Écfrase e evidência nas letras latinas: doutrina e práxis · conceitos estudados a partir de...

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS CLÁSSICAS Écfrase e Evidência nas Letras Latinas: Doutrina e Práxis Melina Rodolpho Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras Clássicas do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de mestre. Orientador: Prof. Dr. Paulo Martins Exemplar revisado “de acordo com o Prof. Orientador Dr. Paulo Martins” _______________________________ São Paulo 2010

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS CLSSICAS

    cfrase e Evidncia nas Letras Latinas: Doutrina e Prxis

    Melina Rodolpho

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de mestre.

    Orientador: Prof. Dr. Paulo Martins Exemplar revisado de acordo com o Prof. Orientador Dr. Paulo Martins _______________________________

    So Paulo 2010

  • 2

    Nome: RODOLPHO, Melina Ttulo: cfrase e Evidncia nas Letras Latinas: Doutrina e Prxis

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de mestre.

    Aprovado em: Banca Examinadora

  • 3

    RESUMO

    A finalidade da pesquisa estudar a cfrase, identificada como descrio na

    retrica latina, e a evidncia, com a qual geralmente confundida A cfrase contribui

    para provocar o efeito de visualizao do discurso verbal, portanto, o estudo das teorias

    antigas que aproximam o meio verbal do visual serve como base para sua compreenso.

    H certa profuso de nomes para o processo ecfrstico, gerando confuso ao se tentar

    estabelecer os limites e diferenas de cada procedimento. O processo imaginativo,

    teorizado por Aristteles como fantasia, parte fundamental para compreender como se

    manifesta a evidncia (ou ainda enargia). Alm da teoria, analisamos a aplicao dos

    conceitos estudados a partir de alguns exemplos do gnero pico e historiogrfico,

    realizando tambm a traduo de tais textos.

    PALAVRAS-CHAVE: cfrase; Descrio; Evidncia; Enargia; Fantasia.

    ABSTRACT

    The purpose of this paper is to study ekphrasis, known as description in Latin

    Rhetoric, which is normally confused with euidentia. The ekphrasis contributes to cause

    a visualizations effect of the verbal speech. Therefore, the study of ancient theories,

    which approach the verbal language to the visual, works as basis for its comprehension.

    There is some profusion of names for the ekphrastic process, leading to confusion when

    we try to establish the limits and differences of each procedure. The imaginative

    process, theorized by Aristotle as phantasia, is a fundamental part to understand how

    the euidentia (or enargeia) works. Beyond the theory, we analyze the application of the

    concepts from some examples of the epic and historiographical genres, also translating

    these texts.

    KEYWORDS: Ekphrasis; Description; Euidentia; Enargeia; Phantasia.

  • 4

    Matri

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo ao Professor Dr. Paulo Martins, meu orientador, pela colaborao,

    pacincia e incentivo e tambm por me direcionar ao estudo de um tema primoroso.

    Devo sinceros agradecimentos aos Professores Doutores Joo Angelo Oliva

    Neto e Roberto Bolzani Filho pelas importantes indicaes e correes oferecidas no

    exame de qualificao e a todos os professores de minha graduao e ps-graduao

    que contriburam para minha formao acadmica.

    Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq)

    que concedeu a bolsa de mestrado, fundamental para a realizao da pesquisa.

    A todos os amigos que pacientemente me ouviram falar (muito) da cfrase.

    Por fim, especial agradecimento s pessoas mais queridas: minha me,

    Lindinalva, a quem devo minha alfabetizao, e meus irmos Anderson, Osmar e

    Renato, que ofereceram apoio em todos os sentidos enquanto cursava a faculdade e o

    mestrado.

  • 6

    SUMRIO

    RESUMO 3

    ABSTRACT 3

    AGRADECIMENTOS 5

    SUMRIO 6

    INTRODUO 8

    I. TEORIZAO E HISTRICO DOS CONCEITOS 10

    I.1. Amplificao 21 Aristteles 21 Ccero 22 Quintiliano 28 Annimo Do Sublime 31

    I.2. Metfora 32 Aristteles 32 Ccero 37 Quintiliano 38

    I.3. Fantasia 45 Plato 45 Aristteles 49 Os Esticos 54 Sexto Emprico 58 Ccero 73 Annimo Do Sublime 82

    I.4. Enargia/ Evidncia 86 Ccero 86 Quintiliano 88 Outros Retores Latinos 93

    I.5. Hipotipose 95 Quintiliano 95 Progymnsmata 97 Outros Retores Latinos 98

    I.6. cfrase/ Descrio 98 Progymnsmata 98 Outros Retores Latinos 104

  • 7

    II. SISTEMATIZAO DOS CONCEITOS 107

    II.1. cfrase/ Descrio 108

    II.2. Enargia/ Evidncia 114

    II.3. Fantasia 120

    III. APLICAO DOS PROCEDIMENTOS 125

    III.1. Eneida 125 As pinturas do templo 125 Laocoonte 131 Clmide 137 As portas do templo de Apolo 138 Escudo de Turno 140 O escudo de Eneias 142 O cinto de Palante 159

    III.2. Poema 64 de Catulo 161

    III.3. Salstio 173 III.3.1. Guerra de Jugurta 173 III.3.2. Conjurao de Catilina 179

    III.4. Suetnio 190 O Divino Jlio Livro I do De Vita Caesarum 190

    CONSIDERAES FINAIS 205

    BIBLIOGRAFIA 207

    REFERNCIAS ANTIGAS 207

    REFERNCIAS MODERNAS 210

  • 8

    Introduo

    A poesia antiga seguia no apenas os critrios da teoria potica, como tambm

    utilizava recursos retricos na sua composio. possvel estabelecer certa relao

    entre os discursos retrico e potico a partir, por exemplo, do tom adotado (elevado/

    baixo), bem como a adoo de ornamentos (tropos e figuras), gneros e funes

    retricas tambm aplicadas poesia. Todo texto tem um objetivo e, no raro, encontra-

    se inserido na poesia uma das trs funes retricas, a saber: docere, mouere e

    delectare. Portanto, se os fins so os mesmos, h lgica que os meios tambm o sejam.

    Os procedimentos estudados na presente pesquisa inserem-se dentre os recursos

    que servem tanto retrica como potica, mas o que nos interessa estud-los sob o

    prisma dos recursos que permitem produzir imagens verbais; entramos, portanto, em

    outra questo muito difundida na Antiguidade: trata-se da relao entre as artes verbais

    e as visuais.

    Adotaremos inicialmente a terminologia cfrase, cujo termo grego kphrasis,

    equivalendo descrio latina, descriptio, e da mesma maneira, adotamos enargia para

    enrgeia e evidncia para euidentia como correspondentes; no entanto, no decorrer

    desse estudo, verificaremos que as definies e nomeao dos conceitos no so to

    exatas.

    A cfrase/ descrio consiste no processo descritivo detalhado por meio do qual

    se pode produzir um quadro do objeto da descrio; temos ento a enargia/ evidncia,

    que pode ser considerada figura de pensamento cuja finalidade conferir vivacidade

    imagem verbal. A cfrase no o nico procedimento capaz de gerar essa enargia,

    conforme se ver; contudo, nos desperta o interesse em razo de sua histria, pois

    frequentemente associada construo de imagens que, por sua vez, representam

    objetos inexistentes de maneira absolutamente crvel.

    A enargia/ evidncia como figura de pensamento est estruturada retoricamente

    na elocuo. Sabe-se que a elocuo uma etapa importante da composio, pois nela

    se modela o texto de acordo com o pblico a que se pretende atingir e est, portanto,

    relacionada persuaso desse pblico. Logo, a elocuo serve a outras etapas da

    composio retrica a inveno e a disposio , da mesma maneira que a poesia deve

    estruturar suas partes para resultar num todo coerente, o discurso retrico tambm deve

    faz-lo; assim, as diferentes fases do discurso no so estanques.

  • 9

    Compreende-se que a cfrase e a enargia, ainda que ornatos da elocuo, sirvam

    tambm aos propsitos da inveno e da disposio etapas que, logicamente, faziam

    parte do trabalho da composio potica. Portanto, supe-se que a evidncia no esteja

    inserida como mero ornamento, mas tenha uma finalidade prpria dentro do conjunto.

    Ao iniciar a pesquisa, tnhamos em vista diferenciar a cfrase da evidncia, j

    que so geralmente confundidas; justifica-se desse modo a aparente incoerncia do

    ttulo desse trabalho que traz a terminologia grega e latina para conceitos que, na

    realidade, so distintos. Seria lgico colocar os pares cfrase e enargia ou descrio e

    evidncia, no entanto, preferi manter o ttulo inicial em razo justamente da dificuldade

    que se apresenta ao determinar a nomenclatura e traar os limites de tais procedimentos

    fato que, como discutiremos durante todo esse estudo, bastante recorrente.

  • 10

    I. Teorizao e histrico dos conceitos

    De acordo com a doutrina aristotlica, no livro I de sua Retrica, h trs tipos de

    gneros retricos: o deliberativo, o epidtico, o judicirio. Em linhas gerais, o

    deliberativo constitui-se do conselho ou da dissuaso, cujos temas principais so

    basicamente: finanas, guerra e paz, defesa nacional, importaes e exportaes e

    legislao. O tempo que lhe apropriado, portanto, o futuro, pois se discute acerca das

    decises; sua finalidade aconselhar o conveniente e desaconselhar o prejudicial, para

    que se alcancem os objetivos por meio de aes convenientes e boas. Ao tratar dos

    graus de convenincia, Aristteles faz uma afirmao acerca da viso que nos interessa,

    em 1364a1: Coisas cuja superioridade mais desejvel a mais bela so tambm

    preferveis; por exemplo: prefervel ter acuidade visual a ter a olfativa, pois a viso

    melhor do que o olfato.

    O epidtico trata do elogio ou da censura que incite na virtude ou no vcio. H

    dois tipos: o elogio, que discorre acerca das virtudes de um indivduo, e o encmio, que

    se refere as suas obras. O presente o tempo correspondente, pois tais discursos so

    feitos a respeito de pessoas ou acontecimentos atuais; ainda que se utilizem argumentos

    do passado e conjecturas sobre o futuro, sua finalidade tratar do belo e do feio.

    Devem-se utilizar muitos meios de amplificao (auxsis) neste gnero, procedimento

    do qual trataremos adiante, para que o elogiado parea melhor do que os virtuosos. A

    censura constitui-se dos contrrios do elogio.

    O judicirio diz respeito ao julgamento, onde esto presentes a acusao e a

    defesa, o tempo deste gnero o passado, pois o julgamento se refere aos fatos j

    ocorridos; seu objetivo tratar do justo e do injusto. Ainda no primeiro livro, no

    captulo 11 da Retrica, Aristteles elenca uma srie de fatos que agradam s pessoas,

    estabelecendo uma relao temtica entre temas aprazveis e a retrica judicial. A

    vingana e a vitria, por exemplo, so agradveis, e, embora uma causa judicial seja

    penosa, pois imposta por necessidade, igualmente aprazvel visto que por meio dela

    a vitria possvel.

