UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
CENTRO DE EDUCAÇÃO, FILOSOFIA E TEOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Adonias Clemente dos Santos
DOM SEBASTIÃO, PADRE VIEIRA E ANTÔNIO CONSELHEIRO –
SOMBRAS E LUZES DE UM MESSIANISMO LUSO-BRASILEIRO
São Paulo
2019
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
CENTRO DE EDUCAÇÃO, FILOSOFIA E TEOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA
RELIGIÃO
Adonias Clemente dos Santos
DOM SEBASTIÃO, PADRE VIEIRA E ANTÔNIO CONSELHEIRO –
SOMBRAS E LUZES DE UM MESSIANISMO LUSO-BRASILEIRO
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Ciências da
Religião da Universidade Presbiteriana
Mackenzie, como requisito parcial, para
obtenção do título de Mestre em
Ciências da Religião.
Orientador: Prof. Dr. Cristiano Camilo
Lopes
São Paulo
2019
Bibliotecário Responsável: Eliezer Lírio dos Santos – CRB/8 6779
S237d Santos, Adonias Clemente dos Dom Sebastião, Padre Vieira e Antônio Conselheiro: sombras e luzes de um messianismo luso brasileiro / Adonias Clemente dos Santos– 2019. 78 f.; 30 cm Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2019. Orientador: Prof. Dr. Cristiano Camilo Lopes Bibliografia: f. 76-77
1. Religião 2. Legitimação 3. Política I. Vieira, Antônio (Padre) II. Conselheiro, Antonio III. Sebastião (Rei de Portugal) I. Moraes, Gerson Leite de, orientador II. Título LC BL500
Dedico este trabalho a minha esposa Norma, aos meus pais, filhos, netos, irmãos e amigos, companheiros leais que colaboraram para a concretização de mais um passo na minha caminhada acadêmica.
AGRADECIMENTOS
Neste momento em que chegamos ao final do trabalho, somos
conscientes de que nada se concretiza de forma solitária. Por isso quero
agradecer em primeiro lugar ao Deus dos Céus que, na sua misericórdia
infinita, propiciou a este servo, a grande oportunidade de estudar nesta
Universidade de conceito irreparável.
Agradeço também ao Dr. Cristiano Camilo Lopes, meu insigne
orientador, pelo seu companheirismo e paciência, fornecendo-me o apoio e
direcionamento necessário para a conclusão do trabalho.
Agradeço ainda ao Dr. Gerson Leite de Moraes por suas aulas
magistrais, bem como pelas indicações de literatura tão uteis para a pesquisa.
Não posso deixar de agradecer, aos Drs. Hermisten Maia Pereira da
Costa e Wilson Santana que me despertaram para assunto tão palpitante, no
início da caminhada.
Agradecido sou, a todos os colegas do curso, que de alguma forma
me ajudaram com conhecimento e companheirismo.
Meu muito obrigado a todos os mestres que ministraram aulas tão
inspiradoras ao longo da preparação.
Aos meus pais, Abias e Erenita, o meu muito obrigado. Este
agradecimento eu estendo aos meus irmãos, esposa, filhos, netos e amigos.
RESUMO
A presente pesquisa tem por objetivo discutir aspectos políticos e históricos protagonizados por pessoas importantes, como um dos reis de Portugal de nome Sebastião, um padre que era um político sagaz de nome Antônio Vieira e Antônio Conselheiro, que era líder religioso e questionador político. Observar-se-á as ações desses homens nas suas áreas percebendo que legitimavam suas intenções e ações pela religião. Desta forma deve-se observar que a religião é, ao longo da história, grande legitimadora para as ações humanas. Observa-se que os atores humanos procuram legitimar e explicar suas ações das mais diversas formas. Validado pela religião, o homem vai à guerra e mata, mas não somente mata, pois também morre. Em nome da religião o homem muda sua perspectiva teológica e seu discurso para se moldar à política vigente. Em nome dela um líder errante enfrenta um exército poderoso não apenas para corrigir injustiças, mas também por causa de sua insatisfação com o regime político.
Palavras-chave: Religião, Legitimação, Berger, Sebastião, Vieira, Conselheiro, Política.
Abstract
This paper the objective to discuss political and historical aspects carried out by important people, such as one of the kings of Portugal named Sebastião, a priest who was a politician sagaz by the name of Antônio Vieira and Antônio Conselheiro, who was a religious leader and political questioner. The actions of these men in their areas will be observed realizing that they legitimized their intentions and actions by the religion. In this way, it should be noted that religion is, throughout history, a great legitimator for human actions. It is observed that human actors seek to legitimize and explain their actions in the most diverse ways. Validated by religion, man goes to war and kills, but not only does he kill, for he also dies. In the name of religion man changes his theological perspective and his discourse to conform to current politics. In her name a wandering leader faces a powerful army not only to correct injustices but also because of her dissatisfaction with the political regime.
Keywords: Religion, Legitimation, Berger, Sebastião, Vieira, Conselheiro.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................................8
CAPÍTULO 1- RELIGIÃO, CONSTRUÇÃO E MANUTENÇÃO DO MUNDO E O PROBLEMA DA TEODICÉIA E BERGER, WEBER E DURKHEIM ...........................10
CAPÍTULO 2 – DOM SEBASTÃO, DE DESEJADO A ENCOBERO, O NASCIMENTO DE UMA LENDA...........................................................................................................32
CAPÍTULO 3 – VIEIRA E CONSELHEIRO, INTERPRETES DE UMA LENDA...........50
3.1 PADRE ANTÔNIO VIEIRA.............................................................................. .......50
3.2 ANTÔNIO CONSELHEIRO.....................................................................................60
CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................74 REFERÊNCIAS.............................................................................................................76
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INTRODUÇÃO
Abordar o messianismo é tarefa difícil, porém apaixonante. Para
subsidiar o presente trabalho iniciamos com a abordagem sociológica da
religião. Observar-se-á, no primeiro capítulo, Peter Berger e outros sociólogos
de escol, dando sustentação teórica para as hipóteses levantadas na pesquisa.
Tal teoria é importante para vermos como a religião é utilizada nos diversos
aspectos da sociedade. Quando falamos de messianismo, é mister
reconhecermos que ao longo da história ele foi alvo das mais diversas
interpretações. No Antigo Testamento ele apontava para um rei militar que
libertaria o povo judeu.
Os termos “messias” e “messianismo”, o qualitativo messiânico” pertencem à linguagem corrente que os definiu de acordo com os relatos bíblicos. A concepção popular de messias deriva das palavras de Isaías: “O povo que andava em trevas viu grande luz; os que moravam em terra de sombras da morte, a luz resplandeceu sobre eles. Porque um menino nos nasceu, nos foi dado um filho; traz o governo em seus ombros. Seu nome será Conselheiro admirável, herói de Deus, Padre Eterno, Príncipe da Paz, nascido para restabelecê-la e afirmá-la através do direito e da justiça, desde agora para sempre”. (QUEIROZ, 2003, p. 25).
No Novo Testamento aponta-se para um servo sofredor que já veio,
pagou pelos pecados dos seus filhos, morrendo na cruz do Calvário, que
ressuscitou no terceiro dia, foi assunto aos céus e um dia voltará, na condição
de rei, para salvar o seu povo de forma definitiva. É importante perceber que o
messianismo tem origem, não é um fenômeno que surgiu do nada. Diz Rodrigo
Franklin de Sousa:
As idéias messiânicas, de configurações diversas ao longo dos tempos, e que chegam ao Brasil por intermédio notadamente do pensamento de Bandarra e do sebastianismo, gerando movimentos messiânico–milenaristas como o de Canudos e o Contestado, têm origens que remontam ao antigo Oriente Próximo e adquirem seus contornos determinantes no judaísmo primitivo. O messianismo ocupou um papel de grande importância no desenvolvimento do judaísmo antigo e na formação de suas ramificações e grupos distintos, dentre os quais se encontram os primeiros cristãos. O estudo do fenômeno nesse contexto constitui uma das formas mais significativas de se compreender o Judaísmo e o Cristianismo da antiguidade, e lança bases para a compreensão das concepções messiânicas subsequentes, inclusive das que viriam a se desenvolver no Brasil (SOUSA,2010, p.9).
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Com o passar do tempo, novas leituras foram feitas do fenômeno. O
conceito desde cedo serviu a um trabalho classificatório que visava a separar
messias verdadeiros de falsos messias:
Discussões teológicas tiveram como resultado refinar o conceito, dando-lhe sua forma definitiva, mas sempre dentro da religião judaica: o messias é o personagem concebido como um guia divino que deve levar o povo eleito ao desenlace natural do desenrolar da história, isto é, à humilhação dos inimigos e ao restabelecimento de um reino terreno e glorioso para Israel. A vinda deste reino coincidirá com o “fim dos tempos” e significará o restabelecimento do Paraíso na terra. (QUEIROZ, 2003, p. 26).
Com o desenvolvimento da História Comparada das Religiões, de
forma paulatina, o conceito teológico, tornou-se em conceito histórico, com
lampejos sociológicos, “passando a designar uma categoria específica de
líderes religiosos, com caracteres bem definidos, que teriam existido lendária
ou realmente no passado”. (QUEIROZ, 2003, p. 26).
É nesta perspectiva sociológica que se lida com o fenômeno na
pesquisa, procurando mostrar como lideres, messiânicos, não teológicos, mas
sociológicos e seus seguidores, utilizaram a religião para legitimar suas ações.
A palavra ação é importante aqui:
Justamente porque contém ideias muito definidas de como sanar as imperfeições, o messianismo não é crença passiva e inerte de resignação e conformismo; apontando para a possibilidade de um futuro melhor, pode levar – e em certas circunstâncias leva – os homens a se congregarem para conseguir, por meio da ação, os benefícios que almejam. O messias só merece este título na medida em que uma coletividade diligente o reconhece como líder. (QUEIROZ, 2003, p. 37).
No segundo capítulo aborda-se a figura de D. Sebastião e o contexto
em que nasceu e viveu, para que após o seu desaparecimento surgisse o
Sebastianismo.
No terceiro capítulo, as figuras do Padre Viera e de Antônio
Conselheiro são abordadas em seus respectivos contextos.
