e personagens no tempo presente lugar de joias,...

355
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS FACULDADE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DE HISTÓRIA DA AMAZÔNIA LUGAR DE JOIAS, MEMÓRIAS E HISTÓRIAS: O POLO JOALHEIRO DE BELÉM E PERSONAGENS NO TEMPO PRESENTE ROSÂNGELA DA SILVA QUINTELA Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação de História da Amazônia da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará, para obtenção do título de doutora em História. ORIENTADORA: CRISTINA DONZA CANCELA BELÉM 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAR

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

FACULDADE HISTRIA

PROGRAMA DE PS-GRADUAO DE HISTRIA DA AMAZNIA

LUGAR DE JOIAS, MEMRIAS E HISTRIAS: O POLO JOALHEIRO DE BELM

E PERSONAGENS NO TEMPO PRESENTE

ROSNGELA DA SILVA QUINTELA

Tese apresentada ao Programa de Ps-

Graduao de Histria da Amaznia da

Faculdade de Histria da Universidade Federal

do Par, para obteno do ttulo de doutora

em Histria.

ORIENTADORA: CRISTINA DONZA CANCELA

BELM 2016

2

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAR INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

FACULDADE HISTRIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO DE HISTRIA DA AMAZNIA

LUGAR DE JOIAS, MEMRIAS E HISTRIAS: O POLO JOALHEIRO DE BELM

E PERSONAGENS NO TEMPO PRESENTE

ROSNGELA DA SILVA QUINTELA

BANCA EXAMI NADORA

CRISTINA DONZA CANCELA (ORIENTADORA) PPHIST

LUIS ALBERTO ALVES EXAMINADOR EXTERNO FLUP/UNIVERSIDADE DO PORTO

ERNANI CHAVES EXAMINADOR EXTERNO PPGF/UFPA

ANTONIO OTAVIANO V. JUNIOR EXAMINADOR INTERNO PPHIST/UFPA

FRANCIANE GAMA LACERDA EXAMINADORA INTERNA PPHIST/UFPA

BELM 2016

3

Ficha Catalogrfica

Quintela, Rosngela da Silva

Lugar de joias, memrias e histria: O Polo Joalheiro de Belm e

Personagens no Tempo Presente / Rosngela da Silva Quintela Belm,

2016.

345 p.: il.

1. Ourivesaria/Joalheria Belm Histria. I. Ttulo

4

Para

Alves, meu eterno

amor de corpo e alma.

Jos Virglio, o sentido

de tudo.

5

Agradecimentos

Gratido pulsa em mim nesse momento pelo afeto, conhecimento,

ateno, cuidado, dedicao total que recebi antes, durante e para finalizao

desse trabalho. Obrigada meu marido Alves! A cada dia amo mais voc e tenho

a certeza que s o amor de minha vida.

Jos Virglio, meu filho incondicionalmente amado, agradeo pela

completa felicidade que me proporciona desde que soube que estavas em meu

ventre e pela compreenso da minha falta de ateno a voc durante a

elaborao desse trabalho e pelos beijinhos de estmulo no meu rosto e um

abrao apertado, quando estava prestes a desabar de cansao e tenso.

Marcela receba meu muito obrigado pela parceria de cuidar do meu filho

e de todos ns, voc muito especial em nossas vidas. Temos um pacto de

solidariedade e compartilhamentos para toda vida, mesmo que siga seu

caminho (e deve faz-lo) para outras direes.

Orientadora Professora Cristina Cancela, minha eterna gratido pelo

apoio na elaborao dessa empreitada acadmica, orientando de forma gentil e

competente, sem voc esse fim agora no aconteceria, mas antes de tudo

muito obrigada por acreditar na tese ainda quando era um projeto.

Todos os professores que tive o privilgio de assistir aulas no doutorado

recebam meu singelo agradecimento pelo compartilhar de conhecimentos.

Professores Otaviano Vieira Jr., Professora Franciane Lacerda,

Professor Lus Alves, Professor Ernani Chaves e Professora Jane Beltro, meu

imenso agradecimento por aceitarem o convite para compor a banca de

avaliao do referido trabalho.

Professor Ernani Chaves e Professora Jane Beltro, um obrigado muito

especial por suas presenas nas vrias fases de minha vida acadmica.

Minha famlia, meu porto seguro, obrigada por todo amor que recebi

nesse momento crucial de minha vida.

Aos e s participantes do Polo Joalheiro que possibilitaram a elaborao

dessa tese. Muita gratido!

6

SUMRIO

Porta de entrada para os mundos do Polo Joalheiro do Par Rastros para

adentrar num labirinto reluzente 5

1. Joias de Memrias: um caleidoscpio de vidas e contextos no Polo

Joalheiro de Belm do Par 28

1.1. Contextos da Composio do Polo Joalheiro de Belm do Par 32

1.2. Entrelaamentos de Trajetrias Individuais e Coletivas na Histria do Polo

Joalheiro de Belm do Par 44

1.3. O Polo Joalheiro no Cenrio Institucional 50

1.4. O Polo Joalheiro no Espao So Jose Liberto, O Lcus da Pesquisa. 77

1.5. A Joia do Par do Polo Joalheiro 90

2. Mestres Ourives no tempo de lembrar o vivido 91

2.1.Joo Sales, o Mestre Ourives Narrador 105

2.2. Paulo Tavares, o Professor Pardal, de um ourives de bancada a um pesquisador

andarilho 128

3. As ourives/Designers entre memrias, criaes e um querer fazer joias 130

3.1. Ivete do Rio Negro, a costureira que virou designer/ourives 130

3.2. Camila Amaral, a ourives designer com uma veia artstica de herana 143

3.4. Ldia Abrahim, a designer ourives encantada pela arte do saber e fazer

manual 160

3.5. Selma Montenegro, a designer ourives que se realiza no fazer arte 174

3..6. Marcilene Rodrigues, a psicloga apaixonada pelas artes manuais. 185

4. Protagonistas do Polo Joalheiro do Par: redes sociais visveis e invisveis,

alm das vitrines 186

4.1. Protagonistas do mundo das joias antes e depois do Polo Joalheiro 191

4.2. As mulheres das joias: entrelaamentos de vivncias 211

4.3. Ourives e designers de joias: emaranhados de encontros e desencontros. 242

4.4. Rede familiar, de parentesco, de compadrio no fazer joias 253

7

5. As multifaces do Polo Joalheiro no tempo anterior, atual e nas brumas do

futuro, um mosaico de ideias e aes 254

5.1 . As vrias Aes, os vrios Projetos do Polo Joalheiro, tecendo vidas,

arranhando e fabricando sonhos 255

5.2 . As joias do Polo no tempo do agora e no devir 295

Consideraes de um fim que um recomeo 320

Referncias 345

8

Resumo

Trata-se de um trilhar pela histria da Amaznia, em que apresento um registro da histria e memria do Polo Joalheiro/So Jos Liberto, situado em Belm do Par, de maneira entrelaada com as trajetrias de alguns de seus protagonistas, a fim de esmiuar um caleidoscpio de experincias do mundo do trabalho, num contexto de criao e produo de joias artesanais. Neste sentido, sigo pelas veredas metodolgicas e tericas, principalmente, de Edward Thompson, Walter Benjamin, Paul Ricoeur, Jacques Le Goff, e Michel de Certeau, com a pretenso de configurar um voo acadmico em que a teoria no se impusesse ao objeto, mas que dialogasse hermeneuticamente com os rastros, as pegadas que reuni para a pesquisa de meu doutoramento, em que a ateno dada foi para a relao entre histria, memria, lembrana e esquecimento, tendo como cenrio os desafios da micro-histria,, histria oral e histria do presente. Usei, para tanto, fontes orais e escritas. O objetivo principal foi analisar os discursos e as prticas, em sua multiplicidade no cenrio do Polo Joalheiro e dos seus segmentos sociais, ou seja, a trajetria, o saber fazer, a sociabilidade, tenses conflitos entre os atores, mestres, homens e mulheres, mestres e alunos (as), artesos, administrao, e a memria de implementao do programa. Desse modo, pude compreender o Polo Joalheiro como um lugar de memrias e histrias repletas de significados existenciais, manifestos nas mltiplas experincias de sucesso de realizaes pessoais, profissionais e comerciais, no mbito do criar e fazer joias artesanais.

Palavras-chave: ourivesaria, design de joia e histria da Amaznia

Abstract

It is a walk through the history of the Amazon, to present a record of the history

and memory of the Polo Jeweler / So Jos Liberto, located in Belem,

interlaced way with the trajectories of some of its protagonists, to scrutinize a

kaleidoscope of the world of work experiences in a context of creation and

production of handmade jewelry. In this sense, I follow the methodological and

theoretical paths, especially, Edward Thompson, Walter Benjamin, Paul

Ricoeur, Jacques Le Goff and Michel de Certeau, with the intention to set up an

academic flight that the theory does not impose the object, but that dialoguing

hermeneutically with "traces" the "footprints" that gathered for the research of

my PhD, in which the attention was on the relationship between history,

memory, remembering and forgetting, against the backdrop of the challenges of

micro-history, , oral history and history of this. Used for both oral and written

sources. The main objective was to analyze the discourses and practices in its

multiplicity in the scenario Polo Jeweler and their social segments, that is, the

9

Porta de entrada para os mundos do Polo Joalheiro do Par

Rastros para adentrar num labirinto reluzente

Fao joia para apreciar e homenagear a beleza da natureza. Ela me fascina porque tem sempre uma coisa indita, igual a joia artesanal, pea nica. [...] fazer joia para mim questo de vida ou morte. [..] eu me sinto vivo. Eu penso e fao. Determino tamanho, medida. Penso, crio, produzo e fao ferramentas para fazer a pea e fao o cronograma do trabalho de quanto tempo eu vou levar para faz-la. Fao molde, rabisco e o piloto. Sem fazer o molde e o piloto faz perder metal e at a pea. (Mestre ourives/joalheiro Paulo Tavares)

A joalheria nos remete a mundos de trabalho, a formas de ser, pensar, e

viver, ao se tratar do agregar atividades de criar, fazer e comercializar joias,

que acompanha, de modo, geral, a composio da prpria histria social e

cultural realizadas pelos humanos. Nesses termos, segundo Gola, a joia [..]

moeda universal que no perde seu valor material, documento que resiste ao

tempo, patrimnio impregnado de sentimentos e de histria1

Desse modo, a histria da humanidade, independentemente de

diferenas tnicas, geogrficas, topogrficas, simblicas ou quaisquer outras,

foi e continua a ser marcada pela produo de artefatos que tm a finalidade

de adornar, agradar e seduzir, e, entre estes, encontram-se as joias.

