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E agora? Que futuro?

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E agora? Que futuro?

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COVID-19- A NOVA "PESTE"A pandemia do novo corona vírus, o Covid 19, globalizou-se, já infetou milhões de pessoas, vitimou dezenas de milhares,

constitui um pesadelo, sem fim certo à vista, a semear medo e morte, de muito dramáticas consequências, mormenteeconómicas e no tecido social. A Europa é atualmente a região do mundo mais afetada, com a Itália e a Espanha à frente,

Portugal na situação que se sabe e com o estado de emergência já decretado. Face a tudo isto, o que vai acontecer, a vários

níveis, o que vai - deve - mudar para termos futuro? Aqui, três excelentes ensaios: do nosso destacado colunista, filósofo,ambientalista e muito mais; de um investigador no CECH da Un. de Coimbra, e prof . na Católica Porto Business School;

de uma grande escritora de língua portuguesa, que também nele mostra ser. A seguir, outros escritores contam-nos comoestão a viver os seus dias de (mais ou menos) quarentena. E Afonso Cruz, na sua coluna, também escreve sobre o tema

Por uma nova 'habitação da Terra'VIRIATO SOROMENHO-MARQUES

*.'»?;><:';] As águas tornaram-se cristalinas sem a pressão do turismo

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O ainda incalculável preço físico,moral e económico da crise globalcausada pela expansão da pande-mia do Covid-19 terá sido em vão se

aceitarmos as duas teses que muitos

governos começam a enunciar nasua gestão da resposta: 1) esta crise é

externa, como se fosse uma calami-dade natural sem relação com a açãohumana; 2) a vitória sobre esta criseserá conseguida quando retomarmosa "normalidade", fazendo o mesmo

que antes e da mesma maneira. Se

nos deixarmos embarcar nesta visão

cega e febril perderemos o potencialde conhecimento e de regeneraçãoque uma crise enfrentada com os

olhos abertos sempre permite.Há muitas décadas que repetimos

ser a crise global do ambiente e doclima o maior desafio existencial quea humanidade criou para si pró-pria, com repercussões estruturais,

ontológicas até, para o futuro do

Sistema-Terra, que desde há séculos

está a ser objeto de um processo de

entropia, em função da agenda da

Modernidade, fundada no princípioda "dominação". Desde que o Adãode Pico delia Mirandola (1486) foi

entregue, por um Deus cada vez maisdistante e meramente contemplativo,à tarefa de se completar a si próprio,pelo uso do seu livre- arbítrio, e queTommaso Campanella (1623) identifi-cou na aceleração tecnológica a forçamotriz dos Modernos, que a históriada Europa, e hoje de todo o mundo,se transformou numa marcha cadavez mais intensa para a realização da

utopia de uma dominação incon-

dicional da humanidade sobre a

Natureza. Em 1822, o jovem A. Comtedividia a história em duas idades.

Depois da "idade da conquista" ,

entrávamos na "idade da produção".A submissão tecnológica e industrialda Natureza (reduzida à homogé-nea e dócil "substância extensa"de Descartes) seria capaz de delaextrair todas as recompensas que nãotínhamos conseguido obter através

de milénios de guerra entre os povos

para disputar os parcos e incertosexcedentes das frugais economias

agrícolas.

O TRIÂNGULO DA DISTOPIA DADOMINAÇÃO Depois das fanta-sias do final de século XX, em quetentámos escapar dos riscos da

Modernidade através da poção má-gica dos vários profetas da "pós-mo-dernidade", sabemos hoje, em 2020,que continuamos na mesma estradade Gama, de Copérnico, de Pascal, deAdam Smith, de Condorcet. Para se

sair da Modernidade, para se evitaro colapso mortal contra o muro das

pandemias (como o Covid-19), Queocorrem pela intrusão humana nosúltimos redutos da biodiversidade,

para impedir a desordem social e

a disrupção política que um pro-cesso descontrolado de alteraçõesclimáticas acarretará - envolvendo

migrações de milhões de refugiadosambientais, com o risco de guerrasbrutais pela água e pelo solo arável -então teremos de enfrentar uma duraverdade: o meio milénio de esperançautópica na autonomia e na emanci-pação humanas, degenerou na disto -pia da dominação. A nossa época é ada utopia realizada por excesso, como

A crise pandémicado Covid-19 abre-nosa janela de tarefastão urgentes comotitânicas. A escolhaé entre as doresde um novo partoda civilização ou a

imperdoável aceitaçãodo suicídio da própriahumanidadepesadelo. A distopia da dominação,com a sua imensa inércia, trans-formou a economia numa força de

niilismo material que ameaça devorartudo e todos no seu caminho.