Ainda à guisa de introdução, cabe salientar que o objetivo é mostrar a
religião como importante legitimadora ou fonte de explicação e adequação das
ações humanas.
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Capítulo 1
RELIGIÃO, CONSTRUÇÃO E MANUTENÇÃO DO MUNDO E O PROBLEMA DA TEODICÉIA EM BERGER, WEBER E DURKHEIM
Neste primeiro capítulo observa-se a teoria que mostra a religião e a
construção do mundo, onde Berger, baseado em Weber e Durkheim, dentre
outros, defende que “toda sociedade humana é um empreendimento de
construção do mundo”, apontando o lugar de destaque da religião. (BERGER,
1985, p. 17). Observar-se-á também, a religião como legitimadora de diversos
aspectos sociais. Por fim verificar-se-á o problema da teodiceia1.
Na visão deste pesquisador, a teoria nos ajuda na definição mais
precisa das coisas. Sabe-se no meio acadêmico o quanto definir é importante
para não cair no vazio da simples elucubração filosófica. Será utilizado para
esse primeiro capítulo a teoria de Berger descrita no seu livro o Dossel
Sagrado, dentre outras obras de Weber e Durkheim, observando que os
referidos autores trabalharam estritamente no âmbito do quadro de referência
da teoria sociológica. Nessa perspectiva a teoria servirá de suporte para
hipóteses que serão analisadas na sequência do trabalho.
É importante, neste momento, definir-se o que é religião na
perspectiva sociológica. Para isso recorre-se a Durkheim:
Quando um certo número de coisas sagradas mantém entre si relações de coordenação e de subordinação, de maneira a formar um sistema dotado de uma certa unidade, mas que não participa ele próprio de nenhum outro sistema do mesmo gênero, o conjunto das crenças e dos ritos correspondentes constitui uma religião. (DURKHEIM, 1996, p.24).
1. Conjunto de argumentos que, em face da presença do mal no mundo, procuram defender e justificar a crença na onipotência e suprema bondade do Deus criador, contra aqueles que, em vista de tal dificuldade, duvidam de sua existência ou perfeição.
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Observa-se uma definição cientifica do ponto de vista sociológico,
pois todas as religiões pertencem a um mesmo gênero, por isso podem ser
comparadas, já que aspectos condutores, por mais diferentes que sejam, no
final, as caracterizam como religião. Mas Durkheim se aprofunda mais na
definição quando diz que:
Uma religião é um sistema solidário de crenças e práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e práticas que reúnem numa mesma comunidade moral chamada igreja, todos aqueles que a elas aderem. (DURKHEIM, 1996, p.32).
Falando de religião Carl Marx diz que:
(...) o homem faz a religião, a religião não faz o homem. E a religião é de fato a autoconsciência e o auto sentimento do homem, que ou ainda não conquistou a si mesmo ou já se perdeu novamente. (MARX, 2010, l.2052).
Marx era um crítico contundente da religião. Disse ele que “(...) A
religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração,
assim como o espírito de estados de coisas embrutecidos. Ela é o ópio do
povo”. (MARX, 2010, l.2056). A religião para ele é ilusão. Isso vai em direção
diametralmente oposta à visão de Durkheim que fala da religião como algo real
e não como ilusão. Ele diz que “é um postulado essencial da sociologia que
uma instituição humana não pode repousar sobre o erro e a mentira, caso
contrário não pode durar. (DURKHEIM, 1996, p.VI)”.
Durkheim afirma ainda que:
É inadmissível, com efeito, que sistemas de ideias como as religiões, que ocuparam na história um lugar tão considerável, nos quais os povos de todas as épocas vieram buscar a energia necessária para viver, sejam apenas tecidos de ilusões. (DURKHEIM, 1996, p.59).
A religião não é uma ilusão e nem um amontoado de crendices, diz
Durkheim que:
[...] a ciência nega a religião em princípio. Mas a religião existe, é um sistema de fatos dados; em uma palavra, é uma realidade. Como poderia a ciência negar uma realidade? (DURKHEIM, 1996, p.476).
Segundo Weber a religião se destina desde bem cedo “ao conjunto
dos necessitados de salvação”. (WEBER, 2015, p.15). diz ele que:
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Em povos subjugados pela opressão política, como os judeus, a qualificação de “salvador” foi aplicada originalmente aos salvadores dos infortúnios políticos, tal como apresentavam-se os heróis lendários (Gideão, Jetfé). Essas lendas deram lugar às promessas “messiânicas”. Nesses povos ocorreu que o objeto da esperança de redenção religiosa deixou de ser o sofrimento de um indivíduo para converter-se no sofrimento da comunidade do povo. A regra era que o salvador adquirisse um sentido individual e universal, ao mesmo tempo em que predispunha-se a salvar ao indivíduo e a todo indivíduo que recorresse a ele. (WEBER, 2015, p.16).
Já vimos que a religião se destina ao conjunto dos necessitados de
salvação e “(...) o objetivo racional da religião de salvação consiste em
assegurar um estado sagrado para os salvos e, com isso, um hábito que
assegure a salvação”. (WEBER, 2015, p.54).
Defende-se, portanto, que a religião não é um ajuntamento de
crendices, e nem uma ilusão. De forma direta e resumida viu-se a visão de
Weber e Durkheim sobre religião. A partir deste momento, a atenção estará
direcionada ao modo como Peter Berger aborda o assunto sob o viés do
processo dialético da sociedade.
A exteriorização é a ação continua do ser humano sobre o mundo.
Objetivação “é a conquista por parte dos produtos dessa atividade de uma
realidade que se defronta com os seus produtores originais como facticidade
exterior distinta deles”. (BERGER, 1985, p. 19). Já a interiorização é quando o
homem reapropria-se “dessa mesma realidade por parte dos homens”,
transportando-as do mundo objetivo para a consciência subjetiva. (BERGER,
1985, p. 19).
Diz Berger que:
É através da exteriorização que a sociedade é um produto humano. É através da objetivação que a sociedade se torna uma realidade sui generis. É através da interiorização que o homem é um produto da sociedade. A exteriorização é uma necessidade antropológica. O homem, como o conhecemos empiricamente, não pode ser concebido independentemente da contínua efusão de si mesmo sobre o mundo em que ele se encontra. O ser humano não pode ser concebido como algo isolado em si mesmo, numa esfera fechada de interioridade, partindo em seguida para se exprimir no mundo que o rodeia. O ser humano é exteriorizante por essência e desde o início. Esse fato antropológico de raiz com muita probabilidade se funda na constituição biológica do homem. O homo sapiens ocupa uma posição peculiar no reino animal. Essa
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peculiaridade se manifesta na relação do homem com seu próprio corpo e com o mundo. À diferença dos outros mamíferos superiores, que nascem com um organismo essencialmente completo, o homem é curiosamente inacabado ao nascer. (BERGER, 1985, p. 20).
O ser humano torna-se o que é, ou quem é, principalmente com
relação a personalidade na interação com outros seres humanos. Os animais
não humanos, têm instintos que os tornam prontos para o seu mundo. ”Existe
um mundo de camundongos, um mundo de cães, um mundo de cavalos e
assim por diante”. (Berger, 1985, p.20). O ser humano é bem diferente. Diz
Berger:
[...] a estrutura dos instintos do homem no nascimento é insuficientemente especializada e não é dirigida a um ambiente que lhe seja específico. Não há um mundo do homem no sentido acima. O mundo do homem é imperfeitamente programado pela sua própria constituição. É um mundo aberto. Ou seja, um mundo que deve ser modelado pela própria atividade do homem. (BERGER, 1985, p. 20).
O homem chega num mundo que já existia antes dele, mas ao
contrário dos animais não humanos, ele não está totalmente pronto para viver
nele, por isso precisa trabalhar na construção de um mundo para si. “A
condição do organismo humano no mundo se caracteriza, assim, por uma
instabilidade congênita. O homem não possui uma relação preestabelecida
com o mundo”. (BERGER, 1985, p.21). Além disso o homem encontra-se fora
de equilíbrio consigo mesmo, equilíbrio esse que só pode ser alcançado
através da atividade contínua. “A existência humana é um contínuo pôr-se em
equilíbrio do homem com seu corpo, do homem com seu mundo. [...] o homem
está constantemente no processo de pôr-se em dia consigo mesmo”.
(BERGER, 1985, p.21). Nesta perspectiva acima, o homem só pode viver
verdadeiramente, num mundo construído por ele mesmo. Berger afirma que:
[...] o mesmo processo que constrói o seu mundo também da remate ao seu próprio ser. Em outras palavras, o homem não só produz um mundo, como também se produz a si mesmo. Mais precisamente – ele se produz a si mesmo num mundo. No processo da construção de um mundo, o homem pela sua própria atividade, especializa os seus impulsos e provê-se a si mesmo de estabilidade. Biologicamente privado do mundo do homem, constrói um mundo humano. Esse mundo, naturalmente, é a cultura. Seu escopo fundamental é fornecer à vida humana as estruturas firmes que lhe faltam biologicamente. Segue-se que essas estruturas de fabricação
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humana nunca podem ter a estabilidade que caracteriza as estruturas do mundo animal. A cultura, embora se torne para o homem uma segunda natureza, permanece algo de muito diferente da natureza, justamente por ser o produto da própria atividade do homem. (BERGER, 1985, p.22).
Sendo a cultura uma construção humana, as mudanças são
inevitáveis em virtude da precariedade das suas estruturas. Ou seja, “que, se é
necessário que se construam mundos, é muito difícil mantê-los em
funcionamento”. (BERGER, 1985, p.22).
A cultura é a totalidade do que o homem produz. Seja material ou
não. “O homem produz instrumentos de toda espécie imaginável, e por meio
deles modifica o seu ambiente físico e verga a natureza à sua vontade”.
(BERGER, 1985, p.22). A sociedade é parte da cultura não material. A atuação
dos homens é que mantém e constituí a sociedade. Encontra-se na natureza
do homem a necessidade de construir um mundo. (BERGER, 1985, p.22).
Mesmo a sociedade sendo parte da cultura, ela demonstra-se de
importância impar em comparação as demais formações culturais do homem.
