalho haacute mais de 15 anos como professora em escolas ribeirinhas e nunca fui chamada para escolher o livro que gostaria de trabalhar com os meus alunos Nunca ningueacutem perguntou minha opiniatildeo sobre os livros que vecircm para a escola Apenas mandam e a gente obedece (Prof2) Noacutes recebemos os livro das matildeos da diretora do Regional natildeo sei quem eacute que escolhe Agente natildeo tem nenhuma participaccedilatildeo na escolha tanto que vecircm muitas coisas que satildeo mais para a zona urbana que rural praticamente da zona rural natildeo tem nada (Prof4)

Aleacutem de natildeo escolherem o livro de acordo com a sua concepccedilatildeo de ensino e

de aprendizagem ainda precisam utilizar os que foram selecionados pois satildeo os

uacutenicos recursos disponiacuteveis para atender agrave diversidade de seacuteries em uma turma

multisseriada

O Programa Nacional do Livro Didaacutetico (PNLD) apresenta dentre os seus

objetivos a participaccedilatildeo ativa e democraacutetica do professor no processo de seleccedilatildeo e

escolha dos livros didaacuteticos portanto eacute funccedilatildeo do professor garantido pelo PNLD

em escolher o livro que gostaria de trabalhar com seus alunos de acordo com a sua

concepccedilatildeo de educaccedilatildeo O uso pedagoacutegico deste recurso requer um planejamento

para que possa estabelecer o diaacutelogo entre os conhecimentos disponibilizados pelos

livros didaacuteticos e osconhecimentos trazidos pelos estudantes pois eacute na interaccedilatildeo

entre o saber que se traz do mundo e o saber trazido pelos livros que o conhecimento

avanccedila (LAJOLO 2001) A seguir discutimos o planejamento realizado pelos

docentes das escolas da ilha do Accedilai

423O Planejamento das Aulas

Entendemos como plano de aula a organizaccedilatildeo das accedilotildees didaacuteticas por meio

das atividades que norteiam a praacutetica diaacuteria do professor em interaccedilatildeo com os alunos

nos diversos espaccedilos de aprendizagem seja a sala de aula ou outros ambientes de

acordo com os objetivos propostos para a aula Segundo Libacircneo (2004 p 221) ldquoo

planejamento escolar eacute uma tarefa docente que inclui tanto a previsatildeo das atividades

didaacuteticas em termos de organizaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo em face dos objetivos propostos

quanto a sua revisatildeo e adequaccedilatildeo no decorrer do processo de ensinordquoPor intermeacutedio

do planejamento o professor define o que ensinar como ensinar e tambeacutem o avaliar

assim racionaliza organiza e projeta a articulaccedilatildeo entre a escola e o contexto no qual

ela estaacute inserida

Nesse sentido planejar vai aleacutem do pedagoacutegico tornando-se um ato poliacutetico

ldquonatildeo haacute educaccedilatildeo neutra toda neutralidade afirmada eacute uma opccedilatildeo escondidardquo

(FREIRE 1980 p 49) O professor ao planejar faz opccedilotildees de educar para a

179

conscientizaccedilatildeo e mudanccedila ou para a manutenccedilatildeo das relaccedilotildees de dominaccedilatildeo

poliacutetica econocircmica e cultural que caracterizam a sociedade capitalista Nesse prisma

o planejamento pode ser utilizado como uma ferramenta capaz de interferir no real

para transformaacute-lo para isso tem como atribuiccedilatildeo dar rumo agrave accedilatildeo docente de

maneira consciente e organizada com vistas a proporcionar as devidas mudanccedilas

O planejamento sem duacutevida pode colocar-se como um instrumento teoacuterico-metodoloacutegico para a intervenccedilatildeo na realidade Todavia mais do que instrumento ou ferramenta queremos apontar para a possibilidade de entendermos e vivenciarmos o planejamento como meacutetodo de trabalho do educador qual seja como postura (algo reelaborado interiorizado pelo sujeito) como forma de organizar a reflexatildeo e a accedilatildeo como estrateacutegia global de posicionamento diante da realidade (VASCONCELOS 2006 p 75)

Para o autor o planejamento eacute um ato poliacutetico e pedagoacutegico por ser intencional

porque descreve o que se deseja realizar e atingir por meio dos objetivos que se

corporificam nas accedilotildees planejadas para intervir na realidade Os elementos do

planejamento segundo o autor trazem em seu bojo a opccedilatildeo poliacutetica do educador

amparada em uma concepccedilatildeo pedagoacutegica de transmissatildeo ou problematizaccedilatildeo do

conhecimento a partir da realidade na qual a escola estaacute imersa e dos valores sociais

eacuteticos e culturais dos professores alunos e pais

Para isso as aulas devem ser planejadas de acordo com a realidade

sociocultural e conhecimento dos educandos bem como o plano precisa ter clareza e

objetividade conhecimento dos recursos disponiacuteveis para professores e alunos

conexatildeo entre a teoria e a praacutetica flexibilidade frente a situaccedilotildees imprevistas

realizaccedilatildeo de pesquisas buscando diferentes fontes bibliograacuteficas e utilizaccedilatildeo de

metodologias que proporcionem a participaccedilatildeo ativa dos educandos no processo de

ensino e aprendizagem (VASCONCELOS 2006 LIBANEO2004)

A seguir apresentamos as maneiras como os professores do Regional Madeira

elaboram o planejamento Classificamos em duas categorias a partir da perspectiva

colonizadora e a partir da perspectiva descolonizadora

4231 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma perspectiva

colonizadora

A perspectiva colonizadora caracteriza-se pela imposiccedilatildeo do conhecimento

escolar no ato de planejar e a negaccedilatildeo do saber popular configurando a colonialidade

do saber pois eacute no vieacutes epistemoloacutegico que o colonialismo assume maior

centralidade com uma perspectiva redutora do conhecimento impossibilitando o

surgimento de outras perspectivas epistemoloacutegicas

180

O que prevalece eacute o conhecimento escolar baseado na razatildeo indolente

considerada uacutenica e hegemocircnica silenciando excluindo e tornando ausente as outras

formas de saber como as dos povos da Amazocircnia dentre eles os ribeirinhos Dessa

maneiraacabam colonizando o pensamento por meio de uma uacutenica loacutegica a

eurocecircntrica Isso foi produzido historicamente segundo Mignolo (2003) no processo

de formaccedilatildeo do sistema colonialmoderno que gerou esta geopoliacutetica do

conhecimento na qual as teorias dominantes satildeo as produzidas nos paiacuteses

hegemocircnicos e impostas como universais aos paiacuteses colonizados

epistemologicamente

Dentre os professores sujeitos desta pesquisa enfatizamos as falas dos que

consideramos estarem incluiacutedos numa visatildeo colonizadora do saber Lembrando que

os professores trabalham no acircmbito de uma estrutura de dominaccedilatildeo portanto suas

praacuteticas natildeo satildeo totalmente descolonizadoras muitas carregam em si reflexos da

estrutura de dominaccedilatildeo o que se reflete nas praacuteticas colonizadoras No periacuteodo em

que foi realizada a pesquisa de campo identificamos praacuteticas pedagoacutegicas

colonizadoras e tambeacutem as descolonizadoras desenvolvidas por um mesmo

professor Mas procuramos destacar nesta seccedilatildeo as que consideramos

colonizadoras Em relaccedilatildeo a elaboraccedilatildeo do planejamento

Trabalho com o preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano entatildeo elaboro um plano pra cada ano pego a lista de conteuacutedos que jaacute vem dividido os assuntos por bimestre e planejo como vou trabalhaacute-los O preacute-escolar eu tambeacutem trabalho a alfabetizaccedilatildeo entatildeo eacute o mesmo plano do 1ordm ano (Prof 5) Planejo de acordo com os conteuacutedos do livro as atividades de avaliaccedilatildeo tambeacutem satildeo as do livro ateacute porque natildeo daacute tempo de fazer um planejamento para preacute-escolar 1ordm 2ordm 3ordm 4ordm e 5ordm ano Se eu for fazer um para cada ano passarei o dia todo planejando(Prof 9) Faccedilo um plano para cada ano Elaboro o horaacuterio das disciplinas que trabalho na semana por exemplo na segunda-feira trabalho Portuguecircs Ciecircncias Histoacuteria em todos os anos Aiacute elaboro o plano dessas disciplinas com os conteuacutedos que vecircm da SEMED (Prof 3) O meu plano estaacute de acordo com os conteuacutedos do livro didaacutetico por isso organizo a turma por ano e peccedilo para que leiam os textos relacionados ao assunto que vamos trabalhar no dia e que faccedilam as atividades que tambeacutem estatildeo no livro Temos pouco tempo para fazer outras tarefas pois trabalho com 3ordm 4ordm e 5ordm ano e precisamos cumprir o programa estipulado pela SEMED (Prof 1)

O planejamento eacute feito para cada ano separadamente os conteuacutedos satildeo os

oriundos da proposta elaborada pela Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo sem levar em

consideraccedilatildeo o contexto no qual a escola estaacute imersa O livro didaacutetico eacute o guia para o

181

planejamento dos professores Dentre os motivos para que isso ocorra estatildeo lecionar

para os vaacuterios anos do ensino fundamental no mesmo horaacuterio de aula o que

impossibilita o professor de elaborar um plano para cada ano o livro didaacutetico ser o

uacutenico recurso pedagoacutegico disponiacutevel para o processo de ensino e aprendizagem na

escola e o fato de todos os alunos terem acesso a este material

Pelas falas dos docentes o planejamento mesmo direcionado pelo livro

didaacutetico tem como base a divisatildeo da classe de acordo com o ano Desta maneira a

turma multisseriada eacute dividida em partes e cada uma dessas partes com atividades

especiacuteficas o que impossibilita a realizaccedilatildeo de trabalhos nos quais os alunos possam

interagir com colegas de outros anos

Nesse sentido para Hage (2004 p 35) ldquoa seriaccedilatildeo eacute considerada um

problema em face da rigidez com que trata o tempo escolar impondo a fragmentaccedilatildeo

em seacuteries anuais []rdquo Assim o conteuacutedo e os alunos satildeo divididos e fragmentadosde

acordo com os anos do ensino fundamental bem como o tempo linear cronoloacutegico

das quatro horasaula diaacuterias amarra o professor que precisa transmitir os respectivos

conteuacutedos em determinado momento para o preacute-escolar e em outros para o 1ordm 2ordm

3ordm 4ordm e 5ordm ano

No planejamento a imposiccedilatildeo do conhecimento escolar por meio da lista de

conteuacutedos emanada da SEMED e do livro didaacutetico caracteriza a colonialidade do

poder (o sistema municipal de ensino define o que deve ser ensinado aos alunos

ribeirinhos)e do saber (o natildeo reconhecimento do saber popular dos educandos e a

negaccedilatildeo das praacuteticas sociais que norteiam e datildeo sentido ao cotidiano das crianccedilas e

adolescentes ribeirinhos)

Esta geopoliacutetica do conhecimento que torna ausente o saber popular por ser

oriundo de uma regiatildeo perifeacuterica possibilita-nos identificar as estruturas de poder

(quem decide que conhecimento deve ser reconhecido como vaacutelido para fazer parte

do curriacuteculo escolar) e tambeacutem do saber (o conhecimento hegemocircnico considerado

oficial) Ambas visam perpetuar a colonizaccedilatildeo epistecircmica por meio da ausecircncia e

invisibilidade de todas as formas de saberes que natildeo atendam aos interesses

hegemocircnicos

A geopoliacutetica do conhecimento desta forma hierarquiza os saberes e fortalece

as diferenccedilas entre os sistemas de conhecimento ao privilegiar o espaccedilo onde ele eacute

produzido tornando-o universalmente legiacutetimo para todos os contextos Umas das

maneiras de se contrapor a essa visatildeo poderia ser por meio da problematizaccedilatildeo do

182

mapa epistecircmico vigente no mundo a partir dos espaccedilos privilegiados das fronteiras

dos fluxos e das direccedilotildees que o criaram bem como o naturalizaram Outros caminhos

tambeacutem passam pelo reconhecimento da diversidade epistemoloacutegica por meio da

valorizaccedilatildeo dos saberes alternativos Alguns passos jaacute estatildeo sendo dados nesta

direccedilatildeo na praacutetica do planejamento das aulas de alguns professores ribeirinhos do

regional Madeira que descrevemos a seguir

4232 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma perspectiva

descolonizadora77

As praacuteticas de planejamento que denominamos descolonizadora reconhecem

que nas comunidades ribeirinhas existem manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas

proacuteprias satildeo praacuteticas que procuram dar visibilidade a essas manifestaccedilotildees aleacutem do

reconhecimento valorizam os saberes locais e os incluem nas aulas por meio de

accedilotildees pedagoacutegicas planejadas

Essas praacuteticas podem ser concebidas como formas de descolonizaccedilatildeo

intelectual no sentido de mostrar que existem outros saberes oriundos do contexto

histoacuterico econocircmico social religioso e cultural no qual vivem os educandos saberes

fronteiriccedilos como afirma Mignolo (2003) e que constituem a gnose ou pensamento

liminar

Descolonizar natildeo significa de acordo com Walsh Schiwy e Castro-Goacutemez

(2002 p 14) se desfazer ldquodas ferramentas conceituais das ciecircncias nem tampouco

das hermenecircuticas criacuteticas da sociedade mas repensar sua utilidade ou seus efeitos

sobre as relaccedilotildees coloniais perguntando ateacute que ponto perpetuam

(involuntariamente talvez) a loacutegica vigenterdquo Nessa perspectiva Santos e Meneses

(2010 p 12) afirmam que descolonizar requer intervenccedilotildees epistemoloacutegicas que

denunciam a supressatildeo dos saberes levada a cabo ao longo dos uacuteltimos seacuteculos

pela norma epistemoloacutegica dominante e que valorizam os saberes que resistiram com

ecircxito [] agraves condiccedilotildees de um diaacutelogo horizontal entre conhecimentos A proposta de

um diaacutelogo horizontal foi evidenciado na fala de alguns professores em relaccedilatildeo ao

planejamento por meio da inclusatildeo nas aulas do saber popular dos educandos da

ilha do Accedilaiacute

No planejamento aleacutem dos conteuacutedos da SEMED procuro inclui o conhecimento aqui da comunidade Nas aulas de Artes incluo a arte da

77 Como afirmamos na seccedilatildeo anterior os professores atuam dentro de uma estrutura de dominaccedilatildeo Dentro dessas estruturas as praacuteticas colonizadoras satildeo mecanismo que visam agrave descolonizaccedilatildeo epistemoloacutegica

183

comunidade como a tecelagem o artesanato a marcenaria e as manifestaccedilotildees religiosas (Prof 2) No ato de planejar o que irei trabalhar durante a semana pego a lista dos conteuacutedos verifico o que daacute pra relacionar com a realidade dos alunos vejo os problemas que estamos vivenciando e de que maneira esses conteuacutedos podem nos ajudar a entendecirc-los Agraves vezes esses conteuacutedos natildeo servem aiacute o jeito eacute extrair dos proacuteprios alunos a partir dos seus saberes (Prof 6) Procuro adequar o planejamento agrave realidade dos alunos o foco eacute a aprendizagem e tambeacutem os conteuacutedos que eles precisam aprender para usar no dia a dia aqui na comunidade e quando forem vender accedilaiacute peixe e camaratildeo em Macapaacute (Prof 4)

O planejamento de acordo com a fala dos professores parte das necessidades

dos alunos do que eles precisam no cotidiano em termos de conhecimentos daiacute a

valorizaccedilatildeo tanto do conhecimento escolar quanto dos seus saberes locais Esses

alunos participam diretamente das atividades produtivas seja com os pais ou outros

membros da famiacutelia desde a coleta do accedilaiacute bem como na venda do produto em

Macapaacute Participam tambeacutem da pesca do peixe e camaratildeo e na caccedila de animais

silvestres ou seja estatildeo envolvidos diretamente na extraccedilatildeo e comercializaccedilatildeo dos

produtos da mata e dos rios A realidade dos educandos estaacute impregnada pelo

trabalho coletivo e o envolvimento nas atividades socioculturais o que para a

professora eacute fundamental fazer parte do planejamento ldquoo processo de ensino estaacute

sempre em movimento estaacute sempre sofrendo as modificaccedilotildees face agraves condiccedilotildees

reaisrdquo (LIBAcircNEO 2004 p 223) Por isso faz-se necessaacuterio que esteja relacionado

com o contexto social econocircmico e cultural dos sujeitos envolvidos

Ao incluir no planejamento o saber popular nas aulas de Artes o professor

reconhece esses saberes como parte do universo sociocultural dos educandos e sua

importacircncia para aprendizagem significativa e contextualizada Os alunos utilizam

constantemente os produtos oriundos da tecelagem (paneiro peneira malhadeira

matapi) e da marcenaria (casco remo) os quais participam das manifestaccedilotildees

artiacutesticas e religiosas Ao incluiacute-los no planejamento das aulas o professor cria

espaccedilos para que os alunos possam ensinaacute-los e aprendecirc-los por meio da troca de

experiecircncias entre si pois satildeo ldquosaberes socialmente construiacutedos na praacutetica

comunitaacuteria ndash mas tambeacutem [] discutir com os alunos a razatildeo de ser de alguns desses

saberes em relaccedilatildeo com o ensino dos conteuacutedosrdquo (FREIRE 2007 p 30) Ao discutir

com os alunos as questotildees sociais politicas culturais e econocircmicas nas quais esses

saberes juntamente com o conhecimento escolar estatildeo inseridos o educador estaacute

contribuindo para a leitura criacutetica do mundo

184

A fala do Prof 6 ldquovejo os problemas que estamos vivenciando e de que maneira

esses conteuacutedos podem nos ajudar a entendecirc-losrdquo retrata a importacircncia do

conhecimento no sentindo de intervir no mundo real ou seja na sua utilidade a que

nem sempre o conhecimento escolar consegue responder Daiacute o reconhecimento de

outras intervenccedilotildees no real possiacuteveis por outras formas de conhecimento e por uma

ldquonecessaacuteria reavaliaccedilatildeo das intervenccedilotildees e relaccedilotildees concretas na sociedade e na

natureza que os diferentes conhecimentos proporcionamrdquo (SANTOS 2010 p 60) Um

dos exemplos eacute o manejo do accedilaiacute realizado para preservar a espeacutecie assim como os

animais silvestres e a proibiccedilatildeo de fazer roccedila para evitar a derrubada de accedilaizeiros e

a queimada da mata nativa Esses satildeo saberes que preservam a biodiversidade da

floresta Amazocircnica e ao mesmo tempo garantem a sobrevivecircncia dos ribeirinhos na

Ilha do Accedilaiacute ldquoe natildeo deveraacute espantar-nos a riqueza dos conhecimentos que

conseguiram preservar modos de vida universos simboacutelicos e informaccedilotildees vitais para

a sobrevivecircncia em ambientes hostis com base exclusivamente na tradiccedilatildeo oralrdquo

(SANTOS 2010 p 58)

O planejamento como um dos elementos da praacutetica pedagoacutegica docente eacute o

instrumento pelo qual o professor seleciona os conhecimentos que os alunos teratildeo

acesso na escola que faratildeo parte de suas aulas Desta maneira ele define qual

conhecimento deve ser ensinado o que os alunos devem saber qual conhecimento

eacute considerado importante ou vaacutelido Nesse sentido o curriacuteculo eacute sempre resultado de

uma seleccedilatildeo de uma gama de conhecimentos e saberes seleciona-se aquela parte

que vai constituir precisamente o curriacuteculo (SILVA 2009)

Nessa seleccedilatildeoprivilegia-se determinados conteuacutedos e se excluem outros Na

praacutetica descolonizadora os professores ao selecionarem os conteuacutedos privilegiam

tambeacutem os oriundos da cultura ribeirinha os que fazem parte do contexto social

econocircmico cultural e religioso assim contribuem para fortalecer as identidades

desses sujeitos Ao agir desta maneira o professor rompe com a diferenccedila colonial e

faz emergir a gnose liminar ao criar espaccedilo na sua praacutetica pedagoacutegica para a razatildeo

subalterna dialogar com a hegemocircnica sem hierarquia

No planejamento tambeacutem se definem os objetivos e os procedimentos

metodoloacutegicos para alcanccedilaacute-los bem como os recursos humanos e materiais que

seratildeo necessaacuterios para um melhor ensino e aprendizagem A seguir abordamos o

desenvolvimento do plano elaborado pelos professores que se materializa nas

metodologias de ensino

185

424 Metodologias de Ensino e Aprendizagem

A metodologia consiste no estudo dos meacutetodos ou seja dos caminhos e accedilotildees

que seratildeo adotados para alcanccedilar os objetivos finalidades ou metas Na educaccedilatildeo

as metodologias abarcam os meacutetodos procedimentos e teacutecnicas de ensino

selecionados pelo professor com o objetivo de facilitar a aprendizagem dos alunos

Desta forma diante da multiplicidade de meacutetodos a escolha dependeraacute dos objetivos

que se pretende alcanccedilar levando em consideraccedilatildeo as especificidades socioculturais

dos educandos No meacutetodo tambeacutem estatildeo impliacutecitos concepccedilotildees de educaccedilatildeo

relacionadas com uma visatildeo ingecircnua ou criacutetica da sociedade assim podemos utilizar

determinado meacutetodo para a permanecircncia ou para a transformaccedilatildeo social

Nesta perspectiva os meacutetodos segundo Martins (2006) estatildeo imbricados por

concepccedilotildees pedagoacutegicas que balizam as praacuteticas docentes que poderatildeo estar

embasadas na reproduccedilatildeo do conhecimento no qual o professor eacute visto como o dono

da verdade o uacutenico detentor do saber que tem como missatildeo ensinar aos alunos o

conhecimento dogmaacutetico que de forma passiva assimila-os numa relaccedilatildeo professor

e aluno verticalizada A realidade social eacute idealizada como imutaacutevel e estaacutetica assim

a educaccedilatildeo tem como finalidade adequar o indiviacuteduo a esta sociedade sem questionaacute-

la

As concepccedilotildees pedagoacutegicas que balizam as praacuteticas docentes tambeacutem podem

estar embasadas em um meacutetodo dialoacutegico no qual o conhecimento eacute problematizado

a partir dos saberes dos alunos e relacionados com a sua realidade histoacuterica cultural

econocircmica e poliacutetica Desta maneira a educaccedilatildeo problematiza a sociedade e

desmistifica as relaccedilotildees de poder e dominaccedilatildeo

Nas accedilotildees didaacuteticas o meacutetodo se desenvolve por meio das teacutecnicas que satildeo

ldquoinstacircncias intermediaacuterias os componentes operacionais de cada proposta

metodoloacutegica os quais viabilizaratildeo a implementaccedilatildeo do meacutetodo em situaccedilotildees

concretasrdquo (MARTINS 2006 p 41) Destarte as teacutecnicas de ensino consistem no

desenvolvimento do meacutetodo nos diversos espaccedilos de aprendizagem Luckesi (2003

p 153) esclarece nitidamente a relaccedilatildeo entre meacutetodo e teacutecnicas

Por exemplo o meacutetodo expositivo que eacute o meio pelo qual levamos ao educando os conhecimentos jaacute elaborados pode ser executado atraveacutes de vaacuterias teacutecnicas exposiccedilatildeo oral pelo professor exposiccedilatildeo escrita atraveacutes de um texto demonstraccedilatildeo de como proceder agrave execuccedilatildeo de uma experiecircncia em laboratoacuterio apresentaccedilatildeo de um exemplo a ser imitado etc

186

Assim o desenvolvimento de um meacutetodo pode abarcar vaacuterias teacutecnicas Temos

que ter consciecircncia de que natildeo existe neutralidade no processo de escolha do meacutetodo

e das teacutecnicas de ensino pois os selecionamos de acordo com nossas concepccedilotildees

de ser humano e sociedade que por sua vez estatildeo relacionados aos interesses de

classe em razatildeo de que o meacutetodo estaacute ligado a concepccedilotildees epistemoloacutegicas

atreladas a visotildees de mundo Desta maneira a utilizaccedilatildeo de um meacutetodo e das teacutecnicas

para o seu desenvolvimento estaacute imbricada pela concepccedilatildeo de educaccedilatildeo de ensino

e de aprendizagem que norteia a nossa praacutetica docente Isso significa que podemos

usaacute-los para transmitir conteuacutedos ou para problematizar desafiar provocar reflexotildees

e anaacutelises sobre determinado assunto

4241 Professores que desenvolveram praacuteticas colonizadoras78

As praacuteticas metodoloacutegicas colonizadoras foram agrave concretizaccedilatildeo do

planejamento baseado nesta mesma perspectiva Assim as metodologias

desenvolvidas pelos professores consistiram em um conjunto padronizado de

procedimentos destinados a transmissatildeo do conhecimento escolar Eacute o que Freire

(2014 p 79) denomina de pedagogia bancaacuteria baseada na

[] narraccedilatildeo de conteuacutedos que por isto mesmo tendem a petrificar-se ou a fazer-se algo quase morto sejam valores ou dimensotildees concretas da realidade Narraccedilatildeo ou dissertaccedilatildeo que implica um sujeito ndash o narrador ndash e objetos pacientes ouvintes ndash os educandos

O autoritarismo de quem deteacutem o conhecimento define o que os educandos

devem fazer e responder eles natildeo satildeo instigados a pensar porque as respostas jaacute

estatildeo preacute-determinadas o professor eacute o narrador do conhecimento escolar natildeo eacute

permitido realizar criacuteticas assim como natildeo se deve questionar e nem duvidar do que

eacute narrado A educaccedilatildeo nesse prisma ldquoeacute puro treino eacute pura transferecircncia de conteuacutedo

eacute quase adestramento eacute puro exerciacutecio de adaptaccedilatildeo ao mundordquo (FREIRE 2014 p

81)

Por meio das entrevistas e observaccedilotildees da praacutetica docente destacamos as

praacuteticas metodoloacutegicas que consideramos colonizadoras Estas praacuteticas estatildeo

intimamente relacionadas com a organizaccedilatildeo do espaccedilo da sala de aula que tem no

quadro (branco ou verde) a sua referecircncia conforme fotografia a baixo

Fotografia 47 ndash Sala de aula multisseriada

78 Como afirmamos nas praacuteticas colonizadoras de planejamento encontramos no trabalho do mesmo professor praacuteticas metodoloacutegicas colonizadoras e tambeacutem descolonizadoras Nesta seccedilatildeo destacamos as praacuteticas que prevaleceram na accedilatildeo pedagoacutegica docente no decorrer da pesquisa de campo

187

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Na fotografia acima temos uma sala de aula multisseriada com alunos do 4ordm e

5ordm ano do ensino fundamental sendo que os trecircs alunos do 5ordm ano estatildeo sentados do

lado direito do quadro no qual constam as atividades copiadas pela professora Os

quatro alunos do 4ordm ano estatildeo sentados agrave esquerda do quadro com suas atividades

correspondentes Observe que o quadro estaacute dividido ao meio com os conteuacutedos

especiacuteficos O motivo desta organizaccedilatildeo de acordo com os professores eacute para

facilitar a coacutepia dos conteuacutedos e das atividades transcritas no quadro A organizaccedilatildeo

da classe eacute feita de acordo com o ano em que se encontram os alunos

Organizo a turma por ano coloco os alunos do preacute-escolar na frente porque satildeo menores entatildeo eles natildeo empatam a visatildeo do quadro para os do 1ordm ano que sentam atraacutes pois satildeo crianccedilas maiores os do 2ordm ano sentam do outro lado do quadro (Prof 5) Aqui na sala tem dois quadros entatildeo eu divido a turma de acordo com os quadros O maior quadro eu reparto ao meio aiacute fica um lado para o 1ordm 2ordm e outro para o 3ordm ano e o quadro menor eu divido tambeacutem ao meio sendo uma parte para o 4ordm e a outra para o 5ordm ano (Prof 9)

O paradigma da seriaccedilatildeo portanto eacute a base da organizaccedilatildeo dos alunos e o

quadro corresponde ao espaccedilo que eles ocuparatildeo na sala de aula Em termos

metodoloacutegicos o que prevalece eacute o meacutetodo expositivo por meio da teacutecnica da

exposiccedilatildeo oral dos conteuacutedos Nesse processo os alunos satildeo meros espectadores

receptores do conhecimento de acordo com as disciplinas que compotildeem a matriz

curricular Os passos das aulas satildeo o professor copia o assunto no quadro apoacutes

188

todos os alunos copiarem o conteuacutedo ele apaga o quadro para copiar os exerciacutecios

para verificaccedilatildeo da aprendizagem Apoacutes os alunos terem copiado o conteuacutedo e o

exerciacutecio o professor explica o conteuacutedo e como o exerciacutecio deveraacute ser realizado

Como moro na escola vou para a sala de aula antes dos alunos chegarem aproveito para dividir o quadro de acordo com os anos e copio logo os conteuacutedos da aula para cada ano Isso agiliza o trabalho e quando os alunos chegam na escola eles jaacute tem atividade pra fazer eacute soacute sentar na fila de seu ano e copiar(Prof 3) Copio os conteuacutedos no quadro passo o exerciacutecio quando eles terminam de copiar explico o assunto e tiro duacutevidas sobre as questotildees do exerciacutecio Os que terminam logo o trabalho peccedilo pra ajudar os que estatildeo com dificuldades trabalho com o preacute-escolar e os cinco anos do ensino fundamental Os melhores alunos me ajudam com os outros (Prof 9)

A organizaccedilatildeo do espaccedilo da sala de aula inviabiliza o diaacutelogo pois o professor

monopoliza a palavra natildeo abrindo espaccedilo para que os alunos possam ter o direito de

exercecirc-lo Nesse sentido para Freire (2014 p 81) natildeo eacute possiacutevel o diaacutelogo ldquoentre os

que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste

direito Eacute preciso primeiro que os que assim se encontram negados no direito

primordial de dizer a palavra reconquistem esse direito proibindo que este assalto

desumanizante continuerdquo

Pela aula expositiva eacute imposto o saber hegemocircnico como verdade absoluta e

a uacutenica maneira de compreender e explicar o mundo Natildeo haacute o diaacutelogo entre os

saberes porque natildeo interessa para o professor os saberes que os alunos trazem do

seu meio sociocultural o que importa satildeo os conteuacutedos transmitidos

mecanicamentedivididos em disciplinas especiacuteficas para cada campo do

conhecimento e esses por sua vez satildeo subdivididos nos cinco anos do ensino

fundamental assim fica evidente a colonialidade do saber Esta forma de organizaccedilatildeo

eacute exclusivamente temporal pois fica estabelecido que determinados conteuacutedos

devam ser aprendidos indistintamente por todos os alunos em um tempo

predeterminado Hage (2004 p 3) ao fazer uma anaacutelise do modelo de organizaccedilatildeo

multisseriada afirma que

[] se pauta por uma loacutegica lsquotransmissivarsquo que organiza todos os tempos e espaccedilos dos professores e dos alunos em torno dos ldquoconteuacutedosrdquo a serem transmitidos e aprendidos transformando os conteuacutedos no eixo vertebrador da organizaccedilatildeo dos graus seacuteries disciplinas grades avaliaccedilotildees recuperaccedilotildees aprovaccedilotildees ou reprovaccedilotildees (grifo do autor)

A organizaccedilatildeo dos alunos por ano impossibilita a interaccedilatildeo com os colegas dos

outros anos apesar de ser uma turma multisseriada na praacutetica satildeo trecircs quatro ou

189

cinco turmas dividindo o mesmo espaccedilo O conteuacutedo eacute o eixo vertebrador como nos

diz o autor dessa divisatildeo e transmitido de forma alienada descontextualizada das

atividades produtivas sociais e culturais dos educandos Dessa maneira o mundo

que eacute um arco-iacuteris policromaacutetico (SANTOS 2007) repleto de uma diversidade

cognitiva eacute reduzido agrave epistemologia hegemocircnica sustentada pela razatildeo indolente A

negaccedilatildeo da complexidade da accedilatildeo educativa e da aprendizagem caracteriza esta

visatildeo racionalista de educaccedilatildeo na qual o uacutenico conhecimento vaacutelido eacute o que passa

pelos rigores do meacutetodo cientiacutefico e atende aos interesses dominantes

Aleacutem do quadro outro recurso bastante utilizado para ministrar as aulas eacute o

livro didaacutetico

Uso o livro todos os dias como leciono pro 3ordm 4ordm e 5ordm ano e soacute tem um quadro na sala peccedilo para os alunos do 5ordm ano irem lendo e copiando o assunto que estaacute no livro enquanto copio o conteuacutedo no quadro para o 3ordm e 4ordm ano com o livro didaacutetico consigo desenvolver o planejamento que faccedilo para trabalhar os conteuacutedos diariamente (Prof 5) Todos os alunos tecircm o livro eu natildeo deixo eles levarem pra casa soacute levam quando passo dever de casa porque eles podem esquecer de trazer pra aula e aiacute complica Vai ficar difiacutecil trabalhar sem o livro entatildeo fica aqui mesmo na sala de aula (Prof 1) Quando todos entram na sala cada um senta na fila do seu ano em seguida faccedilo a chamada e peccedilo para pegarem o livro da mateacuteria que vamos estudar no dia de acordo com o planejamento No dia da leitura eles escolhem um texto do livro fazem a coacutepia no caderno depois os chamo ateacute a minha mesa para fazerem a leitura oral do texto escolhido (Prof 7)

Pela fala dos professores as metodologias satildeo direcionadas de acordo com o

livro didaacutetico As aulas satildeo desenvolvidas seguindo os seus passos primeiro o aluno

faz a leitura do assunto posteriormente copia-o no caderno juntamente com o

exerciacutecio para em seguida resolvecirc-lo O receio de que os alunos esqueccedilam o livro

em casa faz com que ele fique guardado na escola o que denota a dependecircncia da

praacutetica pedagoacutegica docente em relaccedilatildeo a esta ferramenta

Esses procedimentos denotam uma metodologia colonizadora na qual o

conhecimento escolar por meio do livro didaacutetico eacute inculcado nas mentes dos alunos

e dessa formaconstroacuteem subjetividades identidades imaginaacuterios sociais

sentimentos atitudes visotildees de mundo e maneiras de intervir em cada contexto A

imposiccedilatildeo de somente uma maneira de ler e explicar o mundo a cientiacutefica eacute uma

forma de colonizaccedilatildeo das mentes que menospreza outras racionalidades e razotildees

que natildeo seja a dominante

190

Nessa perspectiva os alunos satildeo meros receptoresconsumidores do

conhecimento oficial difundido como universal Diante disso o espaccedilo fiacutesico (a ilha do

Accedilaiacute) eacute descontextualizado em nome da suposta universalidade contida no processo

de produccedilatildeo de conhecimentos Daiacute a importacircncia em entender que o espaccedilo

geograacutefico em que atuamos como educadores natildeo eacute somente um espaccedilo fiacutesico e sim

poliacutetico tambeacutem

Segundo Mignolo (2000) o conhecimento traz consigo valores condizentes

com as caracteriacutesticas do contexto no qual eacute gerado por isso eacute marcado geo-

historicamente Essa produccedilatildeo eacute permeada por valores princiacutepios eacuteticos e morais

compreensotildees de ser humano de sociedade e de natureza eacute a partir deles que

passamos a elaborar nossas representaccedilotildees da realidade na qual vivemos De acordo

com a praacutetica pedagoacutegica colonizadora dos professores caracterizada pela

colonialidade do saber a representaccedilatildeo da realidade na qual vivem os alunos

ribeirinhos eacute feita a partir do conhecimento hegemocircnico assim como os valores eacuteticos

e morais

Em relaccedilatildeo a esses valores nas observaccedilotildees realizadas em sala de aula notei

algumas situaccedilotildees em que a linguagem falada no cotidiano pelos alunos foi taxada

como inferior em comparaccedilatildeo com a linguagem erudita A situaccedilatildeo foi a seguinte o

professor fez a chamada e perguntou por que um determinado aluno faltou trecircs dias

seguidos na escola O referido aluno respondeu dizendo que ldquotresontonte natildeo veio

porque estava ajudando o pai a tirar accedilaiacute e doisontonte porque estava com dor de

barrigardquo E o professor retrucou

Natildeo existe tresontonte e nem doisontonte e sim trecircs dias atraacutes e dois dias atraacutes natildeo sei de onde vocecircs tiram essas palavras esquisitas e feias repita comigo a forma certa de falar (o aluno repetiu em voz alta) e escreva no seu caderno pra natildeo esquecer natildeo quero mais ouvir vocecircs falando assim(Prof 8)

No horaacuterio do intervalo fui conversar com o professor sobre a questatildeo da

linguagem Ele respondeu que ainda eacute um dos maiores problemas que encontra pois

ensina a forma correta de falar nas aulas soacute que quando chegam em casa os alunos

esquecem e falam da mesma forma que seus pais e irmatildeos como passam pouco

tempo na escola e mais tempo com a famiacutelia e as pessoas da comunidade voltam a

falar ldquoerradordquo

Para Santos (2007) essa visatildeo monocultural eacute produzida pela razatildeo indolente

que naturaliza as diferenccedilas e hierarquiza a populaccedilatildeo como fez o professor ldquogente

191

que natildeo sabe falar direito fala tudo errado e usa uma linguagem chulardquo Os ribeirinhos

desta maneira satildeo inferiores porque falam diferente da linguagem culta Desta

maneira as diferenccedilas satildeo veladas e naturalizadas a partir de uma escala baseada

na inferiorizaccedilatildeo do que difere do padratildeo dominante

Segundo Calvet (2000) as liacutenguas natildeo existem sem as pessoas que as falam

e a histoacuteria de uma liacutengua eacute a histoacuteria de seus falantes Desta maneira a liacutengua tem

um papel preponderante na construccedilatildeo das identidades dos sujeitos identificando-os

geograficamente e tambeacutem culturalmente Sendo assim as liacutenguas natildeo satildeo

uniformes mas variaacuteveis dinacircmicas e muacuteltiplas Natildeo haacute somente uma forma

delinguagem existem outras variaccedilotildees faladas pelos sujeitos que quando satildeo

oprimidos tecircm seu jeito de falar subalternizado inferiorizado natildeo reconhecido como

forma de expressatildeo da realidade por isso a educaccedilatildeo colonizadora as nega e

determina a linguagem dominante como a oficial

As falas silenciadas oprimidas e negadas precisam ser reconhecidas na

sociedade e principalmente na instituiccedilatildeo escolar como mais uma variaccedilatildeo da nossa

liacutengua portuguesa vista natildeo mais como errada feia e chula como disseram alguns

docentes entrevistados O processo educacional formal assim conduzido faz com que

os alunos ribeirinhos tenham vergonha da proacutepria linguagem e para sobreviver na

escola tenham que reaprender a falar de acordo com a liacutengua dominante considerada

correta culta e hegemocircnica

Para Bagno (2004) a abordagem referente agrave variaccedilatildeo linguiacutestica abrange

questotildees culturais sociais poliacuteticas e econocircmicas e requer de noacutes professores uma

nova postura diante de uma concepccedilatildeo de liacutengua uma vez que o assunto diz respeito

agrave luta por uma educaccedilatildeo mais justa capaz de favorecer aos que precisam ter acesso

agrave comunicaccedilatildeo para transformar a sua realidade social sentindo-se mais letrados e

menos excluiacutedos

4242 Professores que desenvolveram praacuteticas descolonizadoras

Segundo Santos (2002) as accedilotildees descolonizadoras estatildeo fundamentadas nas

praacuteticas e discursos que objetivam mostrar as visotildees do colonizado sobre as

narrativas escritas pelo colonizador desta maneira essas narrativas satildeo

paulatinamente desconstruiacutedas pelos colonizados O processo de desconstruccedilatildeo

dar-se-ia pela sociologia das ausecircncias por meio da qual tornamos presente o que

estaacute ausente Na pesquisa de campo observamos algumas praacuteticas que

192

consideramos descolonizadoras nas quais por meio de metodologias dialoacutegicas

educador e educandos problematizaram o contexto no qual vivem

Iniciamos com a narrativa de uma aula de Artes do Prof 2 que trabalha com

alunos do preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano na qual discutiram e vivenciaram o conteuacutedo ldquoos

elementos plaacutesticos visuais cores formas e linhasrdquo

Professor a aula de Arte hoje vai ser sobre tecelagem e o seu Joseacute estaacute aqui na sala pra nos ensinar algumas teacutecnicas que ele utiliza para tecer o matapi Nesse momento um dos alunos faz uma pergunta Aluno mas o seu Joseacute eacute o avocirc do Manoel o que ele tem pra ensinar pra gente aqui na escola Professor O seu Joseacute jaacute trabalha haacute muitos anos fazendo matapi e paneiro entatildeo ele tem muito a nos ensinar quase todos aqui na sala devem ter alguns desses utensiacutelios nas suas casas feitos por ele Joseacute obrigado professor pela oportunidade de poder dividi com o senhor e com essas crianccedilas que vi nascer aqui na vila o que eu sei sobre o matapi Nesse momento o professor pede para que os alunos levantem de suas cadeiras deem as matildeos para formar um circulo seu Joseacute fica no meio do circulo todos sentados e uma aluna faz uma pergunta Aluna mas antes de comeccedilar agente precisa desenhar como vai ser o matapi neacute Joseacute bem eu natildeo desenho porque jaacute tenho na cabeccedila como vai ser e como vou fazer satildeo muitos anos tecendo matapi Mas se vocecircs quiserem desenhar Professor vamos primeiro prestar atenccedilatildeo para aprender a fazer o matapi depois quem quiser desenha como vai fazer quem quiser anotar tambeacutem pode ficar agrave vontade O professor daacute a palavra ao seu Joseacute que pega as talas de jupati o cipoacute titicaa faca e comeccedila explicar aos alunos como retirar a tala para fazer o matapi Joseacute a gente tira a tala raspa direitinho com a faca e coloca pra secar tem que taacute bem seca pra natildeo empenar depois Quando tiver bem seca agente comeccedila a tecer tem que cortar as talas de acordo com o tamanho do matapi depois agente amarra as talas com o cipoacute titica e vai tecendo tala por tala E vai demonstrando como tecer as talas e dando formato ao matapi Joseacute a boca do matapi a gente deixa por uacuteltimo depois que vocecirc tecer o corpo do matapi aiacute agente tece a boca fora do corpo depois agente junta os dois e amarra com o cipoacute Ele vai demonstrando passo a passo as formas de tecer ateacute chegar ao matapi pronto Professor agora eacute a vez de vocecircs tecerem o matapi Formem grupos com os colegas peguem o material e cada grupo vai tecer um matapi E o seu Joseacute vai acompanhar e tirar as duacutevidas de vocecircs E os alunos formaram grupo com colegas de outros anos

No final da aula todos os grupos apresentaram o matapi que confeccionaram

e as dificuldades que encontraram para fazecirc-lo Durante cada apresentaccedilatildeo o

professor foi destacando os elementos plaacutesticos visuais cores formas linhas dentre

193

outros que fizeram parte da obra construiacuteda Para finalizar a aula o professor

agradeceu ao seu Joseacute por ter ensinado os alunos e a ele tambeacutem como tecer o

matapi

A valorizaccedilatildeo do saber popular por meio da tecelagem do matapi instrumento

fundamental para a captura do camaratildeo foi o cerne da aula O diaacutelogo entre o

conhecimento popular e o escolar ocorreu de forma horizontal O professor a partir

do matapi confeccionado pelos alunos sobre a orientaccedilatildeo do seu Joseacute abordou o

conteuacutedo ldquoos elementos plaacutesticos visuais cores formas linhas dentre outrosrdquo tendo

como objeto de anaacutelise a arte de um artesatildeo da comunidade Ao mesmo tempo houve

o reconhecimento do saber local e da pessoa portadora desse saber que atuou como

mediador atraveacutes da socializaccedilatildeo junto aos alunos que precisam deste saber para

garantir sua permanecircncia e sobrevivecircncia na ilha do Accedilaiacute poiso matapi eacute uma das

ferramentas utilizadas nas atividades produtivas

Outro ponto importante a ser destacado foi a organizaccedilatildeo do espaccedilo da sala

de aula os alunos natildeo foram organizados por ano tiveram a liberdade na escolha dos

colegas para formar os grupos Nesse momento prevaleceu a turma unida para juntos

encararem um desafio que consistia em tecer um matapi

O professor natildeo foi o transmissor de conhecimentos nem o centro das

atenccedilotildees ao contraacuterio foi um aprendiz que junto com os seus alunos aprendeu a

tecer o matapi ensinado por um membro da comunidade ribeirinha que detinha esse

saber o que prova que natildeo haacute saber maior ou menor o que existe satildeo saberes

diferentes (FREIRE 2014) E a arte enquanto expressatildeo da vida esteve nessa aula

associada ao processo de criaccedilatildeo e a construccedilatildeo do conhecimento se efetivou na

relaccedilatildeo entre o esteacutetico e o artiacutestico materializada nas representaccedilotildees artiacutesticas

locais Como afirma Freire (2014 p 39)

Desta maneira o educador jaacute natildeo eacute o que apenas educa mas o que enquanto educa eacute educado em diaacutelogo com o educando que ao ser educado tambeacutem educa Ambos assim se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os ldquoargumentos de autoridaderdquo jaacute natildeo valem Em que para ser-se funcionalmente autoridade se necessita de estar sendo com as liberdades e natildeo contra elas

Liberdade para abrir espaccedilo em sua praacutetica enquanto educador para o saber

popular que dentro deste contexto eacute o mais importante para os sujeitos envolvidos

na praacutexis educativa Na ecologia de saberes Santos (2000) fala do criteacuterio de utilidade

do saber como fator de preponderacircncia Neste caso a hierarquia entre eles daacute-se pelo

criteacuterio de intervenccedilatildeo no mundo Quem sabe tecer o matapi eacute o seu Joseacute este

194

conhecimento natildeo estaacute no livro didaacutetico e nem o professor eacute conhecedor deste saber

Os alunos precisam se apropriar desse saber enquanto sujeitos ribeirinhos pois a

pesca do camaratildeo eacute uma das formas de subsistecircncia ao mesmo tempo sentem-se

valorizados enquanto sujeitos possuidores de um saber considerado importante pela

escola

A aula foi repleta do pensamento liminar por meio do reconhecimento e

visibilidade do saber da comunidade que teve como protagonista um intelectual que

construiu todo um arcabouccedilo praacutetico e teoacuterico pois toda praacutetica estaacute embasada numa

determinada teoria durante sua experiecircncia enquanto ribeirinho

Outra praacutetica pedagoacutegica em que houve o diaacutelogo entre os saberes foi

desenvolvida pela Prof 4 na aula de Ciecircncias que eacute uma turma multisseriada com

alunos do 3ordm 4ordm e 5ordm ano

Professora hoje vamos estudar sobre os alimentos peguem o livro de Ciecircncias e abram na paacutegina 140 Joatildeo79 leia o primeiro paraacutegrafo e em seguida escolha um colega para ler o paraacutegrafo seguinte e assim sucessivamente Apoacutes a leitura a professora explicou o assunto ldquoalimentaccedilatildeo adequadardquo de acordo como estava no livro Em seguida pediu para que os alunos independente do ano escrevessem o que geralmente comem durante o dia desde o cafeacute da manhatilde ateacute o jantar Apoacutes a resoluccedilatildeo da tarefa foi feita a socializaccedilatildeo da seguinte maneira Professora agora vocecircs vatildeo ler o que escreveram quem quer comeccedilar Maria professora ontem pela manhatilde tomei cafeacute com bolacha no almoccedilo comi accedilaiacute com peixe e camaratildeo no jantar accedilaiacute com peixe de novo Benedito de manhatilde cafeacute com leite rosca e cacetinho almocei accedilaiacute com galinha frita e na janta tomei accedilaiacute com peixe assado Pedro tomo cafeacute com bolacha almoccedilo accedilaiacute com peixe frito e camaratildeo janto accedilaiacute com o que sobrou do almoccedilo Mario gosto de accedilaiacute pela manhatilde no almoccedilo tambeacutem accedilaiacute com charque frito ou peixe na janta o que sobra do almoccedilo Francisco professora eu como o que os colegas jaacute falaram Joaquina eu tambeacutem professora Bernardo aleacutem do accedilaiacute e do peixe gosto de comer paca cutia e tatu no almoccedilo e na janta Alfredo como o que os colegas jaacute falaram Mariana no almoccedilo comi jacareacute com accedilaiacute ontem e na janta tambeacutem

Os alimentos consumidos diariamente pelos alunos satildeo o accedilaiacute peixe e o

camaratildeo Todos tomam o cafeacute com bolacha rosca ou cacetinho porque satildeo alimentos

que natildeo precisam ser conservados em geladeiras e tem extenso prazo de validade

Esporadicamente consomem caccedila como a cutia paca tatu ou jacareacute que satildeo raros

79 O nome dos alunos eacute fictiacutecio para preservar o anonimato

195

encontraacute-los na mata O peixe e o camaratildeo satildeo os mais consumidos devido serem

pescados nos rios e o accedilaiacute eacute a base econocircmicae nos meses de janeiro a julho

encontrado em abundacircncia na Ilha

O conteuacutedo do livro didaacutetico apresenta a alimentaccedilatildeo adequada que inclui os

alimentos energeacuteticos reguladores e os construtores que devem ser consumidos

diariamente Apoacutes a exposiccedilatildeo dos haacutebitos alimentares dos alunos a professora deu

os seguintes encaminhamentos

Professora agora que jaacute fizeram o levantamento dos seus haacutebitos alimentares vocecircs vatildeo classificar o que comem diariamente na tabela que estaacute no livro De um lado iratildeo escrever os alimentos energeacuteticos no meio os reguladores e no final os construtores Apoacutes a resoluccedilatildeo desta atividade foi feita a discussatildeo Professora Agora vamos apresentar as tabelas que vocecircs preencheram(apoacutes a apresentaccedilatildeo os alunos fizeram questionamentos) Maria professora eu coloquei o accedilaiacute como regulador mas o Bernardo colocou como energeacutetico o Joatildeo como construtor e agora No livro natildeo tem o accedilaiacute soacute tem o peixe Professora bem pra tirar essa duacutevida vamos ter que pesquisar Mas me falem como vocecircs se sentem quando tomam o accedilaiacute Alfredo eu me sinto forte o accedilaiacute me daacute sustacircncia por isso acho que ele eacute energeacutetico Joaquina o accedilaiacute me daacute sono e preguiccedila Professora entatildeo vamos fazer uma pesquisa para conhecer melhor o accedilaiacute

Os alunos comeccedilaram a sugerir o que gostariam de saber sobre o accedilaiacute e juntos

com a professora foram definindo os passos para a pesquisa Como no livro didaacutetico

natildeo tinha nenhuma informaccedilatildeo referente ao produto entatildeo ficou definido que se faria

uma pesquisa com os moradores da Vila E assim foram elaboradas as seguintes

questotildees de acordo com a curiosidade dos alunos a) por que vocecirc toma accedilaiacute todo

dia b) o accedilaiacute lhe daacute preguiccedila ou te deixa esperto pra trabalhar c) vocecirc toma accedilaiacute

acompanhado de que d) quem apanha o accedilaiacute na sua casa e) quantos paneiros de

accedilaiacute vocecircs colhem por dia f) vocecircs vendem o accedilaiacute para o marreteiro ou vendem

direto para o consumidor em Macapaacute

Este trabalho foi realizado por todos os alunos da turma que foram organizados

em dupla para fazer as entrevistas juntos aos moradores Na semana seguinte os

alunos trouxeram os dados coletados e apresentaram na sala Durante as

apresentaccedilotildees ocorreram as discussotildees

De acordo com a pesquisa feita o accedilaiacute eacute consumido diariamente por todos os

moradores da Vila acompanhado de peixe frango ou charque frito e camaratildeo a meacutedia

196

de paneiros diaacuterios colhidos de accedilaiacute foi de 20 quase a metade dos moradores

vendem o accedilaiacute para o marreteiro80 o que demonstra a exploraccedilatildeo da qual eacute viacutetima o

ribeirinho que natildeo tendo condiccedilotildees de vender o produto do seu trabalho na cidade eacute

obrigado a vendecirc-lo para o atravessador a preccedilos irrisoacuterios A ausecircncia de poliacuteticas

puacuteblicas para os sujeitos do campo na Amazocircnia os deixa nas matildeos dos

atravessadores pois eacute a uacutenica alternativa que eles tecircm de vender o que produzem

A fala de um aluno na apresentaccedilatildeo da pesquisa retrata essa situaccedilatildeo de

dependecircncia ldquonoacutes natildeo temos barco pra levar o accedilaiacute e vender em Macapaacute professora

entatildeo o papai tem que vender pro marreteiro aqui cada paneiro eacute vendido por R$

1000 em Macapaacute o marreteiro vende a R$ 2000rdquo A professora perguntou aos

alunos como essa realidade poderia ser mudada

Maria acho que se agente conseguisse vender o accedilaiacute em Macapaacute agente ganharia mais dinheiro e poderia comprar um barco que serviria para transportar o accedilaiacute sem precisar do marreteiro Alfredo aqui na Vila tem alguns moradores que tem barco entatildeo agente poderia se unir pra ajudar uns aos outros Joaquina professora aqui cada um olha soacute pro seu umbigo natildeo estatildeo nem aiacute pros outros Noacutes natildeo somos unidos acho difiacutecil fazerem o que o Alfredo taacute dizendo Mario Na vila do Cajueiro eles criaram uma cooperativa de coletores do accedilaiacute laacute eles entregam o accedilaiacute na cooperativa que leva pra vender na cidade e desconta 10 de cada saca vendida dos cooperados Francisco jaacute que com quatro paneiros agente tem uma saca de accedilaiacute entatildeo a saca sai a R$ 8000 e 10 de 80 daacute R$ 800 um valor muito menor do que R$ 4000 que eacute o dinheiro que agente perde vendendo pro marreteiro Entatildeo a cooperativa seria a nossa soluccedilatildeo professora

Pela palavra os alunos pronunciaram o mundo no qual vivem os ribeirinhos

que historicamente foram viacutetimas da exploraccedilatildeo do seu trabalho e provocados a

refletir sobre essa exploraccedilatildeo e vislumbrarem as possiacuteveis alternativas de libertaccedilatildeo

assim foi identificado o problema buscou-se explicaccedilatildeo e as possiacuteveis soluccedilotildees pelo

diaacutelogo O ponto inicial foi a anaacutelise criacutetica e ao mesmo tempo reflexiva sobre a

realidade concreta vista como um problema que requer respostas A educaccedilatildeo nessa

perspectiva visa agrave libertaccedilatildeo da ignoracircncia da dependecircncia da submissatildeo e de

vaacuterios meios de opressatildeo (FREIRE 2014) Todavia natildeo podemos esquecer que

como agentes poliacuteticos teremos que lutar com esperanccedila por uma sociedade mais

justa e igualitaacuteria Isso requer para Santos (2009 p 19) um projeto educativo

emancipatoacuterio uma educaccedilatildeo para o inconformismo e a rebeldia amparada em ldquoum

80 Atravessador

197

tipo de subjetividade que submete a uma hermenecircutica de suspeita a repeticcedilatildeo do

presente que recusa a trivializaccedilatildeo do sofrimento e da opressatildeo []rdquo Educaccedilatildeo que foi aleacutem dos conteuacutedos sobre alimentaccedilatildeo contidos no livro

didaacutetico e que provocou nos alunos por meio da pesquisa a possibilidade de

aprenderem mais sobre seus proacuteprios haacutebitos alimentares e fazerem a relaccedilatildeo entre

o conhecimento escolar e o saber popular por meio da complementaccedilatildeo haja vista

que no livro natildeo havia informaccedilatildeo referente ao accedilaiacute

O diaacutelogo tambeacutem esteve permeando a praacutetica pedagoacutegica da Prof 6 que atua

com alunos do preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano numa classe multisseriada O conteuacutedo do dia

foi ldquoo riordquo na aula de Geografia Como o assunto eacute o mesmo para o 1ordm e 2ordm ano a

professora fez somente um planejamento e incluiu as crianccedilas da preacute-escola

Professora crianccedilas hoje vamos estudar sobre os rios Respondam o que eacute um rio Acredito que minha presenccedila na sala deixou os alunos tiacutemidos Professor Natildeo estou ouvindo nada algueacutem quer falar alguma coisa sobre o rio Jorge o rio eacute onde tem muita aacutegua (aluno do 2ordm ano comeccedila a falar) Marta no rio moram os peixes e o camaratildeo professora Os alunos comeccedilam a rir da colega Joel eacute no rio que tomo banho pego aacutegua pra mamatildee fazer comida lavar a casa e a roupa suja Benedita no rio agente anda de rabeta casco e catraio tambeacutem Lucia no rio agente brinca de pira-matildee de pega pega e briga de galo Isaura No fundo do rio mora a Iara e o boto que quando agente estaacute menstruada natildeo podemos nadar tomar banho nem pegar aacutegua no rio por causa dele Marcos jaacute fui ferrado por arraia aqui na boca do rio perdi a mareacute e fiquei atolado aiacute tive que vim empurrando o casco e a arraia me pegou de jeito Luan professora a minha voacute mora noutra vila pra chegar ateacute laacute tem que varar por outro rio foi na varada que eu acabei me perdendo porque passa por um regono meio da mata e tambeacutem jaacute eraboca da noiteestava escuro e a minha sorte eacute que eu levei uma lanterna Vera professora eu coloco matapi na ilharga do rio com minha matildee ela sabe onde tem muito camaratildeo e sempre quando vamos tirar o matapi ele estaacute cheio de camaratildeo soacute do purrudo E a aula foi acontecendo com os relatos dos alunos Em seguida a professora explicou o assunto e fez a relaccedilatildeo com as falas dos alunos sobre suas experiecircncias com o rio

O conteuacutedo ldquoriordquo foi abordado a partir das experiecircncias e conhecimentos dos

alunos referente aos rios da ilha do Accedilaiacute O saber popular dialogou horizontalmente

com o conhecimento escolar palavras como ldquoboca do rio rio que vara por outro rio

rego ilharga do riordquo satildeo utilizadas para se referir a este majestoso universo das aacuteguas

repleto de seres encantados como a Iara e o Boto e do qual os ribeirinhos retiram seu

198

sustento (peixe camaratildeo) transitam para outros lugares como Macapaacute e Afuaacute visitam

parentes navegam para trabalhar e ir para a escola retiram aacutegua pra higiene pessoal

e domeacutestica fazer comida lavar roupa etc

O rio faz parte da vida dessas crianccedilas que estatildeo cotidianamente mergulhadas

em suas aacuteguas Ningueacutem conhece melhor os rios da Ilha do que os moradores deste

lugar por isso a professora nos disse que ldquoprocuro primeiro verificar o que eles sabem

sobre o assunto que vamos estudar entatildeo agente conversa faccedilo perguntas e deixo

eles agrave vontade para falar nas falas deles dizem o que sabem e eu vou dando cordardquo

O ldquodar cordardquo eacute garantir o direito agrave palavra condiccedilatildeo essencial para o diaacutelogo

O conteuacutedo de Geografia foi discutido a professora explicou os nomes

geograacuteficos das expressotildees utilizadas pelos alunos ao se referirem aos rios pois ldquoeles

precisam tambeacutem conhecer que existe outra forma de expressaacute-losrdquo (Prof 6) que satildeo

os conceitos geograacuteficos oriundos da ciecircncia e aceitos como universais Desta forma

a boca do rio eacute chamada pela ciecircncia de foz o rio que vara para o outro eacute oafluente

o regoeacute aconfluecircnciae a ilharga corresponde agravemargem do rio Nesse caso a

dialogicidade

[] natildeo nega a validade de momentos explicativos narrativos em que o professor expotildee ou fala do objeto O fundamental eacute que professor e alunos saibam que a postura deles do professor e dos alunos eacute dialoacutegica aberta curiosa indagadora e natildeo apassivada enquanto fala ou enquanto ouve (FREIRE 2014 p 86)

Corroborando com essa concepccedilatildeo Brandatildeo (2006) diz que o acesso ao saber

escolar tem uma importacircncia poliacutetica para as classes populares mas este saber

necessita estar articulado com o saber por ela produzido pois ldquoo respeito ao saber

popular implica necessariamente o respeito ao contexto culturalrdquo (FREIRE 1993 p

86) Para Mignolo (2000) eacute pelo conhecimento que passamos a elaborar nossas

representaccedilotildees da realidade na qual vivemos os ribeirinhos fazem essa

representaccedilatildeo a partir do conhecimento popular os que tecircm acesso a educaccedilatildeo

formal o fazem tambeacutem a partir do conhecimento escolar

Desta maneira foi por meio do diaacutelogo entre educador e educandos que os

falares dos ribeirinhos foi reconhecido como outra forma de expressatildeo da realidade

Na sala de aula o diaacutelogo desses saberes com o conhecimento validado pela ciecircncia

abre possibilidades para a leitura criacutetica de mundo Poreacutem isto postula como nos diz

Santos (2009) que a dialogicidade entre o saber popular e a ciecircncia elaborada esteja

alicerccedilada numa racionalidade hermenecircutica tendo no histoacuterico das escolhas feitas

199

no passado as respostas para as condiccedilotildees vividas no presente Assim se expressa

o referido autor

[] A reflexatildeo hermenecircutica visa transformar o distante em proacuteximo o estranho em familiar atraveacutes de um discurso racional [] orientado pelo desejo de diaacutelogo com o objeto de reflexatildeo para que ele ldquonos falerdquo numa liacutengua natildeo necessariamente a nossa mas que nos seja compreensiacutevel e nessa medida se nos torne relevante nos enriqueccedila e contribua para aumentar a autocomprensatildeo do nosso papel na construccedilatildeo da sociedade ou na expressatildeo cara agrave hermenecircutica do mundo da vida (Santos 1999 p15)

Desta maneira a histoacuteria passa a ser vista como possibilidadee natildeo como

determinismo E esta visatildeo natildeo seria possiacutevel sem o sonho da educaccedilatildeo como uma

praacutetica da liberdade partindo de uma pedagogia do oprimido como nos alerta

FreirePedagogia vivenciada pela professora e os alunos ribeirinhos numa perspectiva

intercultural que estabeleceu o diaacutelogo entre os diferentes saberesnesta praacutetica natildeo

houve conhecimento superior nem inferior e sim mais uma forma de expressatildeo

epistemoloacutegica sustentados pelo respeito e o reconhecimento de outras formas de

explicaccedilatildeo do mundo ou o que Walsh (2006) intitula de interculturalidade na qual a

comunicaccedilatildeo entre as culturaseacute baseada no ldquorespeito legitimidade simetria e

igualdaderdquo (idem p 11)

Nessa perspectiva a prof 6 trabalhou na disciplina Histoacuteria o conteuacutedo

ldquoHistoacuteria da Amazocircniardquo especificamente a histoacuteria da comunidade Furo dos Porcos

Professora o nosso assunto de hoje eacute a historia da Amazocircnia Noacutes moramos na comunidade Furo dos Porcos no municiacutepio de Afuaacute que pertence ao estado do Paraacute que faz parte da Amazocircnia Brasileira Jorge entatildeo professora noacutes vamos estudar a histoacuteria da nossa comunidade que fica na Amazocircnia neacute Professora bem natildeo foi exatamente isso que planejei mas eacute uma boa ideia ateacute porque a comunidade Furo dos Porcos faz parte da Amazocircnia como vocecirc disse Marta mas natildeo tem nada aqui no livro que fale sobre nossa comunidade professora como vamos estudar se natildeo tem no livro Professora vocecirc tem toda razatildeo mas noacutes podemos escrever a histoacuteria da nossa comunidade para isso vamos ter que verificar as primeiras famiacutelias que vieram morar aqui Joel professora quem criou essa vila foi meu bisavocirc que veio pra caacute quando casou com minha bisavoacute meu avocirc que conta essa histoacuteria Professora entatildeo vamos fazer um levantamento das primeiras pessoas que vieram morar aqui na comunidade Os alunos comeccedilaram a dizer o nome das pessoas mais velhas que moram na comunidade Em seguida a professora pediu para que formassem grupos para entrevistar essas pessoas Benedita mas o que vamos perguntar pra elas Professora o que vocecircs querem saber sobre a comunidade do Furo dos Porcos Lucia eu quero saber por que esse nome

200

Isaura i eu se aqui antes tinha mais animais na mata como macaco veado paca tatu e demais Luan eu quero saber por que as pessoas vieram pra caacute E assim os alunos foram falando sobre o que queriam saber sobre a histoacuteria da comunidade onde vivem

A aula partiu da curiosidade dos alunos referente ao local onde vivem a vila

Furo dos Porcos que pertence ao municiacutepio de Afuaacute localizada na Amazocircnia O

planejamento foi flexiacutevel a professora natildeo havia planejado esse conteuacutedo entatildeo

houve mudanccedilas no rumo da aula com a inclusatildeo de um assunto de interesse dos

educandos O reconhecimento por parte da professora da curiosidade dos

educandos em conhecer melhor o espaccedilo onde vivemconvivemsobrevivem foi

fundamental para o ecircxito da aula

A curiosidade como inquietaccedilatildeo indagadora como inclinaccedilatildeo ao desvelamento de algo como pergunta verbalizada ou natildeo como procura de esclarecimento como sinal de atenccedilatildeo que sugere alerta faz parte integrante do fenocircmeno vital (FREIRE 2014 p 32)

A curiosidade instigou os alunos a investigar a histoacuteria da Vila como natildeo estava

escrito no livro didaacutetico Entatildeo o jeito foi produzir esse conhecimento por meio da

pesquisa de campo Os sujeitos cognoscentes levantaram as questotildees que

despertavam sua curiosidade epistemoloacutegica e com base nelas foram em busca das

respostas junto aos moradores mais antigos do lugar ldquo[] quanto mais criticamente

se exerccedila a capacidade de aprender tanto mais se constroacutei e desenvolve o que venho

chamando curiosidade epistemoloacutegicardquo (FREIRE 2009 p27)

A curiosidade epistemoloacutegica parte do princiacutepio de que somos seres

inacabados que aprendemos na relaccedilatildeo com os outros mediatizados pelo mundo

Entretanto faz-se necessaacuterio o reconhecimento do outro como um ser que possui uma

gama de saberes e compreensatildeo da realidade soacute assim podemos nos permitir a

dialogar e aprendermos juntos Foi o que ocorreu entre os educandos e os moradores

mais antigos da comunidade do Furo dos Porcos

Ao propor o desafio contra a razatildeo indolente Santos (2002) destaca que

existem outros saberes chamados de alternativos com razotildees que os diferem do

hegemocircnico Assim natildeo podemos admitir que exista uma uacutenica epistemologia pois

haacute diversas formas de conhecimento dentre eles os relativos agrave histoacuteria contada pelos

moradores em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo da vila do Furo dos Porcos seus mitos lendas entre

outros

201

Assim o reconhecimento do saber popular dos moradores da Vila natildeo retira a

autoridade da professora por conseguinte ambos possuem saberes diferentes e no

diaacutelogo colocam algo em discussatildeo

Os professores natildeo satildeo iguais aos alunos por ldquonrdquo razotildees entre elas porque a diferenccedila entre eles os faz ser como estatildeo sendo [] O diaacutelogo tem significaccedilatildeo precisamente porque os sujeitos dialoacutegicos natildeo apenas conservam sua identidade mas a defendem e assim crescem um com o outro( FREIRE 2009 p 118)

Crescem na medida em que se predispotildeem a dialogar com humildade

reconhecendo o outro como um ser humano dotado de experiecircncias que podem

contribuir para esse crescimento emocional afetivo e cognitivo

Desta maneira rompe-se com a colonialidade do saber a partir do momento

em que outras epistemologias estatildeo sendo reconhecidas no caso os conhecimentos

dos idosos da vila tiradas da invisibilidade tomando-as visiacuteveis fazendo-as

emergirem eacute a sociologia da emergecircncia como propotildee Santos (2009)

A seguir outra praacutetica pedagoacutegica que observamos na qual o saber popular foi

visibilizado

Professora bom dia crianccedilas Alunos bom dia professora Todos cantaram a muacutesica de boas vindas Professora peguem a ficha com seus nomes e coloquem no nosso quadro de chamada jaacute sabem que tem que ser por ordem alfabeacutetica Os alunos foram um por um pegar as fichas com seus respectivos nomes que estavam na mesa da professora Professora pelo jeito soacute faltou o Raimundo algueacutem sabe me dizer qual o motivo da falta dele (Raimundo eacute aluno do preacute-escolar) Rafael professora ele natildeo veio porque taacute doente Professora doente de que Baacuterbara ele taacute com vomito e diarreia a matildee dele levou ele pro papai benzer ontem laacute em casa E o papai disse que ele taacute com quebranto Marta eu jaacute tive quebranto professora passei muito mal e foi o pai da Baacuterbara que me benzeu e eu fiquei boa Ele passou um chaacute que a mamatildee fez pra eu beber vaacuterias vezes no dia Pedro eu sei como se pega quebranto eacute quando uma pessoa agrada agente e essa pessoa taacute com fome ou chega suada da rua ai agente fica doente e soacute cura quando eacute benzido Cristiane eu jaacute fui flechada o bicho da mata flecha agente Isso acontece quando uma mulher menstruada sai de casa O papai disse que ela atrai os bichos pelo cheiro aiacute os bichos flecha agente aiacute agente fica doente com febre e dor de cabeccedila tem que ir pro benzedor tambeacutem Fabriacutecio professora meu irmatildeo tambeacutem jaacute foi flechado ele foi tomar banho no rio agrave noite e natildeo pediu permissatildeo pros encantados aiacute a Iara flechou ele

202

Fernando minha irmatilde quase foi encantada pelo boto professora Ela foi tomar banho no rio menstruada agrave noite o bicho foi visitar ela e o papai botou ele pra correr com o terccedilado Professora bem pelo jeito vocecircs tecircm muitas histoacuterias pra contar entatildeo vamos fazer o seguinte como hoje eacute nossa aula de Portuguecircs vocecircs vatildeo escrever essas histoacuterias Os alunos do preacute-escolar e do 1ordm ano desenham e os outros podem escrever desenhar ou dramatizar Apoacutes a resoluccedilatildeo desta atividade os alunos apresentaram na sala e a professora aproveitou as produccedilotildees textuais para trabalhar os conteuacutedos da gramaacutetica sinais de pontuaccedilatildeo tempos verbais substantivos entre outros

Acompanhei o desenvolvimento dessa aula e percebi o interesse e a dedicaccedilatildeo

dos alunos em escrever desenhar e falar sobre as histoacuterias que fazem parte do seu

cotidiano Tudo isso reflete a forma como eles veem leem e interpretam o mundo (as

doenccedilas os seres encantados o comportamento em relaccedilatildeo a esses seres para natildeo

ficarem doentes entre outros) A professora ao valorizar e reconhecer o significado

das crenccedilas nos seres encantados para a comunidade contribui para a construccedilatildeo

de uma educaccedilatildeo voltada para os povos da Amazocircnia ribeirinha Hage (2004 p 4)

chama a atenccedilatildeo para as consequecircncias da natildeo valorizaccedilatildeo da cultura amazocircnica

nas accedilotildees educativas

O conjunto de crenccedilas valores siacutembolos e conhecimentos das populaccedilotildees da Amazocircnia e seus padrotildees de referecircncia e sociabilidade que satildeo construiacutedos e reconstruiacutedos nas relaccedilotildees sociais no trabalho e na vivecircncia e convivecircncia nos espaccedilos sociais em que participam natildeo tecircm sido valorizados e incorporados nas accedilotildees educativas das classes multisseriadas constituindo-se num fator que produz o fracasso escolar

O fracasso escolar a que se refere o autor eacute produzido pelo natildeo reconhecimento

do saber popular como digno de fazer parte do curriacuteculo da escola ribeirinha por natildeo

passar pelos rigores da ciecircncia hegemocircnica Assim vai se produzindo o que Santos

(2007) chama de epistemiciacutedio o desaparecimento dos conhecimentos natildeo cientiacuteficos

que satildeo divergentes maneiras de se fazer ciecircncia Isso ocorre pela monocultura da

escala dominante que produz as ausecircncias do particular do local e torna universal o

conhecimento global

No entanto a praacutetica pedagoacutegica da professora fez o caminho oposto agrave razatildeo

indolente partiu da descolonizaccedilatildeo epistemoloacutegica dando vez e voz aos saberes dos

alunos as suas maneiras de explicar a realidade que permeiam a praacutetica social das

pessoas que vivem naquele lugar Eacute o que Santos (2008) denomina de ecologia que

se edifica na pluralidade e autonomia dos variados saberes Ao trabalhar os conteuacutedos

203

gramaticais a partir das produccedilotildees escritas e apresentadas pelos alunos a professora

estabeleceu o diaacutelogo entre esses dois tipos de conhecimento o popular e o escolar

porque os educandos fizeram uma nova leitura a partir dos conteuacutedos apreendidos

Esta praacutetica se constituiu numa gnose liminar pois deu visibilidade aos saberes

que historicamente foram subalternizados e no diaacutelogo com a epistemologia

hegemocircnica foram visibilizados Segundo Mignolo (2003) a gnose enquanto

pensamento fronteiriccedilo eacute o espaccedilo para os saberes locais se manifestarem e

garantirem seu reconhecimento Natildeo se afirma enquanto oposiccedilatildeo agrave ciecircncia mas atua

no tracircnsito entre fronteiras Dessa forma o pensamento liminar se tornou um

instrumento para a descolonizaccedilatildeo intelectual a presenccedila dos encantados para

explicar a realidade a cura das doenccedilas por meio do agente cultural (benzedor) e os

remeacutedios para a cura vindos da mata e das aacuteguas satildeo exemplos de formas de

existecircnciaresistecircncias em lugares onde o poder puacuteblico natildeo atua com poliacuteticas na

aacuterea da sauacutede Os remeacutedios indicados pelo benzedor fruto de sua experiecircncia de

vida satildeo saberes fronteiriccedilos pois existem e resistem apesar de todo avanccedilo da

ciecircncia farmacecircutica

Outra praacutetica pedagoacutegica que rompeu com a monocultura do tempo linear e

com a do produtivismo capitalista foi vivenciada com os alunos da prof 2 Nessa aula

o conteuacutedo foi as estaccedilotildees do ano Como amazocircnidas sabemos que soacute observamos

duas que satildeo o inverno e o veratildeo quando a professora apresentou o conteuacutedo os

alunos questionaram

Nelso professora aqui agente soacute vecirc a chuva no veratildeo e a quentura do inverno natildeo da pra ver a primavera nem o outono Pedro professora aqui na vila agente faz a derrubada da mata pra fazer roccedila no final do veratildeo ai agente espera secar a mata derrubada e toca fogo no inverno agente comeccedila a plantar Maria aqui no inverno alaga tudo a aacutegua sobe e invade os quintais aiacute vecircm as cobras e comem as galinhas e patos No inverno fica difiacutecil pegar peixe porque a aacutegua cresce muito Francisco o que salva agente eacute o accedilaiacute que tem bastante na mata entatildeo agente tira pra tomar e pra vender Joaquina por isso que no veratildeo agente trabalha pouco porque natildeo tem muita coisa pra fazer Margarete o inverno com o veratildeo mexe no horaacuterio de aula porque no veratildeo o rio fica mais seco e no inverno tem muita aacutegua Professora muito bem entatildeo todos aqui sabem que natildeo temos um horaacuterio fixo de aula devido agraves mareacutes eu soacute natildeo sabia que o accedilaiacute natildeo produz no veratildeo e que pra fazer roccedila tem que derrubar no veratildeo e plantar no inverno falem mais sobre isso e outras coisas relacionadas com as estaccedilotildees do ano aqui na ilha

204

A fala da uacuteltima aluna retrata um dos preconceitos em relaccedilatildeo aos ribeirinhos

que satildeo taxados de preguiccedilosos devido natildeo trabalharem direto para a produccedilatildeo e

voltados para o mercado como propotildee a monocultura do tempo linear que natildeo

reconhece outras formas de organizaccedilatildeo temporal como as dos ribeirinhos que no

veratildeo se dedicam a limpar os peacutes de accedilaiacute para facilitar o crescimento das aacutervores ou

fazer o manejo para garantir o aumento da produccedilatildeo no inverno e dessa maneira

satildeo vistos pelos de fora como preguiccedilosos e vagabundos O tempo das aacuteguas

determina o horaacuterio das aulas que eacute tambeacutem influenciado pelas estaccedilotildees do ano

assim o tempo ecoloacutegico sobressai em relaccedilatildeo ao tempo linear na ilha do Accedilaiacute

5CONCLUSAtildeO

Ao pesquisar a Amazocircnia Ribeirinha especificamente a ilha do Marajoacute

territoacuterio no qual nasci e vivi a infacircncia e parte da adolescecircncia representou um

mergulho na minha proacutepria histoacuteria As lembranccedilas permearam todos os momentos

que foram tensos e intensos na convivecircncia com os moradores das comunidades da

ilha do Accedilaiacute Foram imensos momentos de aprendizagem nos quais mergulhava

profundamente nas caudalosas aacuteguas dos rios e emergia repleto de saberes

apreendidos na cultura da conversa com os caboclos e caboclas marajoaras No

diaacutelogo com as crianccedilas jovens adultos e idosos mediatizados pelo mundo construiacute

e reconstruiacute conhecimentos referentes agrave Amazocircnia ribeirinha que descrevo nas

conclusotildees deste estudo

De acordo com a pesquisa realizada que teve como objeto de estudo investigar

como ocorre o diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos

na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam em classes multisseriadas na ilha

do Accedilaiacute chegamos agraves seguintes conclusotildees a) o saber popular dos ribeirinhos povos

das aacuteguas estaacute relacionado com o contexto social econocircmico cultural e religioso no

qual estatildeo imersos Esses povos estabelecem entre si e com os outros relaccedilotildees de

trocas materiais e simboacutelicas b) o diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos professores

entre o saber popular e o conhecimento escolar ocorre de forma vertical por meio das

praacuteticas colonizadoras que predominam nas accedilotildees de grande parte dos educadores

mas tambeacutem em menor quantidade satildeo desenvolvidas praacuteticas descolonizadoras

205

nas quais o diaacutelogo eacute produzido horizontalmente o que denota uma ecologia de

saberes

Quanto ao saberpopular dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute ele eacute construiacutedo e

reconstruiacutedo nas relaccedilotildees sociais que envolvem crianccedilas jovens adultos e idosos

numa relaccedilatildeo de respeito uns com outros e com a natureza o que confirma a tese de

Santos (2010) de acordo com a qual as epistemologias satildeo engendradas nas

relaccedilotildees sociais pelos sujeitos por meio de suas praacuteticas dentro do contexto no qual

as desenvolvem

Esses saberes tecircm toda uma ciecircncia baseada numa loacutegica e racionalidade

diferentes da ciecircncia hegemocircnica como afirmou um ribeirinho ldquopara fazer um casco

tem que ter toda uma ciecircncia tem que saber para que vai ser usado quantas pessoas

vai carregar que tipo de madeira e muito maisrdquo O casco natildeo eacute desenhado no papel

(como fazem os engenheiros) mas estaacute planejado na cabeccedila do pescador que vai

fazecirc-lo e atende agraves necessidades de quem o encomendou Por isso afirmamos que

esses saberes satildeo outras maneiras alternativas e estrateacutegias de se produzir ciecircncia

que foram e ainda satildeo marginalizadas nos curriacuteculos escolares desde a educaccedilatildeo

baacutesica ateacute a superior reflexo da monocultura do saber

Nestes saberes existe tambeacutem toda uma tecnologia tais como variadas

teacutecnicas para tecer paneiro matapi malhadeira e peneiras Diversificados materiais

oriundos da mata para construir cascos remos barcos que constituem extensatildeo das

matildeos e das pernas dos povos das aacuteguas Conhecimento da fauna e da flora para a

feitura dos remeacutedios que curam as doenccedilas do corpo e do espiacuterito causadas pelos

encantados Conhecimento da biodiversidade que engloba os animais que vivem na

mata a diversidade de peixes que habitam os rios lagos e igarapeacutes bem como dos

haacutebitos alimentares de cada espeacutecie

No tocante agraves aacuteguas seus ciclos (vazantesecacheia) produzem todo um ritmo

de vida e expressam os saberes do ribeirinho na sua relaccedilatildeo com a natureza Assim

a vida se plasma nos movimentos das mareacutes enchente vazante e seca que guiam o

tempo para plantar coletar o accedilaiacute pescar o peixe o camaratildeo e caccedilar O ribeirinho

sabe quando a mareacute vai ser lanccedilante pelo vento que movimenta as aacuteguas sabe onde

encontrar no rio determinadas espeacutecies de peixes (traiacutera tamuataacute acaraacute matupiri

entre outros) pelo cheiro das aacuteguas sabe onde estatildeo os cardumes o que eles

comem bem como os seus costumes e desta forma constroem estrateacutegias e

ferramentas para aprisionaacute-los

206

Destarte haacute um conhecimento estruturado sobre as mareacutes que orienta as

atividades sociais e produtivas guiada pelo tempo das aacuteguas que define inclusive o

horaacuterio das aulas nas escolas da ilha do Accedilaiacute Essa ruptura com a monocultura do

tempo linear gera outros tempos com a produccedilatildeo de diversidades de saberes como

os relacionados ao vento ao cheiro das aacuteguas agraves espeacutecies de peixes agraves iscas mais

adequadas para pescaacute-los aleacutem de orientar as suas accedilotildees de acordo as fases das

mareacutes Diante de tais evidecircncias o que prevalece na ilha do Accedilaiacute eacute o tempo ecoloacutegico

fundamental para entendermos como vivem esses povos

Nas aacuteguas vivem tambeacutem os seres encantados que satildeo invisiacuteveis e quando

se materializam podem se tornar animais (boto) homens ou mulheres (caboclo

gritador Matinta Pereira e outros) como nas histoacuterias narradas pelos moradores das

comunidades por meio da cultura da conversa histoacuterias que tecircm um cunho educativo

pois fazem parte da educaccedilatildeo do cuidar Por meio delas os ribeirinhos orientam os

filhos para que se comportem da maneira adequada aos seus valores e influenciam

no modo de vida dos povos das aacuteguas As lendas e os mitos satildeo contados para as

crianccedilas desde o nascimento com o intuito de respeitar e preservar o meio ambiente

No que concerne aos saberes da mata e da terra existe toda uma ciecircncia e

tecnologia para a produccedilatildeo dos remeacutedios que curam as doenccedilas e os males causados

pelos entes sobrenaturais O saber do benzedor e da parteira satildeo frutos de toda uma

experiecircncia de vida na ilha do Marajoacute e a cura se efetiva por meio do reconhecimento

da autoridade desses sujeitos e da feacute que os doentes e seus familiares tecircm nos

remeacutedios oriundos da terra e da mata

Da mata eacute retirado o accedilaiacute que alimenta e daacute forccedila para os ribeirinhos

enfrentarem os desafios do cotidiano tambeacutem eacute a fonte de renda dos moradores da

ilha Na colheita uma diversidade de saberessatildeo mobilizados e constituem uma

epistemologia construiacuteda na relaccedilatildeo desses sujeitos com os rios a terra e a mata Ao

transformar a natureza para atender agraves suas necessidades o ribeirinho transforma

cria uma realidade que tambeacutem o transforma e direciona sua maneira de agir e pensar

pois ao transformar o mundo sofre os efeitos de sua proacutepria transformaccedilatildeo

Deste modo o saber produzido e reproduzido pelos ribeirinhos tem como

criteacuterio de validaccedilatildeo a aceitaccedilatildeo da comunidade e credibilidade dos seus autores

Como afirma Santos (2010) essas epistemologias satildeo construiacutedas e reconstruiacutedas

por meio da experiecircncia social diferente dos rigores da ciecircncia hegemocircnica Destarte

o criteacuterio de validade do conhecimento estaacute relacionado agrave sua contextualidade e

207

aplicabilidade para resolver as situaccedilotildees vivenciadas Ressaltamos que esses

saberes estatildeo inteiramente relacionados com a histoacuteria e a cultura dos povos das

aacuteguas

Na pesquisa identificamos que esses saberes dialogam com o conhecimento

escolar na praacutetica pedagoacutegica dos professores de forma vertical e tambeacutem

horizontalmente

O diaacutelogo numa perspectiva verticalizada a qual denominamos de

colonizadora nega os saberes locais ou seja o saber popular dos educandos

ribeirinhos e impotildee o conhecimento escolar como a uacutenica visatildeo de mundo e de

ciecircnciao que representa a colonialidade do saber O saber popular eacute invisibilizado

natildeo reconhecido concebido como mito lenda supersticcedilatildeo que fazem parte do

imaginaacuterio dos sujeitos da Ilha Nas praacuteticas de planejamento das aulas a razatildeo

indolente prevalece como hegemocircnica excluindo as razotildees subalternizadas dentre

elas as dos povos das aacuteguas Eacute a geopoliacutetica do conhecimento que natildeo reconhece

esses saberes por emergirem dos sujeitos que historicamente foram excluiacutedos

consequentemente gera a hierarquizaccedilatildeo dos saberes e a consolidaccedilatildeo das

diferenccedilas entre os sistemas de conhecimento ao privilegiar o espaccedilo onde ele eacute

produzido tornando-o universalmente legiacutetimo para todos os contextos definindo a

monocultura da escala dominante que torna hegemocircnico o global suprimindo o local

Eacute no planejamento que a geopoliacutetica do conhecimento e a monocultura da

escala dominante se materializam por meio da definiccedilatildeo dos conteuacutedos que faratildeo

parte do curriacuteculo nas diversas disciplinas que compotildeem a educaccedilatildeo baacutesica Nele o

contexto no qual vivem e sobrevivem os educandos natildeo satildeo levados em

consideraccedilatildeo Nas praacuteticas colonizadoras ocorre o epistemiciacutedio como afirma Santos

(2010) ao se referir agrave morte dos conhecimentos alternativos no caso os dos povos

das aacuteguas da Amazocircnia

O conhecimento hegemocircnico eacute transmitido pelo educador aos educandos por

meio do livro didaacutetico recurso pedagoacutegico mais utilizado nas escolas pesquisadas o

que caracteriza a pedagogia bancaacuteria na qual as metodologias desenvolvidas pelos

docentes visavam a transmissatildeo do conhecimento escolar de forma autoritaacuteria com

a predominacircncia das aulas expositivas por meio da narraccedilatildeo sem a participaccedilatildeo e

intervenccedilatildeo dos educandos desta maneira o saber hegemocircnico eacute concebido como

verdade absoluta O diaacutelogo eacute verticalizado somente o professor tem o direito de

pronunciar a palavra aos alunos eacute negado esse direito porque natildeo interessa os

208

saberes que eles trazem do seu meio sociocultural Para esta visatildeo racionalista de

educaccedilatildeo o uacutenico conhecimento vaacutelido eacute o que passa pelos rigores do meacutetodo

cientiacutefico e atende aos interesses dominantes

Portanto a pesquisa mostrou que por intermeacutedio de metodologias

colonizadoras81 o conhecimento escolar tendo como suporte o livro didaacutetico foi

imposto como uacutenica maneira de ler e explicar o mundo baseado na ciecircncia

colonizando as mentes e menosprezando outras racionalidades e razotildees

invisibilizadas e dessa forma construindo subjetividades identidades imaginaacuterios

sociais sentimentos atitudes e visotildees de mundo para acatar as propensotildees

hegemocircnicas

Tudo isso eacute reflexo da colonialidade do saber que define os curriacuteculos as

mateacuterias escolares e a organizaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo na escola Assim existe

uma sobreposiccedilatildeo da cultura erudita e etnocecircntrica sobre os conteuacutedos advindos da

cultura popular que eacute marginalizada e ausente no interior da instituiccedilatildeo escolar O

diaacutelogo nesta perspectiva natildeo possibilita a ecologia de saberes por negar os saberes

locais natildeo lhes concedendo credibilidade e visibilidade tornando-os ausentes nas

escolas ribeirinhas da ilha do Accedilaiacute

Apesar dos professores atuarem dentro de uma estrutura de dominaccedilatildeo seja

ela poliacutetica econocircmica cultural e epistemoloacutegica houve momentos na accedilatildeo

docente82 em que foram desenvolvidas praacuteticas nas quais o diaacutelogo ocorreu de forma

horizontal que denominamos de descolonizadoras Nelas houve o reconhecimento

das manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas das comunidades ribeirinhas da ilha do

Accedilaiacute

Praacuteticas nas quais os saberes locais foram visibilizados valorizados e

reconhecidos como conhecimento que norteia a vida dos ribeirinhos nas atividades

sociais religiosas culturais e produtivas Nela o planejamento partiu das

necessidades dos educandos em termos de conhecimentos para enfrentar os desafios

do cotidiano daiacute a valorizaccedilatildeo tanto do conhecimento escolar quanto dos saberes

locais

81 Planejamento e metodologias de ensino e aprendizagem desenvolvidas principalmente pelos professores Prof1 Prof3 Prof5 Prof7 Prof8 e Prof9 sujeitos da pesquisa descritas no capitulo 6 Isso natildeo significa que esses professores natildeo tenham desenvolvido tambeacutem praacuteticas descolonizadoras mas o que predominou no trabalho desses docentes durante o periacuteodo de observaccedilatildeo foi as colonizadoras 82 Com maior predominacircncia nas praacuteticas dos professores Prof2 Prof4 e Prof6

209

Um fato interessante eacute que os alunos estatildeo envolvidos nas atividades

produtivas desde a coleta do accedilaiacute da pesca do peixe camaratildeo e na caccedila de animais

silvestres ateacute nas atividades socioculturais e os professores desenvolveram praacuteticas

descolonizadoras que incluiacuteram esses saberes no planejamento das aulas Nas

metodologias esses saberes foram problematizados o direito a palavra foi garantido

a todos os envolvidos na praacutexis pedagoacutegica os moradores detentores desses

saberes foram os protagonistas

O diaacutelogo como momento de encontro para refletir coletivamente sobre a

realidade na qual vivem os educandos fez parte de algumas praacuteticas observadas nas

escolas investigadas Pela palavra os educandos educadores e os moradores da

comunidade que participam das praacuteticas pedagoacutegicas na escola puderam criar

transformar potenciar e libertar o pensamento e a criatividade para inovar Os

moradores tiveram seus saberes validados pela escola no momento em que os

professores abriram espaccedilo para que eles participassem ativamente do processo de

ensino e aprendizagem por meio de praacuteticas dialoacutegicas baseadas na amorosidade e

respeito agrave sua dignidade

A humildade dos professores ao admitirem que natildeo satildeo ignorantes e nem

saacutebios absolutos mas seres inacabados em constante processo de aprendizagem

possibilitou que abrissem espaccedilo para os saberes locais adentrarem o curriacuteculo No

diaacutelogo na sala de aula o professor aprendeu com os alunos os saberes locais e

ensinou a partir desses saberes os escolares por meio da escuta da palavra e do

respeito agraves ideias e aos pensamentos do outro

Portanto o diaacutelogo na perspectiva descolonizadora ocorreu numa relaccedilatildeo

horizontal com amorosidade e humildade na esperanccedila de um mundo melhor como

afirmou um professor ribeirinho ldquoeu ensino e aprendo todos os dias com esses jovens

acredito que eles satildeo capazes de aprender e de mudar a realidade na qual vivemos

digo noacutes porque vivo aqui tambeacutemrdquo Isso demonstra a feacute e esperanccedila na capacidade

dos educandos para mudar a realidade para isso a educaccedilatildeo ancorada numa

pedagogia da esperanccedila possibilita aos ribeirinhos da ilha lutar por um mundo melhor

o que significa romper com a opressatildeo gerada pela exploraccedilatildeo fruto principalmente

da ausecircncia de poliacuteticas puacuteblicas voltadas para o escoamento da produccedilatildeo e tambeacutem

nas aacutereas de sauacutede e educaccedilatildeo direcionadas para os povos das aacuteguas No tocante agrave

educaccedilatildeo a ausecircncia de poliacuteticas puacuteblicas de formaccedilatildeo continuada para os

210

professores de recursos didaacuteticos e valorizaccedilatildeo dos profissionais da educaccedilatildeo pelo

poder puacuteblico contribuem para a prevalecircncia da colonizaccedilatildeo epistemoloacutegica

O reconhecimento das ecologias das temporalidades e dos saberes presentes

no discurso bem como na praacutetica dos professores possibilitou o emergir das

experiecircncias dos saberes dos valores da relaccedilatildeo com o outro e com o mundo no

qual vivem esses protagonistas

A ecologia das temporalidades se manifestou no momento em que os

educandos tiveram o usufruto da palavra para falar sobre como as suas vidas satildeo

influenciadas por outras temporalidadescom loacutegicas distintas da linear tais como o

tempo das mareacutes o tempo para a derrubada queimada e o plantio que estatildeo

relacionados com as chuvas na ilha e o tempo pertinente aos encantados que habitam

a mata e os rios e estabelecem os horaacuterios para a entrada nesses ambientes naturais

Esse eacute o jeito de ser do povo daqui que vai aleacutem do tempo linear como afirmam os

poetas Joaozinho Gomes e Val Milhomem ldquoQuem nunca viu o (rio) Amazonas jamais

iraacute compreender a crenccedila de um povo sua ciecircncia caseira a reza das benzedeiras o

dom milagroso83rdquo

Assim inferimos que as praacuteticas descolonizadoras ao reconhecer a pluralidade

de saberes heterogecircneos e a autonomia de cada um deles promoveu a conexatildeo

ordenada dinacircmica e horizontal entre ambos por meio do diaacutelogo Desta maneira

efetivou-se na praacutetica a ecologia de saberes proposta por Boaventura de Souza

Santos O diaacutelogo que segundo Freire (2014)pertence a nossa natureza histoacuterica foi

nas praacuteticas descolonizadoras vivenciado com amor humildade feacute e confianccedila nas

crianccedilas jovens e adultos que constroem e reconstroem cotidianamente as suas vidas

nas comunidades que compotildeem a ilha do Accedilaiacute

A predominacircncia das praacuteticas colonizadoras caracteriza um modelo

pedagoacutegico que tem como cerne o padratildeo de educaccedilatildeo monocultural que suprime

qualquer diversidade cultural e epistemoloacutegica oriunda dos povos das aacuteguas

Defendemos a presenccedila da diversidade epistemoloacutegica no curriacuteculo das escolas

ribeirinhas como mecanismo de reconhecimento e validaccedilatildeo dos saberes locais e

produccedilatildeo das identidades e subjetividades dos sujeitos amazocircnidas Como afirma

Morreira (2009) o eixo central do curriacuteculo escolar eacute o conhecimento entatildeo

83 Trecho da letra da muacutesica Jeito Tucujuacute

211

precisamos romper com a colonialidade do saber que define o que (conteuacutedo) e como

(metodologia) deve ser ensinado

Defendemos a participaccedilatildeo da comunidade local na seleccedilatildeo do que deve ser

ensinado na escola onde estudam seus filhos e netos Natildeo podemos mais aceitar a

imposiccedilatildeo de um conhecimento escolar descontextualizado que reflete a realidade

das regiotildees industrializadas e que eacute determinado pela geopoliacutetica do conhecimento

Ao longo deste trabalho realizamos a cartografia dos saberes populares e

provamos que existe uma gnose liminar um pensamento fronteiriccedilo pois satildeo saberes

que existem e resistem permeiam o cotidiano e orientam as accedilotildees sociais produtivas

religiosas e culturais na ilha Esses saberes precisam ser visibilizados mas para que

isso ocorra o envolvimento e a participaccedilatildeo democraacutetica da comunidade eacute

fundamental na gestatildeo escolar

No decorrer da pesquisa procuramos a partir do referencial teoacuterico adotado

refletir criticamente sobre a educaccedilatildeo que temos e pensar em uma nova educaccedilatildeo

que integre toda a diversidade epistemoloacutegica e que possa atender agraves necessidades

e interesses das comunidades (vivemos numa sociedade multicultural com

manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas proacuteprias) e natildeo somente do capital que

valoriza apenas as questotildees econocircmicas e menospreza as culturais sociais e

religiosas

212

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221

APEcircNDICE A ndash Roteiro de entrevista para a comunidade

OBJETIVO PERGUNTAS

Roteiro de perguntas para os moradores

Cartografar a partir das memoacuterias

dos moradores da ilha do Accedilaiacute os

saberes presentes no discurso e

nas praacuteticas cotidianas dos

ribeirinhos

Nome Idade Tempo em que mora na comunidade 1 Por que vocecirc mora na beira do rio

2 Qual a importacircncia do rio para a sua vida

3 Vocecirc conhece alguma histoacuteriaque envolva os

seres encantados aqui na ilha do Accedilaiacute

4 Quais satildeo as doenccedilas causadas pelos seres

encantados

5 Quem cura as doenccedilas causadas pelos seres

encantados E como elas satildeo curadas

6 Vocecirc participa de alguma atividade social ou

produtiva (caccedila pesca colheita do accedilaiacute e

outras)

7 Como vocecirc desenvolve essa atividade

8 O que eacute necessaacuterio para realizaacute-la

9 Quais os instrumentos utilizados para a

execuccedilatildeo desta atividade

10 Com quem vocecirc aprendeu a desenvolver

essa atividade

11 Vocecirc desenvolve essa atividade sozinho ou

a sua famiacutelia tambeacutem participa Como ocorre a

participaccedilatildeo da famiacutelia

12 O que vocecirc faz com o que eacute produzido

222

APEcircNDICE B ndash Roteiro de entrevista para os professores

OBJETIVO PERGUNTAS

Roteiro de perguntas para os Professores

Identificar na praacutetica pedagoacutegica

do professor a presenccedila do saber

popular dos ribeirinhos e as formas

como dialogam com o saber

escolar

Nome Idade Formaccedilatildeo profissional Tempo de experiecircncia com classes multisseriadas 1 Vocecirc fez o curso normal a niacutevel meacutedio

(magisteacuterio)

2 Onde vocecirc fez a sua graduaccedilatildeo

3 Vocecirc tem curso de especializaccedilatildeo Caso

positivo em que aacuterea do conhecimento

4 Vocecirc eacute oriundo da ilha do Marajoacute ou de outro

Municiacutepio ou Estado

5 Quem define os conteuacutedos que satildeo

trabalhados nas disciplinas do curriacuteculo da

educaccedilatildeo infantil e dos anos iniciais do ensino

fundamental

6 Os saberes da comunidade ribeirinha satildeo

incluiacutedos na lista de conteuacutedos a serem

trabalhados nas disciplinas Quais os criteacuterios

que vocecirc utiliza para selecionaacute-los

7 Devido agrave extensatildeo da lista de conteuacutedos nem

todos satildeo trabalhados durante o ano letivo

Quais satildeo os criteacuterios que vocecirc adota para

selecionar os conteuacutedos a serem trabalhados

8 Vocecirc participou da escolha do livro didaacutetico

que os alunos receberam este ano

9 Como vocecirc utiliza o livro didaacutetico nas aulas

223

10 Como vocecirc elabora o planejamento das aulas

para a classe multisseriada

11 Vocecirc inclui os saberes da comunidade no

planejamento das aulas Caso positivo como

ocorre a inclusatildeo desses saberes

12 Como os alunos satildeo organizados na sala de

aula multisseriada

13 Quais satildeo as metodologias mais utilizadas

para trabalhar os conteuacutedos nas aulas

14 Quais os recursos didaacuteticos mais utilizados

nas aulas Como satildeo utilizados

15 Como vocecirc trabalha o saber da comunidade

em sala de aula

224

APEcircNDICE C ndash Roteiro de observaccedilatildeo das aulas dos professores

1 Os saberes da comunidade ribeirinha satildeo incluiacutedos na lista de conteuacutedos a serem

trabalhados nas disciplinas e os criteacuterios utilizados para selecionaacute-los

2 Como o livro didaacutetico eacute utilizado nas aulas

3 Como o planejamento eacute elaborado pelo professor para a classe multisseriada e se

satildeo incluiacutedos os saberes da comunidade

4 A organizaccedilatildeo dos alunos na sala de aula multisseriada

5 As metodologias e os recursos didaacuteticos mais utilizados pelos professores para

trabalhar os conteuacutedos nas aulas

6 Como satildeo trabalhados os saberes da comunidade nas diversas disciplinas do

curriacuteculo pelos professores

225

APEcircNDICE D ndash Roteiro de observaccedilatildeo das atividades na comunidade

1 A importacircncia do rio para os ribeirinhos

2 As histoacuterias e as doenccedilas relacionadas aos seres encantados

3 As praacuteticas do benzedor e da parteira assim como os remeacutedios que utilizam para

curar as doenccedilas

4 As atividades sociais e produtivas (caccedila pesca colheita do accedilaiacute e outras) e como

satildeo desenvolvidas

6 Os instrumentos confeccionados e utilizados para a execuccedilatildeo das atividades

produtivas

7 O processo de aprendizagem para a confecccedilatildeo dos instrumentos e utilizaccedilatildeo no

desenvolvimento das atividades produtivas

3

ECOLOGIA DE SABERES

Um estudo do diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o

saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute

___________________________________________________________________

Orientadora Prof Dra Ana Maria Haddad Baptista (UNINOVE)

________________________________________________________________

Examinador I Prof Dra Diana Navas (PUCSP)

________________________________________________________________

Examinador II Prof Dra Mocircnica Rebecca Ferrari Nunes (ESPM)

________________________________________________________________

Examinador III Prof Dr Mauriacutecio Silva(UNINOVE)

________________________________________________________________

Examinador IV Prof Dr Manuel Tavares Gomes (UNINOVE)

________________________________________________________________

Suplente Prof Dra Carminda Mendes Andreacute (UNESP)

________________________________________________________________

Suplente Prof Dr Joseacute Eduardo de Oliveira Santos (UNINOVE)

Aprovadoem __________________

Tese apresentada agrave Universidade Nove de Julho

junto ao Programa de Mestrado e Doutorado em

Educaccedilatildeo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em

Educaccedilatildeo pela banca examinadora formada por

4

AGRADECIMENTOS

A todos os meus professores do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo

da Universidade Nove de Julho (UNINOVE) que socializaram seus conhecimentos e

experiecircncias

A professora Ana Maria Haddad Baptista por acreditar em mim aceitando-

me como orientando e pelo apoio moral nos momentos difiacuteceis que vivenciei em Satildeo

Paulo

A diretora da Escola Poacutelo e aos professores e professoras da Ilha do Accedilaiacute pela

recepccedilatildeo companheirismo e acolhimento no periacuteodo da pesquisa de campo

A todos os ribeirinhos e ribeirinhas que vivemconvivem na Ilha do Accedilaiacute

Aos membros da banca de qualificaccedilatildeo professores Diana Navas e Manuel

Tavares Gomes pela leitura criteriosa do trabalho o que contribuiu significativamente

no processo de construccedilatildeo e conclusatildeo da tese

Aos professoresMauricio Silva e Mocircnica Rebecca Ferrari Nunes que se

disponibilizaram em compor a banca de defesacom os demais professores

A minha famiacutelia em especial a querida matildeezinhaMaria Joseacute Mendes de

Almeida que sempre acreditou na capacidade de seus filhos eIn memoriam ao meu

paiMerciacutedio Gomes de Almeida pelos ensinamentos que me proporcionou durante

sua existecircncia neste mundo

A Edmar Souza das Neves grande amigo companheiro de viagem e de

caminhada neste doutorado que sempre me incentivou a ldquovoarrdquo mais alto

E a todos que contribuiacuteram com a realizaccedilatildeo deste trabalho mas que natildeo

foram citadossintam-se contemplados pois esta conquista eacute um pouco de cada um

de noacutes

5

RESUMO

Estapesquisa apresenta como temaacutetica a Ecologia de Saberes um estudo do

diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute

na qual investigamos como ocorre o diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos professores

que atuam em classes multisseriadas entre o conhecimento escolar e o saber popular

das comunidades ribeirinhas da referida ilha Numa perspectiva mais ampla a

pesquisa objetiva analisar o modo como o saber escolar dialoga com os outros

saberes de caraacuteter popular decorrentes da diversidade cultural e por isso

epistemoloacutegicaDe forma mais especiacutefica a pesquisa objetivarealizar um estudo a

partir das memoacuterias dos moradores da ilha do Accedilaiacute em relaccedilatildeo aos saberes presentes

no discurso e nas praacuteticas cotidianas dos ribeirinhos bem como identificar na praacutetica

pedagoacutegica do professor a presenccedila do saber popular dos ribeirinhos e as formas

como dialogam com o saber escolar e averiguar como as populaccedilotildees ribeirinhas

foram se constituindona Amazocircnia brasileira e a relaccedilatildeo entre o saber popular

produzido por essa populaccedilatildeo com os aspectos culturais sociais e econocircmicos do

municiacutepio de Afuaacute Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa do tipo estudo

etnograacutefico realizado em cinco comunidades ribeirinhas que compotildeem a ilha do Accedilaiacute

no municiacutepio de Afuaacute no Estado do Paraacute tendo como base para fundamentaccedilatildeo

teoacuterica a Ecologia de Saberes proposta por Boaventura de Souza Santos e o diaacutelogo

na concepccedilatildeo de Paulo Freire Os resultados indicam que o saber popular dos

ribeirinhos estaacute relacionado com o contexto social econocircmico cultural e religioso no

qual estatildeo imersosesses povos estabelecem entre si e com os outros relaccedilotildees de

trocas materiais e simboacutelicas No tocante ao diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos

professores esteocorre de forma vertical (colonizadora) e horizontal

(descolonizadora) com a predominacircncia das praacuteticas colonizadoras nas quais o

diaacutelogo ocorre verticalmente por meio da imposiccedilatildeo do saber escolar e o natildeo

reconhecimento do saber popular

Palavras-chave Ecologia de Saberes Diversidade Epistemoloacutegica Saber Popular

Amazocircnia

6

ABSTRACT

This research brings as a theme ldquoEcologyrsquos Knowledge a study about the dialog

between school and popular knowledge by people that live in Accedilai Island (called in

Portuguese ldquoRibeirinhosrdquo) it was done a survey to investigate how is the teachers

pedagogic practice considering teachers that work with different levels in the same

class and how is the dialog between school and popular knowledge in ldquoRibeirinhos

communityrdquo in Accedilai Island In a holistic view the research aims to analyze how the

school knowledge dialog with others popular knowledge considering cultural diversity

and epistemological In specific way this study tries to understand the Accedilai residents

memories about knowledge presents in daily ldquoRibeirinhosrdquo discuss and practice As

well as aims to identify the popular presence and the way that occur the knowledge

dialog in teachers pedagogic practice and to inquire how ldquoRibeirinhosrdquo people were

compounded in Brazilian Amazon and the relation between popular knowledge that

these people produced with cultural social and economic aspects in Afuaacute district It is

a qualitative search with ethnographic study produced in five (05) ldquoRibeirinhasrdquo

Community that are in Accedilai Island in Afuaacute district in Paraacute state As theory base this

search used the Ecologyrsquos knowledge suggestion by Boaventura de Souza Santos and

the dialog Paulo Freirersquos concept The results present that popular knowledge is linked

with social economical cultural and religion contexts where they are These people

establish themselves a kind of material and symbolic transposition relation About

dialogs teacherrsquos pedagogic practice there is a vertical (colonizer) and horizontal

(decolonized) way where Colonizer practices are predominate and the dialogs occur

vertically by school knowledge imposition and the popular knowledge itrsquos not

recognized

Key words Knowledge Ecology Epistemological diversityPopular Knowledge

Amazon

7

RESUMEN

Esta investigacioacuten presenta el tema de la ecologiacutea del conocimiento un estudio

del diaacutelogo entre el conocimiento escolar y el saber popular de los riberentildeos de la isla

del Accedilaiacute en la cual investigamos coacutemo el diaacutelogo en la praacutectica pedagoacutegica de los

docentes que trabajan en multisseriadas clases entre el conocimiento y el saber de

las comunidades riberentildeas de esta isla En una perspectiva maacutes amplia la

investigacioacuten pretende examinar coacutemo el saber de la escuela dialoga con otros

conocimientos derivados de la diversidad cultural y epistemoloacutegica por lo tanto de

caraacutecter popular Maacutes especiacuteficamente la investigacioacuten tiene como objetivo realizar

un estudio de los recuerdos de los habitantes de la isla de Accedilaiacute en relacioacuten a los

conocimiento presente en el discurso y en las praacutecticas diarias de los riberentildeos bien

como identificar en la praacutectica pedagoacutegica del maestro la presencia de los

conocimientos populares de riberentildeos y como es el diaacutelogo con la escuela y su

conocimiento descubrir coacutemo las poblaciones reasentadas si constituyeron en

Amazonia brasilentildea y la relacioacuten entre el conocimiento de las personas producidas

por esta poblacioacuten con los aspectos culturales sociales y econoacutemicos del municipio

de Afuaacute Es una investigacioacuten cualitativa de tipo etnograacutefico estudio en cinco

comunidades riberentildeas que conforman la isla de Accedilaiacute en el municipio de Afuaacute en el

estado de Paraacute la base para la fundamentacioacuten teoacuterica la Ecologiacutea del Conocimiento

propuesta por Boaventura de Souza Santos y el diaacutelogo desde la concepcioacuten en Paulo

Freire Los resultados indican que el saber de la poblacioacuten riberentildea estaacute relacionado

con el contexto social econoacutemico cultural y religioso en el que estaacute inmerso Estas

pueblos establecen entre siacute y con otros intercambio de materiales y simboacutelicas En

relacioacuten con el diaacutelogo sobre la praacutectica pedagoacutegica de docentes se produce

verticalmente (colonizacioacuten) y horizontal (descolonizadora) con el predominio de

praacutecticas coloniales en el que el diaacutelogo se produce verticalmente a traveacutes de la

imposicioacuten de conocimiento y el no reconocimiento del saber popular

Palabras clave Ecologiacutea del conocimiento Diversidad epistemoloacutegica Saber Popular

Amazonia

LISTA DE FOTOGRAFIAS

8

Fotografia 1 -Mina de ferro Carajaacutes no Estado do Paraacute

Fotografia 2 - Reassentamento coletivo urbano para os atingidos pela usina

Fotografia 3 - Vista aeacuterea da construccedilatildeo da barragem de Belo Monte em Altamira

Paraacute

Fotografia 4 - Peixes mortos ao longo das margens do Rio Araguari no municiacutepio de

Ferreira Gomes estado do Amapaacute

Fotografia 5 - Passarela de madeira no bairro Capimarinho

Fotografia 6 ndash Trabalhador autocircnomo (carreteiro) transportando mercadoria

Fotografia 7 - Igreja de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo

Fotografia 8 ndash Ribeirinho jogando a tarrafa no rio

Fotografia 9 ndashAacuterea desmatada para o plantio de milho

Fotografia 10 ndash Casas construiacutedas em aacuterea de invasatildeo no bairro Capimarinho

Fotografia 11 ndash Centro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery

Fotografia 12 ndash Classe multisseriada

Fotografia 13 ndash Laboratoacuterio de Informaacutetica da EMEF Frei Faustino Lagarda

Fotografia 14 -Escola ribeirinha que funciona como anexo

Fotografia 15 - Sala de aula de uma escola ribeirinha que funciona como anexo

Fotografia 16 - Escola Polo

Fotografia 17 - Preacutedio da Escola B

Fotografia 18 - Preacutedio da Escola E

Fotografia 19 ndash Cascos feitos de madeira Cedro

Fotografia 20 ndash Ribeirinho levando o filho para a escola no casco

Fotografia 21 ndash Ribeirinha pescando com o caniccedilo

Fotografia 22 ndash Ribeirinho com o filho colocando a malhadeira no rio

Fotografia 23 - Ribeirinho tecendo a malhadeira

Fotografia 24 ndash Matapi

Fotografia 25 - Benzedor benzendo uma crianccedila com susto

Fotografia 26 ndash Ribeirinha cuidando da horta

Fotografia 27 ndash Marupazinho

Fotografia 28 ndash Peacute de Mastruz

Fotografia 29 ndash Peacute de Capim Marinho

Fotografia 30 ndash Peacute de Noni

Fotografia 31 ndash Sementes de Cacau

9

Fotografia 32 ndash Erva Cidreira

Fotografia 33ndash Catinga de Mulata

Fotografia 34 ndash Palmeira de Buriti

Fotografia 35 - Peacutes de Accedilaiacute

Fotografia 36 ndash Menino subindo no Accedilaizeiro

Fotografia 38 ndash Instrumentos utilizados para a colheita de accedilaiacute

Fotografia 39 ndash Menina debulhando o cacho de accedilaiacute

Fotografia 40 ndash Amassadeira eleacutetrica

Fotografia 41 ndash Amassadeira manual

Fotografia 42 ndash Ribeirinha amassando o accedilaiacute com as matildeos

Fotografia 43 ndash Lista de conteuacutedos da disciplina Ciecircncias

Fotografia 44 ndash Fragmentos do conteuacutedo sobre ldquoecossistemardquo no caderno de aluno

Fotografia 45 ndash Fragmentos do conteuacutedo sobre ldquoos animaisrdquo no caderno de aluno

Fotografia 46 ndash Conteuacutedo referente ao tem ldquomoradiardquo abordado no livro didaacutetico da

disciplina Artes para o 1ordm 2ordm e 3ordm ano do ensino fundamental

Fotografia 47 ndash Sala de aula multisseriada

LISTA DE TABELAS

10

Tabela 01 - Membros do grupo ModernidadeColonialidade

Tabela 02 ndash Comparaccedilatildeo da produccedilatildeo de accedilaiacute no intervalo de quatro anos

Tabela 03 ndash Quantidade de Alunos matriculados no CEI

Tabela 04 ndash Percentual de atendimento das crianccedilas de 0 a 3 anos

Tabela 05 - Percentual de atendimento das crianccedilas de 4 a 5 anos em Afuaacute

Tabela 06 ndash Estabelecimentos de ensino fundamental por dependecircncia administrativa

Tabela 07 - Distorccedilatildeo idadeseacuterie no ensino fundamental

Tabela 08 - Taxa de rendimento escolar no ensino fundamental em 2015 ndash aacuterea

urbana

Tabela 09 ndash Escolas que compotildeem o Regional Madeira com o nuacutemero de alunos no

ano de 2016

Tabela 10 ndash Distribuiccedilatildeo das turmas da Educaccedilatildeo Infantil e anos iniciais do ensino

fundamental por professor

Tabela 11 ndash Os professores sujeitos da pesquisa

Tabela 12 ndash Os moradores sujeitos da pesquisa

Tabela 13 ndash Categorias aprioriacutesticas

Tabela 14 ndash Categorias aprioriacutesticas

Tabela 15 ndash Categorias natildeo aprioriacutesticas

LISTA DE MAPAS

11

Mapa 01 Localizaccedilatildeo Geograacutefica do municiacutepio de Afuaacute

Mapa 02 Mapa da ilha de Marajoacute indicando a proximidade de Afuaacute com o Macapaacute

LISTA DE SIGLAS

12

CAETA - Comissatildeo Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a

Amazocircnia

CEI- Centro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery

EJA - Educaccedilatildeo de Jovens e Adultos

ECA - Estatuto da Crianccedila e do Adolescente

ICOMI ndash Sociedade Brasileira de Industria e Comercio de Mineacuterios de Ferro e

Manganecircs

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica

IDH ndash Iacutendice de Desenvolvimento Humano

INEP ndash Instituto Nacional de Ediccedilotildees Pedagoacutegicas

IDEB ndash Iacutendice de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo Baacutesica

LDBEN ndash Lei de Diretrizes e Base da Educaccedilatildeo Nacional

MEC - Ministeacuterio da Educaccedilatildeo

NEC - Nuacutecleo de Educaccedilatildeo do Campo

PME - Plano Municipal de Educaccedilatildeo

PNAD ndash Pesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelio

PNDU -Programa das Naccedilotildees Unidas para o Desenvolvimento

PNLD- Programa Nacional do Livro Didaacutetico

SEMED - Secretaacuterias Municipais de Educaccedilatildeo

SEED - Secretaria de Estado da Educaccedilatildeo do Amapaacute

SEMTA - Serviccedilo Especial de Mobilizaccedilatildeo de Trabalhadores para a Amazocircnia

UEPA - Universidade do Estado do Paraacute

UNIFAP - Universidade Federal do Amapaacute

SUMAacuteRIO

13

APRESENTACcedilAtildeO 15

INTRODUCcedilAtildeO 19

1ESTUDOS TEOacuteRICOS DA PESQUISA 24

11A ECOLOGIA DE SABERES 24

111O Paradigma hegemocircnico 24

112 A crise do paradigma hegemocircnico 26

113 O Conhecimento Prudente para uma Vida Decente 28

114 A criacutetica da razatildeo indolente 30

115 Ecologia de Saberes o reconhecimento dos saberes nascido das lutas

dosoprimidos

38

12 A DESCOLONIZACcedilAtildeO EPISTEMOLOacuteGICA 42

121Os Estudos Poacutes-Coloniais 42

122A colonialidade do poder 47

123 Gnose ou pensamento liminar 53

13O DIAacuteLOGO ponto de partida para praacuteticas transformadoras 59

2 A EDUCACcedilAtildeO DAS POPULACcedilOtildeES RIBEIRINHAS NA AMAZOcircNIA 64

21 UM MERGULHO NA AMAZOcircNIA BRASILEIRA 64

22 POVOS DA AMAZOcircNIA os ribeirinhos 80

23 AFUAacute a Veneza Marajoara 85

231 Aspectos Histoacutericos Geograacuteficos e Econocircmicos 86

24 A EDUCACcedilAtildeO RIBEIRINHA NO MUNICIacutePIO DE AFUAacute 99

241 Educaccedilatildeo Infantil 99

242 Ensino Fundamental e Meacutedio 106

3 PERCURSO METODOLOacuteGICO 115

31 TIPO E LOCAL DA PESQUISA 115

32 PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS PARA A COLETA DE DADOS 120

33 CARACTERIZACcedilAtildeO DOS SUJEITOS DA PESQUISA 124

34 TEacuteCNICA DE ANAacuteLISE DOS DADOS 125

341 A emergecircncia das categorias de anaacutelise da Pesquisa 127

4ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS 130

41 O SABER POPULAR DOS RIBEIRINHOS DA ILHA DO ACcedilAIacute 130

411 Saberes das Aacuteguas 134

412 Saberes da Terra e da Mata 147

14

413 Saberes do Accedilaiacute 156

42 O DIAacuteLOGO ENTRE O CONHECIMENTO ESCOLAR E O SABER POPULAR 164

421 O Conhecimento Escolar 164

4211 O conhecimento escolar na oacutetica dos professores 166

422O Livro Didaacutetico 173

423O Planejamento das Aulas 180

4231 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma

perspectiva colonizadora

181

4232 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma

perspectiva descolonizadora

183

424 Metodologias de Ensino e Aprendizagem 186

4241 Professores que desenvolveram praacuteticas colonizadoras 187

4242 Professores que desenvolveram praacuteticas descolonizadoras 193

5CONCLUSAtildeO 206

REFERENCIAS 214

APEcircNDICES

APEcircNDICE A ndash Roteiro de entrevista para a comunidade 223

APEcircNDICE B ndash Roteiro de entrevista para os professores 224

APEcircNDICE C ndash Roteiro de observaccedilatildeo das aulas 226

APEcircNDICE D ndash Roteiro de observaccedilatildeo das atividades na comunidade 227

APRESENTACcedilAtildeO

15

Investigar a Amazocircnia eacute um desafio devido ao vasto territoacuterio que a compotildee e

a diversidade eacutetnica e cultural que a caracteriza A vastidatildeo geograacutefica e os aspectos

multiculturais das populaccedilotildees que habitam a regiatildeo fazem com que a Amazocircnia natildeo

seja concebida como uniacutevoca mas sim como espaccedilo pluralizado e multicultural

Nesses espaccedilos a populaccedilatildeo que eacute diversificada constroacutei e reconstroacutei

cotidianamente as Amazocircnias Nesta tese investigamos a Amazocircnia ribeirinha na

qual o rio e a mata tecircm um papel preponderante nos aspectos econocircmicos sociais

culturais e religiosos dos povos que habitam esta regiatildeo

Como oriundo da Amazocircnia Ribeirinha vivenciei desde a infacircncia a convivecircncia

com o rio por meio da pesca do peixe e camaratildeo dos banhos e brincadeiras nas

aacuteguas com a mata atraveacutes da caccedila de animais silvestres e feitura de roccedila para plantar

milho melancia mandioca macaxeira e maxixe para o consumo bem como trocar e

vender Tambeacutem aprendi a confeccionar os utensiacutelios necessaacuterios agrave produccedilatildeo

econocircmica dentre os quais o paneiro para colocar camaratildeo e o accedilaiacute o casco para

navegar nos rios o matapi para pegar o camaratildeo a malhadeira e o caniccedilo para

pescar dentre outros necessaacuterios para a sobrevivecircncia neste contexto

Minha famiacutelia era ribeirinha oriunda da Ilha dos Caraacutes no municiacutepio de Afuaacute

que pertence ao estado do Paraacute Como na ilha natildeo havia escola os pais que

quisessem que seus filhos estudassem tinham que mudar para cidade foi o que os

meus fizeram pois acreditavam que com acesso agrave educaccedilatildeo escolar seus filhos

poderiam ter uma vida melhor da que eles levavam Aos sete anos jaacute estava morando

em Macapaacute capital do estado do Amapaacute e matriculado na 1ordf seacuterie do ensino

fundamental

Inicialmentea convivecircncia com a escola natildeo foi muito boafui muitas vezes

repreendido pelas minhas professoras devido agrave forma como falava a minha

linguagem era oriunda do meio social no qual vivia ou seja dos ribeirinhos

considerada pela escola como ldquofeiardquo ldquoincorretardquo Assim dificilmente abria a boca nas

aulas geralmente apenas respondia ldquopresenterdquo na hora da chamada quando meu

nome era citado Isso me fez ter vergonha da minha proacutepria linguagem e para

sobreviver neste meio foi preciso reaprender a falar de acordo com a liacutengua dominante

considerada correta culta e hegemocircnica

Conclui o ensino fundamental e em 1985fui aprovado no teste de seleccedilatildeo para

o curso de formaccedilatildeo de professores a niacutevel meacutedio no Instituto de Educaccedilatildeo do

Territoacuterio do Amapaacute (IETA) instituiccedilatildeo puacuteblica que formava professores para atuar na

16

educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do ensino fundamental Durante o referido curso fui

aos poucos motivado pela professora da disciplina Didaacutetica e principalmente pelos

meus colegas de turma perdendo a timidez e ficando mais a vontade para falar pois

nas aulas a professora fazia perguntas queria saber nossa opiniatildeo sobre os temas

das aulas abria espaccedilo para o debate garantia a todos o direito agrave palavra

No ano de 1988 iniciei a carreira docente em uma escola ribeirinha no

Municiacutepio de Macapaacute Tinha acabado de concluir o curso de formaccedilatildeo de professores

para ldquoaprender a ensinarrdquo1e fui encaminhado juntamente com meus colegas receacutem-

formados para o interior2 O meio de transporte que utilizaram para nos distribuir nas

comunidades foi o caminhatildeo e onde o carro natildeo podia entrar trocaacutevamos o

caminhatildeo por barcos voadeiras ou catraios3 para chegar ao futuro local de trabalho

Era professor receacutem-formado sem experiecircncia de sala de aula tendo a

responsabilidade de ministrar aulas de 1ordf a 4ordf seacuteries em classes multisseriadas4

sozinho sem ter nenhum colega de trabalho para dividir as duacutevidas as anguacutestias e

as dificuldades Assim a docecircncia foi aprendida na praacutetica pois no curso de

formaccedilatildeo natildeo estudamos o processo de ensino e de aprendizagem com classes

multisseriadas Aliaacutes nunca discutimos a educaccedilatildeo ribeirinha apesar de vivermos na

Amazocircnia uma regiatildeo repleta de rios e florestas Trabalhei na escola para a qual fui

designado durante seis anos e vim para a cidade apoacutes a aprovaccedilatildeo no vestibular para

o curso de Pedagogia na Universidade Federal do Amapaacute (UNIFAP)

Concluiacuteda a graduaccedilatildeo passei a trabalhar como docente em uma instituiccedilatildeo

de formaccedilatildeo de professores para educaccedilatildeo infantil e seacuteries iniciais do ensino

fundamental Nesta escola formamos um grupo de estudos para discutir e refletir

sobre a educaccedilatildeo do campo na Amazocircnia e especificamente no Amapaacute A literatura

era escassa e tiacutenhamos acesso a poucas obras sobre o assunto Essa escassez

reflete os poucos estudos e investigaccedilotildees referentes a essa temaacutetica Em relaccedilatildeo a

isso explica Arroyo (2004 p 8) que ldquosomente 2 das pesquisas dizem respeito a

questotildees do campo natildeo chegando a 1 as que tratam especificamente da educaccedilatildeo

1 Expressatildeo usada pelo gestor do setor de Educaccedilatildeo do campo da Secretaria de Educaccedilatildeo na primeira e uacutenica reuniatildeo na qual fomos informados de que iriacuteamos trabalhar na zona rural 2 Expressatildeo comumente utilizada para se referir agraves escolas localizadas fora da aacuterea urbana do muniacutecipio 3 Pequenos barcos movidos a motor que fazem o transporte de pessoas e pequenas cargas nos rios da Amazocircnia 4 Escolas nas quais somente um professor (a) atua ao mesmo tempo e no mesmo espaccedilo com todas as turmas das seacuteries iniciais do ensino fundamental Em algumas comunidades o professor ou a professora assume tambeacutem a educaccedilatildeo infantil

17

escolar no meio ruralrdquo Isso nos fez criar um projeto no qual convidaacutevamos professores

das escolas ribeirinhas dos assentamentos das comunidades quilombolas das

regiotildees de garimpos dentre outras para dialogarem com os professores e os alunos

do magisteacuterio (como chamaacutevamos o curso de formaccedilatildeo de professores) Em seguida

decidimos ir ateacute essas escolas Foi um projeto ousado Enfrentamos muitos

obstaacuteculos que geralmente os educadores que atuam nessas instituiccedilotildees enfrentam

constantemente eles abrangem desde o apoio logiacutestico ateacute a burocracia das

Secretaacuterias Municipais de Educaccedilatildeo (SEMED)

Posteriormente em 2002 assumi a disciplina Estrutura e Funcionamento da

Educaccedilatildeo Baacutesica no curso de Pedagogia no polo5 de Afuaacute como professor substituto

na UNIFAP Este foi o primeiro contato que tive com o municiacutepio conhecido como a

ldquoVeneza Marajoarardquo famoso por seu Festival do Camaratildeo que atrai milhares de

pessoas de todos os cantos do paiacutes e do exterior no mecircs de julho

O polo universitaacuterio ao qual fui designado funcionava apenas nos meses de

janeiro e julho em uma escola puacuteblica de ensino fundamental e meacutedio Os alunos da

turma de Pedagogia eram todos professores nas escolas ribeirinhas6 pertencentes ao

sistema de ensino de Afuaacute As nossas aulas partiam das discussotildees das garantias

constitucionais sobre a educaccedilatildeo da Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional

e das receacutem-aprovadas Diretrizes Operacionais para a Educaccedilatildeo Baacutesica nas Escolas

do Campo uma vez que para eles estas leis ainda natildeo tinham ldquonascidordquo naquele

lugar visto que a realidade educacional vivenciada nas escolas ribeirinhas estava

longe do que estabelecem as leis

No ano de 2009 conclui o mestrado em Educaccedilatildeo pela Universidade do Estado

do Paraacute (UEPA) no qual investiguei a praacutetica pedagoacutegica do professor em escolas

ribeirinhas na Amazocircnia Paraense Em seguida comecei a trabalhar na Secretaria de

Estado da Educaccedilatildeo do Amapaacute (SEED) especificamente no Nuacutecleo de Educaccedilatildeo do

Campo (NEC) setor responsaacutevel pelo planejamento execuccedilatildeo e avaliaccedilatildeo dos cursos

de formaccedilatildeo continuada dos professores das escolas do campo da rede estadual de

ensino Trabalhei neste setor ateacute a minha aprovaccedilatildeo para cursar o doutorado

5 Os polos universitaacuterios funcionavam nos municiacutepios que firmavam convecircnio com a UNIFAP para a formaccedilatildeo em niacutevel superior dos professores do seu sistema de ensino 6 Utilizaremos a expressatildeo ldquoescolas ribeirinhasrdquo pois todas as escolas situadas no meio rural de Afuaacute satildeo ribeirinhas Acreditamos que assim destacaremos as singularidades da realidade vivenciada pelos atores sociais que vivem e sobrevivem do rio e da mata

18

Portanto a incursatildeo na temaacutetica da educaccedilatildeo ribeirinha na Amazocircnia faz parte

da minha histoacuteria de vida pessoal e profissional Neste estudo investigamos uma

faceta desta regiatildeo denominada de Amazocircnia Afuaense que aprofundamos no

decorrer desta tese

INTRODUCcedilAtildeO

Esta tese intituladaEcologia de Saberes um estudo do diaacutelogo entre o

conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute analisa no

acircmbito da educaccedilatildeo baacutesica especificamente na educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do

ensino fundamental o diaacutelogo entre diferentes tipos de conhecimentos Tecircm como

19

objeto de estudo investigar como dialogam o saber popular dos ribeirinhos da ilha do

Accedilaiacute e o saber escolar (saber hegemocircnico) na praacutetica pedagoacutegica dos professores

que atuam em classes multisseriadas nas escolas da referida ilha

Utilizamos como referencial teoacutericopara fundamentar a pesquisa a concepccedilatildeo

de ecologia de saberes proposta por Boaventura de Souza Santos e o diaacutelogo na

visatildeode Paulo Freire Na ecologia de saberes o mundo eacute um arco-iacuteris policromaacutetico

(SANTOS 2008) sendo assim haacute uma diversidade de culturas com diferentes formas

de produzir saberes que orientam suas atividades produtivas sociais culturais e

religiosas O reconhecimento da diversidade epistemoloacutegica existente no mundoeacute

essencial para que se efetivem praacuteticas nas quais os saberes possam dialogar numa

relaccedilatildeo de igualdade sem a imposiccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico como hegemocircnico

O termo ecologia de acordo com Santos (2008 p 157) ldquoassenta no reconhecimento

da pluralidade de saberes heterogecircneos da autonomia de cada um deles e da

articulaccedilatildeo sistemaacutetica dinacircmica e horizontal entre elesrdquo

Para Freire (2014) o diaacutelogo se constitui no encontro entre educador e

educandos que refletem e agem sobre o mundo a ser transformado e humanizado

Portanto o diaacutelogo eacute comunicaccedilatildeo pois conhecemos a realidade na interaccedilatildeo com

nossos semelhantes o que o torna tambeacutem social apesar da dimensatildeo individual

haja vista que eacute por meio dele que podemos atuar criticamente para transformar a

realidade na qual vivemos

O diaacutelogo segundo Freire (2014) para ser um elemento de humanizaccedilatildeo e

transformaccedilatildeo precisa ser repleto de amor humildade feacute e confianccedila nos homens

bem como esperanccedila aliada agrave luta pela mudanccedila No diaacutelogo todos tecircm que ter

garantido o direito agrave palavra que para o autor eacute considerada praacutexis (accedilatildeo-reflexatildeo-

accedilatildeo)

Assim investigamos o diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber popular

dos ribeirinhos na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam em classes

multisseriadas e desenvolvem suas atividades profissionais nas escolas situadas na

ilha do Accedilaiacute pertencente ao municiacutepio de Afuaacute no estado do Paraacute

A opccedilatildeo pelo referido municiacutepio deu-se por trecircs motivos O primeiro foi o contato

que tive como docente no polo da Universidade Federal do Amapaacute (UNIFAP) periacuteodo

em que vivenciei a formaccedilatildeo em niacutevel superior no curso de Pedagogia dos

professores do referido muniacutecipio Os constantes diaacutelogos dentro e fora da sala de

aula aguccedilaram-me o interesse em investigar a praacutetica pedagoacutegica com turmas

20

multisseriadas nas quais somente um professor assume a responsabilidade pelo

ensino de crianccedilas da educaccedilatildeo infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental e

tambeacutem de adolescentes e adultos porque nas comunidades ribeirinhas eacute comum

encontraacute-los estudando nas turmas do 1ordm ao 5ordm ano Sendo assim ldquoas classes

multisseriadas satildeo espaccedilos marcados predominantemente pela heterogeneidade ao

reunirem grupos com diferenccedilas de sexo de idade de interesses de domiacutenio de

conhecimentos de niacuteveis de aproveitamento etcrdquo (HAGE 2005 p 6)

O segundo motivo foi o nuacutemero significativo de escolas ribeirinhas de acordo

com os dados obtidos na Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo (SEMED) em 2015 foram

contabilizadas 207 escolas localizadas na zona rural7 Neste estudo satildeo

consideradas escolas ribeirinhas pois estatildeo situadas agraves margens de rios lagos furos

ou igarapeacutes nas comunidades ribeirinhas Este montante corresponde a 982 do

total de escolas do sistema municipal de ensino de Afuaacute que estaacute organizado

administrativa e pedagogicamente em 24 regionais Os regionais satildeo agrupamentos

de escolas de acordo com a sua localizaccedilatildeo geograacutefica Esta foi a estrateacutegia adotada

pela Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo (SEMED) para atender agrave diversidade

geograacutefica da regiatildeo

O terceiro motivo estaacute voltado para a continuidade da pesquisa que realizei no

mestrado na qual investiguei ldquoos saberes mobilizados e produzidos na praacutetica

pedagoacutegica dos professores ribeirinhos em classes multisseriadas que atuam na

referida ilhardquo Neste estudo cheguei agrave conclusatildeo de que os professores produzem

saberes a partir do contexto no qual desenvolvem suas atividades profissionais no

doutorado resolvi investigar como acontece o diaacutelogo entre o saber popular e o

escolar compreendendo que a maneira como o diaacutelogo ocorre na praacutetica pedagoacutegica

do professor estaacute vinculado com o saber produzido por este docente

Dentre os regionais optamos por continuar a investigaccedilatildeo no Regional

Madeira devido a algumas caracteriacutesticas que o distinguem dos outros regionais

dentre elas o horaacuterio das aulas nas escolas eacute de acordo com a mareacute ou seja os rios

e igarapeacutes da regiatildeo na mareacute vazante inviabilizam a entrada dos catraios para o

transporte dos alunos sendo necessaacuterio esperar a mareacute encher para poder adentraacute-

los a economia das comunidades que compotildeem o regional eacute baseada quase que

7 Os teacutecnicos da SEMED chamam escolas da zona rural mas todas as 207 escolas estatildeo localizadas em ilhas ou as margens de rios furos ou igarapeacutes por isso as consideramos ribeirinhas

21

exclusivamente na colheita do accedilaiacute Outra caracteriacutestica que nos fez optar pelo citado

regional foi a proximidade com Macapaacute onde reside o pesquisador o que viabilizou a

pesquisa de campo devido agrave facilidade de transporte (a viagem de catraio ateacute as

escolas do regional dura em meacutedia 90 a 120 minutos) e permanecircncia no local da

pesquisa8

Diante deste contexto partimos nesta investigaccedilatildeo da seguinte questatildeo

problema Como ocorre o diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam

em classes multisseriadas entre o conhecimento escolar e o saber popular das

comunidades ribeirinhas da ilha do Accedilaiacute

Como objetivo geral propomos analisar o modo como o saber escolar dialoga

com os outros saberes de caraacuteter popular decorrentes da diversidade cultural e por

isso epistemoloacutegica E como especiacuteficos Cartografar a partir das memoacuterias dos

moradores da ilha do Accedilaiacute os saberes presentes no discurso e nas praacuteticas cotidianas

dos ribeirinhos identificar na praacutetica pedagoacutegica do professor a presenccedila do saber

popular dos ribeirinhos e as formas como dialogam com o saber escolar averiguar

como as populaccedilotildees ribeirinhas foram se constituindona Amazocircnia brasileira e a

relaccedilatildeo entre o saber popular produzido por essa populaccedilatildeo com os aspectos

culturais sociais e econocircmicos do municiacutepio de Afuaacute

O municiacutepio de Afuaacute pertence ao estado do Paraacute Estaacute situado no arquipeacutelago

do Marajoacute que eacute uma ilha com uma aacuterea de aproximadamente 40100 kmsup2 eacute a maior

ilha do Brasil e tambeacutem a maior fluviomariacutetima do mundo

Afuaacute fica agraves margens dos rios Cajuuna Afuaacute e Marajozinho como a maioria

das cidades ribeirinhas na Amazocircnia nasceu ao redor de uma igreja catoacutelica

denominada Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo atraveacutes de terras doadas por Micaela

Ferreira no final do seacuteculo XIX Possui forte viacutenculo com os rios atraveacutes da pesca do

lazer e do uso como via para o meio de transporte Eacute uma cidade pequena de acordo

com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) de 2013 possuiacutea

em torno de 15 mil habitantes Localmente a prefeitura e alguns grupos de

propagandistas a definem como Veneza Marajoara ou Veneza Amazonense pois

a cidade se levanta sobre as aacuteguas Embora a comparaccedilatildeo seja supeacuterflua eacute fato que

8 Durante a pesquisa de campo fiquei hospedado nas escolas ribeirinhas onde fui gentilmente recebido pelos professores e comunidade local

22

a pequena cidade levantou-se pouco a pouco sobre o terreno de vaacuterzea criando uma

formosa obra em palafitas

O sistema de ensino do municiacutepio de Afuaacute eacute composto por escolas ribeirinhas

divididas em vinte e quatro regionais Os regionais satildeo agrupamentos de escolas que

estatildeo localizadas geograficamente proacuteximas Cada regional possui uma escola Poacutelo

que eacute responsaacutevel pela administraccedilatildeo de todas as demais que compotildeem o respectivo

regional Realizamos a pesquisa no Regional Madeira9 que abrange cinco escolas

situadas na ilha do Accedilaiacute10

Organizamos o texto destatese em quatro capiacutetulos No primeiroabordamos a

construccedilatildeo de um quadro teoacuterico para a anaacutelise do diaacutelogo entre o saber escolar e o

saber popular que consiste no referencial teoacuterico para discutir as categorias

aprioriacutesticas e natildeo aprioriacutesticas que emergiram da pesquisa de campo No segundo

capiacutetulo fizemos uma imersatildeo histoacuterica das populaccedilotildees ribeirinhas na Amazocircnia

realizamos um mergulho na Amazocircnia brasileira com ecircnfase nos povos das aacuteguas

em seguidaabordamos o municiacutepio de Afuaacutenosseus aspectos histoacutericos geograacuteficos

e econocircmicos com destaque paraa dimensatildeo educacional

No terceiro capiacutetulo descrevemos o percurso metodoloacutegico com o tipo e local

da pesquisa os procedimentos e instrumentos para a coleta de dados caracterizaccedilatildeo

dos sujeitos e a teacutecnica de anaacutelise dos dados No quarto capituloapresentamos a

cartografia a partir das memoacuterias dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute do saber popular o

qual classificamos em trecircs categorias saberes das aacuteguas saberes da terra e da mata

e saberes do accedilaiacute Efinalizamos o referido capiacutetulo analisando como ocorre o diaacutelogo

entre o conhecimento escolar e o saber popular na praacutetica pedagoacutegica dos

professores que atuam em classes multisseriadas nas escolas da ilha do accedilaiacute

classificamos essas praacuteticas em duas categorias natildeo aprioriacutesticas as colonizadoras

e as descolonizadoras

9 Nome fictiacutecio para preservar o anonimato do gestor e dos professores que atuam nas escolas pertencentes ao regional 10 Nome fictiacutecio para preservar o anonimato dos sujeitos da pesquisa que residem na ilha

23

1ESTUDOS TEOacuteRICOS DA PESQUISA

Nestecapiacutetulo fizemos a discussatildeo do referencial teoacuterico da pesquisa que

balizou as inferecircncias e interpretaccedilotildees das categorias aprioriacutesticas e natildeo aprioriacutesticas

11 A ECOLOGIA DE SABERES

Nesta seccedilatildeo com o objetivo de compreendermos a gecircnese da proposta

apresentada por Boaventura de Sousa Santos quanto agrave ecologia de saberes fizemos

24

uma abordagem referente ao paradigma hegemocircnico sua crise e a assunccedilatildeo de um

novo paradigma bem como a criacutetica da razatildeo indolente para chegarmos agrave concepccedilatildeo

das ecologias

111O Paradigma hegemocircnico

Segundo Santos (2008) o modelo hegemocircnico da ciecircncia moderna eacute oriundo

do modelo de racionalidade que se constituiu a partir da revoluccedilatildeo cientiacutefica do seacuteculo

XVI Gruumln (2002) considera que esta revoluccedilatildeo de cunhocientiacutefico e filosoacutefico sofreu

marcadas influecircncias de Galileu Galilei (1564-1642) Francis Bacon (1561-1626)Reneacute

Descartes (1596-1650) e de Isaac Newton (1642-1727) e guiaram as accedilotildees dos

sujeitos na civilizaccedilatildeoocidental

De acordo com Perez Filho(2003) Galileu foi quem primeiro descreveu a

Natureza em uma linguagem fiacutesico-matemaacutetica No seacuteculo XVI estabeleceu

matematicamente a Lei dos Corpos em seu manuscrito De MotuAfirma Gruumln (2002)

que a qualidade dos os objetos para Galileu natildeo eram semelhantes e sim diferentes

sendo elas primaacuterias e secundaacuterias As primaacuterias satildeo concretas e natildeo estatildeo

diretamente relacionadas ao pensamento As secundaacuterias por serem subjetivas estatildeo

ligadas a sensibilidade Galileu achava que a experimentaccedilatildeo era fundamental para a

comprovaccedilatildeo (MORAES 1997) assim determinava a importacircncia da quantificaccedilatildeo

dos fenocircmenos

Para Francis Bacon de acordo com Moraes (1997) a experiecircncia nos conduz

ao correto e exato conhecimento dos fenocircmenos logo o empirismo e sua loacutegica

dedutiva criados por Bacon trouxeram uma nova metodologia baseada na

experimentaccedilatildeo cientiacutefica Nesse sentido rompe com o antigo modo de pensamentoe

fortalece a superioridade do Homem em relaccedilatildeo agrave Natureza (GRUumlN 2002)

Diferentemente de Bacon para Descartes o conhecimentoeacute obtido a partir da

intuiccedilatildeo e da deduccedilatildeo anatureza humana tem suaessecircnciano pensamento e de a

verdade estaacute nas coisas que concebemos de forma clara e distintaA obra Discurso

do Meacutetodo apresenta a divisatildeo dopensamento e dos fenocircmenos em infinitas partes

sendo que a disposiccedilatildeo delas ocorre a partir de uma sequecircncia loacutegicaNa visatildeo

cartesiana a ecircnfase nas partes em detrimento do todo caracteriza a divisibilidade do

objeto que eacute compartimentado em partes infinitas (DESCARTES 1996)

Na referida obra Descartes assinala a oposiccedilatildeo entre homem-natureza na

qual o homem passa definitivamente a ser visto como centro do mundo e um sujeito

superior agrave Naturezasujeito-objeto mente-corpo e espiacuterito-mateacuteria bem como o

25

caraacuteter pragmaacutetico do conhecimento como recurso infinito e ilimitado no domiacutenio dos

processos afirma o autor ldquo[] conhecimentos que sejam uacuteteis agrave vida em vez dessa

filosofia especulativa que se ensina nas escolas []rdquo (DESCARTES 1996 p 69)

Isaac Newton dando continuidade ao pensamento de Descartes sedimentou

a visatildeo de mundo como uma maacutequina governada por leis imutaacuteveis fortalecendo

desta forma o paradigma mecanicista Para o fiacutesico o mundo considerado

umsistema mecacircnico pode ser descrito objetivamenteo que levou a descriccedilatildeo objetiva

da Natureza como o ideal para a ciecircncia (MORAES 1996)

Dentre os pressupostos do pensamento cartesiano-newtoniano estaacute a divisatildeo

e a modelagem do fenocircmeno em estudo em diversas partes para compreendecirc-lo Esta

forma de conceber a ciecircncia vai ao encontro dos interesses do capital que o utiliza

para organizaccedilatildeo da sociedade burguesa Outro fator de relevacircncia para o avanccedilo da

ciecircncia moderna na concepccedilatildeo de Ribeiro (2007 p 58) foi o movimento iluminista

na Europa que

[] em meados doseacuteculo XVIII reforccedilou o pensamento cartesiano-newtonianoOs iluministas consideram que o Homem eacute um ser dotado de razatildeo e que essedeveria se emancipar atraveacutes do seu saber O Iluminismo expurga os resquiacutecios religiosos medievais e autentica a visatildeoantropocecircntrica e pragmaacutetica no imaginaacuterio cultural e no universo ideoloacutegico apartir do momento em que haacute uma transposiccedilatildeo agraves regras loacutegico-formais daperspectiva mecanicista das ciecircncias naturais para as ciecircncias humanasculminando no movimento conhecido como positivismo

Nesse intento o que natildeo se pode transformar em nuacutemeros eacutedesconsiderado

pelo positivismo moderno e o conhecimento que natildeo tem utilidade e tambeacutem natildeo pode

ser calculado eacute descartado pela visatildeo iluminista Desta maneira soacute pode ser

considerado verdadeiro aquilo que eacutequantitativamente medido

Desta maneira a quantificaccedilatildeo dos fenocircmenos pelo emprego rigoroso de

mediccedilotildees se consolidou sem levar em consideraccedilatildeo as qualidades do objeto pois o

objetivo era quantificar e reduzir a complexidade do mundo por meio da divisatildeo

classificaccedilatildeo e posterior determinaccedilatildeo de relaccedilotildees entre o que foi separado Assim o

conhecimento eacute validado se for dirigido pelos preceitos dessa racionalidade cientiacutefica

Para Santos (2008) o paradigma moderno estabelece a separaccedilatildeo entre o que eacute

cientiacutefico e que eacute senso comum separa natureza e humanidade natildeo aceita como

vaacutelidas o conhecimento oriundo das experiecircnciascotidianas

Desta forma a ciecircncia moderna elabora as leis a partir de uma visatildeo do

conhecimento cientiacutefico como causal e que guiam as pesquisas nas ciecircncias naturais

26

e sociais de acordo com os preceitos mecanicistas baseados na seguranccedila

previsibilidade ordem e estabilidade

Esse paradigma das ciecircncias naturais foi aplicado tambeacutem nas ciecircncias sociais

emergentes pois ldquotal como foi possiacutevel descobrir as leis da natureza seria igualmente

possiacutevel descobrir as leis da sociedaderdquo (SANTOS 2008 p 45) Tornando-se

hegemocircnico e negando as outras formas de conhecimento que natildeo se guiam

pelosseus princiacutepios epistemoloacutegicos Segundo o autor as pesquisas na aacuterea das

ciecircncias sociais no seacuteculo XIX abrangem duas vertentes A primeira com a aplicaccedilatildeo

da metodologia das ciecircncias da natureza dentre os seus percussores estaacute Durkheim

que concebia as ciecircncias sociais como parte das naturais A segunda preconizava

uma epistemologia e metodologia de acordo com o objeto de estudo das ciecircncias

sociais teve como principais representantes Max Weber e Peter WinchPara Santos

(2010)as duas correntes estavam atreladas ao paradigma da ciecircncia moderna por

mais que a segunda representasse a crise e inicio da transiccedilatildeo para outro paradigma

cientiacutefico

112 A crise do paradigma hegemocircnico

Apenas no desenrolar do seacuteculo XX a soberania da ciecircncia moderna comeccedila a

ser coloca em discussatildeo afirma Santos (2008) que o questionamento da soberania

epistemoloacutegica hegemocircnica fruto da sua crise traz no seu interior o paradigma

emergente

Paradoxalmente eacute o avanccedilo da ciecircncia moderna que a levaraacute a sua crise