Contudo, jamais poderemos sairdo niilismo distópico sem perceber-mos como funcionou o software das

promessas utópicas da Modernidade.Ele pode ser descrito pela dinâmica

triangular que a seguir se enuncia:

1. Substituição da ética pela fusãoda técnica e ciência, como ficou,

especialmente, patente nas obras

de Descartes e Bacon. A chave do

futuro, desse lugar por realizar, desse

u-topos, não se encontra na mudançada natureza humana (como seria o

caso da conversão ética patente de

modo central nas utopias clássicas,de matriz platónica) , mas sim na in-tensificação da dominação da culturahumana sobre a Natureza.2. Crença na transferência do infinitoteológico e/ou metafísico para o

poder humano sobre o mundo físico

(cuja possível extensão ao campoda "biologia" está desde o inicio

presente): progresso, crescimento

exponencial (a religião do neolibera-lismo!), mobilização, aceleração. Essa

mutação radical da utopia modernafunda-se no aprofundamento do co-nhecimento sistemático dos proces-sos causais inerentes às forças e fenó-menos naturais, e na sua replicaçãotécnica para fins humanamente úteis.É o horizonte e as promessas da so-ciedade tecnocientífica, em que nos

encontramos longamente mergulha-dos, que se encontram enunciados na

linguagem dos grandes pensadoresde Seiscentos.3. Recusa da existência de limites

intransponíveis pela tecnociência emaliança com o Estado, o Mercado,ou com ambos. As grandes utopiasmodernas procuraram ajudar a criaruma espécie de nova humanidade,através da criação de inusitados mei-os tecnológicos (ao serviço da nova

ideologia do cientismo), suscitados

pela explosão do potencial científicodas sociedades, e pelo dinamismode mercados económicos totalmen-te libertos de qualquer espécie de

constrangimentos ou mecanismos de

moderação. O tema do poderio hu-mano, centrado durante séculos nocontrole e domesticação da naturezabiofísica, conhece hoje uma espéciede recuo em direção à própria condi-ção humana. Nas suas manifestaçõesmais recentes, o cientismo afirma-senuma radicalidade demencial, comoé o caso dos autores transhumanis-tas, segundo os quais a arquiteturaatual da condição humana, fruto da

evolução natural, é um obstáculo à

continuação ilimitada das aplicações

tecnológicas, sendo por isso urgenteuma nova engenharia do fenómenohumano! É caso para recordar o lemada Liga Hanseática: navigare necesse,vfvere non est necesse. . .

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AO LONGO DOS ÚLTIMOS CINCOSÉCULOS temos assistido ao intensodesfilar desta aposta ideológica naabertura indeterminada do mun-do às modulações e modelações danovel tecnociência. Os entes físicos

surgem como mera matéria-prima,amorfa e ilimitadamente robusta,pronta a ser transformada, pela livredecisão de um Demiurgo humano. Oinfinito deixou de ser um predicadoatribuível apenas ao Deus criador do

Cristianismo, ou às ideias puras dametafísica antiga, para se transfe-rir para a indefinida e inesgotávelcapacidade plástica da criatividadehumana, armada pelo braço da técni-ca. Apenas num século, entre 1901 e

2001, a força propulsora da tecno-ciência fez multiplicar a populaçãohumana quatro vezes e a riquezaeconómica por 40 vezes. A crise desaúde pública que está a paralisar o

mundo, e a tirar a vida a milhares de

pessoas, é apenas uma parte menordo preço que a continuação dessa"normalidade" distópica implicaria.

