e a sabedoria das naÇÕes · ção se revela como tal ao que dorme, do mes-mo modo a crença...

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Titulo da edição francesa: L'existencialisme et Ia Sagesse des Nations © Les Edltlons Nagel, Paris Reservados os direitos pela legislação em vigor para a Editorial M inolauro Rua D. Estefânla 46 B-C-O Lisboa 1 Traduç1l.o Manuel de Lima Bruno da Ponte Orientação gráfica Correia Fernandes José Grada Se está interessado em receber o nosso . boletim de novidades nacionais e estran- geiras remeta-nos o postal junto cuja franquia será paga por' nós. er-- \ ~, , \ \ \ , l,. Colecção Ensaio \ I I ..• ",. o EXISTENCIALISMO E A SABEDORIA DAS NAÇÕES Simone de Beauvolr ?o~"t'rO !Ifl 6 6' , t . Minotauro ;''' .. -';~~ ." .... '" ..•' .,;. J . ,.\ . '" 11" .,\; --- 11. f~"'" ~l.Q"'t . ~.Â#li '- 'H., ~;:.: .,\\ 3(.tt58

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Titulo da edição francesa:L'existencialismeet Ia Sagesse des Nations© Les Edltlons Nagel, Paris

Reservados os direitos pela legislação em vigorpara a Editorial M inolauroRua D. Estefânla 46 B-C-O Lisboa 1

Traduç1l.o

Manuel de LimaBruno da Ponte

Orientação gráfica

Correia FernandesJosé Grada

Se está interessado em receber o nosso. boletim de novidades nacionais e estran-geiras remeta-nos o postal junto cujafranquia será paga por' nós.

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\ \, l,.

Colecção Ensaio\I I ..•

",. o EXISTENCIALISMOE A SABEDORIADAS NAÇÕES

Simone de Beauvolr

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t . Minotauro

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111. LITERATURA E METAFlSICA

Eu lia muito quando tinha dezoito anos; liacomo só nessa idade se lê, com ingenu'idade ecom paixão. Abrlr um romance era, verdadeira-mente, entrar num mundo, um mundo concreto,temporal, povoado de figuras e de aconteci-mentos sinquleres: um tratado de filosofi'a con-duzia-me para além das aparências terrestresna serenidade de um céu lntemporal. Num ounoutro caso, recordo-me ainda do espanto ver-tlqlnoso que me possuía no momento em quefechava o livro. Depois de ter pensado o uni-verso através de(Spi'no~ ouc&!!!.o perguntava--me: «Como se pode ser suficientemente fútilpara escrever romances?» Mas quando abando-.nava(1ulien ~ ou ct;s;~'U~e~ill:~ parecia--me vão-pe-rder tempo a fabricar sistemas. Ondese situava a verdade? Sobre a terr·a ou na eter-nidade? Sentia-me dividida.

Penso que todos os espíritos que são sensÍ-veis, ao mesmo tempo, às seduções da ficção e

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ao rigor do pensamento filosófico conhecerammais ou menos esta perturbação; pois, ao fime 8'0 cabo, só há uma realidade; .L!:!.0_ seio ~o

_ mundo que p~nsamos o mundo. Se alguns escri-

rteres escolheram reter apenas um desses doisaspectos da nossa condição, ergu~doa'Ssim. bar-

1 relras entre a literatura e a filosofia, outros,I pelo contrário, procuraram desde há muito ex-

primi-Io na sua totalidade. O esforço de con-ciliação a que hoje se assiste situ;;e na sequên-~ia de uma longa tradição, responde a uma exl-gênci'a profunda do espírito. Porque suscita,então, tanta desconfiança? ~--

I: necessário recon hecê-lo, as ~~P.le'ssões:«romance metafísico», «teatro de ideias», podemdêspertar'alguma inquiétação. Cert~mente umaobra significa sempre alguma coisa: mesmoaquele que procure mais dellberademenre re-cusar todo o sentido, manifesta 'ainda essarecusa; mes os adversários da literatura filo-s6fica sustentam com razão que a significaçãod; um romance ou de uma peça de teatro nãodeve, mais que a de um poema, poder tradu-zir-se em conceitos abstractos; senão, para quêconstruir uma aparelhagem fictíóa à volta deideias que seriam expressas com maior econo-mia e clareza numa linguagem directa? O ro-mance s6 se [ustlflca se é um modo de comu-nicação irredutível a qualquer outro. Enquanto