[hellip] a identificaccedilatildeo dos limites das insuficiecircncias estruturais do paradigmacientiacutefico moderno eacute o resultado do grande avanccedilo no conhecimento que elepropiciou O aprofundamento do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda (SANTOS 2008 p 41)

Segundo Santos (2008)esta crise profunda e irreversiacutevel foi paulatinamente

gerada por diversas condiccedilotildees teoacutericas e sociais Dentre as teoacutericas estatildeo ateoria da

relatividade de Einsteinque relativizou as leis de Newton a mecacircnica quacircntica os

questionamentos da matemaacutetica e os avanccedilos tecnoloacutegicos da microfiacutesica quiacutemica e

biologia Em relaccedilatildeo agrave mecacircnica quacircntica para Santos (2008) natildeo eacute possiacutevel natildeo

interferi no objeto de investigaccedilatildeo mesmo quando estamos observando-o ou

quantificando-o Desta maneira o limite do conhecimento torna-se evidente

mostrando que as leis da fiacutesica satildeo meramente probabiliacutesticaso que demonstra a

inviabilidade do determinismo mecanicista fica evidente que ldquoa totalidade do real natildeo

27

se reduz agrave soma das partes e a distinccedilatildeo entre o sujeito e o objeto eacute complexardquo (idem

p 56)

Outro fator que evidencia a crise deste paradigma eacute a possibilidade de

formulaccedilatildeo de proposiccedilotildees que natildeo podem ser demonstradas muito menos refutadas

pela medicaccedilatildeo e quantificaccedilatildeo A teoria de Ilya Prigogine vem revolucionar a

concepccedilatildeo de mateacuteria e de natureza contribuindo para o avanccedilo cientifico da

microfiacutesica da quiacutemica e da biologia

Segundo Morin (2003) os princiacutepios do paradigma hegemocircnico se tornaram

cada vez mais cegos ldquoo princiacutepio de ordem que o determinismo absoluto traduzia natildeo

reina mais no universo O princiacutepio da separabilidade ou disjunccedilatildeo encontrou seus

limites em qualquer acepccedilatildeo teoacutericardquo (2003 p 43) Em relaccedilatildeo ao objeto o referido

autor destaca que o seu isolamento do contexto no qual se encontra e a sua inclusatildeo

num ambiente artificial perde a validade para tudo que eacute vivo A induccedilatildeo e a deduccedilatildeo

demonstraram seus limites assim como a contradiccedilatildeo natildeo sinaliza mais o erro o que

caracteriza a emergecircncia de um novo tipo de verdade

Deste modo para Morin (2010) a impossibilidade de uma visatildeo global do

fenocircmeno dar-se-ia pela disjunccedilatildeo e pela reduccedilatildeo que constituem uma ignoracircncia do

pensamento

A ciecircncia claacutessica havia dissolvido o Cosmo a Natureza e o Sujeito Humano O Cosmos poreacutem ressuscitou a partir de uma cosmologia oriunda da descoberta da expansatildeo do universo A Natureza ressuscitou com a ciecircncia ecoloacutegica Se o sujeito foi expulso da ciecircncia objetiva o retorno do sujeito eacute indispensaacutevel isso porque o objeto do conhecimento eacute coproduzido por nossas projeccedilotildees mentais sobre a realidade exterior e pela introduccedilatildeo via traduccedilatildeo e reconstruccedilatildeo dessa realidade exterior em nossa mente (MORIN 2010 p 244)

No que concerne agraves possiblidades de uma visatildeo global Santos (2008) defende

a transdisciplinaridade que abrange conjuntamente as ciecircncias da natureza e as

sociais que vai de encontro ao modelo mecanicista linear da ciecircncia moderna O

questionamento das leis da natureza faz parte da crise do paradigma dominante

dentre elas a ideia de que os fenocircmenos observados independem de tudopara Santos

(2008) as leis da ciecircncia moderna simplificam de forma arbitraria a realidade

Dentre as condiccedilotildees sociais que contribuiacuteram para a crise do paradigma

moderno destaca a industrializaccedilatildeo da ciecircncia e o seu compromisso com o poder

econocircmico social e poliacutetico os quais passaram a definir as prioridades cientiacuteficas as

relaccedilotildees de poder autoritaacuterias e desiguais entre os cientistas a proletarizaccedilatildeo no

interior dos laboratoacuterios e centros de estudos o acesso aos equipamentos

28

contribuindo para o aprofundamento do fosso cientiacutefico entre paiacuteses centrais e paiacuteses

perifeacutericos (SANTOS2008)

113 O Conhecimento Prudente para uma Vida Decente

Contrapondo-se ao paradigma da ciecircncia moderna em 1987 na obra Um

discurso sobre as ciecircncias Santos (2008) apresenta um novo paradigma que

denominou de ldquoum conhecimento prudente para uma vida decenterdquo que natildeo eacute

somente cientiacutefico mas tambeacutem um paradigma social Quatro teses satildeo defendidas

pelo autor para justificaacute-lo Na primeira afirma que todo conhecimento cientiacutefico-

natural eacute cientiacutefico-social aglutinando desta maneira as ciecircncias naturais e as

ciecircncias sociais com ecircnfase na segunda

[hellip] trata-se de saber qual seraacute o lsquoparacircmetro de ordemrsquo segundo Haken ou o lsquoatractorrsquo segundo Prigogine dessa superaccedilatildeo se as ciecircncias naturais se as ciecircncias sociais [hellip] Para natildeo irmos mais longe quer a teoria das estruturas dissipativas de Prigogine quer a teoria sinergeacutetica de Haken explica o comportamento das partiacuteculas atraveacutes dos conceitos de revoluccedilatildeo social violecircncia escravatura dominaccedilatildeo democracia nuclear todos eles originaacuterios das ciecircncias sociais [hellip] (SANTOS 2010 p 40-41)

Assim o autor esclarece que a superaccedilatildeo da dicotomia entre ciecircncias naturais

e sociais ocorreraacute com a preponderacircncia das ciecircncias sociais a valorizaccedilatildeo dos

estudos humaniacutesticos a rejeiccedilatildeo dos preceitos do positivismoo fim dahierarquia entre

os tipos de conhecimentos O sujeito nesta tese estaacute como protagonista do

conhecimento

Na tese ldquotodo conhecimento eacute local e totalrdquo o conhecimento poacutes-moderno

caracteriza-se pela pluralidade metodoloacutegica interdisciplinaridade

etransdisciplinaridade envolvendo as diversas ciecircncias Assim Santos (2010 p

46)exemplifica ldquoo direito que reduziu a complexidade da juriacutedica agrave secura da

dogmaacutetica redescobre o mundo filosoacutefico e socioloacutegico em busca da prudecircncia

perdidardquo A ampliaccedilatildeo da medicina com um o olhar mais abrangente jaacute que ldquoa

hiperespecializaccedilatildeo do saber meacutedico transformou o doente numa quadriacutecula sem

sentidordquo (Idem p 46) A divisatildeo do conhecimento que passa de disciplinar para ser

temaacutetica ldquoOstemas satildeo galerias por onde os conhecimentos progridem ao encontro

uns dos outrosrdquo (SANTOS 2010 p 76) Temas que satildeo gerados e adotados pelos

grupos sociais e assim tornam-se projetos de vida locais

Na terceira tese o autor explica que ldquotodo conhecimento eacute autoconhecimentordquo

Deixa claro a ligaccedilatildeo entre sujeito e objeto poisno ato de produccedilatildeo do conhecimento

as trajetoacuterias de vida os valores e crenccedilas do pesquisador estatildeo presentes Desta

29

forma ldquoo caraacuteter autobiograacutefico e auto referenciaacutevel da ciecircncia eacute plenamente

assumidordquo(SANTOS 2010 p 83) Assim o objeto passa a ser uma extensatildeo do

sujeito implicando que em uma pesquisa seja adquirido conhecimento sobre o objeto

e sobre o proacuteprio sujeito

Na uacuteltima tese Santos (2010) afirma que ldquotodo conhecimento cientiacutefico visa

constituir-se em senso comumrdquo O autor destaca que a conversatildeo do conhecimento

cientiacutefico poacutes-moderno em senso comum possibilitaraacute a sua valorizaccedilatildeo e o seu

reconhecimento

A ciecircncia poacutes-moderna ao sensocomunizar-se natildeo despreza o conhecimentoque produz tecnologia mas entende que tal como o conhecimentose deve traduzir em autoconhecimento o desenvolvimento tecnoloacutegico devetraduzir-se em sabedoria de vida Eacute esta que assinala o marco da prudecircnciaagrave nossa aventura cientiacutefica (SANTOS 2010 p 91)

As quatro teses defendidassuscitam novas formas de racionalidades

sustentadasem vertentes holiacutesticas Inter e transdisciplinar Em uma reflexatildeo criacutetica

feita apoacutes duas deacutecadas da publicaccedilatildeo do Discurso sobre as Ciecircncias11 o autor

destaca que nas transiccedilotildees as mudanccedilas no paradigma dominante satildeo mais

evidentes que aemergecircncia de um novo paradigmaLevanta a hipoacutetese de que ldquoo

paradigma emergente seja de facto um conjunto de paradigmas ou seja a

coexistecircncia de uma pluralidade de epistemologias irredutiacuteveis a uma epistemologia

geralrdquo (SANTOS 2007 p 2)

Os conhecimentos que satildeo elaborados e reelaborados pelos ribeirinhos na

Amazocircnia que orientam as suas accedilotildees sociais culturais econocircmicas e religiosas

fazem parte destas epistemologias que dialogam de forma vertical ou horizontal

Verticalmente quando natildeo satildeo reconhecidos como vaacutelidos neste caso a

epistemologia dominante eacute imposta como a uacutenica maneira de conceber o mundo

Horizontalmente quando haacute o reconhecimento e a valorizaccedilatildeo desse saber eacute o

queSantos (2007) chama de conhecimento prudente poisbrotados diaacutelogos e das

constelaccedilotildees de saberes que permitem construir enquantoque as epistemologias

dominantes impossibilitam a comunicaccedilatildeo entre os conhecimentos pois ldquoO importante

eacute salientar a incompletude de todos os conhecimentos e o potencialque existe nos

diaacutelogos entre eles []rdquo (SANTOS 2012 p 3)

11Em torno de um novo paradigma soacutecio-epistemoloacutegico Manuel Tavares conversa com Boaventura de Sousa Santos Revista Lusoacutefona de Educaccedilatildeo Lisboa n10 p131-140 2007

30

O mundo segundo o autor eacute um arco-iacuteris policromaacutetico com diversidades de

culturas que produzem infinitas epistemologias daiacute a importacircncia de torna-las visiacuteveis

Eacute o que pretendemos nesta tese ao dar visibilidade aos saberes dos povos das

aacuteguas12 ao trazecirc-los para a reflexatildeo e problematizaccedilatildeo demonstrar que tais saberes

possuem uma racionalidade e uma loacutegica proacutepria de construccedilatildeo (satildeo praacuteticos

construiacutedos e reconstruiacutedos de acordo com as necessidades dos sujeitos)

socializaccedilatildeo (transmitidos por meio da oralidade) e validaccedilatildeo (baseada na utilidade

crenccedila e nos costumes locais) aleacutem de contribuiacuterem para a formaccedilatildeo de identidades

e subjetividades

Ao defender a diversidade epistemoloacutegica Santos (2012) problematiza

questotildees referentes ao colonialismo poacutes-colonialismo e a interculturalidade a partir

da criacutetica agrave razatildeo moderna que abordamos a seguir

114 A criacutetica da razatildeo indolente

A razatildeo indolente segundo Santos (2007) eacute uma racionalidade que norteia

nossa maneira de pensar a forma como concebemos a vida e o mundo bem como a

produccedilatildeo da ciecircncia considerada uma razatildeo uacutenica eurocecircntrica e ocidental

excluindo outras formas de conhecimento A exclusatildeo dar-se-aacute pela natildeo aceitaccedilatildeo da

validade dos conhecimentos alternativos por natildeo terem passado pelos rigores que

requer o conhecimento cientiacutefico O desenvolvimento desta razatildeo afirma o autor deu-

se dentro de contextos que possibilitaram a sua emergecircncia dentre os quais

destacam-se a consolidaccedilatildeo do Estado Liberal na Europa e na Ameacuterica do Norte as

revoluccedilotildees industriais o desenvolvimento capitalista o colonialismo e o imperialismo

A indolecircncia da razatildeo criticada neste ensaio ocorre em quatro formas diferentes a razatildeo impotente aquela que natildeo se exerce porque pensa que nada pode fazer contra uma necessidade concebida como exterior a ela proacutepria a razatildeo arrogante que natildeo sente necessidade de exercer-se porque se imagina incondicionalmente livre e por conseguinte livre da necessidade de demonstrar a sua proacutepria liberdade a razatildeo metoniacutemica que se reivindica como a uacutenica forma de racionalidade e por conseguinte natildeo se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade ou se o faz faacute-lo apenas para tornaacute-los em mateacuteria-prima e a razatildeo proleacuteptica que natildeo se aplica a pensar o futuro porque julga que sabe tudo a respeito dele e o concebe como uma superaccedilatildeo linear automaacutetica e infinita do presente (SANTOS 2002 p 240)

A razatildeo indolente portanto eacute a hegemocircnicade base epistemoloacutegica positivista

que desconsidera outras epistemoloacutegicas assim como exclui toda diversidade

cultural deixando-as na invisibilidade

12 Como satildeo conhecidos os ribeirinhos na Amazocircnia

31

Estermann (2009 p 54) estabelece a diferenccedila entre colonizaccedilatildeo e

colonialismo

Mientras que ldquocolonizacioacutenrdquo es el proceso (imperialista) de ocupacioacuten ydeterminacioacuten externa de territorios pueblos economiacuteas y culturas por partede un poder conquistador que usa medidas militares poliacuteticas econoacutemicasculturales religiosas y eacutetnicas lsquocolonialismorsquo se refiere a la ideologia concomitante que justifica y hasta legitima el orden asimeacutetrico y hegemoacutenicoestablecido por el poder colonial

Desta forma o colonizador impocircs a todos os povos a sua cultura os seus

modos de ver o mundo o seu conhecimento a sua epistemologia universalizando-os

e absolutizando-os assim moldou e formatou consciecircncias colonizou o pensamento

por meio de uma uacutenica loacutegica a eurocecircntrica

Corroborando com esta visatildeo Santos (2014 p 28) afirma que ldquo[] o fim do

colonialismo enquanto relaccedilatildeo poliacutetica natildeo acarretou o fim do colonialismo enquanto

relaccedilatildeo social enquanto mentalidade e forma de sociabilidade autoritaacuteria e

discriminatoacuteria []rdquo As contradiccedilotildees geradas pelo colonialismo ainda estatildeo presentes

e se manifestam na cultura no racismo no autoritarismo nas relaccedilotildees sociais e

dominam as relaccedilotildees internacionais

Mas segundo o autor eacute no vieacutes epistemoloacutegico que o colonialismo assume

maior centralidade por meio da imposiccedilatildeo do conhecimento hegemocircnico o que

caracteriza uma perspectiva redutora do conhecimento que impede o surgimento de

outras perspectivas epistemoloacutegicas

O colonialismo para aleacutem de todas as dominaccedilotildees por que eacute conhecido foi tambeacutem uma dominaccedilatildeo epistemoloacutegica uma relaccedilatildeo extremamente desigual de saber-poder que conduziu agrave supressatildeo de muitas formas de saber proacuteprias dos povos e naccedilotildees colonizados relegando muitos outros saberes para um espaccedilo de subalternidade (SANTOS MENESES 2010 p 11)

Efetivamente o conhecimento tornou-se um instrumento imperial de

colonizaccedilatildeo Desta maneira uma das tarefas necessaacuterias segundo Quijano (1994) e

Mignolo (2003) eacute a de descolonizar o conhecimento o que requer descolonizar a

loacutegica e o modelo de racionalidade excludente ldquodescolonizar o imaginaacuterio

reprogramar o pensamento no sentido de desmantelar a matriz colonial do poderrdquo

(MIGNOLO 2003 p12) reconhecendo que em outros lugares tambeacutemocorre

manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas

Para Santos (2010) o motivo da preponderacircncia da razatildeo indolente estaacute na

supressatildeo da diversidade epistemoloacutegica dos outros povos pela exclusatildeo e

32

silenciamento de toda riqueza presente na diversidade cultural que natildeo atenda aos

interesses do capitalismo fato que ocorreu por meio da dominaccedilatildeo politica

econocircmica e militar nas sociedades colonizadas Balandier (1995) acrescenta a accedilatildeo

missionaacuteria tambeacutem como forma de dominaccedilatildeo ideoloacutegica O problema da dominaccedilatildeo

colonial foi analisado por Gruzinski (2003) a partir do que ficou oculto do que se

passou na esfera do invisiacutevel da mentalidade que resultou na colonizaccedilatildeo do

imaginaacuterio e construiu a maneira atraveacutes da qual os povos colonizados veem o mundo

e a si mesmos

O rompimento desta hegemonia requer ldquomudanccedilas profundas na estruturaccedilatildeo

dos conhecimentos para isso eacute necessaacuterio comeccedilar por mudar a razatildeo que preside

tanto aos conhecimentos como a estruturaccedilatildeo delesrdquo (SANTOS 2002 p 241) O

propoacutesito desta pesquisa eacute exatamente contribuir para este desafio por meio do

reconhecimento de outras racionalidades que estruturam os conhecimentos locais a

partir de pressupostos voltados para as questotildees culturais sociais e religiosas natildeo

somente as econocircmicas

Aponta o citado autor as consequecircncias dessa monocultura do saber assim

como a possibilidade de outras epistemologias em outros lugares onde existem

manifestaccedilotildees e epistemologias proacuteprias denominadas de epistemologias do sul

Trata-se do conjunto de intervenccedilotildees epistemoloacutegicas que denunciam asupressatildeo dos saberes levada a cabo ao longo dos uacuteltimos seacuteculos pelanorma epistemoloacutegica dominante valorizam os saberes que resistiram comecircxito e as reflexotildees que estes tecircm produzido e investigam as condiccedilotildees deum diaacutelogo horizontal entre conhecimentos A esse diaacutelogo entre sabereschamamos ecologias de saberes (SANTOS MENESES 2010 p 7)

Toda essa diversidade que caracteriza as epistemologias do sul foi omitida

pela dominaccedilatildeo capitalista do mundo Para o autor as epistemologias satildeo geradas

nas relaccedilotildees sociais por isso todo conhecimento eacute fruto da relaccedilatildeo entre sujeitos

situados num contexto histoacuterico politico e cultural Desta forma o criteacuterio de validade

do conhecimento deve estaacute ligado a sua contextualidade Assim as experiecircncias

sociais englobam uma gama de conhecimentos com seus criteacuterios de validade

individual sendo instituiacutedos por conhecimentos rivais (SANTOS2008)

Conclui-se entatildeo que se produz e reproduz conhecimento a partir da

experiecircncia social por meio de diversas epistemologias eacute o que ocorre nas

comunidades ribeirinhas na Amazocircnia nas quais os sujeitos em muacutetua interaccedilatildeo

produzem e reproduzem saberes nas suas praacuteticas sociais Assim a proposta do

33

autor eacute dar visibilidade aos conhecimentos construiacutedos nas diversas praacuteticas sociais

e que foram excluiacutedos pelo exclusivismo da ciecircncia moderna

O conceito de Sul natildeo eacute geograacutefico eacute ldquoo sul anti-imperial anti-patriarcal anti-

colonial eacute esse sul que se transforma numa experiecircncia fundadora de uma proposta

mitoloacutegica que obviamente se parte do sofrimento soacute tem um objetivo que eacute atacar

as causas desse sofrimentordquo (SANTOS 2008 p 24) Portanto a metaacutefora do

sofrimento humano fruto do capitalismo eacute que o caracteriza Aprender com o Sul

requer um rompimento com o Norte imperial

[] Mas admito que o Sul eacute ele proacuteprio um produto do impeacuterio e por isso a

aprendizagem com o Sul exige igualmente a desfamiliarizaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao

Sul imperial ou seja em relaccedilatildeo a tudo que no Sul eacute o resultado da relaccedilatildeo

colonial capitalista (SANTOS 2008 p 33)

Neste sentido o aprender com o Sul requer a descolonizaccedilatildeo das nossas

mentes que foram colonizadas pelo Norte desta maneira poderemos eliminar os

restiacutecios deixados pelo colonizador assim soacute se aprende com o Sul ldquo[] na medida

em que se contribui para a sua eliminaccedilatildeo enquanto produto do impeacuteriordquo (SANTOS

2008 p 33) Isto pede o reconhecimento da diversidade e a afirmaccedilatildeo das diferenccedilas

bem com o combate da visatildeo segundo Tavares (2014 p 1) de ldquoum saber

institucionalizado no Ocidente a um repositoacuterio axioloacutegico esteacutetico e cognitivo que foi

produzido pela humanidade e que se auto define como universalrdquo

Essa racionalidade tem grande influecircncia na nossa forma de pensar ler e ver

o mundo por isso a leitura que fazemos da realidade estaacute imbricada por uma razatildeo

que direciona o nosso olhar que natildeo nos possibilita vislumbrar a riqueza

epistemoloacutegica presente no entorno Esta visatildeo unilateral monocultural eacute produzida

de acordo com Santos (2007) pela razatildeo indolente que se manifesta principalmente

por meio de duas razotildees a metoniacutemica e a proleacuteptica

Segundo o autor a razatildeo metoniacutemica eacute uma figura da teoria literaacuteria e da

retoacuterica que significa tomar a parte pelo todo ldquoE essa eacute uma racionalidade que

facilmente toma a parte pelo todo porque tem um conceito de totalidade feito de partes

homogecircneas e nada do que fica fora dessa totalidade interessardquo (SANTOS 2008 p

25) Onatildeo existente eacute o que estaacute fora desta totalidade para isso faz-se a contraccedilatildeo

do presente ldquoporque deixa de fora muita realidade muita experiecircncia e ao deixaacute-las

de fora ao tornaacute-las invisiacuteveis desperdiccedila a experiecircnciardquo(idem p 26) As experiecircncias

cotidianas por natildeo estarem atreladas a esta razatildeo impossibilitam outras leituras do

mundo que diferem da hegemocircnica

34

Esse reducionismo eacute gerado por ideias alicerccediladas na simetria dicotocircmica e a

hierarquia que impossibilitam visotildees mais abrangentes do tempo presente e assim

acabam por limitar condicionar e ate mesmo inviabilizar o conhecimento das demais

experiecircncias

[] Entatildeo a razatildeo metoniacutemica tem essa dupla ideia das dicotomias e das hierarquias por isso natildeo eacute possiacutevel pensar fora das totalidades natildeo posso pensar no sul sem o norte a mulher sem o homem natildeo posso pensar o escravo sem o amo Mas o que devemos inquirir eacute que se nessas realidades natildeo haacute coisas que estatildeo fora dessa totalidade o que haacute na mulher que natildeo depende da relaccedilatildeo com o homem [] ou seja pensar fora da totalidade [] (SANTOS 2007 p 28)

Assim a compreensatildeo do mundo vai aleacutem da visatildeo eurocecircntrica haacute outras

maneiras de enxergar o mundo que transcende a razatildeo metoniacutemica na qual as partes

satildeo pensadas em relaccedilatildeo direta com a totalidade Para pensar fora dessa totalidade

que eacute homogecircnea e excludente o autor propotildee a sociologia das ausecircncias que eacute

ldquouma sociologia insurgente para tentar mostrar que o que natildeo existe eacute produzido como

natildeo existente invisiacutevel agrave realidade hegemocircnica do mundordquo (idem p 30) O que eacute

ausente eacute produzido propositalmente para reduzir a realidade ao que existe As

ausecircncias satildeo produzidas afirma Santos (2008) a partir de cinco monoculturas do

saber e do rigor do tempo linear da naturalizaccedilatildeo das diferenccedilas da escala

dominante e a do produtivismo capitalista

Na primeira monocultura a do saber e do rigor os conhecimentos populares

natildeo satildeo visibilizados porque natildeo passam pelos rigores da ciecircncia positivista

reconhecido como uacutenico criteacuterio de validaccedilatildeo portanto as praacuteticas sociais alicerccediladas

nesses saberes dentre elas as dos ribeirinhos natildeo existem agrave luz da ciecircncia ocidental

Isso gera o que Santos (2007) denomina de epistemiciacutedio a morte de conhecimentos

que natildeo se encaixam nos rigores do meacutetodo cientifico Esses saberes satildeo

invisibilizados subalternizados natildeo sendo aceitos como diferentes maneiras de ver

ler e interpretar o mundo e que estatildeo ligadas agrave histoacuteria e a cultura dos diferentes

povos Desta maneiranatildeo faz sentido dizer que esses conhecimentos natildeo satildeo

cientiacuteficos pois para o autor satildeo outras maneiras de fazer ciecircncia dentro de um

contexto simboacutelico de que fazem parte os saberes da maioria da populaccedilatildeo

marginalizada pela ciecircncia eurocecircntrica O saber popular neste estudo os das

populaccedilotildees ribeirinhas tem seus proacuteprios criteacuterios de validaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo Ao levar

seus filhos que foram acometidos por doenccedilas causadas por seres encantados para

35

o benzedor benzecirc-los a crenccedila no poder de cura emanado pelo curandeiro eacute o criteacuterio

de validaccedilatildeo do seu saber

A monocultura do tempo linear estaacute relacionada ao capitalismo Como assegura

Santos (2002 p 243) ldquoa razatildeo metoniacutemica eacute juntamente com a razatildeo proleacuteptica a

resposta do Ocidente apostado na transformaccedilatildeo capitalista do mundordquo pois tem

como foco o desenvolvimento e a mercantilizaccedilatildeo Nessa oacutetica os paiacuteses menos

desenvolvidos satildeo inferiorizados e estigmatizados como preacute-modernos primitivos

selvagens dentre outros adjetivos que os tornam inferiores Por natildeo se incluiacuterem

totalmente dentro desta loacutegica capitalista os ribeirinhos satildeo tachados de preguiccedilosos

e demais adjetivos pejorativos

Em relaccedilatildeo agrave mercantilizaccedilatildeo o que predomina eacute o tempo linear como

referencia agrave produccedilatildeo e circulaccedilatildeo de mercadorias As diversas formas de

organizaccedilatildeo temporal que envolve outros mundos que vatildeo aleacutem do terreno natildeo satildeo

reconhecidas o que prevalece eacute a linearidade com presente passado e futuro Com

isso o tempo das mareacutes que predomina na Amazocircnia Ribeirinha o mundo dos seres

encantados que povoam os rios e as florestas satildeo invisibilizados

A divisatildeo da populaccedilatildeo nas categorias de raccedila sexo e eacutetnica satildeo maneiras de

naturalizar as diferenccedilas e justificar as hierarquias Para o autor as hierarquias natildeo

satildeo causa das diferenccedilas mas suas consequecircncias Desta maneira as diferenccedilas

satildeo veladas e naturalizadas a partir de uma escala baseada na inferiorizaccedilatildeo do que

difere do padratildeo dominante

A monocultura da escala dominante que eacute mais uma maneira de produzir as

ausecircncias parte do princiacutepio de que ldquoo global e universal eacute hegemocircnico o particular

e o local natildeo conta eacute invisiacutevel descartaacutevel despreziacutevelrdquo (SANTOS 2007 p 31) Em

decorrecircncia disso os saberes natildeo hegemocircnicos satildeo tidos como locais portanto

inferiores O considerado universal eacute valido em qualquer contexto por isso que o

hegemocircnico eacute dominante independente do lugar daiacute a predominacircncia no curriacuteculo

escolar de somente uma forma de conhecimento e a natildeo aceitaccedilatildeo por parte de

alguns professores da inclusatildeo dos saberes locais na sua praacutetica pedagoacutegica fruto

de um processo de formaccedilatildeo profissional colonizadora

No tocante agrave monocultura do produtivismo capitalista o autor afirma que pode

ser empregada para o trabalho e para a natureza A utilizaccedilatildeo das novas tecnologias

satildeo as bases para a organizaccedilatildeo da produtividade a partir da loacutegica hegemocircnica

capitalista As outras loacutegicas de produccedilatildeo dentre elas as dos povos das aacuteguas satildeo

36

consideradas improdutivas Dessa maneira satildeo produzidas as cinco formas de

ausecircncias ldquoo ignorante o residual o inferior o local e particular e o

improdutivordquo(SANTOS 2007 p 32) que satildeo contrapostas a formas universais e

globalmente reconhecidas o cientiacutefico o avanccedilado o superior o global e o produtivo

Tais monoculturas satildeo responsaacuteveis pela produccedilatildeo das ausecircncias suprimindo

as demais experiecircncias vivecircncias e conhecimentos que foram e satildeo historicamente

invisibilizados Com o objetivo de tornar presente o que estaacute ausente e dar visibilidade

agraves experiecircncias o autor propotildee a substituiccedilatildeo das monoculturas pelas ecologias

consideradas ldquoa praacutetica de agregaccedilatildeo da diversidade pela promoccedilatildeo de interaccedilotildees

sustentaacuteveis entre entidades parciais e heterogecircneasrdquo (SANTOS 2008 p 105) Satildeo

cinco as ecologias dos saberes13 das temporalidades do reconhecimento da

transescala e das produtividades

A ecologia das temporalidades parte do princiacutepio de que aleacutem do tempo linear

existem outras formas de organizaccedilatildeo temporal Na Amazocircnia Ribeirinha por

exemplo o tempo das aulas em algumas comunidades eacute regido pelas mareacutes a

derrubada e a plantaccedilatildeo das roccedilas nas comunidades camponesas dependem das

estaccedilotildees do ano no veratildeo satildeo feitas as derrubadas e a limpeza da aacuterea onde seraacute

plantada a mandioca no inverno eacute realizada a plantaccedilatildeo por causa das chuvas que

possibilitam o crescimento das manivas14 Em certas comunidades indiacutegenas a

presenccedila concomitante de espiacuteritos da mata e das aacuteguas juntamente com os seres

vivos eacute constante a relaccedilatildeo com esses entes ocorre de maneira que para entrar em

determinadas horas na mata ou no rio faz-se necessaacuterio pedir licenccedila e solicitar que

nos acompanhem durante a caminhada na mata ou remada pelo rio no sentido de

proteccedilatildeo contra os possiacuteveis males Essas loacutegicas precisam ser reconhecidas eacute o

jeito amazocircnida de ser e de lidar com o tempo que vai aleacutem da linearidade Como

afirma Santos (2007 p 34) ldquose vou reduzir tudo a temporalidade linear estou

afastando todas as outras coisas que tem uma loacutegica distinta da minhardquo

No tocante agrave ecologia do reconhecimento que se refere agrave produccedilatildeo das

desigualdades faz-se necessaacuterio a descolonizaccedilatildeo das mentes que foram

colonizadas com a imposiccedilatildeo de valores e estereoacutetipos gerados por meio da

categorizaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo da populaccedilatildeo tendo como referencia as diferenccedilas

13 Abordaremos numa seccedilatildeo especiacutefica a ecologia de saberes por ser objeto de estudo do nosso trabalho 14 Nome dado ao caule do peacute de mandioca o qual cortado em pedaccedilos eacute usado no plantio

37

sexuais culturais raciais sociais etc Nesse intento a ecologia proposta ldquo[] procura

uma nova articulaccedilatildeo entre o princiacutepio da igualdade e o princiacutepio da diferenccedila abrindo

espaccedilo para a possibilidade de diferenccedilas iguais ndash uma ecologia de diferenccedilas feita

de reconhecimentos reciacuteprocosrdquo (SANTOS 2008 p 110) Nesta ecologia a

pluralidade e a diversidade como parte do reconhecimento dos direitos humanos eacute

ressaltada Assim ldquoTemos o direito a ser iguais quando a diferenccedila nos inferioriza

temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracterizardquo (SANTOS

1997 p 31)

Para ir aleacutem da escala dominante eacute proposta a ecologia da transescala que

parte da integraccedilatildeo do local do nacional e do global nos projetos contra hegemocircnicos

como estrateacutegia de combate a globalizaccedilatildeo ldquoatraveacutes destas ligaccedilotildees as formaccedilotildees

locais desligam-se da seacuterie inerte de impactos globais e religam-se como pontos de

resistecircncia e geraccedilatildeo de globalizaccedilatildeo alternativardquo(SANTOS 2008 p 113) Algumas

experiecircncias jaacute foram e estatildeo sendo desenvolvidas por movimentos sociais com

atuaccedilatildeo local e que se expandiram a niacutevel nacional e mundial como frente de luta

contra a exclusatildeo social

Em oposiccedilatildeo agrave monocultura do produtivismo capitalista eacute apresentada a

ecologia das produtividades que consistem no

[] acircmbito das alternativas que engloba desde microiniciativas levadas a cabo por grupos sociais marginalizados do Sul global procurando reconquistar algum controle das suas vidas e bens ateacute propostas para uma coordenaccedilatildeo econocircmica e juriacutedica de acircmbito internacional destinada a garantir o respeito por padrotildees baacutesicos de trabalho decente e de proteccedilatildeo ambiental novas formas de controle do capital financeiro global bem como tentativas de construccedilatildeo de economias regionais baseadas em princiacutepios de cooperaccedilatildeo e solidariedade (SANTOS 2008 p114)

A concepccedilatildeo abrangente de economia estaacute no bojo destas iniciativas pois

abarcam valores organizacionais e poliacuteticos que vatildeo de encontro ao capitalismo

global tais como questotildees relacionadas agrave sustentabilidade ambiental participaccedilatildeo

democraacutetica aleacutem da equidade social racial eacutetnica e cultural Eacute a favor dessa

equidade que precisamos romper com as visotildees estereotipadas que persistem em

relaccedilatildeo aos homens e mulheres que constituem os povos das aacuteguas da Amazocircnia As

pesquisas realizadas na regiatildeo Amazocircnica vem tornando visiacuteveis as experiecircncias

que satildeo ativamente produzidas por esses sujeitos dentre elas o cuidado com os rios

e a mata no sentido de preservar a biodiversidade para garantia da sobrevivecircncia

Segundo Boaventura o objetivo das diversas ecologias eacute ldquo[] revelar a

diversidade e multiplicidade das praacuteticas sociais e credibilizar esse conjunto por

38

contraposiccedilatildeo agrave credibilidade exclusiva das praacuteticas hegemocircnicasrdquo (2008 p 115) A

seguir abordaremos com mais profundidade a ecologia de saberes por ser nosso

objeto de estudo

115 Ecologia de Saberes o reconhecimento dos saberesnascido das lutas dos

oprimidos

A ecologia de saberes parte do reconhecimento da diversidade epistemoloacutegica

que caracteriza o mundo no qual vivemos e de que a ciecircncia natildeo eacute a uacutenica forma de

explicaccedilatildeo da realidade reconhecendo a existecircncia de outros conhecimentos que

norteiam as praacuteticas sociais e datildeo sentido agrave nossa vida Assim ldquoa ecologia de saberes

eacute um conjunto de epistemologias que partem da possibilidade da diversidade e da

globalizaccedilatildeo contra hegemocircnicas e pretendem contribuir para as credibilizar e

fortalecerrdquo (SANTOS 2008 p154) Fortalecer e credibilizar no intuito de reconhecer

os saberes das populaccedilotildees que foram historicamente invizibilizados e excluiacutedos

dentre eles os dos povos indiacutegenas populaccedilotildees do campo ribeirinhos em suma os

saberes que nasceram da luta dos oprimidos e marginalizados

Portanto natildeo haacute saber maior ou menor mais importante ou menos valioso o

que existe satildeo conhecimentos que explicam a natureza a sociedade e os diversos

fenocircmenos que diferem ou complementam o cientiacutefico Nesse sentido para que

ocorra o diaacutelogo numa perspectiva intercultural pois o diaacutelogo natildeo seraacute somente entre

esses diferentes saberes mas tambeacutem entre culturas diferentes o autor propotildee a

hermenecircutica diatoacutepica15 que natildeo visa atingir

[] a completude ndash objetivo inatingiacutevel ndash mas pelo contraacuterio ampliar ao maacuteximo a consciecircncia de incompletude muacutetua por meio de um diaacutelogo que se desenrola por assim dizer com um peacute numa cultura e outro noutra Nisso reside o seu caraacuteter diatoacutepico (SANTOS 2009 p 15)

Neste sentido a perspectiva intercultural objetiva estimular o diaacutelogo entre os

diferentes saberes e conhecimentos partindo do princiacutepio de que a incompletude eacute o

que os caracteriza Assim os conhecimentos cientiacuteficos natildeo satildeo considerados

superiores e simmais uma forma de expressatildeo epistemoloacutegica A reciprocidade o

respeito e o reconhecimento da diversidade satildeo os alicerces que balizam o diaacutelogo

intercultural

15A hermenecircutica diatoacutepica baseia-se na ideia de que os topoi de uma dada cultura por mais fortes que sejam

satildeo tatildeo incompletos quanto agrave proacutepria cultura a que pertencem Tal incompletude natildeo eacute visiacutevel do interior dessa cultura uma vez que a aspiraccedilatildeo agrave totalidade induz a que se tome a parte pelo todo (SANTOS 2009)

39

Para aprofundarmos a nossa compreensatildeo em relaccedilatildeo agrave perspectiva

intercultural Walsh (2011) estabelece a diferenccedila entre os tipos de interculturalidade

a relacional a funcional e a criacutetica A interculturalidade relacional sempre existiu ao

longo da histoacuteria por meio do encontro entre as culturas mas sem a ocorrecircncia do

diaacutelogo entre elas A interculturalidade funcional existe nas sociedades capitalistas

na qual a multiculturalidade eacute encaixada nas estruturas de dominaccedilatildeo mas nos

discursos oficiais satildeo concebidas como praacuteticas interculturais numa visatildeo neoliberal

E a interculturalidade criacutetica que para a autora eacute indissociaacutevel do processo de

descolonizaccedilatildeo Walsh (2011) afirma que natildeo eacute possiacutevel a interculturalidade criacutetica

sem a dissoluccedilatildeo das estruturas de dominaccedilatildeo nesse sentido enquanto estas

estruturas existirem natildeo seraacute possiacutevel o diaacutelogo entre o saber popular e o saber

dominante ou entre qualquer tipo de saber

A perspectiva da interculturalidade criacutetica proposta por Walsh (2011) difere do

diaacutelogo intercultural apresentado por Santos (2009) na ecologia de saberes Para o

autor o diaacutelogo entre as culturas natildeo requer necessariamente a dissoluccedilatildeo das

estruturas do poder

Segundo Catherine Walsh (2006 p11) a interculturalidade eacute

[] um processo dinacircmico e permanente de relaccedilatildeo comunicaccedilatildeo e aprendizagem entre culturas em condiccedilotildees de respeito legitimidade muacutetua simetria e igualdade Um intercacircmbio que se constroacutei entre pessoas conhecimentos saberes e praacuteticas culturalmente diferentes buscando desenvolver um novo sentido entre elas na sua diferenccedila

Esta concepccedilatildeo de interculturalidade eacute necessaacuteria para a efetivaccedilatildeo da

construccedilatildeo de um pensamento criacutetico pois surge da experiecircncia vivida na

colonialidade parte tambeacutem de um pensamento gerado no Sul e muda os rumos da

geopoliacutetica do conhecimento dominante (WALSH 2006) Segundo a citada autora a

interculturalidadepode contribuir para a construccedilatildeo de sociedades diversificadas por

meio da explicitaccedilatildeoe abertura de espaccedilos conhecimentos e praacuteticas Para Walsh

(2006 p 21)

mais do que um simples conceito de inter-relaccedilatildeo ainterculturalidade assinala e significa processos deconstruccedilatildeo de conhecimentos lsquooutrosrsquo de uma praacuteticapoliacutetica lsquooutrarsquo de um poder social lsquooutrorsquo e de umasociedade lsquooutrarsquo formas diferentes de pensar e atuarem relaccedilatildeo e contra a modernidadecolonialidade umparadigma que eacute pensado atraveacutes da praacutetica poliacutetica

Desta forma a interculturalidade criacutetica reconhece as desigualdades sociais

econocircmicas poliacuteticas e de poder bem como a dominaccedilatildeo em que estamos

40

submetidos pelas condiccedilotildees institucionais Assim no diaacutelogo intercultural numa

perspectiva criacutetica as assimetrias sociais econocircmicas e poliacuteticas sempre estaratildeo

permeando as discussotildees entre pessoas e grupos culturais diversificados sem a

negaccedilatildeo ou sobreposiccedilatildeo de suas diferenccedilas

Corroborando com esta visatildeo Candau (2006) afirma que a interculturalidade

indica a edificaccedilatildeo de sociedades que assumam as diferenccedilas como constitutivas da

democracia bem como a possibilidade de construccedilatildeo de relaccedilotildees igualitaacuterias entre os

diferentes grupos socioculturais que foram historicamente inferiorizados

Na perspectiva da ecologia de saberes Santos (2010) propotildee cinco imperativos

transculturais que precisam ser aceitos pelos grupos sociais e culturais para o diaacutelogo

intercultural O primeiro chama-se Da completude agrave incompletude que eacute o ponto de

partidapara o diaacutelogo e consiste no nosso interesse em conhecer outras culturas

como reflexo da necessidade e do descontentamento com a nossa cultura Assim ldquoA

hermenecircutica diatoacutepica aprofunda agrave medida que progride a incompletude cultural

transformando a consciecircncia inicial de incompletude em grande medida difusa e

pouco articulada numa consciecircncia autorreflexivardquo (p 46)

Jaacute o segundo denominado Das versotildees culturais estreitas agraves versotildees amplas

o referido autor afirma que devemos evidenciar dentro de uma determinada cultura

aquilo que estaacute voltado para o reconhecimento do outro O terceiro De tempos

unilaterais a tempos partilhados o autor assegura que a decisatildeo em estar aberto para

o dialogo cabe a cada grupo cultural

A cultura ocidental durante seacuteculos natildeo teve qualquer disponibilidade para diaacutelogos interculturais mutuamente acordados e agora ao ser atravessado por uma consciecircncia difusa de incompletude tende a crer que todas as outras culturas estatildeo igualmente disponiacuteveis para reconhecer a sua incompletude e mais do que isso ansiosas para se envolver em diaacutelogos interculturais com o Ocidente(SANTOS 2010 p47)

O quarto imperativo De parceiros e temas unilateralmenteimpostos a parceiros

e temas escolhidospor muacutetuo acordo parte da ideia de que para o diaacutelogo os

protagonistas e o assunto precisam ser acordados mutuamente Segundo o autor no

tocante aos temas em todas as culturas haacute temas que necessariamente precisam ser

incluiacutedos no diaacutelogo com outras culturas pois ldquoo importante para a

hermenecircuticadiatoacutepica eacute a direccedilatildeo a noccedilatildeo eo sentimento de incompletude da

culturardquo (SANTOS 2010 p 47) O ultimo imperativotransculturalDa igualdade ou

diferenccedila agrave igualdadee diferenccedila parte da aceitaccedilatildeo de que o direito a igualdade deve

41

ser garantido quando a diferenccedila nos inferioriza e o direito a ser diferente quando a

igualdade nos descaracteriza

Aleacutem dos imperativos transculturais essenciais para o diaacutelogo intercultural

Santos (2008 p 154) ratifica que a ecologia de saberes se alicerccedila em dois

pressupostos ldquonatildeo haacute epistemologias neutras e as que clamam secirc-lo satildeo as menos

neutras a reflexatildeo epistemoloacutegica deve incidir natildeo nos conhecimentos em abstratos

mas nas praacuteticas de conhecimento e seus impactos noutras praacuteticas sociaisrdquo Posto

isso fica evidente de que natildeo haacute neutralidade no conhecimento cientiacutefico pois atende

aos interesses da ideologia dominante que o produz Quanto ao segundo pressuposto

refere-se agrave praacutetica dos conhecimentos agrave sua aplicabilidade na realidade social Nessa

loacutegica

Natildeo haacute duacutevidas de que para levar o homem ou a mulher a lua natildeo haacute conhecimento melhor do que o cientifico o problema eacute que hoje tambeacutem sabemos que para preservar a biodiversidade de nada serve a ciecircncia moderna Ao contraacuterio ela a destroacutei Porque o que vem conservando e mantendo a biodiversidade satildeo os conhecimentos indiacutegenas e camponeses (SANTOS 2007 p 33)

Fica evidente que a importacircncia de determinado conhecimento estaacute na sua

capacidade e utilidade para resolver os problemas sociais ambientais entre outros

No exemplo acima cada conhecimento produz um tipo de resultado quando aplicado

para atingir determinados objetivos A hierarquia entre eles ocorre pela intervenccedilatildeo

concreta nas praacuteticas sociais

A nossa intenccedilatildeo nesta tese foi conferir legitimidade acadecircmica e

epistemoloacutegica aos saber popular dos ribeirinhos que este possa juntamente com o

saber escolar fazer parte do curriacuteculo da escola de educaccedilatildeo baacutesica frequentada

pelas crianccedilas jovens e adultos das comunidades ribeirinhas na Amazocircnia e desta

maneira contribuir para a formaccedilatildeo de identidades e subjetividades

12 A DESCOLONIZACcedilAtildeO EPISTEMOLOacuteGICA UM ESTUDO DAS PROPOSICcedilOtildeES

TEOacuteRICAS

Nesta seccedilatildeo procuramos fazer uma discussatildeo entre autores que discutem os

conceitos de colonialidade gnosepensamento liminar e pensamento fronteiriccedilo com

o intuito de analisaacute-los criticamente a partir da abordagem teoacuterica baseada nos

Estudos Poacutes-Coloniais do grupo modernidadecolonialidade que emerge com a

finalidade de questionar a constituiccedilatildeo da modernidade a partir de suas concepccedilotildees

dominantes Finalizamos com uma discussatildeo referente agrave categoria Diaacutelogo na visatildeo

Freireana

42

121Os Estudos Poacutes-Coloniais

Os estudos poacutes-coloniais podem ser considerados como um movimento

intelectual e tambeacutem poliacutetico com a finalidade de questionar a hegemonia

epistemoloacutegica e fazer emergir os saberes subalternizados dos povos colonizados

Segundo Ribeiro e Escobar (2012) os impactos do processo de colonizaccedilatildeo satildeo

abordados por autores oriundos dos paiacuteses colonizados como grito de alerta para o

rompimento das amarras impostas pela colonizaccedilatildeo

Para Costa (2006 p 84) o colonialismo ldquoalude a situaccedilotildees de opressatildeo

diversas definidas a partir de fronteiras de gecircnero eacutetnicas ou raciaisrdquo Neste sentido

o colonialismo gerou a opressatildeo dos povos dominados que foram classificados de

acordo com os estigmas impostos pelo colonizador e ainda reforccedilou as jaacute existentes

situaccedilotildees de opressatildeo

Ballestrin (2012 p 4) no tocante ao argumento poacutes-colonial apresenta-o como

um movimento poliacutetico e intelectual natildeo necessariamente linear disciplinado e

articulado

Neste sentido defendemos que o argumento poacutes-colonial em toda sua amplitude histoacuterica geograacutefica e disciplinar percebe a diferenccedila colonial e intercede pelo colonizado Isto significa dizer que o argumento poacutes-colonial eacute em maior ou menor grau comprometido Pelo argumento poacutes-colonial o resgate da histoacuteria do conhecimento do discurso do sujeito e da memoacuteria do status ldquocolonizadordquo nunca pretende atraveacutes de sua visibilidade e da vocalizaccedilatildeo fortalecer o ldquooutrordquo colonizador Em termos de teoria poliacutetica contemporacircnea a relaccedilatildeo colonial eacute uma relaccedilatildeo antagocircnica e natildeo agocircnica

Desta forma o resgate da histoacuteria do conhecimento e do discurso do

colonizado foram protagonizados por autores como Albert Memmi Aimeacute Cesaacuterie e

Franz Fanon que foram os pioneiros a iniciar as reflexotildees referentes agraves situaccedilotildees de

opressatildeo para desvendar o antagonismo entre colonizador e colonizado Outro autor

que questionou a ordem poliacutetica e ideoloacutegica imposta pelo ocidente foi Edward Said

que comeccedila a discutir a teoria poacutes-colonial para aleacutem do vieacutes culturalista assim como

o orientalismo como um movimento cientiacutefico cujo anaacutelogo no mundo da poliacutetica seria

a acumulaccedilatildeo e a aquisiccedilatildeo colonial do oriente pela Europa (AMADEO 2014) As

abordagens e ideias discutidas por esses autores fomentaram uma revoluccedilatildeo nos

modos de pensar o outro o racismo e o sofrimento

O emergir do Grupo de Estudos Subalternos na deacutecada de 1970 composto

por pensadores do sul-asiaacutetico discutiam as questotildees relacionadas ao poacutes-

colonialismo como relaccedilotildees de poder a partir do aporte teoacuterico marxista baseado no

pensamento gramisciano A finalidade do grupo era afirma Grosfoguel (2008 p116)

43

ldquoanalisar criticamente natildeo soacute a historiografia colonial da Iacutendia feita por ocidentais

europeus mas tambeacutem a historiografia eurocecircntrica nacionalista indianardquo A atuaccedilatildeo

do grupo se restringiu agrave Iacutendia Paquistatildeo e demais paiacuteses do entorno

Na deacutecada de 1980 houve a expansatildeo da teoria poacutes-colonial contribuiacuteram

para isso as obras de Homi Bhabha O local da cultura e de Stuart Hall com Da

diaacutespora O subalterno eacute conceituado por Gayatri Spivak na obra Pode o subalterno

falarComo ldquoas camadas mais baixas da sociedade constituiacutedas pelos modos

especiacuteficos de exclusatildeo dos mercados da representaccedilatildeo poliacutetica e legal e da

impossibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominanterdquo

(SPIVAK 2010 p 12)

Segundo Ballestrin (2012) sob a influecircncia e expansatildeo dessas teorias por

volta de 1990 surge o Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos Dentre as

obras que foram fundamentais para o aprofundamento do debate estaacute a Colonialidad

y modernidad-racionalidad de 1992 de Aniacutebal Quijano ldquo[] Inspirados no Grupo Sul-

asiaacutetico dos Estudos Subalternos e no Centro de Estudos Culturais dirigidos por Stuart

Hall em Birmingham o Manifesto Inaugural do Grupo Latino-americano de Estudos

Subalternos publicado originalmente em 1995 inseriu a Ameacuterica Latina no debate

poacutes-colonialrdquo (BALLESTRIN 2012 p 6)

Em 1998 Walter Mignolo cria o Grupo ModernidadeColonialidade com o intuito

de trazer para os estudos subalternos as ideias dos autores natildeo eurocecircntricos para

discutir os problemas da Ameacuterica Latina o trecho retirado do manifesto abaixo retrata

essa concepccedilatildeo

Walter Mignolo aprovecha tambieacuten algunos elementos de las teoriacuteas poscoloniales para realizar una criacutetica de los legados coloniales en Ameacuterica Latina Pero a diferencia de Ileana Rodriacuteguez y de otros miembros del Grupo de Estudios Subalternos Mignolo piensa que las tesis de Ranajit Guha Gayatri Spivak Homi Bhabha y otros teoacutericos indios no debieran ser asumidas y trasladadas sin maacutes para un anaacutelisis del caso latinoamericano Hacieacutendose eco de las criacuteticas tempranas de Vidal y Klor de Alva Mignolo afirma que las teoriacuteas poscoloniales tienen su locus enuntiationis en las herencias coloniales del imperio britaacutenico y que es preciso por ello buscar uma categorizacioacuten criacutetica del occidentalismo que tenga su locus en Ameacuterica Latina(CASTRO-GOacuteMEZ amp MENDIETA 1998 p 16)

Para Mignolo a Ameacuterica foi a pioneira a ser vitimada pelo colonialismo sendo

nela implantada o modelo de exploraccedilatildeo do capitalismo imperial que se expandiu para

o mundo Nesse sentido a histoacuteria da Ameacuterica Latina natildeo eacute a mesma da Indiana

motivo pelo qual natildeo serviria de modelo para lutar contra o colonialismo

44

Grosfoguel (2008) corrobora com as ideias de Mignolo ao afirmar que o grupo

Latino-americano de Estudos Subalternos natildeo consegue se desvencilhar do

pensamento estadunidense e dos estudos subalternos indianos

[] Os latino-americanistas deram preferecircncia epistemoloacutegica ao que chamaram os ldquoquatro cavaleiros do Apocalipserdquo ou seja a Foucault Derrida Gramsci e Guha Entre estes quatro contam-se trecircs pensadores eurocecircntricos fazendo dois deles (Derrida e Foucault) parte do cacircnone poacutes-estruturalistapoacutes-moderno ocidental Apenas um Rinajit Guha eacute um pensador que pensa a partir do Sul Ao preferirem pensadores ocidentais como principal instrumento teoacuterico traiu o seu objetivo de produzir estudos subalternos [] Entre as muitas razotildees que conduziram agrave desagregaccedilatildeo do Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos uma delas foi a que veio opor os que consideravam a subalternidade uma criacutetica poacutes-moderna (o que representa uma criacutetica eurocecircntrica ao eurocentrismo) agravequeles que a viam como uma criacutetica descolonial (o que representa uma criacutetica do eurocentrismo por parte dos saberes silenciados e subalternizados) Para todos noacutes que tomamos o partido da criacutetica descolonial o diaacutelogo com o Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos tornou evidente a necessidade de transcender epistemologicamente ndash ou seja de descolonizar ndash a epistemologia e o cacircnone ocidentais

Dentre os autores que fazem parte do grupo ModernidadeColonialidade

destacam-se Edgardo Lander Arthuro Escobar Enrique Dussel Fernando Coronil

Immanuel Wallerstein e Aniacutebal Quijano Em 2000 Edgardo Lander organiza uma das

principais coletacircneas publicada pelo grupo Colonialidade do saber eurocentrismo e

ciecircncias sociais perspectivas latino-americanas lanccedilada em portuguecircs em 2005 pelo

Conselho Latino Americano de Ciecircncias Sociais ndash (CLACSO) A seguir apresentamos

uma tabela elaborada por Ballestrin (2012) que retrata o perfil dos membros do citado

grupo

Tabela 01 - Membros do grupo ModernidadeColonialidade

Integrante

Aacuterea

Nacionalidade

Universidade onde leciona

Aniacutebal Quijano Sociologia Peruana Universidad Nacional de San Marcos Peru

Enrique Dussel

Filosofia Argentina Universidad Nacional Autoacutenoma de Meacutexico

Walter Mignolo Semioacutetica Argentina Duke University Eua

Immanuel Wallerstein

Sociologia Estadounidense Yale University Eua

Santiago Castro-Goacutemez

Filosofia Colombiana Pontificia Universidad Javeriana Colocircmbia

Nelson Maldonado-Torres

Filosofia Porto-riquenha University of California Berkeley Eua

Ramoacuten Grosfoacuteguel

Sociologia Porto-riquenha University of California Berkeley Eua

45

Edgardo Lander

Sociologia Venezuelana UniversidadCentral de Venezuela

Arthuro Escobar

Antropologia Colombiana University of North Carolina Eua

Fernando Coronil

Antropologia Venezuelana University of New York Eua

Catherine Walsh

Linguiacutestica Estadounidense UniversidadAndina Simoacuten Boliacutevar Equador

Boaventura Santos

Direito Portuguesa Universidade de Coimbra Portugal

Zulma Palermo Semioacutetica Argentina Universidad Nacional de Salta Argentina

Fonte Luciana Ballestrin 2012

Para Ballestrin (2012 p 21) o grupo desenvolveu accedilotildees que foram marcantes

para a renovaccedilatildeo criacutetica das Ciecircncias Sociais na Ameacuterica Latina no seacuteculo XXI dentre

elas ldquoa inserccedilatildeo do continente no debate poacutes-colonial a ruptura com os estudos

culturais subalternos - indianos e latino-americanos - e poacutes-coloniais e a radicalizaccedilatildeo

do argumento poacutes-colonial atraveacutes do movimento giro decolonialrdquo

Dentre as concepccedilotildees teoacutericas produzidas pelo grupo destacamos a de

Immanuel Wallerstein que criou uma definiccedilatildeo de sistema-mundo que foi a base para

a elaboraccedilatildeo do conceito de colonialidade do poder por Anibal Quijano Para

Wallerstein a interdependecircncia seja econocircmica ou poliacutetica eacute gerada pelo mercado

O sistema-mundo corresponde assim a uma unidade espaccedilo-temporal cujo horizonte

espacial eacute coextensivo agrave reproduccedilatildeo de suas bases econocircmico-materiais sobre aacutereas

externas e que engloba outras entidades poliacuteticas e sistemas culturais A estrutura

para a manutenccedilatildeo da soberania dos Estados foi criada para alicerccedilar a economia-

mundo capitalista

Como nem sempre existiu essa foi uma estrutura que teve que ser construiacuteda O processo de sua construccedilatildeo tem sido contiacutenuo sob inuacutemeros aspectos A estrutura foi criada de iniacutecio num uacutenico segmento do globo primordialmente a Europa mais ou menos no periacuteodo que vai de 1497 a 1648 Passou entatildeo por expansotildees esporaacutedicas incorporando uma zona geograacutefica sempre mais ampla Esse processo que poderiacuteamos chamar de lsquoincorporaccedilatildeorsquo de novas zonas agrave economia-mundo capitalista envolveu a reformulaccedilatildeo de fronteiras e estruturas poliacuteticas nas zonas incorporadas e a criaccedilatildeo em seu acircmbito de lsquoEstados soberanos membros do sistema interestatalrsquo ou ao menos aquilo que poderiacuteamos chamar de lsquocandidatos a estados soberanosrsquo ndash as colocircnias (WALLERSTEIN 2006 p 154)

O sistema-mundo moderno entatildeo surgiu como parte de um processo de

expansatildeo da economia-mundo capitalista e tambeacutem da sua relaccedilatildeo com um sistema

interestatal De acordo com o autor a ordem econocircmica militar e poliacutetica satildeo

46

delimitadas pelos paiacuteses centrais assim o desenvolvimento dos Estados perifeacutericos

se fez a partir da dinacircmica de expansatildeo do sistema-mundo

Entatildeo o sistema-mundo eurocecircntrico abarcou todo o planeta com as

desigualdades imperando nas relaccedilotildees entre os paiacuteses sejam elas econocircmicas

poliacuteticas ou culturais O sistema-mundo estaacute diretamente vinculado aos sistemas

histoacutericos que tecircm uma fronteira na qual ldquoo sistema e as pessoas satildeo regularmente

reproduzidos por meio de algum tipo de divisatildeo contiacutenua do trabalhordquo

(WALLERSTEIN 1999 p459)

Para o referido autor existiram diferentes sistemas histoacutericos com suas loacutegicas

de funcionamento totalizando trecircs

Os lsquominissistemasrsquo assim chamados porque satildeo espacialmente pequenos e com toda a probabilidade relativamente breves no tempo (uma duraccedilatildeo de cerca de seis geraccedilotildees) satildeo altamente homogecircneos em termos de estruturas culturais e de governo A loacutegica baacutesica eacute a da lsquoreciprocidadersquo nas trocas Os lsquoimpeacuterios mundiaisrsquo satildeo vastas estruturas poliacuteticas (pelo menos no aacutepice do processo de expansatildeo e contraccedilatildeo que parece ser o destino de todos eles) e abarcam uma ampla variedade de padrotildees lsquoculturaisrsquo A loacutegica baacutesica do sistema eacute a extraccedilatildeo de tributo daqueles que de outra forma satildeo produtores diretos localmente auto-administrado (sobretudo rurais) que eacute passado para o centro e redistribuiacutedo entre uma fina mais crucial rede de funcionaacuterios As lsquoeconomias-mundorsquo satildeo vastas e desiguais cadeias de estruturas de produccedilatildeo dissecadas por muacuteltiplas estruturas poliacuteticas A loacutegica baacutesica eacute que o excedente acumulado eacute distribuiacutedo desigualmente em favor daqueles que satildeo capazes de realizar vaacuterios monopoacutelios temporaacuterios nas redes de mercado Eacute uma loacutegica lsquocapitalistarsquo (WALLERSTEIN 1999 p459-460)

O autor enfatiza dois aspectos o primeiro referente ao caraacuteter histoacuterico dos

sistemas Portanto o atual sistema-mundo que nasceu na Europa acerca de cinco

seacuteculos atraacutescomo os outros sistemas poderaacute desaparecer O segundo eacute que a

soberania dos Estados paiacuteses naccedilotildees e economias nacionais estatildeo delimitadas no

acircmbito do sistema-mundo vigente

A seguir abordamos a colonialidade do poder no qual a concepccedilatildeo de sistema-

mundo foi a base para as discussotildees e debates referentes ao conceito de

colonialidade bem como a construccedilatildeo da concepccedilatildeo de raccedila por meio da

classificaccedilatildeo da populaccedilatildeo mundial de acordo com a cor da pele o que garantiu o

domiacutenio e a supremacia da raccedila brancaeuropeia sobre as demais

122A colonialidade do poder

A colonialidade do poder eacute um conceito criado pelo socioacutelogo peruano Aniacutebal

Quijanoutilizado como referecircncia nas reflexotildees teoacutericas e praacuteticas no tocante ao

poder na Ameacuterica Latina bem como para analisar o processo de globalizaccedilatildeo e suas

relaccedilotildees com o capital e o trabalho

47

Segundo Quijano (2007) o colonialismo cria em seu bojo a colonialidade que

atua sobre vaacuterias dimensotildees do colonizado mas o autor estabelece as diferenccedilas

entre esses dois conceitos para demonstrar como se forjou e se sustenta a estrutura

global de poder Ocolonialismo baseava-se na dominaccedilatildeo e exploraccedilatildeo com o total

controle da autoridade poliacutetica dos recursos de produccedilatildeo e do trabalho de uma

determinada populaccedilatildeo com identidades diferentes e situados em jurisdiccedilatildeo territorial

diferente Configura-se assim em uma relaccedilatildeo poliacutetica e econocircmica na qual a

soberania de uma naccedilatildeo eacute subjugada por outra Jaacute a colonialidade se caracteriza

como um padratildeo de poder que interfere nas relaccedilotildees intersubjetivas bem como nas

formas de valorizaccedilatildeo do conhecimento aleacutem da divisatildeo do trabalho baseado em

uma hierarquia racial inventada para justificar a hegemonia branca eurocecircntrica

Apresenta-se a partir de quatro formas colonialidade do poder do saber do ser e da

matildee-natureza(QUIJANO 2005 MIGNOLO 2005 WALSH 2007)

Todavia a colonialidade do poder inclina-se sobre as relaccedilotildees de colonialidade

nas esferas econocircmica e poliacutetica realccedilando a presenccedila das formas de colonizaccedilatildeo

por meio de um padratildeo de controle global tambeacutem de recursos e produtos por

intermeacutedio do controle do trabalho Desta forma Quijano (2005) anuncia sua dupla

pretensatildeo denunciar a continuidade das formas coloniais de dominaccedilatildeo via cultura e

pelas estruturas do sistema-mundo capitalista modernocolonial e por outro lado a

necessidade da atualizaccedilatildeo dessa discussatildeo que prolonga processos que

teoricamente teriam sido superados na modernidade

Assim constata-se que as relaccedilotildees de colonialidade nas esferas econocircmica e

poliacutetica natildeo findaram com a destruiccedilatildeo do colonialismo a colonialidade do poder daacute

visibilidade agraves formas coloniais de dominaccedilatildeo mesmo com o fim das administraccedilotildees

poliacutetico-juriacutedicas coloniais e tambeacutem ldquopossui uma capacidade explicativa que atualiza

e contemporiza processos que supostamente teriam sido apagados assimilados ou

superados pela modernidaderdquo (BALLESTRIN 2012 p 13)

A colonialidade de poder segundo Quijano (2000) eacute constitutiva da

modernidade Corroborando com essa ideia Dussel (1994) afirma que se a

modernidade tem um sentido emancipador para a Europa ela natildeo tem a mesma

positividade para o outro natildeo europeu para este ela significou a origem de uma

violecircncia sacrificial travestida nos projetos de cristianizaccedilatildeo civilizaccedilatildeo

desenvolvimento e democratizaccedilatildeo

ParaQuijano (2000 p342)

48

La colonialidade es uno de los elementos constitutivos y especiacuteficos del patroacuten mundial de poder capitalista Se funda en la imposicioacuten de una clasificacioacuten racialeacutetnica de la problacioacuten del mundo como piedra anguar de dicho patroacuten de poder y opera en cada uno de los planos aacutembitos y dimensiones materiales y subjetivas de la existecircncia social cotidiana y a escala societal Se origina y mundializa a partir de America

A colonialidade do poder carrega em si uma perspectiva que integra elementos

histoacutericos econocircmicos poliacuteticos e ideoloacutegicos que formaram e ainda estruturam as

relaccedilotildees de poder global na atualidade

No que concerne ao elemento histoacuterico a concepccedilatildeo da ideia de raccedila foi

construiacuteda para inferiorizar e naturalizar as diferenccedilas entre colonizador e colonizado

De acordo com Quijano (2005) a racializaccedilatildeo e a racionalizaccedilatildeo foram as bases nas

quais se instituiacuteram a modernidade Para o autor a racializaccedilatildeo foi a normatizaccedilatildeo da

sociedade em raccedilas como regra global para a classificaccedilatildeo da populaccedilatildeo e os niacuteveis

de ocupaccedilatildeo econocircmica poliacutetica e social Isso possibilitou a articulaccedilatildeo do controle

do trabalho de seus recursos e de seus produtos fundada numa racionalidade

eurocentrada

A ideia de raccedila foi a base da relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo por meio da classificaccedilatildeo

da populaccedilatildeo inicialmente da Ameacuterica e depois para o restante do mundo colonizado

Esta classificaccedilatildeo gerou novas identidades os dominados foram agrupados em

categorias tendo como criteacuterio a cor da pele iacutendios negros mesticcedilos olivaacuteceos e

amarelos O colonizador se auto identificou como branco e mais tarde por volta do

seacuteculo XVIII europeu

E na medida em que as relaccedilotildees sociais que se estavam configurando eram relaccedilotildees de dominaccedilatildeo tais identidades foram associadas agraves hierarquias lugares e papeacuteis sociais correspondentes como constitutivas delas e consequentemente ao padratildeo de dominaccedilatildeo que se impunha Em outras palavras raccedila e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificaccedilatildeo social baacutesica da populaccedilatildeo (QUIJANO 2005 p 3)

Destamaneira naturalizou-se as diferenccedilas como mais uma forma de

legitimaccedilatildeo acrescida agraves ideias e praacuteticas jaacute desenvolvidas para garantir a

superioridade entre dominantes e dominados A classificaccedilatildeo hieraacuterquica

inicialmente se consolidou nas caracteriacutesticas fenoacutetipas e posteriormente na cor da

pele como uacutenico criteacuterio para categorizaccedilatildeo racial da populaccedilatildeo assim fundamenta-

se em explicaccedilotildees de cunho bioloacutegico que buscou naturalizar as diferenccedilas que satildeo

construiacutedas socialmente gerando a discriminaccedilatildeo o preconceito e o racismo

49

Eacute a colonialidade do poder que expressa a noccedilatildeo de raccedila com o objetivo de

afirmar a hegemonia da raccedila branca Logo ldquoa ideia de raccedila eacute uma construccedilatildeo mental

que expressa a experiecircncia baacutesica da dominaccedilatildeo colonial e que desde entatildeo permeia

as dimensotildees mais importantes do poder mundial [] o eurocentrismordquo (QUIJANO

2005 p 227) Dessa maneira o crescimento do colonialismo europeu levou agrave

elaboraccedilatildeo da perspectiva eurocecircntrica do conhecimento culminando com a

construccedilatildeo teoacuterica da ideia de raccedila que foi o mais eficaz e duraacutevel instrumento de

dominaccedilatildeo social universal como naturalizaccedilatildeo dessas relaccedilotildees coloniais de

dominaccedilatildeo entre europeus e natildeo-europeusAfirma Quijano (2005 p 228) que ldquoos

povos conquistados e dominados foram postos numa situaccedilatildeo natural de inferioridade

e consequentemente tambeacutem seus traccedilos fenotiacutepicos bem como suas descobertas

mentais e culturaisrdquo Eacute a negaccedilatildeo do estatuto de humanidade aos povos

subalternizados nesta relaccedilatildeo se identifica a colonialidade do Ser que de acordo

com Walsh (2008 p 138) ldquoes la que se ejerce por medio de la inferiorizacioacuten

subalternizacion y la deshumanizacioacuten a lo que Frantz Fanon (1999) se refiere como

el trato de la lsquono existenciarsquo rdquo Para Grosfoguel (2008 p 123) a colonialidade do poder

carrega em seu bojo a leitura da raccedila e do racismo como ldquoo princiacutepio organizador que

estrutura todas as muacuteltiplas hierarquias do sistema-mundordquo

Os criteacuterios para classificaccedilatildeo da espeacutecie humana foi avanccedilando no decorrer

do tempo No seacuteculo XVIII teve a cor da pele como um criteacuterio fundamental em

seguida no seacuteculo XIX acrescentou-se ao criteacuterio da cor outros aspectos

morfoloacutegicos tais como a forma do nariz dos laacutebios do queixo do formato do cracircnio

e o acircngulo facial para aperfeiccediloar a classificaccedilatildeo e aumentar a discriminaccedilatildeo

Somente no seacuteculo XX com os avanccedilos das ciecircncias os proacuteprios bioacutelogos geneticistas cientistas da biologia molecular e da bioquiacutemica chegaram agrave conclusatildeo de que a raccedila natildeo eacute uma realidade bioloacutegica mas um conceito inoperante para explicar a diversidade humana e para dividi-la em raccedilas estanques Ou seja bioloacutegica e cientificamente as raccedilas natildeo existem (MUNANGA 2003 p 67)

Poreacutem a ideia de que a populaccedilatildeo estaacute dividida em raccedilas teve a funccedilatildeo de

ratificar o poder do colonizador que utilizou vaacuterias estrateacutegias para controlar toda a

diversidade humana e incorporaacute-la ao uacutenico mundo dominado pela Europa por meio

do controle das subjetividades da cultura do conhecimento e de suas maneiras de

produccedilatildeo Afirma Quijano (2005) que dentre as estrateacutegias destacam-se a repressatildeo

das formas de produccedilatildeo do conhecimento dos povos colonizados e a apropriaccedilatildeo dos

que contribuiacutessem para o crescimento do capital a condenaccedilatildeo do seu universo

50

simboacutelico e dos padrotildees de expressatildeo e de objetivaccedilatildeo da subjetividade e a

imposiccedilatildeo da cultura necessaacuteria para a dominaccedilatildeo e reproduccedilatildeo do capital nos

aspectos materiais tecnoloacutegico inclusive da subjetividade com destaque para a

religiosa

Aleacutem das estrateacutegias para o controle e dominaccedilatildeo o referido autor evidencia

os fatores que contribuiacuteram para que a Europa se tornasse o centro do capitalismo

mundial e conseguisse ecircxito nas suas conquistas

A progressiva monetarizaccedilatildeo do mercado mundial que os metais preciosos da Ameacuterica estimulavam e permitiam bem como o controle de tatildeo abundantes recursos possibilitou aos brancos o controle da vasta rede preacute-existente de intercacircmbio que incluiacutea sobretudo China Iacutendia Ceilatildeo Egito Siacuteria os futuros Orientes Meacutedio e Extremo Isso tambeacutem lhes permitiu concentrar o controle do capital comercial do trabalho e dos recursos de produccedilatildeo no conjunto do mercado mundial E tudo isso foi posteriormente reforccedilado e consolidado atraveacutes da expansatildeo e da dominaccedilatildeo colonial branca sobre as diversas populaccedilotildees mundiais (QUIJANO 2005 p 232)

Desta forma o controle do capital comercial do trabalho e dos recursos de

produccedilatildeo no conjunto do mercado mundial permitiu agrave Europa tornar-se o centro do

capital global A articulaccedilatildeo de todas as possiacuteveis formas de controle do trabalho se

baseou na divisatildeo racial do trabalho na qual as raccedilas colonizadas foram destinadas

agraves funccedilotildees natildeo remuneradas pois eram consideradas inferiores e por consequecircncia

natildeo dignas de receberem salaacuterios Aos negros foi determinada a escravidatildeo aos

iacutendios a servidatildeo somente os espanhoacuteis e portugueses recebiam salaacuterios e quando

nobres ocupavam os mais altos cargos da administraccedilatildeo civil e militar Quanto aos

mesticcedilos estes exerciam os mesmos ofiacutecios dos brancos mas sem pagamento pelos

seus serviccedilos Esta mesma estrutura desenvolvida com ecircxito na Ameacuterica foi

transposta para o resto do mundo colonizado pois nas regiotildees dominadas a uacutenica

raccedila assalariada era a branca enquanto que aos colonizados estava reservado o

trabalho natildeo pago em razatildeo de sua natural inferioridade

Nesse sentido os interesses da raccedila branca eram totalmente antagocircnicos com

os dos dominados (iacutendios negros e mesticcedilos) Elaborou-se uma teoria racial na qual

iacutendios e negros natildeo eram considerados humanos mas vistos como baacuterbaros natildeo

dignos de receber salaacuterios Esse imaginaacuterio serviu para exploraacute-los oprimi-los e

dominaacute-los

A colonialidade do controle do trabalho de acordo com Quijano (2005 p 238)

ldquodeterminou a geografia social do capitalismordquo tornando-se o capital o eixo no qual

estavam ligadas todas as formas de controle do trabalho de seus recursos e produtos

51

ldquoEssa relaccedilatildeo social especiacutefica foi geograficamente concentrada na Europa

sobretudo e socialmente entre os europeus em todo o mundo do capitalismordquo (idem

p 238) Para Wallerstein o racismo eacute um elemento constitutivo da colonialidade e da

economia do mundo capitalista e tem como objetivo ldquomanter as pessoas dentro do

sistema mas com o estatuto de [] seres inferiores passiacuteveis de serem explorados

economicamente e usados como bodes-expiatoacuterios poliacuteticosrdquo (2000 p 13)

Corroborando com esta concepccedilatildeo Fanon (1956) aponta o racismo como uma

forma de opressatildeo na qual o dominante se sente superior e usa a sua superioridade

para desumanizar o outro Para o autor o racismo nunca eacute oculto inconsciente natildeo

sendo tambeacutem uma disposiccedilatildeo do espiacuterito algo psicoloacutegico embora a questatildeo

psiacutequica tambeacutem esteja presente

Na visatildeo de Walsh (2008) a discriminaccedilatildeo da categoria raccedila remete tambeacutem

agrave repressatildeo dos conhecimentos e saberes dos oprimidos que satildeo diversos dos

eurocecircntricos por meio da colonialidade do saber Concordando com a citada autora

Mignolo (2011) afirma que o eurocentrismo lanccedila qualquer epistemologia que esteja

fora de sua estrutura ao status de mito folclore lenda ou conhecimento local jaacute que

se coloca sempre no presente e no centro do espaccedilo projetando-se universalmente

Segundo Quijano (2005) a postura etnocecircntrica e a classificaccedilatildeo racial da

populaccedilatildeo do planeta satildeo fatores que contribuiacuteram para compreender os motivos dos

europeus se sentirem naturalmente superiores em relaccedilatildeo agraves outras raccedilas bem como

os uacutenicos autores da modernidade Isso os levou a se considerarem os mais

avanccedilados enquanto que o restante foi considerado inferior e primitivo no processo

de desenvolvimento da espeacutecie humana Para o autor a modernidade eacute um fenocircmeno

possiacutevel em todas as culturas e eacutepocas histoacutericas se partirmos do princiacutepio de que ela

estaacute ligada agrave ideia de novidade do avanccedilado racional-cientiacutefico laico e secular Desse

modo natildeo se pode atribuir agraves culturas natildeo europeias uma mentalidade primitiva pois

[hellip] aleacutem dos possiacuteveis ou melhor conjecturados conteuacutedos simboacutelicos as cidades os templos e palaacutecios as piracircmides ou as cidades monumentais seja Machu Pichu ou Boro Budur as irrigaccedilotildees as grandes vias de transporte as tecnologias metaliacuteferas agropecuaacuterias as matemaacuteticas os calendaacuterios a escritura a filosofia as histoacuterias as armas e as guerras mostram o desenvolvimento cientiacutefico e tecnoloacutegico em cada uma de tais altas culturas desde muito antes da formaccedilatildeo da Europa como nova id-entidade (QUIJANO 2005 p 230)

Portanto fica evidente a postura etnocentrista e eurocecircntrica ao afirmar ter

exclusividade em relaccedilatildeo agrave modernidade configurando-se como um discurso que visa

sedimentar a sua superioridade enquanto raccedila dominadora civilizadora e avanccedilada

52

em termos de racionalidade tecnologia e ciecircncia O referido autor ressalta que existe

uma gama de elementos demonstraacuteveis que apontam para um conceito de

modernidade diferente que daacute conta de um processo histoacuterico especiacutefico ao atual

sistema-mundo mas que porta todas as caracteriacutesticas que foram definidas Destaca

que carrega tambeacutem as relaccedilotildees sociais materiais e intersubjetivas cuja questatildeo

central eacute a libertaccedilatildeo humana como interesse histoacuterico da sociedade e em

consequecircncia seu campo central de conflito

Para Quijano (2005)o atual padratildeo de poder mundial eacute o primeiro efetivamente

global da histoacuteria conhecida O autor aponta quatro caracteriacutesticas que balizam sua

tese

Um eacute o primeiro em que cada um dos acircmbitos da existecircncia social estatildeo articuladas todas as formas historicamente conhecidas de controle das relaccedilotildees sociais correspondentes configurando em cada aacuterea uma uacutenica estrutura com relaccedilotildees sistemaacuteticas entre seus componentes e do mesmo modo em seu conjunto Dois eacute o primeiro em que cada uma dessas estruturas de cada acircmbito de existecircncia social estaacute sob a hegemonia de uma instituiccedilatildeo produzida dentro do processo de formaccedilatildeo e desenvolvimento deste mesmo padratildeo de poder Assim no controle do trabalho de seus recursos e de seus produtos estaacute a empresa capitalista no controle do sexo de seus recursos e produtos a famiacutelia burguesa no controle da autoridade seus recursos e produtos o Estado-naccedilatildeo no controle da intersubjetividade

o eurocentrismo Trecircs cada uma dessas instituiccedilotildees existe em relaccedilotildees de interdependecircncia com cada uma das outras Por isso o padratildeo de poder estaacute configurado como um sistema Quatro finalmente este padratildeo de poder mundial eacute o primeiro que cobre a totalidade da populaccedilatildeo do planeta

Assim o eurocentrismo tem como objetivo de tornar semelhante as formas

baacutesicas de existecircncia social de todas as populaccedilotildees colonizadas por intermeacutedio de

praacuteticas sociais comuns e uma esfera intersubjetiva que existe e atua como esfera

central de orientaccedilatildeo valorativa do conjunto Daiacute a universalizaccedilatildeo do Estado-naccedilatildeo

da famiacutelia burguesa da empresa da racionalidade eurocecircntrica como as instituiccedilotildees

hegemocircnicas de cada acircmbito de existecircncia social como modelos intersubjetivos

O eurocentrismo eacute tambeacutem uma loacutegica fundamental para a reproduccedilatildeo da

Colonialidade do Saber pois afirma Quijano (2005 p 9) ldquoa elaboraccedilatildeo intelectual do

processo de modernidade produziu uma perspectiva de conhecimento e um modo de

produzir conhecimento que demonstram o caraacuteter do padratildeo mundial de poder

colonialmoderno capitalista e eurocentradordquo O autor denomina de Eurocentrismo

esse modo de construir conhecimento

[] Eurocentrismo eacute aqui o nome de uma perspectiva de conhecimento cuja elaboraccedilatildeo sistemaacutetica comeccedilou na Europa Ocidental antes de meados do seacuteculo XVII ainda que algumas de suas raiacutezes satildeo sem duacutevida mais velhas ou mesmo antigas e que nos seacuteculos seguintes se tornou mundialmente

53

hegemocircnica percorrendo o mesmo fluxo do domiacutenio da Europa burguesa Sua constituiccedilatildeo ocorreu associada agrave especiacutefica secularizaccedilatildeo burguesa do pensamento europeu e agrave experiecircncia e agraves necessidades do padratildeo mundial de poder capitalista colonialmoderno eurocentrado estabelecido a partir da Ameacuterica

Como alternativa para questionar a validade somente do conhecimento

hegemocircnico e com a finalidade de tornar visiacutevel outras formas de conhecimentos

Mignolo (2003) propotildee a gnosepensamento liminar que tem como base a razatildeo

subalterna com outras racionalidades que diferem da concepccedilatildeo ocidental de

conhecimento

No que concerne agrave educaccedilatildeo dos ribeirinhos as pesquisas demonstram

segundo Hage (2014) que a colonialidade do poder impotildee curriacuteculos

descontextualizados ou seja que natildeo contemplam saberes oriundos do contexto

social econocircmico religioso e cultural dos povos das aacuteguas Os motivos estatildeo

relacionados ao natildeo reconhecimento do saber popular desses povos por serem

considerados como mitos lendas ou folclore portanto inferiores

123 Gnose ou pensamento liminar

Gnose ou pensamento liminar eacute um conceito criado por Mignolo que consiste em

[] o conhecimento concebido das margens externas do sistema mundial colonialmoderno gnosiologia marginal enquanto discurso sobre o saber colonial concebe-se na interseccedilatildeo conflituosa de conhecimento produzido na perspectiva dos colonialismos modernos (retorica filosofia ciecircncia) e do conhecimento produzido na perspectiva das modernidades coloniais na Aacutesia Aacutefrica nas Ameacutericas e no Caribe A gnosiologia liminar eacute uma reflexatildeo critica sobre a produccedilatildeo do conhecimento a partir tanto das margens internas do sistema mundial colonialmoderno (conflitos imperiais liacutenguas hegemocircnicas direcionalidade de traduccedilotildees etc) quanto das margens externas (conflitos imperiais com culturas que estatildeo sendo colonizadas bem como as etapas subsequentes de independecircncia ou descolonizaccedilatildeo) (MIGNOLO 2003 p 34)

Assim a gnose liminar representa o conhecimento dos excluiacutedos que

historicamente foi subalternizado por estar fora dos rigores da ciecircncia eurocecircntrica

constituindo-se numa razatildeo dos oprimidos em reaccedilatildeo ao processo de colonizaccedilatildeo

opressora Para o autor ldquoa gnose liminar constroacutei-se em diaacutelogo com a epistemologia

a partir de saberes que foram subalternizados nos processos imperiais coloniaisrdquo

(MIGNOLO 2003 p 34)

Assim o autor natildeo usa a gnose como doxa nem como ciecircnciaepisteme  no

sentido de um saber instrumental e muito menos como hermenecircutica A gnose

enquanto pensamento fronteiriccedilo torna-se um espaccedilo aberto para os saberes

54

marginalizados pelo ocidente Natildeo se constitui como recusa da ciecircncia ou da

hermenecircutica Eacute um saber que atua no tracircnsito entre fronteiras

Para que possamos entender a gnose liminar faz-se necessaacuterio de acordo

com Mignolo (2003) compreendermos a diferenccedila colonial pois ela surge como

formas de reaccedilatildeo a esta diferenccedila Desta maneira a diferenccedila colonial exprime a

categorizaccedilatildeo do planeta ldquono imaginaacuterio colonial moderno praticado pela colonialidade

do poder uma energia e um maquinaacuterio que transformam diferenccedilas em valoresrdquo

(MIGNOLO 2003 p 34)

A diferenccedila colonial foi construiacuteda historicamente Inicialmente os missionaacuterios

espanhoacuteis no seacuteculo XVI categorizavam os povos colonizados por meio do domiacutenio

da escrita alfabeacutetica os que natildeo a dominava eram considerados inferiores No fim do

seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX a categoria para avaliaccedilatildeo passou a ser a Histoacuteria Desta

maneira os povos sem histoacuteria situavam-se em um tempo anterior ao presente logo

a sua histoacuteria era escrita pelos que a tinham Destarte a diferenccedila colonial respeitava

a distinccedilatildeo claacutessica entre centros e periferias que prevaleceu ateacute o meio do seacuteculo

XX jaacute na segunda metade do mesmo seacuteculo a emergecircncia do colonialismo global

gerenciado pelas corporaccedilotildees transnacionais apagou a distinccedilatildeo que era vaacutelida para

as formas iniciais de colonialismo e a colonialidade do poder Portanto ldquoNo passado

a diferenccedila colonial situava-se laacute fora distante do centro Hoje emerge em toda parte

nas periferias dos centros e nos centros da periferiardquo(MIGNOLO 2003 p 09)

O colonialismo global que emerge com o fim da Guerra Fria e perpetua a

reproduccedilatildeo da diferenccedila colonial a niacutevel planetaacuterio sem situar-se em determinado

territoacuterio mostra a diferenccedila colonial ldquoem escala mundial quando o lsquoocidentalismorsquo se

defronta com o Oriente como precisamente sua proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade - da

mesma forma que paradoxalmente nos seacuteculos 18 e 19 o Ocidentalismo foi agrave

condiccedilatildeo da possibilidade do Orientalismordquo (MIGNOLO 2003 p10)

O pensamento liminar torna-se desta maneira uma reaccedilatildeo agrave diferenccedila

colonial que eacute concebida como

[] o espaccedilo onde emerge a colonialidade do poder A diferenccedila colonial eacute o espaccedilo onde as histoacuterias locais que estatildeo inventando e implementando os projetos globais encontram aquelas histoacuterias locais que os recebem eacute o espaccedilo onde os projetos globais satildeo forccedilados a adaptar-se integrar-se ou onde satildeo adotados rejeitados ou ignorados A diferenccedila colonial eacute finalmente o local ao mesmo tempo fiacutesico e imaginaacuterio onde atua a colonialidade do poder no confronto de duas espeacutecies de histoacuterias locais visiacuteveis em diferentes espaccedilos e tempos do planeta (MIGNOLO 2003 p10)

55

Neste sentido a diferenccedila colonial cria condiccedilotildees para situaccedilotildees dialoacutegicas nas

quais se encena do ponto de vista subalterno segundo Mignolo (2003 p 11)ldquouma

enunciaccedilatildeo fraturada como reaccedilatildeo ao discurso e agrave perspectiva hegemocircnicardquo Assim

enfatiza o autor que o pensamento liminar se constitui num instrumento para a

descolonizaccedilatildeo intelectual e portanto para a descolonizaccedilatildeo poliacutetica e econocircmica

ele nos leva a perceber como nossa formaccedilatildeo estaacute enraizada num imaginaacuterio

marcado por uma colonizaccedilatildeo intelectual eurocecircntrica

No processo de desconstruccedilatildeo desse imaginaacuterio Mignolo (2003) propotildee o

questionamento das teorias aceitas como verdades absolutas soacute porque satildeo oriundas

dos paiacuteses que foram historicamente dominantes enquanto que as produzidas em

paiacuteses que foram colonizados natildeo satildeo reconhecidas ou satildeo vistas com desconfianccedila

O entendimento dessas questotildees estaacute segundo o autor na colonialidade do poder e

na diferenccedila colonial que configuram a geopoliacutetica do conhecimento na qual somente

uma elite intelectual tem o privilegio de teorizar

Esta colonizaccedilatildeo epistemoloacutegica eurocecircntrica e etnocecircntrica foi se formando

no processo de constituiccedilatildeo do sistema moderno colonial (MIGNOLO 2003) Desta

maneira foi instalada uma geopoliacutetica do conhecimento na qualuma elite

pensanteoriunda de um determinado lugar cultura e liacutengua exerce unanimemente o

direito agrave filosofia e agrave ciecircncia

Esses satildeo os motivos do natildeo reconhecimento dos saberes produzido em

liacutenguas e histoacuterias locais subalternizadas Assim a Europa tornou-se o locus

privilegiado de produccedilatildeo e avaliaccedilatildeo do conhecimento E cosmologias e

conhecimentos milenares foram reduzidos a supersticcedilotildees conhecimento popular

folclore entre outros Trata-se aqui do processo de colonizaccedilatildeo da memoacuteria do qual

fala Mignolo (2006) A emergecircncia de outro pensamento o liminar aponta para outra

razatildeo a poacutes-ocidental que implica no reconhecimento dos saberes subalternizados e

na sua redistribuiccedilatildeo geopoliacutetica

Assim para Mignolo (2003 p 35) a gnose liminar enquanto conhecimento

natildeo se trata de uma forma ldquode sincretismo ou hibridismo mas de um sangrento campo

de batalha na longa histoacuteria da subalternizaccedilatildeo colonial do conhecimento e da

legitimaccedilatildeo da diferenccedila colonialrdquo Em decorrecircncia disso eacute uma poderosa e

emergente gnosiologia que na perspectiva do subalterno estaacute deslocando e

absorvendo as formas hegemocircnicas do conhecimento Ela eacute construiacuteda nos espaccedilos

liminares nas fronteiras da diferenccedila colonial Desta maneira a diferenccedila colonial soacute

56

pode ser transposta por via da subalternidade expressa por meio do pensamento

liminar

[] somente se pode transcender a diferenccedila colonial da perspectiva da subalternidade da descolonizaccedilatildeo e portanto de um novo terreno epistemoloacutegico que o pensamento liminar estaacute descortinando [] O pensamento liminar na perspectiva da subalternidade eacute uma maacutequina para a descolonizaccedilatildeo [] (MIGNOLO 2003 p 76)

Nesse sentido a gnose liminar eacute a razatildeo subalternaque visa o enfrentamento

da colonialidade do poder por meio do reconhecimento e valorizaccedilatildeo dos saberes

subalternizados durante a colonizaccedilatildeo Assim a partir da perspectiva epistemoloacutegica

eurocecircntrica o saber dominantefoi globalizado por meio de todo um processo

construiacutedo historicamente o autor propotildee a gnose liminar como ldquomaacutequinardquo necessaacuteria

agrave descolonizaccedilatildeo

Dentre os pressupostos apresentados pelo citado autor estaacute a relaccedilatildeo entre

modernidade e colonialidade que jamais podem ser concebidas separadamente pois

uma natildeo existe sem a outra Eacute a partir desse prisma que pode ser analisada a

formaccedilatildeo do sistema-mundo tendo como referecircncia a modernidadecolonialidade em

suas vaacuterias histoacuterias locais simultaneamente configuradas nos colonialismos

modernos e nas modernidades coloniais e natildeo apenas como uma histoacuteria mundial

universal e abstrata (MIGNOLO 2003)

Consequentemente a relaccedilatildeo entre a colonialidade do poder e a diferenccedila

colonial eacute permeada pela vinculaccedilatildeo entre o que se teoriza e a partir de onde se

teoriza desta maneira a produccedilatildeo e validaccedilatildeo do conhecimento estaacute vinculada com

a localizaccedilatildeo geograacutefica

No tocante agrave redefiniccedilatildeo da geopoliacutetica do conhecimento que consiste na

descolonizaccedilatildeo epistecircmica eacute preciso que seja pautada em novos locide enunciaccedilatildeo

a partir dos saberes subalternos em confronto com as formas dosaber hegemocircnico

Essa tarefa eacute mediar entre as praacuteticas filosoacuteficas no interior das histoacuterias coloniais modernas [] e formas lsquotradicionaisrsquo de pensamento ndash isto eacute formas de pensamento coexistentes com a definiccedilatildeo institucional de filosofia mas natildeo consideradas como tal na perspectiva institucional que define a filosofia (MIGNOLO 2003 p98)

Para isso a gnose liminar como forma de descolonizaccedilatildeo epistecircmica eacute

diferenciada das teorias criacuteticas poacutes-modernas A poacutes-modernidade eacute vista enquanto

discurso criacutetico sobre a ecircnfase no imaginaacuterio da modernidade como uma descriccedilatildeo

do presente histoacuterico em que eacute possiacutevel tal discurso Em oposiccedilatildeo a poacutes-colonialidade

eacute concebida como um discurso criacutetico que torna visiacutevel o vieacutes colonial do sistema

57

mundial moderno e a colonialidade do poder que estaacute encravada na proacutepria

modernidade Destaca Mignolo (2003) que eacute tambeacutem um discurso que muda a

extensatildeo entre os locais geoistoacutericos e a produccedilatildeo de conhecimentos Isto tem como

consequecircncia o reordenamento desta geopoliacutetica hegemocircnica por meio da

articulaccedilatildeo da racionalidade subalterna compreendida como um conjunto diverso das

praacuteticas teoacutericas na interseccedilatildeo das histoacuterias locais e dos projetos globais A

preocupaccedilatildeo do autor eacute

[] enfatizar a ideia de que lsquoo discurso colonial e poacutes-colonialrsquo natildeo eacute apenas um novo campo de estudo ou uma mina de ouro para a extraccedilatildeo de novas riquezas mas condiccedilatildeo para a possibilidade de se construiacuterem novos loci de enunciaccedilatildeo e para a reflexatildeo de que o lsquoconhecimento e compreensatildeorsquo acadecircmicos devem ser complementados pelo lsquoaprender comrsquo aqueles que vivem e refletem a partir de legados coloniais e poacutes-coloniais de Rigoberta Menchuacute a Angel Rama Do contraacuterio corremos o risco de estimular a macaqueaccedilatildeo a exportaccedilatildeo de teorias o colonialismo (cultural) interno em vez de promover novas formas de criacutetica cultural de emancipaccedilatildeo intelectual e poliacutetica mdash de transformar os estudos coloniais e poacutes-coloniais em um campo de estudo em vez de loacutecus de enunciaccedilatildeo liminar e criacutetico O lsquoponto de vista nativorsquo tambeacutem inclui os intelectuais [] o terceiro mundo produz natildeo apenas lsquoculturasrsquo a serem estudadas por antropoacutelogos e etno-historiadores mas tambeacutem intelectuais que geram teorias e refletem sobre sua proacutepria historia e cultura (MIGNOLO 1993 p 131)

Os novos locusde enunciaccedilatildeo natildeo teratildeo mais como centro o sistema moderno-

colonial e sim as suas margens O aprender proposto pelo autor eacute um dos objetivos

deste trabalho aprender com os ribeirinhos da Amazocircnia que produzem

conhecimentos que retratam suas histoacuterias e culturas Conhecimentos referentes agrave

mata aos rios ao accedilaiacute agrave pesca agrave confecccedilatildeo dos instrumentos para as atividades

econocircmicas sociais e religiosas que foram e satildeo subalternizados suprimidos e

silenciados Desta formaa emergecircncia de um pensamento liminar altera e ultrapassa

as configuraccedilotildees histoacutericas e geopoliacuteticas que marcaram historicamente o sistema

moderno colonial regulado pela colonizaccedilatildeo epistecircmica e subalternizaccedilatildeo de

saberes liacutenguas culturas e povos

O pensamento fronteiriccedilo eacute outro conceito apresentado pelo referido autor que

assim como o pensamento liminar

[] desde la perspectiva de la subalternidad colonial es um pensamiento que no puede ignorar el pensamiento de la modernidad pero que no puede tampoco subyugarse a eacutel aunque tal pensamiento moderno sea de izquierda o progresista El pensamiento fronterizo es el pensamiento que afirma el espacio donde el pensamiento fue negado por el pensamiento de la modernidad de izquerda o de derecha (MIGNOLO 2003 p 52)

58

O pensamento fronteiriccedilo juntamente com o liminar corresponde agrave razatildeo

subalterna que evidenciam e procuram tornar perceptiacutevel a potencialidade dos

saberes subalternizados rompendo dessa forma com a uniformizaccedilatildeo imposta pelo

eurocentrismo Tem como caracteriacutestica ser epistemoloacutegico porque eacute constituiacutedo a

partir da criacutetica do conhecimento hegemocircnico que se considera universal e tambeacutem eacute

eacutetico porque eacute uma maneira de pensar que natildeo eacute inspirada ldquonas suas proacuteprias

limitaccedilotildees e natildeo pretende humilhar uma maneira de pensar que eacute universalmente

marginal fragmentaacuteria e abertardquo (MIGNOLO 2003 p 104)

O pensamento fronteiriccedilo como consequecircncia da diferenccedila colonial natildeo eacute

uacutenico e uniforme pois resulta da luta e do reconhecimento das diferenccedilas e das

diversidades Assim natildeo haacute um fundamentalismo teoacuterico e praacutetico que rejeita tudo e

qualquer coisa que seja europeia ao inveacutes disso leva em conta a duplicidade de

consciecircncia que o sistema mundo colonialmoderno gera Portanto Mignolo (2003)

reconhece a importacircncia da ciecircncia e das formas de saberes ocidentais hegemocircnicas

para o autor as diversas histoacuterias saberes e epistemologias locais satildeo resultados da

diferenccedila colonial resultante da colonialidade do poder e do saber afirmando que natildeo

se trata de negar o paradigma hegemocircnico mas sim de admitir que existam outros

paradigmas frutos da diversidade epistemoloacutegica do mundo

O diaacutelogo entre os paradigmas deve ocorrer a partir do reconhecimento e

validaccedilatildeo de outras epistemologias que satildeo resultado da diversidade de culturas

existente no mundo Dentre as concepccedilotildees para o desenvolvimento do diaacutelogo

discutimos a seguir a proposta por Paulo Freire

13O DIAacuteLOGO ponto de partida para praacuteticas transformadoras

Para Freire (1986) o diaacutelogo faz parte da natureza histoacuterica dos seres

humanos Eacute momento de encontro com vistas agrave reflexatildeo da realidade na qual vivemos

para poder transformaacute-la Desta forma o diaacutelogo ldquoeacute este encontro dos homens

mediatizados pelo mundo para pronunciaacute-lo natildeo se esgotando portanto na relaccedilatildeo

eu-turdquo (FREIRE 2014 p 109) A pronuacutencia se daacute pela palavra composta pela accedilatildeo e

reflexatildeo tornando-se praacutexis que segundo Freire (2014 p109) ldquoeacute reflexatildeo e accedilatildeo

doshomens sobre o mundo para transformaacute-lo Sem ela eacute impossiacutevel a superaccedilatildeo da

contradiccedilatildeo opressor-oprimidordquo Quando haacute a dicotomia entre essas duas dimensotildees

a accedilatildeo vira ativismo e a reflexatildeo verbalismo o que segundo o autor inviabiliza o

diaacutelogo pois a transformaccedilatildeo ocorre pela palavra ao pronunciar o mundo daiacute sua

importacircncia como percurso no qual o ser humano ganha significaccedilatildeo

59

A palavra natildeo pode ser muda nem silenciosa precisa ter o poder de criar

transformar potencializar e libertar O mutismo da palavra somentetem sentido

quando submerge o sujeito de sua realidade e o faz emergir no seu acircmago um imenso

amor ao mundo e agrave humanidade Para Freire (2014 p 111) ldquoexistir humanamente eacute

pronunciar o mundo eacute modificaacute-lo O mundo pronunciado por sua vez se volta

problematizado aos sujeitos pronunciantes a exigir deles novo pronunciarrdquo

Desta maneira para que ocorra o diaacutelogo eacute preciso garantir o direito agrave palavra

a todos

Por isto o diaacutelogo eacute uma exigecircncia existencial E se ele eacute o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereccedilados ao mundo a ser transformado e humanizado natildeo pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito num outro nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes(FREIRE 2014 p 109)

Nesse sentido constitui-se numa perspectiva horizontal na qual todos devem

ter direito agrave palavra caso ela seja negada precisa ser conquistada para que se possa

exercer o direito de pronunciaacute-la Por meio do diaacutelogo podemos refletir coletivamente

sobre o que conhecemos e tambeacutem referente ao que ainda natildeo sabemos para

posteriormente de forma criacutetica mudarmos nossa realidade Nesse processo o

diaacutelogo eacute comunicaccedilatildeo por meio da qual conhecemos o mundo na interaccedilatildeo com o

outro o que caracteriza um ato social mesmo com dimensotildees individuais ldquoO que eacute o

diaacutelogo neste momento de comunicaccedilatildeo de conhecimento e de transformaccedilatildeo

social O diaacutelogo sela o relacionamento entre os sujeitos cognitivos podemos a

seguir atuar criticamente para transformar a realidaderdquo (FREIRE 1986 p 123) Para

que ocorra de fato o diaacutelogo requer amor humildade feacute e confianccedila nos homens

bem como esperanccedila aliada a luta pela mudanccedila

Para Freire (2014) o diaacutelogo exige um imenso amor ao mundo e aos homens

e eacute necessariamente uma atitude de coragem e compromisso Desta maneira ldquoeacute

impossiacutevel haver diaacutelogo se natildeo haacute uma profunda relaccedilatildeo de amorrdquo (p 111) A relaccedilatildeo

amorosa estaacute baseada em um compromisso com o outro o qual eacute estimulado pelo

amor que o sustenta e o impulsiona

O amor eacute ingrediente para a constituiccedilatildeo do mundo que eacute criado e recriado

pelos sujeitos tornando-se ldquoao mesmo tempo o fundamento do diaacutelogo e o proacuteprio

diaacutelogordquo (FREIRE 2014 p 112) Assim o diaacutelogo eacute movido pelo interesse muacutetuo o

que natildeo ocorre na relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e opressatildeo nela impera o egoiacutesmo com a

imposiccedilatildeo de ideias e accedilotildees tornando-se verticalizado Nessa perspectiva qualquer

60

mudanccedila que venha a afetar as nossas emoccedilotildees consequentemente afetaraacute e

modificaraacute tambeacutem as nossas accedilotildees Maturana (2004 p 45) reforccedila esse pensamento

ao dizer que eacute a emoccedilatildeo que define a accedilatildeo ldquo[] Eacute a emoccedilatildeo a partir da qual se faz

ou se recebe certo fazer que o transforma numa ou noutra accedilatildeo ou que o qualifica

como um comportamento dessas ou daquela classerdquo Consequentemente continua o

autor o conversar perpassa pela convivecircncia amorosa mesclada pela emoccedilatildeo e

linguagem de maneira dialoacutegicaNa oacutetica da educaccedilatildeo essa conversa gera uma

reflexatildeo coletiva direcionada a criar e aprimorar accedilotildees emancipadoras motivo pelo

qual o direito agrave palavra aos educandos eacute condiccedilatildeo fundamental

Na educaccedilatildeo escolar o diaacutelogo freireano eacute baseado na amorosidade e no

respeito agrave dignidade dos envolvidos isso natildeo requer que o professor segundo

Oliveira (2008) abra matildeo de sua competecircncia teacutecnica no fazer pedagoacutegico com receio

de natildeo ser amoroso pois o saber teacutecnico e a amorosidade natildeo eacute incompatiacutevel e

ambos satildeo necessaacuterios agraves relaccedilotildees educativas uma vez que

[] na convivecircncia amorosa com seus alunos e na postura curiosa e aberta que assume e ao mesmo tempo provoca-os assumirem enquanto sujeitos soacutecio-histoacuterico-culturais do ato de conhecer eacute que ele pode falar do respeito agrave dignidade e autonomia do educando (OLIVEIRA 2008 p 15)

O respeito a dignidade e a autonomia fazem parte do rigor do processo

educativo envolvidos pelo diaacutelogo amoroso no qual educador e educando satildeo sujeitos

encharcados de afetividade e vistos numa perspectiva horizontal no ato dialoacutegico

Assim para Freire (2001) a compreensatildeo de uma nova forma de ensinar aprender e

conhecer decorreraacute da visatildeo do mundo enquanto produzido e reproduzido pelo ser

humano numa relaccedilatildeo dialoacutegica com outros homens e com o mundo No fazer

pedagoacutegico a relaccedilatildeo dialoacutegica estaacute balizada pelo entendimento poliacutetico e

competecircncia teacutecnica dos educadores afetividade seriedade e alegria que podem

estar a serviccedilo da permanecircncia ou mudanccedila da sociedade (FREIRE 1998) Ser seacuterio

natildeo significa ser autoritaacuterio ou severo a seriedade pode caminhar junto com a

afetividade conforme Freire (1998 p 32) afirma

Na verdade preciso descartar como falsa a separaccedilatildeo radical entre seriedade docente e afetividade Natildeo eacute certo sobretudo do ponto de vista democraacutetico que serei tatildeo melhor professor quanto mais severo mais frio mais distante e ldquocinzentordquo me ponha nas minhas relaccedilotildees com os alunos no trato dos objetos cognosciacuteveis que devo ensinar A afetividade natildeo se acha excluiacuteda da cognoscibilidade []

O ato cognosciacutevel eacute seacuterio e amoroso o educador numa perspectiva freireana

expressa sua afetividade sem receio e ao mesmo tempo com seriedade dialoga com

61

os educandos a partir de suas realidades problematizando-as ldquoa professora

progressista ensina os conteuacutedos de sua disciplina com rigor e com rigor cobra a

produccedilatildeo dos educandos mas natildeo esconde sua opccedilatildeo poliacutetica na neutralidade

impossiacutevel de seu quefazerrdquo (FREIRE 2000 p 44) Portanto continua o autor o

diaacutelogo ocorre no interior de um determinado contexto neste caso a escola assim para

alcanccedilar os objetivos da transformaccedilatildeo o diaacutelogo implica responsabilidade

direcionamento determinaccedilatildeo disciplina e objetivos

Outra condiccedilatildeo para a existecircncia do diaacutelogo eacute a humildade pois a criaccedilatildeo e

recriaccedilatildeo do mundo natildeo podem ser realizadas com arrogacircncia

A autossuficiecircncia eacute incompatiacutevel com o diaacutelogo Os homens que natildeo tem humildade ou a perdem natildeo podem aproximar-se do povo Natildeo podem ser seus companheiros de pronuacutencia do mundo Se algueacutem natildeo eacute capaz de sentir-se e soube-se tatildeo homem quanto os outros eacute que lhe falta ainda muito para caminhar para chegar ao lugar de encontro com eles Neste lugar de encontro natildeo haacute ignorantes absolutos nem saacutebios absolutos haacute homens que em comunhatildeo buscam saber mais (FREIRE 2014 p112)

O reconhecimento de que natildeo somos ignorantes tampouco saacutebios absolutos

possibilita-nos estar abertos a aprender com o outro ateacute porque somos seres

inacabados em constante processo de aprendizagem O educador eacute portador de um

saber que faz parte de sua competecircncia teacutecnica de acordo com a formaccedilatildeo que

possui Isso natildeo significa que o educando eacute ignorante que natildeo sabe nada ao

contraacuterio numa comunidade ribeirinha ele domina os saberes necessaacuterios para

sobreviver neste contexto o que denota que existem diversidades de saberes Nessa

oacutetica o educador por meio do diaacutelogo aprende com os alunos os saberes locais e

ensina a partir desses saberes os cientiacuteficos Mas para que o diaacutelogo se efetive

precisa ser humilde e admitir a sua ignoracircncia em relaccedilatildeo a esses saberes

Assim a humildade implica dar a palavra ouvir e respeitar as ideias e os

pensamentos do outro As diferenccedilas neste caso natildeo nos tornam inferiores apenas

enriquecem-nos enquanto seres cognitivos O educador dialoacutegico estaacute aberto agraves

contribuiccedilotildees e incentiva a participaccedilatildeo e autonomia do educando que eacute formado para

o diaacutelogo No diaacutelogo a partir de sua realidade consegue desvendar aspectos que

estavam ocultos

A feacute nos homens constitui outro componente do diaacutelogo Eacute essencial crer no

homem e em seu poder de transformar criar e recriar em todos os momentos Afirma

Freire (2014 p112)

O diaacutelogo exige igualmente uma feacute intensa no homem feacute em seu poder de fazer e refazer de criar e recriar feacute em sua vocaccedilatildeo de ser mais humano []

62

O homem de diaacutelogo eacute criacutetico e sabe que embora tenha o poder de criar e de transformar tudo numa situaccedilatildeo completa de alienaccedilatildeo podem-se impedir os homens de fazer uso deste poder

A feacute no poder de transformaccedilatildeo independente do contexto que quando eacute

desfavoraacutevel o homem dialoacutegico que tem uma visatildeo criacutetica de mundo a concebe

como um desafio que eacute possiacutevel superaacute-lo por meio da conscientizaccedilatildeo e da luta para

a libertaccedilatildeo ldquosem esta feacute nos homens o diaacutelogo eacute uma farsa Transforma-se na

melhor das hipoacuteteses em manipulaccedilatildeo adocicadamente paternalistardquo (FREIRE 2014

p 113)

Portanto o diaacutelogo para o referido autor eacute amoroso humilde e repleto de feacute

sustentado na confianccedila que tornam os homens mais companheiros na luta pela

libertaccedilatildeo da opressatildeo Desta maneira a palavra para ter confianccedila tem que se

materializar na accedilatildeo no exemplo

O diaacutelogo tambeacutem natildeo pode existir sem esperanccedila ldquose os sujeitos do diaacutelogo

nada esperam do seu quefazer jaacute natildeo pode haver diaacutelogo O seu encontro eacute vazio e

esteacuteril Eacute burocraacutetico e fastidiosordquo (FREIRE 2014 p 114) A esperanccedila estaacute na raiz

da inconclusatildeo dos homens a partir da qual almejam algo melhor para os seus

semelhantes A inconclusatildeo gera a vontade da mudanccedila O problema eacute quando este

almejar eacute egoiacutesta neste caso natildeo serve agrave visatildeo dialoacutegica

As situaccedilotildees de adversidades onde prevalece a opressatildeo natildeo devem gerar a

desesperanccedila considerando que a mudanccedila gerada pela reflexatildeo-accedilatildeo tem como

estiacutemulo a esperanccedila Desta forma a educaccedilatildeo torna-se primordial visto que natildeo se

nasce esperanccediloso por esta razatildeo precisamos de uma educaccedilatildeo para a esperanccedila

refletida numa pedagogia da esperanccedila Destaca Freire (1992) que eacute

ingecircnuoacharmos que somente a esperanccedila transformaraacute o mundo mas sem ela

torna-se pura ilusatildeo haja vista que se fundamenta na eacutetica e na verdade

O essencial como diz mais no corpo desta Pedagogia da esperanccedila eacute que ela enquanto necessidade ontoloacutegicaprecisa de ancorar-se na praacutetica Enquanto necessidade ontoloacutegicaa esperanccedila precisa da praacutetica para tornar-se concretude histoacutericaEacute por isso que natildeo haacute esperanccedila na pura espera nem tampoucose alcanccedila o que se espera na espera pura que vira assim esperavatilde Sem um miacutenimo de esperanccedila natildeo podemos sequer comeccedilaro embate mas sem o embate a esperanccedila como necessidade ontoloacutegicase desendereccedila e se torna desesperanccedila que agraves vezes sealonga em traacutegico desespero Daiacute a precisatildeo de certa educaccedilatildeoda esperanccedila Eacute que ela tem tal importacircncia em nossa existecircnciaindividual e social que natildeo devemos experimentaacute-la de formaerrada deixando que ela resvale para a desesperanccedila e o desesperoDesesperanccedila e desespero consequecircncia e razatildeo de ser da inaccedilatildeoou do imobilismo (FREIRE 1992 p11)

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A esperanccedila estaacute aliada agrave luta visto que se cruzarmos os braccedilos esperando

as coisas acontecerem caiacutemos no imobilismo O autor destaca a importacircncia da

educaccedilatildeo dialoacutegica encharcada de esperanccedila na mudanccedila que vem com a luta pela

libertaccedilatildeo da opressatildeo por meio de um pensamento verdadeiro que eacute criacutetico

Concebe a realidade como mutante em constante mudanccedila e transformaccedilatildeo o

homem estaacute no mundo assim como o mundo estaacute no homem natildeo existe ldquodicotomia

entre mundo-homensrdquo (FREIRE 2014 p 114)

2 A EDUCACcedilAtildeO DAS POPULACcedilOtildeES RIBEIRINHAS NA AMAZOcircNIA

Neste capiacutetulo fizemos uma imersatildeo histoacuterica das populaccedilotildees ribeirinhas na

Amazocircnia realizamos um mergulho na Amazocircnia brasileira com ecircnfase nos povos

das aacuteguas em seguida abordamos o municiacutepio de Afuaacutenosseus aspectos histoacutericos

geograacuteficos e econocircmicos com destaque paraa dimensatildeo educacional

21 UM MERGULHO NA AMAZOcircNIA BRASILEIRA

Mergulhar na Amazocircnia eacute imergir na diversidade tanto econocircmica geograacutefica

ecoloacutegica como cultural Para compreendermos esta regiatildeo faz-se necessaacuterio

concebecirc-la no plural como afirma Gonccedilalves (2005 p 8)

Para os de fora a imagem que se tem da Amazocircnia eacute mais homogecircnea [] Para os habitantes da proacutepria regiatildeo a lsquoAmazocircniarsquo eacute um termo vago que adquire muacuteltiplos significados correspondentes aos mais diferentes contextos soacutecio-ecoloacutegico-culturais especiacuteficos que satildeo os espaccedilos do seu cotidiano Assim enquanto para uns ndash os de fora lsquoAmazocircniarsquo aparece no singular para outros isto eacute para os que nela mora ndash ela eacute plural e multifacetada

A pluralidade eacute a principal caracteriacutestica desta regiatildeo A diversidade e a

complexidade do seu territoacuterio satildeo tatildeo vastas que para falarmos sobre ela eacute preciso

estar no seu interior para identificar qual eacute a Amazocircnia a que estamos nos referindo

Assim este vasto territoacuterio eacute habitado por caboclos garimpeiros posseiros

ribeirinhos quilombolas povos indiacutegenas pescadores coletores agricultores rurais

colonos imigrantes atingidos por barragens dentre outros povos que reconstroem o

espaccedilo amazocircnico Esta diversidade de povos caracteriza a Amazocircnia como um lugar

heterogecircneo que eacute formado por um universo cultural pluralizado Como afirma Fares

(2004 p 86) ldquonatildeo existe uma cultura uma identidade amazocircnica no singular A

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concepccedilatildeo deste espaccedilo eacute plural As diferentes manifestaccedilotildees culturais trazem

marcas do hiacutebrido16 e da mesticcedilagem17rdquo

Para Rodrigues et al (2007 p 29) a cultura popular amazocircnica refere-se [] aos diversos modos das classes e dos grupos populares da Amazocircnia de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo social da realidade assentadas nas condiccedilotildees de vida locais nos saberes nos valores nas praacuteticas sociais e educativas no simboacutelico e no imaginaacuterio de uma variedade de sujeitos habitantes de aacuterea de terra firme vaacuterzea e igapoacute em localidades rurais e urbanas da regiatildeo

Neste trabalho a Amazocircnia Paraense especificamente a Amazocircnia rural-

ribeirinha foi o lugar onde realizamos a pesquisa de campo lugar no qual imergimos

no universo cultural e convivemos e dialogamos com moradores das comunidades e

professores da Ilha do Accedilaiacute De acordo com Loureiro (2001 p 65) a cultura ribeirinha

eacute a que mais expressa a cultura amazocircnica ldquoseja quanto aos seus traccedilos de

originalidade seja como produto da acumulaccedilatildeo de experiecircncias sociais e da

criatividade de seus habitantes resultante do hibridismordquo Criatividade que comeccedila na

produccedilatildeo de artefatos que compotildeem o universo cultural que satildeo apreendidos pelos

mais jovens atraveacutes da oralidade e estatildeo presentes nas relaccedilotildees sociais religiosas e

econocircmicas Portanto o hibridismo cultural estaacute fortemente presente nas diversas

amazocircnias

Essa marca hiacutebrida teve seu aacutepice a partir do contato com os natildeos iacutendios

contato esse permeado pela violecircncia Segundo Loureiro (2002) o primeiro ato de

violecircncia contra os povos da Amazocircnia ocorreu por meio do contato com o europeu

o espanhol Vicente Pinzon em 1500 que apesar de ser bem recebido pelos nativos

os aprisionou e os vendeu como escravos na Europa A origem dos mitos referentes

agrave regiatildeo tambeacutem eacute produto europeu

A viagem de Orellana (em 1549) instaura o momento fundador dos primeiros mitos como o das Amazonas ndash iacutendias guerreiras bravas habitantes de uma aldeia sem homens Outros viajantes aventureiros e exploradores que procuravam riquezas espalharam mundo afora mitos e fantasias De todo o mito mais persistente parece ter sido sempre o da superabundacircncia e da resistecircncia da natureza da regiatildeo florestas com aacutervores altiacutessimas que

16Para Canclini (2006 p 19) o hibridismo ldquoabrange diversas mesclas interculturais - natildeo apenas raciais agraves quais costuma limitar-se o termo lsquomesticcedilagemrsquo - e porque permite incluir as formas modernas de hibridaccedilatildeo melhor do que lsquosincretismorsquo foacutermula que se refere quase sempre a fusotildees religiosas ou de movimentos simboacutelicos tradicionaisrdquo 17Gruzinski (2001 p 62) utiliza a mesticcedilagempara designar ldquoas misturas que ocorreram em solo

americano no seacuteculo XVI entre seres humanos imaginaacuterios e formas de vida vindos de quatro

continentes Ameacuterica Europa Aacutefrica e Aacutesia Enquanto que a hibridaccedilatildeo o autor utiliza na anaacutelise das

misturas que se desenvolvem dentro de uma mesma civilizaccedilatildeo ou de um mesmo conjunto histoacuterico

65

penetravam nas nuvens frutos e flores de cores e sabores indescritiacuteveis rios largos a se perderem no horizonte (povoados de monstros engolidores de navios nas noites escuras) animais estranhos e abundantes por todo o chatildeo paacutessaros cobrindo o ceacuteu e colorindo-o em nuvens de penas e plumas de todas as cores (LOUREIRO 2001 p 108)

Assim os mitos resultado da visatildeo do estrangeiro permearam e ainda estatildeo

presentes no imaginaacuterio sobre a populaccedilatildeo nativa considerada primitiva baacuterbara

rude preguiccedilosa e desprovida de alma O preconceito em relaccedilatildeo ao homem e agrave

natureza foi construiacutedo desde a chegada do europeu destaca Loureiro (2001 p 109)

ldquo[] de um lado a visatildeo paradisiacuteaca criada pela magia dos mitos da regiatildeo e sobre a

regiatildeo de outro a violecircncia cotidiana gestada pela permanente exploraccedilatildeo da

naturezardquo Outro mito relativo agrave natureza tambeacutem concebido externamente eacute o de

que a Amazocircnia eacute a terra da superabundacircncia o celeiro e o pulmatildeo do mundo no

entanto as poliacuteticas puacuteblicas direcionadas para a regiatildeo natildeo levam em consideraccedilatildeo

a sua biodiversidade o que prevalece satildeo praacuteticas contraditoacuterias entre

desenvolvimento e preservaccedilatildeo ambiental

A referida autora destaca que os ecossistemas amazocircnicos pela sua

fragilidade requerem o equiliacutebrio e a articulaccedilatildeo entre chuva mata e solo mas o

modelo de desenvolvimento natildeo tem considerado esses fatores e partem do princiacutepio

de que os ecossistemas satildeo ricos e autorregeneraacuteveis O desperdiacutecio de recursos

naturais gerados pelas atividades econocircmicas dentre as quais a pecuaacuteria exploraccedilatildeo

madeireira mineraccedilatildeo garimpagem e outras que apresentam diferentes impactos

sobre a natureza ldquovecircm sendo desenvolvidas indiferentemente sobre aacutereas de

florestas densas nascentes e margens de rios regiotildees de manguezais nas planiacutecies

em encostas em solos fraacutegeis ou nos raros solos bem estruturadosrdquo (LOUREIRO

2001 p 113)

Gonccedilalves (2005) identifica a coexistecircncia de dois padrotildees que foram utilizados

para a exploraccedilatildeo da Amazocircnia Rio-vaacuterzea-floresta e Rodovia-terra firmendashsubsolo O

primeiro padratildeo eacute assinalado pela exploraccedilatildeo econocircmica da floresta e sua

organizaccedilatildeo agraves margens dos rios que prevaleceu na regiatildeo ateacute a deacutecada de 1950 O

segundo caracteriza-se por um rumo diferente de ocupaccedilatildeo da regiatildeo tendo como

referecircncia a construccedilatildeo da rodovia Beleacutem-Brasiacutelia no final da deacutecada de 1950 com

atividades voltadas para a exploraccedilatildeo econocircmica da terra firme (pecuaacuteria e

agricultura) e do subsolo (atividades minerais)

66

Nesse sentido Loureiro (2001) diz que a riqueza gerada na Amazocircnia natildeo eacute

usufruiacuteda pelos seus habitantes o processo de exploraccedilatildeo da regiatildeo vem desde a

colonizaccedilatildeo inicialmente explorada economicamente pela Metroacutepole e na

atualidade pela Federaccedilatildeo A citada autora faz uma abordagem histoacuterica do processo

de exclusatildeo da populaccedilatildeo amazonida do potencial econocircmico desde o periacuteodo da

colonizaccedilatildeo ateacute a contemporaneidade

A Amazocircnia foi no passado ldquoum lugar com um bom estoque de iacutendiosrdquo para servirem de escravos uma fonte de lucros no periacuteodo das ldquodrogas do sertatildeordquo enriquecendo a Metroacutepole ou ainda a maior produtora e exportadora de borracha tornando-se uma das regiotildees mais rentaacuteveis do mundo numa certa fase Mas eacute mais recentemente que ela tem sido mais explorada seja como fonte de ouro como em Serra Pelada seja como geradora de energia eleacutetrica para exportar para outras regiotildees do Brasil e para os grandes projetos que a consomem a preccedilos subsidiados enquanto o morador da regiatildeo paga pela mesma energia um preccedilo bem mais elevado seja como uacuteltima fronteira econocircmica para a qual milhotildees de brasileiros tecircm acorrido nas uacuteltimas deacutecadas com vistas a fugirem da persistente crise econocircmica do paiacutes buscando na Amazocircnia um destino melhor (o que infelizmente poucos encontram) (LOUREIRO 2002 p 107)

No auge da borracha na Segunda metade do seacuteculo XIX os lucros natildeo ficaram

na regiatildeo as uacutenicas cidades beneficiadas foram Beleacutem e Manaus por serem sede

das empresas multinacionais que exploravam o produto Quem realmente enriqueceu

foram os empresaacuterios norte americanos e os europeus donos das grandes

corporaccedilotildees internacionais Em relaccedilatildeo agrave utilizaccedilatildeo do laacutetex extraiacutedo das seringueiras

os iacutendiosCambebes ou Omaguas que ocupavam uma vasta aacuterea do Solimotildees-

Maranon jaacute o utilizavam para fabricaccedilatildeo de utensiacutelios como sapatos capas e

couraccedilas na fabricaccedilatildeo de remeacutedios queimavam-no para clarear os dias de festas

durante a noite ldquoou dele se valiam para as flechas incendiadas que lanccedilavam sobre

as tabas inimigas por ocasiatildeo dos ataques nas guerras que se faziam Havia ainda

um uso interessante o untamento dos receacutem-nascidos no laacutetex para livraacute-los do friordquo

(REIS 1997 p 80-81)

A exploraccedilatildeo predatoacuteria provocou o raacutepido esgotamento dos seringais o que

levou agrave procura de novas aacutereas para retirada do laacutetex adentrando a mata rumo a

devastaccedilatildeo De acordo com Tavares (2011 p 107) ldquoOs seringais localizavam-se na

regiatildeo das Ilhas inclusive o Marajoacute alcanccedilando o rio Xingu o Jari o Capim o Guamaacute

o Acaraacute e o Moju Aacutereas que logo se esgotavam em decorrecircncia da precariedade do

corte das aacutervoresrdquo

A demanda do mercado internacional pela borracha em decorrecircncia do

desenvolvimento tecnoloacutegico poacutes-revoluccedilatildeo industrial a descoberta da teacutecnica da

67

vulcanizaccedilatildeo que permitiria a utilizaccedilatildeo do produto em qualquer temperatura o

incentivo agrave migraccedilatildeo nordestina que foi utilizada como a matildeo de obra a implantaccedilatildeo

de um sistema de transporte a vapor que faria a interligaccedilatildeo do interior com Beleacutem e

com a Europa a implantaccedilatildeo de firmas exportadoras e a construccedilatildeo de um porto que

escoaria o produto para o mercado externo e finalmente o sistema de aviamento

que permitiu o controle da matildeo de obra a expansatildeo de novos locais de exploraccedilatildeo e

o controle do excedente da produccedilatildeo nas pontas do sistema foram condicionantes

poliacuteticos econocircmicos e sociais relevantes para o desenvolvimento da atividade na

regiatildeo (TAVARES 2011)

A riqueza produzida pela exploraccedilatildeo da borracha natildeo beneficiou a regiatildeo como

um todo apenas as cidades que ofereciam a infraestrutura necessaacuteria para o

escoamento da produccedilatildeo rumo ao mercado externo De acordo com Tavares (2011

p 115) ldquoo sistema extrativista produziu uma estrutura social diversa ndash milhares de

pobres e uma minoria rica uma vez que a renda se formava pelo trabalho de muitos

mas se concentrava nas matildeos de pouca ndash burguesia e seringalistasrdquo Quanto agrave exploraccedilatildeo dos minerais segundo Santos (2002) ateacute o iniacutecio da

deacutecada de 1960 o conhecimento do subsolo da Amazocircnia estava restrito aos

relatoacuterios de viagem de poucos pesquisadores normalmente limitados agrave calha dos

grandes rios A atividade mineral resumia-se a alguns garimpos de diamante ouro ou

cassiterita e o maior empreendimento era a exploraccedilatildeo de mineacuterio de manganecircs no

entatildeo Territoacuterio Federal do Amapaacute pela Sociedade Brasileira de Induacutestria e Comeacutercio

de Mineacuterios de Ferro e Manganecircs (ICOMI) associados agravecompanhia estadunidense

Bethlehem Steel considerado o maior e duradouro empreendimento mineral

desenvolvido na Amazocircnia durou mais de quatro deacutecadas compreendeu os anos de

1957 a 1998 nesse periacuteodo foram extraiacutedas por volta de sessenta milhotildees de

toneladas de mineacuterio de manganecircs das minas do municiacutepio de Serra do Navio

O tamanho a confiabilidade e a produtividade da produccedilatildeo de Serra do Navio ajudaram o Brasil a ganhar e a manter durante trinta anos uma posiccedilatildeo de destaque no mercado global de produtores de mineacuterio de manganecircs Desde 1957 o Brasil produz entre 7 a 12 de todo o mineacuterio de manganecircs do mundo (DRUMMOND 2000 p 768)

Os lucros natildeo ficaram e tambeacutem natildeo foram investidos na Amazocircnia A

produccedilatildeo era dedicada ao mercado externo e internacional embora o

empreendimento tenha tido sucesso como ressalta o citado autor natildeo beneficiou a

populaccedilatildeo local muito menos a economia do Amapaacute que continuou baseada no

68

extrativismo ldquo[] estimei a receita bruta da ICOMI entre 1957 e 1994 em mais de trecircs

bilhotildees de doacutelares norte-americanos []rdquo (idem p 760) Constata-se desta forma

que a regiatildeo serviu como fornecedora de mateacuteria-prima para o mercado mundial

confirmando a tese defendida por Loureiro (2002 p 107) de que ldquoa Amazocircnia foi

sempre mais rentaacutevel e por isso mais uacutetil economicamente agrave Metroacutepole no passado

e hoje agrave Federaccedilatildeo do que ela o tem sido para a regiatildeordquo

O impacto ambiental com danos irreparaacuteveis aos ecossistemas tambeacutem foram

levantados por Drummond (2000) dentre os quais destancam-se desmatamento

escavaccedilatildeo de solos desmonte de morros erosatildeo assoreamento de rios mudanccedila

de curso de pequenos rios construccedilatildeo de lagoas artificiais para deposiccedilatildeo disposiccedilatildeo

final de rejeitos gerados pelo processamento do mineacuterio disposiccedilatildeo de mineacuterios de

baixo teor e de esteacuteril Esses dados enfatizam que o modelo econocircmico posto em

accedilatildeo na regiatildeo tem ignorado e menosprezado a diversidade dos inuacutemeros

ecossistemas amazocircnicos

Segundo Monteiro (2005) as minas de manganecircs da Serra do Navio foi o uacutenico

mineacuterio explorado industrialmente por aproximadamente duas deacutecadas na Amazocircnia

oriental brasileira Este quadro mudou em decorrecircncia das poliacuteticas desencadeadas

pelo governo militar de 1964 baseadas na entrada de capitais destinados agrave ocupaccedilatildeo

do espaccedilo amazocircnico assim como nos investimentos em projetos para a exploraccedilatildeo

mineral com consequente atraccedilatildeo dos fluxos migratoacuterios por meio de uma poliacutetica

governamental voltada para a integraccedilatildeo da Amazocircnia apoiada pelos incentivos

fiscais e da melhoria dos meios de comunicaccedilatildeo e transporte

Assim os primeiros investimentos na Amazocircnia foram feitos por grandes corporaccedilotildees industriais multinacionais Tinham como objetivo principal a verificaccedilatildeo das potencialidades minerais dessa vasta regiatildeo ainda desconhecida considerando apenas o seu uso futuro Estava presente a visatildeo estrateacutegica dos recursos minerais pois se buscava alternativas de suprimento para atender ao futuro crescimento do mercado ou prevenir a escassez decorrente de eventual crise nos paiacuteses produtores como decurso das poliacuteticas nacionalistas em vigor na eacutepoca Dessa forma eacute que os primeiros investimentos foram destinados agrave busca de mineacuterio de alumiacutenio (cujo mercado estava em expansatildeo) e de manganecircs (essencial para a induacutestria do accedilo) ambos dependentes da produccedilatildeo de poucos paiacuteses (SANTOS 2002 p 125)

Ainda como poliacutetica de desenvolvimento de acordo com Monteiro (2005) o

Governo Federal criou o Programa Grande Carajaacutes no ano de 1980 com a finalidade

de acelerar o desenvolvimento dos projetos minero-metaluacutergicos O referido programa

foi financiado pelos recursos estatais e os advindos dos incentivos fiscais e de

69

creacuteditos e consistiu na monitoraccedilatildeo e aplicabilidade dos projetos de exploraccedilatildeo

mineral em desenvolvimento dentre os quais Ferro Carajaacutes a Albras a Alunorte a

Alumar e a Usina de Tucuruiacute O autor destaca a extraccedilatildeo do mineacuterio de ferro da Serra

dos Carajaacutes em 1977 no Estado do Paraacute pela Companhia Vale do Rio Doce

Para tanto montou-se uma grandiosa estrutura que ocasionou desmatamento

poluiccedilatildeo dos recursos hiacutedricos com a construccedilatildeo ldquode minas instalaccedilotildees de

beneficiamento e um paacutetio de estocagem as instalaccedilotildees portuaacuterias e a Estrada de

Ferro Carajaacutes cujos 890 quilocircmetros de extensatildeo interligam a Serra dos Carajaacutes ao

terminal mariacutetimo da Ponta da Madeira em Satildeo Luiacutes (MA)rdquo(MONTEIRO 2005 p

190)

Fotografia 1 -Mina de ferro Carajaacutes no Estado do Paraacute

Na foto o impacto ambiental causado pela extraccedilatildeo do mineacuterio de ferro como a abertura de grandes crateras que modificam o relevo e removem totalmente a cobertura vegetal deixando as aacutereas deseacuterticas O uso de produtos quiacutemicos contaminam a rede hiacutedrica e o solo bem como os lenccediloacuteis freaacuteticosFonte T Photography

O ouro foi outro mineral bastante explorado desde o seacuteculo XIX cuja

exploraccedilatildeo comeccedilou a ser intensificada na deacutecada de 1960 principalmente no Paraacute

Neste Estado a partir da deacutecada de 1980 em Carajaacutes a corrida pelo ouro atraiu

milhotildees de garimpeiros incentivada segundo Santos (2002) pelo agravamento da

miseacuteria de boa parte da populaccedilatildeo brasileira principalmente a rural e nordestina

decorrente da falta de uma soluccedilatildeo adequada para a questatildeo agraacuteria O autor enfatiza

outros fatores que contribuiacuteram para a expansatildeo da atividade garimpeira por toda a

Amazocircnia dentre os quaisressalta-se a elevaccedilatildeo do preccedilo do ouro o atrativo

70

despertado pela ampla divulgaccedilatildeo na imprensa da descoberta de depoacutesitos ricos

como serra Pelada e os estiacutemulos das autoridades governamentais Entretanto

devido agrave exaustatildeo dos depoacutesitos superficiais mais ricos agrave queda do preccedilo do ouro e

agrave sensiacutevel reduccedilatildeo da diferenccedila cambial esse modelo social e econocircmico de

ocupaccedilatildeo da Amazocircnia encontra-se em decliacutenio Quanto agrave situaccedilatildeo social dos

garimpeiros

Na Amazocircnia os milhares de migrantes que foram atraiacutedos pela lsquofebre do ourorsquo da deacutecada passada estatildeo engrossando as legiotildees dos lsquosem terrarsquo que clamam por uma soluccedilatildeo para a questatildeo agraacuteria num paiacutes com dimensotildees continentais mas onde as elites dominantes desde o tempo das ldquocapitanias hereditaacuteriasrdquo tecircm na posse de grandes extensotildees territoriais uma das formas de seu poder poliacutetico O garimpo na Amazocircnia correspondeu a simples paliativo apenas adiando por duas deacutecadas ndash conforme jaacute era previsiacutevel na eacutepoca ndash a necessidade de uma soluccedilatildeo para a questatildeo agraacuteria (SANTOS 2002 p 127)

Aleacutem do manganecircs do ferro e do ouro outro mineral bastante explorado foi a

cassiterita Afirma Santos (2002) que a cassiterita tambeacutem na deacutecada de 1960 em

Rondocircnia atraiu milhares de garimpeiros Posteriormente em 1970 apareceram

outros distritos estaniacuteferos que foram explorados por mineradoras jaacute em 1976 os

garimpeiros invadiram terras indiacutegenas dos Yanomami para exploraccedilatildeo do mineral

Segundo Albert (2004) o contato inicial desta etnia com os natildeo iacutendios ocorreu por

volta de 1955 Os programas e projetos desenvolvidos na regiatildeo bem como

construccedilatildeo de estradas as fazendas serrarias canteiros de obras e os garimpos

intensificaram os contatos e interfeririam substantivamente na cultura desse povo

bem como gerou conflitos constantes pela posse da terra Enfatiza o citado autor que

a corrida do ouro dos anos 1980 em Roraima dizimou 15 da populaccedilatildeo indiacutegena

e que no periacuteodo de 1987 a 1990 a quantidade de garimpeiros cerca de 40000

(quarenta mil) equivalia a cinco vezes o numero de iacutendios yanomami ldquoEmbora a

intensidade dessa corrida do ouro tenha diminuiacutedo muito a partir do comeccedilo dos anos

1990 ateacute hoje nuacutecleos de garimpagem continuam encravados na terra yanomami de

onde seguem espalhando violecircncia e graves problemas sanitaacuterios e sociaisrdquo

(ALBERT 2004 p 3) De acordo com os documentos e pesquisas arqueoloacutegicas foi

estimado o total de trecircs a cinco milhotildees de iacutendios na Amazocircnia brasileira no iniacutecio da

colonizaccedilatildeo

Para Almeida Junior (1996) a gecircnese desses conflitos estaacute no mercantilismo e

no capitalismo colonial Atualmente os conflitos entre povos indiacutegenas versus grupos

econocircmicos que desejam explorar e capitalizar os recursos existentes em suas

71

terrastecircm produzido natildeo somente a violecircncia fiacutesica com casos que culminam em

mortes dos indiacutegenas ldquomas muitas vezes a violecircncia simplesmente eacute expressa na

subjugaccedilatildeo do direito dos povos de determinar o uso de seu ambiente e o brutal

padratildeo de extraccedilatildeo de recursosrdquo (idem p 563)

Ademais os danos ambientais nas terras indiacutegenas nos uacuteltimos anos

decorrentes de desmatamentos ilegais da instalaccedilatildeo irregular de madeireiras e

principalmente da presenccedila constante de atividades agropecuaacuterias no entorno das

aldeias vecircm contribuindo para fomentar os conflitos agraacuterios Afirma Heck et al

(2005 p 238) que as mineradoras e companhias de petroacuteleo ldquoestatildeo afiando suas

unhas para cavar cada vez mais fundo e mais raacutepido para acumular ao maacuteximo seu

capital globalizadordquo Continua o referido autor dizendo que as empresas que exploram

mineacuterios fazem barganha junto aos poliacuteticos para regulamentar a exploraccedilatildeo mineral

em terras indiacutegenas

Haacute pedidos de pesquisa e exploraccedilatildeo mineral sobre terras indiacutegenas de toda a Amazocircnia [] Hoje o avanccedilo capitalista sobre a Amazocircnia eacute como uma fera quase indomaacutevel Motosserras e tratores fazem parte de programas oficiais de devastaccedilatildeo As grandes serrarias que jaacute exauriram o potencial madeireiro em outras regiotildees do mundo agora seguem resolutas em direccedilatildeo agrave Amazocircnia vestidas em peles de cordeiro com o discurso da ldquoexploraccedilatildeo devastaccedilatildeo sustentaacutevelrdquo ostentando diplomas de ldquocertificaccedilatildeo verderdquo e com projetos de ldquoauto sustentabilidaderdquo na Amazocircnia (2005 p 238)

Mas eacute na atualidade que a Amazocircnia tem sido mais explorada principalmente

o potencial de seus rios e cachoeiras O governo Federal e as empresas que exploram

o setor eleacutetrico estatildeo investindo massivamente na construccedilatildeo de Hidreleacutetricas na

regiatildeo Somente em 2012 foram planejadas a construccedilatildeo de vinte e trecircs novas

hidreleacutetricas totalizando vinte e nove somando com as jaacute existentes que juntas vatildeo

gerar 38292 MW o equivalente a metade da energia gerada pelas hidreleacutetricas do

paiacutes Dentre as maiores hidreleacutetricas destacam-se Balbina Tucuruiacute Belo Monte

Curuaacute-Una e Teles Pires

Segundo Bittencourt (2012) somente no estado do Amazonas a construccedilatildeo

dessas hidreleacutetricas iraacute inundar em meacutedia de 300 a 400 kmsup2 em cada aacuterea de

barragem construiacuteda e transferir por volta de 112 mil pessoas que vivem nas aacutereas do

entorno da construccedilatildeo Em toda Amazocircnia ficaratildeo debaixo drsquoaacutegua cerca de 937555

kmsup2 de floresta

No Estado do Paraacute estaacute sendo construiacuteda a Hidreleacutetrica de Belo Monte

considerada a terceira maior do mundo Suas obras foram iniciadas em 2011 e de

72

acordo com um dossiecirc elaborado pelo Instituto Socioambiental (ISA) eacute a principal

obra do Plano de Aceleraccedilatildeo do Crescimento (PAC) ldquoinstalada em uma regiatildeo com

ausecircncia histoacuterica do Estado Belo Monte continua a ser cinco anos depois do leilatildeo

para construccedilatildeo e operaccedilatildeo da usina siacutembolo de inadimplecircncia socioambiental e

desrespeito agraves populaccedilotildees atingidasrdquo(ISA p 4 2015) O dossiecirc apresenta dados

referentes ao aumento da populaccedilatildeo do municiacutepio de Altamira que saltou de cem mil

para cento e cinquenta mil habitantes atraiacutedos pela geraccedilatildeo de empregos diretos e

indiretos A licenccedila foi concedida pelo governo federal com a promessa de execuccedilatildeo

de medidas de mitigaccedilatildeo e compensaccedilatildeo conhecidas como condicionantes

socioambientais de viabilidade da usina

Dentre as medidas compensatoacuterias previstas estavam as lsquoaccedilotildees antecipatoacuteriasrsquo de sauacutede educaccedilatildeo e saneamento baacutesico que segundo o discurso oficial deveriam preparar a regiatildeo para receber a obra prevenindo e minimizando os principais impactos sobre esses serviccedilos puacuteblicos decorrentes do aumento populacional Estimava-se que aproximadamente 74 mil pessoas seriam atraiacutedas pela obra em apenas cinco anos o que deveria praticamente dobrar a populaccedilatildeo da regiatildeo (conforme o Censo 2010 cerca de 100 mil habitantes) (ISA 2015 p 6)

Em relaccedilatildeo ao impacto ambiental

[] foi definido um Projeto Baacutesico Ambiental(PBA) detalhando os planos

programas e projetos socioambientais previstos nos Estudos de Impacto Ambiental e respectivo Relatoacuterio de Impacto Ambiental (EIA-Rima) destinados a prevenir mitigar e compensar os impactos da obra inclusive em relaccedilatildeo aos povos indiacutegenas (Projeto Baacutesico Ambiental do Componente Indiacutegena - PBA-CI) No caso de Belo Monte os custos para a implementaccedilatildeo do PBA (incluindo o PBA-CI) foram estimados no valor de R$ 32 bilhotildees(ISA 2015 p 6)

O que natildeo ocorreu a contento de acordo com o referido dossiecirc as obras e

accedilotildees previstas nas medidas compensatoacuterias que deveriam ser desenvolvidas pela

empresa Norte Energia responsaacutevel pela obra natildeo impediram os impactos negativos

sobre a populaccedilatildeo dos municiacutepios atingidos principalmente de Altamira Foram

registrados aumentos nos casos de violecircncia entre 2011 e 2014 que cresceu em 80

No que concerne agrave sauacutede as obras de construccedilatildeo e reforma natildeo foram suficientes

para evitar a superlotaccedilatildeo de postos de sauacutede e hospitais No caso da infraestrutura

de educaccedilatildeo os equipamentos construiacutedos e reformados tampouco conseguiram

atingir plenamente os objetivos de responder ao aumento de demanda e evitar perda

de qualidade do ensino

Quanto ao reassentamento da populaccedilatildeo das aacutereas rural e urbana mais de

oito mil famiacutelias atingidas pela barragem foram obrigadas a abandonar suas terras e

73

casas ldquoseja em razatildeo do iniacutecio da construccedilatildeo das estruturas da usina seja devido ao

futuro enchimento do reservatoacuteriordquo (ISA 2014 p 8) Este processo de saiacuteda do local

onde sempre viveram tem sido traumaacutetico para a populaccedilatildeo local

O programa de realocaccedilatildeo urbanatem sido desorganizado inadequado e pouco transparente Haacute mais de um ano praticamente 3000 famiacutelias jaacute residem nos novos loteamentos (chamados de Reassentamentos Urbanos Coletivos - RUCs) sem serviccedilos puacuteblicos adequados incluindo transporte sauacutede e educaccedilatildeo Outras tantas por sua vez esperam a realocaccedilatildeo em um processo aparentemente subdimensionado pelo empreendedor que inicialmente cadastrou 5141 ocupaccedilotildees consideradas atingidas mas contratou a construccedilatildeo de apenas 4100 casas Note-se ainda que haacute famiacutelias que denunciam sequer terem sido cadastradas (ISA 2014 p 8)

As famiacutelias que natildeo aceitaram ir para o loteamento foram indenizadas mas o

valor recebido revelou-se insuficiente para a compra de outros terrenos ou casas O

dossiecirc afirma que essas famiacutelias natildeo receberam assistecircncia juriacutedica por parte do

poder puacuteblico em relaccedilatildeo aos seus direitos ficando agrave mercecirc do que a empresa

resolveu pagar

Em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo rural ribeirinhos e agricultores uma das maiores

viacutetimas da hidreleacutetrica o Projeto Baacutesico Ambiental apresentado pela empresa

garantia os reassentamentos rurais coletivos quena praacuteticanatildeo foram

desenvolvidos segundo o plano as famiacutelias deveriam escolher uma forma de

compensaccedilatildeo mas sem informaccedilatildeo adequada sem compreender realmente o

verdadeiro interesse da empresa e ainda pressionada para sair ou vender suas terras

[] acabaram aceitando as baixas indenizaccedilotildees Natildeo aceitaacute-las significaria litigar judicialmente contra uma grande empresa sem acesso a assistecircncia juriacutedica gratuita ndash natildeo haacute Defensoria Puacuteblica fixada na regiatildeo e a itinerante soacute atende casos urbanos ndash ou aceitar a transferecircncia para um reassentamento que aleacutem de estar localizado a quilocircmetros do rio Xingu sequer comeccedilou a ser implantado (ISA 2014 p 8)

Assim a transformaccedilatildeo da populaccedilatildeo ribeirinha em populaccedilotildees

exclusivamente urbanas ou agricultoras vem se consolidando devido agrave ausecircncia de

opccedilotildees que assegurem sua manutenccedilatildeo na beira do rio

Fotografia 2 - Reassentamento coletivo urbano para os atingidos pela usina

74

De acordo com o dossiecirc do ISA o loteamento natildeo atende as necessidades baacutesicas da populaccedilatildeo reassentada pois os serviccedilos puacuteblicos ofertados incluindo transporte sauacutede e educaccedilatildeo satildeo insuficientes para a demanda Fonte Andreacute Villas-BocircasISA

Os ribeirinhos que natildeo foram atingidos pela barragem tambeacutem sofrem os

impactos ambientais do empreendimento tais como a diminuiccedilatildeo e o

desaparecimento de determinadas espeacutecies de peixes provocado pelo barulho

emanado das dinamites e das luzes dos gigantescos holofotes que iluminam a noite

no canteiro da obra de forma que os peixes que viviam na escuridatildeo da noite migram

para outros lugares Pela ausecircncia de fiscalizaccedilatildeo o consumo de quelocircnios que faz

parte da culinaacuteria local estaacute ameaccedilado devido agrave caccedila predatoacuteria das tartarugas

Quanto agrave populaccedilatildeo indiacutegena a empresa para conseguir o licenciamento do

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) propocircs-se a executar um Plano Baacutesico

Ambiental do Componente Indiacutegena (PBA-CI) e tambeacutem a Fundaccedilatildeo Nacional do

Iacutendio (Funai) apresentou algumas medidas que precisavam ser tomadas pela empresa

e pelo poder puacuteblico para diminuiacuterem os impactos na qualidade de vida dos iacutendios

afetados pelo empreendimento O dossiecirc aponta que a maioria dessas accedilotildees ainda

natildeo foi efetivada e que a execuccedilatildeo plena do PBA-CI comeccedilou com mais de dois anos

de atraso em relaccedilatildeo ao iniacutecio da instalaccedilatildeo da usina

As despesas da empresa com os povos indiacutegenas foram contestadas pelo

Ministeacuterio Puacuteblico Federal que ldquoCondenou a estrateacutegia da Norte Energia de entregar

produtos como TVs barcos alimentos industrializados e oacuteleo diesel agraves comunidades

indiacutegenas aleacutem de uma lsquomesadarsquo de R$ 30 mil por aldeiardquo (ISA 20015 p 10) Assim

os recursos financeiros que deveriam ser investidos num plano de Etno-

desenvolvimento como forma de amenizar os impactos socioambientais foram

usados para doaccedilatildeo de bens materiais com o intuito de controlar temporariamente os

75

processos de organizaccedilatildeo e resistecircncia indiacutegena ldquodeixando como legado a

desestruturaccedilatildeo social e o enfraquecimento dos sistemas de produccedilatildeo de alimentos

nas aldeias colocando em risco a sauacutede a seguranccedila alimentar e a autonomia desses

povosrdquo (ISA 20015 p 10)

Em vez da oferta de serviccedilos puacutebicos verificou-se uma poliacutetica clientelista que

teve como reflexo o abandono de roccedilas da pesca e da caccedila aumento no periacuteodo de

