drummond · com a criança, o seu brinquedo preferido. recordo-me de uma historieta em que um...

145

Upload: phungtram

Post on 16-Dec-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,
Page 2: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,
Page 3: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

DRUMMOND

O SORRISO QUE ME SORRI

2º EDIÇÃO

Revista e atualizada

2017

Page 4: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) Carla Lopes Ferreira (Bibliotecária CRB1-2960)

B395d

Becker, Marlene Drummond: o sorriso que me sorri / Marlene Becker. – 2. ed. rev.

atual. – Franca: [s.n.], 2017. 138 p. ; 14x21cm

ISBN 978-85-5697-362-7

1. Literatura brasileira - crítica. 2. Reflexões literárias. 3. Ensaio. I. Andrade, Carlos Drummond. II. Título.

CDU 82-09(81) CDD 869.939

Page 5: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

A Drummond, pelos seus múltiplos sorrisos.

Aos amigos, Maria Luiza, Eny e Oscar Kellner por

tornarem meus dias mais sorridentes.

Page 6: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

PREFÁCIO

Sorrir (corresponder ao sorriso) também é poetar.

Maria Luíza Salomão

“descubro-me diante do herói que se lança para o

interior de uma casa em chamas e salva o filho do

vizinho; mas aperto-lhe a mão se arrisca esbanjar cinco

preciosos segundos para procurar e salvar, juntamente

com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me

de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do

telhado de um edifício alto, observava durante a queda

um cartaz com uma palavra mal escrita e se

interrogava por que razão ninguém tinha pensado em

corrigi-la. De certa maneira, estamos todos a sofrer

uma queda mortal desde o alto de nosso nascimento

até à lápide do cemitério e a maravilhar-nos com uma

imortal “Alice no País das Maravilhas” perante os

desenhos na parede. Esta capacidade de assombro

perante coisas insignificantes – sem nos importarmos

Page 7: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

com a iminência do perigo -estas lateralidades do

espírito, estas notas de rodapé do livro da vida, são as

formas mais elevadas da consciência; e é aí, nesse

estado mental infantil e especulativo, tão diverso do

senso comum e da lógica, que sabemos que o mundo

é bom.” Vladimir Nabokov, 1980, in Aulas de Literatura,

Ed. Relógio d´Água, trad.Salvato T. de Menezes, 2004.

A descoberta de um sorriso é pura poesia,

principalmente sendo o sorriso lido, capturado, através

de versos. Com Nabokov, citado acima, vejo no olhar

poético de Marlene sobre o sorriso do poeta Carlos

Drummond de Andrade uma forma elevada da

consciência, como disse Nabokov, e um modo de,

afastando-se do “senso comum e da lógica”, Marlene

nos mostrar como o mundo é bom. A poesia pode

tornar o mundo bom, porque belo. Ou belo, porque

bom.

O Ensaio, desde Montaigne, que deu o nome ao

gênero, é apropriado ao ser que ama, ao apaixonado.

Montaigne confessa que seus Ensaios são sua forma

(apaixonada) de diálogo com o amigo perdido, Étienne

Page 8: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

de La Boétie. Apaixonada pela Poesia e pelo poeta,

Marlene, neste Ensaio, diz se entregar à escrita, não

como acadêmica, mas “ao acaso, (...) (como quem

quer apenas) (...) escrever o nome do ser amado”,

Drummond, e se deixar conduzir pelos seus versos.

escrever o nome do ser amado”, Drummond, e se

deixar conduzir pelos seus versos.

Diz a ensaísta: “Eu a leio (a obra) e sou lida por ela”,

(...) “ao falar sobre ele (Drummond) estou falando

também sobre mim. Redescobrindo-me e

redescobrindo o mundo.” (p. 25).

Creio que a autora me convidou para escrever este

prefácio, como quem procura alguém para dialogar

e/ou uma afinidade sobre o que captamos, eu e ela,

através de um olhar que foge ao senso comum.

Como psicanalista, também não me interessa o senso

comum, identifico na Poesia e na Psicanálise, a mesma

refinada procura de “algo”, sutil e quase inapreensível,

Page 9: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

avesso à lógica racional. Diz Nabokov, na obra citada,

p. 422:

“o senso comum atirou terra com as patas para os

quadros mais belos porque as suas bem-intencionadas

patas consideravam que uma árvore azul era uma

loucura. O senso comum deu origem a que nações

feias, mas poderosas, esmagassem as suas vizinhas

belas, mas frágeis, quando uma brecha na história

proporcionou uma oportunidade que seria ridículo não

aproveitar. O senso comum é fundamentalmente

imoral, pois a moral natural da humanidade é tão

irracional como os ritos mágicos que se foram

desenvolvendo desde a obscuridade imemorial do

tempo. O senso comum, no pior dos casos, é senso

tornado comum; portanto, tudo aquilo que entra em

contato com ele é desvalorizado. O senso comum é

quadrado, enquanto as visões e os valores mais

essenciais da vida têm sempre uma bela forma circular,

são tão redondos como o universo ou os olhos de uma

criança quando assiste pela primeira vez a um

espetáculo de circo”.

Page 10: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

Freud procurou criar um método que pudesse

reconhecer as manifestações do Inconsciente, em

temas banais como foram no século 19 os Sonhos, os

Chistes, as trocas de palavras (os já conhecidos, mas

por ele nomeados ganhando significado novo – “atos

falhos”). Afinal, O Inconsciente não tem cheiro, cor, não

se pode tocar, no entanto, sabemos que ele existe

através destas manifestações. Poetas e psicanalistas

apreendem em ditas “insignificâncias” o inusitado, o

assombroso, o que é capaz de, minerado e lapidado

(via rigor e método), reluzir novos significados.

Reconheço, entretanto, que poetas e psicanalistas

partem de portos diferentes e, embora naveguem de

modo semelhante, sem destino premeditado,

criptografam suas cartografias diferentemente.

O “claro enigma” comum, na Poesia e na Psicanálise, é

o conhecimento do Humano, o que o constitui enquanto

ser pensante e sentinte, singular e único, o que o

define enquanto sujeito de sua história vivida. Mas seus

caminhos se separam, nas metas e travessias. A

Page 11: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

Poesia está comprometida com a Poesia. A Psicanálise

está comprometida com o destino de quem a procura.

O psicanalista é servidor daquele que sofre, investiga o

Sofrimento Humano. No encontro singular, paciente e

psicanalista, deve acontecer um Conhecimento em

profundidade do Humano (suas Dores e Delícias). É

deste encontro e do Conhecimento produzido a dois

que podem nascer novas visões sobre o sofrimento do

paciente, criativas e não mortíferas, que enriqueçam a

trajetória humana da dupla de viajores.

João Frayze-Pereira, psicanalista, membro efetivo da

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e

livre docente da USP-SP, aproxima dois campos: o da

experiência estética (Poesia, Arte) e o da experiência

psicanalítica. Na Introdução ao seu livro Arte, Dor,

inquietudes entre Estética e Psicanálise, 2006, Ateliê

Editorial, FRayze-Pereira diz, p.23:

(...) a Psicanálise que exercitamos, compatível com a

Arte, não é aplicada, mas implicada, isto é, derivada

das artes ou engastada nelas, pois não é uma forma a

se aplicar à matéria exterior, não é um modelo que

Page 12: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

ajusta abstratamente o objeto artístico às suas

exigências teórico-conceituais. A Psicanálise, tal como

a entendemos, não é mero instrumento de investigação

de cultura, não é rede de noções aptas a atribuir

sentido ao sensível. Ora, se cabe à psicanálise a

possibilidade da construção conceitual (...) desde Freud

(é) a partir do pensamento elaborado num lugar

ambíguo, posto que é também o lugar de uma prática –

a prática clínica. (...) pensar psicanaliticamente implica

escutar, mais ou menos intensamente, as questões

singulares e comoventes, isto é ambíguas, e por isso

mesmo perturbadoras, daquele que sofre. Portanto,

daquele que vive. (...) cabe ao psicanalista, junto ao

seu outro, dar forma à dor do inarticulado que, por seu

próprio modo de ser, excede toda tentativa de

representação. Não é muito diferente o que se passa

no plano do fazer artístico. Considerando que é próprio

do artista pôr no mundo um ser que jamais foi visto,

nunca foi ouvido ou tocado antes dessa instauração,

pensar esteticamente supõe fazer contato com esse

campo de passagem entre o não-ser artístico e a forma

perceptível, assim como pensar psicanaliticamente

Page 13: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

implica transitar entre o não-dito e o dizível. (“...) desde

a dinâmica da presença e da ausência do sensível, a

experiência estética é vizinha da experiência analítica:

uma silenciosa abertura ao que não é nós e que em

nós se faz dizer.” (grifo do autor),

Não aplicamos conceitos psicanalíticos na vivência do

encontro, da viagem íntima a que nos lançamos com o

paciente, mas eles estão implícitos nos gestos, na

postura, na carne e sangue do analista. A mesma coisa

acontece com o artista no ato da criação. Mesmo que

tenha conceitos e técnicas, no ato mesmo da criação, a

passagem do sentir do artista para a forma que plasma

sua criação, a obra, se dá através da pessoa do artista.

Aqui, neste Prefácio, posso dizer que também estou

implicada na tentativa de interpretar a maneira peculiar

de Marlene abordar o “seu” Drummond. A sua escolha

de desvelar o sorriso de Drummond, sua interpretação,

é, de imediato, surpreendente e instigante.

Acostumamo-nos a conviver com um Drummond

soturno, figura frágil e magra, quase etéreo e

Page 14: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

metafísico, sentado eternamente de costas (como quis

o escultor da sua figura) para o mar de Copacabana,

olhando para o chão, de óculos, segurando um livro.

Figura que se associa à Melancolia.

Assim não quis ver Marlene o seu poeta. Que sorriso

procura Marlene ler em Drummond? Um Sorriso a ser

interpretado, enigmático, cifrado, instigante. E o que

Marlene deixa claro, neste Ensaio, é que a sua é uma

escrita imanente, implicada, no dizer de João Frayze,

não se pretende acadêmica. Escrita visceral, criada a

partir de uma usina interior daquela que também é

poeta.

Há no sorriso, enquanto temática, uma complexidade

de acréscimos. O que faz resultar a cor e intensidade, a

qualidade do sorriso, se alegre ou triste, sardônico,

irônico, confiante, terno? Não há, se pensarmos bem,

uma Emoção Pura, a Emoção Pura é abstração,

conceito. A Emoção que gera um sorriso (ou outro

gesto qualquer) se origina de emoções compostas,

plenas de ambiguidades, que podem gerar sorrisos

Page 15: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

como o de Mona Lisa, pintado (interpretado) por

Leonardo da Vinci. Há tratados sobre este enigmático

sorriso, que coloca dúvidas até a respeito do gênero -

Mona Lisa é mulher ou homem?

Quem conviveu, mesmo que por pouco tempo, com um

bebê, sabe a dificuldade que é identificar o seu choro,

se de cólica, de tristeza, de solidão, de fome, de raiva,

de apelo. Marlene encontrou muitos sorrisos entre os

versos de Drummond, mostrando que a personalidade

do poeta não é unívoca, como, de resto, a de ninguém,

seja artista ou não.

A Psicanálise freudiana esbarra, enquanto ofício, com

esta tarefa, de decifrar o gesto, o choro, o sorriso, as

palavras, o silêncio. Ao vivenciar emoções que podem

ser intensas demais, ou, ao contrário, ao se ver privado

de emoções básicas e essenciais ao seu

desenvolvimento, o “eu” se fragmenta, divide-se. Nesta

divisão, acaba por se reconhecer e se desconhecer,

simultaneamente. Como o pai à mãe, quando raivoso

por algum ato do filho, diz: “olhe o que fez seu filho”, e,

Page 16: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

no processo inverso, quando orgulhoso da cria, diz:

“olhe o que fez meu filho”. Aceitamos nossos melhores

gestos (aos nossos olhos) como genuínos, próprios, e

rejeitamos (e até atribuímos a outrem) aqueles que não

aprovamos. Diz Millor, e podemos rir com ele, na

identificação com esta experiência: “errar é humano, e

atribuir nossos erros ao Outro também”.

Em Literatura, o tema desta dissociação, ou divisão, do

“eu” aparece como a manifestação do “duplo”, múltiplos

personagens nos habitam. Rimbaud diz “o eu é um

outro”. Fernando Pessoa, nosso poeta português, nos

ofereceu múltiplos “eus”, com nomes próprios e

personalidade, visão de mundo, até mapa astral

peculiar a cada “eu” poético.

Este é o primeiro ponto convergente no Ensaio de

Marlene e um possível Ensaio psicanalítico. Drummond

é um só, único, e tem vários sorrisos. Marlene trouxe

uma chave, toda dela, para vermos o seu Drummond

sorrindo. Ela o viu sorrindo a ela, quando ela sorriu ao

Page 17: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

poeta. Ou seria o inverso, ela descobriu, em si, a

sorridente Marlene? Quem sorri a quem?

Marlene divide seu Ensaio em três partes: a

Descoberta (como o poeta surge e é apreendido em

sua vida), A Viagem (a navegação nos versos de

Drummond), O Encontro (o sorriso redentor).

Marlene traz outros analistas, críticos literários, que o

amam e também os que não o compreenderam. Neste

percurso, vai cartografando seu mapa pessoal a definir

o que é a Poesia, e de que posto de observação

mapeou os vários sorrisos de Drummond.

Viagem e viagens.

O Sorriso, afinal, é passageiro, como são as emoções,

nebulosas, e podem ir clareando até conseguirmos

nomeá-las, trabalho laborioso em psicanálise. E é labor

de Poeta. Há muitos escritores que proclamam que

escrevem para “conhecer algo”, ou “conhecer-se”.

Page 18: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

Ao tornar permanente o efêmero, ao eternizar o

Sorriso, ou os sorrisos de Drummond, Marlene é a

“leitora ideal” de um escritor. Ela costura o melancólico,

o “duro”, o “metafísico”, o “pornográfico”, com o seu

“sorridente” Drummond.