“Isto se deve a outro fato antropológico básico, a saber, a essencial
sociabilidade do homem. O homo sapiens é o animal social”. (BERGER, 1985,
p.23). Nessa perspectiva, nota-se que o homem não constrói um mundo
sozinho. A construção do mundo é uma empreitada coletiva invariavelmente.
Apesar da possibilidade de em alguns estudos, fazerem uma análise do
homem isoladamente, “a realidade empírica da construção humana do mundo
é sempre social. É trabalhando juntos que os homens fabricam instrumentos,
inventam línguas, aderem a valores, concebem instituições, e assim por
diante”. (BERGER, 1985, p.24). É importante compreender que a sociedade é
fruto da exteriorização do homem. “É particularmente importante devido ao fato
de que a sociedade se afigura ao bom senso como algo muito diferente, que
independe da atividade humana e que participa da determinação inerte da
natureza”. (BERGER, 1985, p.24). A sociedade se estabelece na ação do
homem, não é algo da natureza, mas do homem em ação.
Berger fala também sobre a segunda perspectiva dialética da
sociedade por ele denominada objetivação:
É, pois, a sociedade um produto do homem, radicado no fenômeno da exteriorização, que, por sua vez, se baseia na
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própria constituição biológica do homem. Tão logo se começa a falar de produtos exteriorizados, entretanto, está-se supondo que estes últimos atingem um grau de distinção em relação àquele que os produz. Essa transformação dos produtos do homem em um mundo que não só deriva o homem, como ainda passa a confrontar-se com ele com uma facticidade que lhe é exterior, está presente no conceito de objetivação. O mundo humanamente produzido se torna alguma coisa “lá fora”. (BERGER, 1985, p.24).
Esta citação faz referência aos objetos materiais e imateriais, que
resistem aos desejos de quem o produziu. Após a produção, o mundo
produzido existe de forma alheia a vontade do produtor. A cultura, por exemplo
não pode voltar simplesmente a consciência humana. “Subsiste fora da
subjetividade do indivíduo, como um mundo. Em outras palavras, o mundo
humanamente produzido atinge o caráter de realidade objetiva”. (BERGER,
1985, p.25). Isso pode ser observado num instrumento fabricado pelo homem,
numa língua inventada por ele, numa instituição por ele criada, etc. “Deve-se
dizer também que a sociedade é a atividade humana objetivada, ou seja, que a
sociedade é um produto da atividade humana que atingiu o status de realidade
objetiva”. (BERGER, 1985, p.28). A sociedade é o que é. O homem pode até
fantasiar outra sociedade, mas sempre perceberá a realidade da sociedade a
qual pertence:
[...] a sociedade se manifesta pelo seu poder coercitivo. O teste final de sua realidade objetiva é a sua capacidade de impor-se à relutância dos indivíduos. A sociedade dirige, sanciona, controla e pune a conduta individual. Nas suas mais poderosas apoteoses, a sociedade pode até destruir o indivíduo. A objetividade coercitiva da sociedade pode, é claro, ser vista mais prontamente nas suas medidas de controle social, isto é, naquelas medidas especificamente destinadas a pôr na linha os indivíduos ou grupos recalcitrantes. (BERGER, 1985, p.29).
É importante que se compreenda que a objetividade coercitiva está
presente em todas as instituições sociais. “Em outras palavras, a coercibilidade
fundamental da sociedade não está nos mecanismos de controle social, mas
sim no seu poder de constituir-se e impor-se como realidade. (BERGER, 1985,
p.29). Para exemplificar esse ponto é utilizado a linguagem (qual perspectiva?
Teoria como comunicação, como expressão do pensamento ou interação?, que
é uma invenção humana que se impõe ao inventor. Diz Berger:
[...] a língua inglesa se apresenta ao indivíduo como uma realidade objetiva, que ele deve reconhecer como tal, ou sofrer
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as consequências. Suas regras são dadas objetivamente. Precisam ser aprendidas pelo indivíduo, como sua língua materna ou como língua estrangeira, e ele não as pode modificar a seu talante. Existem padrões objetivos de inglês correto e incorreto, e embora possa haver diferenças de opinião sobre pormenores secundários, a existência desses padrões é uma condição prévia para o uso da língua, em primeiro lugar. (BERGER, 1985, p.30).
A transgressão desses padrões, geram penalidade, como reprovação na
escola e num momento posterior o constrangimento social. Mas não são as
penalidades que constituem a língua inglesa. “A língua inglesa é objetivamente
real em virtude do simples fato de estar lá, um universo pronto de discurso”.
(Berger, 1985, p.30). Vemos assim que a língua inglesa é uma forma eficiente
de comunicação entre pessoas que conhecem aquela língua.
A objetividade da sociedade alcança todos os elementos que a
constituem.
Berger fala sobre a terceira perspectiva dialética da sociedade,
chamada por ele de interiorização que é “a reabsorção na consciência do
mundo objetivado de tal maneira que as estruturas deste mundo vêm a
determinar as estruturas subjetivas da própria consciência” (BERGER, 1985,
p.32).
Toda sociedade depara-se com o problema de transmitir seus
ensinamentos de uma geração para outras gerações. Essa dificuldade é
enfrentada utilizando-se os processos de socialização, que são processos em
que uma geração ensina a outra os códigos de determinada sociedade. Esse
processo de interação leva o homem a ser o que é. Uma geração interioriza os
vários elementos do mundo objetivado, que se torna parte da sua consciência e
transmiti estas perspectivas para as próximas gerações. (BERGER, 1985,
p.33). “As sociedades variam quanto ao grau de diferenciação de seus corpos
de saber. Sejam essas variações quais forem, toda sociedade fornece aos
seus membros um corpo disponível de saber. Participar da sociedade é
partilhar do seu saber”. (BERGER, 1985, p.40). Estar fora desta perspectiva é
estar numa situação anômica, segregada, podendo levar a destruição do
indivíduo, “a mais importante função da sociedade é a nomização”’. (BERGER,
1985, p.41). Fora do nomo o indivíduo estará numa situação marginal. A
situação marginal mais impactante é a morte:
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A morte constitui para a sociedade um formidável problema não só devido à sua óbvia ameaça à continuidade das relações humanas, mas também porque põe em cheque os pressupostos básicos da ordem sobre os quais descansa a sociedade. (BERGER, 1985, p.43).
Todo nomo é erigido numa perspectiva de confronto com o caos.
Caos que deve ser mantido paralisado de qualquer forma. Para que seja assim,
toda sociedade arruma meios que contribuem para manter seus membros
orientados “a ficar dentro da realidade como é definida oficialmente” (BERGER,
1985, p.44). Olhando por esse ângulo, o indivíduo desgarrado dos programas
sociais, “pode ser considerado, não só como idiota ou um canalha, mas como
um louco”. (BERGER, 1985, p.44). Como exemplo, cita-se o homossexual
numa sociedade predominantemente heterossexual, aquele que destoa do
programa social estará numa situação de terror:
Com isso não se nega que esse terror seja também alimentado pelas apreensões práticas e remorsos de consciência, mas a sua mola propulsora fundamental é o pavor de ser alijado às trevas exteriores que separam o indivíduo da ordem normal dos homens. Em outras palavras, os programas institucionais são dotados de um status ontológico a tal ponto que negá-los equivale a negar o próprio ser – do ser da ordem universal das coisas e, consequentemente, o que se é nessa ordem”. (BERGER, 1985, p.45).
Todas as vezes que o nomo socialmente estabelecido alcança a
aceitação de evidencia, “ocorre uma fusão do seu sentido com os que são
considerados os sentidos fundamentais inerentes ao universo”. (BERGER,
1985, p.45). Nas sociedades arcaicas, a visão era de um microcosmo que
refletia um macrocosmo. Já na sociedade contemporânea as perspectivas são
cientificas, quanto a natureza do homem e não mais a natureza do universo.
De qualquer forma “quando o nomo aparece como expressão óbvia da
natureza das coisas, entendido cosmologicamente ou antropologicamente, dá-
se uma estabilidade que deriva de fontes mais poderosas do que os esforços
históricos dos humanos”. (BERGER, 1985, p.45). É a partir desta visão que se
começa a analisar a religião propriamente dita. É importante perceber que
religião não é algo que vem do além ou extra mundo, mas é uma iniciativa
humana:
A religião é o empreendimento humano pelo qual se estabelece um cosmos sagrado. Ou por outra, a religião é a cosmificação
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feita de maneira sagrada. Por sagrado entende-se aqui uma qualidade de poder misterioso e temeroso, distinto do homem e, todavia, relacionado com ele, que se acredita residir em certos objetos da experiência. (BERGER, 1985, p.45).
Cabe dizer que essa qualidade pode ser atribuída a muitas coisas
naturais e artificiais, “a animais, ou a homens, ou às objetivações da cultura
humana. Há rochedos sagrados, instrumentos sagrados, vacas sagradas”.
(BERGER, 1985, p.46). Também pode haver um chefe sagrado, como também
pode sê-lo um costume ou uma instituição. Esta qualidade pode ser atribuída
também ao espaço e ao tempo. Pode por fim, ser atribuída a seres sagrados,
partindo de espíritos locais às grandes divindades cósmicas.
O sagrado é visto como algo fora de série, que se por um lado tem
algo de perigoso, por outro, suas forças podem ser utilizadas no dia a dia.
“Embora o sagrado seja apreendido como distinto do homem, refere-se ao
homem, relacionando-se com ele de um modo em que não o fazem os outros
fenômenos não humanos”. (BERGER, 1985, p.46). O cosmos demonstrado
pela religião “transcende, e ao mesmo tempo inclui, o homem. O homem
enfrenta o sagrado como uma realidade imensamente poderosa distinta dele.
Essa realidade a ele se dirige, no entanto, e coloca a sua vida numa ordem,
dotada de significado”. (BERGER, 1985, p.47).
Observando o que Berger disse acima pode-se perceber que a
religião é parte do labor humano como ser social. Alguém que constrói o
mundo, influencia esse mundo e é influenciado por ele.