2010 a 2012 em 200no atendimento agrave sauacutede dos indiacutegenas na cidade resultado da

mudanccedila nos haacutebitos alimentares com a introduccedilatildeo massiva de alimentos

industrializados no mesmo periacuteodo registrou-se o crescimento em 127 de

desnutriccedilatildeo infantil nas aldeias onde ainda faltam escolas e postos de sauacutede O

dossiecirc elaborado pelo ISA descreve a quantidade de produtos que foram distribuiacutedos

aos onze povos indiacutegenas da regiatildeo ldquo21milhotildees de litros de combustiacuteveis e

lubrificantes 366 barcos e voadeiras 42 veiacuteculos 578 motores para barcos 98

geradores e inuacutemeros outros bens de consumo que vatildeo desde TVs de plasma a

refrigerantesrdquo (idem p 12)

Fotografia 3 - Vista aeacuterea da construccedilatildeo da barragem de Belo Monte em Altamira Paraacute

Fonte Juan DoblasISAReutersVEJA

A imagem acima retrata que a construccedilatildeo da hidreleacutetrica modificou a paisagem

natural mudou o curso dos rios inundou as terras dos iacutendios ribeirinhos pescadores

e garimpeiros interferiu na migraccedilatildeo e reproduccedilatildeo de vaacuterias espeacutecies de peixes e

causa a morte de outras assim como o desaparecimento de animais que dependem

da floresta que passou a ficar inundada pelas aacuteguas represadas No tocante ao peixe

76

principal alimento das populaccedilotildees tradicionais assim como da populaccedilatildeo urbana da

regiatildeo a aacutegua liberada pelas represas por natildeo terem mais oxigecircnio causam a morte

das espeacutecies locais Fearnside (2014 p 18) cita o caso da hidreleacutetrica de Balbina ldquoA

perda praticamente total de peixes por falta de oxigecircnio se estendeu para 145 km em

Balbina enquanto em Tucuruiacute por 60 km []rdquo Isso gera fome pois sem ter o que

comer e como sobreviver essas populaccedilotildees satildeo obrigadas a migrarem para a cidade

e engrossam os bolsotildees de pobreza

Essa situaccedilatildeo tambeacutem foi vivenciada pelos moradores do municiacutepio de Ferreira

Gomes no estado do Amapaacute no ano de 2015 Dados da Secretaria de Meio Ambiente

estimam que morreram em media 150 quilos de peixe ao longo da margem do rio

Araguari Segundo Santiago (2015) a morte dos peixes pode ter sido causada pela

abertura das comportas da hidreleacutetrica Ferreira Gomes Energia ldquoa suspeita eacute que

manobras irregulares nas comportas podem ter liberado aacutegua acima do permitido

resultando no excesso de oxigecircnio em determinado periacutemetro do riordquo (p 1)

Fotografia 4 - Peixes mortos ao longo das margens do Rio Araguari no municiacutepio de Ferreira Gomes estado do Amapaacute

Fonte Raimundo Silva 2015

Desta forma o impacto nas condiccedilotildees de vida dos moradores do entorno eacute

brutal pois a subsistecircncia baseada na pesca e na agricultura que dependiam do rio

e da floresta torna-se inviaacutevel Segundo Fearnside (2014) quando uma represa eacute

construiacuteda os residentes a jusante ao longo do rio sofrem impactos severos

77

enquanto o reservatoacuterio estaacute enchendo o trecho abaixo da represa frequentemente

seca completamente assim negando aos residentes ribeirinhos o acesso agrave aacutegua e agrave

pesca A floresta aleacutem de ser inundada pelas aacuteguas das barragens tambeacutem eacute

desmatada para construccedilatildeo de estradas para o acesso agraves barragens e pela populaccedilatildeo

deslocada para outros pontos da regiatildeo Assegura ainda o autor que as barragens

emitem gases de efeito estufa ldquoo dioacutexido de carbono eacute emitido pela decomposiccedilatildeo de

aacutervores mortas por inundaccedilatildeo e o oacutexido nitroso e especialmente o metano satildeo

emitidos pela aacutegua nos reservatoacuterios e da aacutegua que passa atraveacutes das turbinas e

vertedourosrdquo (FEARNSIDE 2014 p 10)

Dentre as populaccedilotildees nativas os povos indiacutegenas satildeo as maiores viacutetimas As

construccedilotildees das barragens geraram a diminuiccedilatildeo dos recursos pesqueiros da caccedila

de animais silvestres e a contaminaccedilatildeo das aacuteguas dos rios lagos e igarapeacutes

A barragem de Tucuruiacute no Rio de Tocantins inundou parte de trecircs reservas indiacutegenas (Parakanatilde Pucuruiacute e Montanha) e sua linha de transmissatildeo cortou outras quatro (Matildee Maria Trocaraacute Krikati e Cana Brava) A Aacuterea Indiacutegena Trocaraacute habitada pelos Asuriniacute do Tocantins estaacute situada a 24 km ajusante da represa [] No caso da hidreleacutetrica de Balbina foi inundada parte da reserva Waimiri-Atroari Mais dramaacutetica eacute a previsatildeo de impactos sobre povos indiacutegenas caso que sejam construiacutedas represas no rio Xingu (FEARNSIDE 2014 p 16)

De acordo com Guerra (2007) a Hidreleacutetrica de Tucuruiacute mudou drasticamente

o potencial hidroviaacuterio da bacia do rio Tocantins os ecossistemas dos rios e florestas

e contribuiu para o desaparecimento de espeacutecies animais e vegetais Fearnside

(2014) tambeacutem destaca a retirada de 23871 pessoas para a construccedilatildeo da referida

hidreleacutetrica assim como a construccedilatildeo da barragem de Marabaacute prevista para ser

concluiacuteda ainda este ano que deslocou aproximadamente 40000 (quarenta mil)

pessoas A retirada da populaccedilatildeo natildeo ocorre pacificamente mas apesar da

resistecircncia o poder poliacutetico e econocircmico do governo federal e das empresas que

exploram o setor energeacutetico imperam O deslocamento abrange a populaccedilatildeo

tradicional da Amazocircnia que vive e sobrevive as margens dos rios e dele tiram sua

subsistecircncia ou seja dependem do rio para sobreviver O autor problematiza

questotildees ligadas ao impacto social da expulsatildeo de pessoas que viveram por geraccedilotildees

em um determinado lugar cuja habilidade como a pesca a caccedila e a roccedila natildeo os torna

adequados para viverem em outros contextos

Desta forma a Amazocircnia foi marcada por conflitos sociais e impactos

ambientais oriundo dos projetos desenvolvidos tanto pelo governo Federal como

pelas empresas multinacionais Segundo Becker (2007) dentre os conflitos destaca-

78

se as disputas pela posse de terras que envolveram iacutendios fazendeiros e

garimpeiros desmatamento das florestas para a construccedilatildeo da malha viaacuteria e tambeacutem

para a agricultura capitalista (plantaccedilatildeo de soja eucalipto entre outras monoculturas

destinadas ao mercado internacional) poluiccedilatildeo dos rios por meio da extraccedilatildeo de

mineacuterios e dos produtos quiacutemicos utilizados pela mineraccedilatildeo e na agricultura etc

Os impactos ambientais gerados pela exploraccedilatildeo econocircmica dos recursos

naturais agravado pela visatildeo homogecircnea do espaccedilo amazocircnico exterminaram vaacuterias

espeacutecies que poderiam ser preservadas a partir da valorizaccedilatildeo dos saberes das

populaccedilotildees tradicionais (iacutendios ribeirinhos comunidades quilombolas) que

conviveram e convivem haacute seacuteculos explorando a floresta sem causar grandes danos

aos ecossistemas No entanto por serem saberes subalternizados considerados

inferiores satildeo invisibilizados O que prevaleceu no passado foi o conhecimento do

colonizador no periacuteodo da colonizaccedilatildeoe na contemporaneidade a visatildeo das grandes

empresas nacionais e multinacionais que decidem sobre os rumos que daratildeo a regiatildeo

sem levar em consideraccedilatildeo a populaccedilatildeo local Assim como criam os mitos da

Amazocircnia como reserva ecoloacutegica natureza exuberante futuro do mundo dentre

outros que permeiam o imaginaacuterio social a partir de uma concepccedilatildeo colonialista

Essa concepccedilatildeo se embasa na diferenccedila colonial que natildeo leva em

consideraccedilatildeo a pluralidade a diversidade e a heterogeneidade como as principais

caracteriacutesticas da regiatildeo daiacute o olhar monocultural e eurocecircntrico A heterogeneidade

humana dos povos que habitam as Amazocircnias eacute marcante bem como a diversidade

geograacutefica pois existem as Amazocircnias dos rios dos lagos e igarapeacutes as das

florestas as dos campos as dos cerrados a urbana e rural O que nos leva a afirmar

que estes territoacuterios satildeo multiculturais constituiacutedos na sua gecircnese a partir da

mesticcedilagem entre iacutendios negros e brancos que segundo Adams et al (2006) gerou

o caboclo tipo humano caracteriacutestico da regiatildeo O caboclo foi e eacute ainda visto de

maneira pejorativa como descreve Souza (2012 p 28) ao afirmar que no discurso

antropoloacutegico ele eacute visto como produto nocivo da civilizaccedilatildeo

Esta mesma ideia estaacute presente nos dicionaacuterios que apresenta o caboclo como iacutendio mesticcedilo e trabalhador do meio rural visto pelo senso comum e descrito pelos viajantes que passaram pela regiatildeo no periacuteodo da colonizaccedilatildeo como apaacuteticos e indolentes responsaacuteveis pela proacutepria pobreza Portanto o termo caboclo vem carregado de uma grande carga de discriminaccedilatildeo As diversas formas de racismo que ainda existem no Brasil contribuem com a ideia de superioridade das raccedilas ldquopurasrdquo e inferioridade dos mesticcedilos ndash caboclos

79

Essa visatildeo preconceituosa gerou no imaginaacuterio social a imagem de que os

povos da Amazocircnia satildeo primitivos atrasados em termos de desenvolvimento a partir

de uma visatildeo capitalista considerados inferiores em relaccedilatildeo aos natildeo amazonidas

que para serem distinguidos dos outros ldquosuperioresrdquo satildeo denominados de caboclos

responsaacuteveis pela pobreza em que se encontram por serem preguiccedilosos e indolentes

daiacute o socorro vindo das empresas multinacionais e do governo federal por meio dos

projetos para a exploraccedilatildeo do potencial econocircmico da regiatildeo o que retrata a

colonialidade do poder18

Dentre os que satildeo chamados de caboclos estatildeo os ribeirinhos povos que

habitam as margens dos rios lagos e igarapeacutes que compotildeem a hidrografia da regiatildeo

A seguir retratamos a gecircnese desse sujeito bem como sua maneira de

viverconviversobreviver na Amazocircnia ribeirinha

22 POVOS DA AMAZOcircNIA os ribeirinhos

Jeito Tucuju19

Quem nunca viu o Amazonas Nunca iraacute entender a vida de um povo

De alma e cor brasileiras Suas conquistas ribeiras

Seu ritmo novo Natildeo contaraacute nossa histoacuteria por natildeo saber e por natildeo fazer juz

Natildeo curtiraacute nossas festas tucujus Quem avistar o Amazonas nesse momento e souber transbordar de tanto amor

Este teraacute entendido o jeito de ser do povo daqui

Quem nunca viu o Amazonas Jamais iraacute compreender a crenccedila de um povo

Sua ciecircncia caseira a reza das benzedeiras o dom milagroso

Natildeo contaraacute nossa histoacuteria

Realmente quem nunca viu o Amazonas jamais vai entender a vida e a crenccedila

de um povo sua ciecircncia caseira e a crenccedila na reza das benzedeiras capazes de curar

as doenccedilas causadas pelos seres encantados que vivem na mata e nas aacuteguas O ver

eacute o mergulhar no universo sociocultural dos povos ribeirinhos que (re) constroem

cotidianamentesuas vidas nas margens desse majestoso Rio consideradoo maior

em volume de aacutegua eem extensatildeo do mundo o qualpossuiaproximadamente 1100

afluentes que formam a maior bacia hidrograacutefica mundial O rio Amazonas atravessa

18A colonialidade do poder refere-se aos padrotildees de poderbaseados na hierarquia na formaccedilatildeo e distribuiccedilatildeode

identidades (brancos mesticcedilos iacutendios negros) Aprofundamos a discussatildeo em relaccedilatildeo a colonialidade do poder no primeiro capitulo 19 Musica dos compositores Amapaenses Val MilhomemJoatildeozinho Gomes

80

o Peru Brasil Colocircmbia Boliacutevia Equador Guiana e Venezuela No Brasil banha os

estados do Acre Amazonas Amapaacute Rondocircnia Roraima Paraacute e Mato Grosso

Para ldquoentender a vida de um povordquo primeiro eacute preciso saber que o Rio tem papel

vital na organizaccedilatildeo social cultural religiosa e econocircmica dos ribeirinhos Os rios satildeo

as ruas estradas rodovias por onde se navega para ir agrave escola agrave cidade e a outros

lugares do rio se retira o peixe o camaratildeo a lagosta a aacutegua para beber fazer

comida higiene pessoal e da casa No rio tambeacutem estatildeo os seres encantados que

fazem parte do imaginaacuterio desse povo

Neste estudo fizemos uma abordagem histoacuterica referente agrave constituiccedilatildeo da

populaccedilatildeo que vive agraves margens dos rios na Amazocircnia Iniciamos com uma abordagem

referente agrave gecircnese do brasileiro a partir das matrizes eacutetnicas que lhe deram origem

para posteriormente situar a populaccedilatildeo amazocircnica

O povo brasileiro de acordo com Ribeiro (2006) eacute resultado do encontro do

colonizador com os iacutendios e negros africanos que deram origem a um povo mesticcedilo

com traccedilos culturais distintos de suas matrizes formadoras

A sociedade e a cultura brasileira satildeo conformadas como variantes da versatildeo lusitana da tradiccedilatildeo civilizatoacuteria europeia ocidental diferenciadas por coloridos herdados dos iacutendios americanos e dos negros africanos O Brasil emerge assim como um renovo mutante remarcado de caracteriacutesticas proacuteprias mas atado geneticamente agrave matriz portuguesa cujas potencialidades insuspeitadas de ser e de crescer soacute aqui se realizariam plenamente (RIBEIRO 2006 p 18)

O brasileiro remarcado por caracteriacutesticas proacuteprias como afirma o autor eacute um

povo em que a diversidade eacute o aspecto fundamental para issoa imigraccedilatildeo

principalmente europeia aacuterabe e japonesa bem como os vieses ecoloacutegico e

econocircmico contribuiacuteram significativamente O ecoloacutegico gerou paisagens humanas

distintas nas quais as condiccedilotildees ambientais obrigaram a adaptaccedilotildees eacute o caso do

sertatildeo nordestino e da Amazocircnia por exemplo O econocircmico criou formas de

produccedilatildeo que acirraram a divisatildeo social do trabalho e os papeis sociais

correspondentes Por conseguinte esses fatores permitem distinguir os brasileiros

ldquosertanejos do Nordeste caboclos da Amazocircnia crioulos do litoral caipiras do

Sudeste e Centro do paiacutes gauacutechos das campanhas sulinas aleacutem de iacutetalo-brasileiros

teuto-brasileiros nipo-brasileirosrdquo (RIBEIRO 2006 p 19) Dentre as identidades

apontadas pelo citado autor focalizamos neste estudo a cabocla considerada tiacutepica

da Amazocircnia

81

A origem da populaccedilatildeo ribeirinha estaacute atrelada ao processo de povoamento da

Amazocircnia Segundo Bezerra Neto(2013) a apropriaccedilatildeo pelos portugueses desta

regiatildeo envolveu as diversas etnias indiacutegenas por meio de variadas estrateacutegias de

dominaccedilatildeo assim como os colonizadores europeus e os escravos oriundos da Aacutefrica

Para o autor ldquoa mesticcedilagem envolvia diversos segmentos sociais e eacutetnicos da

Colocircnia A constituiccedilatildeo de mocambos formados por iacutendios africanos colonos brancos

e mesticcedilos de todos os tons constituiu-se exemplo desta realidaderdquo (p 34)

A Coroa portuguesa estimulou o casamento dos colonizadores com os nativos

o que gerou uma populaccedilatildeo mesticcedila fato ocorrido em 1755 quando o Rei de Portugal

D Joseacute I por meio de seu ministro Marquecircs de Pombal autoriza e daacute feacute ao documento

redigido por Francisco Xavier de Mendonccedila Furtado chamado Diretoacuterio no qual

estabelece ldquo[] o incentivo ao casamento de colonos brancos com indiacutegenas [] a

substituiccedilatildeo da liacutengua geral pela liacutengua portuguesa [] e puniccedilatildeo contra

discriminaccedilotildees []rdquo(FURTADO 1997 p 117)

Sobre este assunto afirma Rodrigues (2004 p 23) ldquoO bioacutetipo caracteriacutestico do

ribeirinho amazocircnida e seu modo de vida [] satildeo frutos da mescla de indiviacuteduos de

etnias e culturas diferentes que conformaram o processo histoacuterico de formaccedilatildeo

territorial e populacionalrdquo Jaacute Ribeiro (2006) ao abordar o processo de ocupaccedilatildeo e

constituiccedilatildeo das populaccedilotildees da Amazocircnia conclui que a formaccedilatildeo cultural deste povo

estaacute fundada nas mesmas matrizes baacutesicas citadas acima e pela migraccedilatildeo oriunda do

nordeste ao final do seacuteculo XIX e no periacuteodo de 1943 a 1945 motivada pela batalha

da borracha

As migraccedilotildees nordestinas para a Amazocircnia sempre estiveram ligadas agraves questotildees de conflitos no campo coincidindo com os periacuteodos de seca e os pequenos agricultores satildeo os que primeiro sentem os efeitos da mesma Aleacutem de ser a maioria da populaccedilatildeo rural sertaneja ela natildeo tinha alternativa a natildeo ser migrar (SILVA 2000 p 48)

A autora destaca que a seca era utilizada para ocultar o problema da questatildeo

fundiaacuteria como principal fator de migraccedilatildeo do nordestino pois as terras estavam

concentradas nas matildeos da elite agraacuteria natildeo restando alternativa aleacutem da migraccedilatildeo

da populaccedilatildeo para outras regiotildees O ciclo da borracha foi utilizado pelo governo

federal para atrair os nordestinos para a Amazocircnia vaacuterios artifiacutecios foram usados

dentre os quais propagandas que exaltavam o patriotismo e o nacionalismo ateacute

promessas de retorno agrave terra natal Eacute o que se observa no trecho abaixo discurso do

presidente Getuacutelio Vargas na eacutepoca da segunda guerra mundial com o intuito de

82

atrair e incentivar os seringueiros a se empenharem na produccedilatildeo da borracha em

defesa da ldquopaacutetria amadardquo

Seringueiros Dediquei todas as energias a batalha da borracha Precisamos de mais borracha pois eacute sobre ela que se encontra a guerra moderna pois satildeo grandes os equipamentos que necessitam da goma elaacutestica produzidos sem repouso colhendo o laacutetex abundante das seringueiras do Vale Amazocircnico Nas guerras modernas natildeo fazem parte somente os soldados que estatildeo no campo de batalha mas toda naccedilatildeo homens e mulheres velhos e crianccedilas A voacutes desbravadores da Amazocircnia sois o mais importante soldados Unidos veremos sibilar a bandeira do Brasil (ACRE 1943 p 58)

Afirma Silva (2000) que essas formas de persuasatildeo foram divulgadas

massivamente na regiatildeo Nordeste com isso mobilizou verdadeiros ldquoexeacutercitos de

extratores como se fossem realmente soldados indo para os campos de batalha em

defesa da paacutetria procedendo-se ao alistamento e ateacute a concessatildeo de uniformes para

aqueles que seriam os soldados que lutariam nas selvas da Amazocircniardquo (p 59)

Embalados pelo discurso ideoloacutegico governamental aliado agraves condiccedilotildees de

pobreza extrema vieram para a Amazocircnia no periacuteodo de 1890 a 1910 cerca de meio

milhatildeo de nordestinos (TEIXEIRA 1980) No periacuteodo do auge da produccedilatildeo do

produto vaacuterios oacutergatildeos foram criados pelo governo para atrair e manter os migrantes

nos seringais dentre os quais o Serviccedilo Especial de Mobilizaccedilatildeo de Trabalhadores

para a Amazocircnia (SEMTA) posteriormente substituiacutedo pela Comissatildeo Administrativa

de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazocircnia (CAETA) Entre 1943 e 1945

utilizando propaganda nos meios de comunicaccedilatildeo o SEMTA e a CAETA trouxeram

aproximadamente cinquenta mil trabalhadores

Os nordestinos optavam pela Amazocircnia alistando-se no exeacutercito da borracha pois acreditavam nas propagandas que afirmavam que correriam menos riscos de vida e ainda contavam com a possibilidade de enriquecimento produzindo borracha no esforccedilo de guerra para os aliados para entatildeo retornarem a sua terra vitoriosa (SILVA 2000 p 60)

A propaganda do governo era enganosa dentre os engodos estavam a

possibilidade de soldados ficarem ricos com a extraccedilatildeo da borracha e ao mesmo

tempo servirem agrave paacutetria Muitos foram mortos nos conflitos com os iacutendios outros

pelas doenccedilas pois natildeo tinham acesso aos serviccedilos de sauacutede em siacutentese foram

abandonados pelo governo ficaram nas matildeos dos seringalistas que os escravizavam

por meio das diacutevidas com o barracatildeo20

20 O seringueiro soacute podia vender a produccedilatildeo da borracha para o seringalista em troca natildeo recebia dinheiro levava em gecircneros alimentiacutecios do barracatildeo que era mantido pelo seringalista que ditava o preccedilo dos produtos Desta forma o seringueiro sempre ficava devendo para o patratildeo Os seringalistas atuavam com toda a autoridade sobre seus seringueiros reclamar era decretar a proacutepria pena de morte

83

Quanto agrave divisatildeo espacial os seringueiros foram distribuiacutedos no final do seacuteculo

XIX de acordo com Silva (2000) nos seringais agraves margens dos rios Amazonas Negro

Madeira Abunatilde Ji-Paranaacute Acre Purus Gaporeacute e outros da regiatildeo o que para

Bittencout (1989) caracteriza um modelo de ocupaccedilatildeo linear e nas margens dos rios

em busca das seringueiras nativasldquoNesse primeiro momento da migraccedilatildeo estes

nordestinos natildeo foram para o interior da floresta devido ao ataque dos indiacutegenas que

era constante e tambeacutem pelo isolamento pois com a famiacutelia geralmente numerosa

era mais difiacutecil entrar na floresta (SILVA 2000 p 85)

Com a decadecircncia do preccedilo da borracha no mercado internacional diminuiacuteram

as atividades de extraccedilatildeo do produto na Amazocircnia isso fez com que muitos

seringueiros passassem a morar nas margens dos rios lagos e igarapeacutes e

ldquopaulatinamente tiveram que readaptar seu modo de vida de tal forma que a atividade

de extraccedilatildeo do laacutetex foi abandonada passando a adotar a atividade da pesca e da

agriculturardquo (SILVA 2000 p 91)

Desta maneira foi constituindo-se a populaccedilatildeo ribeirinha na Amazocircnia mesticcedila

e hiacutebrida culturalmente Nessa mesticcedilagem a presenccedila indiacutegena eacute marcante como

afirma Benchimol (1999) ao abordar aheranccedila cultural indiacutegena-cabocla dos povos

ribeirinhos O autor faz consideraccedilotildees sobre o periacuteodo inicial de ocupaccedilatildeo e

colonizaccedilatildeo da Amazocircnialdquoo conhecer o saber o vivere o fazerna Amazocircnia colonial

foi um processo predominantemente indiacutegenardquo (p 21) Segundo o autor ameriacutendios

e seus descendentes caboclos viviam em iacutentimo contato com o ambiente fiacutesico e

bioloacutegico de acordo com as peculiaridades regionais de onde retiravam os recursos

para sua subsistecircncia

A desintegraccedilatildeo das identidades culturais indiacutegenas deflagrada pelo

colonizador possibilitou a dizimaccedilatildeo de diversas etnias Com a resistecircncia indiacutegena

contra a invasatildeo de suas terras muitas tribos e etnias ameriacutendias foram exterminadas

O mesmo aconteceu com a propagaccedilatildeo da agricultura e pecuaacuteria que ocupou as

terras dos eixos rodoviaacuterios dos projetos de colonizaccedilatildeo e dos assentamentos de

garimpeiro em toda a regiatildeo Destaca Benchimol (1999 p 22) que as matrizes

culturais iacutendio-caboclas foram cedendo espaccedilo e economia ldquonos beiradotildees e nos

centros dos seringais e castanhais ao novo grupo lsquocearensersquo e depois aos lsquogauacutechosrsquo

ficando cada vez mais isolados nas suas reservas e malocas ou nos seus siacutetios e

roccedilados dos baixos riosrdquo

84

Sem a contribuiccedilatildeo dos iacutendios o colonizador natildeo teria tido ecircxito na ocupaccedilatildeo

e exploraccedilatildeo da Amazocircnia Foram os indiacutegenas que ensinaram aos novos senhores

e imigrantes os segredos dos rios da terra e da floresta (GONCcedilALVES 2005) Essas

praacuteticas e usos deram origem ao estabelecimento de uma base de subsistecircncia e de

mercado ldquoque serviu de apoio para a formaccedilatildeo da sociedade amazocircnica no seu

singular processo histoacuterico-culturalrdquo (BENCHIMOL 1999 p10)

Tambeacutem natildeo podemos deixar de levar em consideraccedilatildeo a contribuiccedilatildeo dos

negros africanos para a cultura e constituiccedilatildeo da populaccedilatildeo na Amazocircnia Conforme

Salles (1971) no periacuteodo da colonizaccedilatildeo foram traficados para a Regiatildeo em meacutedia

53 mil escravos pela coroa portuguesa bem como pelo comeacutercio interno de escravos

e migraccedilotildees por ocasiatildeo da Cabanagem no Paraacute e Balaiada no MaranhatildeoNessas

proviacutencias os negros trabalhavam principalmente nos canaviais e lavouras de arroz e

algodatildeo

Foster (2004) destaca a importacircncia e a contribuiccedilatildeo da populaccedilatildeo negra na

formaccedilatildeo do povo amazocircnida Para a autora a cultura negra embora matizada pela

grande diversidade de negros que vieram para a regiatildeo e hibridizada pelo contato com

os iacutendios colonos portugueses e migrantes tambeacutem integra a ldquomemoacuteria da

Amazocircniardquo (p 178) Pacheco (2009) corrobora com esta tese quando afirma que

ldquohomens e mulheres filhos da diaacutespora africana que se esparramaram apropriaram-

se resignificaram e compartilharam em contatos e trocas culturais experiecircncias de

vida nos campos marajoarasrdquo (p 283)

Isto posto podemos concluir que a populaccedilatildeo ribeirinha na Amazocircnia eacute

constituiacuteda damescla de indiviacuteduos de etnias e culturas diferentesdentre as quais

indiacutegenas negras europeia e nordestina

23 AFUAacute a Veneza Marajoara

O municiacutepio de Afuaacute eacute conhecido na Ilha do Marajoacute como a Veneza Marajoara

em analogia com a cidade italiana de Veneza A cidade foi construiacuteda sobre as aacuteguas

num terreno de vaacuterzea que eacute totalmente inundado com as enchentes das aacuteguas de

marccedilo Devido a essa caracteriacutestica as ruas satildeo pontes a maioria delas de madeira

e poucas em concreto chamadas pelos moradores de passarelas Eacute uma cidade

ribeirinha cercada por rios de onde satildeo retirados os alimentos por meio da pesca e

por onde navegam os moradores comerciantes e turistas Nesta seccedilatildeo faremos uma

abordagem histoacuterica e econocircmica para compreendermos o modo de serviver dos

85

moradores tambeacutem realizamos uma anaacutelise da educaccedilatildeo baacutesica com enfoque na

educaccedilatildeo infantil e ensino fundamental

231 Aspectos histoacutericos geograacuteficos e econocircmicos

Afuaacute eacute uma das cidades amazocircnicas construiacuteda dentro dacuteaacutegua sobre palafitas

que compotildee o arquipeacutelago do Marajoacute As ruas satildeo pontes chamadas de passarelas

que ligam as casas e os bairros a Central e o Capimarinho A imagem abaixo retrata

uma passarela de madeira por onde caminham os moradores e brincam as crianccedilas

No periacuteodo das enchentes as aacuteguas do rio adentram os quintais

Fotografia 5 - Passarela de madeira no bairro Capimarinho

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Devido agraves caracteriacutesticas da cidade natildeo haacute automoacuteveis e o meio de transporte

utilizado eacute a bicicleta comumente encontrada circulando nas passarelas O

transporte coletivo eacute um tipo de charrete chamado de bicitaacutexi que foi inventado por

um morador nativo Como natildeo haacute caminhotildees ou veiacuteculo similar para carregar cargas

e bagagens satildeo utilizados carros de matildeo puxados por trabalhadores autocircnomos

chamados de carreteiros

Fotografia 6ndashTrabalhador autocircnomo (carreteiro) transportando mercadoria

86

Fonte Edielso M M de Almeida 2016 Quanto agrave origem do Municiacutepio sua histoacuteria remonta ao periacuteodo colonial e faz

parte da poliacutetica de colonizaccedilatildeo da Amazocircnia traccedilada pela coroa portuguesa que

visava agrave dominaccedilatildeo dos povos nativos e agrave exploraccedilatildeo das riquezas da regiatildeo

Segundo Gonccedilalves (2005 p82) ldquoa partir de 1750 no governo do primeiro-

ministro Marquecircs de Pombal comeccedila uma nova fase na adequaccedilatildeo da Amazocircnia ao

domiacutenio colonial portuguecircsrdquo Este domiacutenio objetivou garantir o desenvolvimento da

regiatildeo atraveacutes do comeacutercio dos produtos agriacutecolas e fomento da agricultura comercial

Para isso foi criada em 1755 a Companhia Geral do Comeacutercio do Gratildeo-Paraacute e

Maranhatildeo O monopoacutelio concedido agrave Companhia entrou em atrito com os interesses

das ordens religiosas que atuavam na Amazocircnia no processo de catequizaccedilatildeo e

exploraccedilatildeo dos iacutendios O conflito chegou no aacutepice e em 1759 os jesuiacutetas a maior

ordem religiosa atuante na regiatildeo foram expulsos e seus bens confiscados dentre

eles a matildeo de obra indiacutegena

Com a implantaccedilatildeo da Companhia Geral do Comeacutercio vaacuterias medidas foram

tomadas para modernizar a regiatildeo dentre elas destaca Gonccedilalves (2005 p82)

Doaccedilatildeo de terras (sesmarias) a colonos e a soldados que se

comprometessem a cultivaacute-las introduccedilatildeo do trabalho escravo (1756)

procurando reforccedilar a agricultura do cacau cafeacute algodatildeo cana-de-accediluacutecar

fumo anil e arroz estimulo agrave implantaccedilatildeo da pecuaacuteria nos campos de Rio

Branco (Roraima) baixo Amazonas e na Regiatildeo das Ilhas (Marajoacute inclusive)

Neste contexto soacutecio-poliacutetico-econocircmico gerado a partir da administraccedilatildeo

pombalina comeccedilou ldquouma dinacircmica de povoamento e desenvolvimento que

permitiram integraccedilatildeo poliacutetica administrativa econocircmica social e tambeacutem cultural do

Estado []rdquo (RODRIGUES 2004 p 21)

87

Esta poliacutetica de povoamento fez surgir e crescer as vilas e cidades no interior

da Amazocircnia entre elas o municiacutepio de Afuaacute que faz parte do arquipeacutelago do Marajoacute

Haacute poucos estudos relacionados agrave Histoacuteria de Afuaacute Tivemos acesso durante a

pesquisa bibliograacutefica ao Plano Diretor Participativo do Municiacutepio elaborado pela

Prefeitura no ano de 2007 e eacute com base neste documento que descreveremos a sua

evoluccedilatildeo histoacuterica e poliacutetica

Afuaacute assim como algumas cidades da Amazocircnia cresceu em torno de uma

igreja denominada Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo O terreno para a construccedilatildeo foi

doado por Micaela Archanja Ferreira uma donataacuteria portuguesa a qual tomou posse

das terras que denominou Santo Antocircnio em 1845 que na eacutepoca fazia parte do

distrito da Vila de Chaves

O local onde foi construiacuteda a igreja foi doado por Dona Micaela em 1899 ao

patrimocircnio de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo O terreno comeccedilava no Igarapeacute Divisa

no Rio Marajoacute descia pelo Rio Afuaacute ateacute o Igarapeacute Jaranduba no Rio Cajuuacutena (PLANO

DIRETOR PARTICIPATIVO DE AFUAacute 2007 p 2)

Fotografia 7 - Igreja de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A presenccedila de templos catoacutelicos no processo de colonizaccedilatildeo da Amazocircnia e

como consequecircncia no surgimento de povoados vilas e cidades deu-se segundo

Trindade Juacutenior (2008 p 33) devido ao sentido da colonizaccedilatildeo na regiatildeo que

88

inicialmente foi levada a cabo pela igreja catoacutelica que criou aldeamento e definiu um

povoamento articulado ao interesse cristatildeo daiacute a paisagem dessas cidades ateacute hoje

ser fortemente marcada pelos templos religiosos que logo chamam a atenccedilatildeo das

pessoas que as observam desde os rios

De acordo com imagem acima a primeira vista que temos quando chegamos

agrave cidade pelo rio eacute a da igreja Avistamos o preacutedio religioso de longe eacute o primeiro

sinal de que estamos chegando ao Municiacutepio A fotografia 07 tambeacutem mostra a

localizaccedilatildeo da igreja agraves margens do rio esta foi uma das estrateacutegias de povoamento

adotadas pelo governo portuguecircs que visava a ocupaccedilatildeo da Amazocircnia assim como

agrave defesa das terras apropriadas Os rios possibilitavam a saiacuteda dos produtos da

floresta e a entrada de mercadorias para consumo

[] o ideal de penetraccedilatildeo no territoacuterio amazocircnico vinculado a sua

necessidade de ocupaccedilatildeo e defesa traduziu-se soacutecio-espacialmente nas

gecircneses das cidades agrave beira dos principais rios que davam acesso agrave regiatildeo

(TRINDADE JUacuteNIOR 2008 p 33)

As vilas e povoamentos edificados agraves margens dos rios tornaram-se estrateacutegias

eficientes de povoamento Com as dificuldades do controle da terra afirma Gonccedilalves

(2005 p 35) ocorreu o efetivo controle das aacuteguas o que resultou em vaacuterios

ldquopovoamentos dispersos ao longo dos rios sustentados pelo extrativismo das drogas

do sertatildeo por uma agricultura de subsistecircncia e pela pesca artesanal base da cultura

do caboclo da Amazocircniardquo

Assim cresceu um povoado em torno da construccedilatildeo da igreja ateacute que em 14

de abril de 1874 pela Lei nordm 811 recebeu a categoria de Freguesia Como Freguesia

entrou para o periacuteodo da Repuacuteblica passando para Vila em 1890 com o Decreto nordm

170 de 2 de agosto No mesmo dia outro Decreto-Lei nordm 171 elevou-a a categoria

de Municiacutepio No ano de 1896 a Vila foi elevada agrave condiccedilatildeo de cidade

De 1891 a 1926 o Municiacutepio foi administrado por intendentes que eram

nomeados pelo governo estadual posteriormente passaram a ser eleitos

constitucionalmente por voto aberto e direto do povo No ano de 1927 passou a ser

governado por prefeitos nomeados A partir da Constituiccedilatildeo de 1988 os prefeitos

passaram a ser eleitos pelo voto direto do povo

Em relaccedilatildeo agrave localizaccedilatildeo Afuaacute encontra-se ao norte da Ilha do Marajoacute na

microrregiatildeo dos furos de Breves conforme o mapa abaixo

Mapa 01 Localizaccedilatildeo Geograacutefica do municiacutepio de Afuaacute

89

Fontelthttp3bpblogspotcom_O_r-gkdiqDYSumbWwIY-IAAAAAAAAAhwEhILXVXz97Es1600-

hmapa+MARAJOANDOJPG Acesso 16 de maio de 2016

O arquipeacutelago do Marajoacute estaacute situado no extremo norte do Estado do Paraacute na

foz do rio Amazonas sendo considerado o maior complexo de ilhas fluviais do mundo

com 49606 kmsup2 composto por 12 municiacutepios Afuaacute Chaves Anajaacutes Breves

Curralinho Satildeo Sebastiatildeo da Boa Vista Muanaacute Ponta de Pedras Cachoeira do Ariri

Salvaterra Soure e Santa Cruz do Ariri

O mapa 01 indica os limites de Afuaacute ao norte com a Ilha Caviana a nordeste

com o Municiacutepio de Chaves ao sul com o Municiacutepio de Anajaacutes e Breves ao sudeste

com o Municiacutepio de Anajaacutes ao sudoeste com os Municiacutepios de Breves e Gurupaacute a

leste com os Municiacutepios de Chaves e a oeste e noroeste com o Estado do Amapaacute

(com os Municiacutepios de Mazagatildeo Macapaacute e Itauacutebal)

Mapa 02 Mapa da ilha de Marajoacute indicando a proximidade de Afuaacutecom o Macapaacute

90

Fonte Google Mapas Disponiacutevel em

lthttpmapsgooglecombrmapsgtAcesso 17 de maio de

2016

Na imagem o Municiacutepio estaacute representado pela letra A (no balatildeo) Em meacutedia

a viagem de barco dura de trecircs a quatro horas ateacute Macapaacute capital do Estado do

Amapaacute enquanto que para Beleacutem dura aproximadamente 24 horas A proximidade

com Macapaacute possibilita um intenso intercacircmbio comercial de Afuaacute chegam

constantemente peixe (pescada gurijuba tamuataacute acaraacute traiacutera pirarucu entre

outros) camaratildeo accedilaiacute bacaba madeira e outros produtos extraiacutedos dos rios e

florestas Os comerciantes afuaenses compram em Macapaacute produtos alimentiacutecios

roupas sapatos eletrodomeacutesticos produtos importados etc para revenderem no

Municiacutepio Haacute tambeacutem uma procura pelos serviccedilos puacuteblicos ofertados em Macapaacute

principalmente nas aacutereas de sauacutede e educaccedilatildeo reflexo da falta de investimento

nessas aacutereas pelos Poderes Municipal Estadual e Federal Existe somente um

hospital na sede do Municiacutepio que natildeo atende agrave demanda da populaccedilatildeo o que

provoca a saiacuteda constante de pessoas em busca de atendimento meacutedico nos

Municiacutepios mais proacuteximos

No que concerne agrave flora a floresta amazocircnica que compotildee o territoacuterio afuaense

conteacutem diversas espeacutecies com destaque para a virola andiroba anani pracuuacuteba

macacauacuteba pau mulato sucupira de vaacuterzea e acapu e palmeiras como o accedilaiacute o

miriti o murumuru o tucumatildes e inuacutemeras outras espeacutecies de plantas aquaacuteticas

A riqueza da flora amazocircnica garante o sustento da maioria da populaccedilatildeo

atraveacutes do extrativismo que segundo Gonccedilalves (2005 p 89) eacute uma atividade ldquoque

91

marca a organizaccedilatildeo social do espaccedilo amazocircnico mesmo antes da presenccedila colonialrdquo

De fato os iacutendios antes da apropriaccedilatildeo de suas terras pelos colonizadores jaacute

negociavam com espanhoacuteis franceses e holandeses os produtos da floresta entre

eles o pau-brasil Braga (1911) afirma que a exploraccedilatildeo da madeira faz parte da

histoacuteria do Marajoacute desde 1900 as induacutestrias madeireiras se instalaram na regiatildeo para

exploraccedilatildeo e beneficiamento da madeira

Segundo Meirelles Filho (2004) a Regiatildeo Amazocircnica eacute a maior produtora de

madeira tropical do mundo e o Estado do Paraacute estaacute incluiacutedo no que o autor chama de

ldquoarco do desmatamentordquo 21 (p 178) O desmatamento tambeacutem gera emprego ldquoA

exploraccedilatildeo da madeira eacute a principal atividade econocircmica de mais de cem municiacutepios

da Amazocircnia Trata-se da terceira maior geradora de empregos na Regiatildeo com mais

de meio milhatildeo de pessoas vivendo da atividaderdquo (p178)

Esta atividade geralmente natildeo respeita as leis ambientais e trabalhistas pois

as condiccedilotildees de trabalho satildeo severas Haacute pouco equipamento disponiacutevel e os

acidentes satildeo comuns Aleacutem disso a ausecircncia da fiscalizaccedilatildeo contribui para a

violaccedilatildeo dos Direitos Humanos tanto nas serralherias como na operaccedilatildeo de corte

com a ocorrecircncia de trabalho infantil condiccedilotildees inadequadas e horas excessivas de

trabalho (LIMA 2003 p 43)

Na sede do Municiacutepio de Afuaacute estaacute localizada a maior madeireira da localidade

denominada Exportaccedilatildeo Materiais e Alimentos do Paraacute (EMAPA) Cerca de 99 de

sua produccedilatildeo eacute exportada para o Japatildeo Itaacutelia Argentina Inglaterra Estados Unidos

e Canadaacute apenas 1 destina-se ao mercado interno (PLANO DIRETOR

PARTICIPATIVO 2007 p 9) O que caracteriza uma produccedilatildeo voltada para a oferta

de mateacuteria-prima para o mercado externo

A exploraccedilatildeo de madeira tambeacutem eacute feita pelos ribeirinhos Segundo

levantamento da Secretaria do Meio Ambiente existem na zona rural

aproximadamente 146 pequenas serrarias que cortam madeira Muitas dessas

serrarias comercializam seus produtos com a EMAPA e com as madeireiras do

Municiacutepio de Macapaacute A derrubada da madeira eacute feita na sua grande maioria sem

projeto de reflorestamento e sem orientaccedilatildeo teacutecnica para o desmatamento pelos

21Seus limites se estendem do sudoeste do Estado do Maranhatildeo ao norte de Tocantins Paraacute norte de

Mato Grosso Rondocircnia sul do Amazonas e sudoeste do Estado do Acre Pelo mapa este itineraacuterio de devastaccedilatildeo da floresta tem forma de um arco

92

ribeirinhos e tambeacutem por madeireiras instaladas no interior pertencentes a

empresaacuterios principalmente das regiotildees Sul e Sudeste do paiacutes

A ausecircncia de orientaccedilotildees teacutecnicas para a derrubada de madeira gera como

consequecircncia o desperdiacutecio pois quando a aacutervore tomba apoacutes o corte do machado

ou da motosserra acaba danificando ou matando outras que estatildeo ao seu redor Se

forem em floresta com maior presenccedila de cipoacutes os danos podem ainda ser maiores

ldquo[] as estradas para a retirada da madeira sem planejamento destroacutei inuacutemeras

aacutervores jovens que poderiam fornecer boa madeira no futuro entopem riachos

mudam cursos drsquoaacutegua e provocam erosotildeesrdquo (MEIRELLES FILHO 2010 p173)

Explica o referido autor que a exploraccedilatildeo de madeira passa por etapas que

inicialmente produzem a geraccedilatildeo de emprego e renda e posteriormente o

desemprego e a miseacuteria da populaccedilatildeo e do espaccedilo explorado

O primeiro momento da atividade predatoacuteria eacute de euforia crescimento raacutepido

geraccedilatildeo de emprego e renda No segundo momento quando terminam os

estoques de madeira mais faacutecil de coletar as serrarias satildeo transferidas para

outras fronteiras deixando um rastro de destruiccedilatildeo e desemprego Para a

regiatildeo fica o prejuiacutezo uma vez que a matildeo-de-obra natildeo iraacute se transferir

tampouco as propriedades rurais onde a madeira foi escolhida a dedo

(MEIRELLES FILHO 2010 p 178)

A transferecircncia das serrarias causa imensos problemas sociais gerados pelo

desemprego Desempregado sem ter como manter a famiacutelia muitos ribeirinhos vatildeo

para a cidade em busca de trabalho de melhores condiccedilotildees de sobrevivecircncia e de

educaccedilatildeo para seus filhos Na cidade acabam morando na periferia sem as miacutenimas

condiccedilotildees de habitaccedilatildeo sem aacutegua encanada esgoto luz eleacutetrica e outros direitos

sociais A realidade com a qual passam a conviver eacute a da violecircncia prostituiccedilatildeo

mendicacircncia entre outras

Aleacutem da extraccedilatildeo da madeira outra forma de exploraccedilatildeo da floresta acontece

atraveacutes da retirada do palmito do accedilaizeiro

[] eacute realizada sem nenhum criteacuterio de manejo ocasionando a escassez de

accedilaizeiros nas aacutereas onde satildeo realizados os cortes para a extraccedilatildeo de

palmito A comercializaccedilatildeo do produto eacute feita ldquoin naturardquo para as faacutebricas de

beneficiamento existentes no municiacutepio (PLANO DIRETOR PARTICIPATIVO

DE AFUAacute 2007 p 26)

Existem seis induacutestrias de palmito registradas na prefeitura que estatildeo

espalhadas pelo municiacutepio localizadas em sua maioria nas aacutereas rurais-ribeirinhas

devido agrave facilidade de acesso agrave matildeo-de-obra e a mateacuteria-prima

Tabela 02 ndash Comparaccedilatildeo da produccedilatildeo de accedilaiacute no intervalo de quatro anos

93

Produto

Quantidade Produzida

Valor (Mil reais)

2010 2014 2010 2014

Accedilai (fruto) 4100 6125 4510 17151

Palmito 120 119 90 263 Fonte Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica 2014

Pela leitura da tabela podemos verificar que a quantidade de accedilaiacute produzida

em 2014aumentou em relaccedilatildeo agrave de 2010 houve um acreacutescimo de 2025 toneladas no

intervalo de quatro anos Um dos motivos foi diminuiccedilatildeo da derrubada em massa de

accedilaizeiros para a retirada de palmito que pela leitura dos mesmos dados tambeacutem

diminuiu Apesar de natildeo haver uma poliacutetica puacuteblica de manejo do accedilaiacute a produccedilatildeo

aumentou

Os ribeirinhos recebem em meacutedia um real por unidade de palmito com toda a

casca poreacutem um vidro deste produto beneficiado eacute encontrado no comeacutercio de

Macapaacute com o peso bruto de 550g e peso drenado de 300g ndash sem o liacutequido de

conserva ndash com o custo meacutedio de R$ 7 50 (sete reais e cinquenta centavos) a R$

1000 (dez reais) dependendo do tipo do palmito A B ou C O preccedilo tambeacutem pode

variar eou aumentar se for vendido para outras regiotildees do paiacutes

A derrubada de accedilaizeiros para a extraccedilatildeo de palmito diminui a oferta do accedilaiacute

que faz parte da alimentaccedilatildeo tanto dos ribeirinhos como dos amazocircnidas que vivem

nas cidades ldquoObserva-se em Beleacutem o aumento excessivo do preccedilo desse fruto o

que provoca a diminuiccedilatildeo de seu consumo principalmente pela populaccedilatildeo de baixa

rendardquo (SANTOS 2014 p 74) Como consequecircncia haacute o aumento no preccedilo do

produto ocasionando a falta nas mesas das famiacutelias mais pobres O que antes se

tinha em abundacircncia hoje estaacute cada vez mais raro O litro do produto em Afuaacute na

entressafra chega a custar R$ 1000 (dez reais) Vale ressaltar que o accedilaiacute aleacutem de

alimento tambeacutem eacute fonte de renda para os ribeirinhos

A pesca tambeacutem eacute outra atividade econocircmica do municiacutepio com destaque para

o camaratildeo e a lagosta aleacutem de vaacuterias espeacutecies de peixes que acompanhados com

accedilaiacute e o camaratildeo tornam-se os principais alimentos consumidos pelos afuaenses Eacute

habitual encontrar esses alimentos nas mesas dos ribeirinhos Como afirma Santos

(2014 p 72) satildeo caracteriacutesticos da culinaacuteria amazocircnica pela especificidade da

regiatildeo ldquocomo por exemplo a presenccedila de rios que facilitam a pesca ou a presenccedila

da mata []rdquo Os saberes necessaacuterios para a colheita do accedilaiacute e a pesca satildeo

aprendidos desde a infacircncia na convivecircncia diaacuteria e nas relaccedilotildees de trabalho Parte

94

do pescado eacute vendida nas feiras e mercados locais a outra eacute comercializada em

Macapaacute Os instrumentos mais utilizados para a pesca satildeo linha tarrafa malhadeira

matapi caniccedilo arpatildeo pari22 entre outros

Fotografia 8ndashRibeirinho jogando a tarrafa no rio

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A pesca do camaratildeo eacute intensa no Municiacutepio nos meses de maio a julho eacute o

periacuteodo de safra O camaratildeo eacute um dos principais produtos que movimenta a economia

Ele eacute tatildeo importante que haacute 33 anos eacute realizado o festival do camaratildeo que ocorre no

mecircs de julho O evento acontece agraves margens do Rio Afuaacute no camaroacutedromo23 e faz

parte do calendaacuterio turiacutestico da cidade

Segundo a Secretaria Municipal de Turismo Esporte Lazer e Culturaem 2015

o festival contou com participaccedilatildeo de aproximadamente 50000 (cinquenta mil)

pessoas oriundas dos municiacutepios do arquipeacutelago do Marajoacute de outros Estados e

paiacuteses Em 2005 comeccedilou a fazer parte do festival a batalha camaroeira que consiste

na disputa entre camarotildees Convencido (camaratildeo cru da cor verde) e Pavulagem

(camaratildeo cozido cor vermelha) A batalha visa retratar os costumes a originalidade

e a regionalidade da cultura cabocla ribeirinha

22O pari eacute uma espeacutecie de armadilha feita de tala pelos pescadores Quando a mareacute seca os peixes

ficam presos nela 23No mecircs de julho a uacutenica quadra de esportes existentes no municiacutepio se transforma no camaroacutedromo

que eacute um espaccedilo para apresentaccedilotildees de bandas desfiles salatildeo de danccedila e para a batalha dos camarotildees Convencido e Pavulagem

95

O trabalho na roccedila garante tambeacutem o alimento do afuaense Eacute uma atividade

laboral que envolve toda a famiacutelia crianccedilas jovens adultos idosos mulheres e

homens todos desempenham funccedilotildees que garantem a produccedilatildeo o sustento e a

venda do que eacute produzido Eacute o que podemos considerar uma agricultura familiar na

qual a prioridade eacute a subsistecircncia Nos solos do municiacutepio satildeo plantados com maior

abundacircncia abacaxi arroz cana-de-accediluacutecar mandioca melancia e milho

O sistema de corte-e-queima ainda prevalece nas praacuteticas da agricultura

familiar que consiste em

[] escolher uma aacuterea de terras uacutemidas desmatar uma pequena aacuterea no fim

da estaccedilatildeo chuvosa e deixar as aacutervores secarem Apoacutes dois meses eacute

colocado fogo e em seguida realizado o plantio de diferentes espeacutecies numa

mesma aacuterea Aproveita-se a aacuterea para o plantio por um a trecircs anos A cada

ano uma nova limpeza e queima eacute realizada (MEIRELLES FILHO 2004 p

86)

Essa praacutetica empobrece o solo tendo como efeito a diminuiccedilatildeo da produccedilatildeo a

cada ano o que leva o agricultor-ribeirinho24 a desmatar e queimar novas aacutereas para

o plantio comprometendo a sobrevivecircncia da floresta e consequentemente a sua

permanecircncia nela

Fotografia 9 ndashAacuterea desmatada para o plantio de milho

Fonte Comissatildeo Pastoral da Terra 2015

24Utilizaremos este termo porque todas as comunidades onde se pratica a agricultura no municiacutepio satildeo

ribeirinhas

96

Na fotografia temos parte da mata derrubada e queimada para o plantio do

milho esta eacute a forma como o agricultor-ribeirinho pratica a agricultura Aprendeu com

os pais que aprenderam com os avoacutes e agora estatildeo ensinando para os seus filhos

que continuaratildeo a perpetuaacute-la Segundo Gonccedilalves (2005 p 156) ldquoAs populaccedilotildees

ribeirinhas de pescadores-agricultores-extrativistas manipulam haacute vaacuterios anos

ecossistemas extremamente delicados sem que nenhum esforccedilo sistemaacutetico de

poliacuteticas puacuteblicas tenha existido em seu apoiordquo Sendo assim a falta de apoio agrave

populaccedilatildeo ribeirinha eacute reflexo do descaso do poder puacuteblico em desenvolver poliacuteticas

que assegurem o desenvolvimento de praacuteticas produtivas coerentes com a

biodiversidade da regiatildeo

Em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo segundo o censo de 2015 do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatiacutestica (IBGE) a estimativa eacute de que o municiacutepio tenha 37398

habitantes sendo que mais de 60 residem na zona rural em comunidades rurais-

ribeirinhas (vilas e povoados)

No tocante agrave definiccedilatildeo de urbano e rural Veiga (2002) afirma que no Brasil natildeo

haacute no estatuto das cidades por exemplo um artigo que defina cidade Essa lacuna

gera confusatildeo entre a classificaccedilatildeo adotada pelo governo e a usada em estudos

demograacuteficos Segundo o autor em nosso paiacutes o mapa oficial de urbanizaccedilatildeo

publicado no Atlas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) de 2000

adota um criteacuterio administrativo Este criteacuterio ainda eacute baseado no decreto-lei assinado

por Getuacutelio Vargas em 1938 que considera urbanas as sedes dos municiacutepios e as

vilas natildeo levando em consideraccedilatildeo sua densidade populacional

Desta maneira ldquoapoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica a classificaccedilatildeo urbana

passa a se relacionar com o conceito de cidade e cada vila passa a adotar um criteacuterio

pois se tornar cidade confere statusrdquo (VEIGA 2002 p34) Para o referido autor a

densidade demograacutefica talvez seja o principal indicador da maior ou menor pressatildeo

antroacutepica mas natildeo deve ser o uacutenico pois ldquose usarmos o criteacuterio analiacutetico a populaccedilatildeo

urbana do Brasil natildeo chega a 70rdquo (ibidem p35)

Fotografia 10ndashCasas construiacutedas em aacuterea de invasatildeo no bairroCapimarinho

97

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

As invasotildees para a construccedilatildeo de casas visualizadas na fotografia ocorrem

atraveacutes do desmatamento limpeza e ocupaccedilatildeo desordenada do espaccedilo

Paulatinamente vatildeo surgindo as casas cobertas de palha telhas de brasilit ou de

barro Na imagem acima ainda ficaram poucas espeacutecies da floresta nativa o restante

galhos e troncos das aacutervores estatildeo no chatildeo Sem condiccedilotildees econocircmicas os

ribeirinhos acabam invadindo aacutereas de ressacas para construir suas moradias na

cidade e assim vatildeo surgindo os bairros nas periferias sem aacutegua tratada esgoto

energia eleacutetrica coleta de lixo etc O bairro mais populoso eacute o Capimarinho que

nasceu atraveacutes das constantes invasotildees de ribeirinhos fugindo da miseacuteria e da fome

geradas pelas accedilotildees predatoacuterias de madeireiras e faacutebricas de palmito

A pobreza dos cidadatildeos afuaenses eacute evidenciada pelo Iacutendice de

Desenvolvimento Humano (IDH)25 O IDH Municipal varia de 0 a 1 considerando

indicadores de longevidade como sauacutede renda e educaccedilatildeo Quanto mais proacuteximo de

0 (zero) pior eacute o desenvolvimento humano do municiacutepio Quanto mais proacuteximo de 1

(um) mais alto eacute o desenvolvimento do municiacutepio O IDH de Afuaacuteem 2014 foi de

0489 considerado portanto muito baixo e a expectativa de vida dos moradores em

25A pesquisa foi elaborada a partir do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil 2014 divulgado pelo Programa das Naccedilotildees Unidas para o Desenvolvimento - PNUD Instituto de Pesquisa Econocircmica Aplicada - IPEA e Fundaccedilatildeo Joatildeo Pinheiro - FJP com dados extraiacutedos dos Censos Demograacuteficos de 1991 2000 e 2010

98

meacutedia de 69 anos (IBGE 2010) A ausecircncia de poliacuteticas puacuteblicas sociais e econocircmicas

que beneficiem a populaccedilatildeo mais pobre reflete o iacutendice apresentado Segundo o

estudo do Programa das Naccedilotildees Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) em 2014

dos oito municiacutepios com IDH mais baixo no Estado do Paraacute seis estatildeo situados na

Ilha do Marajoacute Afuaacute (0489) Anajaacutes (0484) Portel (0483) Bagre (0471) Chaves

(0453) e Melgaccedilo (0418) este com o pior IDH do Brasil (PNUD 2013)

A seguir apresentamos o retrato da educaccedilatildeo formal ofertada agravepopulaccedilatildeo que

reside no Municiacutepio

24 A EDUCACcedilAtildeO RIBEIRINHA NO MUNICIacutePIO DE AFUAacute

A populaccedilatildeo de Afuaacute eacute atendida educacionalmente com a educaccedilatildeo infantil

ensino fundamental educaccedilatildeo de jovens e adultos educaccedilatildeo especial e o ensino

meacutedio Segundo censo escolar de 2014 do Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatiacutestica 2130 da populaccedilatildeo acima de 15 anos de idade satildeo analfabetas Isso

significa que nunca frequentaram a escola um direito que eacute garantido

constitucionalmente e natildeo estaacute sendo cumprido nem cobrado pelos oacutergatildeos

competentes A grande parte dos excluiacutedos do sistema formal de ensino mora agraves

margens dos rios lagos e igarapeacutes nas aacutereas ribeirinhas Enquanto no nosso paiacutes

de acordo com dados do IBGE (2014) houve aumento no niacutevel de escolaridade nos

uacuteltimos anos ainda encontramos principalmente nos municiacutepios mais pobres um

elevado iacutendice de analfabetismo e como consequecircncia baixos indicadores de

escolarizaccedilatildeo

A rede municipal de ensino tem como caracteriacutestica ser rural ribeirinha pois

98 das escolas estatildeo localizadas nestas aacutereas das 211 instituiccedilotildees escolares

somente 5 (cinco) se encontram na aacuterea urbana A seguir apresentamos o retrato da

educaccedilatildeo baacutesica iniciamos pela educaccedilatildeo infantil e posteriormente mostramos o

ensino fundamental e meacutedio

241 Educaccedilatildeo Infantil

A educaccedilatildeo infantil enquanto poliacutetica puacuteblica foi garantida legalmente a partir

da constituiccedilatildeo de 1988 as constituiccedilotildees anteriores limitaram-se ao amparo e agrave

assistecircncia e as promulgadas no periacuteodo imperial natildeo abrangeram nada referente agrave

infacircncia (CURY 2012) O cidadatildeo crianccedila de acordo com Angotti (2010) eacute

reconhecido na Carta Magna de 1988 com direitos garantidos o que requer o

investimento e o desenvolvimento de accedilotildees em niacutevel Federal Estadual e Municipal

99

A educaccedilatildeo infantil com a Constituiccedilatildeo passa a ser responsabilidade do

Estado ofertada em creches e preacute-escolas poreacutem a partir da emenda constitucional

nordm 592009 a obrigatoriedade e gratuidade foi concedida somente para as crianccedilas a

partir de quatro anos de idade

A Emenda Constitucional nordm 59 de 2009 que modificou a definiccedilatildeo da educaccedilatildeo obrigatoacuteria apesar de sua importacircncia foi aprovada sem que fosse precedida por maiores discussotildees na sociedade nos meios especializados e no proacuteprio Congresso Nacional De certa forma essa medida jaacute estava anunciada em metas definidas por uma mobilizaccedilatildeo de empresaacuterios o Movimento Todos pela Educaccedilatildeo que vem exercendo grande influecircncia nas orientaccedilotildees da poliacutetica educacional no Paiacutes Essa novidade foi adotada na esteira da anterior configurando uma verdadeira cascata de mudanccedilas que incidiram sobre a gestatildeo municipal da educaccedilatildeo nesta primeira deacutecada do seacuteculo (CAMPOS 2012 p 11)

Para a garantia do padratildeo miacutenimo de qualidade e a equalizaccedilatildeo das

oportunidades foi mantido como competecircncia da Uniatildeo prestar assistecircncia teacutecnica e

financeira aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios que ficaram com a

responsabilidade de atuar prioritariamente no ensino fundamental e na educaccedilatildeo

infantil Nesta divisatildeo coube agrave esfera Estadual o atendimento ao ensino meacutedio e agrave

Federal a oferta da educaccedilatildeo superiorA delegaccedilatildeo por meio das competecircncias entre

os poderes puacuteblicos definidas constitucionalmente fomentou o princiacutepio da

descentralizaccedilatildeo que segundo Gagnebin (2011) compromete a efetivaccedilatildeo do

atendimento educacional de qualidade agraves crianccedilas pequenas como tambeacutem a todos

os outros niacuteveis de ensino o que denota uma visatildeo reducionista do papel do Estado

em relaccedilatildeo agraves poliacuteticas puacuteblicas

Em relaccedilatildeo agraves instituiccedilotildees que poderatildeo ofertar educaccedilatildeo infantil a crecheeacute

reconhecida como espaccedilo educativo e de direito para as crianccedilas principalmente das

famiacutelias trabalhadoras Desta forma os pais legalmente passam a usufruir de um

espaccedilo coletivo para os cuidados e educaccedilatildeo de seus filhos Mas na realidade este

princiacutepio legal ainda natildeo saiu do papel e natildeo se concretizou no municiacutepio de Afuaacute As

crianccedilas na idade de dois a trecircs anos satildeo atendidas na uacutenica escola de Educaccedilatildeo

Infantil denominada Centro Theopompo Nery(CEI) localizada na aacuterea urbanano

bairro Central O nuacutemero de vagas ofertadas por ano totalizam 40 sendo 20 para o

turno da manhatilde e 20 para o da tarde Sabe-se que a demanda eacute muito maior do que

as vagas disponiacuteveis o que requer do poder puacuteblico investimento para a construccedilatildeo

de creches que atendam o que a lei estabelece

100

Vale ressaltar a importacircncia da creche que para Didonet (2014) estaacute centrada

no desenvolvimento na promoccedilatildeo da aprendizagem assim como na mediaccedilatildeo do

processo de construccedilatildeo conhecimentos e habilidades por parte da crianccedila

procurando ajudaacute-la a ir o mais longe possiacutevel nesse processo Desta forma

reconhece a importacircncia da infacircncia no desenvolvimento humano por meio da

educaccedilatildeo na construccedilatildeo da cidadania Constata-se a finalidade da creche que deve

ser centrada na crianccedila para a formaccedilatildeo do cidadatildeo desde o nascimento direito

constitucionalmente garantido

Mas segundo Cury (2012) as instituiccedilotildees que ofertam a educaccedilatildeo infantil em

nosso paiacutes precisam de investimentos tanto na aacuterea pedagoacutegica como em

infraestrutura recursos didaacuteticos formaccedilatildeo continuada de professores projeto

poliacutetico pedagoacutegico entre outros para colocar em accedilatildeo os avanccedilos propostos pela lei

e tornarem-se espaccedilos de promoccedilatildeo e defesa da cidadania

Outro documento legal que trata do direito das crianccedilas agrave creche e agrave preacute-escola

eacute o Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA) Lei n 80691990 A referida lei

corrobora o que jaacute foi garantido constitucionalmente ou seja a obrigatoriedade do

Estado no atendimento agraves crianccedilas de 0 a 5anos em creches e preacute-escolas e a

incumbecircncia do municiacutepio na oferta da educaccedilatildeo infantil Avanccedila ainda ao propor a

criaccedilatildeo de instrumentos na defesa do atendimento aos direitos das crianccedilas e dos

adolescentes que satildeo os Conselhos dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente

A Constituiccedilatildeo Federal de 1988 ao dispor sobre a competecircncia da Uniatildeo para

legislar sobre as diretrizes e bases da educaccedilatildeo nacional deu iniacutecio a todo o processo

para promulgaccedilatildeo da Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional (LDB) Lei n

93941996 de 20 de dezembro de 1996 considerada a lei maacutexima da educaccedilatildeo

Nela a educaccedilatildeo infantil eacute concebida como a primeira etapa da educaccedilatildeo baacutesica

Desta forma o direito das crianccedilas de 0 a 5 anos agrave educaccedilatildeo em creches e preacute-

escolas que jaacute estava assegurado na Constituiccedilatildeo de 1988 e reafirmado no Estatuto

da Crianccedila e do Adolescente agora tambeacutem estaacute traduzido em diretrizes e normas no

acircmbito da educaccedilatildeo nacional o que representa um marco histoacuterico de grande

importacircncia para a educaccedilatildeo infantil em nosso paiacutes

A referida lei apresenta como finalidade da educaccedilatildeo baacutesica o

desenvolvimento do educando assegurando-lhe uma formaccedilatildeo para a cidadania

aleacutem de fornecer meios para a progressatildeo no mundo do trabalho e nos estudos Nela

101

haacute o reconhecimento de que a educaccedilatildeo comeccedila nos primeiros anos de vida por meio

da sua primeira etapa e eacute fundamental para a efetivaccedilatildeo de sua finalidade

O destaque atribuiacutedo pela nova LDB agrave educaccedilatildeo infantil o que natildeo ocorreu nas

legislaccedilotildees anteriores refere-se agrave sua finalidade ldquoo desenvolvimento integral da

crianccedila ateacute os cinco anos de idade em seus aspectos fiacutesico psicoloacutegico intelectual e

social complementando a accedilatildeo da famiacutelia e da comunidaderdquo (BRASIL 2015 p 4)

ofertada em creches ou entidades equivalentes para crianccedilas de ateacute trecircs anos de

idade e em preacute-escolas para as crianccedilas de quatro a cinco anos

A nova LDB ratificou o que estabeleceu a constituiccedilatildeo federal a educaccedilatildeo

infantil eacute responsabilidade do Municiacutepio mas incumbe a Uniatildeo no artigo 9ordm inciso III

o dever de ldquoprestar assistecircncia teacutecnica e financeira aos Estados ao Distrito Federal e

aos Municiacutepios para o desenvolvimento de seus sistemas de ensino e o atendimento

prioritaacuterio agrave escolaridade obrigatoacuteria exercendo sua funccedilatildeo redistributiva e

supletivardquo(BRASIL 2015 p 3)

Sendo prioridade o ensino fundamental a educaccedilatildeo infantilacaba ficando em

segundo plano principalmente nos municiacutepios daAmazocircnia que possuem poucos

recursos financeiros para atender todasas crianccedilas em idade escolar Isso fica

evidente na quantidade de escolasque oferecem esta etapa da educaccedilatildeo baacutesica que

de acordo com o IBGE em 2014 foram 132 escolas que ofertavam a educaccedilatildeo

infantil Estes nuacutemeros no entanto natildeo correspondem ao de escolas de educaccedilatildeo

infantil pois no referido municiacutepio existe somente uma especiacutefica que eacute o Centro de

Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery (CEI) A tabela a seguir mostra o atendimento no

periacuteodo de 2014 a 2016

Tabela 03 ndash Quantidade de Alunos matriculados no CEI

EDUCACcedilAtildeO

INFANTIL

ANO

2014 2015 2016

Creche 182 190 190

Preacute-escolar 659 403 403

Fonte Direccedilatildeo do Centro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery 2016

O decreacutescimo da quantidade de alunos do preacute-escolar a partir de 2015 ocorreu

devido agrave saiacuteda das crianccedilas com 6 anos de idade que passaram para o ensino

fundamental Assim o Centro atende atualmente crianccedilas de 2 a 5 anos de idade as

102

turmas do preacute-escolar ecreche satildeo formadas por 25 a 30 alunos com dois professores

por turma

No Plano Municipal de Educaccedilatildeo de Afuaacute (PME) para o periacuteodo de 2015-2025

consta como primeira Meta universalizar ateacute 2016 a educaccedilatildeo infantil na preacute-escola

para as crianccedilas de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade e ampliar a oferta de educaccedilatildeo

infantil em creches de forma a atender no miacutenimo 10 (dez por cento) das crianccedilas

ateacute 2025 Estamos em 2016 e ainda natildeo foram construiacutedas novas escolas de

educaccedilatildeo infantil tanto na aacuterea urbana como no campo condiccedilatildeo necessaacuteria para

expandir o nuacutemero de vagas com vistas a universalizar a preacute-escola

Na tabela abaixo apesentamos o percentual de atendimento das crianccedilas em

creches pelo municiacutepio bem como pela ilha do Marajoacute Paraacute Regiatildeo e Paiacutes

Tabela 04 ndash Percentual de atendimento das crianccedilas de 0 a 3 anos

META BRASIL 50 META AFUAacute 10

Populaccedilatildeo de Afuaacute de 0 a 3 anos

BRASIL

NORTE

PARAacute

MARAJOacute

AFUAacute

Crianccedilas de 0 a 3 anos natildeo atendidas pela creche em Afuaacute

3786

232

92

112

109

48

952

Fonte IBGEPesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelios (PNAD) ndash 2014

Segundo o PNAD em 2014 952 das crianccedilas estavam fora da creche

apenas uma minoria 48 teve acesso sendo a grande maioria excluiacuteda Na tabela

acima a meta de atendimento estabelecida para o Brasil eacute cinco vezes superior agrave

pretendida pelo Municiacutepio para um periacuteodo de 10 anos Caso seja concretizada ainda

teremos 90 das crianccedilas fora da escola a maioria oriunda da aacuterea rural-ribeirinha

fruto da ausecircncia do governo para essa etapa tatildeo importante da educaccedilatildeo das

crianccedilas na Amazocircnia

A Educaccedilatildeo infantil eacute um direito reconhecido na atual Constituiccedilatildeo Federal

incluso na educaccedilatildeo baacutesica pela Lei maacutexima da educaccedilatildeo e como princiacutepio da

proteccedilatildeo integral agrave infacircnciapelo ECA Para os gestores dos municiacutepios a oferta da

creche natildeo eacute obrigatoacuteria mas entendemos que o direito se aplica a todos os niacuteveis e

modalidades de ensino Apesar daemenda constitucional nordm 592009 estabelecer a

obrigatoriedade e gratuidade para as crianccedilas a partir de quatro anos de idade para

as de 0 a 3 anos haacute o direito e natildeo a obrigaccedilatildeo mas a partir do momento em que

103

existe demanda e os pais exigem vaga para seus filhos nasce o dever do Estado de

garantir o atendimento com qualidade

Fotografia 11ndashCentro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

No tocante agrave estrutura fiacutesica o preacutedio do CEI eacute todo em alvenariacom uma

infraestrutura composta de 12 (doze) salas de aula bibliotecabrinquedoteca

auditoacuterio sala de leitura e dos professoresO corpo docente eacute formado por 46

(quarenta e seis) professores sendo 20 com niacutevel meacutedio 26com niacutevel superior em

diversas licenciaturas como Letras Histoacuteria Geografia Artes Biologia Matemaacutetica

Educaccedilatildeo Fiacutesica e Pedagogia Nacoordenaccedilatildeo pedagoacutegica haacute uma orientadora e

uma supervisoraeducacional Aescola possui uma excelente estrutura fiacutesica e a

proposta pedagoacutegica tem como base o desenvolvimento de habilidades para a

alfabetizaccedilatildeo (SEMED 2016)

Como a meta do PME 2015-2025 eacute atender todas as crianccedilas de 4 a 5 anos

abaixo apresentamos o total de crianccedilas nessa faixa etaacuteria de acordo com dados do

IBGE

Tabela 05 -Percentual de atendimento das crianccedilas de 4 a 5 anos em Afuaacute

META BRASIL 100 META AFUAacute 100

POPULACcedilAtildeO 4 A 5 ANOS

BRASIL NORTE PARAacute MARAJOacute AFUAacute

1957 814 679 739 573 522 Fonte Estado Regiatildeo e Brasil - IBGEPesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelios (PNAD) ndash 2014

104

Os dados demonstram que ateacute o ano de 2013 somente 522 das crianccedilas

de 4 a 5 anos estavam matriculadas na preacute-escola a meta de garantir o acesso a

todas elas vai requerer investimento na construccedilatildeo de preacutedios concurso puacuteblico para

professores aquisiccedilatildeo de materiais pedagoacutegicos entre outros e para isso a

educaccedilatildeo infantil teraacute que ser prioridade do governo

Nas aacutereas ribeirinhas onde estaacute o maior nuacutemero de crianccedilas excluiacutedas da

creche e da preacute-escola natildeo existe escola especiacutefica para a educaccedilatildeo infantil Neste

trabalho retratamos especificamente a realidade da educaccedilatildeo no Regional Madeira

por motivo de ele ser o locus no qual realizamos a pesquisa de campo

A realidade da educaccedilatildeo infantil no Regional Madeira eacute totalmente diversa da

que evidenciamos acima natildeo haacute escolas especiacuteficasde educaccedilatildeo infantil e o

atendimento agrave preacute-escola eacute realizado nos estabelecimentos que oferecem o ensino

fundamentalQuando o nuacutemero chega a um total de 20 alunos26 na comunidade

forma-seuma turma multisseriada com crianccedilas de 4 e 5 anos Se natildeo houver

onuacutemero de alunos para se fechar uma turma especiacutefica as crianccedilas satildeoinseridas

nas classes multisseriadas do 1ordm ao 5ordm ano contrariando aResoluccedilatildeo nordm 2 de 28 de

abril de 2008 que estabelece as diretrizescomplementares normas e princiacutepios para

o desenvolvimento depoliacuteticas puacuteblicas de atendimento da Educaccedilatildeo Baacutesica do

Campo Em seuart 3ordm paraacutegrafo 2ordm ela afirma que ldquoem nenhuma hipoacutetese

seratildeoagrupadas em uma mesma turma crianccedilas de educaccedilatildeo infantil comcrianccedilas do

ensino fundamentalrdquo (BRASIL 2008 p 02)

Fotografia 12 ndash Classe multisseriada

26Nuacutemero de alunos estipulados pela SEMED para formar uma turma especiacutefica daeducaccedilatildeo infantil

105

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Na imagem acima temos uma sala de aula multisseriada de umaescola rural-

ribeirinha com alunos do preacute-escolar (crianccedilas de 4 e 5 anos)e dos anos inicias do

ensino fundamental Aturma eacute composta de um total de 35 alunos Na sala haacute

somente um quadro com atividade para o 3ordm e 4ordm ano enquanto o 1ordm e 2ordm estatildeo

resolvendoexerciacutecios no caderno Esta eacute a realidade de muitas escolas que oferecema

educaccedilatildeo infantil nas comunidades ribeirinhasA falta de recursos didaacuteticos de

merenda escolar e deassessoramento pedagoacutegico satildeo alguns dos problemas

enfrentados peloseducadores Como podemos perceber na fotografiaa escola

funcionaem uma casa cedida pela comunidade na qual reside tambeacutem aprofessora

Eacute um espaccedilo improvisado sem a estrutura fiacutesica de uma salade aula e o espaccedilo

reduzido inviabiliza que a docente circule na sala deaula Essa realidade tambeacutem se

estende ao ensino fundamental e meacutedioque descrevemos a seguir

242 Ensino Fundamental e Meacutedio

A inclusatildeo das crianccedilas a partir de seis anos de idade no ensino fundamental

teve impacto na composiccedilatildeo das classes multisseriadas e consequentemente na

organizaccedilatildeo do trabalho pedagoacutegico do professor anteriormente essas crianccedilas

estavam matriculadas na educaccedilatildeo infantil e nas escolas ribeirinhas poucas tinham

acesso a esta etapa da educaccedilatildeo baacutesica Com a lei nordm 112742006 houve alteraccedilatildeo

na idade miacutenima para a matriacutecula inicial que passou de sete para seis anos de idade

com duraccedilatildeo de nove anos Esta etapa da educaccedilatildeo baacutesica tem por objetivo

106

I - o desenvolvimento da capacidade de aprender tendo como meios baacutesicos o pleno domiacutenio da leitura da escrita e do caacutelculo II - a compreensatildeo do ambiente natural e social do sistema poliacutetico da tecnologia das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade III - o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem tendo em vista a aquisiccedilatildeo de conhecimentos e habilidades e a formaccedilatildeo de atitudes e valores IV - o fortalecimento dos viacutenculos de famiacutelia dos laccedilos de solidariedade humana e de toleracircncia reciacuteproca em que se assenta a vida social (BRASIL 2015 p 4)

Portanto antes da lei nordm 112742006 as crianccedilas de seis anos pertenciam agrave

educaccedilatildeo infantil mas atualmente devem estar matriculadas no primeiro ano do

Ensino Fundamental Essa alteraccedilatildeo provocou e ainda provoca uma seacuterie de

indagaccedilotildees e posicionamentos tanto contraacuterios como favoraacuteveis ao Ensino de Nove

Anos

Segundo Arelaro etal (2011) para o Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) a

obrigatoriedade do ensino fundamental a partir dos seis anos de idade traz a garantia

do acesso principalmente para as crianccedilas oriundas da classe menos favorecida

economicamente Verificou-se por meio de pesquisas que as crianccedilas de 6 anos das

classes meacutedia e alta jaacute estavam matriculadas em escolas e que seria necessaacuterio incluir

as classes desfavorecidas Dentre os fatores de exclusatildeo escolar estava a falta de

vagas na educaccedilatildeo infantil puacuteblica diante da constataccedilatildeo dessa realidade o ensino

fundamental de nove anos assegurariao aumento de matriacuteculas nas escolas

brasileiras eo cumprimento do direito das crianccedilas agrave educaccedilatildeo

A legislaccedilatildeo e os documentos norteadores da implantaccedilatildeo da politica do ensino

fundamental de nove anos corroboram com esta visatildeo

[] a ampliaccedilatildeo do ensino fundamental para nove anos que significa bem mais que a garantia de mais um ano de escolaridade obrigatoacuteria eacute uma oportunidade histoacuterica de a crianccedila de seis anos pertencente agraves classes populares ser introduzida a conhecimentos que foram fruto de um processo soacutecio-histoacuterico de construccedilatildeo coletiva (BRASIL 2007 p 61-62)

Discurso natildeo condizente com a Constituiccedilatildeo Federal no art 208 assegura que

eacute dever do Estado e direito das crianccedilas e das famiacutelias a matriacutecula na educaccedilatildeo

infantil portanto a crianccedila com seis anos de idade tem direito agrave educaccedilatildeo infantil na

preacute-escola Para Arelaro et al (2011) o reconhecimento por parte do governo da natildeo

oferta de vagas suficientes para atender a demanda desta etapa da educaccedilatildeo baacutesica

serviria para intervir com apoio teacutecnico-financeiro junto aos municiacutepios para o

cumprimento de sua responsabilidade constitucional ldquoNo entanto a opccedilatildeo foi por uma

poliacutetica nacional de novo loacutecus de estudo dessa crianccedila uma transferecircncia de etapa

107

de ensino que significou uma mudanccedila radical de diversos aspectos no atendimentordquo

(p 5)

Para Angotti (2014) o ensino Fundamental de Nove Anos vai de encontro aos

avanccedilos conseguidos legalmente em relaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo infantil demonstrando em

seus estudos que a inclusatildeo da crianccedila aos seis anos de idade no ensino

fundamental de certa forma contrapotildee-se agraves conquistas da Educaccedilatildeo Infantil

ocorridas lentamente ao longo de deacutecadas

Essa mudanccedila teve como principal consequecircncia a inclusatildeo das crianccedilas de 6

anos na faixa da educaccedilatildeo considerada obrigatoacuteria diminuindo as matriacuteculas no

uacuteltimo ano da preacute-escola e engrossando aquelas nas classes iniciais afirma Campos

(2012) Segundo a autora natildeo aconteceu a transiccedilatildeo que eacute importante do ponto de

vista pedagoacutegico e outros aspectos dentre os quais a preparaccedilatildeo dos professores em

serviccedilo para trabalhar com os alunos mais novos a explicaccedilatildeo aos pais referente aos

motivos dessa mudanccedila a adaptaccedilatildeo de preacutedios equipamentos mobiliaacuterios e

materiais escolares Diante de todas essas necessidades que natildeo foram levadas em

consideraccedilatildeo o ensino fundamental de nove anos apresenta problemas natildeo

solucionados ateacute hoje ldquoTalvez um dos mais seacuterios seja a antecipaccedilatildeo da repetecircncia

para nuacutemero expressivo de alunos do primeiro ano pois os curriacuteculos natildeo foram

revistos de forma generalizada e muitas redes de ensino natildeo adotam o sistema de

ciclosrdquo (CAMPOS 202 p 11) Consequentemente escola de nove anos tem a

obrigaccedilatildeo de ser para os educandos um espaccedilo de aprendizagem e natildeo a

antecipaccedilatildeo de experiecircncias de fracasso

Kramer (2006)por seu turno considera uma conquista a inclusatildeo das crianccedilas

de 6 anos no ensino fundamental para a autora eacute a garantia do ingresso de todas

elas na escola fato que natildeo acontecia anteriormente haja vista que a educaccedilatildeo

infantil natildeo atendia agrave demanda da clientela dos municiacutepios e com a inclusatildeo no

ensino fundamental torna-se direito puacuteblico subjetivo Para o sucesso da crianccedila

nessa nova etapa da educaccedilatildeo baacutesica faz-se necessaacuterio

[] que o planejamento e o acompanhamento pelos adultos que atuam na educaccedilatildeo infantil e no ensino fundamental devem levar em conta a singularidade das accedilotildees infantis e o direito agrave brincadeira agrave produccedilatildeo cultural na educaccedilatildeo infantil e no ensino fundamental (KRAMER 2006 p 805)

Nesta perspectiva o diaacutelogo entre essas duas etapas da educaccedilatildeo baacutesica eacute

fundamental para o desenvolvimento infantil mas precisa ir aleacutem da escola

abarcando a dimensatildeo poliacutetica visando agrave construccedilatildeo de curriacuteculos e propostas

108

pedagoacutegicas que possam atender agraves suas especificidades Nesse sentido Miranda

(2010) acrescenta que o ensino fundamental de nove anos possibilita um tempo maior

para a aprendizagem mas para isso faz-se necessaacuterio repensaro preparo da equipe

pedagoacutegica e a formaccedilatildeo continuada dos professores

Quanto agrave oferta desta etapa da educaccedilatildeo baacutesica no municiacutepio de Afuaacute os

dados abaixo retratam a saiacuteda paulatina do Estado queculminou com a

municipalizaccedilatildeo que de acordo com a tabela 3 intensificou-se a partir de 1998 Em

vez de promover auniversalizaccedilatildeo do ensino atraveacutes de accedilotildees de cooperaccedilatildeo e

colaboraccedilatildeoentre os respectivos sistemas o que eacute permitido pela nova LDB optou-

sepor transferir para o Municiacutepioas obrigaccedilotildees que originariamente foram do

EstadoAfuaacute que ateacute 1998 atendia somente aos alunos da educaccedilatildeo infantil e dos

anos iniciais do ensino fundamentalassumiu a partir de 2000 todo o segmento do

ensino fundamental

Tabela 06 ndash Estabelecimentos de ensino fundamental por dependecircncia administrativa

ANOS

ESTABELECIMENTOS

Estadual Municipal Particular Total

1996 17 136 - 153

1997 17 115 1 133

1998 15 158 1 174

1999 13 192 1 206

2000 - 197 1 198

Fonte MECINEPSEDUC 2000

Na aacuterea urbana foram matriculados em 2016 2765 alunos do 1ordm ao 9ordm ano do

ensino fundamental nas quatro escolas existentes na cidade desse total somente uma

escola atende duas turmas de Educaccedilatildeo de Jovens e Adultos (EJA) uma com 10 (1ordf

etapa) e outra com 23 (2ordf etapa) alunos A justificativa dos gestores para a natildeo oferta

da EJA estaacute na ausecircncia de alunos ou seja de clientela para a referida modalidade

da educaccedilatildeo baacutesica Segundo o IBGE o iacutendice de analfabetismo da populaccedilatildeo acima

de 15 anos no referido municiacutepio foi de 208 em 2014 De acordo com a Pesquisa

Nacional por Amostra de Domiciacutelios a taxa de analfabetismo entre brasileiros com 15 anos

ou mais em 2014 foi estimada em 83 (IBGE 2014) Os dados da anaacutelise situacional do

PME 2015-2025 indicam que a escolaridade meacutedia da populaccedilatildeo da aacuterea urbana de 18 a

29 anos eacute de 48 e da rural na mesma faixa etaacuteria eacute de 36 Portanto existe uma demanda

109

de jovens e adultos aleacutem de que o ensino fundamental eacute direito puacuteblico subjetivo inclusive

para aqueles que natildeo tiveram acesso na idade proacutepria (BRASIL 2016) A ausecircncia do

Estado e do Municiacutepio deixa a populaccedilatildeo agrave margem dos direitos legalmente garantidos no

art 37 paraacutegrafo 1ordm da nova LDB

Os sistemas de ensino asseguraratildeo gratuitamente aos jovens e aos adultos que natildeo puderam efetuar os estudos na idade regular oportunidades educacionais apropriadas consideradas as caracteriacutesticas do alunado seus interesses condiccedilotildees de vida e de trabalho mediante cursos e exames (BRASIL 2016 p 4)

A diminuiccedilatildeo das matriacuteculas e as altas taxas de evasatildeo na EJA requerem por parte

do poder puacuteblico accedilotildees voltadas para o desenvolvimento de programas mais eficazes

para esta clientela Segundo Sanches (2014 p 78) Os programas de Educaccedilatildeo de

Jovens e Adultos estatildeo sofrendo queda de matriacuteculas e natildeo haacute como mudar a realidade

do analfabetismo sem programas especiacuteficos para esta faixa etaacuteriaTais programas

deveratildeo estar baseados em propostas pedagoacutegicas que levem em consideraccedilatildeo as

caracteriacutesticas do alunado seus interesses condiccedilotildees de vida e de trabalho desta

forma responderatildeo agrave realidade dessa populaccedilatildeo

Consta no PME 2015-2025 do municiacutepio que a meta seraacute o atendimento de toda

demanda do ensino fundamental ldquoUniversalizar o Ensino Fundamental de 9 (nove)

anos para toda a populaccedilatildeo de 6 (seis) a 14 (quatorze) anos e garantir que pelo menos

50 (cinquenta) dos alunos concluam essa etapa na idade recomendadardquo (PME

2015 p 4)

No municiacutepio eacute elevado o iacutendice de alunos com distorccedilatildeo idade-seacuterie que

ocorre quando a diferenccedila entre a idade do aluno e a idade prevista para a seacuterie eacute

de dois anos ou mais

Tabela 07 - Distorccedilatildeo idadeseacuterie no ensino fundamental

ENSINO FUNDAMENTAL NUMERO DE ALUNOS DISTORCcedilAtildeO IDADE

SEacuteRIE

Anos Iniciais 8206

449

Anos Finais 4279

607

Fonte Plano Municipal de Educaccedilatildeo do municiacutepio de Afuaacute 2015-2025

Nos anos iniciais do ensino fundamental a distorccedilatildeo idade-seacuterie equivale a quase

metade dos alunos matriculados enquanto que nos finais equivale a mais da metade dos

alunos As pesquisas retratam que os principais motivos tanto da evasatildeo como da

110

distorccedilatildeo idade-seacuterie nas aacutereas rurais ribeirinhas estatildeo relacionados ao trabalho de

extraccedilatildeo de madeira corte de palmito coleta do accedilaiacute pesca roccedila entre outras

atividades econocircmicas (HAGE 2013)

No tocante ao aproveitamento escolar a tabela a seguir apresenta os dados do

desempenho nas escolas da aacuterea urbana no ano de 2015

Tabela 08 - Taxa de rendimento escolar no ensino fundamental em 2015 ndash aacuterea urbana

Nordm DE ALUNOS APROVADOS REPROVADOS EVADIDOS

2964 2239 440 285

Fonte Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo de Afuaacute 2016

Alguns fatores satildeo responsaacuteveis pelo aumento do desempenhodos alunos das

escolas situadas na aacuterea urbana Entre eles estatildeo aestabilidade dos professores que

a partir dos concursos puacuteblicos realizados passaram a fazer parte do quadro de

servidores efetivos doMuniciacutepio assim sendo natildeo haacute docentes do contrato

administrativoatuando nas escolas da cidade Com a estabilidade as questotildees

deinterferecircncias poliacutetico-partidaacuterias ficaram mais fragilizadas e oprofessor mais livre

para desenvolver o seu trabalho aumentando a suapermanecircncia em uma

determinada escola

Outro fator importante eacute a quantidade de alunos por sala de aulaque varia de

30 a 35 As escolas satildeo todas em alvenaria possuem nos seusquadros de recursos

humanos 70 dos docentes com graduaccedilatildeo diretor serventes pessoal de apoio

administrativo secretaacuterio escolar supervisor e orientador educacional Mesmo com

os fatores acima listados ainda eacuteexpressivo o iacutendice de evasatildeo e reprovaccedilatildeo escolar

Dentre as escolas da aacuterea urbana somente a uacutenica situada nobairro perifeacuterico

o Capimarinho natildeo possui um espaccedilo fiacutesico para abiblioteca ficando os livros

distribuiacutedos no laboratoacuterio de informaacutetica que tambeacutem natildeo funciona devido agrave rede

eleacutetrica que natildeo eacute adequada para comportar a carga de energia necessaacuteria para o

funcionamento das maacutequinas

Fotografia 13ndashLaboratoacuterio de Informaacutetica da EMEF Frei Faustino Lagarda

111

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

O laboratoacuterio de informaacutetica serve como depoacutesito para guardar livros e demais

materiais aleacutem de espaccedilo para aulas de muacutesica Na fotografia o professor estaacute

escolhendo os livros que estatildeo na estante acima da bancada dos computadorespara

trabalhar com seus alunos na sala de aula Os computadores jaacute estatildeo haacute mais de

cinco anos na escola e nunca foram utilizados por alunos e professores

O bairro Capimarinho como afirmado anteriormente surgiude invasotildees e eacute

habitado por famiacutelias pobres muitas oriundas das aacutereasrurais-ribeirinhas e a uacutenica

instituiccedilatildeo de ensino ali localizada natildeo tem aestrutura fiacutesica que as outras trecircs situadas

no bairro central possuemcomo laboratoacuterio de informaacutetica sala de leitura biblioteca

e sala deviacutedeo Mas o diferencial natildeo estaacute somente na escola da periferia as escolas

rurais ribeirinhas tambeacutem natildeo dispotildeem de estrutura fiacutesica e derecursos humanos

necessaacuterios

As escolas de ensino fundamental ribeirinhas totalizam 206 Amaioria tem

preacutedio proacuteprio construiacutedo pelaprefeitura com uma ou mais salas de aula banheiro

secretaria despensae local para o preparo da merenda e mais 35 anexos (salas de

aula quefuncionam em barracotildees igrejas centros comunitaacuterios casa doprofessor ou

do representante da comunidade) Na realidade os anexossatildeo escolas pois natildeo haacute

um contato intensivo com a gestatildeo da escola agravequal satildeo anexados o professor fica

112

isolado e assume a gestatildeoadministrativa e pedagoacutegica sozinho aleacutem de lecionar para

as turmas deeducaccedilatildeo infantil e os anos iniciais do ensino fundamental de

formamultisseriada

Fotografia 14 -Escola ribeirinha que funciona como anexo

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A casa na imagemeacute a residecircncia do representante dacomunidade e a sala foi

cedida para a escola funcionar O professorreside com a famiacutelia do proprietaacuterio pois

assim como natildeo existe preacutedioescolar tambeacutem natildeo haacute alojamento

Fotografia 15 - Sala de aula de uma escola ribeirinha que funciona como anexo

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A imagem acima retrata a sala de aula que funciona na residecircncia cedida pelo

representante da comunidade Observe que natildeo haacute cartazes pregados na parede

113

issoocorre porque as crianccedilas filhas do proprietaacuterio os rasgam e arrancam Antes de

pregaacute-los o professor tem que pedirautorizaccedilatildeo ao dono da casa As cadeiras no

teacutermino da aula devem serarrumadas em ciacuterculo desta forma os moradores teratildeo

espaccedilo paracircular e atar as redes para dormir agrave noite

As aulas neste ambiente sofrem vaacuterias interferecircncias passagemde visitas

pela sala choro de crianccedilas barulho de muacutesicas e de programasde raacutedio conflitos

entre os moradores da casa entre outros O professornatildeo tem autonomia para discutir

os assuntos referentes agraves diversasdisciplinas pois precisa ter cuidado com o que fala

aos alunos quandoo(a) dono(a) natildeo concorda com o que estaacute sendo ensinado

acabainterferindo na aula emitindo opiniatildeo contraacuteria

Nas escolas ribeirinhas do Regional investigado haacute escassez de recursos

didaacuteticos a merenda escolar natildeo eacute suficiente paraatender a demanda durante todo o

mecircs natildeo existe biblioteca nemalojamento mesmo nas que tecircm preacutedio proacuteprio Isto

leva os professores amorarem na sala de aula ou com famiacutelias que gentilmente os

acolhem pois se assim natildeo fizerem acabam ficando sem professor e os filhos

semestudar

3 PERCURSO METODOLOacuteGICO

31 TIPO E LOCAL DA PESQUISA

114

O problema e os objetivos levaram-nos a desenvolver uma pesquisa baseada

na abordagem qualitativa pois necessitou de uma imersatildeo no contexto no qual se

desenvolve a praacutetica docente Bogdan e Biklen (1994 p 48) afirmam que os

investigadores qualitativos ldquofrequentam os locais de estudo porque se preocupam com

o contexto Entendem que as accedilotildees podem ser melhor compreendidas quando

observadas no seu ambiente natural de ocorrecircnciardquo O ambiente natural onde ocorre

a praacutetica docente eacute a sala de aula concebida como os vaacuterios espaccedilos utilizados para

ensinar e aprender neste ambiente eacute possiacutevel interpretar a realidade dos sujeitos

investigados atraveacutes da descriccedilatildeo de dados que vatildeo aleacutem das falas e dos espaccedilos

ocupados pelos sujeitos que satildeo situados em um contexto histoacuterico social

econocircmico poliacutetico e cultural Todos os dados desse contexto satildeo importantes

A abordagem da investigaccedilatildeo qualitativa exige que o mundo seja examinado com a ideacuteia de que nada eacute trivial que tudo tem potencial para constituir uma pista que nos permita estabelecer uma compreensatildeo mais esclarecedora do nosso objecto de estudo (BOGDAN BIKLEN 1994 p 49)

Aleacutem do ambiente natural explicam os autores que a pesquisa qualitativa

requer o contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente e a situaccedilatildeo que

estaacute sendo investigada o que pressupotildee um tempo significativo a ser passado na

escola aplicando as teacutecnicas para a produccedilatildeo dos dados haja vista que ldquoo processo

de conduccedilatildeo de investigaccedilatildeo qualitativa reflecte uma espeacutecie de diaacutelogo entre os

investigadores e os respectivos sujeitos dados estes natildeo serem abordados por

aqueles de uma forma neutrardquo (BOGDAN BIKLEN 1994 p 51)

Sobre a neutralidade para Chizzotti (2003 p 79) a abordagem qualitativa

parte do princiacutepio de que

[] haacute uma relaccedilatildeo dinacircmica entre o mundo real e o sujeito uma interdependecircncia viva entre sujeito e objeto um vinculo indissociaacutevel entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito O conhecimento natildeo se reduz a um rol de dados isolados [] o sujeito observador eacute parte integrante do processo de conhecimento e interpreta os fenocircmenos atribuindo-lhes um significado O objeto natildeo eacute um dado inerte e neutro estaacute possuiacutedo de significados e relaccedilotildees que sujeitos concretos criam em suas relaccedilotildees

Portanto fica evidente que nesta abordagem o pesquisador exerce um papel

fundamental suas concepccedilotildees valores e representaccedilotildees estaratildeo presentes nos

significados que atribuiraacute aos fenocircmenos analisados

Dentre os pressupostos epistemoloacutegicos que embasam a abordagem

qualitativa optamos pela perspectiva dialeacutetica que segundo Chizzotti (2003 p 81)

[] valoriza a contradiccedilatildeo dinacircmica do fato observado e a atividade criadora do sujeito que observa as oposiccedilotildees contraditoacuterias entre o todo e a parte e os

115

viacutenculos do saber e do agir com a vida social dos homens O pesquisador eacute um ativo descobridor do significado das accedilotildees e das relaccedilotildees que se ocultam nas estruturas sociais

Trivintildeos (2007 p 129) apresenta algumas caracteriacutesticas desta perspectiva

que ele chama de histoacuterico-estrutural-dialeacutetica Satildeo elas

[] parte da descriccedilatildeo que intenta captar natildeo soacute a aparecircncia do fenocircmeno como tambeacutem sua essecircncia Busca poreacutem a causa da existecircncia dele procurando explicar sua origem suas relaccedilotildees suas mudanccedilas [] aprecia o desenvolvimento do fenocircmeno natildeo soacute em sua visatildeo atual que marca apenas o iniacutecio da anaacutelise como tambeacutem penetra em sua estrutura iacutentima latente inclusive natildeo visiacutevel ao observaacutevel para descobrir suas relaccedilotildees e avanccedilar no conhecimento de seus aspectos evolutivos tratando de identificar as forccedilas decisivas responsaacuteveis por seu desenrolar [] o fenocircmeno tem sua proacutepria realidade fora da consciecircncia Ele eacute real concreto e como tal eacute estudado

Dentre os tipos de pesquisa qualitativa optamos pela etnograacutefica por

possibilitar investigar de forma mais abrangente os aspectos relacionados agrave cultura

dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute dentre os quais os valores os haacutebitos as crenccedilas

linguagens e significados que estatildeo diretamente ligados agrave produccedilatildeo do saber popular

que norteia as praacuteticas dos povos das aacuteguas A pesquisa etnograacutefica segundo Andreacute

(2013 p 25) envolve

[] um trabalho de campo O pesquisador aproxima-se de pessoas situaccedilotildees locais eventos mantendo com eles um contato direto e prolongado Como se daacute esse contato Primeiro natildeo haacute pretensatildeo de mudar o ambiente introduzindo modificaccedilotildees que seratildeo experimentalmente controladas como na pesquisa experimental Os eventos as pessoas as situaccedilotildees satildeo observados em sua manifestaccedilatildeo natural

Desenvolvemos o trabalho de campo na ilha do Accedilaiacute que pertence ao

municiacutepio de Afuaacute Passamos quatro meses imersos nas cinco comunidades

ribeirinhas que formam o arquipeacutelago nesse periacuteodo participamos das atividades

produtivas culturais religiosas e sociais Por meio dos instrumentos para coleta de

dados e da convivecircncia com os moradores da ilha procuramos retratar a maneira

como os sujeitos vivem e convivem assim como as suas experiecircncias e o mundo que

ascerca Na etnografia

Os dados satildeo mediados pelo instrumento humano o pesquisador O fato de ser uma pessoa o potildee numa posiccedilatildeo bem diferente de outros tipos deinstrumentos porque permite que ele responda ativamente agraves circunstacircncias que o cercam modificando teacutecnicas de coleta se necessaacuterio revendo as questotildees que orientam a pesquisa localizando novos sujeitos revendo toda a metodologia ainda durante o desenrolar do trabalho (ANDRE 2013 p 25)

116

Foi o que aconteceu no decorrer desta investigaccedilatildeo modificamos algumas

teacutecnicas de coleta de dados pois inicialmente pretendiacuteamos aplicar o formulaacuterio mas

no decorrer da pesquisa percebemos que este instrumento natildeo atenderia aos

objetivos propostos bem como apoacutes a execuccedilatildeo de algumas entrevistas

percebemos a necessidade de incluir ou retirar questotildees do roteiro ou ainda tornaacute-las

mais claras e objetivas para a compreensatildeo dos entrevistados

Realizamos o trabalho de campo nas cinco comunidades ribeirinhas e nas

escolas localizadas nessas comunidades que pertencem ao Regional Madeira

descritas na tabela abaixo

Tabela 09 ndash Escolas que compotildeem o Regional Madeira com o nuacutemero de alunos no ano de 201627

Escola

Ed

Infantil

Ensino Fundamental Nordm de

Alunos 1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm 7ordm 8ordm 9ordm

A 10 12 10 13 9 7 12 11 19 12 140

B 14 15 10 10 9 8 8 7 7 6 94

C 04 12 9 8 7 7 6 5 - - 58

D 9 10 9 8 7 8 8 7 - - 66

E 6 10 8 7 5 3 - - - - 39

FONTE Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo do Municiacutepio de Afuaacute ndash SEMED2016

De acordo com a tabela todas as escolas oferecem a educaccedilatildeo infantil e as

seacuteries iniciais do ensino fundamental Os dados acima tambeacutem mostram que somente

duas oferecem todos os anos do ensino fundamental as escolas A e B A primeira eacute

a polo na qual reside o diretor que eacute responsaacutevel pela gestatildeo administrativa e

pedagoacutegica das outras escolas pertencentes ao Regional A segunda eacute a mais

distante do Regional motivo pelo qual atende aos alunos das seacuteries finais do ensino

fundamental do seu entorno Quanto agrave infraestrutura a escola polo eacute a uacutenica com o

preacutedio totalmente em alvenaria e com as seguintes dependecircncias duas salas de aula

secretaria escolar cozinha e depoacutesito O quadro de funcionaacuterios natildeo docentes eacute

composto por uma secretaacuteria escolar duas serventes e uma merendeira todas

residentes na comunidade

Fotografia 16 - Escola Polo

27Para garantir o anonimato das escolas que compotildeem o Regional Madeira utilizamos letras para identificaacute-las

117

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Em relaccedilatildeo agraves outras escolas a B estaacute situada agrave margem do rio Caetano com

quatro salas de aula cozinha e depoacutesito Natildeo haacute alojamento para os professores que

dormem nas salas de aula agrave noite e guardam seus pertences (roupas sapatos e

produtos de higiene pessoal entre outros) no depoacutesito O quadro de profissionais natildeo

docentes eacute formado por uma servente e uma merendeira

Fotografia 17 - Preacutedio da Escola B

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Os preacutedios das escolas C e D seguem o mesmo padratildeo da fotografia acima

O preacutedio da escola E natildeo apresentava condiccedilotildees de funcionamento no periacuteodo

em que fizemos a pesquisa de campo motivo pelo qual os alunos estavam tendo aula

118

na casa do representante da comunidade desde o mecircs de fevereiro do corrente ano

o que gerou vaacuterios problemas em relaccedilatildeo agrave gestatildeo pedagoacutegica e ao espaccedilo escolar

tais como interferecircncias das pessoas da famiacutelia que passavam constantemente pela

sala tirando a atenccedilatildeo dos alunos barulho com choro das crianccedilas da casa briga

entre os membros da famiacutelia do dono do espaccedilo entre outros Fotografia 18 - Preacutedio da Escola E

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Na tabela abaixo descrevemos cada instituiccedilatildeo de ensino com os respectivos

niacuteveis de atendimento da educaccedilatildeo baacutesica

Tabela 10 ndash Distribuiccedilatildeo das turmas da Educaccedilatildeo Infantil e anos iniciais do ensino fundamental por professor

Escolas Ed Infantil Ensino Fundamental Nordm de Professores

A 1ordm e 2ordm periacuteodos 1ordm e 2ordm ano 01

3ordm4ordm e 5ordm ano 01

B 1ordm e 2ordm periacuteodos 1ordm e 2ordm ano 01

3ordm4ordm e 5ordm ano 01

C 2ordm periacuteodo 1ordm e 2ordm ano 01

3ordm4ordm e 5ordm ano 01

D 1ordm 2ordm periacuteodos 1ordm e 2ordm ano 01

3ordm4ordm e 5ordm ano 01

E 2ordm periacuteodo 1ordm 2ordm 3ordm 4 e 5ordm ano 01

FONTE Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo do Municiacutepio de Afuaacute ndash SEMED2016

119

Ao analisar a tabela acima constatamos que todas as escolas do regional

possuem turmas multisseriadas28 do preacute-escolar ao 5ordm ano motivo pelo qual

realizamos a pesquisa de campo em todas elas bem como fizemos observaccedilatildeo da

praacutetica docente e as entrevistas semiestruturadas

32 PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS PARA A COLETA DE DADOS NA

PESQUISA

As pesquisas qualitativas de acordo com Alves-Mazzotti (2002 p 163) satildeo

ldquomultimetodoloacutegicas isto eacute usam uma grande variedade de procedimentos e

instrumentos para coleta de dadosrdquo Assim sendo para a produccedilatildeo dos dados foram

realizadas entrevistas semiestruturadas a observaccedilatildeo analiacutetica e participante29 e a

fotografia

A entrevista semiestruturada eacute concebida por Laville e Dione (2000) como uma

seacuterie de perguntas feitas verbalmente em uma ordem prevista mas na qual o

pesquisador pode acrescentar perguntas de esclarecimento agraves questotildees

fundamentais Tendo como referecircncia o problema de pesquisa e os objetivos

propostos elaboramos o roteiro das entrevistas

Realizamos inicialmente um teste piloto com quatro professores objetivando

testar o referido roteiro A partir desta avaliaccedilatildeo reorganizamos o roteiro das

entrevistas Tambeacutem efetivamos um teste piloto do roteiro da entrevista para os

moradores Aplicamos o teste para trecircs moradores e em seguida fizemos a

reformulaccedilatildeo das perguntas para tornaacute-las mais compreensiacuteveis por parte dos

sujeitos

As entrevistas foram gravadas mediante a autorizaccedilatildeo dos entrevistados ldquoa

gravaccedilatildeo direta tem a vantagem de registrar todas as expressotildees orais

imediatamente deixando o entrevistador livre para prestar toda atenccedilatildeo ao

entrevistadordquo (LUDKE ANDREacute 2006 p 37) As entrevistas com os professores foram

realizadas em diferentes momentos antes e apoacutes as aulas e em diferentes espaccedilos

como na casa do professorprofessora e na escola (sala de aula) Ressaltamos este

detalhe para enfatizar a disponibilidade dos sujeitos em colaborar com nosso estudo

Entrevistamos 9 (nove) professores que trabalham com a educaccedilatildeo infantil e

os anos iniciais do ensino fundamental sendo 6 (seis) mulheres e 3 (trecircs) homens

28Consideramos neste estudo como classes multisseriadas as que satildeo formadas por mais de um ano do ensino fundamental na qual somente um docente leciona no mesmo espaccedilo e tempo 29 Ver roteiro em anexo

120

com idade entre 22 a 45 anos O tempo de experiecircncia docente com classes

multisseriadas variou em torno de 6 a 25 anos Adotamos como criteacuterio para a seleccedilatildeo

dos sujeitos somente a atuaccedilatildeo com turmas da educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do

ensino fundamental organizadas de forma multisseriada nas escolas ribeirinhas

pertencentes ao Regional

Quanto aos moradores sujeitos da pesquisa realizamos as entrevistas em

diversos espaccedilos como na residecircncia do entrevistado e no desenvolvimento das

praacuteticas produtivas Para realizar um estudo a partir das memoacuterias dos moradores da

ilha do Accedilaiacute em relaccedilatildeo aos saberes presentes no discurso e nas praacuteticas cotidianas

dos ribeirinhos entrevistamos dez moradores das comunidades que compotildeem a ilha

do Accedilaiacute Os criteacuterios para a seleccedilatildeo foram morador mais antigo na comunidade

participante de praacuteticas produtivas (pesca caccedila e colheita do accedilaiacute) idosos e

curandeiros (benzedores e parteiras) e aluno regularmente matriculado na escola no

ano de 2016 Todos os moradores entrevistados participam das praacuteticas produtivas e

satildeo identificados na pesquisa por pseudocircnimos para preservar o anonimato

Aleacutem das entrevistas fizemos a observaccedilatildeo participante que eacute definida por

Minayo ( 2004 p 62) como

[] um processo pelo qual se manteacutem a presenccedila do observador numa situaccedilatildeo social com a finalidade de realizar uma investigaccedilatildeo cientiacutefica na qual o observador estaacute face a face com os observados Ao participar da vida deles no seu cenaacuterio cultural colhe dados e se torna parte do contexto sob observaccedilatildeo ao mesmo tempo modificando e sendo modificado por este

Para a realizaccedilatildeo da observaccedilatildeo participante nas comunidades ribeirinhas que

formam a ilha a minha inserccedilatildeo deu-se de forma gradual Inicialmente apresentei-me

como pesquisador explicando os motivos e os objetivos da pesquisa Em seguida

para a aproximaccedilatildeo com os ribeirinhos envolvi-me nas atividades cotidianas tais

como apanhar accedilaiacute pescar caccedilar plantar na roccedila ajudar na confecccedilatildeo de paneiros

e matapi bem como na venda do accedilaiacute na rampa da Santa Inecircs30 remar para os

pescadores quando saiam para fachiar31 agrave noite jogar futebol dominoacute baralho entre

outras

Como assinala Trivintildeos (2007) a observaccedilatildeo permite que o pesquisador

chegue mais perto da perspectiva dos sujeitos agrave medida queo observador

30Trapiche no qual os catraios que vem das ilhas do Marajoacute atracam para vender peixe camaratildeo

frutas verduras e principalmente accedilaiacute 31 Pescar a noite com a zagaia

121

acompanha in loco as experiecircncias diaacuterias dos sujeitos por tentar apreender a sua

visatildeo de mundo isto eacute o significado que eles atribuem agrave realidade que os cerca e agraves

suas proacuteprias accedilotildees

Alves-Mazzotti (2002 p 164) elenca as vantagens atribuiacutedas agrave observaccedilatildeo

enquanto teacutecnica para produccedilatildeo de dados

[] a) permite checar na praacutetica a sinceridade de certas respostas que agraves vezes satildeo dadas soacute para causar boa impressatildeo b) permite identificar comportamentos natildeo intencionais ou inconscientes e explorar toacutepicos que os informantes natildeo se sentem agrave vontade para discutir c) permite o registro do comportamento em seu contexto temporal-espacial

Em relaccedilatildeo aos professores realizamos a observaccedilatildeo analiacutetica da praacutetica

pedagoacutegica dos nove professores totalizando 100 da amostra As observaccedilotildees

foram realizadas no iniacutecio do mecircs de fevereiro ateacute o final do mecircs de maio do corrente

ano Passamos em meacutedia 20 dias em cada escola com 4 (quatro horas) diaacuterias na

sala de aula de cada professor realizando as observaccedilotildees Para preservar o

anonimato dos sujeitos optamos por identificaacute-los como Prof1 Prof2 Prof3 Prof4

Prof5 Prof6 Prof7 Prof8 e Prof9

Neste estudo partimos do princiacutepio de que a praacutetica pedagoacutegica docente se

desenvolve na escola que estaacute inserida em um contexto histoacuterico econocircmico social

poliacutetico e cultural e natildeo podemos estudaacute-la dissociada desse contexto (LUCKESI

2003)

Corroborando a afirmaccedilatildeo acima Andreacute (2003) apresenta trecircs dimensotildees que

necessitam ser consideradas quanto ao estudo da praacutetica escolar cotidiana entre elas

estaacute a institucional que envolve o contexto no qual esta praacutetica acontece ldquoA dimensatildeo

institucional age assim como um elo entre a praacutexis social mais ampla e aquilo que

ocorre no interior da escolardquo (ibidem p 43) Assim para compreender e analisar o

que ocorre no interior da escola os fatores externos a ela devem ser levados em

consideraccedilatildeo entre esses fatores estaacute no nosso estudo especiacutefico a realidade da

comunidade ribeirinha na qual ela estaacute localizada

A outra dimensatildeo eacute a instrucional ou pedagoacutegica que engloba as situaccedilotildees de

ensino e aprendizagem Este processo eacute dialoacutegico composto por dois polos de um

lado estaacute o professor que eacute educador e tambeacutem educando do outro lado estatildeo os

alunos que ao aprender tambeacutem ensinam portanto professor e alunos interagem

mediatizados pelo conhecimento Ao analisarmos as formas de mediaccedilatildeo que satildeo as

122

metodologias utilizadas para tornar o objeto cognosciacutevel faz-se necessaacuterio segundo

Andreacute (2003 p 43)

Considerar a situaccedilatildeo concreta dos alunos (processos cognitivos procedecircncia econocircmica linguagem imaginaacuterio) a situaccedilatildeo concreta do professor (condiccedilotildees de vida e de trabalho expectativas valores concepccedilotildees) e sua inter-relaccedilatildeo com o ambiente em que se processa o ensino (forccedilas institucionais estrutura administrativa rede de relaccedilotildees inter e extra-escolar)

A situaccedilatildeo concreta tanto do aluno como do professor32 estaacute ligada aos

aspectos sociais econocircmicos culturais e religiosos nos quais satildeo desenvolvidas as

relaccedilotildees de trabalho na comunidade ribeirinha A procedecircncia econocircmica (praacuteticas

produtivas) linguagem e imaginaacuterios (praacuteticas culturais) dos alunos soacute tecircm sentido a

partir do local onde satildeo desenvolvidas e vivenciadas

A terceira dimensatildeo proposta pela autora eacute a sociopoliacuteticocultural que ldquose

refere ao contexto sociopoliacutetico e cultural mais amplo ou seja aos determinantes

macroestruturais da praacutetica educativardquo (ibidem p 44) Portanto natildeo podemos isolar

a escola do contexto em que estaacute inserida

Utilizamos tambeacutem na pesquisa a fotografia como fonte de leitura e

interpretaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo onde vivem os sujeitos amazocircnidas

especificamente os que habitam agraves margens dos rios lagos e igarapeacutes de Afuaacute

Segundo Alves (2008 p 28)

A fotografia comunica por meio de mensagens natildeo verbais cujo signo constitutivo eacute a imagem Portanto sendo a produccedilatildeo da imagem um trabalho humano de comunicaccedilatildeo pauta-se enquanto tal em coacutedigos convencionalizados socialmente possuindo um caraacuteter conotativo que remete agraves formas de ser a agir do contexto no qual estatildeo inseridas como mensagens

Retratamos atraveacutes da imagem fotograacutefica os aspectos histoacutericos

econocircmicos e educacionais do municiacutepio de Afuaacute bem como o modo de ser e de viver

dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute

33 CARACTERIZACcedilAtildeO DOS SUJEITOS DA PESQUISA

Na tabela abaixo apresentamos as caracteriacutesticas dos professores que fizeram

parte da pesquisa

Tabela 11 ndash Os professores sujeitos da pesquisa

32Todos os professores sujeitos desta pesquisa residem nas comunidades ribeirinhas

123

Professor

Anos do Ensino Fundamental que Lecionam

Experiecircncia com Classes

Multisseriadas

Formaccedilatildeo

Prof 1

3ordm 4ordm e 5ordm ano

6 anos

Licenciatura em Pedagogia com especializaccedilatildeo em Psicopedagogia Escolar

Prof 2 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano

15 anos Curso normal de niacutevel meacutedio e Licenciatura em Pedagogia

Prof 3 3ordm 4ordm e 5ordm ano 7 anos Licenciatura em Pedagogia com especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Inclusiva

Prof 4 3ordm 4ordm e 5ordm ano 10 anos Licenciatura em Pedagogia

Prof 5 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano

8 anos Licenciatura em Pedagogia

Prof 6 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano

25 anos Curso normal de niacutevel meacutedio e Licenciatura em Pedagogia

Prof 7 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano

9 anos Licenciatura em Pedagogia com Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Infantil

Prof 8 3ordm 4ordm e 5ordm ano 20 anos Curso normal de niacutevel meacutedio e Licenciatura em Pedagogia

Prof 9 preacute-escolar 1ordm 2ordm 3ordm 4ordm e 5ordm ano

11 anos Licenciatura em Pedagogia com Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Infantil

Somente os Prof 2 Prof 6 e o Prof 8 fizeram o curso normal de niacutevel meacutedio

ou seja o curso de formaccedilatildeo de professores Cursaram Pedagogia na Universidade

Federal do Amapaacute no periacuteodo de feacuterias (meses de janeiro e julho) por meio de um

convecircnio entre a UNIFAP e a Prefeitura de Afuaacute para a formaccedilatildeo do quadro da

SEMED Os referidos professores satildeo oriundos das comunidades nas quais

trabalham ou seja satildeo ribeirinhos Os outros docentes fizeram a formaccedilatildeo

pedagoacutegica na educaccedilatildeo superior em instituiccedilotildees privadas de ensino e satildeo oriundos

de outros lugares como Macapaacute Beleacutem e a sede do municiacutepio de Afuaacute

A seguir descrevemos as caracteriacutesticas dos moradores que entrevistamos

Tabela 12 ndash Os moradores sujeitos da pesquisa

Morador Caracteriacutesticas

Maria

Adolescente e aluna regularmente matriculada na escola A

124

Tiago Adolescente e aluno regularmente matriculado na escola C

Joseacute Idoso e um dos moradores mais antigos na comunidade do rio Santo Antocircnio

Joana Participante das atividades produtivas sociais religiosas e culturais na comunidade do rio Santo Antocircnio

Pedro

Idoso e um dos moradores mais antigos na comunidade do rio Caetano

Luzia Idosa e uma das moradoras mais antigas na comunidade do rio Caraacutes

Benedito Idoso e benzedor residente na ilha do amor proacuteximo da comunidade do rio Caraacutes (distante 10 minutos de catraio)

Antocircnia Idosa benzedeira e parteira residente na comunidade do rio Cajueiro

Francisca

Participante das atividades produtivas sociais religiosas e culturais na comunidade do rio Furo Seco

Raimundo

Participante das atividades produtivas sociais religiosas e culturais na comunidade do rio Furo Seco

34 TEacuteCNICA DE ANAacuteLISE DOS DADOS

Como teacutecnica para analisar os dados coletados nas entrevistas

semiestruturadas e tambeacutem nas observaccedilotildees realizadas utilizamos a anaacutelise de

conteuacutedo desenvolvida por Bardin (2004 p 41) que consiste em

Um conjunto de teacutecnicas de anaacutelise das comunicaccedilotildees visando obter por procedimentos sistemaacuteticos e objetivos de descriccedilatildeo do conteuacutedo das mensagens indicadores (quantitativos ou natildeo) que permitam a inferecircncia de conhecimentos relativos agraves condiccedilotildees de produccedilatildeorecepccedilatildeo (variaacuteveis inferidas) destas mensagens

Desta maneira a anaacutelise de conteuacutedo tem como base a comunicaccedilatildeo com a

utilizaccedilatildeo de preceitos para analisar o conteuacutedo das falas (entrevistas) e dos registros

de campo (observaccedilatildeo) para que posteriormente sejam feitas as inferecircncias como

afirma a referida autoraldquoO ato de inferir significa a realizaccedilatildeo de uma operaccedilatildeo loacutegica

pela qual se admite uma proposiccedilatildeo em virtude de sua ligaccedilatildeo com outras proposiccedilotildees

jaacute aceitas como verdadeirasrdquo (BARDIN 2004 p 39)

Pelas inferecircncias dialogamos com o referencial teoacuterico e os conteuacutedos das

mensagens oriundas das entrevistas e observaccedilotildees coletadas na pesquisa de campo

Para Trivintildeos (2007) a inferecircncia parte das informaccedilotildees que fornece o conteuacutedo da

mensagem e das premissas oriundas dos dados coletados na comunicaccedilatildeo o autor

ressalta as classificaccedilotildees dos conceitos a codificaccedilatildeo e a categorizaccedilatildeo como

procedimentos para se fazer uma anaacutelise clara de conteuacutedo

125

A codificaccedilatildeo segundo Franco (2006 p 34) ldquoeacute o processo atraveacutes do qual os

dados brutos satildeo sistematicamente transformados em categorias e que permitam

posteriormente a discussatildeo precisa das caracteriacutesticas relevantes do conteuacutedordquo E o

procedimento de categorizaccedilatildeo eacute ldquouma operaccedilatildeo de classificaccedilatildeo de elementos

constitutivos de um conjunto por diferenciaccedilatildeo e seguidamente por reagrupamento

segundo o gecircnerordquo (BARDIN 2004 p 117)

As categorias abrangem uma variedade de temas de acordo com as

aproximaccedilotildees entre si que por meio da anaacutelise expressam sentido e elaboraccedilotildees

voltados para os objetivos da pesquisa e podem ser classificadas em aprioriacutesticas ou

natildeo aprioriacutesticas As aprioriacutesticas satildeo preacute-definidas tendo como base o referencial

teoacuterico e a experiecircncia do investigador assim o pesquisadorfaz a classificaccedilatildeo das

unidades de anaacutelises dentro destas categorias e a partir daiacutedividi-las em

subcategorias As natildeo aprioriacutesticas emergem da anaacutelise dos dados coletados na

pesquisa de campo

A codificaccedilatildeo que pode ser feita com sinais ou outra espeacutecie de siacutembolos eacute

fundamental para a organizaccedilatildeo do material coletado para em seguida ser

classificado nas categorias e subcategorias Neste estudo codificamos as unidades

de anaacutelise temaacuteticas que satildeo recortes do texto das entrevistas e observaccedilotildees de

acordo com o problema e os objetivos da pesquisa assim como o referencial teoacuterico

adotado

A relevacircncia da rigorosidade eacute destacada por Bardin (2004) no uso da anaacutelise

de conteuacutedo para alcanccedilar os objetivos e responder o problema de pesquisa Portanto

com o objetivo de averiguar a significaccedilatildeo dos dados coletados a autora apresenta

as etapas de desenvolvimento da teacutecnica composta de 1) preacute-anaacutelise 2) exploraccedilatildeo

do material e 3) tratamento dos resultados inferecircncia e interpretaccedilatildeo

A preacute-anaacutelise consiste na leitura flutuante do corpus a ser analisado no nosso

caso as entrevistas transcritas e o diaacuterio de campo das observaccedilotildees Foi nesta fase

que organizamos e fizemos a leitura do material a ser investigado com a finalidade

de identificar os aspectos importantes para as outras fases que compotildeem a anaacutelise

ldquoNa leitura flutuante toma-se contato com os documentos a serem analisados

conhece-se o contexto e deixa-se fluir impressotildees e orientaccedilotildeesrdquo (BARDIN 2004 p

118)

126

Apoacutes a conclusatildeo da preacute-anaacutelise seguimos para a segunda faseque eacute a

exploraccedilatildeo do material Nesta fase eacute que realizamos a codificaccedilatildeo33 do material lido

por meio dos recortes dos textos em unidades de registros bem como a ordenaccedilatildeo

das informaccedilotildees em categorias temaacuteticas Os textos das entrevistas e observaccedilotildees

foram recortados em paraacutegrafos e frases para constituir as unidades de registros Em

seguida fizemosa categorizaccedilatildeo das categorias iniciaisque posteriormenteforam

aglutinadas de acordo com o temas comuns para dar origem as categorias

intermediaacuterias que tambeacutemforam aglutinadas em funccedilatildeo da ocorrecircncia dos temas

resultando nas categorias finais

Na terceira fase fizemos o tratamento dos resultados inferecircncia e

interpretaccedilatildeo na qual foram captados os conteuacutedos manifestos e latentes presentes

no material coletado e organizado nas categorias para se estabelecer o diaacutelogo com

o referencial teoacuterico adotado Franco (2006 p 45) destaca que ldquoeacute importante que os

resultados da anaacutelise de conteuacutedo devam refletir os objetivos da pesquisa e ter como

apoio indiacutecios manifestos no conteuacutedo das comunicaccedilotildeesrdquo

341 A emergecircncia das categorias de anaacutelise da pesquisa

Neste estudo partimos das seguintes categorias de anaacutelise aprioriacutesticas

Tabela 13 ndash Categorias aprioriacutesticas

Categoria Conceito Norteador

Saber Popular

Saberes oriundos da experiecircncia

existencial desenvolvida na relaccedilatildeo

dialoacutegica entre os ribeirinhos e que balizam

as suas atividades diaacuterias para a garantia

da sobrevivecircncia bem como a leitura de

mundo

Diaacutelogo

Numa perspectiva freiriana como o

momento de encontro com vistas agrave reflexatildeo

da realidade na qual vivemos para poder

transformaacute-la ldquoeacute este encontro dos

homens mediatizados pelo mundo para

33A codificaccedilatildeo para o agrupamento em categorias ou subcategorias foi feita utilizando o sistema

alfanumeacuterico

127

pronunciaacute-lo natildeo se esgotando portanto

na relaccedilatildeo eu-turdquo (FREIRE 2014 p 109)

Apoacutes a anaacutelise dos dados a categoria Saber Popular foi desmembrada em trecircs

subcategorias de acordo com a tabela abaixo

Tabela 14 ndash Categorias aprioriacutesticas

Categoria Subcategoria Conceito Norteador

Saber Popular

Saberes das Aacuteguas

Saberes oriundos do universo

cultural criadosrecriados no

cotidiano dos ribeirinhos que tecircm

como referecircncia as aacuteguas dos rios

igarapeacutes e furos da Ilha

Saberes da Terra e da Mata

Saberes oriundos do universo

cultural criadosrecriados no

cotidiano dos ribeirinhos que tecircm

como referecircncia a terra e a mata da

Ilha

Saberes do Accedilaiacute

Saberes oriundos do universo

cultural criadosrecriados no

cotidiano dos ribeirinhos que tecircm

como referecircncia o accedilaiacute

Na anaacutelise das entrevistas e das observaccedilotildees foram realizadas a categorizaccedilatildeo

das categorias iniciais e intermediaacuterias ateacute chegarmos agraves finais descritas na tabela

abaixo

Tabela 15 ndash Categorias natildeo aprioriacutesticas

Categoria Conceito Norteador

Praacuteticas Colonizadoras

A perspectiva colonizadora caracteriza-se pela

imposiccedilatildeo do conhecimento escolar e a negaccedilatildeo

do saber popular configurando a colonialidade do

saber pois eacute no vieacutes epistemoloacutegico que o

colonialismo assume maior centralidade com

uma perspectiva redutora do conhecimento

128

Praacuteticas Descolonizadoras

As praacuteticas descolonizadoras reconhecem que nas

comunidades ribeirinhas existem manifestaccedilotildees

culturais e epistemoloacutegicas proacuteprias entatildeo essas

praacuteticas procuram dar visibilidade a essas

manifestaccedilotildees

No capiacutetulo anterior fizemos a discussatildeo do referencial teoacuterico que baliza as

inferecircncias e interpretaccedilotildees das categorias aprioriacutesticas e natildeo aprioriacutesticas e no

proacuteximocapiacutetulo organizamosas falas dos entrevistados e as anotaccedilotildees do diaacuterio de

campo para estabelecer o diaacutelogo entre a empiria e a teoria

4ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

129

Neste capiacutetulo iniciamos discutindo a categoria aprioriacutestica saber popular

juntamente com as suas subcategorias saberes das aacuteguas da terra e da mata e

saberes do accedilaiacute Procuramos estabelecer um diaacutelogo com a ecologia de saberes

proposta por Boaventura de Souza Santos Trabalhamos com as falas dos sujeitos

no sentido de dar visibilidade aos seus discursos suas praacuteticas seus valores crenccedilas

e costumes Como afirma Santos (2010 p 34) a ecologia de saberes acontece por

meio do diaacutelogo ldquoprolongado calmo e tranquilordquo para que as vozes que foram e satildeo

historicamente silenciadas possam se manifestar para isso a diversidade de saberes

precisa ser reconhecida A valorizaccedilatildeo e a visibilidade desses saberes tornam-se

essencial para que isso ocorra

A seguir damos visibilidade ao saber popular dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute e

posteriormente analisamos como ocorre o diaacutelogo entre este saber e o saber escolar

na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam nas escolas ribeirinhas na referida

ilha organizamos essas praacuteticas a partir das seguintes categorias natildeo aprioriacutesticas

praacuteticas colonizadoras e praacuteticas descolonizadoras que emergiram da pesquisa de

campo

41 O SABER POPULAR DOS RIBEIRINHOS DA ILHA DO ACcedilAIacute

Nesta seccedilatildeo apresentamos um levantamento a partir da memoacuteria dos

moradores da ilha do Accedilaiacute referente aos saberes que norteiam suas accedilotildees cotidianas

nas relaccedilotildees sociais religiosas e produtivas Satildeo saberes praacuteticos que balizam as

atividades diaacuterias para a garantia da sobrevivecircncia e a leitura de mundo na qual os

ribeirinhos estatildeo inseridos Esses saberes constituem uma epistemologia no sentido

de que

Conhecer eacute tarefa de sujeitos natildeo de objetos E eacute como sujeito esomente enquanto sujeito que o homem pode realmenteconhecer [] Nestas relaccedilotildees com o mundo atraveacutes de suaaccedilatildeo sobre ele o homem se encontra marcado pelos resultadosde sua proacutepria accedilatildeo [] Atuando transforma transformandocria uma realidade que por sua vez envolvendo-ocondiciona sua forma de atuar [] Natildeo haacute por isto mesmopossibilidade de dicotomizar o homem do mundo pois que natildeoexiste um sem o outro (FREIRE 1983 p17)

Um conhecimento que eacute construiacutedo na relaccedilatildeo do sujeito (ribeirinhos) com o

mundo (Amazocircnia Ribeirinha) Neste processo os ribeirinhos atuam transformam

criam uma realidade que tambeacutem os transforma e direciona suas maneiras de agir e

pensar pois ao transformar o mundo sofrem os efeitos de sua proacutepria transformaccedilatildeo

Por isso natildeo podemos analisar esses saberes dicotomizados do mundo no qual vivem

esses protagonistas

130

Satildeo elaborados e reelaborados nas relaccedilotildees familiares com a vizinhanccedila na

comunidade no contexto das atividades produtivas (pesca caccedila colheita do accedilaiacute)

nas relaccedilotildees com outras vilas municiacutepios e cidades na produccedilatildeo dos recursos

materiais e natildeo materiais que criam e recriam (casco remo matapi malhadeira

paneiros etc) Na visatildeo de Freire (2003) tudo isso caracteriza um universo inacabado

construiacutedo por homens e mulheres com linguagens modo de ser ver e viver no mundo

que os caracteriza como sujeitos histoacutericos sociais e culturais

Essa gama de conhecimento que guia a vida dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute eacute

denominada por Freire (1987) de saberes da experiecircncia feito construiacutedo e

reconstruiacutedo na experiecircncia existencial e desenvolvidos na relaccedilatildeo dialoacutegica entre

crianccedilas-jovens-adultos-idosos mediatizados pelo mundo ldquoSoacute existe saber na

invenccedilatildeo na reinvenccedilatildeo na busca inquieta impaciente permanente que os homens

fazem no mundo com o mundo e com os outrosrdquo (FREIRE 1987 p 58) E desta

maneira os ribeirinhos vatildeo criando e recriando fazendo e se fazendo sujeitos

amazonidas uns com os outros

Satildeo tambeacutem concebidos pela ciecircncia como senso comum que ao se

aproximar do conhecimento cientiacutefico torna-se novo praacutetico esclarecido ou

emancipatoacuterio como afirma Santos (2002) para quem o senso comum ldquoeacute praacutetico e

pragmaacutetico reproduz-se colado agraves trajetoacuterias e as experiecircncias de vida de um dado

grupo social e nessa correspondecircncia afirma-se de confianccedila e daacute seguranccedilardquo (p

44) O autor propotildee uma ruptura da ciecircncia moderna que possa aproximar o senso

comum do conhecimento cientiacutefico no qual a transformaccedilatildeo seja muacutetua e dessa

forma possam produzir tecnologias e sabedoria

Sabedoria fruto do fazer o mundo e fazendo o mundo os ribeirinhos produzem

cultura assim ldquoa cultura soacute eacute enquanto estaacute sendo Soacute permanece porque muda Ou

talvez dizendo melhor a cultura soacute dura no jogo contraditoacuterio da permanecircncia e da

mudanccedilardquo (FREIRE 1977 p 54) Desta maneira diz o referido autor o mundo eacute

criado e recriado pela praacutexis humana Por meio da problematizaccedilatildeo da relaccedilatildeo ser

humano e o universo somos determinados determinantes e determinadores dos

modos de ser-no-mundo e estar-no-mundo

Sendo o ser humano criador de cultura ao mesmo tempo faz e refaz o seu

saber num processo de invenccedilatildeo e reinvenccedilatildeo Nesse sentido a cultura eacute concebida

como

131

Tudo aquilo que noacutes criamos a partir do que nos eacute dadoquando tomamos as coisas da natureza e a recriamoscomo os objetos e os utensiacutelios da vida social representauma das muacuteltiplas dimensotildees daquilo que em outrachamamos de cultura (BRANDAtildeO 2007 p 22)

O mundo que nos eacute dado eacute construiacutedo e recriado por noacutes Transformamos a

natureza atraveacutes do trabalho em cultura Osribeirinhos para pescarem o camaratildeo

transformaram uma palmeirachamada buriti em matapi34 que passou a ser

incorporado agraves praacuteticasprodutivas desenvolvidas pela comunidade bem como a

malhadeira o paneiro entre outrosO significado que esses instrumentos possuem eacute

tecido no interior de uma cultura pelos sujeitos que a criam e recriam E soacute podem ser

interpretados dentro e a partir deste contexto Nesse sentido afirma Geertz (1978 p

15) que ldquoo homem eacute um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo

teceurdquo e para entender esses significados eacute necessaacuterio mergulhar no universo cultural

desses sujeitos que produzem uma gama de conhecimentos que segundo

Oliveira(2004 p 54) satildeo

[] provenientes de sua relaccedilatildeo de trabalho com a terra com a mata e com as aacuteguas e a sua relaccedilatildeo com as comunidades populaccedilotildees e culturas locais Saberes que expressam dimensotildees educacionais religiosas medicinais produtivas culturais etc

Esses saberes tambeacutem chamados por Brandatildeo (2000) de saber popular

servem de base para a leitura e a interpretaccedilatildeo da realidade dos sujeitos Satildeo

transmitidos atraveacutes da cultura de conversa caracterizada pela oralidade que de

acordo com Oliveira (2004 p 58) ldquoapresenta-se como a forma tiacutepica das populaccedilotildees

rurais ribeirinhas de expressaremsuas vivecircncias transmitirem seus saberes valores

e haacutebitos das geraccedilotildeesmais antigas agraves geraccedilotildees mais novasrdquo Tambeacutem satildeo

apreendidos pela observaccedilatildeo e envolvimento nas tarefas diaacuterias desde a tenra idade

Convivi durante quatro meses com os ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute Neste

periacuteodo pude identificar diversidades de saberes oriundos do universo cultural

criadosrecriados no cotidiano que balizam os aspectos sociais culturais e

econocircmicos Para isso envolvi-me na caccedila pesca e coleta do accedilaiacute e demais accedilotildees

praticadas pelos sujeitos do lugar Tambeacutem na conversa sempre regada a cafeacute e

sentado geralmente num banco na cozinha ao lado do fogatildeo a lenha com o fogo

aceso soltando fumaccedila para espantar os maruins e carapanatildes fui sistematizando

34Instrumento feito de talas de buriti tem formato ciliacutendrico com uma entrada chamada de boca por onde entra o

camaratildeo na mareacute cheia

132

paulatinamente os saberes praacuteticos estruturados numa loacutegica totalmente diferente

dos conhecimentos acadecircmicos

Muitos desses saberes foram lembrados a partir da memoria dos mais velhos

por isso os fatos satildeo relatados natildeo de forma cronoloacutegica pois ao descrever algo

vivenciado dificilmente conseguimos colocar ordem no pensamento ateacute porque natildeo

existe uma cronologia no nosso tempo subjetivo a partir das memoacuterias as

lembranccedilas dos fatos vatildeo ligando-os uns aos outros numa espeacutecie de rede e assim

organizam-se em nossa mente e tornam-se inteligiacuteveis Como afirma Baptista (2013)

o tempo estaacute vinculado agrave nossa subjetividade e experiecircncias e assim foge aos

padrotildees da objetividade cronoloacutegica

Consequentemente as falas os relatos e histoacuterias contadas estatildeo permeados

pela subjetividade pois satildeo feitos de maneira singular por cada um dos sujeitos fato

explicado por Deleuze (2012 p 44) quando aborda os cinco aspectos da subjetividade

apresentados por Bergson especificamente a subjetividade-ceacuterebro que consiste

em

[] momento do intervalo ou da indeterminaccedilatildeo o ceacuterebro nos daacute o meio de lsquoescolherrsquo no objeto aquilo que corresponde as nossas necessidades introduzindo um intervalo entre o movimento recebido e o movimento executado o proacuteprio ceacuterebro eacute duas maneiras escolha porque em si mesmo em virtude de suas vias nervosas ele divide ao infinito a excitaccedilatildeo e tambeacutem porque em relaccedilatildeo agraves ceacutelulas motrizes da medula ele nos deixa a escolha entre vaacuterias reaccedilotildees possiacuteveis

Por conseguinte fazemos uma leitura particular das situaccedilotildees que

presenciamos ou vivenciamos As histoacuterias que envolvem os encantados do rio e da

mata como o Boto a matildee drsquoaacutegua e o caboclo gritador satildeo contados com o do olhar

de cada narrador a partir de suas lembranccedilas niacutetidas e agraves vezes quase apagadas da

memoacuteria ateacute porque o presente segundo Deleuze (2012 p 44) apaga as imagens

criadas no passado ldquoseja sobretudo porque ele pela contiacutenua mudanccedila de

qualidade daacute testemunho de carga cada vez mais pesada que algueacutem carregue em

suas costas agrave medida que vai cada vez mais envelhecendordquo

Tendo a consciecircncia de que qualquer exame que se faccedila do passado seraacute

sempre na oacutetica do tempo presente a sistematizaccedilatildeo dos saberes foi feita a partir do

tempo presente com toda a subjetividade que eacute peculiar agrave memoacuteria

Apoacutes a anaacutelise dos dados a categoria aprioriacutestica Saber Popular foi dividida

em trecircs subcategorias saberes das aacuteguas da terra e mata e os saberes do accedilaiacute que

emergiram das falas dos sujeitos na pesquisa de campo que discutimos a seguir

133

411 Saberes das Aacuteguas

O cotidiano dos moradores da ilha do Accedilaiacute estaacute diretamente ligado ao

movimento das aacuteguas - enchente vazante e seca da mareacute -que regulam os horaacuterios

de encher aacutegua para as atividades domeacutesticas e para beber pois na enchente a aacutegua

eacute mais saudaacutevel para o consumo assim como lavar roupa e tomar banho As mareacutes

determinam tambeacutem o horaacuterio de aula da pesca do peixe e do camaratildeo bem como

da colheita do accedilaiacute As aacuteguas compotildeem o imaginaacuterio dos ribeirinhos nelas vivem os

seres encantados Nesse vai e vem do rio acontece a reproduccedilatildeo da vida social

econocircmica cultural e religiosa desses sujeitos Para Ribeiro (2007 p 111) a aacutegua eacute

suprema nesse espaccedilo ldquofaz parte da paisagem natural da vida e das caracteriacutesticas

da regiatildeo que eacute encontrada por grandes e pequenos rios furos lagos e inuacutemeros

igarapeacutesrdquo

Na relaccedilatildeo com as aacuteguas o ribeirinho produz e reproduz diversidades de

saberes que norteiam as suas relaccedilotildees sociais culturais religiosas e econocircmicas

Nas entrevistas e observaccedilotildees registramos algumas atividades nas quais esses

saberes foram mobilizados e socializados entre os membros da comunidade Esses

saberes foram categorizados como das aacuteguas satildeo eles pesca e dos seres

encantados

Segundo Furtado (1993) quanto mais o pescador estaacute inserido no meio em que

vive mais saberes ele produz para desvendar e se apropriar da natureza e desta

forma tem acesso ao conhecimento ldquodas relaccedilotildees existentes entre as faunas aquaacutetica

e terrestre a flora os ventos e os mares as nuvens e a chuva e assim por diante

cujos sinais satildeo identificados com sabedoriardquo (p 206)

Satildeo os saberes populares como o de Pedro ribeirinho que mora na

comunidade do rio Caetano haacute mais de trinta anos Ele sabe quando vai chover pelo

movimento que o vento faz nas aacutervores e o cheiro que delas exala e avisa ldquotaacute vindo

um tororo35 daacutegua aiacute vai cair daqui com dois a trecircs diasrdquo E dona Luzia ribeirinha

idosa que sabe quando a mareacute vai crescer ldquotaacute vendo como a aacutegua taacute mais barrenta

Cheia de limo Eacute sinar di que jaacute ta invandindu a mata temo que ficar de bubuia36

purque esse ano ela vai ser disconforme37rdquo

35Chuva muito intensa 36 Atentos 37 Crescer muito

134

Trata-se de saberes usados para a leitura de mundo por meio deles a natureza

eacute interpretada sua loacutegica difere do conhecimento cientiacutefico pois eacute resultado de

experiecircncias de trocas e conviacutevio com os rios e a mata Nessa oacutetica o saber popular

pode dialogar com o cientiacutefico sem ldquodesqualificar previamente tudo o que natildeo se

ajuste ao cacircnoneepistemoloacutegico da ciecircncia modernardquo (SANTOS 2005 p 26)

Na ilha a pesca eacute realizada por crianccedilas jovens adultos e idosos As mulheres

pescam no rio ou igarapeacute proacuteximo da vila sempre acompanhadas de crianccedilas

Custumo pescar na vazante da mareacute pego o casco o remo o caniccedilo e as isca uso a minhoca ou o camaratildeo como isca tiro a minhoca aqui mermo no quintal Natildeo me afasto muito de casa tenho medo e levo sempre um muleque cumigo (JOANA)

A pesca eacute realizada segundo a moradora quando a mareacute estaacute vazando

porque nesse momento os peixes acompanham o movimento das aacuteguas entatildeo a

possibilidade de uma farta pescaria eacute maior Na fala da entrevistada os instrumentos

utilizados para a realizaccedilatildeo desta atividade satildeo confeccionados na proacutepria vila assim

como as iscas que satildeo retiradas do rio ou do quintal O casco eacute feito de madeira da

seguinte forma

Natildeo eacute qualquer madeira que daacute para fazer o casco tem que ser uma resistente agrave aacutegua e que natildeo seja muito pesada porque se for pesada o casco natildeo boacuteia na aacutegua por isso agente usa o Cedro ou o Mogno que satildeo bem levinho Se tiver muito noacute natildeo serve porque natildeo vai dobrar direito Tem que escolher uma madeira que natildeo demore muito pra secar A taacutebua tem que ser retinha (JOSEacute)

Fotografia 19 ndash Cascos feitos de madeira Cedro

135

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A seleccedilatildeo da madeira para a confecccedilatildeo do casco comeccedila pela aacutervore a qual

natildeo pode ter muitos noacutes fendas ou cicatrizes O ribeirinho bate com um pedaccedilo de

pau na aacutervore pra saber se ela estaacute podre ou se tem cupim dentro Apoacutes a derrubada

verifica-se a cor da madeira se estiver muito verde vai demorar mais tempo pra secar

por isso eacute preferiacutevel cortaacute-las no inverno pois secam mais raacutepido Isso ocorre devido

agrave circulaccedilatildeo da seiva que alimenta as folhas flores e frutos do vegetal no periacuteodo da

primavera veratildeo e outono o que ocasiona a demora na secagem e prejudica a

conservaccedilatildeo da madeira atraindo fungos e insetos Apoacutes o corte a madeira ldquoeacute

colocada pra secar aqui do lado de casa mesmo tem que pegar bastante sol natildeo

pode deixar encostar as taacutebuas no chatildeo pra natildeo daacute bolocirc38rdquo (Joseacute)

Apoacutes a secagem comeccedila a confecccedilatildeo do casco as taacutebuas satildeo pregadas e

calafetadas39 com cola usada na marcenaria que eacute comprada em Macapaacute pelo seu

Joatildeo ldquocompro a cola em poacute em Macapaacute e depois do casco pronto esquento uma

aacutegua e coloco um pouco da cola em poacute espero esfriar e comeccedilo a calafetar o cascordquo

Depois de seca a cola torna-se impermeaacutevel e veda todas as brechas entre as taacutebuas

e os furos deixados pelos pregos Na vila os cascos natildeo satildeo pintados em vez de

tinta usa-se ldquooacuteleo de peixe e cera de abelha para demorar apodrecer a madeira mas

38 Fungos 39 Tapar as brechas e buracos do casco

136

tem que passar com a taacutebua bem seca se natildeo o cupim come tudo rapidinhordquo Essas

substacircncias servem para evitar que a madeira encharque ou seque completamente

Como a aacutegua natildeo estraga a madeira para o casco ter mais durabilidade quando natildeo

estaacute sendo usado ele eacute mergulhado dentro drsquoaacutegua para natildeo apodrecer

Pelo exposto nota-se que os saberes para pesca e confecccedilatildeo do casco satildeo

praacuteticos e utilizados para resolver as situaccedilotildees cotidianas Assim podemos afirmar

que satildeocontextualizados situados e uacuteteis o que caracteriza a predominacircncia no

diaacutelogo com outros tipos de conhecimentos na ecologia de saberes (SANTOS 2010)

O casco eacute a bicicleta do ribeirinho no rio lago ou igarapeacute ele o utiliza para

pescar passear caccedilar para o lazer visitar parentes amigos e outras atividades

cotidianas Nesse sentido o rio eacute a rua ldquoEsse rio eacute minha rua minha e tua murureacute

piso no peito da lua deito no chatildeo da mareacuterdquo40

Fotografia 20 ndash Ribeirinho levando o filho para a escola no casco

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

O remo eacute a ferramenta utilizada para conduzir o casco o qual eacute feito da mesma

madeira Para pilotaacute-lo o remador precisa ter muita habilidade atividade que se

aprende na infacircncia Diz Antocircnio que ldquoo remador jaacute nasce no cascordquo Isso significa

que desde receacutem-nascida a crianccedila jaacute anda de casco nos braccedilos da matildee e carrega

no sangue ldquoo jeito de ser do povo daquirdquo41

40 Trecho da letra da musica Esse rio eacute minha rua de Paulo Andreacute e Rui Barata 41 Trecho da letra da muacutesica Jeito Tucuju

137

Em relaccedilatildeo agrave pesca o caniccedilo eacute uma das ferramentas mais utilizadas

juntamente com o arpatildeo a zagaia a malhadeira e o matapi

O caniccedilo eacute feito do galho da caniceira ou do bambu por causa de sua

flexibilidade e resistecircncia Uma linha transparente de monofilamento de naacuteilon eacute

amarrada na ponta da vara e no final da linha eacute amarrado tambeacutem um pedaccedilo de

chumbo para manter a linha reta e em meacutedia 30 centiacutemetros apoacutes coloca-se o anzol

Observamos na vila a presenccedila desta ferramenta em todas as casas O seu uso eacute

constante todos os dias encontrei moradores pescando com caniccedilo no rio

Pesco com o caniccedilo todo dia uso como isca a minhoca e o camaratildeo o peixe quando a mareacute vaza fica na beira do rio e do igarapeacute debaixo dos troncos e datouccedilada aacutervore de capim e barranco por isso prefiro pescar na vazante (Antocircnio)

Para pescar o peixe o ribeirinho vai remando devagar para natildeo espantar a

presa Joga a linha do caniccedilo com o anzol42 preso na isca na parte onde o peixe se

esconde (debaixo do tronco das aacutervores nas sombras da vegetaccedilatildeo da beira do rio e

nos barrancos) Comonatildeo pode fazer barulho o casco fica longe da beira do rio e por

isso a linha do caniccedilo tem que ser comprida em meacutedia de dois a dois metros e meio

para chegar ateacute o local onde os peixinhos estatildeo

Fotografia 21 ndash Ribeirinha pescando com o caniccedilo

Matildee e filho pescando no rio as mulheres pescam proacuteximo da vila e sempre acompanhadas pelos filhos menores assim se sentem mais seguras Fonte Edielso M M de Almeida 2016

42 O tamanho do anzol varia de acordo com a espeacutecie e tamanho do peixe

138

Nos rios da ilha do Accedilaiacute vive o maior peixe de escama de aacutegua doce do mundo

que eacute o pirarucu devido agrave sua carne saborosa eacute considerado o bacalhau da