Para Drummond, segundo Marlene , “a ausência do

amor é negação da vida, mas não se trata de amor

romântico ou sentimental, é amor como forma de

conhecimento.” A leitura do poema também é forma de

autoconhecimento “gostamos de um poema quando ele

nos revela a nós próprios, quando ele reflete a nossa

imagem oculta”. Muitos são os pacientes que estão

identificados com obras de arte (música, filmes, livros,

poemas) e se apresentam de maneira mais precisa e

aprofundada ao psicanalista, usando dos modelos das

obras artísticas, dos personagens, da emoção

intraduzível, muitas vezes em palavras, que a arte

revela. Diz Marlene que “poesia é algo que nos obriga

a transpor as palavras”. E esta mesmíssima frase

poderia ser colocada em termos psicanalíticos “o

encontro analítico nos obriga a transpor as palavras”, já

Page 19: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

que elas adquirem um contexto especial, no interior da

relação da dupla analítica.

O Conhecimento que parece vir de fonte tão direta e

clara através da Arte, é garimpado, com grande

esforço, pela dupla paciente-analista, e, como o artista,

o psicanalista precisa trabalhar com um amor não

romântico, não sentimental. O amor do analista ao

paciente está ligado à forma como ele conhece a si

mesmo, analista, conhecimento adquirido por uma

análise pessoal, e uma formação rigorosa. Para re-

conhecer seu paciente o analista precisa desenvolver

uma forma de escuta e de olhar, antinatural podemos

dizer. Laboriosa, a contrapelo do que é “dado”

sensorialmente, da memória idiossincrática do analista.

Esta forma é o método analítico, que obriga o analista

(e o paciente) a trans-por as palavras.

O poeta não parece “desenvolver” um método, parece

ter uma antena especial, que captura o dificilmente

capturável, e traduz para os demais contemporâneos.

Senti grande prazer em acompanhar Marlene na sua

Page 20: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

captura dos sorrisos de Drummond. Não era um

colecionador de borboletas, dissecando a beleza, mas

alguém que contempla e guia o nosso olhar para os

voos e silêncios, para os pousos e desaparecimentos

do que precisa ser eternizado pela palavra. Ela

eternizou sorrisos, tarefa delicada e encantada,

mágica.

O ENCONTRO de Marlene, o encontro com Marlene.

Quase ao meio do Ensaio nos deparamos com dados

biográficos de Drummond. Achei por demais

interessante ver Marlene prescindir desses dados por

tantas páginas. Na vida (e no encontro psicanalítico)

não precisamos destes dados, data de nascimento,

lugar que o autor nasceu, e outros, para atingir um

contato profundo, íntimo. Marlene nos fala do seu

Desejo e assim nos aproxima dela, e de Drummond.

Ela o acompanha nas suas palavras, nos seus versos.

Desejo farejando desejos.

Page 21: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

Os dados biográficos são meramente acessórios nesta

trilha que fareja desejos. O essencial vem do seu

trabalho (e do poeta), na descoberta e no passeio

acurado sobre os versos e sobre as várias

interpretações destes versos de Drummond. Mais uma

convergência entre Poesia e Psicanálise.

Não é necessário ter em mãos a anamnese do

paciente (como necessita o médico) ou o levantamento

dos seus dados biográficos (não estamos a fazer

estatísticas). O Encontro analítico acontece

fugazmente, em plenilúnio, ou em Lua Nova, e pode

estar presente em um insignificante detalhe, em um

insuspeito Desejo (ou ausência dele), em uma cadeia

de eventos que podem imobilizar o “eu”, provocar a

Dor, esticar o sofrimento do paciente, sem que ele se

aperceba. E a história que o paciente conta em uma

sessão de análise, no início do seu tratamento, pode se

alterar quase que completamente, durante a travessia

(no relatar inúmeras vezes a sua história). Não porque

mudam os seus pais, os filhos, os amigos, os

personagens íntimos da sua vida, mas porque algo do

Page 22: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

Conhecimento produzido no Encontro Analítico

metamorfoseou sua forma de sentir, aperceber, pensar

sobre sua história.

Este Ensaio de Marlene mostra uma metamorfose,

confessada pela ensaísta, que, ao se debruçar

inúmeras vezes sobre os versos do poeta, ao ouvi-los

ressoar de maneiras íntimas e diversas, faz esticar,

dobrar, redobrar, expandir sua forma de sentir,

aperceber, pensar sobre Drummond.

Acompanhar Marlene nesta captura e nesta

metamorfose me fez sorrir, junto com Marlene, e

receber de volta os vários sorrisos desvelados pelo

Poeta da Poeta.

Interpretar é algo que acontece no íntimo, no entre-

dois, poeta-leitor, analista-analisando, e, pensando

bem, o próprio sorriso é um ato social, entre dois. Se

alguém nos sorri, tendemos a sorrir de volta. Um bebê,

mesmo recém-nascido, não resiste a um rosto

sorridente.

Page 23: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

No bojo do Ensaio, no percurso de Marlene há Ternura

e Devoção. Há uma real intimidade. Elementos

fundamentais para acontecer o sorriso para alguém e

ser correspondido, de volta.

Boa viagem, e bons encontros, desejo ao leitor que

tenha, como eu tive, sorridentes descobertas!

Maria Luíza Salomão- psicóloga, psicanalista. Membro

Associado SBPSP- Sociedade Brasileira de

Psicanálise de São Paulo. Escritora, poetisa e membro

da Academia Francana de Letras.

Page 24: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

24

A DESCOBERTA:

“Sou apenas o sorriso

na face de um homem calado.”

Não foi uma paixão repentina. Foi necessário muito

tempo, ou muitos versos para construir essa relação de

amor com as palavras de Drummond, relação que,

hoje, se acha estabelecida. Nem sempre me debrucei

sobre seus textos compreendendo que o autor dos

mesmos não era, não foi um romântico, mas, sempre,

um poeta do amor, das mãos dadas, universal,

sensível, afiado como uma navalha, irônico, tímido.

Aos poucos, fui conhecendo o poeta, e seus poemas

foram granadas ou carícias em meu coração. Debrucei-

me, então, sobre sua obra. Outros autores que

estudaram sua vida, analisaram seus textos,

Page 25: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

25

desvendaram a estrutura dramática subjacente aos

seus versos aparentemente frios, ajudaram-me a

compreendê-lo melhor.

Apaixonei-me por ele, assim, devagar, descobrindo sob

seus poemas, um dia um sorriso irônico, no outro um

sorriso triste (¨A lucidez é um sorriso triste¨) 1 terno,

maroto, calado, torto (como o do seu anjo), aberto,

esquerdo (porque do lado esquerdo ele carregava seus

mortos), e foram esses sorrisos que eu tentei apanhar.

Não busquei a palavra sorriso, rara em sua obra, mas o

sorriso essência da expressão (in) contida em cada

poema, em cada verso.

“Sou apenas um homem

um homem pequenino à beira de um rio

Vejo as águas que passam e não as compreendo...

Sou apenas o sorriso na face de um homem

calado.”

1 Mario Pintp de Andrade- ensaísta e ativista político angolano- HTTP://www.infopédia. pt/$mario-pinto-de-andrade

Page 26: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

26

Parece incoerência falar em sorrisos de Drummond, se

ele era um homem reconhecidamente taciturno,

fechado, melancólico, mas os sorrisos que procurei no

poeta não foram aqueles que acionam os músculos da

face, mas os que encontramos em suas palavras,

versos, instigantes metáforas, em suas brincadeiras

com as palavras, e na minha jornada pela sua obra fui

descobrindo suas expressões de amor, ironia,

melancolia, compreensão, simpatia, raiva, conflito, que

se tornaram metáforas de sentimentos assentados nas

dobras da sua genialidade.

Nem todos os sentimentos capazes de produzir

um sorriso chegam a nossa face. Podemos deixá-los

trancafiados em enganosa imobilidade, porém, dentro

de nós, continuam colorindo palavras, expressões,

metáforas, bem como nossos olhares sobre a vida,

sobre o mundo, sobre nós mesmos. Algumas pessoas

sorriem através do que fazem ou escrevem. Assim,

Drummond.

Page 27: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

27

É fácil sorrir para quem nos sorri, porque sorrisos que

se encontram abrem brechas para a compreensão,

para a comunhão, para ser no outro e ao outro acolher.

Nos versos de Drummond encontrei sorrisos que me

sorriram, e por esse motivo eu o amei.

A obra é maior do que o seu autor. Dizem que

“Drummond foram muitos”, mas o José foram muito

mais, porque ele está em cada um de nós,

perguntando-nos: _ E agora? Os encontros e

desencontros, amorosos ou não, acontecem a cada

momento da nossa vida, e todos nós já tivemos contato

com um anjo torto, em algum momento, durante a

nossa trajetória pela vida.

Não é minha intenção desvendar Drummond ou fazer

uma análise crítica de sua obra, o que seria

inadequado considerando que eu não sou especialista

nesta área. Meu objetivo é relatar os sentimentos, as

reflexões e as reações que provocaram em mim a

leitura de seus poemas, e expor as emoções que senti,

os pensamentos que me ocorreram e as reflexões a

Page 28: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

28

que eles me induziram. Devo confessar que essa

leitura não me trouxe serenidade, ao contrário, fui

apossada por um sentimento de cansaço, desencanto,

tristeza, porém, o que mais me assaltou foi a

perplexidade. Pude ver, através dos versos que mais

falaram ao meu coração, as múltiplas facetas da vida,

do ser humano, e de mim mesma, compreendendo que

“destruição e construção são componentes da

viagem.”, e que todos precisamos aprender a preparar

“uma canção/ que faça acordar os homens/ e

adormecer as crianças.”, e as cem (com c) razões pela

qual precisamos amar.

Não só li cada poema, como também os tateei,

acariciei, cheirei, surpreendendo-me com as minhas

reações aos seus instigantes poemas, sobre os quais

me debrucei buscando sua essência íntima.

Fui sequestrada pelos seus versos, fustigada,

enriquecida por eles. Tensa e dolorosamente, ou leve e

“dando cambalhotas”, encontrei, através dos seus

versos, o meu anjo torto, o José sem teogonia, as sem

Page 29: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

29

razões do amor, a máquina do mundo e, por fim, seu

sorriso.

Ao começar este texto, pensei em seguir a ordem dos

poemas, conforme seleção feita por Drummond em sua

Antologia Poética, ou seja, começando com “O

indivíduo; A terra natal; a família, Amigos; O choque

social; O conhecimento amoroso; a própria poesia;

Exercícios lúdicos; Uma visão ou tentativa de, da

existência”, mas não consegui. Creio que estabeleceria

esta ordem se estivesse fazendo um trabalho literário,

mas na verdade, sinto-me mais à vontade explorando

seus poemas de forma aleatória.

Entrei no reino das palavras à procura da poesia, com

a única chave a mim disponível: a sensibilidade.

É claro que nossas respostas a um poema, e até

mesmo a uma palavra, são diferentes, porque

diferentes são os caminhos da constituição do

significado das mesmas, ao longo de nossas vidas,

assim, os mesmo versos que me fazem chorar, ou

Page 30: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

30

estremecer, podem deixar outra pessoa indiferente.

Tocar na, e ser tocado pela poesia, correspondem a

uma forma individual de percepção da vida e da magia

das palavras.

Minha viagem por diversos autores foi feita com o

objetivo de compreendê-lo melhor para que eu

pudesse, dele, me aproximar ainda mais.

Permito-me caminhar de encontro ao poema e

descubro um mundo de possibilidades. Sigo, com a

inocência de uma criança, abrindo portas, saltitando

pelas vias dos significados. Seguro um dicionário, abro-

o, e ali encontro palavras solitárias e mudas. Procuro

suas faces secretas, e começo a perceber minhas

emoções. Debaixo de cada verso, descubro um amplo

espectro de interpretações, e continuidades, e amo as

palavras como suportes do pensamento, e as respeito

como articuladoras de sentidos, constituidoras da

nossa vivência anímica.

Marco Luchesi, no Prefácio da Antologia Poética já

citada, diz:

Page 31: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

31

“O século XX corre inteiro nessas páginas,

como um rio profundo, caudaloso, inarrestável,

com suas ondas de enigma e transparência,

fogo e palavra, promessa e desencanto.

Nessas águas de absoluta clareza, reflete-se

uma parte de nosso rosto, quando não o rosto

por completo. (...)”

No belo Prefácio, o seu autor consegue nos passar a

razão pela qual a poesia de Drummond abala nossas

estruturas: ela reflete os nossos rostos e nem sempre

queremos vê-los.

Na vida, dançamos quadrilha, deslocando-nos em

vaivém. No poema abaixo o poeta tematiza o

desencontro amoroso, ironizando as convenções

sociais e contrapondo o amor ao casamento, tratado

como instituição ligada a interesses financeiros.

Com este poema, Drummond nos remete à dor das

discordâncias amorosas, às dissoluções das

Page 32: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

32

esperanças, aos entrecruzamentos de vidas, aos

acontecimentos comuns. Nada é insignificante para ele.

De tudo extrai poesia, e de forma irônica e bem

humorada, retrata, sem permitir nenhum aporte

emocional, de forma fria e impessoal, uma visão

dessas oposições. É uma prova de coragem suportar

uma realidade fragmentada, e torná-la inofensiva

através da racionalização. Assim como o amor, os

desencontros acontecem porque acontecem. O poeta

não somente vê, mas enxerga essa situação, que

desafia e adverte o homem a respeito do seu

desamparo e impotência, sua incapacidade para definir

os rumos de sua vida.

Ao ler esse poema senti a minha fragilidade frente a

essa força que não poupa ninguém. Nós nos

desencontramos apesar do amor. Nós nos

desencontramos porque em nossas estradas existem

desvios, rotas paralelas, cruzamentos, entroncamentos,

trilhas diversas, e nada nos assegura que aquele que

caminha ao nosso lado não se desviará para outras

direções, empreendendo jornadas diferentes.

Page 33: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

33

Quadrilha2

João amava Teresa que amava Raimundo

que amava Maria que amava Joaquim

que amava Lili que não amava ninguém.

João foi para os Estados Unidos,

Teresa para o convento,

Raimundo morreu de desastre,

Maria ficou para tia,

Joaquim suicidou-se

e Lili casou com J. Pinto Fernandes

que não tinha entrado na história.