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o filósofo, o ensaísta, comunicam ao leitor umareconstrução lntelectuai da sua experiência, éessa própria axperlência, tal como se apresentaantes de qualquer elucidação, que o romancistapretende reconstltulr num plano imaginário~mundo real, o sentido~ yrrLobje<;to-'!.§2 é 'Jmco,n~~reensív~_ pel~ ~~endime!'to puro:é _o oºJectQ.~nqu'ant-o ~~ nos desvela na rela-ção global que mantemos com ele e que é--- - - . -

1!cção, emoção, sentimento; pede-se aos roman-cistas para evocarem essa presença de carne eosso cuja complexidade, cuja riqueza sinqulare infinita, ultrapassa qualquer interpretaçãosubjectlva. O teórico quer constranger-nos aaderir às ideias que a coisa, o acontecimento,lhe sugeriram. Esta docilidade intelectual re-pugna a muitos espírltos. Querem salvaguardara liberdade do seu pensamento: pelo contrério,agrada-Ihes que uma ficção imite a opacldede,a ambiguidade, a imparcialidade da vida; sub-jugado pela história que lhe é contada, o leltorreage aqui como perante os acontecimentos vivi-dos. Comove-se, aprova, indigna-se, por um mo-vimento de todo o seu ser, antes de formularj u ízos que arranca de si mesmo sem que tenha-mos a presunção de lhos ditarmos. ~ isso queconfere valor a um bom romance. EJ;pê;mitelefectua-; expe;iê~cj;;-tã~ completas, tão inquieJJtanteCOmo as experiências vivides. O leitor

6 - - -

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interroga-se, duvida, toma partido e essa ela-boração hesitante do seu pensamento constituium enriquecimento que nenhum ensino doutri-nal pode da substituir.

Um verdadeiro romance não se <jeix·a, por-tanto, reduzir a fórmulas, nem mesmo relatar;não poderMs d'est~~a~ o seu sentido como nãopodemos isolar um sorri·so de um roStõ:Em b-ora~f€Üo de pa Ia~-ex'i s te como os cl;jec-tos do mundo que ultrapassam tudo o que sepossa dizer com palavras. E, sem dúvida, aqueleobjecto foi construfdo pelo homem e esse ho-mem tinha um desfgnio; mas a sua presençadeve estar bem escondida, senão essa operaçãomágic·a que é a subjugação romanesca nãopoderie cumprir-se; do mesmo modo que. '0

sonho se desfaz em pedaços se a menor percep-ção se revela como tal ao que dorme, do mes-mo modo a crença 'imaginária desvanece-sequando se pensa em confronté-le com a reali-dade: não se pode admitir a existência do ro-mancista sem negar a dos seus heróis.

Ser-se-é então tentado a levantar uma pri-meira objecção contra o que se chama comfrequê;;cra-;-i,~trusão da filosofia no romance:qualquer ideia cmuito clara, qualquer t;;e, qual-quer doutrina que se tentasse elaborar atravésde uma ficção destruírlem nela imediatamenteo seu efeito, pois denunciariam o autor e fariam-

LITERATURA E METAFlSlCA 8~

-na aparecer, ao mesmo tempo, como ficção.Mas este argumento não é lntelramente deci-sivo; é tudo urna questão de destreza, de tacto,de arte. De qualquer modo, fingindo eliminar--se, o autor trapacei'a, mente; quando mentesuficientemente bem, dissimulará as suas teo-rias, os seus planos; permanecerá invisível, oleitor deixar-se-é apanhar, a trapaça resultará.