    Nesse contexto que Aristteles apresenta um conceito que nos interessa bastante:

    a fantasia. O prazer certo movimento da alma, como a fantasia (da qual trataremos em

    1 Para todas as citaes da Retrica adotamos a traduo de Manuel Alexandre Jnior; Paulo Farmhouse Alberto & Abel do Nascimento Pena. Lisboa: Casa da Moeda. 1998.

  • 11

    breve), que produz o agradvel; resulta disso certo prazer na sensao de lembrar o

    passado, sentir o presente e esperar o futuro.

    A classificao dos gneros retricos proposta por Aristteles perdura na

    tradio latina conforme observamos na Retrica a Hernio, I, 2, onde temos a mesma

    classificao para os gneros de causas2:

    Tria genera sunt causarum, quae recipere debet orator: demonstratiuum, deliberatiuum, iudiciale. Demonstratiuum est, quod tribuitur in alicuius certae personae laudem uel uitoperationem. Deliberatiuum est in consulatione, quod habet in se suasionem et dissuasionem. Iudiciale est, quod positum est in controuersia et quod habet accusationem aut petitionem cum defensione.

    Trs so os gneros de causas de que o orador deve incumbir-se: o demonstrativo, o deliberativo e o judicirio. O demonstrativo destina-se ao elogio ou vituprio de determinada pessoa. O deliberativo efetiva-se na discusso, que inclui aconselhar e desaconselhar. O judicirio contempla a controvrsia legal e comporta acusao pblica ou reclamao em juzo com defesa.

    A respeito do gnero demonstrativo, equivalente ao epidtico, o tratado retoma

    sua explicao no livro III, 10, o elogio ou vituprio pode ser de trs tipos: coisas

    externas, corpo e nimo. As coisas externas so aquelas que advm da fortuna como a

    ascendncia, educao, riqueza, poder, glria, cidadania, amizades, etc, e seus

    contrrios. O corpo refere-se ao que a natureza atribuiu como a rapidez, a fora, a

    beleza, a sade e seus contrrios. O nimo inclui aspectos da deliberao e reflexo

    como prudncia, justia, coragem, modstia e seus contrrios. No 15, no necessrio

    adotar sempre os trs tipos de elogio/ vituprio no discurso, pois devem ser escolhidas

    as partes que sejam mais consistentes. Recomenda-se concluir com enumerao e

    amplificaes frequentes e breves junto aos lugares-comuns.

    A exemplo do que ocorre nos gneros poticos, os discursos retricos possuem

    elementos em comum e, segundo a necessidade, um discurso pode estar inserido no

    outro. Inicialmente, acreditamos que a cfrase ou a evidncia so tipicamente utilizadas

    no discurso epidtico, fato que discutiremos no estudo de exemplos de tais

    procedimentos.

    2 Para todas as citaes da Retrica a Hernio adotamos a traduo de Adriana Seabra & A. P. Celestino Faria. So Paulo: Hedra. 2005.

  • 12

    O gnero epidtico adota como meio para louvar ou vituperar um indivduo ou

    um grupo de pessoas (como uma nao) a descrio do aspecto fsico e moral; assim,

    cria-se um retrato de sua imagem juntamente com a construo de um thos. Podemos

    lembrar aqui um tipo de figura proposta por Quintiliano, a etopeia, em IX, II,58:

    Imitatio morum alienorum, quae ethopoia uel, ut alii malunt, mimesis dicitur, iam inter leniores adfectus numerari potest [...].

    A imitao dos costumes dos outros que uns chamam ethopoia ou, como outros preferem, mmesis, j pode ser numerada entre os afetos mais brandos [...]3.

    Hermgenes (II d.C.), terico da Segunda Sofstica, em seus Progymnsmata,

    20-22, trata da etopeia como a imitao do carter de uma personagem; tal imitao

    pode ser moral, emotiva ou mesmo mista. Aftnio (IV ou V d.C.) outro autor dos

    Progymnsmata afirma ser a etopeia de trs tipos: eidolopea, prosopopea e ethopea,

    em 34-36. A ethopea contm uma personagem conhecida, inventando-se apenas seu

    carter; a eidolopea contm uma personagem conhecida que j est morta e, por fim, a

    prosopopea ocorre quando se inventa a personagem e seu carter, personificando um

    objeto inanimado.

    Mais adiante nos deteremos nas particularidades das figuras aqui estudadas, por

    ora, pode-se dizer que a evidncia consiste tambm nessa prtica do retrato, pois

    permite ao leitor/ ouvinte visualizar um retrato do objeto detalhado. A cfrase tambm

    se insere nesse discurso, uma vez que um mtodo da amplificao; no entanto, o

    discurso ganha tamanha dimenso, que combina a descrio com a narrao. Embora

    possam se apresentar como digresses na estrutura do texto, so fundamentais para

    corroborar o propsito do autor, pois ambas operam a amplificao, que, por sua vez,

    constitui um recurso pattico da argumentao, comovendo e deleitando o pblico de

    modo a tornar o discurso mais verossmil.

    Esboamos anteriormente uma breve definio da cfrase e da evidncia e,

    embora seu tratamento seja retrico, a teoria retrica serve tambm poesia. Ainda que

    no sejam diretamente mencionados os termos cfrase e evidncia nos mais conhecidos

    tratados de potica da Antiguidade, observa-se a relao entre poeta/pintor ou escultor e

    3 Traduo nossa.

  • 13

    poesia/pintura ou escultura. A relao entre o aspecto visual e verbal muito recorrente

    entre as diversas filosofias da Antiguidade; por essa razo, procuraremos estabelecer um

    quadro que demonstre as idias que contribuem para a compreenso dos recursos aqui

    estudados.

    Na doutrina de Plato (427-347 a.C.), em diversos dilogos, encontramos

    importantes proposies a respeito da viso e das artes visuais; tambm encontramos a

    definio de phantasa, fantasia em portugus. Embora o termo seja traduzido de

    diferentes maneiras, em conformidade com a doutrina seguida por cada tratado,

    preferimos adotar a transliterao do mesmo, uma vez que sua acepo em portugus

    tambm comporta a diversidade semntica da palavra de origem4.

    No Sofista5, em 234b - 236c, Plato discursa contra o sofista, afirmando que o

    pintor tem a capacidade de enganar os jovens com sua arte quando mostrada distncia,

    pois parecero perfeitas e tero o nome das coisas reais, e o mesmo se pode fazer com

    as palavras. Com as palavras possvel produzir imagens verbais (edola legmena

    234c) de todas as coisas. Dessa maneira, os jovens, ainda no conhecedores da verdade,

    so convencidos de que tais imagens so verdadeiras. Entretanto, as pessoas mais

    velhas, em razo de sua experincia, aprendem a confiar apenas naquilo que real,

    mudando suas opinies; deste modo, o que era grande parecer pequeno, o que era fcil

    parecer difcil, e assim todas as verdades aparentes sero alteradas.

    O sofista utiliza a arte de fazer imagem (eidolopoiikn tcnen 235b) para

    imitar a realidade, mas ele no possuidor do conhecimento verdadeiro acerca de tais

    coisas; por essa razo, o sofista no confivel.

    H duas classes de imitao: a icstica (tknen eikastikn 235d) e a fantstica

    (tknen phantastikn 236c). A icstica segue as propores caractersticas do original

    em extenso, largura, profundidade e cores, produzindo, portanto, imagens semelhantes

    ao objeto imitado eikn. Nos grandes trabalhos, tais como a escultura e a pintura,

    contudo, no possvel reproduzir as propores verdadeiras das formas, pois as partes

    superiores pareceriam menores e as partes inferiores pareceriam grandes, pois a uma

    vemos distncia, a outra, de perto e consequentemente os artistas abandonam a 4 Algumas acepes para fantasia extradas do Houaiss Grande Dicionrio da Lngua Portuguesa: 1 faculdade de imaginar, de criar pela imaginao; 2 obra criada pela imaginao; 3 fig. coisa puramente ideal ou ficcional, sem ligao estreita e imediata com a realidade [...]; 7 psic. atividade representativa com certo grau de criao, cujos contedos so determinados por idias sbitas e por lembranas modificadas ou enfraquecidas de objetos, acontecimentos e situaes, inclusive sua significao emocional [...]; etim. lat. phantasa,ae 'viso, imaginao, aparncia, sombra, fantasma, sonho, idia, concepo'[...]. 5 Sophist. In: Plato.Trad. Harold N. Fowler. London: The Loeb Classical Library. 1952, vol. VII.

  • 14

    verdade e do s figuras no as propores do original, mas aquelas que conferem

    beleza a elas. Nesse caso, temos a imitao fantstica, que produtora de fantasma

    phntasma, no de imagem (eikn).

    Portanto, para que a cpia parea bela, o artista adapta as propores da obra

    pensando na localizao desta e na posio do espectador; as verdadeiras propores

    so substitudas por aquelas que transmitem a impresso de verdade, dada a distncia

    em que vista. Os preceitos platnicos condenam a atitude dos artistas que produzem

    imagens falsas, contudo, considerando-se os princpios de unidade e verossimilhana, a

    imitao fantstica necessria para produzir a imagem apropriada.

    Dionsio de Halicarnasso (I a.C.) em seu estudo sobre os oradores compara

    Lsias e Iscrates (Isocrates, 11): o primeiro mais conciso, simples e mais convicente

    em criar a iluso da verdade (eikasten); ao passo que o outro superior na amplificao,

    mais elaborado e habilidoso na tcnica. Observamos aqui a reiterao do carter icstico

    tratado por Plato no campo da oratria, visto que alguns oradores empregam esse estilo

    de representao, outros, no entanto, aproximam-se mais da fantstica.

    Em Parmnides6, 165a-d, a distncia entre o espectador e a obra um aspecto

    essencial para sua execuo. Ao tratar da concepo de quantidade feita pela mente (ti

    dianoai 165a/ b), Plato compara esse processo com a pintura as coisas contidas na

    pintura aparentam ser apenas uma quando vistas a certa distncia, porm, aproximando-

    se da pintura, possvel perceber que so vrias e distintas. Temos nesse contexto a

    tcnica da skiagrapha, pintura com sombra, que produz um efeito distncia

    contribuindo para produo da imagem que, vista de perto, contudo, perde tal efeito.

    Em Filebo7, 38b-41a, a opinio forma-se a partir da memria e da percepo8 (ek

    mnmes te ka aisthseos dxa). Ele afirma que a alma como um livro (38e), pois a

    memria se une aos sentidos, as sensaes conectadas aos respectivos sentidos parecem

    quase escrever palavras na alma e isso produz opinies verdadeiras ou falsas (39b);

    como se houvesse um pintor na alma que pinta quadros para ilustrar as palavras. Isso

    ocorre quando um homem recebe da viso, ou de algum outro sentido, as opinies e

    declaraes do momento e detm na mente as imagens de tais opinies e declaraes.

