É terra indígena porque é sagrada: santuário dos pajés...

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Universidade de Brasília Instituto de Ciências Sociais Departamento de Antropologia Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social É terra indígena porque é sagrada: Santuário dos Pajés Brasília/DF Thais Nogueira Brayner Dissertação Brasília/DF 2013

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Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais

Departamento de Antropologia

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

É terra indígena porque é sagrada: Santuário dos Pajés –

Brasília/DF

Thais Nogueira Brayner

Dissertação

Brasília/DF

2013

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Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais

Departamento de Antropologia

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

THAIS NOGUEIRA BRAYNER

É terra indígena porque é sagrada: Santuário dos Pajés –

Brasília/DF

Dissertação de mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Social do Departamento de Antropologia da

Universidade de Brasília.

Orientação: Dr. Stephen Grant Baines

Brasília/DF

2013

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Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais

Departamento de Antropologia

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

THAIS NOGUEIRA BRAYNER

É terra indígena porque é sagrada: Santuário dos Pajés –

Brasília/DF

Banca examinadora:

__________________________________________________________________

Dr. Stephen Grant Baines (DAN-UnB) (Orientador)

___________________________________________________________________

Dra. Cristina Patriota de Moura (DAN-UnB) (Examinador Interno)

____________________________________________________________________

Dr. Frederico Flósculo (FAU-UnB) (Examinador Externo)

____________________________________________________________________

Dr. Guilherme José da Silva e Sá (DAN -UnB) (Suplente)

Brasília, 19 de julho de 2013.

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da

Universidade de Brasília como parte dos requisitos necessários à obtenção do título em Mestre

em Antropologia Social.

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AGRADECIMENTOS

Os agradecimentos que aqui escrevo não estão à altura da gratidão que sinto por minha

família, que já estava acostumada e compreendia minha ausência e pressa constantes.

Sou muito grata aos meus queridos amigos que também souberam entender minhas

ausências e com isso, se tornaram parte importantíssima desse processo.

Em especial, gostaria de agradecer a meus pais, Maria de Lourdes e Josinaldo, aos meus

irmãos, Luana, Igor, Yasmin e Willian e ao meu marido Fábio, que, mais do que ninguém, soube

esperar por mim e me apoiar quando pensei em desistir.

Agradeço aos meus amigos de longe, meus queridos diretores, vocês sabem quem são!

Aos amigos do "laudo", de perto e de longe que me ajudaram a me manter sã e me fazerem rir

em momentos complicados desse processo! Sou muito grata às amigas Amanda Castillo e Olívia

Barros pelo apoio e pelas traduções.

Agradeço imensamente ao meu orientador Stephen Baines por aceitar a parceria nessa

jornada mesmo sabendo todos os limites que eu possuía devido ao tempo escasso que dispunha

para me dedicar em razão do meu trabalho. Outras ajudas e apoios que sempre me foram dados

por meus professores de graduação da UFPE que ainda hoje posso contar, como a Roberta

Campos Bivar, Lady Selma Albernaz e Renato Athias. Além do professor João Pacheco de

Oliveira a quem serei sempre grata pela oportunidade, pela constante disposição e diálogo.

Ao professor Jorge Eremites de Oliveira da UFPel pela disponibilidade e pelas conversas.

A Lilia Tavolaro e Cristhian Teófilo do CEPPAC por me aceitarem como aluna especial. Aos

professores do DAN, Kelly Silva, Andréa Lobo e José Pimenta. Igualmente agradeço ao

professor Guilherme Sá por aceitar compor a banca, assim como os professores Frederico

Flósculo e Cristina Patriota, pela troca de ideias e também por aceitarem fazer parte da banca.

Aos meus colegas Annie Lamontagne, Rodrigo Falheiros, do CEPPAC, que foram

imprescindíveis no início dessa jornada, assim como Mariana Albuquerque Dantas e Rita de

Cássia Melo Santos, amigas e eternas orientadoras!

Felizmente pude conhecer no DAN pessoas como Renata Nogueira, Potyguara Alencar,

Chirley Mendes, Aline Balestra, Angélica, com quem sempre pude compartilhar ideias e

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angustias, e os demais colegas da turma de 2011, que certamente fizeram parte de um grande

crescimento intelectual. À turma de 2012 agradeço a todos pela amizade e força durante o último

ano.

Sou imensamente grata a Patrícia Jacob, que aceitou o maluco trabalho de formatar uma

dissertação em um prazo curtíssimo! Não tenho com agradecê-la o suficiente! Quando o trabalho

parecia que não iria terminar, encontro uma luz no fim do túnel indicada por Darlise Moura da

Assessoria Jurídica e por Eliane Amorim da Assessoria Pericial da 6ª Câmara de Coordenação

Revisão da Procuradoria Geral da República, agradeço muito!

Agradeço à CAPES pela bolsa que me permitiu reduzir minhas horas de trabalho e poder

me dedicar um pouco mais ao mestrado. Espero que a CAPES continue apoiando os estudantes

que trabalham para que os programas de pós-graduação do país sejam cada vez mais diversos,

inclusivos e menos elitistas. Meus agradecimentos se estendem a Adriana Sacramento, Cristiane

Gusmão, Jorge Máximo, Rosa Venina e os demais da equipe do Departamento de Antropologia,

por sua ajuda e solicitude.

Minha gratidão e ajuda dos meus colegas e amigos das escolas onde trabalhei ao longo

desses dois últimos anos, que foram cruciais para que eu conseguisse chegar ao final desse

processo, em especial agradeço a amiga Cleiciane Lobato.

Ao Pajé Santxiê, seus filhos, a Olavo, Aldenora e seus filhos e a todos os índios do

Santuário dos Pajés, agradeço imensamente por abrirem as portas de suas casas. Agradeço muito

ao Chris, Edson, Izabele, Delano, Diogo, Pedro Penhavel e Ariel Foina, em especial a Tereza e

Rafael, que foram decisivos para o andamento e a conclusão do presente trabalho, e aos demais

apoiadores do Santuário dos Pajés.

Agradeço muito a todos!

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RESUMO

O presente trabalho trata sobre a relação entre a cidade de Brasília e o Santuário dos Pajés,

território criado e mantido por indígenas desde a fundação da capital, mas que enfrenta disputa

judicial para conseguir se manter no local, devido à criação de um novo bairro, chamado Setor

Noroeste, cujas terras se aproximam e em alguns pontos se sobrepõem a ele. Demandam o

reconhecimento como Terra Indígena pela Fundação Nacional do Índio (Funai) baseado na

ocupação que data da vinda dos primeiros índios Fulni-ô para a cidade no final dos anos de

1950. O bairro em questão está envolto em uma série de controvérsias e em um pesado

“marketing verde” para conseguir legitimar, a seus potenciais compradores, um empreendimento

ecologicamente correto numa das últimas áreas de cerrado da cidade. Desse modo, por meio de

pesquisa documental e entrevistas, buscamos traçar a relação entre a cidade e o santuário

indígena, como também buscamos mostrar a forma como a ocupação de terra é feita

historicamente no Distrito Federal e suas implicações com o caso do Santuário dos Pajés. Os

índios permanecem no local e conseguem construir uma rede de apoiadores não indígenas, que

os ajuda a resistir fisicamente às invasões e ameaças físicas, bem como os ajudam a desenvolver

uma rede de informações para poderem contar sua versão sobre os acontecimentos no Santuário.

Palavras-chave: Índios; Santuário dos Pajés; Brasília; Setor Noroeste; Fulni-ô.

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ABSTRACT

This Master´s thesis deals with the relations between Brasília (the Federal capital of Brazil) and

the Santuário dos Pajés (Shrine of the Shamans), a territory created and maintained by

Amerindians since the capital was founded. The Amerindians who live there face legal disputes

to remain on the site due to the creation of a new suburb known as Northwest Sector; this new

suburb is close to and at some points overlaps the Santuário dos Pajés lands. The

Amerindians demand the recognition of the site as an Indigenous protected area by the Fundação

Nacional do Índio (The National Indian Foundation), based upon the date of arrival of the

first Fulni-ô Amerindians to the city during the late 1950s. This suburb is on one of the

last remaining areas of cerrado in Brasília, is involved in a series of controversies and has a

heavy 'green marketing' appeal in order to obtain legitimacy to its potential buyers and to appear

to be a green enterprise. Through research and interviews the relationship between the city and

the indigenous shrine is outlined . Also it is aimed to show the historical process of the way that

the occupation of land has been made in the Brazilian Federal District and the implications of

this for the Shrine of the Shamans case. The indigenous people remain at the place and have

non-amerindians supporters who help them to resist to the intrusions and physical threats;

they also help them to develop an information network intending to tell their version of the

events.

Keywords: Amerindians; Shamans Sanctuary; Brasília; Northwest Sector; Fulni-ô.

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LISTA DE SIGLAS

ABA – Associação Brasileira de Antropologia

Ademi – Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário

AIR – Acampamento Indígena Revolucionário

Anai – Associação Nacional Indigenista

Arie – Área de Relevante Interesse Ecológico

Caesb – Companhia de Saneamento Ambiental do DF

CCR – [6ª] Câmara de Coordenação e Revisão – Populações Indígenas e Comunidades

Tradicionais do Ministério Público Federal.

CIOSPDS – Centro Integrado de Operações, Segurança Pública e Defesa Social

CMI – Centro de Mídia Independente

Coiab – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira

Conaq – Comunidades Negras Rurais Quilombolas

Cuia – Central da União de Índios e Aldeias

EIA/Rima – Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental

Funai – Fundação Nacional do Índio

GDF – Governo do Distrito Federal

GT – Grupo de Trabalho

Ibama – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

Ibram – Instituto Brasília Ambiental

ICMBio – Instituto Chico Mendes

INIC – Instituto de Imigração e Colonização

JK – Juscelino Kubitschek

LEED – Leadership in Energy and Environmental Design

MinC – Ministério da Cultura

MP – Ministério Público

MPDF – Ministério Público do Distrito Federal

Novacap – Companhia Urbanizadora da Nova Capital

ONG – Organização não governamental

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PDOT – Plano Diretor de Ordenamento Territorial

PF – Polícia Federal

SHB – Setor Habitacional Buritis

SHCNW – Setor de Habitações Coletivas Noroeste

SHCNW – Setor Residencial Noroeste

SHCSW – Setor de Habitações Coletivas Sudoeste

SHEP – Setor Habitacional Estrada Parque

SHTQ – Setor Habitacional Taquari

SMU – Setor Militar Urbano

SPI – Serviço de Proteção aos Índios

Sudene – Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste

Terracap – Companhia Imobiliária de Brasília

UnB – Universidade de Brasília

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 11 CAPÍTULO 1 – O SAGRADO E A MERCADORIA ...................................................... 22

1.1 SOBRE O SAGRADO E A MERCADORIA ..................................................................... 22 1.2 ESPAÇO, TERRITÓRIO, TERRITORIALIZAÇÃO E TERRA INDÍGENA .................. 24

1.3 MERCADORIA E ESPECULAÇÃO ................................................................................. 27

CAPÍTULO 2 – BRASÍLIA .............................................................................................. 32 2.1 FUNDAÇÃO DE BRASÍLIA E SUAS EMPRESAS PÚBLICAS .................................... 33

2.1.1 A Novacap e a Terracap ............................................................................................... 36 2.2 ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA NO DF: BREVES APONTAMENTOS ...................... 40 2.3 SETOR NOROESTE, O "BAIRRO VERDE" E SUAS CONTROVÉRSIAS ................... 42

2.3.1 Arie Cruls e o conceito do Setor Noroeste ................................................................... 44

CAPÍTULO 3 – DE FAZENDA BANANAL A SANTUÁRIO DOS PAJÉS .................. 50 3.1 TAPUIA OU TAPUYA ...................................................................................................... 52

3.2 OS CARNIJÓ ...................................................................................................................... 55 3.2.1 Os migrantes do Nordeste para construção de Brasília ................................................ 61 3.2.2 Chegada a Brasília e estabelecimento no Santuário dos Pajés ..................................... 63

3.3 LAUDOS ANTROPOLÓGICOS ........................................................................................ 67 3.4 OS FULNI-Ô, TUXÁ, KARIRI-XOCÓ E OS GUAJAJARA ............................................ 76

3.4.1 Formas de ocupação da Terra ....................................................................................... 80 3.4.2 Impasses ....................................................................................................................... 82

3.5 A RELIGIÃO E A TERRA SAGRADA ............................................................................. 86 3.5.1 Uso das Plantas pelo pajé ............................................................................................. 89

3.5.2 Os lugares ..................................................................................................................... 90 3.5.3 Alguns eventos ............................................................................................................. 93

3.6 CONSTRUÇÃO DE UM ETHOS E DA VISÃO DE MUNDO ......................................... 96

CAPÍTULO 4 – ARTICULAÇÃO E ESTRATÉGIAS DE LUTA ................................ 103 4.1 APOIADORES NÃO INDÍGENAS ................................................................................. 103

4.1.1 A rede de apoiadores .................................................................................................. 105

4.1.2 "Trajetórias ou carreiras": Inserção no Santuário dos Pajés ....................................... 107 4.1.3 Conhecendo o Santuário dos Pajés ............................................................................. 108

4.1.4 Apoiadores e militantes .............................................................................................. 110 4.1.5 Papel da internet ......................................................................................................... 113 4.1.6 Lutas compartilhadas .................................................................................................. 115 4.1.7 Perspectivas de desfecho ............................................................................................ 117

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 120

REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 126 APÊNDICE A – QUESTIONÁRIO AOS APOIADORES DO SANTUÁRIO ............. 134 ANEXO A – DADOS DA IMAGEM DE SATÉLITE DO MAPA Nº 3.3...................... 135 ANEXO B – MAPAS SETOR NOROESTE DA EMPLAVI ......................................... 136

ANEXO C – ARIE CRULS – EMPLAVI ...................................................................... 137 ANEXO D – PILOTIS - MAPA DA BRASAL .............................................................. 138 ANEXO E – IMAGEM VEICULADA PELO CORREIO BRAZILIENSE E TAMBÉM

UTILIZADA PELA EMPLAVI ..................................................................................... 139

FabioThais
Typewriter
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ANEXO F – MAPA DA ÁREA DO SANTUÁRIO E DO SETOR NOROESTE OBTIDA

NO SITE DO SANTUÁRIO DOS PAJÉS ...................................................................... 140 ANEXO G – LOGOTIPO DO MOVIMENTO DE APOIADORES DO SANTUÁRIO

DOS PAJÉS ..................................................................................................................... 141 ANEXO H – PROPAGANDA DO SETOR NOROESTE .............................................. 142 ANEXO I – IMAGENS DO ÍNDIO GUAJAJARA ARAJU SAPETI RETIRADO DO

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA VOTAÇÃO SOBRE COTAS. ...................... 143 ANEXO J – NOTA DA ABA SOBRE O LAUDO REALIZADO NO SANTUÁRIO DOS

PAJÉS .............................................................................................................................. 144 ANEXO K – IMAGENS DOS EVENTOS PROMOVIDOS NO SANTUÁRIO DOS

PAJÉS .............................................................................................................................. 146

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INTRODUÇÃO

Quando comecei a ler e ver notícias sobre índios vivendo a longo tempo em Brasília,

fiquei muito curiosa para saber mais sobre como viviam, sua história etc. A distância geográfica

não é grande, mas as maneiras de ter acesso aos índios, em princípio, não me pareciam fáceis.

De longe, ainda fora do curso de mestrado, continuei acompanhando aos poucos as

notícias sobre os índios que eram veiculadas. Posteriormente, quando já aluna do Programa de

Pós-Graduação em Antropologia, comecei a acompanhar com mais afinco as noticias sobre os

índios e a disputa deles e de seus apoiadores contra as empreiteiras e o Governo do Distrito

Federal (GDF), pois já ocorriam de forma mais aberta e consistente em 2011.

Ao ler as reportagens, sempre achei significativo o fato de o GDF, representado pela

Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap), oferecer dinheiro ou terras para que os índios

saíssem do local designado como Santuário dos Pajés. Em resposta, o que os índios diziam? Que

não sairiam, pois o lugar era sagrado, rota e local de reza e culto dos índios que passavam pela

região desde muito tempo. Os empresários e o GDF trabalhavam lado a lado para conseguirem

as licenças necessárias e para retirarem os índios, dando continuidade aos projetos de construção

de um novo bairro na cidade, o Setor Noroeste.

Um dos motes utilizados no projeto e nas propagandas era o de “bairro verde”, bairro

ecológico, que seguiria procedimentos de reciclagem de lixo, materiais menos poluentes e que,

em termos urbanísticos, caracterizaria a concepção de cidade-parque, proposta por Le

Corbusier1, com espaços verdes em meio às construções e ao mesmo tempo funcional. O que

primeiramente chamou-me a atenção foi o fato de um megaprojeto de construção ser criado em

uma área de cerrado que será quase totalmente devastada para dar lugar a um bairro ecológico.

Parecia-me, em princípio, um contrassenso, mesmo sem conhecer o projeto a fundo.

Tempos depois, foi veiculado um vídeo, chamado Sagrada Terra especulada, sobre a

construção do bairro Setor Noroeste, filme que mostrava a relação dos indígenas com esse tema,

várias pessoas apontando alguns problemas no desenvolvimento do empreendimento e visões

1 “Influente no mundo todo, arquiteto suíço e urbanista, cujos desenhos combinam o funcionalismo do movimento

moderno com um projeto corajoso expressionismo escultural. Ele pertenceu à primeira geração da então chamada

Escola Internacional de Arquitetura e era seu mais habilidoso propagandista em seus numerosos escritos. Em sua

arquitetura, ele juntou as aspirações funcionalistas de sua geração com um forte senso de expressionismo.”

(Tradução livre.) Disponível em: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/137221/Le-Corbusier>. Acesso em:

2 abr. 2013.

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dos dirigentes sobre isso. Alguns pequenos vídeos já vinham sendo veiculados no site YouTube,

mas Sagrada Terra especulada era um documentário longo, com vários momentos sobre o

licenciamento, a opinião formal do governo e do empresariado com respeito ao bairro e aos

índios. Esse vídeo me deixou mais curiosa sobre o processo como um todo e, partir daí,

juntando-se as notícias já guardadas e os vídeos, comecei a acompanhar mais de perto esse local

que era chamado de Santuário dos Pajés.

Ao procurar meu orientador, professor Stephen Baines, a análise desse caso por mim

proposta foi prontamente aceita, mesmo eu sabendo das implicações disso, já que várias pessoas

tanto da Universidade de Brasília como do governo e do empresariado local já haviam

publicamente se colocado contra a demanda dos índios. Mesmo assim, resolvi prosseguir, mas o

contato com a comunidade só veio muito tempo depois, pois conciliar trabalho, disciplinas e

pesquisas exploratórias para a dissertação se mostraram tarefa muito mais complicada do que eu

imaginei a princípio.

Finalmente em 2012 consegui entrar em contato com uma das pessoas que participavam

das manifestações e do apoio mais sistemático ao Santuário, o Rafael, que havia feito uma

monografia, da área de Antropologia, que também mencionava o Santuário dos Pajés. Com sua

ajuda, conheci finalmente o Santuário, e, para minha surpresa, vários apoiadores que

constantemente estavam alertas para ajudar os índios no que precisassem já os conhecia há

bastante tempo e tinham convivência com eles muito antes das construções do bairro serem

discutidas publicamente.

O processo dos índios do Santuário dos Pajés nos leva a pensar várias questões que talvez

só consigamos apontar aqui, mas sem conseguir desenvolver totalmente. Uma delas é a questão

de índios vivendo em centros urbanos, longe de ser um fenômeno novo em outros contextos fora

do Brasil.

Os Fulni-ô de Águas Belas vivem uma situação em suas terras em que a aldeia e a cidade

se confundem. Os Fulni-ô contam que a Princesa Isabel deu as terras para eles por terem

participado da Guerra do Paraguai. Essas terras são o que hoje é toda a cidade de Águas Belas

em que vivem maioria de não indígenas. Já a aldeia Fulni-ô, ou Aldeia Grande, é localizada

dentro do perímetro da cidade, com 11.505 hectares. A relação entre a cidade e a aldeia é muito

próxima e mesmo dependente. Portanto, a situação dos Fulni-ô que vieram para Brasília viver

em um contexto urbano não é novidade, como também o fato de procurarem um espaço de mata,

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separado de onde trabalhavam para praticarem seus cultos e rezas é muito parecido com a

configuração que os próprios Fulni-ô construíram em sua própria aldeia em Águas Belas.

No caso do Santuário dos Pajés, vemos que a vida dos índios que moram lá não é

totalmente urbana nem totalmente do campo, pois ao mesmo tempo em que cultivam víveres e

criam animais, também consomem alimentos comprados. A produção interna, portanto, não

consegue suprir totalmente suas necessidades. Além disso, como já mencionado, os índios que

moram no Santuário possuem empregos formais, fora do Santuário. As crianças estão

matriculadas em escolas de ensino regular, a comunidade possui eletricidade e água. Isso tudo

reforça a ideia de que o caso do Santuário é sui generis em relação a outros casos etnográficos

envolvendo questões urbanas no país.

O que me marcou fortemente desde o início, em meio a conversas informais e na postura das

pessoas, foi que a área em que viviam não tinha preço. Não se poderia colocar preço em algo que

é considerado sagrado. E eu pensei que o que ocorre são duas visões em confronto aqui: uma

voltada para o mercado e outra que não é mensurável da mesma maneira, pois se trata da

compreensão de valores intangíveis, do campo do religioso, do sagrado, da memória. Essas

diferenças, entre índios e o poder local, ficaram cada vez mais claras tanto na postura quanto nos

discursos de ambos.

Em várias opiniões dadas em sites na internet, era possível ver pessoas falando sobre a

presença indígena no local, a descaracterizando, dizendo que não havia índios no Distrito Federal

e que isso era sabido por todos. Em contrapartida, as narrações dos índios eram bem diferentes,

pois eles e seus parentes mais próximos, que estiveram aqui ao menos desde a construção de

Brasília, vieram para a cidade para trabalhar.

Pelas pesquisas de Paulo Bertran (2000), por exemplo, a região onde se localiza o DF

como um todo foi moradia e rota de passagem dos índios das mais diversas origens; contudo,

para se forjar a história de Brasília, da nova capital, deliberadamente houve um apagamento do

que havia aqui antes, seja da presença indígena na época da construção, seja no passado mais

remoto. Para começar o novo, tinha que ser começado do zero, com intenções claras sobre o que

seria a cidade e ao que e a quem ela serviria.

Os índios que passavam, que ficaram, os trabalhadores e tantos outros não foram

personagens da história oficial, gerando assim uma quantidade de elementos que alimentavam a

memória e o imaginário das pessoas sobre várias outras questões, e a presença e a participação

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indígena na construção da cidade não era uma delas. Mas podemos localizar esse tipo de postura

como outras tantas, já que essa é uma questão mais ampla, na medida em que os indígenas

sempre tiveram sua presença, seu protagonismo, invisibilizado ou manipulado pela versão oficial

da história, que tinha, em geral, um lado só.

Para as camadas médias da população de Brasília, que no geral possuem em grande

medida sua opinião formada pelos grandes meios de comunicação, essa presença indígena se

torna simplesmente inconcebível e inaceitável, já que, em seu imaginário e na opinião formada e

confirmada pela grande mídia, os índios do Santuário dos Pajés são oportunistas, pois querem

ficar numa área em que está em andamento a construção de um bairro nobre. Em nenhum

momento há o que Gadamer (2005) chama de "fusão de horizontes" aqui.

Esta pesquisa não teve um trabalho de campo típico. Alguns poderiam pensar que, pela

proximidade da minha residência com o Santuário dos Pajés na Asa Norte, poderia ser feito um

tipo de presença constante na aldeia. Não foi assim: primeiramente, por se caracterizar como

pesquisa antropológica em meio urbano, os índios que moram no Santuário trabalham, estudam

nos dias de semana, possuem uma rotina como a minha, de trabalho e estudos. Assim, as visitas

ocorriam, portanto, muito mais nos fins de semana, quando também outros tantos apoiadores

estavam presentes e, certamente, os índios. A entrada e a saída do Santuário não poderiam ser

feitas a nosso bel-prazer. Deveria passar pela autorização de visita a Santxiê, o pajé Fulni-ô, que

leva a frente o reconhecimento da terra como Terra Indígena. Nem sempre eu conseguia ir ao

Santuário, seja por meus próprios afazeres seja pelos deles, já que os índios deixavam claro que

precisavam de momentos sem "gente de fora" lá, precisavam de tempo para organizar suas casas,

fazerem suas tarefas domésticas etc., o que pode ser comprometido facilmente pela constante

presença de "gente de fora". Assim, esse trabalho ao longo do tempo, com as conversas

informais, entrevistas, leituras, sessões de vídeos, foi se descortinando, dentro e fora do

Santuário. Outros trabalhos com o Santuário já haviam sido feitos e outros estavam sendo

realizados concomitantes ao meu.

Dessa forma, pude ser privilegiada pela leitura de trabalhos de Frederico F. Magalhães

(2009) sobre a presença histórica dos índios no local, o laudo antropológico de Jorge Eremites,

Pereira e Barreto (2011), a monografia de Alan Schvarsberg (2009) sobre o papel da mídia nesse

processo, Rafael Moreira (2011) sobre a cidade de Brasília e seu perfil excludente,

posteriormente de Pedro Felix Carmo Penhavel (2013) sobre o Setor Noroeste, a urbanização da

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cidade e o Santuário dos Pajés, e de outros como de Ana Karina Pereira (2010) e Leonardo

Amorim (2012), que não se atinham especificamente sobre o Santuário, mas nos processos

decisórios da construção do bairro Noroeste.

Dessa forma, o que ficou cada vez mais claro foi que tanto o governo e suas empresas, as

empreiteiras e muitas pessoas com as quais conversamos diariamente e outras que expõem suas

opiniões em sites de notícias na internet e os índios e seus apoiadores, todos esses falam de

posições diferentes e sobre coisas diferentes.

Passei assim a localizar essas duas posições diferentes, a saber: o governo do Distrito

Federal e suas empresas – como a Terracap e sua associação com os grupos de empreiteiros – e

os demais interessados na consecução do Setor Noroeste, as quais chamei aqui como "poder

local", pensado a partir da noção weberiana sobre poder legal, que versa:

A ideia fundamental é que, através de um estatuto arbitrário formalmente

correto, se podia criar qualquer direito e alterar [opcionalmente o existente]. A

associação de poder é ou escolhida ou imposta; ela própria e todas as suas partes

são empresas. O poder na empresa capitalista privada é, sem dúvida,

parcialmente heterônomo: o ordenamento é, em parte, estatalmente prescrito –

e, em relação ao corpo coercivo, inteiramente hidrocéfalo: o corpo judicial

estatal e o corpo policial cumprem (normalmente) estas funções - mas são

autocéfalos na sua organização administrativa cada vez mais burocrática. Que a

entrada na associação de poder se siga formalmente de um modo livre em nada

altera o caráter do poder, pois a notificação é também formalmente “livre”, e

isto sujeita normalmente os governados às normas empresariais, devido às

condições do mercado de trabalho.2

Os índios do Santuário dos Pajés constroem um discurso e uma postura baseados na ideia

de sacralidade da terra onde moram, tanto para protegerem o que ao longo do tempo os índios

que hoje moram no local estabeleceram como um local para culto, reza e pajelança e separado de

suas vidas cotidianas e das demais pessoas, como também para estabelecer uma diferenciação

entre os índios e os não índios.

Com o crescimento da cidade de Brasília, os setores já urbanizados e os que são

considerados apropriados para a expansão da urbanização avançam sobre as áreas ainda não

construídas do Distrito Federal. É aí que os interesses da construção do novo bairro, chamado

Setor Noroeste, na Asa Norte de Brasília, e os dos índios que moram na área entram em

confronto. Isso se deve ao fato de que os índios conseguiram provar que estão na área desde a

construção de Brasília; porém, várias razões que vamos tratar nesse trabalho são desconsideradas

2 Ver WEBER, Max (s/d) Três Tipos Puros de Poder Legítimo. Disponível em: <http://www.lusosofia.net

/textos/weber_3_tipos_poder_morao.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2013.

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pelos grupos interessados na construção do novo bairro. Desse modo, conseguimos perceber

duas diferentes lógicas operando.

Portanto, em termos weberianos, isso representa uma visão mais desencantada do

mundo, racional, perseguindo seus interesses de cunho econômicos e de seus pares, ao passo que

os índios do Santuário dos Pajés representam uma visão mais encantada do mundo, cujos

pressupostos não estão baseados em valores econômicos. Eles têm uma postura que foi

construída, especialmente quando em contato com os de fora, e exacerbada pelo forte avanço do

que vamos chamar aqui de poder local. Nesse sentido, os apoiadores do Santuário são

entendidos desse lado, pois, por mais que não compartilhem totalmente a visão dos próprios

índios, eles respeitam a concepção de mundo deles e, em alguma medida, vários imaginam que

ela ofereça uma visão diversa da empresarial capitalista atual; que seja possível e seja necessária

nessa questão e em outras.

Para além da dicotomia das visões propostas por Weber e trazendo para os termos

entendidos por Roberto Cardoso de Oliveira (1978) sobre os problemas que encontram a

visibilidade e o entendimento da questão indígena nos diversos setores da sociedade brasileira, o

autor pergunta "[...] quais os obstáculos que a questão indígena encontra, nos meios não

comprometidos, para sua formulação adequada e racional?" Para responder a questão, o autor

elenca esses obstáculos que chama de "mentalidades" que estão presentes nos diversos setores da

sociedade brasileira. A mentalidade estatística, a romântica, a burocrática e a empresarial.

Mentalidades estatística e romântica seriam encontradas nos setores onde as decisões

envolvendo a questão indígena fossem mais distantes. A mentalidade estatística seria encontrada

entre os intelectuais que acreditam exageradamente nos números, equacionando atos morais em

termos quantitativos. Presentes em pensamentos como: "O que significa morrerem algumas

centenas de índios, se morrem no Brasil, diariamente, milhares de crianças?" (OLIVEIRA, p.

71). Mentalidade romântica que os torna presos a ideias estereotipadas, ingênuas e fixas dos

índios descritos por José de Alencar ou Gonçalves Dias. Essa mentalidade estaria presente entre

intelectuais, de certa maneira, mas especialmente entre as pessoas comuns, que teriam uma ideia

generosa dos índios, mas, acabaria desumanizado pelo que faltaria a eles, e também por uma

necessidade, que se encontraria entre o homem comum, de criar um contraponto entre ele (o

“índio”) e eu (o “civilizado”), vamos reafirmando o que somos por meio da alteridade do outro,

decidindo o que são e o que lhes falta (BONIN, 2006, p. 69).

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A mentalidade burocrática e a empresarial estão presentes, segundo Cardoso de Oliveira,

entre as pessoas que estão mais próximas e/ou são capazes de influenciar as políticas

indigenistas. O autor falava especialmente dos funcionários do antigo Serviço de Proteção aos

Índios (SPI) quando mencionava a mentalidade burocrática, pois, esses seriam funcionários que,

com o passar do tempo, foram se distanciando de uma ideologia rondoniana, que visava mais à

proteção e assistência aos índios, e foi dando lugar à mentalidade indiferenciada, burocrática,

sem que eles se identificassem como indigenistas (BONIN, 2006, p. 72). Assim, a mentalidade

empresarial, que torna os diretores do SPI não ligados às concepções rondonianas, e que

transformaram os antigos Postos Indígenas em "verdadeiras empresas, dedicadas à produção e ao

lucro. A concepção inerente a essa orientação é a de que índios só podem civilizar-se pelo

trabalho [...] o trabalho induzido, o que lhe é ensinado pelo civilizado" (BONIN, 2006, p. 73).

Sabemos que esses tipos de mentalidades podem ainda ser encontrados em alguma

medida tanto na Fundação Nacional do Índio (Funai) como em outros órgãos que estão atuando

em questões de regularização de terras indígenas, como os órgãos ambientais, até nos poderes

legislativo e executivo. Mas também outras mentalidades, talvez desdobradas dessas elencadas

por Cardoso de Oliveira, possam estar presentes; como um outro tipo de mentalidade romântica

aliada a um tipo de ambientalismo que coloca os povos indígenas como protetores, os únicos

protetores ou os reais protetores do meio ambiente, e, de certa maneira, dentro da dicotomia

natureza e cultura, colocam os índios muito mais relacionados à ideia de natureza do que de

cultura, o que acaba por desumanizá-los.

Outro tipo de mentalidade, a empresarial, estaria não só em órgãos políticos, mas também

na associação da política com o mundo empresarial, em que podem exercer influência em esferas

que acabam englobando algum elemento que compõe a problemática indígena, como as grandes

obras de estradas, hidroelétricas, codomínios, fábricas, hotéis e resorts etc. que ou são ocupadas

pelos indígenas ou exercem influência na moradia, na subsistência desses povos.

Dessa maneira, muitas vezes, governos e empresários se unem para dar prosseguimento a

essas obras a despeito dos interesses indígenas, de leis constitucionais, já que os interesses

políticos e o volume de dinheiro são grandes, além de acabarem retomando antigos discursos, a

saber que os povos indígenas são entraves para crescimento econômico, que há muita terra para

poucos índios e que está havendo uma guerra contra produtores rurais apoiados pela Funai. Entre

outros tantos discursos infundados e alarmistas que ignoram os contextos históricos, estão o

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longo processo de esbulhos de terras sofridos pelos índios e a presença e a afirmação indígenas

como atores políticos, especialmente desde a promulgação da Constituição de 1988, que

transformou a presença indígena no cenário político nacional cada vez maior – embora isso nem

sempre tenha se convertido numa melhora ao atendimento das reivindicações dos indígenas pelo

Estado.

No primeiro capítulo, apresento a fundamentação teórica a que recorri para tratar dos

temas e dos conceitos desenvolvidos ao longo desse trabalho. A intenção é mostrar como é a

religião; em que se configura o pedido dos Fulni-ô da comunidade indígena Tapuia-Fulni-ô

Santuário dos Pajés, objeto de estudo deste trabalho; fundamentar que seu ethos e sua visão de

mundo vão de encontro com os interesses do poder local, que têm sua posição legitimada pelo

funcionamento da burocracia local e pela mídia. Desse modo, entendemos que muitas religiões,

inclusive as mais institucionalizadas, estabelecem vínculos com os lugares em que se

territorializam, criando lugares sagrados e santuários com os quais mantêm profunda ligação e

que alimentam a continuidade de suas tradições. Nesse sentido, é importante pensar certas

categorias, como espaço, território, territorialização e Terra Indígena, em conexão com a

reprodução material e também simbólica dos povos.

As categorias citadas são estudadas em diversas áreas de conhecimento e, desse modo,

ajudam a pensar em uma perspectiva interdisciplinar que aponta outros caminhos: como essas

categorias vêm sendo usadas na prática pelo poder local do DF e também pelos indígenas do

Santuário.

Para os indígenas, o lugar onde vivem possui características sagradas em que não se pode

colocar preço; já o poder local, que historicamente teve poder preponderante no crescimento

urbano e de moradias no DF, vê a área que disputa com os indígenas como uma terra-

mercadoria, passível de permutação e exploração no mercado imobiliário local. Para que isso

ocorra, a terra que antes era Área de Relevante Interesse Ecológico (Arie) é inserida dentro do

mercado e vendida por meio de leilões públicos, em razão da alteração do último Plano Diretor

da Cidade (PDOT). Com as terras inseridas no mercado imobiliário local, um novo bairro passa a

ser “vendido” rapidamente pelo Governo do Distrito Federal, pelas empreiteiras que adquiriram

as terras e parte da mídia, como uma grande inovação, a saber o primeiro "bairro verde",

"ecologicamente correto". Para vender a ideia, lançaram mão de um pesado marketing verde,

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oferecendo à classe média alta da cidade uma opção "correta", dentro de padrões internacionais

que reconheceriam o empreendimento como ecologicamente correto.

No segundo capítulo, são trabalhados alguns elementos da construção de Brasília

relevantes para a presente análise como: o que são as empresas públicas de Brasília, Novacap e

Terracap, quais suas funções no início da cidade e, até hoje, no que se refere à ocupação do solo,

venda das terras e a íntima relação entre poder público e a estipulação de preços de terras na

cidade. Será visto como a construção do novo bairro Setor Noroeste está ligada aos interesses do

governo local, que é parceiro das empreiteiras que criam um projeto de bairro verde numa das

últimas áreas de cerrado da cidade. O novo bairro nasce em meio a questões que a sociedade de

Brasília vem prestando cada vez mais atenção, já que se trata da construção de uma nova

comunidade de classe média alta na cidade.

Até aí poder-se-ia pensar que essa questão estaria restrita aos departamentos de

urbanismo, meio ambiente, trânsito, saneamento básico entre outros, do governo local.

Entretanto, o que torna o nascedouro desse bairro sui generis é que este tem sua programação de

construção numa área nobre na cidade, com cerrado ainda vivo, e com um grupo de indígenas

que está morando no local há pelo menos quatro décadas. Para que esse bairro seja construído,

empreiteiras e governo local lançam mão de diversos expedientes para fazer com que o grupo

que vive no local saia, para que possam de fato dar continuidade às obras que já se iniciaram.

No terceiro capítulo, foi traçado um histórico do Santuário dos Pajés, a partir da

bibliografia pesquisada sobre o local. Foram localizadas as diversas etnias que compunham e que

compõem atualmente a comunidade do Santuário; contudo, será dada ênfase na etnia Fulni-ô e

no grupo Tapuya Fulni-ô do Pajé Santixê (que lidera a luta pelo reconhecimento do Santuário

como terra indígena). São apresentados um pouco das características dos Fulni-ô, no contexto da

chegada dos primeiros representantes desse povo ao local, e o significado que a terra teve e tem

para eles nesse sentido. Também serão tratadas as diferenças na ocupação da terra pelos Kariri-

Xocó e Guajajara, que hoje também fazem parte do Santuário dos Pajés, e da demanda pelo

reconhecimento da terra como Terra Indígena.

No quarto capítulo, discutem-se o apoio e toda uma rede de apoiadores fixos e eventuais,

geralmente articulados pela internet, que reúne em torno da demanda dos indígenas os moradores

das proximidades do local, estudantes, profissionais das mais diversas áreas, professores,

advogados, entre outros. São pessoas que comungam da luta dos indígenas e também de outros

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aspectos e visões dos povos indígenas como um todo. A relação entre a comunidade e a rede de

apoiadores é muito importante, no sentido de que tanto introduzem a causa indígena no seio dos

movimentos sociais como um todo e em ambientes diversos, como também ajudam a reforçar a

ideia de que a luta dos povos indígenas não é só deles, mas de todos aqueles que propõem e

buscam modos de vida, desenvolvimentos diversos dos que são impostos pelo Estado e pelas

empresas.

Ao longo desse trabalho, foram realizadas seis entrevistadas com pessoas que foram

escolhidas por meio de indicação e sugestão dos próprios apoiadores, devido ao seu

envolvimento, conhecimento, participação no movimento que apoiou e apoia o Santuário, mais

uma entrevista com Dr. Jorge Eremites de Oliveira da Universidade Federal de Pelotas (UFPel),

autor do último Laudo Antropológico sobre o Santuário dos Pajés, e o Dr. Frederico Flósculo,

professor da UnB do Departamento de Arquitetura e Urbanismo que, além de ter Brasília como

um de seus objetos de estudo, apoia a permanência do Santuário dos Pajés. Algumas pessoas

autorizaram sua identificação nesse trabalho por serem públicos seu apoio e opiniões. Assim,

serão identificados apenas com um número os entrevistados, mesmo que tenham autorizado a

divulgação de seus nomes.

Desse modo, os objetivos dessa dissertação são:

1. Refletir sobre a posição dos índios e dos apoiadores, assim como sobre o histórico

do processo de formação do Santuário dos Pajés e a demanda para seu reconhecimento

como Terra Indígena baseada em valores e em "visões de mundo" diversos dos do "poder

local".

2. Caracterizar como o "poder local" se utiliza do discurso sobre déficit habitacional

para camadas médias, sendo a construção de um bairro a solução para esse problema.