Mas é precisamente aqui que muitos leitoresse irritam com razão. Admitindo que a arteimplica o artifício, portanto uma parte de máfé e de mentire, repugna-Ihes a ideia vde sedeixarem enganar. Se a leitura fosse apenas umdivertimento gratu'Íto poderia situar-se o debateno plano técnico; m~s se se deseja ser «aea-~~_uJ!l.._~ce, nã2--1.3l.E~..!l~....2:9t:,am~atar qJ.gWlJas~ho~s; espera-se, vlrno-]o, supe-ra-r no plano imagi·nário os limites sempre muitoestreitos da experiência realmente vivida. Oraisso exlqe que o romancista participe ele próprionessa investigação para a qual convida o leitor:se prevê de antemão as conclusões a que eladeve levar, se faz lndlscretarnente pressão sobreele para lhe arrencar a sua adesão a teses pre--estabelecidas, se apenas lhe concede uma ilusãode liberdade, então a obra literária não passade uma mistificação lnconqruente: o romance Isó se reveste do seu valor e da sua dignidadequando constitui para o autor como para o lei-

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tor u~a descoberta viva. ~ essa exiqêncle quese exprime de uma maneira romântica e umtanto irritante querido se diz que o romancedeve escapar ao autor, que este não deve dispordas personagens mas que, pelo contrário, estasdevem impor-se-lhe. De facto, mau Q'rado osabusos de linguagem, todos sabem que as per-sonagens não visitam o quarto do escritor paralhe impor as suas vontades; mas não preten-demos que elas sejam fabricadas, a priori, àcusta de teorias, fórmulas, etiquetas; não que-remos que a intriga seja uma pura maquinaçãoque se desenrola mecânicamente. Um romance_n~2 é um objecto manu~cl~'[ª9.2 e é mesmopejor~tivo -dizer-;Ue é fabricado; -sem - dúvida,no sentido llteral da palavra, é absurdo preten-tender que um herói de romance é Iivre, assuas reacções, irnprevisfvets e misteriosas; mas,na verdade, ~~ I~b..erdade _gy_e ~e admira naspersonagem de Dostoievskl, por exemplo, éa ~yr6prio romenclsta em rei-ação ao~ -~próprios pro [ectos: e a opacidade dos aconte-cimentos que evoca manifesta a resistência queencontra no decurso do próprio acto criador.Do mesmo modo que uma verdade científicaencontra o seu valor no conjunto de experiên-cias que a fundam e que resume, do mesmomodo a obr-a de arte envolve a experiência sin-gular de que é o fruto. A experiência científica

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é a confrontação do facto, quer dizer da hipó-tese considerada como verificada com a ideianova. De uma maneira análoga, o autor devesem cessar confrontar os seus desígnios coma realização que esboça e que, prontamente,reage sob-re eles; se quer que o leitor acreditenas invenções que propõe, é necessário, em pri-meiro lugar, qu-e o romancista creia nel-as comsuficiente força para Ihes descobrir um sentidoque se reflectirá na ideia primitiva, que sugeriráproblemas, saltos, desenvolvimentos imprevis-tos. Assim, no futu-ro e à medida que a história (se desenrola, vê surqir verdades de que nãoconhecia antecipadamente o rosto, questões eleque não possui a solução: int~C?ga-se, t~m2..PaI!! 92, corre riscos; e é com espanto, que, 110

fim-da sua criação, consider-ará a obra reali-zada, da qual ele próprio não poderá fornecera tradução abstracta pois, de um só golpe, elaganhará conjuntamente o sentido e a carne.Então, o romance aparecerá como uma autên-tica aventura espirltual. ~ essa autenticidadeque distingue uma obra ve-rdadeiramente gr;andede uma obra simplesmente hábil, e o maiortalento, a destreza mais consumada não pode-r-iam substituí-Ia. Se o romance metafísico esti-vesse reduzido a imitar de fora essa caminhadaviva, se trapaceasse o_lel!.2!~ em vez c;te._ estabe-lecer com ele uma comunicação verdadeira en-.--- -

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volvendo-o numa lnvesflqação que o autor em-preendeu por sua própria conta, então seriacom certeza necessário condené-lo.