    As imagens das opinies verdadeiras so verdadeiras e, das falsas, so falsas. Essa

    experincia inevitvel em relao ao presente e ao passado, mas no em relao ao

    6 Parmenides. In: Plato. Trad. Harold N. Fowler. 1992, vol. IV. 7 Philebus. In: Plato. Trad. Harold N. Fowler. London: The Loeb Classical Library. 1995, vol. VIII. 8 Adotei aqui a traduo percepo para o termo aisthesis, no entanto, pode tambm ser traduzido como sensao.

  • 15

    futuro: o prazer e a dor que pertencem alma vm antes do prazer e da dor do corpo.

    Portanto, o prazer e a dor antecipados se referem ao futuro, ainda que sejam falsos, so

    imitaes dos verdadeiros, produzidas com base nesses quadros que j esto presentes

    em nossas almas.

    Na Potica de Aristteles (384-322 a.C.), a comparao com a pintura ocorre em

    diversas passagens9:

    [1448a 1] , ( , ), ' [1448a.5] , , , .

    Mas, como os imitadores imitam homens que praticam alguma ao, e estes, necessariamente, so indivduos de elevada ou de baixa ndole (porque a variedade dos caracteres s se encontra nestas diferenas [e, quanto a carter, todos os homens se distinguem pelo vcio ou pela virtude]), necessariamente tambm suceder que os poetas imitam homens melhores, piores ou iguais a ns, como o fazem os pintores: Polignoto representava os homens superiores; Puson, inferiores; Dionsio representava-os semelhantes a ns. [...] (II, 1448a)

    [1450a 23] , [1450a.25] ' , , , .

    Sem ao no poderia haver Tragdia, mas poderia hav-la sem caracteres. As Tragdias da maior parte dos modernos no tm caracteres, e, em geral, h muitos poetas desta espcie. Tambm, entre os pintores, assim Zuxis10 comparado com Polignoto, porque Polignoto excelente pintor de caracteres e a pintura de Zuxis no apresenta carter nenhum. (VI, 1450a)

    [1460b.8] , [1460b.10] , , , . ' [1460b 13] .

    9 Para todas as citaes da Potica adotamos a traduo de Eudoro de Souza. So Paulo: Ars Poetica. 1992. 10 Acerca da relao da relao homolgica entre a pintura de Zuxis e a Retrica, cf. Martins, P. Cicero: The Picturing of a Rhetoric. 2010. [Aguarda Referee da Classical Philology, University of Chicago.]

  • 16

    O poeta imitador, como o pintor ou qualquer outro imaginrio; por isso, sua imitao incidir num destes trs objetos: coisas quais eram ou quais so, quais os outros dizem que so ou quais parecem, ou quais deveriam ser. Tais coisas, porm, ele as representa mediante uma elocuo que compreende palavras estrangeiras e metforas, e que, alm disso, comporta mltiplas alteraes, que efetivamente consentimos ao poeta. (XXV, 1460b)

    No primeiro excerto, o componente que estabelece a relao entre pintura e

    poesia o objeto de imitao, tanto o poeta como o pintor representam homens

    superiores, inferiores ou iguais a ns. A partir dessa proposio, considerando a

    classificao da poesia que temos na Potica, possvel estabelecer um quadro

    comparativo com os gneros poticos e pictricos, conforme se observa no quadro

    elaborado por Paulo Martins11:

    A segunda passagem trata da Tragdia, que pode ser feita sem caracteres e, para

    corroborar essa teoria, exemplifica com a pintura, pois prova que a pintura pode ou no

    ter caracteres no se deve ignorar que o gnero potico comparado aqui com a pintura

    destinado apresentao teatral; portanto, o aspecto visual tambm fundamental

    para a composio da poesia trgica, o que torna a relao proposta mais evidente. Por

    fim, afirma que o poeta imitador, como o pintor (...) e, por essa razo, eles mantm a

    mesma relao com o objeto de imitao, cuja representao pode ou no ser como o

    original.

    11 Polignoto, Puson, Dionsio e Zuxis Uma leitura da pintura antiga clssica grega. 2008. [Aguarda publicao na Revista Phaos. Campinas: IEL/UNICAMP]

    GNERO PINTURA POESIA Imitao NDOLE IMITADO

    ELEVADO GENUS NOBILE

    Polignoto [ekazen kretouj] Homero/Sfocles pica/Trgica Elevada (ret)

    Superior Virtude

    MDIO GENUS MEDIUM

    Dionsio [ekazen moouj] Pndaro/Alceu Lrica Coral Epincios Lrica Mondica - Odes

    Mdia Igual a ns Mesotes

    BAIXO GENUS HUMILE

    Puson [ekazen ceirouj] Arquloco/Semnides de Amorgos Imbica/Satrica Baixa

    (kaka) Inferior Vcio

  • 17

    A pintura j aparecera na Poltica12 de Aristteles durante a discusso acerca da

    incluso da msica na educao, que no apenas uma forma de entretenimento, mas

    tambm a representao de certas emoes e de qualidades morais que, quando as

    msicas so ouvidas, nos levam a operar a correspondncia destas imitaes com a

    realidade:

    [...] ' [1340a.25] ( ' , , , ). , [1340a.30] , ' ( , ' , , , ' [1340a.35] ' , , ) [...]

    [...] a tendncia para sofrer e deleitar-se com representaes da realidade extremamente relacionada com o sentimento diante dos prprios fatos (por exemplo, se um homem se deleita na contemplao da esttua de algum por nada mais que sua beleza, a viso real da pessoa cuja esttua ele contemplou deve ser-lhe igualmente agradvel); acontece que os objetos atuantes sobre outros sentidos no transmitem qualquer sensao semelhante s qualidades do carter, como por exemplo os que afetam o tato e o paladar (embora os objetos que afetam a viso tenham uma ligeira ao desse tipo, pois h formas que representam um carter, mas somente em pequena escala, e nem todos os homens so capazes de provar esta espcie de sensao); as obras de artes visuais no so representaes de emoes do carter, pois as formas e cores so meras indicaes de tais emoes, e estas indicaes so apenas sensaes corpreas simultneas com as emoes; sua relao com a moral diminuta, mas uma vez que h alguma os jovens devem ser instrudos para olhar no as obras de Puson, mas as de Polgnotos, ou de qualquer outro pintor ou escultor que reproduza sentimentos de ordem moral. (1340a) [...]

    Ao contrrio da msica, a pintura nem sempre reproduz as disposies morais e

    mesmo quando o faz em pequena escala; ainda assim, a arte imagtica capaz de

    indicar certos traos de carter, diferentemente do tato e do paladar, por meio das

    formas e das cores, por isso ele aconselha para a educao dos jovens obras como as de

    Polignoto, pois ele imitava tais disposies, e desaconselha as de Puson, que no as

    12 Edio adotada: Traduo de Mrio da Gama Kury. Braslia: Editora da Universidade de Braslia. 1985.

  • 18

    representava. Vale lembrar que Aristteles j os mencionara na Potica, conforme j

    vimos Polignoto representa homens superiores, Puson, inferiores. Portanto, Aristteles

    aconselha a pintura de matria elevada e com imitao das caractersticas morais para a

    educao.

    Na Epistola ad Pisones de Horcio (I a.C.), considerada como sua Ars Poetica,

    ele tambm menciona a relao existente entre poesia e pintura13:

    Humano capiti ceruicem pictor equinam iungere si uelit et uarias inducere plumas undique conlatis membris, ut turpiter atrum desinat in piscem mulier formosa superne, spectatum admissi risum teneatis, amici? 5 Credit, Pisones, isti tabulae fore librum permisilem, cuius, uelit aegri somnia, uanae fingentur species, ut nec pes nec caput uni reddatur formae. Pictoribus atque poetis quidlibet audendi semper fuit aequa potestas. 10

    Se um pintor quisesse juntar a uma cabea humana um pescoo de cavalo e a membros de animais de toda a ordem aplicar plumas variegadas, de forma a que terminasse em torpe e negro peixe a mulher de bela face, contereis vs o riso, meus amigos, se a ver tal espetculo vos levassem? Pois crede-me, Pises, em tudo a este quadro se assemelha o livro, cujas idias vs se concebessem quais sonhos de doente, de tal modo que nem ps nem cabea pudessem constituir uma s forma. Direis vs que a pintores e a poetas igualmente se concedeu, desde sempre, a faculdade de tudo ousar. (v.1-10)

    Segnius irritant animos demissa per aurem 180 quam quae sunt oculis subiecta fidelibus et quae ipse sibi tradit spectator []

    [...] O que se transmitir pelo ouvido, comove mais debilmente os espritos do que aquelas coisas que so oferecidas aos olhos, testemunhas fiis, e as quais o espectador apreende por si prprio. [...] (v.180-82)

    Vt pictura poesis; erit quae, si proprius stes, te capiat magis, et quaedam, si longius abstes; haec amat obscurum, uolet haec sub luce uideri, iudicis argutum quae non formidat acumen; haec placuit semel, haec deciens repetita placebit. 365

    13 Edio adotada: Traduo de R. M. Rosado Fernandes. Lisboa: Inqurito. 1984.

  • 19

    Como a pintura a poesia: coisas h que de perto mais te agradam e outras, se a distncia estiveres. Esta quer ser vista na obscuridade e aquela viva luz, por no recear o olhar penetrante dos seus crticos; esta, s uma vez agradou, aquela, dez vezes vista, sempre agradar. (v.361-65)

    Logo no comeo ele trata da coerncia com que o pintor deve constituir sua obra

    e, em seguida, compara a pintura ao livro e, o pintor, ao poeta. A proposio a respeito

    da unidade da obra est de acordo com a teoria aristotlica; a verossimilhana tida

    como fundamental em sua potica e Horcio, para abordar tal questo, de tamanha

    relevncia, aplica o smile mencionado acima, demonstrando assim mais uma faceta

    comum a ambos no se trata mais do objeto de imitao, ambos partilham tambm as

    mesmas estratgias de composio.

    No segundo excerto, discute-se acerca das coisas que podem ser encenadas: os

    fatos relatados tm menor impacto sobre o pblico do que aquilo que oferecido aos

    olhos (quae sunt oculis subiecta), pois, dessa maneira, o espectador testemunha dos

    fatos, consequentemente, comove-se mais. Ainda assim, o decoro exige que alguns fatos

    no apaream, apenas devem ser relatados, o caso das cenas de crimes nas tragdias.