Para isso, o bairro em questão, o Setor Noroeste, é baseado em um projeto "ecológico",

que lança mão de forte marketing verde para agregar mais "valor" ao empreendimento.

3. Explicar, por meio de alguns elementos dos planos e das ações durante a

construção de Brasília, como a cidade foi construída de forma a privilegiar a burocracia

estatal e como a Novacap e a Terracap serviram para estabelecer o privilégio de alguns, o

monopólio das terras no Distrito Federal e até mesmo o favorecimento da especulação

imobiliária.

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4. Compreender a criação do bairro Setor Noroeste dentro das mudanças previstas

no Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT), assim como suas alterações ao

longo do processo.

5. Entender o funcionamento da rede de apoio em torno da demanda dos índios,

configurando o que chamo aqui de "rede de apoiadores".

6. Colaborar com a reflexão do que significa o reconhecimento de terras indígenas

em locais urbanos.

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CAPÍTULO 1 – O SAGRADO E A MERCADORIA

“Îaikó ka’a-atã-me

Yby-poranga, yby marã-e’yma.

Mamõ-pe paié ka’a’anga mongetáu.

!!Nde o-sema Paié-oka!!

O-pyta Paié-oka.

Îandé ramyîpagûama rekó-á-pe.”3

(Comunidade indígena Tapuia-Fulni-ô)

No presente capítulo, o objetivo é tratar dos conceitos de sagrado, mercadoria, espaço,

território, territorialização, Terra Indígena e especulação imobiliária no que se relacionam à

formação do Santuário dos Pajés.

1.1 SOBRE O SAGRADO E A MERCADORIA

As formas de expressão da religiosidade são múltiplas e muito diversas, não são

encontradas apenas nessas religiões de milhões de fiéis ao redor do mundo. História, Filosofia,

Antropologia, Sociologia, Psicologia mostram que todos os grupos humanos possuem uma

dimensão de sua "cultura" relacionada com sua compreensão metafísica, simbólica e material de

lidar com essa dimensão religiosa. Para Clifford Geertz (2008) a religião é definida como

(1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas, penetrantes

e duradouras disposições e motivações nos homens através da (3) formulação de

conceitos de uma ordem de existência geral e (4) vestindo essas concepções

com tal aura de fatualidade que (5) as disposições e motivações parecem

singularmente realistas. (GEERTZ, 2008, p. 67)

Nas sociedades ocidentais, é sabida a importância das religiões judaico-cristãs na

formação dos valores dessas sociedades e, por consequência, das sociedades que são

influenciadas por elas. Sabemos como Jerusalém, a chamada "Terra Santa" para cristãos, judeus

e muçulmanos está no centro de disputas históricas entre esses grupos. Como nos aponta Eller

(2007, p. 66), para os cristãos, os locais onde Jesus caminhou, sofreu, foi enterrado e também os

caminhos percorridos até sua crucificação, a "via dolorosa" são sagrados. Para os judeus ainda

3 Tradução livre do trecho em tupí antigo: “Estamos no cerrado. Terra bonita, terra sem mal... Onde os pajés falam

com os espíritos da mata! O Santuário dos Pajés não se move!! O Santuário dos Pajés fica. Morada de nossos

ancestrais”.

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hoje o "muro das lamentações", onde era localizado importante templo, é um local sagrado,

assim como a "Meca" (a cidade do profeta Maomé, local onde todo muçulmano, se puder, deve

ir ao menos uma vez em sua vida), e muitos pontos que formam Caabá (Ka'aba) são sagrados e

centrais para os muçulmanos. O Monte Fuji é um centro de poder para os japoneses, assim como

o Monte Meru, a casa dos deuses, é sagrado para os hindus. Não é, portanto, novidade a

existência de locais considerados sagrados pelos grupos humanos, sejam esses lugares

construídos, onde ocorreram eventos importantes para determinada religião, ou seja, onde se

acredita que seja morada de um espírito considerado sagrado, como água, montanhas, árvores.

Locais sagrados são materializados em um lugar ou local e, segundo Eller, é a mais

recorrente forma de objetivação material religiosa. "In most, if not all, religious traditions,

“place” is deeply important for belief and worship, and such a location is not a random space but

a space where something is or where something happened [...]." (ELLER 2007, p. 66 – grifos do

original). Os cristãos possuem longo histórico na construção de locais que consideram sagrados

no mundo todo.

Os cristãos têm repetidamente construído igrejas em locais onde ocorreram

eventos importantes, mais notavelmente a catedral de São Pedro, o local do

Vaticano Católico; este foi o lugar onde o discípulo Pedro teria sido morto.

Catedrais construídas onde não há precedente histórico consagrado no chão

foram fornecidos frequentemente com um objeto - em particular, uma "relíquia"

ou parte do corpo sagrado de um santo- para plantar ali o sagrado (ELLER,

2007, p. 66 – tradução livre)4.

Os locais sagrados, sua criação e preservação são recorrentes em praticamente todas as

culturas humanas; contudo, em meio a conflitos que não são todos da ordem do "sagrado",

envolvem dimensões políticas e econômicas, principalmente, a importância do que é sagrado

para o outro tende a ser minimizada ou mesmo ignorada. Para muitos povos indígenas, a

importância da terra não está simplesmente calcada na relevância da reprodução física e material

do grupo, que, sem dúvida, é de inquestionável importância.

Nesse sentido, antes de se chegar à discussão sobre terra como lugar sagrado, refletir-se-á

sobre outras categorias que são subjacentes a ela, como espaço, território e territorialização.

4 Original: “Christians have repeatedly built churches on sites where important events occurred, most notably the

cathedral of St. Peter, the site of the Catholic Vatican; this was the spot where the disciple Peter was reportedly

killed. Cathedrals constructed where no historical precedent consecrated the ground were often provided with a

sacred object—in particular a “relic” or body part of a saint—to “plant” sacredness there”.

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1.2 ESPAÇO, TERRITÓRIO, TERRITORIALIZAÇÃO E TERRA INDÍGENA

A noção de espaço e território é largamente estudada, especialmente por geógrafos que

estão interessados na relação entre os homens e o meio em que vivem, assim como na

transformação, seja material desse meio como social seja simbólica. Entre os desenvolvimentos

acerca dessas categorias, concordamos com a noção de Santos (2009) e Saquet (2005) que, em

linhas gerais, entendem o espaço como fruto de intervenção do homem no meio em que vive, um

processo social. Reúne o tempo concreto, atual, mas também um devir, ou seja, uma relação

dialética em que o espaço é vivido e simultaneamente é produzido. O espaço, portanto, se

conecta com a noção de território na medida em que só se separam em termos conceituais, mas

que na prática são inextrincáveis. Para Henri Lefebvre (1986), o espaço é também pensando

como processo socialmente construído, é um espaço feito território. Assim, "território e espaço

estão ligados, entrelaçados, pois o primeiro é fruto da dinâmica socioespacial" (SAQUET, 2005,

p. 49). Na definição de Rogério Haesbaert, território é um espaço de criação sociocultural,

[...] todo território é, ao mesmo tempo e obrigatoriamente, em diferentes

combinações, funcional e simbólico, pois exercemos domínio sobre o espaço

tanto para realizar “funções” quanto para produzir “significados”. O território é

funcional a começar pelo território como recurso, seja como proteção ou abrigo

(“lar” para o nosso repouso), seja como fonte de “recursos naturais” – “matérias

primas” que variam em importância de acordo com o(s) modelo(s) de

sociedade(s) vigente(s) (HAESBAERT, 2004, p. 3).

Já a diferença entre ambos, para o autor, refere-se às relações sociais que são em grande

medida relações de poder.

[...] se o espaço social aparece de maneira difusa por toda a sociedade e pode,

assim, ser trabalhado de forma genérica, o território e os processos de

desterritorialização devem ser distinguidos através dos sujeitos que

efetivamente exercem poder, que de fato controlam esse(s) espaço(s) e,

consequentemente, os processos sociais que o(s) compõe(m) (HAESBAERT,

2004, p. 3).

Os grupos humanos possuem uma relação complexa com o local onde vivem e elaboram

sobre ele vivências, memória, conhecimento, desenvolvem, dessa forma, suas culturas e forjam,

sobretudo, sua própria identidade, assim:

[...] a expressão dessa territorialidade, então, não reside na figura das leis ou

títulos, mas se mantém viva nos bastidores da memória coletiva que incorpora

dimensões simbólicas e identitárias na relação do grupo com sua área, o que dá

profundidade e consistência temporal ao território (LITTLE, 2002, p.11).

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De certo modo, as concepções de Little, Haesbaert, Lefebvre, Santos e Saquet são

complementares, já que entendem a dimensão sociocultural na transformação do espaço em

território e na configuração desse último em algo significativo e simbólico para quem os ocupa.

Daí a importância da noção de territorialidade proposta por Little,

[...] a territorialidade é uma força latente em qualquer grupo, cuja manifestação

explícita depende de contingências históricas. O fato de que um território surge

diretamente das condutas de territorialidade de um grupo social implica que

qualquer território é um produto histórico de processos sociais e políticos

(LITTLE, 2002, p. 3).

Os homens tornam, portanto, seu espaço vivido em território, mas não estão livre das

relações de poder inerente à posse de terras. Sabemos que no Brasil a questão fundiária é um

problema histórico e muito complexo e que está longe de ser resolvido, inclusive vem agravando

disputas e violências em várias regiões. Quando trazemos a problemática para a realidade dos

povos indígenas, a situação não é diferente; contudo, oferece outros elementos além da questão

fundiária tradicional, importantes na relação entre os povos indígenas e o Estado brasileiro.

O que percebemos é que o próprio Estado tem dificuldades não só em reconhecer os

direitos constitucionais dos povos indígenas, em resistir aos apelos dos empresários, mas

também em formular políticas que observem a mobilidade das populações indígenas e que não

congelem suas características culturais a ponto de não preverem que a cultura, sendo processual,

possa mudar, assim como as necessidades do grupo.

Os indígenas, em geral, têm estado fora ou são pouco solicitados a falar quando o assunto

se refere a suas concepções do que é território. Em sua dissertação de mestrado em direito, Paulo

Celso Oliveira, da etnia Pankararu do sertão pernambucano, coloca o descompasso das

concepções que têm como base o entendimento da propriedade privada como referência. Nesse

sentido, devemos entender as relações que os índios mantêm com a terra. Para P.C. Oliveira:

Para entender a concepção territorial dos povos indígenas, é necessário se

depreender dos conceitos da sociedade ocidental sobre a terra,

especialmente da propriedade privada e buscar essa compreensão a partir

da cultura dos povos indígenas, ou seja, a partir da visão dos índios. Uma

concepção que tenha a propriedade privada como parâmetro distorce o

significado dos territórios indígenas, que são, por excelência, direitos

coletivos (OLIVEIRA, P. C., 2006, p.12).

Portanto, as próprias noções de território, territorialidade e territorialização, por parte dos

povos indígenas, são diferentes de como o Estado o compreende e de como o legisla no que se

refere à ocupação e ao direito privado. Para que exista o chamado processo de territorialização,

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“processo de reorganização social”, segundo João Pacheco de Oliveira (2004) prescinde: “1) a

criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica

diferenciadora; 2) a constituição de mecanismos políticos especializados; 3) a redefinição do

controle social sobre os recursos ambientais; 4) a reelaboração da cultura e da relação com o

passado” (p.22). Para as populações indígenas brasileiras, segundo o autor, o processo de

territorialização é a transformação

em uma coletividade organizada, formulando uma identidade própria,

instituindo mecanismos de tomadas de decisão e de representação, e

reestruturando as suas formas culturais (inclusive as que se relacionam

com o meio ambiente e o universo religioso). (OLIVEIRA, P. C., 2004, p.24.)

A territorialização é, portanto, um processo de resposta aos apelos e mudanças levados

por elementos externos aos grupos em questão que os levam à revalorização da relação com o

território onde vivem; da identidade do grupo, reforçando a diferenciação nós e eles, e

organizando ou reorganizando o próprio grupo politicamente para enfrentar os desafios impostos

pela situação de crise e/ou conflito que vivem. A terra indígena é, na verdade, mais uma

necessidade do próprio Estado de controlar e estabelecer limites do que dos índios.

J. P. de Oliveira (1996, p. 6) afirma como os limites dos territórios não são típicos dos

índios que, em geral, não fazem isso, mas sim da própria sociedade envolvente. Nesse sentido, o

autor afirma que "terra indígena" é uma categoria jurídica definida pela lei que ficou conhecida

como Estatuto do Índio (Lei nº 6.001, de dezembro de 1973).

A relação entre espaço, território e territorialização não é excludente da ideia de

constituição de uma terra sagrada. J. P. de Oliveira (2004) fala das formas culturais que se

relacionam com o meio ambiente e o universo religioso, que, para os povos indígenas, não se

separam. Assim, retomamos a ideia de lugares sagrados de Eller (2007) e de territorialização de

J. P. de Oliveira (2004) para refletir a materialização em forma de território, os lugares sagrados.

O sagrado é pensando como sendo algo excepcional, algo diferente, como coloca Mircea

Eliade (1992).

A manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo. Na extensão

homogênea e infinita onde não é possível nenhum ponto de referência, e onde,

portanto, nenhuma orientação pode efetuar-se, a hierofania5 revela um “ponto

fixo” absoluto, um “Centro” [...] Para viver no Mundo é preciso fundá-lo – e

nenhum mundo pode nascer no “caos” da homogeneidade e da relatividade do

5 É ato da manifestação do sagrado em objetos ou lugares, segundo Eliade (1992).

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espaço profano. A descoberta ou a projeção de um ponto fixo – o “Centro” –

equivale à Criação do Mundo (ELIADE, 1992, p.17).

Em conformidade com as discussões de Eliade, a ideia de santuário é definida como o

local onde se materializa esse sagrado, onde há possibilidade de abertura ao transcendental.

a) as cidades santas e os santuários estão no Centro do Mundo; (b) os templos

são réplicas da Montanha cósmica e, consequentemente, constituem a “ligação”

por excelência entre a Terra e o Céu; (c) os alicerces dos templos mergulham

profundamente nas regiões inferiores (ELIADE, 1992, p.26).

A terra e o espaço urbano, ao longo do tempo, entraram como importante commodity na

atual fase do capitalismo, com a reprodução de configurações espaciais (Harvey, 2005). São nas

grandes cidades, especialmente com as transformações espaciais, com novos espaços e novos

empreendimentos no mundo imobiliário, que essa commodity se estabelece.

1.3 MERCADORIA E ESPECULAÇÃO

A terra, de maneira mais geral, é um importante elemento do capitalismo, principalmente

por suas características, digamos, versáteis, pois ao mesmo tempo pode tanto ser espaço para

expansão de exploração de agronegócio como pode ser convertida em moradia, especialmente as

terras próximas a centros urbanos. Em 1850, com a Lei Eusébio de Queiroz, ou Lei de Terras, se

encerra um longo período na história colonial brasileira que tinha como elementos principais as

capitanias hereditárias e sesmarias, que desde cedo articulou a grande concentração de terras de

alguns proprietários. Como aponta James Holston,

[...] a lei de terra no Brasil promove conflito, e não soluções, porque estabelece

os termos através dos quais a grilagem é legalizada de maneira consistente.

É, por isso, um instrumento de desordem calculada, através do qual práticas

ilegais produzem lei, e soluções extralegais são introduzidas clandestinamente

no processo judicial. Nesse contexto repleto de paradoxos, a lei é um

instrumento de manipulação, complicação, estratagema e violência, através do

qual todas as partes envolvidas – dominadoras ou subalternas, o público e o

privado – fazem valer seu interesses. A lei define, portanto, a arena de conflito

na qual as distinções entre o legal e o ilegal são temporárias e sua relação é

instável (HOLSTON, 1993, p. 68).

As terras com preços estipulados deixavam de fora as camadas da população que não

tinham condições financeiras de adquirir terras e fazia com que as vultosas quantidades de terras

se restringissem a um número reduzido de proprietários. Assim como deixava parte dessas

camadas que não podiam adquirir as terras ficar subjugada politicamente e economicamente a

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esses proprietários. Isso estabeleceu de forma marcante o privilégio da propriedade da terra,

assim como sua concentração no Brasil.

[F]oi o monopólio da terra que permitiu consolidar as posições ganhas com base

na escravidão. Com efeito, a partir do momento em que a mão de obra escrava

se torna escassa e a oferta de trabalho livre mais abundante, criam-se condições

favoráveis ao desenvolvimento de pequenas e médias explorações agrícolas.

A partir desse momento, o controle da propriedade da terra por uma minoria

passa a ser o fator determinante da organização agrícola (FURTADO, 1975,

p. 106).

A terra como uma mercadoria disponível no mercado não estava disponível para todos.

A complexa cadeia de acontecimentos políticos, econômicos, socais e históricos não nos cabe

aqui esmiuçar, mas o que nos interessa apontar aqui é quando a terra é tornada mercadoria. Ela

só está disponível para poucos, dessa forma, tanto os latifundiários quanto o empresariado da

construção civil em centros urbanos compartilham a prática de especulação.

Segundo os pontos de vista de Nogueira e Godoi6, o termo "especulação imobiliária", e

seu entendimento em geral, surge a partir da analogia com a prática especulativa no mercado

financeiro. Para esses autores, a especulação imobiliária merece uma análise mais minuciosa,

pois ela não simplesmente replica as mesmas condições mas é fruto das mesmas causas que a

especulação financeira.

A economia cresce e, por consequência, o mercado de imóveis está em

expansão gerando, dentre outras implicações, tanto a constituição de novos

empreendimentos imobiliários, quanto à disponibilização de crédito para

famílias de menor renda. Ocorre a redução do déficit habitacional, que, de longa

data não alcançava patamares tão expressivos quanto os de agora. Com o

aumento do crédito, novos empreendimentos no setor imobiliário multiplicam-

se, gerando, assim, uma acentuada flutuação no valor de mercado dos imóveis

[...]. A especulação imobiliária é um fenômeno inerente ao contexto de

expansão das grandes cidades. Portanto, ela manifesta-se precipuamente nas

áreas em que há densa concentração populacional. E, na maioria dos casos, é

reflexo das manifestações e contradições oriundas da expansão desordenada dos

perímetros urbanos (2012, s/d, p. 12-13).

A especulação de terras é "estocar algo na esperança de realizar uma transação vantajosa

no futuro, quando, então, seu preço estaria superior ao preço atual. Este ativo, enquanto

especulativo, se assemelha ao capital, embora não o seja, pois ele 'valoriza' ou, mais

propriamente, aumenta de preço (KANDIR, 1984, p. 109, apud GONÇALVES, 2002, p. 1)".

6 Ver conteúdo disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=2ecd2bd94734e5dd>. Acesso em: 2

maio 2013.

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Campos Filho (1989, p. 48) afirma que a renda recebida pelos proprietários de terra vem dos

outros setores produtivos e, mais especificamente, do poder público quando este investe em

infraestrutura e demais serviços urbanos; já Milton Santos (1993, p. 96, apud GONÇALVES,

2002, p. 1) acredita que a especulação é fruto da conjugação dos seguintes fatores: pela

superposição de um sítio social ao sítio natural e pela disputa de pessoas ou atividades por uma

determinada localização, se alimentando também das expectativas criadas por esses movimentos.

Essa prática especulativa tem grande impacto tanto no mundo do campo – na

transformação de terras de uso rural para uso urbano, impacto ambiental sobre as terras que são

reservas ambientais que resguardam aquíferos, espécimes da fauna e flora locais – como também

em âmbito urbano; pressiona as condições de acesso a terra ou a moradia a certas camadas; cria

exclusão de moradia e de espaço; e acaba controlado o mercado da construção civil, bem como

dos valores dos imóveis e aluguéis. (SANTOS, 1993, apud GONÇALVES, 2002, p. 2). “Uma

política urbana para ser eficiente na efetivação de seus objetivos deverá alterar os mecanismos

que reproduzem a escassez social da terra urbanizada e, consequentemente, da dinâmica

especulativa” (SANTOS, 1994, p. 158, apud GONÇALVES, 2002, p. 2).

Desde muito cedo, o governo, seja a metrópole portuguesa seja posteriormente o governo

brasileiro, sempre foram atores principais no que diz respeito à questão fundiária no país. Dessa

maneira, o empresariado não atua sozinho nesse processo especulativo, o Estado é seu parceiro e

tem papel fundamental de criar infraestrutura, fiscalizar, financiar, legislar sobre as grandes

obras envolvendo as terras. O Estado opera a respeito:

a) direito de desapropriação e precedência na compra de terras; b)

regulamentação do uso do solo; c) controle e limitação dos preços de terras;

d) limitação da superfície da terra de que cada um pode se apropriar; e)

impostos fundiários e imobiliários que podem variar segundo a dimensão do

imóvel, uso da terra e localização; f) taxação de terrenos livres, levando a

uma utilização mais completa do espaço urbano; g) mobilização de reservas

fundiárias públicas, afetando o preço da terra e orientando espacialmente a

ocupação do espaço; h) investimento público na produção do espaço,

através de obras de drenagem, desmontes, aterros e implantação da

infraestrutura; i) organização de mecanismos de crédito à habitação; e j)

pesquisas, operações-teste sobre materiais e procedimentos de construção,

bem como o controle de produção e do mercado deste material (CORRÊA,

1995, p.26 apud GONÇALVES, p. 9).

O mercado imobiliário do Distrito Federal de hoje é caudatário de todos os processos de

desapropriação de imóveis rurais do Estado de Goiás e da concentração do domínio das terras

nas mãos da Terracap.

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No caso do DF, o governo tem, desde a transferência da capital, um papel

proeminente na organização do espaço (Paviani, 2007, p. 1). Para isso, por anos

a fio, manteve desapropriações e um invejável estoque de terras como um dos

principais instrumentos para a organização do território. Diferentemente de

outros estados e municípios, Brasília detinha esse grande trunfo em mãos dos

governadores do DF. Paulatinamente, todavia, esse estoque de terras públicas

foi sendo reduzido por vendas com licitações pela Companhia Imobiliária de

Brasília (Terracap). Com isso, empresas e moradores aumentaram sua

participação no “loteamento oficial”. Além disso, alguns programas do Governo

do Distrito Federal (GDF) como o Proin (visando à atração de indústrias), o

Prodecon (Programa de Desenvolvimento Econômico do DF), Pades (Programa

de Apoio ao Desenvolvimento Econômico e Social do DF) e o PRODF

(beneficiando empresas em diversos “polos” – informática, vestuário, etc.) e a

criação de “assentamentos semiurbanizados”, foram reduzindo o patrimônio

imobiliário do governo (PAVIANI, 2009, p. 80).

O que foi visto em relação às novas construções em Brasília é que o mercado imobiliário

está ciente da saturação de novas áreas e consciente de que, para vender o novo bairro, "novas

ideias" seriam necessárias. Investiram pesadamente no Setor Noroeste como o único "bairro

verde" do Distrito Federal. O marketing verde ou ecológico surge dos debates sobre

consumismo, crise econômica e meio ambiente durante a década de 1970. De lá para cá, as

empresas começaram a desenvolver programas de relacionamento com os clientes para

conseguirem conectar suas marcas a ideias de sustentabilidade. Desse modo,

[...] o marketing ecológico é um modo de conceber e executar a relação de

troca, com a finalidade de que seja satisfatória para as partes que nela intervêm,

a sociedade e o meio ambiente, mediante o desenvolvimento, valoração,

distribuição e promoção por uma das partes de bens, serviços ou ideias que a

outra parte necessita, de forma que, ajudando a conservação e melhora do meio

ambiente, contribuem ao desenvolvimento sustentável da economia e da

sociedade. (CALOMARDE, 2000, apud BENDER, 2011, p. 9).

A ideia desse tipo de marketing é vender para o consumidor não somente um produto

final que teria menos impacto ambiental, mas também vender novos valores, novas formas de se

relacionar com o mundo e com a produção de bens. No caso do Setor Noroeste, vemos o poder

local construir toda a propaganda do bairro no marketing com intuito de vender esse "valor"

diferenciado, que seria um bairro ecológico, mas que, ao longo do tempo, não se mostraram

verdadeiras, pois várias irregularidades foram encontradas pelos órgãos ambientais.

Outra questão tratada aqui é que a territorialidade dos espaços sagrados pode esbarrar em

terras que, para o poder local, devem ter outras destinações. Por um lado, quando uma terra, para

os povos indígenas, é considerada sagrada, ela não tem preço, ela é base que fundamenta seus

ritos, mitos, sua religiosidade, seu valor, coisas que são intangíveis, que são do plano do

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simbólico. Por outro lado, quando uma Terra Indígena é homologada, ela deixa de estar

potencialmente disponível no mercado, então os choques de interesses e perspectivas entre

indígenas e não indígenas se exacerba.

Como já foi colocado acima, os indígenas, no geral, não estabelecem limites em suas

terras; quem tem essa necessidade é o Estado. O que, no âmbito do simbólico, é considerado

sagrado para os indígenas, para os não indígenas não têm essa conotação muitas vezes, e a terra é

um potencial de lucros, de construção, enfim, é um elemento importantíssimo dentro do

capitalismo. Os dois lados, portanto, não compartilham da mesma visão e dos mesmos símbolos,

não compartilham experiências religiosas e de usos da própria terra.

A territorialidade é um local onde há disputas de poder. Gil Filho (1999) em interlocução

com Lefebvre e Raffestin chega à definição de que território

[...] é o objeto (restrição do espaço), o sistema territorial, e a lógica desse

sistema estrutural, e a territorialidade é o atributo de determinado fato social no

qual o poder é imanente. A territorialidade do sagrado seria a ideia da ação

institucional de apropriação simbólica de determinado espaço sagrado, sendo

sua materialidade o próprio território sagrado institucionalizado (p.116).

Desse modo, a ação institucionalizada da religião, é para o autor uma forma de poder

exercido, intencional frente à sociedade, "ação autorizada e legitimada da religião", busca das

coisas e do espaço sagrado (GIL FILHO, 1999, p. 115).

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CAPÍTULO 2 – BRASÍLIA

“Quando se fala em mudança da capital brasileira

para o Planalto Central, em Goiás, são comuns

as alusões à selvageria, à floresta virgem, ao sertão

praticamente inviolado onde se irá situar a chamada Brasília [...].

Não, a futura capital do Brasil não vai ser,

como pensam muitos, uma clareira aberta na mata [...].”

(Rachel de Queiroz)

Brasília, para Patriota de Moura (2012), é uma cidade composta de muitas cidades. Mais

que ser cidade, Brasília acaba sendo conhecida como a grande região que o Distrito Federal

engloba. O Plano Piloto ou mesmo suas regiões administrativas (ou satélites, outrora) remetem a

essa ideia de multiplicidade.

Ser “cidade”, em Brasília, é, ao mesmo tempo, uma condição material e moral,

restrita e difusa. [...] Cidade é, portanto, um termo qualitativo, com múltiplos

significados sobrepostos que se destacam “em situação”. [...] Mas ser cidade,

em Brasília é também participar de movimentos vitais em constante devir.

A expansão urbana é permanente, emergente, insurgente, mas também prenhe

de mecanismos para capturar e disciplinar: invasões e assentamentos, grilagens

e regularizações, condomínios “espontâneos” e grandes empreendimentos

(MOURA, 2012, p. 219).

Para James Holston (1992), a cidade de Brasília é expressa por meio das funções

separadas, que cumprem justamente isso: de terem espaços espacialmente separados na nova

capital.

[...] cinco proposições modernistas básicas, que visam redefinir as “funções-

chave” da vida urbana. 1) organizar a cidade em zonas exclusivas e homogêneas

de atividade, baseadas numa tipologia predeterminada de funções urbanas e

formas de construção; 2) concentrar a função de trabalho com zonas dispersas

de dormitório; 3) instituir um novo tipo de arquitetura e organização

residenciais; 4) criar uma cidade verde, cidade parque; e 5) impor um novo

sistema de circulação de tráfego (HOLSTON, 1992, p.29).

A capital foi pensada, planejada e foi construída por pessoas do país inteiro, muito

embora desde o princípio tenha ficado claro que a cidade seria para os burocratas do Estado.

Rapidamente os trabalhadores acabaram construindo em paralelo outros lugares, que acabaram

gerando novas ocupações e, posteriormente, as cidades-satélites. Dentre os que passaram pela

região e ajudaram a construir a cidade estavam índios, no caso tratado neste trabalho, índios da

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Região Nordeste do país, a qual passava por períodos de rigorosas secas e era uma área onde os

esbulhos de terras dos indígenas eram antigos e complexos.

2.1 FUNDAÇÃO DE BRASÍLIA E SUAS EMPRESAS PÚBLICAS

Os planos para construção da Capital Federal são antigos, e em vários momentos

personagens diversos foram inserindo mais elementos para as discussões que então surgiam para

a transferência da capital para o interior, a chamada "Marcha para o Oeste7". Os argumentos em

favor da empreitada iam desde o nacionalismo – garantir a segurança nacional interiorizando a

capital – até mesmo o misticismo. Para citar alguns figuras, Hipólito da Costa em 1815, que era

editor de um jornal em língua portuguesa em Londres, já expunha seu ponto de vista sobre

desvantagens da capital em área litorânea e sugeria uma capital no interior do país; em 1822, a

ideia de interiorizar o Brasil é levada a frente por José de Bonifácio, época em que se fazia

presente a primeira Constituição brasiliera; Adolfo Varnhagen, em 1839, luta para que haja a

transferência da capital, ele indica a localização que conseguiu por meio de longa pesquisa,

sendo entre as Lagoas Formosa, Feia e Mestre d'Armas, na cidade de Planaltina em Goiás; em

1883, Dom Bosco diz sonhar com uma terra prometida na região:

Entre os graus 15 e 20, aí havia uma enseada bastante extensa e bastante larga,

que partia de um ponto onde se formava um lago. Nesse momento disse uma

voz repetidamente: – Quando se vierem a escavar as minas escondidas em meio

a estes montes, aparecerá aqui a terra prometida, onde correrá leite e mel. Será

uma riqueza inconcebível (TAMANINI, 2013, s/p.)8.

Com a proclamação da República em 1889, a Constituição Federal é promulgada em

1891, cujo artigo 3º preconizava: "passa a pertencer à União, no Planalto Central, uma área de

14.400 km² para nela se estabelecer a futura Capital do país" (TAMANINI, 2013, s/p.). Em linhas

gerais, em 1892, para cumprir as determinações da Constituição, é nomeada a "Commissão

Exploradora do Planalto Central do Brazil", chefiada por Luis Cruls, e uma equipe de

profissionais de diversas áreas demarcam a área. Mesmo com relatório entregue, as discussões

para transferência da capital prosseguem sem grandes medidas. Em 1922, Epitácio Pessoa coloca

7"A ‘Marcha para o Oeste’ foi promovida pelo governo federal através da Expedição Roncador-Xingu e a Fundação

Brasil Central – FBC, entre os anos 1943-1967, com o objetivo de colonização do centro-oeste brasileiro. Com toda

a sua carga ideológica de ocupação dos espaços vazios, entra em território Xavante em 1944, e inicia a colonização"

GOMIDE (2011). 8 Ver conteúdo completo em: TAMANINI, L.F. Brasília. Memória da Construção. Disponível em:

<http://www.memorialjk.com.br/bsb/pgs/sonho.htm>. Acesso em: 5 fev. 2013.

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a pedra fundamental em Planaltina (GO), e no Governo Dutra se tem autorização para que as

obras sejam iniciadas, embora isso não ocorra. Passados os governos de Dutra e de Getúlio

Vargas, em 1954, no governo de Café Filho, outra comissão é formada, e recebem o Relatório

Belcher contendo "os cinco melhores sítios de 1.000 km2, onde seria construída a nova capital"

9.

O governador de Goiás José Ludovico de Almeida desapropria em 1955 a fazenda Bananal, entre

os rios Torto e Bananal, no intuito de finalmente começarem as construções de Brasília, agora

com cerca de 23.000 hectares10

.

Mapa 2.1 Áreas antes de haver Brasília – Quadrilátero Cruls e Retângulo Belcher

Fonte: LASANCE et al., 2003, p. 48, apud FARIAS, D. D., 2006, p.202.

Legendas: 1. Sítio Castanho; 2. Sítio Verde; 3. Sítio Azul; 4. Sítio Vermelho; 5. Sítio Amarelo.

9 Ver conteúdo completo no site do GDF, Orçamento Cidadão, disponível em: <http://www.seplan.

df.gov.br/orcamento-cidadao/item/1834-hist%C3%B3ria-cronol%C3%B3gica-do-centro-oeste.html> Acesso em: 2

fev. 2013. 10

O mapa foi elaborado pela Codeplan em 1979, abarcando os chamados Quadriláteros Cruls e o Retângulo Belcher

(ou Retângulo do Congresso), além de cinco sítios selecionados. (LASANCE A. et al., 2003, p. 48, apud FARIAS,

D. D., 2006, p.202) .O primeiro documento técnico criado por Luis Crulz e sua equipe a partir da missão para

demarcar o território para a construção de Brasília foi chamado de Quadrilátero Cruls. Posteriormente, em 1953, a

empresa contratada para fazer um estudo da melhor área para a construção de Brasília era de David J. Belcher, que a

partir de trabalhos anteriores definia o Retângulo do Congresso.

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Brasília então foi planejada dentro de um cenário político e social de transformações

intensas, como o crescimento econômico, o desenvolvimento e industrialização, a urbanização, e

nesse sentido, a cidade pensada por Lúcio Costa e Juscelino Kubitschek, segundo Peluso (2003),

possuiu três momentos:

[o] primeiro momento correspondeu à crise decorrente das transformações

sociais provocadas pelo capitalismo nas cidades manufatureiras do século XIX e

da emergência das más condições de vida urbana entre a massa operária; o

segundo momento corresponde ao confronto entre as ressignificações míticas do

passado nacional, sua projeção; para a construção de Brasília e a realidade do

crescimento populacional continuado. O terceiro momento das práticas

espaciais tem a ver com as representações sociais do território gestadas no

período colonial, cuja continuidade se verifica no processo de apropriação das

terras no Distrito Federal. (PELUSO, 2003, p. 3-4).

Querendo que a nova capital se afastasse do caos urbano de pobreza e favelização, que

havia no Rio de Janeiro, a então capital do país, seus idealizadores imaginaram que “Brasília

seria uma cidade dedicada ao exercício tranquilo e ordenado do trabalho, do lazer, da moradia e

da locomoção" (PELUSO, 2003, p. 8). Para Holston o projeto da nova capital era

[...] baseado num paradoxo. Retratando a imagem de um futuro imaginado e

desejado, Brasília representou a negação das condições existentes na realidade

brasileira. Essa diferença utópica entre os dois é precisamente a premissa do

projeto. Entretanto, e ao mesmo tempo, o governo o encarava como um meio

para atingir esse futuro - como um instrumento de mudança que teria,

necessariamente, de se valer das condições existentes que ele negava

(HOLSTON, 1993, p.13).

O Estado brasileiro toma a frente da construção de uma nova capital para o Brasil. Não

apenas essa questão em específico, mas também com outras investidas e articulações no que

tange a política interna do desenvolvimento das regiões e a necessidade de integração das regiões

brasileiras – calcadas em preocupações de industrialização, modernização, desenvolvimento e

com projeto de nação. Isso tudo coloca o Estado como o principal agente promovedor das

grandes transformações urbanas e até mesmo migratórias no interior do país. Dessa maneira,

embasado em concepções modernistas de produção de espaço, o Estado controlou a construção

da cidade, assim como suas funções e concepções.

Os marcos de fundação, quando persistem, são referendados a datas e fatos bem

estabelecidos, perdendo seu componente mágico. Seria exatamente nessa fratura

que se situaria uma radical diferença com os ensinamentos de Vitrúvio, nos

quais elementos heterogêneos uniam o arquiteto e o habitante fazendo

coexistirem técnicas e mitos, saber-fazer e saber-viver (Vitruvius, 1960:17).

Nossas cidades modernas encontram-se inversamente despidas de memórias não

represadas pela razão; seus mitos de fundação constituem elaborações

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históricas. Nelas, se nos dispusermos a voltar a atenção para os traços de

memórias gestuais, de comportamentos diversos, ou seja, de uma memória em

ação, estaremos talvez aptos a olhar para as memórias como elementos

arquiteturais, considerando-as também um dos elementos estruturantes do meio

urbano. [...] Portas conceituais relacionadas a saberes antigos e novos que se

formam na intenção “moderna” de defesa e controle de tudo o que se

movimenta, que deve necessariamente se movimentar. As portas conceituais

fornecem mecanismos de controle, a maior parte indiretos, mas de grande

eficácia na ordenação racional do espaço – bairros especializados, zoneamento,

lugares públicos e de acesso ao público, edifícios especializados, organizados e

ordenados pelas normas disciplinares, transporte coletivo e regras de

deslocamento para o transporte individual –, que permitiriam vigiar todos os

movimentos dos habitantes da cidade. Mesmo que toda a aposta ainda encontre

seu solo fundante nas concepções idealizadas, também denominadas utópicas

(BRESCIANI, 2002, p. 32).

Nesse sentido, os projetos, a execução e ainda suas políticas atuais de controle sobre a

terra, sobre as construções, sobre preços, permanecem e coadunam com as premissas da Carta de

Atenas11, que instrui: "não basta formular um diagnóstico nem descobrir uma solução; é ainda

necessário que seja imposta pelas autoridades responsáveis [...]. Quando surgiu a era da

máquina, as cidades se desenvolveram sem controle, sem freio"12

.

Brasília serviria também, como largamente vem sendo analisado por pesquisadores de

várias áreas, um local de convergência de desenvolvimento para a Região Centro-Oeste, ou seja,

do centro, em consequência desenvolvimento nacional (FERRET, 2010, p. 36).

2.1.1 A Novacap e a Terracap

Na época da construção de Brasília, o Governo JK criou a Companhia Urbanizadora da

Nova Capital (Novacap), pela Lei nº 2.874/1956, para agir como uma espécie de Estado

pequeno, administrador e articulador da construção da cidade, posteriormente se tornando uma

empresa pública responsável pelas obras de interesse do governo local. Ela tem como parceiras a

União e o Governo do Distrito Federal. O órgão tinha como funções a compra das terras para que

não houvesse transferências entre donos particulares, o parcelamento urbano, e visava "proceder

ao parcelamento urbano, à venda dos lotes a particulares, assim como à doação de imóveis à

11

Carta de Atenas é um documento resultante das discussões do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna

(CIAM) de 1933 e divulgado em 1941, no Brasil foi publicado em 1993. 12

Ver conteúdo disponível em: <http://www.mp.sp.gov.br/portal/page/portal/cao_urbanismo_e_meio_ambiente/

legislacao/leg_trabalhos_convencoes/tc_urbanismo/atenas-33.htm>. Acesso em: 20 mar. 2013.

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União, necessários à implantação dos órgãos federais e à construção das residências para os

servidores" (SILVA, 2011, p. 29).

Conforme Epstein (1973, p. 75), a Novacap teve como prerrogativa preparar as bases

para a construção de Brasília, já que o plano de Lúcio Costa previa a cidade construída, e não o

processo como ocorreria esse crescimento. Segundo James Holston, a Novacap

[...] estava encarregada de construir a cidade e administrá-la durante o período

de construção. Tendo organizado o concurso em que Lúcio Costa foi vitorioso,

[...] organizou equipes técnicas para desenvolver e coordenar a realização de seu

plano piloto. [...] Era responsável pelas questões relativas ao vasto canteiro de

obras propriamente dito – recrutamento de pessoal, fornecimento de materiais

de construção, obrigações contratuais e supervisão geral das obras, organização

dos bens e serviços para as equipes de trabalhadores, e manutenção da lei e da

ordem. Entre 1956 e 1960, a Novacap exerceu estas funções como um pequeno

Estado, governando uma ilha de atividades no Planalto Central. Para todos os

fins práticos, exerceu poder absoluto sobre uma população de pioneiros que

chegou a 100 mil pessoas na época da inauguração de Brasília (HOLSTON,

1993, p. 202).