Por isso, a joia, como criao e (re)produo humana, pode ser

considerada agregadora de muitos aspectos ao mesmo tempo, , nesse

sentido, signo, bem material e arte, com vnculo com os desejos latentes e

realizaes de necessidades dos seus criadores, produtores, comerciantes e

usurios.

Aqui o entendimento de joia, grosso modo, se remete a defini-la como

um artefato de ornamentao corporal feito pela manipulao e transformao

1 GOLA, Eliana. A joia: histria e design. So Paulo: SENAC So Paulo, 2008, p. 15.

10

do metal ouro ou prata em formas de anis, pulseiras, colares, pingentes,

brincos, entre outras, com a cravao2 de gemas minerais ou vegetais.

Nesse mundo, o fazer joia artesanal uma das mais antigas formas de

usar as mos para criar algo que pode significar muitas coisas para os seres

humanos. Sendo assim, o fazer, criar e o uso de joias vem atravessando

tempos e lugares, agregando aspectos socioculturais, econmicos, simblicos,

desse modo, delineando histrias.

Quem sabe fazer joias manualmente chamado de ourives de joalheria.

O termo ourives, segundo Charles Codina, deriva do termo latino aurifaber, que

se refere ao arteso que manipula ouro e qualquer outro metal, utilizando

diversas tcnicas, sendo a traduo literal do termo fazedor de objetos de

metal.3

Ou seja, a ourivesaria a arte de trabalhar com metais preciosos, como

a prata e o ouro, na fabricao de joias e ornamentos. considerada uma das

artes de fazer mais antiga. Foram encontrados stios arqueolgicos no mar

Egeu, datados em torno de 2500 a. C., nos quais foram encontradas joias feitas

de ouro. No Egito antigo j se produzia joias, utenslios e ornamentos com

muitos detalhes, utilizando esses materiais. O profissional que realiza este tipo

de trabalho denominado de ourives. Cabe ressaltar que esta atividade , em

sua natureza, uma atividade de cunho artesanal.4

A joalheria considerada o ramo da ourivesaria que trabalha somente

com metais considerados nobres,5 ouro ou prata, para a confeco de joias. A

2 Tcnica da joalheria para incrustar gemas em joias. Ou seja, arte de unir gemas e metais

num formato de joia. um processo manual. CURSO DE JOALHERIA BSICA. Escola de Formao Profissional em Joalheria RAHMA: Gemas e Joias, Belm, 2005 (apostilha impressa). PEIXE, Patrcia. Cravao e Joalheria Artesanal. Disponvel em: http://www.joiabr.com.br/joiamix/0408.html. Acessado em 22/05/2013. PINTO, Rosngela Gouva. Relatrio de Execuo Tcnica do Curso Fundamentos de Joalheria para o Igama. Belm, 2010. 3 CODINA, C.A. A Ourivesaria. Lisboa, Portugal: Editora Estampa, 2002.

4 Idem.

5 So aqueles classificados como resistentes corroso, oxidao, aos cidos e sais. So

raros na natureza e permanecem sempre puros, ao contrrio da maior parte dos chamados metais vis, como ferro, nquel, chumbo e zinco. Os metais nobres no devem ser confundidos

11

Joalheria artesanal no Brasil se configura com base no legado que recebe de

Portugal, da Itlia e demais pases Europeus. Segundo Julieta Pedrosa, no

perodo colonial:

[...] as joias aqui usadas por homens e mulheres eram muito raras, mas as poucas que existiam j evidenciavam a moda vinda de Portugal e de outros pases europeus. No havia, ainda, uma tradio de ourivesaria no pas: as raras peas vinham de fora. As joias femininas, com o abandono dos complicados penteados medievais e dos novos ares renascentistas, tornaram-se mais leves: fivelas para sapatos, anis e brincos curtos, no incio do sculo XVI, e depois mais longos - eram os preferidos. Os cabelos eram presos e tranados com prolas ou pequenos adornos em ouro ou pedras preciosas e usava-se a ferronire, broche adornando a testa e preso cabea por uma fita. 6

Portanto, por sua condio histrica como colnia de Portugal, o Brasil

traz em sua bagagem cultural as influncias europeias no seu modo de fazer e

pensar. Contudo, tambm recebe influncia cultural dos africanos, que para c

foram trazidos na condio de escravos, e dos indgenas, nativos da terra.

Toda essa diversidade cultural comps e compe a histria da joalheria

brasileira, formando um caleidoscpio cultural, por isso multi e intercultural, na

produo de nossa joalheria, que vem buscando, ao mesmo tempo, firmar uma

identidade brasileira ou identidades brasileiras, quando so levadas em

considerao as particularidades regionais e locais Estados, cidades, grupos

e indivduos, assim como os lugares de criao, produo e comercializao,

como o Polo Joalheiro do Par.

A histria da joalheria brasileira, segundo Julieta Pedrosa,7 inicia com a

transferncia da sede da Monarquia Portuguesa para o Brasil, especificamente

para o Rio de Janeiro, sede da Colnia, em janeiro de 1808, tendo o Prncipe

com os metais preciosos, embora muitos metais nobres sejam preciosos. CURSO DE JOALHERIA BSICA. Escola de Formao Profissional em Joalheria Rahma: Gemas e Joias, Belm, 2005 (apostilha impressa). Essa escola funciona no Esjl. BRANCANTE, Maria Helena. Os Ourives: na Histria de So Paulo. So Paulo: rvore da Terra, 1999. 6 PEDROSA, Julieta. Histria da Joalheria. Disponvel em:

http://www.joiabr.com.br/artigos/hist.html. Acessado em: 11/12/2012. 7 Idem.

12

Regente D. Joo trazido toda a sua Corte e vrios artistas e artfices, incluindo

renomados ourives de Portugal.

Fato esse que contribuiu definitivamente para o Rio de Janeiro se tornar

tradicionalmente um lugar que concentra os mais respeitveis, em termos de

qualidade e comercializao, polos joalheiros do Brasil a nvel nacional e

internacional.8

De acordo com Gola,9 os oficiais e mestres ourives, de diferentes

culturas, que migraram para o Brasil no Perodo Colonial, introduziram na

fabricao de suas peas materiais autctones, fazendo com que as joias

brasileiras se diferenciassem mais das estrangeiras.

No Sculo XVII, os ourives ainda migravam para c. Contudo, a maioria

dos artesos era composta de escravos, mulatos e ndios, pois aprendiam esse

ofcio com muita facilidade e muitos tornavam-se artistas, sendo

significativamente responsveis pela superao paulatina da prtica comum de

copiar uma pea, mesmo que, muitas vezes, sob a tutela dos mestres ourives

portugueses. Esses artesos buscavam novas inspiraes para criar e produzir

suas peas, a fim de acentuar a diferena entre as joias brasileiras e as joias

francesas ou portuguesas.10

Esse contexto histrico se manifesta nos dias atuais numa recorrente,

mas no linear, busca de construo de identidades nacionais, locais, em

grupo ou individual, em termos de querer se destacar por uma digital

criativa/inovadora no mundo, em termos de expresses de artesania,11 sendo

isso um anseio constante da parte dos artfices designers de joias que esto

8 SOARES, Maria Regina Machado. A joia do Rio: de ofcio secreto a design

contemporneo. Rio de Janeiro: Senac, 2011. 9 GOLA, Eliana. A Joia: histria e design. So Paulo: Editora Senac, 2008.

10 Idem.

11 Trabalhos Manuais, que caracterizam a diversidade da produo artesanal. Uma arte popular

centrada na figura do artista/arteso, com a produo de peas nicas e/ou sries limitadas, fruto da criao individual, em que o arteso so aqueles detentores de conhecimento tcnico sobre materiais, ferramentas e processos de sua especialidade, dominando todo o processo produtivo, conforme consta no PROGRAMA DE ARTESANATO DO SEBRAE. Belm, 2004.

13

dispostos a ir alm da cultura da cpia, apostando assim numa linguagem

artstica imbricada com a artesanal.

O fazer joias artesanais em Belm tm uma trajetria histrica marcada

por acontecimentos de antes e depois da implantao oficial do Programa de

Desenvolvimento do Setor de Gemas e Joias do Par, em 1998, por parte do

poder executivo estadual. Este programa faz parte de uma poltica pblica, com

o objetivo de elaborao de diagnstico e implementao das diretrizes para o

desenvolvimento do setor joalheiro, a fim de organizar e fortalecer a cadeia

produtiva de gemas12 e metais preciosos no Estado do Par, por meio da

criao de um polo joalheiro, nos moldes daqueles que tradicionalmente j

gozavam de reconhecimento nacional e internacional pelo que fazem.

Propondo assim para o setor joalheiro uma inveno das tradies 13 ou uma

inverso.

No foi por acaso, portanto, que profissionais do Rio de Janeiro que

atuam no setor joalheiro, por exemplo, foram e so contratados para prestar

servios de consultorias e ministrar curso de qualificao tcnica.

Segundo relatos daqueles que atuavam no ofcio de ourives/joalheiros

antes da criao do Programa Polo Joalheiro, em 1998, eles eram perseguidos

pela polcia. O ourives/joalheiro Paulo Tavares, um dos principais interlocutores

da referida pesquisa, relata que:

[...] a gente trabalhava sob presso. Pra funcionar aqui o ourives pagava uma taxa, na verdade foi confundido o ourives com comprador de ouro, a polcia fechou o cerco, era tratado como receptor. A partir da hora que tu passava a lidar com joia, tu pagava uma taxa por semana. pra delegacia no comrcio.

Nesse depoimento, ficou evidente que os ourives, de modo geral,

atuavam num contexto em que o lcito e ilcito se misturavam, em que a polcia

12

Uma gema um mineral, rocha (como a lpis-lazli) ou material petrificado que, quando lapidado ou polido, colecionvel ou usvel para adorno pessoal em joalheria. Outros so orgnicos, como o mbar (resina de rvore fossilizada) e o azeviche (uma forma de carvo), segundo o dicionrio de Geocincias disponvel em: www.dicionario.pro.br/dicionario/index.php/Gema. Acessado em 15/05/2011 13

HOBSBAWM, Eric J. A inveno das tradies. Rio de Janeiro: Funarte, 1987.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Mineralhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Rochahttp://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%A1pis-laz%C3%BAlihttp://pt.wikipedia.org/wiki/Joalheriahttp://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%82mbarhttp://pt.wikipedia.org/wiki/F%C3%B3ssilhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Azevichehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Carv%C3%A3ohttp://www.dicionario.pro.br/dicionario/index.php/Gema

14

via com muita desconfiana o ofcio de ourives, a ponto de no diferenciar

quem era de fato o que fazia joias e os receptadores de ouro e joias roubados.