O QUE PROPÕE O PRINCÍPIO DAFRAGILIDADE? A crítica ecologistaou ambientalista da modernidade temsido mais hábil na análise parcelar do

que na proposta de uma cosmovisão

capaz de se opor à distopia da domi-nação. Por exemplo, o próprio con-ceito de "desenvolvimento sustentá-vel" - que visa sobretudo descrevere caracterizar um processo político,económico e social de transformaçãoe mudança - constitui uma fórmulaalgo contraditória. Por um lado, atra-vés do conceito de "desenvolvimen-to", partilha do impulso dinâmico, de

progresso ilimitado, dessa matriz dedesmesura tecnológica que pretendecriticar e superar. Contudo, atravésda "sustentabilidade", este conceitoabre -se para aquilo que me pareceessencial: para sobreviver, em con-dições de dignidade, a humanidade

deve reassumir com humildade o seu

lugar no interior do "Sistema-Terra",o nome que as novas Ciências da Terradão ao clássico conceito de Natureza.

Isso implica uma verdadeira"conversão ecológica", no senti-do franciscano (de S. Francisco e

daquele que se encontra patente naLaudato si do Papa Francisco) . É isso

que designo por "princípio da fra-gilidade" : a consciência positiva davulnerabilidade da condição huma-na, não como algo a ultrapassar, mas

como aceitação da nossa pertença a

um todo maior, a uma solidariedade

ontológica com o mundo e todas as

suas criaturas, humanas e não-hu-manas, constituindo uma "comuni-dade de vida" , na expressão de AldoLeopold (1949). Comunidade que é

o derradeiro baluarte protegendo o

futuro contra o abismo de destruição

para onde o princípio da dominaçãonos empurra.

Nessa medida, o princípio da fra-

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gilidade oferece- nos uma "inversãode todos os valores" , que nos conduzà coragem da reinvenção da política,da ética e da economia - usando a

religação à Terra como estrela polar -lançando -nos na tarefa de resgatar ofuturo da desintegração em marcha.Esses novos valores, contêm, emsimultâneo, a crítica e a proposta:

A) Pluralismo de fins, recusa de

hierarquia vertical. O pluralismo domundo humano, como diz HannahArendt, deriva do facto de apenasexistirem homens e não "Homem".Isso é válido para as narrativas e pro-jetos de vida. A horizontalidade do

respeito deve substituir a verticalida-de da arrogância. O desenho do futu-ro é entendido como tendo condiçõespara abrigar múltiplas finalidadesem coexistência pacifica, desde queos mínimos requisitos fundamentaisda sustentabilidade ambiental sejamdevidamente levados em conta.B) Crítica à desmesura da tecnociên-cia. O que está em causa não é umaatitude ludista de absoluta alergia à

técnica, mas a recusa de uma visãoacritica e acéfala dos riscos da soci-edade tecnológica, bem como o malfundado de uma visão, totalmentefebril, da capacidade da Natureza su-portar as nossas investidas plásticas,sem perigo nem vacilação.

C) Suspeita face ao desempenhodos irmãos gémeos do Estado e doMercado. Assim como não há fins quemereçam um destaque privilegiadoao ponto de ser legítimo vislumbrar a

possibilidade de eliminação de todos

os outros, também não há veículos es-

catológicos de eleição exclusiva. Dito

de outro modo: o pluralismo de finscoabita com o pluralismo de sujeitoshistóricos, modeladores de futuro.

D) Perceção do futuro como aberturaa uma pluralidade de possíveis. O

tempo é considerado como tal, numadiferença radical em relação à previ -sibilidade do espaço. O futuro podeapenas ser aberto, e não vislumbradona previsibilidade de um horizontecujos contornos se oferecem comodisponíveis. A razão calculadora devereconhecer os seus limites face às

incertezas do tempo como indomávelobjeto de conhecimento e delicada

matéria-prima para a ação.A Política deverá ser entendida como

cooperação, mesmo e até como

cooperação compulsória. É a respostainevitável a uma conceção "moder-

na" de política que esteve prestesa sacrificar a espécie humana numholocausto nuclear (que ainda n io foidefinitivamente excluído como os-sibilidade histórica). Mais neces áriae obrigatória se torna essa coope raçãoquando estamos confrontados, ( ornohumanidade inteira, com as tar< fas

gigantescas de uma nova forma dehabitar o planeta, devastado pelacrise ambiental e climática antropo-génica, e ameaçados pelos riscos de

guerra e violência decorrentes das

desigualdades e injustiças crescentes.A crise pandémica do Covid-19

abre-nos a janela de tarefas tão ur-gentes como titânicas. Durante déca-das tolerámos que o sonambulismo se

substituísse à exigência de escutar-mos os sinais de perigo e as ameaçasque a euforia da dominação colocouentre nós e o futuro. A margem deerro é agora nula. A escolha é entre as

dores de um novo parto da civilizaçãoou a imperdoável aceitação do suicí-dio da própria humanidade. .11.