Amazocircnia Pratos deliciosos satildeo feitos com esse peixe temperado com as ervas

retiradas da floresta ou cultivadas nos quintais Para pegaacute-lo satildeo usados o caniccedilo e

o arpatildeo

Ele gosta de ficar na parte do rio em que a aacutegua eacute transparente Tem que aproveitar a primeira hora do dia porque quando o sol esquenta muito ele procura se esconder no mato aiacute ningueacutem consegue tirar ele de laacute Para pescar esse peixe tem que usar linha muito resistente por causa do peso e forccedila dele e colocamos uma boia perto do anzol pra quando ele morder a isca que eacute um pedaccedilo de peixe pequeno a boia avisa Tambeacutem usamos o arpatildeo pois o peixe tem que subir de tempo em tempo pra respirar aiacute aproveitamos para arpoaacute-lo (JOAtildeO)

O arpatildeo eacute feito de madeira retirada da paracuuacuteba abundante na regiatildeo na sua

haste tem uma ponta aguda de ferro semelhante agrave de uma flecha seu Joseacute me explica

detalhadamente como ele pesca o pirarucu com esta ferramenta

Tresontocircnti43 eu arpoei um fui no casco remando devagarinho para natildeo espantar o bicho com uma matildeo no remo e outra segura no arpatildeo esperando o peixe buiaacute44 Na hora que ele buiou languei o arpatildeo bem no lombo dele Tem que ser ligeiro se natildeo tu perde o bichatildeo deu trabalho para puxaacute-lo para o casco porque ele era disconforme45rdquo

Ele continua a histoacuteria e puxando pela memoacuteria disse que antigamente era

faacutecil encontrar o peixe nos rios bastava sair de casa passar um tempinho esperando

no casco que aparecia logo um Hoje estaacute mais difiacutecil pescar pirarucu eacute raro algueacutem

encontrar um no rio ele acredita que eacute por causa do preccedilo alto pago pelo quilo do

referido peixe o que leva os pescadores a pescarem direto esta espeacutecie ocasionando

a escassez para os que moram na Ilha Natildeo eacute somente os moradores da Ilha que

pescam eacute constante a presenccedila de pessoas vindas de outras localidades

principalmente de Macapaacute para pescar nos rios

A zagaia eacute outra ferramenta usada na captura do peixe Assim como o arpatildeo

eacute feita de madeira retirada da paracuuacuteba e consiste em uma haste com um tridente

amarrado na sua extremidade sendo usada para fachear durante a noite O ribeirinho

para enxergar o peixe na escuridatildeo usa uma lanterna presa na cabeccedila Seu Antocircnio

nos contou como faz para fachear46

43Haacute trecircs dias atraacutes 44 Vir agrave superfiacutecie para respirar ou pegar peixe 45 Muito grande 46 Pescar a noite com a zagaia

139

A noite no igarapeacute o peixe gosta de ficar na flor drsquoaacutegua perto di onde tem galho de arvore tronco e anhinga entatildeo quando agente vecirc o peixe di longe a gente vai remando bem devagarinho pra natildeo fazer barulho vai de mansinho ateacute chegar numa altura em que decirc pra jogar a zagaia sem errar A traiacutera47 eacute mais arisca entatildeo tem que ser ligeiro para ela natildeo escapar

A pesca com a zagaia natildeo deve ser realizada nas noites de lua cheia porque

com a claridade o peixe foge rapidamente quando percebe a aproximaccedilatildeo do casco

Na chuva tambeacutem fica difiacutecil devido agrave aacutegua que fica turva com os pingos de chuva o

que impossibilita a visatildeo dos peixes pelo pescador Portanto para pescar com a

zagaia as noites ideais satildeo as bem escuras e nubladas que dificultam a visatildeo dos

peixes e facilita a do pescador que usa uma lanterna para iluminar Tambeacutem se deve

fachear em rio ou igarapeacute de aacutegua parada transparente e durante a enchente da

mareacute

A pesca com a malhadeira eacute bastante utilizada na ilha Durante os quatro meses

que passei na vila presenciei a realizaccedilatildeo desta praacutetica diariamente principalmente

durante a vazante da mareacute

Fotografia 22 ndash Ribeirinho com o filho colocando a malhadeira no rio

Na foto a crianccedila acompanha o pai para a armaccedilatildeo da malhadeira no rio por meio da observaccedilatildeo ela aprende na praacutetica essa atividade que futuramente desenvolveraacute para sobreviver neste lugar Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A malhadeira requer o trabalho de duas pessoas como retrata a fotografia

acima No caso o pai com o filho a crianccedila rema o casco e o pai vai soltando as

47 Espeacutecie de peixe de aacutegua doce encontrada nos rios lagos e igarapeacutes na Amazocircnia

140

malhas no rio para que ela fique bem reta Observe na fotografia que a malhadeira

atravessa todo o rio Acaraacute e eacute amarrada nos galhos as suas margens A rede eacute

colocada na vazante da mareacute e retirada na proacutexima vazante ou seja seis horas depois

que eacute o intervalo de uma mareacute Suas malhas satildeo feitas de linha transparente de

monofilamento de nylon de maneira uniforme e os peixes ficam presos nas malhas

pela cabeccedila O tamanho das malhas estaacute relacionado agraves espeacutecies de peixe por isso

existem malhadeiras para pegar peixes pequenos meacutedios e grandes

Fotografia 23 - Ribeirinho tecendo a malhadeira

Na imagem o ribeirinho tecendo as malhas e fazendo o entralhamento que consiste na amarraccedilatildeo das malhas no entralho que eacute o fio esticado As malhas satildeo amarradas com linha de seda Na imagem tambeacutem temos duas crianccedilas observandoFonte Edielso M M de Almeida 2016

Para pegar o camaratildeo eacute usado o matapi que funciona como uma armadilha

na qual o camaratildeo entra e natildeo consegue mais sair Eacute confeccionado pelos ribeirinhos

da ilha A moradora Francisca me ensina como fazecirc-lo

Primeiro tem que saber tirar a tala do Jupati48 depois raspar ela direitinho pra ficar bem lisa A amarraccedilatildeo das tala eacute feita com o cipoacute titica Se tu queres fazer um para pegar camaratildeo porrudo49 entatildeo a distacircncia das tala eacute maior em relaccedilatildeo ao que foi feito para pegar camaratildeo jito50 A amarraccedilatildeo tem que ser bem feita pras tala natildeo sai do lugar quando o camaratildeo comeccedilar a pular

Fotografia 24 ndash Matapi

48 Palmeira tiacutepica da floresta Amazocircnica 49 Grande maior 50 Pequeno menor

141

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Raimundo marido de Francisca diz-me como se deve colocar o matapi

Coloca o matapi na mareacute seca amarrado numa vara na beira do rio se for soacute um matapi se tu colocares mais de um entatildeo tu amarras duas varas longe uma da outra e vai pendurando o matapi com o barbante na distacircncia de um metro de um para o outro Dentro dele tu colocas a isca que eacute a punqueca que tu fazes com o babaccedilu enrolado num plaacutestico e amarra com o grecirclo do buriti51 Tu colocas na mareacute seca e tira na mareacute seca tambeacutem jaacute deixei ateacute seis meses o matapi de molho no rio ia laacute soacute para tirar o camaratildeo

Isso denota que o saber eacute contextualizado localizado repleto de significados

para os sujeitos que os constroem e os reconstroem nas relaccedilotildees sociais

mediatizadas pelo mundo Na visatildeo hegemocircnica de ciecircncia que defende a

monocultura do saber por ser local esses saberes natildeo satildeo legitimados pelo motivo

de serem limitados e natildeo utilizaacuteveis em outros contextos O que estaacute oculto neste

discurso eacute a universalizaccedilatildeo do saber e a legitimaccedilatildeo da ciecircncia enquanto a uacutenica

capaz de explicar o mundo (SANTOS 2005)

Dentre os saberes locais estatildeo os relacionados aos seres encantados das

aacuteguas que permeiam o imaginaacuterio dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute A presenccedila no

cotidiano dos seres sobrenaturais por meio das crenccedilas lendas e mitos exerce

grande influecircncia na vida desses sujeitos O mito para Oliveira (2004 p 42) tem

uma dimensatildeo educativa para o ribeirinho

51 Palmeira tiacutepica da floresta Amazocircnica

142

Adimensatildeo educativa do mito estaacute presente tambeacutem emseu poder de orientar a praacutetica social das populaccedilotildeesrurais Nas comunidades ribeirinhas [] o meio ambienteincorpora um simbolismo expresso na existecircncia deentidades ou encantados protetores da floresta e dasaacuteguas Ensina-se desde a tenra idade que se deve respeitara natureza cuidaacute-la para que sejam preservados osrecursos naturais e tambeacutem para natildeo despertar a ira dosencantados

Assim atraveacutes das histoacuterias contadas pelos moradores da ilha aos seus filhos

e netos educam-seas crianccedilas os jovens e adultos para a preservaccedilatildeo dos recursos

naturais de onde satildeo retirados osmeios para a manutenccedilatildeo da vida Osencantados

que satildeo os protagonistas dessas histoacuterias protegem anatureza e punem quem ousa

desobedececirc-los

Seres como o Boto a Matintapereira o caboclo gritador e a matildee drsquoaacutegua

habitam os rios lagos igarapeacutes e a mata O Boto eacute um encantado que seduz as

mulheres solteiras e casadas O mamiacutefero se transforma em um lindo e galanteador

rapaz que ldquodeixa as mulheres fora de si mesmas fazendo-as esquecerem de todas

as normas para seguirem somente o impulso desse ser de puro gozo de amor sem

ontem nem amanhatilderdquo (FRAXE 2010 p 326)

Metamorfoseado em um rapaz vestido de branco sempre com um chapeacuteu para

esconder o buraco que tem no meio da cabeccedila aparece em festas realizadas nas

comunidades ribeirinhas Nas festas o boto eacute gentil cavalheiro e usa suas habilidades

de danccedilarino para seduzir a cabocla mais bonita e levaacute-la para a praia ou beira52 do

rio Cheio de encanto e magia os dois fazem amor agrave luz do luar e depois ele

desaparece e nunca mais eacute visto pelas redondezas Diz-nos Joseacute que ldquoele gosta da

menina mais viccedilosa e cheirosa do lugar ela fica doida por ele natildeo tem como evitar

que ela seja possuiacutedardquo Aleacutem das festas o boto pode aparecer tambeacutem na casa e vai

direto para o quarto da mulher que deseja fazer amor

Encontrei na comunidade do rio Caraacutesa dona Luzia que me disse como ia

sendo seduzida pelo priacutencipe das aacuteguas Ela natildeo lembra ao certo o dia em que

aconteceu ateacute porque o tempo subjetivo segundo Baptista (2014 p 45)ldquo[] foge aos

padrotildees adotados comumente ou seja estaacute ritmado e sincronizado de acordo com

nossas sensaccedilotildees internas diretamente ligado agrave nossa subjetividade e nossas

experiecircnciasrdquo mas natildeo esqueceu alguns detalhes do fato

Meu marido tinha saiacutedo para fachear agrave noite e eu fiquei com os filhos dormindo Jaacute tarde da noite vi um rapaz subindo no trapiche ele entra na casa a casa natildeo tinha porta Pensava que era um dos filhos que saiu para

52 Margem do rio

143

mijar no rio Mas era o boto que tentou entrar no meu mosquiteiro mas consegui escapar dando um grito e acordando os meus filhos que botaram o safado para correr Acho que ele veio atraacutes de mim porque fui pegar aacutegua no rio quando estava menstruada ele veio pelo cheiro

Na referida vila as mulheres quando estatildeo menstruadas natildeo pegam aacutegua ou

tomam banho no rio com medo do boto Isso acontece tambeacutem com os homens de

qualquer idade seja novo ou velho Apoacutes as 18 horas raramente encontrava algueacutem

pegando aacutegua ou tomando banho no rio Para Fares (2004 p 96) ldquoO tempo da

epifania quase sempre eacute noturno a partir das seis horas da tarde e o inverno eacute a

estaccedilatildeo preferidaporque escurece mais cedo Os comunitaacuterios respeitamessas leis

pois tecircm medo dos castigos []rdquoO castigo para dona Luzia foi a visita do boto

Na comunidade do rio Santo Antocircnio a moradora Joana me contou que

quando a mareacute seca aparecem as praias entatildeo os homens vatildeo jogar bola na praia ostordia53 tiveram uns homens que ficaram gritando agrave noite laacute naprainha tinham bebido muita cachaccedila Quandochegaram em casa natildeo conseguiram dormir ficavamouvindo os gritos do Caboclo Gritador que natildeo deixaram eles dormir

Depois desse episoacutedio ningueacutem mais jogou futebol apoacutes as dezoito horas nas

praias com receio de natildeo conseguir dormir agrave noite devido aos gritos do caboclo

gritador

Outro caso conhecido na ilha eacute o do senhor Pedro que ficou panema porque

tomou banho no rio apoacutes as dezoito horas sem pedir permissatildeo para a matildee drsquoaacutegua

Procurei-o para saber mais dessa histoacuteria ele vive haacute mais de vinte anos na

comunidade do rio Caetano e em conversa me falou que esse fato ocorreu quando

era mais moccedilo mas ainda as lembranccedilas estatildeo guardadas na memoacuteria Para Bergson

(2012 p 20) ldquosatildeo as lembranccedilas da memoacuteria que ligam os instantes uns aos outros

e intercalam o passado no presenterdquo O que ele me contou aconteceu no passado

mas ele o relata na oacutetica do presente sentados na beira do fogatildeo a lenha

Cheguei de tardinha da cidade onde fui vender accedilaiacute carreguei todo o mantimento que trouxe no barco de Macapaacute quando terminei jaacute era de noitinha54 e ningueacutem encheu aacutegua para eu tomar banho entatildeo tomei no rio Depois desse banho as coisas pioraram saia pra pescar e natildeo pegava nada colocava o matapi e soacute camaratildeo jitinho a malhadeira natildeo pegava nada estava panema55

53 Outro dia eferente ao dia que passou 54 Tarde da noite depois das dezoito horas 55 Significa natildeo ter sorte a panemeira eacute causada pelos seres encantados do rio e da mata

144

A panemeira soacute eacute curada apoacutes o benzedor benzer Foi o que aconteceu com

Pedro que depois de benzido e de ter feito tudo o que o benzedor receitou ele ficou

curado e nunca mais tomou banho no rio agrave noite Presenciei o trabalho do benzedor

o senhor Benedito A neta da secretaacuteria da escola estava doente com ldquosustordquo56 Entatildeo

fui junto com eles levaacute-la para benzer na ilha do Amor onde mora o benzedor A ilha

fica distante cerca de vinte minutos da vila indo na rabeta57 O morador Raimundo

avocirc da crianccedila justifica o motivo da escolha do benzedor ldquoAqui na ilha do Accedilaiacute temos

duas pessoas que benzem o cumpadre Benedito que mora na ilha do Amor e a dona

Antocircnia que vive no rio Cajueiro Levo sempre meus filhos pro cumpadre Beneacute benzer

tenho mais feacute nele Sempre cura as doenccedilas dos piquenosrdquo

Fotografia 25 - Benzedor benzendo uma crianccedila com susto

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Na imagem acima o senhor Benedito benze a crianccedila viacutetima de ldquosustordquo no paacutetio

de sua casa Ele benze em qualquer lugar basta que o doente fique quieto para que

seja feita a reza em sua cabeccedila O tratamento consiste em rezar na cabeccedila ou noutras

partes do corpo do doente e em seguida a indicaccedilatildeo de ervas medicinais Existe

oraccedilatildeo especiacutefica para cada tipo de doenccedila o benzedor demonstrou conhecer muito

bem a utilidade das ervas medicinais para curar uma diversidade delas

56 A crianccedila assustada natildeo dorme bem acorda agrave noite aos prantos assim como vive o tempo todo agitada durante o dia e chora constantemente 57 Pequeno barco movido a motor

145

Fiquei quatro dias na ilha para conhecer melhor o curandeiro Ao perguntar

sobre onde aprendeu a rezar respondeu ldquocom ningueacutem saiu da minha cabeccedila eacute um

dom que carrego comecei a benzer aos15 anos de idade e natildeo posso passar pra

ningueacutem nem pros meus filhosrdquo e natildeo quis revelar os motivos de natildeo poder transmitir

os saberes da reza que satildeo guardados em segredo

Ele natildeo cobra pelos serviccedilos A pessoa daacute o que quiser em troca No periacuteodo

em que estive na sua casa ele atendeu seis pessoas sendo cinco crianccedilas e uma

mulher adulta

Dentre as doenccedilas curadas pelo benzedor as mais comuns satildeo dor de

cabeccedila panemeira susto quebranto58 dor de barriga febre mau-olhado e espinhela

caiacuteda59 Mas para que a cura aconteccedila eacute preciso que o doente tenha feacute e acredite

nopoder do remeacutedio e no seu curador ldquoA cultura tambeacutem eacute capaz de provocar cura

de doenccedilasreais e imaginaacuterias Estas curas ocorrem quando existe afeacute do doente na

eficaacutecia do remeacutedio e no poder dos agentes culturaisrdquo (LARAIA 2009 p 78)

Na comunidade do rio Caraacutes encontrei dona Luzia uma senhora idosa

conhecida como a contadora de histoacuterias Ao chegar a sua residecircncia jaacute havia

algumas crianccedilas com o uniforme escolar sentadas ouvindo-a contar uns causos

acompanhadas da professora60 A histoacuteria era a seguinte

Quando era jovem meu irmatildeo saiu agrave noite no casco para ir agrave casa da namorada Todas as noites ele saia pra namorar Uma dessas noites ele ouviu um assobio bem alto (dona Luzia imita o assobio) vaacuterias vezes Era a Matinta Perecircra ela estava em forma de coruja voando perto do casco O caboclo ficou tremendo de medo e pra ela parar de assobiar ele ofereceu tabaco No outro dia pela manhatilde apareceu uma velhinha toda de preto perguntando pra ele se tinha tabaco

Para descobrir quemeacute a Matinta Perecircra diz dona Luzia basta que a pessoa

que ouviu o seu assobio convide-a para vir agrave sua casa pela manhatilde para tomar cafeacute

ou pegar tabaco Na manhatilde seguinte a primeira pessoa que chegar pedindo cafeacute ou

tabaco eacute a Matinta Perecircra Acredita-se que ela possui poderes sobrenaturais Seus

feiticcedilos satildeo capazes de causar seacuterios prejuiacutezos agraves suas viacutetimas principalmente com

respeito agrave sauacutede causando-lhes fortes dores fiacutesicas e ateacute a morte Motivo pelo qual

tem que dar o que prometeu a ela

58Doenccedila que acomete principalmente as crianccedilas causada por susto mau-olhado ou pessoa adulta que chega suada e com fome da mata ou do rio e agrada a crianccedila 59 Fraqueza fiacutesica e mental 60 Nesse dia a professora levou os alunos para ouvirem as histoacuterias do lugar contadas pela dona Luzia

146

Segundo Fraxe (2010 p 325) ldquoa aceitaccedilatildeo espontacircnea de episoacutedios como

esses reflexo de uma espeacutecie de aceitaccedilatildeo de dois mundos (material e simboacutelico)

representa um dos suportes psicoloacutegicos de compreensatildeo de relatos verdadeiros []rdquo

Essas e outras histoacuterias contadas pelos mais velhos tem um cunho educativo

procuram trazer exemplos do que natildeo deve ser feito portanto as histoacuterias miacuteticas que

envolvem os seres encantados influenciam o comportamento dos ribeirinhos bem

como as formas de pensar e agir na comunidade natildeo pegar aacutegua e tomar banho no

rio depois das seis horas da tarde natildeo partir lenha agrave noite com receio de ser castigado

pela matildee da mata natildeo jogar futebol agrave noite nas praias mesmo na lua cheia para natildeo

ter problemas de dormir com os gritos do caboclo gritador sair a noite sozinho no

riopara natildeo correr o risco de encontrar Matinta Perecircra entre outros

Esses saberes satildeo invisibilizados vistos como ausentes sem importacircncia e

natildeo reconhecidos pelos fundamentoshegemocircnicos O que estamos fazendo nesta

pesquisa eacute tornaacute-los presentes existentes como outras maneiras de compreender o

universo Concordamos com Santos (2005 p 56) quando afirma que ldquoNatildeo haacute nem

conhecimentos puros nem conhecimentos completos haacute constelaccedilotildees de

conhecimentosrdquo Dentre elas os saberes oriundos da relaccedilatildeo entre os ribeirinhos da

Amazocircnia com os rios lagos e igarapeacutes O que se faz necessaacuterio eacute eliminar as

relaccedilotildees desiguais entre as constelaccedilotildees de conhecimentos e o conhecimento

hegemocircnico Para isso a sociologia das ausecircncias proposta pelo autor tem papel

fundamental

41 2 Saberes da Terra e da Mata

Neste item descrevemos os saberes oriundos da relaccedilatildeo que o ribeirinho

estabelece com a terra e a mata por meio destas relaccedilotildees satildeo produzidos e

reproduzidos novos saberes ligados a cultura local Para Santos (2003) o

reconhecimento da diversidade socioculturalconduz agrave diversidade epistemoloacutegica de

saberes existentes no mundo

Desta maneira na ilha do Accedilaiacute a terra eacute fonte para a produccedilatildeo de alimentos e

remeacutedios Haacute poucas roccedilas nas quais satildeo plantadas melancia maxixe e jerimum O

ribeirinho evita fazer roccedila para natildeo desmatar a mata e preservar os peacutes de accedilaiacute que

satildeo fonte de renda da populaccedilatildeo Os produtos retirados da roccedila servem somente para

o consumo local

Nos quintais encontramos as hortas presentes em quase todas as residecircncias

As mulheres e crianccedilas cuidam das plantas molham e fazem a limpeza retirando os

147

matos e as ervas daninhas que possam impedir o desenvolvimento da cebolinha

chicoacuteria couve quiabo pimentatildeo pimentinhas e outros

Fotografia 26 ndash Ribeirinha cuidando da horta

Os canteiros satildeo feitos no alto para proteger das enchentes e dos animais domeacutesticos patos galinhas e porcos Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Da terra tambeacutem satildeo retiradas as plantas para a cura de doenccedilas O benzedor

senhor Benedito apoacutes benzer o doente sempre passa remeacutedios feitos das ervas que

estatildeo no seu quintal tais como o chaacute de hortelatildeozinho para dor de barriga e gases

chaacute de marupazinho para ameba e diarreia suco do matruz para problemas de barriga

inchada cheiura verme e fiacutegado Segundo Maueacutes (1990) existem dois tipos de

doenccedilas as naturais e sobrenaturais Dentre as doenccedilas sobrenaturais causadas

pelos seres encantados da mata e do rio estatildeo o quebranto ventre-caiacutedo mau-

olhado e panemeira No processo de cura para essas doenccedilas os remeacutedios extraiacutedos

das plantas medicinais bem como o trabalho do curandeirobenzedor satildeo

fundamentais As doenccedilas naturais satildeo explicadas pela ciecircncia

Fotografia 27 ndash Marupazinho

148

Na imagem o peacute de marupazinho planta da horta do benzedor usada para combater a diarreia e verminose como a amebiacutease em crianccedilas jovens e adultosFonte Edielso M M de Almeida 2016

Na comunidade do rio Caraacutes haacute um posto de sauacutede Os moradores utilizam os

remeacutedios farmacecircuticos e tambeacutem dependendo da gravidade da doenccedila os

remeacutedios caseiros De acordo com JoanaldquoQuando o doente taacute passando muito ruim

eacute sinal que a doenccedila eacute grave entatildeo toma remeacutedio do posto ou leva pra Macapaacute mas

quando eacute uma gripe a gente faz um chaacute de limatildeo alho gengibre e coloca um pouco

de mel e tomardquo O limatildeo eacute retirado do quintal e o gengibre da horta o mel e o alho satildeo

comprados na cidade Em relaccedilatildeo agrave preparaccedilatildeo dos remeacutedios podem ser em forma

de chaacutes garrafadas com infusatildeo no aacutelcool ou cachaccedila afumentadores (para

massagear) e banhos

Na comunidade do rio Cajueiro entrevistei a moradora Antocircnia que aleacutem de

benzer ainda eacute parteira

Aprendi a fazer parto com minha avoacute Sou de Breves e sempre morei no interior se hoje natildeo tem meacutedico imagina na eacutepoca da vovoacute Entatildeo a mulherada paria61 nas matildeos da parteira do lugar Eu a ajudava a pegar a crianccedila quando estava saindo do ventre da matildee nessa hora tem que ter demais cuidado pegar com jeitinho primeiro passa a cabeccedila bem devagar agente tem que ter paciecircncia nada de pressa quando sai a cabeccedila tem que ajudar a puxar porque o moleque natildeo sai sozinho mas precisa puxar com

61 Ter a crianccedila dar a luz ao bebecirc

149

jeitinho pra natildeo ferir e deslocar o pescoccedilo da crianccedila Jaacute peguei62 muito moleque nessa vida Graccedilas a Deus nunca perdi um

Dona Antocircnia se fez parteira na praacutetica auxiliando sua voacute nos partos e desta

maneiratornou-se parteira experiente De dia ou agrave noite embaixo de sol ou chuva ela

estaacute sempre disponiacutevel para ajudar as mulheres que estatildeo prestes a ldquodar a luzrdquo sem

cobrar nenhum tostatildeo Ela crecirc que partejar eacute um dom divino e por isso natildeo cobra

nada o reconhecimento vem em forma de agradecimento A parteiradedica seu tempo

para ajudar as mulheres ldquoagraves vezes acompanho a gestaccedilatildeo faccedilo o parto e fico durante

uns sete dias na casa da mulher ajudando a cuidar do muleque e fazendo a comida

pra paridardquo Mas haacute situaccedilotildees em que ela eacute chamada apenas para fazer o parto

ficando sob a responsabilidade dos familiares os cuidados do poacutes-parto

Segundo o Ministeacuterio da Sauacutede (BRASIL 2014 p23)

[] estima-se que existe um nuacutemero expressivo de parteiras tradicionais principalmente das regiotildees Norte e Nordeste Entretanto natildeo se dispotildee de dados que expressem o real quantitativo das parteiras pois existe um cadastramento insuficiente destas por parte das secretarias estaduais e municipais de sauacutede visto que ainda eacute predominante a situaccedilatildeo de natildeo articulaccedilatildeo do trabalho das parteiras tradicionais com o sistema de sauacutede formal

Na ilha do Accedilaiacute natildeo haacute articulaccedilatildeo do poder puacuteblico por meio da secretaria de

sauacutede com o trabalho da parteira nem com o do rezador Ambos atuam sem nenhum

apoio seja financeiro ou material por parte do poder puacuteblico

Foram quatro dias de aprendizado que tive com Dona Antocircnia dentre os quais

como ela faz os partos e os cuidados que tem com a parturiente antes durante e

depois do fato

Antes de sai de casa peccedilo logo ajuda pra Deus e a minha santa protetora Santa Rita de Cassia para me guiar e ajudar na hora de pegar o muleque Quando chego na casa da gestante se ela tiver deitada na rede e natildeo tiver cama peccedilo pro marido arrumar uma esteira e forrar com lenccedilol fica melhor pra ela fazer forccedila pra empurrar o muleque pra fora e coloco aacutegua pra ferver junto com a tesoura que uso pra cortar o cordatildeo do umbigo Entatildeoponho ela deitada na esteira com as pernas abertas Quando a dor aperta63 faccedilo massagem na barriga pra ajudar e rezo a oraccedilatildeo do bom parto A parte mais difiacutecil eacute cortar o cordatildeo do umbigo pra isso coloco trecircs dedos da matildeo como medida entre a crianccedila e o cordatildeo e passo a tesoura depois amarro com um barbante e passo oacuteleo de andiroba com tabaco pra natildeo inflamar

Apoacutes o parto vem o periacuteodo de resguardo os cuidados e a dieta Como eximia

conhecedora das ervas passa banhos com a casca de paricaacute64 para ajudar a

62Fez parto de muitas crianccedilas 63 Aumentar a intensidade da dor 64 Aacutervore predominante na floresta amazocircnica

150

desinflamar ldquoa parte iacutentimardquo e afumentaccedilatildeo65 com oacuteleo de copaiacuteba para a parida

Durante no miacutenimo sete dias deve evitar sair do quarto e tem que comer carne magra

principalmente galinha com bastante caldo natildeo comer porco ou caccedila do mato

Deveria ser por quarenta dias mas ningueacutem respeita o resguardo entatildeo peccedilo pra resguardar pelo menos sete dias sem sai no sereno tomar banho dentro de casa natildeo carregar peso O marido soacute deve usar66 a mulher depois dos quarenta dias quando ela vai estaacute recuperada do parto

As mulheres comumente procuram a parteira para pedir remeacutedio para dor de

coacutelica prisatildeo de ventre e atraso das regras67 Assisti a uma consulta na qual uma

moccedila estava menstruada e com muita coacutelica o remeacutedio indicado foi o chaacute de

hortelatildeozinho com a semente da buchinha que deveria ser tomado pela manhatilde e agrave

noite antes de deitar As que estatildeo graacutevidas vecircm trazer a barriga para puxar com

o intuito ldquode colocar a crianccedila no lugarrdquo68 e saber o seu sexo Dona Antocircnia afirma que

sempre acerta ldquoquando a barriga eacute demais pontuda vai ser menino quando eacute muito

redonda seraacute meninardquo

A parteira afirma que jaacute faz algum tempo que natildeo realiza parto ldquohoje em dia

as mulheres vatildeo parir pra Macapaacute tem medo de ter o filho aqui na vilardquo A proximidade

favorece a ida das graacutevidas para a cidade a viagem dura em meacutedia uma hora e meia

de catraio A mesma observaccedilatildeo eacute feita em relaccedilatildeo ao consumo de remeacutedios caseiros

ldquoantigamente a procura por remeacutedio da mata era maior agora eacute mais os da farmaacutecia

O remeacutedio daqui da natureza natildeo ataca o fiacutegado nem o estocircmago como os da

farmaacutecia mas o povo natildeo acredita mais na cura desses remeacutediosrdquo

A seguir algumas fotografias de plantas que satildeo utilizadas pelos moradores da

ilha para fazer remeacutedios com as respectivas receitas relatadas pelos moradores

sujeitos da pesquisa

Fotografia 28 ndash Peacute de Mastruz

65 Massagear neste caso passar levemente oacuteleo de copaiacuteba nas partes iacutentimas isso ajuda no processo desinflamatoacuterio 66 Fazer sexo 67 Menstruaccedilatildeo 68 Quando sentem dores dizem que eacute porque a crianccedila estaacute atravessada na barriga aiacute tem que levar para a parteira puxar e colocar no lugar

151

Na imagem um peacute de matruz do qual se retira as folhas para bater com leite do Amapaacute (aacutervore da qual se extrai o leite) vira remeacutedio para as pessoas que estatildeo com fraqueza indisposiccedilatildeo e mal-estarFonte Edielso M M de Almeida 2016

Fotografia 29 ndash Peacute de Capim Marinho

Na imagem um peacute capim marinho do qual se faz o chaacute para tomar contra o cansaccedilo fiacutesico e mental Deve-setomaacute-lo todos os dias pela manhatilde em jejumFonte Edielso M M de Almeida 2016

Fotografia 30 ndash Peacute de Noni

152

Peacute de Noni da fruta eacute feito o suco para problemas de prisatildeo de ventre diabetes pressatildeo alta e tambeacutem funciona como um excelenteanti-inflamatoacuterio Deve-se tomar o suco duas vezes por dia durante vinte dias consecutivosFonte Edielso M M de Almeida 2016

Fotografia 31 ndash Sementes de Cacau

No paneiro sementes de cacau colocadas para secar Quando secas satildeo piladas e misturadas com sementes de aboacutebora para fazer chaacute ou suco e serve para combater verminoses Deve-se tomar em jejum e antes de deitar agrave noite Fonte Edielso M M de Almeida 2016

153

O cacau eacute retirado da mata assim como a mateacuteria-prima para a produccedilatildeo do

matapi para pegar o camaratildeo o paneiro que serve para colocar accedilaiacute peixe

camaratildeo guardar roupas plantar as mudas das plantas medicinais entre tantas

outras utilidades a peneira para peneirar o accedilaiacute casco e remos

Fotografia 32 ndash Erva Cidreira

O chaacute da erva cidreira eacute usado no tratamento de gastrite dor no estocircmago coacutelica intestinal e insocircnia Tomar uma xiacutecara duas a trecircs vezes ao dia ateacute parar as dores Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Fotografia 33ndash Catinga de Mulata

Das folhas da catinga da mulata se faz chaacute para tratar de asma gases e vermes O banho ajuda no tratamento da gripeFonte Edielso M M de Almeida 2016

154

Observei durante o periacuteodo em que estive na ilha que uma palmeira chamada

buriti eacute bastante utilizada pelos ribeirinhos Das talas satildeo feitos paneiros esteiras e

peneiras do caule se faz trapiches (o caule boia quando a mareacute estaacute cheia) as folhas

satildeo usadas para cobrir hortas casas de galinhas e de outros animais domeacutesticos do

fruto se faz um delicioso suco que tomei todos os dias durante as refeiccedilotildees

Fotografia 34 ndash Palmeira de Buriti

Palmeira Buriti no meio das demais espeacutecies de vegetaccedilatildeo de vaacuterzea na Floresta Amazocircnica Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A Floresta tambeacutem eacute habitada pelos seres encantados

Aqui na ilha as meninas quando estatildeo menstruadas natildeo tomam banho e nem pegam aacutegua no rio tambeacutem natildeo saem pra andar na mata porque se aparecer alguma crianccedila doente a culpa eacute delas Natildeo saem pra andar na mata porque tem a caruara que sente o cheiro do sangue e lanccedila flechas que podem acertar os piquenos69 que vivem na redondeza (JOANA)

No periacuteodo em que estatildeo menstruadas as meninas tambeacutem natildeo vatildeo para a

escola exatamente para evitar os problemas citados acima O proacuteprio termo

ldquomenstruaccedilatildeordquo recebe vaacuterias denominaccedilotildees minhas regras estaacute vazando estaacute

furada e taacute de bode Alguns homens me confessaram que nesse periacuteodo natildeo mantecircm

relaccedilotildees sexuais com suas mulheres ou namoradas porque elas satildeo ldquopoucos limpas

e podem passar doenccedila pra noacutesrdquo (JOAtildeO)

Para adentrar a mata eacute necessaacuterio se benzer (fazer o sinal da cruz) e pedir

permissatildeo para os seres encantados que moram no lugar Vaacuterias vezes fui

advertidopelos meus entrevistados por natildeo me benzer ao entrar na mata Os

69 Crianccedilas

155

caccediladores que satildeo poucos na ilha desenvolveram vaacuterios saberes referente aos

animais que habitam a floresta seus haacutebitos alimentares cheiro marcas deixadas na

lama praia e galhos de aacutervores horaacuterio que estatildeo mais propiacutecios para serem

capturados entre outros

A cutia e a paca costumam comer as sementes e frutas que caem das aacutervores perto do rio o tatu aproveita a enchente pra vim beber aacutegua o veado sai bem cedinho pra comer Isso a gente aprende com os caccediladores mais velhos como meu avocirc meu pai meus irmatildeos (RAIMUNDO)

O processo de aprendizagem segundo o caccedilador ocorre na praacutetica no dia a

dia vivenciando observando seu avocirc pai e irmatildeos mais velhos Esses saberes

orientam as atividades de caccedila na ilha o bom caccedilador passa por todo um processo

de aprendizagem que ocorre na praacutetica da caccedila

Esses saberes satildeo frutos da relaccedilatildeo dos ribeirinhos com a natureza e

geralmente ignorados pela instituiccedilatildeo escolar na qual esses sujeitos passam grande

parte de sua vida desde a educaccedilatildeo baacutesica ateacute o ensino superior Desta maneira os

desqualificam e os desvalorizam por natildeo serem cientiacuteficos Assim sendo ldquoAo

submeter outros saberes a seus proacuteprios criteacuterios de verdade e eficaacutecia o

conhecimento cientiacutefico os rejeitae marginalizardquo (SANTOS 2005 p 45)

Da mata tambeacutem eacute retirado o accedilaiacute fonte de renda e alimento presente na

mesa de todos os ribeirinhos Devido agrave sua importacircncia abordamos especificamente

este saber a seguir

413 Saberes do Accedilaiacute

O accedilaiacute eacute a principal fonte de renda dos ribeirinhos e tornou-se a base

econocircmica dos moradores da ilha cuja vegetaccedilatildeo predominante eacute a palmeira

conforme imagem a baixo

Fotografia 35 - Peacutes de Accedilaiacute

156

As beiradas dos rios que formam a ilha satildeo repletas de peacutes de accedilaiacute que eacute uma palmeira tiacutepica da Amazocircnia Seu fruto eacute rico em vitaminas ferro fibras foacutesforo potaacutessio minerais e gordura vegetal Eacute uma vegetaccedilatildeo predominante nas aacutereas de vaacuterzea Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A safra do produto compreende os meses de marccedilo a agosto Na mesa o accedilaiacute

com a farinha de mandioca eacute o prato principal acompanhado do peixe camaratildeo ou

charque frito O produto eacute consumido praticamente todo dia na eacutepoca da safra agraves

vezes eacute o uacutenico alimento da famiacutelia Nas cidades amazocircnidas o accedilaiacute eacute um dos

alimentos mais sorvidos pela populaccedilatildeo Para a antropoacuteloga Woodward (2008 p 42)

ldquoaquilo que comemos pode dizer muito sobre quem somos e sobre a cultura da qual

vivemos A comida eacute um meio pelo qual as pessoas podem fazer afirmaccedilotildees sobre si

proacutepriasrdquo Devido ao seu teor energeacutetico o accedilaiacute eacute tomado por crianccedilas jovens adultos

e idosos para recuperar as energias e as forccedilas gastas no cotidiano como afirma o

morador Pedro ldquo Bebo accedilaiacute todo dia se tiver tomo de manhatilde na merenda da tarde e

na janta agrave noite ele me daacute forccedila e disposiccedilatildeo pra trabalharrdquo

A colheita do produto eacute feita na sua maioria pelos homens mas encontrei na

comunidade do rio Caraacutes uma adolescente de doze anos que tambeacutem ldquoapanha70rdquo

accedilaiacute Segundo sua matildee ldquoela apanha accedilaiacute desde os seis anos natildeo gosta dos afazeres

domeacutesticos mas adora tirar accedilaiacuterdquo Nesse extrativismo os pais levam os filhos mais

velhos para ajudaacute-los os quais ao mesmo tempo aprendem os saberes necessaacuterios

por meio de uma educaccedilatildeo natildeo formal ou seja aprende-se na praacutetica no dia a dia

por meio do envolvimento nas atividades produtivas

70 Tirar o cacho e accedilaiacute da palmeira

157

Fotografia 36 ndash Menino subindo no Accedilaizeiro

Na ilha as crianccedilas e adolescentes tambeacutem participam da colheita do accedilaiacute Eles sobem nas aacutervores mais finas nas quais os adultos natildeo conseguem por causa do risco de quebraacute-las devido ao peso como as crianccedilas e os adolescentes satildeo mais leves acabam tirando o accedilaiacute dessas palmeirasFonte Edielso M M de Almeida 2016

A palmeira do accedilaizeiro mede aproximadamente de 35 a 40 cm de diacircmetro e

pode chegar ateacute 16 metros de altura Quanto agrave produccedilatildeo o morador Joatildeo diz queldquode

um peacute de accedilaiacute novo daacute pra tirar ateacute nove cachos por safra a produccedilatildeo vai diminuindo

assim que a accedilaizeira vai ficando velha por isso a gente faz o manejo do accedilaizalrdquo A

idade entatildeo eacute determinada pela produccedilatildeo de cada palmeira e quando comeccedila a

diminuir eacute feito o corte da mais velha para que os peacutes mais jovens possam se

desenvolver

Aqui na ilha agente faz o manejo da seguinte forma quando fica um accedilaizal muito fechado ele natildeo produz accedilaiacute fica abafado com muitas aacutervores juntas eacute preciso que desabafe e isso se faz cortando as aacutervores mais altas para que as menores possam crescer assim como os filhototildees que satildeo os peacutes pequenos de accedilaiacute Desta maneira o accedilaizal vai produzindo cada vez mais Porisso que o accedilaiacute nunca falhou todo mundo aqui se sustenta dele haacute mais de trinta anos venho fazendo isso

O objetivo do manejo eacute garantir a produccedilatildeo para o ano seguinte Desta forma

os peacutes mais velhos satildeo arrancados para dar espaccedilo aos filhototildees71 e assim assegura-

se a produccedilatildeo e a existecircncia do accedilaizal Esses cuidados satildeo necessaacuterios natildeo soacute para

71 Satildeo os peacutes pequenos de accedilaiacute necessitam de sol para crescer motivo pelo qual as palmeiras mais velhas satildeo derrubadas para que eles possam pegar sol e se desenvolver

158

o aumento da produccedilatildeo pois quanto mais jovem for a palmeira mais ela produz como

tambeacutem para a sobrevivecircncia da populaccedilatildeo ribeirinha na ilha

A gente tem que cuidar do accedilaizal limpar fazer o manejo todos os anos natildeo deixar ningueacutem derrubar pra tirar palmito nem pra fazer roccedila que deixa a mata nua onde se faz roccedila natildeo nasce peacute de accedilaiacute acho que eacute porque a gente queima a terra aiacute mata o que o accedilaizeiro precisa pra nascer (ANTOcircNIO)

A roccedila deixa a mata ldquonuardquo sem nenhum tipo de vegetaccedilatildeo nativa de modo que

a terra fica improdutiva infeacutertil por alguns anos daiacute a preocupaccedilatildeo com o meio

ambiente os cuidados para que a mata continue feacutertil Afinal a permanecircncia da

populaccedilatildeo na ilha depende da preservaccedilatildeo da natureza O palmito eacute retirado somente

das aacutervores que satildeo derrubadas

Os instrumentos utilizados para apanhar o accedilaiacute satildeo a peconha o facatildeo o

paneiro e a debulhadeira A peconha pode ser feita de saca de farroupilha ou com as

folhas da proacutepria palmeira que eacute enrolada e amarrada em forma de um circulo A

medida depende do tamanho do peacute do apanhador e da grossura do accedilaizeiro sua

funccedilatildeo eacute ajudar a subir e descer dar estabilidade e seguranccedila apoiar os peacutes para

evitar que se deslize rapidamente O apanhador de accedilaiacute coloca a peconha nos peacutes e

com o corpo daacute impulso para subir paulatinamente na palmeira Eacute preciso ter forccedila

nas pernas e nos peacutes para poder sair do lugar trabalho que exige aleacutem de equiliacutebrio

atenccedilatildeo e agilidade Eacute o que nos diz Tiago ldquoapanho uns 16 paneiros de accedilaiacute por dia

com quatro paneiros a gente tem uma saca Pra subir no accedilaizeiro coloco a peconha

nos peacutes o facatildeo na cintura preso no short e na cueca e dou um impulso para subir de

uma soacute vez pra natildeo perder o equiliacutebrio tem ser ligeirordquo

Fotografia 38 ndash Instrumentos utilizados para a colheita de accedilaiacute

Na imagem o facatildeo a peconha e a debulhadeira os instrumentos que os ribeirinhos utilizam para apanhar accedilaiacuteFonte Edielso M M de Almeida 2016

159

Na fotografia acima temos a debulhadeira que consiste em uma saca de

serapilheira na qual eacute debulhado72 o accedilaiacute para evitar que caia no chatildeo Dentro dela

temos alguns caroccedilos de accedilaiacute uma peconha tambeacutem feita de serapilheira e o facatildeo

Para debulhar eacute preciso todo um saber para natildeo desperdiccedilar os caroccedilos

primeiro tem que escolher o lugar pra estender a debulhadeira que natildeo pode ficar totalmente estendida no chatildeo tem que ser num lugar firme porque agente faz forccedila pra tirar o accedilaiacute do cacho depois colocar o cacho no meio dela pros caroccedilos natildeo caiacuterem no chatildeo tem que ter equiliacutebrio e ser raacutepido porque satildeo muitos cachos pra debulhar(MARIA)

Fotografia 39 ndash Menina debulhando o cacho de accedilaiacute

Na imagem menina debulhando o cacho de accedilaiacute Observe que a debulhadeira natildeo estaacute totalmente estendida no chatildeo e se encontra numa aacuterea de terra firme O cacho estaacute no lado do quala menina tem mais agilidade com as matildeos Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Acompanhei de perto durante vaacuterios dias o trabalho da coleta do accedilaiacute na

beira dos rios e na mata Percebi que haacute sintonia dos movimentos das matildeos com

o restante do corpo no ato de apanhar e debulhar o fruto Nesse sentido Freire

(2005 p 70) afirma que

O corpo humano eacute um corpo consciente porque eacute dotado de capacidades e habilidades que auxiliam o ser humano no trabalho e o corpo sente e aprende as dinacircmicas desse trabalho educando-se no modo de interagirem com a natureza por isso estaacute errado separar o que chama de trabalho manual do que se chama trabalho intelectual

72 Tirar os caroccedilos do accedilaiacute do cacho

160

A coleta do accedilaiacute eacute planejada desde o local a escolha das accedilaizeiras o

tamanho das peconhas entre outros portanto natildeo eacute um ato mecacircnico ao

contrario haacute um processo de accedilatildeo-reflexatildeo-accedilatildeo na execuccedilatildeo desta atividade

produtiva

Apoacutes a colheita parte do produto eacute vendido em Macapaacute o que garante a

compra de alimentos e utensiacutelios domeacutesticos como fogatildeo botijatildeo de gaacutes panelas

televisatildeo geladeira e ferramentas para o trabalho facatildeo sacas de serapilheira

rabeta catraios machados etc Na ilha muitas casas jaacute estatildeo com o motor de luz

movido a oacuteleo diesel Todas essas mercadorias satildeo compradas com a renda

obtida do accedilaiacute

A outra parte eacute consumida pelos ribeirinhos Para o consumo o accedilaiacute passa

por todo um processo Inicialmente eacute colocado de molho na aacutegua morna para

amolecer a polpa em seguida eacute batido na amassadeira eleacutetrica nas casas onde

haacute motor de luz na manual ou amassado nas matildeos onde natildeo haacute a tecnologia

Encontrei alguns ribeirinhos que socam o accedilaiacute em um paneiro para retirar a tinta

antes de batecirc-lo para o consumo ldquosoco o accedilaiacute pra tirar a tinta porque ela faz mal

pro estocircmago daacute gases e cheiurardquo(JOSEacute)

Fotografia 40 ndash Amassadeira eleacutetrica

Na imagem a amassadeira eleacutetrica foi limpa apoacutes o uso Em cima as bacias usadas para aparar o liacutequido Os caroccedilos satildeo colocados na batedeira com a maacutequina ligada em seguida eacute depositada aacutegua que dependendo da quantidade produziraacute o vinho73 grosso ou fino O batedor tem que ser aacutegil para

73 O vinho eacute o suco retirado da polpa do accedilaiacute

161

natildeo estragar os caroccedilos dentro da batedeira Quando grosso coloca-se pouca aacutegua ficando uma papa Caso queria fino adiciona-se bastante aacutegua Na safra do produto toma-se o grosso Na entressafra o fino para servir a toda famiacuteliaFonte Edielso M M de Almeida 2016

Fotografia 41 ndash Amassadeira manual

Na imagem a amassadeira manual encontrei-a somente na casa do morador Benedito o curandeiro Os caroccedilos satildeo colocados na batedeira e amassados com a forccedila humana por meio da manivela paulatinamente eacute colocada a aacutegua para diluir a poupa que se transforma em vinho Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Fotografia 42 ndash Ribeirinha amassando o accedilaiacute com as matildeos

Para amassar o accedilaiacute com as matildeos primeiro ele eacute colocado para amolecer na aacutegua morna em seguida eacute colocado em uma bacia sem aacutegua posteriormente os caroccedilos satildeo amassados com as matildeos para retirada da polpa Eacute um processo que demanda forccedila sincronia das matildeos e agilidade Apoacutes a retirada da polpa coloca-se aacutegua para lavar os caroccedilos assim vai se fazendo o vinho Para separar o vinho dos

162

caroccedilos eacute usada a peneira que eacute feita de tala de buritiFonte Edielso M M de Almeida 2016

Durante a pesquisa observei que na Ilha satildeo poucas as pessoas que ainda

amassam com as matildeos o accedilaiacute Quem natildeo tem amassadeira usa a do vizinho mais

proacuteximo como contribuiccedilatildeo deixauma porccedilatildeo de accedilaiacute batido ou em caroccedilos Neste

processo participam homens e mulheres jovens adultos e idosos As crianccedilas

tambeacutem satildeo envolvidas direta e indiretamente seja como espectadoras ou em

trabalhos de preparaccedilatildeo do beneficiamento colocam aacutegua para ferver lavam as

bacias e a amassadeira antes e apoacutes o uso carregam os baldes com aacutegua pra diluir

o accedilaiacute e jogam fora os caroccedilos apoacutes a retirada da polpa

Agrave vista de toda essa diversidade de saberes que satildeo produzidos pelos povos

das aacuteguas na Amazocircnia na relaccedilatildeo que estabelecem com a natureza (aacutegua terra e

mata) e com seus semelhantes haacute a necessidade de validaacute-los pela instituiccedilatildeo

escolar bem como reconhecer a sua incompletude como condiccedilatildeo para o diaacutelogo

com outros saberes ldquoO confronto e o diaacutelogo entre os saberes eacute um confronto e

diaacutelogo entre diferentes processos atraveacutes dos quais praacuteticas diferentemente

ignorantes se transformam em praacuteticas diferentemente saacutebiasrdquo (SANTOS 2005 p

25)

Neste estudo fizemos uma hermenecircutica diatoacutepica por meio do levantamento

dostopoi (saber popular) da cultura ribeirinha O que preconiza a hermenecircutica

diatoacutepica satildeo as maneiras de interpretaccedilatildeo e de diaacutelogos entre culturas diversas que

tem como paracircmetro a consciecircncia de sua incompletudee desta forma possibilita a

evoluccedilatildeo e a construccedilatildeo segundo Santos (2005 p 56) de ldquoformas hiacutebridas de

dignidade humana mais rica e mais amplamente partilhadardquo

Na proacutexima seccedilatildeo apresentamos como ocorre o diaacutelogo entre os saberes da

cultura ribeirinha e os saberes escolares na praacutetica pedagoacutegica dos professores que

atuam na educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do ensino fundamental em escolas situadas

nas comunidades ribeirinhas que formam a ilha do Accedilaiacute

163

42 O DIAacuteLOGO ENTRE O CONHECIMENTO ESCOLAR E O SABER POPULAR

Nesta seccedilatildeo analisamos como acontece o diaacutelogo entre os saberes oriundos

das comunidades ribeirinhas com o conhecimento escolar na praacutetica pedagoacutegica dos

professores nas cinco escolas que compotildeem o regional Madeira situadas na ilha do

Accedilaiacute Estabelecemos diaacutelogos a partir das categorias diaacutelogo saber popular praacuteticas

colonizadoras e praacuteticas descolonizadoras e o referencial teoacuterico deste estudo

Iniciamos a discussatildeo com a concepccedilatildeo de conhecimento escolar e o livro

didaacutetico como elemento norteador do conhecimento nas escolas ribeirinhas e em

seguida dialogamos com os elementos que fazem parte da praacutetica pedagoacutegica do

educador dentre os quais o planejamento das aulas e a metodologia de ensino e

aprendizagem

421 O Conhecimento Escolar

Segundo Santos (1995 p 30) o conhecimento escolar eacute ldquoum tipo de

conhecimento produzido pelo sistema escolar e pelo contexto social e econocircmico mais

amplo produccedilatildeo essa que se daacute em meio a relaccedilotildees de poder estabelecidas no

aparelho escolar e entre esse aparelho e a sociedaderdquo Portanto o conhecimento

escolar estaacute imbricado por questotildees ideoloacutegicas e poliacuteticas sendo assim a definiccedilatildeo

do que deve ser ensinado na escola natildeo eacute somente uma questatildeo educacional e sim

poliacutetica

A decisatildeo de se definir o conhecimento de alguns grupos como digno de ser transmitido agraves geraccedilotildees futuras enquanto a histoacuteria e a cultura de outros grupos mal vecircem a luz do dia revela algo extremamente importante acerca de quem deteacutem o poder na sociedade (APPLE 2006 p 42)

Quem deteacutem o poder na sociedade capitalista privilegia e legiacutetima

conhecimentos que socialmente satildeo reconhecidos bem como ignora e estigmatiza os

que natildeo o satildeo dentre eles os saberes populares Assim hierarquiza os

conhecimentos que podem ser transmitidos pelo sistema escolar Na visatildeo de Moreira

e Candau (2008 p 25) ldquoNessahierarquia silenciam-se as vozes de muitos indiviacuteduos

e grupos sociais classificam-se seus saberes como indignos de entrarem na sala de

aula e de serem ensinados e aprendidosrdquo Essa maneira de agir estaacute alicerccedilada

segundo Santos (2007) na razatildeo indolente que guia o pensar a nossa visatildeo da vida

e do mundo bem como a produccedilatildeo da ciecircncia baseada no paradigma eurocecircntrico

Desta maneira o conhecimento oriundo de uma base cientiacutefico-cultural eacute

organizado de acordo com as disciplinas que compotildeem as etapas da educaccedilatildeo baacutesica

164

para fazerem parte do curriacuteculo escolar que deveratildeo ser transmitidos por meio da

utilizaccedilatildeo de meacutetodos e teacutecnicas para a realizaccedilatildeo da praacutetica docente constituindo-

se numa visatildeo racionalista de conhecimento que nega a complexidade do ato de

ensinar e de aprender ao mesmo tempo impotildee o conhecimento cientiacutefico como a

uacutenica maneira de compreender o mundo

Para Santos (2007) a ciecircncia natildeo eacute a uacutenica forma de interpretar o

mundoexistem outros saberes que historicamente foram negados e que precisam ser

reconhecidos Essa ausecircncia eacute gerada pela monocultura do saber e do rigorque

considera ignorante o que natildeo eacute cientiacutefico Desta maneira ossaberes populares natildeo

satildeo reconhecidos como conhecimentos porque natildeo tecircm o rigor do cientiacutefico o que

caracteriza uma visatildeo colonialista ou seja eacute no plano epistemoloacutegico que o

colonialismo assume maior centralidade Desse modo ldquoo que natildeo existe eacute produzido

como natildeo existente invisiacutevel agraverealidade hegemocircnica do mundordquo (p 78)

Consequentemente o conhecimento escolar tem como base o que Santos

(2010 p 71) chama de cacircnone literaacuterio74

Entende-se por cacircnone literaacuterio na cultura ocidental um conjunto de obras literaacuterias que num determinado momento histoacuterico os intelectuais e as instituiccedilotildees dominantes ou hegemocircnicos consideram ser os mais representativos e os de maior valor e autoridade numa dada cultura oficial

Somente o conjunto de obras e autores reconhecidos como hegemocircnicos pela

classe dominante satildeo declaradamente valorizados e reconhecidos como dignos de

serem ensinados nas escolas desde a educaccedilatildeo infantil ensino fundamental meacutedio

e educaccedilatildeo superior ldquo[] o processo de intensificaccedilatildeo que estas obras sofrem dota-

as do capital cultural necessaacuterio para que possam finalmente patentear a

exemplaridade o caraacuteter uacutenico e a inimitabilidade que as distinguerdquo (SANTOS 2010

p 72)

O cacircnone literaacuterio impotildee uma identidade elitista e nega os saberes e as

identidades locais Para dar visibilidade aos diversos conhecimentos e epistemologias

invisiacuteveis o citado autor propotildee a ldquoSociologia das Ausecircnciasrdquo Esta aleacutem do desafio

de conceber um conhecimento como princiacutepio de solidariedade compreende que todo

conhecimento eacute um percurso que vai de um ponto de ignoracircncia a um ponto de saber

no qual o outro eacute sempre sujeito e natildeo objeto Nesse sentido ldquoconhecer eacute reconhecer

74 O cacircnone literaacuterio consiste em um conjunto de obras que abrange as diversas aacutereas do conhecimento e por fazerem parte da cultura ocidental eurocecircntrica satildeo reconhecidos como universais

165

eacute progredir no sentido de elevar o outro da condiccedilatildeo de objeto agrave condiccedilatildeo de sujeito

Esse conhecimento-reconhecimento eacute o que designo por solidariedaderdquo (SANTOS

2011 p 30)

Quando o processo eacute inverso satildeo solidificadas as desigualdades e

consequentemente as diferenccedilas que assinalam a estrutura social baseada em um

modelo econocircmico capitalista Esta colonialidade do saber estruturada num

conhecimento eurocecircntrico e monoliacutetico parte do princiacutepio de que a razatildeo a verdade

e a ciecircncia satildeo atributos da classe hegemocircnica enquanto os outros no caso os

ribeirinhos satildeo classificados como objetos como saber popular leigo e ignorante

Como afirma Quijano (2008) a colonialidade do saber eacute uma das dimensotildees da

colonialidade do poder e visa a subalternizaccedilatildeo e invisibilizaccedilatildeo da multiplicidade de

saberes com seus processos proacuteprios de subjetivaccedilatildeo e seus modos singulares de

pensar a sauacutede a economia a natureza e outros aspectos da realidade social

A colonialidade do saber materializada no saber escolar direciona os curriacuteculos

disciplinas e a organizaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo na escola Desse modo a cultura

erudita e etnocecircntrica instituiacuteda nos conteuacutedos escolares socialmente reconhecidos eacute

sobreposta aos conteuacutedos advindos da cultura popular que eacute marginalizada e ausente

no interior da instituiccedilatildeo escolar Os movimentos de resistecircncia certificam que a

descolonizaccedilatildeo requer propostas baseadas na transdisciplinaridade e na

transculturalidade (CASTRO-GOMEacuteZ 2007) bem como ldquoposturas posicionamientos

horizontes y proyectos de resistir transgredir intervenir in-surgir crear e incidirrdquo

(WALSH 2013 p 3) na colonialidade no contexto da escola Para Dussel (2005)

existem transiccedilotildees e alternativas possiacuteveis construiacutedas com base no diaacutelogo de

saberes Enquanto natildeo obtemos tal ldquoutopia pluriversardquo (p 18) fazem-se necessaacuterios

diaacutelogos que vislumbrem trocas e negociaccedilotildees capazes de beneficiar visotildees e

entendimentos distintos do mundo

4211 O conhecimento escolar na oacutetica dos professores

O conhecimento escolar denominado pelos professores ribeirinhos como

conteuacutedos compotildee a matriz curricular da educaccedilatildeo baacutesica (educaccedilatildeo infantil ensino

fundamental e meacutedio) e satildeo organizados por ano distribuiacutedos nos quatro bimestres

De acordo com a fala dos entrevistados esses conteuacutedos jaacute vecircm estabelecidos pela

Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo esatildeo entregues no iniacutecio das aulas e devem ser

trabalhados com os alunos

166

Por conseguinte os saberes socialmente reconhecidos e legitimados pelo

sistema municipal de educaccedilatildeo de Afuaacute acabam por negar os saberes oriundos da

cultura ribeirinha As vozes dos ribeirinhos satildeo silenciadas e seus saberes natildeo satildeo

dignos de entrarem na sala de aula o que caracteriza uma colonialidade do saber

Acho que quem escolhe os conteuacutedos satildeo os teacutecnicos da SEMED agente aqui apenas trabalha eles com os alunos quer dizer o que daacute tempo de trabalhar ateacute porque satildeo muitos assuntos e pouco tempo entatildeo seleciono o que considero mais importante (Prof 1) A seleccedilatildeo de conteuacutedos vem da SEMED jaacute vem distribuiacuteda por bimestre natildeo sei quem elabora Tem assuntos que satildeo totalmente fora da realidade da gente Eu vou introduzindo os conteuacutedos conforme as necessidades porque tem alguns assuntos que satildeo muitos avanccedilados para eles (Prof2) Noacutes recebemos a lista de conteuacutedos das matildeos da diretora do regional Algumas coisas que na minha maneira de ver natildeo satildeo importantes aiacute a gente tira Para mim seria mais interessante se os conteuacutedos fossem baseados na realidade deles pois as pessoas que selecionam esses conteuacutedos natildeo conhecem a realidade dos alunos ribeirinhos (Prof3) No iniacutecio de cada ano letivo vou ateacute a SEMED procuro os teacutecnicos do setor pedagoacutegico e solicito a lista de conteuacutedos de todas as seacuteries e anos por disciplinas para repassar aos nossos professores do regional (Diretora)

Os professores foram unacircnimes em afirmar que natildeo participam da seleccedilatildeo dos

conteuacutedos e nem sabem quem os elabora apenas os recebem das matildeos da diretora

do Regional que tambeacutem recebe das matildeos dos teacutecnicos da SEMED Os

conhecimentos escolares denominado pelo sistema educacional como conteuacutedos jaacute

vecircm prontos listados por ano e divididos nos bimestres para serem ensinados

independentemente do contexto no qual a escola estaacute inserida Isto colabora para a

exclusatildeo dos alunos que natildeo se adaptam ao processo de transmissatildeo de

conhecimento sem sentido e significado para eles

Fotografia 43 ndash Lista de conteuacutedos da disciplina Ciecircncias

SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCACcedilAtildeO

LISTA DE CONTEUacuteDOS PARA O 4ordm ANO DO

ENSINO FUNDAMENTAL

DISCIPLINA CIEcircNCIAS

1ordm BIMESTRE

1 Planeta Terra e Ambiente

11 A atmosfera terrestre

12 A aacutegua no planeta

13 O solo tipos de solo

22 Os seres vivos dos ecossistemas

2ordm BIMETRE

1 O corpo humano

11 Sustentaccedilatildeo e movimento

12 As partes do corpo humano

13 Os microrganismos

167

Fonte Escola Poacutelo do Regional Madeira 2016

A fotografia acima retrata a lista dos conteuacutedos jaacute divididos por bimestre da

disciplina Ciecircncias para o 4ordm ano do ensino fundamental como afirmam os

professores ela eacute encaminhada pela SEMED para ser desenvolvida em todas as

escolas pertencentes ao sistema municipal de ensino A imagem abaixo mostra o

registro de fragmentos do conteuacutedo desenvolvido nas aulas transcrito no caderno de

um aluno do 4ordm ano do ensino fundamental

Fotografia 44 ndash Fragmentos do conteuacutedo sobre ldquoecossistemardquo no caderno de

aluno

Fonte Anotaccedilotildees de aula do caderno de aluno 2016

O conteuacutedo foi transcrito para o caderno sem fazer a relaccedilatildeo com o

ecossistema da ilha do Accedilaiacute75 Nesse sentido no curriacuteculo oficial natildeo haacute espaccedilo para

o saber popular oriundo das comunidades ribeirinhas Essa forma de exclusatildeo dos

saberes locais eacute o que Mignolo (2000) denomina de Geopoliacutetica do conhecimento que

se refere agraves relaccedilotildees entre espaccedilo e poder que geram as hierarquias entre os

diferentes sistemas de conhecimento quando relacionamos espaccedilo poder e saber

75 O professor copiou o conteuacutedo no quadroque foi posteriormente transcrito para o caderno pelos alunos Natildeo houve uma discussatildeo referente ao ecossistema presente nas comunidades ribeirinhas que fazem parte do cotidiano dos alunos

Ecossistemas O conjunto de seres vivos e de elementos natildeo vivos que se relacionam no ambiente chamamos de Ecossistemas Os ecossistemas podem ser naturais ou artificiais Florestas campos desertos mares e rios satildeo exemplos de ecossistemas naturais porque se formam espontaneamente na natureza Accediludes aquaacuterios jardins campos cultivados satildeo alguns exemplos de ecossistemas artificiais porque satildeo criados pelo ser humano No ecossistema de um jardim por exemplo vivem seres que dependem uns dos outros as minhocas dependem do solo as plantas dependem da aacutegua e da luz as formigas dependem das plantas e as aranhas dependem das formigas para se alimentar O conjunto de todos os ecossistemas do planeta Terra eacute chamado de biosfera Portanto a biosfera compreende o meio aquaacutetico e o meio terrestre

168

Assim os ribeirinhos falam da regiatildeo Norte Amazocircnia (espaccedilo) onde ainda predomina

no imaginaacuterio da populaccedilatildeo de outras regiotildees do Brasil e de outros paiacuteses (poder) que

aqui somos inferiores atrasados e ignorantes Eacute a configuraccedilatildeo do que afirma Castro-

Goacutemez (2006) ser uma reconhecida supremacia eacutetnica e cognitiva do colonizador em

relaccedilatildeo ao colonizado

O curriacuteculo nunca eacute apenas um conjunto neutro de conhecimentos [] Ele eacute sempre parte de uma tradiccedilatildeo seletiva resultado da seleccedilatildeo de algueacutem da visatildeo de algum grupo acerca do que seja conhecimento legiacutetimo Eacute produto de tensotildees conflitos e concessotildees culturais poliacuteticas e econocircmicas que organizam e desorganizam um povo (APPLE 1994 p 59)

Neste sentido a cultura hegemocircnica eacute imposta por meio dos valores haacutebitos e

costumes o que contribui para a baixa autoestima dos alunos que natildeo veem os seus

saberes contemplados no curriacuteculo desenvolvido pela escola Nessa loacutegica Moreira e

Candau (2008) admitem que as situaccedilotildees de opressatildeo e discriminaccedilatildeo tambeacutem satildeo

materializadas no curriacuteculo cotidianamente mas tambeacutem essas situaccedilotildees podem ser

contestadas desveladas e visibilizadas pelo educador e educando

As praacuteticas pedagoacutegicas baseadas na pedagogia bancaacuteria contribuem para

reproduzir preconceitos e discriminaccedilotildees em relaccedilatildeo aos sujeitos do campo

especificamente da Amazocircnia ribeirinha taxados como preguiccedilosos e ignorantes O

estigma de preguiccediloso fruto de uma visatildeo etnocecircntrica e colonizadora no entanto eacute

desconstruiacutedo quando passamos a olhar o outro a partir de sua cultura no caso da

ilha do Accedilaiacute o inverno periacuteodo das chuvas eacute a eacutepoca da colheita e venda do accedilaiacute e

o veratildeo eacutepoca de sobreviver a partir da renda gerada pela comercializaccedilatildeo do

produto Desta forma a vida dos ribeirinhos na Ilha estaacute ligada aos ciclos da

natureza

O resto do tempo eacute ocupado com atividades que geralmente estatildeo pouco articuladas com o mercado limpeza de algum igarapeacute preparaccedilatildeo de festas de santos etc garantindo parte de auto-suficiecircncia em termos modestos Daiacute alguns estereoacutetipos que comumente lhes atribuem preguiccedila inadaptaccedilatildeo para o trabalho falta de aspiraccedilatildeo pessoal (LOUREIRO 2001 p 39)

No que concerne aos conteuacutedos escolares encontramos na

pesquisaprofessores que questionam os arranjos sociais em que essas situaccedilotildees se

sustentam Dentre os mecanismos de luta estaacute o fortalecimento das identidades dos

sujeitos amazocircnidas a partir do reconhecimento dos seus saberes como dignos de

dialogar com os saberes escolares e compor a ldquolistardquo de conteuacutedos a serem

trabalhados no ano letivo

169

Na hora de definir os conteuacutedos que irei trabalhar no bimestre pego a lista da SEMED e vejo o que daacute pra trabalhar e mesclo com os saberes da comunidade (peccedilo para o professor dar exemplo de como ele faz isso) Tem o assunto O Rio na disciplina Geografia ai eu acrescento os rios lagos igarapeacutes e furos aqui da Ilha (Prof10) Pego a lista da SEMED e vejo os conteuacutedos que realmente satildeo mais importantes pros meus alunos acho importante que eles saibam os assuntos necessaacuterios pra sobreviver bem aqui na Ilha ou em outro lugar Entatildeo acrescento outros conteuacutedos relacionados a geografia do lugar a histoacuteria da comunidade e de sua famiacutelia a religiatildeo predominante na comunidade em Ensino Religioso os animais e os alimentos da regiatildeo em Ciecircncias e assim por diante (Prof2) Quem elabora essa tal lista de conteuacutedos com certeza nunca trabalhou numa escola ribeirinha e natildeo conhece a realidade daqui Os meus alunos precisam aprender a Matemaacutetica mas a Matemaacutetica pra usar na vida o Portuguecircs as Ciecircncias a Geografia e a Histoacuteria tambeacutem E esses assuntos natildeo estatildeo nos livros Entatildeo na hora de elaborar essa lista de conteuacutedos eu natildeo entendo porque natildeo nos chamam Por isso que na hora de definir que conteuacutedos trabalhar eu priorizo os da vida (Prof4)

A preocupaccedilatildeo dos professores estaacute voltada para a aprendizagem de

conteuacutedos que sejam significativos para os alunos A lista de conteuacutedos da SEMED eacute

enriquecida com os saberes populares dos alunos e da comunidade pois eles

retratam a realidade local Na fotografia a seguir uma atividade que requer a

mobilizaccedilatildeo do saber local

Fotografia 45 ndashFragmentos do conteuacutedo sobre ldquoos animaisrdquo no caderno de

aluno

Fonte Anotaccedilotildees de aula do caderno de aluno 2016

O reconhecimento de que o saber popular juntamente com os conteuacutedos da

lista encaminhada as escolas pela SEMED satildeo elementos essenciaisque precisam

fazer parte do curriacuteculo tornando-se o cerne do trabalho docente ldquosua aprendizagem

constitui condiccedilatildeo indispensaacutevel para que os conhecimentos socialmente produzidos

possam ser apreendidos criticados e reconstruiacutedos por todosas osas estudantesrdquo

Atividade

1 Preencha a tabela com os nomes dos

animais encontrados aqui na ilha e seus

respectivos haacutebitos alimentares Animal Carniacutevoro Herbiacutevoro Oniacutevoro

Paca X

Tatu X

Jacareacute X

Capiva

ra

X

Porco X

170

(MOREIRA CANDAU 2008 p 21) Desta maneira os professores procuram

selecionar o conhecimento escolar levando em consideraccedilatildeo alguns criteacuterios dentre

os quais

Importacircncia para o cotidiano dos alunos entatildeo procuro favorecer a leitura quando aprendem a ler ajudam seus pais nas atividades diaacuterias que requer esse conhecimento Como a maioria dos pais natildeo satildeo alfabetizados as crianccedilas jaacute alfabetizadas eacute quem escrevem as cartas bilhetes registram as contas feitas na mercearia e outras atividades que requerem a leitura e a escrita O domiacutenio das quatro operaccedilotildees (adiccedilatildeo subtraccedilatildeo multiplicaccedilatildeo e divisatildeo) para dar troco e natildeo deixar se enganar ou enganarem seus pais na hora de vender a saca ou paneiro de accedilaiacute entre outros (Prof6) Eu seleciono aqueles que eu acho mais importantes por exemplo o substantivo eacute importante o aluno conhecer o aluno tem que saber como conjugar um verbo quando ele se dirigir a uma pessoa o aluno tem que conhecer alguns pronomes Eu acho isso muito importante aleacutem de trabalhar textos para eles saberem interpretar (Prof9) Uso como criteacuterio na hora de selecionar os assuntos o que acho mais significativo pra eles aprenderem assim dou prioridade a Liacutengua Portuguesa e Matemaacutetica Faccedilo a relaccedilatildeo dos conteuacutedos com a realidade deles trabalho as quatro operaccedilotildees fundamentais assim como as unidades de medida como o quilograma o metro e outros para usar nas atividades da venda do camaratildeo peixe e accedilaiacute e nas compras na cidade (Prof2)

Os conteuacutedos satildeo selecionados segundo a relevacircncia para as atividades

sociais e produtivas De acordo com Libacircneo (2004) os conhecimentos satildeo relevantes

para a vida concreta quando ampliam o conhecimento da realidade instrumentalizam

os alunos a pensar metodicamente a raciocinar a desenvolver a capacidade de

abstraccedilatildeo enfim a pensar a proacutepria praacutetica Isso implica a incorporaccedilatildeo das

experiecircncias e vivecircncias dos educandos a partir de situaccedilotildees concretas contrapondo-

se a uma visatildeo idealizada e valores distanciados do cotidiano Para Freire (2003 p

31) eacute essencial conhecer a realidade para transformaacute-la

Eacute importante fazer ver que a reflexatildeo natildeo eacute suficiente para o processo de libertaccedilatildeo Necessitamos da praacutexis ou em outras palavras necessitamos transformar a realidade em que nos encontramos Mas para transformar a realidade para desenvolver minha accedilatildeo sobre a realidade transformando-a eacute necessaacuterio conhecer a realidade Por isso em minha praacutexis eacute necessaacuterio que haja constante unidade entre minha accedilatildeo e minha reflexatildeo (grifo nosso)

Corroborando com esse ponto de vista Moreira e Candau (2008 p 21)

destacam que relevacircncia estaacute na importacircncia ldquoem tornar as pessoas capazes de

compreender o papel que devem ter na mudanccedila de seus contextos imediatos e da

sociedade em geral bem como ajudaacute-las a adquirir os conhecimentos e as habilidades

necessaacuterias para que isso aconteccedilardquo Os conhecimentos escolares servem como

171

suporte para pensar a proacutepria praacutetica a partir do questionamento sobre a realidade na

qual estamos inseridos mas para isso faz-se necessaacuterio que sejam relevantes Nesse

sentido o domiacutenio da leitura e da escrita assim como das operaccedilotildees fundamentais

na Matemaacutetica satildeo habilidades essenciais para a mudanccedila de postura frente aos

comerciantes e atravessadores que barganham o fruto da produccedilatildeo do trabalho

ribeirinho

Os professores tambeacutem questionam a natildeo participaccedilatildeo na definiccedilatildeo dos

conhecimentos a serem trabalhados nas diversas disciplinas que compotildeem o curriacuteculo

da educaccedilatildeo baacutesica das escolas ribeirinhas Hage (2004) acredita que aleacutem dos

professores os estudantes pais e membros da comunidade tambeacutem devem fazer

parte desta escolha pois eles tecircm muito a dizer e ensinar ldquosobre os conhecimentos

que devem ser selecionados para a educaccedilatildeoescolarizaccedilatildeo dos seres humanos os

quais contribuiratildeo significativamente para a produccedilatildeo da identidade individual e

coletiva dos sujeitos (p 4)

Para que o conhecimento escolar seja relevante e significativo torna-se

necessaacuterio o envolvimento dos sujeitos que fazem parte da comunidade escolar na

sua definiccedilatildeo Nas escolas que compotildeem o Regional Madeira esses conhecimentos

jaacute satildeo preestabelecidos de forma homogecircnea pelos especialistas que natildeo conhecem

e talvez nunca tenham estado em uma escola ribeirinha Na pesquisa encontramos

professores que seguem literalmente o que eacute estabelecido deixando claro a

colonialidade do saber pois soacute reconhecem como vaacutelido o conhecimento escolar Mas

tambeacutem encontramos outros que procuram romper com esta colonialidade e incluem

conteuacutedos que tenham relevacircncia e significado para os educandos em uma

perspectiva dialoacutegica assim ldquoos saberes da experiecircncia cotidiana no diaacutelogo com os

conhecimentos selecionados pela escola propiciaratildeo o avanccedilo na construccedilatildeo e

apropriaccedilatildeo do conhecimento por parte dos educandos e dos educadoresrdquo (HAGE

2004 p 4)

A seguir analisamos a partir das falas dos professores um dos instrumentos

mais utilizados para a transmissatildeo do conhecimento escolar nas classes

multisseriadas o livro didaacutetico presente em todas as escolas investigadas

422O Livro Didaacutetico

Geacuterard e Roegiers (2000 p19) definem o livro didaacutetico como ldquoum instrumento

impresso intencionalmente estruturado para se inscrever num processo de

aprendizagem com o fim de lhe melhorar a eficaacuteciardquo A intencionalidade eacute expliacutecita

172

ele carrega uma concepccedilatildeo de ensino e aprendizagem de conhecimento assim como

visotildees de mundo e valores Como nos diz Lopes (2007 p 208) ldquoeacute uma versatildeo

didatizada do conhecimento para fins escolares eou com o propoacutesito de formaccedilatildeo de

valoresrdquo

Conforme depoimento dos professores ribeirinhos o livro eacute um dos materiais

didaacuteticos mais utilizados para o ensino e aprendizagem dos alunos ldquouso todos os dias

o livro didaacutetico ateacute porque eacute o uacutenico recurso que tenho disponiacutevel aqui na escola e

cada aluno tem o seu ele serve tambeacutem para planejar as aulasrdquo (Prof5) Desta

maneira o livro serve como orientador do trabalho docente nas classes

multisseriadas Este instrumento pedagoacutegico possibilita a compreensatildeo do conteuacutedo

por conter mapas ilustraccedilotildees graacuteficos e outros recursos visuais de acordo com os

docentes

Portanto diante da escassez de recursos didaacuteticos tais como mapas globos

jogos pedagoacutegicos e outros assim como de cartolina cola tesoura papel laacutepis de

cor e demais recursos necessaacuterios para a mediaccedilatildeo da aprendizagem o professor

acaba preso ao livro como uacutenico recurso disponiacutevel para trabalhar com todos os seus

alunos

Aqui no interior natildeo temos material didaacutetico entatildeo soacute nos resta o livro que os alunos recebem no iniacutecio do ano Agraves vezes queremos fazer uma aula diferente mas natildeo temos material pra isso falta cartolina cola e ateacute tesoura para trabalhos praacuteticos (Prof 5) O uacutenico mapa que agente encontra eacute o que estaacute no livro didaacutetico Jaacute pedi tanto pra diretora trazer um mapa do Brasil laacute da SEMED mas ainda natildeo fui ouvido Jaacute fizemos alguns jogos com cartolina laacutepis de cor pincel cola e tesoura que comprei em Macapaacute Como o nosso salaacuterio mal daacute pra comer entatildeo natildeo tem como comprar direto estes materiais (Prof 8)

Quanto ao uso o livro didaacutetico tem sido utilizado de diferentes formas Segundo

as observaccedilotildees feitas na sala de aula para a maioria dos professores o livro eacute a

buacutessola que norteia a sua praacutetica em todas as atividades desde as de sala de aula

ateacute os deveres de casa Presenciei situaccedilotildees didaacuteticas nas quais os alunos foram

organizados por ano para fazer a leitura oral na mesa do professor e quando natildeo

conseguiam ler a palavra76 do texto em estudo retornavam agraves suas cadeiras para

treinar a pronuacutencia correta Era o dia da leitura durante um dia na semana o professor

escolhia um texto do livro didaacutetico e os alunos faziam a leitura individual O livro

tambeacutem direciona o curriacuteculo

76 Geralmente eram palavras que natildeo faziam parte do universo vocabular dos educandos ribeirinhos

173

Os assuntos estatildeo todos no livro entatildeo eacute soacute pedir para que os alunos abram nas paacuteginas que iremos estudar de acordo com cada disciplina Por exemplo na segunda-feira temos aula de Liacutengua Portuguesa Ciecircncias e Histoacuteria entatildeo eacute soacute abrir a paacutegina dos livros que constam os conteuacutedos dessas disciplinas O dever de casa tambeacutem eacute no livro (Prof 3) Para os alunos do preacute-escolar uso direto a cartilha e tambeacutem com os da 1ordf seacuterie que ainda natildeo leem Isso ajuda muito a gente que precisa de tempo para dar atenccedilatildeo para as outras seacuteries Enquanto os do preacute-escolar estatildeo ocupados com atividade da cartilha aproveito para tirar duacutevidas das outras seacuteries (Prof7)

A fala do prof 7 descreve as estrateacutegias que utiliza para conseguir ministrar

aula para trecircs seacuteries ao mesmo tempo e no mesmo espaccedilo para que isso ocorra o

livro didaacutetico eacute peccedila fundamental O uso da cartilha guia o processo de alfabetizaccedilatildeo

atraveacutes da resoluccedilatildeo das atividades propostas com o objetivo do ensino da leitura e

da escrita de forma mecacircnica e linear Os conteuacutedos satildeo provenientes do livro e aos

alunos cabe a reproduccedilatildeo da leitura de siacutelabas palavras frases e textos sem

significado e vazios dos saberes oriundos de sua cultura Desta maneira o curriacuteculo

eacute direcionado pelo livro didaacutetico por meio das atividades propostas orienta-se a

praacutetica do professor

Romanatto (2007) ratifica essa posiccedilatildeo quando afirma que o livro didaacutetico assim

utilizado substitui o professor em vez de ser elemento de apoio ao seu trabalho Assim

os conteuacutedos e meacutetodos utilizados satildeo os mesmo do livro ldquoum livro que promete tudo

pronto tudo detalhado bastando mandar o aluno abrir a paacutegina e fazer exerciacutecios eacute

uma atraccedilatildeo irresistiacutevelrdquo (p 67) principalmente quando se trabalha com vaacuterias seacuteries

na mesma sala e somente quatro horas de aula para ministrar os conteuacutedos Para

Santos e Carneiro (2006 p 206) o livro didaacutetico tem trecircs principais finalidades na

escola

[] de informaccedilatildeo de estruturaccedilatildeo e organizaccedilatildeo da aprendizagem e finalmente a funccedilatildeo de guia do aluno no processo de apreensatildeo do mundo exterior Deste modo a uacuteltima funccedilatildeo depende de o livro permitir que aconteccedila uma interaccedilatildeo da experiecircncia do aluno e atividades que instiguem o estudante desenvolver seu proacuteprio conhecimento ou ao contraacuterio induzi-lo aacute repeticcedilotildees ou imitaccedilotildees do real Entretanto o professor deve estar preparado para fazer uma anaacutelise criacutetica e julgar os meacuteritos do livro que utiliza ou pretende utilizar assim como para introduzir as devidas correccedilotildees eou adaptaccedilotildees que achar conveniente e necessaacuterias

O reconhecimento da importacircncia do livro didaacutetico para a sistematizaccedilatildeo das

aulas e por ser um dos recursos a que todos os estudantes tecircm acesso poderia ser

um instrumento para a construccedilatildeo de um ambiente de sala de aula que represente o

ensino como um processo de elaboraccedilatildeo coletiva e cooperativa entre educador e

174

educandos Mas para isso faz-se necessaacuterio reconhecer que ele natildeo eacute suficiente

precisa de outras fontes de informaccedilatildeo que possam contribuir na aprendizagem dos

conteuacutedos dentre elas os saberes populares

Acreditamos que o livro didaacutetico possa possibilitar ao professor mediar a

construccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico pelo aluno para que este se aproprie dessa

linguagem e desenvolva valores eacuteticos mediante os avanccedilos da ciecircncia

contextualizada e socialmente relevante mas sem negar os seus valores e saberes

Santos (2000) propotildee que esses saberes dialoguem entre si de uma maneira em que

natildeo haja hierarquias entre eles

O livro didaacutetico tambeacutem veicula uma realidade diferente das que vive os alunos

na Ilha pois eacute produzido em outras regiotildees do paiacutes

As cartilhas trazem nome de frutas e animais que as crianccedilas natildeo conhecem e eacute a partir das letras iniciais dessas palavras que inicia o processo da leitura e escrita Sei que as crianccedilas devem conhecer que existem outros tipos de frutas e animais mas acho que se iniciarmos a alfabetizaccedilatildeo com o que elas jaacute conhecem o caminho natildeo seria tatildeo suado para aprender (Prof 3) O livro eacute muito importante para o nosso trabalho e aprendizagem dos alunos mesmo porque eacute o uacutenico material impresso para a leitura que temos mas natildeo aborda os nossos problemas ateacute que tento fazer a ponte entre o conteuacutedo que ele traz e a realidade que vivemos aqui na Ilha mas nem sempre eacute possiacutevel (Prof 8)

Os professores frisam a relevacircncia de abordar conteuacutedos significativos e

contextualizados de acordo com a realidade dos estudantes para que possam

relacionaacute-los com o seu dia-a-dia o que os conteuacutedos do livro didaacutetico nem sempre

permitem por serem globais natildeo contextualizam os saberes e as problemaacuteticas

regionais bem como as locais

Fotografia 46 ndash Conteuacutedo referente ao tem ldquomoradiardquo abordado no livro didaacutetico

da disciplina Artes para o 1ordm 2ordm e 3ordm ano do ensino fundamental

175

Fonte Livro didaacutetico da disciplina Artes 2016

Na imagem acima o conteuacutedo ldquomoradiardquo aborda a realidade da aacuterea urbana da

cidade de Paragominas no Estado do Paraacute bem como de uma cidade situada em

outro paiacutes a Alemanha Ambas as imagens retratam moradias em apartamentos o

que difere da realidade habitacional dos ribeirinhos As criacuteticas ao livro didaacutetico vatildeo

aleacutem das questotildees relacionadas agrave realidade ribeirinha pois abordam tambeacutem uma

avaliaccedilatildeo dos conteuacutedos que natildeo proporcionam uma abordagem mais aprofundada

do assunto

Como o assunto no livro didaacutetico vem resumido natildeo apresenta uma abordagem aprofundada eu pesquiso nos livros que tenho para eu aprender e depois ensinar aos alunos e desta maneira procuro orientar meus alunos para aprender mais sobre determinado conteuacutedo os exerciacutecios que ele traz tambeacutem contribuem para a verificaccedilatildeo da aprendizagem (Prof 4) Uma das maiores dificuldades para noacutes professores do interior estaacute na aquisiccedilatildeo de livros para pesquisar os assuntos O livro que os alunos recebem vem com o assunto resumido demais e aiacute como eacute que a gente vai ensinar um assunto que natildeo entendemos e que natildeo tem onde pesquisar Por isso que alguns colegas acabam dando o livro para os alunos e pedem para transcrever o assunto do livro paro o caderno e depois fazer os exerciacutecios (Prof2) Admito que o livro didaacutetico eacute muito importante pra noacutes que lecionamos aqui ele contribui para o processo de ensino Eacute a forma mais faacutecil de ter acesso aos conteuacutedos Por outro lado alguns colegas ficam presos a ele o que acaba prejudicando no aprendizado do aluno pois muitos apresentam conteuacutedos fragmentados Agraves vezes natildeo trazem questionamentos que instiguem o aluno a raciocinar sobre o que estaacute sendo discutido (Prof 6)

Aleacutem do livro didaacutetico os professores procuram na medida do possiacutevel

pesquisar em outras fontes para entender primeiro o conteuacutedo e posteriormente

ensinaacute-los aos alunos Segundo Lajolo (2001) se faz necessaacuterio que o professor

MUITAS PESSOAS VIVEM EM PREacuteDIOS SAtildeO CONSTRUCcedilOtildeES COM MUITAS HABITACcedilOtildeES CHAMADAS APARTAMENTOS PREacuteDIO 1 (Imagem) OBSERVE BEM ESTE PREacuteDIO PREacuteDIO 2 (imagem) VOCEcirc JAacute HAVIA VISTO UMA CONSTRUCcedilAtildeO COMO ESTAacute PARECE DE MENTIRINHA NAtildeO Eacute MESMO MAS NAtildeO Eacute ESSE PREacuteDIO Eacute DE VERDADE E FOI CONSTRUIacuteDO NA ALEMANHA TEM 105 APARTAMENTOS UM DIFERENTE DO OUTROSEU IDEALIZADOR Eacute O ARTISTAHUNDERTWASSER ELE NASCEU EM 1928 NA AUSTRIA E SEMPRE SE PREOCUPOU COM O

176

utilize outros recursos pedagoacutegicos para o desenvolvimento de suas aulas ldquopois

nenhum livro por melhor que seja deve ser utilizado sem adaptaccedilotildees e

complementaccedilotildeesrdquo(p 8) O problema estaacute nas condiccedilotildees de trabalho docente as

escolas da Ilha do Accedilaiacute natildeo possuem bibliotecas entatildeo os uacutenicos materiais de

pesquisa satildeo os livros que os professores compram e o que os alunos possuem no

caso os entregues no iniacutecio das aulas de cada ano letivo Na maioria das escolas o

livro didaacutetico torna-se a uacutenica referecircncia para o trabalho do professor e direciona a

seleccedilatildeo planejamento e desenvolvimento dos conteuacutedos em sala de aula

O livro nas classes multisseriadas eacute o siacutembolo que caracteriza a seriaccedilatildeo para

cada ano um livro especiacutefico com conhecimentos sistematizados e reconhecidos

como verdades absolutas que servem para escamotear a realidade atendendo aos

interesses econocircmicos sociais e culturais dominantes na sociedade Ao professor

cabe romper com as viseiras que escondem os reais interesses poliacuteticos e ideoloacutegicos

veiculados nos textos e imagens impressos nesses livros Os professores utilizam

diversas estrateacutegias para rompecirc-las de acordo com os depoimentos abaixo

Uso o livro mais como fonte de informaccedilatildeo e para dar outra visatildeo sobre o conteuacutedo que estamos estudando Procuro explorar o maacuteximo que posso as situaccedilotildees e os problemas do dia a dia da comunidade relacionados com o conteuacutedo (Prof 2) Procuro explorar os textos e as imagens de forma criacutetica os alunos precisam aprender a lecirc-las e interpretaacute-las soacute assim seratildeo capazes de fazer a relaccedilatildeo do mundo em que vivem com os outros mundos (Prof 4) Eu pego o assunto do livro faccedilo uma seleccedilatildeo do que eacute mais importante de acordo com a realidade da localidade que a gente vive da vida que levamos acredito que o professor necessita ter essa leitura criacutetica de mundo (Prof 6) Os livros natildeo trazem textos que falam da mata do rio das coisas da Amazocircnia dos problemas que fazem parte da nossa vida entatildeo o livro didaacutetico serve como um instrumento para o exerciacutecio da leitura e reflexatildeo em relaccedilatildeo agraves outras realidades diferente da que vivemos (Prof 8)

Mesmo para os professores ribeirinhos com uma visatildeo mais criacutetica da

educaccedilatildeo o livro didaacutetico continua sendo um instrumento indispensaacutevel para a praacutetica

pedagoacutegica mas eles tecircm a consciecircncia de que os conteuacutedos das disciplinas que

compotildeem o curriacuteculo escolareacute um veiacuteculo de inculcaccedilatildeo dos valores ideoloacutegicos e

culturais hegemocircnicos portanto torna-se poliacutetico na medida em que produz valores

da sociedade em relaccedilatildeo agrave sua visatildeo de ciecircncia da histoacuteria da interpretaccedilatildeo dos fatos

e do proacuteprio processo de transmissatildeo do conhecimento Ainda que contribua para a

177

mediaccedilatildeo dos conteuacutedos ele natildeo se limita somente aos da dimensatildeo pedagoacutegica e

as suas possiacuteveis influecircncias na aprendizagem e no desempenho dos educandos

Dentre os livros mais utilizados na praacutetica docente estatildeo os de Alfabetizaccedilatildeo

Liacutengua Portuguesa e Matemaacutetica

Uso mais o de alfabetizaccedilatildeo e no segundo semestre o de Matemaacutetica e de Liacutengua Portuguesa que eacute utilizado para fazer leitura Os alunos escolhem neste livro uma leitura para fazer todos os dias (Prof5) Soacute trabalho com o livro de Matemaacutetica natildeo utilizo os outros porque os assuntos satildeo resumidos demais entatildeo uso os livros que trago sempre comigo para aonde vou (Prof9) Os livros didaacuteticos que mais uso satildeo os de Liacutengua Portuguesa e Matemaacutetica Satildeo os mais necessaacuterios noacutes precisamos mais de Portuguecircs e da Matemaacutetica Para mim as duas disciplinas mais importantes para eles satildeo estas as outras eu trabalho menos (Prof 3)

O domiacutenio da leitura e da escrita eacute o objetivo da alfabetizaccedilatildeo tanto na

educaccedilatildeo infantil como no 1ordm ano por isso a cartilha eacute um recurso fundamental para

a praacutetica docente A prioridade concedida agrave Liacutengua Portuguesa e agrave Matemaacutetica em

detrimento das outras disciplinas estaacute relacionada agrave questatildeo do poder que essas

mateacuterias exercem dentro do curriacuteculo Como afirmam Moreira e Candau (2008 p 25)

[] nessa hierarquia se supervalorizam as chamadas disciplinas cientiacuteficas secundarizando-se os saberes referentes agraves artes e ao corpo Nessa hierarquia separa-se a razatildeo da emoccedilatildeo a teoria da praacutetica o conhecimento da cultura

O professor parte do princiacutepio de que o domiacutenio da leitura da escrita e das

quatro operaccedilotildees fundamentais (adiccedilatildeo subtraccedilatildeo multiplicaccedilatildeo divisatildeo) eacute a base

para a aprendizagem dos conhecimentos de Histoacuteria Geografia Artes e outras

disciplinas Tal visatildeo estaacute balizada em uma concepccedilatildeo bancaacuteria de educaccedilatildeo que natildeo

reconhece os saberes que emergem das praacuteticas sociais dos educandos natildeo os

concebe como produtores desses saberes e sim como meros reprodutores dos

conhecimentos oriundos do livro didaacutetico assim para reproduzi-los eacute preciso saber

ler para transcrevecirc-los

Os professores tambeacutem satildeo excluiacutedos da escolha do livro didaacutetico adotado no

ano letivo esta competecircncia fica a cargo dos teacutecnicos em educaccedilatildeo lotados na

Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo que decidem qual a melhor cartilha para alfabetizar

e os melhores livros para educar os ribeirinhos As criacuteticas soam como um protesto

contra a exclusatildeo e a alienaccedilatildeo de que satildeo viacutetimas enquanto uma elite intelectual

decide eles executam o que foi decidido

178

Trabalho haacute mais de 15 anos como professora em escolas ribeirinhas e nunca fui chamada para escolher o livro que gostaria de trabalhar com os meus alunos Nunca ningueacutem perguntou minha opiniatildeo sobre os livros que vecircm para a escola Apenas mandam e a gente obedece (Prof2) Noacutes recebemos os livro das matildeos da diretora do Regional natildeo sei quem eacute que escolhe Agente natildeo tem nenhuma participaccedilatildeo na escolha tanto que vecircm muitas coisas que satildeo mais para a zona urbana que rural praticamente da zona rural natildeo tem nada (Prof4)

Aleacutem de natildeo escolherem o livro de acordo com a sua concepccedilatildeo de ensino e

de aprendizagem ainda precisam utilizar os que foram selecionados pois satildeo os

uacutenicos recursos disponiacuteveis para atender agrave diversidade de seacuteries em uma turma

multisseriada

O Programa Nacional do Livro Didaacutetico (PNLD) apresenta dentre os seus

objetivos a participaccedilatildeo ativa e democraacutetica do professor no processo de seleccedilatildeo e

escolha dos livros didaacuteticos portanto eacute funccedilatildeo do professor garantido pelo PNLD

em escolher o livro que gostaria de trabalhar com seus alunos de acordo com a sua

concepccedilatildeo de educaccedilatildeo O uso pedagoacutegico deste recurso requer um planejamento

para que possa estabelecer o diaacutelogo entre os conhecimentos disponibilizados pelos

livros didaacuteticos e osconhecimentos trazidos pelos estudantes pois eacute na interaccedilatildeo

entre o saber que se traz do mundo e o saber trazido pelos livros que o conhecimento

avanccedila (LAJOLO 2001) A seguir discutimos o planejamento realizado pelos

docentes das escolas da ilha do Accedilai

423O Planejamento das Aulas

Entendemos como plano de aula a organizaccedilatildeo das accedilotildees didaacuteticas por meio

das atividades que norteiam a praacutetica diaacuteria do professor em interaccedilatildeo com os alunos

nos diversos espaccedilos de aprendizagem seja a sala de aula ou outros ambientes de

acordo com os objetivos propostos para a aula Segundo Libacircneo (2004 p 221) ldquoo

planejamento escolar eacute uma tarefa docente que inclui tanto a previsatildeo das atividades

didaacuteticas em termos de organizaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo em face dos objetivos propostos

quanto a sua revisatildeo e adequaccedilatildeo no decorrer do processo de ensinordquoPor intermeacutedio

do planejamento o professor define o que ensinar como ensinar e tambeacutem o avaliar

assim racionaliza organiza e projeta a articulaccedilatildeo entre a escola e o contexto no qual

ela estaacute inserida

Nesse sentido planejar vai aleacutem do pedagoacutegico tornando-se um ato poliacutetico

ldquonatildeo haacute educaccedilatildeo neutra toda neutralidade afirmada eacute uma opccedilatildeo escondidardquo

(FREIRE 1980 p 49) O professor ao planejar faz opccedilotildees de educar para a

179

conscientizaccedilatildeo e mudanccedila ou para a manutenccedilatildeo das relaccedilotildees de dominaccedilatildeo

poliacutetica econocircmica e cultural que caracterizam a sociedade capitalista Nesse prisma

o planejamento pode ser utilizado como uma ferramenta capaz de interferir no real

para transformaacute-lo para isso tem como atribuiccedilatildeo dar rumo agrave accedilatildeo docente de

maneira consciente e organizada com vistas a proporcionar as devidas mudanccedilas

O planejamento sem duacutevida pode colocar-se como um instrumento teoacuterico-metodoloacutegico para a intervenccedilatildeo na realidade Todavia mais do que instrumento ou ferramenta queremos apontar para a possibilidade de entendermos e vivenciarmos o planejamento como meacutetodo de trabalho do educador qual seja como postura (algo reelaborado interiorizado pelo sujeito) como forma de organizar a reflexatildeo e a accedilatildeo como estrateacutegia global de posicionamento diante da realidade (VASCONCELOS 2006 p 75)

Para o autor o planejamento eacute um ato poliacutetico e pedagoacutegico por ser intencional

porque descreve o que se deseja realizar e atingir por meio dos objetivos que se

corporificam nas accedilotildees planejadas para intervir na realidade Os elementos do

planejamento segundo o autor trazem em seu bojo a opccedilatildeo poliacutetica do educador

amparada em uma concepccedilatildeo pedagoacutegica de transmissatildeo ou problematizaccedilatildeo do

conhecimento a partir da realidade na qual a escola estaacute imersa e dos valores sociais

eacuteticos e culturais dos professores alunos e pais

Para isso as aulas devem ser planejadas de acordo com a realidade

sociocultural e conhecimento dos educandos bem como o plano precisa ter clareza e

objetividade conhecimento dos recursos disponiacuteveis para professores e alunos

conexatildeo entre a teoria e a praacutetica flexibilidade frente a situaccedilotildees imprevistas

realizaccedilatildeo de pesquisas buscando diferentes fontes bibliograacuteficas e utilizaccedilatildeo de

metodologias que proporcionem a participaccedilatildeo ativa dos educandos no processo de

ensino e aprendizagem (VASCONCELOS 2006 LIBANEO2004)

A seguir apresentamos as maneiras como os professores do Regional Madeira

elaboram o planejamento Classificamos em duas categorias a partir da perspectiva

colonizadora e a partir da perspectiva descolonizadora

4231 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma perspectiva

colonizadora

A perspectiva colonizadora caracteriza-se pela imposiccedilatildeo do conhecimento

escolar no ato de planejar e a negaccedilatildeo do saber popular configurando a colonialidade

do saber pois eacute no vieacutes epistemoloacutegico que o colonialismo assume maior

centralidade com uma perspectiva redutora do conhecimento impossibilitando o

surgimento de outras perspectivas epistemoloacutegicas

180

O que prevalece eacute o conhecimento escolar baseado na razatildeo indolente

considerada uacutenica e hegemocircnica silenciando excluindo e tornando ausente as outras

formas de saber como as dos povos da Amazocircnia dentre eles os ribeirinhos Dessa

maneiraacabam colonizando o pensamento por meio de uma uacutenica loacutegica a

eurocecircntrica Isso foi produzido historicamente segundo Mignolo (2003) no processo

de formaccedilatildeo do sistema colonialmoderno que gerou esta geopoliacutetica do

conhecimento na qual as teorias dominantes satildeo as produzidas nos paiacuteses

hegemocircnicos e impostas como universais aos paiacuteses colonizados

epistemologicamente

Dentre os professores sujeitos desta pesquisa enfatizamos as falas dos que

consideramos estarem incluiacutedos numa visatildeo colonizadora do saber Lembrando que

os professores trabalham no acircmbito de uma estrutura de dominaccedilatildeo portanto suas

praacuteticas natildeo satildeo totalmente descolonizadoras muitas carregam em si reflexos da

estrutura de dominaccedilatildeo o que se reflete nas praacuteticas colonizadoras No periacuteodo em

que foi realizada a pesquisa de campo identificamos praacuteticas pedagoacutegicas

colonizadoras e tambeacutem as descolonizadoras desenvolvidas por um mesmo

professor Mas procuramos destacar nesta seccedilatildeo as que consideramos

colonizadoras Em relaccedilatildeo a elaboraccedilatildeo do planejamento

Trabalho com o preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano entatildeo elaboro um plano pra cada ano pego a lista de conteuacutedos que jaacute vem dividido os assuntos por bimestre e planejo como vou trabalhaacute-los O preacute-escolar eu tambeacutem trabalho a alfabetizaccedilatildeo entatildeo eacute o mesmo plano do 1ordm ano (Prof 5) Planejo de acordo com os conteuacutedos do livro as atividades de avaliaccedilatildeo tambeacutem satildeo as do livro ateacute porque natildeo daacute tempo de fazer um planejamento para preacute-escolar 1ordm 2ordm 3ordm 4ordm e 5ordm ano Se eu for fazer um para cada ano passarei o dia todo planejando(Prof 9) Faccedilo um plano para cada ano Elaboro o horaacuterio das disciplinas que trabalho na semana por exemplo na segunda-feira trabalho Portuguecircs Ciecircncias Histoacuteria em todos os anos Aiacute elaboro o plano dessas disciplinas com os conteuacutedos que vecircm da SEMED (Prof 3) O meu plano estaacute de acordo com os conteuacutedos do livro didaacutetico por isso organizo a turma por ano e peccedilo para que leiam os textos relacionados ao assunto que vamos trabalhar no dia e que faccedilam as atividades que tambeacutem estatildeo no livro Temos pouco tempo para fazer outras tarefas pois trabalho com 3ordm 4ordm e 5ordm ano e precisamos cumprir o programa estipulado pela SEMED (Prof 1)

O planejamento eacute feito para cada ano separadamente os conteuacutedos satildeo os

oriundos da proposta elaborada pela Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo sem levar em

consideraccedilatildeo o contexto no qual a escola estaacute imersa O livro didaacutetico eacute o guia para o

181

planejamento dos professores Dentre os motivos para que isso ocorra estatildeo lecionar

para os vaacuterios anos do ensino fundamental no mesmo horaacuterio de aula o que

impossibilita o professor de elaborar um plano para cada ano o livro didaacutetico ser o

uacutenico recurso pedagoacutegico disponiacutevel para o processo de ensino e aprendizagem na

escola e o fato de todos os alunos terem acesso a este material

Pelas falas dos docentes o planejamento mesmo direcionado pelo livro

didaacutetico tem como base a divisatildeo da classe de acordo com o ano Desta maneira a

turma multisseriada eacute dividida em partes e cada uma dessas partes com atividades

especiacuteficas o que impossibilita a realizaccedilatildeo de trabalhos nos quais os alunos possam

interagir com colegas de outros anos

Nesse sentido para Hage (2004 p 35) ldquoa seriaccedilatildeo eacute considerada um

problema em face da rigidez com que trata o tempo escolar impondo a fragmentaccedilatildeo

em seacuteries anuais []rdquo Assim o conteuacutedo e os alunos satildeo divididos e fragmentadosde

acordo com os anos do ensino fundamental bem como o tempo linear cronoloacutegico

das quatro horasaula diaacuterias amarra o professor que precisa transmitir os respectivos

conteuacutedos em determinado momento para o preacute-escolar e em outros para o 1ordm 2ordm

3ordm 4ordm e 5ordm ano

No planejamento a imposiccedilatildeo do conhecimento escolar por meio da lista de

conteuacutedos emanada da SEMED e do livro didaacutetico caracteriza a colonialidade do

poder (o sistema municipal de ensino define o que deve ser ensinado aos alunos

ribeirinhos)e do saber (o natildeo reconhecimento do saber popular dos educandos e a

negaccedilatildeo das praacuteticas sociais que norteiam e datildeo sentido ao cotidiano das crianccedilas e

adolescentes ribeirinhos)

Esta geopoliacutetica do conhecimento que torna ausente o saber popular por ser

oriundo de uma regiatildeo perifeacuterica possibilita-nos identificar as estruturas de poder

(quem decide que conhecimento deve ser reconhecido como vaacutelido para fazer parte

do curriacuteculo escolar) e tambeacutem do saber (o conhecimento hegemocircnico considerado

oficial) Ambas visam perpetuar a colonizaccedilatildeo epistecircmica por meio da ausecircncia e

invisibilidade de todas as formas de saberes que natildeo atendam aos interesses

hegemocircnicos

A geopoliacutetica do conhecimento desta forma hierarquiza os saberes e fortalece

as diferenccedilas entre os sistemas de conhecimento ao privilegiar o espaccedilo onde ele eacute

produzido tornando-o universalmente legiacutetimo para todos os contextos Umas das

maneiras de se contrapor a essa visatildeo poderia ser por meio da problematizaccedilatildeo do

182

mapa epistecircmico vigente no mundo a partir dos espaccedilos privilegiados das fronteiras

dos fluxos e das direccedilotildees que o criaram bem como o naturalizaram Outros caminhos

tambeacutem passam pelo reconhecimento da diversidade epistemoloacutegica por meio da

valorizaccedilatildeo dos saberes alternativos Alguns passos jaacute estatildeo sendo dados nesta

direccedilatildeo na praacutetica do planejamento das aulas de alguns professores ribeirinhos do

regional Madeira que descrevemos a seguir

4232 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma perspectiva

descolonizadora77

As praacuteticas de planejamento que denominamos descolonizadora reconhecem

que nas comunidades ribeirinhas existem manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas

proacuteprias satildeo praacuteticas que procuram dar visibilidade a essas manifestaccedilotildees aleacutem do

reconhecimento valorizam os saberes locais e os incluem nas aulas por meio de

accedilotildees pedagoacutegicas planejadas

Essas praacuteticas podem ser concebidas como formas de descolonizaccedilatildeo

intelectual no sentido de mostrar que existem outros saberes oriundos do contexto

histoacuterico econocircmico social religioso e cultural no qual vivem os educandos saberes

fronteiriccedilos como afirma Mignolo (2003) e que constituem a gnose ou pensamento

liminar

Descolonizar natildeo significa de acordo com Walsh Schiwy e Castro-Goacutemez

(2002 p 14) se desfazer ldquodas ferramentas conceituais das ciecircncias nem tampouco

das hermenecircuticas criacuteticas da sociedade mas repensar sua utilidade ou seus efeitos

sobre as relaccedilotildees coloniais perguntando ateacute que ponto perpetuam

(involuntariamente talvez) a loacutegica vigenterdquo Nessa perspectiva Santos e Meneses

(2010 p 12) afirmam que descolonizar requer intervenccedilotildees epistemoloacutegicas que

denunciam a supressatildeo dos saberes levada a cabo ao longo dos uacuteltimos seacuteculos

pela norma epistemoloacutegica dominante e que valorizam os saberes que resistiram com

ecircxito [] agraves condiccedilotildees de um diaacutelogo horizontal entre conhecimentos A proposta de

um diaacutelogo horizontal foi evidenciado na fala de alguns professores em relaccedilatildeo ao

planejamento por meio da inclusatildeo nas aulas do saber popular dos educandos da

ilha do Accedilaiacute

No planejamento aleacutem dos conteuacutedos da SEMED procuro inclui o conhecimento aqui da comunidade Nas aulas de Artes incluo a arte da

77 Como afirmamos na seccedilatildeo anterior os professores atuam dentro de uma estrutura de dominaccedilatildeo Dentro dessas estruturas as praacuteticas colonizadoras satildeo mecanismo que visam agrave descolonizaccedilatildeo epistemoloacutegica

183

comunidade como a tecelagem o artesanato a marcenaria e as manifestaccedilotildees religiosas (Prof 2) No ato de planejar o que irei trabalhar durante a semana pego a lista dos conteuacutedos verifico o que daacute pra relacionar com a realidade dos alunos vejo os problemas que estamos vivenciando e de que maneira esses conteuacutedos podem nos ajudar a entendecirc-los Agraves vezes esses conteuacutedos natildeo servem aiacute o jeito eacute extrair dos proacuteprios alunos a partir dos seus saberes (Prof 6) Procuro adequar o planejamento agrave realidade dos alunos o foco eacute a aprendizagem e tambeacutem os conteuacutedos que eles precisam aprender para usar no dia a dia aqui na comunidade e quando forem vender accedilaiacute peixe e camaratildeo em Macapaacute (Prof 4)

O planejamento de acordo com a fala dos professores parte das necessidades

dos alunos do que eles precisam no cotidiano em termos de conhecimentos daiacute a

valorizaccedilatildeo tanto do conhecimento escolar quanto dos seus saberes locais Esses

alunos participam diretamente das atividades produtivas seja com os pais ou outros

membros da famiacutelia desde a coleta do accedilaiacute bem como na venda do produto em

Macapaacute Participam tambeacutem da pesca do peixe e camaratildeo e na caccedila de animais

silvestres ou seja estatildeo envolvidos diretamente na extraccedilatildeo e comercializaccedilatildeo dos

produtos da mata e dos rios A realidade dos educandos estaacute impregnada pelo

trabalho coletivo e o envolvimento nas atividades socioculturais o que para a

professora eacute fundamental fazer parte do planejamento ldquoo processo de ensino estaacute

sempre em movimento estaacute sempre sofrendo as modificaccedilotildees face agraves condiccedilotildees

reaisrdquo (LIBAcircNEO 2004 p 223) Por isso faz-se necessaacuterio que esteja relacionado

com o contexto social econocircmico e cultural dos sujeitos envolvidos

Ao incluir no planejamento o saber popular nas aulas de Artes o professor

reconhece esses saberes como parte do universo sociocultural dos educandos e sua

importacircncia para aprendizagem significativa e contextualizada Os alunos utilizam

constantemente os produtos oriundos da tecelagem (paneiro peneira malhadeira

matapi) e da marcenaria (casco remo) os quais participam das manifestaccedilotildees

artiacutesticas e religiosas Ao incluiacute-los no planejamento das aulas o professor cria

espaccedilos para que os alunos possam ensinaacute-los e aprendecirc-los por meio da troca de

experiecircncias entre si pois satildeo ldquosaberes socialmente construiacutedos na praacutetica

comunitaacuteria ndash mas tambeacutem [] discutir com os alunos a razatildeo de ser de alguns desses

saberes em relaccedilatildeo com o ensino dos conteuacutedosrdquo (FREIRE 2007 p 30) Ao discutir

com os alunos as questotildees sociais politicas culturais e econocircmicas nas quais esses

saberes juntamente com o conhecimento escolar estatildeo inseridos o educador estaacute

contribuindo para a leitura criacutetica do mundo

184

A fala do Prof 6 ldquovejo os problemas que estamos vivenciando e de que maneira

esses conteuacutedos podem nos ajudar a entendecirc-losrdquo retrata a importacircncia do

conhecimento no sentindo de intervir no mundo real ou seja na sua utilidade a que

nem sempre o conhecimento escolar consegue responder Daiacute o reconhecimento de

outras intervenccedilotildees no real possiacuteveis por outras formas de conhecimento e por uma

ldquonecessaacuteria reavaliaccedilatildeo das intervenccedilotildees e relaccedilotildees concretas na sociedade e na

natureza que os diferentes conhecimentos proporcionamrdquo (SANTOS 2010 p 60) Um

dos exemplos eacute o manejo do accedilaiacute realizado para preservar a espeacutecie assim como os

animais silvestres e a proibiccedilatildeo de fazer roccedila para evitar a derrubada de accedilaizeiros e

a queimada da mata nativa Esses satildeo saberes que preservam a biodiversidade da

floresta Amazocircnica e ao mesmo tempo garantem a sobrevivecircncia dos ribeirinhos na

Ilha do Accedilaiacute ldquoe natildeo deveraacute espantar-nos a riqueza dos conhecimentos que

conseguiram preservar modos de vida universos simboacutelicos e informaccedilotildees vitais para

a sobrevivecircncia em ambientes hostis com base exclusivamente na tradiccedilatildeo oralrdquo

(SANTOS 2010 p 58)

O planejamento como um dos elementos da praacutetica pedagoacutegica docente eacute o

instrumento pelo qual o professor seleciona os conhecimentos que os alunos teratildeo

acesso na escola que faratildeo parte de suas aulas Desta maneira ele define qual

conhecimento deve ser ensinado o que os alunos devem saber qual conhecimento

eacute considerado importante ou vaacutelido Nesse sentido o curriacuteculo eacute sempre resultado de

uma seleccedilatildeo de uma gama de conhecimentos e saberes seleciona-se aquela parte

que vai constituir precisamente o curriacuteculo (SILVA 2009)

Nessa seleccedilatildeoprivilegia-se determinados conteuacutedos e se excluem outros Na

praacutetica descolonizadora os professores ao selecionarem os conteuacutedos privilegiam

tambeacutem os oriundos da cultura ribeirinha os que fazem parte do contexto social

econocircmico cultural e religioso assim contribuem para fortalecer as identidades

desses sujeitos Ao agir desta maneira o professor rompe com a diferenccedila colonial e

faz emergir a gnose liminar ao criar espaccedilo na sua praacutetica pedagoacutegica para a razatildeo

subalterna dialogar com a hegemocircnica sem hierarquia

No planejamento tambeacutem se definem os objetivos e os procedimentos

metodoloacutegicos para alcanccedilaacute-los bem como os recursos humanos e materiais que

seratildeo necessaacuterios para um melhor ensino e aprendizagem A seguir abordamos o

desenvolvimento do plano elaborado pelos professores que se materializa nas

metodologias de ensino

185

424 Metodologias de Ensino e Aprendizagem

A metodologia consiste no estudo dos meacutetodos ou seja dos caminhos e accedilotildees

que seratildeo adotados para alcanccedilar os objetivos finalidades ou metas Na educaccedilatildeo

as metodologias abarcam os meacutetodos procedimentos e teacutecnicas de ensino

selecionados pelo professor com o objetivo de facilitar a aprendizagem dos alunos

Desta forma diante da multiplicidade de meacutetodos a escolha dependeraacute dos objetivos

que se pretende alcanccedilar levando em consideraccedilatildeo as especificidades socioculturais

dos educandos No meacutetodo tambeacutem estatildeo impliacutecitos concepccedilotildees de educaccedilatildeo

relacionadas com uma visatildeo ingecircnua ou criacutetica da sociedade assim podemos utilizar

determinado meacutetodo para a permanecircncia ou para a transformaccedilatildeo social

Nesta perspectiva os meacutetodos segundo Martins (2006) estatildeo imbricados por

concepccedilotildees pedagoacutegicas que balizam as praacuteticas docentes que poderatildeo estar

embasadas na reproduccedilatildeo do conhecimento no qual o professor eacute visto como o dono

da verdade o uacutenico detentor do saber que tem como missatildeo ensinar aos alunos o

conhecimento dogmaacutetico que de forma passiva assimila-os numa relaccedilatildeo professor

e aluno verticalizada A realidade social eacute idealizada como imutaacutevel e estaacutetica assim

a educaccedilatildeo tem como finalidade adequar o indiviacuteduo a esta sociedade sem questionaacute-

la

As concepccedilotildees pedagoacutegicas que balizam as praacuteticas docentes tambeacutem podem

estar embasadas em um meacutetodo dialoacutegico no qual o conhecimento eacute problematizado

a partir dos saberes dos alunos e relacionados com a sua realidade histoacuterica cultural

econocircmica e poliacutetica Desta maneira a educaccedilatildeo problematiza a sociedade e

desmistifica as relaccedilotildees de poder e dominaccedilatildeo

Nas accedilotildees didaacuteticas o meacutetodo se desenvolve por meio das teacutecnicas que satildeo

ldquoinstacircncias intermediaacuterias os componentes operacionais de cada proposta

metodoloacutegica os quais viabilizaratildeo a implementaccedilatildeo do meacutetodo em situaccedilotildees

concretasrdquo (MARTINS 2006 p 41) Destarte as teacutecnicas de ensino consistem no

desenvolvimento do meacutetodo nos diversos espaccedilos de aprendizagem Luckesi (2003

p 153) esclarece nitidamente a relaccedilatildeo entre meacutetodo e teacutecnicas

Por exemplo o meacutetodo expositivo que eacute o meio pelo qual levamos ao educando os conhecimentos jaacute elaborados pode ser executado atraveacutes de vaacuterias teacutecnicas exposiccedilatildeo oral pelo professor exposiccedilatildeo escrita atraveacutes de um texto demonstraccedilatildeo de como proceder agrave execuccedilatildeo de uma experiecircncia em laboratoacuterio apresentaccedilatildeo de um exemplo a ser imitado etc

186

Assim o desenvolvimento de um meacutetodo pode abarcar vaacuterias teacutecnicas Temos

que ter consciecircncia de que natildeo existe neutralidade no processo de escolha do meacutetodo

e das teacutecnicas de ensino pois os selecionamos de acordo com nossas concepccedilotildees

de ser humano e sociedade que por sua vez estatildeo relacionados aos interesses de

classe em razatildeo de que o meacutetodo estaacute ligado a concepccedilotildees epistemoloacutegicas

atreladas a visotildees de mundo Desta maneira a utilizaccedilatildeo de um meacutetodo e das teacutecnicas

para o seu desenvolvimento estaacute imbricada pela concepccedilatildeo de educaccedilatildeo de ensino

e de aprendizagem que norteia a nossa praacutetica docente Isso significa que podemos

usaacute-los para transmitir conteuacutedos ou para problematizar desafiar provocar reflexotildees

e anaacutelises sobre determinado assunto

4241 Professores que desenvolveram praacuteticas colonizadoras78

As praacuteticas metodoloacutegicas colonizadoras foram agrave concretizaccedilatildeo do

planejamento baseado nesta mesma perspectiva Assim as metodologias

desenvolvidas pelos professores consistiram em um conjunto padronizado de

procedimentos destinados a transmissatildeo do conhecimento escolar Eacute o que Freire

(2014 p 79) denomina de pedagogia bancaacuteria baseada na

[] narraccedilatildeo de conteuacutedos que por isto mesmo tendem a petrificar-se ou a fazer-se algo quase morto sejam valores ou dimensotildees concretas da realidade Narraccedilatildeo ou dissertaccedilatildeo que implica um sujeito ndash o narrador ndash e objetos pacientes ouvintes ndash os educandos

O autoritarismo de quem deteacutem o conhecimento define o que os educandos

devem fazer e responder eles natildeo satildeo instigados a pensar porque as respostas jaacute

estatildeo preacute-determinadas o professor eacute o narrador do conhecimento escolar natildeo eacute

permitido realizar criacuteticas assim como natildeo se deve questionar e nem duvidar do que

eacute narrado A educaccedilatildeo nesse prisma ldquoeacute puro treino eacute pura transferecircncia de conteuacutedo

eacute quase adestramento eacute puro exerciacutecio de adaptaccedilatildeo ao mundordquo (FREIRE 2014 p

81)

Por meio das entrevistas e observaccedilotildees da praacutetica docente destacamos as

praacuteticas metodoloacutegicas que consideramos colonizadoras Estas praacuteticas estatildeo

intimamente relacionadas com a organizaccedilatildeo do espaccedilo da sala de aula que tem no

quadro (branco ou verde) a sua referecircncia conforme fotografia a baixo

Fotografia 47 ndash Sala de aula multisseriada

78 Como afirmamos nas praacuteticas colonizadoras de planejamento encontramos no trabalho do mesmo professor praacuteticas metodoloacutegicas colonizadoras e tambeacutem descolonizadoras Nesta seccedilatildeo destacamos as praacuteticas que prevaleceram na accedilatildeo pedagoacutegica docente no decorrer da pesquisa de campo

187

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Na fotografia acima temos uma sala de aula multisseriada com alunos do 4ordm e

5ordm ano do ensino fundamental sendo que os trecircs alunos do 5ordm ano estatildeo sentados do

lado direito do quadro no qual constam as atividades copiadas pela professora Os

quatro alunos do 4ordm ano estatildeo sentados agrave esquerda do quadro com suas atividades

correspondentes Observe que o quadro estaacute dividido ao meio com os conteuacutedos

especiacuteficos O motivo desta organizaccedilatildeo de acordo com os professores eacute para

facilitar a coacutepia dos conteuacutedos e das atividades transcritas no quadro A organizaccedilatildeo

da classe eacute feita de acordo com o ano em que se encontram os alunos

Organizo a turma por ano coloco os alunos do preacute-escolar na frente porque satildeo menores entatildeo eles natildeo empatam a visatildeo do quadro para os do 1ordm ano que sentam atraacutes pois satildeo crianccedilas maiores os do 2ordm ano sentam do outro lado do quadro (Prof 5) Aqui na sala tem dois quadros entatildeo eu divido a turma de acordo com os quadros O maior quadro eu reparto ao meio aiacute fica um lado para o 1ordm 2ordm e outro para o 3ordm ano e o quadro menor eu divido tambeacutem ao meio sendo uma parte para o 4ordm e a outra para o 5ordm ano (Prof 9)

O paradigma da seriaccedilatildeo portanto eacute a base da organizaccedilatildeo dos alunos e o

quadro corresponde ao espaccedilo que eles ocuparatildeo na sala de aula Em termos

metodoloacutegicos o que prevalece eacute o meacutetodo expositivo por meio da teacutecnica da

exposiccedilatildeo oral dos conteuacutedos Nesse processo os alunos satildeo meros espectadores

receptores do conhecimento de acordo com as disciplinas que compotildeem a matriz

curricular Os passos das aulas satildeo o professor copia o assunto no quadro apoacutes

188

todos os alunos copiarem o conteuacutedo ele apaga o quadro para copiar os exerciacutecios

para verificaccedilatildeo da aprendizagem Apoacutes os alunos terem copiado o conteuacutedo e o

exerciacutecio o professor explica o conteuacutedo e como o exerciacutecio deveraacute ser realizado

Como moro na escola vou para a sala de aula antes dos alunos chegarem aproveito para dividir o quadro de acordo com os anos e copio logo os conteuacutedos da aula para cada ano Isso agiliza o trabalho e quando os alunos chegam na escola eles jaacute tem atividade pra fazer eacute soacute sentar na fila de seu ano e copiar(Prof 3) Copio os conteuacutedos no quadro passo o exerciacutecio quando eles terminam de copiar explico o assunto e tiro duacutevidas sobre as questotildees do exerciacutecio Os que terminam logo o trabalho peccedilo pra ajudar os que estatildeo com dificuldades trabalho com o preacute-escolar e os cinco anos do ensino fundamental Os melhores alunos me ajudam com os outros (Prof 9)

A organizaccedilatildeo do espaccedilo da sala de aula inviabiliza o diaacutelogo pois o professor

monopoliza a palavra natildeo abrindo espaccedilo para que os alunos possam ter o direito de

exercecirc-lo Nesse sentido para Freire (2014 p 81) natildeo eacute possiacutevel o diaacutelogo ldquoentre os

que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste

direito Eacute preciso primeiro que os que assim se encontram negados no direito

primordial de dizer a palavra reconquistem esse direito proibindo que este assalto

desumanizante continuerdquo

Pela aula expositiva eacute imposto o saber hegemocircnico como verdade absoluta e

a uacutenica maneira de compreender e explicar o mundo Natildeo haacute o diaacutelogo entre os

saberes porque natildeo interessa para o professor os saberes que os alunos trazem do

seu meio sociocultural o que importa satildeo os conteuacutedos transmitidos

mecanicamentedivididos em disciplinas especiacuteficas para cada campo do

conhecimento e esses por sua vez satildeo subdivididos nos cinco anos do ensino

fundamental assim fica evidente a colonialidade do saber Esta forma de organizaccedilatildeo

eacute exclusivamente temporal pois fica estabelecido que determinados conteuacutedos

devam ser aprendidos indistintamente por todos os alunos em um tempo

predeterminado Hage (2004 p 3) ao fazer uma anaacutelise do modelo de organizaccedilatildeo

multisseriada afirma que

[] se pauta por uma loacutegica lsquotransmissivarsquo que organiza todos os tempos e espaccedilos dos professores e dos alunos em torno dos ldquoconteuacutedosrdquo a serem transmitidos e aprendidos transformando os conteuacutedos no eixo vertebrador da organizaccedilatildeo dos graus seacuteries disciplinas grades avaliaccedilotildees recuperaccedilotildees aprovaccedilotildees ou reprovaccedilotildees (grifo do autor)

A organizaccedilatildeo dos alunos por ano impossibilita a interaccedilatildeo com os colegas dos

outros anos apesar de ser uma turma multisseriada na praacutetica satildeo trecircs quatro ou

189

cinco turmas dividindo o mesmo espaccedilo O conteuacutedo eacute o eixo vertebrador como nos

diz o autor dessa divisatildeo e transmitido de forma alienada descontextualizada das

atividades produtivas sociais e culturais dos educandos Dessa maneira o mundo

que eacute um arco-iacuteris policromaacutetico (SANTOS 2007) repleto de uma diversidade

cognitiva eacute reduzido agrave epistemologia hegemocircnica sustentada pela razatildeo indolente A

negaccedilatildeo da complexidade da accedilatildeo educativa e da aprendizagem caracteriza esta

visatildeo racionalista de educaccedilatildeo na qual o uacutenico conhecimento vaacutelido eacute o que passa

pelos rigores do meacutetodo cientiacutefico e atende aos interesses dominantes

Aleacutem do quadro outro recurso bastante utilizado para ministrar as aulas eacute o

livro didaacutetico

Uso o livro todos os dias como leciono pro 3ordm 4ordm e 5ordm ano e soacute tem um quadro na sala peccedilo para os alunos do 5ordm ano irem lendo e copiando o assunto que estaacute no livro enquanto copio o conteuacutedo no quadro para o 3ordm e 4ordm ano com o livro didaacutetico consigo desenvolver o planejamento que faccedilo para trabalhar os conteuacutedos diariamente (Prof 5) Todos os alunos tecircm o livro eu natildeo deixo eles levarem pra casa soacute levam quando passo dever de casa porque eles podem esquecer de trazer pra aula e aiacute complica Vai ficar difiacutecil trabalhar sem o livro entatildeo fica aqui mesmo na sala de aula (Prof 1) Quando todos entram na sala cada um senta na fila do seu ano em seguida faccedilo a chamada e peccedilo para pegarem o livro da mateacuteria que vamos estudar no dia de acordo com o planejamento No dia da leitura eles escolhem um texto do livro fazem a coacutepia no caderno depois os chamo ateacute a minha mesa para fazerem a leitura oral do texto escolhido (Prof 7)

Pela fala dos professores as metodologias satildeo direcionadas de acordo com o

livro didaacutetico As aulas satildeo desenvolvidas seguindo os seus passos primeiro o aluno

faz a leitura do assunto posteriormente copia-o no caderno juntamente com o

exerciacutecio para em seguida resolvecirc-lo O receio de que os alunos esqueccedilam o livro

em casa faz com que ele fique guardado na escola o que denota a dependecircncia da

praacutetica pedagoacutegica docente em relaccedilatildeo a esta ferramenta

Esses procedimentos denotam uma metodologia colonizadora na qual o

conhecimento escolar por meio do livro didaacutetico eacute inculcado nas mentes dos alunos

e dessa formaconstroacuteem subjetividades identidades imaginaacuterios sociais

sentimentos atitudes visotildees de mundo e maneiras de intervir em cada contexto A

imposiccedilatildeo de somente uma maneira de ler e explicar o mundo a cientiacutefica eacute uma

forma de colonizaccedilatildeo das mentes que menospreza outras racionalidades e razotildees

que natildeo seja a dominante

190

Nessa perspectiva os alunos satildeo meros receptoresconsumidores do

conhecimento oficial difundido como universal Diante disso o espaccedilo fiacutesico (a ilha do

Accedilaiacute) eacute descontextualizado em nome da suposta universalidade contida no processo

de produccedilatildeo de conhecimentos Daiacute a importacircncia em entender que o espaccedilo

geograacutefico em que atuamos como educadores natildeo eacute somente um espaccedilo fiacutesico e sim

poliacutetico tambeacutem

Segundo Mignolo (2000) o conhecimento traz consigo valores condizentes

com as caracteriacutesticas do contexto no qual eacute gerado por isso eacute marcado geo-

historicamente Essa produccedilatildeo eacute permeada por valores princiacutepios eacuteticos e morais

compreensotildees de ser humano de sociedade e de natureza eacute a partir deles que

passamos a elaborar nossas representaccedilotildees da realidade na qual vivemos De acordo

com a praacutetica pedagoacutegica colonizadora dos professores caracterizada pela

colonialidade do saber a representaccedilatildeo da realidade na qual vivem os alunos

ribeirinhos eacute feita a partir do conhecimento hegemocircnico assim como os valores eacuteticos

e morais

Em relaccedilatildeo a esses valores nas observaccedilotildees realizadas em sala de aula notei

algumas situaccedilotildees em que a linguagem falada no cotidiano pelos alunos foi taxada

como inferior em comparaccedilatildeo com a linguagem erudita A situaccedilatildeo foi a seguinte o

professor fez a chamada e perguntou por que um determinado aluno faltou trecircs dias

seguidos na escola O referido aluno respondeu dizendo que ldquotresontonte natildeo veio

porque estava ajudando o pai a tirar accedilaiacute e doisontonte porque estava com dor de

barrigardquo E o professor retrucou

Natildeo existe tresontonte e nem doisontonte e sim trecircs dias atraacutes e dois dias atraacutes natildeo sei de onde vocecircs tiram essas palavras esquisitas e feias repita comigo a forma certa de falar (o aluno repetiu em voz alta) e escreva no seu caderno pra natildeo esquecer natildeo quero mais ouvir vocecircs falando assim(Prof 8)

No horaacuterio do intervalo fui conversar com o professor sobre a questatildeo da

linguagem Ele respondeu que ainda eacute um dos maiores problemas que encontra pois

ensina a forma correta de falar nas aulas soacute que quando chegam em casa os alunos

esquecem e falam da mesma forma que seus pais e irmatildeos como passam pouco

tempo na escola e mais tempo com a famiacutelia e as pessoas da comunidade voltam a

falar ldquoerradordquo

Para Santos (2007) essa visatildeo monocultural eacute produzida pela razatildeo indolente

que naturaliza as diferenccedilas e hierarquiza a populaccedilatildeo como fez o professor ldquogente

191

que natildeo sabe falar direito fala tudo errado e usa uma linguagem chulardquo Os ribeirinhos

desta maneira satildeo inferiores porque falam diferente da linguagem culta Desta

maneira as diferenccedilas satildeo veladas e naturalizadas a partir de uma escala baseada

na inferiorizaccedilatildeo do que difere do padratildeo dominante

Segundo Calvet (2000) as liacutenguas natildeo existem sem as pessoas que as falam

e a histoacuteria de uma liacutengua eacute a histoacuteria de seus falantes Desta maneira a liacutengua tem

um papel preponderante na construccedilatildeo das identidades dos sujeitos identificando-os

geograficamente e tambeacutem culturalmente Sendo assim as liacutenguas natildeo satildeo

uniformes mas variaacuteveis dinacircmicas e muacuteltiplas Natildeo haacute somente uma forma

delinguagem existem outras variaccedilotildees faladas pelos sujeitos que quando satildeo

oprimidos tecircm seu jeito de falar subalternizado inferiorizado natildeo reconhecido como

forma de expressatildeo da realidade por isso a educaccedilatildeo colonizadora as nega e

determina a linguagem dominante como a oficial

As falas silenciadas oprimidas e negadas precisam ser reconhecidas na

sociedade e principalmente na instituiccedilatildeo escolar como mais uma variaccedilatildeo da nossa

liacutengua portuguesa vista natildeo mais como errada feia e chula como disseram alguns

docentes entrevistados O processo educacional formal assim conduzido faz com que

os alunos ribeirinhos tenham vergonha da proacutepria linguagem e para sobreviver na

escola tenham que reaprender a falar de acordo com a liacutengua dominante considerada

correta culta e hegemocircnica

Para Bagno (2004) a abordagem referente agrave variaccedilatildeo linguiacutestica abrange

questotildees culturais sociais poliacuteticas e econocircmicas e requer de noacutes professores uma

nova postura diante de uma concepccedilatildeo de liacutengua uma vez que o assunto diz respeito

agrave luta por uma educaccedilatildeo mais justa capaz de favorecer aos que precisam ter acesso

agrave comunicaccedilatildeo para transformar a sua realidade social sentindo-se mais letrados e

menos excluiacutedos

4242 Professores que desenvolveram praacuteticas descolonizadoras

Segundo Santos (2002) as accedilotildees descolonizadoras estatildeo fundamentadas nas

praacuteticas e discursos que objetivam mostrar as visotildees do colonizado sobre as

narrativas escritas pelo colonizador desta maneira essas narrativas satildeo

paulatinamente desconstruiacutedas pelos colonizados O processo de desconstruccedilatildeo

dar-se-ia pela sociologia das ausecircncias por meio da qual tornamos presente o que

estaacute ausente Na pesquisa de campo observamos algumas praacuteticas que

192

consideramos descolonizadoras nas quais por meio de metodologias dialoacutegicas

educador e educandos problematizaram o contexto no qual vivem

Iniciamos com a narrativa de uma aula de Artes do Prof 2 que trabalha com

alunos do preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano na qual discutiram e vivenciaram o conteuacutedo ldquoos

elementos plaacutesticos visuais cores formas e linhasrdquo

Professor a aula de Arte hoje vai ser sobre tecelagem e o seu Joseacute estaacute aqui na sala pra nos ensinar algumas teacutecnicas que ele utiliza para tecer o matapi Nesse momento um dos alunos faz uma pergunta Aluno mas o seu Joseacute eacute o avocirc do Manoel o que ele tem pra ensinar pra gente aqui na escola Professor O seu Joseacute jaacute trabalha haacute muitos anos fazendo matapi e paneiro entatildeo ele tem muito a nos ensinar quase todos aqui na sala devem ter alguns desses utensiacutelios nas suas casas feitos por ele Joseacute obrigado professor pela oportunidade de poder dividi com o senhor e com essas crianccedilas que vi nascer aqui na vila o que eu sei sobre o matapi Nesse momento o professor pede para que os alunos levantem de suas cadeiras deem as matildeos para formar um circulo seu Joseacute fica no meio do circulo todos sentados e uma aluna faz uma pergunta Aluna mas antes de comeccedilar agente precisa desenhar como vai ser o matapi neacute Joseacute bem eu natildeo desenho porque jaacute tenho na cabeccedila como vai ser e como vou fazer satildeo muitos anos tecendo matapi Mas se vocecircs quiserem desenhar Professor vamos primeiro prestar atenccedilatildeo para aprender a fazer o matapi depois quem quiser desenha como vai fazer quem quiser anotar tambeacutem pode ficar agrave vontade O professor daacute a palavra ao seu Joseacute que pega as talas de jupati o cipoacute titicaa faca e comeccedila explicar aos alunos como retirar a tala para fazer o matapi Joseacute a gente tira a tala raspa direitinho com a faca e coloca pra secar tem que taacute bem seca pra natildeo empenar depois Quando tiver bem seca agente comeccedila a tecer tem que cortar as talas de acordo com o tamanho do matapi depois agente amarra as talas com o cipoacute titica e vai tecendo tala por tala E vai demonstrando como tecer as talas e dando formato ao matapi Joseacute a boca do matapi a gente deixa por uacuteltimo depois que vocecirc tecer o corpo do matapi aiacute agente tece a boca fora do corpo depois agente junta os dois e amarra com o cipoacute Ele vai demonstrando passo a passo as formas de tecer ateacute chegar ao matapi pronto Professor agora eacute a vez de vocecircs tecerem o matapi Formem grupos com os colegas peguem o material e cada grupo vai tecer um matapi E o seu Joseacute vai acompanhar e tirar as duacutevidas de vocecircs E os alunos formaram grupo com colegas de outros anos

No final da aula todos os grupos apresentaram o matapi que confeccionaram

e as dificuldades que encontraram para fazecirc-lo Durante cada apresentaccedilatildeo o

professor foi destacando os elementos plaacutesticos visuais cores formas linhas dentre

193

outros que fizeram parte da obra construiacuteda Para finalizar a aula o professor

agradeceu ao seu Joseacute por ter ensinado os alunos e a ele tambeacutem como tecer o

matapi

A valorizaccedilatildeo do saber popular por meio da tecelagem do matapi instrumento

fundamental para a captura do camaratildeo foi o cerne da aula O diaacutelogo entre o

conhecimento popular e o escolar ocorreu de forma horizontal O professor a partir

do matapi confeccionado pelos alunos sobre a orientaccedilatildeo do seu Joseacute abordou o

conteuacutedo ldquoos elementos plaacutesticos visuais cores formas linhas dentre outrosrdquo tendo

como objeto de anaacutelise a arte de um artesatildeo da comunidade Ao mesmo tempo houve

o reconhecimento do saber local e da pessoa portadora desse saber que atuou como

mediador atraveacutes da socializaccedilatildeo junto aos alunos que precisam deste saber para

garantir sua permanecircncia e sobrevivecircncia na ilha do Accedilaiacute poiso matapi eacute uma das

ferramentas utilizadas nas atividades produtivas

Outro ponto importante a ser destacado foi a organizaccedilatildeo do espaccedilo da sala

de aula os alunos natildeo foram organizados por ano tiveram a liberdade na escolha dos

colegas para formar os grupos Nesse momento prevaleceu a turma unida para juntos

encararem um desafio que consistia em tecer um matapi

O professor natildeo foi o transmissor de conhecimentos nem o centro das

atenccedilotildees ao contraacuterio foi um aprendiz que junto com os seus alunos aprendeu a

tecer o matapi ensinado por um membro da comunidade ribeirinha que detinha esse

saber o que prova que natildeo haacute saber maior ou menor o que existe satildeo saberes

diferentes (FREIRE 2014) E a arte enquanto expressatildeo da vida esteve nessa aula

associada ao processo de criaccedilatildeo e a construccedilatildeo do conhecimento se efetivou na

relaccedilatildeo entre o esteacutetico e o artiacutestico materializada nas representaccedilotildees artiacutesticas

locais Como afirma Freire (2014 p 39)

Desta maneira o educador jaacute natildeo eacute o que apenas educa mas o que enquanto educa eacute educado em diaacutelogo com o educando que ao ser educado tambeacutem educa Ambos assim se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os ldquoargumentos de autoridaderdquo jaacute natildeo valem Em que para ser-se funcionalmente autoridade se necessita de estar sendo com as liberdades e natildeo contra elas

Liberdade para abrir espaccedilo em sua praacutetica enquanto educador para o saber

popular que dentro deste contexto eacute o mais importante para os sujeitos envolvidos

na praacutexis educativa Na ecologia de saberes Santos (2000) fala do criteacuterio de utilidade

do saber como fator de preponderacircncia Neste caso a hierarquia entre eles daacute-se pelo

criteacuterio de intervenccedilatildeo no mundo Quem sabe tecer o matapi eacute o seu Joseacute este

194

conhecimento natildeo estaacute no livro didaacutetico e nem o professor eacute conhecedor deste saber

Os alunos precisam se apropriar desse saber enquanto sujeitos ribeirinhos pois a

pesca do camaratildeo eacute uma das formas de subsistecircncia ao mesmo tempo sentem-se

valorizados enquanto sujeitos possuidores de um saber considerado importante pela

escola

A aula foi repleta do pensamento liminar por meio do reconhecimento e

visibilidade do saber da comunidade que teve como protagonista um intelectual que

construiu todo um arcabouccedilo praacutetico e teoacuterico pois toda praacutetica estaacute embasada numa

determinada teoria durante sua experiecircncia enquanto ribeirinho

Outra praacutetica pedagoacutegica em que houve o diaacutelogo entre os saberes foi

desenvolvida pela Prof 4 na aula de Ciecircncias que eacute uma turma multisseriada com

alunos do 3ordm 4ordm e 5ordm ano

Professora hoje vamos estudar sobre os alimentos peguem o livro de Ciecircncias e abram na paacutegina 140 Joatildeo79 leia o primeiro paraacutegrafo e em seguida escolha um colega para ler o paraacutegrafo seguinte e assim sucessivamente Apoacutes a leitura a professora explicou o assunto ldquoalimentaccedilatildeo adequadardquo de acordo como estava no livro Em seguida pediu para que os alunos independente do ano escrevessem o que geralmente comem durante o dia desde o cafeacute da manhatilde ateacute o jantar Apoacutes a resoluccedilatildeo da tarefa foi feita a socializaccedilatildeo da seguinte maneira Professora agora vocecircs vatildeo ler o que escreveram quem quer comeccedilar Maria professora ontem pela manhatilde tomei cafeacute com bolacha no almoccedilo comi accedilaiacute com peixe e camaratildeo no jantar accedilaiacute com peixe de novo Benedito de manhatilde cafeacute com leite rosca e cacetinho almocei accedilaiacute com galinha frita e na janta tomei accedilaiacute com peixe assado Pedro tomo cafeacute com bolacha almoccedilo accedilaiacute com peixe frito e camaratildeo janto accedilaiacute com o que sobrou do almoccedilo Mario gosto de accedilaiacute pela manhatilde no almoccedilo tambeacutem accedilaiacute com charque frito ou peixe na janta o que sobra do almoccedilo Francisco professora eu como o que os colegas jaacute falaram Joaquina eu tambeacutem professora Bernardo aleacutem do accedilaiacute e do peixe gosto de comer paca cutia e tatu no almoccedilo e na janta Alfredo como o que os colegas jaacute falaram Mariana no almoccedilo comi jacareacute com accedilaiacute ontem e na janta tambeacutem

Os alimentos consumidos diariamente pelos alunos satildeo o accedilaiacute peixe e o

camaratildeo Todos tomam o cafeacute com bolacha rosca ou cacetinho porque satildeo alimentos

que natildeo precisam ser conservados em geladeiras e tem extenso prazo de validade

Esporadicamente consomem caccedila como a cutia paca tatu ou jacareacute que satildeo raros

79 O nome dos alunos eacute fictiacutecio para preservar o anonimato

195

encontraacute-los na mata O peixe e o camaratildeo satildeo os mais consumidos devido serem

pescados nos rios e o accedilaiacute eacute a base econocircmicae nos meses de janeiro a julho

encontrado em abundacircncia na Ilha

O conteuacutedo do livro didaacutetico apresenta a alimentaccedilatildeo adequada que inclui os

alimentos energeacuteticos reguladores e os construtores que devem ser consumidos

diariamente Apoacutes a exposiccedilatildeo dos haacutebitos alimentares dos alunos a professora deu

os seguintes encaminhamentos

Professora agora que jaacute fizeram o levantamento dos seus haacutebitos alimentares vocecircs vatildeo classificar o que comem diariamente na tabela que estaacute no livro De um lado iratildeo escrever os alimentos energeacuteticos no meio os reguladores e no final os construtores Apoacutes a resoluccedilatildeo desta atividade foi feita a discussatildeo Professora Agora vamos apresentar as tabelas que vocecircs preencheram(apoacutes a apresentaccedilatildeo os alunos fizeram questionamentos) Maria professora eu coloquei o accedilaiacute como regulador mas o Bernardo colocou como energeacutetico o Joatildeo como construtor e agora No livro natildeo tem o accedilaiacute soacute tem o peixe Professora bem pra tirar essa duacutevida vamos ter que pesquisar Mas me falem como vocecircs se sentem quando tomam o accedilaiacute Alfredo eu me sinto forte o accedilaiacute me daacute sustacircncia por isso acho que ele eacute energeacutetico Joaquina o accedilaiacute me daacute sono e preguiccedila Professora entatildeo vamos fazer uma pesquisa para conhecer melhor o accedilaiacute

Os alunos comeccedilaram a sugerir o que gostariam de saber sobre o accedilaiacute e juntos

com a professora foram definindo os passos para a pesquisa Como no livro didaacutetico

natildeo tinha nenhuma informaccedilatildeo referente ao produto entatildeo ficou definido que se faria

uma pesquisa com os moradores da Vila E assim foram elaboradas as seguintes

questotildees de acordo com a curiosidade dos alunos a) por que vocecirc toma accedilaiacute todo

dia b) o accedilaiacute lhe daacute preguiccedila ou te deixa esperto pra trabalhar c) vocecirc toma accedilaiacute

acompanhado de que d) quem apanha o accedilaiacute na sua casa e) quantos paneiros de

accedilaiacute vocecircs colhem por dia f) vocecircs vendem o accedilaiacute para o marreteiro ou vendem

direto para o consumidor em Macapaacute

Este trabalho foi realizado por todos os alunos da turma que foram organizados

em dupla para fazer as entrevistas juntos aos moradores Na semana seguinte os

alunos trouxeram os dados coletados e apresentaram na sala Durante as

apresentaccedilotildees ocorreram as discussotildees

De acordo com a pesquisa feita o accedilaiacute eacute consumido diariamente por todos os

moradores da Vila acompanhado de peixe frango ou charque frito e camaratildeo a meacutedia

196

de paneiros diaacuterios colhidos de accedilaiacute foi de 20 quase a metade dos moradores

vendem o accedilaiacute para o marreteiro80 o que demonstra a exploraccedilatildeo da qual eacute viacutetima o

ribeirinho que natildeo tendo condiccedilotildees de vender o produto do seu trabalho na cidade eacute

obrigado a vendecirc-lo para o atravessador a preccedilos irrisoacuterios A ausecircncia de poliacuteticas

puacuteblicas para os sujeitos do campo na Amazocircnia os deixa nas matildeos dos

atravessadores pois eacute a uacutenica alternativa que eles tecircm de vender o que produzem

A fala de um aluno na apresentaccedilatildeo da pesquisa retrata essa situaccedilatildeo de

dependecircncia ldquonoacutes natildeo temos barco pra levar o accedilaiacute e vender em Macapaacute professora

entatildeo o papai tem que vender pro marreteiro aqui cada paneiro eacute vendido por R$

1000 em Macapaacute o marreteiro vende a R$ 2000rdquo A professora perguntou aos

alunos como essa realidade poderia ser mudada

Maria acho que se agente conseguisse vender o accedilaiacute em Macapaacute agente ganharia mais dinheiro e poderia comprar um barco que serviria para transportar o accedilaiacute sem precisar do marreteiro Alfredo aqui na Vila tem alguns moradores que tem barco entatildeo agente poderia se unir pra ajudar uns aos outros Joaquina professora aqui cada um olha soacute pro seu umbigo natildeo estatildeo nem aiacute pros outros Noacutes natildeo somos unidos acho difiacutecil fazerem o que o Alfredo taacute dizendo Mario Na vila do Cajueiro eles criaram uma cooperativa de coletores do accedilaiacute laacute eles entregam o accedilaiacute na cooperativa que leva pra vender na cidade e desconta 10 de cada saca vendida dos cooperados Francisco jaacute que com quatro paneiros agente tem uma saca de accedilaiacute entatildeo a saca sai a R$ 8000 e 10 de 80 daacute R$ 800 um valor muito menor do que R$ 4000 que eacute o dinheiro que agente perde vendendo pro marreteiro Entatildeo a cooperativa seria a nossa soluccedilatildeo professora