    Na ltima passagem mencionada, destaca-se a expresso Vt pictura poesis,

    pois se trata de um smile que estabelece diretamente a analogia entre pintura e poesia,

    seguida de uma breve explicao que corrobora tal afirmao. Horcio levanta trs

    aspectos prprios da pintura: a distncia, a luz e a capacidade de deleitar algumas

    devem ser observadas de perto, sob a luz e sempre agradaro; outras, distncia, na

    obscuridade e agradaro apenas uma vez.14

    Entende-se que o mesmo ocorre na poesia: alguns gneros, como o pico, devem

    ser observados distncia, pois se trata de um poema longo e, portanto, o poeta deve

    trabalhar para a unidade da obra. No podemos esquecer que, nos versos anteriores a tal

    14 Recomendo o artigo: TRIMPI, W. Horaces Ut pictura poesis: The argument for stylistic decorum. In: Traditio. Nova York: Fordham University Press. 1978, vol.34, pp. 29-73. Cf.pp. 30-1: O autor analisou a passagem e declarou haver certas dificuldades para sua interpretao, demonstrando a ruptura de paralelismo na comparao: a primeira relao entre pintura e poesia a distncia, chamada por ele de A1 e A2, que nas comparaes subsequentes, em vez do que se espera, A1 equivale a B2 (sob a luz) e C2 (vrias vezes agradar) e A2 equivale a B1 (na obscuridade) e C1 (s uma vez agradar). Os dois primeiros itens da comparao no so paralelos, formam um quiasma; no entanto, o terceiro item no segue esse procedimento e permanece numa relao paralela com o item anterior. Na opinio do autor, Horcio torna a passagem um tanto confusa para aconselhar a evitar a obscuridade e retornar ao paralelismo simples do procedimento retrico, aplicado em gneros como o epistolar aqui utilizado; porm, outros gneros necessitam dessa obscuridade, como seria o caso da pica e mesmo da Oratria.

  • 20

    comparao, Horcio admite que at Homero durma na produo de obra to extensa,

    por essa razo, deve ser observada tambm na obscuridade, o olhar atento notaria as

    falhas. Ao passo que outros, como o imbico ou lrico, devem ser vistos de perto, sem

    desconsiderar nenhum detalhe, em razo de sua breve extenso, tudo deve contribuir

    para formar a unidade do poema, exigindo que seja visto de perto e sob a luz 15.

    O aspecto da distncia lembra as proposies j levantadas por Plato no que

    concerne visualizao de uma obra, tal como vimos no Sofista e em Parmnides.

    Assim como a escultura e a pintura, a poesia depende dos mesmos critrios de

    produo, visto que cada gnero se adapte para criar o efeito necessrio e esperado pelo

    seu espectador/ leitor.

    Outro tratado potico do qual se podem depreender conceitos referentes aos

    mecanismos aqui estudados o Do Sublime, de autoria e datao imprecisa, mas

    atribudo geralmente a Longino, no sculo I d.C. Em dado momento, o autor compara a

    oratria pintura:

    ' , [17.3.5] . , .

    Disso talvez no difira muito o que acontece na pintura: embora postas em cores, lado a lado, no mesmo plano, a sombra e a luz, esta se oferece melhor vista e aparenta estar no s em relevo, mas muito mais perto. Nos discursos, pois, o pattico e o sublime, mas aproximados de nossa alma, graas a uma afinidade natural e ao brilho, sempre se mostram antes das figuras, obumbrando e mantendo encoberto o artifcio destas16. (XVII, 3)

    15 Essa proposio est bem explicada no artigo: MARTINHO, M. dos Santos. O monstrum da Arte Potica de Horcio. In: Letras Clssicas, 2000, n4, pp.191-265. Segue-se o excerto que resume a ideia dessa passagem horaciana: Ora, o poema que quer ser visto sob a luz seria o breve, cuja elocuo o poeta burila para que seja luzidia; o poema que ama o escuro seria o longo, cuja disposio o poeta planeia para que seja coerente. Pois, de um lado, o poema breve, porque uma pequena tira, exige do poeta que lapide uma a uma as palavras, isto , que labore na elocuo, mas, porque carece de partes, dispensa-o da disposio. De outro lado, o poema longo, porque se compe de partes, exige do poeta que encadeie tiras inteiras de palavras, isto , que labore na disposio, mas, porque transcende a singularidade das palavras, permite-lhe que cochile na elocuo. Assim, o poema breve composio mais minuciosa, cujas palavras se devem inspecionar; o poema longo composio mais difusa, cujo todo se deve contemplar. (pp.208). 16 Para todas as citaes Do Sublime adotamos a traduo de Jaime Bruna. So Paulo: Cultrix. 1997.

  • 21

    Ao tratar do emprego das figuras em geral, subentendendo-se a associao com a

    pintura, afirma-se que conferem brilho ao discurso; no entanto, o uso excessivo pode

    comprometer-lhe a credibilidade. Assim, a figura no deve transparecer; para tal

    preciso que o efeito produzido sobre o pblico seja intenso, desviando a ateno das

    estratgias utilizadas e aproximando o leitor do resultado, pois o que se aproxima da

    alma capaz de encobrir o uso das figuras.

    Advm da a comparao, da mesma maneira que o discurso sublime e o

    pattico encobrem o emprego das figuras na oratria, a luz disfara a sombra na pintura,

    pois a primeira mais evidente, mas graas ao efeito provocado pela outra. O emprego

    de luz e sombra j aparecera como tcnica da pintura nos dilogos de Plato, onde a

    sombra contribui para compor a unidade da imagem vista distncia.

    I.1. AMPLIFICAO

    No que concerne amplificao, pode-se entender sua relao com a descrio e

    a evidncia partindo da definio aristotlica que aparece na Retrica. Ele expe

    claramente que a axesis (amplificao) um recurso apropriado ao discurso do gnero

    epidtico, dessa forma possvel tornar mais belas ou mais feias as aes do indivduo17

    (tendo em vista naturalmente as duas chaves possveis do demonstrativo):

    , ' [] . [...] ' , ' , 1368a.25 , . ( , ).

    [1368a38] Devemos igualmente empregar muitos meios de amplificao; por exemplo, se um homem agiu s, ou em primeiro lugar, ou com poucas pessoas, ou se teve a parte mais relevante na aco; pois todas estas circunstncias so belas. [...] A amplificao enquadra-se logicamente nas formas de elogio, pois consiste em superioridade e superioridade uma das coisas belas. Pelo que, se no possvel comparar algum com pessoas de renome, pelo menos

    17 Cf. nota 1.

    Aristteles

  • 22

    necessrio compar-lo com as outras pessoas, visto que a superioridade parece revelar a virtude. Entre as espcies comuns a todos os discursos, a amplificao , em geral, a mais apropriada aos epidcticos; pois estes tomam em considerao as aces por todos aceites, de sorte que apenas resta revesti-las de grandeza e de beleza.

    A amplificao considerada parte importante do elogio porque tudo que se

    acrescenta de bom a respeito de um indivduo o faz parecer melhor; devem-se, portanto,

    mencionar todas as circunstncias que ajudem a destacar a grandeza do indivduo,

    inclusive aquelas que so derivadas do tempo e das ocasies, quantas vezes obteve

    sucesso em algo, se lhe foi inventada alguma honraria, se teve uma esttua erguida em

    sua homenagem; no entanto, caso no haja matria suficiente para o elogio, a pessoa

    deve ser comparada com algum de renome, pois parecer melhor que os virtuosos

    amplifica suas qualidades; ainda assim, se no for possvel comparar com algum de

    renome, necessrio comparar com outras pessoas, para demonstrar superioridade, pois

    por meio disso revela-se a virtude.

    Como j dissemos, um recurso tpico do discurso epidtico, que no discute a

    veracidade do que se diz, mas serve para enaltecer o indivduo sobre o qual se fala. No

    gnero deliberativo, os exemplos so mais apropriados, pois servem como base para

    julgarmos o futuro. Os entimemas, por sua vez, servem aos discursos judicirios, com o

    objetivo de explicar e demonstrar o que aconteceu.

    Assim como o elogio, a invectiva tambm compe o gnero epidtico e,

    consequentemente, a amplificao tambm empregada nesses casos, mas com

    procedimentos contrrios aos do elogio, j que a censura deriva dos contrrios.

    Os tratados de oratria, tais como os de Ccero, comparam a arte do bem dizer

    pintura ou escultura com frequncia. Com base nisso, entende-se a relao da

    amplificao com os recursos aqui estudados, uma vez que os resultados obtidos com

    esse procedimento conferem, muitas vezes, certa visibilidade ao discurso.

    A enargia ou evidncia aparece em algumas proposies ciceronianas, embora

    ele no empregue uma terminologia especfica para o procedimento. Dentre suas obras,

    adotamos De Partitione Oratoria e De Oratore como base para a conceituao da

    amplificao, das quais efetuamos leitura mais detalhada.

    Ccero

  • 23

    Ccero explica mais detidamente a amplificao no De Partitione Oratoria, nos

    27 e 52-818:

    27. [...] Quattuor esse eius partes, quarum prima et postrema ad motum animi ualet is enim initiis est et perorationibus concitandus -, secunda, narratio, et tertia, confirmatio, fidem facit orationi. Sed amplificatio quamquam habet proprium locum, saepe etiam primum, postremum quidem fere semper, tamen reliquo in cursu orationis adhibenda est, maximeque cum aliquid aut confirmatum esta ut reprehensum. Itaque ad fidem quoque uel plurimum ualet; est enim amplificatio uehemens quaedam argumentatio, ut illa docendi causa sit, haec commouendi.

    27. [...] Quatro so as suas partes [do discurso], das quais a primeira e a ltima so capazes de mover o nimo com efeito, ele deve ser movido nos incios e nas peroraes , a segunda, a narrao, e a terceira, a confirmao, confere credibilidade ao discurso. Mas a amplificao, ainda que tenha um lugar prprio muitas vezes o primeiro, na verdade, quase sempre o ltimo, deve ser, contudo, colocada no restante do discurso, sobretudo quando h algo para se confirmar ou repreender. Portanto, tambm muitssimo eficaz para a credibilidade; pois a amplificao certa argumentao veemente, de modo que esta tenha como objetivo ensinar, aquela, comover.