Outro poema, surpreendente pela sutileza, pelas

imagens, pelo modo como trabalha a questão do tempo

é:

Cidadezinha3

2 In Alguma Poesia-1930 3 In alguma Poesia-1930

Page 34: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

34

Casas entre bananeiras

Mulheres entre laranjeiras

Pomar amor cantar.

Um homem vai devagar

Um cachorro vai devagar

Um burro vai devagar

Devagar... as janelas olham

Eta vida besta, meu Deus.

Lendo este poema, consegui visualizar perfeitamente a

paisagem e compartilhar da lentidão que o poema

pretende passar.

O escritor e poeta Dirceu Scali Júnior 4·, em “Tempo e

ritmo: Passeios entre campo-cidade pequena/

metrópole”, analisa esse poema mostrando que o poeta

faz uso basicamente de substantivos, e as imagens,

estáticas, dão a ideia de um cenário. As ações entram

lentamente como se pode ver no terceiro verso onde

ele usa dois substantivos: um concreto, pomar, dando

4 Texto publicado no site – Estados Gerais da Psicanálise.

WWW.estadosgerais.org/encontro

Page 35: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

35

ideia de fixidez, o outro abstrato- amor-vindo a seguir o

verbo que dá início à ação. Na sua bem articulada

análise, Dirceu fala sobre o significado da repetição da

palavra devagar, e mostra que esse ritmo (lento)

impregna todos os que fazem parte desse cenário e

diz:

“Essa lentidão é tão intensa que acaba

por imprimir uma ação até mesmo à

concretude, ao não animado, “as janelas

olham”. Por fim, no último verso, a

explosão de tédio ou desespero do poeta

pelo reticente do movimento, pela

circularidade do tempo, pelo previsível

de sempre.”.

No “Poema de sete faces” 5 ele revela seu aspecto

gauche, seu eu retorcido e chega a confessar seus

momentos de comoção, e eu também me sinto

comovida ao me identificar com esse homem atrás do

bigode, seus desajustamentos, suas carências. Gauche

5 Publicado no livro “Alguma Poesia”-1930

Page 36: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

36

é uma palavra francesa que significa torto, esquerdo,

desajeitado, e esse significado atravessa sua obra

revelando o seu desacordo com o mundo utilitarista no

qual vivia.

Acaricio a metonímia do oitavo verso, vejo o sorriso

brincalhão da rima de mundo com Raimundo, e sinto

que também tenho um anjo torto, e também fui

condenada a ser “gauche” na vida. Eis porque li e reli

este poema dezenas de vezes, tantas vezes que ele

passou a fazer parte de mim.

As sete estrofes deste poema referem-se às suas sete

faces: A primeira refere-se ao momento em que seu

anjo torto condenou-o a ser gauche na vida; na

segunda e terceira torna-se um observador irônico; na

quarta fala sobre si mesmo; na quinta faz uma

invocação bíblica: (Meu Deus porque me

abandonaste), na sexta brinca com as rimas, e na

sétima, declara-se “comovido como o diabo”.

Page 37: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

37

O indivíduo, indivisível, se multiplica, e se cada estrofe

do poema representa cada uma de suas faces, não

podemos deixar de perceber que, ao longo de sua obra

essas faces reaparecem multiplicadas,

metamorfoseadas, gerando novas combinações,

movendo-se pelos caminhos da dualidade e da

ambiguidade, pelos da solidariedade, das mãos dadas,

e também pelos do erotismo e da busca do prazer.

Poema de Sete Faces6

Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.

6 In Alguma Poesia-1930

Page 38: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

38

O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus,

pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.

O homem atrás do bigode

é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos, raros amigos

o homem atrás dos óculos e do bigode,

Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,

se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração.

Page 39: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

39

Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo.

O grito do poeta no “Poema de Sete Faces”

7ressoa em mim:

“Meu Deus, porque me abandonaste/ se sabias

que eu não era Deus/ se sabias que eu era

fraco.”

Faço meu esse grito, e perco a esperança, mas a

reencontro à medida que vou deslizando pelo

tempo, pelo “Sentimento do Mundo”, pela “Canção

Amiga”. Demoro-me em “Procura da Poesia”,

sentindo a tensão do eu-lírico, ao entrar

“surdamente no reino das palavras.”.

7 In alguma Poesia- 1930

Page 40: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

40

PROCURA DA POESIA8

(...)

Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intata.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência se obscuros.

Calma, se te provocam.

Espera que cada um se realize e consume

com seu poder de palavra e seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema. Aceita-o

como ele aceitará sua forma definitiva e

concentrada no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma tem mil faces secretas sob a face

neutra 8 In A Rosa do Povo (1943-1945)

Page 41: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

41

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?

(...)

Outros poemas, outros encontros outros sorrisos, e

assim, aos poucos fui me aproximando mais de sua

poesia.

Comecei a procurar outros olhares sobre sua obra,

sabendo que este exercício expandiria a minha

capacidade de ouvi-lo. Foi assim que conheci autores

que também o descobriram e reconheceram a

genialidade da sua poesia. Foi quando comecei a

colecionar pepitas literárias, como as de Affonso

Romano de SanÁnna, Marlene de C. Correia, Geneton

Moraes de Mello e de muitos outros. A cada um deles,

meus agradecimentos por terem me mostrado outras

facetas do poeta.

Affonso Romano de Sant’Ánna que apresentou, em

1969, sua tese de doutorado, "Carlos Drummond de

Page 42: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

42

Andrade9 o Poeta "Gauche, no Tempo e Espaço.",

disse que, mais do que uma obrigação acadêmica, seu

trabalho transformou-se numa autêntica aventura do

espírito, e eu sou grata a ele por ter me permitido, a

partir de repetidas leituras de sua obra, pegar carona

nessa sua aventura.

Affonso Romano mostra, na estrutura da obra de

Drummond, aparentemente fragmentada, um enredo e

cada um dos seus livros como se fosse um capítulo de

uma única obra, sendo o próprio autor, o personagem

central manifestando-se como Carlos, Carlito, José, K

ou Robinson Crusoé. De forma magistral vai mostrando

a trajetória do poeta como “gauche”, e como o poeta de

mãos dadas. Revela como ele se abre ao Sentimento

do Mundo que toma conta do seu ser, e por fim,

mostra-o superando o momento do nojo, completando

a travessia, vendo a flor que nasce no asfalto.

9 “Drummond, o gauche no tempo”, de Affonso Romano de Sant’Anna. Prêmio

União Brasileira de Escritores, Prêmio Estado da Guanabara, Prêmio Mário de Andrade do Instituto Nacional do Livro, Prêmio do Governo do Distrito Federal.

Page 43: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

43

“É feia”. Mas é uma flor.

Furou o sapato, o tédio, o nojo

e o ódio.”.

Romano mostra o poeta, agora, diante de um “claro

enigma” que fala do amor universal. Nesse momento

dissolve-se a oposição eu – mundo e ele adquire a

consciência de que “destruição e construção são

componentes da viagem.”.

Depara-se com a Máquina do Mundo, escuta seu

chamado, sua promessa de lhe revelar a “total

explicação da vida”, mas ele a desdenha e segue em

frente, “vagaroso, mãos pensas”. Esse, em síntese, o

enredo da obra de Drummond sobre o qual nos fala

Affonso Romano de Sant’Ánna nesse seu trabalho de

inestimável valor para a literatura brasileira.

O processo dialético do eu com o mundo, desdobrou-

se, de acordo com Romano, em três fases:

- a primeira- eu maior que o mundo, (fase irônica),

caracterizada pelo humor, ironia, linguagem coloquial.

Page 44: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

44

com as obras: Alguma Poesia (1930); Brejo das Almas

(1934); Sentimento do Mundo (1940), caracterizada

pela ironia, humor, linguagem coloquial.

-A segunda: eu menor que o mundo (poesia social),

caracterizada pelo sofrimento, solidariedade, decepção,

falta de perspectivas diante dos horrores da guerra,

com as obras: José (1942); Rosa do Povo (1945),

Alquebrado pela realidade, nessa fase cai no

pessimismo, e sente-se menor do que o mundo, e

percebe que precisa de todos, porque o mundo é

tensão, e “a vida é pétrea”. O desalento toma conta da

sua alma, Olha para o mundo com desalento, escuta

“voz de gente”, dispõe-se ao engajamento e faz disso

sua razão de viver. Quer transformar o mundo, como

vemos no “Poema da Purificação”. Despreza o lirismo

dos românticos, o escapismo, o desencanto dos

decadentistas e alcança “o sentimento do mundo”.

- A terceira (eu igual ao mundo), com uma fase

metafísica e outra, considerada final. Desta fase

destacamos as obras: Claro Enigma (1951) Fazendeiro

Page 45: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

45

do Ar (1954); Vida Passada a Limpo (1959). Ainda

dentro dessa fase, mas já com outras características

temos: Boitempo, (1973); Menino Antigo (1973); A

Paixão Medida (1980); Esquecer para Lembrar (1979);

Corpo (1984); Amar se Aprende Amando (1985) e

Amor Natural (1992), publicado cinco anos após a

morte do poeta.

O poema abaixo (da segunda fase), revela, claramente,

o seu desalento e tristeza

Poema da purificação10

Depois de tantos combates

o anjo bom matou o anjo mau

e jogou seu corpo no rio.

As águas ficaram tintas

de um sangue que não descorava

e os peixes todos morreram. 10 In Alguma Poesia-1930

Page 46: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

46

Mas uma luz que ninguém soube

dizer de onde tinha vindo

apareceu para clarear o mundo,

e outro anjo pensou a ferida

do anjo batalhador.

O eu poético se vê em um mundo grande e repleto de

incertezas e dramas, por isso grita, e sentindo a sua

pequenez, toma consciência de que precisa de todos,

precisa dos outros porque é difícil, muito difícil sofrer.

“Mundo Grande” 11

Não, meu coração não é maior que o mundo.

É muito menor.

Nele não cabem nem as minhas dores.

Por isso gosto tanto de me contar.

Por isso me dispo.

Por isso me grito, 11 Mundo Grande- publicado no livro Sentimento do Mundo, 1940.

Page 47: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

47

por isso frequento os jornais, me exponho

cruamente nas livrarias:

preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.

Só agora vejo que nele não cabem os homens.

Os homens estão cá fora, estão na rua.

A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu

esperava.

Mas também a rua não cabe todos os homens.

A rua é menor que o mundo.

O mundo é grande.

Tu sabes como é grande o mundo.

Conheces os navios que levam petróleo e livros,

carne e algodão.

Viste as diferentes cores dos homens.

as diferentes dores dos homens.

sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo

isso

num só peito de homem… sem que ele estale.

Page 48: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

48

Fecha os olhos e esquece.

Escuta a água nos vidros,

tão calma. Não anuncia nada.

Entretanto escorre nas mãos,

tão calma! vai’ inundando tudo…

Renascerão as cidades submersas?

Os homens submersos —— voltarão?

Meu coração não sabe.

Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.

Só agora descubro

como é triste ignorar certas coisas.

(Na solidão de indivíduo

desaprendi a linguagem

com que homens se comunicam.)

Outrora escutei os anjos,

as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.

Nunca escutei voz de gente.

Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei

Page 49: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

49

países imaginários, fáceis de habitar.

ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e

convocando ao suicídio

Meus amigos foram às ilhas.

Ilhas perdem o homem.

Entretanto alguns se salvaram e

trouxeram a notícia

de que o mundo, o grande mundo está crescendo

todos os dias,

entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.

Entre o amor e o fogo,

entre a vida e o fogo,

meu coração cresce dez metros e explode.

— Ó vida futura! nós te criaremos

O poema “Elegia” escrito em 1938 e publicado no livro

Sentimento do Mundo (1942), encaixa-se na mesma

linha. Em cada estrofe percebemos que a situação

Page 50: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

50

“entre vida e fogo”, está presente, contaminando cada

verso com tristeza e desalento. Com Hitler, na

Alemanha, Mussolini, na Itália, pressentia-se uma

guerra. E ela veio. O poeta, inconformado, denuncia a

cegueira e incoerência do homem que “trabalha sem

alegria para um mundo caduco”.

Elegia12

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,

onde as formas e as ações não encerram

nenhum exemplo.

Praticas laboriosamente os gestos universais,

sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e

desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te

arrastas,

e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-

frio, a concepção.

À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de

bronze 12 In Fazendeiro do Ar-1953

Page 51: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

51

ou se recolhem aos volumes de sinistras

bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que

encerra

e sabes que, dormindo, os problemas te

dispensam de morrer.

Mas o terrível despertar prova a existência da

Grande Máquina

e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis

palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas

sobre coisas do tempo futuro e negócios do

espírito.

A literatura estragou tuas melhores horas de

amor.

Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de

semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua

derrota

e adiar para outro século a felicidade coletiva.

Page 52: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

52

Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a

injusta distribuição

porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de

Manhattan.

A partir da leitura de Romano, busquei outros autores

que se debruçaram sobre a obra drummondiana,

tentando captar novos olhares sobre o poeta.

Com A Magia Lúcida, de Marlene de Castro Correia13,

comecei a me fazer perguntas que precisavam ser

respondidas para que eu pudesse compreendê-lo

melhor. Muitas vezes pensei que tudo já estivesse dito,

muitas vezes achei-me incapaz de tal empreitada,

muitas vezes deixei de lado, por meses, minhas

anotações. Mas quando se ama, sente-se prazer em,

ao acaso, escrever o nome do ser amado, e nessa

época eu já o amava e a sua poesia.

13 Marlene de Castro Correia: especialista em Literatura Brasileira. Seu livro

reúne ensaios sobre a obra poética de Drummond mostrando-o como o poeta da busca da unidade consigo mesmo e com o outro, da ânsia de superar a

fragmentação da consciência moderna.

Page 53: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

53

Carlos, Carlito. Posso chamá-lo assim porque ele

habita minha casa, às vezes a preenche, é uma de

minhas habituais companhias, uma voz no meu

ambiente aparentemente solitário.