Pela palavra os alunos pronunciaram o mundo no qual vivem os ribeirinhos

que historicamente foram viacutetimas da exploraccedilatildeo do seu trabalho e provocados a

refletir sobre essa exploraccedilatildeo e vislumbrarem as possiacuteveis alternativas de libertaccedilatildeo

assim foi identificado o problema buscou-se explicaccedilatildeo e as possiacuteveis soluccedilotildees pelo

diaacutelogo O ponto inicial foi a anaacutelise criacutetica e ao mesmo tempo reflexiva sobre a

realidade concreta vista como um problema que requer respostas A educaccedilatildeo nessa

perspectiva visa agrave libertaccedilatildeo da ignoracircncia da dependecircncia da submissatildeo e de

vaacuterios meios de opressatildeo (FREIRE 2014) Todavia natildeo podemos esquecer que

como agentes poliacuteticos teremos que lutar com esperanccedila por uma sociedade mais

justa e igualitaacuteria Isso requer para Santos (2009 p 19) um projeto educativo

emancipatoacuterio uma educaccedilatildeo para o inconformismo e a rebeldia amparada em ldquoum

80 Atravessador

197

tipo de subjetividade que submete a uma hermenecircutica de suspeita a repeticcedilatildeo do

presente que recusa a trivializaccedilatildeo do sofrimento e da opressatildeo []rdquo Educaccedilatildeo que foi aleacutem dos conteuacutedos sobre alimentaccedilatildeo contidos no livro

didaacutetico e que provocou nos alunos por meio da pesquisa a possibilidade de

aprenderem mais sobre seus proacuteprios haacutebitos alimentares e fazerem a relaccedilatildeo entre

o conhecimento escolar e o saber popular por meio da complementaccedilatildeo haja vista

que no livro natildeo havia informaccedilatildeo referente ao accedilaiacute

O diaacutelogo tambeacutem esteve permeando a praacutetica pedagoacutegica da Prof 6 que atua

com alunos do preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano numa classe multisseriada O conteuacutedo do dia

foi ldquoo riordquo na aula de Geografia Como o assunto eacute o mesmo para o 1ordm e 2ordm ano a

professora fez somente um planejamento e incluiu as crianccedilas da preacute-escola

Professora crianccedilas hoje vamos estudar sobre os rios Respondam o que eacute um rio Acredito que minha presenccedila na sala deixou os alunos tiacutemidos Professor Natildeo estou ouvindo nada algueacutem quer falar alguma coisa sobre o rio Jorge o rio eacute onde tem muita aacutegua (aluno do 2ordm ano comeccedila a falar) Marta no rio moram os peixes e o camaratildeo professora Os alunos comeccedilam a rir da colega Joel eacute no rio que tomo banho pego aacutegua pra mamatildee fazer comida lavar a casa e a roupa suja Benedita no rio agente anda de rabeta casco e catraio tambeacutem Lucia no rio agente brinca de pira-matildee de pega pega e briga de galo Isaura No fundo do rio mora a Iara e o boto que quando agente estaacute menstruada natildeo podemos nadar tomar banho nem pegar aacutegua no rio por causa dele Marcos jaacute fui ferrado por arraia aqui na boca do rio perdi a mareacute e fiquei atolado aiacute tive que vim empurrando o casco e a arraia me pegou de jeito Luan professora a minha voacute mora noutra vila pra chegar ateacute laacute tem que varar por outro rio foi na varada que eu acabei me perdendo porque passa por um regono meio da mata e tambeacutem jaacute eraboca da noiteestava escuro e a minha sorte eacute que eu levei uma lanterna Vera professora eu coloco matapi na ilharga do rio com minha matildee ela sabe onde tem muito camaratildeo e sempre quando vamos tirar o matapi ele estaacute cheio de camaratildeo soacute do purrudo E a aula foi acontecendo com os relatos dos alunos Em seguida a professora explicou o assunto e fez a relaccedilatildeo com as falas dos alunos sobre suas experiecircncias com o rio

O conteuacutedo ldquoriordquo foi abordado a partir das experiecircncias e conhecimentos dos

alunos referente aos rios da ilha do Accedilaiacute O saber popular dialogou horizontalmente

com o conhecimento escolar palavras como ldquoboca do rio rio que vara por outro rio

rego ilharga do riordquo satildeo utilizadas para se referir a este majestoso universo das aacuteguas

repleto de seres encantados como a Iara e o Boto e do qual os ribeirinhos retiram seu

198

sustento (peixe camaratildeo) transitam para outros lugares como Macapaacute e Afuaacute visitam

parentes navegam para trabalhar e ir para a escola retiram aacutegua pra higiene pessoal

e domeacutestica fazer comida lavar roupa etc

O rio faz parte da vida dessas crianccedilas que estatildeo cotidianamente mergulhadas

em suas aacuteguas Ningueacutem conhece melhor os rios da Ilha do que os moradores deste

lugar por isso a professora nos disse que ldquoprocuro primeiro verificar o que eles sabem

sobre o assunto que vamos estudar entatildeo agente conversa faccedilo perguntas e deixo

eles agrave vontade para falar nas falas deles dizem o que sabem e eu vou dando cordardquo

O ldquodar cordardquo eacute garantir o direito agrave palavra condiccedilatildeo essencial para o diaacutelogo

O conteuacutedo de Geografia foi discutido a professora explicou os nomes

geograacuteficos das expressotildees utilizadas pelos alunos ao se referirem aos rios pois ldquoeles

precisam tambeacutem conhecer que existe outra forma de expressaacute-losrdquo (Prof 6) que satildeo

os conceitos geograacuteficos oriundos da ciecircncia e aceitos como universais Desta forma

a boca do rio eacute chamada pela ciecircncia de foz o rio que vara para o outro eacute oafluente

o regoeacute aconfluecircnciae a ilharga corresponde agravemargem do rio Nesse caso a

dialogicidade

[] natildeo nega a validade de momentos explicativos narrativos em que o professor expotildee ou fala do objeto O fundamental eacute que professor e alunos saibam que a postura deles do professor e dos alunos eacute dialoacutegica aberta curiosa indagadora e natildeo apassivada enquanto fala ou enquanto ouve (FREIRE 2014 p 86)

Corroborando com essa concepccedilatildeo Brandatildeo (2006) diz que o acesso ao saber

escolar tem uma importacircncia poliacutetica para as classes populares mas este saber

necessita estar articulado com o saber por ela produzido pois ldquoo respeito ao saber

popular implica necessariamente o respeito ao contexto culturalrdquo (FREIRE 1993 p

86) Para Mignolo (2000) eacute pelo conhecimento que passamos a elaborar nossas

representaccedilotildees da realidade na qual vivemos os ribeirinhos fazem essa

representaccedilatildeo a partir do conhecimento popular os que tecircm acesso a educaccedilatildeo

formal o fazem tambeacutem a partir do conhecimento escolar

Desta maneira foi por meio do diaacutelogo entre educador e educandos que os

falares dos ribeirinhos foi reconhecido como outra forma de expressatildeo da realidade

Na sala de aula o diaacutelogo desses saberes com o conhecimento validado pela ciecircncia

abre possibilidades para a leitura criacutetica de mundo Poreacutem isto postula como nos diz

Santos (2009) que a dialogicidade entre o saber popular e a ciecircncia elaborada esteja

alicerccedilada numa racionalidade hermenecircutica tendo no histoacuterico das escolhas feitas

199

no passado as respostas para as condiccedilotildees vividas no presente Assim se expressa

o referido autor

[] A reflexatildeo hermenecircutica visa transformar o distante em proacuteximo o estranho em familiar atraveacutes de um discurso racional [] orientado pelo desejo de diaacutelogo com o objeto de reflexatildeo para que ele ldquonos falerdquo numa liacutengua natildeo necessariamente a nossa mas que nos seja compreensiacutevel e nessa medida se nos torne relevante nos enriqueccedila e contribua para aumentar a autocomprensatildeo do nosso papel na construccedilatildeo da sociedade ou na expressatildeo cara agrave hermenecircutica do mundo da vida (Santos 1999 p15)

Desta maneira a histoacuteria passa a ser vista como possibilidadee natildeo como

determinismo E esta visatildeo natildeo seria possiacutevel sem o sonho da educaccedilatildeo como uma

praacutetica da liberdade partindo de uma pedagogia do oprimido como nos alerta

FreirePedagogia vivenciada pela professora e os alunos ribeirinhos numa perspectiva

intercultural que estabeleceu o diaacutelogo entre os diferentes saberesnesta praacutetica natildeo

houve conhecimento superior nem inferior e sim mais uma forma de expressatildeo

epistemoloacutegica sustentados pelo respeito e o reconhecimento de outras formas de

explicaccedilatildeo do mundo ou o que Walsh (2006) intitula de interculturalidade na qual a

comunicaccedilatildeo entre as culturaseacute baseada no ldquorespeito legitimidade simetria e

igualdaderdquo (idem p 11)

Nessa perspectiva a prof 6 trabalhou na disciplina Histoacuteria o conteuacutedo

ldquoHistoacuteria da Amazocircniardquo especificamente a histoacuteria da comunidade Furo dos Porcos

Professora o nosso assunto de hoje eacute a historia da Amazocircnia Noacutes moramos na comunidade Furo dos Porcos no municiacutepio de Afuaacute que pertence ao estado do Paraacute que faz parte da Amazocircnia Brasileira Jorge entatildeo professora noacutes vamos estudar a histoacuteria da nossa comunidade que fica na Amazocircnia neacute Professora bem natildeo foi exatamente isso que planejei mas eacute uma boa ideia ateacute porque a comunidade Furo dos Porcos faz parte da Amazocircnia como vocecirc disse Marta mas natildeo tem nada aqui no livro que fale sobre nossa comunidade professora como vamos estudar se natildeo tem no livro Professora vocecirc tem toda razatildeo mas noacutes podemos escrever a histoacuteria da nossa comunidade para isso vamos ter que verificar as primeiras famiacutelias que vieram morar aqui Joel professora quem criou essa vila foi meu bisavocirc que veio pra caacute quando casou com minha bisavoacute meu avocirc que conta essa histoacuteria Professora entatildeo vamos fazer um levantamento das primeiras pessoas que vieram morar aqui na comunidade Os alunos comeccedilaram a dizer o nome das pessoas mais velhas que moram na comunidade Em seguida a professora pediu para que formassem grupos para entrevistar essas pessoas Benedita mas o que vamos perguntar pra elas Professora o que vocecircs querem saber sobre a comunidade do Furo dos Porcos Lucia eu quero saber por que esse nome

200

Isaura i eu se aqui antes tinha mais animais na mata como macaco veado paca tatu e demais Luan eu quero saber por que as pessoas vieram pra caacute E assim os alunos foram falando sobre o que queriam saber sobre a histoacuteria da comunidade onde vivem

A aula partiu da curiosidade dos alunos referente ao local onde vivem a vila

Furo dos Porcos que pertence ao municiacutepio de Afuaacute localizada na Amazocircnia O

planejamento foi flexiacutevel a professora natildeo havia planejado esse conteuacutedo entatildeo

houve mudanccedilas no rumo da aula com a inclusatildeo de um assunto de interesse dos

educandos O reconhecimento por parte da professora da curiosidade dos

educandos em conhecer melhor o espaccedilo onde vivemconvivemsobrevivem foi

fundamental para o ecircxito da aula

A curiosidade como inquietaccedilatildeo indagadora como inclinaccedilatildeo ao desvelamento de algo como pergunta verbalizada ou natildeo como procura de esclarecimento como sinal de atenccedilatildeo que sugere alerta faz parte integrante do fenocircmeno vital (FREIRE 2014 p 32)

A curiosidade instigou os alunos a investigar a histoacuteria da Vila como natildeo estava

escrito no livro didaacutetico Entatildeo o jeito foi produzir esse conhecimento por meio da

pesquisa de campo Os sujeitos cognoscentes levantaram as questotildees que

despertavam sua curiosidade epistemoloacutegica e com base nelas foram em busca das

respostas junto aos moradores mais antigos do lugar ldquo[] quanto mais criticamente

se exerccedila a capacidade de aprender tanto mais se constroacutei e desenvolve o que venho

chamando curiosidade epistemoloacutegicardquo (FREIRE 2009 p27)

A curiosidade epistemoloacutegica parte do princiacutepio de que somos seres

inacabados que aprendemos na relaccedilatildeo com os outros mediatizados pelo mundo

Entretanto faz-se necessaacuterio o reconhecimento do outro como um ser que possui uma

gama de saberes e compreensatildeo da realidade soacute assim podemos nos permitir a

dialogar e aprendermos juntos Foi o que ocorreu entre os educandos e os moradores

mais antigos da comunidade do Furo dos Porcos

Ao propor o desafio contra a razatildeo indolente Santos (2002) destaca que

existem outros saberes chamados de alternativos com razotildees que os diferem do

hegemocircnico Assim natildeo podemos admitir que exista uma uacutenica epistemologia pois

haacute diversas formas de conhecimento dentre eles os relativos agrave histoacuteria contada pelos

moradores em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo da vila do Furo dos Porcos seus mitos lendas entre

outros

201

Assim o reconhecimento do saber popular dos moradores da Vila natildeo retira a

autoridade da professora por conseguinte ambos possuem saberes diferentes e no

diaacutelogo colocam algo em discussatildeo

Os professores natildeo satildeo iguais aos alunos por ldquonrdquo razotildees entre elas porque a diferenccedila entre eles os faz ser como estatildeo sendo [] O diaacutelogo tem significaccedilatildeo precisamente porque os sujeitos dialoacutegicos natildeo apenas conservam sua identidade mas a defendem e assim crescem um com o outro( FREIRE 2009 p 118)

Crescem na medida em que se predispotildeem a dialogar com humildade

reconhecendo o outro como um ser humano dotado de experiecircncias que podem

contribuir para esse crescimento emocional afetivo e cognitivo

Desta maneira rompe-se com a colonialidade do saber a partir do momento

em que outras epistemologias estatildeo sendo reconhecidas no caso os conhecimentos

dos idosos da vila tiradas da invisibilidade tomando-as visiacuteveis fazendo-as

emergirem eacute a sociologia da emergecircncia como propotildee Santos (2009)

A seguir outra praacutetica pedagoacutegica que observamos na qual o saber popular foi

visibilizado

Professora bom dia crianccedilas Alunos bom dia professora Todos cantaram a muacutesica de boas vindas Professora peguem a ficha com seus nomes e coloquem no nosso quadro de chamada jaacute sabem que tem que ser por ordem alfabeacutetica Os alunos foram um por um pegar as fichas com seus respectivos nomes que estavam na mesa da professora Professora pelo jeito soacute faltou o Raimundo algueacutem sabe me dizer qual o motivo da falta dele (Raimundo eacute aluno do preacute-escolar) Rafael professora ele natildeo veio porque taacute doente Professora doente de que Baacuterbara ele taacute com vomito e diarreia a matildee dele levou ele pro papai benzer ontem laacute em casa E o papai disse que ele taacute com quebranto Marta eu jaacute tive quebranto professora passei muito mal e foi o pai da Baacuterbara que me benzeu e eu fiquei boa Ele passou um chaacute que a mamatildee fez pra eu beber vaacuterias vezes no dia Pedro eu sei como se pega quebranto eacute quando uma pessoa agrada agente e essa pessoa taacute com fome ou chega suada da rua ai agente fica doente e soacute cura quando eacute benzido Cristiane eu jaacute fui flechada o bicho da mata flecha agente Isso acontece quando uma mulher menstruada sai de casa O papai disse que ela atrai os bichos pelo cheiro aiacute os bichos flecha agente aiacute agente fica doente com febre e dor de cabeccedila tem que ir pro benzedor tambeacutem Fabriacutecio professora meu irmatildeo tambeacutem jaacute foi flechado ele foi tomar banho no rio agrave noite e natildeo pediu permissatildeo pros encantados aiacute a Iara flechou ele

202

Fernando minha irmatilde quase foi encantada pelo boto professora Ela foi tomar banho no rio menstruada agrave noite o bicho foi visitar ela e o papai botou ele pra correr com o terccedilado Professora bem pelo jeito vocecircs tecircm muitas histoacuterias pra contar entatildeo vamos fazer o seguinte como hoje eacute nossa aula de Portuguecircs vocecircs vatildeo escrever essas histoacuterias Os alunos do preacute-escolar e do 1ordm ano desenham e os outros podem escrever desenhar ou dramatizar Apoacutes a resoluccedilatildeo desta atividade os alunos apresentaram na sala e a professora aproveitou as produccedilotildees textuais para trabalhar os conteuacutedos da gramaacutetica sinais de pontuaccedilatildeo tempos verbais substantivos entre outros

Acompanhei o desenvolvimento dessa aula e percebi o interesse e a dedicaccedilatildeo

dos alunos em escrever desenhar e falar sobre as histoacuterias que fazem parte do seu

cotidiano Tudo isso reflete a forma como eles veem leem e interpretam o mundo (as

doenccedilas os seres encantados o comportamento em relaccedilatildeo a esses seres para natildeo

ficarem doentes entre outros) A professora ao valorizar e reconhecer o significado

das crenccedilas nos seres encantados para a comunidade contribui para a construccedilatildeo

de uma educaccedilatildeo voltada para os povos da Amazocircnia ribeirinha Hage (2004 p 4)

chama a atenccedilatildeo para as consequecircncias da natildeo valorizaccedilatildeo da cultura amazocircnica

nas accedilotildees educativas

O conjunto de crenccedilas valores siacutembolos e conhecimentos das populaccedilotildees da Amazocircnia e seus padrotildees de referecircncia e sociabilidade que satildeo construiacutedos e reconstruiacutedos nas relaccedilotildees sociais no trabalho e na vivecircncia e convivecircncia nos espaccedilos sociais em que participam natildeo tecircm sido valorizados e incorporados nas accedilotildees educativas das classes multisseriadas constituindo-se num fator que produz o fracasso escolar

O fracasso escolar a que se refere o autor eacute produzido pelo natildeo reconhecimento

do saber popular como digno de fazer parte do curriacuteculo da escola ribeirinha por natildeo

passar pelos rigores da ciecircncia hegemocircnica Assim vai se produzindo o que Santos

(2007) chama de epistemiciacutedio o desaparecimento dos conhecimentos natildeo cientiacuteficos

que satildeo divergentes maneiras de se fazer ciecircncia Isso ocorre pela monocultura da

escala dominante que produz as ausecircncias do particular do local e torna universal o

conhecimento global

No entanto a praacutetica pedagoacutegica da professora fez o caminho oposto agrave razatildeo

indolente partiu da descolonizaccedilatildeo epistemoloacutegica dando vez e voz aos saberes dos

alunos as suas maneiras de explicar a realidade que permeiam a praacutetica social das

pessoas que vivem naquele lugar Eacute o que Santos (2008) denomina de ecologia que

se edifica na pluralidade e autonomia dos variados saberes Ao trabalhar os conteuacutedos

203

gramaticais a partir das produccedilotildees escritas e apresentadas pelos alunos a professora

estabeleceu o diaacutelogo entre esses dois tipos de conhecimento o popular e o escolar

porque os educandos fizeram uma nova leitura a partir dos conteuacutedos apreendidos

Esta praacutetica se constituiu numa gnose liminar pois deu visibilidade aos saberes

que historicamente foram subalternizados e no diaacutelogo com a epistemologia

hegemocircnica foram visibilizados Segundo Mignolo (2003) a gnose enquanto

pensamento fronteiriccedilo eacute o espaccedilo para os saberes locais se manifestarem e

garantirem seu reconhecimento Natildeo se afirma enquanto oposiccedilatildeo agrave ciecircncia mas atua

no tracircnsito entre fronteiras Dessa forma o pensamento liminar se tornou um

instrumento para a descolonizaccedilatildeo intelectual a presenccedila dos encantados para

explicar a realidade a cura das doenccedilas por meio do agente cultural (benzedor) e os

remeacutedios para a cura vindos da mata e das aacuteguas satildeo exemplos de formas de

existecircnciaresistecircncias em lugares onde o poder puacuteblico natildeo atua com poliacuteticas na

aacuterea da sauacutede Os remeacutedios indicados pelo benzedor fruto de sua experiecircncia de

vida satildeo saberes fronteiriccedilos pois existem e resistem apesar de todo avanccedilo da

ciecircncia farmacecircutica

Outra praacutetica pedagoacutegica que rompeu com a monocultura do tempo linear e

com a do produtivismo capitalista foi vivenciada com os alunos da prof 2 Nessa aula

o conteuacutedo foi as estaccedilotildees do ano Como amazocircnidas sabemos que soacute observamos

duas que satildeo o inverno e o veratildeo quando a professora apresentou o conteuacutedo os

alunos questionaram

Nelso professora aqui agente soacute vecirc a chuva no veratildeo e a quentura do inverno natildeo da pra ver a primavera nem o outono Pedro professora aqui na vila agente faz a derrubada da mata pra fazer roccedila no final do veratildeo ai agente espera secar a mata derrubada e toca fogo no inverno agente comeccedila a plantar Maria aqui no inverno alaga tudo a aacutegua sobe e invade os quintais aiacute vecircm as cobras e comem as galinhas e patos No inverno fica difiacutecil pegar peixe porque a aacutegua cresce muito Francisco o que salva agente eacute o accedilaiacute que tem bastante na mata entatildeo agente tira pra tomar e pra vender Joaquina por isso que no veratildeo agente trabalha pouco porque natildeo tem muita coisa pra fazer Margarete o inverno com o veratildeo mexe no horaacuterio de aula porque no veratildeo o rio fica mais seco e no inverno tem muita aacutegua Professora muito bem entatildeo todos aqui sabem que natildeo temos um horaacuterio fixo de aula devido agraves mareacutes eu soacute natildeo sabia que o accedilaiacute natildeo produz no veratildeo e que pra fazer roccedila tem que derrubar no veratildeo e plantar no inverno falem mais sobre isso e outras coisas relacionadas com as estaccedilotildees do ano aqui na ilha

204

A fala da uacuteltima aluna retrata um dos preconceitos em relaccedilatildeo aos ribeirinhos

que satildeo taxados de preguiccedilosos devido natildeo trabalharem direto para a produccedilatildeo e

voltados para o mercado como propotildee a monocultura do tempo linear que natildeo

reconhece outras formas de organizaccedilatildeo temporal como as dos ribeirinhos que no

veratildeo se dedicam a limpar os peacutes de accedilaiacute para facilitar o crescimento das aacutervores ou

fazer o manejo para garantir o aumento da produccedilatildeo no inverno e dessa maneira

satildeo vistos pelos de fora como preguiccedilosos e vagabundos O tempo das aacuteguas

determina o horaacuterio das aulas que eacute tambeacutem influenciado pelas estaccedilotildees do ano

assim o tempo ecoloacutegico sobressai em relaccedilatildeo ao tempo linear na ilha do Accedilaiacute

5CONCLUSAtildeO

Ao pesquisar a Amazocircnia Ribeirinha especificamente a ilha do Marajoacute

territoacuterio no qual nasci e vivi a infacircncia e parte da adolescecircncia representou um

mergulho na minha proacutepria histoacuteria As lembranccedilas permearam todos os momentos

que foram tensos e intensos na convivecircncia com os moradores das comunidades da

ilha do Accedilaiacute Foram imensos momentos de aprendizagem nos quais mergulhava

profundamente nas caudalosas aacuteguas dos rios e emergia repleto de saberes

apreendidos na cultura da conversa com os caboclos e caboclas marajoaras No

diaacutelogo com as crianccedilas jovens adultos e idosos mediatizados pelo mundo construiacute

e reconstruiacute conhecimentos referentes agrave Amazocircnia ribeirinha que descrevo nas

conclusotildees deste estudo

De acordo com a pesquisa realizada que teve como objeto de estudo investigar

como ocorre o diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos

na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam em classes multisseriadas na ilha

do Accedilaiacute chegamos agraves seguintes conclusotildees a) o saber popular dos ribeirinhos povos

das aacuteguas estaacute relacionado com o contexto social econocircmico cultural e religioso no

qual estatildeo imersos Esses povos estabelecem entre si e com os outros relaccedilotildees de

trocas materiais e simboacutelicas b) o diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos professores

entre o saber popular e o conhecimento escolar ocorre de forma vertical por meio das

praacuteticas colonizadoras que predominam nas accedilotildees de grande parte dos educadores

mas tambeacutem em menor quantidade satildeo desenvolvidas praacuteticas descolonizadoras

205

nas quais o diaacutelogo eacute produzido horizontalmente o que denota uma ecologia de

saberes

Quanto ao saberpopular dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute ele eacute construiacutedo e

reconstruiacutedo nas relaccedilotildees sociais que envolvem crianccedilas jovens adultos e idosos

numa relaccedilatildeo de respeito uns com outros e com a natureza o que confirma a tese de

Santos (2010) de acordo com a qual as epistemologias satildeo engendradas nas

relaccedilotildees sociais pelos sujeitos por meio de suas praacuteticas dentro do contexto no qual

as desenvolvem

Esses saberes tecircm toda uma ciecircncia baseada numa loacutegica e racionalidade

diferentes da ciecircncia hegemocircnica como afirmou um ribeirinho ldquopara fazer um casco

tem que ter toda uma ciecircncia tem que saber para que vai ser usado quantas pessoas

vai carregar que tipo de madeira e muito maisrdquo O casco natildeo eacute desenhado no papel

(como fazem os engenheiros) mas estaacute planejado na cabeccedila do pescador que vai

fazecirc-lo e atende agraves necessidades de quem o encomendou Por isso afirmamos que

esses saberes satildeo outras maneiras alternativas e estrateacutegias de se produzir ciecircncia

que foram e ainda satildeo marginalizadas nos curriacuteculos escolares desde a educaccedilatildeo

baacutesica ateacute a superior reflexo da monocultura do saber

Nestes saberes existe tambeacutem toda uma tecnologia tais como variadas

teacutecnicas para tecer paneiro matapi malhadeira e peneiras Diversificados materiais

oriundos da mata para construir cascos remos barcos que constituem extensatildeo das

matildeos e das pernas dos povos das aacuteguas Conhecimento da fauna e da flora para a

feitura dos remeacutedios que curam as doenccedilas do corpo e do espiacuterito causadas pelos

encantados Conhecimento da biodiversidade que engloba os animais que vivem na

mata a diversidade de peixes que habitam os rios lagos e igarapeacutes bem como dos

haacutebitos alimentares de cada espeacutecie

No tocante agraves aacuteguas seus ciclos (vazantesecacheia) produzem todo um ritmo

de vida e expressam os saberes do ribeirinho na sua relaccedilatildeo com a natureza Assim

a vida se plasma nos movimentos das mareacutes enchente vazante e seca que guiam o

tempo para plantar coletar o accedilaiacute pescar o peixe o camaratildeo e caccedilar O ribeirinho

sabe quando a mareacute vai ser lanccedilante pelo vento que movimenta as aacuteguas sabe onde

encontrar no rio determinadas espeacutecies de peixes (traiacutera tamuataacute acaraacute matupiri

entre outros) pelo cheiro das aacuteguas sabe onde estatildeo os cardumes o que eles

comem bem como os seus costumes e desta forma constroem estrateacutegias e

ferramentas para aprisionaacute-los

206

Destarte haacute um conhecimento estruturado sobre as mareacutes que orienta as

atividades sociais e produtivas guiada pelo tempo das aacuteguas que define inclusive o

horaacuterio das aulas nas escolas da ilha do Accedilaiacute Essa ruptura com a monocultura do

tempo linear gera outros tempos com a produccedilatildeo de diversidades de saberes como

os relacionados ao vento ao cheiro das aacuteguas agraves espeacutecies de peixes agraves iscas mais

adequadas para pescaacute-los aleacutem de orientar as suas accedilotildees de acordo as fases das

mareacutes Diante de tais evidecircncias o que prevalece na ilha do Accedilaiacute eacute o tempo ecoloacutegico

fundamental para entendermos como vivem esses povos

Nas aacuteguas vivem tambeacutem os seres encantados que satildeo invisiacuteveis e quando

se materializam podem se tornar animais (boto) homens ou mulheres (caboclo

gritador Matinta Pereira e outros) como nas histoacuterias narradas pelos moradores das

comunidades por meio da cultura da conversa histoacuterias que tecircm um cunho educativo

pois fazem parte da educaccedilatildeo do cuidar Por meio delas os ribeirinhos orientam os

filhos para que se comportem da maneira adequada aos seus valores e influenciam

no modo de vida dos povos das aacuteguas As lendas e os mitos satildeo contados para as

crianccedilas desde o nascimento com o intuito de respeitar e preservar o meio ambiente

No que concerne aos saberes da mata e da terra existe toda uma ciecircncia e

tecnologia para a produccedilatildeo dos remeacutedios que curam as doenccedilas e os males causados

pelos entes sobrenaturais O saber do benzedor e da parteira satildeo frutos de toda uma

experiecircncia de vida na ilha do Marajoacute e a cura se efetiva por meio do reconhecimento

da autoridade desses sujeitos e da feacute que os doentes e seus familiares tecircm nos

remeacutedios oriundos da terra e da mata

Da mata eacute retirado o accedilaiacute que alimenta e daacute forccedila para os ribeirinhos

enfrentarem os desafios do cotidiano tambeacutem eacute a fonte de renda dos moradores da

ilha Na colheita uma diversidade de saberessatildeo mobilizados e constituem uma

epistemologia construiacuteda na relaccedilatildeo desses sujeitos com os rios a terra e a mata Ao

transformar a natureza para atender agraves suas necessidades o ribeirinho transforma

cria uma realidade que tambeacutem o transforma e direciona sua maneira de agir e pensar

pois ao transformar o mundo sofre os efeitos de sua proacutepria transformaccedilatildeo

Deste modo o saber produzido e reproduzido pelos ribeirinhos tem como

criteacuterio de validaccedilatildeo a aceitaccedilatildeo da comunidade e credibilidade dos seus autores

Como afirma Santos (2010) essas epistemologias satildeo construiacutedas e reconstruiacutedas

por meio da experiecircncia social diferente dos rigores da ciecircncia hegemocircnica Destarte

o criteacuterio de validade do conhecimento estaacute relacionado agrave sua contextualidade e

207

aplicabilidade para resolver as situaccedilotildees vivenciadas Ressaltamos que esses

saberes estatildeo inteiramente relacionados com a histoacuteria e a cultura dos povos das

aacuteguas

Na pesquisa identificamos que esses saberes dialogam com o conhecimento

escolar na praacutetica pedagoacutegica dos professores de forma vertical e tambeacutem

horizontalmente

O diaacutelogo numa perspectiva verticalizada a qual denominamos de

colonizadora nega os saberes locais ou seja o saber popular dos educandos

ribeirinhos e impotildee o conhecimento escolar como a uacutenica visatildeo de mundo e de

ciecircnciao que representa a colonialidade do saber O saber popular eacute invisibilizado

natildeo reconhecido concebido como mito lenda supersticcedilatildeo que fazem parte do

imaginaacuterio dos sujeitos da Ilha Nas praacuteticas de planejamento das aulas a razatildeo

indolente prevalece como hegemocircnica excluindo as razotildees subalternizadas dentre

elas as dos povos das aacuteguas Eacute a geopoliacutetica do conhecimento que natildeo reconhece

esses saberes por emergirem dos sujeitos que historicamente foram excluiacutedos

consequentemente gera a hierarquizaccedilatildeo dos saberes e a consolidaccedilatildeo das

diferenccedilas entre os sistemas de conhecimento ao privilegiar o espaccedilo onde ele eacute

produzido tornando-o universalmente legiacutetimo para todos os contextos definindo a

monocultura da escala dominante que torna hegemocircnico o global suprimindo o local

Eacute no planejamento que a geopoliacutetica do conhecimento e a monocultura da

escala dominante se materializam por meio da definiccedilatildeo dos conteuacutedos que faratildeo

parte do curriacuteculo nas diversas disciplinas que compotildeem a educaccedilatildeo baacutesica Nele o

contexto no qual vivem e sobrevivem os educandos natildeo satildeo levados em

consideraccedilatildeo Nas praacuteticas colonizadoras ocorre o epistemiciacutedio como afirma Santos

(2010) ao se referir agrave morte dos conhecimentos alternativos no caso os dos povos

das aacuteguas da Amazocircnia

O conhecimento hegemocircnico eacute transmitido pelo educador aos educandos por

meio do livro didaacutetico recurso pedagoacutegico mais utilizado nas escolas pesquisadas o

que caracteriza a pedagogia bancaacuteria na qual as metodologias desenvolvidas pelos

docentes visavam a transmissatildeo do conhecimento escolar de forma autoritaacuteria com

a predominacircncia das aulas expositivas por meio da narraccedilatildeo sem a participaccedilatildeo e

intervenccedilatildeo dos educandos desta maneira o saber hegemocircnico eacute concebido como

verdade absoluta O diaacutelogo eacute verticalizado somente o professor tem o direito de

pronunciar a palavra aos alunos eacute negado esse direito porque natildeo interessa os

208

saberes que eles trazem do seu meio sociocultural Para esta visatildeo racionalista de

educaccedilatildeo o uacutenico conhecimento vaacutelido eacute o que passa pelos rigores do meacutetodo

cientiacutefico e atende aos interesses dominantes

Portanto a pesquisa mostrou que por intermeacutedio de metodologias

colonizadoras81 o conhecimento escolar tendo como suporte o livro didaacutetico foi

imposto como uacutenica maneira de ler e explicar o mundo baseado na ciecircncia

colonizando as mentes e menosprezando outras racionalidades e razotildees

invisibilizadas e dessa forma construindo subjetividades identidades imaginaacuterios

sociais sentimentos atitudes e visotildees de mundo para acatar as propensotildees

hegemocircnicas

Tudo isso eacute reflexo da colonialidade do saber que define os curriacuteculos as

mateacuterias escolares e a organizaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo na escola Assim existe

uma sobreposiccedilatildeo da cultura erudita e etnocecircntrica sobre os conteuacutedos advindos da

cultura popular que eacute marginalizada e ausente no interior da instituiccedilatildeo escolar O

diaacutelogo nesta perspectiva natildeo possibilita a ecologia de saberes por negar os saberes

locais natildeo lhes concedendo credibilidade e visibilidade tornando-os ausentes nas

escolas ribeirinhas da ilha do Accedilaiacute

Apesar dos professores atuarem dentro de uma estrutura de dominaccedilatildeo seja

ela poliacutetica econocircmica cultural e epistemoloacutegica houve momentos na accedilatildeo

docente82 em que foram desenvolvidas praacuteticas nas quais o diaacutelogo ocorreu de forma

horizontal que denominamos de descolonizadoras Nelas houve o reconhecimento

das manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas das comunidades ribeirinhas da ilha do

Accedilaiacute

Praacuteticas nas quais os saberes locais foram visibilizados valorizados e

reconhecidos como conhecimento que norteia a vida dos ribeirinhos nas atividades

sociais religiosas culturais e produtivas Nela o planejamento partiu das

necessidades dos educandos em termos de conhecimentos para enfrentar os desafios

do cotidiano daiacute a valorizaccedilatildeo tanto do conhecimento escolar quanto dos saberes

locais

81 Planejamento e metodologias de ensino e aprendizagem desenvolvidas principalmente pelos professores Prof1 Prof3 Prof5 Prof7 Prof8 e Prof9 sujeitos da pesquisa descritas no capitulo 6 Isso natildeo significa que esses professores natildeo tenham desenvolvido tambeacutem praacuteticas descolonizadoras mas o que predominou no trabalho desses docentes durante o periacuteodo de observaccedilatildeo foi as colonizadoras 82 Com maior predominacircncia nas praacuteticas dos professores Prof2 Prof4 e Prof6

209

Um fato interessante eacute que os alunos estatildeo envolvidos nas atividades

produtivas desde a coleta do accedilaiacute da pesca do peixe camaratildeo e na caccedila de animais

silvestres ateacute nas atividades socioculturais e os professores desenvolveram praacuteticas

descolonizadoras que incluiacuteram esses saberes no planejamento das aulas Nas

metodologias esses saberes foram problematizados o direito a palavra foi garantido

a todos os envolvidos na praacutexis pedagoacutegica os moradores detentores desses

saberes foram os protagonistas

O diaacutelogo como momento de encontro para refletir coletivamente sobre a

realidade na qual vivem os educandos fez parte de algumas praacuteticas observadas nas

escolas investigadas Pela palavra os educandos educadores e os moradores da

comunidade que participam das praacuteticas pedagoacutegicas na escola puderam criar

transformar potenciar e libertar o pensamento e a criatividade para inovar Os

moradores tiveram seus saberes validados pela escola no momento em que os

professores abriram espaccedilo para que eles participassem ativamente do processo de

ensino e aprendizagem por meio de praacuteticas dialoacutegicas baseadas na amorosidade e

respeito agrave sua dignidade

A humildade dos professores ao admitirem que natildeo satildeo ignorantes e nem

saacutebios absolutos mas seres inacabados em constante processo de aprendizagem

possibilitou que abrissem espaccedilo para os saberes locais adentrarem o curriacuteculo No

diaacutelogo na sala de aula o professor aprendeu com os alunos os saberes locais e

ensinou a partir desses saberes os escolares por meio da escuta da palavra e do

respeito agraves ideias e aos pensamentos do outro

Portanto o diaacutelogo na perspectiva descolonizadora ocorreu numa relaccedilatildeo

horizontal com amorosidade e humildade na esperanccedila de um mundo melhor como

afirmou um professor ribeirinho ldquoeu ensino e aprendo todos os dias com esses jovens

acredito que eles satildeo capazes de aprender e de mudar a realidade na qual vivemos

digo noacutes porque vivo aqui tambeacutemrdquo Isso demonstra a feacute e esperanccedila na capacidade

dos educandos para mudar a realidade para isso a educaccedilatildeo ancorada numa

pedagogia da esperanccedila possibilita aos ribeirinhos da ilha lutar por um mundo melhor

o que significa romper com a opressatildeo gerada pela exploraccedilatildeo fruto principalmente

da ausecircncia de poliacuteticas puacuteblicas voltadas para o escoamento da produccedilatildeo e tambeacutem

nas aacutereas de sauacutede e educaccedilatildeo direcionadas para os povos das aacuteguas No tocante agrave

educaccedilatildeo a ausecircncia de poliacuteticas puacuteblicas de formaccedilatildeo continuada para os

210

professores de recursos didaacuteticos e valorizaccedilatildeo dos profissionais da educaccedilatildeo pelo

poder puacuteblico contribuem para a prevalecircncia da colonizaccedilatildeo epistemoloacutegica

O reconhecimento das ecologias das temporalidades e dos saberes presentes

no discurso bem como na praacutetica dos professores possibilitou o emergir das

experiecircncias dos saberes dos valores da relaccedilatildeo com o outro e com o mundo no

qual vivem esses protagonistas

A ecologia das temporalidades se manifestou no momento em que os

educandos tiveram o usufruto da palavra para falar sobre como as suas vidas satildeo

influenciadas por outras temporalidadescom loacutegicas distintas da linear tais como o

tempo das mareacutes o tempo para a derrubada queimada e o plantio que estatildeo

relacionados com as chuvas na ilha e o tempo pertinente aos encantados que habitam

a mata e os rios e estabelecem os horaacuterios para a entrada nesses ambientes naturais

Esse eacute o jeito de ser do povo daqui que vai aleacutem do tempo linear como afirmam os

poetas Joaozinho Gomes e Val Milhomem ldquoQuem nunca viu o (rio) Amazonas jamais

iraacute compreender a crenccedila de um povo sua ciecircncia caseira a reza das benzedeiras o

dom milagroso83rdquo

Assim inferimos que as praacuteticas descolonizadoras ao reconhecer a pluralidade

de saberes heterogecircneos e a autonomia de cada um deles promoveu a conexatildeo

ordenada dinacircmica e horizontal entre ambos por meio do diaacutelogo Desta maneira

efetivou-se na praacutetica a ecologia de saberes proposta por Boaventura de Souza

Santos O diaacutelogo que segundo Freire (2014)pertence a nossa natureza histoacuterica foi

nas praacuteticas descolonizadoras vivenciado com amor humildade feacute e confianccedila nas

crianccedilas jovens e adultos que constroem e reconstroem cotidianamente as suas vidas

nas comunidades que compotildeem a ilha do Accedilaiacute

A predominacircncia das praacuteticas colonizadoras caracteriza um modelo

pedagoacutegico que tem como cerne o padratildeo de educaccedilatildeo monocultural que suprime

qualquer diversidade cultural e epistemoloacutegica oriunda dos povos das aacuteguas

Defendemos a presenccedila da diversidade epistemoloacutegica no curriacuteculo das escolas

ribeirinhas como mecanismo de reconhecimento e validaccedilatildeo dos saberes locais e

produccedilatildeo das identidades e subjetividades dos sujeitos amazocircnidas Como afirma

Morreira (2009) o eixo central do curriacuteculo escolar eacute o conhecimento entatildeo

83 Trecho da letra da muacutesica Jeito Tucujuacute

211

precisamos romper com a colonialidade do saber que define o que (conteuacutedo) e como

(metodologia) deve ser ensinado

Defendemos a participaccedilatildeo da comunidade local na seleccedilatildeo do que deve ser

ensinado na escola onde estudam seus filhos e netos Natildeo podemos mais aceitar a

imposiccedilatildeo de um conhecimento escolar descontextualizado que reflete a realidade

das regiotildees industrializadas e que eacute determinado pela geopoliacutetica do conhecimento

Ao longo deste trabalho realizamos a cartografia dos saberes populares e

provamos que existe uma gnose liminar um pensamento fronteiriccedilo pois satildeo saberes

que existem e resistem permeiam o cotidiano e orientam as accedilotildees sociais produtivas

religiosas e culturais na ilha Esses saberes precisam ser visibilizados mas para que

isso ocorra o envolvimento e a participaccedilatildeo democraacutetica da comunidade eacute

fundamental na gestatildeo escolar

No decorrer da pesquisa procuramos a partir do referencial teoacuterico adotado

refletir criticamente sobre a educaccedilatildeo que temos e pensar em uma nova educaccedilatildeo

que integre toda a diversidade epistemoloacutegica e que possa atender agraves necessidades

e interesses das comunidades (vivemos numa sociedade multicultural com

manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas proacuteprias) e natildeo somente do capital que

valoriza apenas as questotildees econocircmicas e menospreza as culturais sociais e

religiosas

212

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221

APEcircNDICE A ndash Roteiro de entrevista para a comunidade

OBJETIVO PERGUNTAS

Roteiro de perguntas para os moradores

Cartografar a partir das memoacuterias

dos moradores da ilha do Accedilaiacute os

saberes presentes no discurso e

nas praacuteticas cotidianas dos

ribeirinhos

Nome Idade Tempo em que mora na comunidade 1 Por que vocecirc mora na beira do rio

2 Qual a importacircncia do rio para a sua vida

3 Vocecirc conhece alguma histoacuteriaque envolva os

seres encantados aqui na ilha do Accedilaiacute

4 Quais satildeo as doenccedilas causadas pelos seres

encantados

5 Quem cura as doenccedilas causadas pelos seres

encantados E como elas satildeo curadas

6 Vocecirc participa de alguma atividade social ou

produtiva (caccedila pesca colheita do accedilaiacute e

outras)

7 Como vocecirc desenvolve essa atividade

8 O que eacute necessaacuterio para realizaacute-la

9 Quais os instrumentos utilizados para a

execuccedilatildeo desta atividade

10 Com quem vocecirc aprendeu a desenvolver

essa atividade

11 Vocecirc desenvolve essa atividade sozinho ou

a sua famiacutelia tambeacutem participa Como ocorre a

participaccedilatildeo da famiacutelia

12 O que vocecirc faz com o que eacute produzido

222

APEcircNDICE B ndash Roteiro de entrevista para os professores

OBJETIVO PERGUNTAS

Roteiro de perguntas para os Professores

Identificar na praacutetica pedagoacutegica

do professor a presenccedila do saber

popular dos ribeirinhos e as formas

como dialogam com o saber

escolar

Nome Idade Formaccedilatildeo profissional Tempo de experiecircncia com classes multisseriadas 1 Vocecirc fez o curso normal a niacutevel meacutedio

(magisteacuterio)

2 Onde vocecirc fez a sua graduaccedilatildeo

3 Vocecirc tem curso de especializaccedilatildeo Caso

positivo em que aacuterea do conhecimento

4 Vocecirc eacute oriundo da ilha do Marajoacute ou de outro

Municiacutepio ou Estado

5 Quem define os conteuacutedos que satildeo

trabalhados nas disciplinas do curriacuteculo da

educaccedilatildeo infantil e dos anos iniciais do ensino

fundamental

6 Os saberes da comunidade ribeirinha satildeo

incluiacutedos na lista de conteuacutedos a serem

trabalhados nas disciplinas Quais os criteacuterios

que vocecirc utiliza para selecionaacute-los

7 Devido agrave extensatildeo da lista de conteuacutedos nem

todos satildeo trabalhados durante o ano letivo

Quais satildeo os criteacuterios que vocecirc adota para

selecionar os conteuacutedos a serem trabalhados

8 Vocecirc participou da escolha do livro didaacutetico

que os alunos receberam este ano

9 Como vocecirc utiliza o livro didaacutetico nas aulas

223

10 Como vocecirc elabora o planejamento das aulas

para a classe multisseriada

11 Vocecirc inclui os saberes da comunidade no

planejamento das aulas Caso positivo como

ocorre a inclusatildeo desses saberes

12 Como os alunos satildeo organizados na sala de

aula multisseriada

13 Quais satildeo as metodologias mais utilizadas

para trabalhar os conteuacutedos nas aulas

14 Quais os recursos didaacuteticos mais utilizados

nas aulas Como satildeo utilizados

15 Como vocecirc trabalha o saber da comunidade

em sala de aula

224

APEcircNDICE C ndash Roteiro de observaccedilatildeo das aulas dos professores

1 Os saberes da comunidade ribeirinha satildeo incluiacutedos na lista de conteuacutedos a serem

trabalhados nas disciplinas e os criteacuterios utilizados para selecionaacute-los

2 Como o livro didaacutetico eacute utilizado nas aulas

3 Como o planejamento eacute elaborado pelo professor para a classe multisseriada e se

satildeo incluiacutedos os saberes da comunidade

4 A organizaccedilatildeo dos alunos na sala de aula multisseriada

5 As metodologias e os recursos didaacuteticos mais utilizados pelos professores para

trabalhar os conteuacutedos nas aulas

6 Como satildeo trabalhados os saberes da comunidade nas diversas disciplinas do

curriacuteculo pelos professores

225

APEcircNDICE D ndash Roteiro de observaccedilatildeo das atividades na comunidade

1 A importacircncia do rio para os ribeirinhos

2 As histoacuterias e as doenccedilas relacionadas aos seres encantados

3 As praacuteticas do benzedor e da parteira assim como os remeacutedios que utilizam para

curar as doenccedilas

4 As atividades sociais e produtivas (caccedila pesca colheita do accedilaiacute e outras) e como

satildeo desenvolvidas

6 Os instrumentos confeccionados e utilizados para a execuccedilatildeo das atividades

produtivas

7 O processo de aprendizagem para a confecccedilatildeo dos instrumentos e utilizaccedilatildeo no

desenvolvimento das atividades produtivas

4

AGRADECIMENTOS

A todos os meus professores do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo

da Universidade Nove de Julho (UNINOVE) que socializaram seus conhecimentos e

experiecircncias

A professora Ana Maria Haddad Baptista por acreditar em mim aceitando-

me como orientando e pelo apoio moral nos momentos difiacuteceis que vivenciei em Satildeo

Paulo

A diretora da Escola Poacutelo e aos professores e professoras da Ilha do Accedilaiacute pela

recepccedilatildeo companheirismo e acolhimento no periacuteodo da pesquisa de campo

A todos os ribeirinhos e ribeirinhas que vivemconvivem na Ilha do Accedilaiacute

Aos membros da banca de qualificaccedilatildeo professores Diana Navas e Manuel

Tavares Gomes pela leitura criteriosa do trabalho o que contribuiu significativamente

no processo de construccedilatildeo e conclusatildeo da tese

Aos professoresMauricio Silva e Mocircnica Rebecca Ferrari Nunes que se

disponibilizaram em compor a banca de defesacom os demais professores

A minha famiacutelia em especial a querida matildeezinhaMaria Joseacute Mendes de

Almeida que sempre acreditou na capacidade de seus filhos eIn memoriam ao meu

paiMerciacutedio Gomes de Almeida pelos ensinamentos que me proporcionou durante

sua existecircncia neste mundo

A Edmar Souza das Neves grande amigo companheiro de viagem e de

caminhada neste doutorado que sempre me incentivou a ldquovoarrdquo mais alto

E a todos que contribuiacuteram com a realizaccedilatildeo deste trabalho mas que natildeo

foram citadossintam-se contemplados pois esta conquista eacute um pouco de cada um

de noacutes

5

RESUMO

Estapesquisa apresenta como temaacutetica a Ecologia de Saberes um estudo do

diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute

na qual investigamos como ocorre o diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos professores

que atuam em classes multisseriadas entre o conhecimento escolar e o saber popular

das comunidades ribeirinhas da referida ilha Numa perspectiva mais ampla a

pesquisa objetiva analisar o modo como o saber escolar dialoga com os outros

saberes de caraacuteter popular decorrentes da diversidade cultural e por isso

epistemoloacutegicaDe forma mais especiacutefica a pesquisa objetivarealizar um estudo a

partir das memoacuterias dos moradores da ilha do Accedilaiacute em relaccedilatildeo aos saberes presentes

no discurso e nas praacuteticas cotidianas dos ribeirinhos bem como identificar na praacutetica

pedagoacutegica do professor a presenccedila do saber popular dos ribeirinhos e as formas

como dialogam com o saber escolar e averiguar como as populaccedilotildees ribeirinhas

foram se constituindona Amazocircnia brasileira e a relaccedilatildeo entre o saber popular

produzido por essa populaccedilatildeo com os aspectos culturais sociais e econocircmicos do

municiacutepio de Afuaacute Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa do tipo estudo

etnograacutefico realizado em cinco comunidades ribeirinhas que compotildeem a ilha do Accedilaiacute

no municiacutepio de Afuaacute no Estado do Paraacute tendo como base para fundamentaccedilatildeo

teoacuterica a Ecologia de Saberes proposta por Boaventura de Souza Santos e o diaacutelogo

na concepccedilatildeo de Paulo Freire Os resultados indicam que o saber popular dos

ribeirinhos estaacute relacionado com o contexto social econocircmico cultural e religioso no

qual estatildeo imersosesses povos estabelecem entre si e com os outros relaccedilotildees de

trocas materiais e simboacutelicas No tocante ao diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos

professores esteocorre de forma vertical (colonizadora) e horizontal

(descolonizadora) com a predominacircncia das praacuteticas colonizadoras nas quais o

diaacutelogo ocorre verticalmente por meio da imposiccedilatildeo do saber escolar e o natildeo

reconhecimento do saber popular

Palavras-chave Ecologia de Saberes Diversidade Epistemoloacutegica Saber Popular

Amazocircnia

6

ABSTRACT

This research brings as a theme ldquoEcologyrsquos Knowledge a study about the dialog

between school and popular knowledge by people that live in Accedilai Island (called in

Portuguese ldquoRibeirinhosrdquo) it was done a survey to investigate how is the teachers

pedagogic practice considering teachers that work with different levels in the same

class and how is the dialog between school and popular knowledge in ldquoRibeirinhos

communityrdquo in Accedilai Island In a holistic view the research aims to analyze how the

school knowledge dialog with others popular knowledge considering cultural diversity

and epistemological In specific way this study tries to understand the Accedilai residents

memories about knowledge presents in daily ldquoRibeirinhosrdquo discuss and practice As

well as aims to identify the popular presence and the way that occur the knowledge

dialog in teachers pedagogic practice and to inquire how ldquoRibeirinhosrdquo people were

compounded in Brazilian Amazon and the relation between popular knowledge that

these people produced with cultural social and economic aspects in Afuaacute district It is

a qualitative search with ethnographic study produced in five (05) ldquoRibeirinhasrdquo

Community that are in Accedilai Island in Afuaacute district in Paraacute state As theory base this

search used the Ecologyrsquos knowledge suggestion by Boaventura de Souza Santos and

the dialog Paulo Freirersquos concept The results present that popular knowledge is linked

with social economical cultural and religion contexts where they are These people

establish themselves a kind of material and symbolic transposition relation About

dialogs teacherrsquos pedagogic practice there is a vertical (colonizer) and horizontal

(decolonized) way where Colonizer practices are predominate and the dialogs occur

vertically by school knowledge imposition and the popular knowledge itrsquos not

recognized

Key words Knowledge Ecology Epistemological diversityPopular Knowledge

Amazon

7

RESUMEN

Esta investigacioacuten presenta el tema de la ecologiacutea del conocimiento un estudio

del diaacutelogo entre el conocimiento escolar y el saber popular de los riberentildeos de la isla

del Accedilaiacute en la cual investigamos coacutemo el diaacutelogo en la praacutectica pedagoacutegica de los

docentes que trabajan en multisseriadas clases entre el conocimiento y el saber de

las comunidades riberentildeas de esta isla En una perspectiva maacutes amplia la

investigacioacuten pretende examinar coacutemo el saber de la escuela dialoga con otros

conocimientos derivados de la diversidad cultural y epistemoloacutegica por lo tanto de

caraacutecter popular Maacutes especiacuteficamente la investigacioacuten tiene como objetivo realizar

un estudio de los recuerdos de los habitantes de la isla de Accedilaiacute en relacioacuten a los

conocimiento presente en el discurso y en las praacutecticas diarias de los riberentildeos bien

como identificar en la praacutectica pedagoacutegica del maestro la presencia de los

conocimientos populares de riberentildeos y como es el diaacutelogo con la escuela y su

conocimiento descubrir coacutemo las poblaciones reasentadas si constituyeron en

Amazonia brasilentildea y la relacioacuten entre el conocimiento de las personas producidas

por esta poblacioacuten con los aspectos culturales sociales y econoacutemicos del municipio

de Afuaacute Es una investigacioacuten cualitativa de tipo etnograacutefico estudio en cinco

comunidades riberentildeas que conforman la isla de Accedilaiacute en el municipio de Afuaacute en el

estado de Paraacute la base para la fundamentacioacuten teoacuterica la Ecologiacutea del Conocimiento

propuesta por Boaventura de Souza Santos y el diaacutelogo desde la concepcioacuten en Paulo

Freire Los resultados indican que el saber de la poblacioacuten riberentildea estaacute relacionado

con el contexto social econoacutemico cultural y religioso en el que estaacute inmerso Estas

pueblos establecen entre siacute y con otros intercambio de materiales y simboacutelicas En

relacioacuten con el diaacutelogo sobre la praacutectica pedagoacutegica de docentes se produce

verticalmente (colonizacioacuten) y horizontal (descolonizadora) con el predominio de

praacutecticas coloniales en el que el diaacutelogo se produce verticalmente a traveacutes de la

imposicioacuten de conocimiento y el no reconocimiento del saber popular

Palabras clave Ecologiacutea del conocimiento Diversidad epistemoloacutegica Saber Popular

Amazonia

LISTA DE FOTOGRAFIAS

8

Fotografia 1 -Mina de ferro Carajaacutes no Estado do Paraacute

Fotografia 2 - Reassentamento coletivo urbano para os atingidos pela usina

Fotografia 3 - Vista aeacuterea da construccedilatildeo da barragem de Belo Monte em Altamira

Paraacute

Fotografia 4 - Peixes mortos ao longo das margens do Rio Araguari no municiacutepio de

Ferreira Gomes estado do Amapaacute

Fotografia 5 - Passarela de madeira no bairro Capimarinho

Fotografia 6 ndash Trabalhador autocircnomo (carreteiro) transportando mercadoria

Fotografia 7 - Igreja de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo

Fotografia 8 ndash Ribeirinho jogando a tarrafa no rio

Fotografia 9 ndashAacuterea desmatada para o plantio de milho

Fotografia 10 ndash Casas construiacutedas em aacuterea de invasatildeo no bairro Capimarinho

Fotografia 11 ndash Centro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery

Fotografia 12 ndash Classe multisseriada

Fotografia 13 ndash Laboratoacuterio de Informaacutetica da EMEF Frei Faustino Lagarda

Fotografia 14 -Escola ribeirinha que funciona como anexo

Fotografia 15 - Sala de aula de uma escola ribeirinha que funciona como anexo

Fotografia 16 - Escola Polo

Fotografia 17 - Preacutedio da Escola B

Fotografia 18 - Preacutedio da Escola E

Fotografia 19 ndash Cascos feitos de madeira Cedro

Fotografia 20 ndash Ribeirinho levando o filho para a escola no casco

Fotografia 21 ndash Ribeirinha pescando com o caniccedilo

Fotografia 22 ndash Ribeirinho com o filho colocando a malhadeira no rio

Fotografia 23 - Ribeirinho tecendo a malhadeira

Fotografia 24 ndash Matapi

Fotografia 25 - Benzedor benzendo uma crianccedila com susto

Fotografia 26 ndash Ribeirinha cuidando da horta

Fotografia 27 ndash Marupazinho

Fotografia 28 ndash Peacute de Mastruz

Fotografia 29 ndash Peacute de Capim Marinho

Fotografia 30 ndash Peacute de Noni

Fotografia 31 ndash Sementes de Cacau

9

Fotografia 32 ndash Erva Cidreira

Fotografia 33ndash Catinga de Mulata

Fotografia 34 ndash Palmeira de Buriti

Fotografia 35 - Peacutes de Accedilaiacute

Fotografia 36 ndash Menino subindo no Accedilaizeiro

Fotografia 38 ndash Instrumentos utilizados para a colheita de accedilaiacute

Fotografia 39 ndash Menina debulhando o cacho de accedilaiacute

Fotografia 40 ndash Amassadeira eleacutetrica

Fotografia 41 ndash Amassadeira manual

Fotografia 42 ndash Ribeirinha amassando o accedilaiacute com as matildeos

Fotografia 43 ndash Lista de conteuacutedos da disciplina Ciecircncias

Fotografia 44 ndash Fragmentos do conteuacutedo sobre ldquoecossistemardquo no caderno de aluno

Fotografia 45 ndash Fragmentos do conteuacutedo sobre ldquoos animaisrdquo no caderno de aluno

Fotografia 46 ndash Conteuacutedo referente ao tem ldquomoradiardquo abordado no livro didaacutetico da

disciplina Artes para o 1ordm 2ordm e 3ordm ano do ensino fundamental

Fotografia 47 ndash Sala de aula multisseriada

LISTA DE TABELAS

10

Tabela 01 - Membros do grupo ModernidadeColonialidade

Tabela 02 ndash Comparaccedilatildeo da produccedilatildeo de accedilaiacute no intervalo de quatro anos

Tabela 03 ndash Quantidade de Alunos matriculados no CEI

Tabela 04 ndash Percentual de atendimento das crianccedilas de 0 a 3 anos

Tabela 05 - Percentual de atendimento das crianccedilas de 4 a 5 anos em Afuaacute

Tabela 06 ndash Estabelecimentos de ensino fundamental por dependecircncia administrativa

Tabela 07 - Distorccedilatildeo idadeseacuterie no ensino fundamental

Tabela 08 - Taxa de rendimento escolar no ensino fundamental em 2015 ndash aacuterea

urbana

Tabela 09 ndash Escolas que compotildeem o Regional Madeira com o nuacutemero de alunos no

ano de 2016

Tabela 10 ndash Distribuiccedilatildeo das turmas da Educaccedilatildeo Infantil e anos iniciais do ensino

fundamental por professor

Tabela 11 ndash Os professores sujeitos da pesquisa

Tabela 12 ndash Os moradores sujeitos da pesquisa

Tabela 13 ndash Categorias aprioriacutesticas

Tabela 14 ndash Categorias aprioriacutesticas

Tabela 15 ndash Categorias natildeo aprioriacutesticas

LISTA DE MAPAS

11

Mapa 01 Localizaccedilatildeo Geograacutefica do municiacutepio de Afuaacute

Mapa 02 Mapa da ilha de Marajoacute indicando a proximidade de Afuaacute com o Macapaacute

LISTA DE SIGLAS

12

CAETA - Comissatildeo Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a

Amazocircnia

CEI- Centro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery

EJA - Educaccedilatildeo de Jovens e Adultos

ECA - Estatuto da Crianccedila e do Adolescente

ICOMI ndash Sociedade Brasileira de Industria e Comercio de Mineacuterios de Ferro e

Manganecircs

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica

IDH ndash Iacutendice de Desenvolvimento Humano

INEP ndash Instituto Nacional de Ediccedilotildees Pedagoacutegicas

IDEB ndash Iacutendice de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo Baacutesica

LDBEN ndash Lei de Diretrizes e Base da Educaccedilatildeo Nacional

MEC - Ministeacuterio da Educaccedilatildeo

NEC - Nuacutecleo de Educaccedilatildeo do Campo

PME - Plano Municipal de Educaccedilatildeo

PNAD ndash Pesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelio

PNDU -Programa das Naccedilotildees Unidas para o Desenvolvimento

PNLD- Programa Nacional do Livro Didaacutetico

SEMED - Secretaacuterias Municipais de Educaccedilatildeo

SEED - Secretaria de Estado da Educaccedilatildeo do Amapaacute

SEMTA - Serviccedilo Especial de Mobilizaccedilatildeo de Trabalhadores para a Amazocircnia

UEPA - Universidade do Estado do Paraacute

UNIFAP - Universidade Federal do Amapaacute

SUMAacuteRIO

13

APRESENTACcedilAtildeO 15

INTRODUCcedilAtildeO 19

1ESTUDOS TEOacuteRICOS DA PESQUISA 24

11A ECOLOGIA DE SABERES 24

111O Paradigma hegemocircnico 24

112 A crise do paradigma hegemocircnico 26

113 O Conhecimento Prudente para uma Vida Decente 28

114 A criacutetica da razatildeo indolente 30

115 Ecologia de Saberes o reconhecimento dos saberes nascido das lutas

dosoprimidos

38

12 A DESCOLONIZACcedilAtildeO EPISTEMOLOacuteGICA 42

121Os Estudos Poacutes-Coloniais 42

122A colonialidade do poder 47

123 Gnose ou pensamento liminar 53

13O DIAacuteLOGO ponto de partida para praacuteticas transformadoras 59

2 A EDUCACcedilAtildeO DAS POPULACcedilOtildeES RIBEIRINHAS NA AMAZOcircNIA 64

21 UM MERGULHO NA AMAZOcircNIA BRASILEIRA 64

22 POVOS DA AMAZOcircNIA os ribeirinhos 80

23 AFUAacute a Veneza Marajoara 85

231 Aspectos Histoacutericos Geograacuteficos e Econocircmicos 86

24 A EDUCACcedilAtildeO RIBEIRINHA NO MUNICIacutePIO DE AFUAacute 99

241 Educaccedilatildeo Infantil 99

242 Ensino Fundamental e Meacutedio 106

3 PERCURSO METODOLOacuteGICO 115

31 TIPO E LOCAL DA PESQUISA 115

32 PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS PARA A COLETA DE DADOS 120

33 CARACTERIZACcedilAtildeO DOS SUJEITOS DA PESQUISA 124

34 TEacuteCNICA DE ANAacuteLISE DOS DADOS 125

341 A emergecircncia das categorias de anaacutelise da Pesquisa 127

4ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS 130

41 O SABER POPULAR DOS RIBEIRINHOS DA ILHA DO ACcedilAIacute 130

411 Saberes das Aacuteguas 134

412 Saberes da Terra e da Mata 147

14

413 Saberes do Accedilaiacute 156

42 O DIAacuteLOGO ENTRE O CONHECIMENTO ESCOLAR E O SABER POPULAR 164

421 O Conhecimento Escolar 164

4211 O conhecimento escolar na oacutetica dos professores 166

422O Livro Didaacutetico 173

423O Planejamento das Aulas 180

4231 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma

perspectiva colonizadora

181

4232 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma

perspectiva descolonizadora

183

424 Metodologias de Ensino e Aprendizagem 186

4241 Professores que desenvolveram praacuteticas colonizadoras 187

4242 Professores que desenvolveram praacuteticas descolonizadoras 193

5CONCLUSAtildeO 206

REFERENCIAS 214

APEcircNDICES

APEcircNDICE A ndash Roteiro de entrevista para a comunidade 223

APEcircNDICE B ndash Roteiro de entrevista para os professores 224

APEcircNDICE C ndash Roteiro de observaccedilatildeo das aulas 226

APEcircNDICE D ndash Roteiro de observaccedilatildeo das atividades na comunidade 227

APRESENTACcedilAtildeO

15

Investigar a Amazocircnia eacute um desafio devido ao vasto territoacuterio que a compotildee e

a diversidade eacutetnica e cultural que a caracteriza A vastidatildeo geograacutefica e os aspectos

multiculturais das populaccedilotildees que habitam a regiatildeo fazem com que a Amazocircnia natildeo

seja concebida como uniacutevoca mas sim como espaccedilo pluralizado e multicultural

Nesses espaccedilos a populaccedilatildeo que eacute diversificada constroacutei e reconstroacutei

cotidianamente as Amazocircnias Nesta tese investigamos a Amazocircnia ribeirinha na

qual o rio e a mata tecircm um papel preponderante nos aspectos econocircmicos sociais

culturais e religiosos dos povos que habitam esta regiatildeo

Como oriundo da Amazocircnia Ribeirinha vivenciei desde a infacircncia a convivecircncia

com o rio por meio da pesca do peixe e camaratildeo dos banhos e brincadeiras nas

aacuteguas com a mata atraveacutes da caccedila de animais silvestres e feitura de roccedila para plantar

milho melancia mandioca macaxeira e maxixe para o consumo bem como trocar e

vender Tambeacutem aprendi a confeccionar os utensiacutelios necessaacuterios agrave produccedilatildeo

econocircmica dentre os quais o paneiro para colocar camaratildeo e o accedilaiacute o casco para

navegar nos rios o matapi para pegar o camaratildeo a malhadeira e o caniccedilo para

pescar dentre outros necessaacuterios para a sobrevivecircncia neste contexto

Minha famiacutelia era ribeirinha oriunda da Ilha dos Caraacutes no municiacutepio de Afuaacute

que pertence ao estado do Paraacute Como na ilha natildeo havia escola os pais que

quisessem que seus filhos estudassem tinham que mudar para cidade foi o que os

meus fizeram pois acreditavam que com acesso agrave educaccedilatildeo escolar seus filhos

poderiam ter uma vida melhor da que eles levavam Aos sete anos jaacute estava morando

em Macapaacute capital do estado do Amapaacute e matriculado na 1ordf seacuterie do ensino

fundamental

Inicialmentea convivecircncia com a escola natildeo foi muito boafui muitas vezes

repreendido pelas minhas professoras devido agrave forma como falava a minha

linguagem era oriunda do meio social no qual vivia ou seja dos ribeirinhos

considerada pela escola como ldquofeiardquo ldquoincorretardquo Assim dificilmente abria a boca nas

aulas geralmente apenas respondia ldquopresenterdquo na hora da chamada quando meu

nome era citado Isso me fez ter vergonha da minha proacutepria linguagem e para

sobreviver neste meio foi preciso reaprender a falar de acordo com a liacutengua dominante

considerada correta culta e hegemocircnica

Conclui o ensino fundamental e em 1985fui aprovado no teste de seleccedilatildeo para

o curso de formaccedilatildeo de professores a niacutevel meacutedio no Instituto de Educaccedilatildeo do

Territoacuterio do Amapaacute (IETA) instituiccedilatildeo puacuteblica que formava professores para atuar na

16

educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do ensino fundamental Durante o referido curso fui

aos poucos motivado pela professora da disciplina Didaacutetica e principalmente pelos

meus colegas de turma perdendo a timidez e ficando mais a vontade para falar pois

nas aulas a professora fazia perguntas queria saber nossa opiniatildeo sobre os temas

das aulas abria espaccedilo para o debate garantia a todos o direito agrave palavra

No ano de 1988 iniciei a carreira docente em uma escola ribeirinha no

Municiacutepio de Macapaacute Tinha acabado de concluir o curso de formaccedilatildeo de professores

para ldquoaprender a ensinarrdquo1e fui encaminhado juntamente com meus colegas receacutem-

formados para o interior2 O meio de transporte que utilizaram para nos distribuir nas

comunidades foi o caminhatildeo e onde o carro natildeo podia entrar trocaacutevamos o

caminhatildeo por barcos voadeiras ou catraios3 para chegar ao futuro local de trabalho

Era professor receacutem-formado sem experiecircncia de sala de aula tendo a

responsabilidade de ministrar aulas de 1ordf a 4ordf seacuteries em classes multisseriadas4

sozinho sem ter nenhum colega de trabalho para dividir as duacutevidas as anguacutestias e

as dificuldades Assim a docecircncia foi aprendida na praacutetica pois no curso de

formaccedilatildeo natildeo estudamos o processo de ensino e de aprendizagem com classes

multisseriadas Aliaacutes nunca discutimos a educaccedilatildeo ribeirinha apesar de vivermos na

Amazocircnia uma regiatildeo repleta de rios e florestas Trabalhei na escola para a qual fui

designado durante seis anos e vim para a cidade apoacutes a aprovaccedilatildeo no vestibular para

o curso de Pedagogia na Universidade Federal do Amapaacute (UNIFAP)

Concluiacuteda a graduaccedilatildeo passei a trabalhar como docente em uma instituiccedilatildeo

de formaccedilatildeo de professores para educaccedilatildeo infantil e seacuteries iniciais do ensino

fundamental Nesta escola formamos um grupo de estudos para discutir e refletir

sobre a educaccedilatildeo do campo na Amazocircnia e especificamente no Amapaacute A literatura

era escassa e tiacutenhamos acesso a poucas obras sobre o assunto Essa escassez

reflete os poucos estudos e investigaccedilotildees referentes a essa temaacutetica Em relaccedilatildeo a

isso explica Arroyo (2004 p 8) que ldquosomente 2 das pesquisas dizem respeito a

questotildees do campo natildeo chegando a 1 as que tratam especificamente da educaccedilatildeo

1 Expressatildeo usada pelo gestor do setor de Educaccedilatildeo do campo da Secretaria de Educaccedilatildeo na primeira e uacutenica reuniatildeo na qual fomos informados de que iriacuteamos trabalhar na zona rural 2 Expressatildeo comumente utilizada para se referir agraves escolas localizadas fora da aacuterea urbana do muniacutecipio 3 Pequenos barcos movidos a motor que fazem o transporte de pessoas e pequenas cargas nos rios da Amazocircnia 4 Escolas nas quais somente um professor (a) atua ao mesmo tempo e no mesmo espaccedilo com todas as turmas das seacuteries iniciais do ensino fundamental Em algumas comunidades o professor ou a professora assume tambeacutem a educaccedilatildeo infantil

17

escolar no meio ruralrdquo Isso nos fez criar um projeto no qual convidaacutevamos professores

das escolas ribeirinhas dos assentamentos das comunidades quilombolas das

regiotildees de garimpos dentre outras para dialogarem com os professores e os alunos

do magisteacuterio (como chamaacutevamos o curso de formaccedilatildeo de professores) Em seguida

decidimos ir ateacute essas escolas Foi um projeto ousado Enfrentamos muitos

obstaacuteculos que geralmente os educadores que atuam nessas instituiccedilotildees enfrentam

constantemente eles abrangem desde o apoio logiacutestico ateacute a burocracia das

Secretaacuterias Municipais de Educaccedilatildeo (SEMED)

Posteriormente em 2002 assumi a disciplina Estrutura e Funcionamento da

Educaccedilatildeo Baacutesica no curso de Pedagogia no polo5 de Afuaacute como professor substituto

na UNIFAP Este foi o primeiro contato que tive com o municiacutepio conhecido como a

ldquoVeneza Marajoarardquo famoso por seu Festival do Camaratildeo que atrai milhares de

pessoas de todos os cantos do paiacutes e do exterior no mecircs de julho

O polo universitaacuterio ao qual fui designado funcionava apenas nos meses de

janeiro e julho em uma escola puacuteblica de ensino fundamental e meacutedio Os alunos da

turma de Pedagogia eram todos professores nas escolas ribeirinhas6 pertencentes ao

sistema de ensino de Afuaacute As nossas aulas partiam das discussotildees das garantias

constitucionais sobre a educaccedilatildeo da Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional

e das receacutem-aprovadas Diretrizes Operacionais para a Educaccedilatildeo Baacutesica nas Escolas

do Campo uma vez que para eles estas leis ainda natildeo tinham ldquonascidordquo naquele

lugar visto que a realidade educacional vivenciada nas escolas ribeirinhas estava

longe do que estabelecem as leis

No ano de 2009 conclui o mestrado em Educaccedilatildeo pela Universidade do Estado

do Paraacute (UEPA) no qual investiguei a praacutetica pedagoacutegica do professor em escolas

ribeirinhas na Amazocircnia Paraense Em seguida comecei a trabalhar na Secretaria de

Estado da Educaccedilatildeo do Amapaacute (SEED) especificamente no Nuacutecleo de Educaccedilatildeo do

Campo (NEC) setor responsaacutevel pelo planejamento execuccedilatildeo e avaliaccedilatildeo dos cursos

de formaccedilatildeo continuada dos professores das escolas do campo da rede estadual de

ensino Trabalhei neste setor ateacute a minha aprovaccedilatildeo para cursar o doutorado

5 Os polos universitaacuterios funcionavam nos municiacutepios que firmavam convecircnio com a UNIFAP para a formaccedilatildeo em niacutevel superior dos professores do seu sistema de ensino 6 Utilizaremos a expressatildeo ldquoescolas ribeirinhasrdquo pois todas as escolas situadas no meio rural de Afuaacute satildeo ribeirinhas Acreditamos que assim destacaremos as singularidades da realidade vivenciada pelos atores sociais que vivem e sobrevivem do rio e da mata

18

Portanto a incursatildeo na temaacutetica da educaccedilatildeo ribeirinha na Amazocircnia faz parte

da minha histoacuteria de vida pessoal e profissional Neste estudo investigamos uma

faceta desta regiatildeo denominada de Amazocircnia Afuaense que aprofundamos no

decorrer desta tese

INTRODUCcedilAtildeO

Esta tese intituladaEcologia de Saberes um estudo do diaacutelogo entre o

conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute analisa no

acircmbito da educaccedilatildeo baacutesica especificamente na educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do

ensino fundamental o diaacutelogo entre diferentes tipos de conhecimentos Tecircm como

19

objeto de estudo investigar como dialogam o saber popular dos ribeirinhos da ilha do

Accedilaiacute e o saber escolar (saber hegemocircnico) na praacutetica pedagoacutegica dos professores

que atuam em classes multisseriadas nas escolas da referida ilha

Utilizamos como referencial teoacutericopara fundamentar a pesquisa a concepccedilatildeo

de ecologia de saberes proposta por Boaventura de Souza Santos e o diaacutelogo na

visatildeode Paulo Freire Na ecologia de saberes o mundo eacute um arco-iacuteris policromaacutetico

(SANTOS 2008) sendo assim haacute uma diversidade de culturas com diferentes formas

de produzir saberes que orientam suas atividades produtivas sociais culturais e

religiosas O reconhecimento da diversidade epistemoloacutegica existente no mundoeacute

essencial para que se efetivem praacuteticas nas quais os saberes possam dialogar numa

relaccedilatildeo de igualdade sem a imposiccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico como hegemocircnico

O termo ecologia de acordo com Santos (2008 p 157) ldquoassenta no reconhecimento

da pluralidade de saberes heterogecircneos da autonomia de cada um deles e da

articulaccedilatildeo sistemaacutetica dinacircmica e horizontal entre elesrdquo

Para Freire (2014) o diaacutelogo se constitui no encontro entre educador e

educandos que refletem e agem sobre o mundo a ser transformado e humanizado

Portanto o diaacutelogo eacute comunicaccedilatildeo pois conhecemos a realidade na interaccedilatildeo com

nossos semelhantes o que o torna tambeacutem social apesar da dimensatildeo individual

haja vista que eacute por meio dele que podemos atuar criticamente para transformar a

realidade na qual vivemos

O diaacutelogo segundo Freire (2014) para ser um elemento de humanizaccedilatildeo e

transformaccedilatildeo precisa ser repleto de amor humildade feacute e confianccedila nos homens

bem como esperanccedila aliada agrave luta pela mudanccedila No diaacutelogo todos tecircm que ter

garantido o direito agrave palavra que para o autor eacute considerada praacutexis (accedilatildeo-reflexatildeo-

accedilatildeo)

Assim investigamos o diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber popular

dos ribeirinhos na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam em classes

multisseriadas e desenvolvem suas atividades profissionais nas escolas situadas na

ilha do Accedilaiacute pertencente ao municiacutepio de Afuaacute no estado do Paraacute

A opccedilatildeo pelo referido municiacutepio deu-se por trecircs motivos O primeiro foi o contato

que tive como docente no polo da Universidade Federal do Amapaacute (UNIFAP) periacuteodo

em que vivenciei a formaccedilatildeo em niacutevel superior no curso de Pedagogia dos

professores do referido muniacutecipio Os constantes diaacutelogos dentro e fora da sala de

aula aguccedilaram-me o interesse em investigar a praacutetica pedagoacutegica com turmas

20

multisseriadas nas quais somente um professor assume a responsabilidade pelo

ensino de crianccedilas da educaccedilatildeo infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental e

tambeacutem de adolescentes e adultos porque nas comunidades ribeirinhas eacute comum

encontraacute-los estudando nas turmas do 1ordm ao 5ordm ano Sendo assim ldquoas classes

multisseriadas satildeo espaccedilos marcados predominantemente pela heterogeneidade ao

reunirem grupos com diferenccedilas de sexo de idade de interesses de domiacutenio de

conhecimentos de niacuteveis de aproveitamento etcrdquo (HAGE 2005 p 6)

O segundo motivo foi o nuacutemero significativo de escolas ribeirinhas de acordo

com os dados obtidos na Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo (SEMED) em 2015 foram

contabilizadas 207 escolas localizadas na zona rural7 Neste estudo satildeo

consideradas escolas ribeirinhas pois estatildeo situadas agraves margens de rios lagos furos

ou igarapeacutes nas comunidades ribeirinhas Este montante corresponde a 982 do

total de escolas do sistema municipal de ensino de Afuaacute que estaacute organizado

administrativa e pedagogicamente em 24 regionais Os regionais satildeo agrupamentos

de escolas de acordo com a sua localizaccedilatildeo geograacutefica Esta foi a estrateacutegia adotada

pela Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo (SEMED) para atender agrave diversidade

geograacutefica da regiatildeo

O terceiro motivo estaacute voltado para a continuidade da pesquisa que realizei no

mestrado na qual investiguei ldquoos saberes mobilizados e produzidos na praacutetica

pedagoacutegica dos professores ribeirinhos em classes multisseriadas que atuam na

referida ilhardquo Neste estudo cheguei agrave conclusatildeo de que os professores produzem

saberes a partir do contexto no qual desenvolvem suas atividades profissionais no

doutorado resolvi investigar como acontece o diaacutelogo entre o saber popular e o

escolar compreendendo que a maneira como o diaacutelogo ocorre na praacutetica pedagoacutegica

do professor estaacute vinculado com o saber produzido por este docente

Dentre os regionais optamos por continuar a investigaccedilatildeo no Regional

Madeira devido a algumas caracteriacutesticas que o distinguem dos outros regionais

dentre elas o horaacuterio das aulas nas escolas eacute de acordo com a mareacute ou seja os rios

e igarapeacutes da regiatildeo na mareacute vazante inviabilizam a entrada dos catraios para o

transporte dos alunos sendo necessaacuterio esperar a mareacute encher para poder adentraacute-

los a economia das comunidades que compotildeem o regional eacute baseada quase que

7 Os teacutecnicos da SEMED chamam escolas da zona rural mas todas as 207 escolas estatildeo localizadas em ilhas ou as margens de rios furos ou igarapeacutes por isso as consideramos ribeirinhas

21

exclusivamente na colheita do accedilaiacute Outra caracteriacutestica que nos fez optar pelo citado

regional foi a proximidade com Macapaacute onde reside o pesquisador o que viabilizou a

pesquisa de campo devido agrave facilidade de transporte (a viagem de catraio ateacute as

escolas do regional dura em meacutedia 90 a 120 minutos) e permanecircncia no local da

pesquisa8

Diante deste contexto partimos nesta investigaccedilatildeo da seguinte questatildeo

problema Como ocorre o diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam

em classes multisseriadas entre o conhecimento escolar e o saber popular das

comunidades ribeirinhas da ilha do Accedilaiacute

Como objetivo geral propomos analisar o modo como o saber escolar dialoga

com os outros saberes de caraacuteter popular decorrentes da diversidade cultural e por

isso epistemoloacutegica E como especiacuteficos Cartografar a partir das memoacuterias dos

moradores da ilha do Accedilaiacute os saberes presentes no discurso e nas praacuteticas cotidianas

dos ribeirinhos identificar na praacutetica pedagoacutegica do professor a presenccedila do saber

popular dos ribeirinhos e as formas como dialogam com o saber escolar averiguar

como as populaccedilotildees ribeirinhas foram se constituindona Amazocircnia brasileira e a

relaccedilatildeo entre o saber popular produzido por essa populaccedilatildeo com os aspectos

culturais sociais e econocircmicos do municiacutepio de Afuaacute

O municiacutepio de Afuaacute pertence ao estado do Paraacute Estaacute situado no arquipeacutelago

do Marajoacute que eacute uma ilha com uma aacuterea de aproximadamente 40100 kmsup2 eacute a maior

ilha do Brasil e tambeacutem a maior fluviomariacutetima do mundo

Afuaacute fica agraves margens dos rios Cajuuna Afuaacute e Marajozinho como a maioria

das cidades ribeirinhas na Amazocircnia nasceu ao redor de uma igreja catoacutelica

denominada Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo atraveacutes de terras doadas por Micaela

Ferreira no final do seacuteculo XIX Possui forte viacutenculo com os rios atraveacutes da pesca do

lazer e do uso como via para o meio de transporte Eacute uma cidade pequena de acordo

com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) de 2013 possuiacutea

em torno de 15 mil habitantes Localmente a prefeitura e alguns grupos de

propagandistas a definem como Veneza Marajoara ou Veneza Amazonense pois

a cidade se levanta sobre as aacuteguas Embora a comparaccedilatildeo seja supeacuterflua eacute fato que

8 Durante a pesquisa de campo fiquei hospedado nas escolas ribeirinhas onde fui gentilmente recebido pelos professores e comunidade local

22

a pequena cidade levantou-se pouco a pouco sobre o terreno de vaacuterzea criando uma

formosa obra em palafitas

O sistema de ensino do municiacutepio de Afuaacute eacute composto por escolas ribeirinhas

divididas em vinte e quatro regionais Os regionais satildeo agrupamentos de escolas que

estatildeo localizadas geograficamente proacuteximas Cada regional possui uma escola Poacutelo

que eacute responsaacutevel pela administraccedilatildeo de todas as demais que compotildeem o respectivo

regional Realizamos a pesquisa no Regional Madeira9 que abrange cinco escolas

situadas na ilha do Accedilaiacute10

Organizamos o texto destatese em quatro capiacutetulos No primeiroabordamos a

construccedilatildeo de um quadro teoacuterico para a anaacutelise do diaacutelogo entre o saber escolar e o

saber popular que consiste no referencial teoacuterico para discutir as categorias

aprioriacutesticas e natildeo aprioriacutesticas que emergiram da pesquisa de campo No segundo

capiacutetulo fizemos uma imersatildeo histoacuterica das populaccedilotildees ribeirinhas na Amazocircnia

realizamos um mergulho na Amazocircnia brasileira com ecircnfase nos povos das aacuteguas

em seguidaabordamos o municiacutepio de Afuaacutenosseus aspectos histoacutericos geograacuteficos

e econocircmicos com destaque paraa dimensatildeo educacional

No terceiro capiacutetulo descrevemos o percurso metodoloacutegico com o tipo e local

da pesquisa os procedimentos e instrumentos para a coleta de dados caracterizaccedilatildeo

dos sujeitos e a teacutecnica de anaacutelise dos dados No quarto capituloapresentamos a

cartografia a partir das memoacuterias dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute do saber popular o

qual classificamos em trecircs categorias saberes das aacuteguas saberes da terra e da mata

e saberes do accedilaiacute Efinalizamos o referido capiacutetulo analisando como ocorre o diaacutelogo

entre o conhecimento escolar e o saber popular na praacutetica pedagoacutegica dos

professores que atuam em classes multisseriadas nas escolas da ilha do accedilaiacute

classificamos essas praacuteticas em duas categorias natildeo aprioriacutesticas as colonizadoras

e as descolonizadoras

9 Nome fictiacutecio para preservar o anonimato do gestor e dos professores que atuam nas escolas pertencentes ao regional 10 Nome fictiacutecio para preservar o anonimato dos sujeitos da pesquisa que residem na ilha

23

1ESTUDOS TEOacuteRICOS DA PESQUISA

Nestecapiacutetulo fizemos a discussatildeo do referencial teoacuterico da pesquisa que

balizou as inferecircncias e interpretaccedilotildees das categorias aprioriacutesticas e natildeo aprioriacutesticas

11 A ECOLOGIA DE SABERES

Nesta seccedilatildeo com o objetivo de compreendermos a gecircnese da proposta

apresentada por Boaventura de Sousa Santos quanto agrave ecologia de saberes fizemos

24

uma abordagem referente ao paradigma hegemocircnico sua crise e a assunccedilatildeo de um

novo paradigma bem como a criacutetica da razatildeo indolente para chegarmos agrave concepccedilatildeo

das ecologias

111O Paradigma hegemocircnico

Segundo Santos (2008) o modelo hegemocircnico da ciecircncia moderna eacute oriundo

do modelo de racionalidade que se constituiu a partir da revoluccedilatildeo cientiacutefica do seacuteculo

XVI Gruumln (2002) considera que esta revoluccedilatildeo de cunhocientiacutefico e filosoacutefico sofreu

marcadas influecircncias de Galileu Galilei (1564-1642) Francis Bacon (1561-1626)Reneacute

Descartes (1596-1650) e de Isaac Newton (1642-1727) e guiaram as accedilotildees dos

sujeitos na civilizaccedilatildeoocidental

De acordo com Perez Filho(2003) Galileu foi quem primeiro descreveu a

Natureza em uma linguagem fiacutesico-matemaacutetica No seacuteculo XVI estabeleceu

matematicamente a Lei dos Corpos em seu manuscrito De MotuAfirma Gruumln (2002)

que a qualidade dos os objetos para Galileu natildeo eram semelhantes e sim diferentes

sendo elas primaacuterias e secundaacuterias As primaacuterias satildeo concretas e natildeo estatildeo

diretamente relacionadas ao pensamento As secundaacuterias por serem subjetivas estatildeo

ligadas a sensibilidade Galileu achava que a experimentaccedilatildeo era fundamental para a

comprovaccedilatildeo (MORAES 1997) assim determinava a importacircncia da quantificaccedilatildeo

dos fenocircmenos

Para Francis Bacon de acordo com Moraes (1997) a experiecircncia nos conduz

ao correto e exato conhecimento dos fenocircmenos logo o empirismo e sua loacutegica

dedutiva criados por Bacon trouxeram uma nova metodologia baseada na

experimentaccedilatildeo cientiacutefica Nesse sentido rompe com o antigo modo de pensamentoe

fortalece a superioridade do Homem em relaccedilatildeo agrave Natureza (GRUumlN 2002)

Diferentemente de Bacon para Descartes o conhecimentoeacute obtido a partir da

intuiccedilatildeo e da deduccedilatildeo anatureza humana tem suaessecircnciano pensamento e de a

verdade estaacute nas coisas que concebemos de forma clara e distintaA obra Discurso

do Meacutetodo apresenta a divisatildeo dopensamento e dos fenocircmenos em infinitas partes

sendo que a disposiccedilatildeo delas ocorre a partir de uma sequecircncia loacutegicaNa visatildeo

cartesiana a ecircnfase nas partes em detrimento do todo caracteriza a divisibilidade do

objeto que eacute compartimentado em partes infinitas (DESCARTES 1996)

Na referida obra Descartes assinala a oposiccedilatildeo entre homem-natureza na

qual o homem passa definitivamente a ser visto como centro do mundo e um sujeito

superior agrave Naturezasujeito-objeto mente-corpo e espiacuterito-mateacuteria bem como o

25

caraacuteter pragmaacutetico do conhecimento como recurso infinito e ilimitado no domiacutenio dos

processos afirma o autor ldquo[] conhecimentos que sejam uacuteteis agrave vida em vez dessa

filosofia especulativa que se ensina nas escolas []rdquo (DESCARTES 1996 p 69)

Isaac Newton dando continuidade ao pensamento de Descartes sedimentou

a visatildeo de mundo como uma maacutequina governada por leis imutaacuteveis fortalecendo

desta forma o paradigma mecanicista Para o fiacutesico o mundo considerado

umsistema mecacircnico pode ser descrito objetivamenteo que levou a descriccedilatildeo objetiva

da Natureza como o ideal para a ciecircncia (MORAES 1996)

Dentre os pressupostos do pensamento cartesiano-newtoniano estaacute a divisatildeo

e a modelagem do fenocircmeno em estudo em diversas partes para compreendecirc-lo Esta

forma de conceber a ciecircncia vai ao encontro dos interesses do capital que o utiliza

para organizaccedilatildeo da sociedade burguesa Outro fator de relevacircncia para o avanccedilo da

ciecircncia moderna na concepccedilatildeo de Ribeiro (2007 p 58) foi o movimento iluminista

na Europa que

[] em meados doseacuteculo XVIII reforccedilou o pensamento cartesiano-newtonianoOs iluministas consideram que o Homem eacute um ser dotado de razatildeo e que essedeveria se emancipar atraveacutes do seu saber O Iluminismo expurga os resquiacutecios religiosos medievais e autentica a visatildeoantropocecircntrica e pragmaacutetica no imaginaacuterio cultural e no universo ideoloacutegico apartir do momento em que haacute uma transposiccedilatildeo agraves regras loacutegico-formais daperspectiva mecanicista das ciecircncias naturais para as ciecircncias humanasculminando no movimento conhecido como positivismo

Nesse intento o que natildeo se pode transformar em nuacutemeros eacutedesconsiderado

pelo positivismo moderno e o conhecimento que natildeo tem utilidade e tambeacutem natildeo pode

ser calculado eacute descartado pela visatildeo iluminista Desta maneira soacute pode ser

considerado verdadeiro aquilo que eacutequantitativamente medido

Desta maneira a quantificaccedilatildeo dos fenocircmenos pelo emprego rigoroso de

mediccedilotildees se consolidou sem levar em consideraccedilatildeo as qualidades do objeto pois o

objetivo era quantificar e reduzir a complexidade do mundo por meio da divisatildeo

classificaccedilatildeo e posterior determinaccedilatildeo de relaccedilotildees entre o que foi separado Assim o

conhecimento eacute validado se for dirigido pelos preceitos dessa racionalidade cientiacutefica

Para Santos (2008) o paradigma moderno estabelece a separaccedilatildeo entre o que eacute

cientiacutefico e que eacute senso comum separa natureza e humanidade natildeo aceita como

vaacutelidas o conhecimento oriundo das experiecircnciascotidianas

Desta forma a ciecircncia moderna elabora as leis a partir de uma visatildeo do

conhecimento cientiacutefico como causal e que guiam as pesquisas nas ciecircncias naturais

26

e sociais de acordo com os preceitos mecanicistas baseados na seguranccedila

previsibilidade ordem e estabilidade

Esse paradigma das ciecircncias naturais foi aplicado tambeacutem nas ciecircncias sociais

emergentes pois ldquotal como foi possiacutevel descobrir as leis da natureza seria igualmente

possiacutevel descobrir as leis da sociedaderdquo (SANTOS 2008 p 45) Tornando-se

hegemocircnico e negando as outras formas de conhecimento que natildeo se guiam

pelosseus princiacutepios epistemoloacutegicos Segundo o autor as pesquisas na aacuterea das

ciecircncias sociais no seacuteculo XIX abrangem duas vertentes A primeira com a aplicaccedilatildeo

da metodologia das ciecircncias da natureza dentre os seus percussores estaacute Durkheim

que concebia as ciecircncias sociais como parte das naturais A segunda preconizava

uma epistemologia e metodologia de acordo com o objeto de estudo das ciecircncias

sociais teve como principais representantes Max Weber e Peter WinchPara Santos

(2010)as duas correntes estavam atreladas ao paradigma da ciecircncia moderna por

mais que a segunda representasse a crise e inicio da transiccedilatildeo para outro paradigma

cientiacutefico

112 A crise do paradigma hegemocircnico

Apenas no desenrolar do seacuteculo XX a soberania da ciecircncia moderna comeccedila a

ser coloca em discussatildeo afirma Santos (2008) que o questionamento da soberania

epistemoloacutegica hegemocircnica fruto da sua crise traz no seu interior o paradigma

emergente

Paradoxalmente eacute o avanccedilo da ciecircncia moderna que a levaraacute a sua crise

[hellip] a identificaccedilatildeo dos limites das insuficiecircncias estruturais do paradigmacientiacutefico moderno eacute o resultado do grande avanccedilo no conhecimento que elepropiciou O aprofundamento do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda (SANTOS 2008 p 41)

Segundo Santos (2008)esta crise profunda e irreversiacutevel foi paulatinamente

gerada por diversas condiccedilotildees teoacutericas e sociais Dentre as teoacutericas estatildeo ateoria da

relatividade de Einsteinque relativizou as leis de Newton a mecacircnica quacircntica os

questionamentos da matemaacutetica e os avanccedilos tecnoloacutegicos da microfiacutesica quiacutemica e

biologia Em relaccedilatildeo agrave mecacircnica quacircntica para Santos (2008) natildeo eacute possiacutevel natildeo

interferi no objeto de investigaccedilatildeo mesmo quando estamos observando-o ou

quantificando-o Desta maneira o limite do conhecimento torna-se evidente

mostrando que as leis da fiacutesica satildeo meramente probabiliacutesticaso que demonstra a

inviabilidade do determinismo mecanicista fica evidente que ldquoa totalidade do real natildeo

27

se reduz agrave soma das partes e a distinccedilatildeo entre o sujeito e o objeto eacute complexardquo (idem

p 56)

Outro fator que evidencia a crise deste paradigma eacute a possibilidade de

formulaccedilatildeo de proposiccedilotildees que natildeo podem ser demonstradas muito menos refutadas

pela medicaccedilatildeo e quantificaccedilatildeo A teoria de Ilya Prigogine vem revolucionar a

concepccedilatildeo de mateacuteria e de natureza contribuindo para o avanccedilo cientifico da

microfiacutesica da quiacutemica e da biologia

Segundo Morin (2003) os princiacutepios do paradigma hegemocircnico se tornaram

cada vez mais cegos ldquoo princiacutepio de ordem que o determinismo absoluto traduzia natildeo

reina mais no universo O princiacutepio da separabilidade ou disjunccedilatildeo encontrou seus

limites em qualquer acepccedilatildeo teoacutericardquo (2003 p 43) Em relaccedilatildeo ao objeto o referido

autor destaca que o seu isolamento do contexto no qual se encontra e a sua inclusatildeo

num ambiente artificial perde a validade para tudo que eacute vivo A induccedilatildeo e a deduccedilatildeo

demonstraram seus limites assim como a contradiccedilatildeo natildeo sinaliza mais o erro o que

caracteriza a emergecircncia de um novo tipo de verdade

Deste modo para Morin (2010) a impossibilidade de uma visatildeo global do

fenocircmeno dar-se-ia pela disjunccedilatildeo e pela reduccedilatildeo que constituem uma ignoracircncia do

pensamento

A ciecircncia claacutessica havia dissolvido o Cosmo a Natureza e o Sujeito Humano O Cosmos poreacutem ressuscitou a partir de uma cosmologia oriunda da descoberta da expansatildeo do universo A Natureza ressuscitou com a ciecircncia ecoloacutegica Se o sujeito foi expulso da ciecircncia objetiva o retorno do sujeito eacute indispensaacutevel isso porque o objeto do conhecimento eacute coproduzido por nossas projeccedilotildees mentais sobre a realidade exterior e pela introduccedilatildeo via traduccedilatildeo e reconstruccedilatildeo dessa realidade exterior em nossa mente (MORIN 2010 p 244)

No que concerne agraves possiblidades de uma visatildeo global Santos (2008) defende

a transdisciplinaridade que abrange conjuntamente as ciecircncias da natureza e as

sociais que vai de encontro ao modelo mecanicista linear da ciecircncia moderna O

questionamento das leis da natureza faz parte da crise do paradigma dominante

dentre elas a ideia de que os fenocircmenos observados independem de tudopara Santos

(2008) as leis da ciecircncia moderna simplificam de forma arbitraria a realidade

Dentre as condiccedilotildees sociais que contribuiacuteram para a crise do paradigma

moderno destaca a industrializaccedilatildeo da ciecircncia e o seu compromisso com o poder

econocircmico social e poliacutetico os quais passaram a definir as prioridades cientiacuteficas as

relaccedilotildees de poder autoritaacuterias e desiguais entre os cientistas a proletarizaccedilatildeo no

interior dos laboratoacuterios e centros de estudos o acesso aos equipamentos

28

contribuindo para o aprofundamento do fosso cientiacutefico entre paiacuteses centrais e paiacuteses

perifeacutericos (SANTOS2008)

113 O Conhecimento Prudente para uma Vida Decente

Contrapondo-se ao paradigma da ciecircncia moderna em 1987 na obra Um

discurso sobre as ciecircncias Santos (2008) apresenta um novo paradigma que

denominou de ldquoum conhecimento prudente para uma vida decenterdquo que natildeo eacute

somente cientiacutefico mas tambeacutem um paradigma social Quatro teses satildeo defendidas

pelo autor para justificaacute-lo Na primeira afirma que todo conhecimento cientiacutefico-

natural eacute cientiacutefico-social aglutinando desta maneira as ciecircncias naturais e as

ciecircncias sociais com ecircnfase na segunda

[hellip] trata-se de saber qual seraacute o lsquoparacircmetro de ordemrsquo segundo Haken ou o lsquoatractorrsquo segundo Prigogine dessa superaccedilatildeo se as ciecircncias naturais se as ciecircncias sociais [hellip] Para natildeo irmos mais longe quer a teoria das estruturas dissipativas de Prigogine quer a teoria sinergeacutetica de Haken explica o comportamento das partiacuteculas atraveacutes dos conceitos de revoluccedilatildeo social violecircncia escravatura dominaccedilatildeo democracia nuclear todos eles originaacuterios das ciecircncias sociais [hellip] (SANTOS 2010 p 40-41)

Assim o autor esclarece que a superaccedilatildeo da dicotomia entre ciecircncias naturais

e sociais ocorreraacute com a preponderacircncia das ciecircncias sociais a valorizaccedilatildeo dos

estudos humaniacutesticos a rejeiccedilatildeo dos preceitos do positivismoo fim dahierarquia entre

os tipos de conhecimentos O sujeito nesta tese estaacute como protagonista do

conhecimento

Na tese ldquotodo conhecimento eacute local e totalrdquo o conhecimento poacutes-moderno

caracteriza-se pela pluralidade metodoloacutegica interdisciplinaridade

etransdisciplinaridade envolvendo as diversas ciecircncias Assim Santos (2010 p

46)exemplifica ldquoo direito que reduziu a complexidade da juriacutedica agrave secura da

dogmaacutetica redescobre o mundo filosoacutefico e socioloacutegico em busca da prudecircncia

perdidardquo A ampliaccedilatildeo da medicina com um o olhar mais abrangente jaacute que ldquoa

hiperespecializaccedilatildeo do saber meacutedico transformou o doente numa quadriacutecula sem

sentidordquo (Idem p 46) A divisatildeo do conhecimento que passa de disciplinar para ser

temaacutetica ldquoOstemas satildeo galerias por onde os conhecimentos progridem ao encontro

uns dos outrosrdquo (SANTOS 2010 p 76) Temas que satildeo gerados e adotados pelos

grupos sociais e assim tornam-se projetos de vida locais

Na terceira tese o autor explica que ldquotodo conhecimento eacute autoconhecimentordquo

Deixa claro a ligaccedilatildeo entre sujeito e objeto poisno ato de produccedilatildeo do conhecimento

as trajetoacuterias de vida os valores e crenccedilas do pesquisador estatildeo presentes Desta

29

forma ldquoo caraacuteter autobiograacutefico e auto referenciaacutevel da ciecircncia eacute plenamente

assumidordquo(SANTOS 2010 p 83) Assim o objeto passa a ser uma extensatildeo do

sujeito implicando que em uma pesquisa seja adquirido conhecimento sobre o objeto

e sobre o proacuteprio sujeito

Na uacuteltima tese Santos (2010) afirma que ldquotodo conhecimento cientiacutefico visa

constituir-se em senso comumrdquo O autor destaca que a conversatildeo do conhecimento

cientiacutefico poacutes-moderno em senso comum possibilitaraacute a sua valorizaccedilatildeo e o seu

reconhecimento

A ciecircncia poacutes-moderna ao sensocomunizar-se natildeo despreza o conhecimentoque produz tecnologia mas entende que tal como o conhecimentose deve traduzir em autoconhecimento o desenvolvimento tecnoloacutegico devetraduzir-se em sabedoria de vida Eacute esta que assinala o marco da prudecircnciaagrave nossa aventura cientiacutefica (SANTOS 2010 p 91)

As quatro teses defendidassuscitam novas formas de racionalidades

sustentadasem vertentes holiacutesticas Inter e transdisciplinar Em uma reflexatildeo criacutetica

feita apoacutes duas deacutecadas da publicaccedilatildeo do Discurso sobre as Ciecircncias11 o autor

destaca que nas transiccedilotildees as mudanccedilas no paradigma dominante satildeo mais

evidentes que aemergecircncia de um novo paradigmaLevanta a hipoacutetese de que ldquoo

paradigma emergente seja de facto um conjunto de paradigmas ou seja a

coexistecircncia de uma pluralidade de epistemologias irredutiacuteveis a uma epistemologia

geralrdquo (SANTOS 2007 p 2)

Os conhecimentos que satildeo elaborados e reelaborados pelos ribeirinhos na

Amazocircnia que orientam as suas accedilotildees sociais culturais econocircmicas e religiosas

fazem parte destas epistemologias que dialogam de forma vertical ou horizontal

Verticalmente quando natildeo satildeo reconhecidos como vaacutelidos neste caso a

epistemologia dominante eacute imposta como a uacutenica maneira de conceber o mundo

Horizontalmente quando haacute o reconhecimento e a valorizaccedilatildeo desse saber eacute o

queSantos (2007) chama de conhecimento prudente poisbrotados diaacutelogos e das

constelaccedilotildees de saberes que permitem construir enquantoque as epistemologias

dominantes impossibilitam a comunicaccedilatildeo entre os conhecimentos pois ldquoO importante

eacute salientar a incompletude de todos os conhecimentos e o potencialque existe nos

diaacutelogos entre eles []rdquo (SANTOS 2012 p 3)

11Em torno de um novo paradigma soacutecio-epistemoloacutegico Manuel Tavares conversa com Boaventura de Sousa Santos Revista Lusoacutefona de Educaccedilatildeo Lisboa n10 p131-140 2007

30

O mundo segundo o autor eacute um arco-iacuteris policromaacutetico com diversidades de

culturas que produzem infinitas epistemologias daiacute a importacircncia de torna-las visiacuteveis

Eacute o que pretendemos nesta tese ao dar visibilidade aos saberes dos povos das

aacuteguas12 ao trazecirc-los para a reflexatildeo e problematizaccedilatildeo demonstrar que tais saberes

possuem uma racionalidade e uma loacutegica proacutepria de construccedilatildeo (satildeo praacuteticos

construiacutedos e reconstruiacutedos de acordo com as necessidades dos sujeitos)

socializaccedilatildeo (transmitidos por meio da oralidade) e validaccedilatildeo (baseada na utilidade

crenccedila e nos costumes locais) aleacutem de contribuiacuterem para a formaccedilatildeo de identidades

e subjetividades

Ao defender a diversidade epistemoloacutegica Santos (2012) problematiza

questotildees referentes ao colonialismo poacutes-colonialismo e a interculturalidade a partir

da criacutetica agrave razatildeo moderna que abordamos a seguir

114 A criacutetica da razatildeo indolente

A razatildeo indolente segundo Santos (2007) eacute uma racionalidade que norteia

nossa maneira de pensar a forma como concebemos a vida e o mundo bem como a

produccedilatildeo da ciecircncia considerada uma razatildeo uacutenica eurocecircntrica e ocidental

excluindo outras formas de conhecimento A exclusatildeo dar-se-aacute pela natildeo aceitaccedilatildeo da

validade dos conhecimentos alternativos por natildeo terem passado pelos rigores que

requer o conhecimento cientiacutefico O desenvolvimento desta razatildeo afirma o autor deu-

se dentro de contextos que possibilitaram a sua emergecircncia dentre os quais

destacam-se a consolidaccedilatildeo do Estado Liberal na Europa e na Ameacuterica do Norte as

revoluccedilotildees industriais o desenvolvimento capitalista o colonialismo e o imperialismo

A indolecircncia da razatildeo criticada neste ensaio ocorre em quatro formas diferentes a razatildeo impotente aquela que natildeo se exerce porque pensa que nada pode fazer contra uma necessidade concebida como exterior a ela proacutepria a razatildeo arrogante que natildeo sente necessidade de exercer-se porque se imagina incondicionalmente livre e por conseguinte livre da necessidade de demonstrar a sua proacutepria liberdade a razatildeo metoniacutemica que se reivindica como a uacutenica forma de racionalidade e por conseguinte natildeo se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade ou se o faz faacute-lo apenas para tornaacute-los em mateacuteria-prima e a razatildeo proleacuteptica que natildeo se aplica a pensar o futuro porque julga que sabe tudo a respeito dele e o concebe como uma superaccedilatildeo linear automaacutetica e infinita do presente (SANTOS 2002 p 240)

A razatildeo indolente portanto eacute a hegemocircnicade base epistemoloacutegica positivista

que desconsidera outras epistemoloacutegicas assim como exclui toda diversidade

cultural deixando-as na invisibilidade

12 Como satildeo conhecidos os ribeirinhos na Amazocircnia

31

Estermann (2009 p 54) estabelece a diferenccedila entre colonizaccedilatildeo e

colonialismo

Mientras que ldquocolonizacioacutenrdquo es el proceso (imperialista) de ocupacioacuten ydeterminacioacuten externa de territorios pueblos economiacuteas y culturas por partede un poder conquistador que usa medidas militares poliacuteticas econoacutemicasculturales religiosas y eacutetnicas lsquocolonialismorsquo se refiere a la ideologia concomitante que justifica y hasta legitima el orden asimeacutetrico y hegemoacutenicoestablecido por el poder colonial

Desta forma o colonizador impocircs a todos os povos a sua cultura os seus

modos de ver o mundo o seu conhecimento a sua epistemologia universalizando-os

e absolutizando-os assim moldou e formatou consciecircncias colonizou o pensamento

por meio de uma uacutenica loacutegica a eurocecircntrica

Corroborando com esta visatildeo Santos (2014 p 28) afirma que ldquo[] o fim do

colonialismo enquanto relaccedilatildeo poliacutetica natildeo acarretou o fim do colonialismo enquanto

relaccedilatildeo social enquanto mentalidade e forma de sociabilidade autoritaacuteria e

discriminatoacuteria []rdquo As contradiccedilotildees geradas pelo colonialismo ainda estatildeo presentes

e se manifestam na cultura no racismo no autoritarismo nas relaccedilotildees sociais e

dominam as relaccedilotildees internacionais

Mas segundo o autor eacute no vieacutes epistemoloacutegico que o colonialismo assume

maior centralidade por meio da imposiccedilatildeo do conhecimento hegemocircnico o que

caracteriza uma perspectiva redutora do conhecimento que impede o surgimento de

outras perspectivas epistemoloacutegicas

O colonialismo para aleacutem de todas as dominaccedilotildees por que eacute conhecido foi tambeacutem uma dominaccedilatildeo epistemoloacutegica uma relaccedilatildeo extremamente desigual de saber-poder que conduziu agrave supressatildeo de muitas formas de saber proacuteprias dos povos e naccedilotildees colonizados relegando muitos outros saberes para um espaccedilo de subalternidade (SANTOS MENESES 2010 p 11)

Efetivamente o conhecimento tornou-se um instrumento imperial de

colonizaccedilatildeo Desta maneira uma das tarefas necessaacuterias segundo Quijano (1994) e

Mignolo (2003) eacute a de descolonizar o conhecimento o que requer descolonizar a

loacutegica e o modelo de racionalidade excludente ldquodescolonizar o imaginaacuterio

reprogramar o pensamento no sentido de desmantelar a matriz colonial do poderrdquo

(MIGNOLO 2003 p12) reconhecendo que em outros lugares tambeacutemocorre

manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas

Para Santos (2010) o motivo da preponderacircncia da razatildeo indolente estaacute na

supressatildeo da diversidade epistemoloacutegica dos outros povos pela exclusatildeo e

32

silenciamento de toda riqueza presente na diversidade cultural que natildeo atenda aos

interesses do capitalismo fato que ocorreu por meio da dominaccedilatildeo politica

econocircmica e militar nas sociedades colonizadas Balandier (1995) acrescenta a accedilatildeo

missionaacuteria tambeacutem como forma de dominaccedilatildeo ideoloacutegica O problema da dominaccedilatildeo

colonial foi analisado por Gruzinski (2003) a partir do que ficou oculto do que se

passou na esfera do invisiacutevel da mentalidade que resultou na colonizaccedilatildeo do

imaginaacuterio e construiu a maneira atraveacutes da qual os povos colonizados veem o mundo

e a si mesmos

O rompimento desta hegemonia requer ldquomudanccedilas profundas na estruturaccedilatildeo

dos conhecimentos para isso eacute necessaacuterio comeccedilar por mudar a razatildeo que preside

tanto aos conhecimentos como a estruturaccedilatildeo delesrdquo (SANTOS 2002 p 241) O

propoacutesito desta pesquisa eacute exatamente contribuir para este desafio por meio do

reconhecimento de outras racionalidades que estruturam os conhecimentos locais a

partir de pressupostos voltados para as questotildees culturais sociais e religiosas natildeo

somente as econocircmicas

Aponta o citado autor as consequecircncias dessa monocultura do saber assim

como a possibilidade de outras epistemologias em outros lugares onde existem

manifestaccedilotildees e epistemologias proacuteprias denominadas de epistemologias do sul

Trata-se do conjunto de intervenccedilotildees epistemoloacutegicas que denunciam asupressatildeo dos saberes levada a cabo ao longo dos uacuteltimos seacuteculos pelanorma epistemoloacutegica dominante valorizam os saberes que resistiram comecircxito e as reflexotildees que estes tecircm produzido e investigam as condiccedilotildees deum diaacutelogo horizontal entre conhecimentos A esse diaacutelogo entre sabereschamamos ecologias de saberes (SANTOS MENESES 2010 p 7)

Toda essa diversidade que caracteriza as epistemologias do sul foi omitida

pela dominaccedilatildeo capitalista do mundo Para o autor as epistemologias satildeo geradas

nas relaccedilotildees sociais por isso todo conhecimento eacute fruto da relaccedilatildeo entre sujeitos

situados num contexto histoacuterico politico e cultural Desta forma o criteacuterio de validade

do conhecimento deve estaacute ligado a sua contextualidade Assim as experiecircncias

sociais englobam uma gama de conhecimentos com seus criteacuterios de validade

individual sendo instituiacutedos por conhecimentos rivais (SANTOS2008)

Conclui-se entatildeo que se produz e reproduz conhecimento a partir da

experiecircncia social por meio de diversas epistemologias eacute o que ocorre nas

comunidades ribeirinhas na Amazocircnia nas quais os sujeitos em muacutetua interaccedilatildeo

produzem e reproduzem saberes nas suas praacuteticas sociais Assim a proposta do

33

autor eacute dar visibilidade aos conhecimentos construiacutedos nas diversas praacuteticas sociais

e que foram excluiacutedos pelo exclusivismo da ciecircncia moderna

O conceito de Sul natildeo eacute geograacutefico eacute ldquoo sul anti-imperial anti-patriarcal anti-

colonial eacute esse sul que se transforma numa experiecircncia fundadora de uma proposta

mitoloacutegica que obviamente se parte do sofrimento soacute tem um objetivo que eacute atacar

as causas desse sofrimentordquo (SANTOS 2008 p 24) Portanto a metaacutefora do

sofrimento humano fruto do capitalismo eacute que o caracteriza Aprender com o Sul

requer um rompimento com o Norte imperial

[] Mas admito que o Sul eacute ele proacuteprio um produto do impeacuterio e por isso a

aprendizagem com o Sul exige igualmente a desfamiliarizaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao

Sul imperial ou seja em relaccedilatildeo a tudo que no Sul eacute o resultado da relaccedilatildeo

colonial capitalista (SANTOS 2008 p 33)

Neste sentido o aprender com o Sul requer a descolonizaccedilatildeo das nossas

mentes que foram colonizadas pelo Norte desta maneira poderemos eliminar os

restiacutecios deixados pelo colonizador assim soacute se aprende com o Sul ldquo[] na medida

em que se contribui para a sua eliminaccedilatildeo enquanto produto do impeacuteriordquo (SANTOS

2008 p 33) Isto pede o reconhecimento da diversidade e a afirmaccedilatildeo das diferenccedilas

bem com o combate da visatildeo segundo Tavares (2014 p 1) de ldquoum saber

institucionalizado no Ocidente a um repositoacuterio axioloacutegico esteacutetico e cognitivo que foi

produzido pela humanidade e que se auto define como universalrdquo

Essa racionalidade tem grande influecircncia na nossa forma de pensar ler e ver

o mundo por isso a leitura que fazemos da realidade estaacute imbricada por uma razatildeo

que direciona o nosso olhar que natildeo nos possibilita vislumbrar a riqueza

epistemoloacutegica presente no entorno Esta visatildeo unilateral monocultural eacute produzida

de acordo com Santos (2007) pela razatildeo indolente que se manifesta principalmente

por meio de duas razotildees a metoniacutemica e a proleacuteptica

Segundo o autor a razatildeo metoniacutemica eacute uma figura da teoria literaacuteria e da

retoacuterica que significa tomar a parte pelo todo ldquoE essa eacute uma racionalidade que

facilmente toma a parte pelo todo porque tem um conceito de totalidade feito de partes

homogecircneas e nada do que fica fora dessa totalidade interessardquo (SANTOS 2008 p

25) Onatildeo existente eacute o que estaacute fora desta totalidade para isso faz-se a contraccedilatildeo

do presente ldquoporque deixa de fora muita realidade muita experiecircncia e ao deixaacute-las

de fora ao tornaacute-las invisiacuteveis desperdiccedila a experiecircnciardquo(idem p 26) As experiecircncias

cotidianas por natildeo estarem atreladas a esta razatildeo impossibilitam outras leituras do

mundo que diferem da hegemocircnica

34

Esse reducionismo eacute gerado por ideias alicerccediladas na simetria dicotocircmica e a

hierarquia que impossibilitam visotildees mais abrangentes do tempo presente e assim

acabam por limitar condicionar e ate mesmo inviabilizar o conhecimento das demais

experiecircncias

[] Entatildeo a razatildeo metoniacutemica tem essa dupla ideia das dicotomias e das hierarquias por isso natildeo eacute possiacutevel pensar fora das totalidades natildeo posso pensar no sul sem o norte a mulher sem o homem natildeo posso pensar o escravo sem o amo Mas o que devemos inquirir eacute que se nessas realidades natildeo haacute coisas que estatildeo fora dessa totalidade o que haacute na mulher que natildeo depende da relaccedilatildeo com o homem [] ou seja pensar fora da totalidade [] (SANTOS 2007 p 28)

Assim a compreensatildeo do mundo vai aleacutem da visatildeo eurocecircntrica haacute outras

maneiras de enxergar o mundo que transcende a razatildeo metoniacutemica na qual as partes

satildeo pensadas em relaccedilatildeo direta com a totalidade Para pensar fora dessa totalidade

que eacute homogecircnea e excludente o autor propotildee a sociologia das ausecircncias que eacute

ldquouma sociologia insurgente para tentar mostrar que o que natildeo existe eacute produzido como

natildeo existente invisiacutevel agrave realidade hegemocircnica do mundordquo (idem p 30) O que eacute

ausente eacute produzido propositalmente para reduzir a realidade ao que existe As

ausecircncias satildeo produzidas afirma Santos (2008) a partir de cinco monoculturas do

saber e do rigor do tempo linear da naturalizaccedilatildeo das diferenccedilas da escala

dominante e a do produtivismo capitalista

Na primeira monocultura a do saber e do rigor os conhecimentos populares

natildeo satildeo visibilizados porque natildeo passam pelos rigores da ciecircncia positivista

reconhecido como uacutenico criteacuterio de validaccedilatildeo portanto as praacuteticas sociais alicerccediladas

nesses saberes dentre elas as dos ribeirinhos natildeo existem agrave luz da ciecircncia ocidental

Isso gera o que Santos (2007) denomina de epistemiciacutedio a morte de conhecimentos

que natildeo se encaixam nos rigores do meacutetodo cientifico Esses saberes satildeo

invisibilizados subalternizados natildeo sendo aceitos como diferentes maneiras de ver

ler e interpretar o mundo e que estatildeo ligadas agrave histoacuteria e a cultura dos diferentes

povos Desta maneiranatildeo faz sentido dizer que esses conhecimentos natildeo satildeo

cientiacuteficos pois para o autor satildeo outras maneiras de fazer ciecircncia dentro de um

contexto simboacutelico de que fazem parte os saberes da maioria da populaccedilatildeo

marginalizada pela ciecircncia eurocecircntrica O saber popular neste estudo os das

populaccedilotildees ribeirinhas tem seus proacuteprios criteacuterios de validaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo Ao levar

seus filhos que foram acometidos por doenccedilas causadas por seres encantados para

35

o benzedor benzecirc-los a crenccedila no poder de cura emanado pelo curandeiro eacute o criteacuterio

de validaccedilatildeo do seu saber

A monocultura do tempo linear estaacute relacionada ao capitalismo Como assegura

Santos (2002 p 243) ldquoa razatildeo metoniacutemica eacute juntamente com a razatildeo proleacuteptica a

resposta do Ocidente apostado na transformaccedilatildeo capitalista do mundordquo pois tem

como foco o desenvolvimento e a mercantilizaccedilatildeo Nessa oacutetica os paiacuteses menos

desenvolvidos satildeo inferiorizados e estigmatizados como preacute-modernos primitivos

selvagens dentre outros adjetivos que os tornam inferiores Por natildeo se incluiacuterem

totalmente dentro desta loacutegica capitalista os ribeirinhos satildeo tachados de preguiccedilosos

e demais adjetivos pejorativos

Em relaccedilatildeo agrave mercantilizaccedilatildeo o que predomina eacute o tempo linear como

referencia agrave produccedilatildeo e circulaccedilatildeo de mercadorias As diversas formas de

organizaccedilatildeo temporal que envolve outros mundos que vatildeo aleacutem do terreno natildeo satildeo

reconhecidas o que prevalece eacute a linearidade com presente passado e futuro Com

isso o tempo das mareacutes que predomina na Amazocircnia Ribeirinha o mundo dos seres

encantados que povoam os rios e as florestas satildeo invisibilizados

A divisatildeo da populaccedilatildeo nas categorias de raccedila sexo e eacutetnica satildeo maneiras de

naturalizar as diferenccedilas e justificar as hierarquias Para o autor as hierarquias natildeo

satildeo causa das diferenccedilas mas suas consequecircncias Desta maneira as diferenccedilas

satildeo veladas e naturalizadas a partir de uma escala baseada na inferiorizaccedilatildeo do que

difere do padratildeo dominante

A monocultura da escala dominante que eacute mais uma maneira de produzir as

ausecircncias parte do princiacutepio de que ldquoo global e universal eacute hegemocircnico o particular

e o local natildeo conta eacute invisiacutevel descartaacutevel despreziacutevelrdquo (SANTOS 2007 p 31) Em

decorrecircncia disso os saberes natildeo hegemocircnicos satildeo tidos como locais portanto

inferiores O considerado universal eacute valido em qualquer contexto por isso que o

hegemocircnico eacute dominante independente do lugar daiacute a predominacircncia no curriacuteculo

escolar de somente uma forma de conhecimento e a natildeo aceitaccedilatildeo por parte de

alguns professores da inclusatildeo dos saberes locais na sua praacutetica pedagoacutegica fruto

de um processo de formaccedilatildeo profissional colonizadora

No tocante agrave monocultura do produtivismo capitalista o autor afirma que pode

ser empregada para o trabalho e para a natureza A utilizaccedilatildeo das novas tecnologias

satildeo as bases para a organizaccedilatildeo da produtividade a partir da loacutegica hegemocircnica

capitalista As outras loacutegicas de produccedilatildeo dentre elas as dos povos das aacuteguas satildeo

36

consideradas improdutivas Dessa maneira satildeo produzidas as cinco formas de

ausecircncias ldquoo ignorante o residual o inferior o local e particular e o

improdutivordquo(SANTOS 2007 p 32) que satildeo contrapostas a formas universais e

globalmente reconhecidas o cientiacutefico o avanccedilado o superior o global e o produtivo

Tais monoculturas satildeo responsaacuteveis pela produccedilatildeo das ausecircncias suprimindo

as demais experiecircncias vivecircncias e conhecimentos que foram e satildeo historicamente

invisibilizados Com o objetivo de tornar presente o que estaacute ausente e dar visibilidade

agraves experiecircncias o autor propotildee a substituiccedilatildeo das monoculturas pelas ecologias

consideradas ldquoa praacutetica de agregaccedilatildeo da diversidade pela promoccedilatildeo de interaccedilotildees

sustentaacuteveis entre entidades parciais e heterogecircneasrdquo (SANTOS 2008 p 105) Satildeo

cinco as ecologias dos saberes13 das temporalidades do reconhecimento da

transescala e das produtividades

A ecologia das temporalidades parte do princiacutepio de que aleacutem do tempo linear

existem outras formas de organizaccedilatildeo temporal Na Amazocircnia Ribeirinha por

exemplo o tempo das aulas em algumas comunidades eacute regido pelas mareacutes a

derrubada e a plantaccedilatildeo das roccedilas nas comunidades camponesas dependem das

estaccedilotildees do ano no veratildeo satildeo feitas as derrubadas e a limpeza da aacuterea onde seraacute

plantada a mandioca no inverno eacute realizada a plantaccedilatildeo por causa das chuvas que

possibilitam o crescimento das manivas14 Em certas comunidades indiacutegenas a

presenccedila concomitante de espiacuteritos da mata e das aacuteguas juntamente com os seres

vivos eacute constante a relaccedilatildeo com esses entes ocorre de maneira que para entrar em

determinadas horas na mata ou no rio faz-se necessaacuterio pedir licenccedila e solicitar que

nos acompanhem durante a caminhada na mata ou remada pelo rio no sentido de

proteccedilatildeo contra os possiacuteveis males Essas loacutegicas precisam ser reconhecidas eacute o

jeito amazocircnida de ser e de lidar com o tempo que vai aleacutem da linearidade Como

afirma Santos (2007 p 34) ldquose vou reduzir tudo a temporalidade linear estou

afastando todas as outras coisas que tem uma loacutegica distinta da minhardquo

No tocante agrave ecologia do reconhecimento que se refere agrave produccedilatildeo das

desigualdades faz-se necessaacuterio a descolonizaccedilatildeo das mentes que foram

colonizadas com a imposiccedilatildeo de valores e estereoacutetipos gerados por meio da

categorizaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo da populaccedilatildeo tendo como referencia as diferenccedilas

13 Abordaremos numa seccedilatildeo especiacutefica a ecologia de saberes por ser objeto de estudo do nosso trabalho 14 Nome dado ao caule do peacute de mandioca o qual cortado em pedaccedilos eacute usado no plantio

37

sexuais culturais raciais sociais etc Nesse intento a ecologia proposta ldquo[] procura

uma nova articulaccedilatildeo entre o princiacutepio da igualdade e o princiacutepio da diferenccedila abrindo

espaccedilo para a possibilidade de diferenccedilas iguais ndash uma ecologia de diferenccedilas feita

de reconhecimentos reciacuteprocosrdquo (SANTOS 2008 p 110) Nesta ecologia a

pluralidade e a diversidade como parte do reconhecimento dos direitos humanos eacute

ressaltada Assim ldquoTemos o direito a ser iguais quando a diferenccedila nos inferioriza

temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracterizardquo (SANTOS

1997 p 31)

Para ir aleacutem da escala dominante eacute proposta a ecologia da transescala que

parte da integraccedilatildeo do local do nacional e do global nos projetos contra hegemocircnicos

como estrateacutegia de combate a globalizaccedilatildeo ldquoatraveacutes destas ligaccedilotildees as formaccedilotildees

locais desligam-se da seacuterie inerte de impactos globais e religam-se como pontos de

resistecircncia e geraccedilatildeo de globalizaccedilatildeo alternativardquo(SANTOS 2008 p 113) Algumas

experiecircncias jaacute foram e estatildeo sendo desenvolvidas por movimentos sociais com

atuaccedilatildeo local e que se expandiram a niacutevel nacional e mundial como frente de luta

contra a exclusatildeo social

Em oposiccedilatildeo agrave monocultura do produtivismo capitalista eacute apresentada a

ecologia das produtividades que consistem no

[] acircmbito das alternativas que engloba desde microiniciativas levadas a cabo por grupos sociais marginalizados do Sul global procurando reconquistar algum controle das suas vidas e bens ateacute propostas para uma coordenaccedilatildeo econocircmica e juriacutedica de acircmbito internacional destinada a garantir o respeito por padrotildees baacutesicos de trabalho decente e de proteccedilatildeo ambiental novas formas de controle do capital financeiro global bem como tentativas de construccedilatildeo de economias regionais baseadas em princiacutepios de cooperaccedilatildeo e solidariedade (SANTOS 2008 p114)

A concepccedilatildeo abrangente de economia estaacute no bojo destas iniciativas pois

abarcam valores organizacionais e poliacuteticos que vatildeo de encontro ao capitalismo

global tais como questotildees relacionadas agrave sustentabilidade ambiental participaccedilatildeo

democraacutetica aleacutem da equidade social racial eacutetnica e cultural Eacute a favor dessa

equidade que precisamos romper com as visotildees estereotipadas que persistem em

relaccedilatildeo aos homens e mulheres que constituem os povos das aacuteguas da Amazocircnia As

pesquisas realizadas na regiatildeo Amazocircnica vem tornando visiacuteveis as experiecircncias

que satildeo ativamente produzidas por esses sujeitos dentre elas o cuidado com os rios

e a mata no sentido de preservar a biodiversidade para garantia da sobrevivecircncia

Segundo Boaventura o objetivo das diversas ecologias eacute ldquo[] revelar a

diversidade e multiplicidade das praacuteticas sociais e credibilizar esse conjunto por

38

contraposiccedilatildeo agrave credibilidade exclusiva das praacuteticas hegemocircnicasrdquo (2008 p 115) A

seguir abordaremos com mais profundidade a ecologia de saberes por ser nosso

objeto de estudo

115 Ecologia de Saberes o reconhecimento dos saberesnascido das lutas dos

oprimidos

A ecologia de saberes parte do reconhecimento da diversidade epistemoloacutegica

que caracteriza o mundo no qual vivemos e de que a ciecircncia natildeo eacute a uacutenica forma de

explicaccedilatildeo da realidade reconhecendo a existecircncia de outros conhecimentos que

norteiam as praacuteticas sociais e datildeo sentido agrave nossa vida Assim ldquoa ecologia de saberes

eacute um conjunto de epistemologias que partem da possibilidade da diversidade e da

globalizaccedilatildeo contra hegemocircnicas e pretendem contribuir para as credibilizar e

fortalecerrdquo (SANTOS 2008 p154) Fortalecer e credibilizar no intuito de reconhecer

os saberes das populaccedilotildees que foram historicamente invizibilizados e excluiacutedos

dentre eles os dos povos indiacutegenas populaccedilotildees do campo ribeirinhos em suma os

saberes que nasceram da luta dos oprimidos e marginalizados

Portanto natildeo haacute saber maior ou menor mais importante ou menos valioso o

que existe satildeo conhecimentos que explicam a natureza a sociedade e os diversos

fenocircmenos que diferem ou complementam o cientiacutefico Nesse sentido para que

ocorra o diaacutelogo numa perspectiva intercultural pois o diaacutelogo natildeo seraacute somente entre

esses diferentes saberes mas tambeacutem entre culturas diferentes o autor propotildee a

hermenecircutica diatoacutepica15 que natildeo visa atingir

[] a completude ndash objetivo inatingiacutevel ndash mas pelo contraacuterio ampliar ao maacuteximo a consciecircncia de incompletude muacutetua por meio de um diaacutelogo que se desenrola por assim dizer com um peacute numa cultura e outro noutra Nisso reside o seu caraacuteter diatoacutepico (SANTOS 2009 p 15)

Neste sentido a perspectiva intercultural objetiva estimular o diaacutelogo entre os

diferentes saberes e conhecimentos partindo do princiacutepio de que a incompletude eacute o

que os caracteriza Assim os conhecimentos cientiacuteficos natildeo satildeo considerados

superiores e simmais uma forma de expressatildeo epistemoloacutegica A reciprocidade o

respeito e o reconhecimento da diversidade satildeo os alicerces que balizam o diaacutelogo

intercultural

15A hermenecircutica diatoacutepica baseia-se na ideia de que os topoi de uma dada cultura por mais fortes que sejam

satildeo tatildeo incompletos quanto agrave proacutepria cultura a que pertencem Tal incompletude natildeo eacute visiacutevel do interior dessa cultura uma vez que a aspiraccedilatildeo agrave totalidade induz a que se tome a parte pelo todo (SANTOS 2009)

39

Para aprofundarmos a nossa compreensatildeo em relaccedilatildeo agrave perspectiva

intercultural Walsh (2011) estabelece a diferenccedila entre os tipos de interculturalidade

a relacional a funcional e a criacutetica A interculturalidade relacional sempre existiu ao

longo da histoacuteria por meio do encontro entre as culturas mas sem a ocorrecircncia do

diaacutelogo entre elas A interculturalidade funcional existe nas sociedades capitalistas

na qual a multiculturalidade eacute encaixada nas estruturas de dominaccedilatildeo mas nos

discursos oficiais satildeo concebidas como praacuteticas interculturais numa visatildeo neoliberal

E a interculturalidade criacutetica que para a autora eacute indissociaacutevel do processo de

descolonizaccedilatildeo Walsh (2011) afirma que natildeo eacute possiacutevel a interculturalidade criacutetica

sem a dissoluccedilatildeo das estruturas de dominaccedilatildeo nesse sentido enquanto estas

estruturas existirem natildeo seraacute possiacutevel o diaacutelogo entre o saber popular e o saber

dominante ou entre qualquer tipo de saber

A perspectiva da interculturalidade criacutetica proposta por Walsh (2011) difere do

diaacutelogo intercultural apresentado por Santos (2009) na ecologia de saberes Para o

autor o diaacutelogo entre as culturas natildeo requer necessariamente a dissoluccedilatildeo das

estruturas do poder

Segundo Catherine Walsh (2006 p11) a interculturalidade eacute

[] um processo dinacircmico e permanente de relaccedilatildeo comunicaccedilatildeo e aprendizagem entre culturas em condiccedilotildees de respeito legitimidade muacutetua simetria e igualdade Um intercacircmbio que se constroacutei entre pessoas conhecimentos saberes e praacuteticas culturalmente diferentes buscando desenvolver um novo sentido entre elas na sua diferenccedila

Esta concepccedilatildeo de interculturalidade eacute necessaacuteria para a efetivaccedilatildeo da

construccedilatildeo de um pensamento criacutetico pois surge da experiecircncia vivida na

colonialidade parte tambeacutem de um pensamento gerado no Sul e muda os rumos da

geopoliacutetica do conhecimento dominante (WALSH 2006) Segundo a citada autora a

interculturalidadepode contribuir para a construccedilatildeo de sociedades diversificadas por

meio da explicitaccedilatildeoe abertura de espaccedilos conhecimentos e praacuteticas Para Walsh

(2006 p 21)

mais do que um simples conceito de inter-relaccedilatildeo ainterculturalidade assinala e significa processos deconstruccedilatildeo de conhecimentos lsquooutrosrsquo de uma praacuteticapoliacutetica lsquooutrarsquo de um poder social lsquooutrorsquo e de umasociedade lsquooutrarsquo formas diferentes de pensar e atuarem relaccedilatildeo e contra a modernidadecolonialidade umparadigma que eacute pensado atraveacutes da praacutetica poliacutetica

Desta forma a interculturalidade criacutetica reconhece as desigualdades sociais

econocircmicas poliacuteticas e de poder bem como a dominaccedilatildeo em que estamos

40

submetidos pelas condiccedilotildees institucionais Assim no diaacutelogo intercultural numa

perspectiva criacutetica as assimetrias sociais econocircmicas e poliacuteticas sempre estaratildeo

permeando as discussotildees entre pessoas e grupos culturais diversificados sem a

negaccedilatildeo ou sobreposiccedilatildeo de suas diferenccedilas

Corroborando com esta visatildeo Candau (2006) afirma que a interculturalidade

indica a edificaccedilatildeo de sociedades que assumam as diferenccedilas como constitutivas da

democracia bem como a possibilidade de construccedilatildeo de relaccedilotildees igualitaacuterias entre os

diferentes grupos socioculturais que foram historicamente inferiorizados

Na perspectiva da ecologia de saberes Santos (2010) propotildee cinco imperativos

transculturais que precisam ser aceitos pelos grupos sociais e culturais para o diaacutelogo

intercultural O primeiro chama-se Da completude agrave incompletude que eacute o ponto de

partidapara o diaacutelogo e consiste no nosso interesse em conhecer outras culturas

como reflexo da necessidade e do descontentamento com a nossa cultura Assim ldquoA

hermenecircutica diatoacutepica aprofunda agrave medida que progride a incompletude cultural

transformando a consciecircncia inicial de incompletude em grande medida difusa e

pouco articulada numa consciecircncia autorreflexivardquo (p 46)

Jaacute o segundo denominado Das versotildees culturais estreitas agraves versotildees amplas

o referido autor afirma que devemos evidenciar dentro de uma determinada cultura

aquilo que estaacute voltado para o reconhecimento do outro O terceiro De tempos

unilaterais a tempos partilhados o autor assegura que a decisatildeo em estar aberto para

o dialogo cabe a cada grupo cultural

A cultura ocidental durante seacuteculos natildeo teve qualquer disponibilidade para diaacutelogos interculturais mutuamente acordados e agora ao ser atravessado por uma consciecircncia difusa de incompletude tende a crer que todas as outras culturas estatildeo igualmente disponiacuteveis para reconhecer a sua incompletude e mais do que isso ansiosas para se envolver em diaacutelogos interculturais com o Ocidente(SANTOS 2010 p47)

O quarto imperativo De parceiros e temas unilateralmenteimpostos a parceiros

e temas escolhidospor muacutetuo acordo parte da ideia de que para o diaacutelogo os

protagonistas e o assunto precisam ser acordados mutuamente Segundo o autor no

tocante aos temas em todas as culturas haacute temas que necessariamente precisam ser

incluiacutedos no diaacutelogo com outras culturas pois ldquoo importante para a

hermenecircuticadiatoacutepica eacute a direccedilatildeo a noccedilatildeo eo sentimento de incompletude da

culturardquo (SANTOS 2010 p 47) O ultimo imperativotransculturalDa igualdade ou

diferenccedila agrave igualdadee diferenccedila parte da aceitaccedilatildeo de que o direito a igualdade deve

41

ser garantido quando a diferenccedila nos inferioriza e o direito a ser diferente quando a

igualdade nos descaracteriza

Aleacutem dos imperativos transculturais essenciais para o diaacutelogo intercultural

Santos (2008 p 154) ratifica que a ecologia de saberes se alicerccedila em dois

pressupostos ldquonatildeo haacute epistemologias neutras e as que clamam secirc-lo satildeo as menos

neutras a reflexatildeo epistemoloacutegica deve incidir natildeo nos conhecimentos em abstratos

mas nas praacuteticas de conhecimento e seus impactos noutras praacuteticas sociaisrdquo Posto

isso fica evidente de que natildeo haacute neutralidade no conhecimento cientiacutefico pois atende

aos interesses da ideologia dominante que o produz Quanto ao segundo pressuposto

refere-se agrave praacutetica dos conhecimentos agrave sua aplicabilidade na realidade social Nessa

loacutegica

Natildeo haacute duacutevidas de que para levar o homem ou a mulher a lua natildeo haacute conhecimento melhor do que o cientifico o problema eacute que hoje tambeacutem sabemos que para preservar a biodiversidade de nada serve a ciecircncia moderna Ao contraacuterio ela a destroacutei Porque o que vem conservando e mantendo a biodiversidade satildeo os conhecimentos indiacutegenas e camponeses (SANTOS 2007 p 33)

Fica evidente que a importacircncia de determinado conhecimento estaacute na sua

capacidade e utilidade para resolver os problemas sociais ambientais entre outros

No exemplo acima cada conhecimento produz um tipo de resultado quando aplicado

para atingir determinados objetivos A hierarquia entre eles ocorre pela intervenccedilatildeo

concreta nas praacuteticas sociais

A nossa intenccedilatildeo nesta tese foi conferir legitimidade acadecircmica e

epistemoloacutegica aos saber popular dos ribeirinhos que este possa juntamente com o

saber escolar fazer parte do curriacuteculo da escola de educaccedilatildeo baacutesica frequentada

pelas crianccedilas jovens e adultos das comunidades ribeirinhas na Amazocircnia e desta

maneira contribuir para a formaccedilatildeo de identidades e subjetividades

12 A DESCOLONIZACcedilAtildeO EPISTEMOLOacuteGICA UM ESTUDO DAS PROPOSICcedilOtildeES

TEOacuteRICAS

Nesta seccedilatildeo procuramos fazer uma discussatildeo entre autores que discutem os

conceitos de colonialidade gnosepensamento liminar e pensamento fronteiriccedilo com

o intuito de analisaacute-los criticamente a partir da abordagem teoacuterica baseada nos

Estudos Poacutes-Coloniais do grupo modernidadecolonialidade que emerge com a

finalidade de questionar a constituiccedilatildeo da modernidade a partir de suas concepccedilotildees

dominantes Finalizamos com uma discussatildeo referente agrave categoria Diaacutelogo na visatildeo

Freireana

42

121Os Estudos Poacutes-Coloniais

Os estudos poacutes-coloniais podem ser considerados como um movimento

intelectual e tambeacutem poliacutetico com a finalidade de questionar a hegemonia

epistemoloacutegica e fazer emergir os saberes subalternizados dos povos colonizados

Segundo Ribeiro e Escobar (2012) os impactos do processo de colonizaccedilatildeo satildeo

abordados por autores oriundos dos paiacuteses colonizados como grito de alerta para o

rompimento das amarras impostas pela colonizaccedilatildeo

Para Costa (2006 p 84) o colonialismo ldquoalude a situaccedilotildees de opressatildeo

diversas definidas a partir de fronteiras de gecircnero eacutetnicas ou raciaisrdquo Neste sentido

o colonialismo gerou a opressatildeo dos povos dominados que foram classificados de

acordo com os estigmas impostos pelo colonizador e ainda reforccedilou as jaacute existentes

situaccedilotildees de opressatildeo

Ballestrin (2012 p 4) no tocante ao argumento poacutes-colonial apresenta-o como

um movimento poliacutetico e intelectual natildeo necessariamente linear disciplinado e

articulado

Neste sentido defendemos que o argumento poacutes-colonial em toda sua amplitude histoacuterica geograacutefica e disciplinar percebe a diferenccedila colonial e intercede pelo colonizado Isto significa dizer que o argumento poacutes-colonial eacute em maior ou menor grau comprometido Pelo argumento poacutes-colonial o resgate da histoacuteria do conhecimento do discurso do sujeito e da memoacuteria do status ldquocolonizadordquo nunca pretende atraveacutes de sua visibilidade e da vocalizaccedilatildeo fortalecer o ldquooutrordquo colonizador Em termos de teoria poliacutetica contemporacircnea a relaccedilatildeo colonial eacute uma relaccedilatildeo antagocircnica e natildeo agocircnica

Desta forma o resgate da histoacuteria do conhecimento e do discurso do

colonizado foram protagonizados por autores como Albert Memmi Aimeacute Cesaacuterie e

Franz Fanon que foram os pioneiros a iniciar as reflexotildees referentes agraves situaccedilotildees de

opressatildeo para desvendar o antagonismo entre colonizador e colonizado Outro autor

que questionou a ordem poliacutetica e ideoloacutegica imposta pelo ocidente foi Edward Said

que comeccedila a discutir a teoria poacutes-colonial para aleacutem do vieacutes culturalista assim como

o orientalismo como um movimento cientiacutefico cujo anaacutelogo no mundo da poliacutetica seria

a acumulaccedilatildeo e a aquisiccedilatildeo colonial do oriente pela Europa (AMADEO 2014) As

abordagens e ideias discutidas por esses autores fomentaram uma revoluccedilatildeo nos

modos de pensar o outro o racismo e o sofrimento

O emergir do Grupo de Estudos Subalternos na deacutecada de 1970 composto

por pensadores do sul-asiaacutetico discutiam as questotildees relacionadas ao poacutes-

colonialismo como relaccedilotildees de poder a partir do aporte teoacuterico marxista baseado no

pensamento gramisciano A finalidade do grupo era afirma Grosfoguel (2008 p116)

43

ldquoanalisar criticamente natildeo soacute a historiografia colonial da Iacutendia feita por ocidentais

europeus mas tambeacutem a historiografia eurocecircntrica nacionalista indianardquo A atuaccedilatildeo

do grupo se restringiu agrave Iacutendia Paquistatildeo e demais paiacuteses do entorno

Na deacutecada de 1980 houve a expansatildeo da teoria poacutes-colonial contribuiacuteram

para isso as obras de Homi Bhabha O local da cultura e de Stuart Hall com Da

diaacutespora O subalterno eacute conceituado por Gayatri Spivak na obra Pode o subalterno

falarComo ldquoas camadas mais baixas da sociedade constituiacutedas pelos modos

especiacuteficos de exclusatildeo dos mercados da representaccedilatildeo poliacutetica e legal e da

impossibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominanterdquo

(SPIVAK 2010 p 12)

Segundo Ballestrin (2012) sob a influecircncia e expansatildeo dessas teorias por

volta de 1990 surge o Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos Dentre as

obras que foram fundamentais para o aprofundamento do debate estaacute a Colonialidad

y modernidad-racionalidad de 1992 de Aniacutebal Quijano ldquo[] Inspirados no Grupo Sul-

asiaacutetico dos Estudos Subalternos e no Centro de Estudos Culturais dirigidos por Stuart

Hall em Birmingham o Manifesto Inaugural do Grupo Latino-americano de Estudos

Subalternos publicado originalmente em 1995 inseriu a Ameacuterica Latina no debate

poacutes-colonialrdquo (BALLESTRIN 2012 p 6)

Em 1998 Walter Mignolo cria o Grupo ModernidadeColonialidade com o intuito

de trazer para os estudos subalternos as ideias dos autores natildeo eurocecircntricos para

discutir os problemas da Ameacuterica Latina o trecho retirado do manifesto abaixo retrata

essa concepccedilatildeo

Walter Mignolo aprovecha tambieacuten algunos elementos de las teoriacuteas poscoloniales para realizar una criacutetica de los legados coloniales en Ameacuterica Latina Pero a diferencia de Ileana Rodriacuteguez y de otros miembros del Grupo de Estudios Subalternos Mignolo piensa que las tesis de Ranajit Guha Gayatri Spivak Homi Bhabha y otros teoacutericos indios no debieran ser asumidas y trasladadas sin maacutes para un anaacutelisis del caso latinoamericano Hacieacutendose eco de las criacuteticas tempranas de Vidal y Klor de Alva Mignolo afirma que las teoriacuteas poscoloniales tienen su locus enuntiationis en las herencias coloniales del imperio britaacutenico y que es preciso por ello buscar uma categorizacioacuten criacutetica del occidentalismo que tenga su locus en Ameacuterica Latina(CASTRO-GOacuteMEZ amp MENDIETA 1998 p 16)

Para Mignolo a Ameacuterica foi a pioneira a ser vitimada pelo colonialismo sendo

nela implantada o modelo de exploraccedilatildeo do capitalismo imperial que se expandiu para

o mundo Nesse sentido a histoacuteria da Ameacuterica Latina natildeo eacute a mesma da Indiana

motivo pelo qual natildeo serviria de modelo para lutar contra o colonialismo

44

Grosfoguel (2008) corrobora com as ideias de Mignolo ao afirmar que o grupo

Latino-americano de Estudos Subalternos natildeo consegue se desvencilhar do

pensamento estadunidense e dos estudos subalternos indianos

[] Os latino-americanistas deram preferecircncia epistemoloacutegica ao que chamaram os ldquoquatro cavaleiros do Apocalipserdquo ou seja a Foucault Derrida Gramsci e Guha Entre estes quatro contam-se trecircs pensadores eurocecircntricos fazendo dois deles (Derrida e Foucault) parte do cacircnone poacutes-estruturalistapoacutes-moderno ocidental Apenas um Rinajit Guha eacute um pensador que pensa a partir do Sul Ao preferirem pensadores ocidentais como principal instrumento teoacuterico traiu o seu objetivo de produzir estudos subalternos [] Entre as muitas razotildees que conduziram agrave desagregaccedilatildeo do Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos uma delas foi a que veio opor os que consideravam a subalternidade uma criacutetica poacutes-moderna (o que representa uma criacutetica eurocecircntrica ao eurocentrismo) agravequeles que a viam como uma criacutetica descolonial (o que representa uma criacutetica do eurocentrismo por parte dos saberes silenciados e subalternizados) Para todos noacutes que tomamos o partido da criacutetica descolonial o diaacutelogo com o Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos tornou evidente a necessidade de transcender epistemologicamente ndash ou seja de descolonizar ndash a epistemologia e o cacircnone ocidentais

Dentre os autores que fazem parte do grupo ModernidadeColonialidade

destacam-se Edgardo Lander Arthuro Escobar Enrique Dussel Fernando Coronil

Immanuel Wallerstein e Aniacutebal Quijano Em 2000 Edgardo Lander organiza uma das

principais coletacircneas publicada pelo grupo Colonialidade do saber eurocentrismo e

ciecircncias sociais perspectivas latino-americanas lanccedilada em portuguecircs em 2005 pelo

Conselho Latino Americano de Ciecircncias Sociais ndash (CLACSO) A seguir apresentamos

uma tabela elaborada por Ballestrin (2012) que retrata o perfil dos membros do citado

grupo

Tabela 01 - Membros do grupo ModernidadeColonialidade

Integrante

Aacuterea

Nacionalidade

Universidade onde leciona

Aniacutebal Quijano Sociologia Peruana Universidad Nacional de San Marcos Peru

Enrique Dussel

Filosofia Argentina Universidad Nacional Autoacutenoma de Meacutexico

Walter Mignolo Semioacutetica Argentina Duke University Eua

Immanuel Wallerstein

Sociologia Estadounidense Yale University Eua

Santiago Castro-Goacutemez

Filosofia Colombiana Pontificia Universidad Javeriana Colocircmbia

Nelson Maldonado-Torres

Filosofia Porto-riquenha University of California Berkeley Eua

Ramoacuten Grosfoacuteguel

Sociologia Porto-riquenha University of California Berkeley Eua

45

Edgardo Lander

Sociologia Venezuelana UniversidadCentral de Venezuela

Arthuro Escobar

Antropologia Colombiana University of North Carolina Eua

Fernando Coronil

Antropologia Venezuelana University of New York Eua

Catherine Walsh

Linguiacutestica Estadounidense UniversidadAndina Simoacuten Boliacutevar Equador