Assim, a Novacap monopolizou a contratação da mão de obra da construção de Brasília,

o acesso aos acampamentos em que moravam os trabalhadores no sentido de evitar que os

trabalhadores se estabelecessem em definitivo onde moravam, e, mesmo não estando previsto no

plano original da construção da cidade, resolveu construir cidades-satélites para abrigar os

pioneiros, sendo a primeira Taguatinga, em 1958. Dessa maneira, a Novacap continuou com o

poder de controlar a ordenação das construções e estabeleceu quem mandaria para as cidades-

satélites, trabalhadores que não compunham o corpo da burocracia de Brasília.

Os trabalhadores foram submetidos a regras para obtenção legais de lotes, estabelecidos

pela própria Novacap, que eram proibitivos para a grande maioria dos trabalhadores, pois, entre

outras coisas, demandavam que eles tivessem emprego fixo por três anos, o que era raro e difícil

à época da construção e se agravou após a inauguração da cidade e das principais obras

(HOLSTON, 1993). Embora o rigor para se candidatar a um lote fosse grande, havia, segundo os

autores, formas de corrupções e favorecimentos que privilegiavam pessoas ligadas a funcionários

da Novacap em detrimento a trabalhadores que por ventura não conseguissem se encaixar no

perfil exigido para se ter direito à compra de um lote. Esse tipo de medida era, portanto, de

decisão local da Novacap. Isso fica claro na carta enviada por Lúcio Costa para o então

presidente da Novacap em 1961.

[...] The Plan foresaw in these neighborhood units housing of different

economic standarts so as to make possible to the population of civil servants in

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general the use of the city as planned, thus avoiding the division of the urban

area as such into “rich neighborhoods” and “poor neighborhoods”, thus

occasioning the normal convivium of the oppulation in the schools and public

streets [...]. [...] No civil servant ought to live outside the residential area

concetrated along the residential axis; if he does, let it be caprice and personal

initiative, not compelled by circumstances (COSTA, 1962, apud EPSTEIN,

1973, p. 83-84)13

.

Conforme Ribeiro (1980, p. xxiii-xxxiii) a Novacap, além da liberdade e autonomia

administrativas que a empresa gozava, também tinha liberdade econômica para tornar a

construção da capital possível, livre dos possíveis entraves que apareceriam, e era cada vez mais

fortalecida por JK.

A União, através de uma poderosa empresa pública federal, intervinha

maciçamente em municípios relativamente isolados. Esta intervenção se faz

com tal intensidade que o poder de Estado na prática passa a ser exercido pela

estrutura da companhia federal administradora da obra que não encontra apoio

concreto suficiente, ou competição possível nos aparatos de Estado porventura

existentes na área (RIBEIRO, p. xxiv-xxv).

O fortalecimento da Novacap foi constituído de várias formas, segundo Ribeiro, pois o

órgão era ligado ao Poder Executivo, mas sobrepujava os outros poderes como o Judiciário, pois

apesar de crimes e problemas trabalhistas estarem sob responsabilidade de Luziânia e Planaltina,

essas cidades não estavam preparadas para receber esses casos. A Novacap toma para si essas

questões, inclusive o poder de polícia, constituindo uma espécie de força policial composta por

trabalhadores da própria Novacap, a GEB, Guarda Especial de Brasília, que ficou conhecida por

sua truculência, repressão, impunibilidade e arbitrariedade aos trabalhadores nas ações para

"manter a paz". Há, portanto, o que Ribeiro chama de ambiguidade jurídica no que tange aos

poderes adquiridos e exercidos pela Novacap dentro da região, e dentre as questões colocadas

anteriormente, o processo eleitoral de Goiás e o pagamento de tributos na Cidade Livre estão

entre eles.

Com a construção de Brasília e, por consequência, com os desdobramentos que

contribuíram para o crescimento das obrigações da Novacap, é criada a Companhia Imobiliária

de Brasília (Terracap), pela Lei nº 5.861/1972. Ela era um departamento imobiliário da Novacap

13

Em livre tradução: “O plano previa nesses bairros unidades habitacionais de diferentes padrões econômicos de

modo a tornar possível à população de funcionários públicos em geral o uso da cidade como planejado, assim

evitando a divisão da área urbana em ‘bairros ricos’ e ‘bairros pobres’, dessa forma contribuindo para o convívio

normal da população nas ruas e escolas públicas [...]. Nenhum funcionário deve viver fora da área residencial

concentrada ao longo do eixo residencial, se assim o fizer, que seja por capricho e iniciativa pessoal, não compelido

pelas circunstâncias”.

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que ganhou autonomia em 1972, se tornando empresa pública, tendo como finalidade gerir as

desapropriações de terra, além de fixar os preços das propriedades, segundo informações da

própria empresa:

[...] integrante do Complexo Administrativo do Distrito Federal, tem como

finalidade gerir o patrimônio imobiliário do Distrito Federal, mediante

utilização, aquisição, administração, disposição, incorporação, oneração ou

alienação de bens, assim como realizar, direta ou indiretamente obras e serviços

de infraestrutura e obras viárias no Distrito Federal.14

Criadas para controlar a terra no Distrito Federal, tanto a Novacap como a Terracap

monopolizaram ocupação, posse, compra, venda e preços desde o início da construção de

Brasília, e continua até hoje com as mesmas práticas e prerrogativas. Holston, ao falar sobre a

venda de terrenos em Sobradinho, mostra como a Terracap regula o mercado local:

[...] o preço médio de 5,1 mil dólares que a Terracap fixou em 1976 para o

leilão de terrenos no lado leste da rua Central [...]. Desde então, os preços de

leilão para terrenos similares subiram ainda mais. Em junho de 1981, um

terreno foi vendido a 12 mil dólares, uma valorização de 140% em quatro anos

e meio. Como a Terracap tem o poder de fixar esses preços, ela influencia

diretamente o sobe-e-desce dos valores da propriedade e, portanto, a

especulação imobiliária (HOLSTON, 1993, p. 306).

Entrevistei o professor do departamento de Arquitetura e Urbanismo da UnB Frederico

Flósculo, sobre a Terracap e seu monopólio no mercado de terra no DF:

Thais: A questão fundiária no DF é bem peculiar. Como o senhor vê a

atuação da Novacap e depois da Terracap no controle das vendas e da

administração de terras até hoje? Houve mudança na atuação dessas

empresas?

R. Frederico Flósculo: A Novacap é uma coordenadora de obras, a grande

responsável pela construção de Brasília em seus tempos heroicos, e com

limitada capacidade de manutenção e construção. A Terracap é responsável

pelas grandes operações de desapropriação e de comercialização de solo

desapropriado, em benefício das políticas públicas. As maiores transformações

ocorreram na Terracap, que se transformou em um "governo dentro do

governo", pois não atende às políticas de ordenamento territorial, e toma

decisões que exigiriam autorização legislativa, mas que não ocorre. Sua atuação

é ainda mais antiética e imoral, se consideramos que seus dirigentes participam

"dos seus lucros", como se uma organização pública fosse uma empresa, que

corre riscos e que tem capital próprio, privado. A escandalosa Terracap é um

câncer, uma excrescência, que deveria ser eliminada do corpo do governo.

14

Ver conteúdo disponível em:<http://www.terracap.df.gov.br/internet/index.php?ctuid=977&sccid=474&sccant

=474>. Acesso em: 20 mar. 2013.

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Thais: Existe no país alguma outra empresa pública como a Terracap que

monopoliza a venda de terras?

R. Frederico Flósculo: Sim, em todos os governos estaduais e em parte dos

governos municipais, há instâncias mais ou menos organizadas que lidam com

os problemas da propriedade da terra, de sua conversão por desapropriação ou

por liquidação (de dívidas). Contudo, "empresas" como a Terracap somente são

criadas em momentos especiais, pontuais, para a realização de grandes obras

públicas. A própria União (federal) tem secretarias de patrimônio e de controle

de terras sob o controle do governo federal, mas que não agem, nem de longe,

como "incorporadoras" que fazem "promoções" e "lançamentos" de

empreendimentos de interesses de construtoras e corretores de imóveis. O

monopólio dessa função de estado é totalmente questionável, e se transformou

num poderoso "balcão de negócios". Seu desvirtuamento é escandaloso.

Hoje, o Setor Noroeste teve o preço estipulado pelo metro quadrado na região entre 8 e

11 mil reais em um bairro que, a princípio, era ou deveria ter sido direcionado a uma camada da

população com poder aquisitivo menor. O plano inicial foi alterado para possibilitar a construção

de um bairro para as classes mais abastadas, as chamadas “moradias para classe A”, que,

segundo o presidente15

da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário, a

Ademi-DF, supririam um déficit de espaço para construção de moradias para essa camada da

população, com alto poder aquisitivo e uma necessidade constante de novos empreendimentos

imobiliários que vem sufocando as últimas áreas verdes do Distrito Federal.

2.2 ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA NO DF: BREVES APONTAMENTOS

Quanto ao exposto no art. 182 da Constituição de 1988, sobre a política urbana brasileira

e sua posterior regulamentação do Estatuto das Cidades (Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001),

propriedade urbana tem como objetivo ordenar as funções sociais tanto da cidade quanto da

propriedade urbana como um todo, visando ao interesse social. No que diz respeito ao DF, as

empresas que representam seus interesses (Novacap e Terracap) estão com histórico monopólio

das terras, ou seja, seu uso e comercialização agem notadamente de forma a atender os interesses

do governo local ou da União, agindo muito mais como um ator privado preocupado com valor e

comercialização das terras do que com o favorecimento da população, do equilíbrio do meio

ambiente.

15

Ver conteúdo disponível em <http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2011/12/28/

interna_cidadesdf,284326/metro-quadrado-pode-chegar-a-r-25-mil-nas-areas-mais-nobres-de-brasilia.shtml>.

Acesso em: 30 maio 2012.

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O estudo de Leonardo José Borges de Amorim (2012) sobre o licenciamento ambiental

para a construção do Setor Noroeste constata as incongruências dos procedimentos legais que

deveriam obedecer às diretrizes de órgãos como Ibama, Caesb, até mesmo do Ministério Público,

mas que fora contestado ou mesmo ignorado para que a licença para a construção do bairro se

mantivesse ao final.

Exemplifiquemos com base nos dados coletados em concreto: quando o

Ministério Público e a Comissão de Análise do EIA/RIMA, contra suas

conclusões técnicas (no sentido de que não foram realizadas análises de

viabilidade ambiental viáveis), aceitam posteriormente que estudos

fundamentais e manifestações várias sejam realizadas depois da conclusão pela

viabilidade ambiental do empreendimento, ou que estudos científicos podem ser

ignorados sem maior justificação, estão a entender que, caso buscassem forçar a

Administração a adiar a concessão das Licenças, estariam a impor burocracias

desmedidas – e não a exigir o cumprimento da lei e a sobreposição de freios e

contrapesos democráticos à máquina governamental (AMORIM, 2012, p. 80).

Já no estudo de Ana Karine Pereira (2010) sobre a gestão ambiental também no caso do

Setor Noroeste, o "peso cinza", que agiria no sentido de favorecer a expansão urbana – formado

por governo e empreiteiras –, e o "peso verde" – formado por ONGs e demais órgãos que

contrabalanceiam o crescimento urbano, propondo discussões e impondo limites quanto a sua

própria limitação de funcionamento, como Caesb ou mesmo o Ibama – buscam discutir a

viabilidade ambiental dessa expansão no sentido de limitar o poder e a atuação do "poder cinza".

Sua conclusão é de que o "peso verde" impôs muitas vitórias sobre todo o processo que resultou

no licenciamento do Setor Noroeste, haja vista que não ocorreu no tempo previsto nem nos

termos que seus planejadores imaginavam, fazendo com que a sociedade civil conseguisse trazer

à baila uma discussão pública maior e não ter apenas decisões tomadas a "portas fechadas".

Uma primeira constatação das páginas anteriores é que existe sim um sistema

que mune o "contrapeso verde" de mecanismos para controlar interesses

contrários a sustentabilidade ambiental. [...] O estudo do PDOT mostra que

alguns resultados práticos foram alcançados pelo "contrapeso verde": o tempo

para a aprovação do plano superou o esperado pelo "peso cinza", existe uma

medida liminar que impede o Setor Catetinho e uma ADIN que questiona a

constitucionalidade do plano. Apesar dessas conquistas não serem consideradas

como grandes avanços pelos ambientalistas [...], já que não se conseguiu evitar

que o Noroeste e o Catetinho entrassem no PDOT, por exemplo; elas nos

mostram que o "peso cinza" não age livremente, sem constrangimentos

(PEREIRA, 2010, p. 90-91).

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2.3 SETOR NOROESTE, O "BAIRRO VERDE" E SUAS CONTROVÉRSIAS

Noroeste é o nome dado ao novo bairro que está sendo construído na Asa Norte de

Brasília e que sobrepõe a área do Santuário dos Pajés. Assim como o Sudoeste, criado anos atrás,

ele é resultado das alterações no plano original de Lúcio Costa, Brasília Revisitada em 1985-

1987. Os novos setores habitacionais previstos nessa revisão ao plano original seriam o Setor de

Habitações Coletivas Sudoeste (SHCSW) e as áreas do Setor Habitacional Estrada Parque

(SHEP), do Setor Habitacional Taquari (SHTQ), do Setor Habitacional Buritis (SHB), e do Setor

Residencial Noroeste (SHCNW).

Segundo o plano original, havia uma previsão da expansão da região do Plano Piloto, as

então chamadas Asa Nova Sul e Asa Nova Norte. Nessas áreas, as construções que foram

pensadas deveriam ser moradias econômicas, no sentido de tentar controlar a ida das pessoas

desse perfil econômico para locais mais distantes do Plano Piloto, como historicamente ocorre na

cidade. Lúcio Costa explica as ideias por trás dessa revisitação no plano original da cidade:

Uma vez assegurada a proteção do que se pretende preservar, trata-se agora de

verificar onde pode convir ocupação – predominantemente residencial – em

áreas próximas do ‘Plano Piloto’, ou seja, na bacia do Paranoá, e de que forma

tal ocupação deve ser conduzida para integrar-se ao que já existe, na forma e no

espírito, ratificando a caracterização de cidade parque – ‘derramada e concisa’ –

sugerida como traço urbano diferenciador da capital. Como já foi mencionado, a

primeira proposição neste sentido foi a implantação intermitente de sequências

de Quadras Econômicas ao longo das vias de ligação entre Brasília e as cidades

satélites. A proposta visou aproximar de Brasília as populações de menor renda,

hoje praticamente expulsas da cidade – apesar da intenção do plano original ter

sido a oposta – e, ao mesmo tempo, dar também a elas acesso à maneira de

viver própria da cidade e introduzida pela superquadra. Na Quadra Econômica –

espécie de ‘pré-moldado’ urbano – a disposição escalonada dos blocos (pilotis e

três pavimentos) ao longo da trama viária losangular abre, no interior de cada

quadra espaço livre para instalação dos complementos da moradia: lugar para

jogos ao ar livre, ‘áreas de encontro’ cobertas para os moços e para os velhos,

creche, jardim de infância. A existência deste ‘quintal comum’, com a quase

totalidade de chão aberta ao uso de todos, e desses complementos ou ‘extensões

da habitação’, ensejando desafogo de tensões, possibilitam convívio doméstico

em clima de descontração, mesmo em apartamentos mínimos, além de assegurar

boa densidade populacional (cerca de 500 hab/ha). Ao mesmo tempo, essa

implantação compacta reduz sensivelmente o custo da infraestrutura urbana

uma vez que não compromete grandes superfícies. Quando, ao longo das vias de

ligação, for fisicamente inviável a implantação de Quadras Econômicas, podem

ser admitidos núcleos residenciais multifamiliares de outro tipo, desde que com

gabarito máximo de pilotis e quatro pavimentos e taxa de ocupação do terreno

análogas às das quadras. Em qualquer caso, deve ser reservada faixa contígua à

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estrada para densa arborização [...]. E as duas últimas (E e F16

) visam abrir

perspectiva futura de maior oferta habitacional multifamiliar em áreas que,

embora afastadas, vinculam-se ao núcleo original tanto através da presença do

lago como pelas duas pontes que se pretende construir (a primeira pessoa a me

alertar para tal possibilidade foi o economista Eduardo Sobral, mais de 10 anos

atrás). Poderiam ser chamadas ‘Asas Novas’ – Asa Nova Sul e Asa Nova Norte

[...]. Nessas ‘Asas Novas’, mesmo quando de configuração diversificada, deve

também prevalecer a mesma conotação de cidade parque, vale dizer, pilotis

livres, predomínio de verde, gabaritos baixos. Convém ainda destinar parte da

Asa Nova Norte a parcelamento em lotes individuais, aproveitando os caprichos

da topografia, respeitada a proteção arborizada dos córregos e nascentes. Assim,

esta expansão futura atenderá às três faixas de renda. (COSTA, 1987, p. 120- 121).

Imagem 2.1 – Proposta: Brasília revisitada

Fonte: Terracap. Disponível em <http://www.terracap.df.gov.br>.

16

Cf. mapa da imagem 2.1, indicando a área a que o texto se refere.

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2.3.1 Arie Cruls e o conceito do Setor Noroeste

O bairro Setor Noroeste está sendo construído em uma Área Relevante de Interesse

Ecológico (Arie)17

, a Arie Cruls, segundo o Decreto nº 89.336, de 31 de janeiro de 1984, do

Código Civil, estabelece:

Art 2º São áreas de Relevante Interesse Ecológico as áreas que possuam

características naturais extraordinárias ou abriguem exemplares raros da biota

regional, exigindo cuidados especiais de proteção por parte do Poder Público.

§ 1º As Áreas de Relevante Interesse Ecológico – ARIE – serão

preferencialmente declaradas quando, além dos requisitos estipulados

no caput deste artigo, tiverem extensão inferior a 5.000 ha (cinco mil hectares) e

houver ali pequena ou nenhuma ocupação humana por ocasião do ato

declaratório. § 2º As Áreas de Relevante Interesse Ecológico, quando estiverem

localizadas no perímetro de Áreas de Proteção Ambiental, integrarão a Zona de

Vida Silvestre, destinada à melhor salvaguarda da biota nativa.

Art. 3º A proteção das Reservas Ecológicas e Áreas de Relevante Interesse

Ecológico, previstas nos artigos 9º, VI, e 18, da Lei número 6.938, de 31 de

agosto de 1981, tem por finalidade manter os ecossistemas naturais de

importância regional ou local e regular o uso admissível dessas áreas, de modo a

compatibilizá-lo com os objetivos da conservação ambiental.

A Área de Relevante Interesse Ecológico (Arie) Cruls foi criada pelo Decreto

nº 29.651, de 28 de outubro de 200818

, pelo então governador José Roberto Arruda, decreto esse

que delimitava os pontos limítrofes da área, segundo é apresentado no site do Instituto Brasília

Ambiental (Ibram), a Arie Cruls está localizada

[...] entre o Setor Habitacional Noroeste (a leste da poligonal) e a DF 003 (a

oeste), excluídos os lotes destinados para a PMDF e para a CEB (formando um

dente a oeste da poligonal) e para o Instituto de Saúde e Gerência de Controle

de Zoonose (ao sul da poligonal, na área degradada). Atravessada por uma

Linha de Transmissão da CEB, que coincide com o limite sudoeste da ARIE,

fazendo divisa com os lotes da PMDF e da CEB. Acesso pela Estrada Parque

Indústria e Abastecimento (EPIA) DF-003 [...] Atualmente a Unidade não

17

Ver conteúdo disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/D89336.htm>. Acesso em

30 maio 2012. 18

"Aprova a poligonal da Área de Relevante Interesse Ecológico – ARIE Cruls, no Setor de Habitações Coletivas

Noroeste – SHCNW, na Região Administrativa Plano Piloto – RA I. O GOVERNADOR DO DISTRITO

FEDERAL, no uso das atribuições que lhe confere o artigo 100, incisos VII e XXVI, da Lei Orgânica do Distrito

Federal, tendo em vista o que consta da Cláusula Quarta do Termo de Compromisso e Ajustamento de Conduta –

TAC 006/2008, DECRETA: Art. 1º. Fica aprovada a poligonal da Área de Relevante Interesse Ecológico – ARIE

Cruls, no Setor de Habitações Coletivas Noroeste – SHCNW, na Região Administrativa Plano Piloto – RA I, cuja

área correspondente a 55,0002 ha (cinquenta e cinco hectares e dois centiares (metro quadrado))". Disponível em:

<http://www.ibram.df.gov.br/images/Unidades%20de%20Conserva%C3%A7%C3%A3o/ARIE%20CRULS/

Dec.%2029.651%20-%2028-10-2008.pdf>. Acesso em: 25 mar. 2013.

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possui infraestrutura. No entanto, existe a proposta de construção de um museu

que abrigará o acervo da missão Cruls e também servirá como sede da

Unidade19

.

Mapa 2.2 – Arie Cruls

Fonte: Terracap. Disponível em: <http://www.terracap.df.gov.br>.

19

Ver conteúdo disponível em: <http://www.ibram.df.gov.br/component/content/article/257-unidades-de-

conservacao/278-arie-cruls.html>. Acesso em: 25 mar. 2013.

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Imagem 2.2 – Setor Habitacional Noroeste: lotes registrados

Fonte: Terracap. Disponível em: <http://www.terracap.df.gov.br>.

Imagem 2.3 – Área de expansão urbana do Setor Noroeste

Fonte: Terracap. Disponível em: <http://www.terracap.df.gov.br>.

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Foi criado um “manual verde” do bairro, o qual indica como serão construções, captação

de chuva, energia solar e reciclagem do lixo. O Setor Noroeste é proposto como "bairro verde",

ou seja, bairro sustentável nos termos entendidos dentro das premissas do Leadership in Energy

and Environmental Design, o LEED, que é um tipo de certificação internacional para

empreendimentos imobiliários considerados sustentáveis e verdes. A intenção é que o Noroeste

seja construído dentro dos princípios do LEED. O bairro seria, portanto, um tipo de "cidade-

parque":

O eixo regulador do bairro organiza-se em função da delimitação do Parque

Ecológico Burle Marx, situado a leste do empreendimento. Essa diretriz ajuda a

promover uma convivência próxima dos moradores com uma importante área

verde de Brasília. A relação cidade – parque auxilia na melhoria da circulação

de pedestres, transporte coletivo e veículos, integra as massas de vegetação e

cria um bulevar de contato entre a área residencial e os limites do parque.

PROPOSIÇÕES: – A implantação do Noroeste (252 ha) possibilitou a criação

de três áreas verdes: – Parque Burle Marx – 280 ha – ARIE Bananal – 100 ha –

ARIE Cruls – 55 ha20

.

Em vários informes publicitários do bairro, ele foi chamando de ecovila, que tem

intensão de vender ao consumidor não somente sua moradia, mas um novo valor, a de um

consumo consciente e equilibrado com o meio ambiente. Conforme Penhavel (2013):

O termo ecovila designa um modelo de assentamento humano “alternativo”,

baseado nos pressupostos do desenvolvimento sustentável e da economia verde.

Jonathan Dawson, ex-presidente da Global Ecovillage Network (GEN),

organização que orienta a prática dessa modalidade de assentamento humano, as

ecovilas devem possuir as seguintes características: projetos independentes de

financiamentos governamentais; valores comunitários sólidos; produção e

processamento local de alimentos orgânicos; utilização da permacultura, de

construções ecológicas e de sistemas de transporte de baixo impacto ambiental;

promover a cultura pacifista e a educação “holística” do indivíduo; aprender a

partir do diálogo com comunidades tradicionais (DAWSON, 2006). Na prática,

as ecovilas se restringem, em sua maioria, a pequenas “comunidades

alternativas” localizadas em regiões bucólicas de países ricos ou em áreas

abastadas de países em desenvolvimento. Limitações de ordem técnica e alto

custo de implantação tornam bastante restrita sua aplicabilidade a áreas urbanas

de grande concentração populacional, como é o caso de Brasília. (p. 51-52).

Segundo afirma o professor Frederico Flósculo em entrevista, o Setor Noroeste se baseia

em certificações mercadológicas oportunistas:

20

Ver conteúdo disponível em: < http://www.politicaeconomia.com/2011/10/o-setor-noroeste-em-brasilia-os-

indios.html> Acesso em: 30 maio 2012.

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Thais: O Setor Noroeste ganhou visibilidade pelo intenso marketing verde

ao qual era ligado, o bairro é mesmo verde dentro de certificações

internacionais como a LEED (Leadership in Energy and Environmental

Design). O que a Terracap e as empreiteiras esperam conseguir em certo

ponto?

R. Frederico Flósculo: Essas certificações são totalmente mercadológicas, e

"somam" aspectos de forma oportunista e desarticulada. Praticamente qualquer

obra pode obter essa certificação, sem que seja efetivamente saudável, segura,

bem implantada, higiênica. Basta "ter os itens" que asseguram a soma do

certificado que você deseja obter. Desse modo, analogamente, qualquer "ficha

suja" se torna "ficha limpa" caso somemos as suas ações benemerentes e

filantrópicas... E não considerarmos seus crimes e contravenções. Contudo, esse

modo burocrático e formalista de fazer "política ambiental" facilita

imensamente os negócios imobiliários, que parecem ceder a um modelo de

cidade que, de forma alguma, lhes interessa no momento. O que mais lamento é

existirem "laboratórios universitários" que ganham rios de dinheiro para fazer

esse trabalho estúpido de "somar tomadas" e admitir imensos sistemas de ar

condicionado e elevadores como... Altamente certificáveis, verdes como folhas

de abacateiros.

Foi largamente veiculado na mídia local que até 2009 a Terracap havia realizado quatro

licitações públicas, arrecadando um bilhão e 350 milhões de reais até então com a intenção de ter

todas as projeções programadas para a região vendidas até fins de 2012. Desde o início dos

planos, vendas, licitações e da atual construção, várias irregularidades foram apontadas,

causando a suspensão das obras em alguns casos e com multas aplicadas em outros, mas nenhum

dos problemas encontrados colocou em risco a construção do bairro.

Em 2009, o Fórum das ONGs ambientalistas do Distrito Federal e o Instituto Brasília

Ambiental (Ibram) oficializaram denúncia contra os danos que o empreendimento fazia ao

cerrado local; o Ministério Público do DF teria acatado e verificado as irregularidades e multado

a empresa Basevi em 250 mil reais21

. Em 2011, a Caesb (Companhia de Saneamento Ambiental

do DF) alertou o GDF e a Terracap para o risco de assoreamento no Lago Paranoá o que acabou

ocorrendo com os avanços das obras do Setor Noroeste. A reportagem da época aponta que:

Algumas construtoras tiveram que improvisar um desvio para drenar a água das

obras. Uma lagoa foi formada dentro do Parque Burle Marx, que depois segue

para o sistema de drenagem pluvial, onde ocorre o encontro do Ribeirão do

Bananal com o Lago Paranoá. A água despejada no lago chega totalmente suja.

A terra acumulada na tubulação já entupiu uma das saídas do sistema de

21

Ver conteúdo disponível em: <http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2009/12/26/interna_

cidadesdf,162953/index.shtml>. Acesso em: 30 maio 2012.

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drenagem. E o assoreamento do Lago Paranoá, denunciado pela Caesb, se

agrava a cada dia. [...] Para a analista em urbanismo e meio ambiente, Mônica

Veríssimo, as obras no Setor Noroeste não estão obedecendo às normas da

licença ambiental. “O Noroeste é tudo, menos um bairro ecológico. É possível

ver que a vegetação vem sendo retirada para abertura de vias. Sem contar que

a água drenada não poderia ser levada para o Bananal, o que vem

acontecendo diariamente.” (Grifo dos autores.)22

Além desses casos, a mídia veiculou também a perfuração de uma tubulação que liga o

Setor Militar Urbano23

(SMU) e a estação de tratamento da L4 Norte, o que ocasionou uma

piscina de esgoto na área, e mais recentemente, em maio de 2012, o Instituto Chico Mendes

(ICMBio), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, pediu a suspensão da licença que

autorizava a construção do Setor Noroeste. O Ministério Público do Distrito Federal (MPDF) e a

Polícia Federal (PF) não teriam obedecido ao pedido de embargo das obras e também foram

notificados.

O coordenador de proteção ambiental do ICMBio, Paulo Carneiro, explicou que

três autos foram lavrados contra Terracap, embasados em estudos do instituto.

Segundo o ICMBio, a Terracap não implementou o sistema de drenagem de

águas pluviais nem licenciou a área para receber a terra resultante das obras, o

resultado, conforme o instituto, foi o caneamento de sedimentos para as áreas de

conservação e assoreamento do Lago Paranoá24

.

A despeito da presença dos índios e dos impactos ambientais causados, as obras não

foram interrompidas. Como já apontamos anteriormente, a grande mídia sempre deu como certa

a construção do bairro, minimizando os riscos e danos causados ao cerrado local. Ao mesmo

tempo em que há a reivindicação dos indígenas para permaneceram no local, inclusive com o

intuito de manter a integridade da fauna e da flora locais, a construção do bairro segue em frente,

muitas vezes ignorando cuidados ambientais que poderiam desequilibrar o ambiente local. Os

prédios, com obras sendo paradas ou não, recebendo multas por irregularidades ou não, estão

sendo erguidos rapidamente.

22

Ver toda a reportagem disponível em: <http://globotv.globo.com/rede-globo/bom-dia-df/t/edicoes/v/obras-no-

setor-noroeste-provoca-assoreamento-no-lago-paranoa/1889803/>. Acesso em: 5 abr. 2012. 23

Ver toda a reportagem disponível em: <http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2011/11/obra-no-noroeste-

perfura-tubulacao-e-cria-piscina-de-esgoto-no-df.html>. Acesso em: 30 maio 2012. 24

Ver toda a reportagem disponível em: <http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2012/05/instituto-pede-

suspensao-de-licenca-ambiental-do-setor-noroeste-df.html> Acesso em: 30 maio 2012.

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50

CAPÍTULO 3 – DE FAZENDA BANANAL A SANTUÁRIO DOS PAJÉS

“Essa não é apenas uma questão de moradia,

não adianta apenas transferi-los para outro lugar.

Os índios estão em terras que foram ocupadas

pelos seus ancestrais, onde seus entes queridos foram enterrados.

Há uma relação espiritual com o terreno.” (Liana Pacheco, defensora pública da União)

25

Como já dito anteriormente, para a construção da nova capital, foram desapropriadas

grandes fazendas, uma delas a Fazenda Bananal. Não somente o Santuário dos Pajés está

localizado onde era a fazenda como também boa parte de Brasília. A fazenda pertencia a Hélio

Rodrigues de Queiroz e sua esposa, depois foram vendidas a Jorge Pelles (pai de Weslian Pelles

Roriz, esposa do ex-governador do Distrito Federal Joaquim Domingos Roriz) e José da Silva

em abril de 1955 (FARIAS, 2006), estes últimos foram donos das terras por apenas oito meses e,

em dezembro desse ano, assinaram a escritura de desapropriação em favor do estado de Goiás26

.

As desapropriações foram apresentadas em três cartas-relatórios. Na primeira delas, consta a

fazenda Bananal e mais oito grandes fazendas, totalizando 15.867,69 alqueires em junho de

1956. A segunda carta-relatório, de dezembro de 1956, desapropriava 33 fazendas. A terceira,

em 1958, desapropriava 47 fazendas (FARIAS, 2006, p. 178).

25

Em entrevista cedida ao Jornal de Brasília, edição de 18/6/2007. 26

"Documentos do Imóvel Bananal: 3º Ofício de Goiânia. Comarca de Goiânia. Estado de Goiás. Escritura Pública

de desapropriação amigável da Fazenda Bananal ou Larga Bananal. Desapropriados: Hélio Rodrigues de Queiroz

e sua mulher, dona Maria Magnólia de Queiroz. Desapropriante: Estado de Goiás. 3º Tabelião Substituto: Graciano

Silva Morais. Registrado no Livro de nº 31, fls 79/87. Goiânia, 30 de dezembro de 1955" (FARIAS, 2006. p.110).

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51

Mapa 3.1 – Fazendas que formavam o quadrilátero que seria o DF

Fonte: RaphAgro. Disponível em: <http://raphagro.blogspot.com.br/2011/05/brasilia-como-foi-o-seu-

surgimento.html>. 27

.

Para o discurso, festa e missa de inauguração de Brasília, além dos índios que

trabalharam nas construções da cidade, como tal foram ao longo do tempo invisibilizados pelos

discurso e história oficiais. Segundo Lúcia Lippi de Oliveira, na "cerimônia no Congresso,

27

Mapa nº 3.1, disponível no site do agrônomo Raphael Santana. O ponto 1 marcado é Brazlândia; e o ponto 2,

Planaltina. A seta marca a região da fazenda Bananal, onde é a atual Brasília. Disponível em:

<http://raphagro.blogspot.com.br/2011/05/brasilia-como-foi-o-seu-surgimento.html>. Acesso em: 3 abr. 2013.

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desfile de candangos e baile, tudo com a presença de autoridades dos três poderes, representantes

de países estrangeiros, funcionários, candangos e 30 índios Carajás vindos da ilha do Bananal

para participar do acontecimento"28

.

A existência de uma comunidade indígena no coração da capital federal é muito

controversa e não tem encontrado na grande mídia local veículos que esclareçam ou que ao

menos busquem esclarecer como se deu essa presença e até mesmo se discuta todos os níveis e

implicações desse processo social no mínimo intrigante. Para tanto, voltemos a Águas Belas,

cidade do sertão de Pernambuco, de onde se originaram os primeiros indígenas que vieram dessa

região para trabalharem na fundação de Brasília.

3.1 TAPUIA OU TAPUYA

A comunidade indígena do Santuário dos Pajés é nomeada por eles por comunidade

indígena Tapuya (ou Tapuia); vamos entender de onde se origina esse termo.

Pesquisadores como Alfred Metraux & Robert Lowie (1936), Carlos Estevão (1931),

Estevão Pinto (1956), Beatriz Perrone-Moisés (1992), Cristina Pompa (2001), John Monteiro

(2001), entre outros, apontam para a polarização criada pelos portugueses, segundo os relatos de

missionários e de holandeses do século XVII, no tratamento entre indígenas que conseguiam

aldear e, portanto, tornados aliados (geralmente de origem Tupi e oriundos do litoral, por

exemplo), e os índios que eram considerados bárbaros, inimigos, e denominavam de Tapuias,

estes originários do sertão. Era criada tanto uma oposição entre esses dois grandes grupos (que

obviamente incluíam povos dos mais diversos lugares e línguas). No que se refere ao tratamento

dispensado aos grupos por missionários holandeses e também os portugueses, que chamavam

Tapuias de bárbaros, traidores, e até mesmo de escravos, como colocou Anchieta (POMPA,

2001, p. 222), primeiramente eles haveriam de ser levados à civilização para poderem ser

catequizados.

Os Tapuias eram genericamente classificados como se fossem um povo só, mas eram

vários, que falavam muitas línguas, o que era um inconveniente para os portugueses e para os

missionários, já que os Tupis eram considerados mais “homogêneos” de uma maneira geral,

28

Ver conteúdo disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/JK/artigos/Sociedade/Manchete> Acesso em:

25 abr. 2013.

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tanto em seus aspectos linguísticos quanto geográficos e nas relações que estabeleciam com os

missionários portugueses, o que não ocorria com os Tapuias. Estes ainda não mantinham

relações amistosas com os jesuítas e com os demais portugueses, e muitas vezes se aliavam a

seus inimigos. Isso era justificado pela diversidade de povos e pelo contato com outras etnias

indígenas, ou ainda a relação com portugueses ou holandeses. Os portugueses criaram uma

imagem muito negativa desses povos, que não conseguiam manter relação, aldear, cristianizar, se

comunicar. Eram, portanto, os bárbaros do sertão, diferente dos demais povos de origem Tupi.

Para Cristina Pompa (2001), na análise que fez dos relatos históricos do Brasil colonial,

há um “[...] ‘nexo fisiológico’ Sertão-Tapuia, ou mais geral, Sertão-Selvagem [...]. O mundo

colonial é o ‘cheio’ o espaço preenchido pela colonização, [...] [e assim,] o sertão, em oposição é

o território do vazio, domínio do desconhecido e, por isso mesmo, reino da barbárie e da

selvageria” (POMPA, 2001, p. 227). Para a autora,

a noção de tapuia constrói-se assim colada à noção de sertão, espaço do

imaginário em que desloca, cada vez mais longe, a alteridade bárbara que a

conquista e a colonização vão incorporando aos poucos, em posição subalterna,

ao mundo colonial (POMPA, 2001, p. 229).

Somando-se ao que foi levantado por Pompa, John Monteiro, aponta que está

[...] inscrito inicialmente no binômio Tapuia/Tupi, este padrão foi reciclado em

várias conjunturas distintas, reaparecendo em outros pares de oposição, tais

como bravio/ manso, bárbaro/ policiado ou selvagem/ civilizado. Mas essas

percepções e interpretações não ficaram apenas nas divagações historiográficas

ou nos debates antropológicos em torno da unidade e diversidade dos índios,

pois tiveram um impacto profundo sobre a formulação de políticas que afetaram

diretamente diferentes populações indígenas. Mais do que isso, também foram

recicladas e reapropriadas entre alguns segmentos indígenas, o que torna esta

história mais complicada ainda (MONTEIRO, 2001, p. 8).

Ademais, o contexto histórico de conflitos, estratégias e alianças entre indígenas, poderes

locais, religiosos e colonizadores não favorecem, como já mencionado anteriormente, a

imagética que foi criada para esses povos classificados como Tapuias; entretanto, como resistiam

a formar alianças com portugueses e missionários, isso fez com que esses povos pudessem

sobreviver de diferentes maneiras. Assim:

[...] resistência e recusa dos Tapuia acabaram garantindo a sua sobrevivência em

pleno século XIX, mesmo tendo enfrentado brutais políticas visando o seu

extermínio. Varnhagen e outros historiadores traduziam as lições da história

num discurso que condenava os grupos indígenas contemporâneos, sobretudo os

Botocudos no leste, os Kaingang no sul e vários grupos jê do Brasil central.

Desta feita, estes grupos adquiriram um duplo estigma: primeiro, como o anti-

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Tupi nos textos históricos e, segundo, como obstáculos à civilização pelos

padrões da época” (MONTEIRO, 2001, p.30).

Os Tupis, ainda segundo Monteiro, se tornaram o índio que era a origem da nação, o

índio idealizado, o índio do passado imemorial; a língua geral nheengatu29

, considerada como a

língua verdadeiramente brasileira, fruto da mestiçagem que daria origem ao povo e à nação

brasileira. Enquanto isso, os índios do sertão em sua grande diversidade e resistência conseguem

sobreviver, a imagem que carregam de antitupi, como o oposto dos aliados dos portugueses

“representavam, em síntese, o traiçoeiro selvagem dos sertões que atrapalhava o avanço da

civilização, ao invés do nobre guerreiro que fez pacto de paz e de sangue com o colonizador”

(MONTEIRO, 2001, p. 172).

Os Fulni-ô, Carnijó ou Carijó a princípio são um povo classificado como Tapuia, mas

foram muito tempo identificados como Kariri. Contudo, Robert Lowie já os identificava como de

origem Jê, assim como Estevão Pinto, que fez trabalho de campo com o grupo na década de

1950. Com o subsequente desenvolvimento dos estudos da língua falada pelo grupo, o Yaathê

[ya:'t e], “nossa boca, nossa fala” (SCHRÖDER, 2011), esta foi classificada finalmente como

pertencente do grupo Macro-Jê, desfazendo-se de vez a confusão da identificação com os Kariri.

Em Goiás, há um grupo indígena, os Tapuios (uma das variações do etnonômio Tapuya,

Tapuia, Tapoyer, Tapiia, Tapyiya, Tapuy, entre outras variações), que vivem no que era

conhecida como Fazenda dos Tapuios, entre a Serra Dourada (ou do Trombador) e o Rio São

Patrício (ou Carretão), nos municípios de Rubiataba e Nova América, em uma reserva chamada

Área Indígena Carretão. A existência desse grupo se deve ao resultado de uma política de

aldeamento em fins de século XVIII para alojar índios Xavante e posteriormente Kayapó, Karajá

e Xerente, além de escravos negros que fugiam das fazendas.