    52. Facilior est explicatio perorationis. Nam est diuisa in duas partes, amplificationem et enumerationem. Augendi autem et hic est proprius locus in perorando, et in cursu ipso orationis declinationes ad amplificandum dantur confirmata re aliqua aut reprehensa. 53. Est igitur amplificatio grauior quaedam affirmatio quae motu animum conciliet in dicendo fidem. Ea et uerborum genere conficitur et rerum. Verba ponenda sunt quae uim habeant illustrandi nec ab usu sint abhorrentia, grauia, plena, sonantia, iuncta, facta, cognominata, non uulgata, superlata, in primisque translata; nec in singulis uerbis sed in continentibus soluta, quae dicuntur sine coniunctione, ut plura uideantur. 54. Augent etiam relata uerba, iterata, duplicata, et ea quae ascendunt gradatim ab humilioribus ad superiora; omninoque semper quasi naturalis et non explanata oratio, sed grauibus referta uerbis, ad augendum accomodatior. Haec igitur in uerbis, quibus actio uocis, uultus et gestus congruens et apta ad animos permouendos accomodanda est. Sed et in uerbis et in actione causa erit tenenda et pro re agenda; nam haec quia uidentur perabsurda cum grauiora sunt quam causa fert, diligenter quid quemque deceat iudicandum est. [XVI] 55. Rerum amplificatio sumitur eisdem ex locis omnibus quibus illa quae dicta sunt ad fidem; maximeque definitiones ualent conglobatae et consequentium frequentatio et contrariarum et dissimilium et inter se pugnantium rerum conflictio, et causae, et ea quae sunt de causis orta, maximeque similitudines et exempla; fictiae etiam personae, muta denique loquantur; omninoque ea sunt adhibenda, si causa patitur, quae magna habentur, quorum est duplex

    18 Traduo nossa.

  • 24

    genus: 56. alia enim magna natura uidentur, alia usu natura, ut caelestia, ut diuina, ut ea quorum obscurae causae, ut in terris mundoque admirabilia quae sunt, ex quibus similibusque, si attendas, ad augendum permulta suppetunt; usu, quae uidentur hominibus aut prodesse aut obesse uehementius, quorum sunt genera ad amplificandum tria. Nam aut caritate mouentur homines, ut deorum, ut patriae, ut parentum, aut amore, ut fratrum, ut coniugum, ut liberorum, ut familiarium, aut honestate, ut uirtutum, maximeque earum quae ad communionem hominum et liberalitatem ualent. Ex eis et cohortationes sumuntur ad ea retinenda, et in eos a quibus ea uiolata sunt odia incitantur et miseratio nascitur. 57. [Proprius locus est augendi in his rebus aut amissis aut amittendi periculo.] Nihil est enim tam miserabile quam ex beato miser, et hoc totum quidem moveat, si bona ex fortuna quis cadat, et a quorum caritate diuellatur, quae amittat aut amiserit, in quibus malis sit futurusue sit exprimatur breuitercito enim arescit lacrima, praesertim in alienis malis; nec quidquam in amplificatione nimis enucleandum est, minuta est enim omnis diligentia; hic autem locus grandia requirit. 58. Illud iam est iudicii, quo quaque in causa genere utamur augendi. In illis enim causis quae ad delectationem exornantur ei loci tractandi sunt qui mouere possunt exspectationem, uoluptatem; in cohortationibus autem bonorum ac malorum enumerationes et exempla ualent plurimum. In iudiciis accusatori fere quae ad iracundiam, reo plerumque quae ad misericordiam pertinent; nonnumquam tamen accusator misericordiam mouere debet et defensor iracundiam.

    52. [...] Explicar a perorao mais fcil. Pois foi dividida em duas partes, a amplificao e a enumerao. No entanto, no s este o lugar prprio para aumentar, ao perorar: tambm no prprio discurso, so apresentados desvios para amplificar, quando algo confirmado ou repreendido. 53. Pois a amplificao certa afirmao mais grave que capaz de conciliar a credibilidade no discurso com o movimento dos nimos. Ela produzida mediante o gnero de palavras e de assuntos. Devem ser colocadas as palavras que tenham fora de ilustrar e que no estejam apartadas do uso: as palavras graves, as fortes, as sonoras, as compostas, as criadas, as sinnimas, as batidas, as hiperblicas, e, primeiramente, as metafricas; no apenas em palavras sozinhas, mas naquilo que as contm, que so ditas sem conjuno para que paream mais numerosas. 54. Tambm aumentam as palavras repetidas, reiteradas, duplicadas e aquelas que se elevam gradativamente das coisas mais humildes para as superiores; sempre mais apropriado para aumentar o discurso como se fosse natural e no esclarecido, mas cheio de palavras graves. Pois tais coisas esto nas palavras, com as quais deve ser empregada a ao congruente e apropriada da voz, do semblante e do gesto para comover os nimos. Mas a causa dever estar contida nas palavras e na ao e dever ser feita em favor do assunto; com efeito, porque tais coisas parecem muito absurdas quando so mais graves do que a causa admite, que se deve julgar o que convenha a cada um cuidadosamente. (XVI) 55. A amplificao dos assuntos tomada dos mesmos lugares em que se arrolaram as matrias pertinentes para a credibilidade; sobretudo, so eficazes as definies aglomeradas, a acumulao de consequncias e o conflito de coisas contrrias, dissmeis e opostas entre si, e as causas, e as coisas que nasceram das causas, sobretudo as semelhanas

  • 25

    e os exemplos; tambm falam as personagens fictcias, por fim, as coisas mudas; se a causa permite, devem-se apresentar inteiramente os assuntos, considerados grandes, dos quais o gnero duplo. 56. Com efeito, uns assuntos parecem grandes por natureza, outros pelo uso. Por natureza, so assuntos celestes, divinos, aqueles de causas obscuras, as coisas que so admirveis na terra e no mundo, delas e a das semelhantes a ela, se prestares ateno, uma grande quantidade disposio para aumentar; pelo uso so aqueles assuntos que parecem mais veemente serem teis ou nocivos aos homens, dos quais os gneros para amplificar so trs. Pois os homens ou so movidos pela caridade, como dos deuses, da ptria, dos parentes, ou pelo amor, como dos irmos, dos cnjuges, dos filhos, dos familiares, ou pela honestidade, como da virtude e, sobretudo, daquelas que contribuem para a comunho e bondade dos homens. De tais coisas, tomam-se as exortaes para aquilo que deve ser preservado e, para aqueles que as violaram, so incitados os dios e nasce a comiserao. 57. [H um lugar prprio para o que se deve aumentar em tais coisas perdidas ou em perigo de se perder.] Com efeito, nada h de to triste quanto passar de ditoso a miservel e, certamente, que isso tudo comova, se algum cair da boa fortuna e for afastado da caridade de alguns, o que perder e tiver perdido, em quais males esteja ou estar, que seja exposto brevemente com efeito, rapidamente a lgrima seca, principalmente em males alheios; e nada deve ser esclarecido demasiadamente na amplificao, pois toda a diligncia pequena; este, porm, o lugar de coisas grandes. 58. Agora, aquilo que do julgamento, qual gnero de amplificao faamos uso em cada causa. Com efeito, naquelas causas que so ordenadas para deleitar, devem ser empregados os lugares que podem mover a expectativa, a admirao e o prazer; porm, nas exortaes, as enumeraes dos bens e dos males e os exemplos so muito eficientes. Nos julgamentos, geralmente, pertencem ao acusador as coisas para a iracndia, ao ru, quase sempre, as coisas para a misericrdia; contudo, algumas vezes, o acusador deve mover a misericrdia e o defensor, a iracndia.

    A amplificao uma das partes da perorao, juntamente com a enumerao,

    embora ela possa ser utilizada ao longo de todo o discurso, ocorre que a perorao

    uma parte apropriada para comover, assim como o incio o que Ccero afirma no

    27, quando j nos adianta a funo da amplificao, afirmando que ela pode aparecer

    em todo momento ao se confirmar ou censurar algo no discurso, com o objetivo no

    apenas de comover como tambm de reforar a credibilidade daquilo que se diz

    afirmao reforada no 53.

    Prosseguindo com a descrio da amplificao, ainda na mesma obra, ela se faz

    de palavras (genere uerborum) e assuntos ou temas (genere rerum): quanto s palavras,

    devem ter fora para ilustrar termo que nos remete ao campo semntico da evidncia

    (Verba ponenda sunt quae uim habeant illustrandi [...]) alm de outras caractersticas,

    tais como: em primeiro lugar, devem ser metaforizadas ([...] in primisque translata),

  • 26

    podem ser repetidas, confirmadas ou acrescentadas, tambm pode ascender

    gradativamente das coisas humildes para as superiores, as palavras devem, ainda, ser

    empregadas em conjunto, para que tais procedimentos se destaquem mais.

    Em relao aos assuntos, os mesmos loci atribudos para tornar o discurso crvel

    (34-40) podem ser empregados aqui, em resumo: elementos extrados de partes da

    narrao que provam a verossimilhana, tais como as pessoas, os lugares, o tempo, os

    feitos, as ocorrncias e a natureza do assunto e das ocupaes (estes lembram as

    circunstncias mencionadas antes por Aristteles para demonstrar a grandeza do

    indivduo) tais elementos devem ser escolhidos para se fazer uma conjectura; outros

    argumentos so vestgios que podem ser percebidos pelos sentidos, ou qualquer indcio

    de premeditao que possa ser mostrado; o uso do exemplo com base em algo

    verdadeiro introduz um paralelo e auxilia na comoo, estabelecendo maior

    credibilidade.

    Ccero nos apresenta os recursos para amplificao dos assuntos resumidamente

    no 55, destacando o uso das semelhanas e dos exemplos, se necessrio, personagens

    fictcios, ou mesmo as coisas mudas, devem falar. Os assuntos grandiosos so

    preferveis, os quais podem ser classificados segundo a natureza ou o uso: o primeiro

    relaciona-se aos assuntos divinos, instrumentos fceis para operar a amplificao, o

    outro, trata de assuntos que podem ser teis ou prejudiciais aos homens, no caso da

    amplificao podem ser a caridade, o amor e a honestidade, pois estes afetam o pblico.

    A mudana de fortuna outro locus da amplificao, pois isso digno de compaixo,

    entretanto, no se deve prolongar demais, pois nada deve ser explicado em detalhes na

    amplificao uma vez que esse o lugar de temas grandes.

    A amplificao deve se adaptar a cada causa: se o objetivo delectare (aqui se

    enquadra o gnero epidtico ou demonstrativo) preciso utilizar loci que podem mover

    a expectativa, a admirao, o prazer, ao passo que, no discurso deliberativo, so mais

    teis a enumerao dos bens e dos males e os exemplos, e, no judicirio, o orador deve

    mover a misericrdia ou a ira, dependendo de sua posio. Portanto, a amplificao

    um recurso admitido nos trs gneros retricos.

    A partir dessa caracterizao, entendemos que a amplificao um

    procedimento que envolve o uso de inmeras figuras, de vrios tipos; a evidncia

    constitui-se como uma delas, que tida como figura de pensamento, conforme

    classificao usual Ccero trata a respeito de figura de pensamento quando cita os dois

    tipos de figura no De Oratore, III, 200: o orador precisa conhecer as figuras, tanto de

  • 27

    palavras (uerborum) como de pensamentos (sententiarum) para ornar o discurso. O que

    diferencia basicamente esses dois tipos que a figura de palavra depende da maneira

    como so empregadas as palavras, se sofrem alterao ento a figura se perde, ao passo

    que a de pensamento permanece, ainda que haja alterao, pois pertence a um mbito

    maior.

    O conceito de amplificao aparece no De Partitione Oratoria com uma extensa

    explicao, talvez em razo do carter mais sistemtico da obra, ao passo que, no De

    Oratore, menciona-se diversas vezes o procedimento, mas sempre relacionado a alguma

    questo sobre a arte oratria em discusso no dilogo. Portanto, dessa segunda obra de

    Ccero, nos importa buscar as comparaes que faz acerca da arte verbal e a no-verbal,

    alm das afirmaes a respeito da importncia da viso, pois tais questes tambm so

    indispensveis para a compreenso da enargia/ evidncia. Antes, porm, ressaltamos

    que as proposies do dilogo partem de personagens diversas; portanto, algumas das

    questes so produtos dessa discusso e no h uma concluso, uma vez que tudo

    defendido com maestria pelas personagens. Assim, seria equivocado dizer que Ccero

    assume a posio de uma das personagens, ainda que alguns tericos faam isso.

