e. sofia dois tipos de entidade e dois modelos de sistema em ferdinand de saussure_ projeto...

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CAPÍTULO 8 DOIS TIPOS DE ENTIDADE E DOIS MODELOS DE “SISTEMA” EM FERDINAND DE SAUSSURE Estanislao SOFÍA Université de Paris X-Naterre A primeira questão que temos de nos colocar na linguística estática é precisamente a das entidades ou das unidades F. de SAUSSURE 1. INTRODUÇÃO A questão da determinação das unidades linguísticas sempre esteve no centro da atenção de Saussure. A linguística, dizia ele, tem “por tarefa determinar quais são <realmente> essas unidades” que, em sua época, permaneciam “mal definidas” 1 . E “não somente essa determinação das unidades que ela maneja será a tarefa mais premente da linguística como, fazendo isso, ela terá cumprido inteiramente sua tarefa” (Cours II, Riedlinger, p. 21). Essas passagens provêm da aula de 30 de novembro de 1908, uma das primeiras do segundo curso de linguística geral. Dois anos mais tarde (6 de maio de 1911), durante uma entrevista com Léopold Gautier, Saussure admitia ainda que seu “sistema de filosofia de linguagem” não estava “elaborado o bastante” (SM, p. 30) e até garantia que, embora esses temas o tivessem ocupado fazia muito tempo, numerosíssimas dúvidas subsistiam ainda para que ele imaginasse expô-los a seus ouvintes. Dito isso, ele avançava que “o essencial é o problema das unidades” (SM, p. 30) 2 . Em 5 de maio de 1991, na véspera, Saussure tinha se perguntado sobre o fato de saber “quais são as entidades concretas que compõem a língua” (Cours III, Constantin, A, p. 78), questão sobre a qual retornará no momento final do curso, em 27 de junho de 1911 (ver epígrafe). Essa questão das unidades ou entidades o preocupou (de maneira “quase obsedante”, segundo Raffaele Simone [2006, p. 41]) ao longo de toda a sua reflexão. O tema, portanto, é complexo e comporta vários aspectos. Nosso propósito é abordar um desses aspectos e mostrar que é possível formular duas respostas a essa questão – ainda que nos limitemos somente ao corpus das notas que têm a ver com os três cursos de linguística geral (1907-1911). A primeira, sugerida talvez a Saussure pelo hábito dos estudos indo-europeus de outrora, requer a observação de um sistema de valores puramente diferenciais, expressão que conhecerá seu maior desenvolvimento no quadro da fonologia, sobretudo em Praga, e que fará nascer o conceito de “fonema”. A outra entidade postulável, no 1 René Amacker estimava ainda, em 1975, que o problema permanecia inteiro (Amacker, 1975, p. 129). 2 Já em 1891, durante a redação de De l’essence double du langage (veremos mais adiante as razões por que atribuímos essa data a esse manuscrito), Saussure afirmava que “todo o trabalho do linguista que quer dar-se conta, metodicamente, do objeto que estuda consiste da operação extremamente difícil e delicada da definição das unidades” (ELG, p. 26, itálicos no original).

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Il y a dans les textes saussuriens – ou signés de son nom – deux applications différentes du terme système.Je me propose montrer en quoi ces deux notions de système et ces deux notions d’arbitraire sont logiquement dépendantes d’une question que Saussure, tout en sachant qu’il s’agissait de quelque chose d’essentiel, n’a pas eu le temps de répondre : « Quelles sont les entités concrètes qui composent la langue ? » (Godel 1957a : 83 [cf. Engler 1686 B C D E et Komatsu 1993 : 78]) .

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  • CAPTULO 8 DOIS TIPOS DE ENTIDADE E DOIS MODELOS DE SISTEMA EM FERDINAND DE SAUSSURE Estanislao SOFA Universit de Paris X-Naterre A primeira questo que temos de nos colocar na lingustica esttica precisamente a das entidades ou das unidades F. de SAUSSURE 1. INTRODUO A questo da determinao das unidades lingusticas sempre esteve no centro da ateno de Saussure. A lingustica, dizia ele, tem por tarefa determinar quais so essas unidades que, em sua poca, permaneciam mal definidas1. E no somente essa determinao das unidades que ela maneja ser a tarefa mais premente da lingustica como, fazendo isso, ela ter cumprido inteiramente sua tarefa (Cours II, Riedlinger, p. 21). Essas passagens provm da aula de 30 de novembro de 1908, uma das primeiras do segundo curso de lingustica geral. Dois anos mais tarde (6 de maio de 1911), durante uma entrevista com Lopold Gautier, Saussure admitia ainda que seu sistema de filosofia de linguagem no estava elaborado o bastante (SM, p. 30) e at garantia que, embora esses temas o tivessem ocupado fazia muito tempo, numerosssimas dvidas subsistiam ainda para que ele imaginasse exp-los a seus ouvintes. Dito isso, ele avanava que o essencial o problema das unidades (SM, p. 30)2. Em 5 de maio de 1991, na vspera, Saussure tinha se perguntado sobre o fato de saber quais so as entidades concretas que compem a lngua (Cours III, Constantin, A, p. 78), questo sobre a qual retornar no momento final do curso, em 27 de junho de 1911 (ver epgrafe). Essa questo das unidades ou entidades o preocupou (de maneira quase obsedante, segundo Raffaele Simone [2006, p. 41]) ao longo de toda a sua reflexo. O tema, portanto, complexo e comporta vrios aspectos. Nosso propsito abordar um desses aspectos e mostrar que possvel formular duas respostas a essa questo ainda que nos limitemos somente ao corpus das notas que tm a ver com os trs cursos de lingustica geral (1907-1911). A primeira, sugerida talvez a Saussure pelo hbito dos estudos indo-europeus de outrora, requer a observao de um sistema de valores puramente diferenciais, expresso que conhecer seu maior desenvolvimento no quadro da fonologia, sobretudo em Praga, e que far nascer o conceito de fonema. A outra entidade postulvel, no 1 Ren Amacker estimava ainda, em 1975, que o problema permanecia inteiro (Amacker, 1975, p. 129). 2 J em 1891, durante a redao de De lessence double du langage (veremos mais adiante as razes por que atribumos essa data a esse manuscrito), Saussure afirmava que todo o trabalho do linguista que quer dar-se conta, metodicamente, do objeto que estuda consiste da operao extremamente difcil e delicada da definio das unidades (ELG, p. 26, itlicos no original).