Esses grupos, ao longo do tempo, em contato com brancos, negros e outros índios,

casaram-se, incorporam a língua portuguesa, os costumes e passaram a ser vistos como mestiços;

29

"Para a propagação da Fé nas regiões do Norte, foi a língua geral o meio mais rápido e eficaz empregado pelos

membros da Companhia de Jesus. E, após sua expulsão (1759), os religiosos que os sucederam nas fainas

apostólicas se serviram, – a despeito da crescente população branca e do uso progressivo do português –, de um

veículo idêntico, vale dizer, de um dialeto tupinico de intercâmbio: o nheengatu (Nheengatu (< nheenga + katu)

significa 'língua boa', devido à facilidade de comunicação que proporcionava. Aliás, a integridade territorial da

Pátria deve-se, em grande parte, à extraordinária difusão do tupi, máxime da língua geral)". – ROBL, A. Os

momentos do tupi (1976). Disponível em: <http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/artigo%3Arobl-

1976/robl_1976_momentos.pdf>. Acesso em :12 dez. 2012.

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esse processo de pacificação sofrido pelos Xavante e a criação desse aldeamento possibilitaram o

posterior processo de etnogêsese30

dos Tapuio no século XX. (MOURA, 2008, p. 23-25).

3.2 OS CARNIJÓ

Não é o intuito, no presente trabalho, se aprofundar na narração da história dos Carnijó31

ou Fulni-ô 32

de Águas Belas, mas apenas inserir aspectos importantes para a presente discussão,

na qual esse povo e sua história são de suma importância, e localizar o que ocorre em Brasília,

no Santuário dos Pajés, que não é de forma alguma um movimento aleatório ou isolado.

Por todo o século XVII, as terras dos indígenas, que foram asseguradas por leis e alvarás,

são constantemente invadidas. As terras dos indígenas são cobiçadas para expansão das

30

“Processo de formação, manutenção e dinâmica de uma fronteira socialmente efetiva e uma identidade categórica

[...]. Ao usar o termo etnogênese, portanto, estou me referindo de um modo abrangente ao processo de emergência

histórica de uma fronteira socialmente efetiva entre coletividades, distinguindo-as e organizando a interação entre

sujeitos sociais que se reconhecem – e são reconhecidos – como a elas pertencentes” (BARRETTO FILHO, 2004,

p. 94 e 95). 31

“O nome Fulni-ô, ou melhor, uma corruptela deste nome (“Fŏrniŏ”), aparece na literatura pela primeira vez no

último quartel do século XIX (Branner, 1887). Até meados do século XX, os Fulni-ô eram oficialmente mais

conhecidos como Carnijó(s) ou Carijó(s). É com estes nomes que eles são mencionados nas fontes históricas desde o

século XVII, enquanto hoje em dia são conhecidos apenas como Fulni-ô. Sobre a origem e o possível significado

dos etnônimos Carnijó e Carijó já foram levantadas diversas hipóteses e especulações sem chegar a nenhuma

conclusão definitiva. Alguns autores, como Mário Melo ou Estevão Pinto, os interpretam como sendo de origem

tupi, porém com etimologias divergentes. Em outros contextos regionais, Carijó era uma designação genérica,

significando “grupo capaz de compreender a língua geral”, “índio trabalhador”, “índio domesticado/mestiço/

manso/falante de tupi ou português”, em oposição aos índios dos sertões ou não subjugados ao regime colonial

(Santos 2003:77-8). Se, no caso dos Fulni-ô, Carijó ou Carnijó fosse uma designação genérica, como em Minas

Gerais do século XVIII, isto não explicaria, por que tão-somente os indígenas da região de Águas Belas foram assim

denominados, e não outros aldeados nos sertões nordestinos. Enquanto as origens e significados exatos dessas

denominações continuam desconhecidos, há certeza de que não se trata de autodenominações, o que já foi

informado numa tradução de um artigo de John Branner do último quartel do século XIX. [...] Fulni-ô é a

autodenominação étnica atual usada por todos os Fulni-ô. Seu significado nos foi explicado por Marilena Araújo de

Sá como sendo uma corruptela, produzida pelos brancos, de fuliido [fu'li:do], com fuli 'rio' e ido 'beira, margem'.

Fulni-ô, ou Fuliido, então, significa 'beira do rio' ou 'da beira do rio', o que reafirma uma interpretação anterior de

Pinto (1956:62-3). A explicação da professora não foi contestada na época (2003) por outros informantes indígenas.

Desse modo, a autodenominação pode ser interpretada no sentido de remeter a alguma relação tradicional com um

ambiente fluvial, o que na região só pode ser o rio Ipanema.” – SCHRÖDER, Peter, 2011. Disponível em:

<http://www.usp.br/cesta/images/stories/

Artigo_1_Introducao.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2012. 32

"Os Fulni-ô atualmente habitam o município de Águas Belas, situado na zona fisiográfica do Sertão, a 273

quilômetros da capital do estado de Pernambuco. O município está compreendido no chamado polígono das secas. A

região de Águas Belas é cortada de norte a sul pelo rio Ipanema, que desemboca no São Francisco. Em 1980, a

população do município era de 37.057 habitantes, dos quais 11.714 viviam na área urbana, e 25.343 na área rural.

Esta última cifra inclui a aldeia indígena. A vida dos Fulni-ô transcorre em duas aldeias. Uma delas se localiza junto

à cidade de Águas Belas. É nesta aldeia que se encontram as instalações do Posto Indígena da Fundação Nacional do

Índio (Funai); a outra é o lugar sagrado do ritual do Ouricuri, onde se estabelecem nos meses de setembro a

outubro." Disponível em <http://pib.socioambiental.org/pt/povo/fulni-o/print>. Acesso em: 10 dez. 2012.

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fazendas, e progressivamente vai se abrindo cada vez mais espaço para que pessoas não

indígenas ocupem as áreas indígenas. Casamentos interraciais eram incentivados desde o século

XVIII, com a política de Marques Pombal; com a criação do Regulamento das Missões33

, há

maior abertura também para proprietários rurais dirigirem as aldeias, e isso vem alimentar as

tensões e conflitos pelas terras indígenas. Segundo Carneiro da Cunha (2002), desde o século

XVIII houve tentativas de assimilação da população indígena; o século XIX foi um período em

que houve intensos discursos de deslegitimação dos direitos históricos dos índios, acirrando as

tensões em torno das terras que eram ocupadas pelos índios, mas que entravam no horizonte de

interesses dos poderes políticos e econômicos locais. Em 1850, com a Lei das Terras

[...] inicia-se por todo o Império um movimento de regularização das

propriedades rurais. As antigas vilas progressivamente expandem o seu núcleo

urbano e famílias vindas das grandes propriedades do litoral ou das fazendas de

gado buscam estabelecer-se nas cercanias como produtoras agrícolas. Os

governos provinciais vão, sucessivamente, declarando extintos os antigos

aldeamentos indígenas e incorporando os seus terrenos a comarcas e municípios

em formação (OLIVEIRA, 2004, p. 25).

Desde o documento de 1684 de D. Pedro II, que passa a administração de aldeias (entre

elas a dos Carnijó de Águas Belas) para a Congregação do Oratório, até a Carta Régia de 1705

(pois o Alvará de 1703 foi desrespeitado, necessitando que a Carta Régia fosse enviada ao

Governo Geral da Capitania de Pernambuco) constando a doação de terras aos Carnijó do sertão

pernambucano, a presença dos indígenas já era documentada, e parece claro que suas aldeias já

eram bem estabelecidas e de certa forma reconhecidas desde o século XVII (QUIRINO, 2006).

Então, na segunda metade do século XVII, os Carnijó já viviam imersos num

contexto organizado pelas duas instâncias de poder: a Igreja e o poder do

Estado, que de acordo com a historiografia trataram de expropriar os índios

territorialmente, promoveram os descimentos através de missões volantes

apoiadas por forças militares, o genocídio de índios de diversas etnias, a

fixação de aldeamento no interior da colônia com a intenção de 'amansar' os

autóctones por meio da conversão e catequese. O intuito seria transformá-los em

sujeitos úteis, servindo-lhes para proteger dos ataques de outros índios, também

como mão de obra e como guias do sertão (QUIRINO, 2006, p.35).

Como a autora aponta na citação acima, os Carnijó se encontram entre o poder da Igreja e

o do Estado – da Igreja nos processos de aldeamento das missões religiosas nas quais são

33

Cf. Dantas M.A. (2011).

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descidos34

e obrigados a se estabelecer; e em relação ao Estado, a presença e mando se mostrava

tanto no Diretório35

de Marquês de Pombal, quanto na Lei de Terras36

de 1850.

O reconhecimento da aldeia de Ipanema não diminui os conflitos entre os índios e os não

índios e a pressão sobre as terras dos Carnijó. Conforme Dantas, (2010), as Missões de

Catequese e civilização dos índios em 1845 (com continuidade a vários aspectos do Diretório

dos Índios de 1757), junto com a Lei de Terras e suas subsequentes regulamentações (1850 e

1854) serviram como base para justificar a extinção dos aldeamentos, incluindo o de Ipanema,

em que viviam os Carnijó.

Desde o século XIX, os aldeamentos são oficialmente extintos e as terras dos indígenas

são consideradas devolutas. Dantas B.G. et alii (1992) afirmam que com a criação do SPI

(Serviço de Proteção ao Índio) é previsto um contato com os estados para garantir as terras

indígenas; entretanto, no caso do Nordeste, muitas terras estão em poder do Estado, e não do

poder local. Depois das presenças não indígenas nas terras indígenas e dos sistemáticos contatos

e casamentos no século XIX, o termo que era utilizado para se referir aos índios do nordeste era

o de “misturados”, como um modo de desqualificá-los, o que cria por sua vez, uma oposição

entre índios supostamente “puros” (idealizados apresentados como antepassados míticos) com os

tidos como “misturados” e assimilados (DANTAS; SAMPAIO; CARVALHO, 1992, p.451) na

realidade local e parte da política local de aldeamento, esbulhos de terras, casamentos entre

índios e não índios, migrações e viagens etc. (BRAYNER, 2008).

Os indígenas vão sofrer com essas ideias na prática política em relação às terras e aos

seus direitos históricos. A própria política indigenista corrobora o fatalismo com o qual são

34

"Os descimentos eram expedições, em princípio não militares, realizadas por missionários, com o objetivo de

convencer os índios que ‘descessem’ de suas aldeias de origem para viverem em novos aldeamentos especialmente

criados para esse fim, pelos portugueses, nas proximidades dos núcleos coloniais. Esses aldeamentos missionários,

chamados também de ‘aldeias de repartição’, estavam integrados ao sistema colonial, funcionando como uma

espécie de ‘armazém’ onde os índios, uma vez descidos, eram estocados. Aí, depois de catequizados, eram alugados

e distribuídos – repartidos – entre os colonos, os missionários e o serviço real da Coroa Portuguesa, para quem

deviam obrigatoriamente trabalhar em troca de um pagamento, por um determinado período – que variou de dois a

seis meses – findo o qual deveriam ser devolvidos à aldeia" (BESSA FREIRE; MALHEIROS, 2010). 35

Sobre o Diretório, conferir ALMEIDA, Rita Heloísa. O Diretório dos Índios. Brasília: Universidade de Brasília,

1997. 36

Sobre a Lei de Terras, consultar CUNHA, M. Os Direitos do Índio, Ensaios e Documentos: Ed. Brasiliense, São

Paulo, 1987 (org.); Legislação Indigenista no Século XIX, CPI-SP/Edusp, São Paulo, 1992; OLIVEIRA, J. P. (org.);

Indigenismo e Territorialização: Ed. ContraCapa, Rio de Janeiro, 1998; DANTAS, B.G., SAMPAIO, J.A.L. e

CARVALHO, M. Os Povos Indígenas do Nordeste, um esboço histórico, In: CARNEIRO DA CUNHA,M.M. (org.)

História dos Índios do Brasil, São Paulo: C.Letras/MinC/FAPESP, 1992.

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vistos os índios, fadados à extinção ou indistintos junto à população regional; portanto, estariam

totalmente assimilados.

O apelo à mistura como elemento diluidor se exacerba no decorrer da segunda

metade do século [XIX]37

. Isso tem evidentemente relação com as ideologias

raciais de que se lançaria mão para explicar o Brasil, nação emergente onde

brancos, negros e índios eram vistos, por muitos, como ingredientes destinados

ao “cadinho racial”, mecanismo de redução do múltiplo ao uno (DANTAS;

SAMPAIO; CARVALHO, 1992, p. 452).

Em fins de século XIX, a situação dos Carnijó era a de grandes conflitos com a

população local, perda das terras que ocupavam até a extinção dos aldeamentos.

À proporção que crescia a cidade, os “brancos” iam apropriando-se das

melhores terras dos índios, que por aforamentos, quer por outros meios menos

lícitos. E muitas vezes, em violências inauditas, o qual fomentou a animosidade

entre os Fulni-ô e os alienígenas (PINTO, 1956, p. 14).

Os índios Carnijó, como aponta Dantas (2010), não ficaram em momento algum passivos

às ações do governo e ao avanço sobre suas terras, ao contrário, por isso vários autores apontam

os conflitos em Águas Belas e no aldeamento de Ipanema como importantes nesse sentido.

O processo de reconhecimento, no entanto, não ocorreu sem conflitos e disputas

entre os vários agentes históricos envolvidos, como algumas autoridades

municipais e estaduais, que mantinham estreitas relações com potentados locais

e posseiros da área. Utilizando-se da legislação do período (principalmente da

Constituição de 1891) e dos conceitos de tutela, cidadania e mestiçagem, essas

autoridades conseguiram adiar a atuação do SPI na regularização fundiária

local, deixando essa questão para a esfera do governo do estado de Pernambuco.

No que se refere às contendas pelas terras, os Carnijó se apropriaram dos novos

usos dados ao espaço, principalmente da divisão do território em lotes em 1878,

e realizaram suas demandas, recorrendo a mais uma aliança com um padre para

legitimar suas reivindicações. Através dos caminhos que escolheram, esses

índios conseguiram o reconhecimento do Estado, com a instalação do Posto

Indígena em 1924, mesmo depois de terem seu aldeamento extinto em 1875 e

terem sido considerados mestiços, saindo da condição de invisibilidade imposta

por autoridades locais e provinciais no final do século XIX (DANTAS, 2010,

p.123).

O início do século XX é para os Carnijó ou Fulni-ô38

e demais povos do Nordeste

brasileiro um momento em que se esperava que eles estivessem silenciados e até já extintos.

37

Minha inserção. 38

Segundo Dantas M.A. “depois da instalação do Posto Indígena em Águas Belas em 1924, os Carnijó passaram a

se apresentar como Fulni-ô, sendo esta a denominação utilizada pelos próprios índios que atualmente habitam a área

indígena vizinha ao centro urbano de Águas Belas” (2010, p. 128). Quirino (2006, p.74) ao se referir à relação entre

os índios Fulni-ô e Carnijó que “os índios também associam o mito do aparecimento da santa à fundação da cidade

de Águas Belas, sendo, portanto, um mito que explica a origem da cidade. Além disso, os Fulni-ô, ao contarem a

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O que ocorre na verdade é a reemergência desses povos no cenário local e nacional. Em casos

específicos o SPI39

atuou na Região Nordeste, mas no geral era como se não houvesse mais

indígenas para reclamar seus antigos territórios. Com Rondon à frente do SPI a partir da década

de 1940, essa data pode ser considerada como o “início da reorganização das áreas indígenas”

(DANTAS et alii, 1992, p. 453).

Ainda de acordo com os autores supracitados, com a Funai já criada, as décadas de 70 e

80 do século XX são marcadas por grande mobilização política indígena. A reação do Estado

brasileiro ocorre no sentido de contê-las.

[O] Estatuto do Índio é promulgado em 1973, o Conselho Indigenista

Missionário é criado um ano antes e as associações de apoio à causa indígena a

partir de 1979, no bojo da reação desencadeada pelo projeto de emancipação

dos índios [...]. Os índios do Nordeste gradativamente deixariam as suas áreas

de origem para participar das várias reuniões então promovidas [...]. O forte

sentimento étnico produzido se traduziria na reivindicação dos seus direitos

históricos, notadamente o seu reconhecimento como índios plenos e a posse das

terras” (DANTAS; SAMPAIO; CARVALHO, 1992, p. 454).

O contexto no qual se encontravam os Carnijó poderia nos remeter a uma total

desestabilização devido à extinção dos aldeamentos, esbulho das terras, proibição por parte do

poder local dos rituais do Ouricuri; entretanto, esses elementos tiveram um efeito diverso. O

ritual continuou a ser feito, longe dos olhos da população local, fornecendo aspectos integradores

e de pertença entre os membros do grupo que praticavam os rituais e que estavam ligados à

memória da terra que até mesmo para os não indígenas ainda era reconhecida como antigo

aldeamento dos índios.

[...] os Carnijó foram os primeiros índios do Nordeste a serem reconhecidos

pelo Estado através do SPI e da implantação de um Posto Indígena em 1924,

por apresentarem traços culturais que os identificariam prontamente como um

grupo indígena, de acordo com os parâmetros de “indianidade”. Os Carnijó

falavam uma língua própria, o Yatê, além do português, e mantinham um

período de reclusão ritual, o Ouricuri. A partir da interferência do SPI entre os

Carnijó e, posteriormente, entre outros grupos indígenas do Nordeste, teve

início, conforme Pacheco de Oliveira, o segundo movimento de territorialização

(DANTAS, M. A., 2010, p. 133).

história do aparecimento da santa, associada ao tempo passado, estabelecem um vínculo com os Carnijó, fazem um

apelo à “continuidade histórica do grupo” através da memória que acaba por reforçar a situação de “continuidade

étnica” em relação aos Carnijó. Pode-se dizer que esse procedimento Fulni-ô é empregado para ratificar o seu

pertencimento indígena e para ajudar a orientá-los no cotidiano diante das mobilizações étnicas do presente.” 39

Conforme Souza Lima (1995), o SPI (primeiramente chamado de SPILTN – Serviço de Proteção ao Índio e

Localização de Trabalhadores Nacionais –, na data de sua criação, em 1910) passa a se chamar assim a partir de

1918.

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60

A relação com a memória da fundação da cidade de Águas Belas, com a terra que

consideravam suas por direito, produziam, portanto, uma relação com o território e com a

memória a que ele remetia que servirão de base para a reelaboração e manutenção de suas

identidades, assim como a luta pelo reconhecimento oficial do grupo e na luta pela identificação

do local como Terra Indígena. Segundo os dados da Associação Nacional Indigenista (Anai), em

2011 a situação do processo de reconhecimento da Terra Indígena Fulni-ô era o de terra

tradicional em regularização, em identificação40

.

Mapa 3.2 – Localização da cidade de Águas Belas em Pernambuco41

Fonte: <http://www2.transportes.gov.br>.

40

Os procedimentos jurídico-administrativos para o reconhecimento de Terra Indígena são: identificação,

delimitação, demarcação, homologação e registro, sendo que as terras são consideradas como tradicionalmente

ocupadas (art. 231 da CF: §1.º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios aquelas habitadas em caráter

permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais

necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e

tradições.), terras reservadas (Lei nº 6.001/1973: art. 26. A União poderá estabelecer, em qualquer parte do

território nacional, áreas destinadas à posse e ocupação pelos índios, onde possam viver e obter meios de

subsistência, com direito ao usufruto e utilização das riquezas naturais e dos bens nelas existentes, respeitadas as

restrições legais. Parágrafo único. As áreas reservadas na forma deste artigo não se confundem com as de posse

imemorial das tribos indígenas, podendo organizar-se sob uma das seguintes modalidades: a) reserva indígena; b)

parque indígena; c) colônia agrícola indígena.) e terras dominiais (Lei nº 6.001/1973: art. 32. São de propriedade

plena do índio ou da comunidade indígena, conforme o caso, as terras havidas por qualquer das formas de aquisição

do domínio, nos termos da legislação civil.). Dispositivos legais disponíveis em: <http://www.planalto.gov.br/

ccivil_03/leis/l6001.htm>, acesso em: 30 maio 2012; e em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/

ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 30 maio 2012. 41

Imagem disponível em : <http://www2.transportes.gov.br>. Acesso em: 20 abr. 2012..

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3.2.1 Os migrantes do Nordeste para construção de Brasília

A Região Nordeste brasileira sofreu grande seca no final do século XIX e início do

XX. Na década de 1950, como resposta a essa grave seca, o governo de Juscelino Kubitschek

cria a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene)42

, e cada vez mais a região se

torna palco de migrações em massa.

Assim, nos séculos XIX e XX, as correntes migratórias nordestinas

acompanharam a demanda laboral do crescimento econômico do país: o ciclo da

borracha no Amazonas (na transição entre o século XIX e o século XX, e entre

1940 e 1945, com a reativação dos seringais), o ciclo do café em São Paulo (a

partir de 1930), a construção de Brasília, da Rodovia Transamazônica e da

Rodovia Belém-Brasília (entre as décadas de 1950 e 1970), o

desenvolvimentismo industrial do Sul e do Sudeste (nas décadas 1960 e 1970,

sobretudo em direção a São Paulo e Paraná). O fluxo de migrantes só diminuirá

nos anos 1980 e 1990, devido a crises econômicas que reduziram a oferta de

postos de trabalho em muitas regiões e à dinamização econômica do próprio

Nordeste (MENEZES; MORAIS, 2002, p. 42-43, apud MATOS, 2012, p. 8).

Dito isso, parte desses migrantes vêm para Brasília a fim de fugir da seca e em busca de

trabalho. Esses candangos, os pioneiros, nunca encontraram muito espaço dentro da cidade que

construíram, tendo que criar seus espaços na Cidade Livre, ou posteriormente chamada de

Núcleo Bandeirante, e demais cidades-satélites. Escapando do controle do projeto da cidade, essa

massa de trabalhadores construíram paralelamente a cidade mítica de Juscelino Kubitschek, suas

cidades possíveis.

A história de Brasília, mesmo antecedentemente à inauguração do Plano-Piloto

como centro político administrativo do país, em 1960, registra alguns

testemunhos da contradição ‘planejamento urbano’ versus construção injusta do

espaço. As contradições básicas se configuram em movimentos sociais e de

algumas lutas bem pontualizadas, cujos teores, momentos e atores estão sendo

analisados em outras contribuições. (PAVIANI, 1991, p.122).

A nova capital, cidade pensada e com seus espaços e funcionalidades previamente

estipulados, teve a construção iniciada em 1956. Seria uma cidade para receber como moradores

os funcionários do Estado e implementar uma nova perspectiva de cidade, sem o caos urbano do

Rio de Janeiro, então capital do país. É criado o Instituto de Imigração e Colonização (Inic),

42

A Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) foi criada no governo Juscelino Kubitscheck,

através da Lei nº. 3.692, de 15 de dezembro de 1959, e fechada em maio de 2001, devido a denúncias de corrupção e

clientelismo, sendo reaberta no governo Lula, por ocasião da Lei Complementar nº. 125, de 3 de janeiro de 2007.

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responsável pela triagem da mão de obra direcionada à construção de Brasília. Segundo os dados

reunidos por Reis Jr,

[...] de acordo com Lopes (1996) os dados do censo de 1957 possibilitam

questionar a identificação dos denominados “candangos”, como em sua maioria

nordestinos. O Estado com maior contingente de mão-de-obra migrante foi

Goiás (3.152), seguido por Minas Gerais (1.154) e São Paulo (493). Segue a

Bahia (296), Pernambuco (105), Piauí (48), Ceará (45) e Rio Grande do Norte

(36). Entretanto Lopes (1996), vê com desconfiança estes dados do IBGE, tendo

em vista seu caráter promocional. De acordo com Sousa (1978), em 1958 ocorre

uma grande afluência de migrantes. Devido às secas do nordeste, a cidade

recebeu quatro mil flagelados. Esses migrantes ocuparam o entorno da Cidade

Livre em menos de oito dias. Mesmo com esse fluxo, eles não se tornaram

maioria no contingente populacional. Em 1958, “cerca de 52% dos

trabalhadores que acorreram à região provinham de Goiás. De Minas, vieram

17,25%, de diversos estados nordestinos, mormente da Bahia 14,40% [...]

(LOPES, 1996, p. 196, apud REIS JR., 2008, p.38).

Holston (1993) identifica candango como pejorativo e pioneiro como positivo. Em

determinadas situação, essas categorias podem variar e ter significados equivalentes. Como nos

indica Patriota de Moura (2012), as categorias de pioneiro e candango tiveram variação em seus

significados.

É nesse ponto que o Santuário dos Pajés e Brasília se encontram. Entre os trabalhadores

vindos para Brasília trabalhar estavam alguns indígenas Fulni-ô, da cidade de Águas Belas, em

Pernambuco, que, não podendo praticar suas rezas nas obras, encontraram logo um espaço de

cerrado para lá ficarem e rezarem,; desde então estabeleceram com o local uma relação sagrada.

Santxiê veio para Brasília na década de 1970 para juntar-se a seus parentes que já estavam na

capital desde fins da década de 1950. Conforme relata em entrevista a Eremites de Oliveira et al.

(2011), Santxiê explica que seus pais vieram para Brasília de pau-de-arara, e um dos principais

motivos foi processo de esbulho das terras do lote nº 395,

José Correia Ribeiro, liderança dos Fulni-Ô de Águas Belas, assinou e

encaminhou ofício à Diretoria de Assuntos Fundiários da Funai, no qual consta

o seguinte pedido: “Solicito a V.Sa. a gentileza de tomar providências urgentes

quanto a necessária regularização do lote nº. 395 no Alto do Kariri, Reserva

Indígena Fulni-Ô, no município de Águas Belas/PE, pertencente a indígena

Maria Veríssimo Machado Fulni-Ô, que durante mais de 40 anos tal lote

encontra-se pendente de regularização, mesmo constando nos

assentamentos/registros no Posto Indígena da região. Assim, considerando que

o referido lote está nas mãos dos brancos, é que espero dessa Diretoria as

medidas que se fizerem necessárias” (OLIVEIRA et alii, 2011, p. 17).

Já Santxiê afirma em outra oportunidade que saiu de sua cidade devido às condições de

trabalho e para fugir da pobreza, "teve uma fome muito grande lá, uma miséria, uma epidemia de

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cólera"43

(OLIVEIRA et alii, 2011, p. 17). No que se refere aos indígenas, a migração ocorre ao

longo de toda história colonial no Brasil e prossegue ao logo da República devido às políticas de

extinção de aldeamentos, esbulho e invasões das terras indígenas.

3.2.2 Chegada a Brasília e estabelecimento no Santuário dos Pajés

Brasília foi inaugurada em 21 de abril de 1960 entre o Rio Torto e Bananal, na antiga

Fazenda Bananal44

.

A transferência da capital federal para o coração do Brasil, a construção das

estradas e aeródromos em regiões recônditas do país, revelaram a existência de

pequenas tribos isoladas exatamente onde se acreditava na ausência de toda e

qualquer vida indígena (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 60).

Imagem 3.1 – Ribeirão Bananal

Fonte: Acervo de Jacques Philippe Bucher.

A área onde o Santuário dos Pajés se encontra era uma das partes ainda existentes da

fazenda, e os índios usavam esse local para realizar suas cerimônias e posteriormente como

moradia. Magalhães45

e outros autores tratam da presença indígena na região, elucidando como

aos poucos a presença e os traços foram sendo apagados pela política nacional, local e pela

43

Ver conteúdo disponível em: <http://brasiledesenvolvimento.wordpress.com/2011/10/13/para-entender-a-questao-

do-santuario-dos-pajes-e-setor-noroeste-em-brasilia/>. Acesso em 30 jan. 2012. 44

Ver fotografias da imagem 3.1, tiradas por Jacques Philippe Bucher antes da construção do Bairro Setor Noroeste. 45

Conferir Magalhães (2009), assim como Paulo Bertran (1944), que tratam sobre a presença indígena na região

onde foi construída a cidade de Brasília.

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historiografia oficial. Além da menção do antropólogo Claude Lévi-Strauss, o escritor argentino

Adolfo Bioy Casares menciona em seu diário de viagem publicado sob o título Unos días en el

Brasil (2010), em rápida visita a Brasília em 1960, a presença de índios na cidade. "Fotografei –

embora não saiba seu resultado – casas do pior (ou do melhor, tanto faz) Le Corbusier e também

alguns índios, com orelhas do tamanho de um palmo e perfuradas, os quais até alguns anos atrás

eram os únicos que povoavam aquela região"46

(BIOY, 2010, p. 41 – tradução livre).

Imagem 3.2 Foto de Adolfo Bioy com índios que encontrou na construção de Brasília

Fonte: BIOY, 2010, p. 41.

Segundo apontado por Frederico Flávio Magalhães47

(2009), a família que primeiramente

veio de Águas Belas para o Centro-Oeste por volta de 1957 para trabalhar na construção da

capital federal foi a família Veríssimo, Pedro e Maria, pais de José Mário Veríssimo ou Pajé

Santxiê, que já há alguns anos reclama e luta pelo reconhecimento e manutenção do Santuário.

Antônio Inácio Severo (cacique Zumba), Jaime Ribeiro, Francisco Cajueiro vieram para a futura

capital e, nas décadas seguintes, outros índios Fulni-ô seguiram o mesmo caminho como o

próprio Santxiê, seu irmão Towê, sua cunhada Marina, e seus sobrinhos Tawá e Suyane.

46

Original: “Fotografié, no sé con qué resultado, casas dignas del peor (o del mejor, tanto da) Le Corbusier y a

indios, con orejas de un palmo y perforadas, que hace tres años vivián como únicos pobladores en la zona.” 47

Funcionário da Funai que fez uma monografia sobre a presença dos índios na área reclamada, assim como o

processo de territorialização ocorrido.

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Mapa 3.3 – Delimitação de 50,91 hectares da área do Santuário dos Pajés no Setor Noroeste de Brasília, na

qual a Funai colocou marcos oficiais.

Fonte: OLIVEIRA; PEREIRA; BARRETO (2011).

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66

Magalhães colheu vários depoimentos da presença dos índios na área da antiga fazenda

Bananal assim como os usos religiosos que faziam da área no sentido de preservarem seus ritos

mesmo distantes de Águas Belas.

Quanto aos Tuxá da Bahia, vão morar no Santuário nos anos de 1970. Mudam-se Dona

Maria Conceição, seus filhos Nelsinho Cavalcante, Edilene Conceição Cavalcante e Ednalva da

Conceição Cavalcante. A Funai, por exemplo, acredita que a comunidade é de caráter

pluriétnico. Contudo, Santxiê não concorda com tal perspectiva.

No inicio dos anos noventa, nascem as crianças indígenas, frutos das relações de

casamento entre as etnias Fulni-Ô, Tuxá, Guajajara, Pankararu e Kariri: Tainá,

primeira indígena a nascer na comunidade bananal, nasceu em 1990, hoje com

19 anos, filho de Ednalva Tuxá com Pedro Ribeiro Fulni-Ô; Danilo, filho de

Edilene Tuxá com Leno Pankararu, que morou durante cinco anos na

comunidade indígena Bananal e mais três filhos de Edilene com José Francisco

Kariri; Fetxá Wewé Fulni-Ô e Santxiê Junior, filhos de Santxiê Tapuia e Márcia

Guajajara; Tawê, neto de Towê e filho de Suyane com Fekhyá Fulni-Ô. Outros

indígenas vieram a agregar a Comunidade Indígena Bananal no final deste

mesmo ano (MAGALHÃES, 2009, p. 19).

Quanto aos Kariri-Xocó, o histórico é diferente, pois Ivanice Tononé chega a Brasília de

Porto Real do Colégio, município de Alagoas em 1986 para buscar tratamento médico, e Santixê

a acolhe de forma a princípio temporário no Santuário, lá ela constrói sua casa e constitui

família, moram cerca de oito famílias no local onde nem todos são índios. "Depois eu fiz as

casas, as ocas e criei meus filhos. Trouxe minha família pra cá e fiquei morando com meu povo.

O tempo foi passando e ninguém nem sabia que a gente morava aqui48

". No Nordeste, a aliança

entre os Kariri-Xocó e Fulni-ô são conhecidas especialmente no que diz respeito às alianças

matrimoniais e ao ritual Ouricuri praticado por ambas as etnias. E as alianças entre Kariri-Xocó e

Fulni-ô tiveram continuidade por um tempo em Brasília.

Independentemente da existência de alguma forma de herança comum, o que é

significativo e levanta questões acerca da história de inter-relação dessas duas

tribos reside no fato que apenas os Kariri- Xocó podem participar do Ouricuri

Fulni-ô e vice-versa. Um tipo de aliança profunda que se estende do campo

espiritual ao sociopolítico (CUNHA, 2008, p. 35).

Foram estabelecidas, portanto, alianças entre Fulni-ô e Tuxá e posteriormente entre os

Tuxá e Kariri-Xocó.

Sua fixação, porém, deu-se por meio de alianças e, apesar das tensões, nem

Tuxá nem Kariri-Xocó são considerados invasores. Tanto na literatura quanto

48

Disponível em: <http://brasiledesenvolvimento.wordpress.com/2011/10/13/para-entender-a-questao-do-santuario-

dos-pajes-e-setor-noroeste-em-brasilia/> Acesso em: 30 jan. 2012.

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em campo, as informações são de que a presença do núcleo familiar Tuxá é

histórica e fez-se mediante aliança política e de casamento com os Fulni-ô,

pautada pela solidariedade. Já os Kariri-Xocó chegaram bem mais tarde,

trazidos pelos Tuxá por força de uma aliança matrimonial entre as duas famílias

(CUNHA, 2008, p. 35).

Recentemente, mudaram-se para o Santuário os índios Guajajara que estavam acampados

na Esplanada dos Ministérios durante alguns meses, depois que tiveram que sair do local, se

estabeleceram no Santuário dos Pajés, mas diferentemente dos Tuxá e Kariri-Xocó – que quando

chegaram estabeleceram contato com os mais antigos e foram chamados ou autorizados a ficar

no local –, os Guajajara não foram. Oriundos do Município de Grajaú no Maranhão, a

comunidade formada por eles têm cerca de "quinze famílias distribuídas em doze casas, das

quais apenas três eram ocupadas por pessoas não pertencentes à etnia Guajajara: dois indígenas

da etnia Xavante, um indígena Tupinambá e uma mulher e um homem não-indígenas

(brancos)"49

.

3.3 LAUDOS ANTROPOLÓGICOS

A reivindicação pelo reconhecimento da terra é antiga. Houve pareceres, notas técnicas.

O pajé Santxiê relata que em 1995/1996 é iniciado um processo junto à Funai com intenção de

pedir reconhecimento de sua presença no local e a demarcação da terra.

Segundo o advogado dos Fulni-ô Tapuya, Ariel Foina, a área toda conhecida como

"Favela do Ceub", que começava perto do Ceub e terminava quase na Epia, tinha muitos

posseiros ocupando a região; foi feita uma retirada desses posseiros e, então, em meados da

década de 1980, início de 1990, ocorreu uma primeira demanda dos índios com a Funai para

tentar proteger a área em que viviam da invasão desses posseiros, o que gerou esse primeiro

processo. O processo foi aberto com o nº 1.607/1996 e realizado pelo antropólogo da instituição

Ivson José Ferreira. Esse processo segundo consta, continha vários documentos importantes que

contribuiriam para o processo de demarcação da área. Segundo Magalhães (2009) esse processo

em tramitação esteve em poder da Terracap, que passou a numerá-lo como 111.000.628/1997,

contudo, o órgão nunca devolveu o processo, e ele é caracterizado como extraviado em meio a

burocracia do GDF. A comunidade indígena é considerada pelo órgão como invasora, mesmo

tendo conhecimento do processo em tramitação, fazendo com que fosse mais um entrave para a

49

Cf. Laudo Pericial Antropológico n.º 52/2012, p. 8.

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continuação dos trâmites legais e favorecendo a situação posterior da aprovação do Plano Diretor

de Ordenamento Territorial (PDOT) em 2009, o qual ignorou ou minimizou o impacto e a

relevância da presença indígena no local.

A despeito do longo tempo de contato dos Fulni-ô com a sociedade nacional,

cerca de 300 anos, e do processo de violência a que os membros dessa etnia

foram submetidos através da influência missionária, esse grupo indígena pode

ser considerado um símbolo de resistência cultural. Além de manterem o seu

idioma nativo, os índios Fulni-ô preservam um conjunto de crenças religiosas e

rituais cuja expressão máxima é o culto do Juazeiro Sagrado [...]; que "Deve ser

considerando que este grupo indígena vem ocupando a área reivindicada há 35

anos e que, até hoje, mantém preservada a vegetação nativa de cerrado [...]";

que "Os projetos e as iniciativas que estão em curso nos oferecem uma

perspectiva da importância do local não somente para esta comunidade

específica, mas para a preservação da flora, da fauna e do conhecimento

tradicional, bens de valor incalculável50

.

O Centro Integrado de Operações, Segurança Pública e Defesa Social do DF (CIOSPDS)

solicita junto à Funai estudos para demarcar área e garantir certa proteção aos índios. Como

apresentado anteriormente, em 2003 é elaborado um relatório de levantamento prévio pela

antropóloga da Funai Stella Ribeiro da Matta Machado (processo nº 1.230/2003), que constata a

presença Tuxá e Fulni-ô na área. Na Nota Técnica (185-P/2003) da 6ª Câmara de Coordenação e

Revisão Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal, do

Antropólogo Marco Paulo Froes Schetino, recomenda-se procedimentos no sentido de identificar

e delimitar como terra indígena tradicionalmente ocupada.

Ainda em 2003, a antropóloga da Funai, Andréia Luiza L. B. Magalhães solicita ao órgão

em seu parecer (143/CGID/2003) a constituição de Grupo de Trabalho (GT) "Identificação e

Delimitação para a regularização fundiária do território da Comunidade Indígena Bananal". Em

2009, um parecer histórico e antropológico foi preparado por Rodrigo Thurler Nacif, e um

parecer técnico por Juliana G. Melo e Leila Burger Sotto-Maior, de número 34/CGID/DAF

(MAGALHÃES, 2009, p.31).

Em geral, foram as seguintes conclusões que esses laudos e notas geraram até então:

1) a origem étnica das famílias indígenas que inicialmente ocuparam a área,

como sendo um grupo da etnia Fulni-Ô da Aldeia Ipanema, terra indígena de

Águas Belas de Pernambuco, descendentes do Povo Carijó ou Carnijó. Sua

língua, o Ya:thê é classificada como única representante conhecida de sua

50

Conforme relatado por Awiry Contra Informação Tribal apud RECOMENDAÇÃO GAB-LLO nº 05/2009 sem

página. Disponível em <http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2009/11/457932.shtml>. Acesso em: 30 maio

2011.

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família dentro do tronco linguístico Macro-jê. Por motivos históricos

provocados pela “doação” de parte de suas terras à Igreja Católica e da política

de arrendamentos da terra indígena executada pelo Serviço de Proteção ao Índio

(SPI) nas décadas de cinquenta e sessenta, o acesso coletivo e o uso tradicional

dos recursos naturais no território indígena Fulni-Ô de Águas Belas – PE fica

inviabilizado, fato que comprometeu as relações sociais e o modo de vida de

várias famílias que se viram compelidas a migrarem para várias capitais

inclusive para Brasília. Outras famílias das etnias Tuxá e Kariri-Xocó vieram

em seguida a compor a Comunidade Indígena Bananal; 2) o histórico de uso da

área a partir de 1969, quando vieram para a área do Bananal para morar com o

tio de Santxiê que já a utilizava desde 1957, quando chegou em Brasília com o

primeiro grupo de Fulni-Ô para trabalhar na sua construção; 3) a forma como o

novo território tem assegurado as práticas culturais da comunidade indígena,

possibilitando o uso cotidiano e coletivo dos seus costumes e tradições, tais

como o uso da língua Ya:thê, do tronco linguístico Macro-jê, a educação das

crianças no modelo tradicional, a relação com o sagrado em função das

condições naturais e sobrenaturais para a realização das rezas, dos cultos, e

consequentemente, o retorno anual obrigatório ao Ouricuri, culto do Juazeiro

Sagrado, manifestações que asseguram o ethos cultural do Povo Indígena Fulni-

Ô; 4) como o território assegura a subsistência do grupo permitindo a aplicação

de técnicas de cultivo, próprias de sua cultura, através do plantio de pequenas

roças de milho, feijão, mandioca, plantas medicinais e do cultivo de plantas

frutíferas e da elaboração de medicamentos tradicionais vendidos na loja no

térreo da Funai, do uso de recursos do cerrado para complementar a fabricação

de artesanatos como algumas sementes, da palha para uso em pequenas

construções tradicionais como na Casa dos Homens e na Casa das Mulheres do

Santuário Sagrado dos Pajés, da complementação da alimentação com frutos

nativos do cerrado. Também informam como asseguram a subsistência do grupo

através da remuneração de alguns membros que trabalham em atividades do

serviço público e de prestação de serviços temporários como autônomos; 5)

como a conservação ambiental do território indígena é uma vocação e um dos

principais produtos da cultura daquela comunidade. Como o território se

constituiu no habitat indígena. As suas relações sociais sustentadas pelo uso

tradicional do território vem sendo mantidas por longas cinco décadas de

ocupação permanente, conferindo ao ecossistema do cerrado sua integridade.