    Em primeiro lugar, devemos expor as passagens a respeito da amplificao no

    De Oratore para exemplificar. Em I, 143, Ccero afirma que, ao fim do discurso, o

    orador deve amplificar e aumentar (amplificanda et augenda) o que favorvel para sua

    causa e debilitar o que favorece a parte contrria (infirmanda atque frangenda). Em I,

    221, o orador amplifica e orna (amplificat atque ornat) com seu discurso as coisas que

    parecem desejveis na vida. No livro II, 80, aps enumerar brevemente as partes do

    discurso, diz que, antes de perorar, uma digresso pode ser inserida para ornar e

    amplificar (ornandi aut augendi). Nota-se que, em dois dos fragmentos destacados, a

    amplificao aparece em par com o ornato, tema que ser tratado ao longo do terceiro

    livro da mesma obra. Em resumo, entende-se o ornato como o conjunto de virtudes do

    discurso capazes de torn-lo mais eficiente em seu objetivo.

    Tal aspecto deve ficar mais claro no livro III, conforme veremos a seguir. No

    104-5, a amplificao aparece como um procedimento que ornamenta (amplificare rem

    ornando), por meio do qual o tema pode ser elevado ou rebaixado e muito eficiente

    para persuadir o pblico, tanto quando se explica algo (docere) como para mover os

    nimos (mouere) e nada mais apropriado no gnero epidtico do que o recurso da

    amplificao ([...] laudandi et uituperandi; nihil est enim ad exaggerandam et

  • 28

    amplificandam orationem accommodatius quam utrumque horum cumulatissime facere

    posse.), pois aumentamos as virtudes ou os vcios do indivduo.

    No contexto das figuras de pensamento, no 202, algumas so capazes de

    ilustrar e amplificar a causa exposta (ad inlustrandum [...] ad amplificandum)

    novamente, temos a relao entre a amplificao e a evidncia:

    Nam et commoratio una in re permultum mouet et illustris explanatio rerumque quasi gerantur sub aspectum paene subiectio, quae et in exponenda re plurimum ualent et ad illustrandum id quod exponitur et ad amplificandum, ut eis qui audient illud quod augebimus quantum efficere oratio poterit tantum esse uideatur [...].

    Pois muito comove demorar numa matria, explicar claramente os assuntos e colocar diante dos olhos os assuntos que contam para sua exposio, tanto para ilustrar o que se expe, como para amplific-la, de maneira que quem que ouve aquilo que amplificamos julgue que exista nas propores que o discurso for capaz de produzir [...].19

    J percebemos que a relao da evidncia com a amplificao reside no

    resultado que se pretende obter a amplificao reala o que dito, logo, a evidncia

    um mtodo amplificativo com uma finalidade especfica: no apenas enaltecer o

    contedo do discurso como torn-lo visvel.

    Ao tratar do mtodo pelo qual se pode elevar ou diminuir o tema, Quintiliano

    discorre acerca da amplificao, no livro VIII da Institutio Oratoria, captulo 4

    procedimento que se concentra nas palavras que descrevem o objeto, por exemplo, se

    um homem foi espancado, dizemos que foi assassinado, ou se falarmos de um homem

    desonesto, dizemos que um ladro. Este tipo de amplificao torna-se mais evidente

    por meio do uso de palavras de significado mais forte em comparao s palavras que

    so substitudas.

    Quintiliano considera quatro tipos de amplificao: acrscimo (incrementum),

    comparao (comparatio), silogismo (ratiocinatio) e acumulao (congeries).

    O acrscimo muito potente, faz parecer grande mesmo as coisas inferiores.

    Emprega-se por meio da elevao gradativa, ultrapassando s vezes os limites que o

    assunto comporta. Um exemplo fornecido por Quintiliano, 6 do captulo 4, a

    19 Traduo nossa.

    Quintiliano

  • 29

    descrio de Lauso na Eneida, cuja caracterstica se destaca com o uso de um

    superlativo:

    quo pulchrior alter Non fuit, excepto Laurentis corpore Turni.

    pois no houve outro mais belo do que ele, com exceo de Turno Laurentino20.

    (Eneida, 7, 649)

    O acrscimo baseia-se na superioridade, a forma que se faz por comparao

    procura elevar a partir de coisas menores. Aumentando o que inferior,

    necessariamente se exalta o que est acima. Segue o exemplo:

    13. [] An uero uir amplissimus P. Scipio, pontifex maximus, Ti. Gracchum mediocriter labefactantem statum rei publicae priuatus interfecit: Catilinam orbem terrae caede atque incendio uastare cupientem nos consules perferemus?

    [] Pois, na verdade, o homem mais ilustre P. Cipio, pontfice mximo, estando privado da vida pblica, matou T. Graco que abalou mediocremente o estado: ns, cnsules, suportaremos Catilina desejoso de destruir a terra intera com a matana e com o incndio?21

    (Catlinrias, I, i, 3)

    Segundo Quintiliano, Catilina comparado a Graco, a constituio do estado

    est associada ao mundo todo, tambm se estabelece a associao entre um cidado

    comum e os cnsules todas as comparaes podem ser expandidas. A comparao

    nessa passagem funciona como mecanismo argumentativo, pois se um cidado comum,

    mas ilustre, foi capaz de assassinar aquele que ameaava o estado, por que o consulado

    maior que um nico homem deve suportar a traio de Catilina?

    O silogismo produz seu efeito no na parte em que for introduzido, mas em

    outro ponto; algo engrandecido para que haja acrscimo em outro lugar. Por meio do

    raciocnio os ouvintes so levados do primeiro ponto para o segundo que se quer

    enfatizar. Quando Ccero est prestes a reprovar Antnio por sua embriaguez e vmito,

    ele diz:

    20 Traduo nossa. 21 Traduo nossa.

  • 30

    16. [] Tu, istis faucibus, istis lateribus, ista gladiatoria totius corporis firmitate.

    [] Tu, com essa garganta, esses flancos, essa fora de gladiador no corpo inteiro22.

    (Philippica. II, 25, 63).

    Quintiliano questiona: Qual a relao da garganta e dos flancos com sua

    embriaguez? A referncia no seria suprflua, pois a par dessas caractersticas, somos

    capazes de estimar a quantidade de vinho que ele bebeu no casamento de Hpias e que

    no foi capaz de digerir apesar de sua fora fsica. Logo, se uma coisa inferida de

    outra, o termo ratiocinatio no imprprio.

    Por fim, a acumulao de palavras e sentenas (pensamentos) idnticas no

    significado tambm considerada um tipo de amplificao. Nesse caso, a ascenso no

    operada gradualmente, mas pela acumulao do acervo. Vejamos o exemplo:

    27. Quid enim tuus ille, Tubero, destrictus in acie Pharsalica gladius agebat? cuius latus ille mucro petebat? qui sensus erat armorum tuorum? quae tua mens, oculi, manus, ardir animi? quid cupiebas? quid optabas?

    Com efeito, Tubero, o que fazia aquele teu gldio, tocado no combate da Farslia? O flanco de algum sua ponta pedia? Qual foi a razo de tuas armas? Tua mente, olhos, mos, o ardor do esprito, onde estavam? O que desejavas? O que pedias?23

    (Pro Ligario, III, 9)

    Esta a figura synathroismos para os gregos que consiste na acumulao de

    diferentes coisas, nesse exemplo, contudo, se observam a acumulao de detalhes que

    tm apenas um referente. O efeito obtido fazendo as palavras se elevarem cada vez

    mais.

    No fim do captulo, 28, Quintiliano afirma que h ainda uma forma de diminuir

    (minuendi), oposta amplificao, mas regulada por quase o mesmo mtodo, uma vez

    que h tantos graus para se elevar como para se diminuir.

    22 Traduo nossa. 23 Traduo nossa.

  • 31

    A hiprbole um tropo considerado por alguns como uma espcie de

    amplificao, pois aumenta a magnitude das coisas.

    O conceito da amplificao tambm mencionado nesse tratado, destacamos a

    seguir as passagens que abordam o tema24:

    , [11.2.1] ' . , , ' ( ) , , [11.2.5] ' , ' , ' , .

    1. Associa-se s qualidades acima expostas a chamada amplificao, quando, admitindo o assunto e os debates, em seus perodos, muitos incios e interrupes, o estilo se eleva gradativamente em frases que se acumulam cerradamente umas sobre as outras. 2. Quer isso resulte do desenvolvimento de lugares comuns, quer do encarecimento da realidade, ou dos artifcios, quer ainda do sbio arranjo dos fatos, ou das emoes (pois a amplificao tem milhares de formas), deve o orador, no obstante, saber que, de per si, sem o sublime, nenhum desses meios se manteria eficaz, salvo, por Zeus! para suscitar pena ou para atenuar o vigor; suprimir nas demais formas de amplificao o sublime como arrancar a alma do corpo; logo se lhe enfraquece e esvazia a eficcia, quando no avigorada pelo condo do sublime. (XI, 1-2)

    , , . , . [12.1.5] , , ' , [12.2.1] . , , , , , ... [12.2.5].......... , , .

    24 Cf. nota 16.

    Annimo Do Sublime

  • 32

    1. [...] Amplificao, dizem eles [os tratadistas], uma linguagem que confere grandiosidade ao assunto. Essa definio pode caber indiferentemente ao sublime, emoo e s figuras, visto como tambm esses recursos conferem ao discurso certa grandiosidade. A meu ver, a distino entre eles est em consistir o sublime numa elevao; a amplificao, numa abundncia; por isso, o primeiro se acha muitas vezes at num nico pensamento, enquanto a segunda se acompanha sempre de quantidade e certa redundncia. 2. A amplificao, em sntese, uma aglomerao de todas as partes e tpicos ligados ao assunto, a qual, pela demorada insistncia, refora um arrazoado; ela difere da prova em que esta demonstra o ponto em debate [...]. (XII, 1-2)

    A amplificao pode ser adotada para elevar, gradativamente, o discurso, por

    meio de recursos diversos, mas intil se o estilo no for sublime. O sublime difere da

    amplificao porque consiste na prpria elevao, ao passo que, a amplificao, na

    abundncia; por essa razo, seu mecanismo se baseia na quantidade de procedimentos

    empregados. O mtodo da amplificao entendido como um meio de reforar a

    argumentao.

    Nesse tratado a amplificao colocada um degrau abaixo do sublime tema

    central da obra sua definio, porm, compatvel as j observadas em outros

    tericos, pois de fato constitui uma srie de aspectos relacionados ao assunto. No

    entanto, considerando a teoria dos demais, a amplificao tambm consiste na elevao,

    nem sempre apenas um prolongamento do assunto, mas contribui para o enaltecimento

    de algo menor.

    A partir do tratamento terico dispensado amplificao, vimos que so

    diversos os dispositivos que contribuem para seu resultado; a pormenorizao de

    elementos constitutivos ou mesmo as comparaes so aspectos que nos permitem

    associar a funo da cfrase aos processos amplificadores.

    I.2. METFORA

    A metfora um recurso retrico-potico bastante utilizado e o resultado obtido

    com o emprego desse tropo tem certo carter imagtico, uma vez que a relao

    estabelecida por ela implica o conhecimento prvio do objeto ou assunto tratado e

    permite imaginar um quadro com os elementos metaforizados.