Boaventura Santos

Direito Portuguesa Universidade de Coimbra Portugal

Zulma Palermo Semioacutetica Argentina Universidad Nacional de Salta Argentina

Fonte Luciana Ballestrin 2012

Para Ballestrin (2012 p 21) o grupo desenvolveu accedilotildees que foram marcantes

para a renovaccedilatildeo criacutetica das Ciecircncias Sociais na Ameacuterica Latina no seacuteculo XXI dentre

elas ldquoa inserccedilatildeo do continente no debate poacutes-colonial a ruptura com os estudos

culturais subalternos - indianos e latino-americanos - e poacutes-coloniais e a radicalizaccedilatildeo

do argumento poacutes-colonial atraveacutes do movimento giro decolonialrdquo

Dentre as concepccedilotildees teoacutericas produzidas pelo grupo destacamos a de

Immanuel Wallerstein que criou uma definiccedilatildeo de sistema-mundo que foi a base para

a elaboraccedilatildeo do conceito de colonialidade do poder por Anibal Quijano Para

Wallerstein a interdependecircncia seja econocircmica ou poliacutetica eacute gerada pelo mercado

O sistema-mundo corresponde assim a uma unidade espaccedilo-temporal cujo horizonte

espacial eacute coextensivo agrave reproduccedilatildeo de suas bases econocircmico-materiais sobre aacutereas

externas e que engloba outras entidades poliacuteticas e sistemas culturais A estrutura

para a manutenccedilatildeo da soberania dos Estados foi criada para alicerccedilar a economia-

mundo capitalista

Como nem sempre existiu essa foi uma estrutura que teve que ser construiacuteda O processo de sua construccedilatildeo tem sido contiacutenuo sob inuacutemeros aspectos A estrutura foi criada de iniacutecio num uacutenico segmento do globo primordialmente a Europa mais ou menos no periacuteodo que vai de 1497 a 1648 Passou entatildeo por expansotildees esporaacutedicas incorporando uma zona geograacutefica sempre mais ampla Esse processo que poderiacuteamos chamar de lsquoincorporaccedilatildeorsquo de novas zonas agrave economia-mundo capitalista envolveu a reformulaccedilatildeo de fronteiras e estruturas poliacuteticas nas zonas incorporadas e a criaccedilatildeo em seu acircmbito de lsquoEstados soberanos membros do sistema interestatalrsquo ou ao menos aquilo que poderiacuteamos chamar de lsquocandidatos a estados soberanosrsquo ndash as colocircnias (WALLERSTEIN 2006 p 154)

O sistema-mundo moderno entatildeo surgiu como parte de um processo de

expansatildeo da economia-mundo capitalista e tambeacutem da sua relaccedilatildeo com um sistema

interestatal De acordo com o autor a ordem econocircmica militar e poliacutetica satildeo

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delimitadas pelos paiacuteses centrais assim o desenvolvimento dos Estados perifeacutericos

se fez a partir da dinacircmica de expansatildeo do sistema-mundo

Entatildeo o sistema-mundo eurocecircntrico abarcou todo o planeta com as

desigualdades imperando nas relaccedilotildees entre os paiacuteses sejam elas econocircmicas

poliacuteticas ou culturais O sistema-mundo estaacute diretamente vinculado aos sistemas

histoacutericos que tecircm uma fronteira na qual ldquoo sistema e as pessoas satildeo regularmente

reproduzidos por meio de algum tipo de divisatildeo contiacutenua do trabalhordquo

(WALLERSTEIN 1999 p459)

Para o referido autor existiram diferentes sistemas histoacutericos com suas loacutegicas

de funcionamento totalizando trecircs

Os lsquominissistemasrsquo assim chamados porque satildeo espacialmente pequenos e com toda a probabilidade relativamente breves no tempo (uma duraccedilatildeo de cerca de seis geraccedilotildees) satildeo altamente homogecircneos em termos de estruturas culturais e de governo A loacutegica baacutesica eacute a da lsquoreciprocidadersquo nas trocas Os lsquoimpeacuterios mundiaisrsquo satildeo vastas estruturas poliacuteticas (pelo menos no aacutepice do processo de expansatildeo e contraccedilatildeo que parece ser o destino de todos eles) e abarcam uma ampla variedade de padrotildees lsquoculturaisrsquo A loacutegica baacutesica do sistema eacute a extraccedilatildeo de tributo daqueles que de outra forma satildeo produtores diretos localmente auto-administrado (sobretudo rurais) que eacute passado para o centro e redistribuiacutedo entre uma fina mais crucial rede de funcionaacuterios As lsquoeconomias-mundorsquo satildeo vastas e desiguais cadeias de estruturas de produccedilatildeo dissecadas por muacuteltiplas estruturas poliacuteticas A loacutegica baacutesica eacute que o excedente acumulado eacute distribuiacutedo desigualmente em favor daqueles que satildeo capazes de realizar vaacuterios monopoacutelios temporaacuterios nas redes de mercado Eacute uma loacutegica lsquocapitalistarsquo (WALLERSTEIN 1999 p459-460)

O autor enfatiza dois aspectos o primeiro referente ao caraacuteter histoacuterico dos

sistemas Portanto o atual sistema-mundo que nasceu na Europa acerca de cinco

seacuteculos atraacutescomo os outros sistemas poderaacute desaparecer O segundo eacute que a

soberania dos Estados paiacuteses naccedilotildees e economias nacionais estatildeo delimitadas no

acircmbito do sistema-mundo vigente

A seguir abordamos a colonialidade do poder no qual a concepccedilatildeo de sistema-

mundo foi a base para as discussotildees e debates referentes ao conceito de

colonialidade bem como a construccedilatildeo da concepccedilatildeo de raccedila por meio da

classificaccedilatildeo da populaccedilatildeo mundial de acordo com a cor da pele o que garantiu o

domiacutenio e a supremacia da raccedila brancaeuropeia sobre as demais

122A colonialidade do poder

A colonialidade do poder eacute um conceito criado pelo socioacutelogo peruano Aniacutebal

Quijanoutilizado como referecircncia nas reflexotildees teoacutericas e praacuteticas no tocante ao

poder na Ameacuterica Latina bem como para analisar o processo de globalizaccedilatildeo e suas

relaccedilotildees com o capital e o trabalho

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Segundo Quijano (2007) o colonialismo cria em seu bojo a colonialidade que

atua sobre vaacuterias dimensotildees do colonizado mas o autor estabelece as diferenccedilas

entre esses dois conceitos para demonstrar como se forjou e se sustenta a estrutura

global de poder Ocolonialismo baseava-se na dominaccedilatildeo e exploraccedilatildeo com o total

controle da autoridade poliacutetica dos recursos de produccedilatildeo e do trabalho de uma

determinada populaccedilatildeo com identidades diferentes e situados em jurisdiccedilatildeo territorial

diferente Configura-se assim em uma relaccedilatildeo poliacutetica e econocircmica na qual a

soberania de uma naccedilatildeo eacute subjugada por outra Jaacute a colonialidade se caracteriza

como um padratildeo de poder que interfere nas relaccedilotildees intersubjetivas bem como nas

formas de valorizaccedilatildeo do conhecimento aleacutem da divisatildeo do trabalho baseado em

uma hierarquia racial inventada para justificar a hegemonia branca eurocecircntrica

Apresenta-se a partir de quatro formas colonialidade do poder do saber do ser e da

matildee-natureza(QUIJANO 2005 MIGNOLO 2005 WALSH 2007)

Todavia a colonialidade do poder inclina-se sobre as relaccedilotildees de colonialidade

nas esferas econocircmica e poliacutetica realccedilando a presenccedila das formas de colonizaccedilatildeo

por meio de um padratildeo de controle global tambeacutem de recursos e produtos por

intermeacutedio do controle do trabalho Desta forma Quijano (2005) anuncia sua dupla

pretensatildeo denunciar a continuidade das formas coloniais de dominaccedilatildeo via cultura e

pelas estruturas do sistema-mundo capitalista modernocolonial e por outro lado a

necessidade da atualizaccedilatildeo dessa discussatildeo que prolonga processos que

teoricamente teriam sido superados na modernidade

Assim constata-se que as relaccedilotildees de colonialidade nas esferas econocircmica e

poliacutetica natildeo findaram com a destruiccedilatildeo do colonialismo a colonialidade do poder daacute

visibilidade agraves formas coloniais de dominaccedilatildeo mesmo com o fim das administraccedilotildees

poliacutetico-juriacutedicas coloniais e tambeacutem ldquopossui uma capacidade explicativa que atualiza

e contemporiza processos que supostamente teriam sido apagados assimilados ou

superados pela modernidaderdquo (BALLESTRIN 2012 p 13)

A colonialidade de poder segundo Quijano (2000) eacute constitutiva da

modernidade Corroborando com essa ideia Dussel (1994) afirma que se a

modernidade tem um sentido emancipador para a Europa ela natildeo tem a mesma

positividade para o outro natildeo europeu para este ela significou a origem de uma

violecircncia sacrificial travestida nos projetos de cristianizaccedilatildeo civilizaccedilatildeo

desenvolvimento e democratizaccedilatildeo

ParaQuijano (2000 p342)

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La colonialidade es uno de los elementos constitutivos y especiacuteficos del patroacuten mundial de poder capitalista Se funda en la imposicioacuten de una clasificacioacuten racialeacutetnica de la problacioacuten del mundo como piedra anguar de dicho patroacuten de poder y opera en cada uno de los planos aacutembitos y dimensiones materiales y subjetivas de la existecircncia social cotidiana y a escala societal Se origina y mundializa a partir de America

A colonialidade do poder carrega em si uma perspectiva que integra elementos

histoacutericos econocircmicos poliacuteticos e ideoloacutegicos que formaram e ainda estruturam as

relaccedilotildees de poder global na atualidade

No que concerne ao elemento histoacuterico a concepccedilatildeo da ideia de raccedila foi

construiacuteda para inferiorizar e naturalizar as diferenccedilas entre colonizador e colonizado

De acordo com Quijano (2005) a racializaccedilatildeo e a racionalizaccedilatildeo foram as bases nas

quais se instituiacuteram a modernidade Para o autor a racializaccedilatildeo foi a normatizaccedilatildeo da

sociedade em raccedilas como regra global para a classificaccedilatildeo da populaccedilatildeo e os niacuteveis

de ocupaccedilatildeo econocircmica poliacutetica e social Isso possibilitou a articulaccedilatildeo do controle

do trabalho de seus recursos e de seus produtos fundada numa racionalidade

eurocentrada

A ideia de raccedila foi a base da relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo por meio da classificaccedilatildeo

da populaccedilatildeo inicialmente da Ameacuterica e depois para o restante do mundo colonizado

Esta classificaccedilatildeo gerou novas identidades os dominados foram agrupados em

categorias tendo como criteacuterio a cor da pele iacutendios negros mesticcedilos olivaacuteceos e

amarelos O colonizador se auto identificou como branco e mais tarde por volta do

seacuteculo XVIII europeu

E na medida em que as relaccedilotildees sociais que se estavam configurando eram relaccedilotildees de dominaccedilatildeo tais identidades foram associadas agraves hierarquias lugares e papeacuteis sociais correspondentes como constitutivas delas e consequentemente ao padratildeo de dominaccedilatildeo que se impunha Em outras palavras raccedila e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificaccedilatildeo social baacutesica da populaccedilatildeo (QUIJANO 2005 p 3)

Destamaneira naturalizou-se as diferenccedilas como mais uma forma de

legitimaccedilatildeo acrescida agraves ideias e praacuteticas jaacute desenvolvidas para garantir a

superioridade entre dominantes e dominados A classificaccedilatildeo hieraacuterquica

inicialmente se consolidou nas caracteriacutesticas fenoacutetipas e posteriormente na cor da

pele como uacutenico criteacuterio para categorizaccedilatildeo racial da populaccedilatildeo assim fundamenta-

se em explicaccedilotildees de cunho bioloacutegico que buscou naturalizar as diferenccedilas que satildeo

construiacutedas socialmente gerando a discriminaccedilatildeo o preconceito e o racismo

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Eacute a colonialidade do poder que expressa a noccedilatildeo de raccedila com o objetivo de

afirmar a hegemonia da raccedila branca Logo ldquoa ideia de raccedila eacute uma construccedilatildeo mental

que expressa a experiecircncia baacutesica da dominaccedilatildeo colonial e que desde entatildeo permeia

as dimensotildees mais importantes do poder mundial [] o eurocentrismordquo (QUIJANO

2005 p 227) Dessa maneira o crescimento do colonialismo europeu levou agrave

elaboraccedilatildeo da perspectiva eurocecircntrica do conhecimento culminando com a

construccedilatildeo teoacuterica da ideia de raccedila que foi o mais eficaz e duraacutevel instrumento de

dominaccedilatildeo social universal como naturalizaccedilatildeo dessas relaccedilotildees coloniais de

dominaccedilatildeo entre europeus e natildeo-europeusAfirma Quijano (2005 p 228) que ldquoos

povos conquistados e dominados foram postos numa situaccedilatildeo natural de inferioridade

e consequentemente tambeacutem seus traccedilos fenotiacutepicos bem como suas descobertas

mentais e culturaisrdquo Eacute a negaccedilatildeo do estatuto de humanidade aos povos

subalternizados nesta relaccedilatildeo se identifica a colonialidade do Ser que de acordo

com Walsh (2008 p 138) ldquoes la que se ejerce por medio de la inferiorizacioacuten

subalternizacion y la deshumanizacioacuten a lo que Frantz Fanon (1999) se refiere como

el trato de la lsquono existenciarsquo rdquo Para Grosfoguel (2008 p 123) a colonialidade do poder

carrega em seu bojo a leitura da raccedila e do racismo como ldquoo princiacutepio organizador que

estrutura todas as muacuteltiplas hierarquias do sistema-mundordquo

Os criteacuterios para classificaccedilatildeo da espeacutecie humana foi avanccedilando no decorrer

do tempo No seacuteculo XVIII teve a cor da pele como um criteacuterio fundamental em

seguida no seacuteculo XIX acrescentou-se ao criteacuterio da cor outros aspectos

morfoloacutegicos tais como a forma do nariz dos laacutebios do queixo do formato do cracircnio

e o acircngulo facial para aperfeiccediloar a classificaccedilatildeo e aumentar a discriminaccedilatildeo

Somente no seacuteculo XX com os avanccedilos das ciecircncias os proacuteprios bioacutelogos geneticistas cientistas da biologia molecular e da bioquiacutemica chegaram agrave conclusatildeo de que a raccedila natildeo eacute uma realidade bioloacutegica mas um conceito inoperante para explicar a diversidade humana e para dividi-la em raccedilas estanques Ou seja bioloacutegica e cientificamente as raccedilas natildeo existem (MUNANGA 2003 p 67)

Poreacutem a ideia de que a populaccedilatildeo estaacute dividida em raccedilas teve a funccedilatildeo de

ratificar o poder do colonizador que utilizou vaacuterias estrateacutegias para controlar toda a

diversidade humana e incorporaacute-la ao uacutenico mundo dominado pela Europa por meio

do controle das subjetividades da cultura do conhecimento e de suas maneiras de

produccedilatildeo Afirma Quijano (2005) que dentre as estrateacutegias destacam-se a repressatildeo

das formas de produccedilatildeo do conhecimento dos povos colonizados e a apropriaccedilatildeo dos

que contribuiacutessem para o crescimento do capital a condenaccedilatildeo do seu universo

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simboacutelico e dos padrotildees de expressatildeo e de objetivaccedilatildeo da subjetividade e a

imposiccedilatildeo da cultura necessaacuteria para a dominaccedilatildeo e reproduccedilatildeo do capital nos

aspectos materiais tecnoloacutegico inclusive da subjetividade com destaque para a

religiosa

Aleacutem das estrateacutegias para o controle e dominaccedilatildeo o referido autor evidencia

os fatores que contribuiacuteram para que a Europa se tornasse o centro do capitalismo

mundial e conseguisse ecircxito nas suas conquistas

A progressiva monetarizaccedilatildeo do mercado mundial que os metais preciosos da Ameacuterica estimulavam e permitiam bem como o controle de tatildeo abundantes recursos possibilitou aos brancos o controle da vasta rede preacute-existente de intercacircmbio que incluiacutea sobretudo China Iacutendia Ceilatildeo Egito Siacuteria os futuros Orientes Meacutedio e Extremo Isso tambeacutem lhes permitiu concentrar o controle do capital comercial do trabalho e dos recursos de produccedilatildeo no conjunto do mercado mundial E tudo isso foi posteriormente reforccedilado e consolidado atraveacutes da expansatildeo e da dominaccedilatildeo colonial branca sobre as diversas populaccedilotildees mundiais (QUIJANO 2005 p 232)

Desta forma o controle do capital comercial do trabalho e dos recursos de

produccedilatildeo no conjunto do mercado mundial permitiu agrave Europa tornar-se o centro do

capital global A articulaccedilatildeo de todas as possiacuteveis formas de controle do trabalho se

baseou na divisatildeo racial do trabalho na qual as raccedilas colonizadas foram destinadas

agraves funccedilotildees natildeo remuneradas pois eram consideradas inferiores e por consequecircncia

natildeo dignas de receberem salaacuterios Aos negros foi determinada a escravidatildeo aos

iacutendios a servidatildeo somente os espanhoacuteis e portugueses recebiam salaacuterios e quando

nobres ocupavam os mais altos cargos da administraccedilatildeo civil e militar Quanto aos

mesticcedilos estes exerciam os mesmos ofiacutecios dos brancos mas sem pagamento pelos

seus serviccedilos Esta mesma estrutura desenvolvida com ecircxito na Ameacuterica foi

transposta para o resto do mundo colonizado pois nas regiotildees dominadas a uacutenica

raccedila assalariada era a branca enquanto que aos colonizados estava reservado o

trabalho natildeo pago em razatildeo de sua natural inferioridade

Nesse sentido os interesses da raccedila branca eram totalmente antagocircnicos com

os dos dominados (iacutendios negros e mesticcedilos) Elaborou-se uma teoria racial na qual

iacutendios e negros natildeo eram considerados humanos mas vistos como baacuterbaros natildeo

dignos de receber salaacuterios Esse imaginaacuterio serviu para exploraacute-los oprimi-los e

dominaacute-los

A colonialidade do controle do trabalho de acordo com Quijano (2005 p 238)

ldquodeterminou a geografia social do capitalismordquo tornando-se o capital o eixo no qual

estavam ligadas todas as formas de controle do trabalho de seus recursos e produtos

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ldquoEssa relaccedilatildeo social especiacutefica foi geograficamente concentrada na Europa

sobretudo e socialmente entre os europeus em todo o mundo do capitalismordquo (idem

p 238) Para Wallerstein o racismo eacute um elemento constitutivo da colonialidade e da

economia do mundo capitalista e tem como objetivo ldquomanter as pessoas dentro do

sistema mas com o estatuto de [] seres inferiores passiacuteveis de serem explorados

economicamente e usados como bodes-expiatoacuterios poliacuteticosrdquo (2000 p 13)

Corroborando com esta concepccedilatildeo Fanon (1956) aponta o racismo como uma

forma de opressatildeo na qual o dominante se sente superior e usa a sua superioridade

para desumanizar o outro Para o autor o racismo nunca eacute oculto inconsciente natildeo

sendo tambeacutem uma disposiccedilatildeo do espiacuterito algo psicoloacutegico embora a questatildeo

psiacutequica tambeacutem esteja presente

Na visatildeo de Walsh (2008) a discriminaccedilatildeo da categoria raccedila remete tambeacutem

agrave repressatildeo dos conhecimentos e saberes dos oprimidos que satildeo diversos dos

eurocecircntricos por meio da colonialidade do saber Concordando com a citada autora

Mignolo (2011) afirma que o eurocentrismo lanccedila qualquer epistemologia que esteja

fora de sua estrutura ao status de mito folclore lenda ou conhecimento local jaacute que

se coloca sempre no presente e no centro do espaccedilo projetando-se universalmente

Segundo Quijano (2005) a postura etnocecircntrica e a classificaccedilatildeo racial da

populaccedilatildeo do planeta satildeo fatores que contribuiacuteram para compreender os motivos dos

europeus se sentirem naturalmente superiores em relaccedilatildeo agraves outras raccedilas bem como

os uacutenicos autores da modernidade Isso os levou a se considerarem os mais

avanccedilados enquanto que o restante foi considerado inferior e primitivo no processo

de desenvolvimento da espeacutecie humana Para o autor a modernidade eacute um fenocircmeno

possiacutevel em todas as culturas e eacutepocas histoacutericas se partirmos do princiacutepio de que ela

estaacute ligada agrave ideia de novidade do avanccedilado racional-cientiacutefico laico e secular Desse

modo natildeo se pode atribuir agraves culturas natildeo europeias uma mentalidade primitiva pois

[hellip] aleacutem dos possiacuteveis ou melhor conjecturados conteuacutedos simboacutelicos as cidades os templos e palaacutecios as piracircmides ou as cidades monumentais seja Machu Pichu ou Boro Budur as irrigaccedilotildees as grandes vias de transporte as tecnologias metaliacuteferas agropecuaacuterias as matemaacuteticas os calendaacuterios a escritura a filosofia as histoacuterias as armas e as guerras mostram o desenvolvimento cientiacutefico e tecnoloacutegico em cada uma de tais altas culturas desde muito antes da formaccedilatildeo da Europa como nova id-entidade (QUIJANO 2005 p 230)

Portanto fica evidente a postura etnocentrista e eurocecircntrica ao afirmar ter

exclusividade em relaccedilatildeo agrave modernidade configurando-se como um discurso que visa

sedimentar a sua superioridade enquanto raccedila dominadora civilizadora e avanccedilada

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em termos de racionalidade tecnologia e ciecircncia O referido autor ressalta que existe

uma gama de elementos demonstraacuteveis que apontam para um conceito de

modernidade diferente que daacute conta de um processo histoacuterico especiacutefico ao atual

sistema-mundo mas que porta todas as caracteriacutesticas que foram definidas Destaca

que carrega tambeacutem as relaccedilotildees sociais materiais e intersubjetivas cuja questatildeo

central eacute a libertaccedilatildeo humana como interesse histoacuterico da sociedade e em

consequecircncia seu campo central de conflito

Para Quijano (2005)o atual padratildeo de poder mundial eacute o primeiro efetivamente

global da histoacuteria conhecida O autor aponta quatro caracteriacutesticas que balizam sua

tese

Um eacute o primeiro em que cada um dos acircmbitos da existecircncia social estatildeo articuladas todas as formas historicamente conhecidas de controle das relaccedilotildees sociais correspondentes configurando em cada aacuterea uma uacutenica estrutura com relaccedilotildees sistemaacuteticas entre seus componentes e do mesmo modo em seu conjunto Dois eacute o primeiro em que cada uma dessas estruturas de cada acircmbito de existecircncia social estaacute sob a hegemonia de uma instituiccedilatildeo produzida dentro do processo de formaccedilatildeo e desenvolvimento deste mesmo padratildeo de poder Assim no controle do trabalho de seus recursos e de seus produtos estaacute a empresa capitalista no controle do sexo de seus recursos e produtos a famiacutelia burguesa no controle da autoridade seus recursos e produtos o Estado-naccedilatildeo no controle da intersubjetividade

o eurocentrismo Trecircs cada uma dessas instituiccedilotildees existe em relaccedilotildees de interdependecircncia com cada uma das outras Por isso o padratildeo de poder estaacute configurado como um sistema Quatro finalmente este padratildeo de poder mundial eacute o primeiro que cobre a totalidade da populaccedilatildeo do planeta

Assim o eurocentrismo tem como objetivo de tornar semelhante as formas

baacutesicas de existecircncia social de todas as populaccedilotildees colonizadas por intermeacutedio de

praacuteticas sociais comuns e uma esfera intersubjetiva que existe e atua como esfera

central de orientaccedilatildeo valorativa do conjunto Daiacute a universalizaccedilatildeo do Estado-naccedilatildeo

da famiacutelia burguesa da empresa da racionalidade eurocecircntrica como as instituiccedilotildees

hegemocircnicas de cada acircmbito de existecircncia social como modelos intersubjetivos

O eurocentrismo eacute tambeacutem uma loacutegica fundamental para a reproduccedilatildeo da

Colonialidade do Saber pois afirma Quijano (2005 p 9) ldquoa elaboraccedilatildeo intelectual do

processo de modernidade produziu uma perspectiva de conhecimento e um modo de

produzir conhecimento que demonstram o caraacuteter do padratildeo mundial de poder

colonialmoderno capitalista e eurocentradordquo O autor denomina de Eurocentrismo

esse modo de construir conhecimento

[] Eurocentrismo eacute aqui o nome de uma perspectiva de conhecimento cuja elaboraccedilatildeo sistemaacutetica comeccedilou na Europa Ocidental antes de meados do seacuteculo XVII ainda que algumas de suas raiacutezes satildeo sem duacutevida mais velhas ou mesmo antigas e que nos seacuteculos seguintes se tornou mundialmente

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hegemocircnica percorrendo o mesmo fluxo do domiacutenio da Europa burguesa Sua constituiccedilatildeo ocorreu associada agrave especiacutefica secularizaccedilatildeo burguesa do pensamento europeu e agrave experiecircncia e agraves necessidades do padratildeo mundial de poder capitalista colonialmoderno eurocentrado estabelecido a partir da Ameacuterica

Como alternativa para questionar a validade somente do conhecimento

hegemocircnico e com a finalidade de tornar visiacutevel outras formas de conhecimentos

Mignolo (2003) propotildee a gnosepensamento liminar que tem como base a razatildeo

subalterna com outras racionalidades que diferem da concepccedilatildeo ocidental de

conhecimento

No que concerne agrave educaccedilatildeo dos ribeirinhos as pesquisas demonstram

segundo Hage (2014) que a colonialidade do poder impotildee curriacuteculos

descontextualizados ou seja que natildeo contemplam saberes oriundos do contexto

social econocircmico religioso e cultural dos povos das aacuteguas Os motivos estatildeo

relacionados ao natildeo reconhecimento do saber popular desses povos por serem

considerados como mitos lendas ou folclore portanto inferiores

123 Gnose ou pensamento liminar

Gnose ou pensamento liminar eacute um conceito criado por Mignolo que consiste em

[] o conhecimento concebido das margens externas do sistema mundial colonialmoderno gnosiologia marginal enquanto discurso sobre o saber colonial concebe-se na interseccedilatildeo conflituosa de conhecimento produzido na perspectiva dos colonialismos modernos (retorica filosofia ciecircncia) e do conhecimento produzido na perspectiva das modernidades coloniais na Aacutesia Aacutefrica nas Ameacutericas e no Caribe A gnosiologia liminar eacute uma reflexatildeo critica sobre a produccedilatildeo do conhecimento a partir tanto das margens internas do sistema mundial colonialmoderno (conflitos imperiais liacutenguas hegemocircnicas direcionalidade de traduccedilotildees etc) quanto das margens externas (conflitos imperiais com culturas que estatildeo sendo colonizadas bem como as etapas subsequentes de independecircncia ou descolonizaccedilatildeo) (MIGNOLO 2003 p 34)

Assim a gnose liminar representa o conhecimento dos excluiacutedos que

historicamente foi subalternizado por estar fora dos rigores da ciecircncia eurocecircntrica

constituindo-se numa razatildeo dos oprimidos em reaccedilatildeo ao processo de colonizaccedilatildeo

opressora Para o autor ldquoa gnose liminar constroacutei-se em diaacutelogo com a epistemologia

a partir de saberes que foram subalternizados nos processos imperiais coloniaisrdquo

(MIGNOLO 2003 p 34)

Assim o autor natildeo usa a gnose como doxa nem como ciecircnciaepisteme  no

sentido de um saber instrumental e muito menos como hermenecircutica A gnose

enquanto pensamento fronteiriccedilo torna-se um espaccedilo aberto para os saberes

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marginalizados pelo ocidente Natildeo se constitui como recusa da ciecircncia ou da

hermenecircutica Eacute um saber que atua no tracircnsito entre fronteiras

Para que possamos entender a gnose liminar faz-se necessaacuterio de acordo

com Mignolo (2003) compreendermos a diferenccedila colonial pois ela surge como

formas de reaccedilatildeo a esta diferenccedila Desta maneira a diferenccedila colonial exprime a

categorizaccedilatildeo do planeta ldquono imaginaacuterio colonial moderno praticado pela colonialidade

do poder uma energia e um maquinaacuterio que transformam diferenccedilas em valoresrdquo

(MIGNOLO 2003 p 34)

A diferenccedila colonial foi construiacuteda historicamente Inicialmente os missionaacuterios

espanhoacuteis no seacuteculo XVI categorizavam os povos colonizados por meio do domiacutenio

da escrita alfabeacutetica os que natildeo a dominava eram considerados inferiores No fim do

seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX a categoria para avaliaccedilatildeo passou a ser a Histoacuteria Desta

maneira os povos sem histoacuteria situavam-se em um tempo anterior ao presente logo

a sua histoacuteria era escrita pelos que a tinham Destarte a diferenccedila colonial respeitava

a distinccedilatildeo claacutessica entre centros e periferias que prevaleceu ateacute o meio do seacuteculo

XX jaacute na segunda metade do mesmo seacuteculo a emergecircncia do colonialismo global

gerenciado pelas corporaccedilotildees transnacionais apagou a distinccedilatildeo que era vaacutelida para

as formas iniciais de colonialismo e a colonialidade do poder Portanto ldquoNo passado

a diferenccedila colonial situava-se laacute fora distante do centro Hoje emerge em toda parte

nas periferias dos centros e nos centros da periferiardquo(MIGNOLO 2003 p 09)

O colonialismo global que emerge com o fim da Guerra Fria e perpetua a

reproduccedilatildeo da diferenccedila colonial a niacutevel planetaacuterio sem situar-se em determinado

territoacuterio mostra a diferenccedila colonial ldquoem escala mundial quando o lsquoocidentalismorsquo se

defronta com o Oriente como precisamente sua proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade - da

mesma forma que paradoxalmente nos seacuteculos 18 e 19 o Ocidentalismo foi agrave

condiccedilatildeo da possibilidade do Orientalismordquo (MIGNOLO 2003 p10)

O pensamento liminar torna-se desta maneira uma reaccedilatildeo agrave diferenccedila

colonial que eacute concebida como

[] o espaccedilo onde emerge a colonialidade do poder A diferenccedila colonial eacute o espaccedilo onde as histoacuterias locais que estatildeo inventando e implementando os projetos globais encontram aquelas histoacuterias locais que os recebem eacute o espaccedilo onde os projetos globais satildeo forccedilados a adaptar-se integrar-se ou onde satildeo adotados rejeitados ou ignorados A diferenccedila colonial eacute finalmente o local ao mesmo tempo fiacutesico e imaginaacuterio onde atua a colonialidade do poder no confronto de duas espeacutecies de histoacuterias locais visiacuteveis em diferentes espaccedilos e tempos do planeta (MIGNOLO 2003 p10)

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Neste sentido a diferenccedila colonial cria condiccedilotildees para situaccedilotildees dialoacutegicas nas

quais se encena do ponto de vista subalterno segundo Mignolo (2003 p 11)ldquouma

enunciaccedilatildeo fraturada como reaccedilatildeo ao discurso e agrave perspectiva hegemocircnicardquo Assim

enfatiza o autor que o pensamento liminar se constitui num instrumento para a

descolonizaccedilatildeo intelectual e portanto para a descolonizaccedilatildeo poliacutetica e econocircmica

ele nos leva a perceber como nossa formaccedilatildeo estaacute enraizada num imaginaacuterio

marcado por uma colonizaccedilatildeo intelectual eurocecircntrica

No processo de desconstruccedilatildeo desse imaginaacuterio Mignolo (2003) propotildee o

questionamento das teorias aceitas como verdades absolutas soacute porque satildeo oriundas

dos paiacuteses que foram historicamente dominantes enquanto que as produzidas em

paiacuteses que foram colonizados natildeo satildeo reconhecidas ou satildeo vistas com desconfianccedila

O entendimento dessas questotildees estaacute segundo o autor na colonialidade do poder e

na diferenccedila colonial que configuram a geopoliacutetica do conhecimento na qual somente

uma elite intelectual tem o privilegio de teorizar

Esta colonizaccedilatildeo epistemoloacutegica eurocecircntrica e etnocecircntrica foi se formando

no processo de constituiccedilatildeo do sistema moderno colonial (MIGNOLO 2003) Desta

maneira foi instalada uma geopoliacutetica do conhecimento na qualuma elite

pensanteoriunda de um determinado lugar cultura e liacutengua exerce unanimemente o

direito agrave filosofia e agrave ciecircncia

Esses satildeo os motivos do natildeo reconhecimento dos saberes produzido em

liacutenguas e histoacuterias locais subalternizadas Assim a Europa tornou-se o locus

privilegiado de produccedilatildeo e avaliaccedilatildeo do conhecimento E cosmologias e

conhecimentos milenares foram reduzidos a supersticcedilotildees conhecimento popular

folclore entre outros Trata-se aqui do processo de colonizaccedilatildeo da memoacuteria do qual

fala Mignolo (2006) A emergecircncia de outro pensamento o liminar aponta para outra

razatildeo a poacutes-ocidental que implica no reconhecimento dos saberes subalternizados e

na sua redistribuiccedilatildeo geopoliacutetica

Assim para Mignolo (2003 p 35) a gnose liminar enquanto conhecimento

natildeo se trata de uma forma ldquode sincretismo ou hibridismo mas de um sangrento campo

de batalha na longa histoacuteria da subalternizaccedilatildeo colonial do conhecimento e da

legitimaccedilatildeo da diferenccedila colonialrdquo Em decorrecircncia disso eacute uma poderosa e

emergente gnosiologia que na perspectiva do subalterno estaacute deslocando e

absorvendo as formas hegemocircnicas do conhecimento Ela eacute construiacuteda nos espaccedilos

liminares nas fronteiras da diferenccedila colonial Desta maneira a diferenccedila colonial soacute

56

pode ser transposta por via da subalternidade expressa por meio do pensamento

liminar

[] somente se pode transcender a diferenccedila colonial da perspectiva da subalternidade da descolonizaccedilatildeo e portanto de um novo terreno epistemoloacutegico que o pensamento liminar estaacute descortinando [] O pensamento liminar na perspectiva da subalternidade eacute uma maacutequina para a descolonizaccedilatildeo [] (MIGNOLO 2003 p 76)

Nesse sentido a gnose liminar eacute a razatildeo subalternaque visa o enfrentamento

da colonialidade do poder por meio do reconhecimento e valorizaccedilatildeo dos saberes

subalternizados durante a colonizaccedilatildeo Assim a partir da perspectiva epistemoloacutegica

eurocecircntrica o saber dominantefoi globalizado por meio de todo um processo

construiacutedo historicamente o autor propotildee a gnose liminar como ldquomaacutequinardquo necessaacuteria

agrave descolonizaccedilatildeo

Dentre os pressupostos apresentados pelo citado autor estaacute a relaccedilatildeo entre

modernidade e colonialidade que jamais podem ser concebidas separadamente pois

uma natildeo existe sem a outra Eacute a partir desse prisma que pode ser analisada a

formaccedilatildeo do sistema-mundo tendo como referecircncia a modernidadecolonialidade em

suas vaacuterias histoacuterias locais simultaneamente configuradas nos colonialismos

modernos e nas modernidades coloniais e natildeo apenas como uma histoacuteria mundial

universal e abstrata (MIGNOLO 2003)

Consequentemente a relaccedilatildeo entre a colonialidade do poder e a diferenccedila

colonial eacute permeada pela vinculaccedilatildeo entre o que se teoriza e a partir de onde se

teoriza desta maneira a produccedilatildeo e validaccedilatildeo do conhecimento estaacute vinculada com

a localizaccedilatildeo geograacutefica

No tocante agrave redefiniccedilatildeo da geopoliacutetica do conhecimento que consiste na

descolonizaccedilatildeo epistecircmica eacute preciso que seja pautada em novos locide enunciaccedilatildeo

a partir dos saberes subalternos em confronto com as formas dosaber hegemocircnico

Essa tarefa eacute mediar entre as praacuteticas filosoacuteficas no interior das histoacuterias coloniais modernas [] e formas lsquotradicionaisrsquo de pensamento ndash isto eacute formas de pensamento coexistentes com a definiccedilatildeo institucional de filosofia mas natildeo consideradas como tal na perspectiva institucional que define a filosofia (MIGNOLO 2003 p98)

Para isso a gnose liminar como forma de descolonizaccedilatildeo epistecircmica eacute

diferenciada das teorias criacuteticas poacutes-modernas A poacutes-modernidade eacute vista enquanto

discurso criacutetico sobre a ecircnfase no imaginaacuterio da modernidade como uma descriccedilatildeo

do presente histoacuterico em que eacute possiacutevel tal discurso Em oposiccedilatildeo a poacutes-colonialidade

eacute concebida como um discurso criacutetico que torna visiacutevel o vieacutes colonial do sistema

57

mundial moderno e a colonialidade do poder que estaacute encravada na proacutepria

modernidade Destaca Mignolo (2003) que eacute tambeacutem um discurso que muda a

extensatildeo entre os locais geoistoacutericos e a produccedilatildeo de conhecimentos Isto tem como

consequecircncia o reordenamento desta geopoliacutetica hegemocircnica por meio da

articulaccedilatildeo da racionalidade subalterna compreendida como um conjunto diverso das

praacuteticas teoacutericas na interseccedilatildeo das histoacuterias locais e dos projetos globais A

preocupaccedilatildeo do autor eacute

[] enfatizar a ideia de que lsquoo discurso colonial e poacutes-colonialrsquo natildeo eacute apenas um novo campo de estudo ou uma mina de ouro para a extraccedilatildeo de novas riquezas mas condiccedilatildeo para a possibilidade de se construiacuterem novos loci de enunciaccedilatildeo e para a reflexatildeo de que o lsquoconhecimento e compreensatildeorsquo acadecircmicos devem ser complementados pelo lsquoaprender comrsquo aqueles que vivem e refletem a partir de legados coloniais e poacutes-coloniais de Rigoberta Menchuacute a Angel Rama Do contraacuterio corremos o risco de estimular a macaqueaccedilatildeo a exportaccedilatildeo de teorias o colonialismo (cultural) interno em vez de promover novas formas de criacutetica cultural de emancipaccedilatildeo intelectual e poliacutetica mdash de transformar os estudos coloniais e poacutes-coloniais em um campo de estudo em vez de loacutecus de enunciaccedilatildeo liminar e criacutetico O lsquoponto de vista nativorsquo tambeacutem inclui os intelectuais [] o terceiro mundo produz natildeo apenas lsquoculturasrsquo a serem estudadas por antropoacutelogos e etno-historiadores mas tambeacutem intelectuais que geram teorias e refletem sobre sua proacutepria historia e cultura (MIGNOLO 1993 p 131)

Os novos locusde enunciaccedilatildeo natildeo teratildeo mais como centro o sistema moderno-

colonial e sim as suas margens O aprender proposto pelo autor eacute um dos objetivos

deste trabalho aprender com os ribeirinhos da Amazocircnia que produzem

conhecimentos que retratam suas histoacuterias e culturas Conhecimentos referentes agrave

mata aos rios ao accedilaiacute agrave pesca agrave confecccedilatildeo dos instrumentos para as atividades

econocircmicas sociais e religiosas que foram e satildeo subalternizados suprimidos e

silenciados Desta formaa emergecircncia de um pensamento liminar altera e ultrapassa

as configuraccedilotildees histoacutericas e geopoliacuteticas que marcaram historicamente o sistema

moderno colonial regulado pela colonizaccedilatildeo epistecircmica e subalternizaccedilatildeo de

saberes liacutenguas culturas e povos

O pensamento fronteiriccedilo eacute outro conceito apresentado pelo referido autor que

assim como o pensamento liminar

[] desde la perspectiva de la subalternidad colonial es um pensamiento que no puede ignorar el pensamiento de la modernidad pero que no puede tampoco subyugarse a eacutel aunque tal pensamiento moderno sea de izquierda o progresista El pensamiento fronterizo es el pensamiento que afirma el espacio donde el pensamiento fue negado por el pensamiento de la modernidad de izquerda o de derecha (MIGNOLO 2003 p 52)

58

O pensamento fronteiriccedilo juntamente com o liminar corresponde agrave razatildeo

subalterna que evidenciam e procuram tornar perceptiacutevel a potencialidade dos

saberes subalternizados rompendo dessa forma com a uniformizaccedilatildeo imposta pelo

eurocentrismo Tem como caracteriacutestica ser epistemoloacutegico porque eacute constituiacutedo a

partir da criacutetica do conhecimento hegemocircnico que se considera universal e tambeacutem eacute

eacutetico porque eacute uma maneira de pensar que natildeo eacute inspirada ldquonas suas proacuteprias

limitaccedilotildees e natildeo pretende humilhar uma maneira de pensar que eacute universalmente

marginal fragmentaacuteria e abertardquo (MIGNOLO 2003 p 104)

O pensamento fronteiriccedilo como consequecircncia da diferenccedila colonial natildeo eacute

uacutenico e uniforme pois resulta da luta e do reconhecimento das diferenccedilas e das

diversidades Assim natildeo haacute um fundamentalismo teoacuterico e praacutetico que rejeita tudo e

qualquer coisa que seja europeia ao inveacutes disso leva em conta a duplicidade de

consciecircncia que o sistema mundo colonialmoderno gera Portanto Mignolo (2003)

reconhece a importacircncia da ciecircncia e das formas de saberes ocidentais hegemocircnicas

para o autor as diversas histoacuterias saberes e epistemologias locais satildeo resultados da

diferenccedila colonial resultante da colonialidade do poder e do saber afirmando que natildeo

se trata de negar o paradigma hegemocircnico mas sim de admitir que existam outros

paradigmas frutos da diversidade epistemoloacutegica do mundo

O diaacutelogo entre os paradigmas deve ocorrer a partir do reconhecimento e

validaccedilatildeo de outras epistemologias que satildeo resultado da diversidade de culturas

existente no mundo Dentre as concepccedilotildees para o desenvolvimento do diaacutelogo

discutimos a seguir a proposta por Paulo Freire

13O DIAacuteLOGO ponto de partida para praacuteticas transformadoras

Para Freire (1986) o diaacutelogo faz parte da natureza histoacuterica dos seres

humanos Eacute momento de encontro com vistas agrave reflexatildeo da realidade na qual vivemos

para poder transformaacute-la Desta forma o diaacutelogo ldquoeacute este encontro dos homens

mediatizados pelo mundo para pronunciaacute-lo natildeo se esgotando portanto na relaccedilatildeo

eu-turdquo (FREIRE 2014 p 109) A pronuacutencia se daacute pela palavra composta pela accedilatildeo e

reflexatildeo tornando-se praacutexis que segundo Freire (2014 p109) ldquoeacute reflexatildeo e accedilatildeo

doshomens sobre o mundo para transformaacute-lo Sem ela eacute impossiacutevel a superaccedilatildeo da

contradiccedilatildeo opressor-oprimidordquo Quando haacute a dicotomia entre essas duas dimensotildees

a accedilatildeo vira ativismo e a reflexatildeo verbalismo o que segundo o autor inviabiliza o

diaacutelogo pois a transformaccedilatildeo ocorre pela palavra ao pronunciar o mundo daiacute sua

importacircncia como percurso no qual o ser humano ganha significaccedilatildeo

59

A palavra natildeo pode ser muda nem silenciosa precisa ter o poder de criar

transformar potencializar e libertar O mutismo da palavra somentetem sentido

quando submerge o sujeito de sua realidade e o faz emergir no seu acircmago um imenso

amor ao mundo e agrave humanidade Para Freire (2014 p 111) ldquoexistir humanamente eacute

pronunciar o mundo eacute modificaacute-lo O mundo pronunciado por sua vez se volta

problematizado aos sujeitos pronunciantes a exigir deles novo pronunciarrdquo

Desta maneira para que ocorra o diaacutelogo eacute preciso garantir o direito agrave palavra

a todos

Por isto o diaacutelogo eacute uma exigecircncia existencial E se ele eacute o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereccedilados ao mundo a ser transformado e humanizado natildeo pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito num outro nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes(FREIRE 2014 p 109)

Nesse sentido constitui-se numa perspectiva horizontal na qual todos devem

ter direito agrave palavra caso ela seja negada precisa ser conquistada para que se possa

exercer o direito de pronunciaacute-la Por meio do diaacutelogo podemos refletir coletivamente

sobre o que conhecemos e tambeacutem referente ao que ainda natildeo sabemos para

posteriormente de forma criacutetica mudarmos nossa realidade Nesse processo o

diaacutelogo eacute comunicaccedilatildeo por meio da qual conhecemos o mundo na interaccedilatildeo com o

outro o que caracteriza um ato social mesmo com dimensotildees individuais ldquoO que eacute o

diaacutelogo neste momento de comunicaccedilatildeo de conhecimento e de transformaccedilatildeo

social O diaacutelogo sela o relacionamento entre os sujeitos cognitivos podemos a

seguir atuar criticamente para transformar a realidaderdquo (FREIRE 1986 p 123) Para

que ocorra de fato o diaacutelogo requer amor humildade feacute e confianccedila nos homens

bem como esperanccedila aliada a luta pela mudanccedila

Para Freire (2014) o diaacutelogo exige um imenso amor ao mundo e aos homens

e eacute necessariamente uma atitude de coragem e compromisso Desta maneira ldquoeacute

impossiacutevel haver diaacutelogo se natildeo haacute uma profunda relaccedilatildeo de amorrdquo (p 111) A relaccedilatildeo

amorosa estaacute baseada em um compromisso com o outro o qual eacute estimulado pelo

amor que o sustenta e o impulsiona

O amor eacute ingrediente para a constituiccedilatildeo do mundo que eacute criado e recriado

pelos sujeitos tornando-se ldquoao mesmo tempo o fundamento do diaacutelogo e o proacuteprio

diaacutelogordquo (FREIRE 2014 p 112) Assim o diaacutelogo eacute movido pelo interesse muacutetuo o

que natildeo ocorre na relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e opressatildeo nela impera o egoiacutesmo com a

imposiccedilatildeo de ideias e accedilotildees tornando-se verticalizado Nessa perspectiva qualquer

60

mudanccedila que venha a afetar as nossas emoccedilotildees consequentemente afetaraacute e

modificaraacute tambeacutem as nossas accedilotildees Maturana (2004 p 45) reforccedila esse pensamento

ao dizer que eacute a emoccedilatildeo que define a accedilatildeo ldquo[] Eacute a emoccedilatildeo a partir da qual se faz

ou se recebe certo fazer que o transforma numa ou noutra accedilatildeo ou que o qualifica

como um comportamento dessas ou daquela classerdquo Consequentemente continua o

autor o conversar perpassa pela convivecircncia amorosa mesclada pela emoccedilatildeo e

linguagem de maneira dialoacutegicaNa oacutetica da educaccedilatildeo essa conversa gera uma

reflexatildeo coletiva direcionada a criar e aprimorar accedilotildees emancipadoras motivo pelo

qual o direito agrave palavra aos educandos eacute condiccedilatildeo fundamental

Na educaccedilatildeo escolar o diaacutelogo freireano eacute baseado na amorosidade e no

respeito agrave dignidade dos envolvidos isso natildeo requer que o professor segundo

Oliveira (2008) abra matildeo de sua competecircncia teacutecnica no fazer pedagoacutegico com receio

de natildeo ser amoroso pois o saber teacutecnico e a amorosidade natildeo eacute incompatiacutevel e

ambos satildeo necessaacuterios agraves relaccedilotildees educativas uma vez que

[] na convivecircncia amorosa com seus alunos e na postura curiosa e aberta que assume e ao mesmo tempo provoca-os assumirem enquanto sujeitos soacutecio-histoacuterico-culturais do ato de conhecer eacute que ele pode falar do respeito agrave dignidade e autonomia do educando (OLIVEIRA 2008 p 15)

O respeito a dignidade e a autonomia fazem parte do rigor do processo

educativo envolvidos pelo diaacutelogo amoroso no qual educador e educando satildeo sujeitos

encharcados de afetividade e vistos numa perspectiva horizontal no ato dialoacutegico

Assim para Freire (2001) a compreensatildeo de uma nova forma de ensinar aprender e

conhecer decorreraacute da visatildeo do mundo enquanto produzido e reproduzido pelo ser

humano numa relaccedilatildeo dialoacutegica com outros homens e com o mundo No fazer

pedagoacutegico a relaccedilatildeo dialoacutegica estaacute balizada pelo entendimento poliacutetico e

competecircncia teacutecnica dos educadores afetividade seriedade e alegria que podem

estar a serviccedilo da permanecircncia ou mudanccedila da sociedade (FREIRE 1998) Ser seacuterio

natildeo significa ser autoritaacuterio ou severo a seriedade pode caminhar junto com a

afetividade conforme Freire (1998 p 32) afirma

Na verdade preciso descartar como falsa a separaccedilatildeo radical entre seriedade docente e afetividade Natildeo eacute certo sobretudo do ponto de vista democraacutetico que serei tatildeo melhor professor quanto mais severo mais frio mais distante e ldquocinzentordquo me ponha nas minhas relaccedilotildees com os alunos no trato dos objetos cognosciacuteveis que devo ensinar A afetividade natildeo se acha excluiacuteda da cognoscibilidade []

O ato cognosciacutevel eacute seacuterio e amoroso o educador numa perspectiva freireana

expressa sua afetividade sem receio e ao mesmo tempo com seriedade dialoga com

61

os educandos a partir de suas realidades problematizando-as ldquoa professora

progressista ensina os conteuacutedos de sua disciplina com rigor e com rigor cobra a

produccedilatildeo dos educandos mas natildeo esconde sua opccedilatildeo poliacutetica na neutralidade

impossiacutevel de seu quefazerrdquo (FREIRE 2000 p 44) Portanto continua o autor o

diaacutelogo ocorre no interior de um determinado contexto neste caso a escola assim para

alcanccedilar os objetivos da transformaccedilatildeo o diaacutelogo implica responsabilidade

direcionamento determinaccedilatildeo disciplina e objetivos

Outra condiccedilatildeo para a existecircncia do diaacutelogo eacute a humildade pois a criaccedilatildeo e

recriaccedilatildeo do mundo natildeo podem ser realizadas com arrogacircncia

A autossuficiecircncia eacute incompatiacutevel com o diaacutelogo Os homens que natildeo tem humildade ou a perdem natildeo podem aproximar-se do povo Natildeo podem ser seus companheiros de pronuacutencia do mundo Se algueacutem natildeo eacute capaz de sentir-se e soube-se tatildeo homem quanto os outros eacute que lhe falta ainda muito para caminhar para chegar ao lugar de encontro com eles Neste lugar de encontro natildeo haacute ignorantes absolutos nem saacutebios absolutos haacute homens que em comunhatildeo buscam saber mais (FREIRE 2014 p112)

O reconhecimento de que natildeo somos ignorantes tampouco saacutebios absolutos

possibilita-nos estar abertos a aprender com o outro ateacute porque somos seres

inacabados em constante processo de aprendizagem O educador eacute portador de um

saber que faz parte de sua competecircncia teacutecnica de acordo com a formaccedilatildeo que

possui Isso natildeo significa que o educando eacute ignorante que natildeo sabe nada ao

contraacuterio numa comunidade ribeirinha ele domina os saberes necessaacuterios para

sobreviver neste contexto o que denota que existem diversidades de saberes Nessa

oacutetica o educador por meio do diaacutelogo aprende com os alunos os saberes locais e

ensina a partir desses saberes os cientiacuteficos Mas para que o diaacutelogo se efetive

precisa ser humilde e admitir a sua ignoracircncia em relaccedilatildeo a esses saberes

Assim a humildade implica dar a palavra ouvir e respeitar as ideias e os

pensamentos do outro As diferenccedilas neste caso natildeo nos tornam inferiores apenas

enriquecem-nos enquanto seres cognitivos O educador dialoacutegico estaacute aberto agraves

contribuiccedilotildees e incentiva a participaccedilatildeo e autonomia do educando que eacute formado para

o diaacutelogo No diaacutelogo a partir de sua realidade consegue desvendar aspectos que

estavam ocultos

A feacute nos homens constitui outro componente do diaacutelogo Eacute essencial crer no

homem e em seu poder de transformar criar e recriar em todos os momentos Afirma

Freire (2014 p112)

O diaacutelogo exige igualmente uma feacute intensa no homem feacute em seu poder de fazer e refazer de criar e recriar feacute em sua vocaccedilatildeo de ser mais humano []

62

O homem de diaacutelogo eacute criacutetico e sabe que embora tenha o poder de criar e de transformar tudo numa situaccedilatildeo completa de alienaccedilatildeo podem-se impedir os homens de fazer uso deste poder

A feacute no poder de transformaccedilatildeo independente do contexto que quando eacute

desfavoraacutevel o homem dialoacutegico que tem uma visatildeo criacutetica de mundo a concebe

como um desafio que eacute possiacutevel superaacute-lo por meio da conscientizaccedilatildeo e da luta para

a libertaccedilatildeo ldquosem esta feacute nos homens o diaacutelogo eacute uma farsa Transforma-se na

melhor das hipoacuteteses em manipulaccedilatildeo adocicadamente paternalistardquo (FREIRE 2014

p 113)

Portanto o diaacutelogo para o referido autor eacute amoroso humilde e repleto de feacute

sustentado na confianccedila que tornam os homens mais companheiros na luta pela

libertaccedilatildeo da opressatildeo Desta maneira a palavra para ter confianccedila tem que se

materializar na accedilatildeo no exemplo

O diaacutelogo tambeacutem natildeo pode existir sem esperanccedila ldquose os sujeitos do diaacutelogo

nada esperam do seu quefazer jaacute natildeo pode haver diaacutelogo O seu encontro eacute vazio e

esteacuteril Eacute burocraacutetico e fastidiosordquo (FREIRE 2014 p 114) A esperanccedila estaacute na raiz

da inconclusatildeo dos homens a partir da qual almejam algo melhor para os seus

semelhantes A inconclusatildeo gera a vontade da mudanccedila O problema eacute quando este

almejar eacute egoiacutesta neste caso natildeo serve agrave visatildeo dialoacutegica

As situaccedilotildees de adversidades onde prevalece a opressatildeo natildeo devem gerar a

desesperanccedila considerando que a mudanccedila gerada pela reflexatildeo-accedilatildeo tem como

estiacutemulo a esperanccedila Desta forma a educaccedilatildeo torna-se primordial visto que natildeo se

nasce esperanccediloso por esta razatildeo precisamos de uma educaccedilatildeo para a esperanccedila

refletida numa pedagogia da esperanccedila Destaca Freire (1992) que eacute

ingecircnuoacharmos que somente a esperanccedila transformaraacute o mundo mas sem ela

torna-se pura ilusatildeo haja vista que se fundamenta na eacutetica e na verdade

O essencial como diz mais no corpo desta Pedagogia da esperanccedila eacute que ela enquanto necessidade ontoloacutegicaprecisa de ancorar-se na praacutetica Enquanto necessidade ontoloacutegicaa esperanccedila precisa da praacutetica para tornar-se concretude histoacutericaEacute por isso que natildeo haacute esperanccedila na pura espera nem tampoucose alcanccedila o que se espera na espera pura que vira assim esperavatilde Sem um miacutenimo de esperanccedila natildeo podemos sequer comeccedilaro embate mas sem o embate a esperanccedila como necessidade ontoloacutegicase desendereccedila e se torna desesperanccedila que agraves vezes sealonga em traacutegico desespero Daiacute a precisatildeo de certa educaccedilatildeoda esperanccedila Eacute que ela tem tal importacircncia em nossa existecircnciaindividual e social que natildeo devemos experimentaacute-la de formaerrada deixando que ela resvale para a desesperanccedila e o desesperoDesesperanccedila e desespero consequecircncia e razatildeo de ser da inaccedilatildeoou do imobilismo (FREIRE 1992 p11)

63

A esperanccedila estaacute aliada agrave luta visto que se cruzarmos os braccedilos esperando

as coisas acontecerem caiacutemos no imobilismo O autor destaca a importacircncia da

educaccedilatildeo dialoacutegica encharcada de esperanccedila na mudanccedila que vem com a luta pela

libertaccedilatildeo da opressatildeo por meio de um pensamento verdadeiro que eacute criacutetico

Concebe a realidade como mutante em constante mudanccedila e transformaccedilatildeo o

homem estaacute no mundo assim como o mundo estaacute no homem natildeo existe ldquodicotomia

entre mundo-homensrdquo (FREIRE 2014 p 114)

2 A EDUCACcedilAtildeO DAS POPULACcedilOtildeES RIBEIRINHAS NA AMAZOcircNIA

Neste capiacutetulo fizemos uma imersatildeo histoacuterica das populaccedilotildees ribeirinhas na

Amazocircnia realizamos um mergulho na Amazocircnia brasileira com ecircnfase nos povos

das aacuteguas em seguida abordamos o municiacutepio de Afuaacutenosseus aspectos histoacutericos

geograacuteficos e econocircmicos com destaque paraa dimensatildeo educacional

21 UM MERGULHO NA AMAZOcircNIA BRASILEIRA

Mergulhar na Amazocircnia eacute imergir na diversidade tanto econocircmica geograacutefica

ecoloacutegica como cultural Para compreendermos esta regiatildeo faz-se necessaacuterio

concebecirc-la no plural como afirma Gonccedilalves (2005 p 8)

Para os de fora a imagem que se tem da Amazocircnia eacute mais homogecircnea [] Para os habitantes da proacutepria regiatildeo a lsquoAmazocircniarsquo eacute um termo vago que adquire muacuteltiplos significados correspondentes aos mais diferentes contextos soacutecio-ecoloacutegico-culturais especiacuteficos que satildeo os espaccedilos do seu cotidiano Assim enquanto para uns ndash os de fora lsquoAmazocircniarsquo aparece no singular para outros isto eacute para os que nela mora ndash ela eacute plural e multifacetada

A pluralidade eacute a principal caracteriacutestica desta regiatildeo A diversidade e a

complexidade do seu territoacuterio satildeo tatildeo vastas que para falarmos sobre ela eacute preciso

estar no seu interior para identificar qual eacute a Amazocircnia a que estamos nos referindo

Assim este vasto territoacuterio eacute habitado por caboclos garimpeiros posseiros

ribeirinhos quilombolas povos indiacutegenas pescadores coletores agricultores rurais

colonos imigrantes atingidos por barragens dentre outros povos que reconstroem o

espaccedilo amazocircnico Esta diversidade de povos caracteriza a Amazocircnia como um lugar

heterogecircneo que eacute formado por um universo cultural pluralizado Como afirma Fares

(2004 p 86) ldquonatildeo existe uma cultura uma identidade amazocircnica no singular A

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concepccedilatildeo deste espaccedilo eacute plural As diferentes manifestaccedilotildees culturais trazem

marcas do hiacutebrido16 e da mesticcedilagem17rdquo

Para Rodrigues et al (2007 p 29) a cultura popular amazocircnica refere-se [] aos diversos modos das classes e dos grupos populares da Amazocircnia de produccedilatildeo e reproduccedilatildeo social da realidade assentadas nas condiccedilotildees de vida locais nos saberes nos valores nas praacuteticas sociais e educativas no simboacutelico e no imaginaacuterio de uma variedade de sujeitos habitantes de aacuterea de terra firme vaacuterzea e igapoacute em localidades rurais e urbanas da regiatildeo

Neste trabalho a Amazocircnia Paraense especificamente a Amazocircnia rural-

ribeirinha foi o lugar onde realizamos a pesquisa de campo lugar no qual imergimos

no universo cultural e convivemos e dialogamos com moradores das comunidades e

professores da Ilha do Accedilaiacute De acordo com Loureiro (2001 p 65) a cultura ribeirinha

eacute a que mais expressa a cultura amazocircnica ldquoseja quanto aos seus traccedilos de

originalidade seja como produto da acumulaccedilatildeo de experiecircncias sociais e da

criatividade de seus habitantes resultante do hibridismordquo Criatividade que comeccedila na

produccedilatildeo de artefatos que compotildeem o universo cultural que satildeo apreendidos pelos

mais jovens atraveacutes da oralidade e estatildeo presentes nas relaccedilotildees sociais religiosas e

econocircmicas Portanto o hibridismo cultural estaacute fortemente presente nas diversas

amazocircnias

Essa marca hiacutebrida teve seu aacutepice a partir do contato com os natildeos iacutendios

contato esse permeado pela violecircncia Segundo Loureiro (2002) o primeiro ato de

violecircncia contra os povos da Amazocircnia ocorreu por meio do contato com o europeu

o espanhol Vicente Pinzon em 1500 que apesar de ser bem recebido pelos nativos

os aprisionou e os vendeu como escravos na Europa A origem dos mitos referentes

agrave regiatildeo tambeacutem eacute produto europeu

A viagem de Orellana (em 1549) instaura o momento fundador dos primeiros mitos como o das Amazonas ndash iacutendias guerreiras bravas habitantes de uma aldeia sem homens Outros viajantes aventureiros e exploradores que procuravam riquezas espalharam mundo afora mitos e fantasias De todo o mito mais persistente parece ter sido sempre o da superabundacircncia e da resistecircncia da natureza da regiatildeo florestas com aacutervores altiacutessimas que

16Para Canclini (2006 p 19) o hibridismo ldquoabrange diversas mesclas interculturais - natildeo apenas raciais agraves quais costuma limitar-se o termo lsquomesticcedilagemrsquo - e porque permite incluir as formas modernas de hibridaccedilatildeo melhor do que lsquosincretismorsquo foacutermula que se refere quase sempre a fusotildees religiosas ou de movimentos simboacutelicos tradicionaisrdquo 17Gruzinski (2001 p 62) utiliza a mesticcedilagempara designar ldquoas misturas que ocorreram em solo

americano no seacuteculo XVI entre seres humanos imaginaacuterios e formas de vida vindos de quatro

continentes Ameacuterica Europa Aacutefrica e Aacutesia Enquanto que a hibridaccedilatildeo o autor utiliza na anaacutelise das

misturas que se desenvolvem dentro de uma mesma civilizaccedilatildeo ou de um mesmo conjunto histoacuterico

65

penetravam nas nuvens frutos e flores de cores e sabores indescritiacuteveis rios largos a se perderem no horizonte (povoados de monstros engolidores de navios nas noites escuras) animais estranhos e abundantes por todo o chatildeo paacutessaros cobrindo o ceacuteu e colorindo-o em nuvens de penas e plumas de todas as cores (LOUREIRO 2001 p 108)

Assim os mitos resultado da visatildeo do estrangeiro permearam e ainda estatildeo

presentes no imaginaacuterio sobre a populaccedilatildeo nativa considerada primitiva baacuterbara

rude preguiccedilosa e desprovida de alma O preconceito em relaccedilatildeo ao homem e agrave

natureza foi construiacutedo desde a chegada do europeu destaca Loureiro (2001 p 109)

ldquo[] de um lado a visatildeo paradisiacuteaca criada pela magia dos mitos da regiatildeo e sobre a

regiatildeo de outro a violecircncia cotidiana gestada pela permanente exploraccedilatildeo da

naturezardquo Outro mito relativo agrave natureza tambeacutem concebido externamente eacute o de

que a Amazocircnia eacute a terra da superabundacircncia o celeiro e o pulmatildeo do mundo no

entanto as poliacuteticas puacuteblicas direcionadas para a regiatildeo natildeo levam em consideraccedilatildeo

a sua biodiversidade o que prevalece satildeo praacuteticas contraditoacuterias entre

desenvolvimento e preservaccedilatildeo ambiental

A referida autora destaca que os ecossistemas amazocircnicos pela sua

fragilidade requerem o equiliacutebrio e a articulaccedilatildeo entre chuva mata e solo mas o

modelo de desenvolvimento natildeo tem considerado esses fatores e partem do princiacutepio

de que os ecossistemas satildeo ricos e autorregeneraacuteveis O desperdiacutecio de recursos

naturais gerados pelas atividades econocircmicas dentre as quais a pecuaacuteria exploraccedilatildeo

madeireira mineraccedilatildeo garimpagem e outras que apresentam diferentes impactos

sobre a natureza ldquovecircm sendo desenvolvidas indiferentemente sobre aacutereas de

florestas densas nascentes e margens de rios regiotildees de manguezais nas planiacutecies

em encostas em solos fraacutegeis ou nos raros solos bem estruturadosrdquo (LOUREIRO

2001 p 113)

Gonccedilalves (2005) identifica a coexistecircncia de dois padrotildees que foram utilizados

para a exploraccedilatildeo da Amazocircnia Rio-vaacuterzea-floresta e Rodovia-terra firmendashsubsolo O

primeiro padratildeo eacute assinalado pela exploraccedilatildeo econocircmica da floresta e sua

organizaccedilatildeo agraves margens dos rios que prevaleceu na regiatildeo ateacute a deacutecada de 1950 O

segundo caracteriza-se por um rumo diferente de ocupaccedilatildeo da regiatildeo tendo como

referecircncia a construccedilatildeo da rodovia Beleacutem-Brasiacutelia no final da deacutecada de 1950 com

atividades voltadas para a exploraccedilatildeo econocircmica da terra firme (pecuaacuteria e

agricultura) e do subsolo (atividades minerais)

66

Nesse sentido Loureiro (2001) diz que a riqueza gerada na Amazocircnia natildeo eacute

usufruiacuteda pelos seus habitantes o processo de exploraccedilatildeo da regiatildeo vem desde a

colonizaccedilatildeo inicialmente explorada economicamente pela Metroacutepole e na

atualidade pela Federaccedilatildeo A citada autora faz uma abordagem histoacuterica do processo

de exclusatildeo da populaccedilatildeo amazonida do potencial econocircmico desde o periacuteodo da

colonizaccedilatildeo ateacute a contemporaneidade

A Amazocircnia foi no passado ldquoum lugar com um bom estoque de iacutendiosrdquo para servirem de escravos uma fonte de lucros no periacuteodo das ldquodrogas do sertatildeordquo enriquecendo a Metroacutepole ou ainda a maior produtora e exportadora de borracha tornando-se uma das regiotildees mais rentaacuteveis do mundo numa certa fase Mas eacute mais recentemente que ela tem sido mais explorada seja como fonte de ouro como em Serra Pelada seja como geradora de energia eleacutetrica para exportar para outras regiotildees do Brasil e para os grandes projetos que a consomem a preccedilos subsidiados enquanto o morador da regiatildeo paga pela mesma energia um preccedilo bem mais elevado seja como uacuteltima fronteira econocircmica para a qual milhotildees de brasileiros tecircm acorrido nas uacuteltimas deacutecadas com vistas a fugirem da persistente crise econocircmica do paiacutes buscando na Amazocircnia um destino melhor (o que infelizmente poucos encontram) (LOUREIRO 2002 p 107)

No auge da borracha na Segunda metade do seacuteculo XIX os lucros natildeo ficaram

na regiatildeo as uacutenicas cidades beneficiadas foram Beleacutem e Manaus por serem sede

das empresas multinacionais que exploravam o produto Quem realmente enriqueceu

foram os empresaacuterios norte americanos e os europeus donos das grandes

corporaccedilotildees internacionais Em relaccedilatildeo agrave utilizaccedilatildeo do laacutetex extraiacutedo das seringueiras

os iacutendiosCambebes ou Omaguas que ocupavam uma vasta aacuterea do Solimotildees-

Maranon jaacute o utilizavam para fabricaccedilatildeo de utensiacutelios como sapatos capas e

couraccedilas na fabricaccedilatildeo de remeacutedios queimavam-no para clarear os dias de festas

durante a noite ldquoou dele se valiam para as flechas incendiadas que lanccedilavam sobre

as tabas inimigas por ocasiatildeo dos ataques nas guerras que se faziam Havia ainda

um uso interessante o untamento dos receacutem-nascidos no laacutetex para livraacute-los do friordquo

(REIS 1997 p 80-81)

A exploraccedilatildeo predatoacuteria provocou o raacutepido esgotamento dos seringais o que

levou agrave procura de novas aacutereas para retirada do laacutetex adentrando a mata rumo a

devastaccedilatildeo De acordo com Tavares (2011 p 107) ldquoOs seringais localizavam-se na

regiatildeo das Ilhas inclusive o Marajoacute alcanccedilando o rio Xingu o Jari o Capim o Guamaacute

o Acaraacute e o Moju Aacutereas que logo se esgotavam em decorrecircncia da precariedade do

corte das aacutervoresrdquo

A demanda do mercado internacional pela borracha em decorrecircncia do

desenvolvimento tecnoloacutegico poacutes-revoluccedilatildeo industrial a descoberta da teacutecnica da

67

vulcanizaccedilatildeo que permitiria a utilizaccedilatildeo do produto em qualquer temperatura o

incentivo agrave migraccedilatildeo nordestina que foi utilizada como a matildeo de obra a implantaccedilatildeo

de um sistema de transporte a vapor que faria a interligaccedilatildeo do interior com Beleacutem e

com a Europa a implantaccedilatildeo de firmas exportadoras e a construccedilatildeo de um porto que

escoaria o produto para o mercado externo e finalmente o sistema de aviamento

que permitiu o controle da matildeo de obra a expansatildeo de novos locais de exploraccedilatildeo e

o controle do excedente da produccedilatildeo nas pontas do sistema foram condicionantes

poliacuteticos econocircmicos e sociais relevantes para o desenvolvimento da atividade na

regiatildeo (TAVARES 2011)

A riqueza produzida pela exploraccedilatildeo da borracha natildeo beneficiou a regiatildeo como

um todo apenas as cidades que ofereciam a infraestrutura necessaacuteria para o

escoamento da produccedilatildeo rumo ao mercado externo De acordo com Tavares (2011

p 115) ldquoo sistema extrativista produziu uma estrutura social diversa ndash milhares de

pobres e uma minoria rica uma vez que a renda se formava pelo trabalho de muitos

mas se concentrava nas matildeos de pouca ndash burguesia e seringalistasrdquo Quanto agrave exploraccedilatildeo dos minerais segundo Santos (2002) ateacute o iniacutecio da

deacutecada de 1960 o conhecimento do subsolo da Amazocircnia estava restrito aos

relatoacuterios de viagem de poucos pesquisadores normalmente limitados agrave calha dos

grandes rios A atividade mineral resumia-se a alguns garimpos de diamante ouro ou

cassiterita e o maior empreendimento era a exploraccedilatildeo de mineacuterio de manganecircs no

entatildeo Territoacuterio Federal do Amapaacute pela Sociedade Brasileira de Induacutestria e Comeacutercio

de Mineacuterios de Ferro e Manganecircs (ICOMI) associados agravecompanhia estadunidense

Bethlehem Steel considerado o maior e duradouro empreendimento mineral

desenvolvido na Amazocircnia durou mais de quatro deacutecadas compreendeu os anos de

1957 a 1998 nesse periacuteodo foram extraiacutedas por volta de sessenta milhotildees de

toneladas de mineacuterio de manganecircs das minas do municiacutepio de Serra do Navio

O tamanho a confiabilidade e a produtividade da produccedilatildeo de Serra do Navio ajudaram o Brasil a ganhar e a manter durante trinta anos uma posiccedilatildeo de destaque no mercado global de produtores de mineacuterio de manganecircs Desde 1957 o Brasil produz entre 7 a 12 de todo o mineacuterio de manganecircs do mundo (DRUMMOND 2000 p 768)

Os lucros natildeo ficaram e tambeacutem natildeo foram investidos na Amazocircnia A

produccedilatildeo era dedicada ao mercado externo e internacional embora o

empreendimento tenha tido sucesso como ressalta o citado autor natildeo beneficiou a

populaccedilatildeo local muito menos a economia do Amapaacute que continuou baseada no

68

extrativismo ldquo[] estimei a receita bruta da ICOMI entre 1957 e 1994 em mais de trecircs

bilhotildees de doacutelares norte-americanos []rdquo (idem p 760) Constata-se desta forma

que a regiatildeo serviu como fornecedora de mateacuteria-prima para o mercado mundial

confirmando a tese defendida por Loureiro (2002 p 107) de que ldquoa Amazocircnia foi

sempre mais rentaacutevel e por isso mais uacutetil economicamente agrave Metroacutepole no passado

e hoje agrave Federaccedilatildeo do que ela o tem sido para a regiatildeordquo

O impacto ambiental com danos irreparaacuteveis aos ecossistemas tambeacutem foram

levantados por Drummond (2000) dentre os quais destancam-se desmatamento

escavaccedilatildeo de solos desmonte de morros erosatildeo assoreamento de rios mudanccedila

de curso de pequenos rios construccedilatildeo de lagoas artificiais para deposiccedilatildeo disposiccedilatildeo

final de rejeitos gerados pelo processamento do mineacuterio disposiccedilatildeo de mineacuterios de

baixo teor e de esteacuteril Esses dados enfatizam que o modelo econocircmico posto em

accedilatildeo na regiatildeo tem ignorado e menosprezado a diversidade dos inuacutemeros

ecossistemas amazocircnicos

Segundo Monteiro (2005) as minas de manganecircs da Serra do Navio foi o uacutenico

mineacuterio explorado industrialmente por aproximadamente duas deacutecadas na Amazocircnia

oriental brasileira Este quadro mudou em decorrecircncia das poliacuteticas desencadeadas

pelo governo militar de 1964 baseadas na entrada de capitais destinados agrave ocupaccedilatildeo

do espaccedilo amazocircnico assim como nos investimentos em projetos para a exploraccedilatildeo

mineral com consequente atraccedilatildeo dos fluxos migratoacuterios por meio de uma poliacutetica

governamental voltada para a integraccedilatildeo da Amazocircnia apoiada pelos incentivos

fiscais e da melhoria dos meios de comunicaccedilatildeo e transporte

Assim os primeiros investimentos na Amazocircnia foram feitos por grandes corporaccedilotildees industriais multinacionais Tinham como objetivo principal a verificaccedilatildeo das potencialidades minerais dessa vasta regiatildeo ainda desconhecida considerando apenas o seu uso futuro Estava presente a visatildeo estrateacutegica dos recursos minerais pois se buscava alternativas de suprimento para atender ao futuro crescimento do mercado ou prevenir a escassez decorrente de eventual crise nos paiacuteses produtores como decurso das poliacuteticas nacionalistas em vigor na eacutepoca Dessa forma eacute que os primeiros investimentos foram destinados agrave busca de mineacuterio de alumiacutenio (cujo mercado estava em expansatildeo) e de manganecircs (essencial para a induacutestria do accedilo) ambos dependentes da produccedilatildeo de poucos paiacuteses (SANTOS 2002 p 125)

Ainda como poliacutetica de desenvolvimento de acordo com Monteiro (2005) o

Governo Federal criou o Programa Grande Carajaacutes no ano de 1980 com a finalidade

de acelerar o desenvolvimento dos projetos minero-metaluacutergicos O referido programa

foi financiado pelos recursos estatais e os advindos dos incentivos fiscais e de

69

creacuteditos e consistiu na monitoraccedilatildeo e aplicabilidade dos projetos de exploraccedilatildeo

mineral em desenvolvimento dentre os quais Ferro Carajaacutes a Albras a Alunorte a

Alumar e a Usina de Tucuruiacute O autor destaca a extraccedilatildeo do mineacuterio de ferro da Serra

dos Carajaacutes em 1977 no Estado do Paraacute pela Companhia Vale do Rio Doce

Para tanto montou-se uma grandiosa estrutura que ocasionou desmatamento

poluiccedilatildeo dos recursos hiacutedricos com a construccedilatildeo ldquode minas instalaccedilotildees de

beneficiamento e um paacutetio de estocagem as instalaccedilotildees portuaacuterias e a Estrada de

Ferro Carajaacutes cujos 890 quilocircmetros de extensatildeo interligam a Serra dos Carajaacutes ao

terminal mariacutetimo da Ponta da Madeira em Satildeo Luiacutes (MA)rdquo(MONTEIRO 2005 p

190)

Fotografia 1 -Mina de ferro Carajaacutes no Estado do Paraacute

Na foto o impacto ambiental causado pela extraccedilatildeo do mineacuterio de ferro como a abertura de grandes crateras que modificam o relevo e removem totalmente a cobertura vegetal deixando as aacutereas deseacuterticas O uso de produtos quiacutemicos contaminam a rede hiacutedrica e o solo bem como os lenccediloacuteis freaacuteticosFonte T Photography

O ouro foi outro mineral bastante explorado desde o seacuteculo XIX cuja

exploraccedilatildeo comeccedilou a ser intensificada na deacutecada de 1960 principalmente no Paraacute

Neste Estado a partir da deacutecada de 1980 em Carajaacutes a corrida pelo ouro atraiu

milhotildees de garimpeiros incentivada segundo Santos (2002) pelo agravamento da

miseacuteria de boa parte da populaccedilatildeo brasileira principalmente a rural e nordestina

decorrente da falta de uma soluccedilatildeo adequada para a questatildeo agraacuteria O autor enfatiza

outros fatores que contribuiacuteram para a expansatildeo da atividade garimpeira por toda a

Amazocircnia dentre os quaisressalta-se a elevaccedilatildeo do preccedilo do ouro o atrativo

70

despertado pela ampla divulgaccedilatildeo na imprensa da descoberta de depoacutesitos ricos

como serra Pelada e os estiacutemulos das autoridades governamentais Entretanto

devido agrave exaustatildeo dos depoacutesitos superficiais mais ricos agrave queda do preccedilo do ouro e

agrave sensiacutevel reduccedilatildeo da diferenccedila cambial esse modelo social e econocircmico de

ocupaccedilatildeo da Amazocircnia encontra-se em decliacutenio Quanto agrave situaccedilatildeo social dos

garimpeiros

Na Amazocircnia os milhares de migrantes que foram atraiacutedos pela lsquofebre do ourorsquo da deacutecada passada estatildeo engrossando as legiotildees dos lsquosem terrarsquo que clamam por uma soluccedilatildeo para a questatildeo agraacuteria num paiacutes com dimensotildees continentais mas onde as elites dominantes desde o tempo das ldquocapitanias hereditaacuteriasrdquo tecircm na posse de grandes extensotildees territoriais uma das formas de seu poder poliacutetico O garimpo na Amazocircnia correspondeu a simples paliativo apenas adiando por duas deacutecadas ndash conforme jaacute era previsiacutevel na eacutepoca ndash a necessidade de uma soluccedilatildeo para a questatildeo agraacuteria (SANTOS 2002 p 127)

Aleacutem do manganecircs do ferro e do ouro outro mineral bastante explorado foi a

cassiterita Afirma Santos (2002) que a cassiterita tambeacutem na deacutecada de 1960 em

Rondocircnia atraiu milhares de garimpeiros Posteriormente em 1970 apareceram

outros distritos estaniacuteferos que foram explorados por mineradoras jaacute em 1976 os

garimpeiros invadiram terras indiacutegenas dos Yanomami para exploraccedilatildeo do mineral

Segundo Albert (2004) o contato inicial desta etnia com os natildeo iacutendios ocorreu por

volta de 1955 Os programas e projetos desenvolvidos na regiatildeo bem como

construccedilatildeo de estradas as fazendas serrarias canteiros de obras e os garimpos

intensificaram os contatos e interfeririam substantivamente na cultura desse povo

bem como gerou conflitos constantes pela posse da terra Enfatiza o citado autor que

a corrida do ouro dos anos 1980 em Roraima dizimou 15 da populaccedilatildeo indiacutegena

e que no periacuteodo de 1987 a 1990 a quantidade de garimpeiros cerca de 40000

(quarenta mil) equivalia a cinco vezes o numero de iacutendios yanomami ldquoEmbora a

intensidade dessa corrida do ouro tenha diminuiacutedo muito a partir do comeccedilo dos anos

1990 ateacute hoje nuacutecleos de garimpagem continuam encravados na terra yanomami de

onde seguem espalhando violecircncia e graves problemas sanitaacuterios e sociaisrdquo

(ALBERT 2004 p 3) De acordo com os documentos e pesquisas arqueoloacutegicas foi

estimado o total de trecircs a cinco milhotildees de iacutendios na Amazocircnia brasileira no iniacutecio da

colonizaccedilatildeo

Para Almeida Junior (1996) a gecircnese desses conflitos estaacute no mercantilismo e

no capitalismo colonial Atualmente os conflitos entre povos indiacutegenas versus grupos

econocircmicos que desejam explorar e capitalizar os recursos existentes em suas

71

terrastecircm produzido natildeo somente a violecircncia fiacutesica com casos que culminam em

mortes dos indiacutegenas ldquomas muitas vezes a violecircncia simplesmente eacute expressa na

subjugaccedilatildeo do direito dos povos de determinar o uso de seu ambiente e o brutal

padratildeo de extraccedilatildeo de recursosrdquo (idem p 563)

Ademais os danos ambientais nas terras indiacutegenas nos uacuteltimos anos

decorrentes de desmatamentos ilegais da instalaccedilatildeo irregular de madeireiras e

principalmente da presenccedila constante de atividades agropecuaacuterias no entorno das

aldeias vecircm contribuindo para fomentar os conflitos agraacuterios Afirma Heck et al

(2005 p 238) que as mineradoras e companhias de petroacuteleo ldquoestatildeo afiando suas

unhas para cavar cada vez mais fundo e mais raacutepido para acumular ao maacuteximo seu

capital globalizadordquo Continua o referido autor dizendo que as empresas que exploram

mineacuterios fazem barganha junto aos poliacuteticos para regulamentar a exploraccedilatildeo mineral

em terras indiacutegenas

Haacute pedidos de pesquisa e exploraccedilatildeo mineral sobre terras indiacutegenas de toda a Amazocircnia [] Hoje o avanccedilo capitalista sobre a Amazocircnia eacute como uma fera quase indomaacutevel Motosserras e tratores fazem parte de programas oficiais de devastaccedilatildeo As grandes serrarias que jaacute exauriram o potencial madeireiro em outras regiotildees do mundo agora seguem resolutas em direccedilatildeo agrave Amazocircnia vestidas em peles de cordeiro com o discurso da ldquoexploraccedilatildeo devastaccedilatildeo sustentaacutevelrdquo ostentando diplomas de ldquocertificaccedilatildeo verderdquo e com projetos de ldquoauto sustentabilidaderdquo na Amazocircnia (2005 p 238)

Mas eacute na atualidade que a Amazocircnia tem sido mais explorada principalmente

o potencial de seus rios e cachoeiras O governo Federal e as empresas que exploram

o setor eleacutetrico estatildeo investindo massivamente na construccedilatildeo de Hidreleacutetricas na

regiatildeo Somente em 2012 foram planejadas a construccedilatildeo de vinte e trecircs novas

hidreleacutetricas totalizando vinte e nove somando com as jaacute existentes que juntas vatildeo

gerar 38292 MW o equivalente a metade da energia gerada pelas hidreleacutetricas do

paiacutes Dentre as maiores hidreleacutetricas destacam-se Balbina Tucuruiacute Belo Monte

Curuaacute-Una e Teles Pires

Segundo Bittencourt (2012) somente no estado do Amazonas a construccedilatildeo

dessas hidreleacutetricas iraacute inundar em meacutedia de 300 a 400 kmsup2 em cada aacuterea de

barragem construiacuteda e transferir por volta de 112 mil pessoas que vivem nas aacutereas do

entorno da construccedilatildeo Em toda Amazocircnia ficaratildeo debaixo drsquoaacutegua cerca de 937555

kmsup2 de floresta

No Estado do Paraacute estaacute sendo construiacuteda a Hidreleacutetrica de Belo Monte

considerada a terceira maior do mundo Suas obras foram iniciadas em 2011 e de

72

acordo com um dossiecirc elaborado pelo Instituto Socioambiental (ISA) eacute a principal

obra do Plano de Aceleraccedilatildeo do Crescimento (PAC) ldquoinstalada em uma regiatildeo com

ausecircncia histoacuterica do Estado Belo Monte continua a ser cinco anos depois do leilatildeo

para construccedilatildeo e operaccedilatildeo da usina siacutembolo de inadimplecircncia socioambiental e

desrespeito agraves populaccedilotildees atingidasrdquo(ISA p 4 2015) O dossiecirc apresenta dados

referentes ao aumento da populaccedilatildeo do municiacutepio de Altamira que saltou de cem mil

para cento e cinquenta mil habitantes atraiacutedos pela geraccedilatildeo de empregos diretos e

indiretos A licenccedila foi concedida pelo governo federal com a promessa de execuccedilatildeo

de medidas de mitigaccedilatildeo e compensaccedilatildeo conhecidas como condicionantes

socioambientais de viabilidade da usina

Dentre as medidas compensatoacuterias previstas estavam as lsquoaccedilotildees antecipatoacuteriasrsquo de sauacutede educaccedilatildeo e saneamento baacutesico que segundo o discurso oficial deveriam preparar a regiatildeo para receber a obra prevenindo e minimizando os principais impactos sobre esses serviccedilos puacuteblicos decorrentes do aumento populacional Estimava-se que aproximadamente 74 mil pessoas seriam atraiacutedas pela obra em apenas cinco anos o que deveria praticamente dobrar a populaccedilatildeo da regiatildeo (conforme o Censo 2010 cerca de 100 mil habitantes) (ISA 2015 p 6)

Em relaccedilatildeo ao impacto ambiental

[] foi definido um Projeto Baacutesico Ambiental(PBA) detalhando os planos

programas e projetos socioambientais previstos nos Estudos de Impacto Ambiental e respectivo Relatoacuterio de Impacto Ambiental (EIA-Rima) destinados a prevenir mitigar e compensar os impactos da obra inclusive em relaccedilatildeo aos povos indiacutegenas (Projeto Baacutesico Ambiental do Componente Indiacutegena - PBA-CI) No caso de Belo Monte os custos para a implementaccedilatildeo do PBA (incluindo o PBA-CI) foram estimados no valor de R$ 32 bilhotildees(ISA 2015 p 6)

O que natildeo ocorreu a contento de acordo com o referido dossiecirc as obras e

accedilotildees previstas nas medidas compensatoacuterias que deveriam ser desenvolvidas pela

empresa Norte Energia responsaacutevel pela obra natildeo impediram os impactos negativos

sobre a populaccedilatildeo dos municiacutepios atingidos principalmente de Altamira Foram

registrados aumentos nos casos de violecircncia entre 2011 e 2014 que cresceu em 80

No que concerne agrave sauacutede as obras de construccedilatildeo e reforma natildeo foram suficientes

para evitar a superlotaccedilatildeo de postos de sauacutede e hospitais No caso da infraestrutura

de educaccedilatildeo os equipamentos construiacutedos e reformados tampouco conseguiram

atingir plenamente os objetivos de responder ao aumento de demanda e evitar perda

de qualidade do ensino

Quanto ao reassentamento da populaccedilatildeo das aacutereas rural e urbana mais de

oito mil famiacutelias atingidas pela barragem foram obrigadas a abandonar suas terras e

73

casas ldquoseja em razatildeo do iniacutecio da construccedilatildeo das estruturas da usina seja devido ao

futuro enchimento do reservatoacuteriordquo (ISA 2014 p 8) Este processo de saiacuteda do local

onde sempre viveram tem sido traumaacutetico para a populaccedilatildeo local

O programa de realocaccedilatildeo urbanatem sido desorganizado inadequado e pouco transparente Haacute mais de um ano praticamente 3000 famiacutelias jaacute residem nos novos loteamentos (chamados de Reassentamentos Urbanos Coletivos - RUCs) sem serviccedilos puacuteblicos adequados incluindo transporte sauacutede e educaccedilatildeo Outras tantas por sua vez esperam a realocaccedilatildeo em um processo aparentemente subdimensionado pelo empreendedor que inicialmente cadastrou 5141 ocupaccedilotildees consideradas atingidas mas contratou a construccedilatildeo de apenas 4100 casas Note-se ainda que haacute famiacutelias que denunciam sequer terem sido cadastradas (ISA 2014 p 8)

As famiacutelias que natildeo aceitaram ir para o loteamento foram indenizadas mas o

valor recebido revelou-se insuficiente para a compra de outros terrenos ou casas O

dossiecirc afirma que essas famiacutelias natildeo receberam assistecircncia juriacutedica por parte do

poder puacuteblico em relaccedilatildeo aos seus direitos ficando agrave mercecirc do que a empresa

resolveu pagar

Em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo rural ribeirinhos e agricultores uma das maiores

viacutetimas da hidreleacutetrica o Projeto Baacutesico Ambiental apresentado pela empresa

garantia os reassentamentos rurais coletivos quena praacuteticanatildeo foram

desenvolvidos segundo o plano as famiacutelias deveriam escolher uma forma de

compensaccedilatildeo mas sem informaccedilatildeo adequada sem compreender realmente o

verdadeiro interesse da empresa e ainda pressionada para sair ou vender suas terras

[] acabaram aceitando as baixas indenizaccedilotildees Natildeo aceitaacute-las significaria litigar judicialmente contra uma grande empresa sem acesso a assistecircncia juriacutedica gratuita ndash natildeo haacute Defensoria Puacuteblica fixada na regiatildeo e a itinerante soacute atende casos urbanos ndash ou aceitar a transferecircncia para um reassentamento que aleacutem de estar localizado a quilocircmetros do rio Xingu sequer comeccedilou a ser implantado (ISA 2014 p 8)

Assim a transformaccedilatildeo da populaccedilatildeo ribeirinha em populaccedilotildees

exclusivamente urbanas ou agricultoras vem se consolidando devido agrave ausecircncia de

opccedilotildees que assegurem sua manutenccedilatildeo na beira do rio

Fotografia 2 - Reassentamento coletivo urbano para os atingidos pela usina

74

De acordo com o dossiecirc do ISA o loteamento natildeo atende as necessidades baacutesicas da populaccedilatildeo reassentada pois os serviccedilos puacuteblicos ofertados incluindo transporte sauacutede e educaccedilatildeo satildeo insuficientes para a demanda Fonte Andreacute Villas-BocircasISA

Os ribeirinhos que natildeo foram atingidos pela barragem tambeacutem sofrem os

impactos ambientais do empreendimento tais como a diminuiccedilatildeo e o

desaparecimento de determinadas espeacutecies de peixes provocado pelo barulho

emanado das dinamites e das luzes dos gigantescos holofotes que iluminam a noite

no canteiro da obra de forma que os peixes que viviam na escuridatildeo da noite migram

para outros lugares Pela ausecircncia de fiscalizaccedilatildeo o consumo de quelocircnios que faz

parte da culinaacuteria local estaacute ameaccedilado devido agrave caccedila predatoacuteria das tartarugas

Quanto agrave populaccedilatildeo indiacutegena a empresa para conseguir o licenciamento do

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) propocircs-se a executar um Plano Baacutesico

Ambiental do Componente Indiacutegena (PBA-CI) e tambeacutem a Fundaccedilatildeo Nacional do

Iacutendio (Funai) apresentou algumas medidas que precisavam ser tomadas pela empresa

e pelo poder puacuteblico para diminuiacuterem os impactos na qualidade de vida dos iacutendios

afetados pelo empreendimento O dossiecirc aponta que a maioria dessas accedilotildees ainda

natildeo foi efetivada e que a execuccedilatildeo plena do PBA-CI comeccedilou com mais de dois anos

de atraso em relaccedilatildeo ao iniacutecio da instalaccedilatildeo da usina

As despesas da empresa com os povos indiacutegenas foram contestadas pelo

Ministeacuterio Puacuteblico Federal que ldquoCondenou a estrateacutegia da Norte Energia de entregar

produtos como TVs barcos alimentos industrializados e oacuteleo diesel agraves comunidades

indiacutegenas aleacutem de uma lsquomesadarsquo de R$ 30 mil por aldeiardquo (ISA 20015 p 10) Assim

os recursos financeiros que deveriam ser investidos num plano de Etno-

desenvolvimento como forma de amenizar os impactos socioambientais foram

usados para doaccedilatildeo de bens materiais com o intuito de controlar temporariamente os

75

processos de organizaccedilatildeo e resistecircncia indiacutegena ldquodeixando como legado a

desestruturaccedilatildeo social e o enfraquecimento dos sistemas de produccedilatildeo de alimentos

nas aldeias colocando em risco a sauacutede a seguranccedila alimentar e a autonomia desses

povosrdquo (ISA 20015 p 10)

Em vez da oferta de serviccedilos puacutebicos verificou-se uma poliacutetica clientelista que

teve como reflexo o abandono de roccedilas da pesca e da caccedila aumento no periacuteodo de

2010 a 2012 em 200no atendimento agrave sauacutede dos indiacutegenas na cidade resultado da

mudanccedila nos haacutebitos alimentares com a introduccedilatildeo massiva de alimentos

industrializados no mesmo periacuteodo registrou-se o crescimento em 127 de

desnutriccedilatildeo infantil nas aldeias onde ainda faltam escolas e postos de sauacutede O

dossiecirc elaborado pelo ISA descreve a quantidade de produtos que foram distribuiacutedos

aos onze povos indiacutegenas da regiatildeo ldquo21milhotildees de litros de combustiacuteveis e

lubrificantes 366 barcos e voadeiras 42 veiacuteculos 578 motores para barcos 98

geradores e inuacutemeros outros bens de consumo que vatildeo desde TVs de plasma a

refrigerantesrdquo (idem p 12)

Fotografia 3 - Vista aeacuterea da construccedilatildeo da barragem de Belo Monte em Altamira Paraacute

Fonte Juan DoblasISAReutersVEJA

A imagem acima retrata que a construccedilatildeo da hidreleacutetrica modificou a paisagem

natural mudou o curso dos rios inundou as terras dos iacutendios ribeirinhos pescadores

e garimpeiros interferiu na migraccedilatildeo e reproduccedilatildeo de vaacuterias espeacutecies de peixes e

causa a morte de outras assim como o desaparecimento de animais que dependem

da floresta que passou a ficar inundada pelas aacuteguas represadas No tocante ao peixe

76

principal alimento das populaccedilotildees tradicionais assim como da populaccedilatildeo urbana da

regiatildeo a aacutegua liberada pelas represas por natildeo terem mais oxigecircnio causam a morte

das espeacutecies locais Fearnside (2014 p 18) cita o caso da hidreleacutetrica de Balbina ldquoA

perda praticamente total de peixes por falta de oxigecircnio se estendeu para 145 km em

Balbina enquanto em Tucuruiacute por 60 km []rdquo Isso gera fome pois sem ter o que

comer e como sobreviver essas populaccedilotildees satildeo obrigadas a migrarem para a cidade

e engrossam os bolsotildees de pobreza

Essa situaccedilatildeo tambeacutem foi vivenciada pelos moradores do municiacutepio de Ferreira

Gomes no estado do Amapaacute no ano de 2015 Dados da Secretaria de Meio Ambiente

estimam que morreram em media 150 quilos de peixe ao longo da margem do rio

Araguari Segundo Santiago (2015) a morte dos peixes pode ter sido causada pela

abertura das comportas da hidreleacutetrica Ferreira Gomes Energia ldquoa suspeita eacute que

manobras irregulares nas comportas podem ter liberado aacutegua acima do permitido

resultando no excesso de oxigecircnio em determinado periacutemetro do riordquo (p 1)

Fotografia 4 - Peixes mortos ao longo das margens do Rio Araguari no municiacutepio de Ferreira Gomes estado do Amapaacute

Fonte Raimundo Silva 2015

Desta forma o impacto nas condiccedilotildees de vida dos moradores do entorno eacute

brutal pois a subsistecircncia baseada na pesca e na agricultura que dependiam do rio

e da floresta torna-se inviaacutevel Segundo Fearnside (2014) quando uma represa eacute

construiacuteda os residentes a jusante ao longo do rio sofrem impactos severos

77

enquanto o reservatoacuterio estaacute enchendo o trecho abaixo da represa frequentemente

seca completamente assim negando aos residentes ribeirinhos o acesso agrave aacutegua e agrave

pesca A floresta aleacutem de ser inundada pelas aacuteguas das barragens tambeacutem eacute

desmatada para construccedilatildeo de estradas para o acesso agraves barragens e pela populaccedilatildeo

deslocada para outros pontos da regiatildeo Assegura ainda o autor que as barragens

emitem gases de efeito estufa ldquoo dioacutexido de carbono eacute emitido pela decomposiccedilatildeo de

aacutervores mortas por inundaccedilatildeo e o oacutexido nitroso e especialmente o metano satildeo

emitidos pela aacutegua nos reservatoacuterios e da aacutegua que passa atraveacutes das turbinas e

vertedourosrdquo (FEARNSIDE 2014 p 10)

Dentre as populaccedilotildees nativas os povos indiacutegenas satildeo as maiores viacutetimas As

construccedilotildees das barragens geraram a diminuiccedilatildeo dos recursos pesqueiros da caccedila

de animais silvestres e a contaminaccedilatildeo das aacuteguas dos rios lagos e igarapeacutes

A barragem de Tucuruiacute no Rio de Tocantins inundou parte de trecircs reservas indiacutegenas (Parakanatilde Pucuruiacute e Montanha) e sua linha de transmissatildeo cortou outras quatro (Matildee Maria Trocaraacute Krikati e Cana Brava) A Aacuterea Indiacutegena Trocaraacute habitada pelos Asuriniacute do Tocantins estaacute situada a 24 km ajusante da represa [] No caso da hidreleacutetrica de Balbina foi inundada parte da reserva Waimiri-Atroari Mais dramaacutetica eacute a previsatildeo de impactos sobre povos indiacutegenas caso que sejam construiacutedas represas no rio Xingu (FEARNSIDE 2014 p 16)

De acordo com Guerra (2007) a Hidreleacutetrica de Tucuruiacute mudou drasticamente

o potencial hidroviaacuterio da bacia do rio Tocantins os ecossistemas dos rios e florestas

e contribuiu para o desaparecimento de espeacutecies animais e vegetais Fearnside

(2014) tambeacutem destaca a retirada de 23871 pessoas para a construccedilatildeo da referida

hidreleacutetrica assim como a construccedilatildeo da barragem de Marabaacute prevista para ser

concluiacuteda ainda este ano que deslocou aproximadamente 40000 (quarenta mil)

pessoas A retirada da populaccedilatildeo natildeo ocorre pacificamente mas apesar da

resistecircncia o poder poliacutetico e econocircmico do governo federal e das empresas que

exploram o setor energeacutetico imperam O deslocamento abrange a populaccedilatildeo

tradicional da Amazocircnia que vive e sobrevive as margens dos rios e dele tiram sua

subsistecircncia ou seja dependem do rio para sobreviver O autor problematiza

questotildees ligadas ao impacto social da expulsatildeo de pessoas que viveram por geraccedilotildees

em um determinado lugar cuja habilidade como a pesca a caccedila e a roccedila natildeo os torna

adequados para viverem em outros contextos

Desta forma a Amazocircnia foi marcada por conflitos sociais e impactos

ambientais oriundo dos projetos desenvolvidos tanto pelo governo Federal como

pelas empresas multinacionais Segundo Becker (2007) dentre os conflitos destaca-

78

se as disputas pela posse de terras que envolveram iacutendios fazendeiros e

garimpeiros desmatamento das florestas para a construccedilatildeo da malha viaacuteria e tambeacutem

para a agricultura capitalista (plantaccedilatildeo de soja eucalipto entre outras monoculturas

destinadas ao mercado internacional) poluiccedilatildeo dos rios por meio da extraccedilatildeo de

mineacuterios e dos produtos quiacutemicos utilizados pela mineraccedilatildeo e na agricultura etc

Os impactos ambientais gerados pela exploraccedilatildeo econocircmica dos recursos

naturais agravado pela visatildeo homogecircnea do espaccedilo amazocircnico exterminaram vaacuterias

espeacutecies que poderiam ser preservadas a partir da valorizaccedilatildeo dos saberes das

populaccedilotildees tradicionais (iacutendios ribeirinhos comunidades quilombolas) que

conviveram e convivem haacute seacuteculos explorando a floresta sem causar grandes danos

aos ecossistemas No entanto por serem saberes subalternizados considerados

inferiores satildeo invisibilizados O que prevaleceu no passado foi o conhecimento do

colonizador no periacuteodo da colonizaccedilatildeoe na contemporaneidade a visatildeo das grandes

empresas nacionais e multinacionais que decidem sobre os rumos que daratildeo a regiatildeo

sem levar em consideraccedilatildeo a populaccedilatildeo local Assim como criam os mitos da

Amazocircnia como reserva ecoloacutegica natureza exuberante futuro do mundo dentre

outros que permeiam o imaginaacuterio social a partir de uma concepccedilatildeo colonialista

Essa concepccedilatildeo se embasa na diferenccedila colonial que natildeo leva em

consideraccedilatildeo a pluralidade a diversidade e a heterogeneidade como as principais

caracteriacutesticas da regiatildeo daiacute o olhar monocultural e eurocecircntrico A heterogeneidade

humana dos povos que habitam as Amazocircnias eacute marcante bem como a diversidade

geograacutefica pois existem as Amazocircnias dos rios dos lagos e igarapeacutes as das

florestas as dos campos as dos cerrados a urbana e rural O que nos leva a afirmar

que estes territoacuterios satildeo multiculturais constituiacutedos na sua gecircnese a partir da

mesticcedilagem entre iacutendios negros e brancos que segundo Adams et al (2006) gerou

o caboclo tipo humano caracteriacutestico da regiatildeo O caboclo foi e eacute ainda visto de

maneira pejorativa como descreve Souza (2012 p 28) ao afirmar que no discurso

antropoloacutegico ele eacute visto como produto nocivo da civilizaccedilatildeo

Esta mesma ideia estaacute presente nos dicionaacuterios que apresenta o caboclo como iacutendio mesticcedilo e trabalhador do meio rural visto pelo senso comum e descrito pelos viajantes que passaram pela regiatildeo no periacuteodo da colonizaccedilatildeo como apaacuteticos e indolentes responsaacuteveis pela proacutepria pobreza Portanto o termo caboclo vem carregado de uma grande carga de discriminaccedilatildeo As diversas formas de racismo que ainda existem no Brasil contribuem com a ideia de superioridade das raccedilas ldquopurasrdquo e inferioridade dos mesticcedilos ndash caboclos

79

Essa visatildeo preconceituosa gerou no imaginaacuterio social a imagem de que os

povos da Amazocircnia satildeo primitivos atrasados em termos de desenvolvimento a partir

de uma visatildeo capitalista considerados inferiores em relaccedilatildeo aos natildeo amazonidas

que para serem distinguidos dos outros ldquosuperioresrdquo satildeo denominados de caboclos

responsaacuteveis pela pobreza em que se encontram por serem preguiccedilosos e indolentes

daiacute o socorro vindo das empresas multinacionais e do governo federal por meio dos

projetos para a exploraccedilatildeo do potencial econocircmico da regiatildeo o que retrata a

colonialidade do poder18

Dentre os que satildeo chamados de caboclos estatildeo os ribeirinhos povos que

habitam as margens dos rios lagos e igarapeacutes que compotildeem a hidrografia da regiatildeo

A seguir retratamos a gecircnese desse sujeito bem como sua maneira de

viverconviversobreviver na Amazocircnia ribeirinha

22 POVOS DA AMAZOcircNIA os ribeirinhos

Jeito Tucuju19

Quem nunca viu o Amazonas Nunca iraacute entender a vida de um povo

De alma e cor brasileiras Suas conquistas ribeiras

Seu ritmo novo Natildeo contaraacute nossa histoacuteria por natildeo saber e por natildeo fazer juz

Natildeo curtiraacute nossas festas tucujus Quem avistar o Amazonas nesse momento e souber transbordar de tanto amor

Este teraacute entendido o jeito de ser do povo daqui

Quem nunca viu o Amazonas Jamais iraacute compreender a crenccedila de um povo

Sua ciecircncia caseira a reza das benzedeiras o dom milagroso

Natildeo contaraacute nossa histoacuteria

Realmente quem nunca viu o Amazonas jamais vai entender a vida e a crenccedila

de um povo sua ciecircncia caseira e a crenccedila na reza das benzedeiras capazes de curar

as doenccedilas causadas pelos seres encantados que vivem na mata e nas aacuteguas O ver

eacute o mergulhar no universo sociocultural dos povos ribeirinhos que (re) constroem

cotidianamentesuas vidas nas margens desse majestoso Rio consideradoo maior

em volume de aacutegua eem extensatildeo do mundo o qualpossuiaproximadamente 1100

afluentes que formam a maior bacia hidrograacutefica mundial O rio Amazonas atravessa

18A colonialidade do poder refere-se aos padrotildees de poderbaseados na hierarquia na formaccedilatildeo e distribuiccedilatildeode

identidades (brancos mesticcedilos iacutendios negros) Aprofundamos a discussatildeo em relaccedilatildeo a colonialidade do poder no primeiro capitulo 19 Musica dos compositores Amapaenses Val MilhomemJoatildeozinho Gomes

80

o Peru Brasil Colocircmbia Boliacutevia Equador Guiana e Venezuela No Brasil banha os

estados do Acre Amazonas Amapaacute Rondocircnia Roraima Paraacute e Mato Grosso

Para ldquoentender a vida de um povordquo primeiro eacute preciso saber que o Rio tem papel

vital na organizaccedilatildeo social cultural religiosa e econocircmica dos ribeirinhos Os rios satildeo

as ruas estradas rodovias por onde se navega para ir agrave escola agrave cidade e a outros

lugares do rio se retira o peixe o camaratildeo a lagosta a aacutegua para beber fazer

comida higiene pessoal e da casa No rio tambeacutem estatildeo os seres encantados que

fazem parte do imaginaacuterio desse povo

Neste estudo fizemos uma abordagem histoacuterica referente agrave constituiccedilatildeo da

populaccedilatildeo que vive agraves margens dos rios na Amazocircnia Iniciamos com uma abordagem

referente agrave gecircnese do brasileiro a partir das matrizes eacutetnicas que lhe deram origem

para posteriormente situar a populaccedilatildeo amazocircnica

O povo brasileiro de acordo com Ribeiro (2006) eacute resultado do encontro do

colonizador com os iacutendios e negros africanos que deram origem a um povo mesticcedilo

com traccedilos culturais distintos de suas matrizes formadoras

A sociedade e a cultura brasileira satildeo conformadas como variantes da versatildeo lusitana da tradiccedilatildeo civilizatoacuteria europeia ocidental diferenciadas por coloridos herdados dos iacutendios americanos e dos negros africanos O Brasil emerge assim como um renovo mutante remarcado de caracteriacutesticas proacuteprias mas atado geneticamente agrave matriz portuguesa cujas potencialidades insuspeitadas de ser e de crescer soacute aqui se realizariam plenamente (RIBEIRO 2006 p 18)

O brasileiro remarcado por caracteriacutesticas proacuteprias como afirma o autor eacute um

povo em que a diversidade eacute o aspecto fundamental para issoa imigraccedilatildeo

principalmente europeia aacuterabe e japonesa bem como os vieses ecoloacutegico e

econocircmico contribuiacuteram significativamente O ecoloacutegico gerou paisagens humanas

distintas nas quais as condiccedilotildees ambientais obrigaram a adaptaccedilotildees eacute o caso do

sertatildeo nordestino e da Amazocircnia por exemplo O econocircmico criou formas de

produccedilatildeo que acirraram a divisatildeo social do trabalho e os papeis sociais

correspondentes Por conseguinte esses fatores permitem distinguir os brasileiros

ldquosertanejos do Nordeste caboclos da Amazocircnia crioulos do litoral caipiras do

Sudeste e Centro do paiacutes gauacutechos das campanhas sulinas aleacutem de iacutetalo-brasileiros

teuto-brasileiros nipo-brasileirosrdquo (RIBEIRO 2006 p 19) Dentre as identidades

apontadas pelo citado autor focalizamos neste estudo a cabocla considerada tiacutepica

da Amazocircnia

81

A origem da populaccedilatildeo ribeirinha estaacute atrelada ao processo de povoamento da

Amazocircnia Segundo Bezerra Neto(2013) a apropriaccedilatildeo pelos portugueses desta

regiatildeo envolveu as diversas etnias indiacutegenas por meio de variadas estrateacutegias de

dominaccedilatildeo assim como os colonizadores europeus e os escravos oriundos da Aacutefrica

Para o autor ldquoa mesticcedilagem envolvia diversos segmentos sociais e eacutetnicos da

Colocircnia A constituiccedilatildeo de mocambos formados por iacutendios africanos colonos brancos

e mesticcedilos de todos os tons constituiu-se exemplo desta realidaderdquo (p 34)

A Coroa portuguesa estimulou o casamento dos colonizadores com os nativos

o que gerou uma populaccedilatildeo mesticcedila fato ocorrido em 1755 quando o Rei de Portugal

D Joseacute I por meio de seu ministro Marquecircs de Pombal autoriza e daacute feacute ao documento

redigido por Francisco Xavier de Mendonccedila Furtado chamado Diretoacuterio no qual

estabelece ldquo[] o incentivo ao casamento de colonos brancos com indiacutegenas [] a

substituiccedilatildeo da liacutengua geral pela liacutengua portuguesa [] e puniccedilatildeo contra

discriminaccedilotildees []rdquo(FURTADO 1997 p 117)

Sobre este assunto afirma Rodrigues (2004 p 23) ldquoO bioacutetipo caracteriacutestico do

ribeirinho amazocircnida e seu modo de vida [] satildeo frutos da mescla de indiviacuteduos de

etnias e culturas diferentes que conformaram o processo histoacuterico de formaccedilatildeo

territorial e populacionalrdquo Jaacute Ribeiro (2006) ao abordar o processo de ocupaccedilatildeo e

constituiccedilatildeo das populaccedilotildees da Amazocircnia conclui que a formaccedilatildeo cultural deste povo

estaacute fundada nas mesmas matrizes baacutesicas citadas acima e pela migraccedilatildeo oriunda do

nordeste ao final do seacuteculo XIX e no periacuteodo de 1943 a 1945 motivada pela batalha

da borracha

As migraccedilotildees nordestinas para a Amazocircnia sempre estiveram ligadas agraves questotildees de conflitos no campo coincidindo com os periacuteodos de seca e os pequenos agricultores satildeo os que primeiro sentem os efeitos da mesma Aleacutem de ser a maioria da populaccedilatildeo rural sertaneja ela natildeo tinha alternativa a natildeo ser migrar (SILVA 2000 p 48)

A autora destaca que a seca era utilizada para ocultar o problema da questatildeo

fundiaacuteria como principal fator de migraccedilatildeo do nordestino pois as terras estavam

concentradas nas matildeos da elite agraacuteria natildeo restando alternativa aleacutem da migraccedilatildeo

da populaccedilatildeo para outras regiotildees O ciclo da borracha foi utilizado pelo governo

federal para atrair os nordestinos para a Amazocircnia vaacuterios artifiacutecios foram usados

dentre os quais propagandas que exaltavam o patriotismo e o nacionalismo ateacute

promessas de retorno agrave terra natal Eacute o que se observa no trecho abaixo discurso do

presidente Getuacutelio Vargas na eacutepoca da segunda guerra mundial com o intuito de

82

atrair e incentivar os seringueiros a se empenharem na produccedilatildeo da borracha em

defesa da ldquopaacutetria amadardquo

Seringueiros Dediquei todas as energias a batalha da borracha Precisamos de mais borracha pois eacute sobre ela que se encontra a guerra moderna pois satildeo grandes os equipamentos que necessitam da goma elaacutestica produzidos sem repouso colhendo o laacutetex abundante das seringueiras do Vale Amazocircnico Nas guerras modernas natildeo fazem parte somente os soldados que estatildeo no campo de batalha mas toda naccedilatildeo homens e mulheres velhos e crianccedilas A voacutes desbravadores da Amazocircnia sois o mais importante soldados Unidos veremos sibilar a bandeira do Brasil (ACRE 1943 p 58)

Afirma Silva (2000) que essas formas de persuasatildeo foram divulgadas

massivamente na regiatildeo Nordeste com isso mobilizou verdadeiros ldquoexeacutercitos de

extratores como se fossem realmente soldados indo para os campos de batalha em

defesa da paacutetria procedendo-se ao alistamento e ateacute a concessatildeo de uniformes para

aqueles que seriam os soldados que lutariam nas selvas da Amazocircniardquo (p 59)

Embalados pelo discurso ideoloacutegico governamental aliado agraves condiccedilotildees de

pobreza extrema vieram para a Amazocircnia no periacuteodo de 1890 a 1910 cerca de meio

milhatildeo de nordestinos (TEIXEIRA 1980) No periacuteodo do auge da produccedilatildeo do

produto vaacuterios oacutergatildeos foram criados pelo governo para atrair e manter os migrantes

nos seringais dentre os quais o Serviccedilo Especial de Mobilizaccedilatildeo de Trabalhadores

para a Amazocircnia (SEMTA) posteriormente substituiacutedo pela Comissatildeo Administrativa

de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazocircnia (CAETA) Entre 1943 e 1945

utilizando propaganda nos meios de comunicaccedilatildeo o SEMTA e a CAETA trouxeram

aproximadamente cinquenta mil trabalhadores

Os nordestinos optavam pela Amazocircnia alistando-se no exeacutercito da borracha pois acreditavam nas propagandas que afirmavam que correriam menos riscos de vida e ainda contavam com a possibilidade de enriquecimento produzindo borracha no esforccedilo de guerra para os aliados para entatildeo retornarem a sua terra vitoriosa (SILVA 2000 p 60)

A propaganda do governo era enganosa dentre os engodos estavam a

possibilidade de soldados ficarem ricos com a extraccedilatildeo da borracha e ao mesmo

tempo servirem agrave paacutetria Muitos foram mortos nos conflitos com os iacutendios outros

pelas doenccedilas pois natildeo tinham acesso aos serviccedilos de sauacutede em siacutentese foram

abandonados pelo governo ficaram nas matildeos dos seringalistas que os escravizavam

por meio das diacutevidas com o barracatildeo20

20 O seringueiro soacute podia vender a produccedilatildeo da borracha para o seringalista em troca natildeo recebia dinheiro levava em gecircneros alimentiacutecios do barracatildeo que era mantido pelo seringalista que ditava o preccedilo dos produtos Desta forma o seringueiro sempre ficava devendo para o patratildeo Os seringalistas atuavam com toda a autoridade sobre seus seringueiros reclamar era decretar a proacutepria pena de morte

83

Quanto agrave divisatildeo espacial os seringueiros foram distribuiacutedos no final do seacuteculo

XIX de acordo com Silva (2000) nos seringais agraves margens dos rios Amazonas Negro

Madeira Abunatilde Ji-Paranaacute Acre Purus Gaporeacute e outros da regiatildeo o que para

Bittencout (1989) caracteriza um modelo de ocupaccedilatildeo linear e nas margens dos rios

em busca das seringueiras nativasldquoNesse primeiro momento da migraccedilatildeo estes

nordestinos natildeo foram para o interior da floresta devido ao ataque dos indiacutegenas que

era constante e tambeacutem pelo isolamento pois com a famiacutelia geralmente numerosa

era mais difiacutecil entrar na floresta (SILVA 2000 p 85)

Com a decadecircncia do preccedilo da borracha no mercado internacional diminuiacuteram

as atividades de extraccedilatildeo do produto na Amazocircnia isso fez com que muitos

seringueiros passassem a morar nas margens dos rios lagos e igarapeacutes e

ldquopaulatinamente tiveram que readaptar seu modo de vida de tal forma que a atividade

de extraccedilatildeo do laacutetex foi abandonada passando a adotar a atividade da pesca e da

agriculturardquo (SILVA 2000 p 91)

Desta maneira foi constituindo-se a populaccedilatildeo ribeirinha na Amazocircnia mesticcedila

e hiacutebrida culturalmente Nessa mesticcedilagem a presenccedila indiacutegena eacute marcante como

afirma Benchimol (1999) ao abordar aheranccedila cultural indiacutegena-cabocla dos povos

ribeirinhos O autor faz consideraccedilotildees sobre o periacuteodo inicial de ocupaccedilatildeo e

colonizaccedilatildeo da Amazocircnialdquoo conhecer o saber o vivere o fazerna Amazocircnia colonial

foi um processo predominantemente indiacutegenardquo (p 21) Segundo o autor ameriacutendios

e seus descendentes caboclos viviam em iacutentimo contato com o ambiente fiacutesico e

bioloacutegico de acordo com as peculiaridades regionais de onde retiravam os recursos

para sua subsistecircncia

A desintegraccedilatildeo das identidades culturais indiacutegenas deflagrada pelo

colonizador possibilitou a dizimaccedilatildeo de diversas etnias Com a resistecircncia indiacutegena

contra a invasatildeo de suas terras muitas tribos e etnias ameriacutendias foram exterminadas

O mesmo aconteceu com a propagaccedilatildeo da agricultura e pecuaacuteria que ocupou as

terras dos eixos rodoviaacuterios dos projetos de colonizaccedilatildeo e dos assentamentos de

garimpeiro em toda a regiatildeo Destaca Benchimol (1999 p 22) que as matrizes

culturais iacutendio-caboclas foram cedendo espaccedilo e economia ldquonos beiradotildees e nos

centros dos seringais e castanhais ao novo grupo lsquocearensersquo e depois aos lsquogauacutechosrsquo

ficando cada vez mais isolados nas suas reservas e malocas ou nos seus siacutetios e

roccedilados dos baixos riosrdquo

84

Sem a contribuiccedilatildeo dos iacutendios o colonizador natildeo teria tido ecircxito na ocupaccedilatildeo

e exploraccedilatildeo da Amazocircnia Foram os indiacutegenas que ensinaram aos novos senhores

e imigrantes os segredos dos rios da terra e da floresta (GONCcedilALVES 2005) Essas

praacuteticas e usos deram origem ao estabelecimento de uma base de subsistecircncia e de

mercado ldquoque serviu de apoio para a formaccedilatildeo da sociedade amazocircnica no seu

singular processo histoacuterico-culturalrdquo (BENCHIMOL 1999 p10)

Tambeacutem natildeo podemos deixar de levar em consideraccedilatildeo a contribuiccedilatildeo dos

negros africanos para a cultura e constituiccedilatildeo da populaccedilatildeo na Amazocircnia Conforme

Salles (1971) no periacuteodo da colonizaccedilatildeo foram traficados para a Regiatildeo em meacutedia

53 mil escravos pela coroa portuguesa bem como pelo comeacutercio interno de escravos

e migraccedilotildees por ocasiatildeo da Cabanagem no Paraacute e Balaiada no MaranhatildeoNessas

proviacutencias os negros trabalhavam principalmente nos canaviais e lavouras de arroz e

algodatildeo

Foster (2004) destaca a importacircncia e a contribuiccedilatildeo da populaccedilatildeo negra na

formaccedilatildeo do povo amazocircnida Para a autora a cultura negra embora matizada pela

grande diversidade de negros que vieram para a regiatildeo e hibridizada pelo contato com

os iacutendios colonos portugueses e migrantes tambeacutem integra a ldquomemoacuteria da

Amazocircniardquo (p 178) Pacheco (2009) corrobora com esta tese quando afirma que

ldquohomens e mulheres filhos da diaacutespora africana que se esparramaram apropriaram-

se resignificaram e compartilharam em contatos e trocas culturais experiecircncias de

vida nos campos marajoarasrdquo (p 283)

Isto posto podemos concluir que a populaccedilatildeo ribeirinha na Amazocircnia eacute

constituiacuteda damescla de indiviacuteduos de etnias e culturas diferentesdentre as quais

indiacutegenas negras europeia e nordestina

23 AFUAacute a Veneza Marajoara

O municiacutepio de Afuaacute eacute conhecido na Ilha do Marajoacute como a Veneza Marajoara

em analogia com a cidade italiana de Veneza A cidade foi construiacuteda sobre as aacuteguas

num terreno de vaacuterzea que eacute totalmente inundado com as enchentes das aacuteguas de

marccedilo Devido a essa caracteriacutestica as ruas satildeo pontes a maioria delas de madeira

e poucas em concreto chamadas pelos moradores de passarelas Eacute uma cidade

ribeirinha cercada por rios de onde satildeo retirados os alimentos por meio da pesca e

por onde navegam os moradores comerciantes e turistas Nesta seccedilatildeo faremos uma

abordagem histoacuterica e econocircmica para compreendermos o modo de serviver dos

85

moradores tambeacutem realizamos uma anaacutelise da educaccedilatildeo baacutesica com enfoque na

educaccedilatildeo infantil e ensino fundamental

231 Aspectos histoacutericos geograacuteficos e econocircmicos

Afuaacute eacute uma das cidades amazocircnicas construiacuteda dentro dacuteaacutegua sobre palafitas

que compotildee o arquipeacutelago do Marajoacute As ruas satildeo pontes chamadas de passarelas

que ligam as casas e os bairros a Central e o Capimarinho A imagem abaixo retrata

uma passarela de madeira por onde caminham os moradores e brincam as crianccedilas

No periacuteodo das enchentes as aacuteguas do rio adentram os quintais

Fotografia 5 - Passarela de madeira no bairro Capimarinho

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Devido agraves caracteriacutesticas da cidade natildeo haacute automoacuteveis e o meio de transporte

utilizado eacute a bicicleta comumente encontrada circulando nas passarelas O

transporte coletivo eacute um tipo de charrete chamado de bicitaacutexi que foi inventado por

um morador nativo Como natildeo haacute caminhotildees ou veiacuteculo similar para carregar cargas

e bagagens satildeo utilizados carros de matildeo puxados por trabalhadores autocircnomos

chamados de carreteiros

Fotografia 6ndashTrabalhador autocircnomo (carreteiro) transportando mercadoria

86

Fonte Edielso M M de Almeida 2016 Quanto agrave origem do Municiacutepio sua histoacuteria remonta ao periacuteodo colonial e faz

parte da poliacutetica de colonizaccedilatildeo da Amazocircnia traccedilada pela coroa portuguesa que

visava agrave dominaccedilatildeo dos povos nativos e agrave exploraccedilatildeo das riquezas da regiatildeo

Segundo Gonccedilalves (2005 p82) ldquoa partir de 1750 no governo do primeiro-

ministro Marquecircs de Pombal comeccedila uma nova fase na adequaccedilatildeo da Amazocircnia ao

domiacutenio colonial portuguecircsrdquo Este domiacutenio objetivou garantir o desenvolvimento da

regiatildeo atraveacutes do comeacutercio dos produtos agriacutecolas e fomento da agricultura comercial

Para isso foi criada em 1755 a Companhia Geral do Comeacutercio do Gratildeo-Paraacute e

Maranhatildeo O monopoacutelio concedido agrave Companhia entrou em atrito com os interesses

das ordens religiosas que atuavam na Amazocircnia no processo de catequizaccedilatildeo e

exploraccedilatildeo dos iacutendios O conflito chegou no aacutepice e em 1759 os jesuiacutetas a maior

ordem religiosa atuante na regiatildeo foram expulsos e seus bens confiscados dentre

eles a matildeo de obra indiacutegena

Com a implantaccedilatildeo da Companhia Geral do Comeacutercio vaacuterias medidas foram

tomadas para modernizar a regiatildeo dentre elas destaca Gonccedilalves (2005 p82)

Doaccedilatildeo de terras (sesmarias) a colonos e a soldados que se

comprometessem a cultivaacute-las introduccedilatildeo do trabalho escravo (1756)

procurando reforccedilar a agricultura do cacau cafeacute algodatildeo cana-de-accediluacutecar

fumo anil e arroz estimulo agrave implantaccedilatildeo da pecuaacuteria nos campos de Rio

Branco (Roraima) baixo Amazonas e na Regiatildeo das Ilhas (Marajoacute inclusive)

Neste contexto soacutecio-poliacutetico-econocircmico gerado a partir da administraccedilatildeo

pombalina comeccedilou ldquouma dinacircmica de povoamento e desenvolvimento que

permitiram integraccedilatildeo poliacutetica administrativa econocircmica social e tambeacutem cultural do

Estado []rdquo (RODRIGUES 2004 p 21)

87

Esta poliacutetica de povoamento fez surgir e crescer as vilas e cidades no interior

da Amazocircnia entre elas o municiacutepio de Afuaacute que faz parte do arquipeacutelago do Marajoacute

Haacute poucos estudos relacionados agrave Histoacuteria de Afuaacute Tivemos acesso durante a

pesquisa bibliograacutefica ao Plano Diretor Participativo do Municiacutepio elaborado pela

Prefeitura no ano de 2007 e eacute com base neste documento que descreveremos a sua

evoluccedilatildeo histoacuterica e poliacutetica

Afuaacute assim como algumas cidades da Amazocircnia cresceu em torno de uma

igreja denominada Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo O terreno para a construccedilatildeo foi

doado por Micaela Archanja Ferreira uma donataacuteria portuguesa a qual tomou posse

das terras que denominou Santo Antocircnio em 1845 que na eacutepoca fazia parte do

distrito da Vila de Chaves

O local onde foi construiacuteda a igreja foi doado por Dona Micaela em 1899 ao

patrimocircnio de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo O terreno comeccedilava no Igarapeacute Divisa

no Rio Marajoacute descia pelo Rio Afuaacute ateacute o Igarapeacute Jaranduba no Rio Cajuuacutena (PLANO

DIRETOR PARTICIPATIVO DE AFUAacute 2007 p 2)

Fotografia 7 - Igreja de Nossa Senhora da Conceiccedilatildeo

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A presenccedila de templos catoacutelicos no processo de colonizaccedilatildeo da Amazocircnia e

como consequecircncia no surgimento de povoados vilas e cidades deu-se segundo

Trindade Juacutenior (2008 p 33) devido ao sentido da colonizaccedilatildeo na regiatildeo que

88

inicialmente foi levada a cabo pela igreja catoacutelica que criou aldeamento e definiu um

povoamento articulado ao interesse cristatildeo daiacute a paisagem dessas cidades ateacute hoje

ser fortemente marcada pelos templos religiosos que logo chamam a atenccedilatildeo das

pessoas que as observam desde os rios

De acordo com imagem acima a primeira vista que temos quando chegamos

agrave cidade pelo rio eacute a da igreja Avistamos o preacutedio religioso de longe eacute o primeiro

sinal de que estamos chegando ao Municiacutepio A fotografia 07 tambeacutem mostra a

localizaccedilatildeo da igreja agraves margens do rio esta foi uma das estrateacutegias de povoamento

adotadas pelo governo portuguecircs que visava a ocupaccedilatildeo da Amazocircnia assim como

agrave defesa das terras apropriadas Os rios possibilitavam a saiacuteda dos produtos da

floresta e a entrada de mercadorias para consumo

[] o ideal de penetraccedilatildeo no territoacuterio amazocircnico vinculado a sua

necessidade de ocupaccedilatildeo e defesa traduziu-se soacutecio-espacialmente nas

gecircneses das cidades agrave beira dos principais rios que davam acesso agrave regiatildeo

(TRINDADE JUacuteNIOR 2008 p 33)

As vilas e povoamentos edificados agraves margens dos rios tornaram-se estrateacutegias

eficientes de povoamento Com as dificuldades do controle da terra afirma Gonccedilalves

(2005 p 35) ocorreu o efetivo controle das aacuteguas o que resultou em vaacuterios

ldquopovoamentos dispersos ao longo dos rios sustentados pelo extrativismo das drogas

do sertatildeo por uma agricultura de subsistecircncia e pela pesca artesanal base da cultura

do caboclo da Amazocircniardquo

Assim cresceu um povoado em torno da construccedilatildeo da igreja ateacute que em 14

de abril de 1874 pela Lei nordm 811 recebeu a categoria de Freguesia Como Freguesia

entrou para o periacuteodo da Repuacuteblica passando para Vila em 1890 com o Decreto nordm

170 de 2 de agosto No mesmo dia outro Decreto-Lei nordm 171 elevou-a a categoria

de Municiacutepio No ano de 1896 a Vila foi elevada agrave condiccedilatildeo de cidade

De 1891 a 1926 o Municiacutepio foi administrado por intendentes que eram

nomeados pelo governo estadual posteriormente passaram a ser eleitos

constitucionalmente por voto aberto e direto do povo No ano de 1927 passou a ser

governado por prefeitos nomeados A partir da Constituiccedilatildeo de 1988 os prefeitos

passaram a ser eleitos pelo voto direto do povo

Em relaccedilatildeo agrave localizaccedilatildeo Afuaacute encontra-se ao norte da Ilha do Marajoacute na

microrregiatildeo dos furos de Breves conforme o mapa abaixo

Mapa 01 Localizaccedilatildeo Geograacutefica do municiacutepio de Afuaacute

89

Fontelthttp3bpblogspotcom_O_r-gkdiqDYSumbWwIY-IAAAAAAAAAhwEhILXVXz97Es1600-

hmapa+MARAJOANDOJPG Acesso 16 de maio de 2016

O arquipeacutelago do Marajoacute estaacute situado no extremo norte do Estado do Paraacute na

foz do rio Amazonas sendo considerado o maior complexo de ilhas fluviais do mundo

com 49606 kmsup2 composto por 12 municiacutepios Afuaacute Chaves Anajaacutes Breves

Curralinho Satildeo Sebastiatildeo da Boa Vista Muanaacute Ponta de Pedras Cachoeira do Ariri

Salvaterra Soure e Santa Cruz do Ariri

O mapa 01 indica os limites de Afuaacute ao norte com a Ilha Caviana a nordeste

com o Municiacutepio de Chaves ao sul com o Municiacutepio de Anajaacutes e Breves ao sudeste

com o Municiacutepio de Anajaacutes ao sudoeste com os Municiacutepios de Breves e Gurupaacute a

leste com os Municiacutepios de Chaves e a oeste e noroeste com o Estado do Amapaacute

(com os Municiacutepios de Mazagatildeo Macapaacute e Itauacutebal)

Mapa 02 Mapa da ilha de Marajoacute indicando a proximidade de Afuaacutecom o Macapaacute

90

Fonte Google Mapas Disponiacutevel em

lthttpmapsgooglecombrmapsgtAcesso 17 de maio de

2016

Na imagem o Municiacutepio estaacute representado pela letra A (no balatildeo) Em meacutedia

a viagem de barco dura de trecircs a quatro horas ateacute Macapaacute capital do Estado do

Amapaacute enquanto que para Beleacutem dura aproximadamente 24 horas A proximidade

com Macapaacute possibilita um intenso intercacircmbio comercial de Afuaacute chegam

constantemente peixe (pescada gurijuba tamuataacute acaraacute traiacutera pirarucu entre

outros) camaratildeo accedilaiacute bacaba madeira e outros produtos extraiacutedos dos rios e

florestas Os comerciantes afuaenses compram em Macapaacute produtos alimentiacutecios

roupas sapatos eletrodomeacutesticos produtos importados etc para revenderem no

Municiacutepio Haacute tambeacutem uma procura pelos serviccedilos puacuteblicos ofertados em Macapaacute

principalmente nas aacutereas de sauacutede e educaccedilatildeo reflexo da falta de investimento

nessas aacutereas pelos Poderes Municipal Estadual e Federal Existe somente um

hospital na sede do Municiacutepio que natildeo atende agrave demanda da populaccedilatildeo o que

provoca a saiacuteda constante de pessoas em busca de atendimento meacutedico nos

Municiacutepios mais proacuteximos

No que concerne agrave flora a floresta amazocircnica que compotildee o territoacuterio afuaense

conteacutem diversas espeacutecies com destaque para a virola andiroba anani pracuuacuteba

macacauacuteba pau mulato sucupira de vaacuterzea e acapu e palmeiras como o accedilaiacute o

miriti o murumuru o tucumatildes e inuacutemeras outras espeacutecies de plantas aquaacuteticas

A riqueza da flora amazocircnica garante o sustento da maioria da populaccedilatildeo

atraveacutes do extrativismo que segundo Gonccedilalves (2005 p 89) eacute uma atividade ldquoque

91

marca a organizaccedilatildeo social do espaccedilo amazocircnico mesmo antes da presenccedila colonialrdquo

De fato os iacutendios antes da apropriaccedilatildeo de suas terras pelos colonizadores jaacute

negociavam com espanhoacuteis franceses e holandeses os produtos da floresta entre

eles o pau-brasil Braga (1911) afirma que a exploraccedilatildeo da madeira faz parte da

histoacuteria do Marajoacute desde 1900 as induacutestrias madeireiras se instalaram na regiatildeo para

exploraccedilatildeo e beneficiamento da madeira

Segundo Meirelles Filho (2004) a Regiatildeo Amazocircnica eacute a maior produtora de

madeira tropical do mundo e o Estado do Paraacute estaacute incluiacutedo no que o autor chama de

ldquoarco do desmatamentordquo 21 (p 178) O desmatamento tambeacutem gera emprego ldquoA

exploraccedilatildeo da madeira eacute a principal atividade econocircmica de mais de cem municiacutepios

da Amazocircnia Trata-se da terceira maior geradora de empregos na Regiatildeo com mais

de meio milhatildeo de pessoas vivendo da atividaderdquo (p178)

Esta atividade geralmente natildeo respeita as leis ambientais e trabalhistas pois

as condiccedilotildees de trabalho satildeo severas Haacute pouco equipamento disponiacutevel e os

acidentes satildeo comuns Aleacutem disso a ausecircncia da fiscalizaccedilatildeo contribui para a

violaccedilatildeo dos Direitos Humanos tanto nas serralherias como na operaccedilatildeo de corte

com a ocorrecircncia de trabalho infantil condiccedilotildees inadequadas e horas excessivas de

trabalho (LIMA 2003 p 43)

Na sede do Municiacutepio de Afuaacute estaacute localizada a maior madeireira da localidade

denominada Exportaccedilatildeo Materiais e Alimentos do Paraacute (EMAPA) Cerca de 99 de

sua produccedilatildeo eacute exportada para o Japatildeo Itaacutelia Argentina Inglaterra Estados Unidos

e Canadaacute apenas 1 destina-se ao mercado interno (PLANO DIRETOR

PARTICIPATIVO 2007 p 9) O que caracteriza uma produccedilatildeo voltada para a oferta

de mateacuteria-prima para o mercado externo

A exploraccedilatildeo de madeira tambeacutem eacute feita pelos ribeirinhos Segundo

levantamento da Secretaria do Meio Ambiente existem na zona rural

aproximadamente 146 pequenas serrarias que cortam madeira Muitas dessas

serrarias comercializam seus produtos com a EMAPA e com as madeireiras do

Municiacutepio de Macapaacute A derrubada da madeira eacute feita na sua grande maioria sem

projeto de reflorestamento e sem orientaccedilatildeo teacutecnica para o desmatamento pelos

21Seus limites se estendem do sudoeste do Estado do Maranhatildeo ao norte de Tocantins Paraacute norte de

Mato Grosso Rondocircnia sul do Amazonas e sudoeste do Estado do Acre Pelo mapa este itineraacuterio de devastaccedilatildeo da floresta tem forma de um arco

92

ribeirinhos e tambeacutem por madeireiras instaladas no interior pertencentes a

empresaacuterios principalmente das regiotildees Sul e Sudeste do paiacutes

A ausecircncia de orientaccedilotildees teacutecnicas para a derrubada de madeira gera como

consequecircncia o desperdiacutecio pois quando a aacutervore tomba apoacutes o corte do machado

ou da motosserra acaba danificando ou matando outras que estatildeo ao seu redor Se

forem em floresta com maior presenccedila de cipoacutes os danos podem ainda ser maiores

ldquo[] as estradas para a retirada da madeira sem planejamento destroacutei inuacutemeras

aacutervores jovens que poderiam fornecer boa madeira no futuro entopem riachos

mudam cursos drsquoaacutegua e provocam erosotildeesrdquo (MEIRELLES FILHO 2010 p173)

Explica o referido autor que a exploraccedilatildeo de madeira passa por etapas que

inicialmente produzem a geraccedilatildeo de emprego e renda e posteriormente o

desemprego e a miseacuteria da populaccedilatildeo e do espaccedilo explorado

O primeiro momento da atividade predatoacuteria eacute de euforia crescimento raacutepido

geraccedilatildeo de emprego e renda No segundo momento quando terminam os

estoques de madeira mais faacutecil de coletar as serrarias satildeo transferidas para

outras fronteiras deixando um rastro de destruiccedilatildeo e desemprego Para a

regiatildeo fica o prejuiacutezo uma vez que a matildeo-de-obra natildeo iraacute se transferir

tampouco as propriedades rurais onde a madeira foi escolhida a dedo

(MEIRELLES FILHO 2010 p 178)

A transferecircncia das serrarias causa imensos problemas sociais gerados pelo

desemprego Desempregado sem ter como manter a famiacutelia muitos ribeirinhos vatildeo

para a cidade em busca de trabalho de melhores condiccedilotildees de sobrevivecircncia e de

educaccedilatildeo para seus filhos Na cidade acabam morando na periferia sem as miacutenimas

condiccedilotildees de habitaccedilatildeo sem aacutegua encanada esgoto luz eleacutetrica e outros direitos

sociais A realidade com a qual passam a conviver eacute a da violecircncia prostituiccedilatildeo

mendicacircncia entre outras

Aleacutem da extraccedilatildeo da madeira outra forma de exploraccedilatildeo da floresta acontece

atraveacutes da retirada do palmito do accedilaizeiro

[] eacute realizada sem nenhum criteacuterio de manejo ocasionando a escassez de

accedilaizeiros nas aacutereas onde satildeo realizados os cortes para a extraccedilatildeo de

palmito A comercializaccedilatildeo do produto eacute feita ldquoin naturardquo para as faacutebricas de

beneficiamento existentes no municiacutepio (PLANO DIRETOR PARTICIPATIVO

DE AFUAacute 2007 p 26)

Existem seis induacutestrias de palmito registradas na prefeitura que estatildeo

espalhadas pelo municiacutepio localizadas em sua maioria nas aacutereas rurais-ribeirinhas

devido agrave facilidade de acesso agrave matildeo-de-obra e a mateacuteria-prima

Tabela 02 ndash Comparaccedilatildeo da produccedilatildeo de accedilaiacute no intervalo de quatro anos

93

Produto

Quantidade Produzida

Valor (Mil reais)

2010 2014 2010 2014

Accedilai (fruto) 4100 6125 4510 17151

Palmito 120 119 90 263 Fonte Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica 2014

Pela leitura da tabela podemos verificar que a quantidade de accedilaiacute produzida

em 2014aumentou em relaccedilatildeo agrave de 2010 houve um acreacutescimo de 2025 toneladas no

intervalo de quatro anos Um dos motivos foi diminuiccedilatildeo da derrubada em massa de

accedilaizeiros para a retirada de palmito que pela leitura dos mesmos dados tambeacutem

diminuiu Apesar de natildeo haver uma poliacutetica puacuteblica de manejo do accedilaiacute a produccedilatildeo

aumentou

Os ribeirinhos recebem em meacutedia um real por unidade de palmito com toda a

casca poreacutem um vidro deste produto beneficiado eacute encontrado no comeacutercio de

Macapaacute com o peso bruto de 550g e peso drenado de 300g ndash sem o liacutequido de

conserva ndash com o custo meacutedio de R$ 7 50 (sete reais e cinquenta centavos) a R$

1000 (dez reais) dependendo do tipo do palmito A B ou C O preccedilo tambeacutem pode

variar eou aumentar se for vendido para outras regiotildees do paiacutes

A derrubada de accedilaizeiros para a extraccedilatildeo de palmito diminui a oferta do accedilaiacute

que faz parte da alimentaccedilatildeo tanto dos ribeirinhos como dos amazocircnidas que vivem

nas cidades ldquoObserva-se em Beleacutem o aumento excessivo do preccedilo desse fruto o

que provoca a diminuiccedilatildeo de seu consumo principalmente pela populaccedilatildeo de baixa

rendardquo (SANTOS 2014 p 74) Como consequecircncia haacute o aumento no preccedilo do

produto ocasionando a falta nas mesas das famiacutelias mais pobres O que antes se

tinha em abundacircncia hoje estaacute cada vez mais raro O litro do produto em Afuaacute na

entressafra chega a custar R$ 1000 (dez reais) Vale ressaltar que o accedilaiacute aleacutem de

alimento tambeacutem eacute fonte de renda para os ribeirinhos

A pesca tambeacutem eacute outra atividade econocircmica do municiacutepio com destaque para

o camaratildeo e a lagosta aleacutem de vaacuterias espeacutecies de peixes que acompanhados com

accedilaiacute e o camaratildeo tornam-se os principais alimentos consumidos pelos afuaenses Eacute

habitual encontrar esses alimentos nas mesas dos ribeirinhos Como afirma Santos

(2014 p 72) satildeo caracteriacutesticos da culinaacuteria amazocircnica pela especificidade da

regiatildeo ldquocomo por exemplo a presenccedila de rios que facilitam a pesca ou a presenccedila

da mata []rdquo Os saberes necessaacuterios para a colheita do accedilaiacute e a pesca satildeo

aprendidos desde a infacircncia na convivecircncia diaacuteria e nas relaccedilotildees de trabalho Parte

94

do pescado eacute vendida nas feiras e mercados locais a outra eacute comercializada em

Macapaacute Os instrumentos mais utilizados para a pesca satildeo linha tarrafa malhadeira

matapi caniccedilo arpatildeo pari22 entre outros

Fotografia 8ndashRibeirinho jogando a tarrafa no rio

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A pesca do camaratildeo eacute intensa no Municiacutepio nos meses de maio a julho eacute o

periacuteodo de safra O camaratildeo eacute um dos principais produtos que movimenta a economia

Ele eacute tatildeo importante que haacute 33 anos eacute realizado o festival do camaratildeo que ocorre no

mecircs de julho O evento acontece agraves margens do Rio Afuaacute no camaroacutedromo23 e faz

parte do calendaacuterio turiacutestico da cidade

Segundo a Secretaria Municipal de Turismo Esporte Lazer e Culturaem 2015

o festival contou com participaccedilatildeo de aproximadamente 50000 (cinquenta mil)

pessoas oriundas dos municiacutepios do arquipeacutelago do Marajoacute de outros Estados e

paiacuteses Em 2005 comeccedilou a fazer parte do festival a batalha camaroeira que consiste

na disputa entre camarotildees Convencido (camaratildeo cru da cor verde) e Pavulagem

(camaratildeo cozido cor vermelha) A batalha visa retratar os costumes a originalidade

e a regionalidade da cultura cabocla ribeirinha

22O pari eacute uma espeacutecie de armadilha feita de tala pelos pescadores Quando a mareacute seca os peixes

ficam presos nela 23No mecircs de julho a uacutenica quadra de esportes existentes no municiacutepio se transforma no camaroacutedromo

que eacute um espaccedilo para apresentaccedilotildees de bandas desfiles salatildeo de danccedila e para a batalha dos camarotildees Convencido e Pavulagem

95

O trabalho na roccedila garante tambeacutem o alimento do afuaense Eacute uma atividade

laboral que envolve toda a famiacutelia crianccedilas jovens adultos idosos mulheres e

homens todos desempenham funccedilotildees que garantem a produccedilatildeo o sustento e a

venda do que eacute produzido Eacute o que podemos considerar uma agricultura familiar na

qual a prioridade eacute a subsistecircncia Nos solos do municiacutepio satildeo plantados com maior

abundacircncia abacaxi arroz cana-de-accediluacutecar mandioca melancia e milho

O sistema de corte-e-queima ainda prevalece nas praacuteticas da agricultura

familiar que consiste em

[] escolher uma aacuterea de terras uacutemidas desmatar uma pequena aacuterea no fim

da estaccedilatildeo chuvosa e deixar as aacutervores secarem Apoacutes dois meses eacute

colocado fogo e em seguida realizado o plantio de diferentes espeacutecies numa

mesma aacuterea Aproveita-se a aacuterea para o plantio por um a trecircs anos A cada

ano uma nova limpeza e queima eacute realizada (MEIRELLES FILHO 2004 p

86)

Essa praacutetica empobrece o solo tendo como efeito a diminuiccedilatildeo da produccedilatildeo a

cada ano o que leva o agricultor-ribeirinho24 a desmatar e queimar novas aacutereas para

o plantio comprometendo a sobrevivecircncia da floresta e consequentemente a sua

permanecircncia nela

Fotografia 9 ndashAacuterea desmatada para o plantio de milho

Fonte Comissatildeo Pastoral da Terra 2015

24Utilizaremos este termo porque todas as comunidades onde se pratica a agricultura no municiacutepio satildeo

ribeirinhas

96

Na fotografia temos parte da mata derrubada e queimada para o plantio do

milho esta eacute a forma como o agricultor-ribeirinho pratica a agricultura Aprendeu com

os pais que aprenderam com os avoacutes e agora estatildeo ensinando para os seus filhos

que continuaratildeo a perpetuaacute-la Segundo Gonccedilalves (2005 p 156) ldquoAs populaccedilotildees

ribeirinhas de pescadores-agricultores-extrativistas manipulam haacute vaacuterios anos

ecossistemas extremamente delicados sem que nenhum esforccedilo sistemaacutetico de

poliacuteticas puacuteblicas tenha existido em seu apoiordquo Sendo assim a falta de apoio agrave

populaccedilatildeo ribeirinha eacute reflexo do descaso do poder puacuteblico em desenvolver poliacuteticas

que assegurem o desenvolvimento de praacuteticas produtivas coerentes com a

biodiversidade da regiatildeo

Em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo segundo o censo de 2015 do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatiacutestica (IBGE) a estimativa eacute de que o municiacutepio tenha 37398

habitantes sendo que mais de 60 residem na zona rural em comunidades rurais-

ribeirinhas (vilas e povoados)

No tocante agrave definiccedilatildeo de urbano e rural Veiga (2002) afirma que no Brasil natildeo

haacute no estatuto das cidades por exemplo um artigo que defina cidade Essa lacuna

gera confusatildeo entre a classificaccedilatildeo adotada pelo governo e a usada em estudos

demograacuteficos Segundo o autor em nosso paiacutes o mapa oficial de urbanizaccedilatildeo

publicado no Atlas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE) de 2000

adota um criteacuterio administrativo Este criteacuterio ainda eacute baseado no decreto-lei assinado

por Getuacutelio Vargas em 1938 que considera urbanas as sedes dos municiacutepios e as

vilas natildeo levando em consideraccedilatildeo sua densidade populacional

Desta maneira ldquoapoacutes a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica a classificaccedilatildeo urbana

passa a se relacionar com o conceito de cidade e cada vila passa a adotar um criteacuterio

pois se tornar cidade confere statusrdquo (VEIGA 2002 p34) Para o referido autor a

densidade demograacutefica talvez seja o principal indicador da maior ou menor pressatildeo

antroacutepica mas natildeo deve ser o uacutenico pois ldquose usarmos o criteacuterio analiacutetico a populaccedilatildeo

urbana do Brasil natildeo chega a 70rdquo (ibidem p35)

Fotografia 10ndashCasas construiacutedas em aacuterea de invasatildeo no bairroCapimarinho

97

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

As invasotildees para a construccedilatildeo de casas visualizadas na fotografia ocorrem

atraveacutes do desmatamento limpeza e ocupaccedilatildeo desordenada do espaccedilo

Paulatinamente vatildeo surgindo as casas cobertas de palha telhas de brasilit ou de

barro Na imagem acima ainda ficaram poucas espeacutecies da floresta nativa o restante

galhos e troncos das aacutervores estatildeo no chatildeo Sem condiccedilotildees econocircmicas os

ribeirinhos acabam invadindo aacutereas de ressacas para construir suas moradias na

cidade e assim vatildeo surgindo os bairros nas periferias sem aacutegua tratada esgoto

energia eleacutetrica coleta de lixo etc O bairro mais populoso eacute o Capimarinho que

nasceu atraveacutes das constantes invasotildees de ribeirinhos fugindo da miseacuteria e da fome

geradas pelas accedilotildees predatoacuterias de madeireiras e faacutebricas de palmito

A pobreza dos cidadatildeos afuaenses eacute evidenciada pelo Iacutendice de

Desenvolvimento Humano (IDH)25 O IDH Municipal varia de 0 a 1 considerando

indicadores de longevidade como sauacutede renda e educaccedilatildeo Quanto mais proacuteximo de