Ou seja, o cerrado conservado como produto do manejo tradicional de seus

recursos naturais enquanto território indígena, contrastando com a degradação

da vegetação e do solo nativos no seu entorno. A implantação de um herbário

para cultivo das plantas medicinais do cerrado e de outras utilizadas para

recuperação de áreas degradadas, a permanente mobilização para o combate dos

incêndios florestais causados pela deposição clandestina de lixo e entulho no

Parque Ecológico Norte e a severa vigilância praticada pelos indígenas, tem

assegurado medidas concretas, por todos estes longos anos, contra as

reincidentes tentativas de desmatamento do cerrado da área indígena e do seu

entorno" (MAGALHÃES, 2009, p. 31-33 – grifos nossos).

Os relatórios ainda tratam da pressão que os índios já vinham sofrendo, com invasões,

intimidações, agressões, e por fim indicam as seguintes providências ao órgão indigenista:

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1) a nomeação de Grupo Técnico para complementação dos estudos e

identificação da área indígena; 2) a adoção de procedimentos administrativos

para a proteção da comunidade e do seu território, através da constituição de

uma área indígena que contemple os interesses da família Tapuya; 3) imediatas

providências para a delimitação e demarcação do território indígena

(MAGALHÃES, 2009, p. 33).

Mais recentemente em 2009, o juiz Hamilton de Sá Dantas solicita à Funai que crie um

Grupo de Trabalho (GT), essa medida era inclusive condicionante da Licença Prévia concedida

pelo Instituto Brasília Ambiental (Ibram). A questão permanecia sem resolução, os lotes foram

leiloados no ano de 2008 e só em 2010 a Funai autorizou a diligência técnica (portarias-Funai

nº 73, de 26/1/2010, e Funai-DPDS nº 8, de 11/6/2011) para estudo do caso do Santuário dos

Pajés.

O laudo conclui que, segundo o art. 231 da Constituição Federal, a ocupação indígena é

tradicional.

1. Primeiro, que o Santuário dos Pajés é, de fato, terra de ocupação tradicional

indígena, conforme determina o Art. 231 da Carta Constitucional de 1988.

Logo, a reivindicação apresentada pela comunidade é pertinente do ponto de

vista dos direitos dos povos originários no Brasil. Significa dizer, com efeito,

que procede a requisição do Ministério Público Federal/DF, constante no Ofício

Nº 41/2009 – LLO/PRDF/MPF. Por outro lado, pareceres contrários à

reivindicação dos indígenas, produzidos por agentes do Estado a serviço da

FUNAI, sugerem a existência de um habitus no interior do órgão indigenista

oficial. Tal habitus ali parece existir desde longa data, conforme pode ser

atestado pela maneira sistemática com que a FUNAI negou o reconhecimento

da identidade étnica a grupos que passaram por processos de etnogênese, a

exemplo dos Krahô-Kanela (ver Mauro 2011).

2. Segundo, que o Projeto Imobiliário Setor Noroeste, sob a responsabilidade

da Terracap, incide sob terra indígena não regularizada pelo Estado Brasileiro,

cujo início da ocupação tradicional é anterior à promulgação da Lei Maior.

3. Terceiro, que as reivindicações indígenas sobre a área têm a ver com uma

demanda coletiva e não com uma demanda individual.

4. Quarto, que o Santuário dos Pajés é imprescindível, tanto física quanto

simbolicamente, para a permanência do grupo na área, sobremaneira para os

Fulni-Ô e Tuxá que ali se estabeleceram há mais tempo que os ocupantes

indígenas que ali chegaram a partir da década de 1990.

5. Quinto, que se faz imperativo que a FUNAI constitua um GT (Grupo de

Trabalho), sob a coordenação de um antropólogo, para proceder aos estudos

necessários à identificação, delimitação e demarcação da terra indígena, em

conformidade com o que estabelece o Decreto 1.775, de 08/01/1996, e a

Portaria MJ Nº 14, de 09/01/1996.

6. Sexto, que sejam realizados estudos com vista à identificação dos impactos

negativos, incluindo dados morais e materiais, que Projeto Imobiliário Setor

Noroeste causou e vem causando à comunidade indígena do Santuário dos

Pajés, bem como outras ações semelhantes que se fizerem necessárias.

(OLIVEIRA; PEREIRA; BARRETO, 2011, p. 44-45).

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Com laudo concluído, a Funai não providencia a criação do GT, ao contrário, ela contesta

o laudo, segundo declarou à Agência Brasil51

o funcionário da Funai Mário Moura:

A Funai não considera a área como terra tradicional indígena. O laudo

apresentado pelo antropólogo Jorge Eremites não se sustenta, e a maioria das

pessoas que vivem no local, ainda que há muito tempo, sequer são lideranças

indígenas [...]. Se fosse terra particular, eles teriam direito a usucapião, mas

como é terra pública, isso não é aplicável.

Os índios, o grupo de estudantes, de ativistas, profissionais liberais, alguns políticos

como Erika Kokay (PT/DF), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), entre outros, se

manifestaram em prol do Santuário e dos estudos para reconhecimento e demarcação de Terra

Indígena, conforme a nota da ABA, por meio da Comissão de Assuntos indígenas52

.

O antropólogo Dr. Jorge Eremites de Oliveira cedeu-me uma entrevista e coloca seu ponto de

vista sobre o que aconteceu com relação aos estudos.

P. Thais: Houve demora por parte da Funai em divulgar o relatório feito

por você e sua equipe de pesquisa. Por que ocorreu isso? A mídia veiculou

que o laudo havia sido rejeitado pela Funai, o que ocorreu. O laudo foi

mesmo rejeitado? O que foi alegado pela Funai?

R. Dr. Jorge Eremites de Oliveira: Quando enviei o laudo administrativo para

a Funai, os Correios estavam em greve e o Sedex demorou a chegar. Mas havia

enviado por e-mail uma cópia em PDF para uma antropóloga do órgão, com

conhecimento, se não me engano, de um antropólogo do MPF. O fato é que a

Funai demorou a veicular o laudo, motivo pelo qual uma outra cópia em PDF

foi enviada a lideranças da comunidade do Santuário dos Pajés, as quais

tomaram a providência de divulgá-la na internet. Como o laudo era público e

não tramitava como sigilo de justiça, agi eticamente e fiz o trabalho chegar às

mãos de quem tinha mais interesse em tomar ciência de seu conteúdo. Depois

disso, como já era de se esperar, servidores da Funai foram à imprensa e se

manifestaram contra o trabalho, na tentativa de desqualificá-lo, o que atesta a

existência de um habitus conhecido no órgão, o qual foi apontado no laudo.

Parte da imprensa, aquela ligada ao establishment do Distrito Federal, deu

ampla divulgação do fato, mas nenhum jornalista me procurou para saber a

opinião que tenho sobre o assunto. Depois disso, a Comissão de Assuntos

Indígenas da ABA pronunciou-se formalmente sobre o caso e saiu em defesa do

laudo. Ainda sobre o assunto, tenho a dizer que a Funai formalmente não alegou

nada a mim que fosse contra ou a favor do laudo. Soube apenas, através da

imprensa, que alguns funcionários públicos do órgão haviam dito que o trabalho

era inconsistente, que não se sustentava ou algo assim. Isso já era esperado por

mim e não fiquei nem um pouco surpreso com o fato.

51

Ver relato disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2011-10-14/para-Funai-area-nao-e-terra-

tradicional-indigena>. Acesso em: 10 ago. 2012. 52

Cf. Anexo J, nota da ABA sobre o caso do Santuário dos Pajés.

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O advogado Ariel Foina explica em entrevista, a mim concedida, os procedimentos e o

entendimento da Funai em relação a esses processos e atuação do Ministério Público.

A discordância que existe hoje com a Funai é se a terra é de ocupação

tradicional ou não. A Funai diz o seguinte, que lá (o Santuário) não seria de

ocupação tradicional, mas que lá tem que ser respeitado e preservado por outros

meios de preservação. Poderia um reserva indígena, porque reserva indígena

não é uma terra tradicionalmente ocupada, pois reserva é uma área que União

compra e aloca os índios. A terra tradicional é dos índios, independente de a

União comprar ou não comprar, você sabe tem vários tipos de assentamentos

indígenas pela Funai. Pode ser como reserva, como terra tradicionalmente

ocupada, por uso capião, por várias categorias. No caso dos Fulni-ô Tapuya do

Santuário, eles reivindicam como terra tradicionalmente ocupada e a Funai diz

que tem que ser por outro caminho. Lá não seria tradicional , por quê? Porque

não há uma ocupação histórica no local. A ocupação é relativamente recente.

Nós nunca negamos isso, que a ocupação é da década de 1960 para 1970, junto

com a construção de Brasília. Então para a Funai, isso não é tradicional o

suficiente para ensejar como terra tradicionalmente ocupada. Mas reconhece a

importância do local. Mas mesmo reconhecendo a importância, ela não delimita

qual é a área necessária para que o Santuário se mantenha, porque o Santuário

tem uma área ali onde o pessoal mora, mas tem vários locais que eram

preservados pelos Fulni-ô Tapuya que foram de ocupação de outras etnias e que

tem plantas de uso religioso, uso tradicional, manejadas, essa área é muito

grande. É uma área que extrapola o próprio Noroeste. Os Fulni-ô reivindicam

uma área que seria o mínimo necessário para eles, que é uma era entendida

como grande pela Terracap e pela Funai, no mínimo os 50 e pouco hectares. Foi

o Ministério Público que pegou essa área. Só que quando ele pegou, é quase um

retângulo, dois pontos desse retângulo são área de ocupação antiga. Só que o

MP pegou como referência o centro da área, se eu pego o centro de um sítio,

como marco de delimitação de um polígono de área eu estou deixando 3/4 fora

da área. Tanto que esse último laudo diz que a área é no mínimo 50 hectares. É

isso que o relatório do Dr. Eremites recomenda que a área seja de mínimo 50

hectares e que deva ser constituído o Grupo Técnico. Porque essas questões

tinham quer ser verificadas pelo antropólogo corretamente no Grupo Técnico de

Identificação e Delimitação. Para que fosse definida a área correta, ocupada,

necessária a reprodução física, cultural etc. que é o que a Constituição Federal

determina em caso de ocupação tradicional. Essa ação do Ministério Público é

ação principal. Em paralelo a isso há mais duas ações, da Defensoria Pública da

União que visa declarar a terra como indígena e outra que visa garantir a posse

indígena no local. Eu atuei mais com uma Cautelar devido ao uma ação da

armada da Polícia Civil na área, que invadiu o Santuário. Para evitar que o

Distrito Federal entrasse na área de qualquer maneira, que foi o que a Polícia

Civil fez. E disso saiu uma liminar que impediu que a Terracap fizesse qualquer

coisa lá área e depois uma decisão já da Dra. Clara determinando suspensão de

qualquer medida lá na área esse processo cautelar foi julgado procedente para

garantir duas áreas sobrepostas, e são menos de 40 hectares, uma área menor,

uma fração da área inicial de 50, mas que incorpora áreas que tinham ficado de

fora por conta desse erro de marcação de área. Diminuiu a área em cima do

bairro, e aumenta na ARIE Cruls. Essa foi a última sentença válida que se teve

nesses processos todos.

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No referido laudo antropológico de Eremites de Oliveira, Pereira e Barreto (2011),

depoimentos também foram colhidos mostrando a presença dos índios na área.

Ficamos sabendo da história da aquisição de direito de posse de uma antiga

agregada moradora da Fazenda Bananal. Na ocasião apresentaram um termo de

transmissão de posse, que se referia a uma área total de 41.189 m², apesar de

utilizarem área superior à informada no documento que gostariam de registrá-lo

em cartório, fato ocorrido posteriormente (MAGALHÃES, 2009, p. 20).

Não somente no citado laudo antropológico como também em conversas e entrevistas

com o próprio Pajé Santxiê, não foram apenas os Fulni-ô que estabeleceram moradia

inicialmente na área de cerrado na Asa Norte de Brasília que viria a ser conhecida como

Comunidade Indígena Bananal ou Santuário dos Pajés. Índios Tuxá foram expulsos de suas

terras pela construção da barragem e do lago necessários para a instalação da Usina Hidrelétrica

de Itaparica53

, que depois foi renomeada de Luiz Gonzaga. Isso ocorreu por volta de 1976/1977.

Além dos índios Fulni-ô e dos Tuxá, outros grupos ficaram por um período na região da

futura capital. Posteriormente, alguns deixaram o local, mas outros grupos acabaram por se

estabelecer na área, entre os quais a comunidade que lá se encontra hoje em dia. A área foi se

tornando um local de base e apoio aos índios que vinham para ficar ou estavam em trânsito pela

cidade, e encontravam na pessoa de Santxiê um apoio nesse sentido.

No final da década de 1970, Santxiê, após passar um período no Xingu, onde estava

trabalhando no apoio às comunidades indígenas locais, retorna à área do Santuário, onde

estabelece residência definitiva, começando a trabalhar na comercialização de ervas e plantas e

na venda de artesanato na Funai. Em 1979, consegue um emprego na Funai por meio de um

antigo funcionário, Osvaldo Cavu, e, segundo relata, foi retirado da instituição algumas vezes até

finalmente ser integrado em definitivo após as determinações da Constituição Federal de 198854

.

Silva ainda acrescenta outros elementos sobre a chegada, presença e alguns aspectos sobre a vida

dos índios que chegaram à região para trabalhar na construção da cidade de Brasília. Conforme

esse relato, a existência de indígenas e a prática de seus rituais não parecia ser uma novidade

para os que conviviam com eles de alguma maneira.

O arquiteto Carlos Magalhães, genro de Lúcio Costa, e um dos responsáveis

pelo Brasília Revisitada, documento em que aparece pela primeira vez o nome

53

Para o processo de construção da Usina Hidrelétrica de Itaparica e a situação dos índios Rodelas, ou Tuxá,

conferir Sampaio Silva, Orlando (1997). Tuxá: Índios do Nordeste. São Paulo, Annablume; Salomão, Ricardo D. B.

(2009). O impacto da Barragem de Itaparica entre os Tuxá:“enfraquecimento da força” e estratégias de resistência.

Trabalho apresentado na RAM – Reunião de Antropologia do Mercosul. 54

Ver conteúdo da Lei nº. 8.112, de 11/12/1990, Lei do Servidor Público Federal.

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do Noroeste, conheceu durante a construção de Brasília um trabalhador da Vila

Planalto apelidado de índio Juscelino. Tratava-se do indígena Fulni-ô Antônio

Inácio Severo, chamado também de cacique Zumba. Carlos Magalhães o

descreveu como um homem calado e trabalhador. [...] Os primeiros indígenas

Fulni-ô que chagaram em Brasília foram atendidos em nenhum desses direitos

[...]. Carlos Magalhães atestou que escutou dos trabalhadores dos canteiros de

obra da construção de Brasília, a informação que o índio Juscelino, e os outros

Fulni-ô se ausentavam por algumas horas para realizar seus rituais numa área de

cerrado desconhecida. Nessas andanças pelas matas, os indígenas conheceram o

policial florestal Clarindo, dono de algumas vacas e reses de terras numa faixa

de cerrado na Asa Norte. Ele ofereceu posteriormente aos indígenas uma certa

quantia de dinheiro para cuidar de seus animais. O senhor Clarindo assumiu um

dos postos de vigilância do Parque Nacional de Brasília após o golpe militar de

64. Nessa área de cerrado preservada, havia bananais da antiga fazenda ali

existente, que serviam além de alimento, também como complemento a baixa

remuneração que recebiam. Assim sendo, os indígenas vendiam os cachos na

BR- 020, ao lado do Parque Nacional de Brasília, e aos sábados e domingos,

comercializavam artesanatos. O dinheiro arrecadado era convertido na compra

de alimentos, arroz, rapadura e farinha especialmente. A Funai, criada no lugar

do antigo SPI [...] se instalou na nova capital no final da década de 60, firmando

um convênio médico com a Casa do Ceará. Esse fator, estimulou a instalação

dos indígenas em definitivo numa área de cerrado na Asa Norte, localizada no

Plano Piloto” (SILVA, 2011:42-43).

A seguir, a partir da documentação existente, de textos acadêmicos e técnicos, vamos

traçar um quadro dos procedimentos e encaminhamentos que estão relacionados com o Santuário

dos Pajés.

Quadro 3.1 – Procedimentos e encaminhamentos que estão relacionados com o Santuário dos Pajés

Processo/ Procedimento Órgão/Responsável

nº 1.607/1996 Funai

Oficio 336/DAF/06 transformado em processo

111.000.628/1997

MPF

Relatório CIOSP 008/2002 NPO 15.10.2002

Instrução Executiva Nº 09/DAF de 27.01.2003

Nota Técnica 185-P/2003 6ª Câmara de Coordenação e Revisão de Índios e

Minorias/Procuradoria Geral da

República (PGR) do Ministério Público Federal

(MPF)

Parecer Nº 143/CGID/2003 Coordenação Geral de Identificação DAF/Funai,

Andréia Luiza L. B. Magalhães

EIA/RIMA de 2004 Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano

e Habitação (SEDUH)

Licença Prévia (LP) nº 20/2006

Ibama

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Parecer Histórico e Antropológico sobre os Indígenas

da Reserva Bananal 2008. Sem Número.

Funai, Rodrigo Thurler Nacif

Ação nº 2008.34.00.019842-7 Comunidade Indígena Tapuya Fulni-ô contra

Terracap e o Distrito Federal

Medida Cautelar Inominada nº 2008.34.00.0016670 -

2ª Vara Federal

Vicente Correia Lima Neto – Subsecretaria de

Planejamento Urbano da

Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano

e Habitação

Ação Civil Pública nº 1.16.000.000301/2008-83 Procuradoria da República no Distrito Federal do

MPF

Recomendações GAB-LLO nº 4/2009 e GAB-LLO

nº 5/2009, de 16 de março de 2009

Procuradoria da República no Distrito Federal do

MPF

Parecer Técnico nº 34/CGID/DAF, de 15 de maio de

2009

Funai

Constituição de Grupo Técnico de identificação e

demarcação – Portaria/PRES/Funai n° 73, de

27/1/2010

Funai

Nº 2011.01.1.227120-4 Emplavi – Processo de reparação de danos contra

os apoiadores do Santuário dos Pajés

Sentença 301/2012-B Referência a Ação nº 2008.34.00.019842-7

Laudo Pericial Antropológico nº 52/2012 Referência ao Inquérito Policial Nº 1398/2011 -

SR/DPF/DF – Departamento da Polícia

Federal/DF]

Fonte: Thaís Brayner.

Ao longo do processo, a situação entre os moradores indígenas e as empresas

empreiteiras, Terracap e até mesmo a polícia se tornou cada vez mais tensa. Os índios

reivindicam cerca de 50 hectares de terra no local; entretanto, a Emplavi, uma das empresas que

compraram lotes vendidos pela Terracap com a primeira licitação ocorrida em 29 de janeiro de

2009, ignorando a presença dos índios e o processo que havia sido iniciado, começa a construir

as bases e a infraestrutura do futuro bairro Noroeste na área reivindicada pelos índios. O então

presidente da Terracap declarou à época da licitação:

Se os índios insistirem em permanecer no Noroeste e entrarem com novo

recurso, vamos encerrar as negociações a ingressar imediatamente com uma

ação de reintegração de posse da área. Aí os índios terão que voltar para a terra

deles sem direito a nada, porque nós não vamos dar terras e eles não vão ver um

centavo do dinheiro público55

.

55

Ver toda reportagem disponível em:<http://www.terracap.df.gov.br/internet/index.php?sccid=35&ctuid=333>

Acesso em: 20 set. 2011.

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3.4 OS FULNI-Ô, TUXÁ, KARIRI-XOCÓ E OS GUAJAJARA

O episódio narrado anteriormente aumentou a tensão na área, já que os índios juntamente

com uma rede de apoiadores56

resistiram o quanto conseguiram, com a intenção de impedir o

avanço das obras. Em meio a essa tensão, em 30 de março de 2009, ocorre um incêndio na casa

de Towê, irmão de Santxiê, fato que deixa todos os moradores e apoiadores alarmados com a

possibilidade de que o incêndio tivesse sido criminoso, tendo como intuito o amedrontamento

dos índios e de suas famílias. Tanto a Terracap como o grupo de empreiteiros responsáveis pela

construção dos bairros buscaram retirar os índios do local, oferecendo a eles 12 hectares na Arie

Cruls, área que, segundo eles, seria apenas 200 metros distante de onde os índios vivem agora,

ignorando assim o aspecto sagrado e religioso para os índios, oferta essa que não foi aceita pelos

índios.

Santxiê e sua família foram os primeiros a chegar à área e utilizá-la como ainda é usada

até hoje, tanto como moradia, quanto como um santuário em que se praticam os rituais religiosos

de sua comunidade. A complexidade do quadro é maior devido à presença de outros grupos na

área do Santuário. Eles estão distantes apenas alguns metros uns dos outros e são compostos por

índios Tuxá e Kariri-Xocó. Ainda há outro grupo que chegou ao local muito posteriormente,

composto basicamente por índios Guajajara. Estes passaram meses acampados na Esplanada dos

Ministérios e, quando saíram do local, segundo Santxiê afirma, se dirigiram a área perto da Água

Mineral e depois se estabeleceram na área do Santuário:

[...] eles estavam na Esplanada, quando foram expulsos invadiram o Santuário,

eles querem dinheiro para sair de lá, eles partem a parte mitológica, "casa de

morto, é a parte mais nobre do santuário, eles derrubaram, estão acabando com

tudo, mas eles estão com processo para sair da área também como os Kariri

(-Xocó), que fizeram acordo de 70 milhões e como não deu certo, agora tem a

proposta dos 12 hectares numa área dentro do santuário. (Entrevistado Santxiê

em 2012.)

Os Kariri- Xocó liderados por Ivanice Pires Tononé, a princípio, mantinham a postura de

não querer sair do local, mas houve uma cisão entre eles, quando antes havia aliança entre as

famílias. Eremites de Oliveira et al. (2011) em seu laudo descreve as relações e as alianças entre

eles.

56

Rede de apoiadores composta por população da área, estudantes, profissionais liberais, professores, pessoas de

outros movimentos sociais, índios de outras localidades, defensores da área do cerrado ameaçada pela construção do

bairro.

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Em fins da década de 1980, por exemplo, Pedro Francisco Ribeiro, indígena da

etnia Fulni-Ô de Águas Belas, estabeleceu-se por algum tempo na casa de

Santxiê, seu primo, onde conheceu Ednalva Conceição Cavalcante. Do

relacionamento que tiveram nasceu Tainã Cavalcante Ribeiro, em 18/06/1990.

Hoje em dia ele é um homem adulto com 20 anos que trabalha com produção e

venda de artesanato, e também é morador em Águas Belas, onde anualmente

participa da cerimônia do Ouricuri. Este caso é interessante para se notar uma

conjugalidade interétnica que implica em uma aliança entre os Tuxá e os Fulni-

Ô em Brasília. Por conta disso, Tainã reconhece Santxiê como seu tio paterno e

a ele presta o devido respeito pelo laço de parentesco. Além disso, Edilene

Conceição Cavalcante casou-se com José Francisco Queiroz, mais conhecido

como Chiquinho, cerca de 43 anos, da etnia Kariri Xocó, originário do estado de

Alagoas, região do baixo São Francisco, município de Porto Real do Colégio,

quem também veio para Brasília e chegou a ficar hospedado na casa de Santxiê,

onde a conheceu. Atualmente ele desenvolve várias atividades em Brasília:

produção e venda de artesanato, apresentações culturais, trabalho em construção

civil etc., o que lhe garante a vida no meio urbano. Juntos tiveram cinco filhos,

sendo dois do gênero feminino e três do gênero masculino: Janaína Conceição

Queiroz, 15 anos, e Yassuinaria Conceição Queiroz, 7 anos; e Yassuinã

Cavalcante Queiroz, 9 anos, Yassuri Suyra Cavalcante Queiroz, com uns 11

anos, e Danilo Douglas Cavalcante dos Santos, 14 anos. Danilo, por exemplo,

nasceu e mora no Santuário dos Pajés, é estudante e trabalha com seus pais em

apresentações culturais que fazem em Brasília. Nesses dois casos, notam-se

duas alianças interétnicas estabelecidas entre os indígenas estabelecidos na área

da antiga fazenda Bananal: uma entre os Tuxá e os Fulni-Ô e outra entre os

Tuxá e os Kariri Xocó. Interessante nota que quando foi inquirido se possui

sentimento de pertencimento a Brasília, Santxiê assim respondeu no dia

26/06/2010: “Claro, derramamos nosso suor, nosso sangue aqui, né!?” Seus

próprios filhos tiveram o umbigo enterrado no Santuário dos Pajés, o que

simbolicamente representa uma vinculação perpétua com aquele território”

(OLIVEIRA et al., 2011, p.26 – grifo do original).

A situação interna do grupo foi mudando com o início da construção do bairro. O grupo

de Fulni-ô liderado por Santxiê não teve relações sistemáticas e duradouras com os Guajajara

que vieram a ocupar uma parcela da terra. A relação com os demais moradores Tuxá e Kariri-

Xocó (em que existia, como descrito anteriormente, relações de parentesco entre eles) foi

abalada, assim como a cooperação que existia. Em entrevista, Santxiê afirma que esses índios

que aceitaram um acordo com a Emplavi para sair do local vão receber dinheiro em troca. Para o

pajé, esse acordo é inadmissível, pois negociaria algo que não tem preço, que é a terra

considerada sagrada. Eles teriam se deixado convencer pelos advogados que os representavam

pela possibilidade de ganhar terra e dinheiro e deixaram de lado as premissas pelas quais Santxiê

e os outros lutavam pela terra.

[...] meu clã é o clã que doutrina, eu já vim com essa missão da doutrinação, de

continuar isso, esse é o meu papel, e estou preparando Juninho, aliás,

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preparando os dois57

para continuar o papel. Um índio tem que ser reconhecido

pelo seu povo, os Fulni-ô de Águas Belas são meus parentes, um índio deve ser

reconhecido por sua comunidade, não adianta você dizer que é cacique, que é

isso ou aquilo, como no caso da Kariri [referindo-se a Ivanice] lá que não é

reconhecida pela patente que ela diz que tem, nem como indígena pelo povo

dela, e ela perde o referencial, ela não está ligada à terra, à causa da terra do

Santuário, ela está ligada a uma questão financeira, dinheiro, os 74 milhões que

ela quer [...] (Entrevistado Santxi, em 2012).

Esse acordo foi largamente usado pela mídia para deslegitimizar a demanda dos índios,

colocando a todos como oportunistas que buscavam dinheiro, sem ao menos ser ponderado ou

investigado o que ocorria entre os indígenas. Vários veículos da imprensa como o Correio

Braziliense, o Jornal da Comunidade, vários sites e blogs de notícias, de colunas e opiniões

fizeram uma larga campanha no sentido de criminalizar e até mesmo ridicularizar a presença

indígena em Brasília, e na área do futuro bairro verde. O que ocorre é que os Kariri-Xocó e Tuxá

assim como os demais foram assediados de diversas maneiras para saírem do local e aceitarem

acordos. E o que foi veiculado a respeito do acordo em questão foi a proposta que supostamente

foi feita por seus representantes ainda em 2008, como podemos ver nas diferentes reportagens a

seguir:

Os índios aceitam sair pacificamente desde que recebam uma indenização

individual de R$ 10.685.774,29 (dez milhões, seiscentos e oitenta e cinco mil,

setecentos e setenta e quatro reais, e vinte e nove centavos), ou seja, por família,

totalizando a importância de R$ 74.8000.000,00 (setenta e quatro milhões e

oitocentos mil reais).58

Em reportagem, a Revista Época trouxe opiniões de Santxiê e de Ivanice:

Um dos líderes da tribo é o cacique Santxiê Tapuya, que se divide entre o

emprego de funcionário público na Funai – onde mantém uma banca de venda

de raízes e ervas medicinais – e o ativismo pela causa da terra. Santxiê, um

senhor de meia-idade, de andar ligeiro e fama de ranheta, saiu ainda jovem da

aldeia fulniô onde nasceu, em Pernambuco, e fixou morada na capital. Foi o

primeiro ocupante da área em litígio. No meio do Cerrado, ergueu uma oca que

batizou de “santuário de pajés”. Era o líder máximo da suposta aldeia. Até que,

no meio das negociações sobre o que fazer, rompeu com o resto da tribo. Ele

não aceita ser incluído no grupo de sete famílias que pedem a indenização

milionária. Diz que seu “santuário sagrado” não se move – e ele também não. À

exceção de Santxiê e de uns poucos índios que seguem sua orientação, o

restante da tribo brasiliense topa negociar. A cariri-xocó Ivanice Tanoné, de 54

anos, é a líder dessa maioria. Desembaraçada e bem-falante, ela encabeça o

documento que pede os R$ 74,8 milhões em troca da terra. “Se o Santxiê não

quer brigar pela indenização, que fique sozinho. Eu e meu povo é que não

57

Na passagem, Santxiê refere-se a seus dois filhos: Fetxawewe Tapuya Fulni-ô e Santxiê Tapuya Fulni-ô. 58

Cf. blog do corretor de imóveis Jefferson Pita, que apenas retrata algumas das variáveis das disputas e processo e

construção do Setor Noroeste. Disponível em: <http://jalpitaimobiliario.blogspot.com.br/>. Acesso em: 5 mar. 2012.

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79

vamos perder”, diz Ivanice. Ela tem a assessoria de um advogado branco e age com estratégia."

(grifos do original)

59

Em 2011, os Tuxá e Kariri-Xocó fecham acordo com a Terracap, que diz se

comprometer em doar 12 hectares. Ivanice Tononé afirmou aos jornais: “Os estudantes fazem

essa baderna em nome dos povos indígenas, e eu não concordo com isso”60

. No entanto, até fins

de 2012, esse grupo ainda permanecia no local, enquanto avançavam as construções do bairro.

Em 2012, houve ações que pararam as obras, depois retomadas, e mesmo quando eram

impedidos de construir, isso não impediu as empreiteiras de avançar em direção à terra que ainda

está sob estudo. Em agosto de 2012, houve um novo incêndio no Santuário, na casa de Olavo

Wapixana e Aldenora, novamente com suspeitas de ser criminoso, o que ainda não foi

comprovado. A tensão no local é constante, as crianças andavam livremente pela área, contudo,

depois que alguns trabalhadores da construção do bairro seguiram as crianças, elas acabaram

limitando seu trânsito sem adultos. Os apoiadores sempre se fazem presentes na área, seja no

suporte em suas tarefas cotidianas, reuniões, festividades, seja também na resistência e no

confronto direto com polícia ou mesmo com empregados das empresas construtoras.

Dessa forma, mesmo com a demora da Funai em tomar alguma posição sobre a

presença dos indígenas na região, a batalha na justiça travada entre empresas, Terracap e índios,

ainda permanecem. Os índios ainda estão no local, e o bairro continua sendo construído. Esse

processo continua ocorrendo apesar do que foi veiculado pela mídia, uma clara tentativa de

convencer leitores e opinião pública sobre as “intenções”61

dos índios, sobre suas identidades e a

59

Reportagem completa disponível em: <http://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,EMI10970-15565,00-

A+TRIBO+QUER+DINHEIRO.html> Acesso em: 5 mar. 2013. Grifos do original. 60

Reportagem completa disponível em: <http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2011/10/oito-familias-que-

ocupam-noroeste-aceitam-acordo-para-deixar-area.html> Acesso em: 5 de mar. 2012. 61

Segundo Schvarsberg (2009), além de denominar os índios como invasores, o Correio Braziliense trabalhou

repetidamente com outra informação: a de que os índios pediam uma indenização, por meio do advogado do grupo,

para sair do local. Primeiro a informação dava conta do valor de R$ 3 milhões. Em seguida passou para R$ 74

milhões. O tema não chegou a ser noticiado como assunto principal em nenhuma das 38 notícias. A questão

principal são os equívocos da informação, como o fato de que o advogado apresentado, George Peixoto, nunca ter

representado a comunidade indígena. Ele representa apenas a índia da etnia Cariri-Xocó, Ivanice Tanoné. Essas

informações apareceram 12 vezes, tendo se intensificado a partir do mês de julho de 2008. A primeira matéria “Uma

nova área para os índios”, do dia 8 de abril de 2008. A questão veio ao fim da matéria: “Na última quarta-feira, o

advogado do grupo, que também é índio, fez uma proposta para a Terracap. Alegou que a permanência das famílias

no local é compatível com a proposta do Noroeste. Mas pediu uma indenização de R$ 3 milhões em espécie, caso o

entendimento da estatal fosse diferente.”. Após esta notícia, as que se seguiram já vinham com o novo valor, de

R$ 74 milhões de reais. A informação se repetiu até a última notícia estudada, em 27 de março de 2009: “Mantidas

licenças do Noroeste”. A matéria fala da rejeição do GDF e do Ibama em acatarem a recomendação do Ministério

Púbico Federal, que pediu que as obras fossem paradas para garantir os direitos da comunidade indígena que vive na

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legitimidade em geral da demanda, tentando com isso construir uma imagem negativa dos

grupos indígenas perante a população local.

Houve uma denúncia dos moradores da comunidade Tapuya Fulni-ô contra os

Guajajara em 2012, no que se refere a crime ambiental que teria sido cometido pelos últimos, o

que resultou em um "Laudo Pericial Antropológico" da antropóloga Elaine Teixeira Amorim, da

6ª Câmara de Coordenação e Revisão Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do

Ministério Público Federal. Um dos teores do laudo é estabelecer as diferenças de usos, sentidos

e ocupação da terra pelos índios dos três grupos principais.

3.4.1 Formas de ocupação da Terra

Guajajara:

Conforme as conclusões do estudo de Elaine Teixeira Amorim (2012) da 6ª Câmara

(CCR), os Guajajara desenvolvem atividades antrópicas, benfeitorias, que são reconhecidas por

eles, desde suas terras no Maranhão, como necessárias à sua vida no local. Vivem em unidade

social coesa, a partir de uma família extensa e laços de matrimônio, parentesco e alianças

políticas. A estrutura social dos Guajajara é reconhecidamente segmentária, portanto, se separam

para permanecerem juntos, já que na aldeia de origem há limites para reprodução física dos

próprios índios, e as migrações são muito comuns entre eles. Chamam sua ocupação de

Acampamento Indígena Revolucionário (AIR), que, assim como a comunidade Tapuya Fulni-ô,

construiu uma rede de apoiadores, uma associação chamada CUIA – Central da União de Índios

e Aldeias.

É esse o modo como os Guajajara instalados no Santuário dos Pajés encaram

sua imigração para Brasília. Para eles, as novas formas de interação social e

econômica a que se viram obrigados nesse novo espaço urbano têm-se

apresentado como solução e não problema. [...] Os vínculos culturais e sociais

desse grupo com a terra natal não foram desgastados pela distância, razão pela

área. No último parágrafo, vem a informação, ainda mais exorbitante, de que os índios pediram 75 milhões de reais

para sair do local. O caso que mais exemplifica os equívocos e a falta de apuração do assunto por parte do Correio

Braziliense veio na matéria “Negociações perto do fim”, de 8 de agosto e 2008. Após afirmar que existe uma

evidente divisão entre as famílias indígenas da comunidade, o jornal, através da repórter Helena Mader, diz que

existe o interesse de algumas das famílias em deixar o local, “mas o restante da comunidade pede uma indenização

de até R$ 74 milhões para sair do local.”, diz a jornalista. O erro, neste caso, foi grande. Na verdade, os índios

dispostos a deixar o local são justamente os que pedem a indenização, e mesmo assim não são todos os interessados

nesse dinheiro. Os que se recusam a sair dizem não aceitar nenhum valor, pois consideram o local como um

santuário sagrado (SCHVARSBERG, 2009, p. 35).

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qual os indivíduos seguem sustentando as principais condições de manutenção

da identidade Guajajara. E isso se deve, fundamentalmente, à convivência

étnica mantida e atualizada por cada um dos grupos familiares que segue

frequentando suas aldeias de origem, onde mantêm seus locais de moradia e

residência. Além disso, recebem seus parentes, num fluxo contínuo de

deslocamentos de idas e vindas entre a aldeia de Brasília e as aldeias do

Maranhão, com uma dinâmica demográfica marcada por grande mobilidade.

Nota-se que há um esforço conjunto de toda a parentela, aqui e no Maranhão,

para que esse espaço extremamente estratégico e recém-conquistado no coração

da Capital do Brasil seja consolidado, no interesse de todos. Nesse sentido, a

aldeia brasiliense tem funcionado como uma atualização dos antigos locais de

caça, para onde as famílias se deslocam de forma sazonal, segundo suas

necessidades econômicas, políticas ou sociais. (AMORIM, 2012, p. 12-13).

As terras para eles servem como moradia, e por estarem a pouco tempo na cidade não

conseguiram, como os Fulni-ô, construir um relação simbólica com o local.

O foco de sua ocupação é, portanto, a subsistência e a moradia. Por isso, ainda

que a imigração não tenha descaracterizado étnica e socialmente o grupo

Guajajara, tampouco é possível dizer que sua presença no local tenha deixado

marcas culturais na paisagem. A amplitude e a ecologia do terreno ainda não

adquiriram um significado social e simbólico a partir da ocupação Guajajara; o

que significa dizer que o espaço todavia não fora culturalizado por eles.

Contudo, pode vir a ser. Os territórios indígenas são construídos e constituídos

ao longo de processos históricos. É a ocupação da terra que a faz território. Em

outros termos, é a presença humana continuada que transforma um pedaço de

natureza em espaço cultural, tornando-o parte inerente da vida de um povo,

lugar onde se é e não apenas onde se vive. Além disso, sabemos que é

sociologicamente viável um grupo indígena estabelecer vínculos de

pertencimento cultural com outras áreas, mesmo quando ainda mantém vivos os

laços culturais com o território ancestral (AMORIM, 2012 p. 15-16).

Kariri- Xocó e Tuxá:

De acordo com o mesmo laudo citado anteriormente, a presença dos Tuxá é antiga e

consolidada por meio de alianças políticas e matrimônios. Os Tuxá acabaram trazendo os Kariri-

Xocó também construindo alianças e matrimônios. Assim, como os Guajajara estão inseridos no

mercado formal de empregos e a ideia é que as terras sirvam de moradia e meio de

sobrevivência, mesmo que neste caso Ivanice tenha aceitado negociar com empreiteiras e

governo uma saída do local e indenização, até meados de 2013 nada foi alterado nesse sentido, e

eles não saíram do local, não houve indenização paga e continuam não mantendo relações

sistemáticas com os demais grupos indígenas do Santuário.

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Tapuya Fulni-ô:

Anteriormente, já tratamos da chegada e do estabelecimento dos Fulni-ô no local onde

é chamado Santuário dos Pajés. Como os mais antigos e os que conseguiram desenvolver

vínculos mais duradouros e complexos com as terras, criaram um território que foi manejado

tanto ambientalmente quanto cultural e simbolicamente. No que diz respeito ao aspecto

ambiental, o laudo de Eremites de Oliveira et al. (2011) constata o manejo, a inserção de plantas

heteróclitas (especialmente da caatinga e outras que são usadas para rituais e para fins

medicinais, culturais, artesanais e alimentícios), e a conservação da vegetação do cerrado local.