    Aristteles

  • 33

    Antes de aprofundar a questo em torno da metfora na Retrica, tratado no qual

    Aristteles trata disso reiteradamente, importante considerar a definio e

    classificao proposta por ele na Potica. O prprio autor menciona no seu tratado

    retrico ter exposto antes a classificao da metfora e, portanto, no tratar de tal

    aspecto.

    A metfora, inserida na discusso acerca dos tipos de nomes, o procedimento

    que transporta o nome de uma coisa para outra, com a seguinte classificao: ou do

    gnero para a espcie, ou da espcie para o gnero, ou da espcie de uma para a espcie

    de outra, ou por analogia25 (XXI, 1457b). Na analogia, tipo que ganha destaque na

    Retrica, conforme se ver mais adiante, a relao estabelecida, geralmente, entre

    quatro termos, onde o segundo est para o primeiro na mesma relao em que o quarto

    est para o terceiro, neste caso, a metfora ocorre quando um dos termos de um par

    igualado ao termo do outro que mantm a analogia, como exemplo Aristteles

    menciona: a urna est para Dionsio, assim como o escudo est para Ares, logo, a urna

    o escudo de Dionsio.

    Vejamos o tratamento acerca da metfora na Retrica de Aristteles. O discurso

    retrico fundamenta-se no efeito que provoca sobre o pblico, com a inteno,

    sobretudo, de argumentar em favor de algo, de maneira que se possa convencer o

    ouvinte. H nesse tratado um captulo do terceiro livro dedicado discusso da

    metfora; contudo, algumas das consideraes feitas foram mencionadas em captulos

    anteriores do mesmo livro. No captulo 2, dedicado clareza, est exposto que o

    discurso precisa ser claro; por essa razo, quando se quer torn-lo menos familiar para

    provocar admirao e, consequentemente, agradar, no se deve utilizar todo tipo de

    ornamento. Para que o discurso seja, ao mesmo tempo, claro e um tanto afastado,

    empregam-se apenas o termo prprio e a metfora, pois esta ltima amplamente

    utilizada e resulta em um discurso no-familiar, porm, claro. Ainda que haja certo

    afastamento, possvel dissimul-lo, desse modo, o discurso ser compreensvel e

    agradvel essa a maior virtude do discurso retrico, segundo Aristteles.

    A metfora no deve se originar de coisas muito afastadas, mas de coisas

    semelhantes que pertenam ao mesmo gnero ou espcie, para designar algo que no

    tenha termo prprio, de maneira que a relao entre ambos seja evidente o que

    ocorre no enigma. A partir de bons enigmas, constituem-se metforas apropriadas. A

    25 Cf. nota 9.

  • 34

    metfora deve ser extrada de coisas belas quer em som, quer em efeito, quer em poder

    de visualizao, quer numa outra forma de percepo26 (1405b), pois assim ser mais

    eficiente na sua tarefa, j que algumas palavras so mais apropriadas do que outras.

    No captulo 4, ao tratar do smile (eikn), inevitavelmente, fala tambm da

    metfora ao expor a distino de ambos por meio do seguinte exemplo: lanou-se

    como um leo smile, ele lanou-se um leo metfora, portanto, o smile introduz

    uma expresso comparativa, ao passo que a metfora estabelece a relao de igualdade

    diretamente. O smile pode ser utilizado na prosa, porm, no excessivamente, pois

    um recurso potico.

    A analogia j aparece aqui como a metfora, que sempre mantm

    correspondncia entre dois termos do mesmo gnero. No captulo 11, Aristteles afirma

    que os smiles de maior aceitao so, at certo ponto, metforas. Quando expressos

    partindo de dois termos, assemelham-se metfora da analogia; o caso de o escudo,

    dizamos, o clice de Ares, no qual se subentende a analogia. No captulo 6, a

    analogia se mostra eficiente instrumento de amplificao, produzindo relaes a partir

    de propriedades ausentes, tal como: a trombeta uma melodia sem acompanhamento

    de lira (1408a).

    No livro III da Retrica, captulo 10, Aristteles trata exclusivamente a respeito

    da metfora. Aqui ele quer mostrar as expresses elegantes e de maior aceitao. Apesar

    de ser preciso talento natural e exercitao para produzi-las, ele afirma que tambm

    possvel por meio de um mtodo.

    As palavras tm um significado, as mais agradveis so aquelas que

    proporcionam conhecimento, pois a aprendizagem fcil agradvel. Algumas palavras

    no so empregadas no seu sentido prprio: o caso da metfora; ainda assim, pode

    produzir conhecimento. O exemplo que ele nos fornece extrado da Odissia, XIV,

    214, no qual a velhice comparada palha. Entendemos que o ensinamento se produz

    pelo conceito de que ambas j passaram por muitas coisas, ou seja, a experincia

    adquirida somente com o passar do tempo: Creio que s pelo exame da palha ainda

    podes um juzo/ do que era a espiga a fazer, pois sofri infortnios sem conta.27. O

    mesmo ocorre com o smile que, por sua vez, um tipo mais extenso de metfora, pois

    tem um elemento a mais e no efetua a comparao diretamente; por isso, menos

    agradvel.

    26 Cf. Nota 1. 27 Traduo de C.A. Nunes. Braslia: EDUNB. 1981.

  • 35

    As expresses elegantes so comparadas aos entimemas por Aristteles, pois

    ambos proporcionam uma aprendizagem rpida. Os entimemas adequados no devem

    ser superficiais e tampouco incompreensveis; devem, na verdade, fazer surgir o

    conhecimento quando for pronunciado ou um pouco depois.

    Alguns recursos no mbito da expresso devem ser empregados, so eles: a

    anttese, a metfora e a representao de uma ao28 de modo que essa aparea diante

    dos olhos.

    Dentre os tipos de metfora, a mais reputada a analogia; caso no haja relao

    ela ser imprpria, pois os contrrios tornam-se mais evidentes quando so colocados

    uns ao lado dos outros, conforme ele j mencionara no captulo 2, 1405a. A metfora da

    analogia pode tambm trazer diante dos olhos, tal como o exemplo dado: o caminho

    das minhas palavras passa pois pelo meio dos atos de Cares, onde, segundo Aristteles,

    a expresso pelo meio produz a visualizao. Mas esse aspecto no se restringe

    analogia; a metfora, em geral, tem a capacidade de produzir uma imagem, pois

    preciso estabelecer uma relao imagtica em alguns casos para compreender o sentido

    da metfora. Destaco a seguir uma passagem da Retrica que expe bem essa questo:

    , , ' , , [1411b.10] , . . . ' [1411b.15] , . , ' .

    [...] Dizia Licoleonte em defesa de Cbrias: no tendo respeito pela atitude de splica dele, pela esttua de bronze: , pois, uma metfora apropriada ao momento presente, no para sempre, mas para que produza uma visualizao do objeto; pois estando ele em perigo, a esttua implora, e o inanimado torna-se animado: ou seja, a recordao dos seus feitos em prol da cidade. E por todos os meios, esforam-se por pensar humildemente, pois esforar-se implica uma certa amplificao. E que deus acendeu a razo, luz no esprito:

    28 Repito aqui a informao da edio adotada com respeito lio desse termo, adota-se comumente enrgeia, mas outra que tambm aceita (por Racionero, por exemplo) enrgeia que se traduz por nitidez como j mencionamos, trata-se de um dos recursos estudados na presente pesquisa.

  • 36

    ambos, na verdade, pem algo em evidncia, bem como pois ns no terminamos guerras, mas adiamo-las. Ambas remetem para o futuro, tanto o adiamento como este tipo de paz. (1411b)

    Observa-se no excerto acima que a metfora, ao provocar o efeito de

    visualizao, pode remeter ao tempo presente quando d certo movimento ao objeto

    metaforizado. Aqui temos tambm um tipo de metfora que transforma o inanimado em

    animado, pois a esttua implora. Da mesma maneira, ao falar do adiamento, remete-se

    ao futuro. Esse mecanismo de remeter para diversos tempos demonstra a capacidade

    que a metfora tem de tornar visvel, pois algo que acontecer no futuro implica um

    processo de imaginao29, uma vez que o fato ainda no aconteceu e, tampouco,

    presenciado naquele momento.

    Mais adiante (cap. 11), Aristteles conclui que as expresses elegantes provm

    da metfora de analogia e dessa disposio do objeto diante dos olhos. Ele agora

    discorre acerca do trazer diante dos olhos (pr ommatn poien), esse resultado, na

    realidade, representa uma ao, o que nem sempre ocorre com a metfora o caso de

    um homem de bem um quadrado; aqui no h nenhuma ao. Aristteles fornece

    inmeros exemplos de representaes de uma ao, em grande parte extrados de

    Homero, os quais transformam o inanimado em animado, tais como a flecha voou, a

    ponta da arma penetrou, ansiosa, no peito os objetos inanimados aqui representam

    uma ao. Para resumir o procedimento, nada melhor que a proposio do prprio

    Aristteles: Pois o poeta atribui-lhes vida e confere-lhes tambm movimento; ora,

    movimento aco. (1412a).

    Aristteles continua a tratar da elegncia retrica e torna a afirmar que a

    metfora deve vir de coisas apropriadas, porm, no bvias, pois assim como na

    filosofia, o esprito sagaz capaz de estabelecer a semelhana mesmo com entidades

    muito diferentes. Entende-se ento que a metfora elegante porque proporciona um

    aprendizado; por essa razo, ela reside no engano prvio do ouvinte, pois desse modo

    possvel perceber que se aprende algo, caso aquilo que se ouve seja o contrrio do

    esperado.

    Outros mtodos podem produzir aprendizado, tais como os bons enigmas, j

    mencionados antes no tratado, que contm tanto um ensinamento como uma metfora;

    consequentemente, so agradveis isso ocorre, sobretudo, quando se apresenta algo

    29 Trata-se da phantasa, comumente traduzida como imaginao, da qual logo trataremos.

  • 37

    paradoxal, recurso presente nas anedotas ou no verso cmico. A homonmia pode criar

    este mesmo efeito sobre o ouvinte com o jogo de palavras. A anttese possibilita o

    aprendizado, que ser mais rpido se a anttese for mais concisa. Os provrbios so

    considerados tambm um tipo de metafora, se entendermos o fato ao qual o provrbio

    remete e conseguirmos relacion-lo com o fato ao qual comparado. A hiprbole

    tambm considerada metfora quando o exagero implica uma relao de semelhana,

    por exemplo: julgarias que ele era um cesto de amoras ou como a salsa, leva as

    pernas torcidas (1413a).

    Cabe ressaltar o que foi afirmado e reiterado diversas vezes por Aristteles: a

    metfora, juntamente com a anttese e a representao de uma ao diante dos olhos,

    um recurso que facilita a aprendizagem e torna a expresso mais elegante.

    No livro III do De Oratore, Ccero tambm teoriza acerca da metfora, 155-70,

    cujo termo latino translatio, ao tratar dos recursos que so utilizados para ilustrar o

    discurso a partir das palavras isoladas. Apresento de maneira sucinta as principais

    asseres dessa passagem.