  • caso o signo, no redutvel a caracteres puramente negativos e diferenciais e exige, assim, que se considere um sistema outro que no o das puras diferenas; esse sistema Saussure pode apenas esboar. Aqui no nos alongaremos em torno dos motivos que presidem a essa divergncia. Nosso nico objetivo mostrar que existem (e no como Saussure chegou a eles, nem por qu) dois esquemas conceituais diferentes e de certa maneira opostos a partir dos quais possvel ordenar as teses saussurianas, e que cada um desses esquemas supe um prottipo diferente de unidade lingustica. 2. NA LNGUA S EXISTEM DIFERENAS 2.1. Durante a segunda aula do segundo curso, em 12 de novembro de 1908, Saussure sustentava que antes de tudo a lngua um sistema de signos e empreendia a seguir uma comparao com a escrita, que , dizia ele, um sistema de signos similar ao da lngua: Suas principais caractersticas so: 1) O carter arbitrrio do signo [...]; 2) Valor puramente negativo e diferencial do signo [...]; 3) O valor do signo opositivo e s vale dentro de um sistema [G] [...] 2) e 3) so uma consequncia necessrio de 1). Basta dizer que os signos so arbitrrios. (Cours II, Riedlinger, pp. 7-8)3 Embora, propriamente falando, essas principais caractersticas se apliquem, no exemplo, aos sistemas de escrita, Saussure acrescenta, trs linhas mais adiante, que encontramos todas essas caractersticas na lngua (Cours II, Riedlinger, p. 8). Somos autorizados, portanto, a deduzir da que a lngua , ela tambm, considerada como um sistema de entidades aqui chamadas signos definidas como arbitrrias e puramente negativas e diferenciais. Deixemos de lado, por enquanto, o fato de o carter puramente diferencial dessas entidades aqui chamadas signos ser para Saussure uma consequncia necessria da arbitrariedade. Vejamos num primeiro momento em que pode consistir tal sistema de valores puramente negativos e diferenciais. 2.2. Se o valor de um termo puramente negativo e diferencial, a afirmao de que ele s vale dentro de um sistema pleonstica: assim definido, um termo s pode existir ao lado de outros aos quais se ope, dentro de um sistema4. Aquele 3 O terceiro item reproduzido aqui da verso de L. Gautier, mais bem adaptada ao nosso objeto. Riedlinger tinha anotado: 3) Os valores de escrita s agem como grandezas opostas elas so opositivas, s so valores por oposio. (No completamente a mesma coisa que 2) mas se resolve bem finalmente no valor negativo. Bouchardy e Constantin do verses semelhantes e perfeitamente concordantes (ver CLG/E1, p. 269, par. 1933) 4 Se por valor Saussure se refere s propriedades atribudas a um termo por sua participao num sistema, s propriedades que so, diz ele, a contrapartida dos termos coexistentes (Cours III,

    Constantin, A, p. 135), o conceito de sistema est ento implicado no de valor. A frmula valor puro (que todavia no figura nos manuscritos que devemos a Bally e Sechehaye [ver CLG, p. 155]) deveria ser compreendida como elemento cujas propriedades todas lhe so conferidas por seu pertencimento a um sistema. Nesse sentido, a ideia de valor puramente negativo e diferencial equivaleria ideia de valor puro. (Para uma discusso sobre os limites dessa equivalncia, ver Sofa, 2008).

  • termo s poder ser definido e at mesmo identificado a partir das diferenas que o separam do resto. Assim, se imaginssemos, para essas entidades diferenciais e negativas, um sistema com quatro elementos, A, B, C e D, as perguntas que o termo A?, quais so as propriedades do termo A?, onde reside a identidade do termo A? etc. receberiam uma nica e mesma resposta: A o que no nem B nem C nem D5. O valor de A consiste nisso e a, e somente a, que reside sua identidade e se esgotam suas propriedades6, o que poderia ser representado da seguinte maneira (onde o smbolo significa o que no ): Essa noo de um sistema de diferenas idealmente puras, onde no h nenhum trao positivo, de uma extrema preciso. Os termos pertencentes a tal sistema mantm uma relao de solidariedade, por assim dizer, perfeita: qualquer variao que incida sobre qualquer elemento tem que repercutir sobre o conjunto, sem excees. Assim, por exemplo, o hipottico desaparecimento do termo C teria por consequncia direta, automtica e imediata uma modificao, digamos, do valor do termo B, que no seria mais C, D, A, mas D, A. E de igual modo para o resto: Ora, se, na passagem citada, Saussure afirma que o signo uma entidade desse gnero, e uma entidade desse gnero implica o conceito de sistema, a assero de que a lngua um sistema de signos deve ento ser compreendida no sentido muito preciso exposto acima. Eis ento que a lngua, nessa primeira aproximao, 5 Troubetzkoy (1939, p. 74) definia o r alemo desta maneira: no uma vogal, no uma plosiva determinada, no uma nasal, no um l. Essa definio, em Troubetzkoy, diz respeito ao plano da expresso, mais precisamente aos fonemas. Esse tambm o caso, no mais das vezes, em Saussure (cf. Cours I, Riedlinger, B, pp. 116 sqq.; ELG, p. 71; etc. [ver nota 9, abaixo]). H porm trechos em que Saussure aplica o mesmo princpio ao plano semntico. Assim, por exemplo, nesta nota sobre a morfologia: o, considerado com relao a seus contemporneos, o portador de uma certa ideia, que no a de o, que no a de , o assim como das partes de o (ELG, p. 182 [ver tambm, no mesmo sentido, as consideraes a propsito do grego o (Cours II, Riedlinger, p. 55) e as que figuram em De lessence double du langage a propsito de sol (ELG, p. 72)]. O procedimento lembra a teoria do Apoha (ou teoria do significado por excluso [Sidertis, 1985, p. 140]), formulada pelo lgico indiano Dignaga no sculo V-VI de nossa era (ver Scharma, 1968; Sidertis, 1985, Gupta, 1985). Para uma anlise da questo e das possveis influncias das teses indianas sobre o pensamento de Saussure, ver principalmente o trabalho de DOttavi, neste mesmo volume (captulo 9), e os de Rastier (2002) e Atlani-Voisin (2003). 6 Saussure afirmava assim que, para o fato lingustico, elemento e caracterstica so eternamente a mesma coisa. prprio da lngua, como de todo sistema semiolgico, no admitir nenhuma diferena entre o que distingue uma coisa e o que a constitui. (ELG, p. 263 [Negrito nosso, ES]). Da esta consequncia deduzida por Milner: s existem propriedades diferenciais (Milner, 1994, p. 15).