Mesmo que não tenham logo estabelecido moradia no local, os Fulni-ô que chegaram

primeiro para o trabalho na construção da cidade frequentavam-no para realizarem seus rituais e

suas rezas, como Santxiê diz em entrevista, a saber que os antigos passaram por lá, plantaram,

pois, sabiam que quem vinha depois iria se utilizar quando por ali passassem, e até mesmo para

eles e seus filhos quando voltassem. Não somente plantas para se alimentar como também para

usar nos seus rituais. Dessa forma, os laudos caracterizam a presença dos Fulni-ô como uma

ocupação tradicional, com a mata culturalmente e simbolicamente modificada. Assim como era o

local onde estavam, em contato espiritual com os ancestrais, e onde poderiam praticar seus cultos

e rezas longe dos olhares dos brancos.

Por isso o lugar tornou-se familiar para os indígenas, destacadamente para os

Fulni-Ô, pois cada vez mais passou a se configurar como uma ilha de vegetação

humanizada cercada por vias asfaltadas, prédios etc., que marcam a urbanização

de Brasília. Ao chegar ali, um Fulni-Ô logo percebe a presença de muitas

espécies de plantas originárias da Caatinga e, por conseguinte, sabe que naquele

lugar também estão seus respectivos “donos”. Esta percepção, no entanto, passa

por códigos desconhecidos e não divulgados para os não-índios e até mesmo

para indígenas de outras etnias (OLIVEIRA et al., 2011, p. 21).

Foram encontradas árvores frutíferas, antigos pomares, sistema de agricultura itinerante típico

do nordeste (roças de feijão, milho e mandioca), além de produzirem mudas para fins de reflorestamento

de áreas e para fins medicinais.

3.4.2 Impasses

Como já tratamos, as ocupações são distintas e, portanto, provocaram impasses,

antagonismos, e, no caso da comunidade Tapuya, trouxe até prejuízos. O fato de as ocupações

serem de naturezas diversas fez com que, quando o grupo formado pelos Kariri-Xocó e Tuxá

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fossem assediados pelo poder local, acabassem aceitando um acordo para deixar o local e serem

indenizados. Esse fato acabou por ser usado pela imprensa e pelo poder local como motivo para

tentar deslegitimizar o pleito da comunidade Tapuya também, pois, todos foram colocados

dentro de um mesmo grupo.

Toda sorte de argumentos foram usados para reforçar a visão de que a ocupação da terra

não era tradicional, e, portanto, não era legal desde o início. Os grandes jornais davam como

certa a construção do bairro e com a posterior chegada do Guajajara, foi mais um elemento usado

contra a comunidade Tapuya. A tensão entre Fulni-ô e Guajajaras é mais exacerbada já que os

primeiros não corroboram com as propostas do AIR dos Guajajara que está baseada em lutas

classistas e não em cunho cultural62

. Ainda em termos políticos, a comunidade Tapuya Fulni-ô

conseguiu o respaldo de organizações indígenas muito importantes em todo país, como da

Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), por exemplo.

A assinatura de um acordo de extrusão por parte dos Tuxá e Kariri-Xocó

fragilizou sobremaneira a luta fundiária dos Fulni-ô. E se a construção de uma

aldeia Guajajara já seria em si um prejuízo, nesse contexto, revela-se não menos

que desastrosa. Confirma a tese da Funai e demais setores envolvidos da

sociedade brasiliense que não reconhecem a imprescindibilidade simbólica da

área, e veem no local mero lugar de moradia, abrigo de índios imigrantes que

podem ser remanejados sem danos socioculturais significativos. A presença

Guajajara representa, nesse sentido, um peso para os Fulni-ô que ultrapassa a

mera disputa por espaço e poder, um prejuízo político que pode inviabilizar a

própria regularização fundiária e a presença indígena no local. E a Terracap

realmente já se manifestou contra a “favelização” do local, utilizando-se da

presença Guajajara para fortalecer seu posicionamento pela desocupação da

área (AMORIM, 2012, p. 24).

Os impasses passam, portanto, pelos sentidos de ocupação da terra, pela legitimidade

de inserção, que a comunidade Tapuya Fulni-ô entende como sendo deles, devido à primazia da

chegada ao local pela construção cultural e simbólica que desenvolveram com a terra, e pela

resistência política que firmaram ao longo do tempo.

[...] visões distintas sobre a legitimidade da ocupação daquele trecho da Fazenda

Bananal. Por um lado, temos os vínculos simbólicos marcados pela sacralidade

do ambiente imputado ao local pelos Fulni-ô, desde a década de 1960; e, por

outro, os Guajajara que, assim como os Tuxá e Kariri-Xocó, entendem que a

ocupação do lugar se dá dentro de um contexto de moradia pluriétnica, com

capacidade para abrigar diversas etnias, embora residindo separadamente e

convivendo “cada um na sua”. Em função desse antagonismo, a situação de

62

Cf. anexos com fotos do índio Guajajara Araju Sapeti sendo retirado do STF.

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tensão entre os Guajajara e o Fulni-ô é constante e o ambiente desfavorável a

qualquer tipo de acordo amigável de convivência (AMORIM, 2012, p. 27-28).

Segundo os Fulni-ô, a presença dos Guajajara é nociva, pois não respeitaram a opinião

deles para entrarem na terra e não se baseiam nos mesmos preceitos, são vistos como invasores.

Os Guajajara entraram aqui, mas não entraram no nosso ambiente espiritual. E

isso cria e tem criado uma perturbação espiritual pra nós. Além disso, trazem os

seus problemas para o Santuário e nós não temos estrutura para suportar isso. Já

temos problemas demais. Não damos conta de gerir a chegada de mais esse

grupo que só tem gerado problema, expondo nossa integridade física e territorial

porque nem podemos mais usar aquele local ali onde eles estão pra não ter

confusão, não podemos mais andar sossegados nem sozinhos pela nossa área. E

eles ainda por cima autorizaram o trator da Emplavi a derrubar nossa copaíba

que fica lá do outro lado, e se não tivéssemos visto a tempo, teriam derrubado

essa nossa árvore histórica e sagrada. [...] Os Guajajara são indígenas e

merecem respeito no tratamento quando vêm a Brasília reivindicar seus direitos,

mas ficamos e estamos em clima de tensão com eles porque se instalaram no

nosso território sem o nosso consentimento, gerando conflito e quase

derramamento de sangue que evitamos porque somos de paz e já temos muitos

problemas. E eles são conscientes que estão em outro território indígena e sem o

consentimento da comunidade indígena do Santuário dos Pajés porque isso já

foi manifestado para eles várias vezes (AMORIM, 2012, p. 28).

Em entrevista, Santxiê fala sobre os Guajajara na área do Santuário dos Pajés:

A área dos Guajajara lá é demarcada na beira do rio, a motivação deles aqui é

política, eles estavam na Esplanada acampados, lembra? Acampados, a Polícia

Federal colocou eles para fora, eles invadiram lá na Água Indaiá, lá em cima,

aldeia da Serra, colocaram eles para fora, aí eles invadiram o Santuário. Eles

pegaram a parte mitológica, Ethy Dhoathy, que no idioma nosso é a Casa dos

Mortos, onde enterramos os mortos, a parte mais nobre, eles pegaram,

derrubaram, deixaram no chão. Com a motivação de ganhar dinheiro"

(Entrevistado em 2012).

Os Xavante fizeram uma proposta de construção do Centro Cultural Xavante nas terras

do Santuário, a proposta foi rejeitada, os Fulni-ô ficaram satisfeitos, pois eles não invadiram a

terra, consultaram e respeitaram a posição da comunidade. "Os Xavante respeitaram. Não

invadiram. Porque os Guajajara não quiseram nem saber da nossa opinião?" (AMORIM, 2012, p. 26).

A Funai, por sua vez, parece não ter compreendido as diferenças de demandas aí e não

cumpre nem as recomendações dos laudos antropológicos, nem do MP que indicava, assim como

os laudos, a necessidade de criação do GT, ajudando a aumentar mais conflitos e falta de clareza

nas decisões que dizem respeito à área em geral reivindicada pelos índios. Para Ariel Foina, em

entrevista concedida em 2013,

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A Funai tem esse entendimento que ali não seria terra tradicional, porque para

eles a ocupação teria que ser por um período histórico mais longo do que a

gente tem aqui. A gente discute isso, porque no nosso entender, que depois do

julgamento de Raposa Serra do Sol, o STF definiu um marco temporal para essa

tradicionalidade que é o 5 de outubro de 1988e tem 11 do Acórdão de Raposa

Serra do Sol. No caso o Santuário cumpre perfeitamente esse marco temporal e

há uma tradicionalidade anterior a 1988. Então essa exigência da Funai é

exacerbada, uma interpretação extensiva do que está na própria Constituição.

A Funai se manteve durante um bom tempo um tanto quanto omissa na questão,

porque ela nunca disse nem que sim nem que não. Por falta de uma definição

clara de uma saída, da área ocupada, do que etnograficamente relevante, ela

deixou a comunidade vulnerável a ação das empreiteiras que aconteceu em

2011, da ação da Polícia Militar, da Polícia Civil. A gente chegou a ter uma

ação da Polícia Militar com 800 policiais sem a Funai intervir, sem a Funai

fazer nada, uma operação absurdamente ilegal e foi tão ilegal que nós só

comunicamos, nem recorremos da decisão, que era ilegal, e mesmo assim eles

acharam que deviam cumprir a decisão mesmo sendo ilegal, mas durante o dia,

tanto que o TRF, a desembargadora e a juíza oficiaram durante o dia da

operação para mandar interromper durante o dia, porque era uma ação ilegal.

E foi interrompida. Era uma operação que ia praticamente excluir o Santuário

do local. Era uma operação que estava desenhada para confinar os indígenas

dentro de suas próprias casas praticamente, esbulhar a posse indígena não só

sobre o terreno onde estão as construtoras, mas também o terreno da 308 onde

ainda está preservado.

Entre o GDF e a Terracap, a situação também foi complicando ao longo do processo,

pois, no governo Arruda, a ideia era negar a existência dos índios, a princípio, depois de coloca-

los como invasores e posseiros. Mas de qualquer forma para eles seria ilegítima. Já a Terracap, a

questão foi sempre resolver por acordo financeiro.

[...] ou trocar área por terra ou por dinheiro, esse discurso nunca teve eco junto a

comunidade Fulni-ô Tapuya, mas outros que moravam por lá aceitaram isso e

deram muita vazão, e o GDF usou como se fosse tudo uma coisa só. Quando o

advogado de um grupo lá, que não tem nada a ver com o Santuário, pedia

dinheiro para sair de lá, o GDF falava que eram todos os índios que pediam

dinheiro para sair de lá. Quando os Fulni-ô Tapuya nunca sequer tomaram parte

em qualquer negociação que visasse negociação financeira ou em terra.

O interesse deles sempre foi o de reconhecimento do direito indígena por uma

questão religiosa. Porque se precisar morar em outro lugar, eles têm como se

manter, eles não querem que o governo dê casa para eles em troca de profanar

questões religiosas. então, nunca foi um problema de dinheiro e de casa e sim de

respeitar ou não se repeitar a religiosidade daquele local. Até porque os Fulni-ô

Tapuya zelam por um local que não é só deles, pertencem a outras etnias, eu

mesmo frequentando o Santuário mesmo antes dos conflitos se exacerbarem era

comum pajés de fora que estavam visitando Brasília, passarem lá para fazer

pajelança lá em decorrência de ocupações anteriores que pajés das mesmas

tribos tiveram . [...] E é isso, foram ocupações que foram se sucedendo. No

início o MP patinou um pouco até entender o que acontecia, até porque a

situação etnográfica do Santuário é sui generis. Então, entendeu o que era o

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Santuário e os outros grupos que estão reivindicando lá. Que são coisas

diferentes, quando se separou isso, e se verificou a diferença entre eles, o MP

passou a atuar em defesa ampla do direito do Santuário de pelo menos se

verificado quanto à sua ocupação tradicional. O MP fez várias recomendações

ao GDF, a Terracap, a Funai, pedindo para que fosse resolvido o problema e no

fim das contas decidiu colocar a Funai como réu, porque entendia que a Funai

tinha que tomar a providência principal de constituir o Grupo Técnico (GT).

(Ariel Foina em entrevista de 2013).

Os procedimentos a serem tomados pela Funai são resumidos por Jorge Eremites de

Oliveira em entrevista a mim concedida em 2013:

Os passos até agora dados pela Funai foram para trás e não para frente. Ao que

tudo indica, antes do Mércio Pereira Gomes chegar à presidência do órgão

indigenista oficial, houve a tentativa de regularizar a área e até um processo

administrativo tinha sido criado para tratar do assunto. Esse processo sumiu

misteriosamente de dentro da Funai e ouvi, de uma servidora a CGID, a

suspeição que isso provavelmente teria sido feito pelo próprio Santxiê, quem

também trabalha naquela agência. Ora, isso é absurdo e uma leviandade

incomensuráveis. Mas o fato é que nesse processo havia documentos que

demonstravam uma situação que depois passou a ser desmentida pela Funai: o

fato de ter havido ações para regularizar a área do Santuário dos Pajés. A prova

material disso são os marcos de concreto oficiais na área, delimitando-a. Na

verdade, o passo que deveria ter sido tomado pela Funai era a constituição de

um GT para identificação e delimitação da área. Isso não foi feito e o órgão até

agora conseguiu usar de vários expedientes administrativos e jurídicos para não

reconhecer o Santuário dos Pajés como terra indígena. Para melhor

compreender o papel da Funai nesses casos, sugiro a leitura de uma dissertação

de mestrado sobre os Krahô-Kanela, escrita por Victor Ferri Mauro,

antropólogo, historiador, ex-funcionário da Funai e atualmente professor da

UFMS. Esse trabalho é importante para saber um pouco da atuação do órgão

indigenista oficial no reconhecimento de direitos étnicos no país.

3.5 A RELIGIÃO E A TERRA SAGRADA

Os índios do Nordeste possuem características e tratamento muito diversos de outros

povos indígenas em relação ao Estado e ao imaginário nacional. Como já mencionamos

anteriormente na passagem sobre os índios Carnijó, o contato antigo, os esbulhos, as leis, são

usados constantemente para retirar os índios da Região Nordeste, especialmente, das terras e

promover o contato sistemático entre os grupos indígenas e não indígenas, fazendo com que não

fossem mais reconhecidos como índios. Somente no século XX (1940) ,com Marechal Rondon à

frente do SPI, as populações da região puderam começar a se organizar e o órgão indigenista

passar a agir em casos específicos na região.

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Nas décadas de 1970 e 1980, com a Funai já estabelecida, os índios se mobilizam

politicamente em reação às investidas do Estado brasileiro.

O SPI passa a aplicar "critérios de indianidade", com os quais o órgão estabeleceria quais

grupos ainda seriam índios e quais não. Os "critérios de indianidade" estabelecidos foram

baseados nas características diacríticas dos grupos, ou seja, no que os diferenciaria dos

"brancos". A língua era uma dessas características, contudo, apenas os Fulni-ô em todo o

Nordeste ainda falavam sua língua nativa, mas o critério que foi aplicado foi o conhecimento e

execução do Toré por parte dos índios.

O Toré, por mais que tenha variações ao longo de todo o Nordeste, serviu como modo

de os índios estabelecerem alianças e ensinarem uns aos outros o Toré para que fossem

reconhecidos pelo órgão indigenista. Edwin Reesink (2000) define Toré como "uma dança ou,

mais amplamente, um ritual que se encontra disseminado entre quase todos os povos indígenas

da região etnográfica nordeste (do norte da Bahia até o Ceará)" (p. 359). Segundo Grünewald

(2005), os Atikum do sertão pernambucano chamam o Toré de "'brincadeira', 'tradição’,

'religião', 'união', 'profissão'" (p. 13); "Festa ‘tradicional’ de caráter sagrado, na qual se dança em

círculos ao som de maracás e cantigas (toantes) e há intervalos para se louvar Jesus Cristo, santos

católicos, mestres de catimbó e ancestrais míticos" (2004a, p. 145).

Em termos estruturais, Reesink (2000) coloca em pé de igualdade Toré, Ouricuri e

Encantados63

, que servem tanto como sinais diacríticos de indianidade como também foram e

são elementos que foram ganhando ao longo do tempo (especialmente o Toré) funções centrais

na expressão da religiosidade dos grupos, como nas definições de fronteiras étnicas (Barth,

2000), no estabelecimento de uma alteridade, entre o nós e o eles. José Hernandez Diaz descreve

algumas passagens sobre o Ouricuri, ritual que não é de todo conhecido por quem não é Fulni-ô.

Todos os Fulni-ô têm como norma a proibição de falar do ritual. Os anciãos

asseguram que aqueles que infringiram esta norma tiveram morte estranha. Sem

dúvida esta é uma advertência para evitar a quebra do sigilo. Uma parte do que

acontece na aldeia do Ouricuri é de domínio público. Sabemos assim que

existem áreas onde as mulheres não podem entrar, embora elas tenham

conhecimento das atividades que se realizam nesses lugares. Durante a noite os

homens dormem separados das mulheres, estas nas casas e aqueles nos galpões.

Durante os meses do ritual está proibido manter relações sexuais dentro da

63

Para os Pankararu de Pernambuco, os Encantados são “espíritos de índios que não morreram, mas abandonaram

voluntariamente o mundo por “encantamento”, passando a compor o panteão virtualmente indeterminado de

espíritos protetores de cada grupo” (ARRUTI, 2004, p. 257).

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aldeia do Ouricuri. Embora não se pratique uma abstinência sexual absoluta,

respeita-se o lugar sagrado do ritual, mantendo este tipo de relações fora da

aldeia. Está proibido também tomar bebidas alcoólicas, escutar música, e

inclusive assobiar. Quando um Fulni-ô na cidade ou na aldeia do Posto Indígena

toma alguma bebida alcoólica, não pode ir à aldeia do Ouricuri. Por esse motivo

nesta época evitam tomar qualquer bebida embriagante. No dizer de alguns

anciãos no ritual rezam e oram pelo bem de todos, pois asseguram que sua

religião é bastante parecida com a religião católica. No ritual do Ouricuri, o Ia-

tê desempenha um papel fundamental, já que é a língua preferencialmente

falada durante as suas quatorze semanas de duração. É aí que se socializam os

membros mais jovens pelo ensino de um código simbólico diferente daquele

utilizado pela sociedade envolvente. [...] Antigamente a aldeia ritual se erigia

com casas de palma de ouricuri. Cada ano, ao aproximar-se a abertura do ritual,

os índios levantavam suas respectivas casas, a quais desmontavam ao fim do

mesmo. Atualmente as casas são permanentes, embora construídas com

materiais de qualidade inferior ao daquelas existentes na aldeia do Posto

Indígena. [...] O ritual se desenvolve principalmente na parte da noite. Durante o

dia, os índios podem ser vistos fazendo algum trabalho em seus terrenos, outro

vão visitar suas casas na aldeia do Posto Indígena ou chegam a ir até a cidade.

Porém, durante a noite, é muito difícil encontrar um índio, seja nesta aldeia, seja

na cidade, salvo casos excepcionais. [...] Estudantes não assistem às aulas

durante a 1ª semana do ritual, voltado à escola depois, mas sem deixar de viver

na aldeia do Ouricuri. [...] Todos os Fulni-ô que trabalham fora [...] durante a

primeira semana do ritual pedem licença para ausentarem-se do trabalho e

concentrarem-se na aldeia do Ouricuri. Os que vivem fora do aldeamento

assistem ao ritual, pelo menos, na primeira semana. [...] Parece muito difícil um

índio abandonar totalmente o ritual. Se está fora da região, é possível que falte

um ano, dois, ou mais, entretanto sempre acabam voltando, sejam quais forem

os meios (DIAZ, 1983, p. 78-82).

O que distingue a ocupação dos Fulni-ô das demais não é somente o tempo em que estão

vivendo nas terras que hoje são o Santuário dos Pajés, mas toda a relação simbólica que

construíram com o território, a ponto de estarem no mesmo local onde o bairro Setor Noroeste

está sendo construído. Mesmo com muitos interesses políticos e econômicos em jogo, ainda

conseguem resistir a todos os avanços até agora.

Retomamos uma das ideias iniciais do texto a respeito da questão religiosa, pois esse foi

um dos argumentos mais ouvidos por mim ao justificar a estada no Santuário. Para os índios,

especialmente para Santxiê, tanto os registros arqueológicos (o cemitério indígena que existia no

local, mas que alega ter sido destruído pelas máquinas quando do início das construções do

bairro), quanto culturais deixados por todos os índios que passaram pelo local foram o abrigo do

qual conseguiram dar continuidade às práticas religiosas de sua terra natal, assim como

estabelecer junto aos índios de passagem pela cidade um local sagrado e ecumênico.

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3.5.1 Uso das Plantas pelo pajé

Os Fulni-ô do Santuário, como já mencionamos no presente trabalho, manejaram e

culturalizaram a mata do Santuário ao trazerem espécies da Caatinga e também amazônicas, já

que Santxiê já morou na região e tem conhecimento sobre plantas daquela região, e que faziam

parte do sistema botânico reconhecido por eles em Águas Belas, permitindo a realização do

herbário que Santxiê desenvolveu ao longo do tempo. O projeto "Herbário fitoterápico dos

Pajés" ganhou em 2008 o prêmio Xicão Xucuru de Culturas Indígenas do MinC (Ministério da

Cultura). As mudas cultivadas nesse herbário são distribuídas aos índios de passagem por

Brasília. No laudo de Eremites de Oliveira et. al. (2011) foram constatados pela equipe de

pesquisa que

[...] há mais de meio século que eles praticam formas próprias de manejo

agroflorestal na área: plantio de sementes e mudas, recuperação de áreas

degradadas, transplante de espécies de um lugar para outro e proteção de certas

plantas e árvores que possuem valor prático e/ou simbólico. Cada uma dessas

espécies, inclusive algumas árvores de grande porte que ali foram plantadas há

décadas, são como que documentos para os indígenas, isto é, constituem em um

tipo de particular de registro de sua presença na área (OLIVEIRA, 2011, p. 22).

Imagem 3.3 – Herbatário Fitoterápico do Santuário dos Pajés

Fontes: Santuário dos Pajés64

.

Foto de Jacques Philippe Bucher.

64

Imagens dos cartazes disponíveis em: <http://h200137221188.ufg.br/pmwiki/santuariodospajes/index.

php?n=OSantuarioNaoSeMove.HerbRioFitoterPicoDosPajS>; e foto disponível em <http://radius.tachanka.

org/santuariodospajes/>. Acesso em: 15 mar. 2012.

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Foram identificadas pelos pesquisadores 136 espécies de plantas com mais

diversos usos e funções. Os usos que fazem das plantas e seus significados estão restritos,

não devem ser de conhecimento para os brancos, mantendo a mesma ideia de separar o

segredo da religião Fulni-ô como um todo que em que é baseado o Ouricuri. Assim, as

"práticas religiosas são complexas e têm a ver, também, com o manejo e o uso de plantas de

valor medicinal e mágico-religioso, cujo conhecimento relativo à religião tradicional é

vedado para os não-índios ou “brancos”, por eles chamados de hótxaotwá" (OLIVERA et al.

2011, p. 20).

[...] usos revelam que os indígenas ali estabelecidos fazem uso das espécies

vegetais principalmente para usos medicinais, sejam elas de origem nativa ou

exótica, cuja cultura encontra-se adaptada à diversidade de plantas exóticas

intensamente manejadas, introduzidas ou cultivadas em suas roças e quintais.

Para os indígenas, algumas plantas– geralmente as árvores mais antigas trazidas

pelos seus antepassados – têm valores associados à espiritualidade e à cura. Isso

faz com que algumas espécies não sejam identificadas ou apontadas pelos

interlocutores durante os trabalhos de campo, pois são referendadas como plantas

sagradas e que guardam segredos, os quais não podem ser revelados aos brancos,

haja vista que cada uma possui um 'dono' (OLIVERA et al., 2011, 36).

Além disso, Santxiê é funcionário da Funai e no térreo da instituição possui uma

pequena loja chamada Flora Medicinal onde tem amostra das plantas, mudas e remédios a

base de plantas que ele mesmo cultiva e produz no Santuário dos Pajés.

3.5.2 Os lugares

Para os Fulni-ô, seus ritos sagrados estão relacionados a mistério, interdição e discrição e,

portanto, foi na mata que encontraram refúgio para realizá-los em contato com a natureza e longe

do mundo do trabalho e do cotidiano com o mundo dos não índios. Mesmo vivendo inseridos no

mercado formal de trabalho, convivendo com os não índios, não se deixaram passar pelo

processo de desencantamento do mundo religioso, ao contrário, esse foi um dos elementos que

fizeram com que conseguissem reforçar uma identidade contrastante com a sociedade envolvente

e reelaborar novos processos identitários.

A figura de Sanxiê é central nesse sentido, pois ele, além de ter o respaldo da comunidade

dos Fulni-ô que permaneceram em Águas Belas, vem de uma família que faz parte do clã que é

responsável pela organização do Ouricuri (a saber, sua mãe Many Tapuya Fulni-ô, ou Maria

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Veríssimo). Ele deu continuidade às celebrações e aos ritos no Santuário dos Pajés, recriou e

reelaborou, juntamente com a comunidade, o sentido de sagrado no local. O pajé é uma figura

central entre as populações indígenas, é um tipo de especialista espiritual que está em contato

com vivos e espíritos, que sabe os segredos e interditos, que conhece o uso das plantas e

remédios nativos, que é conhecido e reconhecido pelo grupo como capaz curar. Nesse sentido, o

pajé possui o que Marcel Mauss (1974) explica ser o mana.

O “mana” não é simplesmente uma força, um ser; é também uma ação, uma

qualidade, um estado. [...] essa palavra subentende a uma massa de ideias que

designaríamos pelas expressões: poder do feiticeiro, qualidade mágica de uma

coisa, coisa mágica, ser mágico, posse do poder mágico, ser encantado, agir

magicamente; ela representa reunida em um único vocábulo cujo parentesco

entrevimos [...]. O “mana” é uma força, e especialmente a força dos seres

espirituais, isto é, das almas dos ancestrais e dos espíritos da natureza. É ele que

torna seres mágicos (p.138-139).

O território é mais especificamente uma territorialidade sagrada, como Eller (2007)

denomina de objetivação material religiosa e a apropriação simbólica por parte dos sujeitos dos

espaços sagrados (GIL FILHO, 1999). No caso do Santuário, mais que uma apropriação nós

vemos uma criação, uma relação dialética de ocupação material e simbólica do espaço, assim

como um processo de territorialização. Amorim (2012) nos indica que "a culturalização da

natureza feita pelos Fulni-ô deu-se, portanto, pelo uso ritualístico e religioso do local,

caracterizado pelas práticas e saberes do universo simbólico xamanista" (p. 18).

Segundo foi narrado a Magalhães (2009) e Eremites de Oliveira et al. (2011), a ligação

com a terra e sua conexão com o sagrado fora reforçada pelos nascimentos, mortes, casamentos

de parentes e ancestrais no local; o ato de "enterrar o umbigo" de um filho foi feito no local,

assim como foram feitos enterros dos ancestrais mortos e de seus pertences dispostos de acordo

com os clãs de origem de cada um. No mapa 3.4, etnorreligioso65

, é demonstrada a separação dos

lugares por suas funções religiosas. O Setso Fafdhoa (em verde no mapa 3.4) e o Ethy Dhoaty

(em azul claro no mesmo mapa) são considerados espíritos ancestrais, por isso denominação de

Santuário, local proeminentemente de reza.

65

Mapa contido no Laudo de Amorim (2012).

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Mapa 3.4 – Mapa Etnorreligioso do Santuário dos Pajés

Fonte: Amorim (2012).

Os Fulni-ô construíram sua casa de reza no local para celebrarem seus ritos. A casa de

reza possui alguns objetos dos ancestrais e parentes que conseguiram guardar do antigo cemitério

que havia na área do Santuário. A casa de reza ou Hehdjadwália Ehty, apesar de parte importante

da objetivação material religiosa do seu sistema religioso, e para os Fulni-ô o sagrado, como já

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dissemos, é secreta; ela é aberta durante as celebrações, encontros e reuniões que os índios e seus

apoiadores organizaram. Santxiê nos falou mais de uma vez da importância pedagógica que

esses encontros e reuniões tinham para que as pessoas reconhecessem, entendessem melhor e

respeitassem os povos indígenas e suas demandas. E não falava apenas do Santuário dos Pajés,

ele estava sempre pensando nas demais populações, numa perspectiva mais abrangente da

questão indígena no Brasil, a qual é muito bem informada.

Imagem 3.4 – Casa da Reza ou Hehdjadwália

Fonte: Acervo de Jacques Philippe Bucher.

3.5.3 Alguns eventos

O Pajé Santxiê sempre quis deixar claro, como mencionei anteriormente, a importância

pedagógica que o Santuário tem em sua visão. Para ele, o reconhecimento do Santuário como

Terra Indígena não se restringe ao reconhecimento dessa terra como indígena, significa o

reconhecimento dos direitos dos índios, respeito por sua presença e por sua história. Dessa

forma, o Santuário passou a organizar eventos que pudessem reunir não somente os índios como

também os apoiadores, como famílias e outros grupos interessados no evento em si e no do

Santuário e na causa indígena como um todo. Assim, o Santuário conseguiu aproximar muitas

pessoas de áreas muito distintas e com interesses diversos em torno de sua causa.

As imagens do Anexo K se referem ao "Dia da Cura", ocasião em que as pessoas foram

ao Santuário e passaram o dia participando de tratamentos e atividades envolvidas com o mundo

da medicina e com cuidados alternativos à saúde e ao bem-estar, promovidos pelo Santuário e

por seus apoiadores.

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Imagem 3.5 – Encontro inter-religioso

Fonte: Jacques Philippe Bucher.

Fotos no Anexo K mostram a I Jornada Tribal de Arqueologia e História Indígena do

Santuário dos Pajés em 2008, com intenção de intercâmbio de informações sobre a História

indígena. A ideia era que, segundo é informado no site do evento pela Associação Cultural de

Povos Indígenas, criada por eles, esses eventos fossem um

[...] modo mais formal e permanente, seja estudantes da Rede Pública de

Ensino, da rede particular, professores, pesquisadores, simpatizantes da cultura

indígena em geral para que acesse de modo adequado a história indígena e ajude

na ressignificação da presença indígena invisibilizada nos manuais escolares, na

visão do senso comum e que tende a reforçar os estereótipos e os preconceitos

contra o índio na sociedade, porque a modernidade não apagou a etnicidade,

muito menos a espiritualidade e a tradição ético-espiritual indígena e suas

práticas ancestrais de convívio harmônico com a natureza66

.

Esses foram alguns dos eventos promovidos pelos índios e pelos apoiadores, fora esses

eventos mais sistematizados, houve mutirões para ajudar na construção de casas e ocas, ainda

mais depois dos avanços das construções do Setor Noroeste, festas para crianças, discussões e

reuniões de ação e resistência dos índios, encontro ecumênicos com padres, pajés e xamãs de

outros povos indígenas, com políticos e autoridades que ao longo do tempo visitaram o

Santuário.

66

Ver informações disponíveis em: <http://jornadasantuariodospajes.blogspot.com.br/p/i-jornada-tribal-de-

arqueologia-2008.html> Acesso em: 5 mar. 2012.

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Durante vários anos, mais especificamente depois das primeiras movimentações em

direção à construção do Setor Noroeste com a votação do PDOT, os leilões das terras para

construção, os eventos de lançamento do projeto do bairro, o código florestal etc., os apoiadores

do Centro de Mídia Independente (CMI), dirigido por José Furtado, produziram, com recursos

próprios, um longa-metragem chamado Sagrada terra especulada – A luta contra o Setor

Noroeste, e participaram do 44º Festival de Cinema de Brasília, em 2011, ocasião em que

ganharam o Troféu Câmara Legislativa. E em 2012, para o Festival de Brasília do Cinema

Brasileiro, o CMI e o Coletivo Muruá, com vários apoiadores, produziram um curta-metragem

Ditadura da Especulação, também dirigido por José Furtado, e ganharam o prêmio do júri

popular como melhor curta-metragem documentário nesse festival.

Imagem 3.6 – Divulgação do filme Sagrada Terra Especulada

Fonte: Ciberguerrilha Midiática. Disponível em: <http://ciberguerrilhamidiatica2.blogspot.com.br/2011/10/unico

-filme-copyleft-do-festival.html>.

Os índios do Santuário conseguiram construir uma rede de apoio à sua causa muito ampla

e muito heterogênea, com estudantes da UnB, moradores das redondezas, ativistas e militantes

dos mais diversos movimentos sociais, como ambientalistas, feministas, pessoas que

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participaram dos movimentos Fora Arruda, Passe-Livre, apoiadores de mídias e veículos

independentes, pessoas envolvidas com partidos políticos, religiosos, alguns professores e

funcionários da UnB e outras instituições de ensino, movimentos indígenas, pessoas que não

tinham envolvimento com movimentos sociais e que estavam pela primeira vez se engajando em

alguma causa, enfim, conseguiram tecer essa rede que fez com que a luta pela manutenção do

Santuário fosse mais contundentemente ouvida. Por meio de vídeos extensamente divulgados em

canal do YouTube, por blogs, sites¸ Facebook, Orkut, Twitter, rádios, listas de e-mails,

trouxeram o debate de questões que ultrapassavam o próprio Santuário.

3.6 CONSTRUÇÃO DE UM ETHOS E DA VISÃO DE MUNDO

A partir da concepção de Weber (1994) sobre a teia de significados criados por ele

mesmo, sendo a própria cultura essa textura criada, Geertz (1989, p. 92), ao pensar sobre a

religião como sistema cultural, estabelece a diferença entre "ethos" e "visão de mundo", em que

o primeiro pode ser entendido como elementos valorativos, aspectos morais e estéticos, caráter,

qualidade de vida, enquanto o último é compreendido como aspectos cognitivos, conceitos de si

mesmo, da natureza, da sociedade suas ideias mais abrangentes sobre ordem.

Não caberia aqui tentar definir e entender completamente o ethos dos Fulni-ô de Águas

Belas ou do Santuário e toda sua visão de mundo. Aqui vamos buscar compreender elementos

desse ethos e da visão de mundo que fazem com que consigam recriar e reaviar suas crenças, dar

continuidade a ela e dar coesão ao grupo internamente, como também fazer com que essas

crenças, mesmo que não totalmente compartilhadas, se tornem inteligíveis para "os de fora" e

consigam, por meio dela, construir sua rede de apoio. Nesse sentido, a religião entendida pelo

autor por meios de seus aspectos culturais nos permitirá entender sua importância na construção

do ethos e da visão de mundo aqui tratados; a religião, portanto, "fundamenta as exigências mais

específicas da ação humana nos contextos mais gerais da existência humana” (GEERTZ, 1989,

p. 143).

Entendemos aqui que os aspectos do ethos e da visão de mundo que interessa para esta

pesquisa são os aspectos culturais de cunho religioso, que dão sentido à interação com o meio

ambiente, por meio do manejo feito pelos Fulni-ô no Santuário dos Pajés, pelas ações políticas

de resistência e enfrentamento com o poder local para serem ouvidos e permanecerem no local

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que consideram sagrado e, por fim, a capacidade mobilizadora da construção de uma rede muito

heterogênea em torno de sua visão de mundo.

Os Fulni-ô inseriram diversas plantas em sua área, humanizando o ambiente a seu redor,

tornando-o único na medida em que, ao introduzirem novos elementos, prosseguem

desenvolvendo seu sistema simbólico e material que alimenta o seu arcabouço cultural

(elementos valorativos e cognitivos). Produzem um remédio, uma muda, contam histórias e

tomam decisões sobre a vegetação que foi alterada e/ou conservada para servir à comunidade

como também aos antepassados.

Santxiê deixa claro como era ultrajante tratores simplesmente entrarem na mata,

derrubarem árvores antigas, destruírem o cemitério indígena que havia na área, entulhos

deixados da construção, do assoreamento do ribeirão Bananal, coisas que dizimaram o que fazia

parte do universo simbólico do grupo, assim como garantia o equilíbrio ambiental necessário

para continuidade da vida cotidiana e religiosa do grupo.

O que os motiva a ficar no Santuário está na ordem do simbólico, dessa forma, está de

acordo com o jargão criado por eles: "o Santuário não se move".

Se a gente quisesse só casa, um lugar pra morar, a gente voltava pra Águas

Belas onde estão nossos parentes. O que está em jogo aqui não é isso, essa área

é especial, tem valor especial para o nosso ritual, para as nossas rezas.

A gente não vai achar isso em nenhum outro lugar. Não é como uma casa que se

constrói em qualquer lugar. Como você vai transferir os espíritos dos nossos

ancestrais que só vieram pra cá depois de muita reza, de muita gente passando

por aqui e rezando, fazendo pajelança aqui? [...] Pode ver que na Funai não tem

nenhum processo, nenhum pedido reivindicando a regularização fundiária dessa

área em nome dos Tuxá ou dos Kariri -Xocó. Eles nunca entenderam o

Santuário. Tuxá e Kariri-Xocó não têm uma relação com o território, e nunca

tiveram. Pra eles é chácara, é só um lugar de morar. Por isso negociaram.

A perda deles é muito diferente da nossa - (Santxiê)" (AMORIM, 2012, p. 22 e 23).

Desde 1996, pelo menos formalmente, o grupo luta pelo reconhecimento da área como

Terra Indígena. Uma das razões alegadas por eles é a certeza da relevância da ocupação

tradicional baseada em valores religiosos que motivaram as idas à área onde é hoje o Santuário,

e, portanto, a construção de uma relação com o lugar.

A Funai, a polícia, muitas pessoas ligadas ao poder local e outras que desconhecem,

ignoram, desdenham das motivações dos índios de manterem-se na área não foram capazes de

entrar no diálogo que há décadas Santxiê e o Santuário buscam estabelecer para serem

reconhecidos. Desse modo, a despeito do que era dito por alguns grupos da sociedade

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brasiliense, os índios em um processo de territorialização, humanizaram o meio ambiente, deram

sentido a sua vida no local, casaram , morreram, tiveram filhos, construíram seu templo com a

ajuda dos apoiadores, objetivaram sua presença no local materializada nas ações no sentido de

manter o equilíbrio com o ambiente, como onde o sagrado pode ser e é possível.

O Santuário se tornou a sede da Confederação Nacional dos Pajés, foi criado o Ministério

do Índio, que está ligado ao Conselho Mundial dos Pajés, fazendo com que o Santuário, como

espaço sagrado, seja pluriétnico. Por isso, como já mencionado nesse trabalho, Santxiê não aceita

a concepção de que a comunidade seja pluriétnica, mas sim, os aspectos religiosos, devido à

constante troca e intercâmbio com lideranças religiosas indígenas e não indígenas.

No Santuário nunca deixamos adensar gente, encher de gente. Isso sempre foi a

regra. O Santuário não é pra isso. A ocupação aqui é de fluxo. Morar mesmo

muito pouca gente. Aqui vem é gente do Brasil inteiro fazendo pajelança. E até

de fora do Brasil. Isso sim. Agora, quantidade de gente, números, é justamente o

que destrói o princípio do Santuário. Inviabiliza o uso territorial tradicional do

Santuário (Santxiê) (AMORIM, 2012, 21-22).

De forma protagonista na relação com o poder local, os índios lançaram mão de vários

artifícios para tentarem ser ouvidos. Recorreram ao sistema judiciário por meio de ações que os

colocassem como sujeitos do processo e não vítimas apenas das ações do poder local,

compartilhando, por exemplo, uma visão de que a cidade de Brasília possa ser diferente, menos

excludente. Silva (2011) reflete sobre a relação entre os índios e a cidade de Brasília:

Seria possível, por exemplo, representar todos os povos indígenas e africanos,

cujo projeto modernista visou obliterar? Levando em conta que esses grupos

não são homogêneos entre si, apesar da herança comum da escravidão, friso que

haverá sempre a falta ou excesso de enfoque sobre um determinado costume,

povo, tradição, língua, pois, o conhecimento ou entendimento deles é limitado

pelo universo de experiência compartilhado pelo interlocutor desse processo,

que traduz o máximo possível os códigos que lhe são estranhos, acomodando-os

ao mundo em que está inserido, ampliando assim, seu horizonte reflexivo. Em

vez de abarcar um “mundo em que seja possível todos os mundos”, é melhor

abrir espaço a um mundo que não se sobreponha e anule a outros mundos.