Existe nesse labor humano chamado religião a tentativa de vencer o
caos. Da perspectiva assustadora do caos é que brota o sagrado:
O cosmos sagrado, que transcende e inclui o homem na sua ordenação da realidade, fornece o supremo escudo do homem contra o terror da anomia. Achar-se numa relação correta com o cosmos sagrado é ser protegido contra o pesadelo das ameaças do caos. Sair dessa relação correta é ser abandonado à beira do abismo da incongruência. (BERGER, 1985, p.47).
Pode-se observar que da tentativa de fazer frente ao caos é que
surge a religião, que busca no transcendente as defesas necessárias para não
ser submetido ou destruído pela “voragem” palavra de onde se deriva a palavra
caos. (BERGER, 1985, p.47).
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Como podemos finalmente definir a religião com as premissas
teóricas pelas quais optamos? Segundo Berger:
Pode-se dizer, portanto, que a religião desempenhou uma parte estratégica no empreendimento humano na construção do mundo. A religião representa o ponto máximo da auto exteriorização do homem pela infusão dos seus próprios sentidos sobre a realidade. A religião supõe que a ordem humana é projetada na totalidade do ser. Ou, então, a religião é a ousada tentativa de conceber o universo inteiro como humanamente significativo. (BERGER, 1985, p.49).
Depois do que vimos até aqui podemos dizer que Berger entende a
sociedade como um processo dialético que abarca a exteriorização, a
objetivação e a interiorização. Na exteriorização o homem trabalha na
construção de um mundo para viver e na objetivação esse mundo construído
pelos indivíduos passa a ter sentido.
Esse mundo que é construído pelos homens e que passa a ter
sentido pela objetivação, é interiorizado pelo homem através da socialização.
Vale dizer que quando o indivíduo não é socializado, ele passa a uma situação
marginal, que pode levá-lo à destruição total. É importante dizer que a
sociedade como um todo luta contra situações marginais ou anômicas, e que
um dos instrumentos principais construídos pelo homem para ajudá-lo nessa
luta contra a anomia é a religião.
Neste momento observa-se a teoria acerca da religião e manutenção
do mundo onde Berger trata da religião como legitimadora:
Por legitimação se entende o saber socialmente objetivado que serve para explicar e justificar a ordem social. Em outras palavras, as legitimações são as respostas a quaisquer perguntas sobre o porquê dos dispositivos institucionais. (BERGER, 1985, p.51).
Na definição acima Berger claramente fornece uma ideia do caminho
que pretende seguir na abordagem do assunto. Esse aspecto é de fundamental
importância na visão dele com relação a religião.
É importante saber que a legitimação não é simplesmente uma ideia,
mas na verdade é um saber objetivo. (BERGER, 1985, p.52).
A legitimação pode ter seu objetivo descrito como “manutenção da
realidade, tanto no nível objetivo como no nível subjetivo”. (BERGER, 1985,
p.55).
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Quanto à religião como instrumento de legitimação deve-se observar
que:
[...] a religião foi historicamente o instrumento mais amplo e efetivo de legitimação. Toda legitimação mantém a realidade socialmente definida. A religião legítima de modo tão eficaz porque relaciona com a realidade suprema as precárias construções da realidade erguidas pelas sociedades empíricas. As tênues realidades do mundo social se fundam no sagrado realissimum, que por definição está além das contingências dos sentidos humanos e da atividade humana. (BERGER, 1985, p.55).
Nesta ótica pode-se perceber a importância dessa criação “humana”,
dando um verniz de sagrado para construções sociais, sendo assim, “a religião
legítima as instituições infundindo-lhes um status ontológico de validade
suprema, isto é, situando-as num quadro de referência sagrado e cósmico”.
(BERGER, 1985, p.56).
Ao longo da história podem-se observar diversas formas de
legitimações, Berger chama atenção para a mais antiga, que seria a ordem
institucional como reflexo da estrutura divina do cosmos, ou seja, uma relação
entre o microcosmo e o macrocosmo. “Tudo ‘aqui em baixo’ tem o seu análogo
‘lá em cima’. Participando da ordem institucional, os homens, ipso facto,
participam do cosmos divino”. (BERGER, 1985, p.57). Nessa ótica pode-se
dizer que a família humana reflete a família dos deuses. É interessante a
aplicação da legitimação à estrutura política:
A autoridade política é concebida como agente dos deuses, ou idealmente até como uma encarnação divina. O poder humano, o governo e o castigo se tornam, assim, fenômenos sacramentais, isto é, canais pelos quais forças divinas são aplicadas à vida dos homens para influenciá-los. O governante fala em nome dos deuses, ou é um deus, e obedecer-lhe equivale a estar em relação correta com o mundo dos deuses. (BERGER, 1985, p.57).
Observa-se que ao longo da história o esquema
microcosmo/macrocosmo da legitimação da ordem social foi transformado em
muitos aspectos, mas mesmo assim a religião continuou ao longo do tempo a
legitimar as instituições. “Israel legitimou as suas instituições em termos da lei
divinamente revelada, ao longo de sua existência como sociedade autônoma”.
(BERGER, 1985, p.58).
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Observa-se em Israel uma forma diferente do esquema
microcosmo/macrocosmo de legitimação utilizado pelas sociedades arcaicas.
Israel não vê este mundo como reflexo do outro, mas mesmo assim, de forma
diferente legítima as instituições pela religião.
Para não perder o foco é importante observar Berger repisando
aspectos importantes da religião como legitimadora:
A legitimação religiosa pretende relacionar a realidade humanamente definida com a realidade última, universal e sagrada. As construções da atividade humana, intrinsecamente precárias e contraditórias, recebem, assim a aparência de definitiva segurança e permanência. Dito de outra maneira, os nomoi humanamente construídos ganham um status cósmico. (BERGER, 1985, p.59).
Sabe-se que as instituições mudam de acordo com as necessidades
e interesses humanos, mas legitimadas pela religião elas ganham aspectos
sagrados de transcendência, permanência, firmeza e estabilidade, já que são
nessa perspectiva instituições divinas e por isso não expostas as
transformações notadas empiricamente. Ou seja, as transformações existem,
mas como as instituições são legitimadas pela religião elas passam a certeza
de que estão acima das contingências. (BERGER, 1985, p.60).
Falando das instituições legitimadas pela religião Berger defende que:
Sua fragilidade empírica é transformada numa estabilidade subjugadora quando são compreendidas como meras manifestações da estrutura subjacente do universo. Transcendem a morte dos indivíduos e a dissolução de coletividades inteiras, porque se fundam agora em um tempo sagrado no qual a história humana é um simples episódio. Em certo sentido, por conseguinte, tornam-se imortais. (BERGER, 1985, p.60).
Pelo que se pôde observar até agora, é possível vislumbrar o poder
imenso da religião como instrumento de legitimação. Essa cosmificação das
instituições fornece um norte para o comportamento dos indivíduos, dando-lhe
segurança em sua atuação nas mais diversas áreas da sociedade. (BERGER,
1985, p.63).
Mesmo na sociedade moderna os papéis exercidos pela família, por
exemplo, são eficazmente mantidos pelas legitimações religiosas.
Com relação a este aspecto Berger esclarece que:
As formações contingentes de determinada sociedade, as instituições particulares produzidas do polifórmico e maleável
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material da sexualidade humana, são legitimadas em termos de mandamento divino, ‘lei natural’, e sacramento. Mesmo hoje em dia, portanto, o papel da paternidade tem não só certa qualidade de impessoalidade em virtude da sua relação com o pai celeste, que instituiu na terra a ordem a que o papel pertence. (BERGER, 1985, p.63).
Aspectos da religião como instrumento de legitimação podem ser
observados na sociedade moderna, prova de que a religião é verdadeiramente
poderosa e abrangente como legitimadora nas mais diversas épocas a áreas
da sociedade. Sendo assim aquele que tenta sair dos trilhos das instituições
legitimadas pela religião está exposto a sanções visíveis e invisíveis. Visíveis
na perspectiva social, sendo punido pelo grupo e também invisíveis na
perspectiva espiritual, quando o abscôndito castiga pelos desvios daquilo que
havia previamente sido implantado como norma, como lei. Berger vai nessa
linha quando diz que:
[...] ir contra a ordem da sociedade é sempre arriscar-se a mergulhar na anomia. Ir contra a ordem da sociedade como é legitimada religiosamente é, todavia, aliar-se às forças primevas da escuridão. Negar a realidade como foi socialmente definida é arriscar-se a precipitar-se na irrealidade, porque é quase impossível, a longo prazo, sobreviver sozinho e, sem o respaldo social, manter de pé as próprias contra definições do mundo. Quando a realidade socialmente definida veio a identificar-se com a realidade última do universo, negá-la assume a qualidade de mal e loucura. O negador arrisca-se, então, a ingressar no que se pode chamar de qualidade negativa – se se quiser, a realidade do demônio. (BERGER, 1985, p.63).
Observa-se que não há opção, ou anda de acordo com os parâmetros sociais
legitimados pela religião, ou será um excluído. Para que o homem não caia na
anomia, ele que por natureza é um ser que tende a esquecer, precisa ser
lembrado. “O ritual religioso tem sido um instrumento decisivo desse processo
de rememoramento”. (BERGER, 1985, p.64). Um exemplo clássico é a
eucaristia. Há no ritual o lembrete da morte vicária de Jesus Cristo, mas
também se pode perceber no ritual o lembrete que fora dessa perspectiva de
vida cristã não há salvação.
É importante salientar mais uma vez que a legitimação religiosa é algo que tem
a ver com a atividade e que concepções teóricas podem ser reducionistas ao
tentarem explica-la. “[...] a maior parte dos homens na história sentiu a
necessidade de legitimação religiosa, mas só uns poucos se interessam pelo
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desenvolvimento de ideias religiosas”. (BERGER, 1985, p.66). Não se pode
pensar que os fenômenos legitimados pela religião, não sejam de algum modo
analisados teoricamente, mas o que se ressalta é a praticidade da legitimação.
“A religião serve, assim, para manter a realidade daquele mundo socialmente
construído no qual os homens existem nas suas vidas cotidianas”.
(BERGER,1985, p.67).