  • considerada como uma espcie de conjunto, chamado sistema, de entidades puramente negativas, opositivas e diferenciais, aqui chamadas signos. Se a isso acrescentamos o fato de que, segundo Saussure, esse estado de coisas uma consequncia necessria da arbitrariedade, resulta que, neste ponto da argumentao, a lngua um sistema porque o signo arbitrrio7. Voltaremos a isso (ver 4 e 7). 2.3. A pergunta que cabe fazer, neste momento, tem a ver com o tipo de entidade lingustica resultante somente da considerao dessas caractersticas diferenciais, opositivas e negativas. Pois, apesar da opinio de Saussure, parece que essa tripla exigncia no pode se aplicar a todas as entidades existentes numa lngua. A crer em Jakobson, a nica entidade lingustica suscetvel de preencher essa exigncia seria o que ele chama, no quadro da fonologia de Praga, de fonema. S o fonema um signo diferencial puro e vazio. O nico contedo lingustico [...] do fonema sua dessemelhana com relao a todos os outros fonemas do sistema dado (Jakobson, 1976, p. 78). Desse ponto de vista, a lngua, definida como um sistema de valores puros, seria, segundo Jakobson, nada mais que uma lngua de fonemas (ibid., p. 78), e Saussure, que tinha compreendido perfeitamente o carter puramente diferencial e negativo dos fonemas (ibid., p. 75), teria generalizado precipitadamente sua concluso ao tentar aplic-lo a todas as entidades lingusticas (ibid., p. 76). Ora, de fato, para alm dos problemas terminolgicos (sabemos que fonema remete a conceitos diferentes para Saussure e para os fonologistas de Praga)8 e de que tenha sido precipitado ou no, Saussure se baseou, na passagem citada, na considerao de uma parcela restrita dos fenmenos lingusticos, no caso os sistemas de escrita, para tentar em seguida encontrar todas as suas caractersticas na lngua inteira (ver 2.1)9. 7 Este ponto tem estado na origem de uma pequena controvrsia, indcio, talvez, de uma dificuldade. Gadet e Pcheux (1981, p. 52) a formularam com clareza: Se for absolutamente necessria uma pedra de toque da teoria, onde se dever busc-la? Na arbitrariedade do signo ou no valor?. Amacker (1975, p. 81) acreditava que o conceito de arbitrariedade que constitui a espinha dorsal da teoria; Mounin (1972, p. 51) e De Mauro (CLG, p. 464) tambm. Os editores do CLG, porm, observaram que a tese de que a lngua seria um sistema de valores inteiramente relativos que conduziria edificao do conceito de arbitrariedade do signo (CLG, p. 157), o que De Mauro, com razo (ao menos filologicamente), contestou (CLG, p. 464). Engler (1964, p. 31) e Normand (2000, p. 73) afirmaram, com prudncia, que h determinao recproca entre esses dois conceitos (cf. tambm CLG, p. 163). Bouquet (1997, p. 235, p. 279 e p. 291) e Arriv (2007, p. 67), mais recentemente, defenderam o ponto de vista dos editores. Frei se limitou a assinalar, por seu turno, que a teoria saussuriana, neste ponto, encerra contradies (1974, p. 124). 8 Ver Troubetzkoy (1939/1949, p. 9), Jakobson (TLCP II, p. 103 [citado por Troubetzkoy]), De Mauro (CLG, p. 433, n. 111]), Marchese (1985 e 1999). 9 Esse gesto generalizador aparece muitas vezes no corpus saussuriano. Ns o encontramos, por exemplo, neste trecho das anotaes feitas por Riedlinger no final do primeiro curso: A verdadeira maneira de se representar os elementos fnicos de uma lngua no consider-los como sons que tm um valor absoluto, mas com um valor puramente opositivo, relativo, negativo. [...] A lngua s pede a diferena. [...] Nessa constatao, seria preciso ir muito mais longe e considerar todo valor da lngua como opositivo, e no como positivo, absoluto (Cours I, Riedlinger, p. 116). Sechehaye, que conhecia os desdobramentos de Praga, tambm era partidrio dessa generalizao: Por via de consequncia ou de analogia, o que verdadeiro para o fonema parece ser verdadeiro igualmente para qualquer outro elemento funcional do sistema lingustico (Sechehaye, 1942, p. 46); Somos [...] forados a pensar que o que os fonologistas disseram do fonema deve ser generalizado e aplicado a todas as entidades lingusticas igualmente (ibid., p. 48).