    A definio de Ccero essencialmente a mesma: a transferncia de palavras, ou

    seja, o emprego de uma palavra a algum objeto, apesar dela no se referir propriamente

    a ele. A princpio isso se fez necessrio por falta de termos prprios para algumas

    coisas, contudo assim como as roupas, que antes eram utilizadas para combater o frio

    e passou a ser um ornamento para o corpo sua funo estendeu-se tambm ao deleite,

    conferindo brilho ao discurso.

    A metfora consiste numa breve comparao reduzida a uma palavra que, por

    sua vez, s deleitar se houver relao de similitude. Convm que a metfora torne as

    coisas mais claras: ea transferri oportet, quae aut clariorem faciunt rem (157).

    Ainda que haja termos prprios para o que se quer dizer, as palavras

    transladadas deleitam mais se forem empregadas adequadamente. Ccero arrola algumas

    razes para esse fato, dentre as quais destacamos: no se perde o que escuta, pois

    transportado para o pensamento; em uma nica palavra funde-se o objeto e a

    comparao; ou ainda porque apresenta aos prprios sentidos, em especial vista o

    sentido mais agudo, 160: ad sensus ipsos admovetur, maxime oculorum, qui est sensus

    acerrimus.

    Ccero

  • 38

    As metforas que afetam a viso so muito mais vvidas, pois quase dispem

    diante dos olhos da alma o que de fato no podemos ver. No h nada na natureza que

    no possa ter outra nomenclatura baseando-se em relao com outras coisas. Quando se

    translada uma palavra, portanto, ela oferece luz ao discurso.

    Os olhos da mente (mentis oculi) so movidos mais facilmente por aquilo que j

    se conhece pela viso do que por aquilo que se ouviu falar. A maior qualidade da

    metfora que a realidade transferida impressiona os sentidos, portanto, devem-se

    evitar os aspectos torpes da realidade que a similitude traz ao nimo dos ouvintes.

    A palavra que foi transferida no deve resultar em algo mais pobre do que o

    termo prprio; tampouco pode soar muito dura, preciso suaviz-la. Dentre os recursos

    das palavras isoladas, no h procedimento mais florido nem que confira mais luz ao

    discurso do que a metfora.

    Por outro lado, a alegoria, procedimento derivado da metfora, no se produz na

    palavra, mas no discurso, ou seja, com as palavras agrupadas. A alegoria articula-se em

    inmeras metforas contnuas, desse modo, ao dizer uma coisa se entende outra distinta.

    Isso ocorre porque as palavras prprias de um mbito so transferidas para outro; trata-

    se, portanto, de um grande ornamento que deve evitar a obscuridade, pois dessa maneira

    produziriam enigmas.

    Uma palavra prpria para o objeto pode ser substituda por outra prpria para

    ornamentar, como o caso de Roma no lugar de romanos o que denominamos

    metonmia, embora Ccero no mencione a nomenclatura. Esse procedimento

    ornamenta menos, mas nem por isso se deve ignor-lo, ainda capaz de estender a

    totalidade de algo a uma de suas partes temos aqui a sindoque.

    Corre-se o risco da metfora ser feita de forma no to elegante quando

    transferimos frequentemente uma palavra que possui significado prximo ao termo

    prprio.

    Vejamos agora o tratamento dado metfora por Quintiliano, em VIII, VI30:

    4. Incipiamus igitur ab eo [tropos], qui cum frequentissimus est tum longe pulcherrimus, translatione dico, quae metaphor Graece

    30 Traduo: MARTINS, P. Tropos na Eneida e uma imagem metafrica. In: MARTINHO, M. dos Santos (org.) 1 Simpsio de Estudos Clssicos. So Paulo: Humanitas. 2006, pp. 91-118.

    Quintiliano

  • 39

    uocatur. Quae quidem cum ita est ab ipsa nobis concessa natura, ut indocti quoque ac non sentientes ea frequenter utantur, tum ita iucunda atque nitida, ut in oratione quamlibet clara proprio tamen lumine eluceat 5. Neque enim uulgaris esse neque humilis nec insuauis apte ac recte modo adscita potest. Copiam quoque sermonis auget permutando aut mutuando quae non habet, quodque est difficilimum, praestat ne ulli rei nomen deesse uideatur. Transfertur ergo nomen aut uerbum ex eo loco in quo proprium est, in eum in quo aut proprium deest aut translatu proprio melius est. 6. Id facimus, aut quia necesse est aut quia significantius esta ut (ut dixi) quia decentius. [...] 8. metaphora breuior est similitudo, eoque distat quod illa comparatur rei quam uolumus exprimere, haec pro ipsa re dicitur. Comparatio est, cum dico fecisse quid hominem ut leonem; translatio, cum dico de homine leo est.

    4. Comecemos, pois, a partir daquele [tropo], que no s o mais comum, como de longe, o mais belo; digo translatio aquilo que em grego chama-se metaphor, que, no s, to natural, quando ela mesma nos permitida, que at os indoutos a utilizam amide sem perceber, mas to agradvel e ntida que no discurso luminoso, ainda que com brilho prprio, ela ilumina. 5. Ela, adequada e corretamente procurada, nem pode ser trivial, nem vulgar, tampouco desagradvel. Tambm, [a metfora] aumenta o repertrio da lngua, pe disposio palavras, permutando um termo por outro ou tomando emprestado aqueles que no existem para que coisa alguma no parea carecer de um nome, o que muito difcil. Transfere-se, pois, o nome ou o verbo do lugar que lhe prprio para aquele lugar em que falta um prprio ou o metafrico melhor que o prprio. 6. Isso fazemos ou porque necessrio, ou porque mais significante ou (como disse) porque mais decoroso. [...] 8. A metfora mais breve do que o smile, e deste dista porque este compara a uma coisa que desejamos exprimir, j aquela pela prpria coisa diz-se. Comparao quando digo que um homem faz como um leo; metfora quando digo acerca de um homem um leo.

    A exposio bastante clara, resta-nos pontuar algumas afirmaes. Para

    Quintiliano a metfora o tropo mais comum e mais bonito, que pode ser empregado

    naturalmente ou mesmo utilizado por pessoas no doutas; de tal modo agradvel e

    elegante que brilha com luz prpria no discurso. Se utilizada corretamente, a metfora

    no ser comum, humilde ou desagradvel.

    A metfora torna o discurso mais eloquente com a troca e emprstimo de

    palavras, alm disso, o que mais difcil, produzindo nome para as coisas que no o

    tm: um nome transferido do lugar que lhe prprio para outro, onde no h um

    termo prprio ou mesmo o transferido melhor.

  • 40

    O procedimento metafrico deve ser adotado quando necessrio para tornar mais

    claro ou mais decoroso o que se diz, contudo, caso no haja tais necessidades, a

    transferncia imprpria. necessria, por exemplo, no caso de durum hominem ou

    asperum hominem (6), pois no h termos prprios para expressar essa caracterstica

    no temperamento.

    Segundo Quintiliano a metfora um smile numa forma mais breve: o smile

    compara, ao passo que, na metfora, o objeto de comparao substitudo pelo outro,

    por exemplo, quando se diz a respeito do homem ut leonem, no smile, enquanto na

    metfora leo est mesmo exemplo observado em Aristteles.

    Logo em seguida, a partir do 9, ele apresenta a classificao da metfora, que

    de quatro tipos: a substituio de seres animados por outro animado (rebus animalibus...

    pro alio); seres inanimados por outro inanimado (inanima pro aliis generis); o

    inanimado substitudo por seres animados (pro rebus animalibus inanima); por fim,

    seres animados por inanimados (aut contra).

    Os efeitos so sublimes em decorrncia do uso de uma metfora audaz e

    arriscada e igualmente quando conferimos ao e esprito s coisas inanimadas, o que

    ocorre em Pontem indignatus Araxes (Eneida, VIII, 728), aqui o rio se indigna, ou

    seja, lhe atribudo uma caracterstica humana. Inserida nessa classificao, h outras

    espcies: de seres racionais para racionais e de irracionais para irracionais, e assim

    reciprocamente, dos racionais para irracionais ou dos irracionais para os racionais, o

    mesmo ocorre com as partes e o todo.

    Quintiliano descreve alguns aspectos negativos da metfora em razo do uso

    inadequado; a partir do 14, ele afirma que o uso moderado e oportuno ilustra a orao,

    entretanto, se usado excessivamente, obscurece e causa tdio. No caso do uso contnuo,

    resulta em alegorias e enigmas. A metfora pode ser pobre ou mesmo grosseira, pode

    ainda ser spera quando est distante da relao de semelhana. A metfora deve

    adequar-se ao assunto referido, no pode ser excessivamente maior ou, como mais

    frequente, menor, ou mesmo dessemelhante tudo isso vicioso. A abundncia no seu

    uso tambm viciosa, sobretudo se for da mesma espcie.

    Aos poetas permitido usar muitos recursos para deleitar ou pela necessidade do

    metro. Entretanto, isso no convm prosa, por essa razo, mesmo exemplos extrados

    de Homero no so aconselhveis. Ainda assim, observamos que Quintiliano fornece,

    com recorrncia, exemplos de Ccero, reforando o preceito aristotlico de que a

    metfora pode ser adotada na prosa.

  • 41

    A metfora deve ocupar um lugar vago, mas no caso de ocupar o de outro, deve

    ser mais eficiente do que aquilo que retira (18).

    Alguns dos aspectos mencionados acima se aplicam tambm sindoque: a

    metfora deve mover os nimos, destacando as coisas que so obtidas diante dos olhos,

    a sindoque tambm permite ao pblico a percepo de muitas coisas a partir de uma

    nica mencionada, com a diferena de que pode ser usada mais livremente na poesia e

    na prosa.

    Lembramos ainda a definio de translatio na Retrica a Hernio, livro IV, 45,

    anterior a Quintiliano: ela ocorre quando a palavra transferida de uma coisa a outra em

    razo de sua semelhana. Tal procedimento pode ser adotado para pr algo diante dos

    olhos, para abreviar, para evitar uma obscenidade, para amplificar, para minimizar e

    para ornamentar. A metfora deve ser comedida, de maneira que no se desvie para algo

    dissmil.

    Quintiliano trata do smile no mesmo livro, captulo III, 72-531:

    72. Praeclare uero ad inferendam rebus lucem repertae sunt similitudines; quarum aliae sunt, quae probationis gratia inter argumenta ponuntur, aliae ad exprimendam rerum imaginem compositae, quod est huius loci proprium:

    Inde lupi ceu

    Raptores atra in nebula

    Et

    Aui similis, quae circum litora, circum

    Piscosos scopulos uolat aequora iuxta,

    73. Quo in genere id est praecipue custodiendum, ne id, quod similitudines gratia adsciuimus, aut obscurum sita ut ignotum. Debet enim, quod illustrandae alterius rei gratia assumitur, ipsum esse clarius eo quod illuminat. Quare poetis quidem permittamus sane eiusmodi exempla: