dv ibase 45 reportagem

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72 DEMOCRACIA VIVA Nº 45 REPORTAGEM Flávia Mattar, Jamile Chequer e Mariana Dias As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), um dos braços da política de segurança pública do governo do estado do Rio de Janeiro, estão sendo retratadas como a solução dos problemas de violência na cidade. As UPPs são a luz no fim do túnel? De que forma dialogam com um projeto maior de segurança pública para o Rio? Como aliar o combate à violência com garantia de direitos e cidadania? A revista Democracia Viva escolheu três favelas – Providência, a primeira do país, Santa Marta, vitrine do projeto UPP, e Borel, a mais recente a receber uma unidade – e escutou moradores(as), associações, especialistas e autoridades do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), das UPPs e da Secretaria de Estado de Segurança do Rio de Janeiro. UPP: tecendo discursos

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  • 72 Democracia ViVa N 45

    r e P o r T a G e mFlvia mattar, Jamile chequer e mariana Dias

    As Unidades de Polcia Pacificadora (UPPs), um dos braos da poltica de segurana

    pblica do governo do estado do Rio de Janeiro, esto sendo retratadas como a

    soluo dos problemas de violncia na cidade. As UPPs so a luz no fim do tnel?

    De que forma dialogam com um projeto maior de segurana pblica para o Rio?

    Como aliar o combate violncia com garantia de direitos e cidadania?

    A revista Democracia Viva escolheu trs favelas Providncia, a primeira

    do pas, Santa Marta, vitrine do projeto UPP, e Borel, a mais recente a receber

    uma unidade e escutou moradores(as), associaes, especialistas e autoridades

    do Batalho de Operaes Policiais Especiais (Bope), das UPPs e da Secretaria de

    Estado de Segurana do Rio de Janeiro.

    UPP: tecendo discursos

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    uPPs TeceNDo Discursos

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    J em 1900, a Providncia, a primeira favela do Brasil, era considerada local perigoso, habitado por vagabundos e criminosos. Dada a sua logstica de ocupao, tratava-se de espao difcil de ser policiado. Essa narrativa est em carta do delegado da 10 circunscrio ao chefe de polcia, Dr. Enas Galvo, escrita no incio do sculo passado.

    mais de cem anos depois, ao que parece, algumas favelas sero ocupadas de forma permanente pela polcia. segundo in-formaes do subsecretrio de Planejamento

    e integrao operacional do rio de Janeiro, roberto s, as UPPs so apenas uma das aes que esto sendo implementadas no estado. segundo ele, o projeto de segurana pblica do rio extenso, complexo e flexvel e est fincado sobre eixos: integrao, planejamento, inteligncia e correio.

    Desde o governo marcello alencar no es-tado do rio, o projeto de segurana parece ser de uma nota s. a concepo blica, de guerra, sempre foi o tom. Durante os pri-meiros anos do governo srgio Cabral, tal concepo tambm foi levada risca, como relembra o cientista social Paulo Jorge ribeiro, professor da PUC-rio: os casos do alemo e da Coreia so exemplos dramticos de como essa poltica foi posta em prtica. roberto s res-ponde: Naquele momento,

    precisvamos de aes enrgicas, com resgate de autoridade.

    silvia ramos, pesquisadora do Centro de Estudos de segurana e Cidadania da Universidade Cndido mendes (Cesec/Ucam), ressalta a importncia da busca de alternativas concepo blica at ento aplicada. Estava na cara que era s a UPP que iria funcionar. No entanto, foram dcadas batendo cabea com Bope, Core [Coordenadoria de recursos Especiais], caveires e solues blicas que alimentavam o horror. sou uma entusiasta no s das UPPs, mas da nica soluo possvel,

    civilizada, humana e tecnicamente vivel: o policiamento comunitrio, alegra-se.

    apesar dos aplausos polcia pacifica-dora, existem questionamentos. Um deles seria a no implementao das UPPs em todas as favelas do rio. a impresso que no h uma poltica de segurana homognea para esses territrios. Por que algumas comunidades sero pacificadas e outras no?

    segundo roberto s, no a inteno universalizar o projeto UPP. Ele destinado a locais com caractersticas especficas. a priori-dade, segundo ele, so favelas que esto, atu-almente, sob forte influncia da criminalidade ou de grupos ostensivamente armados. ou seja, se no tiver forte influncia de crimina-lidade, j no tem que ter UPP. Nesses casos, vamos agir com investigao, com polcia de bairro. Para ter UPP, tem que ter ostensividade da arma, ditadura do fuzil, afirma.