Marlene de C. Correia pergunta se a poesia tem vez no

mundo atual e diz: “quanto mais lúcidos os poetas,

mais aguda a inquietação sobre seu ofício”, e assinala

que esse é o caso do Drummond que denuncia a

surdez burguesa ao canto do poeta, e mostra que, para

Drummond, o poético se situa no nível da linguagem, e

analisa vários poemas, revelando como “o jogo fônico

funciona como recurso de ênfase semântica”, e através

de novas combinações de palavras e do seu emprego

polissêmico ele os valoriza, denunciando, ao mesmo

tempo, o desgaste de certas formas, renovando-as e

associando-as a novos significados.

"Nosso Tempo" é, para muitos, o melhor poema de

Drummond. Foi escrito durante a Segunda Guerra

Mundial. No Brasil, estávamos em plena ditadura do

Estado Novo, mas o texto conserva sua atualidade

Page 54: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

54

porque mergulha na razão dos conflitos, das guerras,

do “esplêndido negócio” que “toma conta de tua alma e

dela extrai uma porcentagem”.

A autora faz também uma reflexão sobre o poema “No

meio do caminho” 14, breve texto que provocou

discussões infindáveis, tornando-se peça chave na

história do Modernismo brasileiro e alvo das zombarias

dos adversários do Movimento, e conclui que:

“Independentemente (ou não) da intenção e

consciência do poeta na época, ele assume o valor de

metáfora de seu percurso (...)”. Mostra também, que

penetrando nos mais diferentes discursos, “adquiriu

vida autônoma, transformando-se em propriedade

coletiva”. Lendo esse poema vejo o sorriso

compreensivelmente triste de Drummond.

No meio do caminho tinha uma pedra

Tinha uma pedra no meio do caminho

Tinha uma pedra

No meio do caminho tinha uma pedra.

14 publicado na Revista de Antropofagia, em 1928.

Page 55: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

55

Jamais me esquecerei desse acontecimento

Na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Jamais me esquecerei que no meio do caminho

Tinha uma pedra

Tinha uma pedra no meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra.

Li e reli esses versos. Por serem fáceis de serem

memorizados, referia-me a eles com frequência, e tanto

amei essa pedra que recebi da amiga Maria Luíza

Salomão 15o livro: Uma Pedra no Meio do Caminho -

biografia de um poema.

“Essa biografia traz ao público um vasto

registro crítico e jornalístico em torno das

discussões que conferiram a esse poema,

publicado em Alguma Poesia (1930), o

status de marco – o que Ferraz, em sua

apresentação, chama de monumento de

afirmação da poesia moderna, e o lê como

15 Maria Luíza Salomão- psicóloga, psicanalista, escritora, poetisa, membro da

Academia Francana de Letras, autora do Prefácio deste livro.

Page 56: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

56

objetivação material de uma monotonia que

“não era, portanto, do poema: era antes

resultante do acontecimento a que o poema

se referia: era a vida”. Marcelo Flores·.

Esta obra vai nos mostrando novas facetas de

Drummond: a do burocrata organizado e metódico que,

pacientemente, organizou e montou todo o material

(textos, comentários, críticas) referente ao “poeminha

da pedra”. É delicioso percorrer o caminho no meio do

qual essa pedra especial se agiganta.

Surpreendente verificar o quanto esse poema foi

criticado, “martelado”, ironizado, enxovalhado,

ridicularizado. Para um dos seus críticos, Drummond

deveria amarrar essa pedra no pescoço e pular em um

rio, para outro, alguém deveria jogá-la em sua cabeça.

O poema, sem dúvida, provocou perplexidade, furor,

apesar disso continua vivo. E bem.

Page 57: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

57

Salgueiro16 também se manifesta a respeito do poeta e

conclui:

“A força absolutamente avassaladora da

poesia de Drummond talvez venha do fato de

ser uma poesia absolutamente sedutora,

seduz porque quer compartilhar com o leitor as

pedras de que é feita”

No mesmo artigo, Salgueiro comenta o furor causado

pela publicação do poema acima citado e alinha alguns

qualificativos com os quais ele foi tachado: pilhéria,

bobagem, tolice. Outros, todavia, qualificaram-no de

estupendo, formidável, impressionante. O autor ainda

registra o testemunho de Mário de Andrade:

“O ‘ No meio do caminho’ é formidável. É o

mais forte exemplo que conheço, mais bem

16 Salgueiro, Prof. Wilberth Claython F. Doutor em Ciência da Literatura, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Federal do Espírito Santo. Texto publicado na Revista Eletrônica de Estudos Literários. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Letras, Mestrado em Estudos Literários. WWW.ufes.br/~mlb/rr=eel/artigos.

Page 58: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

58

frisado, mais psicológico de cansaço

intelectual. Acho isto formidável. Me irrita e

me ilumina. É símbolo”.

Luzia de Maria17, autora de Drummond, um olhar

amoroso, abriu alguns novos caminhos para minhas

reflexões. 8 Ela também fala sobre “No meio do

caminho” e diz:

“os leitores que ficaram chocados com o

poema não foram capazes de perceber

que o poeta havia representado, na forma

de poema, a emoção que queria sugerir

ao leitor. Ou seja, se ele tem um ritmo

enfadonho, se as repetições o tornam

monótono e se ele passa uma sensação

de desalento, era exatamente isso o que

17 Luzia de Maria. Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada, pela USP e professora da UFF.

Page 59: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

59

Drummond queria transmitir, conforme

explicação dele próprio.”

No poema “José”, Drummond revela a precariedade da

condição humana. Cada estrofe é um desfilar de

aturdimentos. O personagem, que pode ser eu, você,

qualquer um, é também uma máscara do poeta, assim

como K, assim como Robinson Crusoé. José é aquele

que resiste, e inteiro ou arrebentado, continua a viver.

É a dimensão trágica da vida humana. Quando temos a

chave, não encontramos a porta, quando queremos

morrer no mar, percebemos que ele secou. O

problema... e a solução jamais encontrada; a

impossibilidade de escolher o próprio destino, de voltar

às origens. É o drama do homem sem teogonia (fé),

sem parede para se encostar (apoio), sem cavalo que

fuja a galope (saída) e fica apenas a inércia diante dos

acontecimentos, o vazio, o nada. Não existem

alternativas. Tudo é aporia. Resta a pergunta: _ E

agora, José?

Page 60: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

60

"José" 18

E agora, José?

A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora, José? você que é sem nome, que zomba dos outros, que faz versos, que ama, protesta? E agora, José? Está sem mulher, está sem discurso,

18 In José-1942

Page 61: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

61

está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José? E agora, José, (...) Com a chave na mão

Page 62: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

62

quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora? Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse, a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse... Mas você não morre, você é duro, José!

Page 63: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

63

Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José! José, para onde?

Luzia de Maria19 fala ainda sobre o que é “ser gauche

na vida”, tema também tratado por vários estudiosos.

Entre as inúmeras estratégias utilizadas por Drummond

para obrigar o leitor a refletir estão, segundo a autora:

19 Luzia de Maria. Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada, pela USP e professora da UFF.

Page 64: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

64

“a preocupação com a palavra enquanto

significante, imagem gráfica, visual, a

incorporação, muitas vezes inesperada, da

linguagem e de traços do cotidiano, a farta

utilização de jogos fônicos, rimas internas e

a criação de imagens baseadas na falta de

lógica e na livre associação de ideias e a

combinação surpreendente de palavras.”

Continuei minhas leituras: novos autores, pesquisa na

Internet, porém, sempre fiquei mais atenta ao que as

poesias me falavam, do que às bem fundamentadas

análises dos especialistas, porque, desde o princípio,

coloquei os holofotes sobre a minha condição de

leitora, o que não me impediu de buscar formulações

mais elaboradas. Se nossos olhos não são capazes de

discernir rostos à distância, precisamos usar óculos. As

leituras que fiz, sobre Drummond, foram óculos que

usei para poder compreender melhor aspectos de sua

poesia que me fugiam.

Page 65: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

65

Francisco Achcar, 20 em Folha Explica, esta série de

livros breves que, pela linguagem acessível, alta

qualidade e preço deveria estar em toda biblioteca do

país, inclusive (ou principalmente) na das escolas,

percorre a poesia drummondiana fazendo algumas

observações que direcionaram a minha busca para a

relação entre literatura e Psicanálise. Isso se deu a

partir da análise feita por ele do sonetilho abaixo. Aqui

senti o sorriso criança do poeta.

Áporo21

Um inseto cava

Cava sem alarme

Perfurando a terra

Sem achar escape

20 Professor de língua e literatura latina (Unicamp). Coordenador da

disciplina da disciplina de Língua Portuguesa do Colégio Objetivo. É doutor

em Letras Clássicas e professor do Instituto de Estudos de Linguagem da

Unicamp.

21 In A rosa do povo- -1945

Page 66: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

66

Que fazes, exausto,

Em país bloqueado,

Enlace de noite

Raiz e minério?

Eis que o labirinto

(oh razão, mistério)

presto se desata;

em verde, sozinha, antieuclidiana,

uma orquídea forma-se.

Em sua análise, revela os três sentidos da

palavra áporo.

“o poema relata a estória de um áporo (inseto

cavador) que, num áporo (situação sem

saída, um impasse _ uma aporia), se

transforma num áporo (uma orquídea). O

texto se monta, pois, sobre um jogo de

palavras, motivo de sua inclusão entre os

“exercícios lúdicos”.

Page 67: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

67

Décio Pignatari22 fez uma análise desse poema e

chamou a atenção para o sentido etimológico de inseto,

cuja raiz, se/ sec (a mesma de secção, seccionar)

indica o fato do corpo de o inseto se dividir em seções.

Observou também que a sílaba medial de inseto- se-

aparece ao longo do poema transformando-se em ce,

es, ze, ez, ex, sempre “bloqueado” no interior dos

versos, compondo uma trilha semelhante à do inseto

em seu caminho de perfuração e no fim ele desponta

liberto (como uma orquídea na ponta do caule).

Poder-se-ia também, nesse jogo semântico, ver uma

referência ao “ES” 23 freudiano como indicação de um

corpo pulsional? Algo que vai perfurando a alma do

poeta e por fim desponta na forma de um poema? Teria

sido necessário indagar Drummond, assim como

fizeram Saussure e Freud, aos autores das obras que

analisavam, se ocorrências como essas foram

conscientes ou inconscientemente intencionais. 22 In Achcar, Francisco, Carlos Drummond de Andrade, Folha Explica, página 86.

23 ES- pronome impessoal do alemão. Traduzido para o latim como ID e para o português como ISSO.

Page 68: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

68

Após essas leituras, pude confirmar que, para

Drummond, o poeta deve ter compromisso com o

enriquecimento da língua. Para ele, fazer poesia é

“lutar com palavras”, e esta, é muito mais do que o

registro dicionarizado. Sua poesia é desconcertante,

inquietante, marcada pela consciência da “vida besta”,

da absurdidade do mundo, e mergulha nos oximoros,

única via que encontra para explicar o mundo, e assim

vai do claro enigma à magia lúcida, do esquecer para

lembrar ao menino antigo.

Drummond percorreu diferentes temas: carnaval,

futebol, guerra, bomba, tempo, medo, amor. Nada

escapou ao seu olhar. Sua luta com as palavras foi, em

parte, esta: extrair poesia do cotidiano.

No poema (ou crônica em versos) O Novo Homem

(1967) aborda o tema do bebê de proveta, e

ironicamente, fala sobre crianças escolhidas em um

catálogo. “crianças fabricadas e muito mais perfeitas do

Page 69: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

69

que no antigório.”, e termina como criança birrenta,

dizendo: “Bem feito”.

Esta “crônica em versos” foi publicada em 1967,

quando a Genética ainda engatinhava, mas já mostrava

potencialidades fantásticas, tanto para a cura de

doenças genéticas, quanto para o risco de ser utilizada

de forma irresponsável, desprezando princípios éticos.

Neste poema Drummond ironiza a ideia do ser humano

"fabricado", com bebês à la carte, escolhidos num

catálogo

O Novo Homem24

O homem será feito

em laboratório.

Será tão perfeito como no antigório.

Rirá como gente,

beberá cerveja 24 In Caminhos de João Brandão (publicado originalmente no JB,

17/12/1967)

Page 70: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

70

deliciadamente.

Caçará narceja

e bicho do mato.

(...)

mesmo sem caminho.

O homem será feito

em laboratório

muito mais perfeito

do que no antigório.

Dispensa-se amor,

ternura ou desejo.

Seja como for

(até num bocejo)

salta da retorta

um senhor garoto.

Vai abrindo a porta

com riso maroto:

«Nove meses, eu?”“.”.

Nem nove minutos.»

Quem já concebeu

melhores produtos?

(...)

Page 71: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

71

é planificado.

Nele, tudo exato,

medido, bem posto:

o justo formato,

o standard do rosto.

Duzentos modelos,

todos atraentes.

(Escolher, ao vê-los,

nossos descendentes.)

Quer um sábio? Peça.

Ministro? Encomende.

(...)

Pai: macromolécula;

mãe: tubo de ensaio,

e, per omnia secula,

livre, papagaio, sem memória e sexo,

feliz, por que não?

pois rompeu o nexo

da velha Criação,

eis que o homem feito

em laboratório

sem qualquer defeito

Page 72: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

72

como no antigório,

acabou com o Homem.

Bem feito.

Drummond foi um poeta do amor. Nos seus primeiros

livros este sentimento recebe um tratamento irônico,

porém, mais tarde, ele procura a sua essência. Para

ele, a ausência do amor é negação da vida, mas não

se trata de amor romântico ou sentimental, e sim amor

como forma de conhecimento. Ele não idealiza esse

sentimento e não acredita nele como “fatalidade

biológica a unir duas pessoas eternamente”, mas no

sentimento amoroso que se expande abrangendo todas

as criaturas.

A poesia, assim com outras formas de expressão

artística, são linguagens universais. Não existe um

porquê no amor. A elaboração conceitual e plástica

feita por Drummond nos possibilita uma orientação em

nossa viagem pelas vias do autoconhecimento.

Page 73: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

73

As Sem - Razões do Amor25

Eu te amo porque te amo.

Não precisas ser amante,

E nem sempre sabes sê-lo.

Eu te amo porque te amo.

Amor é estado de graça

E com amor não se paga.

(...)

Amor é primo da morte,

E da morte vencedor,

Por mais que o matem (e matam)

A cada instante de amor.