0 (zero) pior eacute o desenvolvimento humano do municiacutepio Quanto mais proacuteximo de 1

(um) mais alto eacute o desenvolvimento do municiacutepio O IDH de Afuaacuteem 2014 foi de

0489 considerado portanto muito baixo e a expectativa de vida dos moradores em

25A pesquisa foi elaborada a partir do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil 2014 divulgado pelo Programa das Naccedilotildees Unidas para o Desenvolvimento - PNUD Instituto de Pesquisa Econocircmica Aplicada - IPEA e Fundaccedilatildeo Joatildeo Pinheiro - FJP com dados extraiacutedos dos Censos Demograacuteficos de 1991 2000 e 2010

98

meacutedia de 69 anos (IBGE 2010) A ausecircncia de poliacuteticas puacuteblicas sociais e econocircmicas

que beneficiem a populaccedilatildeo mais pobre reflete o iacutendice apresentado Segundo o

estudo do Programa das Naccedilotildees Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) em 2014

dos oito municiacutepios com IDH mais baixo no Estado do Paraacute seis estatildeo situados na

Ilha do Marajoacute Afuaacute (0489) Anajaacutes (0484) Portel (0483) Bagre (0471) Chaves

(0453) e Melgaccedilo (0418) este com o pior IDH do Brasil (PNUD 2013)

A seguir apresentamos o retrato da educaccedilatildeo formal ofertada agravepopulaccedilatildeo que

reside no Municiacutepio

24 A EDUCACcedilAtildeO RIBEIRINHA NO MUNICIacutePIO DE AFUAacute

A populaccedilatildeo de Afuaacute eacute atendida educacionalmente com a educaccedilatildeo infantil

ensino fundamental educaccedilatildeo de jovens e adultos educaccedilatildeo especial e o ensino

meacutedio Segundo censo escolar de 2014 do Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatiacutestica 2130 da populaccedilatildeo acima de 15 anos de idade satildeo analfabetas Isso

significa que nunca frequentaram a escola um direito que eacute garantido

constitucionalmente e natildeo estaacute sendo cumprido nem cobrado pelos oacutergatildeos

competentes A grande parte dos excluiacutedos do sistema formal de ensino mora agraves

margens dos rios lagos e igarapeacutes nas aacutereas ribeirinhas Enquanto no nosso paiacutes

de acordo com dados do IBGE (2014) houve aumento no niacutevel de escolaridade nos

uacuteltimos anos ainda encontramos principalmente nos municiacutepios mais pobres um

elevado iacutendice de analfabetismo e como consequecircncia baixos indicadores de

escolarizaccedilatildeo

A rede municipal de ensino tem como caracteriacutestica ser rural ribeirinha pois

98 das escolas estatildeo localizadas nestas aacutereas das 211 instituiccedilotildees escolares

somente 5 (cinco) se encontram na aacuterea urbana A seguir apresentamos o retrato da

educaccedilatildeo baacutesica iniciamos pela educaccedilatildeo infantil e posteriormente mostramos o

ensino fundamental e meacutedio

241 Educaccedilatildeo Infantil

A educaccedilatildeo infantil enquanto poliacutetica puacuteblica foi garantida legalmente a partir

da constituiccedilatildeo de 1988 as constituiccedilotildees anteriores limitaram-se ao amparo e agrave

assistecircncia e as promulgadas no periacuteodo imperial natildeo abrangeram nada referente agrave

infacircncia (CURY 2012) O cidadatildeo crianccedila de acordo com Angotti (2010) eacute

reconhecido na Carta Magna de 1988 com direitos garantidos o que requer o

investimento e o desenvolvimento de accedilotildees em niacutevel Federal Estadual e Municipal

99

A educaccedilatildeo infantil com a Constituiccedilatildeo passa a ser responsabilidade do

Estado ofertada em creches e preacute-escolas poreacutem a partir da emenda constitucional

nordm 592009 a obrigatoriedade e gratuidade foi concedida somente para as crianccedilas a

partir de quatro anos de idade

A Emenda Constitucional nordm 59 de 2009 que modificou a definiccedilatildeo da educaccedilatildeo obrigatoacuteria apesar de sua importacircncia foi aprovada sem que fosse precedida por maiores discussotildees na sociedade nos meios especializados e no proacuteprio Congresso Nacional De certa forma essa medida jaacute estava anunciada em metas definidas por uma mobilizaccedilatildeo de empresaacuterios o Movimento Todos pela Educaccedilatildeo que vem exercendo grande influecircncia nas orientaccedilotildees da poliacutetica educacional no Paiacutes Essa novidade foi adotada na esteira da anterior configurando uma verdadeira cascata de mudanccedilas que incidiram sobre a gestatildeo municipal da educaccedilatildeo nesta primeira deacutecada do seacuteculo (CAMPOS 2012 p 11)

Para a garantia do padratildeo miacutenimo de qualidade e a equalizaccedilatildeo das

oportunidades foi mantido como competecircncia da Uniatildeo prestar assistecircncia teacutecnica e

financeira aos Estados ao Distrito Federal e aos Municiacutepios que ficaram com a

responsabilidade de atuar prioritariamente no ensino fundamental e na educaccedilatildeo

infantil Nesta divisatildeo coube agrave esfera Estadual o atendimento ao ensino meacutedio e agrave

Federal a oferta da educaccedilatildeo superiorA delegaccedilatildeo por meio das competecircncias entre

os poderes puacuteblicos definidas constitucionalmente fomentou o princiacutepio da

descentralizaccedilatildeo que segundo Gagnebin (2011) compromete a efetivaccedilatildeo do

atendimento educacional de qualidade agraves crianccedilas pequenas como tambeacutem a todos

os outros niacuteveis de ensino o que denota uma visatildeo reducionista do papel do Estado

em relaccedilatildeo agraves poliacuteticas puacuteblicas

Em relaccedilatildeo agraves instituiccedilotildees que poderatildeo ofertar educaccedilatildeo infantil a crecheeacute

reconhecida como espaccedilo educativo e de direito para as crianccedilas principalmente das

famiacutelias trabalhadoras Desta forma os pais legalmente passam a usufruir de um

espaccedilo coletivo para os cuidados e educaccedilatildeo de seus filhos Mas na realidade este

princiacutepio legal ainda natildeo saiu do papel e natildeo se concretizou no municiacutepio de Afuaacute As

crianccedilas na idade de dois a trecircs anos satildeo atendidas na uacutenica escola de Educaccedilatildeo

Infantil denominada Centro Theopompo Nery(CEI) localizada na aacuterea urbanano

bairro Central O nuacutemero de vagas ofertadas por ano totalizam 40 sendo 20 para o

turno da manhatilde e 20 para o da tarde Sabe-se que a demanda eacute muito maior do que

as vagas disponiacuteveis o que requer do poder puacuteblico investimento para a construccedilatildeo

de creches que atendam o que a lei estabelece

100

Vale ressaltar a importacircncia da creche que para Didonet (2014) estaacute centrada

no desenvolvimento na promoccedilatildeo da aprendizagem assim como na mediaccedilatildeo do

processo de construccedilatildeo conhecimentos e habilidades por parte da crianccedila

procurando ajudaacute-la a ir o mais longe possiacutevel nesse processo Desta forma

reconhece a importacircncia da infacircncia no desenvolvimento humano por meio da

educaccedilatildeo na construccedilatildeo da cidadania Constata-se a finalidade da creche que deve

ser centrada na crianccedila para a formaccedilatildeo do cidadatildeo desde o nascimento direito

constitucionalmente garantido

Mas segundo Cury (2012) as instituiccedilotildees que ofertam a educaccedilatildeo infantil em

nosso paiacutes precisam de investimentos tanto na aacuterea pedagoacutegica como em

infraestrutura recursos didaacuteticos formaccedilatildeo continuada de professores projeto

poliacutetico pedagoacutegico entre outros para colocar em accedilatildeo os avanccedilos propostos pela lei

e tornarem-se espaccedilos de promoccedilatildeo e defesa da cidadania

Outro documento legal que trata do direito das crianccedilas agrave creche e agrave preacute-escola

eacute o Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA) Lei n 80691990 A referida lei

corrobora o que jaacute foi garantido constitucionalmente ou seja a obrigatoriedade do

Estado no atendimento agraves crianccedilas de 0 a 5anos em creches e preacute-escolas e a

incumbecircncia do municiacutepio na oferta da educaccedilatildeo infantil Avanccedila ainda ao propor a

criaccedilatildeo de instrumentos na defesa do atendimento aos direitos das crianccedilas e dos

adolescentes que satildeo os Conselhos dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente

A Constituiccedilatildeo Federal de 1988 ao dispor sobre a competecircncia da Uniatildeo para

legislar sobre as diretrizes e bases da educaccedilatildeo nacional deu iniacutecio a todo o processo

para promulgaccedilatildeo da Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional (LDB) Lei n

93941996 de 20 de dezembro de 1996 considerada a lei maacutexima da educaccedilatildeo

Nela a educaccedilatildeo infantil eacute concebida como a primeira etapa da educaccedilatildeo baacutesica

Desta forma o direito das crianccedilas de 0 a 5 anos agrave educaccedilatildeo em creches e preacute-

escolas que jaacute estava assegurado na Constituiccedilatildeo de 1988 e reafirmado no Estatuto

da Crianccedila e do Adolescente agora tambeacutem estaacute traduzido em diretrizes e normas no

acircmbito da educaccedilatildeo nacional o que representa um marco histoacuterico de grande

importacircncia para a educaccedilatildeo infantil em nosso paiacutes

A referida lei apresenta como finalidade da educaccedilatildeo baacutesica o

desenvolvimento do educando assegurando-lhe uma formaccedilatildeo para a cidadania

aleacutem de fornecer meios para a progressatildeo no mundo do trabalho e nos estudos Nela

101

haacute o reconhecimento de que a educaccedilatildeo comeccedila nos primeiros anos de vida por meio

da sua primeira etapa e eacute fundamental para a efetivaccedilatildeo de sua finalidade

O destaque atribuiacutedo pela nova LDB agrave educaccedilatildeo infantil o que natildeo ocorreu nas

legislaccedilotildees anteriores refere-se agrave sua finalidade ldquoo desenvolvimento integral da

crianccedila ateacute os cinco anos de idade em seus aspectos fiacutesico psicoloacutegico intelectual e

social complementando a accedilatildeo da famiacutelia e da comunidaderdquo (BRASIL 2015 p 4)

ofertada em creches ou entidades equivalentes para crianccedilas de ateacute trecircs anos de

idade e em preacute-escolas para as crianccedilas de quatro a cinco anos

A nova LDB ratificou o que estabeleceu a constituiccedilatildeo federal a educaccedilatildeo

infantil eacute responsabilidade do Municiacutepio mas incumbe a Uniatildeo no artigo 9ordm inciso III

o dever de ldquoprestar assistecircncia teacutecnica e financeira aos Estados ao Distrito Federal e

aos Municiacutepios para o desenvolvimento de seus sistemas de ensino e o atendimento

prioritaacuterio agrave escolaridade obrigatoacuteria exercendo sua funccedilatildeo redistributiva e

supletivardquo(BRASIL 2015 p 3)

Sendo prioridade o ensino fundamental a educaccedilatildeo infantilacaba ficando em

segundo plano principalmente nos municiacutepios daAmazocircnia que possuem poucos

recursos financeiros para atender todasas crianccedilas em idade escolar Isso fica

evidente na quantidade de escolasque oferecem esta etapa da educaccedilatildeo baacutesica que

de acordo com o IBGE em 2014 foram 132 escolas que ofertavam a educaccedilatildeo

infantil Estes nuacutemeros no entanto natildeo correspondem ao de escolas de educaccedilatildeo

infantil pois no referido municiacutepio existe somente uma especiacutefica que eacute o Centro de

Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery (CEI) A tabela a seguir mostra o atendimento no

periacuteodo de 2014 a 2016

Tabela 03 ndash Quantidade de Alunos matriculados no CEI

EDUCACcedilAtildeO

INFANTIL

ANO

2014 2015 2016

Creche 182 190 190

Preacute-escolar 659 403 403

Fonte Direccedilatildeo do Centro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery 2016

O decreacutescimo da quantidade de alunos do preacute-escolar a partir de 2015 ocorreu

devido agrave saiacuteda das crianccedilas com 6 anos de idade que passaram para o ensino

fundamental Assim o Centro atende atualmente crianccedilas de 2 a 5 anos de idade as

102

turmas do preacute-escolar ecreche satildeo formadas por 25 a 30 alunos com dois professores

por turma

No Plano Municipal de Educaccedilatildeo de Afuaacute (PME) para o periacuteodo de 2015-2025

consta como primeira Meta universalizar ateacute 2016 a educaccedilatildeo infantil na preacute-escola

para as crianccedilas de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade e ampliar a oferta de educaccedilatildeo

infantil em creches de forma a atender no miacutenimo 10 (dez por cento) das crianccedilas

ateacute 2025 Estamos em 2016 e ainda natildeo foram construiacutedas novas escolas de

educaccedilatildeo infantil tanto na aacuterea urbana como no campo condiccedilatildeo necessaacuteria para

expandir o nuacutemero de vagas com vistas a universalizar a preacute-escola

Na tabela abaixo apesentamos o percentual de atendimento das crianccedilas em

creches pelo municiacutepio bem como pela ilha do Marajoacute Paraacute Regiatildeo e Paiacutes

Tabela 04 ndash Percentual de atendimento das crianccedilas de 0 a 3 anos

META BRASIL 50 META AFUAacute 10

Populaccedilatildeo de Afuaacute de 0 a 3 anos

BRASIL

NORTE

PARAacute

MARAJOacute

AFUAacute

Crianccedilas de 0 a 3 anos natildeo atendidas pela creche em Afuaacute

3786

232

92

112

109

48

952

Fonte IBGEPesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelios (PNAD) ndash 2014

Segundo o PNAD em 2014 952 das crianccedilas estavam fora da creche

apenas uma minoria 48 teve acesso sendo a grande maioria excluiacuteda Na tabela

acima a meta de atendimento estabelecida para o Brasil eacute cinco vezes superior agrave

pretendida pelo Municiacutepio para um periacuteodo de 10 anos Caso seja concretizada ainda

teremos 90 das crianccedilas fora da escola a maioria oriunda da aacuterea rural-ribeirinha

fruto da ausecircncia do governo para essa etapa tatildeo importante da educaccedilatildeo das

crianccedilas na Amazocircnia

A Educaccedilatildeo infantil eacute um direito reconhecido na atual Constituiccedilatildeo Federal

incluso na educaccedilatildeo baacutesica pela Lei maacutexima da educaccedilatildeo e como princiacutepio da

proteccedilatildeo integral agrave infacircnciapelo ECA Para os gestores dos municiacutepios a oferta da

creche natildeo eacute obrigatoacuteria mas entendemos que o direito se aplica a todos os niacuteveis e

modalidades de ensino Apesar daemenda constitucional nordm 592009 estabelecer a

obrigatoriedade e gratuidade para as crianccedilas a partir de quatro anos de idade para

as de 0 a 3 anos haacute o direito e natildeo a obrigaccedilatildeo mas a partir do momento em que

103

existe demanda e os pais exigem vaga para seus filhos nasce o dever do Estado de

garantir o atendimento com qualidade

Fotografia 11ndashCentro de Educaccedilatildeo Infantil Theopompo Nery

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

No tocante agrave estrutura fiacutesica o preacutedio do CEI eacute todo em alvenariacom uma

infraestrutura composta de 12 (doze) salas de aula bibliotecabrinquedoteca

auditoacuterio sala de leitura e dos professoresO corpo docente eacute formado por 46

(quarenta e seis) professores sendo 20 com niacutevel meacutedio 26com niacutevel superior em

diversas licenciaturas como Letras Histoacuteria Geografia Artes Biologia Matemaacutetica

Educaccedilatildeo Fiacutesica e Pedagogia Nacoordenaccedilatildeo pedagoacutegica haacute uma orientadora e

uma supervisoraeducacional Aescola possui uma excelente estrutura fiacutesica e a

proposta pedagoacutegica tem como base o desenvolvimento de habilidades para a

alfabetizaccedilatildeo (SEMED 2016)

Como a meta do PME 2015-2025 eacute atender todas as crianccedilas de 4 a 5 anos

abaixo apresentamos o total de crianccedilas nessa faixa etaacuteria de acordo com dados do

IBGE

Tabela 05 -Percentual de atendimento das crianccedilas de 4 a 5 anos em Afuaacute

META BRASIL 100 META AFUAacute 100

POPULACcedilAtildeO 4 A 5 ANOS

BRASIL NORTE PARAacute MARAJOacute AFUAacute

1957 814 679 739 573 522 Fonte Estado Regiatildeo e Brasil - IBGEPesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelios (PNAD) ndash 2014

104

Os dados demonstram que ateacute o ano de 2013 somente 522 das crianccedilas

de 4 a 5 anos estavam matriculadas na preacute-escola a meta de garantir o acesso a

todas elas vai requerer investimento na construccedilatildeo de preacutedios concurso puacuteblico para

professores aquisiccedilatildeo de materiais pedagoacutegicos entre outros e para isso a

educaccedilatildeo infantil teraacute que ser prioridade do governo

Nas aacutereas ribeirinhas onde estaacute o maior nuacutemero de crianccedilas excluiacutedas da

creche e da preacute-escola natildeo existe escola especiacutefica para a educaccedilatildeo infantil Neste

trabalho retratamos especificamente a realidade da educaccedilatildeo no Regional Madeira

por motivo de ele ser o locus no qual realizamos a pesquisa de campo

A realidade da educaccedilatildeo infantil no Regional Madeira eacute totalmente diversa da

que evidenciamos acima natildeo haacute escolas especiacuteficasde educaccedilatildeo infantil e o

atendimento agrave preacute-escola eacute realizado nos estabelecimentos que oferecem o ensino

fundamentalQuando o nuacutemero chega a um total de 20 alunos26 na comunidade

forma-seuma turma multisseriada com crianccedilas de 4 e 5 anos Se natildeo houver

onuacutemero de alunos para se fechar uma turma especiacutefica as crianccedilas satildeoinseridas

nas classes multisseriadas do 1ordm ao 5ordm ano contrariando aResoluccedilatildeo nordm 2 de 28 de

abril de 2008 que estabelece as diretrizescomplementares normas e princiacutepios para

o desenvolvimento depoliacuteticas puacuteblicas de atendimento da Educaccedilatildeo Baacutesica do

Campo Em seuart 3ordm paraacutegrafo 2ordm ela afirma que ldquoem nenhuma hipoacutetese

seratildeoagrupadas em uma mesma turma crianccedilas de educaccedilatildeo infantil comcrianccedilas do

ensino fundamentalrdquo (BRASIL 2008 p 02)

Fotografia 12 ndash Classe multisseriada

26Nuacutemero de alunos estipulados pela SEMED para formar uma turma especiacutefica daeducaccedilatildeo infantil

105

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Na imagem acima temos uma sala de aula multisseriada de umaescola rural-

ribeirinha com alunos do preacute-escolar (crianccedilas de 4 e 5 anos)e dos anos inicias do

ensino fundamental Aturma eacute composta de um total de 35 alunos Na sala haacute

somente um quadro com atividade para o 3ordm e 4ordm ano enquanto o 1ordm e 2ordm estatildeo

resolvendoexerciacutecios no caderno Esta eacute a realidade de muitas escolas que oferecema

educaccedilatildeo infantil nas comunidades ribeirinhasA falta de recursos didaacuteticos de

merenda escolar e deassessoramento pedagoacutegico satildeo alguns dos problemas

enfrentados peloseducadores Como podemos perceber na fotografiaa escola

funcionaem uma casa cedida pela comunidade na qual reside tambeacutem aprofessora

Eacute um espaccedilo improvisado sem a estrutura fiacutesica de uma salade aula e o espaccedilo

reduzido inviabiliza que a docente circule na sala deaula Essa realidade tambeacutem se

estende ao ensino fundamental e meacutedioque descrevemos a seguir

242 Ensino Fundamental e Meacutedio

A inclusatildeo das crianccedilas a partir de seis anos de idade no ensino fundamental

teve impacto na composiccedilatildeo das classes multisseriadas e consequentemente na

organizaccedilatildeo do trabalho pedagoacutegico do professor anteriormente essas crianccedilas

estavam matriculadas na educaccedilatildeo infantil e nas escolas ribeirinhas poucas tinham

acesso a esta etapa da educaccedilatildeo baacutesica Com a lei nordm 112742006 houve alteraccedilatildeo

na idade miacutenima para a matriacutecula inicial que passou de sete para seis anos de idade

com duraccedilatildeo de nove anos Esta etapa da educaccedilatildeo baacutesica tem por objetivo

106

I - o desenvolvimento da capacidade de aprender tendo como meios baacutesicos o pleno domiacutenio da leitura da escrita e do caacutelculo II - a compreensatildeo do ambiente natural e social do sistema poliacutetico da tecnologia das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade III - o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem tendo em vista a aquisiccedilatildeo de conhecimentos e habilidades e a formaccedilatildeo de atitudes e valores IV - o fortalecimento dos viacutenculos de famiacutelia dos laccedilos de solidariedade humana e de toleracircncia reciacuteproca em que se assenta a vida social (BRASIL 2015 p 4)

Portanto antes da lei nordm 112742006 as crianccedilas de seis anos pertenciam agrave

educaccedilatildeo infantil mas atualmente devem estar matriculadas no primeiro ano do

Ensino Fundamental Essa alteraccedilatildeo provocou e ainda provoca uma seacuterie de

indagaccedilotildees e posicionamentos tanto contraacuterios como favoraacuteveis ao Ensino de Nove

Anos

Segundo Arelaro etal (2011) para o Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) a

obrigatoriedade do ensino fundamental a partir dos seis anos de idade traz a garantia

do acesso principalmente para as crianccedilas oriundas da classe menos favorecida

economicamente Verificou-se por meio de pesquisas que as crianccedilas de 6 anos das

classes meacutedia e alta jaacute estavam matriculadas em escolas e que seria necessaacuterio incluir

as classes desfavorecidas Dentre os fatores de exclusatildeo escolar estava a falta de

vagas na educaccedilatildeo infantil puacuteblica diante da constataccedilatildeo dessa realidade o ensino

fundamental de nove anos assegurariao aumento de matriacuteculas nas escolas

brasileiras eo cumprimento do direito das crianccedilas agrave educaccedilatildeo

A legislaccedilatildeo e os documentos norteadores da implantaccedilatildeo da politica do ensino

fundamental de nove anos corroboram com esta visatildeo

[] a ampliaccedilatildeo do ensino fundamental para nove anos que significa bem mais que a garantia de mais um ano de escolaridade obrigatoacuteria eacute uma oportunidade histoacuterica de a crianccedila de seis anos pertencente agraves classes populares ser introduzida a conhecimentos que foram fruto de um processo soacutecio-histoacuterico de construccedilatildeo coletiva (BRASIL 2007 p 61-62)

Discurso natildeo condizente com a Constituiccedilatildeo Federal no art 208 assegura que

eacute dever do Estado e direito das crianccedilas e das famiacutelias a matriacutecula na educaccedilatildeo

infantil portanto a crianccedila com seis anos de idade tem direito agrave educaccedilatildeo infantil na

preacute-escola Para Arelaro et al (2011) o reconhecimento por parte do governo da natildeo

oferta de vagas suficientes para atender a demanda desta etapa da educaccedilatildeo baacutesica

serviria para intervir com apoio teacutecnico-financeiro junto aos municiacutepios para o

cumprimento de sua responsabilidade constitucional ldquoNo entanto a opccedilatildeo foi por uma

poliacutetica nacional de novo loacutecus de estudo dessa crianccedila uma transferecircncia de etapa

107

de ensino que significou uma mudanccedila radical de diversos aspectos no atendimentordquo

(p 5)

Para Angotti (2014) o ensino Fundamental de Nove Anos vai de encontro aos

avanccedilos conseguidos legalmente em relaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo infantil demonstrando em

seus estudos que a inclusatildeo da crianccedila aos seis anos de idade no ensino

fundamental de certa forma contrapotildee-se agraves conquistas da Educaccedilatildeo Infantil

ocorridas lentamente ao longo de deacutecadas

Essa mudanccedila teve como principal consequecircncia a inclusatildeo das crianccedilas de 6

anos na faixa da educaccedilatildeo considerada obrigatoacuteria diminuindo as matriacuteculas no

uacuteltimo ano da preacute-escola e engrossando aquelas nas classes iniciais afirma Campos

(2012) Segundo a autora natildeo aconteceu a transiccedilatildeo que eacute importante do ponto de

vista pedagoacutegico e outros aspectos dentre os quais a preparaccedilatildeo dos professores em

serviccedilo para trabalhar com os alunos mais novos a explicaccedilatildeo aos pais referente aos

motivos dessa mudanccedila a adaptaccedilatildeo de preacutedios equipamentos mobiliaacuterios e

materiais escolares Diante de todas essas necessidades que natildeo foram levadas em

consideraccedilatildeo o ensino fundamental de nove anos apresenta problemas natildeo

solucionados ateacute hoje ldquoTalvez um dos mais seacuterios seja a antecipaccedilatildeo da repetecircncia

para nuacutemero expressivo de alunos do primeiro ano pois os curriacuteculos natildeo foram

revistos de forma generalizada e muitas redes de ensino natildeo adotam o sistema de

ciclosrdquo (CAMPOS 202 p 11) Consequentemente escola de nove anos tem a

obrigaccedilatildeo de ser para os educandos um espaccedilo de aprendizagem e natildeo a

antecipaccedilatildeo de experiecircncias de fracasso

Kramer (2006)por seu turno considera uma conquista a inclusatildeo das crianccedilas

de 6 anos no ensino fundamental para a autora eacute a garantia do ingresso de todas

elas na escola fato que natildeo acontecia anteriormente haja vista que a educaccedilatildeo

infantil natildeo atendia agrave demanda da clientela dos municiacutepios e com a inclusatildeo no

ensino fundamental torna-se direito puacuteblico subjetivo Para o sucesso da crianccedila

nessa nova etapa da educaccedilatildeo baacutesica faz-se necessaacuterio

[] que o planejamento e o acompanhamento pelos adultos que atuam na educaccedilatildeo infantil e no ensino fundamental devem levar em conta a singularidade das accedilotildees infantis e o direito agrave brincadeira agrave produccedilatildeo cultural na educaccedilatildeo infantil e no ensino fundamental (KRAMER 2006 p 805)

Nesta perspectiva o diaacutelogo entre essas duas etapas da educaccedilatildeo baacutesica eacute

fundamental para o desenvolvimento infantil mas precisa ir aleacutem da escola

abarcando a dimensatildeo poliacutetica visando agrave construccedilatildeo de curriacuteculos e propostas

108

pedagoacutegicas que possam atender agraves suas especificidades Nesse sentido Miranda

(2010) acrescenta que o ensino fundamental de nove anos possibilita um tempo maior

para a aprendizagem mas para isso faz-se necessaacuterio repensaro preparo da equipe

pedagoacutegica e a formaccedilatildeo continuada dos professores

Quanto agrave oferta desta etapa da educaccedilatildeo baacutesica no municiacutepio de Afuaacute os

dados abaixo retratam a saiacuteda paulatina do Estado queculminou com a

municipalizaccedilatildeo que de acordo com a tabela 3 intensificou-se a partir de 1998 Em

vez de promover auniversalizaccedilatildeo do ensino atraveacutes de accedilotildees de cooperaccedilatildeo e

colaboraccedilatildeoentre os respectivos sistemas o que eacute permitido pela nova LDB optou-

sepor transferir para o Municiacutepioas obrigaccedilotildees que originariamente foram do

EstadoAfuaacute que ateacute 1998 atendia somente aos alunos da educaccedilatildeo infantil e dos

anos iniciais do ensino fundamentalassumiu a partir de 2000 todo o segmento do

ensino fundamental

Tabela 06 ndash Estabelecimentos de ensino fundamental por dependecircncia administrativa

ANOS

ESTABELECIMENTOS

Estadual Municipal Particular Total

1996 17 136 - 153

1997 17 115 1 133

1998 15 158 1 174

1999 13 192 1 206

2000 - 197 1 198

Fonte MECINEPSEDUC 2000

Na aacuterea urbana foram matriculados em 2016 2765 alunos do 1ordm ao 9ordm ano do

ensino fundamental nas quatro escolas existentes na cidade desse total somente uma

escola atende duas turmas de Educaccedilatildeo de Jovens e Adultos (EJA) uma com 10 (1ordf

etapa) e outra com 23 (2ordf etapa) alunos A justificativa dos gestores para a natildeo oferta

da EJA estaacute na ausecircncia de alunos ou seja de clientela para a referida modalidade

da educaccedilatildeo baacutesica Segundo o IBGE o iacutendice de analfabetismo da populaccedilatildeo acima

de 15 anos no referido municiacutepio foi de 208 em 2014 De acordo com a Pesquisa

Nacional por Amostra de Domiciacutelios a taxa de analfabetismo entre brasileiros com 15 anos

ou mais em 2014 foi estimada em 83 (IBGE 2014) Os dados da anaacutelise situacional do

PME 2015-2025 indicam que a escolaridade meacutedia da populaccedilatildeo da aacuterea urbana de 18 a

29 anos eacute de 48 e da rural na mesma faixa etaacuteria eacute de 36 Portanto existe uma demanda

109

de jovens e adultos aleacutem de que o ensino fundamental eacute direito puacuteblico subjetivo inclusive

para aqueles que natildeo tiveram acesso na idade proacutepria (BRASIL 2016) A ausecircncia do

Estado e do Municiacutepio deixa a populaccedilatildeo agrave margem dos direitos legalmente garantidos no

art 37 paraacutegrafo 1ordm da nova LDB

Os sistemas de ensino asseguraratildeo gratuitamente aos jovens e aos adultos que natildeo puderam efetuar os estudos na idade regular oportunidades educacionais apropriadas consideradas as caracteriacutesticas do alunado seus interesses condiccedilotildees de vida e de trabalho mediante cursos e exames (BRASIL 2016 p 4)

A diminuiccedilatildeo das matriacuteculas e as altas taxas de evasatildeo na EJA requerem por parte

do poder puacuteblico accedilotildees voltadas para o desenvolvimento de programas mais eficazes

para esta clientela Segundo Sanches (2014 p 78) Os programas de Educaccedilatildeo de

Jovens e Adultos estatildeo sofrendo queda de matriacuteculas e natildeo haacute como mudar a realidade

do analfabetismo sem programas especiacuteficos para esta faixa etaacuteriaTais programas

deveratildeo estar baseados em propostas pedagoacutegicas que levem em consideraccedilatildeo as

caracteriacutesticas do alunado seus interesses condiccedilotildees de vida e de trabalho desta

forma responderatildeo agrave realidade dessa populaccedilatildeo

Consta no PME 2015-2025 do municiacutepio que a meta seraacute o atendimento de toda

demanda do ensino fundamental ldquoUniversalizar o Ensino Fundamental de 9 (nove)

anos para toda a populaccedilatildeo de 6 (seis) a 14 (quatorze) anos e garantir que pelo menos

50 (cinquenta) dos alunos concluam essa etapa na idade recomendadardquo (PME

2015 p 4)

No municiacutepio eacute elevado o iacutendice de alunos com distorccedilatildeo idade-seacuterie que

ocorre quando a diferenccedila entre a idade do aluno e a idade prevista para a seacuterie eacute

de dois anos ou mais

Tabela 07 - Distorccedilatildeo idadeseacuterie no ensino fundamental

ENSINO FUNDAMENTAL NUMERO DE ALUNOS DISTORCcedilAtildeO IDADE

SEacuteRIE

Anos Iniciais 8206

449

Anos Finais 4279

607

Fonte Plano Municipal de Educaccedilatildeo do municiacutepio de Afuaacute 2015-2025

Nos anos iniciais do ensino fundamental a distorccedilatildeo idade-seacuterie equivale a quase

metade dos alunos matriculados enquanto que nos finais equivale a mais da metade dos

alunos As pesquisas retratam que os principais motivos tanto da evasatildeo como da

110

distorccedilatildeo idade-seacuterie nas aacutereas rurais ribeirinhas estatildeo relacionados ao trabalho de

extraccedilatildeo de madeira corte de palmito coleta do accedilaiacute pesca roccedila entre outras

atividades econocircmicas (HAGE 2013)

No tocante ao aproveitamento escolar a tabela a seguir apresenta os dados do

desempenho nas escolas da aacuterea urbana no ano de 2015

Tabela 08 - Taxa de rendimento escolar no ensino fundamental em 2015 ndash aacuterea urbana

Nordm DE ALUNOS APROVADOS REPROVADOS EVADIDOS

2964 2239 440 285

Fonte Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo de Afuaacute 2016

Alguns fatores satildeo responsaacuteveis pelo aumento do desempenhodos alunos das

escolas situadas na aacuterea urbana Entre eles estatildeo aestabilidade dos professores que

a partir dos concursos puacuteblicos realizados passaram a fazer parte do quadro de

servidores efetivos doMuniciacutepio assim sendo natildeo haacute docentes do contrato

administrativoatuando nas escolas da cidade Com a estabilidade as questotildees

deinterferecircncias poliacutetico-partidaacuterias ficaram mais fragilizadas e oprofessor mais livre

para desenvolver o seu trabalho aumentando a suapermanecircncia em uma

determinada escola

Outro fator importante eacute a quantidade de alunos por sala de aulaque varia de

30 a 35 As escolas satildeo todas em alvenaria possuem nos seusquadros de recursos

humanos 70 dos docentes com graduaccedilatildeo diretor serventes pessoal de apoio

administrativo secretaacuterio escolar supervisor e orientador educacional Mesmo com

os fatores acima listados ainda eacuteexpressivo o iacutendice de evasatildeo e reprovaccedilatildeo escolar

Dentre as escolas da aacuterea urbana somente a uacutenica situada nobairro perifeacuterico

o Capimarinho natildeo possui um espaccedilo fiacutesico para abiblioteca ficando os livros

distribuiacutedos no laboratoacuterio de informaacutetica que tambeacutem natildeo funciona devido agrave rede

eleacutetrica que natildeo eacute adequada para comportar a carga de energia necessaacuteria para o

funcionamento das maacutequinas

Fotografia 13ndashLaboratoacuterio de Informaacutetica da EMEF Frei Faustino Lagarda

111

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

O laboratoacuterio de informaacutetica serve como depoacutesito para guardar livros e demais

materiais aleacutem de espaccedilo para aulas de muacutesica Na fotografia o professor estaacute

escolhendo os livros que estatildeo na estante acima da bancada dos computadorespara

trabalhar com seus alunos na sala de aula Os computadores jaacute estatildeo haacute mais de

cinco anos na escola e nunca foram utilizados por alunos e professores

O bairro Capimarinho como afirmado anteriormente surgiude invasotildees e eacute

habitado por famiacutelias pobres muitas oriundas das aacutereasrurais-ribeirinhas e a uacutenica

instituiccedilatildeo de ensino ali localizada natildeo tem aestrutura fiacutesica que as outras trecircs situadas

no bairro central possuemcomo laboratoacuterio de informaacutetica sala de leitura biblioteca

e sala deviacutedeo Mas o diferencial natildeo estaacute somente na escola da periferia as escolas

rurais ribeirinhas tambeacutem natildeo dispotildeem de estrutura fiacutesica e derecursos humanos

necessaacuterios

As escolas de ensino fundamental ribeirinhas totalizam 206 Amaioria tem

preacutedio proacuteprio construiacutedo pelaprefeitura com uma ou mais salas de aula banheiro

secretaria despensae local para o preparo da merenda e mais 35 anexos (salas de

aula quefuncionam em barracotildees igrejas centros comunitaacuterios casa doprofessor ou

do representante da comunidade) Na realidade os anexossatildeo escolas pois natildeo haacute

um contato intensivo com a gestatildeo da escola agravequal satildeo anexados o professor fica

112

isolado e assume a gestatildeoadministrativa e pedagoacutegica sozinho aleacutem de lecionar para

as turmas deeducaccedilatildeo infantil e os anos iniciais do ensino fundamental de

formamultisseriada

Fotografia 14 -Escola ribeirinha que funciona como anexo

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A casa na imagemeacute a residecircncia do representante dacomunidade e a sala foi

cedida para a escola funcionar O professorreside com a famiacutelia do proprietaacuterio pois

assim como natildeo existe preacutedioescolar tambeacutem natildeo haacute alojamento

Fotografia 15 - Sala de aula de uma escola ribeirinha que funciona como anexo

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A imagem acima retrata a sala de aula que funciona na residecircncia cedida pelo

representante da comunidade Observe que natildeo haacute cartazes pregados na parede

113

issoocorre porque as crianccedilas filhas do proprietaacuterio os rasgam e arrancam Antes de

pregaacute-los o professor tem que pedirautorizaccedilatildeo ao dono da casa As cadeiras no

teacutermino da aula devem serarrumadas em ciacuterculo desta forma os moradores teratildeo

espaccedilo paracircular e atar as redes para dormir agrave noite

As aulas neste ambiente sofrem vaacuterias interferecircncias passagemde visitas

pela sala choro de crianccedilas barulho de muacutesicas e de programasde raacutedio conflitos

entre os moradores da casa entre outros O professornatildeo tem autonomia para discutir

os assuntos referentes agraves diversasdisciplinas pois precisa ter cuidado com o que fala

aos alunos quandoo(a) dono(a) natildeo concorda com o que estaacute sendo ensinado

acabainterferindo na aula emitindo opiniatildeo contraacuteria

Nas escolas ribeirinhas do Regional investigado haacute escassez de recursos

didaacuteticos a merenda escolar natildeo eacute suficiente paraatender a demanda durante todo o

mecircs natildeo existe biblioteca nemalojamento mesmo nas que tecircm preacutedio proacuteprio Isto

leva os professores amorarem na sala de aula ou com famiacutelias que gentilmente os

acolhem pois se assim natildeo fizerem acabam ficando sem professor e os filhos

semestudar

3 PERCURSO METODOLOacuteGICO

31 TIPO E LOCAL DA PESQUISA

114

O problema e os objetivos levaram-nos a desenvolver uma pesquisa baseada

na abordagem qualitativa pois necessitou de uma imersatildeo no contexto no qual se

desenvolve a praacutetica docente Bogdan e Biklen (1994 p 48) afirmam que os

investigadores qualitativos ldquofrequentam os locais de estudo porque se preocupam com

o contexto Entendem que as accedilotildees podem ser melhor compreendidas quando

observadas no seu ambiente natural de ocorrecircnciardquo O ambiente natural onde ocorre

a praacutetica docente eacute a sala de aula concebida como os vaacuterios espaccedilos utilizados para

ensinar e aprender neste ambiente eacute possiacutevel interpretar a realidade dos sujeitos

investigados atraveacutes da descriccedilatildeo de dados que vatildeo aleacutem das falas e dos espaccedilos

ocupados pelos sujeitos que satildeo situados em um contexto histoacuterico social

econocircmico poliacutetico e cultural Todos os dados desse contexto satildeo importantes

A abordagem da investigaccedilatildeo qualitativa exige que o mundo seja examinado com a ideacuteia de que nada eacute trivial que tudo tem potencial para constituir uma pista que nos permita estabelecer uma compreensatildeo mais esclarecedora do nosso objecto de estudo (BOGDAN BIKLEN 1994 p 49)

Aleacutem do ambiente natural explicam os autores que a pesquisa qualitativa

requer o contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente e a situaccedilatildeo que

estaacute sendo investigada o que pressupotildee um tempo significativo a ser passado na

escola aplicando as teacutecnicas para a produccedilatildeo dos dados haja vista que ldquoo processo

de conduccedilatildeo de investigaccedilatildeo qualitativa reflecte uma espeacutecie de diaacutelogo entre os

investigadores e os respectivos sujeitos dados estes natildeo serem abordados por

aqueles de uma forma neutrardquo (BOGDAN BIKLEN 1994 p 51)

Sobre a neutralidade para Chizzotti (2003 p 79) a abordagem qualitativa

parte do princiacutepio de que

[] haacute uma relaccedilatildeo dinacircmica entre o mundo real e o sujeito uma interdependecircncia viva entre sujeito e objeto um vinculo indissociaacutevel entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito O conhecimento natildeo se reduz a um rol de dados isolados [] o sujeito observador eacute parte integrante do processo de conhecimento e interpreta os fenocircmenos atribuindo-lhes um significado O objeto natildeo eacute um dado inerte e neutro estaacute possuiacutedo de significados e relaccedilotildees que sujeitos concretos criam em suas relaccedilotildees

Portanto fica evidente que nesta abordagem o pesquisador exerce um papel

fundamental suas concepccedilotildees valores e representaccedilotildees estaratildeo presentes nos

significados que atribuiraacute aos fenocircmenos analisados

Dentre os pressupostos epistemoloacutegicos que embasam a abordagem

qualitativa optamos pela perspectiva dialeacutetica que segundo Chizzotti (2003 p 81)

[] valoriza a contradiccedilatildeo dinacircmica do fato observado e a atividade criadora do sujeito que observa as oposiccedilotildees contraditoacuterias entre o todo e a parte e os

115

viacutenculos do saber e do agir com a vida social dos homens O pesquisador eacute um ativo descobridor do significado das accedilotildees e das relaccedilotildees que se ocultam nas estruturas sociais

Trivintildeos (2007 p 129) apresenta algumas caracteriacutesticas desta perspectiva

que ele chama de histoacuterico-estrutural-dialeacutetica Satildeo elas

[] parte da descriccedilatildeo que intenta captar natildeo soacute a aparecircncia do fenocircmeno como tambeacutem sua essecircncia Busca poreacutem a causa da existecircncia dele procurando explicar sua origem suas relaccedilotildees suas mudanccedilas [] aprecia o desenvolvimento do fenocircmeno natildeo soacute em sua visatildeo atual que marca apenas o iniacutecio da anaacutelise como tambeacutem penetra em sua estrutura iacutentima latente inclusive natildeo visiacutevel ao observaacutevel para descobrir suas relaccedilotildees e avanccedilar no conhecimento de seus aspectos evolutivos tratando de identificar as forccedilas decisivas responsaacuteveis por seu desenrolar [] o fenocircmeno tem sua proacutepria realidade fora da consciecircncia Ele eacute real concreto e como tal eacute estudado

Dentre os tipos de pesquisa qualitativa optamos pela etnograacutefica por

possibilitar investigar de forma mais abrangente os aspectos relacionados agrave cultura

dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute dentre os quais os valores os haacutebitos as crenccedilas

linguagens e significados que estatildeo diretamente ligados agrave produccedilatildeo do saber popular

que norteia as praacuteticas dos povos das aacuteguas A pesquisa etnograacutefica segundo Andreacute

(2013 p 25) envolve

[] um trabalho de campo O pesquisador aproxima-se de pessoas situaccedilotildees locais eventos mantendo com eles um contato direto e prolongado Como se daacute esse contato Primeiro natildeo haacute pretensatildeo de mudar o ambiente introduzindo modificaccedilotildees que seratildeo experimentalmente controladas como na pesquisa experimental Os eventos as pessoas as situaccedilotildees satildeo observados em sua manifestaccedilatildeo natural

Desenvolvemos o trabalho de campo na ilha do Accedilaiacute que pertence ao

municiacutepio de Afuaacute Passamos quatro meses imersos nas cinco comunidades

ribeirinhas que formam o arquipeacutelago nesse periacuteodo participamos das atividades

produtivas culturais religiosas e sociais Por meio dos instrumentos para coleta de

dados e da convivecircncia com os moradores da ilha procuramos retratar a maneira

como os sujeitos vivem e convivem assim como as suas experiecircncias e o mundo que

ascerca Na etnografia

Os dados satildeo mediados pelo instrumento humano o pesquisador O fato de ser uma pessoa o potildee numa posiccedilatildeo bem diferente de outros tipos deinstrumentos porque permite que ele responda ativamente agraves circunstacircncias que o cercam modificando teacutecnicas de coleta se necessaacuterio revendo as questotildees que orientam a pesquisa localizando novos sujeitos revendo toda a metodologia ainda durante o desenrolar do trabalho (ANDRE 2013 p 25)

116

Foi o que aconteceu no decorrer desta investigaccedilatildeo modificamos algumas

teacutecnicas de coleta de dados pois inicialmente pretendiacuteamos aplicar o formulaacuterio mas

no decorrer da pesquisa percebemos que este instrumento natildeo atenderia aos

objetivos propostos bem como apoacutes a execuccedilatildeo de algumas entrevistas

percebemos a necessidade de incluir ou retirar questotildees do roteiro ou ainda tornaacute-las

mais claras e objetivas para a compreensatildeo dos entrevistados

Realizamos o trabalho de campo nas cinco comunidades ribeirinhas e nas

escolas localizadas nessas comunidades que pertencem ao Regional Madeira

descritas na tabela abaixo

Tabela 09 ndash Escolas que compotildeem o Regional Madeira com o nuacutemero de alunos no ano de 201627

Escola

Ed

Infantil

Ensino Fundamental Nordm de

Alunos 1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm 7ordm 8ordm 9ordm

A 10 12 10 13 9 7 12 11 19 12 140

B 14 15 10 10 9 8 8 7 7 6 94

C 04 12 9 8 7 7 6 5 - - 58

D 9 10 9 8 7 8 8 7 - - 66

E 6 10 8 7 5 3 - - - - 39

FONTE Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo do Municiacutepio de Afuaacute ndash SEMED2016

De acordo com a tabela todas as escolas oferecem a educaccedilatildeo infantil e as

seacuteries iniciais do ensino fundamental Os dados acima tambeacutem mostram que somente

duas oferecem todos os anos do ensino fundamental as escolas A e B A primeira eacute

a polo na qual reside o diretor que eacute responsaacutevel pela gestatildeo administrativa e

pedagoacutegica das outras escolas pertencentes ao Regional A segunda eacute a mais

distante do Regional motivo pelo qual atende aos alunos das seacuteries finais do ensino

fundamental do seu entorno Quanto agrave infraestrutura a escola polo eacute a uacutenica com o

preacutedio totalmente em alvenaria e com as seguintes dependecircncias duas salas de aula

secretaria escolar cozinha e depoacutesito O quadro de funcionaacuterios natildeo docentes eacute

composto por uma secretaacuteria escolar duas serventes e uma merendeira todas

residentes na comunidade

Fotografia 16 - Escola Polo

27Para garantir o anonimato das escolas que compotildeem o Regional Madeira utilizamos letras para identificaacute-las

117

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Em relaccedilatildeo agraves outras escolas a B estaacute situada agrave margem do rio Caetano com

quatro salas de aula cozinha e depoacutesito Natildeo haacute alojamento para os professores que

dormem nas salas de aula agrave noite e guardam seus pertences (roupas sapatos e

produtos de higiene pessoal entre outros) no depoacutesito O quadro de profissionais natildeo

docentes eacute formado por uma servente e uma merendeira

Fotografia 17 - Preacutedio da Escola B

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Os preacutedios das escolas C e D seguem o mesmo padratildeo da fotografia acima

O preacutedio da escola E natildeo apresentava condiccedilotildees de funcionamento no periacuteodo

em que fizemos a pesquisa de campo motivo pelo qual os alunos estavam tendo aula

118

na casa do representante da comunidade desde o mecircs de fevereiro do corrente ano

o que gerou vaacuterios problemas em relaccedilatildeo agrave gestatildeo pedagoacutegica e ao espaccedilo escolar

tais como interferecircncias das pessoas da famiacutelia que passavam constantemente pela

sala tirando a atenccedilatildeo dos alunos barulho com choro das crianccedilas da casa briga

entre os membros da famiacutelia do dono do espaccedilo entre outros Fotografia 18 - Preacutedio da Escola E

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Na tabela abaixo descrevemos cada instituiccedilatildeo de ensino com os respectivos

niacuteveis de atendimento da educaccedilatildeo baacutesica

Tabela 10 ndash Distribuiccedilatildeo das turmas da Educaccedilatildeo Infantil e anos iniciais do ensino fundamental por professor

Escolas Ed Infantil Ensino Fundamental Nordm de Professores

A 1ordm e 2ordm periacuteodos 1ordm e 2ordm ano 01

3ordm4ordm e 5ordm ano 01

B 1ordm e 2ordm periacuteodos 1ordm e 2ordm ano 01

3ordm4ordm e 5ordm ano 01

C 2ordm periacuteodo 1ordm e 2ordm ano 01

3ordm4ordm e 5ordm ano 01

D 1ordm 2ordm periacuteodos 1ordm e 2ordm ano 01

3ordm4ordm e 5ordm ano 01

E 2ordm periacuteodo 1ordm 2ordm 3ordm 4 e 5ordm ano 01

FONTE Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo do Municiacutepio de Afuaacute ndash SEMED2016

119

Ao analisar a tabela acima constatamos que todas as escolas do regional

possuem turmas multisseriadas28 do preacute-escolar ao 5ordm ano motivo pelo qual

realizamos a pesquisa de campo em todas elas bem como fizemos observaccedilatildeo da

praacutetica docente e as entrevistas semiestruturadas

32 PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS PARA A COLETA DE DADOS NA

PESQUISA

As pesquisas qualitativas de acordo com Alves-Mazzotti (2002 p 163) satildeo

ldquomultimetodoloacutegicas isto eacute usam uma grande variedade de procedimentos e

instrumentos para coleta de dadosrdquo Assim sendo para a produccedilatildeo dos dados foram

realizadas entrevistas semiestruturadas a observaccedilatildeo analiacutetica e participante29 e a

fotografia

A entrevista semiestruturada eacute concebida por Laville e Dione (2000) como uma

seacuterie de perguntas feitas verbalmente em uma ordem prevista mas na qual o

pesquisador pode acrescentar perguntas de esclarecimento agraves questotildees

fundamentais Tendo como referecircncia o problema de pesquisa e os objetivos

propostos elaboramos o roteiro das entrevistas

Realizamos inicialmente um teste piloto com quatro professores objetivando

testar o referido roteiro A partir desta avaliaccedilatildeo reorganizamos o roteiro das

entrevistas Tambeacutem efetivamos um teste piloto do roteiro da entrevista para os

moradores Aplicamos o teste para trecircs moradores e em seguida fizemos a

reformulaccedilatildeo das perguntas para tornaacute-las mais compreensiacuteveis por parte dos

sujeitos

As entrevistas foram gravadas mediante a autorizaccedilatildeo dos entrevistados ldquoa

gravaccedilatildeo direta tem a vantagem de registrar todas as expressotildees orais

imediatamente deixando o entrevistador livre para prestar toda atenccedilatildeo ao

entrevistadordquo (LUDKE ANDREacute 2006 p 37) As entrevistas com os professores foram

realizadas em diferentes momentos antes e apoacutes as aulas e em diferentes espaccedilos

como na casa do professorprofessora e na escola (sala de aula) Ressaltamos este

detalhe para enfatizar a disponibilidade dos sujeitos em colaborar com nosso estudo

Entrevistamos 9 (nove) professores que trabalham com a educaccedilatildeo infantil e

os anos iniciais do ensino fundamental sendo 6 (seis) mulheres e 3 (trecircs) homens

28Consideramos neste estudo como classes multisseriadas as que satildeo formadas por mais de um ano do ensino fundamental na qual somente um docente leciona no mesmo espaccedilo e tempo 29 Ver roteiro em anexo

120

com idade entre 22 a 45 anos O tempo de experiecircncia docente com classes

multisseriadas variou em torno de 6 a 25 anos Adotamos como criteacuterio para a seleccedilatildeo

dos sujeitos somente a atuaccedilatildeo com turmas da educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do

ensino fundamental organizadas de forma multisseriada nas escolas ribeirinhas

pertencentes ao Regional

Quanto aos moradores sujeitos da pesquisa realizamos as entrevistas em

diversos espaccedilos como na residecircncia do entrevistado e no desenvolvimento das

praacuteticas produtivas Para realizar um estudo a partir das memoacuterias dos moradores da

ilha do Accedilaiacute em relaccedilatildeo aos saberes presentes no discurso e nas praacuteticas cotidianas

dos ribeirinhos entrevistamos dez moradores das comunidades que compotildeem a ilha

do Accedilaiacute Os criteacuterios para a seleccedilatildeo foram morador mais antigo na comunidade

participante de praacuteticas produtivas (pesca caccedila e colheita do accedilaiacute) idosos e

curandeiros (benzedores e parteiras) e aluno regularmente matriculado na escola no

ano de 2016 Todos os moradores entrevistados participam das praacuteticas produtivas e

satildeo identificados na pesquisa por pseudocircnimos para preservar o anonimato

Aleacutem das entrevistas fizemos a observaccedilatildeo participante que eacute definida por

Minayo ( 2004 p 62) como

[] um processo pelo qual se manteacutem a presenccedila do observador numa situaccedilatildeo social com a finalidade de realizar uma investigaccedilatildeo cientiacutefica na qual o observador estaacute face a face com os observados Ao participar da vida deles no seu cenaacuterio cultural colhe dados e se torna parte do contexto sob observaccedilatildeo ao mesmo tempo modificando e sendo modificado por este

Para a realizaccedilatildeo da observaccedilatildeo participante nas comunidades ribeirinhas que

formam a ilha a minha inserccedilatildeo deu-se de forma gradual Inicialmente apresentei-me

como pesquisador explicando os motivos e os objetivos da pesquisa Em seguida

para a aproximaccedilatildeo com os ribeirinhos envolvi-me nas atividades cotidianas tais

como apanhar accedilaiacute pescar caccedilar plantar na roccedila ajudar na confecccedilatildeo de paneiros

e matapi bem como na venda do accedilaiacute na rampa da Santa Inecircs30 remar para os

pescadores quando saiam para fachiar31 agrave noite jogar futebol dominoacute baralho entre

outras

Como assinala Trivintildeos (2007) a observaccedilatildeo permite que o pesquisador

chegue mais perto da perspectiva dos sujeitos agrave medida queo observador

30Trapiche no qual os catraios que vem das ilhas do Marajoacute atracam para vender peixe camaratildeo

frutas verduras e principalmente accedilaiacute 31 Pescar a noite com a zagaia

121

acompanha in loco as experiecircncias diaacuterias dos sujeitos por tentar apreender a sua

visatildeo de mundo isto eacute o significado que eles atribuem agrave realidade que os cerca e agraves

suas proacuteprias accedilotildees

Alves-Mazzotti (2002 p 164) elenca as vantagens atribuiacutedas agrave observaccedilatildeo

enquanto teacutecnica para produccedilatildeo de dados

[] a) permite checar na praacutetica a sinceridade de certas respostas que agraves vezes satildeo dadas soacute para causar boa impressatildeo b) permite identificar comportamentos natildeo intencionais ou inconscientes e explorar toacutepicos que os informantes natildeo se sentem agrave vontade para discutir c) permite o registro do comportamento em seu contexto temporal-espacial

Em relaccedilatildeo aos professores realizamos a observaccedilatildeo analiacutetica da praacutetica

pedagoacutegica dos nove professores totalizando 100 da amostra As observaccedilotildees

foram realizadas no iniacutecio do mecircs de fevereiro ateacute o final do mecircs de maio do corrente

ano Passamos em meacutedia 20 dias em cada escola com 4 (quatro horas) diaacuterias na

sala de aula de cada professor realizando as observaccedilotildees Para preservar o

anonimato dos sujeitos optamos por identificaacute-los como Prof1 Prof2 Prof3 Prof4

Prof5 Prof6 Prof7 Prof8 e Prof9

Neste estudo partimos do princiacutepio de que a praacutetica pedagoacutegica docente se

desenvolve na escola que estaacute inserida em um contexto histoacuterico econocircmico social

poliacutetico e cultural e natildeo podemos estudaacute-la dissociada desse contexto (LUCKESI

2003)

Corroborando a afirmaccedilatildeo acima Andreacute (2003) apresenta trecircs dimensotildees que

necessitam ser consideradas quanto ao estudo da praacutetica escolar cotidiana entre elas

estaacute a institucional que envolve o contexto no qual esta praacutetica acontece ldquoA dimensatildeo

institucional age assim como um elo entre a praacutexis social mais ampla e aquilo que

ocorre no interior da escolardquo (ibidem p 43) Assim para compreender e analisar o

que ocorre no interior da escola os fatores externos a ela devem ser levados em

consideraccedilatildeo entre esses fatores estaacute no nosso estudo especiacutefico a realidade da

comunidade ribeirinha na qual ela estaacute localizada

A outra dimensatildeo eacute a instrucional ou pedagoacutegica que engloba as situaccedilotildees de

ensino e aprendizagem Este processo eacute dialoacutegico composto por dois polos de um

lado estaacute o professor que eacute educador e tambeacutem educando do outro lado estatildeo os

alunos que ao aprender tambeacutem ensinam portanto professor e alunos interagem

mediatizados pelo conhecimento Ao analisarmos as formas de mediaccedilatildeo que satildeo as

122

metodologias utilizadas para tornar o objeto cognosciacutevel faz-se necessaacuterio segundo

Andreacute (2003 p 43)

Considerar a situaccedilatildeo concreta dos alunos (processos cognitivos procedecircncia econocircmica linguagem imaginaacuterio) a situaccedilatildeo concreta do professor (condiccedilotildees de vida e de trabalho expectativas valores concepccedilotildees) e sua inter-relaccedilatildeo com o ambiente em que se processa o ensino (forccedilas institucionais estrutura administrativa rede de relaccedilotildees inter e extra-escolar)

A situaccedilatildeo concreta tanto do aluno como do professor32 estaacute ligada aos

aspectos sociais econocircmicos culturais e religiosos nos quais satildeo desenvolvidas as

relaccedilotildees de trabalho na comunidade ribeirinha A procedecircncia econocircmica (praacuteticas

produtivas) linguagem e imaginaacuterios (praacuteticas culturais) dos alunos soacute tecircm sentido a

partir do local onde satildeo desenvolvidas e vivenciadas

A terceira dimensatildeo proposta pela autora eacute a sociopoliacuteticocultural que ldquose

refere ao contexto sociopoliacutetico e cultural mais amplo ou seja aos determinantes

macroestruturais da praacutetica educativardquo (ibidem p 44) Portanto natildeo podemos isolar

a escola do contexto em que estaacute inserida

Utilizamos tambeacutem na pesquisa a fotografia como fonte de leitura e

interpretaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo onde vivem os sujeitos amazocircnidas

especificamente os que habitam agraves margens dos rios lagos e igarapeacutes de Afuaacute

Segundo Alves (2008 p 28)

A fotografia comunica por meio de mensagens natildeo verbais cujo signo constitutivo eacute a imagem Portanto sendo a produccedilatildeo da imagem um trabalho humano de comunicaccedilatildeo pauta-se enquanto tal em coacutedigos convencionalizados socialmente possuindo um caraacuteter conotativo que remete agraves formas de ser a agir do contexto no qual estatildeo inseridas como mensagens

Retratamos atraveacutes da imagem fotograacutefica os aspectos histoacutericos

econocircmicos e educacionais do municiacutepio de Afuaacute bem como o modo de ser e de viver

dos ribeirinhos da Ilha do Accedilaiacute

33 CARACTERIZACcedilAtildeO DOS SUJEITOS DA PESQUISA

Na tabela abaixo apresentamos as caracteriacutesticas dos professores que fizeram

parte da pesquisa

Tabela 11 ndash Os professores sujeitos da pesquisa

32Todos os professores sujeitos desta pesquisa residem nas comunidades ribeirinhas

123

Professor

Anos do Ensino Fundamental que Lecionam

Experiecircncia com Classes

Multisseriadas

Formaccedilatildeo

Prof 1

3ordm 4ordm e 5ordm ano

6 anos

Licenciatura em Pedagogia com especializaccedilatildeo em Psicopedagogia Escolar

Prof 2 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano

15 anos Curso normal de niacutevel meacutedio e Licenciatura em Pedagogia

Prof 3 3ordm 4ordm e 5ordm ano 7 anos Licenciatura em Pedagogia com especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Inclusiva

Prof 4 3ordm 4ordm e 5ordm ano 10 anos Licenciatura em Pedagogia

Prof 5 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano

8 anos Licenciatura em Pedagogia

Prof 6 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano

25 anos Curso normal de niacutevel meacutedio e Licenciatura em Pedagogia

Prof 7 Preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano

9 anos Licenciatura em Pedagogia com Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Infantil

Prof 8 3ordm 4ordm e 5ordm ano 20 anos Curso normal de niacutevel meacutedio e Licenciatura em Pedagogia

Prof 9 preacute-escolar 1ordm 2ordm 3ordm 4ordm e 5ordm ano

11 anos Licenciatura em Pedagogia com Especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Infantil

Somente os Prof 2 Prof 6 e o Prof 8 fizeram o curso normal de niacutevel meacutedio

ou seja o curso de formaccedilatildeo de professores Cursaram Pedagogia na Universidade

Federal do Amapaacute no periacuteodo de feacuterias (meses de janeiro e julho) por meio de um

convecircnio entre a UNIFAP e a Prefeitura de Afuaacute para a formaccedilatildeo do quadro da

SEMED Os referidos professores satildeo oriundos das comunidades nas quais

trabalham ou seja satildeo ribeirinhos Os outros docentes fizeram a formaccedilatildeo

pedagoacutegica na educaccedilatildeo superior em instituiccedilotildees privadas de ensino e satildeo oriundos

de outros lugares como Macapaacute Beleacutem e a sede do municiacutepio de Afuaacute

A seguir descrevemos as caracteriacutesticas dos moradores que entrevistamos

Tabela 12 ndash Os moradores sujeitos da pesquisa

Morador Caracteriacutesticas

Maria

Adolescente e aluna regularmente matriculada na escola A

124

Tiago Adolescente e aluno regularmente matriculado na escola C

Joseacute Idoso e um dos moradores mais antigos na comunidade do rio Santo Antocircnio

Joana Participante das atividades produtivas sociais religiosas e culturais na comunidade do rio Santo Antocircnio

Pedro

Idoso e um dos moradores mais antigos na comunidade do rio Caetano

Luzia Idosa e uma das moradoras mais antigas na comunidade do rio Caraacutes

Benedito Idoso e benzedor residente na ilha do amor proacuteximo da comunidade do rio Caraacutes (distante 10 minutos de catraio)

Antocircnia Idosa benzedeira e parteira residente na comunidade do rio Cajueiro

Francisca

Participante das atividades produtivas sociais religiosas e culturais na comunidade do rio Furo Seco

Raimundo

Participante das atividades produtivas sociais religiosas e culturais na comunidade do rio Furo Seco

34 TEacuteCNICA DE ANAacuteLISE DOS DADOS

Como teacutecnica para analisar os dados coletados nas entrevistas

semiestruturadas e tambeacutem nas observaccedilotildees realizadas utilizamos a anaacutelise de

conteuacutedo desenvolvida por Bardin (2004 p 41) que consiste em

Um conjunto de teacutecnicas de anaacutelise das comunicaccedilotildees visando obter por procedimentos sistemaacuteticos e objetivos de descriccedilatildeo do conteuacutedo das mensagens indicadores (quantitativos ou natildeo) que permitam a inferecircncia de conhecimentos relativos agraves condiccedilotildees de produccedilatildeorecepccedilatildeo (variaacuteveis inferidas) destas mensagens

Desta maneira a anaacutelise de conteuacutedo tem como base a comunicaccedilatildeo com a

utilizaccedilatildeo de preceitos para analisar o conteuacutedo das falas (entrevistas) e dos registros

de campo (observaccedilatildeo) para que posteriormente sejam feitas as inferecircncias como

afirma a referida autoraldquoO ato de inferir significa a realizaccedilatildeo de uma operaccedilatildeo loacutegica

pela qual se admite uma proposiccedilatildeo em virtude de sua ligaccedilatildeo com outras proposiccedilotildees

jaacute aceitas como verdadeirasrdquo (BARDIN 2004 p 39)

Pelas inferecircncias dialogamos com o referencial teoacuterico e os conteuacutedos das

mensagens oriundas das entrevistas e observaccedilotildees coletadas na pesquisa de campo

Para Trivintildeos (2007) a inferecircncia parte das informaccedilotildees que fornece o conteuacutedo da

mensagem e das premissas oriundas dos dados coletados na comunicaccedilatildeo o autor

ressalta as classificaccedilotildees dos conceitos a codificaccedilatildeo e a categorizaccedilatildeo como

procedimentos para se fazer uma anaacutelise clara de conteuacutedo

125

A codificaccedilatildeo segundo Franco (2006 p 34) ldquoeacute o processo atraveacutes do qual os

dados brutos satildeo sistematicamente transformados em categorias e que permitam

posteriormente a discussatildeo precisa das caracteriacutesticas relevantes do conteuacutedordquo E o

procedimento de categorizaccedilatildeo eacute ldquouma operaccedilatildeo de classificaccedilatildeo de elementos

constitutivos de um conjunto por diferenciaccedilatildeo e seguidamente por reagrupamento

segundo o gecircnerordquo (BARDIN 2004 p 117)

As categorias abrangem uma variedade de temas de acordo com as

aproximaccedilotildees entre si que por meio da anaacutelise expressam sentido e elaboraccedilotildees

voltados para os objetivos da pesquisa e podem ser classificadas em aprioriacutesticas ou

natildeo aprioriacutesticas As aprioriacutesticas satildeo preacute-definidas tendo como base o referencial

teoacuterico e a experiecircncia do investigador assim o pesquisadorfaz a classificaccedilatildeo das

unidades de anaacutelises dentro destas categorias e a partir daiacutedividi-las em

subcategorias As natildeo aprioriacutesticas emergem da anaacutelise dos dados coletados na

pesquisa de campo

A codificaccedilatildeo que pode ser feita com sinais ou outra espeacutecie de siacutembolos eacute

fundamental para a organizaccedilatildeo do material coletado para em seguida ser

classificado nas categorias e subcategorias Neste estudo codificamos as unidades

de anaacutelise temaacuteticas que satildeo recortes do texto das entrevistas e observaccedilotildees de

acordo com o problema e os objetivos da pesquisa assim como o referencial teoacuterico

adotado

A relevacircncia da rigorosidade eacute destacada por Bardin (2004) no uso da anaacutelise

de conteuacutedo para alcanccedilar os objetivos e responder o problema de pesquisa Portanto

com o objetivo de averiguar a significaccedilatildeo dos dados coletados a autora apresenta

as etapas de desenvolvimento da teacutecnica composta de 1) preacute-anaacutelise 2) exploraccedilatildeo

do material e 3) tratamento dos resultados inferecircncia e interpretaccedilatildeo

A preacute-anaacutelise consiste na leitura flutuante do corpus a ser analisado no nosso

caso as entrevistas transcritas e o diaacuterio de campo das observaccedilotildees Foi nesta fase

que organizamos e fizemos a leitura do material a ser investigado com a finalidade

de identificar os aspectos importantes para as outras fases que compotildeem a anaacutelise

ldquoNa leitura flutuante toma-se contato com os documentos a serem analisados

conhece-se o contexto e deixa-se fluir impressotildees e orientaccedilotildeesrdquo (BARDIN 2004 p

118)

126

Apoacutes a conclusatildeo da preacute-anaacutelise seguimos para a segunda faseque eacute a

exploraccedilatildeo do material Nesta fase eacute que realizamos a codificaccedilatildeo33 do material lido

por meio dos recortes dos textos em unidades de registros bem como a ordenaccedilatildeo

das informaccedilotildees em categorias temaacuteticas Os textos das entrevistas e observaccedilotildees

foram recortados em paraacutegrafos e frases para constituir as unidades de registros Em

seguida fizemosa categorizaccedilatildeo das categorias iniciaisque posteriormenteforam

aglutinadas de acordo com o temas comuns para dar origem as categorias

intermediaacuterias que tambeacutemforam aglutinadas em funccedilatildeo da ocorrecircncia dos temas

resultando nas categorias finais

Na terceira fase fizemos o tratamento dos resultados inferecircncia e

interpretaccedilatildeo na qual foram captados os conteuacutedos manifestos e latentes presentes

no material coletado e organizado nas categorias para se estabelecer o diaacutelogo com

o referencial teoacuterico adotado Franco (2006 p 45) destaca que ldquoeacute importante que os

resultados da anaacutelise de conteuacutedo devam refletir os objetivos da pesquisa e ter como

apoio indiacutecios manifestos no conteuacutedo das comunicaccedilotildeesrdquo

341 A emergecircncia das categorias de anaacutelise da pesquisa

Neste estudo partimos das seguintes categorias de anaacutelise aprioriacutesticas

Tabela 13 ndash Categorias aprioriacutesticas

Categoria Conceito Norteador

Saber Popular

Saberes oriundos da experiecircncia

existencial desenvolvida na relaccedilatildeo

dialoacutegica entre os ribeirinhos e que balizam

as suas atividades diaacuterias para a garantia

da sobrevivecircncia bem como a leitura de

mundo

Diaacutelogo

Numa perspectiva freiriana como o

momento de encontro com vistas agrave reflexatildeo

da realidade na qual vivemos para poder

transformaacute-la ldquoeacute este encontro dos

homens mediatizados pelo mundo para

33A codificaccedilatildeo para o agrupamento em categorias ou subcategorias foi feita utilizando o sistema

alfanumeacuterico

127

pronunciaacute-lo natildeo se esgotando portanto

na relaccedilatildeo eu-turdquo (FREIRE 2014 p 109)

Apoacutes a anaacutelise dos dados a categoria Saber Popular foi desmembrada em trecircs

subcategorias de acordo com a tabela abaixo

Tabela 14 ndash Categorias aprioriacutesticas

Categoria Subcategoria Conceito Norteador

Saber Popular

Saberes das Aacuteguas

Saberes oriundos do universo

cultural criadosrecriados no

cotidiano dos ribeirinhos que tecircm

como referecircncia as aacuteguas dos rios

igarapeacutes e furos da Ilha

Saberes da Terra e da Mata

Saberes oriundos do universo

cultural criadosrecriados no

cotidiano dos ribeirinhos que tecircm

como referecircncia a terra e a mata da

Ilha

Saberes do Accedilaiacute

Saberes oriundos do universo

cultural criadosrecriados no

cotidiano dos ribeirinhos que tecircm

como referecircncia o accedilaiacute

Na anaacutelise das entrevistas e das observaccedilotildees foram realizadas a categorizaccedilatildeo

das categorias iniciais e intermediaacuterias ateacute chegarmos agraves finais descritas na tabela

abaixo

Tabela 15 ndash Categorias natildeo aprioriacutesticas

Categoria Conceito Norteador

Praacuteticas Colonizadoras

A perspectiva colonizadora caracteriza-se pela

imposiccedilatildeo do conhecimento escolar e a negaccedilatildeo

do saber popular configurando a colonialidade do

saber pois eacute no vieacutes epistemoloacutegico que o

colonialismo assume maior centralidade com

uma perspectiva redutora do conhecimento

128

Praacuteticas Descolonizadoras

As praacuteticas descolonizadoras reconhecem que nas

comunidades ribeirinhas existem manifestaccedilotildees

culturais e epistemoloacutegicas proacuteprias entatildeo essas

praacuteticas procuram dar visibilidade a essas

manifestaccedilotildees

No capiacutetulo anterior fizemos a discussatildeo do referencial teoacuterico que baliza as

inferecircncias e interpretaccedilotildees das categorias aprioriacutesticas e natildeo aprioriacutesticas e no

proacuteximocapiacutetulo organizamosas falas dos entrevistados e as anotaccedilotildees do diaacuterio de

campo para estabelecer o diaacutelogo entre a empiria e a teoria

4ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

129

Neste capiacutetulo iniciamos discutindo a categoria aprioriacutestica saber popular

juntamente com as suas subcategorias saberes das aacuteguas da terra e da mata e

saberes do accedilaiacute Procuramos estabelecer um diaacutelogo com a ecologia de saberes

proposta por Boaventura de Souza Santos Trabalhamos com as falas dos sujeitos

no sentido de dar visibilidade aos seus discursos suas praacuteticas seus valores crenccedilas

e costumes Como afirma Santos (2010 p 34) a ecologia de saberes acontece por

meio do diaacutelogo ldquoprolongado calmo e tranquilordquo para que as vozes que foram e satildeo

historicamente silenciadas possam se manifestar para isso a diversidade de saberes

precisa ser reconhecida A valorizaccedilatildeo e a visibilidade desses saberes tornam-se

essencial para que isso ocorra

A seguir damos visibilidade ao saber popular dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute e

posteriormente analisamos como ocorre o diaacutelogo entre este saber e o saber escolar

na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam nas escolas ribeirinhas na referida

ilha organizamos essas praacuteticas a partir das seguintes categorias natildeo aprioriacutesticas

praacuteticas colonizadoras e praacuteticas descolonizadoras que emergiram da pesquisa de

campo

41 O SABER POPULAR DOS RIBEIRINHOS DA ILHA DO ACcedilAIacute

Nesta seccedilatildeo apresentamos um levantamento a partir da memoacuteria dos

moradores da ilha do Accedilaiacute referente aos saberes que norteiam suas accedilotildees cotidianas

nas relaccedilotildees sociais religiosas e produtivas Satildeo saberes praacuteticos que balizam as

atividades diaacuterias para a garantia da sobrevivecircncia e a leitura de mundo na qual os

ribeirinhos estatildeo inseridos Esses saberes constituem uma epistemologia no sentido

de que

Conhecer eacute tarefa de sujeitos natildeo de objetos E eacute como sujeito esomente enquanto sujeito que o homem pode realmenteconhecer [] Nestas relaccedilotildees com o mundo atraveacutes de suaaccedilatildeo sobre ele o homem se encontra marcado pelos resultadosde sua proacutepria accedilatildeo [] Atuando transforma transformandocria uma realidade que por sua vez envolvendo-ocondiciona sua forma de atuar [] Natildeo haacute por isto mesmopossibilidade de dicotomizar o homem do mundo pois que natildeoexiste um sem o outro (FREIRE 1983 p17)

Um conhecimento que eacute construiacutedo na relaccedilatildeo do sujeito (ribeirinhos) com o

mundo (Amazocircnia Ribeirinha) Neste processo os ribeirinhos atuam transformam

criam uma realidade que tambeacutem os transforma e direciona suas maneiras de agir e

pensar pois ao transformar o mundo sofrem os efeitos de sua proacutepria transformaccedilatildeo

Por isso natildeo podemos analisar esses saberes dicotomizados do mundo no qual vivem

esses protagonistas

130

Satildeo elaborados e reelaborados nas relaccedilotildees familiares com a vizinhanccedila na

comunidade no contexto das atividades produtivas (pesca caccedila colheita do accedilaiacute)

nas relaccedilotildees com outras vilas municiacutepios e cidades na produccedilatildeo dos recursos

materiais e natildeo materiais que criam e recriam (casco remo matapi malhadeira

paneiros etc) Na visatildeo de Freire (2003) tudo isso caracteriza um universo inacabado

construiacutedo por homens e mulheres com linguagens modo de ser ver e viver no mundo

que os caracteriza como sujeitos histoacutericos sociais e culturais

Essa gama de conhecimento que guia a vida dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute eacute

denominada por Freire (1987) de saberes da experiecircncia feito construiacutedo e

reconstruiacutedo na experiecircncia existencial e desenvolvidos na relaccedilatildeo dialoacutegica entre

crianccedilas-jovens-adultos-idosos mediatizados pelo mundo ldquoSoacute existe saber na

invenccedilatildeo na reinvenccedilatildeo na busca inquieta impaciente permanente que os homens

fazem no mundo com o mundo e com os outrosrdquo (FREIRE 1987 p 58) E desta

maneira os ribeirinhos vatildeo criando e recriando fazendo e se fazendo sujeitos

amazonidas uns com os outros

Satildeo tambeacutem concebidos pela ciecircncia como senso comum que ao se

aproximar do conhecimento cientiacutefico torna-se novo praacutetico esclarecido ou

emancipatoacuterio como afirma Santos (2002) para quem o senso comum ldquoeacute praacutetico e

pragmaacutetico reproduz-se colado agraves trajetoacuterias e as experiecircncias de vida de um dado

grupo social e nessa correspondecircncia afirma-se de confianccedila e daacute seguranccedilardquo (p

44) O autor propotildee uma ruptura da ciecircncia moderna que possa aproximar o senso

comum do conhecimento cientiacutefico no qual a transformaccedilatildeo seja muacutetua e dessa

forma possam produzir tecnologias e sabedoria

Sabedoria fruto do fazer o mundo e fazendo o mundo os ribeirinhos produzem

cultura assim ldquoa cultura soacute eacute enquanto estaacute sendo Soacute permanece porque muda Ou

talvez dizendo melhor a cultura soacute dura no jogo contraditoacuterio da permanecircncia e da

mudanccedilardquo (FREIRE 1977 p 54) Desta maneira diz o referido autor o mundo eacute

criado e recriado pela praacutexis humana Por meio da problematizaccedilatildeo da relaccedilatildeo ser

humano e o universo somos determinados determinantes e determinadores dos

modos de ser-no-mundo e estar-no-mundo

Sendo o ser humano criador de cultura ao mesmo tempo faz e refaz o seu

saber num processo de invenccedilatildeo e reinvenccedilatildeo Nesse sentido a cultura eacute concebida

como

131

Tudo aquilo que noacutes criamos a partir do que nos eacute dadoquando tomamos as coisas da natureza e a recriamoscomo os objetos e os utensiacutelios da vida social representauma das muacuteltiplas dimensotildees daquilo que em outrachamamos de cultura (BRANDAtildeO 2007 p 22)

O mundo que nos eacute dado eacute construiacutedo e recriado por noacutes Transformamos a

natureza atraveacutes do trabalho em cultura Osribeirinhos para pescarem o camaratildeo

transformaram uma palmeirachamada buriti em matapi34 que passou a ser

incorporado agraves praacuteticasprodutivas desenvolvidas pela comunidade bem como a

malhadeira o paneiro entre outrosO significado que esses instrumentos possuem eacute

tecido no interior de uma cultura pelos sujeitos que a criam e recriam E soacute podem ser

interpretados dentro e a partir deste contexto Nesse sentido afirma Geertz (1978 p

15) que ldquoo homem eacute um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo

teceurdquo e para entender esses significados eacute necessaacuterio mergulhar no universo cultural

desses sujeitos que produzem uma gama de conhecimentos que segundo

Oliveira(2004 p 54) satildeo

[] provenientes de sua relaccedilatildeo de trabalho com a terra com a mata e com as aacuteguas e a sua relaccedilatildeo com as comunidades populaccedilotildees e culturas locais Saberes que expressam dimensotildees educacionais religiosas medicinais produtivas culturais etc

Esses saberes tambeacutem chamados por Brandatildeo (2000) de saber popular

servem de base para a leitura e a interpretaccedilatildeo da realidade dos sujeitos Satildeo

transmitidos atraveacutes da cultura de conversa caracterizada pela oralidade que de

acordo com Oliveira (2004 p 58) ldquoapresenta-se como a forma tiacutepica das populaccedilotildees

rurais ribeirinhas de expressaremsuas vivecircncias transmitirem seus saberes valores

e haacutebitos das geraccedilotildeesmais antigas agraves geraccedilotildees mais novasrdquo Tambeacutem satildeo

apreendidos pela observaccedilatildeo e envolvimento nas tarefas diaacuterias desde a tenra idade

Convivi durante quatro meses com os ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute Neste

periacuteodo pude identificar diversidades de saberes oriundos do universo cultural

criadosrecriados no cotidiano que balizam os aspectos sociais culturais e

econocircmicos Para isso envolvi-me na caccedila pesca e coleta do accedilaiacute e demais accedilotildees

praticadas pelos sujeitos do lugar Tambeacutem na conversa sempre regada a cafeacute e

sentado geralmente num banco na cozinha ao lado do fogatildeo a lenha com o fogo

aceso soltando fumaccedila para espantar os maruins e carapanatildes fui sistematizando

34Instrumento feito de talas de buriti tem formato ciliacutendrico com uma entrada chamada de boca por onde entra o

camaratildeo na mareacute cheia

132

paulatinamente os saberes praacuteticos estruturados numa loacutegica totalmente diferente

dos conhecimentos acadecircmicos

Muitos desses saberes foram lembrados a partir da memoria dos mais velhos

por isso os fatos satildeo relatados natildeo de forma cronoloacutegica pois ao descrever algo

vivenciado dificilmente conseguimos colocar ordem no pensamento ateacute porque natildeo

existe uma cronologia no nosso tempo subjetivo a partir das memoacuterias as

lembranccedilas dos fatos vatildeo ligando-os uns aos outros numa espeacutecie de rede e assim

organizam-se em nossa mente e tornam-se inteligiacuteveis Como afirma Baptista (2013)

o tempo estaacute vinculado agrave nossa subjetividade e experiecircncias e assim foge aos

padrotildees da objetividade cronoloacutegica

Consequentemente as falas os relatos e histoacuterias contadas estatildeo permeados

pela subjetividade pois satildeo feitos de maneira singular por cada um dos sujeitos fato

explicado por Deleuze (2012 p 44) quando aborda os cinco aspectos da subjetividade

apresentados por Bergson especificamente a subjetividade-ceacuterebro que consiste

em

[] momento do intervalo ou da indeterminaccedilatildeo o ceacuterebro nos daacute o meio de lsquoescolherrsquo no objeto aquilo que corresponde as nossas necessidades introduzindo um intervalo entre o movimento recebido e o movimento executado o proacuteprio ceacuterebro eacute duas maneiras escolha porque em si mesmo em virtude de suas vias nervosas ele divide ao infinito a excitaccedilatildeo e tambeacutem porque em relaccedilatildeo agraves ceacutelulas motrizes da medula ele nos deixa a escolha entre vaacuterias reaccedilotildees possiacuteveis

Por conseguinte fazemos uma leitura particular das situaccedilotildees que

presenciamos ou vivenciamos As histoacuterias que envolvem os encantados do rio e da

mata como o Boto a matildee drsquoaacutegua e o caboclo gritador satildeo contados com o do olhar

de cada narrador a partir de suas lembranccedilas niacutetidas e agraves vezes quase apagadas da

memoacuteria ateacute porque o presente segundo Deleuze (2012 p 44) apaga as imagens

criadas no passado ldquoseja sobretudo porque ele pela contiacutenua mudanccedila de

qualidade daacute testemunho de carga cada vez mais pesada que algueacutem carregue em

suas costas agrave medida que vai cada vez mais envelhecendordquo

Tendo a consciecircncia de que qualquer exame que se faccedila do passado seraacute

sempre na oacutetica do tempo presente a sistematizaccedilatildeo dos saberes foi feita a partir do

tempo presente com toda a subjetividade que eacute peculiar agrave memoacuteria

Apoacutes a anaacutelise dos dados a categoria aprioriacutestica Saber Popular foi dividida

em trecircs subcategorias saberes das aacuteguas da terra e mata e os saberes do accedilaiacute que

emergiram das falas dos sujeitos na pesquisa de campo que discutimos a seguir

133

411 Saberes das Aacuteguas

O cotidiano dos moradores da ilha do Accedilaiacute estaacute diretamente ligado ao

movimento das aacuteguas - enchente vazante e seca da mareacute -que regulam os horaacuterios

de encher aacutegua para as atividades domeacutesticas e para beber pois na enchente a aacutegua

eacute mais saudaacutevel para o consumo assim como lavar roupa e tomar banho As mareacutes

determinam tambeacutem o horaacuterio de aula da pesca do peixe e do camaratildeo bem como

da colheita do accedilaiacute As aacuteguas compotildeem o imaginaacuterio dos ribeirinhos nelas vivem os

seres encantados Nesse vai e vem do rio acontece a reproduccedilatildeo da vida social

econocircmica cultural e religiosa desses sujeitos Para Ribeiro (2007 p 111) a aacutegua eacute

suprema nesse espaccedilo ldquofaz parte da paisagem natural da vida e das caracteriacutesticas

da regiatildeo que eacute encontrada por grandes e pequenos rios furos lagos e inuacutemeros

igarapeacutesrdquo

Na relaccedilatildeo com as aacuteguas o ribeirinho produz e reproduz diversidades de

saberes que norteiam as suas relaccedilotildees sociais culturais religiosas e econocircmicas

Nas entrevistas e observaccedilotildees registramos algumas atividades nas quais esses

saberes foram mobilizados e socializados entre os membros da comunidade Esses

saberes foram categorizados como das aacuteguas satildeo eles pesca e dos seres

encantados

Segundo Furtado (1993) quanto mais o pescador estaacute inserido no meio em que

vive mais saberes ele produz para desvendar e se apropriar da natureza e desta

forma tem acesso ao conhecimento ldquodas relaccedilotildees existentes entre as faunas aquaacutetica

e terrestre a flora os ventos e os mares as nuvens e a chuva e assim por diante

cujos sinais satildeo identificados com sabedoriardquo (p 206)

Satildeo os saberes populares como o de Pedro ribeirinho que mora na

comunidade do rio Caetano haacute mais de trinta anos Ele sabe quando vai chover pelo

movimento que o vento faz nas aacutervores e o cheiro que delas exala e avisa ldquotaacute vindo

um tororo35 daacutegua aiacute vai cair daqui com dois a trecircs diasrdquo E dona Luzia ribeirinha

idosa que sabe quando a mareacute vai crescer ldquotaacute vendo como a aacutegua taacute mais barrenta

Cheia de limo Eacute sinar di que jaacute ta invandindu a mata temo que ficar de bubuia36

purque esse ano ela vai ser disconforme37rdquo

35Chuva muito intensa 36 Atentos 37 Crescer muito

134

Trata-se de saberes usados para a leitura de mundo por meio deles a natureza

eacute interpretada sua loacutegica difere do conhecimento cientiacutefico pois eacute resultado de

experiecircncias de trocas e conviacutevio com os rios e a mata Nessa oacutetica o saber popular

pode dialogar com o cientiacutefico sem ldquodesqualificar previamente tudo o que natildeo se

ajuste ao cacircnoneepistemoloacutegico da ciecircncia modernardquo (SANTOS 2005 p 26)

Na ilha a pesca eacute realizada por crianccedilas jovens adultos e idosos As mulheres

pescam no rio ou igarapeacute proacuteximo da vila sempre acompanhadas de crianccedilas

Custumo pescar na vazante da mareacute pego o casco o remo o caniccedilo e as isca uso a minhoca ou o camaratildeo como isca tiro a minhoca aqui mermo no quintal Natildeo me afasto muito de casa tenho medo e levo sempre um muleque cumigo (JOANA)

A pesca eacute realizada segundo a moradora quando a mareacute estaacute vazando

porque nesse momento os peixes acompanham o movimento das aacuteguas entatildeo a

possibilidade de uma farta pescaria eacute maior Na fala da entrevistada os instrumentos

utilizados para a realizaccedilatildeo desta atividade satildeo confeccionados na proacutepria vila assim

como as iscas que satildeo retiradas do rio ou do quintal O casco eacute feito de madeira da

seguinte forma

Natildeo eacute qualquer madeira que daacute para fazer o casco tem que ser uma resistente agrave aacutegua e que natildeo seja muito pesada porque se for pesada o casco natildeo boacuteia na aacutegua por isso agente usa o Cedro ou o Mogno que satildeo bem levinho Se tiver muito noacute natildeo serve porque natildeo vai dobrar direito Tem que escolher uma madeira que natildeo demore muito pra secar A taacutebua tem que ser retinha (JOSEacute)

Fotografia 19 ndash Cascos feitos de madeira Cedro

135

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A seleccedilatildeo da madeira para a confecccedilatildeo do casco comeccedila pela aacutervore a qual

natildeo pode ter muitos noacutes fendas ou cicatrizes O ribeirinho bate com um pedaccedilo de

pau na aacutervore pra saber se ela estaacute podre ou se tem cupim dentro Apoacutes a derrubada

verifica-se a cor da madeira se estiver muito verde vai demorar mais tempo pra secar

por isso eacute preferiacutevel cortaacute-las no inverno pois secam mais raacutepido Isso ocorre devido

agrave circulaccedilatildeo da seiva que alimenta as folhas flores e frutos do vegetal no periacuteodo da

primavera veratildeo e outono o que ocasiona a demora na secagem e prejudica a

conservaccedilatildeo da madeira atraindo fungos e insetos Apoacutes o corte a madeira ldquoeacute

colocada pra secar aqui do lado de casa mesmo tem que pegar bastante sol natildeo

pode deixar encostar as taacutebuas no chatildeo pra natildeo daacute bolocirc38rdquo (Joseacute)

Apoacutes a secagem comeccedila a confecccedilatildeo do casco as taacutebuas satildeo pregadas e

calafetadas39 com cola usada na marcenaria que eacute comprada em Macapaacute pelo seu

Joatildeo ldquocompro a cola em poacute em Macapaacute e depois do casco pronto esquento uma

aacutegua e coloco um pouco da cola em poacute espero esfriar e comeccedilo a calafetar o cascordquo

Depois de seca a cola torna-se impermeaacutevel e veda todas as brechas entre as taacutebuas

e os furos deixados pelos pregos Na vila os cascos natildeo satildeo pintados em vez de

tinta usa-se ldquooacuteleo de peixe e cera de abelha para demorar apodrecer a madeira mas

38 Fungos 39 Tapar as brechas e buracos do casco

136

tem que passar com a taacutebua bem seca se natildeo o cupim come tudo rapidinhordquo Essas

substacircncias servem para evitar que a madeira encharque ou seque completamente

Como a aacutegua natildeo estraga a madeira para o casco ter mais durabilidade quando natildeo

estaacute sendo usado ele eacute mergulhado dentro drsquoaacutegua para natildeo apodrecer

Pelo exposto nota-se que os saberes para pesca e confecccedilatildeo do casco satildeo

praacuteticos e utilizados para resolver as situaccedilotildees cotidianas Assim podemos afirmar

que satildeocontextualizados situados e uacuteteis o que caracteriza a predominacircncia no

diaacutelogo com outros tipos de conhecimentos na ecologia de saberes (SANTOS 2010)

O casco eacute a bicicleta do ribeirinho no rio lago ou igarapeacute ele o utiliza para

pescar passear caccedilar para o lazer visitar parentes amigos e outras atividades

cotidianas Nesse sentido o rio eacute a rua ldquoEsse rio eacute minha rua minha e tua murureacute

piso no peito da lua deito no chatildeo da mareacuterdquo40

Fotografia 20 ndash Ribeirinho levando o filho para a escola no casco

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

O remo eacute a ferramenta utilizada para conduzir o casco o qual eacute feito da mesma

madeira Para pilotaacute-lo o remador precisa ter muita habilidade atividade que se

aprende na infacircncia Diz Antocircnio que ldquoo remador jaacute nasce no cascordquo Isso significa

que desde receacutem-nascida a crianccedila jaacute anda de casco nos braccedilos da matildee e carrega

no sangue ldquoo jeito de ser do povo daquirdquo41

40 Trecho da letra da musica Esse rio eacute minha rua de Paulo Andreacute e Rui Barata 41 Trecho da letra da muacutesica Jeito Tucuju

137

Em relaccedilatildeo agrave pesca o caniccedilo eacute uma das ferramentas mais utilizadas

juntamente com o arpatildeo a zagaia a malhadeira e o matapi

O caniccedilo eacute feito do galho da caniceira ou do bambu por causa de sua

flexibilidade e resistecircncia Uma linha transparente de monofilamento de naacuteilon eacute

amarrada na ponta da vara e no final da linha eacute amarrado tambeacutem um pedaccedilo de

chumbo para manter a linha reta e em meacutedia 30 centiacutemetros apoacutes coloca-se o anzol

Observamos na vila a presenccedila desta ferramenta em todas as casas O seu uso eacute

constante todos os dias encontrei moradores pescando com caniccedilo no rio

Pesco com o caniccedilo todo dia uso como isca a minhoca e o camaratildeo o peixe quando a mareacute vaza fica na beira do rio e do igarapeacute debaixo dos troncos e datouccedilada aacutervore de capim e barranco por isso prefiro pescar na vazante (Antocircnio)

Para pescar o peixe o ribeirinho vai remando devagar para natildeo espantar a

presa Joga a linha do caniccedilo com o anzol42 preso na isca na parte onde o peixe se

esconde (debaixo do tronco das aacutervores nas sombras da vegetaccedilatildeo da beira do rio e

nos barrancos) Comonatildeo pode fazer barulho o casco fica longe da beira do rio e por

isso a linha do caniccedilo tem que ser comprida em meacutedia de dois a dois metros e meio

para chegar ateacute o local onde os peixinhos estatildeo

Fotografia 21 ndash Ribeirinha pescando com o caniccedilo

Matildee e filho pescando no rio as mulheres pescam proacuteximo da vila e sempre acompanhadas pelos filhos menores assim se sentem mais seguras Fonte Edielso M M de Almeida 2016

42 O tamanho do anzol varia de acordo com a espeacutecie e tamanho do peixe

138

Nos rios da ilha do Accedilaiacute vive o maior peixe de escama de aacutegua doce do mundo

que eacute o pirarucu devido agrave sua carne saborosa eacute considerado o bacalhau da

Amazocircnia Pratos deliciosos satildeo feitos com esse peixe temperado com as ervas

retiradas da floresta ou cultivadas nos quintais Para pegaacute-lo satildeo usados o caniccedilo e

o arpatildeo

Ele gosta de ficar na parte do rio em que a aacutegua eacute transparente Tem que aproveitar a primeira hora do dia porque quando o sol esquenta muito ele procura se esconder no mato aiacute ningueacutem consegue tirar ele de laacute Para pescar esse peixe tem que usar linha muito resistente por causa do peso e forccedila dele e colocamos uma boia perto do anzol pra quando ele morder a isca que eacute um pedaccedilo de peixe pequeno a boia avisa Tambeacutem usamos o arpatildeo pois o peixe tem que subir de tempo em tempo pra respirar aiacute aproveitamos para arpoaacute-lo (JOAtildeO)

O arpatildeo eacute feito de madeira retirada da paracuuacuteba abundante na regiatildeo na sua

haste tem uma ponta aguda de ferro semelhante agrave de uma flecha seu Joseacute me explica

detalhadamente como ele pesca o pirarucu com esta ferramenta

Tresontocircnti43 eu arpoei um fui no casco remando devagarinho para natildeo espantar o bicho com uma matildeo no remo e outra segura no arpatildeo esperando o peixe buiaacute44 Na hora que ele buiou languei o arpatildeo bem no lombo dele Tem que ser ligeiro se natildeo tu perde o bichatildeo deu trabalho para puxaacute-lo para o casco porque ele era disconforme45rdquo

Ele continua a histoacuteria e puxando pela memoacuteria disse que antigamente era

faacutecil encontrar o peixe nos rios bastava sair de casa passar um tempinho esperando

no casco que aparecia logo um Hoje estaacute mais difiacutecil pescar pirarucu eacute raro algueacutem

encontrar um no rio ele acredita que eacute por causa do preccedilo alto pago pelo quilo do

referido peixe o que leva os pescadores a pescarem direto esta espeacutecie ocasionando

a escassez para os que moram na Ilha Natildeo eacute somente os moradores da Ilha que

pescam eacute constante a presenccedila de pessoas vindas de outras localidades

principalmente de Macapaacute para pescar nos rios

A zagaia eacute outra ferramenta usada na captura do peixe Assim como o arpatildeo

eacute feita de madeira retirada da paracuuacuteba e consiste em uma haste com um tridente

amarrado na sua extremidade sendo usada para fachear durante a noite O ribeirinho

para enxergar o peixe na escuridatildeo usa uma lanterna presa na cabeccedila Seu Antocircnio

nos contou como faz para fachear46

43Haacute trecircs dias atraacutes 44 Vir agrave superfiacutecie para respirar ou pegar peixe 45 Muito grande 46 Pescar a noite com a zagaia

139

A noite no igarapeacute o peixe gosta de ficar na flor drsquoaacutegua perto di onde tem galho de arvore tronco e anhinga entatildeo quando agente vecirc o peixe di longe a gente vai remando bem devagarinho pra natildeo fazer barulho vai de mansinho ateacute chegar numa altura em que decirc pra jogar a zagaia sem errar A traiacutera47 eacute mais arisca entatildeo tem que ser ligeiro para ela natildeo escapar

A pesca com a zagaia natildeo deve ser realizada nas noites de lua cheia porque

com a claridade o peixe foge rapidamente quando percebe a aproximaccedilatildeo do casco

Na chuva tambeacutem fica difiacutecil devido agrave aacutegua que fica turva com os pingos de chuva o

que impossibilita a visatildeo dos peixes pelo pescador Portanto para pescar com a

zagaia as noites ideais satildeo as bem escuras e nubladas que dificultam a visatildeo dos

peixes e facilita a do pescador que usa uma lanterna para iluminar Tambeacutem se deve

fachear em rio ou igarapeacute de aacutegua parada transparente e durante a enchente da

mareacute

A pesca com a malhadeira eacute bastante utilizada na ilha Durante os quatro meses

que passei na vila presenciei a realizaccedilatildeo desta praacutetica diariamente principalmente

durante a vazante da mareacute

Fotografia 22 ndash Ribeirinho com o filho colocando a malhadeira no rio

Na foto a crianccedila acompanha o pai para a armaccedilatildeo da malhadeira no rio por meio da observaccedilatildeo ela aprende na praacutetica essa atividade que futuramente desenvolveraacute para sobreviver neste lugar Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A malhadeira requer o trabalho de duas pessoas como retrata a fotografia

acima No caso o pai com o filho a crianccedila rema o casco e o pai vai soltando as

47 Espeacutecie de peixe de aacutegua doce encontrada nos rios lagos e igarapeacutes na Amazocircnia

140

malhas no rio para que ela fique bem reta Observe na fotografia que a malhadeira

atravessa todo o rio Acaraacute e eacute amarrada nos galhos as suas margens A rede eacute

colocada na vazante da mareacute e retirada na proacutexima vazante ou seja seis horas depois

que eacute o intervalo de uma mareacute Suas malhas satildeo feitas de linha transparente de

monofilamento de nylon de maneira uniforme e os peixes ficam presos nas malhas

pela cabeccedila O tamanho das malhas estaacute relacionado agraves espeacutecies de peixe por isso

existem malhadeiras para pegar peixes pequenos meacutedios e grandes

Fotografia 23 - Ribeirinho tecendo a malhadeira

Na imagem o ribeirinho tecendo as malhas e fazendo o entralhamento que consiste na amarraccedilatildeo das malhas no entralho que eacute o fio esticado As malhas satildeo amarradas com linha de seda Na imagem tambeacutem temos duas crianccedilas observandoFonte Edielso M M de Almeida 2016

Para pegar o camaratildeo eacute usado o matapi que funciona como uma armadilha

na qual o camaratildeo entra e natildeo consegue mais sair Eacute confeccionado pelos ribeirinhos

da ilha A moradora Francisca me ensina como fazecirc-lo

Primeiro tem que saber tirar a tala do Jupati48 depois raspar ela direitinho pra ficar bem lisa A amarraccedilatildeo das tala eacute feita com o cipoacute titica Se tu queres fazer um para pegar camaratildeo porrudo49 entatildeo a distacircncia das tala eacute maior em relaccedilatildeo ao que foi feito para pegar camaratildeo jito50 A amarraccedilatildeo tem que ser bem feita pras tala natildeo sai do lugar quando o camaratildeo comeccedilar a pular

Fotografia 24 ndash Matapi

48 Palmeira tiacutepica da floresta Amazocircnica 49 Grande maior 50 Pequeno menor

141

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Raimundo marido de Francisca diz-me como se deve colocar o matapi

Coloca o matapi na mareacute seca amarrado numa vara na beira do rio se for soacute um matapi se tu colocares mais de um entatildeo tu amarras duas varas longe uma da outra e vai pendurando o matapi com o barbante na distacircncia de um metro de um para o outro Dentro dele tu colocas a isca que eacute a punqueca que tu fazes com o babaccedilu enrolado num plaacutestico e amarra com o grecirclo do buriti51 Tu colocas na mareacute seca e tira na mareacute seca tambeacutem jaacute deixei ateacute seis meses o matapi de molho no rio ia laacute soacute para tirar o camaratildeo

Isso denota que o saber eacute contextualizado localizado repleto de significados

para os sujeitos que os constroem e os reconstroem nas relaccedilotildees sociais

mediatizadas pelo mundo Na visatildeo hegemocircnica de ciecircncia que defende a

monocultura do saber por ser local esses saberes natildeo satildeo legitimados pelo motivo

de serem limitados e natildeo utilizaacuteveis em outros contextos O que estaacute oculto neste

discurso eacute a universalizaccedilatildeo do saber e a legitimaccedilatildeo da ciecircncia enquanto a uacutenica

capaz de explicar o mundo (SANTOS 2005)

Dentre os saberes locais estatildeo os relacionados aos seres encantados das

aacuteguas que permeiam o imaginaacuterio dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute A presenccedila no

cotidiano dos seres sobrenaturais por meio das crenccedilas lendas e mitos exerce

grande influecircncia na vida desses sujeitos O mito para Oliveira (2004 p 42) tem

uma dimensatildeo educativa para o ribeirinho

51 Palmeira tiacutepica da floresta Amazocircnica

142

Adimensatildeo educativa do mito estaacute presente tambeacutem emseu poder de orientar a praacutetica social das populaccedilotildeesrurais Nas comunidades ribeirinhas [] o meio ambienteincorpora um simbolismo expresso na existecircncia deentidades ou encantados protetores da floresta e dasaacuteguas Ensina-se desde a tenra idade que se deve respeitara natureza cuidaacute-la para que sejam preservados osrecursos naturais e tambeacutem para natildeo despertar a ira dosencantados

Assim atraveacutes das histoacuterias contadas pelos moradores da ilha aos seus filhos

e netos educam-seas crianccedilas os jovens e adultos para a preservaccedilatildeo dos recursos

naturais de onde satildeo retirados osmeios para a manutenccedilatildeo da vida Osencantados

que satildeo os protagonistas dessas histoacuterias protegem anatureza e punem quem ousa

desobedececirc-los

Seres como o Boto a Matintapereira o caboclo gritador e a matildee drsquoaacutegua

habitam os rios lagos igarapeacutes e a mata O Boto eacute um encantado que seduz as

mulheres solteiras e casadas O mamiacutefero se transforma em um lindo e galanteador

rapaz que ldquodeixa as mulheres fora de si mesmas fazendo-as esquecerem de todas

as normas para seguirem somente o impulso desse ser de puro gozo de amor sem

ontem nem amanhatilderdquo (FRAXE 2010 p 326)

Metamorfoseado em um rapaz vestido de branco sempre com um chapeacuteu para

esconder o buraco que tem no meio da cabeccedila aparece em festas realizadas nas

comunidades ribeirinhas Nas festas o boto eacute gentil cavalheiro e usa suas habilidades

de danccedilarino para seduzir a cabocla mais bonita e levaacute-la para a praia ou beira52 do

rio Cheio de encanto e magia os dois fazem amor agrave luz do luar e depois ele

desaparece e nunca mais eacute visto pelas redondezas Diz-nos Joseacute que ldquoele gosta da

menina mais viccedilosa e cheirosa do lugar ela fica doida por ele natildeo tem como evitar

que ela seja possuiacutedardquo Aleacutem das festas o boto pode aparecer tambeacutem na casa e vai

direto para o quarto da mulher que deseja fazer amor

Encontrei na comunidade do rio Caraacutesa dona Luzia que me disse como ia

sendo seduzida pelo priacutencipe das aacuteguas Ela natildeo lembra ao certo o dia em que

aconteceu ateacute porque o tempo subjetivo segundo Baptista (2014 p 45)ldquo[] foge aos

padrotildees adotados comumente ou seja estaacute ritmado e sincronizado de acordo com

nossas sensaccedilotildees internas diretamente ligado agrave nossa subjetividade e nossas

experiecircnciasrdquo mas natildeo esqueceu alguns detalhes do fato

Meu marido tinha saiacutedo para fachear agrave noite e eu fiquei com os filhos dormindo Jaacute tarde da noite vi um rapaz subindo no trapiche ele entra na casa a casa natildeo tinha porta Pensava que era um dos filhos que saiu para

52 Margem do rio

143

mijar no rio Mas era o boto que tentou entrar no meu mosquiteiro mas consegui escapar dando um grito e acordando os meus filhos que botaram o safado para correr Acho que ele veio atraacutes de mim porque fui pegar aacutegua no rio quando estava menstruada ele veio pelo cheiro

Na referida vila as mulheres quando estatildeo menstruadas natildeo pegam aacutegua ou

tomam banho no rio com medo do boto Isso acontece tambeacutem com os homens de

qualquer idade seja novo ou velho Apoacutes as 18 horas raramente encontrava algueacutem

pegando aacutegua ou tomando banho no rio Para Fares (2004 p 96) ldquoO tempo da

epifania quase sempre eacute noturno a partir das seis horas da tarde e o inverno eacute a

estaccedilatildeo preferidaporque escurece mais cedo Os comunitaacuterios respeitamessas leis

pois tecircm medo dos castigos []rdquoO castigo para dona Luzia foi a visita do boto

Na comunidade do rio Santo Antocircnio a moradora Joana me contou que

quando a mareacute seca aparecem as praias entatildeo os homens vatildeo jogar bola na praia ostordia53 tiveram uns homens que ficaram gritando agrave noite laacute naprainha tinham bebido muita cachaccedila Quandochegaram em casa natildeo conseguiram dormir ficavamouvindo os gritos do Caboclo Gritador que natildeo deixaram eles dormir

Depois desse episoacutedio ningueacutem mais jogou futebol apoacutes as dezoito horas nas

praias com receio de natildeo conseguir dormir agrave noite devido aos gritos do caboclo

gritador

Outro caso conhecido na ilha eacute o do senhor Pedro que ficou panema porque

tomou banho no rio apoacutes as dezoito horas sem pedir permissatildeo para a matildee drsquoaacutegua

Procurei-o para saber mais dessa histoacuteria ele vive haacute mais de vinte anos na

comunidade do rio Caetano e em conversa me falou que esse fato ocorreu quando

era mais moccedilo mas ainda as lembranccedilas estatildeo guardadas na memoacuteria Para Bergson

(2012 p 20) ldquosatildeo as lembranccedilas da memoacuteria que ligam os instantes uns aos outros

e intercalam o passado no presenterdquo O que ele me contou aconteceu no passado

mas ele o relata na oacutetica do presente sentados na beira do fogatildeo a lenha

Cheguei de tardinha da cidade onde fui vender accedilaiacute carreguei todo o mantimento que trouxe no barco de Macapaacute quando terminei jaacute era de noitinha54 e ningueacutem encheu aacutegua para eu tomar banho entatildeo tomei no rio Depois desse banho as coisas pioraram saia pra pescar e natildeo pegava nada colocava o matapi e soacute camaratildeo jitinho a malhadeira natildeo pegava nada estava panema55

53 Outro dia eferente ao dia que passou 54 Tarde da noite depois das dezoito horas 55 Significa natildeo ter sorte a panemeira eacute causada pelos seres encantados do rio e da mata

144

A panemeira soacute eacute curada apoacutes o benzedor benzer Foi o que aconteceu com

Pedro que depois de benzido e de ter feito tudo o que o benzedor receitou ele ficou

curado e nunca mais tomou banho no rio agrave noite Presenciei o trabalho do benzedor

o senhor Benedito A neta da secretaacuteria da escola estava doente com ldquosustordquo56 Entatildeo

fui junto com eles levaacute-la para benzer na ilha do Amor onde mora o benzedor A ilha

fica distante cerca de vinte minutos da vila indo na rabeta57 O morador Raimundo

avocirc da crianccedila justifica o motivo da escolha do benzedor ldquoAqui na ilha do Accedilaiacute temos

duas pessoas que benzem o cumpadre Benedito que mora na ilha do Amor e a dona

Antocircnia que vive no rio Cajueiro Levo sempre meus filhos pro cumpadre Beneacute benzer

tenho mais feacute nele Sempre cura as doenccedilas dos piquenosrdquo

Fotografia 25 - Benzedor benzendo uma crianccedila com susto

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Na imagem acima o senhor Benedito benze a crianccedila viacutetima de ldquosustordquo no paacutetio

de sua casa Ele benze em qualquer lugar basta que o doente fique quieto para que

seja feita a reza em sua cabeccedila O tratamento consiste em rezar na cabeccedila ou noutras

partes do corpo do doente e em seguida a indicaccedilatildeo de ervas medicinais Existe

oraccedilatildeo especiacutefica para cada tipo de doenccedila o benzedor demonstrou conhecer muito

bem a utilidade das ervas medicinais para curar uma diversidade delas

56 A crianccedila assustada natildeo dorme bem acorda agrave noite aos prantos assim como vive o tempo todo agitada durante o dia e chora constantemente 57 Pequeno barco movido a motor

145

Fiquei quatro dias na ilha para conhecer melhor o curandeiro Ao perguntar

sobre onde aprendeu a rezar respondeu ldquocom ningueacutem saiu da minha cabeccedila eacute um

dom que carrego comecei a benzer aos15 anos de idade e natildeo posso passar pra

ningueacutem nem pros meus filhosrdquo e natildeo quis revelar os motivos de natildeo poder transmitir

os saberes da reza que satildeo guardados em segredo

Ele natildeo cobra pelos serviccedilos A pessoa daacute o que quiser em troca No periacuteodo

em que estive na sua casa ele atendeu seis pessoas sendo cinco crianccedilas e uma

mulher adulta

Dentre as doenccedilas curadas pelo benzedor as mais comuns satildeo dor de

cabeccedila panemeira susto quebranto58 dor de barriga febre mau-olhado e espinhela

caiacuteda59 Mas para que a cura aconteccedila eacute preciso que o doente tenha feacute e acredite

nopoder do remeacutedio e no seu curador ldquoA cultura tambeacutem eacute capaz de provocar cura

de doenccedilasreais e imaginaacuterias Estas curas ocorrem quando existe afeacute do doente na

eficaacutecia do remeacutedio e no poder dos agentes culturaisrdquo (LARAIA 2009 p 78)

Na comunidade do rio Caraacutes encontrei dona Luzia uma senhora idosa

conhecida como a contadora de histoacuterias Ao chegar a sua residecircncia jaacute havia

algumas crianccedilas com o uniforme escolar sentadas ouvindo-a contar uns causos

acompanhadas da professora60 A histoacuteria era a seguinte

Quando era jovem meu irmatildeo saiu agrave noite no casco para ir agrave casa da namorada Todas as noites ele saia pra namorar Uma dessas noites ele ouviu um assobio bem alto (dona Luzia imita o assobio) vaacuterias vezes Era a Matinta Perecircra ela estava em forma de coruja voando perto do casco O caboclo ficou tremendo de medo e pra ela parar de assobiar ele ofereceu tabaco No outro dia pela manhatilde apareceu uma velhinha toda de preto perguntando pra ele se tinha tabaco

Para descobrir quemeacute a Matinta Perecircra diz dona Luzia basta que a pessoa

que ouviu o seu assobio convide-a para vir agrave sua casa pela manhatilde para tomar cafeacute

ou pegar tabaco Na manhatilde seguinte a primeira pessoa que chegar pedindo cafeacute ou

tabaco eacute a Matinta Perecircra Acredita-se que ela possui poderes sobrenaturais Seus

feiticcedilos satildeo capazes de causar seacuterios prejuiacutezos agraves suas viacutetimas principalmente com

respeito agrave sauacutede causando-lhes fortes dores fiacutesicas e ateacute a morte Motivo pelo qual

tem que dar o que prometeu a ela

58Doenccedila que acomete principalmente as crianccedilas causada por susto mau-olhado ou pessoa adulta que chega suada e com fome da mata ou do rio e agrada a crianccedila 59 Fraqueza fiacutesica e mental 60 Nesse dia a professora levou os alunos para ouvirem as histoacuterias do lugar contadas pela dona Luzia

146

Segundo Fraxe (2010 p 325) ldquoa aceitaccedilatildeo espontacircnea de episoacutedios como

esses reflexo de uma espeacutecie de aceitaccedilatildeo de dois mundos (material e simboacutelico)

representa um dos suportes psicoloacutegicos de compreensatildeo de relatos verdadeiros []rdquo

Essas e outras histoacuterias contadas pelos mais velhos tem um cunho educativo

procuram trazer exemplos do que natildeo deve ser feito portanto as histoacuterias miacuteticas que

envolvem os seres encantados influenciam o comportamento dos ribeirinhos bem

como as formas de pensar e agir na comunidade natildeo pegar aacutegua e tomar banho no

rio depois das seis horas da tarde natildeo partir lenha agrave noite com receio de ser castigado

pela matildee da mata natildeo jogar futebol agrave noite nas praias mesmo na lua cheia para natildeo

ter problemas de dormir com os gritos do caboclo gritador sair a noite sozinho no

riopara natildeo correr o risco de encontrar Matinta Perecircra entre outros

Esses saberes satildeo invisibilizados vistos como ausentes sem importacircncia e

natildeo reconhecidos pelos fundamentoshegemocircnicos O que estamos fazendo nesta

pesquisa eacute tornaacute-los presentes existentes como outras maneiras de compreender o

universo Concordamos com Santos (2005 p 56) quando afirma que ldquoNatildeo haacute nem

conhecimentos puros nem conhecimentos completos haacute constelaccedilotildees de

conhecimentosrdquo Dentre elas os saberes oriundos da relaccedilatildeo entre os ribeirinhos da

Amazocircnia com os rios lagos e igarapeacutes O que se faz necessaacuterio eacute eliminar as

relaccedilotildees desiguais entre as constelaccedilotildees de conhecimentos e o conhecimento

hegemocircnico Para isso a sociologia das ausecircncias proposta pelo autor tem papel

fundamental

41 2 Saberes da Terra e da Mata

Neste item descrevemos os saberes oriundos da relaccedilatildeo que o ribeirinho

estabelece com a terra e a mata por meio destas relaccedilotildees satildeo produzidos e

reproduzidos novos saberes ligados a cultura local Para Santos (2003) o

reconhecimento da diversidade socioculturalconduz agrave diversidade epistemoloacutegica de

saberes existentes no mundo

Desta maneira na ilha do Accedilaiacute a terra eacute fonte para a produccedilatildeo de alimentos e

remeacutedios Haacute poucas roccedilas nas quais satildeo plantadas melancia maxixe e jerimum O

ribeirinho evita fazer roccedila para natildeo desmatar a mata e preservar os peacutes de accedilaiacute que

satildeo fonte de renda da populaccedilatildeo Os produtos retirados da roccedila servem somente para

o consumo local

Nos quintais encontramos as hortas presentes em quase todas as residecircncias

As mulheres e crianccedilas cuidam das plantas molham e fazem a limpeza retirando os

147

matos e as ervas daninhas que possam impedir o desenvolvimento da cebolinha

chicoacuteria couve quiabo pimentatildeo pimentinhas e outros

Fotografia 26 ndash Ribeirinha cuidando da horta

Os canteiros satildeo feitos no alto para proteger das enchentes e dos animais domeacutesticos patos galinhas e porcos Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Da terra tambeacutem satildeo retiradas as plantas para a cura de doenccedilas O benzedor

senhor Benedito apoacutes benzer o doente sempre passa remeacutedios feitos das ervas que

estatildeo no seu quintal tais como o chaacute de hortelatildeozinho para dor de barriga e gases

chaacute de marupazinho para ameba e diarreia suco do matruz para problemas de barriga

inchada cheiura verme e fiacutegado Segundo Maueacutes (1990) existem dois tipos de

doenccedilas as naturais e sobrenaturais Dentre as doenccedilas sobrenaturais causadas

pelos seres encantados da mata e do rio estatildeo o quebranto ventre-caiacutedo mau-

olhado e panemeira No processo de cura para essas doenccedilas os remeacutedios extraiacutedos

das plantas medicinais bem como o trabalho do curandeirobenzedor satildeo

fundamentais As doenccedilas naturais satildeo explicadas pela ciecircncia

Fotografia 27 ndash Marupazinho

148

Na imagem o peacute de marupazinho planta da horta do benzedor usada para combater a diarreia e verminose como a amebiacutease em crianccedilas jovens e adultosFonte Edielso M M de Almeida 2016

Na comunidade do rio Caraacutes haacute um posto de sauacutede Os moradores utilizam os

remeacutedios farmacecircuticos e tambeacutem dependendo da gravidade da doenccedila os

remeacutedios caseiros De acordo com JoanaldquoQuando o doente taacute passando muito ruim

eacute sinal que a doenccedila eacute grave entatildeo toma remeacutedio do posto ou leva pra Macapaacute mas

quando eacute uma gripe a gente faz um chaacute de limatildeo alho gengibre e coloca um pouco

de mel e tomardquo O limatildeo eacute retirado do quintal e o gengibre da horta o mel e o alho satildeo

comprados na cidade Em relaccedilatildeo agrave preparaccedilatildeo dos remeacutedios podem ser em forma

de chaacutes garrafadas com infusatildeo no aacutelcool ou cachaccedila afumentadores (para

massagear) e banhos

Na comunidade do rio Cajueiro entrevistei a moradora Antocircnia que aleacutem de

benzer ainda eacute parteira

Aprendi a fazer parto com minha avoacute Sou de Breves e sempre morei no interior se hoje natildeo tem meacutedico imagina na eacutepoca da vovoacute Entatildeo a mulherada paria61 nas matildeos da parteira do lugar Eu a ajudava a pegar a crianccedila quando estava saindo do ventre da matildee nessa hora tem que ter demais cuidado pegar com jeitinho primeiro passa a cabeccedila bem devagar agente tem que ter paciecircncia nada de pressa quando sai a cabeccedila tem que ajudar a puxar porque o moleque natildeo sai sozinho mas precisa puxar com

61 Ter a crianccedila dar a luz ao bebecirc

149

jeitinho pra natildeo ferir e deslocar o pescoccedilo da crianccedila Jaacute peguei62 muito moleque nessa vida Graccedilas a Deus nunca perdi um

Dona Antocircnia se fez parteira na praacutetica auxiliando sua voacute nos partos e desta

maneiratornou-se parteira experiente De dia ou agrave noite embaixo de sol ou chuva ela

estaacute sempre disponiacutevel para ajudar as mulheres que estatildeo prestes a ldquodar a luzrdquo sem

cobrar nenhum tostatildeo Ela crecirc que partejar eacute um dom divino e por isso natildeo cobra

nada o reconhecimento vem em forma de agradecimento A parteiradedica seu tempo

para ajudar as mulheres ldquoagraves vezes acompanho a gestaccedilatildeo faccedilo o parto e fico durante

uns sete dias na casa da mulher ajudando a cuidar do muleque e fazendo a comida

pra paridardquo Mas haacute situaccedilotildees em que ela eacute chamada apenas para fazer o parto

ficando sob a responsabilidade dos familiares os cuidados do poacutes-parto

Segundo o Ministeacuterio da Sauacutede (BRASIL 2014 p23)

[] estima-se que existe um nuacutemero expressivo de parteiras tradicionais principalmente das regiotildees Norte e Nordeste Entretanto natildeo se dispotildee de dados que expressem o real quantitativo das parteiras pois existe um cadastramento insuficiente destas por parte das secretarias estaduais e municipais de sauacutede visto que ainda eacute predominante a situaccedilatildeo de natildeo articulaccedilatildeo do trabalho das parteiras tradicionais com o sistema de sauacutede formal

Na ilha do Accedilaiacute natildeo haacute articulaccedilatildeo do poder puacuteblico por meio da secretaria de

sauacutede com o trabalho da parteira nem com o do rezador Ambos atuam sem nenhum

apoio seja financeiro ou material por parte do poder puacuteblico

Foram quatro dias de aprendizado que tive com Dona Antocircnia dentre os quais

como ela faz os partos e os cuidados que tem com a parturiente antes durante e

depois do fato

Antes de sai de casa peccedilo logo ajuda pra Deus e a minha santa protetora Santa Rita de Cassia para me guiar e ajudar na hora de pegar o muleque Quando chego na casa da gestante se ela tiver deitada na rede e natildeo tiver cama peccedilo pro marido arrumar uma esteira e forrar com lenccedilol fica melhor pra ela fazer forccedila pra empurrar o muleque pra fora e coloco aacutegua pra ferver junto com a tesoura que uso pra cortar o cordatildeo do umbigo Entatildeoponho ela deitada na esteira com as pernas abertas Quando a dor aperta63 faccedilo massagem na barriga pra ajudar e rezo a oraccedilatildeo do bom parto A parte mais difiacutecil eacute cortar o cordatildeo do umbigo pra isso coloco trecircs dedos da matildeo como medida entre a crianccedila e o cordatildeo e passo a tesoura depois amarro com um barbante e passo oacuteleo de andiroba com tabaco pra natildeo inflamar

Apoacutes o parto vem o periacuteodo de resguardo os cuidados e a dieta Como eximia

conhecedora das ervas passa banhos com a casca de paricaacute64 para ajudar a

62Fez parto de muitas crianccedilas 63 Aumentar a intensidade da dor 64 Aacutervore predominante na floresta amazocircnica

150

desinflamar ldquoa parte iacutentimardquo e afumentaccedilatildeo65 com oacuteleo de copaiacuteba para a parida

Durante no miacutenimo sete dias deve evitar sair do quarto e tem que comer carne magra

principalmente galinha com bastante caldo natildeo comer porco ou caccedila do mato

Deveria ser por quarenta dias mas ningueacutem respeita o resguardo entatildeo peccedilo pra resguardar pelo menos sete dias sem sai no sereno tomar banho dentro de casa natildeo carregar peso O marido soacute deve usar66 a mulher depois dos quarenta dias quando ela vai estaacute recuperada do parto

As mulheres comumente procuram a parteira para pedir remeacutedio para dor de

coacutelica prisatildeo de ventre e atraso das regras67 Assisti a uma consulta na qual uma

moccedila estava menstruada e com muita coacutelica o remeacutedio indicado foi o chaacute de

hortelatildeozinho com a semente da buchinha que deveria ser tomado pela manhatilde e agrave

noite antes de deitar As que estatildeo graacutevidas vecircm trazer a barriga para puxar com

o intuito ldquode colocar a crianccedila no lugarrdquo68 e saber o seu sexo Dona Antocircnia afirma que

sempre acerta ldquoquando a barriga eacute demais pontuda vai ser menino quando eacute muito

redonda seraacute meninardquo

A parteira afirma que jaacute faz algum tempo que natildeo realiza parto ldquohoje em dia

as mulheres vatildeo parir pra Macapaacute tem medo de ter o filho aqui na vilardquo A proximidade

favorece a ida das graacutevidas para a cidade a viagem dura em meacutedia uma hora e meia

de catraio A mesma observaccedilatildeo eacute feita em relaccedilatildeo ao consumo de remeacutedios caseiros

ldquoantigamente a procura por remeacutedio da mata era maior agora eacute mais os da farmaacutecia

O remeacutedio daqui da natureza natildeo ataca o fiacutegado nem o estocircmago como os da

farmaacutecia mas o povo natildeo acredita mais na cura desses remeacutediosrdquo

A seguir algumas fotografias de plantas que satildeo utilizadas pelos moradores da

ilha para fazer remeacutedios com as respectivas receitas relatadas pelos moradores

sujeitos da pesquisa

Fotografia 28 ndash Peacute de Mastruz

65 Massagear neste caso passar levemente oacuteleo de copaiacuteba nas partes iacutentimas isso ajuda no processo desinflamatoacuterio 66 Fazer sexo 67 Menstruaccedilatildeo 68 Quando sentem dores dizem que eacute porque a crianccedila estaacute atravessada na barriga aiacute tem que levar para a parteira puxar e colocar no lugar

151

Na imagem um peacute de matruz do qual se retira as folhas para bater com leite do Amapaacute (aacutervore da qual se extrai o leite) vira remeacutedio para as pessoas que estatildeo com fraqueza indisposiccedilatildeo e mal-estarFonte Edielso M M de Almeida 2016

Fotografia 29 ndash Peacute de Capim Marinho

Na imagem um peacute capim marinho do qual se faz o chaacute para tomar contra o cansaccedilo fiacutesico e mental Deve-setomaacute-lo todos os dias pela manhatilde em jejumFonte Edielso M M de Almeida 2016

Fotografia 30 ndash Peacute de Noni

152

Peacute de Noni da fruta eacute feito o suco para problemas de prisatildeo de ventre diabetes pressatildeo alta e tambeacutem funciona como um excelenteanti-inflamatoacuterio Deve-se tomar o suco duas vezes por dia durante vinte dias consecutivosFonte Edielso M M de Almeida 2016

Fotografia 31 ndash Sementes de Cacau

No paneiro sementes de cacau colocadas para secar Quando secas satildeo piladas e misturadas com sementes de aboacutebora para fazer chaacute ou suco e serve para combater verminoses Deve-se tomar em jejum e antes de deitar agrave noite Fonte Edielso M M de Almeida 2016

153

O cacau eacute retirado da mata assim como a mateacuteria-prima para a produccedilatildeo do

matapi para pegar o camaratildeo o paneiro que serve para colocar accedilaiacute peixe

camaratildeo guardar roupas plantar as mudas das plantas medicinais entre tantas

outras utilidades a peneira para peneirar o accedilaiacute casco e remos

Fotografia 32 ndash Erva Cidreira

O chaacute da erva cidreira eacute usado no tratamento de gastrite dor no estocircmago coacutelica intestinal e insocircnia Tomar uma xiacutecara duas a trecircs vezes ao dia ateacute parar as dores Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Fotografia 33ndash Catinga de Mulata

Das folhas da catinga da mulata se faz chaacute para tratar de asma gases e vermes O banho ajuda no tratamento da gripeFonte Edielso M M de Almeida 2016

154

Observei durante o periacuteodo em que estive na ilha que uma palmeira chamada

buriti eacute bastante utilizada pelos ribeirinhos Das talas satildeo feitos paneiros esteiras e

peneiras do caule se faz trapiches (o caule boia quando a mareacute estaacute cheia) as folhas

satildeo usadas para cobrir hortas casas de galinhas e de outros animais domeacutesticos do

fruto se faz um delicioso suco que tomei todos os dias durante as refeiccedilotildees

Fotografia 34 ndash Palmeira de Buriti

Palmeira Buriti no meio das demais espeacutecies de vegetaccedilatildeo de vaacuterzea na Floresta Amazocircnica Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A Floresta tambeacutem eacute habitada pelos seres encantados

Aqui na ilha as meninas quando estatildeo menstruadas natildeo tomam banho e nem pegam aacutegua no rio tambeacutem natildeo saem pra andar na mata porque se aparecer alguma crianccedila doente a culpa eacute delas Natildeo saem pra andar na mata porque tem a caruara que sente o cheiro do sangue e lanccedila flechas que podem acertar os piquenos69 que vivem na redondeza (JOANA)

No periacuteodo em que estatildeo menstruadas as meninas tambeacutem natildeo vatildeo para a

escola exatamente para evitar os problemas citados acima O proacuteprio termo

ldquomenstruaccedilatildeordquo recebe vaacuterias denominaccedilotildees minhas regras estaacute vazando estaacute

furada e taacute de bode Alguns homens me confessaram que nesse periacuteodo natildeo mantecircm

relaccedilotildees sexuais com suas mulheres ou namoradas porque elas satildeo ldquopoucos limpas

e podem passar doenccedila pra noacutesrdquo (JOAtildeO)

Para adentrar a mata eacute necessaacuterio se benzer (fazer o sinal da cruz) e pedir

permissatildeo para os seres encantados que moram no lugar Vaacuterias vezes fui

advertidopelos meus entrevistados por natildeo me benzer ao entrar na mata Os

69 Crianccedilas

155

caccediladores que satildeo poucos na ilha desenvolveram vaacuterios saberes referente aos

animais que habitam a floresta seus haacutebitos alimentares cheiro marcas deixadas na

lama praia e galhos de aacutervores horaacuterio que estatildeo mais propiacutecios para serem

capturados entre outros

A cutia e a paca costumam comer as sementes e frutas que caem das aacutervores perto do rio o tatu aproveita a enchente pra vim beber aacutegua o veado sai bem cedinho pra comer Isso a gente aprende com os caccediladores mais velhos como meu avocirc meu pai meus irmatildeos (RAIMUNDO)

O processo de aprendizagem segundo o caccedilador ocorre na praacutetica no dia a

dia vivenciando observando seu avocirc pai e irmatildeos mais velhos Esses saberes

orientam as atividades de caccedila na ilha o bom caccedilador passa por todo um processo

de aprendizagem que ocorre na praacutetica da caccedila

Esses saberes satildeo frutos da relaccedilatildeo dos ribeirinhos com a natureza e

geralmente ignorados pela instituiccedilatildeo escolar na qual esses sujeitos passam grande

parte de sua vida desde a educaccedilatildeo baacutesica ateacute o ensino superior Desta maneira os

desqualificam e os desvalorizam por natildeo serem cientiacuteficos Assim sendo ldquoAo

submeter outros saberes a seus proacuteprios criteacuterios de verdade e eficaacutecia o

conhecimento cientiacutefico os rejeitae marginalizardquo (SANTOS 2005 p 45)

Da mata tambeacutem eacute retirado o accedilaiacute fonte de renda e alimento presente na

mesa de todos os ribeirinhos Devido agrave sua importacircncia abordamos especificamente

este saber a seguir

413 Saberes do Accedilaiacute

O accedilaiacute eacute a principal fonte de renda dos ribeirinhos e tornou-se a base

econocircmica dos moradores da ilha cuja vegetaccedilatildeo predominante eacute a palmeira

conforme imagem a baixo

Fotografia 35 - Peacutes de Accedilaiacute

156

As beiradas dos rios que formam a ilha satildeo repletas de peacutes de accedilaiacute que eacute uma palmeira tiacutepica da Amazocircnia Seu fruto eacute rico em vitaminas ferro fibras foacutesforo potaacutessio minerais e gordura vegetal Eacute uma vegetaccedilatildeo predominante nas aacutereas de vaacuterzea Fonte Edielso M M de Almeida 2016

A safra do produto compreende os meses de marccedilo a agosto Na mesa o accedilaiacute

com a farinha de mandioca eacute o prato principal acompanhado do peixe camaratildeo ou

charque frito O produto eacute consumido praticamente todo dia na eacutepoca da safra agraves

vezes eacute o uacutenico alimento da famiacutelia Nas cidades amazocircnidas o accedilaiacute eacute um dos

alimentos mais sorvidos pela populaccedilatildeo Para a antropoacuteloga Woodward (2008 p 42)

ldquoaquilo que comemos pode dizer muito sobre quem somos e sobre a cultura da qual

vivemos A comida eacute um meio pelo qual as pessoas podem fazer afirmaccedilotildees sobre si

proacutepriasrdquo Devido ao seu teor energeacutetico o accedilaiacute eacute tomado por crianccedilas jovens adultos

e idosos para recuperar as energias e as forccedilas gastas no cotidiano como afirma o

morador Pedro ldquo Bebo accedilaiacute todo dia se tiver tomo de manhatilde na merenda da tarde e

na janta agrave noite ele me daacute forccedila e disposiccedilatildeo pra trabalharrdquo

A colheita do produto eacute feita na sua maioria pelos homens mas encontrei na

comunidade do rio Caraacutes uma adolescente de doze anos que tambeacutem ldquoapanha70rdquo

accedilaiacute Segundo sua matildee ldquoela apanha accedilaiacute desde os seis anos natildeo gosta dos afazeres

domeacutesticos mas adora tirar accedilaiacuterdquo Nesse extrativismo os pais levam os filhos mais

velhos para ajudaacute-los os quais ao mesmo tempo aprendem os saberes necessaacuterios

por meio de uma educaccedilatildeo natildeo formal ou seja aprende-se na praacutetica no dia a dia

por meio do envolvimento nas atividades produtivas

70 Tirar o cacho e accedilaiacute da palmeira

157

Fotografia 36 ndash Menino subindo no Accedilaizeiro

Na ilha as crianccedilas e adolescentes tambeacutem participam da colheita do accedilaiacute Eles sobem nas aacutervores mais finas nas quais os adultos natildeo conseguem por causa do risco de quebraacute-las devido ao peso como as crianccedilas e os adolescentes satildeo mais leves acabam tirando o accedilaiacute dessas palmeirasFonte Edielso M M de Almeida 2016

A palmeira do accedilaizeiro mede aproximadamente de 35 a 40 cm de diacircmetro e

pode chegar ateacute 16 metros de altura Quanto agrave produccedilatildeo o morador Joatildeo diz queldquode

um peacute de accedilaiacute novo daacute pra tirar ateacute nove cachos por safra a produccedilatildeo vai diminuindo

assim que a accedilaizeira vai ficando velha por isso a gente faz o manejo do accedilaizalrdquo A

idade entatildeo eacute determinada pela produccedilatildeo de cada palmeira e quando comeccedila a

diminuir eacute feito o corte da mais velha para que os peacutes mais jovens possam se

desenvolver

Aqui na ilha agente faz o manejo da seguinte forma quando fica um accedilaizal muito fechado ele natildeo produz accedilaiacute fica abafado com muitas aacutervores juntas eacute preciso que desabafe e isso se faz cortando as aacutervores mais altas para que as menores possam crescer assim como os filhototildees que satildeo os peacutes pequenos de accedilaiacute Desta maneira o accedilaizal vai produzindo cada vez mais Porisso que o accedilaiacute nunca falhou todo mundo aqui se sustenta dele haacute mais de trinta anos venho fazendo isso

O objetivo do manejo eacute garantir a produccedilatildeo para o ano seguinte Desta forma

os peacutes mais velhos satildeo arrancados para dar espaccedilo aos filhototildees71 e assim assegura-

se a produccedilatildeo e a existecircncia do accedilaizal Esses cuidados satildeo necessaacuterios natildeo soacute para

71 Satildeo os peacutes pequenos de accedilaiacute necessitam de sol para crescer motivo pelo qual as palmeiras mais velhas satildeo derrubadas para que eles possam pegar sol e se desenvolver

158

o aumento da produccedilatildeo pois quanto mais jovem for a palmeira mais ela produz como

tambeacutem para a sobrevivecircncia da populaccedilatildeo ribeirinha na ilha

A gente tem que cuidar do accedilaizal limpar fazer o manejo todos os anos natildeo deixar ningueacutem derrubar pra tirar palmito nem pra fazer roccedila que deixa a mata nua onde se faz roccedila natildeo nasce peacute de accedilaiacute acho que eacute porque a gente queima a terra aiacute mata o que o accedilaizeiro precisa pra nascer (ANTOcircNIO)

A roccedila deixa a mata ldquonuardquo sem nenhum tipo de vegetaccedilatildeo nativa de modo que

a terra fica improdutiva infeacutertil por alguns anos daiacute a preocupaccedilatildeo com o meio

ambiente os cuidados para que a mata continue feacutertil Afinal a permanecircncia da

populaccedilatildeo na ilha depende da preservaccedilatildeo da natureza O palmito eacute retirado somente

das aacutervores que satildeo derrubadas

Os instrumentos utilizados para apanhar o accedilaiacute satildeo a peconha o facatildeo o

paneiro e a debulhadeira A peconha pode ser feita de saca de farroupilha ou com as

folhas da proacutepria palmeira que eacute enrolada e amarrada em forma de um circulo A

medida depende do tamanho do peacute do apanhador e da grossura do accedilaizeiro sua

funccedilatildeo eacute ajudar a subir e descer dar estabilidade e seguranccedila apoiar os peacutes para

evitar que se deslize rapidamente O apanhador de accedilaiacute coloca a peconha nos peacutes e

com o corpo daacute impulso para subir paulatinamente na palmeira Eacute preciso ter forccedila

nas pernas e nos peacutes para poder sair do lugar trabalho que exige aleacutem de equiliacutebrio

atenccedilatildeo e agilidade Eacute o que nos diz Tiago ldquoapanho uns 16 paneiros de accedilaiacute por dia

com quatro paneiros a gente tem uma saca Pra subir no accedilaizeiro coloco a peconha

nos peacutes o facatildeo na cintura preso no short e na cueca e dou um impulso para subir de

uma soacute vez pra natildeo perder o equiliacutebrio tem ser ligeirordquo

Fotografia 38 ndash Instrumentos utilizados para a colheita de accedilaiacute

Na imagem o facatildeo a peconha e a debulhadeira os instrumentos que os ribeirinhos utilizam para apanhar accedilaiacuteFonte Edielso M M de Almeida 2016

159

Na fotografia acima temos a debulhadeira que consiste em uma saca de

serapilheira na qual eacute debulhado72 o accedilaiacute para evitar que caia no chatildeo Dentro dela

temos alguns caroccedilos de accedilaiacute uma peconha tambeacutem feita de serapilheira e o facatildeo

Para debulhar eacute preciso todo um saber para natildeo desperdiccedilar os caroccedilos

primeiro tem que escolher o lugar pra estender a debulhadeira que natildeo pode ficar totalmente estendida no chatildeo tem que ser num lugar firme porque agente faz forccedila pra tirar o accedilaiacute do cacho depois colocar o cacho no meio dela pros caroccedilos natildeo caiacuterem no chatildeo tem que ter equiliacutebrio e ser raacutepido porque satildeo muitos cachos pra debulhar(MARIA)

Fotografia 39 ndash Menina debulhando o cacho de accedilaiacute

Na imagem menina debulhando o cacho de accedilaiacute Observe que a debulhadeira natildeo estaacute totalmente estendida no chatildeo e se encontra numa aacuterea de terra firme O cacho estaacute no lado do quala menina tem mais agilidade com as matildeos Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Acompanhei de perto durante vaacuterios dias o trabalho da coleta do accedilaiacute na

beira dos rios e na mata Percebi que haacute sintonia dos movimentos das matildeos com

o restante do corpo no ato de apanhar e debulhar o fruto Nesse sentido Freire

(2005 p 70) afirma que

O corpo humano eacute um corpo consciente porque eacute dotado de capacidades e habilidades que auxiliam o ser humano no trabalho e o corpo sente e aprende as dinacircmicas desse trabalho educando-se no modo de interagirem com a natureza por isso estaacute errado separar o que chama de trabalho manual do que se chama trabalho intelectual

72 Tirar os caroccedilos do accedilaiacute do cacho

160

A coleta do accedilaiacute eacute planejada desde o local a escolha das accedilaizeiras o

tamanho das peconhas entre outros portanto natildeo eacute um ato mecacircnico ao

contrario haacute um processo de accedilatildeo-reflexatildeo-accedilatildeo na execuccedilatildeo desta atividade

produtiva

Apoacutes a colheita parte do produto eacute vendido em Macapaacute o que garante a

compra de alimentos e utensiacutelios domeacutesticos como fogatildeo botijatildeo de gaacutes panelas

televisatildeo geladeira e ferramentas para o trabalho facatildeo sacas de serapilheira

rabeta catraios machados etc Na ilha muitas casas jaacute estatildeo com o motor de luz

movido a oacuteleo diesel Todas essas mercadorias satildeo compradas com a renda

obtida do accedilaiacute

A outra parte eacute consumida pelos ribeirinhos Para o consumo o accedilaiacute passa

por todo um processo Inicialmente eacute colocado de molho na aacutegua morna para

amolecer a polpa em seguida eacute batido na amassadeira eleacutetrica nas casas onde

haacute motor de luz na manual ou amassado nas matildeos onde natildeo haacute a tecnologia

Encontrei alguns ribeirinhos que socam o accedilaiacute em um paneiro para retirar a tinta

antes de batecirc-lo para o consumo ldquosoco o accedilaiacute pra tirar a tinta porque ela faz mal

pro estocircmago daacute gases e cheiurardquo(JOSEacute)

Fotografia 40 ndash Amassadeira eleacutetrica

Na imagem a amassadeira eleacutetrica foi limpa apoacutes o uso Em cima as bacias usadas para aparar o liacutequido Os caroccedilos satildeo colocados na batedeira com a maacutequina ligada em seguida eacute depositada aacutegua que dependendo da quantidade produziraacute o vinho73 grosso ou fino O batedor tem que ser aacutegil para

73 O vinho eacute o suco retirado da polpa do accedilaiacute

161

natildeo estragar os caroccedilos dentro da batedeira Quando grosso coloca-se pouca aacutegua ficando uma papa Caso queria fino adiciona-se bastante aacutegua Na safra do produto toma-se o grosso Na entressafra o fino para servir a toda famiacuteliaFonte Edielso M M de Almeida 2016

Fotografia 41 ndash Amassadeira manual

Na imagem a amassadeira manual encontrei-a somente na casa do morador Benedito o curandeiro Os caroccedilos satildeo colocados na batedeira e amassados com a forccedila humana por meio da manivela paulatinamente eacute colocada a aacutegua para diluir a poupa que se transforma em vinho Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Fotografia 42 ndash Ribeirinha amassando o accedilaiacute com as matildeos

Para amassar o accedilaiacute com as matildeos primeiro ele eacute colocado para amolecer na aacutegua morna em seguida eacute colocado em uma bacia sem aacutegua posteriormente os caroccedilos satildeo amassados com as matildeos para retirada da polpa Eacute um processo que demanda forccedila sincronia das matildeos e agilidade Apoacutes a retirada da polpa coloca-se aacutegua para lavar os caroccedilos assim vai se fazendo o vinho Para separar o vinho dos

162

caroccedilos eacute usada a peneira que eacute feita de tala de buritiFonte Edielso M M de Almeida 2016

Durante a pesquisa observei que na Ilha satildeo poucas as pessoas que ainda

amassam com as matildeos o accedilaiacute Quem natildeo tem amassadeira usa a do vizinho mais

proacuteximo como contribuiccedilatildeo deixauma porccedilatildeo de accedilaiacute batido ou em caroccedilos Neste

processo participam homens e mulheres jovens adultos e idosos As crianccedilas

tambeacutem satildeo envolvidas direta e indiretamente seja como espectadoras ou em

trabalhos de preparaccedilatildeo do beneficiamento colocam aacutegua para ferver lavam as

bacias e a amassadeira antes e apoacutes o uso carregam os baldes com aacutegua pra diluir

o accedilaiacute e jogam fora os caroccedilos apoacutes a retirada da polpa

Agrave vista de toda essa diversidade de saberes que satildeo produzidos pelos povos

das aacuteguas na Amazocircnia na relaccedilatildeo que estabelecem com a natureza (aacutegua terra e

mata) e com seus semelhantes haacute a necessidade de validaacute-los pela instituiccedilatildeo

escolar bem como reconhecer a sua incompletude como condiccedilatildeo para o diaacutelogo

com outros saberes ldquoO confronto e o diaacutelogo entre os saberes eacute um confronto e

diaacutelogo entre diferentes processos atraveacutes dos quais praacuteticas diferentemente

ignorantes se transformam em praacuteticas diferentemente saacutebiasrdquo (SANTOS 2005 p

25)

Neste estudo fizemos uma hermenecircutica diatoacutepica por meio do levantamento

dostopoi (saber popular) da cultura ribeirinha O que preconiza a hermenecircutica

diatoacutepica satildeo as maneiras de interpretaccedilatildeo e de diaacutelogos entre culturas diversas que

tem como paracircmetro a consciecircncia de sua incompletudee desta forma possibilita a

evoluccedilatildeo e a construccedilatildeo segundo Santos (2005 p 56) de ldquoformas hiacutebridas de

dignidade humana mais rica e mais amplamente partilhadardquo

Na proacutexima seccedilatildeo apresentamos como ocorre o diaacutelogo entre os saberes da

cultura ribeirinha e os saberes escolares na praacutetica pedagoacutegica dos professores que

atuam na educaccedilatildeo infantil e anos iniciais do ensino fundamental em escolas situadas

nas comunidades ribeirinhas que formam a ilha do Accedilaiacute

163

42 O DIAacuteLOGO ENTRE O CONHECIMENTO ESCOLAR E O SABER POPULAR

Nesta seccedilatildeo analisamos como acontece o diaacutelogo entre os saberes oriundos

das comunidades ribeirinhas com o conhecimento escolar na praacutetica pedagoacutegica dos

professores nas cinco escolas que compotildeem o regional Madeira situadas na ilha do

Accedilaiacute Estabelecemos diaacutelogos a partir das categorias diaacutelogo saber popular praacuteticas

colonizadoras e praacuteticas descolonizadoras e o referencial teoacuterico deste estudo

Iniciamos a discussatildeo com a concepccedilatildeo de conhecimento escolar e o livro

didaacutetico como elemento norteador do conhecimento nas escolas ribeirinhas e em

seguida dialogamos com os elementos que fazem parte da praacutetica pedagoacutegica do

educador dentre os quais o planejamento das aulas e a metodologia de ensino e

aprendizagem

421 O Conhecimento Escolar

Segundo Santos (1995 p 30) o conhecimento escolar eacute ldquoum tipo de

conhecimento produzido pelo sistema escolar e pelo contexto social e econocircmico mais

amplo produccedilatildeo essa que se daacute em meio a relaccedilotildees de poder estabelecidas no

aparelho escolar e entre esse aparelho e a sociedaderdquo Portanto o conhecimento

escolar estaacute imbricado por questotildees ideoloacutegicas e poliacuteticas sendo assim a definiccedilatildeo

do que deve ser ensinado na escola natildeo eacute somente uma questatildeo educacional e sim

poliacutetica

A decisatildeo de se definir o conhecimento de alguns grupos como digno de ser transmitido agraves geraccedilotildees futuras enquanto a histoacuteria e a cultura de outros grupos mal vecircem a luz do dia revela algo extremamente importante acerca de quem deteacutem o poder na sociedade (APPLE 2006 p 42)

Quem deteacutem o poder na sociedade capitalista privilegia e legiacutetima

conhecimentos que socialmente satildeo reconhecidos bem como ignora e estigmatiza os

que natildeo o satildeo dentre eles os saberes populares Assim hierarquiza os

conhecimentos que podem ser transmitidos pelo sistema escolar Na visatildeo de Moreira

e Candau (2008 p 25) ldquoNessahierarquia silenciam-se as vozes de muitos indiviacuteduos

e grupos sociais classificam-se seus saberes como indignos de entrarem na sala de

aula e de serem ensinados e aprendidosrdquo Essa maneira de agir estaacute alicerccedilada

segundo Santos (2007) na razatildeo indolente que guia o pensar a nossa visatildeo da vida

e do mundo bem como a produccedilatildeo da ciecircncia baseada no paradigma eurocecircntrico

Desta maneira o conhecimento oriundo de uma base cientiacutefico-cultural eacute

organizado de acordo com as disciplinas que compotildeem as etapas da educaccedilatildeo baacutesica

164

para fazerem parte do curriacuteculo escolar que deveratildeo ser transmitidos por meio da

utilizaccedilatildeo de meacutetodos e teacutecnicas para a realizaccedilatildeo da praacutetica docente constituindo-

se numa visatildeo racionalista de conhecimento que nega a complexidade do ato de

ensinar e de aprender ao mesmo tempo impotildee o conhecimento cientiacutefico como a

uacutenica maneira de compreender o mundo

Para Santos (2007) a ciecircncia natildeo eacute a uacutenica forma de interpretar o

mundoexistem outros saberes que historicamente foram negados e que precisam ser

reconhecidos Essa ausecircncia eacute gerada pela monocultura do saber e do rigorque

considera ignorante o que natildeo eacute cientiacutefico Desta maneira ossaberes populares natildeo

satildeo reconhecidos como conhecimentos porque natildeo tecircm o rigor do cientiacutefico o que

caracteriza uma visatildeo colonialista ou seja eacute no plano epistemoloacutegico que o

colonialismo assume maior centralidade Desse modo ldquoo que natildeo existe eacute produzido

como natildeo existente invisiacutevel agraverealidade hegemocircnica do mundordquo (p 78)

Consequentemente o conhecimento escolar tem como base o que Santos

(2010 p 71) chama de cacircnone literaacuterio74

Entende-se por cacircnone literaacuterio na cultura ocidental um conjunto de obras literaacuterias que num determinado momento histoacuterico os intelectuais e as instituiccedilotildees dominantes ou hegemocircnicos consideram ser os mais representativos e os de maior valor e autoridade numa dada cultura oficial