    Comunidades que ainda no contam com policiamento comunitrio ou nunca con-taro continuam vivenciando a mesma poltica de enfrentamento que, muitas vezes, assistimos nos noticirios Pms armados subindo os mor-ros atrs de traficantes, troca de tiros, caveiro, mortes de civis e policiais.

    Na mesma semana que a revista De-mocracia viva visitava favelas pacificadas, jornais noticiavam, em um nico dia, opera-es com 200 policiais militares e seis carros blindados nas favelas da Coreia, vila aliana, rebu, sapo e taquaral, em senador Camar, na Zona oeste do rio. Cinco pessoas mor-reram. a Core, com dois helicpteros e dois blindados, realizou uma operao nos morros de so Carlos e mineira, na Zona Norte. No mesmo dia 25 de maio, a Pm fez incurso no Complexo da mar e no Jacarezinho.

    a regra tem que ser um estado civiliza-do. Quem determina se vai haver confronto quem abordado. se a pessoa levanta as mos e entrega as armas, vai ser presa e conduzida para delegacia. se ela atira, o policial tem direito e dever de reagir para proteger a sua prpria vida e a de terceiros. No existe uma ordem deliberada para matar. a lei no nos permite fazer isso, diz roberto s.

    o professor da PUC-rio, Pedro Cunca Bocaiva, chama a ateno: No d para separar o PaC [Programa de acelerao do Crescimento], o Pronasci [Programa Nacional de segurana Pblica com Cidadania] e a UPP do contexto geral. No d para pensar poltica de cidade s luz de programas e

    r e P o r T a G e m

    Sou uma entusiasta no s das UPPs, mas da nica soluo possvel, civilizada, humana e tecnicamente vivel: o policiamento comunitrioSilvia Ramos

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    projetos fragmentados. No h poltica pblica de cidade. preciso romper com a ideia de-monstrativa. a vitrine o santa marta. Ento, a gente faz a guerra em senador Camar. No alemo, a gente pratica uma trgua relativa. o Pronasci, a gente desenvolve na mar. H uma anlise de conjuntura na cidade, de seus atores e processos, que precisa ser pensada no conjunto em funo dos desequilbrios.

    Metas para integrao

    a reao do professor Cunca traz outros ques-tionamentos presentes em setores da socieda-de. H uma poltica de segurana pensada para o estado do rio que vai alm das UPPs? Como o que est sendo implementado em favelas se relaciona com os demais territrios? H uma poltica de segurana pblica voltada para transformaes nas condies estruturais da polcia, por exemplo?

    a secretaria de Planejamento e integra-o operacional do rio de Janeiro implemen-tou, em 2009, um novo modelo cujo objetivo a integrao das polcias militar e Civil e o estabelecimento de estratgias de trabalho

    conjunto para a reduo da criminalidade. Para isso, o estado foi dividido em sete regi-es (sul, Centro e Norte; Zona oeste; Baixada fluminense; Niteri e regio dos lagos; sul fluminense; Norte fluminense; e regio ser-rana). Em cada uma delas h a presena de um Batalho de Polcia militar com no mnimo duas e no mximo seis delegacias.

    Contando com o fato de que todas as delegacias legais so informatizadas, foi desen-volvido um sistema virtual integrado, baseado em metas e acompanhamento de resultados, monitorado pela secretaria de Estado de se-gurana. Esse sistema conta com indicadores de homicdios dolosos, latrocnios, roubo de veculos e roubos de rua, formando um ranking de melhores e piores desempenhos de atuao policial em todo o estado. a partir do ranking, so realizados pagamentos de bnus como pre-miao a profissionais de segurana pblica.

    a secretaria defende que essa estratgia totalmente inovadora no estado, uma vez que, em gestes anteriores, ndices de crimi-nalidade eram vistos sem o real conhecimento das reas mais crticas, que deveriam receber maior ateno.

    uPPs TeceNDo Discursos

    Favela Santa Marta, na zona sul do Rio.

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    Em maio deste ano, o instituto de segurana Pblica (isP) divulgou dados sobre incidncias criminais de segurana. o que mais chama a ateno a diminuio de homicdios dolosos em maro. segundo o isP, a reduo foi de 16,2% em relao ao ano anterior. Em Copacabana e tijuca, nenhum crime dessa natureza foi registrado.