É interessante a parte em que Berger fala da importante dimensão da
legitimação religiosa, integrando em um nomo compreensivo, “situações
marginais em que a realidade da vida cotidiana é posta em dúvida”. (BERGER,
1985, p.67). Ele usa como exemplo momentos de vigília e sono:
Seria errôneo pensar que essas situações sejam raras. Pelo contrário, todo indivíduo passa por tal situação a cada vinte horas aproximadamente – na experiência do sono e note-se bem, nos estágios de transição entre o sono e a vigília. No mundo dos sonhos a realidade de cada dia fica definitivamente fora. Nos momentos de transição, ao adormecer e ao acordar, novamente os contornos da realidade são, no mínimo, menos firmes do que no estado da consciência plenamente desperta. A realidade da vida de cada dia é, portanto, continuamente envolvida por uma penumbra de realidades imensamente diferentes. Estas, sem dúvida, são segregadas na consciência como tendo um status cognoscitivo especial e assim geralmente impedidas de ameaçar maciçamente a realidade primária da existência plenamente desperta. (BERGER, 1985, p.67).
Apesar do que diz acima, Berger defende que o sono não é uma barreira
intransponível para as realidades que se manifestam durante os pesadelos:
Através da maior parte da história humana, essas outras realidades do lado noturno da consciência foram tomadas muito a sério como realidades, se bem que de um gênero diferente. A religião serviu para integrar estas realidades na realidade da vida cotidiana, às vezes consignando-lhes um status cognoscitivo mais alto. Relacionavam-se de diversas maneiras com a vida cotidiana os sonhos e as visões noturnas – como avisos, profecias ou encontros decisivos com o sagrado, tendo consequências específicas para a conduta cotidiana da sociedade. [...] onde a religião continua a ser significativa como interpretação da existência, suas definições de realidade devem, de algum modo, ser capazes de explicar o fato de que há diferentes esferas de realidade na incessante experiência de cada um. (BERGER, 1985, p.68).
Berger diz que “as situações marginais são caracterizadas pela experiência do
êxtase”. (BERGER, 1985, p.69). Além do mundo dos sonhos ele afirma que
“outros estados corporais também produzem êxtases de espécie semelhante,
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notadamente os que são causados por moléstia ou intensa perturbação
emocional. (BERGER, 1985, p.69). Ele ressalta que o confronto com a morte
de outrem, ou a perspectiva da própria morte “constitui o que é provavelmente
a situação marginal mais importante”. (BERGER, 1985, p.69). Diz ele:
A morte desafia radicalmente todas as definições socialmente objetivadas da realidade – do mundo, dos outros e de si mesmo. A morte põe radicalmente em questão a atitude de ver as coisas como evidentes, imposta pela atividade rotineira. Neste caso, tudo o que há no mundo cotidiano da existência em sociedade é maciçamente ameaçado de irrealidade – isto é, tudo naquele mundo se torna incerto, finalmente irreal, diferente do que se costumava pensar. Na medida em que o conhecimento da morte não pode ser evitado em nenhuma sociedade, as legitimações da realidade do mundo social perante a morte são exigências decisivas em qualquer sociedade. É obvia a importância da religião em tais legitimações. (BERGER, 1985, p.69).
Berger esclarece que apesar das situações marginais serem um fenômeno
individual, “sociedades ou grupos sociais inteiros podem, em tempo de crise,
passar coletivamente por tal situação” (Berger, 1985, p.70). Catástrofes,
guerras ou levante social podem afetar grupos sociais. “Em tais conjunturas, as
legitimações religiosas tomam quase invariavelmente a frente. (BERGER,
1985, p.69). Tratando de situações marginais extremas afirma Berger:
[...] Sempre que uma sociedade precisa motivar seus membros para matar ou arriscar a própria vida, consentindo assim em serem postos em situações marginais extremas, as legitimações religiosas adquirem importância. Assim o exercício oficial da violência, seja na guerra ou na aplicação da pena capital, é quase invariavelmente acompanhado de simbolizações religiosas. (BERGER, 1985, p.70).
Assim escrúpulos são “renegados” e aquele que luta, mata, castiga, passa a
ser visto como cumpridor da lei, um verdadeiro herói. (BERGER, 1985, p.70).
Diz Berger que:
Matar sob os auspícios das autoridades legitimas tem sido acompanhado desde os tempos remotos até hoje da parafernália religiosa e do ritualismo. Os homens partem para a guerra e são mortos entre orações, bênçãos e encantamentos. Os êxtases de temor e violência são, por esses meios, mantidos dentro dos limites da sanidade, isto é, da realidade do mundo social. (BERGER, 1985, p.70).
Como exemplo do que foi exposto acima, podemos falar da exegese bíblica
que legitima a pena de morte e as guerras pelos “motivos corretos”. Assim
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aquele que nunca conjecturou matar agora mata sem correr o risco de cair na
anomia, já que a situação marginal vivenciada pelo individuo ou por um
exército e agora legitimado pela religião, o mantém aceito pela sociedade e por
si mesmo.
A partir de agora veremos como Berger trata do problema da
Teodiceia, que está intimamente ligado a questão da religião como instrumento
de legitimação. Diz ele que:
Os fenômenos anômicos não devem apenas ser superados, mas também explicados – a saber, explicados em termos do nomo estabelecido na sociedade em questão. Uma explicação desses fenômenos em termos de legitimações religiosas, de qualquer grau de sofisticação teológica que seja, pode chamar-se uma teodiceia. (BERGER, 1985, p.79).
“Toda sociedade exige certa renúncia do eu individual e suas necessidades,
ansiedades e problemas. Uma das funções chaves dos nomoi é a facilitação
dessa renúncia”. (BERGER, 1985, p.82). A intensificação da entrega em prol
de um status quo, é de grande interesse para a religião.
O tipo de teodiceia que Berger vai se ater com mais demora, é o
masoquismo. Ele começa dizendo que:
[...] masoquismo, isto é, a atitude em que o indivíduo se reduz a um objeto inerte e semelhante a uma simples coisa diante de seus semelhantes, tomados separadamente ou em coletividades, ou nos nomoi por eles estabelecidos. Nessa atitude, a própria dor, física ou mental, serve para ratificar a auto – renúncia até o ponto de se tornar de fato subjetivamente agradável. (BERGER, 1985, p.82).
O masoquismo está presente em diversos aspectos da vida humana, como
relações sexuais e doutrinação política. Caracteriza-se por uma entrega total
ao outro até com aspectos de autodestruição. Há na verdade uma tentativa de
auto - aniquilação em relação ao outro. Ele é “tudo” eu não sou “nada”.
(BERGER, 1985, p.82). O masoquismo é uma atitude de fracasso certo já que
não existe aniquilação antes da morte, “e porque o outro só pode ser
absolutizado na ilusão”. (BERGER, 1985, p.83). Ainda falando sobre a atitude
de masoquismo Berger afirma que:
[...] o masoquismo, pela auto renúncia radical, proporciona o meio pelo qual o sofrimento e a própria morte do indivíduo podem ser radicalmente transcendidos, a ponto de o indivíduo não só suportar essas experiências, mas até as acolher cordialmente. (BERGER, 1985, p.83).
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É inaceitável para o homem viver na solidão e com ausência de sentido por
isso:
A capitulação masoquista é uma tentativa de escapar à solidão pela absorção num outro, que, ao mesmo tempo, é postulado como o único e absoluto sentido, ao menos no momento em que ocorre a capitulação. O masoquismo constitui, assim, uma curiosa convulsão tanto da socialidade do homem como de sua necessidade de sentido. Incapaz de suportar a solidão, renega o homem a sua separação, e, não sendo capaz de suportar a ausência de sentido, encontra um sentido paradoxal na auto aniquilação. “Eu nada sou – e, portanto, nada me pode ferir”. Ou, ainda mais contundentemente – “Eu morri – e, portanto, não morrerei”. E em seguida: “Vem, doce sofrimento; vem, doce morte” – estas são as fórmulas da libertação masoquista. (BERGER, 1985, p.83).
As afirmações dos teólogos que procuram explicar o sofrimento humano pela
ótica da soberania de Deus, estão impregnadas de masoquismo. As piores
coisas passam a acontecer porque é a vontade de Deus.
A teodiceia abarca os mais diversos aspectos da vida cotidiana,
explicando as mazelas na biografia do indivíduo. Diz Berger:
Não é a felicidade que a teodiceia proporciona antes de tudo, mas significado. E é provável que, nas situações de intenso sofrimento, a necessidade de significado é tão forte quanto a necessidade de felicidade, ou talvez maior. Não resta dúvida de que o indivíduo que padece, digamos, de uma moléstia que o atormenta, ou de opressão e exploração às mãos dos seus semelhantes, deseja alívio desses infortúnios. Mas deseja igualmente saber por que lhe sobrevieram esses sofrimentos em primeiro lugar. Se uma teodiceia responde, de qualquer maneira, a essa indagação de sentido, serve a um objetivo de suma importância para o indivíduo que sofre, mesmo que não envolva uma promessa de que o resultado final dos seus sofrimentos é a felicidade neste mundo ou no outro. Seria, por essa razão, um equívoco considerar as teodiceias unicamente em termos do seu potencial “redentor”. Aliás, algumas teodiceias não são portadoras de nenhuma promessa de “redenção” – a não ser pela segurança redentora do próprio sentido. (BERGER, 1985, p.86).
O indivíduo só suporta uma vida com sentido, é exatamente isso que a
teodiceia fornece, um sentido para existência nas situações marginais, nas
mazelas da vida. Corrobora esta perspectiva Max Weber:
A disposição primitiva frente ao sofrimento manifestou-se de maneira mais radical nas celebrações religiosas comunitárias, fundamentalmente no comportamento para com aqueles afetados por uma enfermidade e, em outros casos, de desgraças recalcitrantes. (WEBER, 2015, p.13).
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Além da doença e morte, é mister que os males que os homens
fazem uns aos outros nas interações sociais sejam explicados, assim as
teodiceias são de suma importância na explicação das desigualdades. “Nesta
função é claro, as teodiceias legitimam diretamente a ordem institucional
particular em questão”. (BERGER, 1985, p.86). Elas legitimam poderosos e
desvalidos. “Para estes últimos elas podem, evidentemente, servir de ‘ópio’
para tornar menos miserável a sua situação, e justamente por isso impedi-los
de se revoltarem contra ela”. (BERGER, 1985, p.87). Diz Berger:
Em termos singelos, as teodiceias fornecem aos pobres um significado para sua pobreza, mas podem também prover os ricos de um significado para a sua riqueza. Em ambos os casos, o resultado é a manutenção do mundo e, de modo muito concreto, a manutenção da ordem institucional particular. (BERGER, 1985, p.87).
Em alguns casos a mesma teodiceia pode servir para legitimar abastados e
miseráveis. “Em outros casos, pode haver duas teodiceias discretas
estabelecidas na sociedade – uma teodiceia do sofrimento para um grupo e
uma teodiceia da felicidade para outro”. (BERGER, 1985, p.87).
Pode-se observar Berger falando sobre uma teodiceia mística,
quando a princípio ele define o misticismo como “a atitude religiosa em que o
homem visa à união com as forças ou seres sagrados”. (BERGER, 1985, p.92).
Ele defende a ideia de que o misticismo promove capitulação diante das
mazelas da vida, e que:
A maneira como a capitulação mística pode ser chamada de masoquista varia empiricamente, mas pode-se dizer com segurança que um forte elemento masoquista está presente em quase todas as variedades de misticismo como o mostra a repetição através das culturas de auto mortificação ascética e da autotortura em conexão com os fenômenos místicos. Onde a união perfeita é consumada, a aniquilação do eu e sua absorção pelo divino realissimum constituem a mais excelsa bem-aventurança imaginável, a culminação da busca mística no êxtase inefável”. (BERGER, 1985, p.93).
Uma teodiceia se ampara na perspectiva de que episódios anômicos
do presente serão compensados no futuro, “o sofrimento e a injustiça do
presente são explicados com referência à sua nomização futura. Sob esta
categoria, é claro devem-se colocar as diversas manifestações de messianismo
religioso, do milenarismo e da escatologia”. (Berger, 1985, p.98). Diz Berger:
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Essas manifestações, como seria de esperar, associam-se historicamente aos tempos de crise e desastre, de causas naturais ou sociais. Por exemplo, os padecimentos da peste negra deram azo a uma porção de violentos movimentos milenaristas, mas o mesmo o fizeram os desajustes sociais causados pela Revolução Industrial. “O Senhor vem aí!” – Foi repetidas vezes o brado de reunião em tempos de aguda aflição. Dentro da órbita da tradição bíblica (isto é, da órbita judaico – cristã – mulçumana), como resultado da sua influência avassaladora na dimensão histórica da ação divina, esse brado de reunião foi particularmente frequente. (BERGER, 1985, p.99).
Nos momentos de crise o complexo “messiânico – milenarista postula uma
teodiceia porque relativiza o sofrimento ou a injustiça do presente em termos
de serem vencidos num futuro glorioso” (Berger, 1985, p.99). Há esperança
porque se no presente tudo parece fora dos padrões, no futuro haverá
felicidade, haverá uma volta ao que a sociedade estipulou para a vida humana.
Defende Berger:
[...] os fenômenos anômicos são legitimados mediante referência à nomização futura, reintegrando-os, assim, numa ordem significativa de abrangência universal. Essa teodiceia será racional na medida em que envolver uma teoria coerente da história (condição, poder-se-ia dizer, geralmente satisfeita no caso dos movimentos messiânico – milenaristas dentro da órbita bíblica). Será efetivamente ou potencialmente revolucionária à medida que a ação divina, prestes a intervir no curso dos acontecimentos, exigir ou permitir a cooperação humana”. (BERGER, 1985, p.100).
Esse tipo de teodiceia é vulnerável à refutação empírica. “Subsiste o problema
teórico de explicar o fato de que Iahweh não trouxe a chuva, que a parousia é
postergada para mais e mais tarde”. (Berger, 1985, p.100). Resolve-se isso
transpondo a teodiceia “ou para outro mundo ou para outra realidade de algum
modo escondida nela”. Afirma Berger:
[...] o refinamento do complexo messiânico – milenarista aponta um segundo e importante tipo de teodiceias “intermediarias”, em que se promete a compensação em termos de outro mundo. Na sua mais singela modalidade, este tipo de teodiceia mantém uma reversão dos males e sofrimentos presentes numa vida além – tumulo. Está-se provavelmente em chão firme se se especula que a necessidade de tal teodiceia era muito importante nas origens das noções concernentes à imortalidade. Não basta mais procurar uma compensação divina em vida ou na dos descendentes. Lança-se o olhar para além da sepultura. Lá, pelo menos, o padecente será reconfortado, o homem bom recompensado e o mau punido.
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Em outras palavras, o após vida torna-se o local da nomização ”. (BERGER, 1985, p.100).
A outra forma de imunizar-se contra a refutação empírica, é mantendo a
nomização nesta vida, “a esperança messiânico – milenarista concreta é
mantida, mas ao mesmo tempo transposta para uma esfera misteriosa,
empiricamente inacessível, onde fica a salvo das contingências da história”.
(Berger, 1985, p.101). Berger fala também de uma teodiceia dualista, onde o
mundo é o lugar da luta das forças do bem contra as forças do mal. Nessa
perspectiva tudo o que é material é desvalorizado inclusive o corpo.
(BERGER, 1985, p.103).
O problema da teodiceia aparece de forma mais clara no monoteísmo
da religião bíblica. “Pode-se dizer que esse tipo de monoteísmo fica de pé ou
cai consoante a sua capacidade de resolver a questão da teodiceia: ”Como
pode Deus permitir...?” (Berger, 1985, p.104). Falando da relação entre a
teodiceia bíblica e a atitude masoquista afirma Berger que:
Toda religião postula um “outro” que enfrenta o homem como uma realidade objetiva, poderosa. A atitude masoquista, como tentamos mostrar, é uma das posturas básicas que o homem pode tomar vis-à-vis deste outro. Na órbita da religião bíblica, contudo, a atitude masoquista assume um caráter peculiar, como resultado da imensa tensão introduzida pelo problema da teodiceia sob estas circunstâncias. Uma coisa é capitular num êxtase masoquista perante digamos, Shiva, no seu avatar como destruidor cósmico, quando executa a sua grande dança da criação numa montanha de crânios humanos. Afinal de contas, ele não é a única divindade do esquema hindu, nem tampouco está carregado de alguma coisa que se aproxime da qualidade ética atribuída ao Deus da Bíblia. (BERGER, 1985, p.105).
Diante do Deus da Bíblia o homem se coloca numa postura de humilhação,
reconhecendo que está diante daquele que não pode ser questionado, criador
de todas as coisas, portador de uma soberania inquestionável. Tudo o que
acontece está sob o seu domínio. O que cabe ao adorador é somente a
aceitação do que se tem e os pedidos esperançosos de que esse Deus mude o
status quo, quando se vivencia a infelicidade. Diz Berger que:
O Deus bíblico é radicalmente transcendentalizado, isto é, postulado como o totalmente outro vis-à-vis ao homem. Nessa transcendentalizacão, existe implícita desde o início a solução masoquista por excelência do problema da teodiceia – submissão ao totalmente outro, que não pode ser interpelado nem desafiado, e que, pela sua própria natureza, está
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soberanamente acima de todos os padrões éticos humanos e geralmente nômicos”. (BERGER, 1985, p.105).
Há grandes exemplos dessa submissão na Bíblia, o mais evidente é a vida de
Jó, que mesmo diante das maiores desgraças reconheceu o Deus bíblico como
senhor de todas as coisas reconhecendo que mesmo os momentos mais tristes
estavam sob o controle de Deus. “Embora ele me mate, ainda assim confiarei
nele”. (Berger, 1985, p.105). O livro de Jó mostra-nos uma forma expressiva do
Masoquismo religioso diante do Deus bíblico. No Antigo Testamento encontra-
se continuações e modificações dessa forma. “Por exemplo, a submissão total
à vontade de Deus tornou-se a atitude fundamental do Islã e até deu nome à
essa grandiosa simplificação da tradição bíblica (do árabe ‘aslama, submeter-
se)”. (Berger, 1985, p.106). Pode-se observar uma manifestação mais radical
dessa postura nas diversas “concepções de predestinação divina dos principais
ramos da tradição bíblica, particularmente agressivas no Islã e, mais tarde, no
calvinismo”. (Berger, 1985, p.106). A perspectiva de um Deus que escolhe
aqueles que serão salvos e o que seriam destinados a perdição é algo que leva
ao ápice do masoquismo, pois nessa visão é possível ser mandado para o
inferno pelo Deus que o indivíduo acredita e adora. “A soberania de Deus e a
negação do homem chegam aqui a um clímax terrível numa visão dos próprios
condenados tomando parte na glorificação daquele Deus que os sentenciou a
danação”. (Berger, 1985, p.107). Essa atitude não pode ser sustentada por
muito tempo pelas massas. Para viver nessa concepção era mister ser alguém
muito “especial”. “A piedade popular a mitigou com a esperança de uma
compensação no outro mundo. Com essa modificação, ainda podiam manter-
se a submissão masoquista e até seu regozijo no sofrimento”. (Berger, 1985,
p.107). Com relação a estas mitigações Berger afirma que:
Mesmo no calvinismo, a rigidez da submissão ao decreto inexorável da predestinação foi logo modificada, seja por meio de supostas bênçãos divinas sobre as atividades externas de cada um, seja através da certeza interior da salvação. Todas essas mitigações da teodiceia masoquista, porém, tem menos importância histórica do que a solução cristã essencial do problema, a saber, a solução postulada pela Cristologia. Sustentamos que, não obstante qualquer possível variação que ele tenha sofrido na história do cristianismo, o motivo cristão fundamental é a figura de Deus encarnado como resposta para o problema da teodiceia, especificamente para a tensão insuportável desse problema ocasionada pelo desenvolvimento religioso do Antigo testamento. E, embora a metafisica dessa
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encarnação e sua relação com a redenção do homem tenham sido formuladas ao longo da teologia cristã, é crucial o fato de que o Deus encarnado é o Deus que sofre. (Berger, 1985, p.108).