Outro poema em que Drummond parece ter sido

inspirado por uma voz profética é a “Lira Itabirana”,

publicada em 1984, no jornal Cometa Itabirano, onde

parece ter previsto o maior desastre ambiental do

Brasil: o rompimento das barragens da mineradora

Samarco, em Minas Gerais, onde a irresponsabilidade

desta empresa pode ter matado o Rio Doce destruindo 25 In Corpo- 1984

Page 74: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

74

vidas e esperanças. Este poema trouxe-me à

lembrança as trágicas cenas da lama invadindo as

cidades. Trouxe-me angústia e tristeza.

“Lira Itabirana” 26

I

O Rio? É doce.

A Vale? Amarga.

Ai, antes fosse

Mais leve a carga.

II

Entre estatais

E multinacionais,

Quantos ais!

III

A dívida interna

A dívida externa

A dívida eterna.

IV 26 publicada em 1984, no jornal Cometa Itabirano

Page 75: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

75

Quantas toneladas exportamos

De ferro?

Quantas lágrimas disfarçamos

Sem berro?

Cada poeta tem sua linguagem, sua visão de mundo,

seu estilo. Gostamos de um poema quando ele dá voz

àquilo que nos agita ou nos embala no íntimo de

nossas almas, mesmo não tendo consciência de que

ele fala por nós aquilo que não sabemos de nós.

Gostamos de um poema quando ele nos revela a nós

próprios, quando ele reflete a nossa imagem oculta, por

isso alguém pode se apaixonar por um poeta que cante

suas ilusões, outro, que já as sente esfaceladas, por

um poeta que as mostre assim.

Drummond era inteligente, tímido, sensível, e sua

poesia reflete tudo isso. Dizem que sua poesia é

cerebral, apesar disso, o lirismo (comedido, por certo)

impregna seus versos. A “mentação” deve ter sido a

forma encontrada por ele para estar no mundo, para

conviver com a sua lucidez.

Page 76: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

76

Mesmo em poesias como “O Caso do Vestido” ou “A

Morte do Leiteiro”, ele se recusa a qualquer forma de

apelo emocional. A história que se desenvolve no

poema, apesar da dramaticidade implícita, é contada

sem exaltação, o que, paradoxalmente, torna o texto

mais dramático.

A poesia se manifesta de múltiplas formas. Ela pode

ter ritmo, rimas, musicalidade, exprimir emoção de

forma apaixonada, ou ser dura como a de Drummond,

cuja emoção ele sufoca, lançando, às vezes, no meio

ou no fim de um verso, uma palavra que quebra a

harmonia, talvez para mostrar que na vida também é

assim, talvez para conter a emoção que ameaçava

sufocá-lo, talvez para se proteger da extrema

sensibilidade que o deixava exposto à vida pétrea.

Como um caranguejo, encolher-se dentro de sua

carapaça dura, foi a forma que ele encontrou para se

proteger.

Page 77: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

77

Dizer que o poema não prescinde do ritmo e da rima é

desconhecer que ele farfalha nos nossos espaços

interiores e ali encontra seu próprio ritmo, sua própria

emoção. Poesia é algo que nos obriga a transpor as

palavras.

Li diversos livros e centenas de artigos, comentários e

críticas sobre a obra de Drummond, na Internet, em

jornais e revistas. Creio que nenhuma de suas poesias

deixou de ser visitada, comentada e analisada. Sua

obra foi visceralmente dissecada e causou e continuará

causando perplexidade a todos que dela se

aproximem.

O Caso do vestido27 é um drama do cotidiano. Esse

poema apresenta personagens, diálogo, enredo,

estrutura teatral, gerando uma atmosfera de suspense.

Qual a terrível história que a mãe vai relatar?

27 In "Nova Reunião - 19 Livros de Poesia", José Olympio Editora - 1985.

Page 78: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

78

Nossa mãe, o que é aquele

vestido, naquele prego?

Minhas filhas é o vestido de uma

dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?

Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.

Vosso pai evém chegando.

(...)

A história vai ganhando densidade dramática,

mostrando a dor da mulher traída, sua resignação e a

lembrança constante da humilhação sofrida através da

visão diária do vestido pendurado na parede, e, por fim,

o perdão. Que sorriso amargo o de Drummond, ao

revelar esses labirintos da vida!

Na temática sociopolítica de “A Morte do Leiteiro”,

Drummond coloca, novamente, em ação, a sua fina

ironia. O leiteiro está morto, mas a propriedade, salva.

Sangue e leite - cor da aurora nessa noite sem

sorrisos. Em artigo publicado na Revista Claretiano, o

Page 79: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

79

Prof. Juscelino Pernambuco 28analisa esse poema e

nos diz que ele:

“tem como motivo primeiro a pouquidade do

valor da vida humana no contexto social. (...)”.

Precisamos de um novo olhar sobre Drummond.

Tímido ele era, sisudo, jamais. Ele era alegre,

brincalhão, e dizia: “Sou otimista, sem deixar de ser

pessimista com relação à vida.”.

Dei a este trabalho o título Drummond: o sorriso que

me sorri porque o seu sorriso me enternece e comove.

É o sorriso de um homem simples, que viveu de

maneira simples, recusou prêmios literários e não

aceitou jamais o título de poeta maior.

28 Professor e coordenador Curso de Letras-Centro Universitário

Claretiano- Professor do Programa de Mestrado em Linguística-

Universidade de Franca-SP

Page 80: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

80

Foi assim, aos poucos, que eu o descobri, e essa

descoberta foi, para mim, um processo de depuração

interior.

Page 81: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

81

A BUSCA: VIAGEM PELOS SORRISOS

Este trabalho não tem o rigor, a estrutura nem a

profundidade de um trabalho literário, e não foi feito

para apresentação a bancas acadêmicas. Foi

realizado, sim, por força de um impulso, que me levou

a colocar no papel as emoções vividas durante minhas

andanças através das poesias de Drummond. “Uma

viagem do espírito”, como disse Afonso Romano de

SantÁnna. Sinto que sou atravessada pela obra do

poeta.

A poesia de Drummond é convite à viagem; é diálogo

com a ausência; é alimentada pelo tédio, angústia,

cansaço, mas também pela presença e pela magia. É

luta com as palavras, com seus significados latentes,

potencialidade de direções e sentidos, e quando em

suas mãos, abre-se, mostra suas entranhas.

Apesar da aparente incoerência de algumas de suas

poesias, elas possuem uma lógica que pode ferir a

habitual gerando estranhamento e surpresa, mas

Page 82: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

82

sabemos que poesia se enriquece com o uso de muitos

recursos estilísticos e figuras de linguagem.

Drummond foi além, utilizando recursos acrescidos da

polivalência e do desdobramento de significações,

estabelecendo correlações inexistentes no espaço

social.

No processo de criação, o autor debruça-se sobre

seus processos inconscientes reelaborando-os, o que

o leva a questionar categorias como conflito,

identidade, tempo, constituição do sujeito,

fragmentação da consciência. As imagens usadas

pelo poeta são mediadoras da vida psíquica. As

metáforas do torto, do esquerdo, da pedra, acabam

revelando seus núcleos emocionais.

Alguns veem o poeta como um neurótico que

encontrou um canal sublimatório para suas neuroses,

mas o próprio Freud aponta o artista como sujeito que

possui perspicácia especial para o desvelamento de

elementos do inconsciente. Nesse aspecto, Drummond

talvez tenha sido insuperável. Através da mediação da

Page 83: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

83

poesia, com a sua sensibilidade e lucidez, teve acesso

ao seu mundo interior.

A sublimação, como processo compensatório, não é

suficiente para explicar a criação artística. Freud, na

sua admiração pela criatividade, reconhece que: “a

psicanálise tem de baixar as suas armas diante do

problema do escritor criativo” e valorizar a obra de arte

como aquela que “abre caminhos”. A poesia liberta a

palavra das armadilhas do subconsciente, sendo uma

captação da realidade interior e isso tem relação com o

estilo do escritor. De acordo com Robert Burton29:

“É uma grande verdade, ‘stylus virum arguit’,

ou seja, ¨nosso estilo nos trai”.

De maneira elementar, podemos citar três instâncias

do aparelho psíquico que funcionam de forma

independente: o id, correspondente à representação

29 Robert Burton in Brazil, pág 51 Brazil, Hórus Vital. Dois ensaios entre

psicanálise e literatura. Imago, RJ. , 1992.

Page 84: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

84

psíquica dos impulsos, o Ego, às funções ligadas às

relações do indivíduo com seu ambiente e o superego,

aos preceitos morais internalizados.

É no “ËS”, do alemão, traduzido por ID, do latim, e que

corresponde ao pronome demonstrativo “isso”, em

português, que repousa o segredo do estilo. Por isso o

“ID” se refere à expressão de uma originalidade por

força da revelação de conflitos que marcam a produção

artística ou literária.

A origem da palavra estilo é estilete (do latim stillus-

vareta com que se picavam os caracteres ideográficos

nas tabuinhas recobertas de cera e que serviam para

nelas se escrever) e que nos remete à ideia de ferir ou

ser ferido. Não se refere ao conteúdo, mas à forma,

não se relaciona com o que se diz, mas com a maneira

como a ideia é expressa. É por isso que a obra sabe

mais do que seu autor, e é por isso, também, que não

existe palavra inocente.

Page 85: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

85

Drummond nos faz pensar sobre a fragmentação da

consciência moderna e sobre a condição trágica do

homem e do Mundo. A emoção, no poeta, é contida e

por essa razão, espessa. Com o humor alcança o

equilíbrio entre o sentimento e a razão, zomba de si

próprio, confessa-se um “gauche”. É um espectador e

crítico do seu próprio drama existencial. Seus poemas

são espelhos nos quais nós nos reconhecemos e nos

estranhamos, nos quais o mundo se percebe,

aceitando-se ou recusando-se. A poesia é uma

abertura para nossos caminhos interiores.

Em Drummond, seus áporos (núcleos emocionais)

“cavam sem alarme perfurando a terra sem achar

escape”, até desabrocharem como orquídeas tortas ou

esquerdas, pétreas ou docemente amorosas.

Suas inquietudes aparecem na sua obra como o

reconhecimento da asfixiante massificação a que

estamos expostos, da náusea, da sujeira, da

sufocação, do sepultamento, sentimento de culpa,

obstáculo, desencontro, negação do ser, sensação de

Page 86: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

86

ser torto, de estar sempre à esquerda, mas, adverte

Cândido, o poeta tempera tais inquietudes com um

"humorismo ácido", que dissolve um pouco a dor da

existência. No poema, “O enterrado vivo”, através da

técnica da repetição, ele passa a sensação de falta de

saída, de emparedamento. Não há como ler este

poema sem sentir angústia. Parece que o ar nos falta,

cada estrofe vai nos rasgando por dentro.

O enterrado vivo30

É sempre no passado aquele orgasmo,

é sempre no presente aquele duplo,

é sempre no futuro aquele pânico.

É sempre no meu peito aquela garra.

É sempre no meu tédio aquele aceno.

É sempre no meu sono aquela guerra.

É sempre no meu trato o amplo distrato.

Sempre na minha firma a antiga fúria. 30 In Fazendeiro do Ar-1953

Page 87: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

87

Sempre no mesmo engano outro retrato.

É sempre nos meus pulos o limite.

É sempre nos meus lábios a estampilha.

É sempre no meu não aquele trauma.

Sempre no meu amor a noite rompe.

Sempre dentro de mim meu inimigo.

E sempre no meu sempre a mesma ausência.

De acordo com Affonso Romano de Sant’Anna: “longe

de ser apenas um dos seus temas, o tempo é a

coordenada a partir da qual se estrutura a sua obra”. ¨

O tempo é minha matéria.

O tempo presente,

Os homens presentes,

A vida presente.

O poeta transita pelo tempo. Volta-se para o passado

buscando conhecer-se, mas também vai para o futuro e

caminha por ele como um animal que se sabe para a

Page 88: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

88

morte, mas caminha sem tristeza porque tem

consciência de que destruição e construção fazem

parte da grande viagem.

“(...) eis que assisto a meu desmonte palmo

a palmo/ e não me aflijo.”

Drummond nos passa o sentimento do absurdo. Para

um sentimento como esse só nos resta a tentativa de

manter a lucidez e perguntar se a vida tem um sentido,

ou seria vivida melhor se nos conformássemos por ela

não o ter. Esta ideia nos angustia, e assim nos

conduzimos à procura da unidade, de significados,

enquanto isso, suportando o mundo.

Os Ombros Suportam o Mundo31

Chega um tempo em que não se diz mais: meu

Deus. Tempo de absoluta depuração.

Tempo em que não se diz mais: meu

amor. Porque o amor resultou inútil. 31 In Sentimento do Mundo-1940

Page 89: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

89

E os olhos não choram.

E as mãos tecem apenas o rude

trabalho. E o coração está seco.

(...)

O poeta expressou na sua obra o drama do homem,

vítima da guerra, da ditadura, da sociedade de massa,

do medo, da solidão, e seus poemas coincidiam com

os problemas do mundo, do tempo em que vivia (a

ameaça nuclear, a Segunda Guerra Mundial), mas,

possivelmente ele não sabia que seus versos

continuariam a coincidir com os problemas do mundo

que se seguiria: o aquecimento global, a violência, a

tecnocracia, a fragmentação da consciência, a

“coisificação” do homem.

Essa consternação, esse desalento podemos perceber

bem no poema “Eu Etiqueta”, em que o sujeito poético

se presume “coisa, coisamente”.

(...)

´Sou gravado de forma universal,

Saio da estamparia, não de casa,

Page 90: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

90

Da vitrine me tiram, recolocam,

Objeto pulsante, mas objeto

.(...)

Já não me convém o título de homem.

Meu nome novo é Coisa.

Eu sou a Coisa, coisamente.”

(...)

Existe, na poesia de Drummond, como já foi apontado

por diversos estudiosos, um projeto de reflexão sobre

tudo que o cerca e seus versos densos apontam para

um sentimento de impotência, de decepção com a vida

e consigo mesmo.

Em “A Máquina do Mundo”, identificamos um profundo

desinteresse por tudo que possa lhe acontecer, até

pelo conhecimento que lhe é oferecido. Este poema foi

escolhido como o melhor poema brasileiro de todos os

tempos por um grupo de escritores e críticos, a pedido

do caderno “MAIS” da “Folha de São Paulo

(02/01/2000)”.