    Policiamento comunitrio

    a filosofia das UPPs baseada na prtica do policiamento comunitrio, mtodo que vem ganhando espao em todo o mundo e que j se tornou a doutrina oficial de policiamento em diversos pases, como Canad, Noruega e Cingapura.

    Diversos estudos apontam que o ponto de partida para o policiamento comunitrio o trabalho compartilhado entre Estado e sociedade para a manuteno da paz. o objetivo principal da polcia deve ser a proteo e a reduo da sensao de insegurana e no a simples repres-so. Como o especialista em segurana Pblica marcos rolim aponta em seu livro a sndrome da rainha vermelha, a presena ostensiva da

    polcia tende a ser proporcional distncia construda entre a corporao e as pessoas. os cidados no devem cumprir um papel com-plementar ou secundrio polcia, a polcia que deve ser percebida como suplementar ao papel desempenhado pelos cidados.

    Policiamento comunitrio depende de confiana. mas, no caso das UPPs, trata-se de confiar em instituies que j decepcionaram a sociedade incontveis vezes. somente no mbi-to do policiamento comunitrio, a populao j assistiu algumas iniciativas darem errado: o Posto de Policiamento Comunitrio (PPC), o Destacamento do Policiamento ostensivo (DPo) e, mais recentemente, o Grupamento de Policiamento em reas Especiais (GPaE).

    o projeto das UPPs, no entanto, conta com diferenciais. segundo a secretaria de segurana, um deles o fato de que elas s so implantadas aps a retomada do territrio pelo estado (por meio do Bope). as experin-cias de policiamento comunitrio do passado no retomaram o territrio, passando a con-viver com o domnio de bandidos em regies conflagradas, sem ter poder para controlar o local e impor a lei.

    Uma outra caracterstica particular do projeto contar com policiais recm-formados, livres dos chamados vcios da corporao. Uma vez que, segundo pesquisa do instituto Brasileiro de Pesquisa social (iBPs), apenas 34% da populao do estado do rio de Ja-neiro confia na Polcia militar, a secretaria de segurana tem, dessa forma, a chance de estabelecer a confiana que at hoje no conseguiu conquistar.

    o sargento do Bope max Coelho que durante apurao da matria atuava na pre-parao para a chegada da UPP no Borel, exemplificou, durante entrega de donativos no local, uma outra estratgia: sbado ns teremos aqui um culto que vai ser organizado pela congregao evanglica do Bope. a ban-da que vai tocar se chama 'tropa de louvor' e tem policiais fardados, membros dos 'Caveiras de Cristo'. isso tambm para desmistificar a desumanizao da polcia.

    mais um diferencial o fato de que as UPPs possuem, de certa forma, um comando descentralizado dos batalhes, focado na presena constante de capites, normalmente jovens e carismticos, na unidade pela qual so responsveis. a capit Pricilla de oliveira azeve-do, responsvel pelo santa marta, conta que, em um batalho normal, cada dia um oficial

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    Doaes do Bope para moradores(as) do Borel, na Zona Norte.

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    comanda um local. aqui eu sou a responsvel. tenho um comprometimento to grande que influencia at no meu comportamento sem a farda. Eu tenho uma satisfao a dar.

    Trfico sem armas

    apesar de largamente difundido pela imprensa que as UPPs acabam com o trfico de drogas nas favelas onde se instalam, a secretaria de segurana e capites responsveis pelas uni-dades tm clareza de que almejar o fim do trfico de drogas nas favelas seria utpico. No atividade fim da UPP acabar com o trfico de drogas, mas minimizar ou levar para nveis civilizados. se tem na vieira souto, no vai ter no morro? mas isso no significa que no vamos combater o trfico, explica roberto s.

    o capito Glauco schorcht, responsvel pela UPP do morro da Providncia, refora a informao: se vende a ideia de que a UPP vai acabar com o trfico. Existe trfico em vrios pases do mundo, onde a polcia ganha bem, totalmente aparelhada e tem apoio da sociedade.