  • Pouco importa, por conseguinte, para nossa reflexo, saber se o modelo em que Saussure pensa naquele instante e ao qual consagra seus exemplos lhe fora inspirado pela considerao dos fonemas (ver Jakobson, 1976, p. 76 e passim) ou, como pensava por exemplo Buyssens, sugerido pelo estudo do sistema primitivo das vogais (1961, p. 21). O certo que essa concepo de que s existem diferenas no se aplica, no caso, a todas as entidades lingusticas, pois j no aplicvel sequer ao conceito de signo. Desse conceito, e para efeitos da argumentao, s destacaremos uma nica caracterstica: o signo , segundo Saussure, um ser duplo (Cours II, Riedlinger, p. 12), a associao de um conceito e de uma imagem auditiva ou, segundo a terminologia introduzia em 19 de maio de 1911, o elo que une o significante ao significado (Cours III, Constantin, A, p. 93). Ora, assim definido, como veremos, o conceito de signo incompatvel com a noo de sistema de puras diferenas. Para defender essa tese, e para no repetir reflexes conhecidas10 que, alis, subscrevemos , ofereceremos apenas um argumento. 3. NA LNGUA NO EXISTEM SOMENTE DIFERENAS Em sua aula de 30 de junho de 1911, Saussure introduz um captulo intitulado Valor dos termos e sentido das palavras. Em que as duas coisas se confundem e se distinguem (Cours III, Constantin, A, p. 134). Trata-se ali de uma distino a ser estabelecida entre o conceito de valor e uma outra noo, no caso a de sentido: talvez uma das operaes mais delicadas a se fazer em lingustica, ver de que modo o sentido depende e entretanto permanece distinto do valor (Cours III, Constantin, A, p. 134). Alm dessa dependncia do sentido com relao ao valor (questo de que no nos ocuparemos aqui11) e da ocorrncia pouco rigorosa, nessa passagem, dos termos sentido, significao e conceito, o que nos interessa sublinhar o fato de haver duas noes que permanecem distintas. Para ilustr-las, Saussure introduz inicialmente este esquema: E o comenta nestes termos: Nesta viso, a significao [sic (= conceito, ES)] a contrapartida da imagem auditiva e nada mais (Cours III, Constantin, A, p. 135). Trata-se da representao de um signo, tal como foi definido mais acima: um conceito ligado a uma imagem auditiva. Em seguida, Saussure assinala um paradoxo e pe seus ouvintes em alerta contra o que poderia constituir uma armadilha: a significao [sic (= conceito, ES)] que nos aparece como a 10 Ver entre outros Martinet, 1957; Prieto, 1964, p. 34; Frei, 1974, p. 126 e passim; Godel, 1975, p. 89; Jakobson, 1976, p. 76 e passim; Harris, 1987, p. 231; Harris, 2000, p. 302 e passim; Harris, 2003, p. 12 e passim; Arriv, 2007, pp. 72-73; etc. 11 A relao entre significao e valores se inclui entre as noes menos transparentes da teoria saussuriana. Sobre essa dificuldade, ver entre outros Godel (SM, pp. 236-242), Gadet (1987, pp. 65-66), Harris (1987, pp. 37-43), Badir (2000, pp. 36 e sqq.).

  • contrapartida da imagem auditiva na mesma medida a contrapartida dos termos coexistentes na lngua (Cours III, Constantin, A, p. 135). Saussure insere ento um segundo esquema: E acrescenta: primeira vista, nenhuma relao entre flechas a) e flechas b). [...] O valor a contrapartida dos termos coexistentes. Como que isso se confunde com o que contrapartida da imagem auditiva[?] (ibid.). Esses dois tipos de relaes permanecem, insiste Saussure, difceis de distinguir (ibid.), a significao como contrapartida da imagem [i. e. o conceito, ES] e a significao como contrapartida dos termos coexistentes [i. e. o valor, ES] se confundem (ibid.). E, com efeito, as notas de Constantin se revelam particularmente confusas nesse ponto. A aula termina e no se compreende realmente em que essas duas noes se confundem nem em que elas se distinguem. Ao que parece, Saussure teve dificuldade em discernir essas duas noes ou, pelo menos, em expor claramente a seu auditrio a diferena entre elas. A questo, sem dvida, est longe de ser andina. Trata-se, de fato, de saber se possvel ou no endossar a postulao de que as propriedades das entidades lingusticas podem ser reduzidas a seu valor, definido, aqui, como contrapartida dos termos coexistentes. Em caso afirmativo, seria preciso poder afirmar que s existem valores, e nada mais; isto , valores puros; isto , puramente diferenciais (ver nota 4). Era o que ele tinha encontrado no nvel dos sistemas de escrita e tentado, em seguida, generalizar para todo valor da lngua (ver nota 9). Agora, ao menos segundo o que sobressai das anotaes de Constantin, ele no parece muito persuadido da validade dessa operao. Em suas notas pessoais, no entanto, a coisa bem diferente. Aps ter experimentado alguns esquemas12, Saussure representa, desta vez de maneira conjunta, aqueles dois tipos de relaes: 12 Saussure parece ter se empenhado em traar um esquema satisfatrio. As anotaes manuscritas (BGE, Ms. Fr. 3951, flios 27 e 28), muito mais rascunhadas e repletas de rasuras do que a transcrio oferecida nos crits deixa transparecer (ver ELG, pp. 335-336), oferecem ainda mais dois esquema. A preocupao de Saussure parecer ter sido mostrar que o conceito de valor que pouco antes tinha sido identificado contrapartida dos termos coexistentes (= relaes de tipo a), dizia respeito, na realidade, a duas noes diferentes ao mesmo tempo: prprio do valor pr em relao essas duas coisas. [...] A nica coisa indiscutvel que o valor vai nestes dois eixos, determinado segundo estes dois eixos simultaneamente:

    (ELG, p. 335). essa leve (mas significativa) mudana de posio que nos interessa enfatizar: ou o conceito de valor pode ser reduzido somente contrapartida dos termos coexistentes (relaes a), ou ele concentra em si os dois tipos de relaes que estamos analisando (a e b): as entidades que decorrem de um e do outro modelo no podem ser do mesmo tipo.

  • Saussure acrescenta ento, sem hesitao alguma, que a relao simile : dissimile uma coisa perfeitamente diferente da relao simile : similia (ELG, p. 336). E isso se revelar de capital importncia. Com efeito, sendo a relao b) (simile-dissimile)13 uma coisa perfeitamente diferente da relao a) (simile-similia), disso se deduzir que estamos diante de entidades duplas (isto , complexas [Cours II, Riedlinger, p. 2]) e, por conseguinte, no definveis exclusivamente a partir de diferenas. Se s existissem diferenas, como foi possvel sustentar mais acima, as relaes a e b deveriam se confundir numa nica noo. As nicas propriedades tolerveis por um termo puramente diferencial e negativo s existem por assim dizer fora dele, e toda eventual propriedade interna que seria distinta da pura soma das puras relaes diferenciais fica excluda pela premissa de partida. Se retomarmos o exemplo do sistema de quatro termos analisado mais acima (ver 2.1), poderamos represent-lo assim: A identidade, o valor e as propriedades de cada termo equivalem, nesse exemplo, soma das relaes a que constitui o sistema. O valor do termo A, como se viu, se reduz a ele no ser B nem C nem D, e eis toda a informao pertinente, concebvel e possvel para esse termo e por esse sistema. Assim, se desejssemos representar, tratando-se desse mesmo exemplo, uma suposta relao b, s se poderia atingir um resultado perfeitamente equivalente: A pretensa dualidade do termo se revela assim, para um sistema de diferenas puras, abolida: num tal sistema, no h disjuno possvel entre relaes a e relaes b. Portanto, se essa distino merece ser considerada, como Saussure pretende perto do final de seu terceiro curso (ver ELG, p. 336), porque j no estamos confrontados a um sistema de diferenas puras, porque existem propriedades outras (e, por conseguinte, entidades outras) que no puramente diferenciais. Ora, para que elas existam, preciso que exista uma espcie de concesso, estranha a um sistema de puras diferenas, que possa vir justificar que uma entidade receba marcas que se inscrevem alm. 4. NA LNGUA EXISTEM SIGNOS 13 A dessemelhana prpria aos elementos que constituem um signo, enunciada aqui em latim, explicitada em De lessence double du langage sob uma frmula de reminiscncias um tanto gregas: ali Saussure fala, com efeito, de associao de dois elementos heterogneos (ELG, p. 18). Esses dois elementos heterogneos sero posteriormente identificados, por meio de parnteses, dupla signos-ideias (ver ELG, p. 20).

  • Essa ideia de um eventual sistema de signos (concebidos como entidades duplas) exige, com efeito, a adeso a uma noo que Saussure chama de conceito, significao, sentido, ideia ou significado, pouco importa que se distingue necessariamente da noo de valor puramente diferencial 14 . O feixe de informao lingustica pertinente veiculado por um signo excede, necessariamente, o que pode estar implicado no valor puramente negativo e diferencial15. nesse sentido que Saussure admite, no extremo final do terceiro curso (4 de julho de 1911), ser possvel, na realidade, falar de algo que pode se assemelhar a termos positivos e portanto sustentar que s existem diferenas (Cours III, Constantin, A, p. 142 [ver tambm ELG, p. 64). Essa combinao de um conceito com uma imagem auditiva poder, sem dvida, no responder a nenhum critrio e, por conseguinte, ser arbitrrio o que era bem a opinio de Saussure , mas convm notar que para que haja combinao, seja ela arbitrria ou no, preciso admitir o carter duplo das entidades tratadas, carter duplo que implica, repitamos, que entidade chamada signo possam ser conferidas propriedades distintas das que decorreriam de um sistema puramente diferencial, onde somente haveria diferenas (ver 2). Essas entidades que so os signos consistem, portanto, numa ligao indissolvel e arbitrria de dois elementos heterogneos que, afirma Saussure, se tornam qualidades um do outro: o conceito se torna uma qualidade da substncia , tal como a sonoridade se torna uma qualidade da substncia conceitual (Cours III, Constantin, A, p. 79). Em maio de 1911, Saussure introduz, porm, um elemento indito:

    Postulvamos como uma verdade evidente que a ligao do signo [sic (= imagem auditiva), ES] para com ideia representada radicalmente arbitrria. [No entanto], em toda lngua, preciso distinguir o que permanece radicalmente arbitrrio e o que se pode chamar de arbitrrio relativo. Somente uma parte dos signos em toda lngua sero radicalmente arbitrrios. (ibid., p. 85) O que era uma verdade evidente se v, na realidade, limitado pelo fato de que a lngua um sistema: Tudo o que faz de uma lngua um sistema exige ser abordado sob esse ponto de vista [...]: limitao

    da arbitrariedade com relao ideia (ibid., p. 87). Esse trecho, interessantssimo, mostra que at 5 de maio de 1911, data em que introduz a ideia da limitao da arbitrariedade, Saussure tinha se permitido definir a entidade signo sem considerar o fato de que ela pertencia a um sistema. O que ele sempre tinha ensinado como uma verdade no o mais e pede, ento, que seja redefinida a partir do momento em que considerada do ponto de vista do sistema. Mas de que sistema se est falando? De um sistema diferente, claro, daquele que decorria do primeiro trecho examinado. No primeiro modelo, concluramos, a lngua era um sistema (de valores puramente diferenciais) porque o signo arbitrrio: o carter 14 E isso apesar das frmulas repetitivas do manuscrito De lessence double du langage, onde Saussure garante que esses termos so sinnimos: No estabelecemos nenhuma diferena sria entre os termos valor, sentido, significao, funo ou emprego de uma forma, nem mesmo com a ideia como contedo de uma forma; esses termos so sinnimos (ELG, p. 28). Autores como Boquet (2000, p. 13) e Rastier (2002, p. 24) defendem esta sinonmia. 15 Assim, Louis de Saussure fala do carter inoperante do critrio do valor sozinho (Saussure [L. de], 2004, p. 290) e da sub-informatividade [] gritante da noo de sistema de valores puros (Saussure [L. de], 2006, p. 187).