(SILVA, 2011, s/p).

A visão religiosa dos Fulni-ô já foi tratada por Dantas S.N. (2007). O que o autor observa

é que, como fruto de contatos e reelaborações das mais diversas, esses índios são ecumênicos, se

reapropriaram não só do catolicismo e do simbolismo cristão de origem do mundo, mas também

dos Bahá’ís67

. Simbolicamente, os Fulni-ô se mostraram abertos desde sempre para o outro

67

"A Fé Bahá’í é uma religião universal independente que, dentre outras denominações religiosas, tem

preponderante influência na aldeia. (DANTAS S.N, 2007, p. 175)". Segundo seu site oficial, o Bahá'i é: uma religião

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reconstruindo e enriquecendo seus fundamentos religiosos, assim como, a comunidade Tapuya

Fulni-ô faz ao fazer questão da interlocução com outras formas de religiosidade indígena e não

indígena. Foi com o passar do tempo, não perdendo os laços com o Ouricuri em Águas Belas,

mas, criando e reforçando suas manifestações religiosas já próprias do Santuário dos Pajés.

O pajé Santxiê já está inclusive preparando seus filhos para ocupar seu lugar. Para os Fulni-ô,

tanto caciques quanto pajés são escolhidos por meio da hereditariedade. Isso pode ser visto nas

imagens dos encontros inter-religiosos do Santuário e na presença dos filhos de Santxiê sempre

que há algum Toré ou reza.

Na entrevista que o antropólogo Jorge Eremites de Oliveira me cedeu, ele aponta

algumas questões sobre as demandas indígenas em situação urbana no Brasil:

Morei por cerca de dezessete anos em Dourados, Mato Grosso do Sul, uma

cidade com a maior reserva indígena em contexto urbano do país. São mais de

13.500 indígenas vivendo na Terra Indígena Dourados, onde há duas aldeias:

Jaguapiru e Bororó. Ali foi o meu "laboratório" inicial, por assim dizer, embora

não tenha publicado trabalhos relevantes sobre o assunto na academia. Quando

se mora em Dourados ou em outra cidade onde a presença indígena é tão

marcante, estar-se-á em campo 24 horas por dia. Ademais, penso que se uma

pessoa é antropóloga, em tese ela o será no Brasil, na Rússia, no Quênia etc., ou

seja, estará apta para trabalhar com antropologia. Soma-se a esta ideia o fato de

um laudo antropológico não poder ser julgado por critérios meramente

acadêmicos, como já defendido por vários colegas que se debruçaram sobre o

tema. A relevância ou qualidade de um laudo está, justamente, na possibilidade

de ele ser usado para a garantia de direitos. Neste caso, em particular, tenho dito

que a Funai apenas usou o laudo como um subterfúgio para protelar o que

antropólogas da antiga CGID me disseram pessoalmente, durante uma reunião

na sede da agência indigenista oficial: que o Santuário dos Pajés não era terra

indígena, tampouco poderia ser para que não abrisse um precedente jurídico

para outros tantos casos semelhantes existentes no país. Mesmo assim, "o pulso

ainda pulsa", como diz a letra de uma música dos Titãs, e nem tudo está

perdido. É por isso que acredito no desfeche em que o Santuário dos Pajés seja

homologado como terra indígena. E como não conheço todos os casos de

comunidades indígenas vivendo em contextos urbanos, tenho dificuldades –

confesso – para destacar algo que seria o "mais característico em uma situação"

desse tipo. Uma coisa é falar de indígenas vivendo em cidades de Mato Grosso

do Sul, Pará e Amazonas, por exemplo; outra coisa é falar das que vivem em

Brasília, São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina etc. Cada caso é um

caso. Há lugares onde grande parte da população não índia nutre preconceito

extremado contra os povos indígenas, como é o caso de Dourados e Caarapó,

em Mato Grosso do Sul, onde há muitos conflitos pela posse da terra. Lá os

Guarani e Kaiowá muitas vezes são vistos como despossuídos da humanidade,

mundial, independente, com suas próprias leis e escrituras sagradas, surgida na antiga Pérsia, atual Irã, em 1844.

A Fé Bahá’í foi fundada por Bahá’u’lláh, título de Mirzá Husayn Ali (1817-1892) e não possui dogmas, rituais,

clero ou sacerdócio. Existe no Brasil desde 1921. Disponível em: < http://www.bahai.org.br/> Acesso em: 5 maio

2013.

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quer dizer, como não humanos. Mas há outros casos, porém, onde não há tantos

conflitos desse tipo, em que os indígenas são vistos com certa simpatia, como

tenho constatado em Pelotas e Rio Grande, no Rio Grande do Sul. No caso de

Brasília, a causa do Santuário do Pajés tem sensibilizado segmentos de

movimentos sociais, como o estudantil e o ambientalista, além de

parlamentares, intelectuais etc. Mas talvez a dificuldade maior dessas

comunidades esteja exatamente na existência de um processo de

territorialização precária, como diriam alguns geógrafos. Isso se dá diante da

ausência de ações do Estado e da sociedade nacional que possam garantir certos

direitos, como os territoriais, o acesso à educação formal e à saúde, apenas para

citar alguns exemplos. Basta um indígena se identificar como tal para ouvir

dizer que lugar de índio é na reserva ou na aldeia e sofrer discriminação, como a

perda do emprego e não matrícula de seus filhos em escolas públicas. Enfim, o

assunto é muito complexo.

Já sobre o impasse do reconhecimento do Santuário, sendo ele em área considerada

urbana, o advogado Ariel Foina nos indica mais alguns elementos na entrevista que me cedeu.

Se fosse a intenção da Funai fosse proteger ela poderia ter feito uma proteção

antes. Ali eu acho que, primeiro, teve um preconceito por parte de uns

funcionários mais antigos da Funai, que talvez por conviver com o Santxiê

achavam que eles talvez não pudessem estar reivindicando direito indígena, aí

eu acho que a questão na esfera do pessoal mesmo, que não permitiu que a

Funai instituição entendesse o problema, demorou muito para a Funai

instituição entendesse que ali era uma questão maior. Por conta de umas

intervenções de pontuais de algumas pessoas muito específicas que atuaram nos

processos e tinham problema de ordem pessoal com o Santxiê ou com outros

Fulni-ô que ocuparam lá. Por outro lado também teve uma questão política, a

Funai é um órgão que gere as demandas indígenas, 50% da população indígena

hoje é urbana então se a Funai abrir um precedente de que está amparando

direitos indígenas em área urbana ela vai talvez triplicar o volume de demandas

que ela tem. É uma questão da burocracia mesmo, a burocracia tende a trabalhar

menos. O Estado tende a ser mais inerte possível. [...]. Eu cheguei a fazer um

estudo de legislação do DF logo antes de Raposa Serra do Sol ser julgada para

ver como a lei interpretava a palavra 'tradição'. A Constituição fala de

tradicional, mas a terra Raposa Serra do Sol ninguém dizia o que era o

tradicional. E tradicional aqui no DF, pelas leis do Distrito Federal é a

ExpoTchê, é coisa de 15 anos de idade, não mais que 20. Então o Santuário é

legalmente tradicional, mesmo para as leis do Distrito Federal. Então, mesmo

que fosse o caso da Funai fazer uma interpretação diferente, um precedente

novo com relação ao Santuário, até o contexto jurídico em que a

tradicionalidade tem que ser interpretada ele é diferente. Porque qualquer coisa

em Brasília que vem com a criação de Brasília tem que ser tradicional em

Brasília, não tem nada mais tradicional que a existência do Distrito Federal. Não

há como exigir que algo aqui dentro desse contexto seja mais tradicional que a

própria vinda da capital para cá. Então, é por isso que acho que essa

interpretação da Funai está muito mais preocupada com precedente, com

volume de trabalho, com limites de recursos, porque a Funai tem limite de

recursos, ela não tem servidor, não tem recurso, não tem equipamento. Mas na

minha avaliação pessoal, a Funai foi omissa com o Santuário, ela poderia ter

protegido mais, em situações especialmente de crise, em incêndio na casa de um

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dos índios, em caso de conflitos físicos, conflito com particulares, a Funai podia

ter solicitado que a Polícia Federal se dirigisse ao local nem que fosse para

averiguação e a Funai nunca fez isso. Um dos motivos inclusive que

impulsionou o MP a colocar a Funai como réu foi o fato deles terem pedido que

a PF fosse ao local quando estava tendo a invasão da Polícia Civil, a PF

condicionou a ida ao local a uma posição da Funai e a Funai nunca deu uma

posição.

Segundo o censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), das

896 mil pessoas que se declararam como indígena, 36,2% vivem em centros urbanos atualmente.

Para Laura Arlene Saré Ximenes Ponte (2009, p. 263) ao se referir à situação dos índios na

cidade de Belém, pode-se definir índios citadinos como: "Os índios citadinos expressam o

fenômeno da migração de grupos familiares ou de indivíduos isolados, o que requer melhor

investigação sobre as formas de migração ocorridas que favoreceram a presença de indígenas nos

centros urbanos [...]". A autora menciona Gilvan Muller de Oliveira (2000), que define índio

citadino como "relativo àqueles que, embora não fixados de forma permanente nas cidades,

passam períodos mais ou menos longos na urbe em uma transumância estável –, há diferenças

em relação aos ‘índios urbanos’, que se fixam no espaço urbano” (PONTE, 2009, p. 263). Longe

de se ter uma definição precisa e estabelecida dentre essas diferenças, já que apesar de índios

vivendo em cidades não seja novo, os estudos sobre isso ainda não são muitos.

É muito comum ouvir a pergunta: "As aldeias urbanas são positivas ou

negativas?" Parece-me uma pergunta mal-formulada, pois a questão das

chamadas aldeias urbanas e índios citadinos abrange uma multiplicidade de

situações diferentes, com histórias diversas de contato interétnico com as

populações regionais, desde situações em que índios foram expulsos das suas

terras até outras situações em que índios optaram pela vida na cidade em

decorrência da falta de oportunidades de educação e atendimento adequado de

saúde nas suas aldeias. (BAINES, 2001, p.1)

Imagem 3.7 – Espelho do Censo Demográfico 2010 do IBGE sobre a situação indígena

Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010.

Roberto Cardoso de Oliveira (1976) já analisava as migrações dos indígenas para as

cidades, as implicações, as motivações e as consequências da migração dos indígenas para as

cidades, embora saibamos que a relação entre índios e cidades não seja nova; muitos foram

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sendo expulsos à medida que as cidades cresciam. As cidades crescem, mas muitas vezes os

grupos indígenas que nela vivem ou que dela dependem não estão incluídos nessas expansões

urbanas. Quando Cardoso de Oliveira (1968) analisa a situação de migração, urbanização vivida

pelos Terena, conclui que os Terena se adaptam e se integram à sociedade nacional segundo os

seus próprios valores, estrutura socioeconômica, os elos tribais (OLIVEIRA, 1968, p. 206). Por

mais que valorizassem vários elementos da vida citadina, os Terena, como um grupo minoritário,

buscam nas outras pessoas do seu grupo apoio frente aos não índios, e geralmente migram em

grupos familiais, mantêm fortes os laços com os membros das família, mantêm lotes na aldeia de

origem como forma de conservar os vínculos com o grupo que permaneceu com a terra. Eles

ainda participam de cerimoniais tanto nas aldeias como na cidade, como um modo de revitalizar

um tipo chamado de consciência tribal (OLIVEIRA, 1968, p. 226 e 227).

Traçando um paralelo com os Tapuya Fulni-ô, vemos que além da cidade não ser algo

para os Fulni-ô como já mencionamos, eles migraram de maneira parecida com os Terena. Por

meio de laços de parentescos vieram a Brasília, voltaram para Águas Belas, voltaram para

Brasília, mantêm sempre contato e muito vívidos os laços não só com os parentes em Águas

Belas como em outras cidades. Ensinam a língua, a importância dos ritos para os já nascidos no

Santuário para que, mesmo que criaem uma relação com a terra em que vivem hoje, ela esteja de

alguma forma ligada à memória de Águas Belas, de onde os primeiros vieram e para onde vão

sempre que podem para participar de festas e do Ouricuri. Uma das principais conclusões a que

chega o autor em meu ponto de vista é a de os índios citadinos não perdem sua identidade étnica,

"conservam-se índios – muitas vezes paradoxalmente – para poderem sobreviver" (OLIVEIRA,

1968, p. 228).

Para Raimundo Nonato Silva, pensando no caso de indígenas na cidade de Manaus

(SILVA, 2001, p.21) “alguns aspectos envolvendo as relações entre os índios nas comunidades,

sítios e aldeias, se reproduzem no espaço urbano, [...] indígenas mantém redes de relações sociais

articuladas e conduzidas pela condição étnica” (SILVA, 2001, p. 70). Desse modo, acredito que

Cristiane Lasmar faz um desafio importante para pensarmos os índios citadinos ou urbanos:

“formulando de maneira sintética, a questão que se colocaria para os índios seria a de como se

apropriar do conhecimento dos brancos sem precisar viver como branco, isto é, sem precisar

viver como se vive na cidade” (LASMAR, 2005, p. 257).

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CAPÍTULO 4 – ARTICULAÇÃO E ESTRATÉGIAS DE LUTA

“Numa época de mentiras universais,

dizer a verdade é um ato revolucionário.”

(George Orwell)

O Brasil possui, segundo alguns autores, uma época de "ouro" dos movimentos sociais

nos anos 70 e 80, época essa de grande movimentação e articulação entre grupos, especialmente

de origem sindical e trabalhista e das lutas no campo por terras. Nesse sentido, o país não só se

insere em um momento político de mudanças nos movimentos sociais, quanto fornece elementos

para repensa-los, a partir das reivindicações dos grupos das mais diversas origens, filiações

políticas e pleitos.

Importante aqui é conceituar o que são os movimentos sociais, os novos movimentos

sociais, como se insere o conceito de redes, e pensar aqui os movimentos de protagonismo

indígena dentro dos movimentos sociais. A extensa literatura sobre movimentos sociais nos

apresenta uma vasta sugestão de conceituação de acordo com diferentes orientações teóricas nas

quais se baseiam e sem que seja um tema fechado. Não há, portanto, um consenso. Segundo

Maria Glória Gohn:

A presença dos movimentos sociais é uma constante na história política do

país, mas ela é cheia de ciclos, com fluxos ascendentes e refluxos (alguns

estratégicos, de resistência ou rearticulação em face à nova conjuntura e às

novas forças sociopolíticas em ação). [...] A partir de 1990, os movimentos

sociais deram origem a outras formas de organizações populares, mais

institucionalizadas, como os fóruns nacionais de luta pela moradia popular.

[...] O Orçamento Participativo – OP, e vários outros programas criados no

interior das políticas públicas, surgiram como fruto daquela trajetória

(GOHN, 2004, s/p).

4.1 APOIADORES NÃO INDÍGENAS

A situação do Santuário dos Pajés em si é sui generis, como já mencionado, por agregar

uma demanda sobre demarcação de terra tradicional indígena na capital por um grupo

multiétnico e que observa a origem multiétnica e sagrada da terra. Para lutar, fazer visível a

demanda, para resistir aos avanços da polícia, das construtoras e demais invasores, o Santuário

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articula uma rede de pessoas em torno da causa, que são chamados de apoiadores, (categoria

êmica) formando o movimento Santuário não se move.

Esses apoiadores, como vamos demonstrar aqui, formam uma "rede" de origem e

interesses pessoais dos mais diversos; contudo, compartilham entre si o interesse por questões

sociais e com as próprias reivindicações dos índios, valores outros que não os apregoados pela

sociedade de consumo e sua lógica predatória.

O Setor Noroeste conjuga tudo que os apoiadores criticam: a suspeita do não

cumprimento de todos os dispositivos legais necessários para venda das terras em Leilão

Público, o descaso do GDF e da Terracap para com as demandas do Santuário, também toda a

lógica por trás do "bairro verde", visando lucro e arranjos políticos, os problemas ambientais, de

trânsito, de ocupação gerada por um empreendimento desse porte no local etc. Nesse sentido,

aqui, em princípio, separei apoiadores e militantes como duas categorias distintas.

Os apoiadores, de maneira geral, são pessoas que apoiam e lutam pelo Santuário, e não

necessariamente estão ligados a outras lutas sociais. Todos os que formam a rede de apoiadores,

com os quais índios e outros apoiadores contam, são chamados de apoiadores,

independentemente se estão engajados em outras causas ou não. Assim, podemos entender que o

apoiador do Santuário é militante dessa causa em específico, mesmo que esteja e/ou seja

envolvido com outras causas. Uma não exclui a outra, ao contrário, se complementam.

Imagem 4.1 – Logo do movimento Santuário não se move

Fonte: Santuário não se move. Disponível em: <http://santuarionaosemove.net/>.

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4.1.1 A rede de apoiadores

As pessoas que são consideradas apoiadores tanto entre si quanto pelos índios do

Santuário conheceram o lugar, a causa, Santxiê por um amigo ou conhecido que os levaram para

conhecer o local e começaram a fazer visitas constantes ao Santuário, participar de tudo que

envolvesse a questão. Não vão chamar os apoiadores de grupo, mas sim de rede. Parto da

definição de Ilse Scherer-Warren (2006) sobre rede de movimento social, que a autora entende

como

[...] identificação de sujeitos coletivos em torno de valores, objetivos ou

projetos em comum, os quais definem os atores ou situações sistêmicas

antagônicas que devem ser combatidas e transformadas. [...] Um conceito de

referência que busca apreender o porvir ou o rumo das ações de movimento,

transcendendo as experiências empíricas, concretas, datadas, localizadas dos

sujeitos/atores coletivos. (p. 113)

O militante, por sua vez, é "uma identidade ou identificação, da definição de adversários

ou opositores e de um projeto ou utopia, num contínuo processo em construção e resulta das

múltiplas articulações [...]" (SCHERER-WARREN, 2006, p. 113).

O que podemos apontar como diverso da orientação proposta por Scherer-Warren é que

as redes de movimentos, ou mesmo indivíduos que se juntam à determinada causa, o fazem por

algum tipo de identificação, seja identitária, seja por compartilhar alguma identificação de luta

que os coloque como interessados na demanda de um determinado grupo. A autora expõe a

respeito do Movimento Nacional Quilombola, que é constituído por várias redes na Coordenação

Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e

“organizações das comunidades locais de ‘mocambos’, ‘quilombos’, ‘comunidades negras

rurais’ e ‘terras de preto’, que são várias expressões de uma mesma herança cultural e social, e

ONGs e associações que se identificam com a causa. [...] unem-se também ao Movimento

Nacional pela Reforma Agrária na luta pela terra” (SCHERER-WARREN, 2006, p.7), mas

mantendo cada um suas características. Então, em torno da identificação com a identidade étnica

negra, assim como a identidade de classe, as pessoas e os grupos se unem em torno dessas

identificações, compartilhando mesmas identidades e se identificando com as lutas, seja no

campo, seja na cidade, mas que têm como foco as demandas das populações negras em geral.

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No caso da rede de apoiadores, eles se identificam com a luta por compartilharem modos

não hegemônicos de pensar a cidade, a política, e o respeito pelo modo de vida que os índios

levam e querem mostrar para a sociedade brasiliense como possível.

A rede de apoiadores é bem heterogênea, formada por estudantes da UnB, trabalhadores

de diversas áreas, intelectuais, pais de estudantes e outros que lá estavam. Criaram uma lista de

e-mails para passar notícias, trocarem informações e fazer articulação. Além dos e-mails, foram

criados blogs, sites, páginas em redes sociais, específicos para dar notícias sobre o Santuário,

como também espaços de mídia alternativa que continuamente davam espaço para veicularem

notícias, publicar documentos e trabalhos que tratam da questão.

A rede maior de apoiadores chegou a ter mais de 1.500 pessoas num grupo de rede social,

mas, de acordo com um dos apoiadores, parte dessa base de apoiadores é oriunda de movimentos

anteriores, como o grupo que ocupou a reitoria da UnB em abril de 2008, assim como o

Movimento Fora Arruda68

, em 2010, e o Movimento Passe Livre69

, que no DF se inicia em 2004,

vindo da Coalização de Grupos Autônomos. Todos os grupos tiveram em comum em sua

configuração o grande número de estudantes universitários e secundaristas. Um dos

entrevistados explica a ideia de rede que ele observa no movimento Santuário não se Move:

Gosto dessa ideia de rede, um conecta, uma, a outra, a rede está formada, não é

um lance partidário. Quando e no que puder ajudar, é isso, é essa rede que a

gente pode conectar quando precisar, gente até inusitada. Eu estava lá (no

Santuário) como mais um ponto dessa rede. Teve apoio até fora do país, mas

não tem uma obrigação enquanto grupo político, ou uma identidade fixa, tinha

gente interessada na pauta ambiental, teve gente pela questão indígena, gente

para discutir a especulação imobiliária. O Santuário se tornou um ponto de

encontro e continua para além dele. As pessoas que passaram por ali e vão a

partir disso criando ideias novas, atraem pessoas novas. (Entrevistado 6)

Na presente pesquisa, lançamos mão da entrevista como uma das metodologias utilizadas

para entender os papéis e as motivações individuais na inserção do movimento em prol do

Santuário. Nesse sentido, é importante frisar que concordamos com o ponto de vista a seguir

sobre entrevistas em trabalhos científicos:

[...] o entrevistado discorre sobre o tema proposto com base nas informações

que ele detém e que no fundo são a verdadeira razão da entrevista [...].

A entrevista é um encontro entre duas pessoas, a fim de que uma delas obtenha

68

Sobre o Movimento Fora Arruda conferir: SOARES, Gabriel Ozório de Almeida (2012). Fora Arruda: uma

etnografia do movimento Fora Arruda e toda máfia durante a ocupação da Câmara Legislativa do Distrito Federal.

Monografia (graduação): Universidade de Brasília, Departamento de Antropologia. Mimeo. 69

Cf. blog do Movimento Passe Livre, disponível em <http://www.vidasemcatracas.blogspot.com.br>. Acesso em:

10 abr. 2013.

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informações a respeito de determinado assunto, mediante uma conversação de

natureza profissional (LAKATOS; MARCONI, 1994, p. 195).

4.1.2 "Trajetórias ou carreiras": Inserção no Santuário dos Pajés

Refletimos aqui a importância dos indivíduos participantes do Movimento Santuário não

se move, que não pode ser considerado um movimento social nos termos tradicionais, fechado e

institucionalizado, mas que, a partir de trajetórias e/ou carreiras individuais, leva essas pessoas a

conhecerem e apoiarem o Santuário, e a tomarem suas lutas e causas como suas mesmo com

históricos pessoais diversos entre si. Desse modo, a intenção é considerar os indivíduos e suas

histórias no engajamento à causa, como agentes que conseguem atrair outros para a causa,

atuando como uma rede de pessoas agindo em prol da permanência do Santuário dos Pajés e, em

alguma medida, concordando, respeitando, admirando a visão de mundo dos índios que

apoiavam; em detrimento das ações do GDF, das construtoras do bairro Setor Noroeste e da

mídia oficial da cidade, a qual estava claramente a favor da construção e por meio de suas

publicações fazia uma espécie de cruzada para deslegitimizar os índios e sua identidade, as

intenções de sua resistência a permanecer no local e o apoio de estudantes à causa do Santuário.

Partiremos aqui para compreender os apoiadores das concepções de Olivier Fillieule

(2001), que analisa os momentos de engajamento de atores e os processos de engajamento de

militantes em questões ambientais. O autor reflete sobre o que chamou de "carreira" de um

militante, no sentido de que as pessoas engajadas em movimentos sociais não possuem somente

uma trajetória diretamente ligada ao movimento de que façam parte, mas que militância é um

processo:

[...] é então utilizado para analisar “os processos de engajamento nas ações

coletivas e a inserção dos atores sociais em uma multiplicidade de locais e de

espaços sociais” (Fillieule, p. 200). O indivíduo está submetido a valores, regras

e lógicas diferenciadas, o que o faz incorporar mecanismos diferenciados de

ação [...]. Este autor defende que a noção de carreira permite observar o

militantismo como um processo, no qual o ator social é compreendido na

multiplicidade de situações do seu engajamento ao longo da vida, aí se

incluindo sua retroação. Não existe assim um indivíduo independente das

lógicas sociais coletivas, pois estas também se impõem a ele no seu processo de

engajamento. (FILLIEULE, 2001, apud ALVES; GOMES, 2012, p.16).

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Elaborei uma entrevista com cerca de 17 perguntas70

, cujo intuito era saber como as

pessoas conheceram o Santuário, quais as razões que os fizeram se engajar na luta pela

manutenção do Santuário, porque permaneceram apoiando, como foi e é organizado o

Movimento Santuário não se Move, o que pensam sobre o Santuário e o que esperam como

desfecho dessa disputa.

Para Santixê, apoiador é aquele que luta junto com índios, mas que não têm interesse nas

terras, mas em ajudar. Desde quando entrei em contato tanto com os índios quanto com os

apoiadores, esse foi o termo utilizado para se referir às pessoas que apoiavam o Santuário. Essa

rede de pessoas esteve presente desde os momentos de resistência aos avanços das obras do Setor

Noroeste, da polícia, como também em momentos de participação em audiências, reuniões etc.

4.1.3 Conhecendo o Santuário dos Pajés

Boa parte das pessoas entrevistadas e outras tantas que elas mencionaram ao longo das

entrevistas ficaram sabendo do Santuário devido a seus próprios interesses por causas sociais.

Interessante notar que os apoiadores entraram em contato com Santuário por maneiras muito

diversas; outros por meio dos seus trabalhos que em algum momento se aproxima ou do

Santuário em si ou do próprio Santxiê.

Enquanto não havia ameaça de construção no local, onde é hoje o Santuário dos Pajés,

junto ao bairro Setor Noroeste, o local era frequentado e conhecido por algumas pessoas que

conheciam o pajé Santxiê, sabiam que os índios viviam lá, como Frederico Magalhães, da Funai,

e algumas pessoas que eventualmente ajudavam, iam para lá conversar, jogar futebol etc. Com a

divulgação que o Setor Noroeste seria mesmo construído, com a discussão do Plano Diretor de

Ordenamento Territorial (PDOT), posterior leilão de terras públicas visando à construção do

bairro, a pressão que empreiteiras e o GDF começaram a fazer sobre os índios que moravam no

Santuário e consequentemente sobre as terras, o Santuário conseguiu angariar um rápido apoio

para que os índios pudessem ser ouvidos pelo poder local e para tentar mostrar que sua presença

no local era antiga e que havia, como já foi discutido, muitos impasses entre eles e a Funai. Esse

período de que estamos tratando vai de cerca de 2008 a 2012. Isso com crescente intervenção e

70

Conferir perguntas do questionário elaborado por mim no Apêndice A.

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presença do poder local no Santuário e, por conseguinte, maior resistência de índios e

apoiadores.

Nesse período, o Santuário consegue um grande número de apoiadores. O entrevistado 1

descobre a existência do Santuário devido a um chamado que outro entrevistado fez na UnB em

2009, porque buscava ajudar na divulgação da existência dos índios no local e também porque já

havia as discussões sobre o PDOT acontecendo, mas só foi conhecer mesmo o Santuário em

2011. Os entrevistados 3, 5 e 6 conhecem o Santuário devido ao perfil de militância deles em

algumas causas anteriores, como também devido ao interesse por questões envolvendo política,

movimentos sociais, por exemplo.

[...] estourou mais conflitos, e começou a sair uns chamados, e eu fui, com um

mapinha que tinha saído na internet, tinha acabado de haver a invasão da

Emplavi, a primeira que teve, que invadiu os 50 ha. Eu não sou de nenhum

coletivo, até hoje não faço. Eu fui com essa ideia de estudar de fazer a

monografia, mas proposto a estudar, ajudar no que for preciso, mas também

fazer a monografia. Eu virei do coletivo Santuário não se Move (Entrevistado 1). Eu conheci o Santuário dos Pajés em 2008 nos meus primeiros anos daqui de

Brasília, cheguei a Brasília em 2004 para estudar na UnB. [...] Decidi apoiar,

porque sempre participei de movimentos sociais; antes do Santuário, participei

da ocupação da Reitoria aqui na UnB, do Movimento Fora Arruda, enfim, sou

um eterno militante, então comprei a briga como vários (Entrevistado 3).

Tudo começou no Movimento Fora Sarney, conheci o assessor da Érika Kokay,

e uma galera que estava organizando essas manifestações em 2008, e uma

galera que estava no movimento ainda não era nem ainda [Setor] Noroeste, era

o PDOT, junto com o Movimento Fora Arruda, tudo junto. Eu estava envolvido

com as questões de meio ambiente e como o Noroeste era menina dos olhos do

Paulo Octávio, da especulação imobiliária, essa foi a frente de ataque, o

Noroeste. Foi aí quando eu conheci os índios [...] (Entrevistado 5).

Outros ficaram sabendo do Santuário devido ao seu trabalho, ou por meio de parentes que

já estavam engajados na resistência pela permanência do Santuário.

Eu soube do Santuário dos Pajés em 2008; meu filho começou nessa luta, e eu

via no jornal [...] (Entrevistado 2).

Eu sou advogado e desde que eu sou advogado faço trabalho voluntário para

movimentos sociais autônomos. Fiz para vários movimentos, o pessoal da

convergência de grupos autônomos tinha contato com Santuário dos Pajés e foi

por meio deles que eu fiquei sabendo da causa (Entrevistado 4).

Conheci o Santuário em decorrência de minha vitória no Concurso Nacional de

Anteprojetos e Estudos Preliminares de Arquitetura e Urbanismo para a

Revitalização da Via W3, Brasília, DF, realizado em 2002. Nesse concurso

propusemos a revitalização através de várias medidas e projetos, sobretudo o de

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um Corredor Cultural. Na constituição de tal Corredor ficou clara a importância

das culturas indígenas – que entraram nos estudos da W3 de outras formas,

como a da imensa violência perpetrada contra Galdino, em 1997. No Concurso

da W3, "descobrimos" a imensa importância das nossas culturas (indígena,

negra, migrante) para a capital (Entrevistado Professor Frederico Flósculo).

As trajetórias expostas pelos entrevistados deixam claras as diversidades de pontos de

vista, assim como do conhecimento e da inserção no Santuário dos Pajés como apoiadores.

A maioria tem em comum o interesse por causas coletivas, mesmo que não fossem todos

engajados em movimentos institucionalizados ou mesmo organizações não governamentais. De

maneira geral, o interesse por causas sociais os levaram a conhecer o Santuário e a ver nele a

congregação de várias outras causas, características ou elementos ou mesmo sentido que viam

em outras nas quais participavam ou apoiavam.

Podemos pensar esse movimento dentro do arcabouço teórico proposto por pesquisadores

sobre os movimentos sociais, como Ilse Scherer-Warren como parte dos "novos movimentos

sociais", portanto.

O ativismo de hoje tende a protagonizar um conjunto de ações orientadas aos

mais excluídos, mais discriminados, mais carentes e mais dominados. A nova

militância passa por essa nova forma de ser sujeito/ator. Portanto, a divisão

clássica de ONGs “think tanks” (ou produtoras de conhecimento), ativistas (ou

cidadãs) e prestadoras de serviço (ou de caridade) tende a dar lugar a

organizações que mesclam, cada vez mais, essas três formas de atuação, tendo em

vista seus compromissos com o pró-ativismo no campo da democracia

(SCHERER-WARREN, 2006, p. 120-121).

Para a autora, existe toda uma nova configuração dos novos movimentos sociais,

calcados em valores democráticos, da cooperação e da solidariedade. Podemos dessa forma,

entender o Movimento Santuário não se Move dentro dessa perspectiva, baseada em valores que

podem ser compartilhados por várias pessoas, como democracia, luta pela diminuição das mais

diversas desigualdades, entre outros, formando redes de pessoas que compartilham desses

valores e lutam por uma ou várias causas em que esses valores sejam seus motivadores.

4.1.4 Apoiadores e militantes

Apoiador é um termo utilizado, como já mencionei pelos indígenas do Santuário, assim

como pela rede de pessoas que foi formada para apoiar o Santuário. Separei apoiadores e

militantes em duas categorias distintas, pois há entre as pessoas que compõe a rede de apoiadores

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várias pessoas envolvidas entre outras causas, ou coletivos, com objetivos diversos, sejam

políticos, ambientais, de gênero etc. Era uma ideia a princípio que havia diferenciação entre

esses dois perfis de pessoas. Então, questionei os próprios participantes dessa rede sobre essa

possível diferença entre eles.

Perguntei aos entrevistados se eles viam essa diferenciação de perfis e posturas. Para

um dos entrevistados não há diferença ser militante e apoiador do Santuário. Para outro, ele não

saberia distinguir se havia essa separação de fato, já que ele militava por várias causas e o

Santuário foi mais uma a que ele apoiou.

Não vejo diferença, quem apoia está militando por uma causa, são sinônimos no

meu entender. Eu sou um apoiador da causa. Esse é meu entendimento do

mundo, de sociedade, do que eu acho correto ou não (Entrevistado 3).

Eu antes de entrar na UnB eu já participava de manifestações e movimentos,

depois que entrei para UnB comecei a conhecer mais os movimentos mais

organizados. Começou a se aglutinar muita gente também muita gente que não

fazia parte desses outros movimentos, do Passe Livre, do Fora Arruda, da

Ocupação da Reitoria (Entrevistado 6).

Já para outros entrevistados, existe uma diferença entre apoiadores e militantes. O

primeiro pode ter mais foco e se dedicar mais na defesa do Santuário – não que os demais não o

façam, mas é que o Santuário é para os militantes uma causa a mais. Os apoiadores exclusivos do

Santuário podem dispensar mais tempo e dedicação ao Santuário e teriam mais condições, com a

maior vivência dentro do Santuário, de entender as necessidades, os desejos dos índios e de

poder respeitar seu cotidiano sem ultrapassar os limites impostos por eles.

O papel do apoiador é conhecer, compreender, com respeito. Eu acho que a

gente tem responsabilidades. Não acho que seja paternalismo, de ter que ir lá

ajudar não, é responsabilidade mesmo. [...] Tem diferença de como as outras

causas veem seus militantes, eu acho que o Santuário não se vê exatamente

assim. Essa é minha opinião, eu acho que o Santuário se vê mais um pouco mais

de: 'ah, o apoiador tem obrigação de respeitar, de que esse movimento em

específico tem líderes e que a legitimidade desses líderes é inquestionável, que

são os indígenas, porque é a vida deles, então, se eles falam que não, é não’. [...]

Isso é uma coisa mais prática, [...] os apoiadores são nada mais que isso, são

movimento de apoiadores do Santuário, são um apoio. São um movimento,

claro, mas não é a vida deles que está em jogo, é obrigação saber disso. No final

das contas, não é sua casa, sua vida, você tem sua casa, você tem sua vida, não

estão ameaçadas, você é uma pessoa legal porque você está ajudando, mas saiba

que você é um apoiador, isso não te faz índio. Com os outros movimentos têm

essas pequenas variações de características dos movimentos, tem movimento

que é mais horizontal, esse (o movimento do Santuário dos Pajés) não é bem

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assim, é um plano de apoiadores dos indígenas, eles têm a própria hierarquia"

(Entrevistado 1).

Eu me considero uma apoiadora, primeiro eu fui para conhecer e acabei me

envolvendo de uma maneira, que agora já faz parte. Embora hoje o papel, o

papel para mim como apoiadora, ele te envolve. O papel do apoiador é apoiar

uma causa, uma causa quando é justa, mas não se envolver na vida e na cultura

deles, não ficar dizendo o que é certo o que é errado, porque eles (os índios) que

sabem, eles têm autonomia. Não se envolver, por exemplo, se você tem seus

hábitos, não levar pra lá (para o Santuário). É respeitar, porque eles têm suas

normas, cabe ao apoiador, se você vai apoiar a causa deles, tem apoiar a causa

como um todo, embora possa ter coisas que você não aceite, mas é deles, faz

parte da vida deles. O apoiador tem que ter essa consciência, tem que ter sempre

uma reunião para pontuar uma coisa e outra, e quando não pode fazer reunião,

mandar através de email, do blog do grupo. [...] Quando as vezes você é um

militante de várias causas, você acaba não se envolvendo como devia, as vezes

há um pouco de descompromisso, as vezes sei que falta tempo, não sei explicar

bem, mas há uma diferença sim, muitos militantes vão de curiosidade, a gente

vai primeiro mesmo para conhecer, vai para conhecer, mas não quer se envolver

muito" (Entrevistada 2).

A Emplavi, a construtora, invadiu a área, aí teve mutirão para criar as frentes

que eles (os apoiadores) gostam, comissão de divulgação, comissão de mais

não sei o que... Enfim, teve uma mobilização bacana. Tem uns militantes que

são caçadores de manifestação. O apoiador vai mais a fundo. Qual é a outra

forma de apoiar senão apoiar? Isso que teve gente que demorou a entender.

Você pode acabar colaborando com GDF senão tiver cuidado. Tem que pensar,

até que ponto você é apoiador? Vários se passaram por apoiador e passaram

informação. Por isso, o Santxiê conversa sério na fogueira a noite. Os

apoiadores têm que aprender a respeitar, eu acho que é isso. (Entrevistado 5)

Apoiador é alguém que se engajou no apoio e na divulgação da luta e resistência do

Santuário dos Pajés. Como foi narrado pelos entrevistados, muitos que vão ao Santuário estão

presentes ou estiveram presentes em momentos decisivos de resistir à polícia e aos avanços da

construção, e muitos apoiam a divulgação, falando, apresentando o Santuário às pessoas que

nunca foram ao local e que só obtêm suas informações pelos jornais de grande circulação da

cidade, o que é um problema, pois, como já mencionamos, o principal jornal da cidade é aliado

do poder local para a construção do Setor Noroeste.

Entendemos aqui uma diferença entre apoiador e militante. Militante seria alguém

engajado em demais causas sociais e políticas, não necessariamente apenas na questão indígena e

mais especificamente do Santuário dos Pajés. Esses dois papéis se confundem na atuação dessas

pessoas no Santuário, pois muitos já eram militantes de outros grupos e somaram a suas

militâncias a defesa do Santuário dos Pajés. Os que exclusivamente estão participando da rede de

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ajuda e apoio ao Santuário são os apoiadores. Sabemos que essa divisão é uma maneira de

compreender também as trajetórias das pessoas que participam da defesa do Santuário, e que na

prática se colocam disponíveis e fazem o possível para serem úteis em prol da causa Santuário

dos Pajés e que entre si são chamados apenas de apoiadores.

4.1.5 Papel da internet

Para organizar a presença dos apoiadores, assim como para noticiar os eventos e todas as

notícias relacionadas ao Santuário, os apoiadores se organizaram por listas de e-mails, em sites

de relacionamento, blogs, YouTube. Não somente eles lançaram mão desse recurso, os próprios

índios criaram blogs e e-mails comunicando eventos, decisões que envolviam o Santuário. Desse

modo, é crucial entender o papel da internet, utilizada não só como meio de informação, mas

também de ação e de uma espécie de contrainformação. A informação "oficial" sobre a

permanência dos índios no local, a construção do bairro, o contato entre poder local e os índios

etc. foram veiculadas por jornais e mídias independentes, como o Miraculoso, o Centro de Mídia

Independente (CMI), como o blog do Movimento Santuário não se Move, e uma série de outros

espaços disponibilizados na internet, como um meio rápido e fácil de veicularem informações

que não necessariamente se encontrariam em grandes veículos de informação local.

A internet teve um papel muito importante de articulação das pessoas, hoje em

dia está todo mundo nas redes sociais" (Entrevistado 3).

Ao tratar sobre a importância e o papel da internet, o sociólogo Manuel Castells (2003)

afirma que ela:

[...] se ajusta às características básicas do tipo de movimento social que está

surgindo na Era da Informação. E como encontraram nela seu meio apropriado de

organização, esses movimentos abriram e desenvolveram novas avenidas de troca

social, que, por sua vez, aumentaram o papel da Internet como sua mídia

privilegiada (p. 115).