Page 91: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

91

A Máquina do Mundo32

E como eu palmilhasse vagamente

uma estrada de Minas, pedregosa,

e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos

que era pausado e seco; e aves pairassem

no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo

na escuridão maior, vinda dos montes

e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu

para quem de a romper já se esquivava

e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,

sem emitir um som que fosse impuro

nem um clarão maior que o tolerável

32 In Claro Enigma-1951

Page 92: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

92

pelas pupilas gastas na inspeção

contínua e dolorosa do deserto,

e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende

a própria imagem sua debuxada

no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando

quantos sentidos e intuições restavam

a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,

se em vão e para sempre repetimos

os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,

a se aplicarem sobre o pasto inédito

da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma

ou sopro ou eco ou simples percussão

atestasse que alguém, sobre a montanha,

Page 93: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

93

a outro alguém, noturno e miserável,

em colóquio se estava dirigindo:

“O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,

mesmo afetando dar-se ou se rendendo,

e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza

sobrante a toda pérola, essa ciência

sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,

esse nexo primeiro e singular,

que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente

em que te consumiste... vê, contempla,

abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,

o que nas oficinas se elabora,

o que pensado foi e logo atinge

Page 94: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

94

distância superior ao pensamento,

os recursos da terra dominados,

e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre

ou se prolonga até nos animais

e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,

dá volta ao mundo e torna a se engolfar,

na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,

suas verdades altas mais que todos

monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene

sentimento de morte, que floresce

no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance

e me chamou para seu reino augusto,

afinal submetido à vista humana.

Page 95: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

95

Mas, como eu relutasse em responder

a tal apelo assim maravilhoso,

pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo

de ver desvanecida a treva espessa

que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas

presto e fremente não se produzissem

a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,

e como se outro ser, não mais aquele

habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade

que, já de si volúvel, se cerrava

semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;

como se um dom tardio já não fora

apetecível, antes despiciendo,

Page 96: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

96

baixei os olhos, incurioso, lasso,

desdenhando colher a coisa oferta

que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara

sobre a estrada de Minas, pedregosa,

e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,

enquanto eu, avaliando o que perdera,

seguia vagaroso, de mãos pensas.

Neste poema vejo o viajante caminhando sozinho. Na

sua solidão nega a busca existencial que antes o

atormentara. Identifica-se com a estrada pedregosa, a

tarde, o sino rouco, o céu de chumbo, as formas pretas,

a escuridão. Por fim, depara-se com a máquina do

mundo que lhe oferece a visão transcendental, a

resposta a todas as perguntas que sempre se fizera.

A máquina procura seduzi-lo, mas diante do

desinteresse do viajante torna-se categórica, usando,

Page 97: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

97

para isso, verbos no imperativo: “olha”, “repara”, “vê”, e

promete-lhe que a revelação será “riqueza”; “total

explicação da vida”; “ciência sublime e formidável”,

apesar disso o viajante baixa os olhos: “incurioso,

lasso/ desdenhando colher a coisa oferta”, porque ele

não consegue se abandonar ao imponderável.

Percebemos que o viajante, introspectivo, já renunciara

a tudo e, cansado, depois de uma procura inútil por um

conhecimento que lhe permitisse descobrir um

significado para a vida, desdenha o oferecimento da

máquina. Desdenha porque considera esse

conhecimento um “dom tardio” que não lhe interessa

mais, desdenha porque se recusa a transferir para um

objeto mágico as respostas às suas inquietações, e

porque considera que o enigma do mundo não pode

ser conhecido a não ser por uma intervenção

sobrenatural, mas seu eu lírico não lhe permite fluir na

transcendência, abrir mão da sua autonomia

intelectual, da sua racionalidade, assim, resolve

abdicar, desistir desse conhecimento, ou pelo menos

adiar a epifania.

Page 98: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

98

É um poema demolidor, pois denuncia a divergência

entre o homem e o cosmos. Ele se aproxima da

sublimidade, mas seu “anjo torto” não lhe permite o

passo definitivo, o que faz dele um atormentado. A

máquina tudo lhe apresenta e lhe oferece, mas

desprezando rituais e promessas, lança-se em um

profundo vazio.

Ele me passa, com esse poema, um sentimento de

cansaço infinito, aquele cansaço que nos torna

indiferentes a tudo pelo qual lutamos durante a vida,

pelo que nos chega tarde demais. Olho para o seu

rosto e vejo que o seu sorriso é amargamente irônico.

E triste.

Em suas errâncias, Drummond leva consigo a

angústia. Ele se movimenta entre as balizas do torto,

da ironia, do ceticismo, da solidão, do lado esquerdo do

coração (onde carrega seus mortos), da recusa ao

oferecimento da Máquina do Mundo, e enclausura o

lirismo romântico dentro da racionalidade.

Page 99: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

99

Vejo e sinto a grandeza de Drummond, e ao mesmo

tempo lamento as pedras que o feriram durante a sua

trajetória lírica. A leitura de suas poesias leva-nos a vê-

lo como um homem desiludido com o mundo, e

extremamente rigoroso na avaliação do seu trabalho.

O pessimismo impregna seus versos, principalmente

aqueles da fase representada pelas obras Claro

Enigma, Fazendeiro do Ar, Lição de Coisas, revelando

um sujeito poético desencantado. Já não acredita em

solução para os problemas do mundo. Nada tem

sentido. É o niilismo existencial como podemos ver

pelos versos:

Então, desanimamos. Adeus, tudo!

A mala pronta, o corpo desprendido.

Resta a alegria de estar só e mudo.

De que se formam nossos poemas? Onde?

Que sonho envenenado lhes responde,

Se o poeta é um ressentido, e o mais são nuvens?

Page 100: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

100

O livro, “O amor natural” 33, trouxe uma coleção de

poemas eróticos que causaram escândalo quando

vieram a público em 1992, cinco anos após a morte do

poeta. A sua lírica erótica é forte, intensa, e ele

proclama a vitória da vida contra a morte, e o desejo

sexual como libertador.

Para o sexo a expirar34

Para o sexo a expirar, eu me volto,

expirante. Raiz de minha vida, em ti

me enredo e afundo.

Amor, amor, amor - o braseiro radiante

que me dá, pelo orgasmo, a explicação do

mundo.

(...)

33 De acordo com Carlos Alberto Lima Coelho (org.) in Fragmentos da

poesia erótica e da vida de Drummond, o poeta escreveu esses poemas,

cerca de 40, publicados no livro O Amor Natural (Editora Record. 139 páginas,

1992), para sua namorada, a bibliotecária Lygia Fernandes.

34 In O Amor Natural- 1992

Page 101: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

101

O prazer que sentimos ao ler seus poemas vem do

tratamento linguístico dado aos temas, do inusitado de

suas imagens, do conteúdo extremamente lúcido do

seu discurso, dos seus anseios amoroso que inclui o

sexo, mas vai além dele, por isso seus versos não

agridem, não chocam.

Drummond assistiu às mudanças e transformações que

ocorriam no mundo: a revolução sexual dos anos 70, a

ditadura militar, a fundação de Brasília, a pílula

anticoncepcional, os Beatles, as mudanças

comportamentais dos jovens, o aumento do número de

mulheres no mercado de trabalho, e sendo um poeta

do seu tempo, registrou o que via e sentia em versos

profundos e significativos que revelaram e acentuaram

novas características da sua obra.

Apesar de haver descoberto o agridoce sabor de suas

poesias, apesar da viagem aleatória que fiz em, por,

sobre, entre seus poemas (não com a intenção de

analisá-los, pois para essa tarefa existem pessoas mais

Page 102: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

102

capacitadas), ainda estou à espera de um encontro

maior.

Como um beija-flor suguei o néctar e o fel de suas

flores poemas pétreos, sangrentos, doces, minerais,

amorosos, irônicos e foi dando “cambalhotas” no seu

riso, cheguei ao poema “Os Bens e o Sangue”. Nele, o

poeta revela que a família é a origem do seu primeiro

conflito existencial e apresenta o protagonista

movendo-se da negação para a afirmação dos laços

familiares, restabelecendo o sentido de laços de

sangue.

A figura do pai, caracterizada como poderoso, capaz de

exercer “domínio total” sobre a família e a comunidade,

é apresentada de forma ambivalente nos versos:

“Não importa: sou teu filho

com ser uma negativa

maneira de te afirmar.”

Page 103: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

103

A identificação do menino com o pai é clara no poema

abaixo, no qual a cena descrita torna-se quase visível.

Bota35

A bota enorme

rendilhada de lama, esterco e carrapicho

regressa do dia penoso no curral,

no pasto, no capoeirão.

A bota agiganta

seu portador cansado mas olímpico.

Privilégio de filho

é ser chamado a fazer força

para descalçá-la, e a força é tanta

que caio de costas com a bota nas mãos

e rio, rio de me ver enlameado.

E rio, rio de me ver enlameado.

A bota enorme, naquele momento, agigantada, revela-

nos a fragilidade do menino diante do pai, o medo

associado à admiração e amor que sentia por aquela 35 In Boitempo-1968

Page 104: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

104

figura imponente e olímpica, mas suas risadas, ao cair

de costas e se ver enlameado, têm uma função

libertadora. Num determinado momento o menino quer

negar o pai, fugir de sua influência e do seu poder, mas

não consegue. O poema nos permite observar a

relação entre pai e filho, pelos olhos da criança, e

criança nos tornamos sentindo o forte magnetismo

daquela imagem de pai-herói.

“Quisera abandonar-te, negar-te, fugir-te,

Mas curioso

Já não estás, e te sinto

Não me falas e te converso.

E tanto nos entendemos, no escuro,

No pó, no sono.”.

Outro poema que nos revela como Drummond revive o

passado está neste poema," O Beijo”. É quase um

depoimento sobre uma época: “o início do século 20

numa cidadezinha mineira chamada Itabira do Mato

Page 105: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

105

Dentro” 36. Nestes versos fica patente a severidade do

pai, e a forma como o fato ficou gravado na memória

do poeta. A cena se impõe de tal maneira que eu

quase consegui sentir o tapa em minha boca.

O BEIJO37

Mandamento: beijar a mão do Pai

às 7 da manhã, antes do café

e pedir a bênção

e tornar a pedir

na hora de dormir.

Mandamento: beijar

a mão divino-humana

que empunha a rédea universal

e determina o futuro.

Se não beijar, o dia

não há de ser o dia prometido,

a festa multimaginada,

36 http://www.algumapoesia.com.br/drummond/drummond08.htm 37 In Boitempo-1968

Page 106: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

106

mas a queda — tibum — no precipício

de jacarés e crimes

que espreita, goela escancarada.

Olha o caso de Nô.

Cresce demais, vira estudante

de altas letras, no Rio de outras normas.

Volta, não beija o Pai

na mão. A mão procura

a boca, dá-lhe um tapa,

maneira dura de beijar

o filho que não beija a mão sequiosa

de carinho, gravado

nas tábuas da lei mineira de família.

Que é isso? Nô sangra na alma,

a boca dói que dói

é lá dentro, na alma. O dia, a noite,

a fuga para onde? Foge Nô

no breu do não-saber, sem rumo, foge

de si mesmo, consigo,

e não tem saída

Page 107: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

107

a não ser voltar,

voltar sem chamado,

para junto da mão

que espera seu beijo

na mais pura exigência

de terroramor.

Olha o caso de Nô.

7 da manhã.

Antes do café.

“Os Bens e o Sangue” 38 relatam o declínio da

estrutura patriarcal em que o poeta foi criado e o

nascimento do "fazendeiro do ar". Ao final do poema há

uma reversão da maldição em bênção e finalmente os

laços de sangue tornam-se laços de amor.

O passado ressurge diversas vezes na poesia de

Drummond. Nos primeiros livros, seu olhar bumerang

vai ao passado levando um sorriso de ironia, mas,

quando retorna, traz um sorriso redenção porque ele 38 In Claro Enigma-1951

Page 108: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

108

conseguiu reinterpretar suas relações familiares com

um novo olhar, uma nova compreensão.

Marlene de Castro Correia leva-nos a perceber, através

de sua análise, a dramaticidade e tragicidade dos

poemas de Drummond concluindo que: “ele coloca a

subjetividade como dependente de uma realidade

substancial e objetiva”, no caso, a família, referindo-se

à situação de não se poder escolher ser quem se é:

“A identidade do sangue age como cadeia,

Fora melhor rompê-la”.

Procurar meus parentes na Ásia, Onde o pão

seja outro e não haja bens de família a

preservar.”

É triste pensar na identidade do sangue como

cadeia, felizmente o sujeito poético consegue

remover as farpas que lhe ficaram de uma

conflituosa relação familiar, obtendo, finalmente,

uma compreensão mais abrangente da severidade,

Page 109: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

109

que não era falta de amor, mas um amor exigente, e

restabelecendo os laços afetivos, liberta-se.

Drummond foi um homem de família. Amava sua

esposa, sua filha, seus netos, seu espaço de “luta com

as palavras” no seu escritório simples e

despretensioso. Foi ali que, em 1984, nasceu o livro

“Amar Se Aprende Amando”, onde encontramos o

comovente poema “Amor Antigo”. Estaria ele pensando

na esposa quando o escreveu? Nesse poema ele

compara o amor a uma árvore de raízes fortes, raízes

de sustentação, porém, diferente desta, o amor não

está preso ao tempo. “tanto mais velho quanto mais

amor”.

“Amor Antigo” 39

O amor antigo vive de si mesmo,

não de cultivo alheio ou de presença.

Nada exige nem pede.

39 In Amar se Aprende Amando-1985

Page 110: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

110

Nada espera, mas do destino vão nega a

sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,

feitas de sofrimento e de beleza.

Por aquelas mergulha no infinito,

e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona

aquilo que foi grande e deslumbrante, o

antigo amor, porém, nunca fenece e a

cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mais pobre de esperança.

Mais triste? Não. Ele venceu a dor,

e resplandece no seu canto obscuro,

tanto mais velho quanto mais amor.”

Mas ele também amou outra mulher: Lygia Fernandes.