Paulo Tavares e outros sujeitos da pesquisa, como Joo Sales,

afirmaram que com o Programa Polo Joalheiro, aos poucos, os

ourives/joalheiros, de modo geral, conseguiram ser respeitados, porque gerou

condies institucionais para a diminuio da informalidade e,

consequentemente, a legalizao do ofcio, principalmente para aquele que

fabrica joia e/ou microempresrio que integra o Polo Joalheiro em evidncia

aqui.

Essa situao aparece tambm nas experincias dos ourives/joalheiros

do Brasil Colnia e na Europa medieval, como demonstrou o estudo de

Bracante, 14 no que diz respeito ao controle rgido do ofcio do ourives, por

parte das instituies governamentais.

Segundo Gola,15 a Organizao do ofcio de ourives no Brasil Colonial

apresenta semelhanas com a organizao desse ofcio em Portugal. Tanto l

como aqui, os ourives eram obrigados a criar uma marca (puno) para

identificar suas peas e registr-la oficialmente, e no podiam vend-las sem

essa identificao. Os ourives daqui burlavam constantemente essa

obrigatoriedade pela distncia da metrpole, o que dificultava um controle

rgido por parte desta. Desse modo, foi atribudo um carter clandestino ao

ofcio de ourives no Brasil, o que, dificulta, at nos dias atuais, a identificao

desses artesos e de suas oficinas (ou de seus atelis) em todo Brasil.

Nesse contexto, o setor joalheiro compreendido como um conjunto de

atividades que devem se articular, envolvendo desde os insumos e matrias

primas at a transformao destas ltimas, os processos de criao e

fabricao do produto final, que a joia, at a sua distribuio e

comercializao.

14

BRANCANTE, Maria Helena. Os Ourives na Histria de So Paulo. So Paulo: rvore da Terra, 1999. Prlogo. 15

GOLA, Eliana. A Joia: histria e design. So Paulo: Editora Senac, 2008.

15

Segundo o Servio Brasileiro de Apoio Micro e Pequenas Empresas

(Sebrae), at chegar ao consumidor, as joias percorrem um longo caminho,

que, muitas vezes, comea no garimpo; outras, na produo dos metais

usados. De qualquer forma, so resultados de uma cadeia produtiva cheia de

etapas e tambm esto ligadas a um setor constitudo por micro e pequenas

empresas 93% do total que empregam 500 mil pessoas em todo territrio

Brasileiro.16

No que diz respeito as matrias primas das joias referentes ao ouro e as

gemas, o Par representa, segundo dados do Instituto Brasileiro de Gemas e

Metais Preciosos, percentualmente, enquanto fornecedor do ouro no Brasil,

36,9%, ficando somente atrs de Minas Gerais, que est entre os 48,0%. No

total mundial representa 1,9%. 17

Segundo o Instituto Brasileiro de Gemas e Metais Preciosos (Ibgm):

O Estado do Par abriga a provncia mineral mais representativa do pas. O territrio paraense possui a maior jazida de ferro do mundo, 80% das reservas de bauxita do Brasil. , tambm, o maior produtor de ouro, com reservas estimadas em 300 toneladas. Seu mapa gemolgico registra 256 ocorrncias de diamantes, gua marinha, ametista, berilo, calcednia, citrino, cristal de rocha, fluorita, granada,

malaquita, opala, quartzo, rutilo, turmalina, topzio, entre outras. 18

Foi nesse cenrio que o Programa de Desenvolvimento do Setor de

Gemas e Joias ou Polo Joalheiro do Par foi criado pelo Governo Estadual,

que, segundo fontes oficiais, pretendia dessa forma agregar valor produo

mineral, que historicamente vinha sendo comercializada em estado bruto.

A gesto do Programa, de 1998 a 2003, foi de responsabilidade das

Secretarias de Governo. A partir de 2004 passou a ser gerenciado pelo terceiro

setor, por meio de uma Organizao Social OS, a qual assina com o Governo

16

SEGUNDO O SERVIO BRASILEIRO DE APOIO MICRO E PEQUENAS EMPRESAS. Indstria de Joias. Lapidando a Imagem da Joia brasileira, em pdf. Disponvel em:www. Sebrae.com.br. Acessado em janeiro de 2013. 17

Segundo OLIVEIRA, M. L. (2007) Sumrio Mineral Brasileiro 2006. DNPM/MME, p88-89. Arquivo digital, consultado no endereo: http://www.dnpm.gov.br. Acessado em maio de 2011. 18

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEMAS E METAIS PRECIOSOS. Polticas e Aes para a Cadeia Produtiva de Gemas e Joias / Instituto Brasileiro de Gemas e Metais Preciosos.; Hcliton Santini Henriques,Marcelo Monteiro Soares (coords.). Braslia : Brisa, 2005

http://www.dnpm.gov.br/

16

do Estado, por meio das Secretarias, um contrato de gesto, formalizando

assim um sistema de parceria, que deve ser renovado a cada quatro anos e

prestar conta por semestre.

O programa foi criado para tambm combater a informalidade na

produo e na comercializao das joias artesanais. Para tanto foram adotadas

medidas institucionais de curadoria e suporte laboratorial para permitir anlises

de autenticidade e controle de qualidade do produto. Esse o contexto a que

pertence o Polo Joalheiro/Espao So Jos Liberto, o lcus, e, ao mesmo

tempo, o objeto dessa pesquisa, em conjunto com as trajetrias de alguns dos

seus sujeitos participantes.

A primeira OS a assumir a gesto do referido programa/projeto/polo

joalheiro e do espao So Jos Liberto foi a Associao So Jos Liberto

(SJL). Mas com a mudana de governo em 2007, assumiu a gesto o Instituto

de Gemas e Joias da Amaznia (IGAMA), que permanece at os dias atuais

(2016).

Um dos desafios deste conseguir driblar as descontinuidades da

gesto estadual, diante das mudanas de governo, e sobreviver num mar de

incertezas, quando isso ocorre. Atualmente tem como objetivo principal

fomentar a organizao e integrao dos elos da cadeia produtiva do setor

joalheiro, se configurando em arranjo produtivos local.

O IGAMA vem gerenciando o referido polo a partir de trs eixos de

atuao: 1- capacitao, gesto e inovao tecnolgica; 2- criao, produo e

comercializao de gemas e joias; e 3- promoo e manuteno do Espao

cultural, comercial e turstico So Jos Liberto.

Como lcus da pesquisa configurado aqui como um complexo de

concepes e aes voltadas para o mundo das joias, como tambm um palco

de relaes e experincias transversais geracionais, de gnero, de produo

familiar, de tipos de saberes, as quais vistas como componentes de um

mosaico de verses, trajetrias individuais e coletivas, que delineia uma

17

histria sociocultural, numa perspectiva de debater conceitual e

metodologicamente a histria do tempo presente, alm do entrelaamento

entre memria e esquecimento no uso de fontes orais e escritas e, mais ainda,

na escrita da tese como empreitada acadmica no campo da disciplina histria.

Trata-se, portanto, de um estudo sobre a histria e memria do

Programa/Projeto Polo Joalheiro de Belm do Par, incluindo nesse estudo,

especificamente, a trajetria de dois mestres ourives/joalheiros, Paulo Tavares

e Joo Sales e cinco ourives/designers, Ivete Negro, Camila Amaral, Selma

Montenegro, Ldia Abrahim e Marcilene Rodrigues.

Como tambm a rede de relaes sociais visveis e invisveis, composta

por meio das experincias de alguns atores que representam os segmentos

sociais vinculados ao polo em destaque, os dos designers, ourives/joalheiros,

microempresrios, lapidrios, cravadores, por um lado, e gestores,

funcionrios, consultores, por outro lado.

A escolha dos sujeitos da pesquisa se deu em funo destes se

vincularem, de algum modo, aos processos de criao e fabricao de joias

artesanais, foco principal deste estudo.

O problema consiste em compreender a formao do projeto de

implementao do Polo, a constituio do espao So Jos Liberto a partir da

perspectiva de seus diversos atores: mestres, administradores, ourives,

lapidadores de diversas geraes e gnero. E, ainda, perceber a trajetria

desses sujeitos em sua multiplicidade de experincias cujo marcador comum

a sociabilidade construda no espao So Jos Liberto. Uma sociabilidade

marcada por alianas, laos de solidariedade, troca de saberes, mas tambm

tenses e conflitos que vo desde o fazer das peas, s concepes do

produto, do uso do espao e da continuidade do Programa.

Percebemos com o desenvolvimento da pesquisa e o tempo de trabalho

no programa, que um dos pontos de preocupao e tenso presente na fala

dos diversos interlocutores que entrevistamos formal, ou informalmente,

18

passam pela pergunta se se a joia artesanal pode de fato inscrever uma

histria como um caminho vivel para o Polo e seus sujeitos participantes

galgarem um reconhecimento no setor joalheiro, em termos de qualidade

tcnica do produto, design de inovao e sobrevivncia mercadolgica, local,

nacional e internacional. Ou seja, se essa joia pode sobreviver a fora

agressiva e hegemnica das joias industriais, representada pelas marcas de

joias nacionais e multinacionais. Ser que como Golias, as joias artesanais,

vencem as gigantes?

Esta principal questo pode ser desmembrada em outros

questionamentos mais especficos. Ser que o Polo e seus sujeitos conseguem

sobreviver mercadologicamente enquanto um arranjo produtivo local na trilha

da economia criativa, moda e design? Consegue atingir novos patamares de

qualidade, criatividade e comercializao como territrio criativo? Contribuem

ou atrapalham o alcance de resultados animadores os conflitos entre os

segmentos sociais e indivduos num cotidiano vivenciado no Polo? Em seus 18

anos de existncia quais frutos j podem ser colhidos e quais obstculos

precisam ser ainda enfrentados e superados? Essas so questes que

apareceram em boa parte dos discursos.

A importncia deste estudo pode ser justificada pela inexistncia de

trabalhos na histria belenense, sobre o artesanato, os ourives e o espao do

So Jos Liberto e do Programa. O registro de experincias temporais, sociais

e culturais to ricas realizados nesta pesquisa, evidencia a diversidade de ser e

viver, assim como de traos multi e transculturais que perpassam os atores,

suas trajetrias e concepes de trabalho, uso do espao e do saber fazer

artesanal. Nesse sentido, acredito em poder contribuir para a ampliao do

conhecer do universo pesquisado.

Outro motivo para a produo da tese pautado na percepo de que

imprescindvel a sistematizao, articulao e difuso de informaes, de

saberes e conhecimentos para aglutinar esforos coletivos de superao de

dificuldades no contexto vivenciado, pois, caso contrrio, a fragmentao e a

desarticulao dessas experincias podem potencializar atitudes mais

19

autoritrias, individualistas e ressentidas, por falta de respeito pelas diferentes

formas de pensar e agir.

Assim, a tese ao trazer tona o discurso de atores to diversos, suas

trajetrias e concepes, assim como, discutir a implementao do Programa

de Joias no espao do So Jos Liberto, permite realizar reflexes que podem

ajudar a construir referncias para prognsticos, com a conscincia de ser

apenas um percurso realizado, entre tantos outros possveis de serem

elaborados. De todo modo, j se tem a vantagem de sistematizao de

informaes dessa realidade pesquisada, que servir, o que espero, a tantos

outros estudos sobre o setor joalheiro. Contudo, escrevi toda a tese com uma

ideia subjacente, de que uma pesquisa sobre qualquer assunto no acaba,

mas abandonada ou continuada.

O objetivo principal analisar os discursos e as prticas, em sua

multiplicidade no cenrio do Polo Joalheiro e dos seus segmentos sociais, ou

seja, a trajetria, o saber fazer, a sociabilidade, tenses conflitos entre os

atores, mestres, homens e mulheres, mestres e alunos (as), artesos,

administrao, e a memria de implementao do programa.

A temtica estudada no est distante de minha prpria experincia

profissional e pessoal. Em setembro de 2007, fui convidada pela diretora

executiva do IGAMA para ministrar uma oficina sobre as lendas amaznicas,

para servir de inspirao para a criao da coleo de joias da IV Par

Expojoias Amaznia Design, nica feira de joias da Regio Norte, que ocorre

desde 2004, no Polo Joalheiro do ESJL. O Polo Joalheiro, como j foi dito

antes, um codinome do Programa de Desenvolvimento do Setor de Gemas e

Joias do Par.

Em 2008, adentrei novamente no Espao So Jos Liberto para prestar

um servio de consultoria antropolgica e nesse mesmo ano assumi a

coordenao do Ncleo de Desenvolvimento Tecnolgico e Organizacional

NDTO, funo na qual permaneci at dezembro de 2010.

20

Nessa funo, percebi a falta de registros das concepes e aes que

recheiam e constroem o cotidiano do Polo joalheiro, de forma sistemtica e

analtica, capaz de delinear entendimentos sobre a complexidade da rede de

relaes sociais e interpessoais por dentro da cadeia produtiva e do mbito

institucional. Acredito que essa situao tambm fez emergir o meu interesse

em pesquisar o mundo do trabalho dos e das participantes do Polo Joalheiro,

a fim de elaborar um registro histrico.

A empreitada de escrever essa tese, teve como pontap inicial a

apresentao de um pr-projeto com a temtica aqui desenvolvida, a fim de

submet-lo ao processo de seleo de doutorado do Programa de Ps-

Graduao da Faculdade de Histria da UFPA (PPHIST), em junho de 2011, e

ao conseguir a aprovao iniciei o percurso de formao terica e produo

historiogrfica, interrompido em todo o ano de 2012, porque fui acometida por

um grave problema de sade, mas que foi superado, o que permitiu o meu

retorno a esse percurso em 2013 em diante.

A partir de agosto de 2011 comecei a cursar, a disciplina Tpicos em

Trabalho, Cultura e Etnicidade, cujo contedo, ministrado pelo Prof. Dr. Antnio

Otaviano Vieira Junior, foi sobre a Micro-Histria, o que me inspirou a us-la

como um dos recursos metodolgicos para o desenvolvimento do trabalho em

questo, pois as leituras sobre Micro-Histria, assim como as aulas permitiram

entender que a reduo de escalas no o que caracteriza de fato o trabalho

do historiador que segue essa corrente historiogrfica, mas o jogo de escala

entre o micro e o macro, entre o particular e o coletivo, sendo que esse jogo s

pode ser evidenciado na construo da narrativa histrica do trabalho

desenvolvido.

A utilizao da narrativa para escrever a histria permite que o resultado

possa ser lido no s pelo pblico especializado, mas tambm pelo grande

pblico leitor. Nesse sentido, optei por desenvolver o meu trabalho utilizando

essa maneira de escrever a Histria, por entender que o ofcio do historiador

deve lev-lo a interagir, alm das fronteiras acadmicas, contribuindo para uma

melhor compreenso do universo estudado, inclusive por aqueles que no

21

fazem parte dele, haja vista que tenho a pretenso de apresent-lo aos

gestores, consultores, funcionrios e segmentos sociais da cadeia produtiva,

ou seja, aos participantes do Polo, como forma de um prestao de conta, de

um agradecimento pela contribuio recebida sem medidas por todos.

Optei tambm pela Micro-Histria porque prope metodologicamente a

construo da teoria a partir da investigao emprica, ou seja, no a teoria

que se impe ao objeto, mas construda no dilogo do historiador com as

evidncias que rene na sua pesquisa. Nesse sentido, utilizei o mtodo

indicirio( referncia) por me permitir observar elementos que numa

perspectiva mais ampla passariam despercebidos. Assim, acredito que esse

mtodo possibilitou-me entender as dinmicas particulares e coletivas daqueles

que tm suas vidas vinculadas ao lcus da pesquisa. Por exemplo, as relaes

de vizinhanas, de parentescos, entre outras.

Fiz uso de vrios estudos de Thompson, por considerar que ele valoriza

tambm a investigao emprica, as experincias populares, levando em

considerao os aspectos culturais e os trabalhadores na relao capital e

trabalho, analisando questes de conflitos sociais, econmicos e culturais

verticais e horizontais.

Outras ferramentas terico-metodolgicas fundamentais para elaborao

desse trabalho em geral foram a Histria Oral. A histria oral foi utilizada, a

partir do estudo, da anlise e da discusso de diversos autores da histria e

das cincias sociais, em que me esforcei para construir um fio lgico entre

memria, esquecimento, histria e fontes orais.

Optei, como parmetro de anlise, pela obra Histria e Memria, de

Jacques Le Goff, por abordar problemas referentes aos estudos histricos, que

avalio serem pertinentes e, em alguns aspectos, serviram de reflexo e

inspirao para a escrita desta tese, por isso mostro alguns destes aspectos a

seguir.

22

O autor demonstra que Herdoto, historiador grego, considerado o pai

da histria, no sculo V. a.C, produziu uma histria-relato, histria testemunho.

Assim, a histria, segundo o autor, comeou como uma narrao daquilo que

foi vivido e sentido pelo historiador. Demonstra que esse tipo de histria jamais

deixou de estar presente no desenvolvimento da teoria histrica, mesmo

recebendo crticas daqueles que defendem a explicao no lugar da narrao.

Assim, vem ocorrendo uma produo da histria, denominada por alguns

historiadores contemporneos de histria do tempo presente. Sigo aqui as

orientaes desta abordagem.

Contudo, o autor mostra que os historiadores ultrapassaram as

limitaes da transmisso oral do passado pelo testemunho, por meio da

constituio de bibliotecas e de arquivos, em que as fontes documentais

escritas passaram a fundamentar noes de defesa de uma histrica cientfica,

baseada em mtodos cientficos, em sentido tcnico. Tal noo recebeu,

conforme discute Le Goff, recebeu crticas pelo questionamento do fato

histrico no ser um objeto dado e acabado, por resultar de uma construo do

historiador. Tambm demonstra que o documento no um material bruto,

objetivo e neutro, mas que exprime as relaes socioculturais da sociedade a

que pertence. Reconhece Le Goff que esta discusso terico-metodolgica

est presente tambm nas obras de Michel Foucault, que fao referncia a

suas ideias quando abordo os micropoderes presentes nas relaes sociais

vivenciadas no Polo.

Afirma que a maioria dos historiadores do sculo XX defensora de uma

histria-problema, como Febvre. Mas no de um retorno da histria como um

mero relato, ou seja, da confuso entre histria e fontes histricas, sejam orais

ou escritas. Procurei no fazer tal confuso.

Considera que a tomada de conscincia da construo do histrico foi

muito importante para a produo de novos modelos de estudos histricos.

Contudo, alerta que tal postura no deve desencadear um ceticismo em

relao objetividade histrica e nem o historiador deve abandonar a noo de

verdade histrica, mas sim problematiz-la. Certeau tambm comunga com

23

essa ideia, por isso suas ideias foram referenciadas em vrias partes do

trabalho.

Todavia, deixa claro que o historiador deve entender que a histria

tambm uma prtica social, como tambm concebe Certeau. Ambos os

autores so defensores de uma histria social, capaz de reconhecer a

existncia do simblico no contexto de toda realidade histrica, assim como

confrontar as representaes histricas com as realidades que elas

representam e que o historiador apreende mediante outros documentos e

mtodos. Nessa trilha lgica que analisei as fontes orais e escritas utilizadas na

pesquisa.

Le Goff demonstra que no sculo XX os historiadores foram alm do

modelo mensurvel de tempo histrico e admitiram a importncia dos dados da

filosofia, da cincia, da experincia individual e coletiva, assim como a noo

de durao, de tempo vivido, mltiplos e relativos, subjetivos ou simblicos.

Portanto, atualmente, fala-se do tempo da memria, que atravessa a histria e

a alimenta. essa noo que norteia toda a argumentao analtica da escrita

da tese.

Sobre a oposio - ou o dilogo entre presente/passado (e/ou passado

presente), o autor afirma que os historiadores no podem fugir da oposio

passado/presente, por ser vital para a conscientizao do problema da

temporalidade histrica. Nessa discusso, o autor assume a posio de que o

interesse do passado est em esclarecer o presente, em que o passado

estudado com base no presente, indicando o mtodo regressivo de Bloch. Foi

essa direo que sigo quando demonstrei e analisei as experincias temporais

dos sujeitos da pesquisa.

Afirma que Marc Bloch no aceitava a definio a histria a cincia do

passado e defendia que se definisse histria como a cincia dos homens no

tempo, fundamentando essa definio em trs caractersticas da histria: o

seu carter humano, por isso a histria a histria social, ou seja, a histria

das sociedades humanas ou grupos organizados (acrscimo de Febvre).e as

24

relaes entre o passado e o presente, argumentando que a histria no s

deve buscar compreender o presente pelo passado, mas tambm

compreender o passado pelo presente. Para Le Goff, O passado uma

construo e uma reinterpretao constante e tem um futuro que parte

integrante e significativa da histria. Segui essa orientao.