Quando comecei a acompanhar os eventos relacionados ao Santuário dos Pajés, isso se

deu via internet. Não somente eu, mas muitas pessoas conheceram primeiramente as versões do

Correio Braziliense e depois foram conhecendo os demais canais com outras informações sobre

eventos ocorridos no Santuário. Todos os entrevistados foram categóricos ao informar a

importância da internet para formar uma rede de apoio, para acioná-la quando necessário, para

mantê-la. Isso tudo além da veiculação da versão e visão de apoiadores e índios sobre episódios

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de abusos policiais, violência, invasões, assim como de eventos que os índios costumavam

promover para apresentarem o que o era o Santuário, o herbário que Santxiê mantém, as jornadas

tribais, eventos de caráter acadêmico para discutir a questão indígena e do Santuário. Com o

tempo, as próprias ferramentas usadas pelos índios e por apoiadores, como as redes sociais,

acabaram desgastadas pelo excesso de pessoas e, com isso, veio uma série de veiculação de

mensagens que não estavam relacionadas ao Santuário nem aos coletivos e grupos aos quais os

apoiadores pertenciam. Com o mau uso dessa ferramenta, ela acabou sendo subutilizada.

Teve importância através de e-mails, do blog, hoje não está muito legal. Quem

criou o grupo criou algo maravilhoso. Não tenho ideia da quantidade de

apoiadores lá, mas pessoas querem saber o que acontecia lá (no Santuário),

mesmo que não fossem apoiadores. [...] mas hoje para tratar de assuntos sérios,

de reuniões, essas coisas, não comporta mais ali (no Facebook) não. Tá cheio de

espião e tudo. Não dá mais para isso, as pessoas precisam se conscientizar mais.

Os assuntos que deveriam ficar lá circulando eram os assuntos do Santuário e da

causa indígena. O problema está de quando a gente luta que as pessoas são

heterogêneas, às vezes têm coisas muito políticas que não tem nada a ver.

Mesmo com as coisas todas, a internet é uma faca de dois gumes. Os apoiadores

mesmo não curtem esses assuntos que não têm nada a ver. (Entrevistada 2.)

O Twitter foi importante para divulgar o filme (o documentário: Sagrada Terra

Especulada – A luta contra o Setor Noroeste), para falar das invasões, numa

retwittada da Nação Zumbi a gente teve umas vinte e cinco mil pessoas vendo o

que estava acontecendo. É uma ferramenta muito boa, basta saber usar. Para

fazer denúncias, falar, fazer um contraponto, desmentir certas notícias, mostrar

o outro lado também. (Entrevistado 5.)

No início era lista de emails, mandava os links dos vídeos que a gente gravava

no mesmo dia. Era uma lista de emails gigante no início de gente que não sei

quem era, sei que os emails circulavam. [...] . Orkut, Facebook, essas coisas não

são revolucionárias em si, mas elas têm alcance. (Entrevistado 6.)

Os mais engajados com a rede de apoio já não usam muito mais as redes sociais, por

exemplo, para circularem chamados, reuniões e informações mais substanciais sobre o Santuário

como era feito no início. Pessoas chegaram a se infiltrar nesse grupo para obter informações do

Santuário nos mesmos veículos que eram utilizados para mobilizar e informar os apoiadores.

A internet foi crucial. De forma geral para as pessoas se conhecerem, entrarem

no grupo, começarem a entender o que estava acontecendo de forma mais

específica. Tinha uma lista de e-mails, a ideia da lista era não passar

informações para pessoa desconhecida. [...] O Facebook foi muito mais, foi

importante em informar. Amigos de amigos verem no perfil o que está

acontecendo, de "poxa, eu vou lá" e acabar virando um apoiador, explosão de

"curtidas" e "compartilhadas", comentários, eu acho que fez alguma coisa na

opinião pública de quem estava perto, amigos de amigos, universitários, etc.

(Entrevistado 1.)

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4.1.6 Lutas compartilhadas

A própria heterogeneidade das origens e trajetórias dos apoiadores se demonstra

também nas razões pelas quais essas pessoas entraram em contato com o Santuário, sobretudo,

pelos motivos que os mantiveram na luta pelo Santuário. Todos com quem conversei continuam

participando e interessados nas questões relativas ao Santuário. Percebemos que seja pela defesa

do que acreditam ser uma cidade de Brasília mais justa, mais inclusiva, pelo equilíbrio ecológico,

seja pelo esclarecimento dos meandros nos quais o bairro Setor Noroeste está sendo construído,

as pessoas que participam da rede de apoiadores comungam valores democráticos do que

acreditam ser justo acima de tudo. O Santuário parece reunir várias dessas características, seja de

resistência física, política, ecológica, cultural, religiosa, dentro de uma cidade em que a lógica

modernizadora solapa outras lógicas paralelas.

Nas falas dos entrevistados, o que acreditam apoiar no Santuário possui pontos comuns,

mas também podemos perceber elementos encontrados no senso comum e até mesmo uma visão

romantizada sobre índios. Em outro lugar, trabalhei como as imagens sobre os indígenas

permanecem no imaginário nacional como algo distante e preso a ideias de preguiça, selvageria,

pureza, natureza, primitividade, entre outros estereótipos presentes na fala das pessoas em uma

exposição sobre os índios do Nordeste. Muito do que as pessoas falaram corroboram ideias

muito antigas, remontando mesmo às visões de Montaigne e Rousseau, mas a grande maioria

ainda assim, expressava simpatia, tinham uma imagem positiva dos índios em geral.

Entre os entrevistados, encontramos alguns desses elementos que se aproximam de uma

visão mais romântica, mas que permitiu o contato com os povos indígenas, se essa não fosse à

única visão que possuiam.

O que o homem branco não compreende que o índio, índio verdadeiro, no caso

o Santxiê e da comunidade que a gente defende não existe esse valor do

dinheiro. O Santxiê mesmo teve ofertas de ganhar cinco milhões, não sei quanto

apartamentos, mas ele mesmo fala, 'eu vou fazer o que com isso?' O meu valor

está na terra, nas tradições espirituais, nos cultos. A nossa sociedade caracteriza

outro tipo de valor (Entrevistado 3).

Para mim é pessoal, mexeu com eles mexeu comigo. Fora toda essa

representação com Brasília, são os últimos candangos na minha visão, os outros

foram para periferia, foram expulsos da Brasília branca de concreto, Santxiê é

remanescente desses que vieram para Brasília trabalhar (Entrevistado 5).

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Os apoiadores veem os índios também como sujeitos políticos, com os quais querem

compartilhar a luta pela permanência no Santuário, assim como lutam pela preservação do local.

Isso se contrasta com os resultados que encontrei na minha pesquisa anterior, na qual mencionei

que as pessoas se viam muito distanciadas dos índios e das questões indígenas de maneira geral.

Para mim, primeiro, é um exemplo das causas indígenas, conglomera muitas

causas indígenas problemáticas hoje me dia, é uma comunidade indígena

urbana, multiétnica, não é uma aldeia é um Santuário, trabalham fora, e muitos

problemas que muitos outros povos indígenas passam no Brasil

contemporaneamente. Segundo, ele representa mesmo, uma mudança de

paradigma de pensamento e o conflito, não como a relação interétnica normal,

mas com os valores, de vida, do mundo, não valores morais, mas categóricos.

O que está em conflito... O que explica o conflito... Diferença da categoria de

propriedade, do conceito de permutação mesmo, de neutralidade de valor

genérico do capitalismo, uma quantificação que esvazia, na verdade, você não

tem aquele terreno, você tem o valor do terreno, você pode receber um do

mesmo tamanho em outro lugar, ou o preço disso em valor de mercado. Essa

terra é sagrada, não tem como cambiar, não é cambiável, não é trocável por

dinheiro, não é quantificável, não é mercadoria (Entrevistado 1). Enquanto o Santxiê e os descendentes deles tiveram lá eu luto também. A única

pessoa que está para ver a parte da cultura do que é o Santuário é o Santxiê, os

outros Fulni-ô também. A convicção dele dá força, não tem dinheiro no mundo

que faria ele sair dali (Entrevistada 2).

Outros apoiadores inseriram mais sistematicamente a ideia da relação da existência do

Santuário com uma relação muito próxima e muito própria com a cidade de Brasília. Todos de

alguma maneira mencionaram essa relação, mas os pontos de vista a seguir nos oferecem bem a

dimensão da relação a que as pessoas de certa maneira se referiram.

Para mim o Santuário é um ponto para gente repensar toda Brasília. A gente tem

essa ideia que a cidade surgiu do nada, que aqui nunca existiram índios, que

aqui era um local deserto. Para entender o Santuário tem que estudar a história

de Brasília de novo e até a história da colonização do Brasil. Não foram os

indígenas que vieram para cá. A cidade que está chegando está chegando à cima

deles muito forte. Então o Santuário, significa repensar o modelo de Brasília,

essa ideia modernista me pareceu muito europeia, para construir uma cidade

nova tinha a cara de sei lá, Paris do século XV... Poxa, mas aqui antes, eu

pensei, nunca existiu nada, não existiram indígenas, só transplantaram? Porque

o indígena era coisa do passado para eles, eles não queriam uma cidade com

indígenas vivendo, sei lá, sem eletricidade, né? O Santxiê é uma pessoa

politizada e sentado na fogueira você tem uma aula com ele. Ele tem

aprendizado de vida muito rico, ele sabe do mundo burocrático, jurídico, ele

transita por mundos, ele consegue aglutinar muita gente. Com muitos interesses

e o Santuário congrega isso (Entrevistado 6).

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Defendo o Santuário como a mais importante e autêntica presença/manifestação

/proposta de materialização de culturas indígenas brasileiras na Capital da

República. [...] Associo o Santuário a essa "alteridade" da cidadania, de forma

radical e elementar: nossos indígenas são primeiros-cidadãos, e o Santuário é

mais que um lugar, nessa perspectiva; é um projeto de reconstrução de nossa

identidade e do próprio papel de Brasília diante da cidadania brasileira.

Localmente, deveria se transformar numa das entidades gestoras do "novo

projeto ecológico e popular" desse Setor Noroeste. Fato Consumado pode ser

Fato Transformado, apesar de todas as mentiras que fundamentam o irreversível

e polêmico setor urbano (Entrevistado: Professor Frederico Flósculo).

4.1.7 Perspectivas de desfecho

Perguntei aos entrevistados o que eles esperavam como desfecho no caso do Santuário, o

que eles esperavam ao fim do processo. Mesmo tendo consciência e muitos deles "sentido na

pele", a desigualdade de forças contra as quais lutam e resistem com os índios, ele mantêm em

geral uma visão otimista tanto nesse caso específico quanto nas perspectivas futuras que essa

situação venha a provocar.

Eu considero o Santuário vitorioso, vai está lá na cara do Noroeste como um

símbolo que especulação imobiliária perdeu dessa vez. Dessa vez ela perdeu! É

possível a gente ganhar de empreendimentos multimilionários, é possível. Mas

eu acho que a vida deles não vai ser fácil (dos índios). Eu acho que vai ser uma

coisa muito linda de se ver, ali no Noroeste, pertinho, um monte de mato,

cerradão e não essas plantas plantadas aí das quadras, esses jardins fake, e os

índios vivendo ao lado da ostentação máxima de Brasília. O sumo da

especulação imobiliária de Brasília, um monte de apartamento pequeno, num

lugar horrível, tudo apertado, vai engarrafar ali. Tudo caríssimo, de frente à

outra galera que está vivendo ali na simplicidade, com seus trabalhos,

plantando. Eu acho que vai ser um tapa na cara, uma coisa linda de se ter. Acho

que em algum momento Brasília vai sacar que aquilo é massa de se ter. Que

bom que a capital do Brasil tem um santuário indígena! E um santuário

verdadeiro, não é um museu do índio, não é uma igreja do índio, que o Estado

foi lá e deu para os índios. Os índios foram lá e fizeram por conta própria e está

ali, logo ali. É uma coisa muito massa (Entrevistado 1).

Os apoiadores, cada um a sua maneira, com seus históricos pessoais, interesses, ações,

ajudaram a alimentar o Santuário e a sua luta com questões e perspectivas maiores, que de certa

maneira a questão em si já ensejava, mas que não parecia claro no início das demandas pelo

reconhecimento da terra e da posterior resistência do Santuário. Acredito que a heterogeneidade

das pessoas envolvidas nos ajuda a dimensionar a própria complexidade do caso etnográfico que

é o Santuário dos Pajés e suas vicissitudes.

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Muitas pessoas ajudaram na própria resistência física, de estarem junto com eles em

momentos que polícia e empreiteiras invadiam o local. Colocaram-se em risco, juntamente com

os índios, por uma causa que, como um dos entrevistados disse, em última instância não era

deles. Eles tomaram para si essa questão e com isso ajudaram a eles e a outros a pensarem a

própria cidade, a construção do bairro, de que maneira e em que circunstâncias políticas e

administrativas ele foi desenvolvido. Ajudaram a desvelar quais interesses, quais os impactos

desse bairro para a cidade, para o meio ambiente, para quem vive perto do local, para cidade

como um todo, para o transporte público da cidade, o que contou nossa história local, e o que

conta; como os órgãos de imprensa atuaram, como o governo local, suas empresas, a Funai, o

Governo Federal agiram. Muitas questões foram alimentando e sendo alimentadas pela própria

existência do Santuário dos Pajés, questões para repensar o passado, o presente e o próprio futuro

da cidade.

Agora tem material para estudo, não tem mais simplesmente uma visão, só da

imprensa, do governo, era só isso. Mas agora tem muita coisa documentada,

espalhada e quem for pesquisar já vai ver outras coisas. Então eu fico feliz com

isso. Para mostrar um lado, não se pode dizer que não houve índio em Brasília.

Acho que esse foi um grande ganho vê os índios ali e um ganho para a história

da cidade, abriu-se uma história totalmente fechada. Brasília estacionou na

construção. Parou naquela ideia. Para muitos a história de Brasília acaba ali não

se conta mais nada do que está acontecendo e o mérito dos movimentos que a

gente participou, acho que foi esse, tentar contar a história do que está

acontecendo e pensando para o futuro. Eu penso nisso (Entrevistado 6).

Não tenho a menor dúvida que o Santuário, uma vez definido, incluído, pode vir

a ser o maior atrativo do próprio Setor Noroeste: sua melhor denúncia e sua

melhor "confirmação", na medida em que a comunidade

VERDADEIRAMENTE ecológica não está no projeto do urbanista Zimbres,

mas na existência, no manejo do cerrado, no estilo de vida dos seres do

Santuário. SEM o Santuário, o Setor Noroeste será tão medíocre e sem brilho,

sem "ecologia" e beleza advinda da autenticidade (pois até seu projeto

urbanístico gravita em torno de "Superquadras Estilizadas"), tão cafona quanto

o Setor Sudoeste, seu irmão siamês. Seu futuro depende da decisão judicial

final, fatal. Se imensa e favorável, se assegurar a gleba realmente devida a nosso

movimento, poderemos ter um Santuário capaz de atrair a atenção do mundo

para Brasília (Entrevistado: Professor Frederico Flósculo).

Essa parceria de índios e não índios nesse caso, em prol de uma questão indígena que

está completamente conectada com outras dimensões da cidade e que ainda está em curso, coloca

em xeque muitas práticas, ideias que já eram comuns no imaginário da população de Brasília.

Ela nos tira da zona de conforto de imaginar que a história da cidade estava acaba, ou que todos

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nós sabemos o suficiente sobre ela. Não conheço outro caso de pessoas que formaram uma rede

tão diversa que pudessem cooperar em uma causa que conseguiu reunir aspectos que tocassem a

todas essas pessoas e fizessem com que elas, seja na internet, seja no próprio Santuário,

mudassem suas rotinas, tirassem tempo e dinheiro para defenderem algo que a cidade como um

todo dava como certa, a saber a construção o bairro e a saída dos índios do local.

Essa rede em que uma pessoa acaba levando a outra, seja por contato direto, seja pela

grande quantidade de informação e de contato que conseguiram reunir, fez com que fossem os

envolvidos se tornassem mais flexíveis quanto à presença física dos índios no local e mesmo na

internet. Embora todos pudessem ter seus interesses e vontades, se submeteram a uma demanda

dos índios, para fazer com que eles conseguissem obter êxito. O processo todo ainda continua, a

rede permanece em alerta aguardando os próximos movimentos do processo envolvendo o

Santuário.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o presente trabalho tive a intenção de mostrar a relação entre o grupo indígena

Tapuya Fulni-ô e a terra Santuário dos Pajés com a cidade de Brasília, relação essa que data da

própria construção dessa cidade. Nesse sentido, voltei inicialmente minha atenção para a

construção de Brasília, seus planos e objetivos dentro de um cenário político de crescimento e

expansão tanto no plano econômico quanto na urbanização. A concepção de Brasília, criada a

partir de interesses dos mais diversos, se utilizou de discursos pragmáticos que visavam à

interiorização da capital, profetizada por Dom Bosco. Para isso, terras foram desapropriadas,

projetos modernos (ou seja, nos moldes propostos por Le Corbusier e pela Carta de Atenas de

1933) e modernistas foram criados para dar um novo capítulo na história da Região Centro-Oeste

e do Brasil. Migrantes de todo o país seguiram para a futura capital em busca de trabalho e novas

perspectivas. Alguns desses migrantes eram oriundos da Região Nordeste, eram índios que

buscavam alternativas de sobrevivência abandonando a fome e seca.

Pelo que os índios contam, não foram índios de uma só etnia e região que passaram pelos

canteiros de construção da cidade. Os Fulni-ô, que vieram para a futura Brasília para trabalhar na

construção civil, ao mesmo tempo em que construíram a capital, construíram para si um local

para reza, cultos, pajelanças. Um santuário, onde enterraram seus mortos, onde plantaram, onde

estabeleceram um ponto para que outros índios pudessem dançar, entoar seus cânticos, rezar

quando para cá viessem ou quando estivessem apenas de passagem.

O lugar, ao longo do tempo, conseguiu se manter pela rede de parentes dos próprios

índios e também por aliados. Desse modo, os índios manejaram a vegetação, "domesticaram" o

cerrado, o incrementaram com outras plantas que utilizaram para comer, como plantas

medicinais etc. Esse ambiente, essas pessoas mantiveram a existência do lugar desde então, até

que a expansão urbana os encontrasse, e o poder local, repetindo muitas posturas e discursos que

remontam a fases em que o Brasil também em desenvolvimento econômico e urbano, visse nos

índios um empecilho ou um “entrave para o desenvolvimento”, fadados a desaparecer no meio

urbano e nas frentes de trabalho, como Darcy Ribeiro afirmou certa feita: “índios

destribalizados” ou “os remanescentes tribais que ainda resistem ao avassalamento só têm

significado como acontecimentos locais, imponderáveis” (RIBEIRO, 1986, p. 57).

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O que aconteceu com os que vivem em Brasília e em muitos lugares do país, mais

especificamente no Nordeste, objeto da observação de Ribeiro, citada anteriormente, foi que,

além de todos estarem inseridos no mercado formal de trabalho, nenhum deles abandona suas

práticas religiosas e suas tradições; pois, para as gerações posteriores, no caso dos Fulni-ô, a

língua, os ritos e inclusive a continuidade na participação do ritual do Ouricuri, realizado

anualmente na cidade de Águas Belas em Pernambuco, foram ensinados às gerações mais novas.

Eles mantêm o etnônimo de Fulni-ô, acrescentam o Tapuya (ou Tapuia, ou outras variações),

recriando parte da vida que tinham em suas aldeias de origem, mas também inserindo e recriando

outros elementos, como o ecumenismo religioso.

A relação com a cidade de Brasília nunca foi fácil, mas foi tensionada e se tornou um

conflito que acredito que nenhuma das partes imaginou. Os governantes locais começam a votar

as alterações no Plano Diretor de Ordenamento Territorial da Cidade (PDOT), com o intuito de

planejar, leiloar as terras para a expansão das novas cidades, regularizar condomínios e construir

novos bairros. O que o poder local não imaginava era que, mesmo estando cientes da existência

de índios no lugar onde planejavam construir um novo bairro, o Setor Noroeste, os índios

resistissem e insistissem em ficar no local sob o discurso de que a terra deveria ser demarcada

como Terra Indígena, pois se tratava de uma terra ocupada tradicionalmente por eles, ou seja,

que era anterior à Constituição Federal de 1988. E que, além disso, conseguissem estabelecer

uma grande rede de apoio para a demanda da permanência dos índios, para demarcação da terra e

até mesmo contra a construção do bairro, que posteriormente foi se mostrando bem diferente das

propagandas veiculadas que afirmavam ser o bairro uma “ecovila”, um “bairro verde”. Some-se

a isso as irregularidades que a mídia local constantemente apontou – depósito de entulhos em

locais irregulares, açoreamento dos córregos –, além da especulação imobiliária em toda a cidade

pelos preços exorbitantes que são vendidos os imóveis. Os políticos que votaram o PDOT, assim

como o então governador José Roberto Arruda e o vice- governador Paulo Octávio, foram

protagonistas das denúncias no episódio conhecido como "Caixa de Pandora", todos eles os

maiores interessados na construção do Setor Noroeste.

Os índios aqui assumiram uma postura protagonista, formaram uma grande rede de

pessoas e organizações disposta a ajudá-los – os chamados de apoiadores – e fundaram a

Associação Cultural Povos Indígenas (ACPI), enfrentando o poderio político e econômico local

que estava apoiado por veículos de imprensa, como o Correio Braziliense, que colocava os

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índios como oportunistas, jamais mostrando a história e tudo que estava por trás da permanência

dos índios no local. A partir daí, o que vimos foi uma disputa muitas vezes desigual, em que o

poder policial local foi usado contra índios e apoiadores, tentando pressioná-los a deixar o local.

Lançando mão dos elementos que construíram como tradicionais ao longo do tempo e

que perpassam a todos que passarm pelo Santuário, os índios afirmam que não saem da terra por

ela ser sagrada para eles e para os seus antepassados.

Interessante é notar que a construção de Brasília – a partir de projetos modernistas que

tinham um objetivo específico de criação de uma “cidade-parque” para a burocracia estatal, ou

seja, querendo criar uma cidade, uma história – parecia negar, por meio do poder local, a

existência, a história, a permanência dos índios apenas por eles não comungarem da história, dos

desígnios, dos projetos que os empreendedores tinham/têm para cidade. Os índios são vistos e

tratados como invasores, como pessoas que não fazem parte da história da cidade,

diferentemente do que é. Eles são parte da história de ontem da cidade, como também da história

de hoje. Como aponta um dos entrevistados, é como se a história de Brasília tivesse acabado em

sua fundação em certo sentido, ou que há uma enorme tentativa em dominar o crescimento e a

história da cidade, mas ela escapa sempre aos governantes e políticos.

A parceria entre Estado e empresas tem gerado no Brasil uma insegurança tanto no que se

refere à garantia dos direitos dos povos indígenas como também na garantia da integridade física

dos índios. No Relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) sobre Violência contra os

Povos Indígenas no Brasil de 2011, observar-se o resultado desse tipo de parceria operando

dentro do DF no artigo de Renato Santana:

No centro do poder nacional, a capital da República, um grupo composto por 20

famílias indígenas resiste à sanha das construtoras que pretendem erguer no

território um condomínio de luxo, cujo metro quadrado configura entre os mais

caros do país, chegando perto de R$ 20 mil. Desde o começo da década de 1990

é reivindicada a demarcação de 50 hectares de terra indígena. A partir do

segundo semestre de 2011 a violência passou a ser sistemática e com o respaldo

da Polícia Militar, de empresas de segurança privada e do próprio Governo do

Distrito Federal (GDF), por intermédio da Terracap (Companhia Imobiliária de

Brasília). A razão principal da violência, outrora residual e agora intermitente, é

o assédio das construtoras, que com os apartamentos vendidos não podem

perder tempo, pois ele passou a ser contado pelos contratos de entrega sob pena

de multa por dia de atraso (SANTANA, 2011, p. 20).

Na construção da cidade de Brasília, no reconhecimento da presença dos índios hoje em

Brasília vemos elementos comuns. Vemos a necessidade de apagamento da parte de uma história

para celebrarmos apenas a outra parte. Vemos uma mídia que exerceu um importante papel na

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estigmatização e criminalização dos índios que moram no Santuário dos Pajés, mas que em

momento algum conectou os escândalos da operação Caixa de Pandora à construção do bairro

Setor Noroeste e mesmo as contínuas irregularidades que foram encontradas antes e durante sua

construção. Mídia que tenta minimizar os problemas, mostrar como a permanência ou não dos

índios se resolveria apenas com um acordo financeiro e dá como certa a construção do bairro.

Vemos uma Funai inerte, que não toma iniciativa para proteger os índios e sua demanda, nem ao

menos na garantia da sua integridade física, mas que fica em uma posição cômoda onde não

afirma nem nega a presença dos índios, deixando-os alvos de toda sorte de ação policial.

Para a Funai, essa posição conservadora que ela teve e tem ao longo desse processo,

mostra o quão problemática é a relação entre os indígenas e as demandas envolvendo a cidade,

novos arranjos dos grupos étnicos e povos indígenas. Simplesmente aplicar uma "fórmula" certa

e dada de que determinado grupo ocupa um território há mais de 100 anos, grupo que tem

registros históricos, até arqueológicos, não é simples assim. Para uma Terra Indígena ser

reconhecida, não é necessária que a ocupação seja antiga, pois muitos povos indígenas foram

deslocados das suas terras pelo processo de colonização, relocados e remanejados, inclusive pela

Funai.

Há que se lembrar do caso dos Tuxá da Bahia que viviam em Rodelas, em ilhas no Rio

São Francisco, mas que, com a construção da barragem de Itaparica, foram deslocados para a

nova cidade de Rodelas e para a cidade de Ibotirama. Em casos como o do Santuário, a Funai,

acaba por negar a agência e o protagonismo dos indígenas em constituírem novos arranjos e

organizações sociais, e acaba reiterando visões e preconceitos que não condizem com a realidade

de várias populações indígenas no Brasil hoje, como os Guarani, que constantemente mudam de

local e como tantos outros povos que certamente não estão mais no mesmo lugar.

Mostrei a relação entre a cidade de Brasília e o Santuário dos Pajés, foi de mostrar como

as duas histórias estão imbricadas. Além disso, mostrei que temos na demanda pelo Santuário

dos Pajés vários elementos que em si poderiam gerar outros estudos, como os laudos

antropológicos feitos, a relação entre o poder local e a construção do bairro, os discursos e

notícias oficiais sobre o bairro Setor Noroeste e um contradiscurso produzido pelos apoiadores

do Santuário por meio de mídias alternativas. Mostrei a dificuldade do reconhecimento e da

aceitação da existência de grupos indígenas em locais que a historiografia oficial não registrava

tal presença; além da complicada relação entre a posição dos índios – o que eles querem e de

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onde parte sua demanda a partir da ideia de um Santuário criado e mantido por eles por mais de

50 anos e a dificuldade – e a inércia da Funai e do poder local em ouvi-los, o qual nega a eles o

direito legítimo de construção e reconstrução cultural, social e político que os grupos humanos

têm, em benefício da construção do bairro Setor Noroeste, envolto em um discurso ecológico

que ganha, segundo o poder local e a grande mídia, mais legitimidade que a demanda dos índios

que estão tentando efetivar seus direitos constitucionais.

O que temos é o impasse entre o que é legítimo e o que é necessário (em um sentido

utilitarista). De um lado, o Santuário, cujo espaço ao longo do tempo foi apropriado pelos índios,

transformado e vivido como um santuário; e do outro lado, o bairro Setor Noroeste, criado a

partir de escândalos, denúncias de fraude e corrupção, considerado legal e necessário, ao

contrário do Santuário, pelo poder local.

As diferentes posturas dos dois lados (índios/apoiadores e poder local/Mídia) mostram a

necessidade que o poder local tem de dominar, invisibilizar, deslegitimizar e criminalizar os

índios e sua presença no local enquanto há uma campanha de transformar um bairro que não é

completamente legal em algo legítimo e politicamente correto. O que é sagrado e deve ser

preservado para os índios é a moeda de troca para se ter um “bairro verde” para as camadas

médias da cidade de Brasília.

O fato de os próprios índios, que historicamente sempre foram atores silenciados pelo

poder e pelas políticas públicas, construírem aqui uma estratégia não só de sobrevivência como

de resistência nos desafia a pensar nos limites da ação da Funai, a pensar nos casos dos índios

que vivem nas cidades, a pensar em o que é ser tradicional em Brasília, uma cidade fundada em

1960. Qual a relação que a cidade quer e pode ter com índios? Pois a relação que os índios do

Santuário querem ter com a cidade é clara, querem divulgar o local, fazer visitas guiadas para

estudantes e comunidade, encontros acadêmicos, ser ponto de encontro de várias culturas

indígenas. Eles têm uma postura muito aberta no que se refere à relação que querem manter com

a sociedade de Brasília. Já Brasília, representada pelo poderio, ao menos no discurso oficial,

usou sempre um tom acusatório, os colocando como oportunistas.

No entanto, nem todos compraram esses discursos, pois, a grande e heterogênea rede de

apoiadores sobre a qual só dei uma breve ideia, é maior e mais diversa. Esses apoiadores

compartilham com os índios uma ideia de uma cidade mais inclusiva, que respeite o que ainda

resta de cerrado, que mantenha sua qualidade e espaços verdes ao invés de espaços construídos e

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domesticados pelo “discurso verde”. Enfim, comungam de valores, que, mesmo sendo pessoas

muito diferentes, acham interessem comuns materializados na existência do próprio Santuário,

que segundo todos eles, não se move!

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APÊNDICE A – QUESTIONÁRIO AOS APOIADORES DO SANTUÁRIO

Perguntas das entrevistas com os apoiadores:

1. - Como você soube do santuário dos pajés?

2. - Você antes do santuário já conhecia ou apoiava alguma outra causa envolvendo

questões indígenas?

3. - Por que decidiu apoiar a causa deles? Quando você resolveu participar já havia muita

gente articulada no apoio ao santuário?

4. -Você participa de forma mais engajada de outros movimentos sociais? Qual a relação

que eles têm com a luta no Santuário, por exemplo?

5. - Como vocês organizam a presença e maior atuação no santuário?

6. - Para você, o que o Santuário representa?

7. - Você se considera "apoiador" do Santuário? Qual o papel do apoiador do Santuário?

8. - Como é sua relação com os demais apoiadores do Santuário?

9. - O que você espera dessa rede de apoiadores? O que acham que os índios esperam de

vocês?

10. - Como você vê a trajetória, o histórico das lutas pela manutenção do Santuário até

agora?

11. - Você vê a diferença na atuação dos apoiadores do Santuário de militantes de forma

geral?

12. - Como você vê a atuação de órgãos como a imprensa, a Funai (a demora e a omissão da

Funai no caso), o MP, o governo local, e os moradores das redondezas, as empreiteiras no

caso do Santuário?

13. - Você acha que o poder local e as empreiteiras esperavam encontrar uma resistência

como a encontrou no Santuário?

14. - Mesmo com as denúncias de irregularidades ambientais e até mesmo o leilão de terras

públicas inicial que daria origem ao bairro, o noroeste está se tornando uma realidade,

com muitos prédio já construídos, como você acha que será a relação dos moradores do

novo bairro e do santuário, você acredita que será possível essa convivência?

15. - Você acha que as pessoas que compraram apartamentos no noroeste estão comprando a

ideia do bairro verde?

16. - Pensando na Asa norte, e na cidade como um todo qual o impacto que uma obra como

essas tem?

17. - O que você espera como desfecho da situação como um todo?

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ANEXO A – DADOS DA IMAGEM DE SATÉLITE DO MAPA Nº 3.3

Fonte: Magalhães (2009 , p.12) e Ação Civil Pública nº 1.16.000.000301/2008-83 (2008, p.16).

- MARCO FUNAI 01 (Utm-W 187177.57 e Utm-S 8256643.16) e MARCO FUNAI 02

(Utm-W 188192.42 e Utm-S 8256643.09): delimitam a porção norte da área pretendida,

de acordo com medições realizadas pela FUNAI, em estudos realizados no ano de 2003.

- MARCO 01 (Utm-W 187015.54 e Utm-S 8256133.78): delimita a porção sudoeste da

área pretendida, havendo, nesta porção, um antigo cemitério Timbira, ponto de interesse

histórico e arqueológico ainda não estudado.

- MARCO 2 (Utm-W 187524.00 e Utm-S 8256684.00), MARCO 3 (Utm-W 187622.00

e Utm-S 8256688.00) e MARCO 4 (Utm-W 187626.58 e Utm-S8256655.63):

encontram-se aproximadamente na metade da linha que delimita a porção norte da área

pretendida e correspondem à localização da roça do indígena Towê Tapuya

- MARCO 3, à casa da indígena Suiane (filha de Towê Tapuya) e ao Santuário dos

Pajés

- MARCO 4, compondo o centro de convivência da comunidade.

- MARCO 5 (Utm-W 188238.00 e Utm-S 8256362.00): delimita a porção sudeste da

área pretendida, havendo, em seus arredores, sinais de sambaquis dos antigos indígenas

Bororos, indiciando uma ocupação pretérita ainda não estudada, apesar de seu interesse

histórico-cultural e arqueológico.

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ANEXO B – MAPAS SETOR NOROESTE DA EMPLAVI

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ANEXO C – ARIE CRULS – EMPLAVI

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ANEXO D – PILOTIS - MAPA DA BRASAL

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ANEXO E – IMAGEM VEICULADA PELO CORREIO BRAZILIENSE E

TAMBÉM UTILIZADA PELA EMPLAVI

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ANEXO F – MAPA DA ÁREA DO SANTUÁRIO E DO SETOR NOROESTE

OBTIDA NO SITE DO SANTUÁRIO DOS PAJÉS

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ANEXO G – LOGOTIPO DO MOVIMENTO DE APOIADORES DO

SANTUÁRIO DOS PAJÉS

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ANEXO H – PROPAGANDA DO SETOR NOROESTE

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ANEXO I – IMAGENS DO ÍNDIO GUAJAJARA ARAJU SAPETI

RETIRADO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA VOTAÇÃO

SOBRE COTAS.

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ANEXO J – NOTA DA ABA SOBRE O LAUDO REALIZADO NO

SANTUÁRIO DOS PAJÉS

A proteção dos direitos indígenas no Santuário dos Pajés, em Brasília-DF: Laudo entregue a FUNAI por antropólogos indicados pela ABA esclarece a questão 18/10/2011

Diante dos acontecimentos repercutidos na sociedade brasiliense e na imprensa nacional

sobre a invasão da terra indígena Bananal ou Santuário dos Pajés, localizada no Plano Piloto da

Capital Federal, o que tem acarretado na destruição do cerrado e em violência física contra

indígenas e seus simpatizantes, a Comissão de Assuntos Indígenas (CAI) da Associação

Brasileira de Antropologia (ABA) vem a público alertar para a urgência da identificação,

delimitação, demarcação e proteção da área, e prestar os seguintes esclarecimentos:

Por solicitação da FUNAI, a ABA indicou dois experientes antropólogos para a

elaboração do laudo antropológico sobre a área, cujos nomes foram previamente referendados

por lideranças da comunidade indígena do Santuário dos Pajés, onde vivem famílias Fulni-ô,

Kariri Xocó e Tuxá, oriundas do Nordeste do país. São eles: Prof. Dr. Jorge Eremites de Oliveira

(coordenador) e Prof. Dr. Levi Marques Pereira (colaborador), ambos docentes da Universidade

Federal da Grande Dourados (UFGD), sediada em Mato Grosso do Sul, onde atuam nos

programas de pós-graduação em Antropologia e História, tendo participado da produção de

diversos laudos administrativos e judiciais sobre terras indígenas naquele estado, todos

aprovados pelo órgão indigenista oficial.

O estudo intitulado Laudo antropológico referente à diligência técnica realizada em parte

da área da antiga Fazenda Bananal, também conhecida como Santuário dos Pajés, localizada na

cidade Brasília, Distrito Federal, Brasil, concluído sob a coordenação do antropólogo Prof. Dr.

Jorge Eremites de Oliveira, foi entregue no início de setembro de 2011 a servidores da FUNAI

em Brasília, a antropólogos do Ministério Público Federal (MPF) e a lideranças da comunidade

indígena do Santuário dos Pajés. Mais recentemente, no dia 13/10/2011, foi entregue uma nota

complementar com medições da terra indígena à Presidência da FUNAI, MPF e lideranças do

Santuário dos Pajés.

O Laudo concluído atesta de maneira clara, objetiva e consistente que se trata de terra

tradicionalmente ocupada por comunidade indígena, cuja extensão é de, pelo menos, 50,91

hectares. Atesta que a ocupação indígena no Santuário dos Pajés remonta a fins da década de

1950, quando ali chegaram indígenas da etnia Fulni-ô, provenientes de Águas Belas,

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Pernambuco, e iniciaram o processo de ocupação da área. Posteriormente, a partir da década de

1970, famílias Tuxá e Fulni-ô estabeleceram moradia permanente no lugar e ali passaram a

constituir uma comunidade multiétnica, com fortes vínculos de tradicionalidade com a terra e

participantes de uma complexa rede de relações sociais. Mais tarde somaram-se a elas famílias

Kariri Xocó. Um Processo da FUNAI no qual constavam importantes documentos para o

esclarecimento dos fatos, inclusive procedimentos oficiais para a regularização da área, sob Nº

1.607/1996, desapareceu de dentro do próprio órgão indigenista.

Nos últimos anos, parte da área tem sofrido impactos negativos diretos pelas obras do

Projeto Imobiliário Setor Noroeste, sob a responsabilidade da empresa Terracap, cujo

licenciamento ambiental ocorreu sem o necessário estudo do componente indígena local. Além

disso, tem sido registrada a destruição da área de preservação ambiental e o uso da violência

física contra membros das famílias indígenas e seus apoiadores, bem como prejuízos às suas

moradias e demais benfeitorias, conforme divulgado pela imprensa nacional.

É urgente que a FUNAI constitua um Grupo de Trabalho para proceder aos estudos

necessários à identificação, delimitação e demarcação da terra indígena, em conformidade com a

lei. Isso é necessário que a Justiça faça jus ao próprio nome e proíba a continuidade das obras,

solicitando a retirada das construtoras da área e apurando as violações aos direitos humanos,

indígenas e ambientais que têm sido amplamente divulgadas nos meios de comunicação.

A morosidade da FUNAI em tomar as providências para assegurar os direitos territoriais,

inclusive no que se refere à entrega formal do laudo à Justiça, tem aumentado a situação de

vulnerabilidade e causado grandes prejuízos àquela comunidade indígena e à conservação

ambiental do lugar. Tal postura favorece os setores ligados à especulação imobiliária em Brasília

e seus aliados políticos, inclusive pessoas ligadas a conhecidos esquemas de corrupção no

Distrito Federal e segmentos da impressa a elas vinculados, os quais seguidamente distorcem e

manipulam os fatos a favor de seus patrocinadores.

Rio de Janeiro, 18 de outubro de 2011.

João Pacheco de Oliveira

Coordenador da Comissão de Assuntos Indígenas/ABA

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ANEXO K – IMAGENS DOS EVENTOS PROMOVIDOS NO SANTUÁRIO

DOS PAJÉS

Herbário do Pajé Santxiê

I Jornada Arqueológica Tribal do Planalto Central de 27 a 29 de junho de 2008.

Imagens disponíveis http://jornadatribal.blogspot.com.br/

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Projeto de visitação guiada ao Santuário - 2010.

Imagens dos dois eventos promovidos por índios e apoiadores na UnB para divulgar o

Filme: "Sagrada Terra Especulada" e debate sobre a situação do Santuário dos Pajés.

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Imagens do convite para o Toré do Milho realizado no Santuário.

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Imagens da II Jornada Tribal de Arqueologia e História Indígena.

Disponível em <http://jornadasantuariodospajes.blogspot.com.br/p/i-jornada-tribal-de-arqueologia-2008.html>.

Arquivo de Tereza Mourão.