Na cruz e no sofrimento de Jesus Cristo é que se encontra o poder religioso do
cristianismo. Se até o filho de Deus, que também era Deus, por isso sem
pecado, santo, inocente, sofreu, deve ser encontrado então no sofrimento
humano algum motivo de jubilo.
Terminando sua fala sobre o problema da Teodiceia conclui Berger:
Os mundos que o homem constrói estão permanentemente ameaçados pelas forças do caos e, finalmente, pela realidade inevitável da morte, A não ser que a anomia, o caos e a morte possam ser integrados no nomo da vida humana, esse nomos será incapaz de prevalecer nas exigências da história coletiva e da biografia individual. Repetindo, qualquer ordem humana é uma comunidade em face da morte. A teodiceia é uma tentativa de fazer um pacto com a morte. Qualquer que seja o destino de determinada religião histórica, ou da religião como tal, podemos estar certos de que a necessidade dessa tentativa persistirá enquanto os homens morrerem e tiverem que compreender esse fato. (Berger, 1985, p.113).
Diante do que observamos, podemos entender que não é a felicidade
que a teodiceia proporciona antes de tudo, o que ela proporciona mesmo é
significado. E é notório que, nas situações de intenso sofrimento, a
necessidade de significado é tão forte quanto a necessidade de felicidade, ou
talvez maior. O indivíduo só suporta uma vida com sentido, é exatamente isso
que a teodiceia fornece, um sentido para existência nas situações marginais,
nas mazelas da vida.
Para encerrarmos esse primeiro capítulo é importante dizer que a
sociedade como um todo luta contra situações marginais ou anômicas, e que
um dos instrumentos principais construídos pelo homem para ajudá-lo nessa
luta contra a anomia é a religião. Que a religião se impõe como uma poderosa
legitimadora. Que essa poderosa legitimadora é observada através das
teodiceias, que dão sentido à vida humana.
32
Capítulo 2 DOM SEBASTÃO, DE DESEJADO A ENCOBERO, O NASCIMENTO DE
UMA LENDA
Grande potência mundial no início do século XVI, Portugal começou a
sentir as dificuldades de manter um império tão grande. No reinado de Dom
Manuel, Portugal conheceu sua grande derrota no norte da África em 1515,
com a morte de cerca de 4.000 homens, com cem navios e toda a artilharia
lusitana destroçados. (GODOY, 2010, p.25). Para completar a derrocada e
humilhação, após a plenitude, os portugueses destinados à colonização da
região de Mamora e Anafé, foram vendidos como escravos. Mas é importante
notar que foi no seu reinado que Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil a 22
de abril de 1500. No dia 06 de junho de 1502 nasceu o Filho de Dom Manoel,
no qual foi posto o nome de João. Em 19 de janeiro de 1521 João foi aclamado
rei começando aí o reinado de Dom João III, avô de Dom Sebastião. Em seu
reinado houve perdas significantes para Portugal no norte da África, entre 1541
e 1550. Nessa época a aristocracia Portuguesa assumiu e centralizou
definitivamente o poder, e o povo foi relegado cada vez mais a miséria. Nesse
reinado, introduz-se o tribunal da Santa Inquisição e, em 1540, realiza-se o
primeiro ato de fé público em Lisboa. Enquanto isso Carlos V, rei de Castela,
empreendia uma política expansionista. José Mattoso (1997) esclarece que:
Muito cedo as questões financeiras começam a tronar-se aflitivas, sobretudo pelas despesas exigidas para fazer frente aos ataques dos mouros xerifianos às praças de África. Desde 1529 que andava no pensamento de alguns responsáveis o abandono de algumas. [...] Começa a preparar-se uma descolonização de parte delas. Pedidos pareceres a grandes e importantes senhores, conclui-se pela necessidade instante de refazer as fortalezas, preparando-as para suportarem os ataques de artilharia, armas que os cristãos tinham começado a vender aos mouros as quais já sabiam utilizar. (MATTOSO, 1997, p. 454).
Na verdade, não valeria a pena o esforço financeiro em todos os
lugares em virtude de suas localizações, assim abandona-se Azamor e Safim
por volta de 1541. José Mattoso mostra que (1955 apud RICARD, 1997, p.454):
Em 1549 – 1550 terá de ser a vez de Alcácer Ceguer e de Arzila. Estas últimas, sobretudo, que já datavam do tempo de D. Afonso V, terão provocado a consciência de uma profunda
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mudança nos destinos e nas ambições da política portuguesa de destruição do Islão. E esse sentimento, de tão forte, virá a significar muito, alimentando sonhos de uma grandeza que se devia tentar reaver: abre-se o caminho para aventuras de pouco siso.
Dom João III casou-se com Dona Catarina, irmã do imperador Carlos
V de Espanha, em 1525. O núncio papal não titubeou em informar Roma de
que era ela quem governava. Já o embaixador de Carlos V disse que o rei de
Portugal fazia com que todos os assuntos importantes ou não passassem pelas
mãos de Catarina. (MATTOSO, 1997, p.450). Percebe-se uma mulher de forte
personalidade que não hesitava, em interferir de forma marcante, no governo
de Portugal. Dona Catarina, mesmo fragilizando a independência de Portugal e
enfrentando forte resistência, casou os filhos D. Maria e D. João com os
sobrinhos de Castela, o príncipe Filipe e a infanta D. Joana. Vale dizer de
previsível crise dinástica, com a morte seguida, de 1537 a 1540, de seis dos
infantes, filhos e cunhados. D. João era de saúde frágil, o que agrava o
problema da sucessão.
A infanta D. Maria era tida desde 1540 como provável herdeira do trono, já que não se acreditava na sobrevivência do príncipe D. João. Por isso não poucos defendiam que se casasse com o infante D. Luís, para que os reinos peninsulares se não juntassem (MATTOSO,1997, p.454).
O infante D. Luís era irmão de D. João III, tio da infanta D. Maria. Ao
observar-se o movimento feito por parte da corte para que tio e sobrinha
casassem, pode-se perceber o temor de que Portugal voltasse para as mãos
da Espanha. D. João III e D. Catarina tiveram grandes dificuldades de gerar
herdeiro da coroa. Apenas dois sobreviveram, Dona Maria, que viria a se casar
com Felipe II, e o infante Dom João. Ainda com relação a este aspecto diz:
D. Catarina, secundada pelo rei, impôs o casamento castelhano. Fragilizava a independência da coroa portuguesa? Porém, reforçava uma aliança e dava seguimento à uma política que já vinha de trás, e de que a sua própria pessoa também fora objeto. Para apagar ligações quase incestuosas bastavam as dispensas papais. (MATTOSO, 1997, p.450).
Dom João de saúde frágil nasceu em 1537 e por urgência política, já
que um herdeiro vindo do infante seria fator sine-qua-non para que Portugal
não voltasse, por falta de herdeiro a ser domínio de Castela, teve seu
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casamento aos 14 anos de idade, feito às pressas, com uma prima de nome
Joana, filha de Carlos V. (GODOY, 2010, p.28).
O casamento ocorrido em 1552, numa tentativa de manter a
independência de Portugal com relação à Espanha, foi cercado de situações
tristes como a separação do casal em virtude do péssimo estado de saúde de
Dom João, estando Dona Joana já grávida de Dom Sebastião. Pouco tempo
depois ela receberia a notícia da morte de Dom João.
Dom Sebastião nasceu em 20 de janeiro de 1554, recebeu esse
nome porque era dia de São Sebastião. Dona Joana, logo após seu
nascimento, voltou para Espanha, deixando a criança.
Seu nascimento ocorreu num momento de muitas incertezas em
Portugal. Ele foi um rei Desejado. A corte juntamente com o povo, sonhava
com a volta das conquistas. Seu nascimento uniu, de certa forma, ricos e
pobres. Ilustres e desconhecidos em torno de sonhos grandiosos. (Godoy,
2010, p.29).
Com o Nascimento de Dom Sebastião ressurge a ideia das
reconquistas de territórios perdidos. Autores de renome dedicam obras
maravilhosas à criança tão desejada. Há uma grande expectativa em torno
dele.
Aos 15 anos de idade Sebastião entra pela primeira vez em Évora,
considerada a segunda cidade do reino, André de Resende, humanista
renomado, lhe dá as boas-vindas:
Venhais em felicíssima hora, nosso Rei, nosso espelho, em que nos vemos; nossa preciosa joia, de que muito nos gloriamos; esperança do Reino, em que para vos servir nascemos, dado a nós por Deus, pedido a Deus por nós, convosco entre a saúde, entre a prosperidade e tudo o que se pode chamar bem. (MATTOSO, 1997, p.455).
Quatro anos após essa demonstração de admiração, em 27 de
janeiro de 1573, um homem da cidade de Silves assim se dirige ao monarca:
Queira nosso Senhor que assim como Vossa Alteza foi dado por lágrimas e orações de seus vassalos para consolação deste Reino, seja servido de lhe acrescentar a vida por muitos largos anos, com muitas vitórias contra seus inimigos e acrescentando de seus Reinos e Estados. (MATTOSO, 1997, p.455).
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Em Tavira, no dia 31 seguinte, o prior encarregado da oração da
entrada diz que D. Sebastião:
Foi escolhido por Deus para ser rei antes que nascesse. E se algum Rei se pode chamar Rei, por graça de Deus, Vossa alteza o é, porque os outros reis são gerados, e nascidos do ventre das mães, e Vossa Alteza, além disso foi gerado, e nascido do ventre dos merecimentos das muitas lágrimas, suspiros, orações, sacrifícios que seus povos ofereceram a Deus, na hora do seu nascimento. (MATTOSO, 1997, p.456)
A 7 de fevereiro, o prior de Moura chama-lhe: “miraculoso Rei e
Senhor nosso, filho das lágrimas de vosso povo, não com menos lágrimas a
Deus pedido que com grandíssima alegria dele impetrado”. (Loureiro, 1984,
p.127).