Levando em considerao tais questes, busquei verificar os sentidos do

passado e do presente nessa perspectiva de valorao dos interlocutores da

pesquisa: como julgam o passado e o presente, assim com o futuro, ou seja,

como expressam o sentimento de tempo, quando principalmente rememoram

suas infncias, relacionando-as com suas escolhas e trajetrias profissionais

ou de ofcio.

Ao abordar as relaes entre memria e histria, prope uma interao

entre memria coletiva e memria individual. Contudo, Le Goff se remete nesta

obra mais memria coletiva, mas antes define memria como a capacidade

humana de conservar certas informaes, ou seja, representa um conjunto de

funes psquicas que o homem pode utilizar para acessar informaes ou

impresses passadas, ou que ele as apresente como passadas. Nesse sentido,

entendo memria como a capacidade que os humanos tm de armazenar

aspectos de suas vivncias e pensamentos, organizados, a partir das suas

trajetrias individuais e coletivas, aspectos esses que expressam sempre em

seus contedos socioculturais.

Le Goff chama ateno para as manipulaes conscientes e

inconscientes que o interesse, a afetividade, o desejo, a inibio e a censura

exercem sobre a memria individual. Do mesmo modo, a memria coletiva

expressa relaes sociais, inclusive relaes de poder. Afirma que: O estudo

da memria social um dos meios fundamentais de abordar os problemas do

tempo e da histria, relativamente aos quais a memria est ora em

retraimento, ora em transbordamento, o que indica que tambm os silncios,

os esquecimentos so importantes nos estudos que envolvem memria

individual e/ou coletiva, pois estes so reveladores de mecanismos de

manipulao da memria coletiva. Concordo com o autor, mas tambm

25

entendo que isso tambm se estende memria individual, em termos dos

depoimentos, relatos e informaes colhidos durante uma pesquisa, por meio

de fontes oral, escrita e visual.

No universo estudado dos ourives/joalheiro, enquanto, categoria social,

pode se afirmar que existe uma intensa cultura oral, pois tradicionalmente so

pessoas, em sua maioria, que no cursaram o ensino formal do terceiro grau,

diferente dos e das designers, que em sua maioria esto ligados a essa

realidade. Por isso, existem poucos registros dessa natureza sobre eles. Sendo

assim, o uso das fontes orais foi de fundamental importncia para incluir as

experincias e pontos de vistas destes na pesquisa.

Atualmente, j h ourives com formao de ensino superior, mas ainda

so excees. E, geralmente, optam por estudar design, com especializao

em design de joia e de moda.

As memrias coletivas que so registradas so mais de carter

institucional e tcnico-cientfico, por isso usei bastante fontes documentais

escritas nos itens do trabalho que esto mais voltados para registrar e analisar

as experincias desse tipo.

Nesse contexto, verifiquei trs movimentos principais que acompanham

as trajetrias profissionais ou de ofcio dos interlocutores e das interlocutoras

da pesquisa: do artesanato em geral para a ourivesaria/joalheria, do design de

joia para a ourivesaria/joalheira, e da ourivesaria/joalheria para o design de

joia. Todavia, tm aqueles e aquelas que se tornaram designer/ourives e

exercem por se tornarem aptos a desempenhar tanto em atividades de

fabricao de joia quanto de design de joia.

A aprendizagem do ofcio de ourives ainda se d por via oral e por ver

fazer nas oficinas. Com os cursos de ourivesaria ofertados por instituies e

pelo programa que foram produzidos materiais escritos e audiovisuais. H,

portanto, uma transmisso de saber oral e ver fazer, no sentindo de fazendo,

que se aprende e apreende. Sendo assim, h uma dificuldade latente ou

26

mesmo uma rejeio pela transmisso de conhecimento terico, seja pela

oralidade, seja pelo documento escrito.

Segundo Le Goff, cabe aos profissionais que estudam a memria

coletiva ter como meta principal a democratizao dessa memria, diante das

relaes de poder inerentes aos contextos socioculturais, em que essas so

produzidas. Por isso afirma que: A memria, onde cresce a histria, que por

sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro.

Devemos trabalhar de forma a que a memria coletiva sirva para a libertao e

no para a servido dos homens. Segui aqui essa postura tica acadmica.

Pretendi por essas vias produzir uma escrita da histria, que, de modo

geral, pudesse possibilitar a compreenso das experincias de trabalho do

setor joalheiro, em suas formas e seus sentidos histricos atribudos por esses

sujeitos s suas prticas nesse universo.

Alm disso, pretendi tambm verificar a pluralidade das prticas e dos

discursos do trabalho dos ourives no processo de fabricao das joias

artesanais; analisar as questes de gnero no contexto pesquisado;

compreender a importncia do trabalho familiar no contexto estudado;

identificar as diferenas e aproximaes entre o trabalho pensado como

artesanal (autoral, em pequena escala, autnomo) e o trabalho capitalista

(impessoal, em grande escala, assalariado), e a forma como esses sujeitos

transitam e flexibilizam essas representaes e as prticas a elas associadas.

Assim, escolhi abordagens terico-metodolgicas capazes de inspirar e

oferecer bases para a construo de um olhar acadmico atento s

particularidades e diversidade de suas trajetrias de vida, permitindo, assim,

perceber que os ourives, embora inseridos na dinmica da sociedade

capitalista, continuam a preservar um saber popular transmitido oralmente por

geraes e obtido por meio da prtica cotidiana do trabalho, realizado em

oficinas, na maioria dos casos, domsticas, o que torna a famlia partcipe do

ofcio de forma direta ou indireta.

27

Nesse aspecto, percebi que h uma realidade complexa, multi e

transcultural, em que diversos tipos de saberes ora se combinam ora entram

em conflitos. Alm disso, tambm entendi que as aes e atividades

desenvolvidas no Polo esto associadas a planos, programas e projetos

institucionais que agregam diversas parcerias a nvel local, regional, nacional e

internacional.

As fontes histricas utilizadas foram: entrevistas gravadas, conversas,

observao participante, documentos oficiais, fotografias, reportagens

impressas e mdia eletrnica. Por esses caminhos teci um registro da rede

sociocultural e das trajetrias individuais de alguns dos participantes do Polo

Joalheiro do Par, assim a histria e memria desse lcus, como j afirmara

antes.

Em outubro de 2011, iniciei a pesquisa de campo. Voltei a frequentar o

ESJL um pouco temerosa sobre como se daria esse retorno, como seria

recebida pelos participantes do programa em destaque, como seria vista

exercendo o novo status social de pesquisadora, compreenderiam?

Confundiriam? Eu conseguiria o distanciamento salutar para o desenvolvimento

da pesquisa proposta? Havia uma inquietao latente provocada por tais

questes. Tomara que sim, pois no medi esforos para tanto.

Entrevistei ao todo 14 pessoas, entre ourives, designers, consultores,

antigos funcionrios, e gestores. Realizei toda essa empreitada acadmica

considerando os ensinamentos das aulas do doutorado e dos autores

estudados, considerando a discusso epistemolgica e de paradigmas da

trajetria da produo do conhecimento da histria social e cultural, assim

como da histria do presente e da histria oral. Tambm levei em considerao

a postura metodolgica dialogal e interdisciplinar entre teorias e abordagens

metodolgicas no contexto do paradigma da hermenutica, sem deixar de estar

atenta para as incongruncias e rupturas entre as mesmas.

Investiguei os processos de atuao dos ourives no setor joalheiro no

tempo presente e do prprio polo, a fim de compreender os limites, avanos do

28

prprio setor e da poltica pblica voltada para este, como tambm identificar

quais rumos este vem tomando para superao de seus gargalos.

A escolha das categorias sociais como participantes da pesquisa deu-se

em funo da importncia dessas na cadeia produtiva das joias artesanais e no

setor joalheiro. Dei destaque para as atividades de ourivesaria/joalheria, por

considerar o saber fazer joias uma atuao decisiva para a continuao do

setor joalheiro artesanal, sem esse saber o fim desse tipo de joias. Sendo,

assim, as joias que fazem artesanalmente em suas bancadas e oficinas so

produtos que garantem a continuidade da existncia do setor diante da

situao de que muitos ourives vm abandonando os seus ofcios para

sobreviver de outras formas ou deixando o fazer artesanal para comercializar

joias industrializadas. tambm uma reao a uma tendncia geral do setor

joalheiro de valorizar mais o trabalho do designer, que assina as peas, visto

que nos catlogos de joias, em sua maioria, no se faz referncia autoria de

quem fez as peas, o ourives.

O trabalho dos ourives divide-se, principalmente, nas seguintes etapas:

fundir tornar o metal lquido sob alta temperatura para ligar este primeiro a

outros metais, por exemplo, fundir o ouro com a prata; laminar reduzir a

lminas, chapar a liga metlica j em estado slido produzida pela ao de

fundir; soldar ligar, unir, prender com a solda, por exemplo, solda de prata

que se efetua com a liga feita com a prata, zinco e cobre; recozer cozer

novamente o metal para garantir sua maleabilidade; trefilar fabricao dos

fios de metal necessrios para a composio das jias; e limar polir as

superfcies metlicas j definidas em forma de joias, como, por exemplo, um

anel, um colar. Ou seja, exige habilidades complexas e especializadas que no

podem ser menosprezadas.

Nesse sentido, a revista eletrnica Blooming19 afirma:

19

Disponvel em: http://blooming.plex.com.br/2010/11/10/ourivesaria-a-arte-de-eternizar-momentos. Acessado em maio de 2011.

http://blooming.plex.com.br/2010/11/10/ourivesaria-a-arte-de-eternizar-momentoshttp://blooming.plex.com.br/2010/11/10/ourivesaria-a-arte-de-eternizar-momentos

29

Assim como outras tcnicas artsticas, o trabalho da ourivesaria realizado em etapas. Tudo comea com o designer da pea que o que d a direo dos trabalhos e o entendimento entre quem desenha a pea e quem vai produzi-la essencial para garantir que a fabricao da joia siga a ideia original. O primeiro passo do trabalho do ourives o derreter a pepita de ouro e condens-la em um bloco de ouro, e a partir disso trabalha como um escultor. A etapa seguinte a martelagem, onde o ourives usa um martelo para talhar o bloco de ouro, at obter a forma desejada. Em seguida ele faz um refinamento da martelagem que a modelagem da pea, onde usa ferramentas com alto grau de preciso. Depois disso feito o refinamento da pea, que onde a joia modelada e aprimorada, passando pelo polimento, dependendo do trabalho feita a cravao de pedras e diamantao, passos que agregam valor pea.

Mas, apesar desse destaque, de maneira nenhuma quero transmitir

qualquer sentido de desvalorizao das outras categorias, por isso pesquisei

sobre a relao entre categorias que compem a cadeia produtiva de criao,

fabricao e comercializao dessas joias, as quais, alm da dos ourives, so

a dos lapidrios, dos designers e dos comerciantes, que tambm so

participantes fundamentais do programa. Assim, verifiquei como os sujeitos da

pesquisa vm traando suas trajetrias de trabalho no setor da joalheria, ou

seja, na arte de fazer joias artesanalmente.

Nessa perspectiva, esta tese foi organizada em cinco captulos, alm

desta introduo e a concluso, conforme apresento adiante:

No primeiro capitulo teci a histria do Polo Joalheiro de Belm do Par,

de forma que os esforos foram para contemplar e entrelaar verses

diferentes sobre seu processo de constituio, por parte de diversos

protagonistas que vivenciaram este contexto. So verses rememoradas por

ourives, profissionais liberais e governamentais, constituindo assim diferentes

verses dessa histria. Por isso denominei joias de memrias, no sentido de

que por meio de comparao, compilao e anlise de memrias expressas

por fontes orais, escritas e audiovisuais esta histria foi emergindo, a partir de

mltiplas interpretaes.

30

J foi dito acima, melhor no resumir e simplificar o pensamento

complexo desses trabalhos, uma vez que j forma acima discutidos com mais

vagar.

No segundo captulo, foi montado um quebra cabea das trajetrias de

vida de dois mestres ourives, Paulo Tavares e Joo Sales, desde a infncia at

os dias atuais, buscando um entendimento sobre como foi possvel e porque se

tornaram detentores desse saber especializado e quais mudanas ocorreram

no exerccio de ourives enquanto ingressos do polo, relacionando isso com a

produo de joias artesanais na Regio Norte, no Estado do Par, na

Metrpole de Belm e com a transversalidade do trabalho familiar, das

experincias de transmisso de um ofcio de pai para filhos, pontuando os

rumos individuais de tais trajetrias e associando tudo isso com suas

produes artesanais, ou seja, suas joias.

No terceiro captulo, apresento um estudo sobre a atuao de cinco

mulheres, Ivete Negro, Camila Amaral, Selma Montenegro, Ldia Abrahim e

Marcilene Rodrigues em um universo tradicionalmente masculino, a

ourivesaria, e de como vm delineando suas histrias como ourives/designers

no setor joalheiro, configurando assim uma histria social de mulheres no

mundo do trabalho, perpassadas pelas discusses sobre a histria da mulher e

questes de gnero na literatura acadmica, tanto por sua relevncia pioneira

como contribuies recentes acerca da temtica abordada. Pude observar as

aproximaes, mas tambm as diferenas entre a trajetria dessas mulheres

entre si, e delas em relao aos homens ourives ,no apenas pelas diferenas

de gnero, mas tambm de outros marcadores sociais, como de gerao e

formao educacional.

No quarto captulo, configuro a rede de sociabilidade dos protagonistas

vinculados ao Polo Joalheiro, com a inteno de mostrar quem so como

indivduos e segmentos sociais do setor joalheiro, assim como delinear as

relaes interpessoais e de grupo visveis e invisveis, em termos de seu

pensar e agir nesse universo.

31

Desse modo, tento mostrar um alm do mundo das joias do luxo, da passarela

e exposio, dos catlogos, das notcias na mdia, em que chamo aqui de

vitrines, que composto pelo trabalho familiar, cotidianos marcados por

dificuldades de sustento financeiro, de falta de matrias primas, de anseios e

dificuldades de se firmar no ofcio de ourives ou na profisso de design. um

mundo, portanto, nessa perspectiva, marcado por relaes de disputas por

espaos de reconhecimento, por diversidade de modos de vida, com diferentes

status sociais e econmicos.

No quinto e ltimo captulo escrevi sobre as multifaces do Polo Joalheiro

de Belm do Par, com a pretenso de compor uma verso de histria

sociocultural e econmica da joalheria no tempo presente,

Nessas perspectivas, apresento o Polo Joalheiro materializado no

Espao So Jos Liberto, desde 2002, por meio de diversas aes e

atividades, tendo por base concepes de gesto governamental, por um lado,

e dinmicas provocadas pelos seus participantes e parcerias institucionais, por

outro lado, configurando-se assim em pluralidades de ideias e aes,

experincias e concepes. Tratam-se de prticas produtivas de criao e

fabricao que fortalecem os modus operandi artesanais, mas que no deixam

de dialogar com as formas mercadolgicas do mundo capitalista, no aspecto de

marketing e comercializao das joias do Polo.

32

Porta de entrada para os mundos do Polo Joalheiro do Par

Rastros para adentrar num labirinto reluzente

Fao joia para apreciar e homenagear a beleza da natureza. Ela me fascina porque tem sempre uma coisa indita, igual a joia artesanal, pea nica. [...] fazer joia para mim questo de vida ou morte. [..] eu me sinto vivo. Eu penso e fao. Determino tamanho, medida. Penso, crio, produzo e fao ferramentas para fazer a pea e fao o cronograma do trabalho de quanto tempo eu vou levar para faz-la. Fao molde, rabisco e o piloto. Sem fazer o molde e o piloto faz perder metal e at a pea. (Mestre ourives/joalheiro Paulo Tavares)

A joalheria nos remete a mundos de trabalho, a formas de ser, pensar, e

viver, ao se tratar do agregar atividades de criar, fazer e comercializar joias,

que acompanha, de modo, geral, a composio da prpria histria social e

cultural realizadas pelos humanos. Nesses termos, segundo Gola, a joia [..]

moeda universal que no perde seu valor material, documento que resiste ao

tempo, patrimnio impregnado de sentimentos e de histria20

Desse modo, a histria da humanidade, independentemente de

diferenas tnicas, geogrficas, topogrficas, simblicas ou quaisquer outras,

foi e continua a ser marcada pela produo de artefatos que tm a finalidade

de adornar, agradar e seduzir, e, entre estes, encontram-se as joias.

Por isso, a joia, como criao e (re)produo humana, pode ser

considerada agregadora de muitos aspectos ao mesmo tempo, , nesse

sentido, signo, bem material e arte, com vnculo com os desejos latentes e

realizaes de necessidades dos seus criadores, produtores, comerciantes e

usurios.

Aqui o entendimento de joia, grosso modo, se remete a defini-la como

um artefato de ornamentao corporal feito pela manipulao e transformao

20

GOLA, Eliana. A joia: histria e design. So Paulo: SENAC So Paulo, 2008, p. 15.

33

do metal ouro ou prata em formas de anis, pulseiras, colares, pingentes,

brincos, entre outras, com a cravao21 de gemas minerais ou vegetais.

Nesse mundo, o fazer joia artesanal uma das mais antigas formas de

usar as mos para criar algo que pode significar muitas coisas para os seres

humanos. Sendo assim, o fazer, criar e o uso de joias vem atravessando

tempos e lugares, agregando aspectos socioculturais, econmicos, simblicos,

desse modo, delineando histrias.

Quem sabe fazer joias manualmente chamado de ourives de joalheria.

O termo ourives, segundo Charles Codina, deriva do termo latino aurifaber, que

se refere ao arteso que manipula ouro e qualquer outro metal, utilizando

diversas tcnicas, sendo a traduo literal do termo fazedor de objetos de

metal.22

Ou seja, a ourivesaria a arte de trabalhar com metais preciosos, como

a prata e o ouro, na fabricao de joias e ornamentos. considerada uma das

artes de fazer mais antiga. Foram encontrados stios arqueolgicos no mar

Egeu, datados em torno de 2500 a. C., nos quais foram encontradas joias feitas

de ouro. No Egito antigo j se produzia joias, utenslios e ornamentos com

muitos detalhes, utilizando esses materiais. O profissional que realiza este tipo

de trabalho denominado de ourives. Cabe ressaltar que esta atividade , em

sua natureza, uma atividade de cunho artesanal.23

A joalheria considerada o ramo da ourivesaria que trabalha somente

com metais considerados nobres,24 ouro ou prata, para a confeco de joias. A

21

Tcnica da joalheria para incrustar gemas em joias. Ou seja, arte de unir gemas e metais num formato de joia. um processo manual. CURSO DE JOALHERIA BSICA. Escola de Formao Profissional em Joalheria RAHMA: Gemas e Joias, Belm, 2005 (apostilha impressa). PEIXE, Patrcia. Cravao e Joalheria Artesanal. Disponvel em: http://www.joiabr.com.br/joiamix/0408.html. Acessado em 22/05/2013. PINTO, Rosngela Gouva. Relatrio de Execuo Tcnica do Curso Fundamentos de Joalheria para o Igama. Belm, 2010. 22

CODINA, C.A. A Ourivesaria. Lisboa, Portugal: Editora Estampa, 2002. 23

Idem. 24

So aqueles classificados como resistentes corroso, oxidao, aos cidos e sais. So raros na natureza e permanecem sempre puros, ao contrrio da maior parte dos chamados metais vis, como ferro, nquel, chumbo e zinco. Os metais nobres no devem ser confundidos

34

Joalheria artesanal no Brasil se configura com base no legado que recebe de

Portugal, da Itlia e demais pases Europeus. Segundo Julieta Pedrosa, no

perodo colonial:

[...] as joias aqui usadas por homens e mulheres eram muito raras, mas as poucas que existiam j evidenciavam a moda vinda de Portugal e de outros pases europeus. No havia, ainda, uma tradio de ourivesaria no pas: as raras peas vinham de fora. As joias femininas, com o abandono dos complicados penteados medievais e dos novos ares renascentistas, tornaram-se mais leves: fivelas para sapatos, anis e brincos curtos, no incio do sculo XVI, e depois mais longos - eram os preferidos. Os cabelos eram presos e tranados com prolas ou pequenos adornos em ouro ou pedras preciosas e usava-se a ferronire, broche adornando a testa e preso cabea por uma fita. 25

Portanto, por sua condio histrica como colnia de Portugal, o Brasil

traz em sua bagagem cultural as influncias europeias no seu modo de fazer e

pensar. Contudo, tambm recebe influncia cultural dos africanos, que para c

foram trazidos na condio de escravos, e dos indgenas, nativos da terra.

Toda essa diversidade cultural comps e compe a histria da joalheria

brasileira, formando um caleidoscpio cultural, por isso multi e intercultural, na

produo de nossa joalheria, que vem buscando, ao mesmo tempo, firmar uma

identidade brasileira ou identidades brasileiras, quando so levadas em

considerao as particularidades regionais e locais Estados, cidades, grupos

e indivduos, assim como os lugares de criao, produo e comercializao,

como o Polo Joalheiro do Par.

A histria da joalheria brasileira, segundo Julieta Pedrosa,26 inicia com a

transferncia da sede da Monarquia Portuguesa para o Brasil, especificamente

para o Rio de Janeiro, sede da Colnia, em janeiro de 1808, tendo o Prncipe

com os metais preciosos, embora muitos metais nobres sejam preciosos. CURSO DE JOALHERIA BSICA. Escola de Formao Profissional em Joalheria Rahma: Gemas e Joias, Belm, 2005 (apostilha impressa). Essa escola funciona no Esjl. BRANCANTE, Maria Helena. Os Ourives: na Histria de So Paulo. So Paulo: rvore da Terra, 1999. 25

PEDROSA, Julieta. Histria da Joalheria. Disponvel em: http://www.joiabr.com.br/artigos/hist.html. Acessado em: 11/12/2012. 26

Idem.

35

Regente D. Joo trazido toda a sua Corte e vrios artistas e artfices, incluindo

renomados ourives de Portugal.

Fato esse que contribuiu definitivamente para o Rio de Janeiro se tornar

tradicionalmente um lugar que concentra os mais respeitveis, em termos de

qualidade e comercializao, polos joalheiros do Brasil a nvel nacional e

internacional.27

De acordo com Gola,28 os oficiais e mestres ourives, de diferentes

culturas, que migraram para o Brasil no Perodo Colonial, introduziram na

fabricao de suas peas materiais autctones, fazendo com que as joias

brasileiras se diferenciassem mais das estrangeiras.

No Sculo XVII, os ourives ainda migravam para c. Contudo, a maioria

dos artesos era composta de escravos, mulatos e ndios, pois aprendiam esse

ofcio com muita facilidade e muitos tornavam-se artistas, sendo

significativamente responsveis pela superao paulatina da prtica comum de

copiar uma pea, mesmo que, muitas vezes, sob a tutela dos mestres ourives

portugueses. Esses artesos buscavam novas inspiraes para criar e produzir

suas peas, a fim de acentuar a diferena entre as joias brasileiras e as joias

francesas ou portuguesas.29

Esse contexto histrico se manifesta nos dias atuais numa recorrente,

mas no linear, busca de construo de identidades nacionais, locais, em

grupo ou individual, em termos de querer se destacar por uma digital

criativa/inovadora no mundo, em termos de expresses de artesania,30 sendo

isso um anseio constante da parte dos artfices designers de joias que esto

27

SOARES, Maria Regina Machado. A joia do Rio: de ofcio secreto a design contemporneo. Rio de Janeiro: Senac, 2011. 28

GOLA, Eliana. A Joia: histria e design. So Paulo: Editora Senac, 2008. 29

Idem. 30

Trabalhos Manuais, que caracterizam a diversidade da produo artesanal. Uma arte popular centrada na figura do artista/arteso, com a produo de peas nicas e/ou sries limitadas, fruto da criao individual, em que o arteso so aqueles detentores de conhecimento tcnico sobre materiais, ferramentas e processos de sua especialidade, dominando todo o processo produtivo, conforme consta no PROGRAMA DE ARTESANATO DO SEBRAE. Belm, 2004.

36

dispostos a ir alm da cultura da cpia, apostando assim numa linguagem

artstica imbricada com a artesanal.

O fazer joias artesanais em Belm tm uma trajetria histrica marcada

por acontecimentos de antes e depois da implantao oficial do Programa de

Desenvolvimento do Setor de Gemas e Joias do Par, em 1998, por parte do

poder executivo estadual. Este programa faz parte de uma poltica pblica, com

o objetivo de elaborao de diagnstico e implementao das diretrizes para o

desenvolvimento do setor joalheiro, a fim de organizar e fortalecer a cadeia

produtiva de gemas31 e metais preciosos no Estado do Par, por meio da

criao de um polo joalheiro, nos moldes daqueles que tradicionalmente j

gozavam de reconhecimento nacional e internacional pelo que fazem.

Propondo assim para o setor joalheiro uma inveno das tradies 32 ou uma

inverso.

No foi por acaso, portanto, que profissionais do Rio de Janeiro que

atuam no setor joalheiro, por exemplo, foram e so contratados para prestar

servios de consultorias e ministrar curso de qualificao tcnica.

Segundo relatos daqueles que atuavam no ofcio de ourives/joalheiros

antes da criao do Programa Polo Joalheiro, em 1998, eles eram perseguidos

pela polcia. O ourives/joalheiro Paulo Tavares, um dos principais interlocutores

da referida pesquisa, relata que:

[...] a gente trabalhava sob presso. Pra funcionar aqui o ourives pagava uma taxa, na verdade foi confundido o ourives com comprador de ouro, a polcia fechou o cerco, era tratado como receptor. A partir da hora que tu passava a lidar com joia, tu pagava uma taxa por semana. pra delegacia no comrcio.

Nesse depoimento, ficou evidente que os ourives, de modo geral,

atuavam num contexto em que o lcito e ilcito se misturavam, em que a polcia

31

Uma gema um mineral, rocha (como a lpis-lazli) ou material petrificado que, quando lapidado ou polido, colecionvel ou usvel para adorno pessoal em joalheria. Outros so orgnicos, como o mbar (resina de rvore fossilizada) e o azeviche (uma forma de carvo), segundo o dicionrio de Geocincias disponvel em: www.dicionario.pro.br/dicionario/index.php/Gema. Acessado em 15/05/2011 32

HOBSBAWM, Eric J. A inveno das tradies. Rio de Janeiro: Funarte, 1987.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Mineralhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Rochahttp://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%A1pis-laz%C3%BAlihttp://pt.wikipedia.org/wiki/Joalheriahttp://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%82mbarhttp://pt.wikipedia.org/wiki/F%C3%B3ssilhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Azevichehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Carv%C3%A3ohttp://www.dicionario.pro.br/dicionario/index.php/Gema

37

via com muita desconfiana o ofcio de ourives, a ponto de no diferenciar

quem era de fato o que fazia joias e os receptadores de ouro e joias roubados.

Paulo Tavares e outros sujeitos da pesquisa, como Joo Sales,

afirmaram que com o Programa Polo Joalheiro, aos poucos, os

ourives/joalheiros, de modo geral, conseguiram ser respeitados, porque gerou

condies institucionais para a diminuio da informalidade e,

consequentemente, a legalizao do ofcio, principalmente para aquele que

fabrica joia e/ou microempresrio que integra o Polo Joalheiro em evidncia

aqui.

Essa situao aparece tambm nas experincias dos ourives/joalheiros

do Brasil Colnia e na Europa medieval, como demonstrou o estudo de

Bracante, 33 no que diz respeito ao controle rgido do ofcio do ourives, por

parte das instituies governamentais.

Segundo Gola,34 a Organizao do ofcio de ourives no Brasil Colonial

apresenta semelhanas com a organizao desse ofcio em Portugal. Tanto l

como aqui, os ourives eram obrigados a criar uma marca (puno) para

identificar suas peas e registr-la oficialmente, e no podiam vend-las sem

essa identificao. Os ourives daqui burlavam constantemente essa

obrigatoriedade pela distncia da metrpole, o que dificultava um controle

rgido por parte desta. Desse modo, foi atribudo um carter clandestino ao

ofcio de ourives no Brasil, o que, dificulta, at nos dias atuais, a identificao

desses artesos e de suas oficinas (ou de seus atelis) em todo Brasil.

Nesse contexto, o setor joalheiro compreendido como um conjunto de

atividades que devem se articular, envolvendo desde os insumos e matrias

primas at a transformao destas ltimas, os processos de criao e

fabricao do produto final, que a joia, at a sua distribuio e

comercializao.

33

BRANCANTE, Maria Helena. Os Ourives na Histria de So Paulo. So Paulo: rvore da Terra, 1999. Prlogo. 34

GOLA, Eliana. A Joia: histria e design. So Paulo: Editora Senac, 2008.

38

Segundo o Servio Brasileiro de Apoio Micro e Pequenas Empresas

(Sebrae), at chegar ao consumidor, as joias percorrem um longo caminho,

que, muitas vezes, comea no garimpo; outras, na produo dos metais

usados. De qualquer forma, so resultados de uma cadeia produtiva cheia de

etapas e tambm esto ligadas a um setor constitudo por micro e pequenas

empresas 93% do total que empregam 500 mil pessoas em todo territrio

Brasileiro.35

No que diz respeito as matrias primas das joias referentes ao ouro e as

gemas, o Par representa, segundo dados do Instituto Brasileiro de Gemas e

Metais Preciosos, percentualmente, enquanto fornecedor do ouro no Brasil,

36,9%, ficando somente atrs de Minas Gerais, que est entre os 48,0%. No

total mundial representa 1,9%. 36

Segundo o Instituto Brasileiro de Gemas e Metais Preciosos (Ibgm):

O Estado do Par abriga a provncia mineral mais representativa do pas. O territrio paraense possui a maior jazida de ferro do mundo, 80% das reservas de bauxita do Brasil. , tambm, o maior produtor de ouro, com reservas estimadas em 300 toneladas. Seu mapa gemolgico registra 256 ocorrncias de diamantes, gua marinha, ametista, berilo, calcednia, citrino, cristal de rocha, fluorita, granada,

malaquita, opala, quartzo, rutilo, turmalina, topzio, entre outras. 37

Foi nesse cenrio que o Programa de Desenvolvimento do Setor de

Gemas e Joias ou Polo Joalheiro do Par foi criado pelo Governo Estadual,

que, segundo fontes oficiais, pretendia dessa forma agregar valor produo

mineral, que historicamente vinha sendo comercializada em estado bruto.