    Para a capit Pricilla, o objetivo o fim das armas. o que a gente tem aqui hoje algo que pode ter no seu prdio, na sua rua. o objetivo retomar o territrio para que as pessoas vivam em paz. No passamos a mo na cabea de crime, no sou conivente, mas o principal morar aqui e viver como qualquer pessoa vive, diz.

    sobre a ideia difundida de que trafican-tes estariam migrando para outras favelas da cidade e da Baixada fluminense, silvia ramos defende que, apesar de no haver pesquisas divulgadas, o deslocamento seria mnimo. De uma 'boca' grande, talvez saiam dez. Na verda-de, os que saem so os chefes e aqueles que tm mandados de priso, acredita.

    Ela chama a ateno para o fato de ainda no haver programas sociais pensados para a requalificao dos jovens do trfico que ficam nas comunidades. os lugares que tive-ram DDr [Desmobilizao, Desarmamento e reintegrao] previram o que fazer com aquele que estava segurando uma arma e no era o chefo. Utilizaram isso no mundo inteiro. Ns temos na favela bandidos profissionais, mas tambm aquele garoto que entrou ontem na boca-de-fumo. Em vrios lugares do mundo, ele entrega a arma e recebe uma ajuda mensal e educao, ressalta.

    uPPs TeceNDo Discursos

    Garantia de direitos

    Um ponto que parece no gerar discordncia entre diferentes atores ligados ao debate e implementao das UPPs o fato de que no possvel falar apenas em segurana. preciso que o estado esteja atento ao desenvolvimento de outras aes, que garantam direitos aos cidados e cidads de favelas.

    a UPP no suficiente. outros direitos tm que ser assegurados. E cada lugar um lugar, no seria possvel padronizar a ao. Existem comunidades onde primeiro entrou a segurana, para depois virem os outros servi-os. No Complexo do alemo, por exemplo, primeiro esto sendo levados servios, para depois entrar a segurana, diz o cientista social Paulo Jorge.

    silvia ramos, recm-nomeada subsecre-tria de ao social para UPPs, acredita que as Unidades Pacificadoras foram um modelo

    Morro da Providncia, no Centro do Rio de Janeiro.

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    pensado exclusivamente para combater o pro-blema do controle do territrio por gangues armadas. infelizmente, no foi pensado como projeto integrado, social, ambiental, cultural e urbanstico. mas, medida que voc tira o controle de territrio, voc autoriza a entra-da no s de outros rgos do estado, mas tambm da vida privada. E complementa: o prprio governador est reconhecendo que no d para entrar apenas com polcia nas favelas. preciso entrar com polcia e pro-grama integrado. o desafio criar programas sociais nas UPPs, criar indicadores, sair desse

    oba oba que a cultura do assistencialismo.

    segundo a moradora do morro da Providncia, Elisete da Costa moreira silva, a UPP trouxe o fim de tiroteios e trfico armado. mas tinham que trazer cur-sos para c, principalmente escola primria para adulto. H uma demanda grande por educao, afirma. alm da demanda por servios, moradores(as) ressaltam a importncia da participao na elaborao das iniciativas que sero ofertadas. segun-do a associao de mora-dores do santa marta, no h participao na elabora-o de projetos. a minha participao a cobrana daquilo que foi prometido pelo governo, diz o presi-dente da associao, Jos mrio Hilrio.

    Enquanto um plane-jamento que garanta direitos como sade, educao, cul-

    tura no desenvolvido pelo estado, capites responsveis por UPPs tm criado iniciativas pontuais. No morro da Providncia, h curso de carat, cujo professor um dos policiais. segundo o capito Glauco, j participamos de competio em so Paulo. Conseguimos patrocnio para quimono, nibus, alimentao, estadia e inscries. E trouxemos 122 medalhas. Ento, bom porque mostra para populao que possvel. E possvel tambm tentar vender a ideia para a iniciativa privada.

    a capit Pricilla tambm utiliza a mesma estratgia: tenho um policial que professor

    de jud, com mais de 60 alunos. Por exem-plo, no Dia do meio ambiente recebemos o Batalho florestal. fora isso, damos apoios a eventos que empresrios querem organizar na comunidade, cita.

    Favela cidade

    importante analisar as UPPs a partir da noo base de que favela cidade. tal afirmao cha-ma a ateno para as injustias e desigualdades presentes nos ambientes urbanos, nos quais, muitas vezes, uma parte da populao tem acesso a direitos e outra no. Uma questo que ameaa moradores(as) de comunidades e que objeto de luta por parte de movimentos e organizaes a luta contra a remoo, j que muitas vezes o discurso a favor vai alm do risco e cai em preconceitos, especulao imobiliria etc.

    Com a implementao das UPPs em algumas favelas, o risco de uma remoo ca-muflada, que vem sendo chamada remoo branca, preocupa moradores(as) desses locais. Uma comunidade como santa marta, localiza-da em Botafogo, Zona sul do rio, com uma linda vista, um plano inclinado que favorece o acesso a qualquer parte do morro, sem trfco armado, pode, facilmente, chamar a ateno de especuladores. Por que no transformar esse territrio em um local de classe mdia?

    ao que parece, com as UPPs, uma mi-grao do santa marta no se daria de forma violenta, impositiva, mas por presso do merca-do. ativistas da comunidade, como itamar silva, coordenador do ibase, ressaltam a importncia da articulao e conscientizao sobre as possi-bilidades de deslocamento. a possvel tentativa, por exemplo, de compra de imveis por preos abaixo do mercado, acarretando o deslocamento de famlias para locais precrios, tem sido am-plamente debatida na comunidade.

    a maior preocupao que moradores e moradoras do santa marta precisam ter hoje como garantir a sua permanncia na chamada 'favela modelo'. Pois o controle social feito pela polcia, a interveno urbanstica feita pelo Es-tado sem discusso com moradores, o aumento constante da conta de energia eltrica, as vrias taxas que esto para chegar: gua, iPtU etc. e o assdio de pessoas querendo comprar uma casa na favela podem, em mdio prazo, mudar a composio do santa marta, avalia itamar.

    segundo Jos mrio, a comunidade bem politizada, so realizadas reunies internas

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    No d para pensar poltica de cidade s luz de programas e projetos fragmentados. No h poltica pblica de cidadeCunca

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    e as preocupaes so compartilhadas entre os(as) moradores(as). Porm, ainda assim, houve desmobilizao no perodo de implemen-tao do sistema de energia na comunidade. fizemos assembleia e discutimos como seria a forma de cobrana e os moradores, naquela poca, no quiseram participar. agora, est doendo no bolso. Ento, temos que apanhar para aprender, complementa.

    o aumento no valor de servios como gua e tv a cabo tambm visto como um fator de presso para a sada dos atuais moradores(as). assim que policiais da UPP chegaram ao santa marta, foram retiradas as ligaes clandestinas de ambos os servios. a entrada da light em favelas pacificadas vem gerando lucros. No santa marta, por exemplo, a empresa possua apenas 80 clientes cadas-trados, dos quais apenas 50% pagava conta de luz. aps a chegada da UPP, passou a ter 1.543 clientes. apesar da preocupao com as tarifas, que no santa marta ainda esto redu-zidas devido a acordo estabelecido, a empresa aponta que a inadimplncia, at o momento, de apenas 2%.

    silvia ramos chama a ateno para o fato de que o que era barato nas favelas no eram exatamente os aluguis, mas sim o no pagamento de muitos servios. isso tinha como contrapartida coisas terrveis: no ha-via esgoto, coleta de lixo, correio. a chamada urbanizao traz com ela o encarecimento da vida. transformar as favelas em bairros faz com que haja mudanas no estatuto do morador. Ele no mais o coitadinho que precisa de tudo de graa. aquele que comea a pagar tarifas e, os que no podem, com certeza iro para mais longe, acredita.

    Processo civilizatrio

    Em entrevista revista veja, de 21 de abril de 2010, o economista e ex-presidente do iBGE srgio Besserman declarou que a expe-rincias das UPPs o primeiro passo de um processo civilizatrio que precisa continuar. Capites responsveis pelas UPPs confirma-ram essa viso, por exemplo, em relao polmica proibio de bailes funk em favelas pacificadas.

    segundo o capito Glauco, o baile est proibido. Eu sou contra. todo o baile funk tem envolvimento com trfico. apesar de ser uma cultura popular, a populao ainda no est preparada para isso. No futuro, quando

    estiverem conscientizados, escutando msica clssica, msica popular brasileira, conhecendo outros ritmos, outras culturas, a gente at pode autorizar, mas hoje no, argumenta.

    a capit Pricilla corrobora com a afirma-o e lembra da associao simblica do baile funk com o trfico. Para os trabalhadores, para as comunidades, ter um baile funk aqui hoje significa que a polcia perdeu. o simbolismo. vai ter um dia? vai, mas no agora, conta.

    muitos dos discursos sobre as UPPs falam do processo civilizatrio ou de reedu-cao dos moradores de favelas, lembrando a proposta dos Parques Proletrios construdos na dcada de 1940. Na poca, o plano oficial da prefeitura sugeria, entre outras medidas, a promoo de forte campanha de reedu-cao social entre moradores das favelas, de modo a corrigir hbitos pessoais e incentivar a escolha de melhor moradia1. o contexto era dominado pela cidadania regulada, na qual moradores(as) de favelas no eram vistos como possuidores de direitos, mas como almas necessitadas de uma pedagogia civilizatria, como afirma o socilogo marcelo Burgos, no livro Cem anos de favela.

    Para itamar silva, o problema da UPP parecido com esse. o problema no a polcia pacificadora em si, porque ns queremos uma polcia decente que respeite o morador. mas quando a polcia ultrapassa seus limites e passa a controlar a vida cotidiana dos moradores.

    1 relatrio do Dr. victor tavares de moura, disponvel no acervo DaD/CoC/fiocruz.

    uPPs TeceNDo Discursos

    Plano inclinado na favela Santa Marta, no Rio.

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    Est cada vez mais claro que o objetivo o controle territorial das favelas e a imposio de um padro comportamental definido como ideal pela polcia, alerta.

    Para a capit Pricilla, o retorno de crimi-nosos ao santa marta poderia ser evitado por meio da educao. a partir do momento que os moradores tomarem conscincia de que isso no presta, de que eles so usados pelo trfico, a polcia vai ser o menos importante no lugar, aposta.

    Policizao do cotidiano

    o sucesso conseguido at agora com as UPPs e sua lua-de-mel com os meios de comunicao acaba enfra-quecendo a crtica. apesar de o cerne do policiamento comunitrio ser a participa-o, lideranas das favelas onde as UPPs esto sendo instaladas falam da falta de espaos de dilogo com moradores(as).

    Desde o incio, meu ponto foi resistir a essa 'po-licizao' da nossa vida, do nosso cotidiano. Uma vez que est 'pacificado', no tem sentido eu ficar conver-sando com a polcia. agora quero ampliar a cidadania, quero exercer meu direito diante de um estado que no cria espao para partici-pao efetiva, posiciona-se itamar silva.

    Quando confronta-dos com raros questionamentos, a resposta comum dada pela polcia, imprensa ou at mesmo pela sociedade tem sido: mas voc prefere o trfico ou a polcia? Eu no prefiro nenhum. No precisamos nem do trfico nem da polcia. o trfico uma fora e a polcia outra, mas as pessoas no entendem que podem viver sem os dois, responde Emerson Nascimento, o rapper mC fiell, morador do santa marta.

    Paulo Jorge ribeiro concorda que a UPP para promover segurana e no pode criar regras. segundo fiell, no entanto, a polcia faz a nova gesto da favela e tudo

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    agora tem que passar pela capit. No existe vcuo de poder. Enquanto os projetos sociais prometidos pelo estado no chegam, capites responsveis pelas UPPs vm se envolvendo em questes muito particulares do cotidiano da favela.

    Sustentabilidade

    Um questionamento que fica em relao sustentabilidade das UPPs. o projeto tem morte anunciada: 2016, quando ocorrem as olimpadas? Para o capito Glauco, a UPP veio para ficar. tem apoio do governo, da iniciativa privada, da secretaria de segurana, da Pm e da sociedade civil como um todo. se um deles falhar, os outros vo cobrar, justifica.

    a aposta de roberto s segue na mesma linha. segundo ele, sero realizados concursos para, no mnimo, 4 mil Pms por ano. a gente tem compromissos com o caderno olmpico de encargos do Comit internacional de aumentar o efetivo da Polcia militar para patrulhar as ruas e recuperar esses territrios, conta.

    silvia ramos aponta que essa polcia co-munitria representa uma grande possibilidade de reforma nas polcias carioca e fluminense. o nico jeito de as UPPs no fracassarem em mdio e longo prazo, ou seja, daqui a cinco anos, a extenso do modelo de policiamen-to comunitrio para todas as favelas. isso vai custar caro? Parece que cerca de r$ 400 milhes por ano. No tanto, cerca de 10 % do que se gasta em segurana pblica e 1% do PiB carioca.