Somente o conjunto de obras e autores reconhecidos como hegemocircnicos pela

classe dominante satildeo declaradamente valorizados e reconhecidos como dignos de

serem ensinados nas escolas desde a educaccedilatildeo infantil ensino fundamental meacutedio

e educaccedilatildeo superior ldquo[] o processo de intensificaccedilatildeo que estas obras sofrem dota-

as do capital cultural necessaacuterio para que possam finalmente patentear a

exemplaridade o caraacuteter uacutenico e a inimitabilidade que as distinguerdquo (SANTOS 2010

p 72)

O cacircnone literaacuterio impotildee uma identidade elitista e nega os saberes e as

identidades locais Para dar visibilidade aos diversos conhecimentos e epistemologias

invisiacuteveis o citado autor propotildee a ldquoSociologia das Ausecircnciasrdquo Esta aleacutem do desafio

de conceber um conhecimento como princiacutepio de solidariedade compreende que todo

conhecimento eacute um percurso que vai de um ponto de ignoracircncia a um ponto de saber

no qual o outro eacute sempre sujeito e natildeo objeto Nesse sentido ldquoconhecer eacute reconhecer

74 O cacircnone literaacuterio consiste em um conjunto de obras que abrange as diversas aacutereas do conhecimento e por fazerem parte da cultura ocidental eurocecircntrica satildeo reconhecidos como universais

165

eacute progredir no sentido de elevar o outro da condiccedilatildeo de objeto agrave condiccedilatildeo de sujeito

Esse conhecimento-reconhecimento eacute o que designo por solidariedaderdquo (SANTOS

2011 p 30)

Quando o processo eacute inverso satildeo solidificadas as desigualdades e

consequentemente as diferenccedilas que assinalam a estrutura social baseada em um

modelo econocircmico capitalista Esta colonialidade do saber estruturada num

conhecimento eurocecircntrico e monoliacutetico parte do princiacutepio de que a razatildeo a verdade

e a ciecircncia satildeo atributos da classe hegemocircnica enquanto os outros no caso os

ribeirinhos satildeo classificados como objetos como saber popular leigo e ignorante

Como afirma Quijano (2008) a colonialidade do saber eacute uma das dimensotildees da

colonialidade do poder e visa a subalternizaccedilatildeo e invisibilizaccedilatildeo da multiplicidade de

saberes com seus processos proacuteprios de subjetivaccedilatildeo e seus modos singulares de

pensar a sauacutede a economia a natureza e outros aspectos da realidade social

A colonialidade do saber materializada no saber escolar direciona os curriacuteculos

disciplinas e a organizaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo na escola Desse modo a cultura

erudita e etnocecircntrica instituiacuteda nos conteuacutedos escolares socialmente reconhecidos eacute

sobreposta aos conteuacutedos advindos da cultura popular que eacute marginalizada e ausente

no interior da instituiccedilatildeo escolar Os movimentos de resistecircncia certificam que a

descolonizaccedilatildeo requer propostas baseadas na transdisciplinaridade e na

transculturalidade (CASTRO-GOMEacuteZ 2007) bem como ldquoposturas posicionamientos

horizontes y proyectos de resistir transgredir intervenir in-surgir crear e incidirrdquo

(WALSH 2013 p 3) na colonialidade no contexto da escola Para Dussel (2005)

existem transiccedilotildees e alternativas possiacuteveis construiacutedas com base no diaacutelogo de

saberes Enquanto natildeo obtemos tal ldquoutopia pluriversardquo (p 18) fazem-se necessaacuterios

diaacutelogos que vislumbrem trocas e negociaccedilotildees capazes de beneficiar visotildees e

entendimentos distintos do mundo

4211 O conhecimento escolar na oacutetica dos professores

O conhecimento escolar denominado pelos professores ribeirinhos como

conteuacutedos compotildee a matriz curricular da educaccedilatildeo baacutesica (educaccedilatildeo infantil ensino

fundamental e meacutedio) e satildeo organizados por ano distribuiacutedos nos quatro bimestres

De acordo com a fala dos entrevistados esses conteuacutedos jaacute vecircm estabelecidos pela

Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo esatildeo entregues no iniacutecio das aulas e devem ser

trabalhados com os alunos

166

Por conseguinte os saberes socialmente reconhecidos e legitimados pelo

sistema municipal de educaccedilatildeo de Afuaacute acabam por negar os saberes oriundos da

cultura ribeirinha As vozes dos ribeirinhos satildeo silenciadas e seus saberes natildeo satildeo

dignos de entrarem na sala de aula o que caracteriza uma colonialidade do saber

Acho que quem escolhe os conteuacutedos satildeo os teacutecnicos da SEMED agente aqui apenas trabalha eles com os alunos quer dizer o que daacute tempo de trabalhar ateacute porque satildeo muitos assuntos e pouco tempo entatildeo seleciono o que considero mais importante (Prof 1) A seleccedilatildeo de conteuacutedos vem da SEMED jaacute vem distribuiacuteda por bimestre natildeo sei quem elabora Tem assuntos que satildeo totalmente fora da realidade da gente Eu vou introduzindo os conteuacutedos conforme as necessidades porque tem alguns assuntos que satildeo muitos avanccedilados para eles (Prof2) Noacutes recebemos a lista de conteuacutedos das matildeos da diretora do regional Algumas coisas que na minha maneira de ver natildeo satildeo importantes aiacute a gente tira Para mim seria mais interessante se os conteuacutedos fossem baseados na realidade deles pois as pessoas que selecionam esses conteuacutedos natildeo conhecem a realidade dos alunos ribeirinhos (Prof3) No iniacutecio de cada ano letivo vou ateacute a SEMED procuro os teacutecnicos do setor pedagoacutegico e solicito a lista de conteuacutedos de todas as seacuteries e anos por disciplinas para repassar aos nossos professores do regional (Diretora)

Os professores foram unacircnimes em afirmar que natildeo participam da seleccedilatildeo dos

conteuacutedos e nem sabem quem os elabora apenas os recebem das matildeos da diretora

do Regional que tambeacutem recebe das matildeos dos teacutecnicos da SEMED Os

conhecimentos escolares denominado pelo sistema educacional como conteuacutedos jaacute

vecircm prontos listados por ano e divididos nos bimestres para serem ensinados

independentemente do contexto no qual a escola estaacute inserida Isto colabora para a

exclusatildeo dos alunos que natildeo se adaptam ao processo de transmissatildeo de

conhecimento sem sentido e significado para eles

Fotografia 43 ndash Lista de conteuacutedos da disciplina Ciecircncias

SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCACcedilAtildeO

LISTA DE CONTEUacuteDOS PARA O 4ordm ANO DO

ENSINO FUNDAMENTAL

DISCIPLINA CIEcircNCIAS

1ordm BIMESTRE

1 Planeta Terra e Ambiente

11 A atmosfera terrestre

12 A aacutegua no planeta

13 O solo tipos de solo

22 Os seres vivos dos ecossistemas

2ordm BIMETRE

1 O corpo humano

11 Sustentaccedilatildeo e movimento

12 As partes do corpo humano

13 Os microrganismos

167

Fonte Escola Poacutelo do Regional Madeira 2016

A fotografia acima retrata a lista dos conteuacutedos jaacute divididos por bimestre da

disciplina Ciecircncias para o 4ordm ano do ensino fundamental como afirmam os

professores ela eacute encaminhada pela SEMED para ser desenvolvida em todas as

escolas pertencentes ao sistema municipal de ensino A imagem abaixo mostra o

registro de fragmentos do conteuacutedo desenvolvido nas aulas transcrito no caderno de

um aluno do 4ordm ano do ensino fundamental

Fotografia 44 ndash Fragmentos do conteuacutedo sobre ldquoecossistemardquo no caderno de

aluno

Fonte Anotaccedilotildees de aula do caderno de aluno 2016

O conteuacutedo foi transcrito para o caderno sem fazer a relaccedilatildeo com o

ecossistema da ilha do Accedilaiacute75 Nesse sentido no curriacuteculo oficial natildeo haacute espaccedilo para

o saber popular oriundo das comunidades ribeirinhas Essa forma de exclusatildeo dos

saberes locais eacute o que Mignolo (2000) denomina de Geopoliacutetica do conhecimento que

se refere agraves relaccedilotildees entre espaccedilo e poder que geram as hierarquias entre os

diferentes sistemas de conhecimento quando relacionamos espaccedilo poder e saber

75 O professor copiou o conteuacutedo no quadroque foi posteriormente transcrito para o caderno pelos alunos Natildeo houve uma discussatildeo referente ao ecossistema presente nas comunidades ribeirinhas que fazem parte do cotidiano dos alunos

Ecossistemas O conjunto de seres vivos e de elementos natildeo vivos que se relacionam no ambiente chamamos de Ecossistemas Os ecossistemas podem ser naturais ou artificiais Florestas campos desertos mares e rios satildeo exemplos de ecossistemas naturais porque se formam espontaneamente na natureza Accediludes aquaacuterios jardins campos cultivados satildeo alguns exemplos de ecossistemas artificiais porque satildeo criados pelo ser humano No ecossistema de um jardim por exemplo vivem seres que dependem uns dos outros as minhocas dependem do solo as plantas dependem da aacutegua e da luz as formigas dependem das plantas e as aranhas dependem das formigas para se alimentar O conjunto de todos os ecossistemas do planeta Terra eacute chamado de biosfera Portanto a biosfera compreende o meio aquaacutetico e o meio terrestre

168

Assim os ribeirinhos falam da regiatildeo Norte Amazocircnia (espaccedilo) onde ainda predomina

no imaginaacuterio da populaccedilatildeo de outras regiotildees do Brasil e de outros paiacuteses (poder) que

aqui somos inferiores atrasados e ignorantes Eacute a configuraccedilatildeo do que afirma Castro-

Goacutemez (2006) ser uma reconhecida supremacia eacutetnica e cognitiva do colonizador em

relaccedilatildeo ao colonizado

O curriacuteculo nunca eacute apenas um conjunto neutro de conhecimentos [] Ele eacute sempre parte de uma tradiccedilatildeo seletiva resultado da seleccedilatildeo de algueacutem da visatildeo de algum grupo acerca do que seja conhecimento legiacutetimo Eacute produto de tensotildees conflitos e concessotildees culturais poliacuteticas e econocircmicas que organizam e desorganizam um povo (APPLE 1994 p 59)

Neste sentido a cultura hegemocircnica eacute imposta por meio dos valores haacutebitos e

costumes o que contribui para a baixa autoestima dos alunos que natildeo veem os seus

saberes contemplados no curriacuteculo desenvolvido pela escola Nessa loacutegica Moreira e

Candau (2008) admitem que as situaccedilotildees de opressatildeo e discriminaccedilatildeo tambeacutem satildeo

materializadas no curriacuteculo cotidianamente mas tambeacutem essas situaccedilotildees podem ser

contestadas desveladas e visibilizadas pelo educador e educando

As praacuteticas pedagoacutegicas baseadas na pedagogia bancaacuteria contribuem para

reproduzir preconceitos e discriminaccedilotildees em relaccedilatildeo aos sujeitos do campo

especificamente da Amazocircnia ribeirinha taxados como preguiccedilosos e ignorantes O

estigma de preguiccediloso fruto de uma visatildeo etnocecircntrica e colonizadora no entanto eacute

desconstruiacutedo quando passamos a olhar o outro a partir de sua cultura no caso da

ilha do Accedilaiacute o inverno periacuteodo das chuvas eacute a eacutepoca da colheita e venda do accedilaiacute e

o veratildeo eacutepoca de sobreviver a partir da renda gerada pela comercializaccedilatildeo do

produto Desta forma a vida dos ribeirinhos na Ilha estaacute ligada aos ciclos da

natureza

O resto do tempo eacute ocupado com atividades que geralmente estatildeo pouco articuladas com o mercado limpeza de algum igarapeacute preparaccedilatildeo de festas de santos etc garantindo parte de auto-suficiecircncia em termos modestos Daiacute alguns estereoacutetipos que comumente lhes atribuem preguiccedila inadaptaccedilatildeo para o trabalho falta de aspiraccedilatildeo pessoal (LOUREIRO 2001 p 39)

No que concerne aos conteuacutedos escolares encontramos na

pesquisaprofessores que questionam os arranjos sociais em que essas situaccedilotildees se

sustentam Dentre os mecanismos de luta estaacute o fortalecimento das identidades dos

sujeitos amazocircnidas a partir do reconhecimento dos seus saberes como dignos de

dialogar com os saberes escolares e compor a ldquolistardquo de conteuacutedos a serem

trabalhados no ano letivo

169

Na hora de definir os conteuacutedos que irei trabalhar no bimestre pego a lista da SEMED e vejo o que daacute pra trabalhar e mesclo com os saberes da comunidade (peccedilo para o professor dar exemplo de como ele faz isso) Tem o assunto O Rio na disciplina Geografia ai eu acrescento os rios lagos igarapeacutes e furos aqui da Ilha (Prof10) Pego a lista da SEMED e vejo os conteuacutedos que realmente satildeo mais importantes pros meus alunos acho importante que eles saibam os assuntos necessaacuterios pra sobreviver bem aqui na Ilha ou em outro lugar Entatildeo acrescento outros conteuacutedos relacionados a geografia do lugar a histoacuteria da comunidade e de sua famiacutelia a religiatildeo predominante na comunidade em Ensino Religioso os animais e os alimentos da regiatildeo em Ciecircncias e assim por diante (Prof2) Quem elabora essa tal lista de conteuacutedos com certeza nunca trabalhou numa escola ribeirinha e natildeo conhece a realidade daqui Os meus alunos precisam aprender a Matemaacutetica mas a Matemaacutetica pra usar na vida o Portuguecircs as Ciecircncias a Geografia e a Histoacuteria tambeacutem E esses assuntos natildeo estatildeo nos livros Entatildeo na hora de elaborar essa lista de conteuacutedos eu natildeo entendo porque natildeo nos chamam Por isso que na hora de definir que conteuacutedos trabalhar eu priorizo os da vida (Prof4)

A preocupaccedilatildeo dos professores estaacute voltada para a aprendizagem de

conteuacutedos que sejam significativos para os alunos A lista de conteuacutedos da SEMED eacute

enriquecida com os saberes populares dos alunos e da comunidade pois eles

retratam a realidade local Na fotografia a seguir uma atividade que requer a

mobilizaccedilatildeo do saber local

Fotografia 45 ndashFragmentos do conteuacutedo sobre ldquoos animaisrdquo no caderno de

aluno

Fonte Anotaccedilotildees de aula do caderno de aluno 2016

O reconhecimento de que o saber popular juntamente com os conteuacutedos da

lista encaminhada as escolas pela SEMED satildeo elementos essenciaisque precisam

fazer parte do curriacuteculo tornando-se o cerne do trabalho docente ldquosua aprendizagem

constitui condiccedilatildeo indispensaacutevel para que os conhecimentos socialmente produzidos

possam ser apreendidos criticados e reconstruiacutedos por todosas osas estudantesrdquo

Atividade

1 Preencha a tabela com os nomes dos

animais encontrados aqui na ilha e seus

respectivos haacutebitos alimentares Animal Carniacutevoro Herbiacutevoro Oniacutevoro

Paca X

Tatu X

Jacareacute X

Capiva

ra

X

Porco X

170

(MOREIRA CANDAU 2008 p 21) Desta maneira os professores procuram

selecionar o conhecimento escolar levando em consideraccedilatildeo alguns criteacuterios dentre

os quais

Importacircncia para o cotidiano dos alunos entatildeo procuro favorecer a leitura quando aprendem a ler ajudam seus pais nas atividades diaacuterias que requer esse conhecimento Como a maioria dos pais natildeo satildeo alfabetizados as crianccedilas jaacute alfabetizadas eacute quem escrevem as cartas bilhetes registram as contas feitas na mercearia e outras atividades que requerem a leitura e a escrita O domiacutenio das quatro operaccedilotildees (adiccedilatildeo subtraccedilatildeo multiplicaccedilatildeo e divisatildeo) para dar troco e natildeo deixar se enganar ou enganarem seus pais na hora de vender a saca ou paneiro de accedilaiacute entre outros (Prof6) Eu seleciono aqueles que eu acho mais importantes por exemplo o substantivo eacute importante o aluno conhecer o aluno tem que saber como conjugar um verbo quando ele se dirigir a uma pessoa o aluno tem que conhecer alguns pronomes Eu acho isso muito importante aleacutem de trabalhar textos para eles saberem interpretar (Prof9) Uso como criteacuterio na hora de selecionar os assuntos o que acho mais significativo pra eles aprenderem assim dou prioridade a Liacutengua Portuguesa e Matemaacutetica Faccedilo a relaccedilatildeo dos conteuacutedos com a realidade deles trabalho as quatro operaccedilotildees fundamentais assim como as unidades de medida como o quilograma o metro e outros para usar nas atividades da venda do camaratildeo peixe e accedilaiacute e nas compras na cidade (Prof2)

Os conteuacutedos satildeo selecionados segundo a relevacircncia para as atividades

sociais e produtivas De acordo com Libacircneo (2004) os conhecimentos satildeo relevantes

para a vida concreta quando ampliam o conhecimento da realidade instrumentalizam

os alunos a pensar metodicamente a raciocinar a desenvolver a capacidade de

abstraccedilatildeo enfim a pensar a proacutepria praacutetica Isso implica a incorporaccedilatildeo das

experiecircncias e vivecircncias dos educandos a partir de situaccedilotildees concretas contrapondo-

se a uma visatildeo idealizada e valores distanciados do cotidiano Para Freire (2003 p

31) eacute essencial conhecer a realidade para transformaacute-la

Eacute importante fazer ver que a reflexatildeo natildeo eacute suficiente para o processo de libertaccedilatildeo Necessitamos da praacutexis ou em outras palavras necessitamos transformar a realidade em que nos encontramos Mas para transformar a realidade para desenvolver minha accedilatildeo sobre a realidade transformando-a eacute necessaacuterio conhecer a realidade Por isso em minha praacutexis eacute necessaacuterio que haja constante unidade entre minha accedilatildeo e minha reflexatildeo (grifo nosso)

Corroborando com esse ponto de vista Moreira e Candau (2008 p 21)

destacam que relevacircncia estaacute na importacircncia ldquoem tornar as pessoas capazes de

compreender o papel que devem ter na mudanccedila de seus contextos imediatos e da

sociedade em geral bem como ajudaacute-las a adquirir os conhecimentos e as habilidades

necessaacuterias para que isso aconteccedilardquo Os conhecimentos escolares servem como

171

suporte para pensar a proacutepria praacutetica a partir do questionamento sobre a realidade na

qual estamos inseridos mas para isso faz-se necessaacuterio que sejam relevantes Nesse

sentido o domiacutenio da leitura e da escrita assim como das operaccedilotildees fundamentais

na Matemaacutetica satildeo habilidades essenciais para a mudanccedila de postura frente aos

comerciantes e atravessadores que barganham o fruto da produccedilatildeo do trabalho

ribeirinho

Os professores tambeacutem questionam a natildeo participaccedilatildeo na definiccedilatildeo dos

conhecimentos a serem trabalhados nas diversas disciplinas que compotildeem o curriacuteculo

da educaccedilatildeo baacutesica das escolas ribeirinhas Hage (2004) acredita que aleacutem dos

professores os estudantes pais e membros da comunidade tambeacutem devem fazer

parte desta escolha pois eles tecircm muito a dizer e ensinar ldquosobre os conhecimentos

que devem ser selecionados para a educaccedilatildeoescolarizaccedilatildeo dos seres humanos os

quais contribuiratildeo significativamente para a produccedilatildeo da identidade individual e

coletiva dos sujeitos (p 4)

Para que o conhecimento escolar seja relevante e significativo torna-se

necessaacuterio o envolvimento dos sujeitos que fazem parte da comunidade escolar na

sua definiccedilatildeo Nas escolas que compotildeem o Regional Madeira esses conhecimentos

jaacute satildeo preestabelecidos de forma homogecircnea pelos especialistas que natildeo conhecem

e talvez nunca tenham estado em uma escola ribeirinha Na pesquisa encontramos

professores que seguem literalmente o que eacute estabelecido deixando claro a

colonialidade do saber pois soacute reconhecem como vaacutelido o conhecimento escolar Mas

tambeacutem encontramos outros que procuram romper com esta colonialidade e incluem

conteuacutedos que tenham relevacircncia e significado para os educandos em uma

perspectiva dialoacutegica assim ldquoos saberes da experiecircncia cotidiana no diaacutelogo com os

conhecimentos selecionados pela escola propiciaratildeo o avanccedilo na construccedilatildeo e

apropriaccedilatildeo do conhecimento por parte dos educandos e dos educadoresrdquo (HAGE

2004 p 4)

A seguir analisamos a partir das falas dos professores um dos instrumentos

mais utilizados para a transmissatildeo do conhecimento escolar nas classes

multisseriadas o livro didaacutetico presente em todas as escolas investigadas

422O Livro Didaacutetico

Geacuterard e Roegiers (2000 p19) definem o livro didaacutetico como ldquoum instrumento

impresso intencionalmente estruturado para se inscrever num processo de

aprendizagem com o fim de lhe melhorar a eficaacuteciardquo A intencionalidade eacute expliacutecita

172

ele carrega uma concepccedilatildeo de ensino e aprendizagem de conhecimento assim como

visotildees de mundo e valores Como nos diz Lopes (2007 p 208) ldquoeacute uma versatildeo

didatizada do conhecimento para fins escolares eou com o propoacutesito de formaccedilatildeo de

valoresrdquo

Conforme depoimento dos professores ribeirinhos o livro eacute um dos materiais

didaacuteticos mais utilizados para o ensino e aprendizagem dos alunos ldquouso todos os dias

o livro didaacutetico ateacute porque eacute o uacutenico recurso que tenho disponiacutevel aqui na escola e

cada aluno tem o seu ele serve tambeacutem para planejar as aulasrdquo (Prof5) Desta

maneira o livro serve como orientador do trabalho docente nas classes

multisseriadas Este instrumento pedagoacutegico possibilita a compreensatildeo do conteuacutedo

por conter mapas ilustraccedilotildees graacuteficos e outros recursos visuais de acordo com os

docentes

Portanto diante da escassez de recursos didaacuteticos tais como mapas globos

jogos pedagoacutegicos e outros assim como de cartolina cola tesoura papel laacutepis de

cor e demais recursos necessaacuterios para a mediaccedilatildeo da aprendizagem o professor

acaba preso ao livro como uacutenico recurso disponiacutevel para trabalhar com todos os seus

alunos

Aqui no interior natildeo temos material didaacutetico entatildeo soacute nos resta o livro que os alunos recebem no iniacutecio do ano Agraves vezes queremos fazer uma aula diferente mas natildeo temos material pra isso falta cartolina cola e ateacute tesoura para trabalhos praacuteticos (Prof 5) O uacutenico mapa que agente encontra eacute o que estaacute no livro didaacutetico Jaacute pedi tanto pra diretora trazer um mapa do Brasil laacute da SEMED mas ainda natildeo fui ouvido Jaacute fizemos alguns jogos com cartolina laacutepis de cor pincel cola e tesoura que comprei em Macapaacute Como o nosso salaacuterio mal daacute pra comer entatildeo natildeo tem como comprar direto estes materiais (Prof 8)

Quanto ao uso o livro didaacutetico tem sido utilizado de diferentes formas Segundo

as observaccedilotildees feitas na sala de aula para a maioria dos professores o livro eacute a

buacutessola que norteia a sua praacutetica em todas as atividades desde as de sala de aula

ateacute os deveres de casa Presenciei situaccedilotildees didaacuteticas nas quais os alunos foram

organizados por ano para fazer a leitura oral na mesa do professor e quando natildeo

conseguiam ler a palavra76 do texto em estudo retornavam agraves suas cadeiras para

treinar a pronuacutencia correta Era o dia da leitura durante um dia na semana o professor

escolhia um texto do livro didaacutetico e os alunos faziam a leitura individual O livro

tambeacutem direciona o curriacuteculo

76 Geralmente eram palavras que natildeo faziam parte do universo vocabular dos educandos ribeirinhos

173

Os assuntos estatildeo todos no livro entatildeo eacute soacute pedir para que os alunos abram nas paacuteginas que iremos estudar de acordo com cada disciplina Por exemplo na segunda-feira temos aula de Liacutengua Portuguesa Ciecircncias e Histoacuteria entatildeo eacute soacute abrir a paacutegina dos livros que constam os conteuacutedos dessas disciplinas O dever de casa tambeacutem eacute no livro (Prof 3) Para os alunos do preacute-escolar uso direto a cartilha e tambeacutem com os da 1ordf seacuterie que ainda natildeo leem Isso ajuda muito a gente que precisa de tempo para dar atenccedilatildeo para as outras seacuteries Enquanto os do preacute-escolar estatildeo ocupados com atividade da cartilha aproveito para tirar duacutevidas das outras seacuteries (Prof7)

A fala do prof 7 descreve as estrateacutegias que utiliza para conseguir ministrar

aula para trecircs seacuteries ao mesmo tempo e no mesmo espaccedilo para que isso ocorra o

livro didaacutetico eacute peccedila fundamental O uso da cartilha guia o processo de alfabetizaccedilatildeo

atraveacutes da resoluccedilatildeo das atividades propostas com o objetivo do ensino da leitura e

da escrita de forma mecacircnica e linear Os conteuacutedos satildeo provenientes do livro e aos

alunos cabe a reproduccedilatildeo da leitura de siacutelabas palavras frases e textos sem

significado e vazios dos saberes oriundos de sua cultura Desta maneira o curriacuteculo

eacute direcionado pelo livro didaacutetico por meio das atividades propostas orienta-se a

praacutetica do professor

Romanatto (2007) ratifica essa posiccedilatildeo quando afirma que o livro didaacutetico assim

utilizado substitui o professor em vez de ser elemento de apoio ao seu trabalho Assim

os conteuacutedos e meacutetodos utilizados satildeo os mesmo do livro ldquoum livro que promete tudo

pronto tudo detalhado bastando mandar o aluno abrir a paacutegina e fazer exerciacutecios eacute

uma atraccedilatildeo irresistiacutevelrdquo (p 67) principalmente quando se trabalha com vaacuterias seacuteries

na mesma sala e somente quatro horas de aula para ministrar os conteuacutedos Para

Santos e Carneiro (2006 p 206) o livro didaacutetico tem trecircs principais finalidades na

escola

[] de informaccedilatildeo de estruturaccedilatildeo e organizaccedilatildeo da aprendizagem e finalmente a funccedilatildeo de guia do aluno no processo de apreensatildeo do mundo exterior Deste modo a uacuteltima funccedilatildeo depende de o livro permitir que aconteccedila uma interaccedilatildeo da experiecircncia do aluno e atividades que instiguem o estudante desenvolver seu proacuteprio conhecimento ou ao contraacuterio induzi-lo aacute repeticcedilotildees ou imitaccedilotildees do real Entretanto o professor deve estar preparado para fazer uma anaacutelise criacutetica e julgar os meacuteritos do livro que utiliza ou pretende utilizar assim como para introduzir as devidas correccedilotildees eou adaptaccedilotildees que achar conveniente e necessaacuterias

O reconhecimento da importacircncia do livro didaacutetico para a sistematizaccedilatildeo das

aulas e por ser um dos recursos a que todos os estudantes tecircm acesso poderia ser

um instrumento para a construccedilatildeo de um ambiente de sala de aula que represente o

ensino como um processo de elaboraccedilatildeo coletiva e cooperativa entre educador e

174

educandos Mas para isso faz-se necessaacuterio reconhecer que ele natildeo eacute suficiente

precisa de outras fontes de informaccedilatildeo que possam contribuir na aprendizagem dos

conteuacutedos dentre elas os saberes populares

Acreditamos que o livro didaacutetico possa possibilitar ao professor mediar a

construccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico pelo aluno para que este se aproprie dessa

linguagem e desenvolva valores eacuteticos mediante os avanccedilos da ciecircncia

contextualizada e socialmente relevante mas sem negar os seus valores e saberes

Santos (2000) propotildee que esses saberes dialoguem entre si de uma maneira em que

natildeo haja hierarquias entre eles

O livro didaacutetico tambeacutem veicula uma realidade diferente das que vive os alunos

na Ilha pois eacute produzido em outras regiotildees do paiacutes

As cartilhas trazem nome de frutas e animais que as crianccedilas natildeo conhecem e eacute a partir das letras iniciais dessas palavras que inicia o processo da leitura e escrita Sei que as crianccedilas devem conhecer que existem outros tipos de frutas e animais mas acho que se iniciarmos a alfabetizaccedilatildeo com o que elas jaacute conhecem o caminho natildeo seria tatildeo suado para aprender (Prof 3) O livro eacute muito importante para o nosso trabalho e aprendizagem dos alunos mesmo porque eacute o uacutenico material impresso para a leitura que temos mas natildeo aborda os nossos problemas ateacute que tento fazer a ponte entre o conteuacutedo que ele traz e a realidade que vivemos aqui na Ilha mas nem sempre eacute possiacutevel (Prof 8)

Os professores frisam a relevacircncia de abordar conteuacutedos significativos e

contextualizados de acordo com a realidade dos estudantes para que possam

relacionaacute-los com o seu dia-a-dia o que os conteuacutedos do livro didaacutetico nem sempre

permitem por serem globais natildeo contextualizam os saberes e as problemaacuteticas

regionais bem como as locais

Fotografia 46 ndash Conteuacutedo referente ao tem ldquomoradiardquo abordado no livro didaacutetico

da disciplina Artes para o 1ordm 2ordm e 3ordm ano do ensino fundamental

175

Fonte Livro didaacutetico da disciplina Artes 2016

Na imagem acima o conteuacutedo ldquomoradiardquo aborda a realidade da aacuterea urbana da

cidade de Paragominas no Estado do Paraacute bem como de uma cidade situada em

outro paiacutes a Alemanha Ambas as imagens retratam moradias em apartamentos o

que difere da realidade habitacional dos ribeirinhos As criacuteticas ao livro didaacutetico vatildeo

aleacutem das questotildees relacionadas agrave realidade ribeirinha pois abordam tambeacutem uma

avaliaccedilatildeo dos conteuacutedos que natildeo proporcionam uma abordagem mais aprofundada

do assunto

Como o assunto no livro didaacutetico vem resumido natildeo apresenta uma abordagem aprofundada eu pesquiso nos livros que tenho para eu aprender e depois ensinar aos alunos e desta maneira procuro orientar meus alunos para aprender mais sobre determinado conteuacutedo os exerciacutecios que ele traz tambeacutem contribuem para a verificaccedilatildeo da aprendizagem (Prof 4) Uma das maiores dificuldades para noacutes professores do interior estaacute na aquisiccedilatildeo de livros para pesquisar os assuntos O livro que os alunos recebem vem com o assunto resumido demais e aiacute como eacute que a gente vai ensinar um assunto que natildeo entendemos e que natildeo tem onde pesquisar Por isso que alguns colegas acabam dando o livro para os alunos e pedem para transcrever o assunto do livro paro o caderno e depois fazer os exerciacutecios (Prof2) Admito que o livro didaacutetico eacute muito importante pra noacutes que lecionamos aqui ele contribui para o processo de ensino Eacute a forma mais faacutecil de ter acesso aos conteuacutedos Por outro lado alguns colegas ficam presos a ele o que acaba prejudicando no aprendizado do aluno pois muitos apresentam conteuacutedos fragmentados Agraves vezes natildeo trazem questionamentos que instiguem o aluno a raciocinar sobre o que estaacute sendo discutido (Prof 6)

Aleacutem do livro didaacutetico os professores procuram na medida do possiacutevel

pesquisar em outras fontes para entender primeiro o conteuacutedo e posteriormente

ensinaacute-los aos alunos Segundo Lajolo (2001) se faz necessaacuterio que o professor

MUITAS PESSOAS VIVEM EM PREacuteDIOS SAtildeO CONSTRUCcedilOtildeES COM MUITAS HABITACcedilOtildeES CHAMADAS APARTAMENTOS PREacuteDIO 1 (Imagem) OBSERVE BEM ESTE PREacuteDIO PREacuteDIO 2 (imagem) VOCEcirc JAacute HAVIA VISTO UMA CONSTRUCcedilAtildeO COMO ESTAacute PARECE DE MENTIRINHA NAtildeO Eacute MESMO MAS NAtildeO Eacute ESSE PREacuteDIO Eacute DE VERDADE E FOI CONSTRUIacuteDO NA ALEMANHA TEM 105 APARTAMENTOS UM DIFERENTE DO OUTROSEU IDEALIZADOR Eacute O ARTISTAHUNDERTWASSER ELE NASCEU EM 1928 NA AUSTRIA E SEMPRE SE PREOCUPOU COM O

176

utilize outros recursos pedagoacutegicos para o desenvolvimento de suas aulas ldquopois

nenhum livro por melhor que seja deve ser utilizado sem adaptaccedilotildees e

complementaccedilotildeesrdquo(p 8) O problema estaacute nas condiccedilotildees de trabalho docente as

escolas da Ilha do Accedilaiacute natildeo possuem bibliotecas entatildeo os uacutenicos materiais de

pesquisa satildeo os livros que os professores compram e o que os alunos possuem no

caso os entregues no iniacutecio das aulas de cada ano letivo Na maioria das escolas o

livro didaacutetico torna-se a uacutenica referecircncia para o trabalho do professor e direciona a

seleccedilatildeo planejamento e desenvolvimento dos conteuacutedos em sala de aula

O livro nas classes multisseriadas eacute o siacutembolo que caracteriza a seriaccedilatildeo para

cada ano um livro especiacutefico com conhecimentos sistematizados e reconhecidos

como verdades absolutas que servem para escamotear a realidade atendendo aos

interesses econocircmicos sociais e culturais dominantes na sociedade Ao professor

cabe romper com as viseiras que escondem os reais interesses poliacuteticos e ideoloacutegicos

veiculados nos textos e imagens impressos nesses livros Os professores utilizam

diversas estrateacutegias para rompecirc-las de acordo com os depoimentos abaixo

Uso o livro mais como fonte de informaccedilatildeo e para dar outra visatildeo sobre o conteuacutedo que estamos estudando Procuro explorar o maacuteximo que posso as situaccedilotildees e os problemas do dia a dia da comunidade relacionados com o conteuacutedo (Prof 2) Procuro explorar os textos e as imagens de forma criacutetica os alunos precisam aprender a lecirc-las e interpretaacute-las soacute assim seratildeo capazes de fazer a relaccedilatildeo do mundo em que vivem com os outros mundos (Prof 4) Eu pego o assunto do livro faccedilo uma seleccedilatildeo do que eacute mais importante de acordo com a realidade da localidade que a gente vive da vida que levamos acredito que o professor necessita ter essa leitura criacutetica de mundo (Prof 6) Os livros natildeo trazem textos que falam da mata do rio das coisas da Amazocircnia dos problemas que fazem parte da nossa vida entatildeo o livro didaacutetico serve como um instrumento para o exerciacutecio da leitura e reflexatildeo em relaccedilatildeo agraves outras realidades diferente da que vivemos (Prof 8)

Mesmo para os professores ribeirinhos com uma visatildeo mais criacutetica da

educaccedilatildeo o livro didaacutetico continua sendo um instrumento indispensaacutevel para a praacutetica

pedagoacutegica mas eles tecircm a consciecircncia de que os conteuacutedos das disciplinas que

compotildeem o curriacuteculo escolareacute um veiacuteculo de inculcaccedilatildeo dos valores ideoloacutegicos e

culturais hegemocircnicos portanto torna-se poliacutetico na medida em que produz valores

da sociedade em relaccedilatildeo agrave sua visatildeo de ciecircncia da histoacuteria da interpretaccedilatildeo dos fatos

e do proacuteprio processo de transmissatildeo do conhecimento Ainda que contribua para a

177

mediaccedilatildeo dos conteuacutedos ele natildeo se limita somente aos da dimensatildeo pedagoacutegica e

as suas possiacuteveis influecircncias na aprendizagem e no desempenho dos educandos

Dentre os livros mais utilizados na praacutetica docente estatildeo os de Alfabetizaccedilatildeo

Liacutengua Portuguesa e Matemaacutetica

Uso mais o de alfabetizaccedilatildeo e no segundo semestre o de Matemaacutetica e de Liacutengua Portuguesa que eacute utilizado para fazer leitura Os alunos escolhem neste livro uma leitura para fazer todos os dias (Prof5) Soacute trabalho com o livro de Matemaacutetica natildeo utilizo os outros porque os assuntos satildeo resumidos demais entatildeo uso os livros que trago sempre comigo para aonde vou (Prof9) Os livros didaacuteticos que mais uso satildeo os de Liacutengua Portuguesa e Matemaacutetica Satildeo os mais necessaacuterios noacutes precisamos mais de Portuguecircs e da Matemaacutetica Para mim as duas disciplinas mais importantes para eles satildeo estas as outras eu trabalho menos (Prof 3)

O domiacutenio da leitura e da escrita eacute o objetivo da alfabetizaccedilatildeo tanto na

educaccedilatildeo infantil como no 1ordm ano por isso a cartilha eacute um recurso fundamental para

a praacutetica docente A prioridade concedida agrave Liacutengua Portuguesa e agrave Matemaacutetica em

detrimento das outras disciplinas estaacute relacionada agrave questatildeo do poder que essas

mateacuterias exercem dentro do curriacuteculo Como afirmam Moreira e Candau (2008 p 25)

[] nessa hierarquia se supervalorizam as chamadas disciplinas cientiacuteficas secundarizando-se os saberes referentes agraves artes e ao corpo Nessa hierarquia separa-se a razatildeo da emoccedilatildeo a teoria da praacutetica o conhecimento da cultura

O professor parte do princiacutepio de que o domiacutenio da leitura da escrita e das

quatro operaccedilotildees fundamentais (adiccedilatildeo subtraccedilatildeo multiplicaccedilatildeo divisatildeo) eacute a base

para a aprendizagem dos conhecimentos de Histoacuteria Geografia Artes e outras

disciplinas Tal visatildeo estaacute balizada em uma concepccedilatildeo bancaacuteria de educaccedilatildeo que natildeo

reconhece os saberes que emergem das praacuteticas sociais dos educandos natildeo os

concebe como produtores desses saberes e sim como meros reprodutores dos

conhecimentos oriundos do livro didaacutetico assim para reproduzi-los eacute preciso saber

ler para transcrevecirc-los

Os professores tambeacutem satildeo excluiacutedos da escolha do livro didaacutetico adotado no

ano letivo esta competecircncia fica a cargo dos teacutecnicos em educaccedilatildeo lotados na

Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo que decidem qual a melhor cartilha para alfabetizar

e os melhores livros para educar os ribeirinhos As criacuteticas soam como um protesto

contra a exclusatildeo e a alienaccedilatildeo de que satildeo viacutetimas enquanto uma elite intelectual

decide eles executam o que foi decidido

178

Trabalho haacute mais de 15 anos como professora em escolas ribeirinhas e nunca fui chamada para escolher o livro que gostaria de trabalhar com os meus alunos Nunca ningueacutem perguntou minha opiniatildeo sobre os livros que vecircm para a escola Apenas mandam e a gente obedece (Prof2) Noacutes recebemos os livro das matildeos da diretora do Regional natildeo sei quem eacute que escolhe Agente natildeo tem nenhuma participaccedilatildeo na escolha tanto que vecircm muitas coisas que satildeo mais para a zona urbana que rural praticamente da zona rural natildeo tem nada (Prof4)

Aleacutem de natildeo escolherem o livro de acordo com a sua concepccedilatildeo de ensino e

de aprendizagem ainda precisam utilizar os que foram selecionados pois satildeo os

uacutenicos recursos disponiacuteveis para atender agrave diversidade de seacuteries em uma turma

multisseriada

O Programa Nacional do Livro Didaacutetico (PNLD) apresenta dentre os seus

objetivos a participaccedilatildeo ativa e democraacutetica do professor no processo de seleccedilatildeo e

escolha dos livros didaacuteticos portanto eacute funccedilatildeo do professor garantido pelo PNLD

em escolher o livro que gostaria de trabalhar com seus alunos de acordo com a sua

concepccedilatildeo de educaccedilatildeo O uso pedagoacutegico deste recurso requer um planejamento

para que possa estabelecer o diaacutelogo entre os conhecimentos disponibilizados pelos

livros didaacuteticos e osconhecimentos trazidos pelos estudantes pois eacute na interaccedilatildeo

entre o saber que se traz do mundo e o saber trazido pelos livros que o conhecimento

avanccedila (LAJOLO 2001) A seguir discutimos o planejamento realizado pelos

docentes das escolas da ilha do Accedilai

423O Planejamento das Aulas

Entendemos como plano de aula a organizaccedilatildeo das accedilotildees didaacuteticas por meio

das atividades que norteiam a praacutetica diaacuteria do professor em interaccedilatildeo com os alunos

nos diversos espaccedilos de aprendizagem seja a sala de aula ou outros ambientes de

acordo com os objetivos propostos para a aula Segundo Libacircneo (2004 p 221) ldquoo

planejamento escolar eacute uma tarefa docente que inclui tanto a previsatildeo das atividades

didaacuteticas em termos de organizaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo em face dos objetivos propostos

quanto a sua revisatildeo e adequaccedilatildeo no decorrer do processo de ensinordquoPor intermeacutedio

do planejamento o professor define o que ensinar como ensinar e tambeacutem o avaliar

assim racionaliza organiza e projeta a articulaccedilatildeo entre a escola e o contexto no qual

ela estaacute inserida

Nesse sentido planejar vai aleacutem do pedagoacutegico tornando-se um ato poliacutetico

ldquonatildeo haacute educaccedilatildeo neutra toda neutralidade afirmada eacute uma opccedilatildeo escondidardquo

(FREIRE 1980 p 49) O professor ao planejar faz opccedilotildees de educar para a

179

conscientizaccedilatildeo e mudanccedila ou para a manutenccedilatildeo das relaccedilotildees de dominaccedilatildeo

poliacutetica econocircmica e cultural que caracterizam a sociedade capitalista Nesse prisma

o planejamento pode ser utilizado como uma ferramenta capaz de interferir no real

para transformaacute-lo para isso tem como atribuiccedilatildeo dar rumo agrave accedilatildeo docente de

maneira consciente e organizada com vistas a proporcionar as devidas mudanccedilas

O planejamento sem duacutevida pode colocar-se como um instrumento teoacuterico-metodoloacutegico para a intervenccedilatildeo na realidade Todavia mais do que instrumento ou ferramenta queremos apontar para a possibilidade de entendermos e vivenciarmos o planejamento como meacutetodo de trabalho do educador qual seja como postura (algo reelaborado interiorizado pelo sujeito) como forma de organizar a reflexatildeo e a accedilatildeo como estrateacutegia global de posicionamento diante da realidade (VASCONCELOS 2006 p 75)

Para o autor o planejamento eacute um ato poliacutetico e pedagoacutegico por ser intencional

porque descreve o que se deseja realizar e atingir por meio dos objetivos que se

corporificam nas accedilotildees planejadas para intervir na realidade Os elementos do

planejamento segundo o autor trazem em seu bojo a opccedilatildeo poliacutetica do educador

amparada em uma concepccedilatildeo pedagoacutegica de transmissatildeo ou problematizaccedilatildeo do

conhecimento a partir da realidade na qual a escola estaacute imersa e dos valores sociais

eacuteticos e culturais dos professores alunos e pais

Para isso as aulas devem ser planejadas de acordo com a realidade

sociocultural e conhecimento dos educandos bem como o plano precisa ter clareza e

objetividade conhecimento dos recursos disponiacuteveis para professores e alunos

conexatildeo entre a teoria e a praacutetica flexibilidade frente a situaccedilotildees imprevistas

realizaccedilatildeo de pesquisas buscando diferentes fontes bibliograacuteficas e utilizaccedilatildeo de

metodologias que proporcionem a participaccedilatildeo ativa dos educandos no processo de

ensino e aprendizagem (VASCONCELOS 2006 LIBANEO2004)

A seguir apresentamos as maneiras como os professores do Regional Madeira

elaboram o planejamento Classificamos em duas categorias a partir da perspectiva

colonizadora e a partir da perspectiva descolonizadora

4231 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma perspectiva

colonizadora

A perspectiva colonizadora caracteriza-se pela imposiccedilatildeo do conhecimento

escolar no ato de planejar e a negaccedilatildeo do saber popular configurando a colonialidade

do saber pois eacute no vieacutes epistemoloacutegico que o colonialismo assume maior

centralidade com uma perspectiva redutora do conhecimento impossibilitando o

surgimento de outras perspectivas epistemoloacutegicas

180

O que prevalece eacute o conhecimento escolar baseado na razatildeo indolente

considerada uacutenica e hegemocircnica silenciando excluindo e tornando ausente as outras

formas de saber como as dos povos da Amazocircnia dentre eles os ribeirinhos Dessa

maneiraacabam colonizando o pensamento por meio de uma uacutenica loacutegica a

eurocecircntrica Isso foi produzido historicamente segundo Mignolo (2003) no processo

de formaccedilatildeo do sistema colonialmoderno que gerou esta geopoliacutetica do

conhecimento na qual as teorias dominantes satildeo as produzidas nos paiacuteses

hegemocircnicos e impostas como universais aos paiacuteses colonizados

epistemologicamente

Dentre os professores sujeitos desta pesquisa enfatizamos as falas dos que

consideramos estarem incluiacutedos numa visatildeo colonizadora do saber Lembrando que

os professores trabalham no acircmbito de uma estrutura de dominaccedilatildeo portanto suas

praacuteticas natildeo satildeo totalmente descolonizadoras muitas carregam em si reflexos da

estrutura de dominaccedilatildeo o que se reflete nas praacuteticas colonizadoras No periacuteodo em

que foi realizada a pesquisa de campo identificamos praacuteticas pedagoacutegicas

colonizadoras e tambeacutem as descolonizadoras desenvolvidas por um mesmo

professor Mas procuramos destacar nesta seccedilatildeo as que consideramos

colonizadoras Em relaccedilatildeo a elaboraccedilatildeo do planejamento

Trabalho com o preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano entatildeo elaboro um plano pra cada ano pego a lista de conteuacutedos que jaacute vem dividido os assuntos por bimestre e planejo como vou trabalhaacute-los O preacute-escolar eu tambeacutem trabalho a alfabetizaccedilatildeo entatildeo eacute o mesmo plano do 1ordm ano (Prof 5) Planejo de acordo com os conteuacutedos do livro as atividades de avaliaccedilatildeo tambeacutem satildeo as do livro ateacute porque natildeo daacute tempo de fazer um planejamento para preacute-escolar 1ordm 2ordm 3ordm 4ordm e 5ordm ano Se eu for fazer um para cada ano passarei o dia todo planejando(Prof 9) Faccedilo um plano para cada ano Elaboro o horaacuterio das disciplinas que trabalho na semana por exemplo na segunda-feira trabalho Portuguecircs Ciecircncias Histoacuteria em todos os anos Aiacute elaboro o plano dessas disciplinas com os conteuacutedos que vecircm da SEMED (Prof 3) O meu plano estaacute de acordo com os conteuacutedos do livro didaacutetico por isso organizo a turma por ano e peccedilo para que leiam os textos relacionados ao assunto que vamos trabalhar no dia e que faccedilam as atividades que tambeacutem estatildeo no livro Temos pouco tempo para fazer outras tarefas pois trabalho com 3ordm 4ordm e 5ordm ano e precisamos cumprir o programa estipulado pela SEMED (Prof 1)

O planejamento eacute feito para cada ano separadamente os conteuacutedos satildeo os

oriundos da proposta elaborada pela Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo sem levar em

consideraccedilatildeo o contexto no qual a escola estaacute imersa O livro didaacutetico eacute o guia para o

181

planejamento dos professores Dentre os motivos para que isso ocorra estatildeo lecionar

para os vaacuterios anos do ensino fundamental no mesmo horaacuterio de aula o que

impossibilita o professor de elaborar um plano para cada ano o livro didaacutetico ser o

uacutenico recurso pedagoacutegico disponiacutevel para o processo de ensino e aprendizagem na

escola e o fato de todos os alunos terem acesso a este material

Pelas falas dos docentes o planejamento mesmo direcionado pelo livro

didaacutetico tem como base a divisatildeo da classe de acordo com o ano Desta maneira a

turma multisseriada eacute dividida em partes e cada uma dessas partes com atividades

especiacuteficas o que impossibilita a realizaccedilatildeo de trabalhos nos quais os alunos possam

interagir com colegas de outros anos

Nesse sentido para Hage (2004 p 35) ldquoa seriaccedilatildeo eacute considerada um

problema em face da rigidez com que trata o tempo escolar impondo a fragmentaccedilatildeo

em seacuteries anuais []rdquo Assim o conteuacutedo e os alunos satildeo divididos e fragmentadosde

acordo com os anos do ensino fundamental bem como o tempo linear cronoloacutegico

das quatro horasaula diaacuterias amarra o professor que precisa transmitir os respectivos

conteuacutedos em determinado momento para o preacute-escolar e em outros para o 1ordm 2ordm

3ordm 4ordm e 5ordm ano

No planejamento a imposiccedilatildeo do conhecimento escolar por meio da lista de

conteuacutedos emanada da SEMED e do livro didaacutetico caracteriza a colonialidade do

poder (o sistema municipal de ensino define o que deve ser ensinado aos alunos

ribeirinhos)e do saber (o natildeo reconhecimento do saber popular dos educandos e a

negaccedilatildeo das praacuteticas sociais que norteiam e datildeo sentido ao cotidiano das crianccedilas e

adolescentes ribeirinhos)

Esta geopoliacutetica do conhecimento que torna ausente o saber popular por ser

oriundo de uma regiatildeo perifeacuterica possibilita-nos identificar as estruturas de poder

(quem decide que conhecimento deve ser reconhecido como vaacutelido para fazer parte

do curriacuteculo escolar) e tambeacutem do saber (o conhecimento hegemocircnico considerado

oficial) Ambas visam perpetuar a colonizaccedilatildeo epistecircmica por meio da ausecircncia e

invisibilidade de todas as formas de saberes que natildeo atendam aos interesses

hegemocircnicos

A geopoliacutetica do conhecimento desta forma hierarquiza os saberes e fortalece

as diferenccedilas entre os sistemas de conhecimento ao privilegiar o espaccedilo onde ele eacute

produzido tornando-o universalmente legiacutetimo para todos os contextos Umas das

maneiras de se contrapor a essa visatildeo poderia ser por meio da problematizaccedilatildeo do

182

mapa epistecircmico vigente no mundo a partir dos espaccedilos privilegiados das fronteiras

dos fluxos e das direccedilotildees que o criaram bem como o naturalizaram Outros caminhos

tambeacutem passam pelo reconhecimento da diversidade epistemoloacutegica por meio da

valorizaccedilatildeo dos saberes alternativos Alguns passos jaacute estatildeo sendo dados nesta

direccedilatildeo na praacutetica do planejamento das aulas de alguns professores ribeirinhos do

regional Madeira que descrevemos a seguir

4232 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma perspectiva

descolonizadora77

As praacuteticas de planejamento que denominamos descolonizadora reconhecem

que nas comunidades ribeirinhas existem manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas

proacuteprias satildeo praacuteticas que procuram dar visibilidade a essas manifestaccedilotildees aleacutem do

reconhecimento valorizam os saberes locais e os incluem nas aulas por meio de

accedilotildees pedagoacutegicas planejadas

Essas praacuteticas podem ser concebidas como formas de descolonizaccedilatildeo

intelectual no sentido de mostrar que existem outros saberes oriundos do contexto

histoacuterico econocircmico social religioso e cultural no qual vivem os educandos saberes

fronteiriccedilos como afirma Mignolo (2003) e que constituem a gnose ou pensamento

liminar

Descolonizar natildeo significa de acordo com Walsh Schiwy e Castro-Goacutemez

(2002 p 14) se desfazer ldquodas ferramentas conceituais das ciecircncias nem tampouco

das hermenecircuticas criacuteticas da sociedade mas repensar sua utilidade ou seus efeitos

sobre as relaccedilotildees coloniais perguntando ateacute que ponto perpetuam

(involuntariamente talvez) a loacutegica vigenterdquo Nessa perspectiva Santos e Meneses

(2010 p 12) afirmam que descolonizar requer intervenccedilotildees epistemoloacutegicas que

denunciam a supressatildeo dos saberes levada a cabo ao longo dos uacuteltimos seacuteculos

pela norma epistemoloacutegica dominante e que valorizam os saberes que resistiram com

ecircxito [] agraves condiccedilotildees de um diaacutelogo horizontal entre conhecimentos A proposta de

um diaacutelogo horizontal foi evidenciado na fala de alguns professores em relaccedilatildeo ao

planejamento por meio da inclusatildeo nas aulas do saber popular dos educandos da

ilha do Accedilaiacute

No planejamento aleacutem dos conteuacutedos da SEMED procuro inclui o conhecimento aqui da comunidade Nas aulas de Artes incluo a arte da

77 Como afirmamos na seccedilatildeo anterior os professores atuam dentro de uma estrutura de dominaccedilatildeo Dentro dessas estruturas as praacuteticas colonizadoras satildeo mecanismo que visam agrave descolonizaccedilatildeo epistemoloacutegica

183

comunidade como a tecelagem o artesanato a marcenaria e as manifestaccedilotildees religiosas (Prof 2) No ato de planejar o que irei trabalhar durante a semana pego a lista dos conteuacutedos verifico o que daacute pra relacionar com a realidade dos alunos vejo os problemas que estamos vivenciando e de que maneira esses conteuacutedos podem nos ajudar a entendecirc-los Agraves vezes esses conteuacutedos natildeo servem aiacute o jeito eacute extrair dos proacuteprios alunos a partir dos seus saberes (Prof 6) Procuro adequar o planejamento agrave realidade dos alunos o foco eacute a aprendizagem e tambeacutem os conteuacutedos que eles precisam aprender para usar no dia a dia aqui na comunidade e quando forem vender accedilaiacute peixe e camaratildeo em Macapaacute (Prof 4)

O planejamento de acordo com a fala dos professores parte das necessidades

dos alunos do que eles precisam no cotidiano em termos de conhecimentos daiacute a

valorizaccedilatildeo tanto do conhecimento escolar quanto dos seus saberes locais Esses

alunos participam diretamente das atividades produtivas seja com os pais ou outros

membros da famiacutelia desde a coleta do accedilaiacute bem como na venda do produto em

Macapaacute Participam tambeacutem da pesca do peixe e camaratildeo e na caccedila de animais

silvestres ou seja estatildeo envolvidos diretamente na extraccedilatildeo e comercializaccedilatildeo dos

produtos da mata e dos rios A realidade dos educandos estaacute impregnada pelo

trabalho coletivo e o envolvimento nas atividades socioculturais o que para a

professora eacute fundamental fazer parte do planejamento ldquoo processo de ensino estaacute

sempre em movimento estaacute sempre sofrendo as modificaccedilotildees face agraves condiccedilotildees

reaisrdquo (LIBAcircNEO 2004 p 223) Por isso faz-se necessaacuterio que esteja relacionado

com o contexto social econocircmico e cultural dos sujeitos envolvidos

Ao incluir no planejamento o saber popular nas aulas de Artes o professor

reconhece esses saberes como parte do universo sociocultural dos educandos e sua

importacircncia para aprendizagem significativa e contextualizada Os alunos utilizam

constantemente os produtos oriundos da tecelagem (paneiro peneira malhadeira

matapi) e da marcenaria (casco remo) os quais participam das manifestaccedilotildees

artiacutesticas e religiosas Ao incluiacute-los no planejamento das aulas o professor cria

espaccedilos para que os alunos possam ensinaacute-los e aprendecirc-los por meio da troca de

experiecircncias entre si pois satildeo ldquosaberes socialmente construiacutedos na praacutetica

comunitaacuteria ndash mas tambeacutem [] discutir com os alunos a razatildeo de ser de alguns desses

saberes em relaccedilatildeo com o ensino dos conteuacutedosrdquo (FREIRE 2007 p 30) Ao discutir

com os alunos as questotildees sociais politicas culturais e econocircmicas nas quais esses

saberes juntamente com o conhecimento escolar estatildeo inseridos o educador estaacute

contribuindo para a leitura criacutetica do mundo

184

A fala do Prof 6 ldquovejo os problemas que estamos vivenciando e de que maneira

esses conteuacutedos podem nos ajudar a entendecirc-losrdquo retrata a importacircncia do

conhecimento no sentindo de intervir no mundo real ou seja na sua utilidade a que

nem sempre o conhecimento escolar consegue responder Daiacute o reconhecimento de

outras intervenccedilotildees no real possiacuteveis por outras formas de conhecimento e por uma

ldquonecessaacuteria reavaliaccedilatildeo das intervenccedilotildees e relaccedilotildees concretas na sociedade e na

natureza que os diferentes conhecimentos proporcionamrdquo (SANTOS 2010 p 60) Um

dos exemplos eacute o manejo do accedilaiacute realizado para preservar a espeacutecie assim como os

animais silvestres e a proibiccedilatildeo de fazer roccedila para evitar a derrubada de accedilaizeiros e

a queimada da mata nativa Esses satildeo saberes que preservam a biodiversidade da

floresta Amazocircnica e ao mesmo tempo garantem a sobrevivecircncia dos ribeirinhos na

Ilha do Accedilaiacute ldquoe natildeo deveraacute espantar-nos a riqueza dos conhecimentos que

conseguiram preservar modos de vida universos simboacutelicos e informaccedilotildees vitais para

a sobrevivecircncia em ambientes hostis com base exclusivamente na tradiccedilatildeo oralrdquo

(SANTOS 2010 p 58)

O planejamento como um dos elementos da praacutetica pedagoacutegica docente eacute o

instrumento pelo qual o professor seleciona os conhecimentos que os alunos teratildeo

acesso na escola que faratildeo parte de suas aulas Desta maneira ele define qual

conhecimento deve ser ensinado o que os alunos devem saber qual conhecimento

eacute considerado importante ou vaacutelido Nesse sentido o curriacuteculo eacute sempre resultado de

uma seleccedilatildeo de uma gama de conhecimentos e saberes seleciona-se aquela parte

que vai constituir precisamente o curriacuteculo (SILVA 2009)

Nessa seleccedilatildeoprivilegia-se determinados conteuacutedos e se excluem outros Na

praacutetica descolonizadora os professores ao selecionarem os conteuacutedos privilegiam

tambeacutem os oriundos da cultura ribeirinha os que fazem parte do contexto social

econocircmico cultural e religioso assim contribuem para fortalecer as identidades

desses sujeitos Ao agir desta maneira o professor rompe com a diferenccedila colonial e

faz emergir a gnose liminar ao criar espaccedilo na sua praacutetica pedagoacutegica para a razatildeo

subalterna dialogar com a hegemocircnica sem hierarquia

No planejamento tambeacutem se definem os objetivos e os procedimentos

metodoloacutegicos para alcanccedilaacute-los bem como os recursos humanos e materiais que

seratildeo necessaacuterios para um melhor ensino e aprendizagem A seguir abordamos o

desenvolvimento do plano elaborado pelos professores que se materializa nas

metodologias de ensino

185

424 Metodologias de Ensino e Aprendizagem

A metodologia consiste no estudo dos meacutetodos ou seja dos caminhos e accedilotildees

que seratildeo adotados para alcanccedilar os objetivos finalidades ou metas Na educaccedilatildeo

as metodologias abarcam os meacutetodos procedimentos e teacutecnicas de ensino

selecionados pelo professor com o objetivo de facilitar a aprendizagem dos alunos

Desta forma diante da multiplicidade de meacutetodos a escolha dependeraacute dos objetivos

que se pretende alcanccedilar levando em consideraccedilatildeo as especificidades socioculturais

dos educandos No meacutetodo tambeacutem estatildeo impliacutecitos concepccedilotildees de educaccedilatildeo

relacionadas com uma visatildeo ingecircnua ou criacutetica da sociedade assim podemos utilizar

determinado meacutetodo para a permanecircncia ou para a transformaccedilatildeo social

Nesta perspectiva os meacutetodos segundo Martins (2006) estatildeo imbricados por

concepccedilotildees pedagoacutegicas que balizam as praacuteticas docentes que poderatildeo estar

embasadas na reproduccedilatildeo do conhecimento no qual o professor eacute visto como o dono

da verdade o uacutenico detentor do saber que tem como missatildeo ensinar aos alunos o

conhecimento dogmaacutetico que de forma passiva assimila-os numa relaccedilatildeo professor

e aluno verticalizada A realidade social eacute idealizada como imutaacutevel e estaacutetica assim

a educaccedilatildeo tem como finalidade adequar o indiviacuteduo a esta sociedade sem questionaacute-

la

As concepccedilotildees pedagoacutegicas que balizam as praacuteticas docentes tambeacutem podem

estar embasadas em um meacutetodo dialoacutegico no qual o conhecimento eacute problematizado

a partir dos saberes dos alunos e relacionados com a sua realidade histoacuterica cultural

econocircmica e poliacutetica Desta maneira a educaccedilatildeo problematiza a sociedade e

desmistifica as relaccedilotildees de poder e dominaccedilatildeo

Nas accedilotildees didaacuteticas o meacutetodo se desenvolve por meio das teacutecnicas que satildeo

ldquoinstacircncias intermediaacuterias os componentes operacionais de cada proposta

metodoloacutegica os quais viabilizaratildeo a implementaccedilatildeo do meacutetodo em situaccedilotildees

concretasrdquo (MARTINS 2006 p 41) Destarte as teacutecnicas de ensino consistem no

desenvolvimento do meacutetodo nos diversos espaccedilos de aprendizagem Luckesi (2003

p 153) esclarece nitidamente a relaccedilatildeo entre meacutetodo e teacutecnicas

Por exemplo o meacutetodo expositivo que eacute o meio pelo qual levamos ao educando os conhecimentos jaacute elaborados pode ser executado atraveacutes de vaacuterias teacutecnicas exposiccedilatildeo oral pelo professor exposiccedilatildeo escrita atraveacutes de um texto demonstraccedilatildeo de como proceder agrave execuccedilatildeo de uma experiecircncia em laboratoacuterio apresentaccedilatildeo de um exemplo a ser imitado etc

186

Assim o desenvolvimento de um meacutetodo pode abarcar vaacuterias teacutecnicas Temos

que ter consciecircncia de que natildeo existe neutralidade no processo de escolha do meacutetodo

e das teacutecnicas de ensino pois os selecionamos de acordo com nossas concepccedilotildees

de ser humano e sociedade que por sua vez estatildeo relacionados aos interesses de

classe em razatildeo de que o meacutetodo estaacute ligado a concepccedilotildees epistemoloacutegicas

atreladas a visotildees de mundo Desta maneira a utilizaccedilatildeo de um meacutetodo e das teacutecnicas

para o seu desenvolvimento estaacute imbricada pela concepccedilatildeo de educaccedilatildeo de ensino

e de aprendizagem que norteia a nossa praacutetica docente Isso significa que podemos

usaacute-los para transmitir conteuacutedos ou para problematizar desafiar provocar reflexotildees

e anaacutelises sobre determinado assunto

4241 Professores que desenvolveram praacuteticas colonizadoras78

As praacuteticas metodoloacutegicas colonizadoras foram agrave concretizaccedilatildeo do

planejamento baseado nesta mesma perspectiva Assim as metodologias

desenvolvidas pelos professores consistiram em um conjunto padronizado de

procedimentos destinados a transmissatildeo do conhecimento escolar Eacute o que Freire

(2014 p 79) denomina de pedagogia bancaacuteria baseada na

[] narraccedilatildeo de conteuacutedos que por isto mesmo tendem a petrificar-se ou a fazer-se algo quase morto sejam valores ou dimensotildees concretas da realidade Narraccedilatildeo ou dissertaccedilatildeo que implica um sujeito ndash o narrador ndash e objetos pacientes ouvintes ndash os educandos

O autoritarismo de quem deteacutem o conhecimento define o que os educandos

devem fazer e responder eles natildeo satildeo instigados a pensar porque as respostas jaacute

estatildeo preacute-determinadas o professor eacute o narrador do conhecimento escolar natildeo eacute

permitido realizar criacuteticas assim como natildeo se deve questionar e nem duvidar do que

eacute narrado A educaccedilatildeo nesse prisma ldquoeacute puro treino eacute pura transferecircncia de conteuacutedo

eacute quase adestramento eacute puro exerciacutecio de adaptaccedilatildeo ao mundordquo (FREIRE 2014 p

81)

Por meio das entrevistas e observaccedilotildees da praacutetica docente destacamos as

praacuteticas metodoloacutegicas que consideramos colonizadoras Estas praacuteticas estatildeo

intimamente relacionadas com a organizaccedilatildeo do espaccedilo da sala de aula que tem no

quadro (branco ou verde) a sua referecircncia conforme fotografia a baixo

Fotografia 47 ndash Sala de aula multisseriada

78 Como afirmamos nas praacuteticas colonizadoras de planejamento encontramos no trabalho do mesmo professor praacuteticas metodoloacutegicas colonizadoras e tambeacutem descolonizadoras Nesta seccedilatildeo destacamos as praacuteticas que prevaleceram na accedilatildeo pedagoacutegica docente no decorrer da pesquisa de campo

187

Fonte Edielso M M de Almeida 2016

Na fotografia acima temos uma sala de aula multisseriada com alunos do 4ordm e

5ordm ano do ensino fundamental sendo que os trecircs alunos do 5ordm ano estatildeo sentados do

lado direito do quadro no qual constam as atividades copiadas pela professora Os

quatro alunos do 4ordm ano estatildeo sentados agrave esquerda do quadro com suas atividades

correspondentes Observe que o quadro estaacute dividido ao meio com os conteuacutedos

especiacuteficos O motivo desta organizaccedilatildeo de acordo com os professores eacute para

facilitar a coacutepia dos conteuacutedos e das atividades transcritas no quadro A organizaccedilatildeo

da classe eacute feita de acordo com o ano em que se encontram os alunos

Organizo a turma por ano coloco os alunos do preacute-escolar na frente porque satildeo menores entatildeo eles natildeo empatam a visatildeo do quadro para os do 1ordm ano que sentam atraacutes pois satildeo crianccedilas maiores os do 2ordm ano sentam do outro lado do quadro (Prof 5) Aqui na sala tem dois quadros entatildeo eu divido a turma de acordo com os quadros O maior quadro eu reparto ao meio aiacute fica um lado para o 1ordm 2ordm e outro para o 3ordm ano e o quadro menor eu divido tambeacutem ao meio sendo uma parte para o 4ordm e a outra para o 5ordm ano (Prof 9)

O paradigma da seriaccedilatildeo portanto eacute a base da organizaccedilatildeo dos alunos e o

quadro corresponde ao espaccedilo que eles ocuparatildeo na sala de aula Em termos

metodoloacutegicos o que prevalece eacute o meacutetodo expositivo por meio da teacutecnica da

exposiccedilatildeo oral dos conteuacutedos Nesse processo os alunos satildeo meros espectadores

receptores do conhecimento de acordo com as disciplinas que compotildeem a matriz

curricular Os passos das aulas satildeo o professor copia o assunto no quadro apoacutes

188

todos os alunos copiarem o conteuacutedo ele apaga o quadro para copiar os exerciacutecios

para verificaccedilatildeo da aprendizagem Apoacutes os alunos terem copiado o conteuacutedo e o

exerciacutecio o professor explica o conteuacutedo e como o exerciacutecio deveraacute ser realizado

Como moro na escola vou para a sala de aula antes dos alunos chegarem aproveito para dividir o quadro de acordo com os anos e copio logo os conteuacutedos da aula para cada ano Isso agiliza o trabalho e quando os alunos chegam na escola eles jaacute tem atividade pra fazer eacute soacute sentar na fila de seu ano e copiar(Prof 3) Copio os conteuacutedos no quadro passo o exerciacutecio quando eles terminam de copiar explico o assunto e tiro duacutevidas sobre as questotildees do exerciacutecio Os que terminam logo o trabalho peccedilo pra ajudar os que estatildeo com dificuldades trabalho com o preacute-escolar e os cinco anos do ensino fundamental Os melhores alunos me ajudam com os outros (Prof 9)

A organizaccedilatildeo do espaccedilo da sala de aula inviabiliza o diaacutelogo pois o professor

monopoliza a palavra natildeo abrindo espaccedilo para que os alunos possam ter o direito de

exercecirc-lo Nesse sentido para Freire (2014 p 81) natildeo eacute possiacutevel o diaacutelogo ldquoentre os

que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste

direito Eacute preciso primeiro que os que assim se encontram negados no direito

primordial de dizer a palavra reconquistem esse direito proibindo que este assalto

desumanizante continuerdquo

Pela aula expositiva eacute imposto o saber hegemocircnico como verdade absoluta e

a uacutenica maneira de compreender e explicar o mundo Natildeo haacute o diaacutelogo entre os

saberes porque natildeo interessa para o professor os saberes que os alunos trazem do

seu meio sociocultural o que importa satildeo os conteuacutedos transmitidos

mecanicamentedivididos em disciplinas especiacuteficas para cada campo do

conhecimento e esses por sua vez satildeo subdivididos nos cinco anos do ensino

fundamental assim fica evidente a colonialidade do saber Esta forma de organizaccedilatildeo

eacute exclusivamente temporal pois fica estabelecido que determinados conteuacutedos

devam ser aprendidos indistintamente por todos os alunos em um tempo

predeterminado Hage (2004 p 3) ao fazer uma anaacutelise do modelo de organizaccedilatildeo

multisseriada afirma que

[] se pauta por uma loacutegica lsquotransmissivarsquo que organiza todos os tempos e espaccedilos dos professores e dos alunos em torno dos ldquoconteuacutedosrdquo a serem transmitidos e aprendidos transformando os conteuacutedos no eixo vertebrador da organizaccedilatildeo dos graus seacuteries disciplinas grades avaliaccedilotildees recuperaccedilotildees aprovaccedilotildees ou reprovaccedilotildees (grifo do autor)

A organizaccedilatildeo dos alunos por ano impossibilita a interaccedilatildeo com os colegas dos

outros anos apesar de ser uma turma multisseriada na praacutetica satildeo trecircs quatro ou

189

cinco turmas dividindo o mesmo espaccedilo O conteuacutedo eacute o eixo vertebrador como nos

diz o autor dessa divisatildeo e transmitido de forma alienada descontextualizada das

atividades produtivas sociais e culturais dos educandos Dessa maneira o mundo

que eacute um arco-iacuteris policromaacutetico (SANTOS 2007) repleto de uma diversidade

cognitiva eacute reduzido agrave epistemologia hegemocircnica sustentada pela razatildeo indolente A

negaccedilatildeo da complexidade da accedilatildeo educativa e da aprendizagem caracteriza esta

visatildeo racionalista de educaccedilatildeo na qual o uacutenico conhecimento vaacutelido eacute o que passa

pelos rigores do meacutetodo cientiacutefico e atende aos interesses dominantes

Aleacutem do quadro outro recurso bastante utilizado para ministrar as aulas eacute o

livro didaacutetico

Uso o livro todos os dias como leciono pro 3ordm 4ordm e 5ordm ano e soacute tem um quadro na sala peccedilo para os alunos do 5ordm ano irem lendo e copiando o assunto que estaacute no livro enquanto copio o conteuacutedo no quadro para o 3ordm e 4ordm ano com o livro didaacutetico consigo desenvolver o planejamento que faccedilo para trabalhar os conteuacutedos diariamente (Prof 5) Todos os alunos tecircm o livro eu natildeo deixo eles levarem pra casa soacute levam quando passo dever de casa porque eles podem esquecer de trazer pra aula e aiacute complica Vai ficar difiacutecil trabalhar sem o livro entatildeo fica aqui mesmo na sala de aula (Prof 1) Quando todos entram na sala cada um senta na fila do seu ano em seguida faccedilo a chamada e peccedilo para pegarem o livro da mateacuteria que vamos estudar no dia de acordo com o planejamento No dia da leitura eles escolhem um texto do livro fazem a coacutepia no caderno depois os chamo ateacute a minha mesa para fazerem a leitura oral do texto escolhido (Prof 7)

Pela fala dos professores as metodologias satildeo direcionadas de acordo com o

livro didaacutetico As aulas satildeo desenvolvidas seguindo os seus passos primeiro o aluno

faz a leitura do assunto posteriormente copia-o no caderno juntamente com o

exerciacutecio para em seguida resolvecirc-lo O receio de que os alunos esqueccedilam o livro

em casa faz com que ele fique guardado na escola o que denota a dependecircncia da

praacutetica pedagoacutegica docente em relaccedilatildeo a esta ferramenta

Esses procedimentos denotam uma metodologia colonizadora na qual o

conhecimento escolar por meio do livro didaacutetico eacute inculcado nas mentes dos alunos

e dessa formaconstroacuteem subjetividades identidades imaginaacuterios sociais

sentimentos atitudes visotildees de mundo e maneiras de intervir em cada contexto A

imposiccedilatildeo de somente uma maneira de ler e explicar o mundo a cientiacutefica eacute uma

forma de colonizaccedilatildeo das mentes que menospreza outras racionalidades e razotildees

que natildeo seja a dominante

190

Nessa perspectiva os alunos satildeo meros receptoresconsumidores do

conhecimento oficial difundido como universal Diante disso o espaccedilo fiacutesico (a ilha do

Accedilaiacute) eacute descontextualizado em nome da suposta universalidade contida no processo

de produccedilatildeo de conhecimentos Daiacute a importacircncia em entender que o espaccedilo

geograacutefico em que atuamos como educadores natildeo eacute somente um espaccedilo fiacutesico e sim

poliacutetico tambeacutem

Segundo Mignolo (2000) o conhecimento traz consigo valores condizentes

com as caracteriacutesticas do contexto no qual eacute gerado por isso eacute marcado geo-

historicamente Essa produccedilatildeo eacute permeada por valores princiacutepios eacuteticos e morais

compreensotildees de ser humano de sociedade e de natureza eacute a partir deles que

passamos a elaborar nossas representaccedilotildees da realidade na qual vivemos De acordo

com a praacutetica pedagoacutegica colonizadora dos professores caracterizada pela

colonialidade do saber a representaccedilatildeo da realidade na qual vivem os alunos

ribeirinhos eacute feita a partir do conhecimento hegemocircnico assim como os valores eacuteticos

e morais

Em relaccedilatildeo a esses valores nas observaccedilotildees realizadas em sala de aula notei

algumas situaccedilotildees em que a linguagem falada no cotidiano pelos alunos foi taxada

como inferior em comparaccedilatildeo com a linguagem erudita A situaccedilatildeo foi a seguinte o

professor fez a chamada e perguntou por que um determinado aluno faltou trecircs dias

seguidos na escola O referido aluno respondeu dizendo que ldquotresontonte natildeo veio

porque estava ajudando o pai a tirar accedilaiacute e doisontonte porque estava com dor de

barrigardquo E o professor retrucou

Natildeo existe tresontonte e nem doisontonte e sim trecircs dias atraacutes e dois dias atraacutes natildeo sei de onde vocecircs tiram essas palavras esquisitas e feias repita comigo a forma certa de falar (o aluno repetiu em voz alta) e escreva no seu caderno pra natildeo esquecer natildeo quero mais ouvir vocecircs falando assim(Prof 8)

No horaacuterio do intervalo fui conversar com o professor sobre a questatildeo da

linguagem Ele respondeu que ainda eacute um dos maiores problemas que encontra pois

ensina a forma correta de falar nas aulas soacute que quando chegam em casa os alunos

esquecem e falam da mesma forma que seus pais e irmatildeos como passam pouco

tempo na escola e mais tempo com a famiacutelia e as pessoas da comunidade voltam a

falar ldquoerradordquo

Para Santos (2007) essa visatildeo monocultural eacute produzida pela razatildeo indolente

que naturaliza as diferenccedilas e hierarquiza a populaccedilatildeo como fez o professor ldquogente

191

que natildeo sabe falar direito fala tudo errado e usa uma linguagem chulardquo Os ribeirinhos

desta maneira satildeo inferiores porque falam diferente da linguagem culta Desta

maneira as diferenccedilas satildeo veladas e naturalizadas a partir de uma escala baseada

na inferiorizaccedilatildeo do que difere do padratildeo dominante

Segundo Calvet (2000) as liacutenguas natildeo existem sem as pessoas que as falam

e a histoacuteria de uma liacutengua eacute a histoacuteria de seus falantes Desta maneira a liacutengua tem

um papel preponderante na construccedilatildeo das identidades dos sujeitos identificando-os

geograficamente e tambeacutem culturalmente Sendo assim as liacutenguas natildeo satildeo

uniformes mas variaacuteveis dinacircmicas e muacuteltiplas Natildeo haacute somente uma forma

delinguagem existem outras variaccedilotildees faladas pelos sujeitos que quando satildeo

oprimidos tecircm seu jeito de falar subalternizado inferiorizado natildeo reconhecido como

forma de expressatildeo da realidade por isso a educaccedilatildeo colonizadora as nega e

determina a linguagem dominante como a oficial

As falas silenciadas oprimidas e negadas precisam ser reconhecidas na

sociedade e principalmente na instituiccedilatildeo escolar como mais uma variaccedilatildeo da nossa

liacutengua portuguesa vista natildeo mais como errada feia e chula como disseram alguns

docentes entrevistados O processo educacional formal assim conduzido faz com que

os alunos ribeirinhos tenham vergonha da proacutepria linguagem e para sobreviver na

escola tenham que reaprender a falar de acordo com a liacutengua dominante considerada

correta culta e hegemocircnica

Para Bagno (2004) a abordagem referente agrave variaccedilatildeo linguiacutestica abrange

questotildees culturais sociais poliacuteticas e econocircmicas e requer de noacutes professores uma

nova postura diante de uma concepccedilatildeo de liacutengua uma vez que o assunto diz respeito

agrave luta por uma educaccedilatildeo mais justa capaz de favorecer aos que precisam ter acesso

agrave comunicaccedilatildeo para transformar a sua realidade social sentindo-se mais letrados e

menos excluiacutedos

4242 Professores que desenvolveram praacuteticas descolonizadoras

Segundo Santos (2002) as accedilotildees descolonizadoras estatildeo fundamentadas nas

praacuteticas e discursos que objetivam mostrar as visotildees do colonizado sobre as

narrativas escritas pelo colonizador desta maneira essas narrativas satildeo

paulatinamente desconstruiacutedas pelos colonizados O processo de desconstruccedilatildeo

dar-se-ia pela sociologia das ausecircncias por meio da qual tornamos presente o que

estaacute ausente Na pesquisa de campo observamos algumas praacuteticas que

192

consideramos descolonizadoras nas quais por meio de metodologias dialoacutegicas

educador e educandos problematizaram o contexto no qual vivem

Iniciamos com a narrativa de uma aula de Artes do Prof 2 que trabalha com

alunos do preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano na qual discutiram e vivenciaram o conteuacutedo ldquoos

elementos plaacutesticos visuais cores formas e linhasrdquo

Professor a aula de Arte hoje vai ser sobre tecelagem e o seu Joseacute estaacute aqui na sala pra nos ensinar algumas teacutecnicas que ele utiliza para tecer o matapi Nesse momento um dos alunos faz uma pergunta Aluno mas o seu Joseacute eacute o avocirc do Manoel o que ele tem pra ensinar pra gente aqui na escola Professor O seu Joseacute jaacute trabalha haacute muitos anos fazendo matapi e paneiro entatildeo ele tem muito a nos ensinar quase todos aqui na sala devem ter alguns desses utensiacutelios nas suas casas feitos por ele Joseacute obrigado professor pela oportunidade de poder dividi com o senhor e com essas crianccedilas que vi nascer aqui na vila o que eu sei sobre o matapi Nesse momento o professor pede para que os alunos levantem de suas cadeiras deem as matildeos para formar um circulo seu Joseacute fica no meio do circulo todos sentados e uma aluna faz uma pergunta Aluna mas antes de comeccedilar agente precisa desenhar como vai ser o matapi neacute Joseacute bem eu natildeo desenho porque jaacute tenho na cabeccedila como vai ser e como vou fazer satildeo muitos anos tecendo matapi Mas se vocecircs quiserem desenhar Professor vamos primeiro prestar atenccedilatildeo para aprender a fazer o matapi depois quem quiser desenha como vai fazer quem quiser anotar tambeacutem pode ficar agrave vontade O professor daacute a palavra ao seu Joseacute que pega as talas de jupati o cipoacute titicaa faca e comeccedila explicar aos alunos como retirar a tala para fazer o matapi Joseacute a gente tira a tala raspa direitinho com a faca e coloca pra secar tem que taacute bem seca pra natildeo empenar depois Quando tiver bem seca agente comeccedila a tecer tem que cortar as talas de acordo com o tamanho do matapi depois agente amarra as talas com o cipoacute titica e vai tecendo tala por tala E vai demonstrando como tecer as talas e dando formato ao matapi Joseacute a boca do matapi a gente deixa por uacuteltimo depois que vocecirc tecer o corpo do matapi aiacute agente tece a boca fora do corpo depois agente junta os dois e amarra com o cipoacute Ele vai demonstrando passo a passo as formas de tecer ateacute chegar ao matapi pronto Professor agora eacute a vez de vocecircs tecerem o matapi Formem grupos com os colegas peguem o material e cada grupo vai tecer um matapi E o seu Joseacute vai acompanhar e tirar as duacutevidas de vocecircs E os alunos formaram grupo com colegas de outros anos

No final da aula todos os grupos apresentaram o matapi que confeccionaram

e as dificuldades que encontraram para fazecirc-lo Durante cada apresentaccedilatildeo o

professor foi destacando os elementos plaacutesticos visuais cores formas linhas dentre

193

outros que fizeram parte da obra construiacuteda Para finalizar a aula o professor

agradeceu ao seu Joseacute por ter ensinado os alunos e a ele tambeacutem como tecer o

matapi

A valorizaccedilatildeo do saber popular por meio da tecelagem do matapi instrumento

fundamental para a captura do camaratildeo foi o cerne da aula O diaacutelogo entre o

conhecimento popular e o escolar ocorreu de forma horizontal O professor a partir

do matapi confeccionado pelos alunos sobre a orientaccedilatildeo do seu Joseacute abordou o

conteuacutedo ldquoos elementos plaacutesticos visuais cores formas linhas dentre outrosrdquo tendo

como objeto de anaacutelise a arte de um artesatildeo da comunidade Ao mesmo tempo houve

o reconhecimento do saber local e da pessoa portadora desse saber que atuou como

mediador atraveacutes da socializaccedilatildeo junto aos alunos que precisam deste saber para

garantir sua permanecircncia e sobrevivecircncia na ilha do Accedilaiacute poiso matapi eacute uma das

ferramentas utilizadas nas atividades produtivas

Outro ponto importante a ser destacado foi a organizaccedilatildeo do espaccedilo da sala

de aula os alunos natildeo foram organizados por ano tiveram a liberdade na escolha dos

colegas para formar os grupos Nesse momento prevaleceu a turma unida para juntos

encararem um desafio que consistia em tecer um matapi

O professor natildeo foi o transmissor de conhecimentos nem o centro das

atenccedilotildees ao contraacuterio foi um aprendiz que junto com os seus alunos aprendeu a

tecer o matapi ensinado por um membro da comunidade ribeirinha que detinha esse

saber o que prova que natildeo haacute saber maior ou menor o que existe satildeo saberes

diferentes (FREIRE 2014) E a arte enquanto expressatildeo da vida esteve nessa aula

associada ao processo de criaccedilatildeo e a construccedilatildeo do conhecimento se efetivou na

relaccedilatildeo entre o esteacutetico e o artiacutestico materializada nas representaccedilotildees artiacutesticas

locais Como afirma Freire (2014 p 39)

Desta maneira o educador jaacute natildeo eacute o que apenas educa mas o que enquanto educa eacute educado em diaacutelogo com o educando que ao ser educado tambeacutem educa Ambos assim se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os ldquoargumentos de autoridaderdquo jaacute natildeo valem Em que para ser-se funcionalmente autoridade se necessita de estar sendo com as liberdades e natildeo contra elas

Liberdade para abrir espaccedilo em sua praacutetica enquanto educador para o saber

popular que dentro deste contexto eacute o mais importante para os sujeitos envolvidos

na praacutexis educativa Na ecologia de saberes Santos (2000) fala do criteacuterio de utilidade

do saber como fator de preponderacircncia Neste caso a hierarquia entre eles daacute-se pelo

criteacuterio de intervenccedilatildeo no mundo Quem sabe tecer o matapi eacute o seu Joseacute este

194

conhecimento natildeo estaacute no livro didaacutetico e nem o professor eacute conhecedor deste saber

Os alunos precisam se apropriar desse saber enquanto sujeitos ribeirinhos pois a

pesca do camaratildeo eacute uma das formas de subsistecircncia ao mesmo tempo sentem-se

valorizados enquanto sujeitos possuidores de um saber considerado importante pela

escola

A aula foi repleta do pensamento liminar por meio do reconhecimento e

visibilidade do saber da comunidade que teve como protagonista um intelectual que

construiu todo um arcabouccedilo praacutetico e teoacuterico pois toda praacutetica estaacute embasada numa

determinada teoria durante sua experiecircncia enquanto ribeirinho

Outra praacutetica pedagoacutegica em que houve o diaacutelogo entre os saberes foi

desenvolvida pela Prof 4 na aula de Ciecircncias que eacute uma turma multisseriada com

alunos do 3ordm 4ordm e 5ordm ano

Professora hoje vamos estudar sobre os alimentos peguem o livro de Ciecircncias e abram na paacutegina 140 Joatildeo79 leia o primeiro paraacutegrafo e em seguida escolha um colega para ler o paraacutegrafo seguinte e assim sucessivamente Apoacutes a leitura a professora explicou o assunto ldquoalimentaccedilatildeo adequadardquo de acordo como estava no livro Em seguida pediu para que os alunos independente do ano escrevessem o que geralmente comem durante o dia desde o cafeacute da manhatilde ateacute o jantar Apoacutes a resoluccedilatildeo da tarefa foi feita a socializaccedilatildeo da seguinte maneira Professora agora vocecircs vatildeo ler o que escreveram quem quer comeccedilar Maria professora ontem pela manhatilde tomei cafeacute com bolacha no almoccedilo comi accedilaiacute com peixe e camaratildeo no jantar accedilaiacute com peixe de novo Benedito de manhatilde cafeacute com leite rosca e cacetinho almocei accedilaiacute com galinha frita e na janta tomei accedilaiacute com peixe assado Pedro tomo cafeacute com bolacha almoccedilo accedilaiacute com peixe frito e camaratildeo janto accedilaiacute com o que sobrou do almoccedilo Mario gosto de accedilaiacute pela manhatilde no almoccedilo tambeacutem accedilaiacute com charque frito ou peixe na janta o que sobra do almoccedilo Francisco professora eu como o que os colegas jaacute falaram Joaquina eu tambeacutem professora Bernardo aleacutem do accedilaiacute e do peixe gosto de comer paca cutia e tatu no almoccedilo e na janta Alfredo como o que os colegas jaacute falaram Mariana no almoccedilo comi jacareacute com accedilaiacute ontem e na janta tambeacutem

Os alimentos consumidos diariamente pelos alunos satildeo o accedilaiacute peixe e o

camaratildeo Todos tomam o cafeacute com bolacha rosca ou cacetinho porque satildeo alimentos

que natildeo precisam ser conservados em geladeiras e tem extenso prazo de validade

Esporadicamente consomem caccedila como a cutia paca tatu ou jacareacute que satildeo raros

79 O nome dos alunos eacute fictiacutecio para preservar o anonimato

195

encontraacute-los na mata O peixe e o camaratildeo satildeo os mais consumidos devido serem

pescados nos rios e o accedilaiacute eacute a base econocircmicae nos meses de janeiro a julho

encontrado em abundacircncia na Ilha

O conteuacutedo do livro didaacutetico apresenta a alimentaccedilatildeo adequada que inclui os

alimentos energeacuteticos reguladores e os construtores que devem ser consumidos

diariamente Apoacutes a exposiccedilatildeo dos haacutebitos alimentares dos alunos a professora deu

os seguintes encaminhamentos

Professora agora que jaacute fizeram o levantamento dos seus haacutebitos alimentares vocecircs vatildeo classificar o que comem diariamente na tabela que estaacute no livro De um lado iratildeo escrever os alimentos energeacuteticos no meio os reguladores e no final os construtores Apoacutes a resoluccedilatildeo desta atividade foi feita a discussatildeo Professora Agora vamos apresentar as tabelas que vocecircs preencheram(apoacutes a apresentaccedilatildeo os alunos fizeram questionamentos) Maria professora eu coloquei o accedilaiacute como regulador mas o Bernardo colocou como energeacutetico o Joatildeo como construtor e agora No livro natildeo tem o accedilaiacute soacute tem o peixe Professora bem pra tirar essa duacutevida vamos ter que pesquisar Mas me falem como vocecircs se sentem quando tomam o accedilaiacute Alfredo eu me sinto forte o accedilaiacute me daacute sustacircncia por isso acho que ele eacute energeacutetico Joaquina o accedilaiacute me daacute sono e preguiccedila Professora entatildeo vamos fazer uma pesquisa para conhecer melhor o accedilaiacute

Os alunos comeccedilaram a sugerir o que gostariam de saber sobre o accedilaiacute e juntos

com a professora foram definindo os passos para a pesquisa Como no livro didaacutetico

natildeo tinha nenhuma informaccedilatildeo referente ao produto entatildeo ficou definido que se faria

uma pesquisa com os moradores da Vila E assim foram elaboradas as seguintes

questotildees de acordo com a curiosidade dos alunos a) por que vocecirc toma accedilaiacute todo

dia b) o accedilaiacute lhe daacute preguiccedila ou te deixa esperto pra trabalhar c) vocecirc toma accedilaiacute

acompanhado de que d) quem apanha o accedilaiacute na sua casa e) quantos paneiros de

accedilaiacute vocecircs colhem por dia f) vocecircs vendem o accedilaiacute para o marreteiro ou vendem

direto para o consumidor em Macapaacute

Este trabalho foi realizado por todos os alunos da turma que foram organizados

em dupla para fazer as entrevistas juntos aos moradores Na semana seguinte os

alunos trouxeram os dados coletados e apresentaram na sala Durante as

apresentaccedilotildees ocorreram as discussotildees

De acordo com a pesquisa feita o accedilaiacute eacute consumido diariamente por todos os

moradores da Vila acompanhado de peixe frango ou charque frito e camaratildeo a meacutedia

196

de paneiros diaacuterios colhidos de accedilaiacute foi de 20 quase a metade dos moradores

vendem o accedilaiacute para o marreteiro80 o que demonstra a exploraccedilatildeo da qual eacute viacutetima o

ribeirinho que natildeo tendo condiccedilotildees de vender o produto do seu trabalho na cidade eacute

obrigado a vendecirc-lo para o atravessador a preccedilos irrisoacuterios A ausecircncia de poliacuteticas

puacuteblicas para os sujeitos do campo na Amazocircnia os deixa nas matildeos dos

atravessadores pois eacute a uacutenica alternativa que eles tecircm de vender o que produzem

A fala de um aluno na apresentaccedilatildeo da pesquisa retrata essa situaccedilatildeo de

dependecircncia ldquonoacutes natildeo temos barco pra levar o accedilaiacute e vender em Macapaacute professora

entatildeo o papai tem que vender pro marreteiro aqui cada paneiro eacute vendido por R$

1000 em Macapaacute o marreteiro vende a R$ 2000rdquo A professora perguntou aos

alunos como essa realidade poderia ser mudada

Maria acho que se agente conseguisse vender o accedilaiacute em Macapaacute agente ganharia mais dinheiro e poderia comprar um barco que serviria para transportar o accedilaiacute sem precisar do marreteiro Alfredo aqui na Vila tem alguns moradores que tem barco entatildeo agente poderia se unir pra ajudar uns aos outros Joaquina professora aqui cada um olha soacute pro seu umbigo natildeo estatildeo nem aiacute pros outros Noacutes natildeo somos unidos acho difiacutecil fazerem o que o Alfredo taacute dizendo Mario Na vila do Cajueiro eles criaram uma cooperativa de coletores do accedilaiacute laacute eles entregam o accedilaiacute na cooperativa que leva pra vender na cidade e desconta 10 de cada saca vendida dos cooperados Francisco jaacute que com quatro paneiros agente tem uma saca de accedilaiacute entatildeo a saca sai a R$ 8000 e 10 de 80 daacute R$ 800 um valor muito menor do que R$ 4000 que eacute o dinheiro que agente perde vendendo pro marreteiro Entatildeo a cooperativa seria a nossa soluccedilatildeo professora

Pela palavra os alunos pronunciaram o mundo no qual vivem os ribeirinhos

que historicamente foram viacutetimas da exploraccedilatildeo do seu trabalho e provocados a

refletir sobre essa exploraccedilatildeo e vislumbrarem as possiacuteveis alternativas de libertaccedilatildeo

assim foi identificado o problema buscou-se explicaccedilatildeo e as possiacuteveis soluccedilotildees pelo

diaacutelogo O ponto inicial foi a anaacutelise criacutetica e ao mesmo tempo reflexiva sobre a

realidade concreta vista como um problema que requer respostas A educaccedilatildeo nessa

perspectiva visa agrave libertaccedilatildeo da ignoracircncia da dependecircncia da submissatildeo e de

vaacuterios meios de opressatildeo (FREIRE 2014) Todavia natildeo podemos esquecer que

como agentes poliacuteticos teremos que lutar com esperanccedila por uma sociedade mais

justa e igualitaacuteria Isso requer para Santos (2009 p 19) um projeto educativo

emancipatoacuterio uma educaccedilatildeo para o inconformismo e a rebeldia amparada em ldquoum

80 Atravessador

197

tipo de subjetividade que submete a uma hermenecircutica de suspeita a repeticcedilatildeo do

presente que recusa a trivializaccedilatildeo do sofrimento e da opressatildeo []rdquo Educaccedilatildeo que foi aleacutem dos conteuacutedos sobre alimentaccedilatildeo contidos no livro

didaacutetico e que provocou nos alunos por meio da pesquisa a possibilidade de

aprenderem mais sobre seus proacuteprios haacutebitos alimentares e fazerem a relaccedilatildeo entre

o conhecimento escolar e o saber popular por meio da complementaccedilatildeo haja vista

que no livro natildeo havia informaccedilatildeo referente ao accedilaiacute

O diaacutelogo tambeacutem esteve permeando a praacutetica pedagoacutegica da Prof 6 que atua

com alunos do preacute-escolar 1ordm e 2ordm ano numa classe multisseriada O conteuacutedo do dia

foi ldquoo riordquo na aula de Geografia Como o assunto eacute o mesmo para o 1ordm e 2ordm ano a

professora fez somente um planejamento e incluiu as crianccedilas da preacute-escola

Professora crianccedilas hoje vamos estudar sobre os rios Respondam o que eacute um rio Acredito que minha presenccedila na sala deixou os alunos tiacutemidos Professor Natildeo estou ouvindo nada algueacutem quer falar alguma coisa sobre o rio Jorge o rio eacute onde tem muita aacutegua (aluno do 2ordm ano comeccedila a falar) Marta no rio moram os peixes e o camaratildeo professora Os alunos comeccedilam a rir da colega Joel eacute no rio que tomo banho pego aacutegua pra mamatildee fazer comida lavar a casa e a roupa suja Benedita no rio agente anda de rabeta casco e catraio tambeacutem Lucia no rio agente brinca de pira-matildee de pega pega e briga de galo Isaura No fundo do rio mora a Iara e o boto que quando agente estaacute menstruada natildeo podemos nadar tomar banho nem pegar aacutegua no rio por causa dele Marcos jaacute fui ferrado por arraia aqui na boca do rio perdi a mareacute e fiquei atolado aiacute tive que vim empurrando o casco e a arraia me pegou de jeito Luan professora a minha voacute mora noutra vila pra chegar ateacute laacute tem que varar por outro rio foi na varada que eu acabei me perdendo porque passa por um regono meio da mata e tambeacutem jaacute eraboca da noiteestava escuro e a minha sorte eacute que eu levei uma lanterna Vera professora eu coloco matapi na ilharga do rio com minha matildee ela sabe onde tem muito camaratildeo e sempre quando vamos tirar o matapi ele estaacute cheio de camaratildeo soacute do purrudo E a aula foi acontecendo com os relatos dos alunos Em seguida a professora explicou o assunto e fez a relaccedilatildeo com as falas dos alunos sobre suas experiecircncias com o rio

O conteuacutedo ldquoriordquo foi abordado a partir das experiecircncias e conhecimentos dos

alunos referente aos rios da ilha do Accedilaiacute O saber popular dialogou horizontalmente

com o conhecimento escolar palavras como ldquoboca do rio rio que vara por outro rio

rego ilharga do riordquo satildeo utilizadas para se referir a este majestoso universo das aacuteguas

repleto de seres encantados como a Iara e o Boto e do qual os ribeirinhos retiram seu

198

sustento (peixe camaratildeo) transitam para outros lugares como Macapaacute e Afuaacute visitam

parentes navegam para trabalhar e ir para a escola retiram aacutegua pra higiene pessoal

e domeacutestica fazer comida lavar roupa etc

O rio faz parte da vida dessas crianccedilas que estatildeo cotidianamente mergulhadas

em suas aacuteguas Ningueacutem conhece melhor os rios da Ilha do que os moradores deste

lugar por isso a professora nos disse que ldquoprocuro primeiro verificar o que eles sabem

sobre o assunto que vamos estudar entatildeo agente conversa faccedilo perguntas e deixo

eles agrave vontade para falar nas falas deles dizem o que sabem e eu vou dando cordardquo

O ldquodar cordardquo eacute garantir o direito agrave palavra condiccedilatildeo essencial para o diaacutelogo

O conteuacutedo de Geografia foi discutido a professora explicou os nomes

geograacuteficos das expressotildees utilizadas pelos alunos ao se referirem aos rios pois ldquoeles

precisam tambeacutem conhecer que existe outra forma de expressaacute-losrdquo (Prof 6) que satildeo

os conceitos geograacuteficos oriundos da ciecircncia e aceitos como universais Desta forma

a boca do rio eacute chamada pela ciecircncia de foz o rio que vara para o outro eacute oafluente

o regoeacute aconfluecircnciae a ilharga corresponde agravemargem do rio Nesse caso a

dialogicidade

[] natildeo nega a validade de momentos explicativos narrativos em que o professor expotildee ou fala do objeto O fundamental eacute que professor e alunos saibam que a postura deles do professor e dos alunos eacute dialoacutegica aberta curiosa indagadora e natildeo apassivada enquanto fala ou enquanto ouve (FREIRE 2014 p 86)

Corroborando com essa concepccedilatildeo Brandatildeo (2006) diz que o acesso ao saber

escolar tem uma importacircncia poliacutetica para as classes populares mas este saber

necessita estar articulado com o saber por ela produzido pois ldquoo respeito ao saber

popular implica necessariamente o respeito ao contexto culturalrdquo (FREIRE 1993 p

86) Para Mignolo (2000) eacute pelo conhecimento que passamos a elaborar nossas

representaccedilotildees da realidade na qual vivemos os ribeirinhos fazem essa

representaccedilatildeo a partir do conhecimento popular os que tecircm acesso a educaccedilatildeo

formal o fazem tambeacutem a partir do conhecimento escolar

Desta maneira foi por meio do diaacutelogo entre educador e educandos que os

falares dos ribeirinhos foi reconhecido como outra forma de expressatildeo da realidade

Na sala de aula o diaacutelogo desses saberes com o conhecimento validado pela ciecircncia

abre possibilidades para a leitura criacutetica de mundo Poreacutem isto postula como nos diz

Santos (2009) que a dialogicidade entre o saber popular e a ciecircncia elaborada esteja

alicerccedilada numa racionalidade hermenecircutica tendo no histoacuterico das escolhas feitas

199

no passado as respostas para as condiccedilotildees vividas no presente Assim se expressa

o referido autor

[] A reflexatildeo hermenecircutica visa transformar o distante em proacuteximo o estranho em familiar atraveacutes de um discurso racional [] orientado pelo desejo de diaacutelogo com o objeto de reflexatildeo para que ele ldquonos falerdquo numa liacutengua natildeo necessariamente a nossa mas que nos seja compreensiacutevel e nessa medida se nos torne relevante nos enriqueccedila e contribua para aumentar a autocomprensatildeo do nosso papel na construccedilatildeo da sociedade ou na expressatildeo cara agrave hermenecircutica do mundo da vida (Santos 1999 p15)

Desta maneira a histoacuteria passa a ser vista como possibilidadee natildeo como

determinismo E esta visatildeo natildeo seria possiacutevel sem o sonho da educaccedilatildeo como uma

praacutetica da liberdade partindo de uma pedagogia do oprimido como nos alerta

FreirePedagogia vivenciada pela professora e os alunos ribeirinhos numa perspectiva

intercultural que estabeleceu o diaacutelogo entre os diferentes saberesnesta praacutetica natildeo

houve conhecimento superior nem inferior e sim mais uma forma de expressatildeo

epistemoloacutegica sustentados pelo respeito e o reconhecimento de outras formas de

explicaccedilatildeo do mundo ou o que Walsh (2006) intitula de interculturalidade na qual a

comunicaccedilatildeo entre as culturaseacute baseada no ldquorespeito legitimidade simetria e

igualdaderdquo (idem p 11)

Nessa perspectiva a prof 6 trabalhou na disciplina Histoacuteria o conteuacutedo

ldquoHistoacuteria da Amazocircniardquo especificamente a histoacuteria da comunidade Furo dos Porcos

Professora o nosso assunto de hoje eacute a historia da Amazocircnia Noacutes moramos na comunidade Furo dos Porcos no municiacutepio de Afuaacute que pertence ao estado do Paraacute que faz parte da Amazocircnia Brasileira Jorge entatildeo professora noacutes vamos estudar a histoacuteria da nossa comunidade que fica na Amazocircnia neacute Professora bem natildeo foi exatamente isso que planejei mas eacute uma boa ideia ateacute porque a comunidade Furo dos Porcos faz parte da Amazocircnia como vocecirc disse Marta mas natildeo tem nada aqui no livro que fale sobre nossa comunidade professora como vamos estudar se natildeo tem no livro Professora vocecirc tem toda razatildeo mas noacutes podemos escrever a histoacuteria da nossa comunidade para isso vamos ter que verificar as primeiras famiacutelias que vieram morar aqui Joel professora quem criou essa vila foi meu bisavocirc que veio pra caacute quando casou com minha bisavoacute meu avocirc que conta essa histoacuteria Professora entatildeo vamos fazer um levantamento das primeiras pessoas que vieram morar aqui na comunidade Os alunos comeccedilaram a dizer o nome das pessoas mais velhas que moram na comunidade Em seguida a professora pediu para que formassem grupos para entrevistar essas pessoas Benedita mas o que vamos perguntar pra elas Professora o que vocecircs querem saber sobre a comunidade do Furo dos Porcos Lucia eu quero saber por que esse nome

200

Isaura i eu se aqui antes tinha mais animais na mata como macaco veado paca tatu e demais Luan eu quero saber por que as pessoas vieram pra caacute E assim os alunos foram falando sobre o que queriam saber sobre a histoacuteria da comunidade onde vivem

A aula partiu da curiosidade dos alunos referente ao local onde vivem a vila

Furo dos Porcos que pertence ao municiacutepio de Afuaacute localizada na Amazocircnia O

planejamento foi flexiacutevel a professora natildeo havia planejado esse conteuacutedo entatildeo

houve mudanccedilas no rumo da aula com a inclusatildeo de um assunto de interesse dos

educandos O reconhecimento por parte da professora da curiosidade dos

educandos em conhecer melhor o espaccedilo onde vivemconvivemsobrevivem foi

fundamental para o ecircxito da aula

A curiosidade como inquietaccedilatildeo indagadora como inclinaccedilatildeo ao desvelamento de algo como pergunta verbalizada ou natildeo como procura de esclarecimento como sinal de atenccedilatildeo que sugere alerta faz parte integrante do fenocircmeno vital (FREIRE 2014 p 32)

A curiosidade instigou os alunos a investigar a histoacuteria da Vila como natildeo estava

escrito no livro didaacutetico Entatildeo o jeito foi produzir esse conhecimento por meio da

pesquisa de campo Os sujeitos cognoscentes levantaram as questotildees que

despertavam sua curiosidade epistemoloacutegica e com base nelas foram em busca das

respostas junto aos moradores mais antigos do lugar ldquo[] quanto mais criticamente

se exerccedila a capacidade de aprender tanto mais se constroacutei e desenvolve o que venho

chamando curiosidade epistemoloacutegicardquo (FREIRE 2009 p27)

A curiosidade epistemoloacutegica parte do princiacutepio de que somos seres

inacabados que aprendemos na relaccedilatildeo com os outros mediatizados pelo mundo

Entretanto faz-se necessaacuterio o reconhecimento do outro como um ser que possui uma

gama de saberes e compreensatildeo da realidade soacute assim podemos nos permitir a

dialogar e aprendermos juntos Foi o que ocorreu entre os educandos e os moradores

mais antigos da comunidade do Furo dos Porcos

Ao propor o desafio contra a razatildeo indolente Santos (2002) destaca que

existem outros saberes chamados de alternativos com razotildees que os diferem do

hegemocircnico Assim natildeo podemos admitir que exista uma uacutenica epistemologia pois

haacute diversas formas de conhecimento dentre eles os relativos agrave histoacuteria contada pelos

moradores em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo da vila do Furo dos Porcos seus mitos lendas entre

outros

201

Assim o reconhecimento do saber popular dos moradores da Vila natildeo retira a

autoridade da professora por conseguinte ambos possuem saberes diferentes e no

diaacutelogo colocam algo em discussatildeo

Os professores natildeo satildeo iguais aos alunos por ldquonrdquo razotildees entre elas porque a diferenccedila entre eles os faz ser como estatildeo sendo [] O diaacutelogo tem significaccedilatildeo precisamente porque os sujeitos dialoacutegicos natildeo apenas conservam sua identidade mas a defendem e assim crescem um com o outro( FREIRE 2009 p 118)

Crescem na medida em que se predispotildeem a dialogar com humildade

reconhecendo o outro como um ser humano dotado de experiecircncias que podem

contribuir para esse crescimento emocional afetivo e cognitivo

Desta maneira rompe-se com a colonialidade do saber a partir do momento

em que outras epistemologias estatildeo sendo reconhecidas no caso os conhecimentos

dos idosos da vila tiradas da invisibilidade tomando-as visiacuteveis fazendo-as

emergirem eacute a sociologia da emergecircncia como propotildee Santos (2009)

A seguir outra praacutetica pedagoacutegica que observamos na qual o saber popular foi

visibilizado

Professora bom dia crianccedilas Alunos bom dia professora Todos cantaram a muacutesica de boas vindas Professora peguem a ficha com seus nomes e coloquem no nosso quadro de chamada jaacute sabem que tem que ser por ordem alfabeacutetica Os alunos foram um por um pegar as fichas com seus respectivos nomes que estavam na mesa da professora Professora pelo jeito soacute faltou o Raimundo algueacutem sabe me dizer qual o motivo da falta dele (Raimundo eacute aluno do preacute-escolar) Rafael professora ele natildeo veio porque taacute doente Professora doente de que Baacuterbara ele taacute com vomito e diarreia a matildee dele levou ele pro papai benzer ontem laacute em casa E o papai disse que ele taacute com quebranto Marta eu jaacute tive quebranto professora passei muito mal e foi o pai da Baacuterbara que me benzeu e eu fiquei boa Ele passou um chaacute que a mamatildee fez pra eu beber vaacuterias vezes no dia Pedro eu sei como se pega quebranto eacute quando uma pessoa agrada agente e essa pessoa taacute com fome ou chega suada da rua ai agente fica doente e soacute cura quando eacute benzido Cristiane eu jaacute fui flechada o bicho da mata flecha agente Isso acontece quando uma mulher menstruada sai de casa O papai disse que ela atrai os bichos pelo cheiro aiacute os bichos flecha agente aiacute agente fica doente com febre e dor de cabeccedila tem que ir pro benzedor tambeacutem Fabriacutecio professora meu irmatildeo tambeacutem jaacute foi flechado ele foi tomar banho no rio agrave noite e natildeo pediu permissatildeo pros encantados aiacute a Iara flechou ele

202

Fernando minha irmatilde quase foi encantada pelo boto professora Ela foi tomar banho no rio menstruada agrave noite o bicho foi visitar ela e o papai botou ele pra correr com o terccedilado Professora bem pelo jeito vocecircs tecircm muitas histoacuterias pra contar entatildeo vamos fazer o seguinte como hoje eacute nossa aula de Portuguecircs vocecircs vatildeo escrever essas histoacuterias Os alunos do preacute-escolar e do 1ordm ano desenham e os outros podem escrever desenhar ou dramatizar Apoacutes a resoluccedilatildeo desta atividade os alunos apresentaram na sala e a professora aproveitou as produccedilotildees textuais para trabalhar os conteuacutedos da gramaacutetica sinais de pontuaccedilatildeo tempos verbais substantivos entre outros

Acompanhei o desenvolvimento dessa aula e percebi o interesse e a dedicaccedilatildeo

dos alunos em escrever desenhar e falar sobre as histoacuterias que fazem parte do seu

cotidiano Tudo isso reflete a forma como eles veem leem e interpretam o mundo (as

doenccedilas os seres encantados o comportamento em relaccedilatildeo a esses seres para natildeo

ficarem doentes entre outros) A professora ao valorizar e reconhecer o significado

das crenccedilas nos seres encantados para a comunidade contribui para a construccedilatildeo

de uma educaccedilatildeo voltada para os povos da Amazocircnia ribeirinha Hage (2004 p 4)

chama a atenccedilatildeo para as consequecircncias da natildeo valorizaccedilatildeo da cultura amazocircnica

nas accedilotildees educativas

O conjunto de crenccedilas valores siacutembolos e conhecimentos das populaccedilotildees da Amazocircnia e seus padrotildees de referecircncia e sociabilidade que satildeo construiacutedos e reconstruiacutedos nas relaccedilotildees sociais no trabalho e na vivecircncia e convivecircncia nos espaccedilos sociais em que participam natildeo tecircm sido valorizados e incorporados nas accedilotildees educativas das classes multisseriadas constituindo-se num fator que produz o fracasso escolar

O fracasso escolar a que se refere o autor eacute produzido pelo natildeo reconhecimento

do saber popular como digno de fazer parte do curriacuteculo da escola ribeirinha por natildeo

passar pelos rigores da ciecircncia hegemocircnica Assim vai se produzindo o que Santos

(2007) chama de epistemiciacutedio o desaparecimento dos conhecimentos natildeo cientiacuteficos

que satildeo divergentes maneiras de se fazer ciecircncia Isso ocorre pela monocultura da

escala dominante que produz as ausecircncias do particular do local e torna universal o

conhecimento global

No entanto a praacutetica pedagoacutegica da professora fez o caminho oposto agrave razatildeo

indolente partiu da descolonizaccedilatildeo epistemoloacutegica dando vez e voz aos saberes dos

alunos as suas maneiras de explicar a realidade que permeiam a praacutetica social das

pessoas que vivem naquele lugar Eacute o que Santos (2008) denomina de ecologia que

se edifica na pluralidade e autonomia dos variados saberes Ao trabalhar os conteuacutedos

203

gramaticais a partir das produccedilotildees escritas e apresentadas pelos alunos a professora

estabeleceu o diaacutelogo entre esses dois tipos de conhecimento o popular e o escolar

porque os educandos fizeram uma nova leitura a partir dos conteuacutedos apreendidos

Esta praacutetica se constituiu numa gnose liminar pois deu visibilidade aos saberes

que historicamente foram subalternizados e no diaacutelogo com a epistemologia

hegemocircnica foram visibilizados Segundo Mignolo (2003) a gnose enquanto

pensamento fronteiriccedilo eacute o espaccedilo para os saberes locais se manifestarem e

garantirem seu reconhecimento Natildeo se afirma enquanto oposiccedilatildeo agrave ciecircncia mas atua

no tracircnsito entre fronteiras Dessa forma o pensamento liminar se tornou um

instrumento para a descolonizaccedilatildeo intelectual a presenccedila dos encantados para

explicar a realidade a cura das doenccedilas por meio do agente cultural (benzedor) e os

remeacutedios para a cura vindos da mata e das aacuteguas satildeo exemplos de formas de

existecircnciaresistecircncias em lugares onde o poder puacuteblico natildeo atua com poliacuteticas na

aacuterea da sauacutede Os remeacutedios indicados pelo benzedor fruto de sua experiecircncia de

vida satildeo saberes fronteiriccedilos pois existem e resistem apesar de todo avanccedilo da

ciecircncia farmacecircutica

Outra praacutetica pedagoacutegica que rompeu com a monocultura do tempo linear e

com a do produtivismo capitalista foi vivenciada com os alunos da prof 2 Nessa aula

o conteuacutedo foi as estaccedilotildees do ano Como amazocircnidas sabemos que soacute observamos

duas que satildeo o inverno e o veratildeo quando a professora apresentou o conteuacutedo os

alunos questionaram

Nelso professora aqui agente soacute vecirc a chuva no veratildeo e a quentura do inverno natildeo da pra ver a primavera nem o outono Pedro professora aqui na vila agente faz a derrubada da mata pra fazer roccedila no final do veratildeo ai agente espera secar a mata derrubada e toca fogo no inverno agente comeccedila a plantar Maria aqui no inverno alaga tudo a aacutegua sobe e invade os quintais aiacute vecircm as cobras e comem as galinhas e patos No inverno fica difiacutecil pegar peixe porque a aacutegua cresce muito Francisco o que salva agente eacute o accedilaiacute que tem bastante na mata entatildeo agente tira pra tomar e pra vender Joaquina por isso que no veratildeo agente trabalha pouco porque natildeo tem muita coisa pra fazer Margarete o inverno com o veratildeo mexe no horaacuterio de aula porque no veratildeo o rio fica mais seco e no inverno tem muita aacutegua Professora muito bem entatildeo todos aqui sabem que natildeo temos um horaacuterio fixo de aula devido agraves mareacutes eu soacute natildeo sabia que o accedilaiacute natildeo produz no veratildeo e que pra fazer roccedila tem que derrubar no veratildeo e plantar no inverno falem mais sobre isso e outras coisas relacionadas com as estaccedilotildees do ano aqui na ilha

204

A fala da uacuteltima aluna retrata um dos preconceitos em relaccedilatildeo aos ribeirinhos

que satildeo taxados de preguiccedilosos devido natildeo trabalharem direto para a produccedilatildeo e

voltados para o mercado como propotildee a monocultura do tempo linear que natildeo

reconhece outras formas de organizaccedilatildeo temporal como as dos ribeirinhos que no

veratildeo se dedicam a limpar os peacutes de accedilaiacute para facilitar o crescimento das aacutervores ou

fazer o manejo para garantir o aumento da produccedilatildeo no inverno e dessa maneira

satildeo vistos pelos de fora como preguiccedilosos e vagabundos O tempo das aacuteguas

determina o horaacuterio das aulas que eacute tambeacutem influenciado pelas estaccedilotildees do ano

assim o tempo ecoloacutegico sobressai em relaccedilatildeo ao tempo linear na ilha do Accedilaiacute

5CONCLUSAtildeO

Ao pesquisar a Amazocircnia Ribeirinha especificamente a ilha do Marajoacute

territoacuterio no qual nasci e vivi a infacircncia e parte da adolescecircncia representou um

mergulho na minha proacutepria histoacuteria As lembranccedilas permearam todos os momentos

que foram tensos e intensos na convivecircncia com os moradores das comunidades da

ilha do Accedilaiacute Foram imensos momentos de aprendizagem nos quais mergulhava

profundamente nas caudalosas aacuteguas dos rios e emergia repleto de saberes

apreendidos na cultura da conversa com os caboclos e caboclas marajoaras No

diaacutelogo com as crianccedilas jovens adultos e idosos mediatizados pelo mundo construiacute

e reconstruiacute conhecimentos referentes agrave Amazocircnia ribeirinha que descrevo nas

conclusotildees deste estudo

De acordo com a pesquisa realizada que teve como objeto de estudo investigar

como ocorre o diaacutelogo entre o conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos

na praacutetica pedagoacutegica dos professores que atuam em classes multisseriadas na ilha

do Accedilaiacute chegamos agraves seguintes conclusotildees a) o saber popular dos ribeirinhos povos

das aacuteguas estaacute relacionado com o contexto social econocircmico cultural e religioso no

qual estatildeo imersos Esses povos estabelecem entre si e com os outros relaccedilotildees de

trocas materiais e simboacutelicas b) o diaacutelogo na praacutetica pedagoacutegica dos professores

entre o saber popular e o conhecimento escolar ocorre de forma vertical por meio das

praacuteticas colonizadoras que predominam nas accedilotildees de grande parte dos educadores

mas tambeacutem em menor quantidade satildeo desenvolvidas praacuteticas descolonizadoras

205

nas quais o diaacutelogo eacute produzido horizontalmente o que denota uma ecologia de

saberes

Quanto ao saberpopular dos ribeirinhos da ilha do Accedilaiacute ele eacute construiacutedo e

reconstruiacutedo nas relaccedilotildees sociais que envolvem crianccedilas jovens adultos e idosos

numa relaccedilatildeo de respeito uns com outros e com a natureza o que confirma a tese de

Santos (2010) de acordo com a qual as epistemologias satildeo engendradas nas

relaccedilotildees sociais pelos sujeitos por meio de suas praacuteticas dentro do contexto no qual

as desenvolvem

Esses saberes tecircm toda uma ciecircncia baseada numa loacutegica e racionalidade

diferentes da ciecircncia hegemocircnica como afirmou um ribeirinho ldquopara fazer um casco

tem que ter toda uma ciecircncia tem que saber para que vai ser usado quantas pessoas

vai carregar que tipo de madeira e muito maisrdquo O casco natildeo eacute desenhado no papel

(como fazem os engenheiros) mas estaacute planejado na cabeccedila do pescador que vai

fazecirc-lo e atende agraves necessidades de quem o encomendou Por isso afirmamos que

esses saberes satildeo outras maneiras alternativas e estrateacutegias de se produzir ciecircncia

que foram e ainda satildeo marginalizadas nos curriacuteculos escolares desde a educaccedilatildeo

baacutesica ateacute a superior reflexo da monocultura do saber

Nestes saberes existe tambeacutem toda uma tecnologia tais como variadas

teacutecnicas para tecer paneiro matapi malhadeira e peneiras Diversificados materiais

oriundos da mata para construir cascos remos barcos que constituem extensatildeo das

matildeos e das pernas dos povos das aacuteguas Conhecimento da fauna e da flora para a

feitura dos remeacutedios que curam as doenccedilas do corpo e do espiacuterito causadas pelos

encantados Conhecimento da biodiversidade que engloba os animais que vivem na

mata a diversidade de peixes que habitam os rios lagos e igarapeacutes bem como dos

haacutebitos alimentares de cada espeacutecie

No tocante agraves aacuteguas seus ciclos (vazantesecacheia) produzem todo um ritmo

de vida e expressam os saberes do ribeirinho na sua relaccedilatildeo com a natureza Assim

a vida se plasma nos movimentos das mareacutes enchente vazante e seca que guiam o

tempo para plantar coletar o accedilaiacute pescar o peixe o camaratildeo e caccedilar O ribeirinho

sabe quando a mareacute vai ser lanccedilante pelo vento que movimenta as aacuteguas sabe onde

encontrar no rio determinadas espeacutecies de peixes (traiacutera tamuataacute acaraacute matupiri

entre outros) pelo cheiro das aacuteguas sabe onde estatildeo os cardumes o que eles

comem bem como os seus costumes e desta forma constroem estrateacutegias e

ferramentas para aprisionaacute-los

206

Destarte haacute um conhecimento estruturado sobre as mareacutes que orienta as

atividades sociais e produtivas guiada pelo tempo das aacuteguas que define inclusive o

horaacuterio das aulas nas escolas da ilha do Accedilaiacute Essa ruptura com a monocultura do

tempo linear gera outros tempos com a produccedilatildeo de diversidades de saberes como

os relacionados ao vento ao cheiro das aacuteguas agraves espeacutecies de peixes agraves iscas mais

adequadas para pescaacute-los aleacutem de orientar as suas accedilotildees de acordo as fases das

mareacutes Diante de tais evidecircncias o que prevalece na ilha do Accedilaiacute eacute o tempo ecoloacutegico

fundamental para entendermos como vivem esses povos

Nas aacuteguas vivem tambeacutem os seres encantados que satildeo invisiacuteveis e quando

se materializam podem se tornar animais (boto) homens ou mulheres (caboclo

gritador Matinta Pereira e outros) como nas histoacuterias narradas pelos moradores das

comunidades por meio da cultura da conversa histoacuterias que tecircm um cunho educativo

pois fazem parte da educaccedilatildeo do cuidar Por meio delas os ribeirinhos orientam os

filhos para que se comportem da maneira adequada aos seus valores e influenciam

no modo de vida dos povos das aacuteguas As lendas e os mitos satildeo contados para as

crianccedilas desde o nascimento com o intuito de respeitar e preservar o meio ambiente

No que concerne aos saberes da mata e da terra existe toda uma ciecircncia e

tecnologia para a produccedilatildeo dos remeacutedios que curam as doenccedilas e os males causados

pelos entes sobrenaturais O saber do benzedor e da parteira satildeo frutos de toda uma

experiecircncia de vida na ilha do Marajoacute e a cura se efetiva por meio do reconhecimento

da autoridade desses sujeitos e da feacute que os doentes e seus familiares tecircm nos

remeacutedios oriundos da terra e da mata

Da mata eacute retirado o accedilaiacute que alimenta e daacute forccedila para os ribeirinhos

enfrentarem os desafios do cotidiano tambeacutem eacute a fonte de renda dos moradores da

ilha Na colheita uma diversidade de saberessatildeo mobilizados e constituem uma

epistemologia construiacuteda na relaccedilatildeo desses sujeitos com os rios a terra e a mata Ao

transformar a natureza para atender agraves suas necessidades o ribeirinho transforma

cria uma realidade que tambeacutem o transforma e direciona sua maneira de agir e pensar

pois ao transformar o mundo sofre os efeitos de sua proacutepria transformaccedilatildeo

Deste modo o saber produzido e reproduzido pelos ribeirinhos tem como

criteacuterio de validaccedilatildeo a aceitaccedilatildeo da comunidade e credibilidade dos seus autores

Como afirma Santos (2010) essas epistemologias satildeo construiacutedas e reconstruiacutedas

por meio da experiecircncia social diferente dos rigores da ciecircncia hegemocircnica Destarte

o criteacuterio de validade do conhecimento estaacute relacionado agrave sua contextualidade e

207

aplicabilidade para resolver as situaccedilotildees vivenciadas Ressaltamos que esses

saberes estatildeo inteiramente relacionados com a histoacuteria e a cultura dos povos das

aacuteguas

Na pesquisa identificamos que esses saberes dialogam com o conhecimento

escolar na praacutetica pedagoacutegica dos professores de forma vertical e tambeacutem

horizontalmente

O diaacutelogo numa perspectiva verticalizada a qual denominamos de

colonizadora nega os saberes locais ou seja o saber popular dos educandos

ribeirinhos e impotildee o conhecimento escolar como a uacutenica visatildeo de mundo e de

ciecircnciao que representa a colonialidade do saber O saber popular eacute invisibilizado

natildeo reconhecido concebido como mito lenda supersticcedilatildeo que fazem parte do

imaginaacuterio dos sujeitos da Ilha Nas praacuteticas de planejamento das aulas a razatildeo

indolente prevalece como hegemocircnica excluindo as razotildees subalternizadas dentre

elas as dos povos das aacuteguas Eacute a geopoliacutetica do conhecimento que natildeo reconhece

esses saberes por emergirem dos sujeitos que historicamente foram excluiacutedos

consequentemente gera a hierarquizaccedilatildeo dos saberes e a consolidaccedilatildeo das

diferenccedilas entre os sistemas de conhecimento ao privilegiar o espaccedilo onde ele eacute

produzido tornando-o universalmente legiacutetimo para todos os contextos definindo a

monocultura da escala dominante que torna hegemocircnico o global suprimindo o local

Eacute no planejamento que a geopoliacutetica do conhecimento e a monocultura da

escala dominante se materializam por meio da definiccedilatildeo dos conteuacutedos que faratildeo

parte do curriacuteculo nas diversas disciplinas que compotildeem a educaccedilatildeo baacutesica Nele o

contexto no qual vivem e sobrevivem os educandos natildeo satildeo levados em

consideraccedilatildeo Nas praacuteticas colonizadoras ocorre o epistemiciacutedio como afirma Santos

(2010) ao se referir agrave morte dos conhecimentos alternativos no caso os dos povos

das aacuteguas da Amazocircnia

O conhecimento hegemocircnico eacute transmitido pelo educador aos educandos por

meio do livro didaacutetico recurso pedagoacutegico mais utilizado nas escolas pesquisadas o

que caracteriza a pedagogia bancaacuteria na qual as metodologias desenvolvidas pelos

docentes visavam a transmissatildeo do conhecimento escolar de forma autoritaacuteria com

a predominacircncia das aulas expositivas por meio da narraccedilatildeo sem a participaccedilatildeo e

intervenccedilatildeo dos educandos desta maneira o saber hegemocircnico eacute concebido como

verdade absoluta O diaacutelogo eacute verticalizado somente o professor tem o direito de

pronunciar a palavra aos alunos eacute negado esse direito porque natildeo interessa os

208

saberes que eles trazem do seu meio sociocultural Para esta visatildeo racionalista de

educaccedilatildeo o uacutenico conhecimento vaacutelido eacute o que passa pelos rigores do meacutetodo

cientiacutefico e atende aos interesses dominantes

Portanto a pesquisa mostrou que por intermeacutedio de metodologias

colonizadoras81 o conhecimento escolar tendo como suporte o livro didaacutetico foi

imposto como uacutenica maneira de ler e explicar o mundo baseado na ciecircncia

colonizando as mentes e menosprezando outras racionalidades e razotildees

invisibilizadas e dessa forma construindo subjetividades identidades imaginaacuterios

sociais sentimentos atitudes e visotildees de mundo para acatar as propensotildees

hegemocircnicas

Tudo isso eacute reflexo da colonialidade do saber que define os curriacuteculos as

mateacuterias escolares e a organizaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo na escola Assim existe

uma sobreposiccedilatildeo da cultura erudita e etnocecircntrica sobre os conteuacutedos advindos da

cultura popular que eacute marginalizada e ausente no interior da instituiccedilatildeo escolar O

diaacutelogo nesta perspectiva natildeo possibilita a ecologia de saberes por negar os saberes

locais natildeo lhes concedendo credibilidade e visibilidade tornando-os ausentes nas

escolas ribeirinhas da ilha do Accedilaiacute

Apesar dos professores atuarem dentro de uma estrutura de dominaccedilatildeo seja

ela poliacutetica econocircmica cultural e epistemoloacutegica houve momentos na accedilatildeo

docente82 em que foram desenvolvidas praacuteticas nas quais o diaacutelogo ocorreu de forma

horizontal que denominamos de descolonizadoras Nelas houve o reconhecimento

das manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas das comunidades ribeirinhas da ilha do

Accedilaiacute

Praacuteticas nas quais os saberes locais foram visibilizados valorizados e

reconhecidos como conhecimento que norteia a vida dos ribeirinhos nas atividades

sociais religiosas culturais e produtivas Nela o planejamento partiu das

necessidades dos educandos em termos de conhecimentos para enfrentar os desafios

do cotidiano daiacute a valorizaccedilatildeo tanto do conhecimento escolar quanto dos saberes

locais

81 Planejamento e metodologias de ensino e aprendizagem desenvolvidas principalmente pelos professores Prof1 Prof3 Prof5 Prof7 Prof8 e Prof9 sujeitos da pesquisa descritas no capitulo 6 Isso natildeo significa que esses professores natildeo tenham desenvolvido tambeacutem praacuteticas descolonizadoras mas o que predominou no trabalho desses docentes durante o periacuteodo de observaccedilatildeo foi as colonizadoras 82 Com maior predominacircncia nas praacuteticas dos professores Prof2 Prof4 e Prof6

209

Um fato interessante eacute que os alunos estatildeo envolvidos nas atividades

produtivas desde a coleta do accedilaiacute da pesca do peixe camaratildeo e na caccedila de animais

silvestres ateacute nas atividades socioculturais e os professores desenvolveram praacuteticas

descolonizadoras que incluiacuteram esses saberes no planejamento das aulas Nas

metodologias esses saberes foram problematizados o direito a palavra foi garantido

a todos os envolvidos na praacutexis pedagoacutegica os moradores detentores desses

saberes foram os protagonistas

O diaacutelogo como momento de encontro para refletir coletivamente sobre a

realidade na qual vivem os educandos fez parte de algumas praacuteticas observadas nas

escolas investigadas Pela palavra os educandos educadores e os moradores da

comunidade que participam das praacuteticas pedagoacutegicas na escola puderam criar

transformar potenciar e libertar o pensamento e a criatividade para inovar Os

moradores tiveram seus saberes validados pela escola no momento em que os

professores abriram espaccedilo para que eles participassem ativamente do processo de

ensino e aprendizagem por meio de praacuteticas dialoacutegicas baseadas na amorosidade e

respeito agrave sua dignidade

A humildade dos professores ao admitirem que natildeo satildeo ignorantes e nem

saacutebios absolutos mas seres inacabados em constante processo de aprendizagem

possibilitou que abrissem espaccedilo para os saberes locais adentrarem o curriacuteculo No

diaacutelogo na sala de aula o professor aprendeu com os alunos os saberes locais e

ensinou a partir desses saberes os escolares por meio da escuta da palavra e do

respeito agraves ideias e aos pensamentos do outro

Portanto o diaacutelogo na perspectiva descolonizadora ocorreu numa relaccedilatildeo

horizontal com amorosidade e humildade na esperanccedila de um mundo melhor como

afirmou um professor ribeirinho ldquoeu ensino e aprendo todos os dias com esses jovens

acredito que eles satildeo capazes de aprender e de mudar a realidade na qual vivemos

digo noacutes porque vivo aqui tambeacutemrdquo Isso demonstra a feacute e esperanccedila na capacidade

dos educandos para mudar a realidade para isso a educaccedilatildeo ancorada numa

pedagogia da esperanccedila possibilita aos ribeirinhos da ilha lutar por um mundo melhor

o que significa romper com a opressatildeo gerada pela exploraccedilatildeo fruto principalmente

da ausecircncia de poliacuteticas puacuteblicas voltadas para o escoamento da produccedilatildeo e tambeacutem

nas aacutereas de sauacutede e educaccedilatildeo direcionadas para os povos das aacuteguas No tocante agrave

educaccedilatildeo a ausecircncia de poliacuteticas puacuteblicas de formaccedilatildeo continuada para os

210

professores de recursos didaacuteticos e valorizaccedilatildeo dos profissionais da educaccedilatildeo pelo

poder puacuteblico contribuem para a prevalecircncia da colonizaccedilatildeo epistemoloacutegica

O reconhecimento das ecologias das temporalidades e dos saberes presentes

no discurso bem como na praacutetica dos professores possibilitou o emergir das

experiecircncias dos saberes dos valores da relaccedilatildeo com o outro e com o mundo no

qual vivem esses protagonistas

A ecologia das temporalidades se manifestou no momento em que os

educandos tiveram o usufruto da palavra para falar sobre como as suas vidas satildeo

influenciadas por outras temporalidadescom loacutegicas distintas da linear tais como o

tempo das mareacutes o tempo para a derrubada queimada e o plantio que estatildeo

relacionados com as chuvas na ilha e o tempo pertinente aos encantados que habitam

a mata e os rios e estabelecem os horaacuterios para a entrada nesses ambientes naturais

Esse eacute o jeito de ser do povo daqui que vai aleacutem do tempo linear como afirmam os

poetas Joaozinho Gomes e Val Milhomem ldquoQuem nunca viu o (rio) Amazonas jamais

iraacute compreender a crenccedila de um povo sua ciecircncia caseira a reza das benzedeiras o

dom milagroso83rdquo

Assim inferimos que as praacuteticas descolonizadoras ao reconhecer a pluralidade

de saberes heterogecircneos e a autonomia de cada um deles promoveu a conexatildeo

ordenada dinacircmica e horizontal entre ambos por meio do diaacutelogo Desta maneira

efetivou-se na praacutetica a ecologia de saberes proposta por Boaventura de Souza

Santos O diaacutelogo que segundo Freire (2014)pertence a nossa natureza histoacuterica foi

nas praacuteticas descolonizadoras vivenciado com amor humildade feacute e confianccedila nas

crianccedilas jovens e adultos que constroem e reconstroem cotidianamente as suas vidas

nas comunidades que compotildeem a ilha do Accedilaiacute

A predominacircncia das praacuteticas colonizadoras caracteriza um modelo

pedagoacutegico que tem como cerne o padratildeo de educaccedilatildeo monocultural que suprime

qualquer diversidade cultural e epistemoloacutegica oriunda dos povos das aacuteguas

Defendemos a presenccedila da diversidade epistemoloacutegica no curriacuteculo das escolas

ribeirinhas como mecanismo de reconhecimento e validaccedilatildeo dos saberes locais e

produccedilatildeo das identidades e subjetividades dos sujeitos amazocircnidas Como afirma

Morreira (2009) o eixo central do curriacuteculo escolar eacute o conhecimento entatildeo

83 Trecho da letra da muacutesica Jeito Tucujuacute

211

precisamos romper com a colonialidade do saber que define o que (conteuacutedo) e como

(metodologia) deve ser ensinado

Defendemos a participaccedilatildeo da comunidade local na seleccedilatildeo do que deve ser

ensinado na escola onde estudam seus filhos e netos Natildeo podemos mais aceitar a

imposiccedilatildeo de um conhecimento escolar descontextualizado que reflete a realidade

das regiotildees industrializadas e que eacute determinado pela geopoliacutetica do conhecimento

Ao longo deste trabalho realizamos a cartografia dos saberes populares e

provamos que existe uma gnose liminar um pensamento fronteiriccedilo pois satildeo saberes

que existem e resistem permeiam o cotidiano e orientam as accedilotildees sociais produtivas

religiosas e culturais na ilha Esses saberes precisam ser visibilizados mas para que

isso ocorra o envolvimento e a participaccedilatildeo democraacutetica da comunidade eacute

fundamental na gestatildeo escolar

No decorrer da pesquisa procuramos a partir do referencial teoacuterico adotado

refletir criticamente sobre a educaccedilatildeo que temos e pensar em uma nova educaccedilatildeo

que integre toda a diversidade epistemoloacutegica e que possa atender agraves necessidades

e interesses das comunidades (vivemos numa sociedade multicultural com

manifestaccedilotildees culturais e epistemoloacutegicas proacuteprias) e natildeo somente do capital que

valoriza apenas as questotildees econocircmicas e menospreza as culturais sociais e

religiosas

212

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Amazocircnia retratos de realidade das escolas multisseriadas no Paraacute Beleacutem Gutemberg 2005 INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL Dossiecirc Belo Monte natildeo haacute condiccedilotildees para a licenccedila de operaccedilatildeo Disponiacutevel em lthttpswwwsocioambientalorgpt-brdossie-belo-montegt Acesso 4 de maio de 2016 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA Extraccedilatildeo vegetal e silvicultura Disponiacutevel em lthttpwwwcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=150030ampsearch=parC3A1|afuagt Acesso 17 de maio de 2016 Jornal O Acre Rio Branco 20 de maio de 1943 n 742 KRAMER Sonia As crianccedilas de 0 a 6 anos nas poliacuteticas educacionais no Brasil educaccedilatildeo infantil eeacute fundamental Educ Soc v 27 n 96 p797-818 out 2006 LARAIA Roque de Barros Cultura um conceito antropoloacutegico 23 ed Rio de Janeiro Zahar 2009 LAVILLE Christian DIONE Jean A construccedilatildeo do sabermanual de metodologia da pesquisa em ciecircncias humanas Porto Alegre Artmed 2000 LAJOLO Marisa Livro didaacutetico um (quase) manual de usuaacuterio Em Aberto Brasiacutelian 69 v 16 janmar 2001 LIBAcircNEO Joseacute Carlos Didaacutetica 2 ed Satildeo Paulo Cortez 2004 LOPES Alice Casimiro Curriacuteculo e Epistemologia Ijuiacute Editora Unijuiacute 2007 LOUREIRO V RAmazocircnia uma histoacuteria de perdas e danos um futuro a (re) construir Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 9 n 53 p 187-207 2005 LOUREIRO Joatildeo de Jesus Paes Cultura amazocircnicauma poeacutetica do imaginaacuterio Satildeo Paulo Escrituras Editora 2001 LUDKE Menga ANDREacute Marli E D A Pesquisa em educaccedilatildeo abordagens qualitativas Satildeo Paulo EPU 2006 LUCKESI CC planejamento e Avaliaccedilatildeo escolararticulaccedilatildeo e necessaacuteria determinaccedilatildeo ideoloacutegica IN O diretor articulador do projeto da escola Borges Silva Abel Satildeo Paulo 1992 FDE Diretoria Teacutecnica Seacuterie Ideacuteias nordm 15 ______ Filosofia da educaccedilatildeo Satildeo Paulo Cortez 2003 MAUEacuteS R H A ilha encantada medicina e xamanismo numa comunidade de pescadores Beleacutem Universidade Federal do Paraacute 1990 MARINI Ruy Mauro Dialeacutetica da Dependecircncia Petroacutepolis Vozes 2000

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QUIJANO Aniacutebal Colonialidade do poder eurocentrismo e Ameacuterica LatinaIn LANDER E (Org) A colonialidade do saber eurocentrismo e ciecircncias sociais Perspectivas latino-americanas Coleccioacuten Sur Sur Clacso Buenos Aires ndash Argentina setembro 2005 p 227 ndash 278 ______ Colonialidade do poder e classificaccedilatildeo social In SANTOS Boaventura de Sousa MENESES Maria Paula (Orgs) Epistemologia do Sul Satildeo Paulo Cortez 2010 RODRIGUES Denise Souza Simotildees et al Cultura cultura popular amazocircnica e a construccedilatildeo imaginaacuteria da realidade In OLIVEIRA Ivanilde Apoluceno de (Org) Cartografias de saberes representaccedilotildees sobre a cultura amazocircnica em praacuteticas de educaccedilatildeo popular Beleacutem EDUEPA 2007 ROMANATTO Mauro Carlos A noccedilatildeo de nuacutemero natural em livros didaacuteticos de matemaacutetica comparaccedilotildees entre textos tradicionais e modernos Dissertaccedilatildeo (mestrado) Universidade Federal de Satildeo Paulo Satildeo Carlos SP 2007 RIBEIRO Gustavo L ESCOBAR Arturo (orgs) Antropologias Mundiais Transformaccedilotildees da disciplina em sistemas de poder Brasiacutelia Editora UNB 2012 RIBEIRO W C Teoria Criacutetica contribuiccedilotildees para se pensar a Educaccedilatildeo Ambiental Sinapse Ambiental Betim v4 n2 p8-25 dez 2007 REIS A C F R O seringal e o seringueiro 2 ed Manaus Editora da Universidade do Amazonas 1997 RIBEIRO Darcy O povo brasileiro a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil 6ordf reimpressatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2006 SALLES Vicente O negro no Paraacute sob o regime da escravidatildeo Rio de Janeiro Fundaccedilatildeo Getuacutelio Vargas 1971 SANTIAGO Abinoan Hidreleacutetrica pode ter causado morte de peixes no rio Araguari diz poliacutecia Disponiacutevel em httpg1globocomapamapanoticia201511hidreletrica-pode-ter-causado-morte-de-peixes-no-rio-araguari-diz-policiahtml Acesso em 7 de maio 2016 SANTOS B A dos Recursos minerais da Amazocircnia Estudos Avanccedilados Satildeo Paulo v 16 n 45 p 123-202 2002 SANTOS Wildson Luiz CARNEIRO Maria Helena da Silva Livro Didaacutetico de Ciecircncias Fonte de informaccedilatildeo ou apostila de exerciacutecios In Contexto e Educaccedilatildeo Ano21 Julhodezembro Ijuiacute Editora Unijuiacute 2006 SANTOS B S MENESES M P (Org) Epistemologias do Sul 6 Ed Satildeo Paulo Cortez 2010 SANTOS B de S Introduccedilatildeo a uma ciecircncia poacutes-moderna Rio de Janeiro Graal 2002

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TRIVINtildeOS Augusto N S Introduccedilatildeo agrave pesquisa em ciecircncias sociais a pesquisa qualitativa em educaccedilatildeo 4 ed Satildeo Paulo Atlas 2007 VILLAS-BOcircAS Andreacute Reassentamento coletivo urbano para os atingidos pela usina 1 fotografia color Dossiecirc Belo Monte natildeo haacute condiccedilotildees para a licenccedila de operaccedilatildeo Disponiacutevel em lthttpswwwsocioambientalorgpt-brdossie-belo-montegt Acesso 4 de maio de 2016 WALLERSTEIN Immanuel O albatroz racista a ciecircncia social Joumlrg Haider e a resistecircncia Revista Criacutetica de Ciecircncias Sociais nordm 56 fev 2000 p 05-33 ______ Impensar a Ciecircncia Social Os limites dos paradigmas do seacuteculo XIX Aparecida Ideias amp Letras 2006 ______ Anaacutelises dos sistemas mundiais In GIDDENS A TURNER J (org) Teoria social hoje Satildeo Paulo Editora Unesp 1999 WALSH C Pedagogiacuteas decoloniales praacutecticas insurgentes de resistir (re)existir y (re)vivir Quito Abya Yala 2013 ______ Interculturalidad criacutetica y educacioacuten intercultural In VIANtildeA J TAPIA L WALSH C Construyendo Interculturalidad Criacutetica La Paz III-CAB 2011 ______ Interculturalidad y colonialidad del poder Un pensamiento y posicionamiento ldquootrordquo desde la diferencia colonial In CASTRO-GOacuteMEZ Santiago amp GROSFOGUEL Ramoacuten (Orgs) El giro decolonial reflexiones para una diversidad episteacutemica maacutes allaacute del capitalismo globalBogotaacute Siglo del Hombre Editores Universidad Central Instituto de Estudios Sociales Contemporaacuteneos y Pontificia Universidad Javeriana Instituto Pensar 2007 ______(Ed) Pensamiento criacutetico y matriz (de)colonial reflexiones latinoamericanas Quito Universidad Andina Simon BolivarAbya-Yala 2005 WALSH Catherine SCHIWY Freya CASTRO-GOacuteMEZ SantiagoIndisciplinar as ciecircncias sociais Quito Universidade Sandina Simon BolivarAbyaYala 2002

221

APEcircNDICE A ndash Roteiro de entrevista para a comunidade

OBJETIVO PERGUNTAS

Roteiro de perguntas para os moradores

Cartografar a partir das memoacuterias

dos moradores da ilha do Accedilaiacute os

saberes presentes no discurso e

nas praacuteticas cotidianas dos

ribeirinhos

Nome Idade Tempo em que mora na comunidade 1 Por que vocecirc mora na beira do rio

2 Qual a importacircncia do rio para a sua vida

3 Vocecirc conhece alguma histoacuteriaque envolva os

seres encantados aqui na ilha do Accedilaiacute

4 Quais satildeo as doenccedilas causadas pelos seres

encantados

5 Quem cura as doenccedilas causadas pelos seres

encantados E como elas satildeo curadas

6 Vocecirc participa de alguma atividade social ou

produtiva (caccedila pesca colheita do accedilaiacute e

outras)

7 Como vocecirc desenvolve essa atividade

8 O que eacute necessaacuterio para realizaacute-la

9 Quais os instrumentos utilizados para a

execuccedilatildeo desta atividade

10 Com quem vocecirc aprendeu a desenvolver

essa atividade

11 Vocecirc desenvolve essa atividade sozinho ou

a sua famiacutelia tambeacutem participa Como ocorre a

participaccedilatildeo da famiacutelia

12 O que vocecirc faz com o que eacute produzido

222

APEcircNDICE B ndash Roteiro de entrevista para os professores

OBJETIVO PERGUNTAS

Roteiro de perguntas para os Professores

Identificar na praacutetica pedagoacutegica

do professor a presenccedila do saber

popular dos ribeirinhos e as formas

como dialogam com o saber

escolar

Nome Idade Formaccedilatildeo profissional Tempo de experiecircncia com classes multisseriadas 1 Vocecirc fez o curso normal a niacutevel meacutedio

(magisteacuterio)

2 Onde vocecirc fez a sua graduaccedilatildeo

3 Vocecirc tem curso de especializaccedilatildeo Caso

positivo em que aacuterea do conhecimento

4 Vocecirc eacute oriundo da ilha do Marajoacute ou de outro

Municiacutepio ou Estado

5 Quem define os conteuacutedos que satildeo

trabalhados nas disciplinas do curriacuteculo da

educaccedilatildeo infantil e dos anos iniciais do ensino

fundamental

6 Os saberes da comunidade ribeirinha satildeo

incluiacutedos na lista de conteuacutedos a serem

trabalhados nas disciplinas Quais os criteacuterios

que vocecirc utiliza para selecionaacute-los

7 Devido agrave extensatildeo da lista de conteuacutedos nem

todos satildeo trabalhados durante o ano letivo

Quais satildeo os criteacuterios que vocecirc adota para

selecionar os conteuacutedos a serem trabalhados

8 Vocecirc participou da escolha do livro didaacutetico

que os alunos receberam este ano

9 Como vocecirc utiliza o livro didaacutetico nas aulas

223

10 Como vocecirc elabora o planejamento das aulas

para a classe multisseriada

11 Vocecirc inclui os saberes da comunidade no

planejamento das aulas Caso positivo como

ocorre a inclusatildeo desses saberes

12 Como os alunos satildeo organizados na sala de

aula multisseriada

13 Quais satildeo as metodologias mais utilizadas

para trabalhar os conteuacutedos nas aulas

14 Quais os recursos didaacuteticos mais utilizados

nas aulas Como satildeo utilizados

15 Como vocecirc trabalha o saber da comunidade

em sala de aula

224

APEcircNDICE C ndash Roteiro de observaccedilatildeo das aulas dos professores

1 Os saberes da comunidade ribeirinha satildeo incluiacutedos na lista de conteuacutedos a serem

trabalhados nas disciplinas e os criteacuterios utilizados para selecionaacute-los

2 Como o livro didaacutetico eacute utilizado nas aulas

3 Como o planejamento eacute elaborado pelo professor para a classe multisseriada e se

satildeo incluiacutedos os saberes da comunidade

4 A organizaccedilatildeo dos alunos na sala de aula multisseriada

5 As metodologias e os recursos didaacuteticos mais utilizados pelos professores para

trabalhar os conteuacutedos nas aulas

6 Como satildeo trabalhados os saberes da comunidade nas diversas disciplinas do

curriacuteculo pelos professores

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APEcircNDICE D ndash Roteiro de observaccedilatildeo das atividades na comunidade

1 A importacircncia do rio para os ribeirinhos

2 As histoacuterias e as doenccedilas relacionadas aos seres encantados

3 As praacuteticas do benzedor e da parteira assim como os remeacutedios que utilizam para

curar as doenccedilas

4 As atividades sociais e produtivas (caccedila pesca colheita do accedilaiacute e outras) e como

satildeo desenvolvidas

6 Os instrumentos confeccionados e utilizados para a execuccedilatildeo das atividades

produtivas

7 O processo de aprendizagem para a confecccedilatildeo dos instrumentos e utilizaccedilatildeo no

desenvolvimento das atividades produtivas