Certamente, não se satisfazem as exigênciasda experiência romanesca se nos llmltermos amascerer com um revestimento flctíclo, mais oumenos colorido, uma armadura ideológica pre-viamente construída. Repudiar-se-é o romance

ilfilos6fico se definirmos a filosofia como umsistema completamente constituído e bastando-

,-se a si próprio. Com efeito, é no decurso daedlficação do sistema que a aventura espiritualserá vivida. O romance que se prop'yj§l~ iJ~-tré-lo não fará mais do que explorar sem riscoe s~m verdadeira invenção as riquezas fixadas;será Imposslvel introduzir essas rígidas teoriasna ficção sem prejudicar o seu livre desenvol-vimento; e não se vê em que uma históriaimaginária poderá servir ideias que já teriamencontrado o seu modo próprio de expressão:pelo contrário, só poderia dlmlnuf-las, empo-brecê-Ias pois a ideia ultrapassa sempre, pelasua complexidade e pela multiplkidade das suasaplicações, cada um dos exemplos singularesem que se pretenda encerrá-la.

Em primeiro lugar, notemos que, deste pontode vis~e':~se.ia íevado a repudiar o romancepsicol6gico de que, no entanto, ninguém p~hoje-e;,; discutir a validade. Também existe

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uma psicologia teórica e soe o romance psicoló-gico fosse dedicad~ustr~r. Ribot, Bergson ouFreud, seria, de facto, completamente inútil; f

poder-se-ia pretender que o~l?r:netidosao carácter que o autor escolheu para eles, àsleis psicolóqlcas que é obrigado a respeitar,

Pe~de;'tõd-;-~ liberdade e toda a opacidade.Se não se lhe levantam tais objecções é porquese sabe que a psi,cologia não _é _e~sencialmenteuma disclplíne especial e estranha à vida; todaa-;;pe-;'iênci~a hu~a':;-a.-tem uma certa dim~são- - _.' ."'. ,--- -

sicológica; e enquanto o teórico salienta e SiSO)tematiza num plano abstracto essas siqnifica-ções, o romancista evoca-as na sua singularidadeconcreta;;~quanto disdpulo de Ribot, Proustaborrece, não nos ensina nada; mas Proust,romancista autêntico, descobre verdades paraas quais nenhum teórico do seu tempo propôso equivalente abstracto.

!: de um modo análogo que importa conce-ber a relação do romance e da rnetaffslca:Em primeiro lugar, a metafísica não é um sis-tema; não se «faz» metafíska como se «faz»matemática ou física. Na realidade, «fazer»metafísica é «ser» meteflsico, é reallzar em sia atitude metafísica que consiste em pôr-se nasua totalidade em face da totelldade do mundo.Todos os acontecimentos humanos possuem,pera além dos seus contornos psicolóqlcos e

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socrars, uma siqnlflceçêo metafíska pois que,através de cada um deles, o homem empenhou-sesempre inteiramente num mundo completo: e,sem dúvida, não há ninguém que se não tenhadescoberto em qualquer momento da sua vida.Em particular, acontece com frequência às crian-ças que ainda não es\tã'Oancoradas no seupequeno universo experimentarem com espantoo seu «estar-no-mundo» como experimentam oseu corpo. Por exemplo, é uma experiênciametafísica essa descoberta da «ipseidade» des-crita por Lewis Carroíl em Alice no País dasMaravilhas, por Richard Hughes em Ciclone naJamalea: a criança descobre concretamente asua presença no mundo, o seu abandono, a suaIiberdade, a opacldsde das coisas, a resistênciadas consciências estranhas; através das suasalegrias, trlstezas, resignações, revoltas, os seusmedos e as suas esperanças, cada homem realizauma certa situação metafísica que o definemuito mais essencialmente do que qualquer dassuas aptidões psicológicas.