E foi fiel a ambas. Foi um romance que durou trinta e

cinco anos. Conheceram-se em 1951, na Biblioteca

Nacional. Ele estava com 50 anos e ela com 25. O

poeta fala desse amor “do seu tempo de madureza”.

Page 111: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

111

São poemas repletos de perplexidade desvelando o

antagonismo entre o prazer e a dor, o momento e a

eternidade, a vida e a morte.

“QUARTO EM DESORDEM” 40

Na curva perigosa dos cinquenta derrapei

neste amor. Que dor!

(...)

Corpo, corpo, corpo

verdade tão final, sede tão vária,

e esse cavalo solto pela cama a passear o

peito e quem ama.

(...)

Diversos estudiosos da obra drummondiana, destacam

o aspecto cerebral da sua poesia e consideram que o

humor ácido e a ironia foram utilizados por ele como

uma forma de se defender do lirismo sentimental, ou

talvez, uma reação contra sua timidez, ou, quem sabe,

uma arma contra o desencanto. 40 In Fazendeiro do Ar-1953

Page 112: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

112

Da leitura de Drummond ficou em mim o sentimento do

“torto”. Uso, para expressar o que o poeta me

transmitiu, as palavras abalizadas de um estudioso de

sua obra, o já citado Prof. Wilberth Claython Salgueiro:

“(“...) Na obra de Drummond, essa torção é

um tema, menos no sentido tradicional de

assunto, do que no sentido específico da

moderna psicologia literária: um núcleo

emocional a cuja volta se organiza a

experiência poética” (p. 114-115).” (grifo

nosso).

A maioria das emoções está relacionada com os quatro

núcleos emocionais primitivos: medo, raiva, prazer e

desprazer. Esses núcleos são encontrados em todo ser

humano desde o nascimento, mas com o passar do

tempo desdobram-se e ramificam-se enriquecendo ou

enrijecendo a vida emocional. Dizem que as emoções

podem ser como o sal que tempera os fatos da vida, ou

podem se transformar em tsunamis que os destroem.

Page 113: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

113

O que pensar do poema “Isso e Aquilo”?41 Seria

apenas um jogo sonoro, uma brincadeira, uma

manipulação melódica sem sentido?

O fácil o fóssil

o míssil o físsil

a arte o infarte

o ocre o canopo

a urna o farniente

a foice o fascículo

a lex o judex

o maiô o avô

a ave o mocotó

o só o sambaqui

Sinto, em “Isso e Aquilo” o sufocamento do sujeito

poético, para o qual até a solidão se torna rija, pétrea

concreta.42

41 Do livro- Lição de coisas/1962 42 coerente com as experimentações estilísticas da época (Concretismo), Drummond, Lição de coisas/1962

Page 114: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

114

Os substantivos criam uma parede sólida, que o cerca

Coisa, coisa, coisa. Sem expressões temporais, sem

sinais de pontuação, cria vínculos inexistentes entre as

palavras, causando estranhamento e perplexidade. É

puro nominalismo. É o antilirismo.

Ao ler esse poema, lembrei-me de um texto de

Chuang Tsé, filósofo taoísta chinês do século IV

AC43.

O “isto” é também “aquilo”. O “aquilo” é

também “isto”. (…) Que o “aquilo” e o “isto”

deixem de ser opostos, eis aí a essência

mesma do Tao. Somente essa essência,

como se fosse um eixo, constitui o centro do

círculo que responde às mudanças

incessantes.·.

43 Sua filosofia influenciou o desenvolvimento do Zen Budismo, que é o

nome japonês da tradição C'han, surgida na China e associada ao budismo do ramo Mahayana.

Page 115: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

115

Os taoístas usavam paradoxos com a finalidade de

mostrar as inconsistências que derivam da

comunicação verbal. Esses paradoxos são chamados

Koans. São enigmas absurdos preparados para levar

o estudante a perceber as limitações da lógica e do

raciocínio, preparando-o, através desse processo,

para a experiência não verbal da realidade. Em

Drummond, o “Isso e Aquilo”, prepara-nos, ao

contrário, para a experiência verbal, jogando-nos na

cara a coisificação da vida humana.

Seu último livro, Farewell, foi lançado pela Editora

Record em 1996, onze anos após sua morte, no Centro

Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro e recebeu,

neste mesmo ano, o Prêmio Jabuti. Neste livro, seu

adeus discreto, Drummond nos remete à significação

da sua caminhada revisitando as paisagens do amor,

do corpo, terra, tempo, porém, agora, em íntimo diálogo

com o sofrimento. Silviano Santiago, no Posfácio desse

livro escreve:

Page 116: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

116

“A unidade que o poema de Farewell busca

extrapola os limites de uma vida humana, da

história de um clã; ela engloba tudo o que vive

e existe sobre a face do planeta.”

UNIDADE44

As plantas sofrem como nós sofremos.

Por que não sofreriam

Se esta é a chave da unidade do mundo?

A flor sofre, tocada

Por mão inconsciente.

Há uma queixa abafada

Em sua docilidade.

A pedra é sofrimento

Paralítico, eterno.

Não temos nós, animais 44 In Farewell- Editora Record- 1996

Page 117: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

117

Sequer o privilégio de sofrer.

O poeta, ao dizer: o sofrimento “é a chave da unidade

do mundo”, mostra-nos, todos e tudo, submetidos à

mesma realidade. Por que as plantas e as pedras

sofrem e nós, animais, não temos esse privilégio?

Sofremos sim (1º verso), mas descobrimos que para

viver o cotidiano sem horror precisamos da proteção

da superficialidade. Sofremos em pedaços.

Sofrer, não é privilégio do homem. As plantas, as

pedras também sofrem porque esta é a chave da

unidade do mundo. A queixa da flor é queixa do próprio

poeta quando tocado “por mão inconsciente”. Por

coerência com os demais poemas do livro podemos

sentir que essa “mão inconsciente” é a da morte que

ele sente que se aproxima.

Nos poemas desse livro, na maioria, sombrios, a morte

se esconde e se proclama em forma de ¨ “flores

Page 118: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

118

calcinadas e de horror”. Com a inquietante expressão:

“a vida é pétrea”, o poeta sintetiza sua visão de mundo.

O mercado, extraindo porcentagens de nossas almas,

nos transformou em “coisas coisamente”; Somos

etiquetas ambulantes, temos o coração seco, a alma

fragmentada, por isso não sofremos, sofrendo. O

leiteiro está morto, mas a propriedade, salva; João

ama Tereza, mas ela ama Raimundo; José está com a

chave na mão, quer abrir a porta, mas não existe porta!

“Eta vida besta, meu Deus!”.

Apesar de ter me debruçado, a princípio, apenas sobre

os seus poemas e sobre o que me transmitiam, não

posso deixar de falar sobre o homem Drummond. Quis

conhecê-lo através de qualquer fragmento de sua vida

que me chegasse às mãos, comentar o que pensei e

senti ao ler seus poemas, conhecer-me através de sua

obra, desvendar seu sorriso. Foi assim, aos poucos,

que fui encontrando e compondo uma imagem desse

homem de óculos, magricela, carrancudo, que, todavia,

adorava brincar. Na minha imaginação, é para mim, e

Page 119: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

119

não para seus netos que ele puxa a dentadura para

fora, arregala os olhos, abre os braços e diz: “-- Sou um

vampiiiiiiiiro!”

Busquei-o através de depoimentos, relatos de pessoas

que tiveram a felicidade de conhecê-lo e fui compondo

esse trabalho ao sabor do acaso.

Um trabalho de amor.

Page 120: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

120

O ENCONTRO: O SORRISO QUE ME

REDIME

Carlos Drummond de Andrade, filho de Carlos de Paula

Andrade, fazendeiro, e de D. Julieta Augusta

Drummond de Andrade, nasceu em Itabira do Mato

Dentro, Minas Gerais, em 31 de outubro de 1902.

Estudou na cidade de Belo Horizonte e com os jesuítas

no Colégio Anchieta de Nova Friburgo - RJ. Deste, foi

expulso por, segundo a justificativa da instituição,

"insubordinação mental".

Fiquei surpresa com esse termo e procurei maiores

referências a este fato. O jovem Drummond foi expulso

da escola por discordar do seu professor de Português.

Este, ao lhe entregar a redação na qual recebera uma

nota alta, comentou que ele talvez não a merecesse.

Drummond retrucou, insistindo em uma nota de acordo

com o seu merecimento. O caso foi levado ao diretor

Page 121: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

121

da escola que resolveu o problema classificando o

aluno como “mentalmente” insubordinado e

assinando a sua expulsão. Saulo de Albuquerque45

comenta este caso e diz que, por certo, o mérito estaria

“na completa subserviência moral e intelectual¨” do

aluno, que não deveria contestar o professor. E

pergunta:

“Por que aceitaria ele deixar-se premiar por

uma nota alta a que não fizesse jus?”.

Drummond formou-se em farmácia na cidade de Ouro

Preto, em 1925, mas jamais exerceu a profissão. Neste

mesmo ano casou-se com Dolores Dutra de Morais.

Em 1934, aceitando o convite de Gustavo Capanema,

Ministro de Educação e Saúde no Governo Vargas,

para exercer o cargo de Chefe de Gabinete, transferiu-

se para o Rio de Janeiro.

45 http://muitaprosa.blogspot.com/2010/05/caso-de-injustica-saulo- de-albuquerque.html

Page 122: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

122

Posteriormente passou a trabalhar no Serviço do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e se

aposentou em 1962. Desde 1954 colaborou como

cronista no Correio da Manhã, e a partir do início de

1969, no Jornal do Brasil.

Em agosto de 1987 morreu-lhe a única filha, Julieta.

Doze dias depois, com 84 anos, o poeta faleceu.

No Prefácio do livro “Farewell”, Humberto Werneck46

parece abrir uma cortina deixando-nos entrever como

era o dia a dia de Drummond. Fala-nos de seu

escritório: um espaço comum, sem nada de especial.

“a não ser o fato de que ali era o escritório

de Carlos Drummond de Andrade ou, o

ninho”.

46 jornalista e escritor. É cronista do jornal O Estado de S. Paulo e autor

de O pai dos burros e O santo sujo: a vida de Jayme Ovalle, entre outros livros.

Page 123: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

123

Podemos, com os olhos da imaginação, vê-lo no

apartamento 701 do Edifício Luiz Felipe, na Rua

Conselheiro Lafayette, em Ipanema, e ouvi-lo

dedilhando as teclas da velha Olivetti Studio cinza e

depois da Remington bege na composição de seus

poemas. Em pastas de cartolina, organizava

metodicamente seus originais antes de enviá-los à

editora.

Conta Werneck, que a certa altura da manhã ele fazia

uma pausa em sua atividade criadora para uma xícara

de café acompanhada de uma fatia de queijo-de-minas

que Dolores lhe levava. Era um avô brincalhão e era

chamado de Carlos pelos netos.

Foi nesse ambiente simples e aconchegante que ele

elaborou a sua impressionante obra, refletindo sobre a

vida, caminhando pelo tempo, depurando-se

internamente.

Page 124: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

124

De acordo com o jornalista Geneton Moraes Neto47,

que teve a felicidade de fazer uma entrevista com o

poeta (sem saber que seria a última), Drummond era

“um homem teimosamente prosaico, despido de

todo e qualquer traço de vaidade e orgulho

diante de uma obra que começou a brotar em

Itabira para o mundo em 1918, ano da

publicação de um poema chamado Prosa, num

jornalzinho que só saiu uma vez.”

Geneton afirma também que:

“Drummond considerava-se apenas o pacífico

mineiro de Itabira portador da carteira de

identidade no 803.412”. E só. Tinha uma

íntima esperança: queria ver a filha única, a

47 Dossiê Drummond, de Geneton Moraes Neto. Inclui entrevistas com

amigos de Drummond, uma entrevista com Lygia Fernandes,

namorada do itabirano durante quase trinta anos, e a última entrevista

do poeta.

Page 125: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

125

escritora Maria Julieta, recuperada da

doença. (...) Os azares de agosto desabaram

sobre os ombros frágeis do poeta. (...) O

câncer ósseo levou Maria Julieta. E tirou do

poeta a vontade de viver. (...) A imagem do

Drummond cambaleante nas alamedas do

cemitério no enterro da filha única era um

48mau presságio.”

Nesta entrevista, que transcrevemos em parte, ele vai

falando sobre vários temas já abordados em suas

poesias.

Com relação a:

Sua VIDA- “Minha vida”? Acho que foi pouco

interessante. O que é que eu fui? Fui um burocrata, um

jornalista burocratizado. Não tive nenhum lance

importante na minha vida. Nunca exerci um cargo que

me permitisse tomar uma grande decisão política ou

social ou econômica. Nunca nenhum destino ficou

Page 126: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

126

dependendo da minha vida ou do meu comportamento

ou da minha atitude. (...)Eu me considero - e sou

realmente - um homem comum. Não dirijo nenhuma

empresa pública ou privada. A sorte dos trabalhadores

não depende de mim”.

Seu PAÍS- “Eu lamento que haja pouco consumo de

livro no Brasil. Mas aí é um problema muito mais

grave. É o problema da deseducação, o problema da

pobreza - e, portanto, o da falta de nutrição e da falta

de saúde. Antes de um escritor se lamentar porque

não é lido como são lidos os escritores americanos

ou europeus, ele deve se lamentar de pertencer a

um país em que há tanta miséria e tanta injustiça

social”.

A SOLIDÃO- (...) a solidão em si é muito relativa.

Uma pessoa que tem hábitos intelectuais ou

artísticos, uma pessoa que gosta de música, uma

pessoa que gosta de ler nunca está sozinha. “Ela

terá sempre uma companhia: a companhia imensa

de todos os artistas, todos os escritores que ela

ama, ao longo dos séculos”.

Page 127: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

127

A POESIA- “Não lamento, na minha carreira

intelectual, nada que tenha deixado de fazer”. Não

fiz muita coisa. Não fiz nada organizado. Não tive um

projeto de vida literária. As coisas foram

acontecendo ao sabor da inspiração e do acaso.

Não houve nenhuma programação. Não tendo tido

nenhuma ambição literária, fui mais poeta pelo

desejo e pela necessidade de exprimir sensações e

emoções que me perturbavam o espírito e me

causavam angústia. Fiz da minha poesia um sofá de

analista. É esta a minha definição do meu fazer

poético. Não tive a pretensão de ganhar prêmios ou

de brilhar pela poesia ou de me comparar com meus

colegas poetas. Pelo contrário. Sempre admirei

muito os poetas que se afinavam comigo. Mas

jamais tive a tentação de me incluir entre eles como

um dos tais famosos. Não tive nada a me lamentar.

Também não tenho nada do que me gabar. De

maneira nenhuma. Minha poesia é cheia de

imperfeições. Se eu fosse crítico, apontaria muitos

defeitos. Não vou apontar. Deixo para os outros.

Page 128: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

128

Minha obra é pública. Mas eu acho que chega. Não

quero inundar o mundo com minha poesia. “Seria

uma pretensão exagerada”.

Essa entrevista é um presente de Geneton a todos que

amam Drummond. Um Drummond de sorriso franco e

generoso que na sua simplicidade diz: “_ eu me

considero, e sou realmente, um homem comum.”.

Não resisto à tentação de incluir, neste trabalho, pelo

menos algumas das muitas e muitas opiniões de

grandes expoentes de nossas letras a respeito do

poeta49.

Adélia Prado - "A influência que Drummond teve em

minha poesia foi toda. Foi lendo Drummond que

descobri meu caminho pessoal de expressão”.··.

49 www.. tirodeletra.com. br/relaçoes/carlosdrummonddeandrade

Page 129: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

129

Ferreira Gullar -"Com Drummond, estive duas ou

três vezes... Ele é um dos maiores poetas da língua

portuguesa”.

João Cabral de Melo Neto -"O grande poeta

brasileiro, não de agora, mas de qualquer época, é

Carlos Drummond de Andrade. Foi ele quem me

convenceu, com Alguma poesia, de que eu também

poderia ser poeta". 50

João Gilberto Noll -“A obra do Drummond nos

conecta a percepções do mundo mais ricas. O

Drummond é um escritor mineral, que tem uma

virilidade de linguagem que me impressiona muito” ·.

Manuel Bandeira - “O Drummond é o maior poeta

que o Brasil já deu e reconheço sua superioridade

sobre mim. De nós dois, o poeta moderno, o que

50 Secchin, Antônio Carlos. João Cabral: a poesia de menos. SP.

Topbooks?UMC. 1999

Page 130: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

130

captou a complexidade do momento presente e a

transmite como ninguém é o Carlos". 51

Drummond, em seus poemas, chegou a falar sobre sua

morte: "caio verticalmente e me transformo em notícia".

Ele caiu, sim, fulminado pelo amor que sentia pela filha.

Eles se amavam. Em 1979, quando ainda vivia em

Buenos Aires, na Argentina, com os três filhos, Maria

Julieta descobriu o câncer. Para tranquilizar o pai, ela

lhe telefonava duas vezes por dia e mandava cartas

semanalmente, sempre dizendo que estava bem, e o

pai fingia acreditar.

No dia 17 de agosto de 1987, doze dias após o

falecimento de sua filha, o silêncio do poeta caiu sobre

o mundo e esse silêncio pesou e pesa, ainda, sobre o

coração de todos que o conheceram, quer

pessoalmente, quer através de sua obra.

Procurei Drummond através do olhar de diversos

estudiosos e através de suas próprias palavras e sinto 51 Bloch Pedro. Pedro Bloch entrevista. RJ. Bloch Editores, 1989

Page 131: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

131

que ainda não o toquei. Ele não é um, são vários e

amoroso, brincalhão, irônico, às vezes frio e seco,

joga-nos na cara um mundo absurdo no qual a sua voz

ressoa e ressoará em tons menores enquanto houver

bombas e Josés, enquanto houver vida besta e pedras

nos caminhos.

Drummond é desconcertante (um eu todo retorcido);

transita pelo tempo, Interroga a família sem

sentimentalismo, e sua relação com a terra natal é dura

(“Itabira é apenas uma foto na parede/ mas como dói!).

Nele, o amor foi uma forma dolorosa de conhecimento

de si próprio e dos outros, e sua vida, uma questão de

inadaptação.

O poeta fez “malabarismos” com as palavras, lutou com

elas, realizou exercícios lúdicos, fez poemas-piada,

zombou de si próprio, jogou, brincou, escondendo sob

a aparente inocência de um verso complexas reflexões

sobre a vida, a morte, o tempo, o medo, o momento

presente. Rastreou as bases sociais da existência

Page 132: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

132

humana, apoderou-se da apólice do seu tempo e nos

mostrou que somos Josés, situados, datados,

substantivos concretos concretados na gramática da

existência.

Cada poema de Drummond nos remete a um encontro

com nossas verdades e mentiras, com nossas

angústias, medos, inquietações, mas não nos agride,

ao contrário, através do humor, da ironia, do sorriso às

vezes torto, ele nos revela ao mundo e este, a nós.

Depois desse mergulho na obra de Drummond, depois

de ler o que vários estudiosos disseram a seu respeito,

depois de viver, sofrer, navegar, escorregar para dentro

de cada poema, posso dizer que me sinto, agora, mais

próxima desse grande desbravador da alma humana

cuja história é mais bonita do que a de Robinson

Crusoé.

Eu o encontrei (e isso me deixou comovida como o

diabo) no homem que passa na rua, em Chaplin, em

José, no amor, num quarto em desordem, em Greta

Page 133: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

133

Garbo, nas pedras calcinadas, em Itabira, na rosa do

povo, mas, sobretudo, em seu sorriso terno, irônico,

triste, “gauche”, esquerdo.

Com Drummond, passei minha vida a limpo porque eu

o encontrei nas pedras de que sou feita.

Vivi uma aventura. Acompanhei-o em suas viagens

interiores, descobri, através dele “a grande dor das

cousas que passaram”, vi o passado como um casarão

vazio repleto das "vozes queridas que silenciaram”, e

percebi os paradoxos: liberdade/prisão como a súmula

da condição humana.

O pássaro é livre

Na prisão do ar

O espírito é livre

Na prisão do corpo

Mas livre, bem livre,

É mesmo estar morto.

Page 134: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

134

Descobri que “pouco importa venha a velhice, que é a

velhice? / Teus ombros suportam o mundo/ e ele não

pesa mais do que a mão de uma criança”, e lutei com

as palavras para escrever um texto que mostrasse a

admiração que eu sinto pelo grande poeta, esse, que

Vive dando cabeçada. Navegou mares errados, perdeu

tudo que não tinha, amou a mulher difícil,

ama torto cada vez

e ama sempre, desfalcado,

com o punhal atravessado

na garganta ensandecida.

Este, o triste cavaleiro

de tristíssima figura.i

Esse, que teve sobre o berço um anjo torto que o

condenou a ser um desajeitado pela vida afora.

Esse, que disse:

Se procurar bem você acaba encontrando.

Não a explicação (duvidosa) da vida,

Mas a poesia (inexplicável) da vida.

Page 135: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

135

Nesse momento de superação, de transcendência,

Drummond se agiganta, mas na sua simplicidade, ele

diz:

“Sou apenas um homem

um homem pequenino à beira de um rio

Vejo as águas que passam e não as compreendo...

“Sou apenas o sorriso na face de um homem

calado.”

E foi nesse sorriso que eu o encontrei

Page 136: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

136

BIBLIOGRAFIA DE DRUMMOND

A bibliografia abaixo apresentada é referente às

edições brasileiras da obra de Drummond. Está

disposta conforme publicada no livro O amor natural

(Editora Record, 1992)

POESIA

1930 - Alguma poesia

1934 - Brejo das almas

1940 - Sentimento do mundo

1942 - José

1945 - A rosa do povo

1948 - Novos poemas

1951 - A mesa

1951 - Claro enigma

1952 - Viola de bolso

1954 - Fazendeiro do ar

1955 - Soneto da buquinagem

1957 - Ciclo

1959 - A vida passada a limpo

Page 137: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

137

1962 - Lição de coisas

1964 - Viola de bolso II

1967 - Versiprosa

1967 - José & outros

1968 - Boitempo & A falta que ama

1968 - Nudez

1969 - Reunião

1973 - As impurezas do branco

1973 - Menino antigo (Boitempo II)

1977 - A visita

1978 - O marginal Clorindo Gato

1979 - Esquecer para lembrar (Boitempo III)

1980 - A paixão medida

1983 - Nova reunião

1984 - Corpo

1985 - Amar se aprende amando

1986 - Tempo vida poesia

1988 - Poesia errante

1996 - Farewell

Antologias poéticas

Page 138: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

138

1956 - 50 poemas escolhidos pelo autor

1962 - Antologia poética

1971 - Seleta em prosa e verso

1975 - Amor, amores

1982 - Carmina Drummondiana

1987 - Boitempo I e Boitempo II

Infantis

1983 - O elefante

1985 - História de dois amores

Edições de poesia reunida

1942 - Poesias

1948 - Poesia até agora

1954 - Fazendeiro do ar & Poesia até agora

1959 - Poemas

1969 - Reunião

1983 - Nova reunião

1997 - Coleção Verso na Prosa Prosa no Verso

1997 - Coleção Mineiramente Drummond - A palavra

mágica

PROSA

1944 - Confissões de Minas

1945 - O gerente

Page 139: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

139

1951 - Contos de aprendiz

1952 - Passeios na ilha

1957 - Fala, amendoeiro

1962 - A bolsa & a vida

1966 - Cadeira de balanço

1970 - Caminhos de João Brandão

1972 - O poder ultrajovem e mais 79 textos em prosa e

verso

1974 - De notícias & não-notícias faz-se a

crônica 1977 - Os dias lindos

1978 - 70 historinhas

1981 - Contos plausíveis

1984 - Boca de luar

1985 - O observador no escritório

1987 - Moça deitada na grama

1988 - O avesso das coisas

1989 - Auto-retrato e outras crônicas

CONJUNTO DE OBRA

1964 - Obra completa

ANTOLOGIAS DIVERSAS

1965 - Rio de Janeiro em prosa & verso (em

colaboração com Manuel Bandeira)

Page 140: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

140

1966 - Andorinha, andorinha, de Manuel Bandeira

1967 - Uma pedra no meio do caminho (Biografia de

um poema. Com estudo de Arnaldo Saraiva)

1967 - Minas Gerais

ANTOLOGIAS DIVERSAS

1962 - Quadrante

1963 - Quadrante II

1965 - Vozes da cidade

1971 - Elenco de cronistas modernos

1972 - Don Quixote

1977 - Para gostar de ler

1979 - O melhor da poesia brasileira I

1981 - O pipoqueiro da esquina

1982 - A lição do amigo

1984 - Quatro vozes

1984 - Mata Atlântica

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Prosa e poesia. 8.

ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.

Page 141: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

141

___________________________ O amor natural.

Ilustrações de Milton Dacosta. 3. ed. Rio de Janeiro:

Record, 1993.

___________________________ Uma pedra no meio

do caminho- biografia de um poema. Edição ampliada,

organizada por Eucanaã Ferraz, Instituto Moreira

Salles

_____________________________Antologia Poética

(organizada pelo autor) 65º edição, Editora Record, RJ,

2010.

ACHAR, FRANCISCO, Carlos Drummond de Andrade,

Folha Explica, Publifolha, SP. 2000.

CORREIA, MARLENE DE CASTRO, Drummond, A

Magia Lúcida, Zahar, RJ, 2002

SANTANA, AFFONSO ROMANO DE, Drummond, o

gauche no tempo, Record, RJ, 1992.

BAKHTIN, MIKHAIL, Estética da Criação Verbal,

Martins Fontes, SP, 1997.

VYGOTSKY. L. S. A formação social da mente. Martins

Fontes, SP, 1991.

Page 142: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

142

___________ Pensamento e linguagem. Martins

Fontes, SP, 1991.

BRENNER, CHARLES. Noções básicas de psicanálise.

Imago. RJ. 1973.

Brazil, Hórus Vital. Dois ensaios entre psicanálise e

literatura. Imago, RJ. , 1992.

Pellanda, Nize Maria C. e Pellanda, Luiz Ernesto

Cabral. Psicanálise hoje, uma revolução do olhar.

Vozes, RJ, 1996. Kon, Noemi Moritz. De Poe a Freud_

O Gato Preto in Bartucci, Giovanna (org.), Imago, RJ,

2001.

Bartucci, Giovanna (org.). Psicanálise, Literatura e

Estéticas de Subjetivação. Imago. RJ, 2001.

Salgueiro, Wilberth Claython F. AREEL- Revista

Eletrônica de Estudos Literários- Publicação do

Programa de Pós Graduação em Letras- Mestrado em

Estudos Literários- RJ. Universidade Federal do Rio de

Janeiro

Gonçalves, Aguinaldo José- A arquitetura do silêncio.

Texto disponibilizado na revista USP, nº 53, site

Page 143: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

143

www.usp.br BARBOSA, Rita de Cássia. Poemas

eróticos de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo:

Ática, 1987. (Col. Princípios, v. 110).

MORAES, Emanuel de. As várias faces de uma poesia.

In: ANDRADE, Carlos

SANT’ANNA, Affonso Romano de. Carlos Drummond

de Andrade: análise da obra. 3. ed. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira, 1980.

_____. O erotismo nos deixa gauche? In: ANDRADE,

Carlos Drummond de. O amor natural. Ilustrações de

Milton Dacosta. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1993. p.

77-84.

CARDOSO, Zélia Ladeira Veras de Almeida.

“Prefácio”. In: OVÍDIO. Arte de Amar. Tradução de

Natália Correia e David Mourão-Ferreira, com

ilustrações de Luís Alves da Costa e apêndice com a

tradução erudita de Antônio Feliciano Castilho. São

Paulo: Ars Poética, 1992, p. 7

Page 144: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

144

SANT’ANNA, Affonso Romano de. “O erotismo nos

deixa gauche?”. In ANDRADE, Carlos Drummond de.

O amor natural. Ilustrações de Milton Dacosta. 3. ed.

Rio de Janeiro: Record, 1993, p. 77-84.

Page 145: DRUMMOND · com a criança, o seu brinquedo preferido. Recordo-me de uma historieta em que um limpa-chaminé caía do ... como acadêmica, mas “ao acaso,

145