A nossa época é ada utopia realizadapor excesso, comopesadelo. A distopiada dominação ameaçadevorar tudo e todos.A atual crise de saúdepública é uma partemenor do preçoque a continuaçãodessa "normalidade"distópica implicariaPara sobreviver, emcondições de dignidade,a humanidade devereassumir com

humildade o seu lugarno interior do "Sistema-Terra", da Natureza<[ Um dos grandes erros do presentetende sempre a ser o de se olhar

para o futuro e esperar que ele se

comporte como o passado. É umdefeito comum de perspetiva: olhar

para o horizonte e ignorar que ele

muitas vezes tem um ponto cego quenos impede de ver o que verdadeira-mente pode vir aí, e como isso podeser de facto diferente do esperado. É

que o futuro é, por definição, a che-

gada do novo. E embora a história

por vezes se tenda a repetir, nunca o

faz de maneira totalmente simétrica

em relação ao passado. E é por isso

que problemas antigos em contextos

novos têm de exigir soluções dife-rentes, ousadas, inovadoras.

I - MEDO, SOFRIMENTO E

TRANSFORMAÇÃO SOCIALDo ponto de vista da historia da

humanidade, nada de novo há numa

pandemia. Mas para o indivíduosubitamente arrancado da sua expe-riência quotidiana pela irrupção no

seu espaço mental de um medo quetudo invade, transformando o outrofamiliar no potencial hospedeirode um suposto "inimigo invisível"

(nunca a metáfora da guerra andou

tão gasta como por estes dias) , e o es-

paço físico circundante numa espéciede indistinta mancha que a qualquermomento o pode contaminar. . . tudomuda. E fá-lo tão depressa que numinstante o instinto de sobrevivência

(pessoal ou coletiva) se tende a so-

brepor a tudo o resto e, com aparentefacilidade, o excecional normaliza -seà medida que cidadãos e instituiçõesdemocráticas parecem de bom gradoabdicar preventivamente de direitos,liberdades e garantias em nome de

um bem ulterior maior.

Que não haja dúvidas: face a uma

ameaça com as características da

Covid-19, tudo o que puder ser feito

para estancar a sangria e proteger,tanto quanto possível, toda a vidahumana naquilo que ela tem de in-substituível, deve ser feito. E isso im-plica um esforço hercúleo e decisões

difíceis, quer a nível individual querpor parte das instituições públicas.Mas convirá talvez não esquecer queeste período excecional traz consigoa potencialidade de mudanças radi-cais e profundas a muitos níveis.

Anulará por completo os resul-

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tados económicos dos últimos anos

e inverterá a trajetória de acerto das

contas públicas feita por países como

Portugal, aumentando a dívida como

consequência das medidas necessá-

rias para salvar a economia e protegero bem-estar social das pessoas; acele-rará outros processos já antes em cur-so, como o da migração do trabalho

para plataformas on-line e, a prazo,provavelmente também a automati-

zação e a robotização, à medida quetal se for tornando mais rentável paraempresas e administração pública. E

não é despiciendo o risco, sobretudo

em comunidades políticas já mais

infetadas com esse outro vírus, o do

populismo, da tentação de se passarda solução securitária à solução

autoritária, enquanto a perceção geralda população for a de que temposextraordinários justificam medidas

extraordinárias e que, em face disso,

liberdades e garantias são pequenosluxos de tempos de abastança dos

quais mais vale a pena abdicar.

E é por isso que olhar para o

pós-pandemia, isto é, para o mo-mento a seguir ao da calamidade emtermos de saúde pública - que agoraconcentra de forma esmagadora, e

justificadamente, a nossa atenção - é

tão importante, como o é tambéma deliberação coletiva sobre o que

queremos, enquanto comunidade,

que se siga, e o que podemos fazer,no âmbito da nossa deliberaçãodemocrática, para influenciar os

processos políticos, económicos e

sociais que daqui advirão. A este

respeito, parece -me que o melhor

ângulo de ataque a esta enorme e

complexa questão tem de ser, porum lado, diferenciado na avaliaçãodos problemas e, por outro, englo-bante o suficiente para ser aplicadoem múltiplas escalas, incluindo a

escala transnacional.Voltemos à analogia da guer-

ra. Ela tem a sua razão de ser.