A gesto do Programa, de 1998 a 2003, foi de responsabilidade das

Secretarias de Governo. A partir de 2004 passou a ser gerenciado pelo terceiro

setor, por meio de uma Organizao Social OS, a qual assina com o Governo

35

SEGUNDO O SERVIO BRASILEIRO DE APOIO MICRO E PEQUENAS EMPRESAS. Indstria de Joias. Lapidando a Imagem da Joia brasileira, em pdf. Disponvel em:www. Sebrae.com.br. Acessado em janeiro de 2013. 36

Segundo OLIVEIRA, M. L. (2007) Sumrio Mineral Brasileiro 2006. DNPM/MME, p88-89. Arquivo digital, consultado no endereo: http://www.dnpm.gov.br. Acessado em maio de 2011. 37

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEMAS E METAIS PRECIOSOS. Polticas e Aes para a Cadeia Produtiva de Gemas e Joias / Instituto Brasileiro de Gemas e Metais Preciosos.; Hcliton Santini Henriques,Marcelo Monteiro Soares (coords.). Braslia : Brisa, 2005

http://www.dnpm.gov.br/

39

do Estado, por meio das Secretarias, um contrato de gesto, formalizando

assim um sistema de parceria, que deve ser renovado a cada quatro anos e

prestar conta por semestre.

O programa foi criado para tambm combater a informalidade na

produo e na comercializao das joias artesanais. Para tanto foram adotadas

medidas institucionais de curadoria e suporte laboratorial para permitir anlises

de autenticidade e controle de qualidade do produto. Esse o contexto a que

pertence o Polo Joalheiro/Espao So Jos Liberto, o lcus, e, ao mesmo

tempo, o objeto dessa pesquisa, em conjunto com as trajetrias de alguns dos

seus sujeitos participantes.

A primeira OS a assumir a gesto do referido programa/projeto/polo

joalheiro e do espao So Jos Liberto foi a Associao So Jos Liberto

(SJL). Mas com a mudana de governo em 2007, assumiu a gesto o Instituto

de Gemas e Joias da Amaznia (IGAMA), que permanece at os dias atuais

(2016).

Um dos desafios deste conseguir driblar as descontinuidades da

gesto estadual, diante das mudanas de governo, e sobreviver num mar de

incertezas, quando isso ocorre. Atualmente tem como objetivo principal

fomentar a organizao e integrao dos elos da cadeia produtiva do setor

joalheiro, se configurando em arranjo produtivos local.

O IGAMA vem gerenciando o referido polo a partir de trs eixos de

atuao: 1- capacitao, gesto e inovao tecnolgica; 2- criao, produo e

comercializao de gemas e joias; e 3- promoo e manuteno do Espao

cultural, comercial e turstico So Jos Liberto.

Como lcus da pesquisa configurado aqui como um complexo de

concepes e aes voltadas para o mundo das joias, como tambm um palco

de relaes e experincias transversais geracionais, de gnero, de produo

familiar, de tipos de saberes, as quais vistas como componentes de um

mosaico de verses, trajetrias individuais e coletivas, que delineia uma

40

histria sociocultural, numa perspectiva de debater conceitual e

metodologicamente a histria do tempo presente, alm do entrelaamento

entre memria e esquecimento no uso de fontes orais e escritas e, mais ainda,

na escrita da tese como empreitada acadmica no campo da disciplina histria.

Trata-se, portanto, de um estudo sobre a histria e memria do

Programa/Projeto Polo Joalheiro de Belm do Par, incluindo nesse estudo,

especificamente, a trajetria de dois mestres ourives/joalheiros, Paulo Tavares

e Joo Sales e cinco ourives/designers, Ivete Negro, Camila Amaral, Selma

Montenegro, Ldia Abrahim e Marcilene Rodrigues.

Como tambm a rede de relaes sociais visveis e invisveis, composta

por meio das experincias de alguns atores que representam os segmentos

sociais vinculados ao polo em destaque, os dos designers, ourives/joalheiros,

microempresrios, lapidrios, cravadores, por um lado, e gestores,

funcionrios, consultores, por outro lado.

A escolha dos sujeitos da pesquisa se deu em funo destes se

vincularem, de algum modo, aos processos de criao e fabricao de joias

artesanais, foco principal deste estudo.

O problema consiste em compreender a formao do projeto de

implementao do Polo, a constituio do espao So Jos Liberto a partir da

perspectiva de seus diversos atores: mestres, administradores, ourives,

lapidadores de diversas geraes e gnero. E, ainda, perceber a trajetria

desses sujeitos em sua multiplicidade de experincias cujo marcador comum

a sociabilidade construda no espao So Jos Liberto. Uma sociabilidade

marcada por alianas, laos de solidariedade, troca de saberes, mas tambm

tenses e conflitos que vo desde o fazer das peas, s concepes do

produto, do uso do espao e da continuidade do Programa.

Percebemos com o desenvolvimento da pesquisa e o tempo de trabalho

no programa, que um dos pontos de preocupao e tenso presente na fala

dos diversos interlocutores que entrevistamos formal, ou informalmente,

41

passam pela pergunta se se a joia artesanal pode de fato inscrever uma

histria como um caminho vivel para o Polo e seus sujeitos participantes

galgarem um reconhecimento no setor joalheiro, em termos de qualidade

tcnica do produto, design de inovao e sobrevivncia mercadolgica, local,

nacional e internacional. Ou seja, se essa joia pode sobreviver a fora

agressiva e hegemnica das joias industriais, representada pelas marcas de

joias nacionais e multinacionais. Ser que como Golias, as joias artesanais,

vencem as gigantes?

Esta principal questo pode ser desmembrada em outros

questionamentos mais especficos. Ser que o Polo e seus sujeitos conseguem

sobreviver mercadologicamente enquanto um arranjo produtivo local na trilha

da economia criativa, moda e design? Consegue atingir novos patamares de

qualidade, criatividade e comercializao como territrio criativo? Contribuem

ou atrapalham o alcance de resultados animadores os conflitos entre os

segmentos sociais e indivduos num cotidiano vivenciado no Polo? Em seus 18

anos de existncia quais frutos j podem ser colhidos e quais obstculos

precisam ser ainda enfrentados e superados? Essas so questes que

apareceram em boa parte dos discursos.

A importncia deste estudo pode ser justificada pela inexistncia de

trabalhos na histria belenense, sobre o artesanato, os ourives e o espao do

So Jos Liberto e do Programa. O registro de experincias temporais, sociais

e culturais to ricas realizados nesta pesquisa, evidencia a diversidade de ser e

viver, assim como de traos multi e transculturais que perpassam os atores,

suas trajetrias e concepes de trabalho, uso do espao e do saber fazer

artesanal. Nesse sentido, acredito em poder contribuir para a ampliao do

conhecer do universo pesquisado.

Outro motivo para a produo da tese pautado na percepo de que

imprescindvel a sistematizao, articulao e difuso de informaes, de

saberes e conhecimentos para aglutinar esforos coletivos de superao de

dificuldades no contexto vivenciado, pois, caso contrrio, a fragmentao e a

desarticulao dessas experincias podem potencializar atitudes mais

42

autoritrias, individualistas e ressentidas, por falta de respeito pelas diferentes

formas de pensar e agir.

Assim, a tese ao trazer tona o discurso de atores to diversos, suas

trajetrias e concepes, assim como, discutir a implementao do Programa

de Joias no espao do So Jos Liberto, permite realizar reflexes que podem

ajudar a construir referncias para prognsticos, com a conscincia de ser

apenas um percurso realizado, entre tantos outros possveis de serem

elaborados. De todo modo, j se tem a vantagem de sistematizao de

informaes dessa realidade pesquisada, que servir, o que espero, a tantos

outros estudos sobre o setor joalheiro. Contudo, escrevi toda a tese com uma

ideia subjacente, de que uma pesquisa sobre qualquer assunto no acaba,

mas abandonada ou continuada.

O objetivo principal analisar os discursos e as prticas, em sua

multiplicidade no cenrio do Polo Joalheiro e dos seus segmentos sociais, ou

seja, a trajetria, o saber fazer, a sociabilidade, tenses conflitos entre os

atores, mestres, homens e mulheres, mestres e alunos (as), artesos,

administrao, e a memria de implementao do programa.

A temtica estudada no est distante de minha prpria experincia

profissional e pessoal. Em setembro de 2007, fui convidada pela diretora

executiva do IGAMA para ministrar uma oficina sobre as lendas amaznicas,

para servir de inspirao para a criao da coleo de joias da IV Par

Expojoias Amaznia Design, nica feira de joias da Regio Norte, que ocorre

desde 2004, no Polo Joalheiro do ESJL. O Polo Joalheiro, como j foi dito

antes, um codinome do Programa de Desenvolvimento do Setor de Gemas e

Joias do Par.

Em 2008, adentrei novamente no Espao So Jos Liberto para prestar

um servio de consultoria antropolgica e nesse mesmo ano assumi a

coordenao do Ncleo de Desenvolvimento Tecnolgico e Organizacional

NDTO, funo na qual permaneci at dezembro de 2010.

43

Nessa funo, percebi a falta de registros das concepes e aes que

recheiam e constroem o cotidiano do Polo joalheiro, de forma sistemtica e

analtica, capaz de delinear entendimentos sobre a complexidade da rede de

relaes sociais e interpessoais por dentro da cadeia produtiva e do mbito

institucional. Acredito que essa situao tambm fez emergir o meu interesse

em pesquisar o mundo do trabalho dos e das participantes do Polo Joalheiro,

a fim de elaborar um registro histrico.

A empreitada de escrever essa tese, teve como pontap inicial a

apresentao de um pr-projeto com a temtica aqui desenvolvida, a fim de

submet-lo ao processo de seleo de doutorado do Programa de Ps-

Graduao da Faculdade de Histria da UFPA (PPHIST), em junho de 2011, e

ao conseguir a aprovao iniciei o percurso de formao terica e produo

historiogrfica, interrompido em todo o ano de 2012, porque fui acometida por

um grave problema de sade, mas que foi superado, o que permitiu o meu

retorno a esse percurso em 2013 em diante.

A partir de agosto de 2011 comecei a cursar, a disciplina Tpicos em

Trabalho, Cultura e Etnicidade, cujo contedo, ministrado pelo Prof. Dr. Antnio

Otaviano Vieira Junior, foi sobre a Micro-Histria, o que me inspirou a us-la

como um dos recursos metodolgicos para o desenvolvimento do trabalho em

questo, pois as leituras sobre Micro-Histria, assim como as aulas permitiram

entender que a reduo de escalas no o que caracteriza de fato o trabalho

do historiador que segue essa corrente historiogrfica, mas o jogo de escala

entre o micro e o macro, entre o particular e o coletivo, sendo que esse jogo s

pode ser evidenciado na construo da narrativa histrica do trabalho

desenvolvido.

A utilizao da narrativa para escrever a histria permite que o resultado

possa ser lido no s pelo pblico especializado, mas tambm pelo grande