  • sistemtico da lngua era uma consequncia necessria da arbitrariedade (ver 2.2). Neste segundo modelo, o argumento se inverteu. Tambm se diz que a lngua um sistema, mas, agora, do carter sistemtico da lngua resulta, ao contrrio, que o signo no radicalmente arbitrrio. Os conceitos de arbitrariedade e de sistema no so mais correlativos, eles agora entram em concorrncia. Haveria, assim, duas afirmaes antagnicas: a) a lngua um sistema porque o signo radicalmente arbitrrio ( 2) b) o signo no radicalmente arbitrrio porque a lngua um sistema ( 4)16 Trata-se, evidentemente, de duas noes distintas de sistema. Analisamos brevemente as propriedades do sistema que decorria do primeiro trecho submetido a exame, onde a considerao de um elemento qualquer implicava a considerao do sistema e era, em ltima instncia, uma espcie de resumo desse sistema; onde dizer A equivalia a dizer B, C, D; onde isso era mesmo tudo o que se podia dizer do termo A (ver 2). Tentemos, agora, ver em que pode consistir esse segundo modelo de sistema cuja existncia implica, diz Saussure, uma limitao da arbitrariedade. 5. A LNGUA UM SISTEMA DE SIGNOS17 Os primeiros exemplos de limitao da arbitrariedade que Saussure oferece dizem respeito somente a signos analisveis e tm a ver, portanto, com a sintagmtica. Vinte ser absolutamente imotivado, j que inanalisvel; dezenove, ao contrrio, sendo composto, pereira, sendo derivado e, em geral, todo termo que evoca um termo coexistente na lngua ser relativamente motivado (Cours III, Constantin, A, pp. 85-86). No ltimo instante da ltima aula, Saussure introduz porm um elemento que se revelaria, segundo Frei (1974, p. 123), decisivo. Ele afirma ali, de fato, que a solidariedade dos termos no sistema pode ser concebida como uma limitao da arbitrariedade, seja [a] solidariedade sintagmtica, seja [a] solidariedade associativa (ibid., p. 143). Essa ideia de uma limitao da arbitrariedade pela solidariedade associativa dos termos uma ideia insuficientemente amadurecida, segundo Godel (SM, p. 227) era somente, tudo bem considerado, o desenvolvimento lgico do que j comportava a limitao sintagmtica. Como afirmou Frei nitidamente numa nota, nenhuma poro [...] pode constituir um sintagma se no for dividida em unidades menores, diviso que s possvel se cada uma delas fizer parte de uma classe de substituies (Frei, 1974, p. 125). Assim, Saussure explicava que na medida em que essas ouras formas [refazer, perfazer, fazer, desordenar, deslocar, ES] flutuam em torno de desfazer que possvel analisar, decompor desfazer em unidades 16 Da se poderia tirar este divertido argumento: se o signo fosse radicalmente arbitrrio, a lngua seria um sistema; ora, acontece que, efetivamente, a lngua um sistema, eis por que o signo nao radicalmente arbitrrio. Este sofista lembra a anedota freudiana do caldeiro furado: A pediu emprestado um caldeiro de cobre a B. Depois que o devolveu, B levou A ao tribunal acusando-o de ser responsvel pelo grande buraco que se acha ali agora e que torna o utenslio inutilizvel. A apresenta sua defesa nestes termos: Primeiro, jamais pedi um caldeiro emprestado a B; segundo, o caldeiro j tinha um buraco quando B me deu; terceiro, devolvi o caldeiro em perfeito estado(Freud, 1905, p. 131). 17 Este pargrafo extrai sua essncia dos artigos de Frei (1974) e de Godel (1975).

  • (Cours II, Riedlinger, p. 53). A noo de sintagma supe a de srie associativa como tambm Sechehaye, alis, depreendera muito bem (CLG/E1, p. 300, par. 2105)18. Ora, se a divisibilidade do sintagma, e por conseguinte sua prpria existncia, inconcebvel sem classes, compreende-se ento por que a arbitrariedade relativa sintagmtica pressupe a arbitrariedade relativa no tctica (Frei, 1974, p. 125), o que acarretaria uma consequncia curiosa: se, como admitia Saussure, h srie associativa mesmo no fato de um substantivo estar em relao com os outros substantivos (Cours III, Constantin, A, p. 130) e se, desse ponto de vista, todos os signos da lngua entram em classes de substituio e em paradigmas (Frei, 1974, p. 125), ser obrigatrio ento concluir, com Frei, que no existem signos lingusticos cuja arbitrariedade no seja limitada (ibid., p. 124). Alm dessa concluso, cujo carter peremptrio Godel ressaltou (1975, p. 88), mas que acessria, na realidade, a nosso objeto, o que nos interessa focalizar essa espcie de rede de relaes sintagmtico-associativas chamada sistema (Cours III, Constantin, A, p. 87) , cuja existncia limita, afirma Saussure, o fato da arbitrariedade radical. Essa noo de sistema contrasta de maneira significativa com a noo de sistema extrada do primeiro trecho analisado. No primeiro caso, havia somente diferenas e o exame de um elemento qualquer implicava a considerao da totalidade das relaes (puramente diferenciais) que constituam o sistema. O sistema que se acaba de evocar comporta uma sorte de organizao de elementos, os signos, em classes e paradigmas19. Ora, e insistimos nisto, s possvel admitir essa organizao se se admitir a existncia de caracteres positivos que a autorizam e a partir dos quais ela se realiza. No interior de uma classe ou de um paradigma, cada elemento deve ser o representante de pelo menos um trao comum, que a identidade da classe (Frei, 1974, p. 127): [...] a associao que se faz na memria entre palavras [ou qualquer outro gnero de signos, ES] que oferecem algo de comum cria diferentes grupos, sries, famlias no interior das quais reinam relaes muito diversas : so as relaes associativas. (Cours III, Constantin, A, p. 132) Reencontramos assim, por um percurso totalmente outro, aquele carter no

    puramente diferencial que nos permitira discernir que um signo, enquanto entidade dupla, no podia fazer parte de um sistema de valores puros. Esse mesmo trao que o impedia de participar daquele sistema a condio de possibilidade de um outro tipo de organizao, muito mais complexa, que acabamos de desvelar sucintamente. 6. CONCLUSO 18 Sobre este ponto de vista, ver entre outros Frei (1974), Godel (SM, pp. 226-227 e pp. 244-245) e Amacker (1974, p. 25). 19 Do primeiro exemplo de sistema (ver 2), assim, poderamos dizer que ele constitui em si uma nica classe e um nico paradigma: todos os elementos mantm relaes com os outros elementos e no temos critrios segundo os quais ordenar ou classificar os elementos de qualquer maneira que seja.