Antropomorfizar o "inimigo" ajudaa deslocar a fronteira entre o "nós" e

o "eles" para o limiar do inumano e

a apelar à coesão e unidade de quemestá do lado de cá, os humanos,numa luta que nos deve unir a todos

contra a ameaça comum.Por todo o lado, a heróica ab-

negação de médicos, enfermeirose auxiliares por entre a falência dos

sistemas de saúde face à enormequantidade de casos da doença, e

a perda de vidas que dela resulta,

fazem com que, na prática, e em ter-mos de saúde pública, o cenário quedaqui resulta seja muito parecidocom o de uma guerra - caos na orga-nização social e enorme perda de vi-das humanas - e com um sofrimentomuito próprio, aquele que advém donecessário isolamento imposto aosdoentes. Nos casos mais graves isso

significa uma morte perante a impo-tência dos profissionais de saúde, e,

portanto, duplamente cruel: para os

doentes que se encontram privadosda companhia dos seus próximosno momento derradeiro; e para os

profissionais que, por falta de meios

ou simples insuficiência da medicinaatual para ir mais longe nestes casos,são confrontados com uma catadupade vidas humanas perdidas apesardos seus melhores esforços.

II - A ASSIMETRIA DA CRISE

Porém, a identificação da Covid-19como "inimigo comum" não devefazer -nos esquecer a forma comoa crise afeta de modo diferenciado

pessoas em situação diversa e, comoé fácil de constatar, que as conse-

quências em termos de sofrimentosocial serão mais gravosas paraaqueles que já se encontravam em

situação de vulnerabilidade. A crise

tem certos aspetos que nos recor-dam a imagem marxista do "mundovirado ao contrário" . Há uma cruelironia no facto de a maior parte dos

verdadeiros heróis nesta situaçãoserem pessoas cujas funções laboraissão frequentemente desvalorizadas:não só os profissionais de saúde nocontexto de um processo históricode depauperação dos sistemas de

saúde pública no quadro da crise

do Estado social, como também os

trabalhadores dos supermercados,as pessoas que asseguram as cadeiasde abastecimento e tantos outrostrabalhadores invisíveis aos olhos do

grande público. A mesma ironia quefaz com que alguns países pobres

agora controlem os fluxos de circu-

lação e fechem as fronteiras a pes-soas de países mais ricos que outrora

rejeitavam os migrantes económicosou mesmo os requerentes de asilo.

Contudo, esta crise tambéminclui outra dimensão na qual, emtermos da assimetria das con-sequências e da distribuição dosofrimento social, o mundo continuaa ser o mesmo, apenas em versãomuito pior. Na análise que faz do

populismo, David Goodhart po-

pularizou a distinção entre aquelas

pessoas que efetivamente bene-ficiaram da globalização ao longodas últimas décadas, incluindo da

possibilidade de mobilidade global

que ela traz consigo (os anywheres,aqueles que podem literalmente ir a

qualquer lado em qualquer momen-to) e aquelas que, fragilizadas poressas mesmas alterações económicas

e sociais, vivem enraizadas "nalgumlado" (os somewheres) , não vêem

os seus interesses representados na

nova ordem global e, por isso, são

mais vulneráveis à manipulação dos

seus afetos pelo populismo de direita.Nesta dimensão, importa perce-

ber que a crise pode atingir todos,mas as suas consequências serão

assimétricas. Sofrerão mais aqueles

que mais desprotegidos já estavam, a

começar pelos pobres e sem-abrigoque menos condições têm para umisolamento social preventivo, pas-sando pelos trabalhadores precárioscujos empregos desaparecerão emface da crise económica e, no limite,aquelas pessoas que, como as que se

encontram em campos de refu-giados, juntam à indeterminaçãoquanto ao seu futuro uma carênciade proteção quase total. Face a esta

situação e à multidimensionalidadee complexidade do problema, nãoé descabido equacionar um cenáriofuturo dantesco no qual às mortescausadas pela pandemia se viriajuntar uma quebra ainda mais acen-tuada da solidariedade social com o