    tramita na assembleia legislativa do rio projeto de lei que estabelece critrios para a implementao das UPPs, do deputado ales-sandro molon (Pt/rJ). segundo ele, a proposta transformar a iniciativa em poltica de estado e no de governo. o projeto estabelece a per-manncia das UPPs por, no mnimo, 25 anos e valeria tanto para os locais j pacificados quanto para aqueles onde as unidades ainda seriam instaladas.

    as expectativas sobre as UPPs so gran-des. apesar das discordncias em relao a alguns aspectos do projeto, pode-se dizer que a sociedade como um todo espera que a ini-ciativa v alm do brao de segurana, sendo capaz de, integrada a outras aes, contribuir para uma transformao social no rio de Ja-neiro. a participao cidad para transformar esse anseio em realidade fundamental.

    Uma questo que ameaa moradores(as) de comunidades e que objeto de luta por parte de movimentos e organizaes a luta contra a remoo

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    Histrico das ocupaes

    sob o conceito de polcia da paz, o projeto das UPPs recebeu r$ 15 milhes destinados qualificao da academia de Polcia, que deve formar cerca de 60 mil policiais at 2016. Em 2010, pelo menos 3,5 mil novos policiais sero destinados s Unidades Pacificadoras.

    a primeira comunidade a ser ocupada foi o santa marta, em Botafogo, Zona sul do rio. a ocupao foi realizada em 19 de dezembro de 2008 e conta com 120 policiais, liderados pela capit Pricilla de oliveira azevedo. segundo o subsecretrio de Planejamento e integrao operacional do rio de Janeiro roberto s, a quantidade de fuzis utilizados est diminuindo: vamos manter um grupo ttico com fuzil para uma eventual resposta, mas vamos diminuir bastante.

    a ocupao da Providncia ocorreu em 26 de abril de 2010. a UPP abrange as reas Pedra lisa e moreira Pinto e tem 200 policiais sob comando do capito Glauco schorcht. a Providncia est locali-zada atrs da Central do Brasil e a alguns metros da Zona Porturia, que tem projeto de revitalizao planejada. Cerca de 9 mil pessoas moram na Providncia e no seu entorno.

    o Borel, comunidade localizada na tijuca, Zona Norte do rio, foi ocupado em 28 de abril de 2010. Uma diferena em relao Providncia e ao santa marta o fato de o Borel estar prximo de grandes favelas, como Casa Branca, da Cruz e formiga. Durante a apurao desta reportagem, a comunidade ainda estava na primeira fase de ocupao, realizada pelo Bope. a UPP foi instalada oficialmente em 6 de junho, com previso de abranger cerca de 120 mil pessoas e possibilidade de instalao de outra unidade em rea prxima.

    tambm esto ocupadas pelas UPPs as comunidades Babilnia/Chapu mangueira (leme), Pavo-Pavozinho/Cantagalo e tabajaras/Cabritos (Copacabana), na Zona sul; Cidade de Deus (Jacarepagu) e Jardim Batam (realengo), na Zona oeste. a estimativa que cerca de 140 mil pessoas estejam sob a guarda dessa polcia comunitria.

    Durante as ocupaes no foram registrados grandes confrontos com traficantes locais. Para cada lugar criada estratgia especfica de ocupao. No santa marta, por exemplo, a entrada dos policiais do Bope foi uma surpresa, como relatam moradores. J para o Borel, foi divulgada previso de ocupao antes do carnaval. Uma guerra avisada para evitar balas perdidas, segundo roberto s. Porm, todas as operaes da polcia pacificadora seguem um roteiro comum.

    1. Retomada: o Bope entra na comunidade. o momento em que a inteligncia da polcia fortemente utilizada e pode haver represso. as prises no so, necessariamente, o objetivo. a entrada efetiva e dura de acordo com caractersticas locais.

    2. Estabilizao: Etapa de manuteno do controle, eliminao de focos de resistncia e de entrega do espao pelo Bope UPP.

    3. Ocupao definitiva: Um efetivo novo, recm-formado e especializado, vinculado ao batalho e subordinado a um comando de polcia comunitria, passa a fazer parte do cenrio da comunidade. o momento do foco preventivo.

    4.Ps-ocupao: Essa etapa baseada no acompanhamento dos resultados com padres e objetivos medidos pelo isP. faz-se monitoramento e pesquisa. aprofunda-se o vnculo com a comunidade e busca-se estabelecer articulaes institucionais.

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