Há uma tomada original da realidade meta-ffslca e, tal como em ps'icologia, há duas manei-ras divergentes de a explicitar. Pode fazer-seum esforço pare elucidar o sentido universalnuma linguagem abstracta: assim se elaborarãoteorias em que a experiência metaffsica se e.n-contrará descrita e mais ou menos sistemati-

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zada sob o seu aspecto essencial, portanto in-temporal e objectivo. Se, para além disso, osistema assim construído afirma que esseaspecto é o único real, se considera sem impor-tância a subjectividade e a historlcidade daexperiência, exclui evidentemente qualquer outramanifestação da verdade. Seria absurdo lma-gi·nar um romance aristotélico, espinozista oumesmo leibnitziana, pois nem a subjectividadenem a temporal idade têm um lugar real nessasmetafísicas. Mas se, pelo contrário, uma fHo-sofia retém o aspecto subjectivo, singular edramático da experiência, contesta-se a si mes-ma na medida em que, enquanto sistema intem-porei, não dá o lugar devido à sua verdadetemporal. Assim, enquanto afirma a realidadesuprema da Ideia de que este mundo não ésenão uma degradação enganosa, Pia tão nãosabe que fazer dos poetas, exclui-os da suarepúbl ica; mas quando, descrevendo o movi-mento dialéctico que conduz o homem para aideia, integra na realidade o homem e o mundosensível, Platão experimenta a necessidade dese fazer ele próprio poeta. Situa nos camposem flor, à volta de uma mesa, à cabeceira deum moribundo, na terra, os diálogos que mos-tram o caminho do céu inteligível. Do mesmomodo, em Hegel, na medida em que o espfritoainda não se cumpriu mas está em vias de se

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cumprir, é necessário, para contar adequada-mente a sua aventura, conferir-lhe uma certaespessura carnal; na Fenomenologia do Espírito,Hegel recorre a mitos literários tais como DonJuan e Fausto, pois o drama da consciênciaInfeliz só encontra a sua verdade num mundoconcreto e histórico.

Quanto mais vivamente um filósofo sublinhao papel e o valor da subjectividade, mais serálevado a descrever a experiência metafísica soba sua forma singular e temporal. Não só Kier-kegaard recorre como Hegel a mitos literários,mas em Temor e Tremor recriou a história dosaorlfício de Abraão sob uma forma que tocaa forma romanesca e no Jornal de um Sedutor,revela, na sua singularidade dramática, a suaexperiência original. Encontraremos mesmopensamentos que 'não poderiam exprimir-sesem contradição de uma manelra categórica;assim, para Kafka que deseja pintar o dramado homem encerrado na sua imanência, o ro-mance é o único modo de comunicação pos-sível. Falar do transcendente, mesmo que fossepara dizer que é inacessfvel, seria já pretenderascender até ele, uma vez que uma nerretlvaimaginária permite respeitar esse silêncio queé o único adequado à nossa ignorância.

Não é por acaso que o pensamento existen-cialista tenta exprimir-se hoje, ora por tratados

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teóricos, ora por ficções: mas sim porque é umesforço para conciliar o objectivo e o subjectivo,o absoluto e o relativo, o intemporal e o his-tórico; pretende encontrar a essência no cora-ção da existência; e se a descrição da essênciareleva da filosofia propriamente dita, só o ro-mance permitirá evocar na sua verdade com-pleta, sinqular, temporal, o brotar original daexistência. Não se trata aqui, para o escritorde explorar no plano literário verdades previa-mente estabelecidas no plano filosófico, massim de manifestar um aspecto de experiênciametafíska que não pode manifestar-se de outromodo: o seu carácter subjectlvo, singular, dra-mático e também, a sua ambiguidade; pois quea realidade ,não é definida como apreensfvelapenas pela inteHgênda, nenhuma descrição in-telectual poderia expressá-Ia adequadamente.É necessário tentar apresentá-Ia na sua lnteqrl-dade, tal como se revela na relação viva que éacção e sentimento antes de se tornar pensa-mento.