  • 6.1 Os dois esquemas tericos que quisemos assinalar poderiam ser reduzidos, em primeiro instncia, presena/ausncia de um trao no puramente negativo e diferencial no nvel das entidades que abordamos. Se partirmos da premissa de que na lngua s existem diferenas, chegaremos necessariamente a entidades de uma face, simples, do tipo das que se encontram (exclusivamente, segundo Jakobson) nos sistemas fonolgicos. A determinao do valor de cada termo exige a considerao da integralidade do sistema e as propriedades dos elementos se esgotam na noo de valor (considerada ento como contrapartida dos termos coexistentes na lngua). Se, ao contrrio, afirmarmos que a lngua um sistema de signos, definidos, por seu turno, como entidades duplas, a coisa fica bem diferente. Existe, na premissa, a introduo de um carter que precede a (e difere da) pura e simples considerao do conjunto. Trata-se, de fato, de um procedimento inverso: parte-se da definio das unidades cujo jogo, a definir, constituir talvez um sistema (entendido ento como organismo [ver Cours III, Constantin, A, p. 87]). Os efeitos dessa distino repercutem sobre a integralidade das noes que formam o sistema de geometria que Saussure via na lingustica geral(SM, p. 30). Mesmo as relaes sintagmticas e associativas, que nos permitiram definir o sistema que acabamos de examinar sumariamente (mas que agem tambm, evidentemente, no nvel fonolgico) tero um alcance muito diferente conforme os apliquemos a um ou ao outro dos modelos de entidade. Assim, se as razes que sustentam este argumento forem justas, deveramos estar em condies de formular alguns princpios essenciais a toda teoria geral das oposies (cf. Troubetzkoy, 1939/1949, p. 70). Sugerimos trs: um princpio de no-complexidade das entidades puramente diferenciais, segundo o qual toda entidade definvel de maneira exaustiva a partir das diferenas puras ser necessariamente uma entidade simples (no composta de dois elementos heterogneos); um princpio de no-pura diferencialidade das entidades duplas, correlativo do primeiro e segundo o qual toda entidade dupla (composta de dois elementos heterogneos) no poder jamais ser exaustivamente descrita a partir de diferenas puras; enfim, um princpio de no-negatividade das entidades duplas, segundo o qual toda entidade dupla (composta de dois elementos heterogneos) ser necessariamente uma entidade no puramente negativa. Esses princpios, se estiverem corretos, permitiriam rejeitar alguns lugares comuns da teoria saussuriana, como por exemplo a opinio, tantas vezes repetida, de que o carter fundamental do signo, entidade dupla por definio, seria o de ser puramente diferencial20. 6.2. Retomaremos, para terminar, a problemtica do conceito da arbitrariedade, pois parece que a distino dos dois modelos de entidades lingusticas levanta alguns problemas, e deveramos poder dissip-los. Se houvesse somente diferenas, de fato, seria completamente absurdo falar da arbitrariedade: as entidades suscetveis de constituir um sistema de diferenas puras seriam necessariamente simples (ver 2 e 6) e no haveria ligao que 20 Sechehaye, Bally e Frei, num artigo publicado no nmero 2 de Acta Linguistica, afirmam isso tal e qual: As unidades da lngua, ou seja, os signos [] Seu carter prprio o de serem puramente diferenciais (1941/1968, p. 191).

  • pudesse (ou no) ser arbitrria. somente no nvel dos signos, entidades de duas faces, que o conceito da arbitrariedade pode ter sentido (cf. Arriv 2007, p. 47). Ora, como vimos, no nvel do sistema dos signos a arbitrariedade limitada e os signos todos, segundo Frei (1974, p. 124) seriam ento relativamente motivados. Pareceria assim que o conceito da arbitrariedade radical, prius da sistematizao dos teoremas da teoria lingustica segundo De Mauro (CLG, p. 443, n. 138) no teria aplicao possvel nos sistemas lingusticos21. Essa abordagem, no entanto, simplistas e por conseguinte, segundo toda probabilidade, errnea. A plena compreenso do conceito saussuriano da arbitrariedade implica as duas noes de sistema que analisamos. No que os signos, porque so arbitrrios, s podem existir por suas diferenas conforme compreendia Frei (1974, p. 126), apoiando-se no texto do CLG (ver p. 159) ou mesmo nas notas de Riedlinger (Cours II, Riedlinger, pp. 7-8). Quando Saussure evoca o carter arbitrrio do signo e do valor puramente negativa e diferencial do signo, sendo isto uma consequncia necessrio daquilo, preciso dar ao termo signo dois alcances diferentes. No primeiro caso se trata, sem dvida alguma, do vnculo que une um significante e um significado. Na segunda ocorrncia, a nosso ver, se trata de um das ocasies em que o termo signo desliza a metfora de Saussure (ver Cours III, Constantin, A, p. 93) e designa s uma parte da entidade dupla chamada signo. O que Saussure queria dizer, em nossa opinio, equivale ao seguinte: porque o vnculo que une o significado ao significante (i. e., o signo) arbitrrio, o significante (que Saussure aqui tambm chama e desastradamente de signo) e o significado, tomados separadamente e cada um de seu lado, consistem s de diferenas. Ora, a aliana dessas duas faces comporta algo de positivo; ou, se se preferir, desta aliana resulta algo de positivo (as duas formulaes servem igualmente a nosso argumento). A partir desse elemento positivo, torna-se ento possvel organizar as unidades (aqui, os signos) em classes de paradigmas, e essa organizao que se inscrever na origem da limitao da arbitrariedade. O conceito da arbitrariedade opera como uma espcie de n em que se conjugam as duas noes de sistema que quisemos destacar. Talvez seja verdade, portanto, que, desse ponto de vista, esse conceito seja uma espcie de espinha dorsal (Amacker, 1975, p. 81) ou epistemologicamente a noo central (Mounin, 1972, p. 51) da lingustica saussuriana. POST SCRIPTUM: SOBRE DE LESSENCE DOUBLE DU LANGAGE (1891) Conforme tnhamos anunciado na introduo, a base filolgica das consideraes aqui expostas se limitou exclusivamente s anotaes atinentes aos trs cursos de lingustica geral. A vantagem inerente dessa escolha que essas anotaes representam (ou supostamente representam) o ltimo estado do pensamento de Saussure (1907-1911). Seria possvel objetar que a desvantagem reside no fato de que essas anotaes, que no fim das contas decorrem somente de um curso universitrio, so lacunares (sobretudo quando vm da mo de Saussure) e 21 A concluso que parece se impor, admitia Godel, que a ideia da arbitrariedade absoluta do signo lingustico incompatvel com o fato de que as lnguas so sistemas cujos termos so solidrios. [] Ele [Saussure, ES] talvez tenha se equivocado ao insistir no carter radicalmente arbitrrio do signo lingustico (Godel, 1975, pp. 88-89).