agravamento da crise económica (esobretudo da pobreza e da desigual-dade), eventualmente aproveitadapelo populismo de direita para,num quadro cada vez mais iliberal,instalar governos autoritários e exa-cerbar a gestão pelo medo. Contudo,e apesar da estreiteza do caminho,este não é um destino inevitável.111 - PARA PROBLEMASGLOBAIS, SOLUÇÕESTRANSNACIONAIS: POR UMNOVO PACTO SOCIAL EUROPEUHá muito se percebeu que grande

parte dos problemas políticos e sociais

da nossa geração (precariedade,

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Este período excecionaltraz consigo a

potencialidade de

mudanças radicais e

profundas a muitosníveisNão é despiciendo orisco da tentação de

se passar da soluçãosecuritária à soluçãoautoritáriamigrações, crises económicas) são

transnacionais e que, por isso, o

Estado-nação tal como o conhece-mos é, por si só, insuficiente (emboranecessário) para os enfrentar sozinho.E é por isso que autores na linha de

uma teoria social crítica, como NancyFraser ou Rainer Forst, têm clamado

por uma teoria da justiça transnacio-nal e de aplicação ampla, que possafazer face aos reais desequilíbrios de

poder, e dar voz aos que mais sofrem.Esta pandemia e a crise económi-co-social que se lhe seguirá tornamessa necessidade mais urgente. Por

enquanto o epicentro da pandemiaestá na Europa mas caso esta se

venha a espalhar, à escala a que está

a acontecer na Europa, a países mais

pobres e com sistemas de saúde mais

frágeis, a catástrofe será ainda maior e

a necessidade de solidariedade inter-nacional mais premente.

Contudo, e mesmo no seio da

União Europeia e da zona Euro, queé a escala transnacional que para

nós é mais próxima e dentro da qualteremos de resolver grande parte dos

nossos problemas, quase tudo aindaestá por fazer. Foi notório o fracasso

na gestão da crise das dividas sobera-nas de 2010-2011, com a ênfase nasmedidas austeritárias punitivas quedividiram povos europeus e pratica-mente abandonaram o sul da Europaà sua sorte. A seguir a essa crise,e sobretudo aquando das últimas

eleições europeias, multiplicaram--se os apelos a um novo pacto social

europeu como forma de contornar os

perigos de um populismo de direita.Pois bem, esse momento, aquele

em que a Europa finalmente se con-fronta com a sua escolha existencialmais profunda, chegou. A crise amea-

ça tomar as proporções da Grande

Depressão de 1929 e só uma respostaforte, conjunta, e apropriadamentesocial poderá fazer face ao que ai vem.Doravante, a ênfase não poderá ser o

equilíbrio das contas públicas a todo o

custo - mecanismos como o Tratado

Orçamental terão de ser revistos ou

revogados. Salvar vidas, quer através

do reforço da capacidade dos sistemas

de saúde, quer no combate à crise

económica, exigirá muito investi-mento. O risco é o da desintegração,não só a do projeto europeu como o

conhecemos, mas o da desintegraçãosocial propriamente dita, à medida

que os problemas se agravem.Os contornos deste novo pacto

social tão propalado continuam pordefinir e terão de ser objeto de deli-beração coletiva em modo acelerado.Poderão passar pela mutualização dadívida ou por perdões de dívida aos

Estados mais necessitados, pela in-tervenção do Banco Central Europeua um nível muito maior do que no

passado, ou pela atribuição de umrendimento básico incondicional.Todas as hipóteses têm de estarem aberto, porque o antigo está a

desaparecer e o novo ainda não viu aluz do dia. Caber-nos-á tentar fazertudo o que está ao nosso alcance

para que esse novo possa continuara ser plural e vibrante, apesar doinevitável sofrimento. .11.

Porto, 20 de março de 2020

Vírus

0 buraco de ozono está nos versoshá um rio poluído um efizemaa cidade morrendo-se e dois terçosda humanidade fora do poema.

Há um vírus nas sílabas de Abrilum tóxico no ritmo e na palavrahá pássaros que trazem Chernobyle já não fala a água que falava.

Na terzza rima alteração genéticahá uma aranha a cantar de cotoviade pernas para o ar Hegel e a estética.

Eis o inferno. E já não há Virgíliopara guiar-me a um reino de harmonia.Por isso o meu cantar é outro exílio.

Manuel Alegre

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GONÇALO MARCELO

r; irj ,K < t ¦ Ci<ftv :u "As suas consequências serão assimétricas: sofrerão mais

aqueles que mais desprotegidos já estavam"