Mas vê-se agora que a preocupação filosó-fica está longe de ser incompatível com as exi-gências do romance. Este não manterá menosum carácter de aventura espiritual, por se ins-crever numa vlsão metafísica do mundo. Dequalquer modo, já não duvidamos actualmenteda falsa objectividade naturalista, sabemos que

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todos os romancistas têm a sua visão do mundo,e é até nessa medida que eles nos interessamO ponto de vista metafíslco não é mais estreitodo que qualquer outro, pelo contrário, é mesmopor seu intermédio que podem concilia-r-se ospontos de vista psicológico e social que fracas-sam tão frequentemente ao reunirem-se e que,tomados isoladamente, são incompletos. Quenão se pretenda mais que uma personagem de-fin-ida pela sua dimensão metafísica: angústia,revolta, vontade de poder, medo da morte, fuga,s'ede de absoluto, sej-a necessàriamente maisrígida, mais fabricada do que um avaro, umpoltrão, um ciumento, que traços psicológicoscar acter lzem. Tudo depende aqui da qualidadede imaginação e do poder de invenção do autor.Sobretudo, é necessário não pensar que .a luci-dez intelectual do escritor o leve a perder adensidade, a riqueza embíqua do mundo. Cer-tamente, se se ju'lga que, através da massacolorida e viva das coisas, ele apercebe essên-cias dessecadas, pode recear-se que nos ofereçaum universo morto, tão estranho ao que nósrespiramos como uma fotografia de raio X édiferente de um corpo humano. Mas esse receiosó é fundado em relação aos filósofos que; sepa-rando a essência da existência, desdenham daaparência em benefício da realidade escondida:mas estes não são tentados' a escrever roman-

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ces; pelo contrário, quanto àqueles para quema aparência é realidade, a existência, suporteda essência, o sorriso indiscernfvel de um rostosorridente, o sentido de um acontecimento dopróprio acontecimento, é só pela evocação sen-sível, carnal do domínio terrestre, que a suavisão pode exprimir-se. Muitos exemplos de-monstram que nenhum destes argumentos éválido a priori. Os Irmãos Karamazov o leSoulier de Satin desenrolam-se no quadro deuma metafísica cristã. É o drama cristão dobem e do mal que se enreda e desenreda. Sabe--s'e sobejamente que isso não entrava nem' asreacções dos heróis nem o desenvolvimento dalntrlça e que o mundo de Dostowievski como ode Claudel são mundos car-nais, concretos; éque o bem, o mal, não são noções abstractas;só. se co~cretizam nos actos bons ou maus queos homens cumprem, e o amor de Dona Prou-heze por Rodrigo não é menos sensual, menoshumano, menos perturbante porque ela põe emjogo, através dele, a salvação da sua alma,

Na verdade, são muito frequentes os leitoresque se recusam a participar sinceremente naexperiência em que o autor tenta envolvê-Ios:não lêem como exigem que se escreva, receiamcorrer riscos, aventurarem-se; antes mesmo de

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abrirem O livro, atribuem-lhe chaves e, em vezde se deixarem prender pela histór!a, procuramsem cessar traduzi-Ia; matam esse mundo ima-ginário que deveriam vivificar e lamentam-se deque lhe tenham dado um cadáver. Assim, umcrítico russo, contemporâneo de Dostoievskiacusava Os Karamazov de ser um tratado defilosofia dialogado e não um romance. Blanchotdiz muito profundamente, a propósito deKafka, que ao lê-Io se compreende sempre de-masiado ou demasiado pouco. Creio que estanota pode aplicar-se a todos os romances meta-flsicos em geral; mas essa hesitação, essa partede aventura, o leitor não deve tentar iludi-Ia;que não esqueça que a sua colaboração é neces-sária, pois o próprio do romance é preclsernenteapelar para a sua liberdade.

Honestemente lido, honestamente escrito,~Ium romance metaflsico provoca uma descobertada existência de que nenhum outro modo deexpressão poderia fornecer o equivalente; longede ser, como se pretendeu por vezes, um desvioperigoso do género romanesco, parece-me, pelocontrário, na medida em que é conseguido, arealização mais perfeita pois se esforça porapreender o homem e os acontecimentos huma-nos nas suas relações com a totalidade domundo, pols só ele pode ter êxito no que fra-

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cassa a pura literatura como a pura filosofia:evocar. na sua unidade viva e na sua funda-mental ambiguidade viva, esse destino que é onosso e que se inscreve de uma s6 vez no tempoe na eternidade.