  • possivelmente imperfeitas (em particular quando se trata dos ouvintes). Que teria acontecido com nosso trabalho se tivssemos optado por levar em conta outras fontes filolgicas? Isso teria feito modificar-se a natureza de nossas concluses? O manuscrito De lessence double du langage (ELG, pp. 17-89), redigido vinte anos mais cedo que as anotaes analisadas acima 22, se revela particularmente adequado a este exerccio de reviso. Viu-se que as anotaes sobre as quais concentramos nossos argumentos apareciam, em Constantin, confusas. Por isso, adotamos a frmula encontrada nas anotaes pessoais de Saussure (ELG, p. 336; ve 3), segundo a qual h dois tipos perfeitamente diferentes de relaes concernentes s entidades lingusticas: de um lado, relaes existentes entre os termos pertencentes a um mesmo sistema (relaes que, em Constantin, eram indicadas por meio de um a); do outro, relaes existentes entre os dois elementos heterogneos (simile-dissimile) que compem uma mesma entidade (relaes que, em Constantin, eram designadas por meio de um b). Por causa dessa distino, conclumos que estvamos, neste caso preciso, diante de entidades duplas e, assim, no suscetveis de serem exaustivamente definidas a partir de diferenas puras, como tinha podido ser o caso no modelo examinado no segundo pargrafo (ver 2) e como Saussure parece ter querido definir todas as entidades lingusticas (ver 2.2 e nota 9). O que se passa com essa distino no manuscrito De lessence double du langage? primeira vista, parece que essa distino no se sustenta: As identidades neste domnio [ele fala do estado da lngua em si mesmo, ES] so fixadas pela relao da significao e do signo, ou pela relao dos signos entre si, o que no diferente. (ELG, p. 21) A relao entre os dois elementos heterogneos que fazem parte de um signo concebida aqui, com efeito, como uma noo no diferente da soma das relaes

    entre os signos23. Essa ideia que sustenta a maioria dos argumentos do manuscrito contudo, em outras passagens do mesmo texto, sensivelmente atenuada. Como neste fragmento, por exemplo, em que Saussure se declara (com um toque de amargura, como se percebe) incapaz de resolver a questo: Somos sempre reconduzidos aos quatro termos irredutveis e s trs relaes entre eles formando um todo nico para o esprito: (um signo / sua significao) = (um signo / e um outro signo) e ademais = (uma significao / uma outra significao). [...] Talvez no tenhamos razo em desistir de reduzir essas trs relaes a uma s; mas nos parece que essa tentativa comearia a ultrapassar a competncia do linguista. (ELG, p. 39) 22 O flio 118 deste manuscrito flio cujas primeiras palavras so paralelia - (ver ELG, p. 62) traz, no alto e direita, meno da data de 6 dez. 91, claramente escrita pela mo de Saussure (BGE. Arch. de Saussure, f. 118). Esse detalhe, desconsiderado na edio dos ELG, foi assinalado por Harris (2003, p. 217). Num outro flio, Saussure tinha anotado 15 dez. (datao igualmente ausente dos ELG [ver p. 40]). 23 Cabe notar que a terminologia saussuriana no opera distino, nesta poca, entre o signo enquanto entidade dupla composta, segundo a terminologia introduzida em maio de 1911, de um significante e de um significado e o signo enquanto contrapartida do conceito e homlogo, neste sentido, ao conceito de significante de maio de 1911.

  • Saussure aqui, contrariamente ao que escrevia quinze pginas antes e para alm das dvidas que alega, desiste dessa operao de reduo. A questo, visivelmente, no estava totalmente clara para ele. Seria em razo de reflexes do tipo que ns percorremos aqui? Jamais saberemos. De todo modo, vinte anos depois, no trecho final de sua carreira, ainda o vemos deliberar sobre essa mesma dificuldade (ver 3 e nota 12). A leitura de De lessence double du langage, aqui apenas encetada, no nos obrigaria portanto a modificar a natureza de nossas concluses, mas viria, antes, confirm-la: Saussure parece de fato ter querido tornar equivalente o alcance desses dois tipos de relao, mas no estava, no mesmo movimento (seja em 1891, seja em 1911), totalmente convencido da validade dessa operao. Sua ltima palavra, em todo caso, foi admitir que essas relaes eram perfeitamente diferentes. BIBLIOGRAFIA Corpus saussuriano

    Outras referncias