Pelos textos acima, percebe-se o tamanho da expectativa carregada
por D. Sebastião. José Mattoso faz duas inquietantes perguntas retóricas:
Quantas vezes o moço altivo e sobranceiro não terá ouvido esta referência ao seu milagroso nascimento, por vontade de Deus, a rogos e lágrimas dos súditos, tendo, para mais, vindo à luz no dia do glorioso mártir S. Sebastião? Não seria esse ambiente bastante para se sentir desde sempre imune aos acidentes da vida, ao perigo, a julgar-se, com sinceridade, foras das vicissitudes da Terra, não lhe sendo atrativa a não glória de uma soberania pacata, lidando com papéis por que bem fosse regido e governado o povo? (MATTOSO, 1997, p.456).
Fruto de ascendência quase incestuosa, criado sem pai nem mãe,
não é difícil encontrar problemas na educação de Sebastião. Carregava sobre
os ombros a expectativa do povo quanto ao retorno dos tempos de conquistas
e prosperidade, além disso, era com certeza nesse momento o principal
obstáculo para o retorno de Portugal ao domínio de Castela.
Após a morte de D. João III, em 11 de junho de 1557, avô de D.
Sebastião, inicia-se a regência de D. Catarina. Nesse período aproxima-se,
ainda mais a política portuguesa da castelhana. Com três anos de idade,
Sebastião tem seus mestres definidos por D. Catarina e seu tio avô D.
Henrique:
Foi escolhido para mestre o Padre Luís Gonçalves da Câmara, Jesuíta, anos mais tarde também seu confessor. Aio era D. Aleixo Meneses [...] (que acreditava na astrologia, que perscrutava os fenômenos extraordinários pelos quais o poder divino se manifestava) havia, pois, a intenção de proporcionar uma instrução humanística sólida ao rei, acompanhada de um
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não menos forte sentimento de um dever e honra guerreiros. Daí a escolha de um jesuíta e do soldado para ajudarem o rei a crescer. As pessoas próximas tinham combatido, acompanhado ou de algum modo estado ligadas com as praças de África e seus feitos militares, com a Índia e com o Oriente e com a rudeza dos combates. Um fervor religioso já pouco crítico acompanhava também a educação do rei. (MATTOSO, 1997, p.457).
A educação de D. Sebastião é voltada para a formação de um
guerreiro de fé inabalável naquilo que pensava ser um destino glorioso. Ele
cresceu entre padres e cavaleiros. Teve sólida formação militar. Tinha prazer
nas armas. Havia inclusive uma perspectiva teológica de que o corpo do rei era
perfeito e indestrutível. Isso com certeza influenciou o jovem rei em relação a
decisões futuras. (GODOY, 2005, p.42). “Digladiaram-se interesses pela
regência, conflitos que desencadearam, em 1562, a substituição de D. Catarina
pelo cardeal D. Henrique” (MATTOSO, 1997, p.457).
A expectativa em relação a Sebastião era evidente por diversos textos
encomendados pela corte, e em outros produzidos fora dela. Diz Marcio
Honório de Godoy que: “Certamente alguns desses textos conduziram a
formação do infante Dom Sebastião, por terem sido escritos mesmo antes do
seu nascimento, mas oferecidos ao tão desejado herdeiro do trono português”.
(GODOY, 2005, p.31).
Pode-se observar o “Memorial das Proezas da Segunda Távola
Redonda”, escrito por Jorge Ferreira de Vasconcelos, uma novela de cavalaria
finalizada perto de 1554, encomendada por Dom João III:
A novela traz de volta temas do ciclo arturiano, mas, desta vez, eles são envolvidos em episódios da história de Portugal. Um rei chamado Sagramor, personagem criada para esta novela, é neto do lendário rei Artur, e promove uma ligadura entre os feitos dos heróis da época do rei Artur às glórias portuguesas. Nos últimos capítulos dessa novela, torna-se evidente tal associação, pois surgem personalidades ilustres da história de Portugal, inclusive os contemporâneos ao texto escrito, como o Rei D. João III, seu filho D. João, e o filho deste, ainda desprovido de nome próprio no corpo da novela. Estes, no decorrer do texto, ganham profunda relação com as histórias e personagens do ciclo arturiano. (GODOY, 2005, p.31).
Esse texto é citado por estudiosos “como um romance moralizador e
educador do príncipe”. (GODOY, 2005, p.32). A edição de 1567 do Memorial
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das Proezas da Segunda Távola Redonda é dedicado ao príncipe dom
Sebastião. Logo após o título encontra-se a seguinte dedicatória: “Ao mui alto e
mui poderoso Rei Dom Sebastião primeiro deste nome em Portugal, nosso
Senhor”. (GODOY, 2005, p.32). Este texto evidencia a nacionalidade defendida
com veemência em diversos discursos da cultura de Portugal:
No corpo desta novela, em clima fantasioso, é trabalhado o tema do nacionalismo apoiado em material que procura legitimar a grandeza de Portugal perante os outros reinos. Funda-se, então, uma interessante linha de proximidade entre a matéria histórica e lendária lusitana e a matéria lendária medieval – além de especular sobre o caráter sagrado da linhagem dos reis portugueses. Eis aí traços caríssimos, que irão compor a formação da personalidade do futuro rei Dom Sebastião. (GODOY, 2005, p.34).
Acredita-se que essa novela teve influência sobre D. Sebastião, a
ponto de ser contagiado pelos desejos de levar Portugal a uma nova época de
conquistas e prosperidade. Esta expectativa poderá ser encontrada em outro
texto importantíssimo, uma das maravilhosas obras da literatura portuguesa,
produzida pela pena de Luís de Camões, Os Lusíadas. Quando a obra é
impressa em 1572, Dom Sebastião tinha 18 anos:
Sentindo que Portugal vivia uma crise interna e externa mais intensa a partir de Dom João III, Camões seguiu a linha de pensamento que desejava recolocar o Reino no caminho prometido a Dom Afonso Henriques; caminho que vinha consumando nas magníficas rotas dos relativamente recentes descobrimentos, e nos outros feitos da nação. E é exatamente neste clima de exaltação que o autor de Os Lusíadas vê no rei Dom Sebastião um continuador das glórias nacionais. (GODOY, 2005, p. 35).
Abaixo se observa Camões, numa única estrofe, iniciando a
dedicatória do Poema a Dom Sebastião, descrevendo em oito versos, o desejo
da nação, incorporado na figura do jovem rei:
E vós, ó bem nascida segurança Da Lusitana antiga liberdade, E não menos certíssima esperança De aumento da pequena Cristandade; Vós, ó novo temor da Maura lança, Maravilha fatal da nossa idade, Dada ao mundo por Deus, que todo o mande, Pera do mundo a Deus dar parte grande;
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Pode-se destacar alguns pontos interessantes na dedicatória. Em
primeiro lugar, “chama Dom Sebastião para assegurar a independência de
Portugal. Estão em causa as prioridades a serem levadas em consideração
pelo jovem rei, e elas rememoram à ‘antiga liberdade’, relacionada aos quase
quinhentos anos da formação de Portugal”. (Godoy, 2005, p.36). Vale destacar
que cabe a Dom Sebastião, segundo Camões, converter ao cristianismo os
“mouros infiéis, pois ele é, sem dúvida alguma o novo temor da maura lança”.
(GODOY, 2005, p.36).
Pode-se ainda observar, o transpassar dos sonhos portugueses
quando:
Dom Sebastião é chamado de “Maravilha fatal...”o que lhe confere um caráter de predestinado, por ser uma maravilha que fatalmente já estava prevista para ser “Dada ao mundo por Deus”. E é exatamente neste mundo no qual foi depositado o predestinado, que deve este predestinado trabalhar para conquistá-lo inteiramente, para “que todo o mande”. No entanto, deve-se observar que a conquista deste mundo não está ligada a questões seculares, mas sim à continuidade do projeto português, iniciado desde sua fundação como nação, de encabeçar o alargamento da religião de Cristo por todo o mundo, criando o Quinto Império Universal Cristão. Por isso é necessário mandar em todo o mundo, mas visando entregá-lo a Deus: “Pera (para) do mundo a Deus dar parte grande” (GODOY, 2005, p.36).
Dom Sebastião assumiu o reinado em 1568, aos 14 anos. O texto de
Camões visa educar o jovem rei a sintonizar-se com os anseios da nação. Com
certeza a obra teve grande influência na formação de um rei belicoso e
destemido.
Vale destacar um novo material literário, denominado “espelho de
príncipes”, produzido desde a idade média, que visava criar normas de
condutas para os príncipes. Este material foi amplamente utilizado na
educação de Dom Sebastião. Pode-se observar ainda que:
O tio avô de Dom Sebastião, o cardeal Dom Henrique, presta-se a produzir enunciados com preceitos a serem seguidos pelo aprendiz de rei: trata-se de registros normativos que beiram ao caricatural, no que consiste à criação de um modelo perfeito de vida, a ser observado por um soberano que se queria ideal. Em seu livro “Lembranças para que o Rey Deue Fazer, & Repartir por as Oras do Dia & da Noite”, Dom Henrique monta uma sequência de horas num dia extremamente compartimentado em treze horas. (GODOY, 2005, p.46).
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Tratava-se de um rígido regulamento para a vida diária do príncipe.
Tamanha era a rigidez que se “não fossem previstos os negócios a serem
feitos com os oficiais da corte, poderíamos crer tranquilamente que se trata de
um enunciado que visa a construção do regimento de uma penitenciária”.
(GODOY, 2005, p.46).
Há ainda nessa linha humanista, voltada para a educação de Dom
Sebastião, uma obra que foi encomendada por Dom Henrique ao padre e
professor do Colégio de Coimbra, Diogo de Teive, obra essa finalizada em
1561. (GODOY, 2005, p.46). Visava mais uma vez controlar totalmente a
formação do rei:
[...] aparecem no enunciado de Teive questões que supostamente estariam no âmbito da intimidade, como a proximidade de mulheres com o príncipe. Diogo de Teive estabelece um caminho cheio de cuidados, chegando ao extremo de criar uma pequena tipologia da mulher ideal, merecedora da atenção de Dom Sebastião. (GODOY, 2005, p.47).
Para o autor as melhores mulheres eram as modestas, temperadas e
ensina de forma direta que aquelas que assim não fossem deveriam ser
evitadas pelo jovem rei. Mattoso, utilizando-se de Hilário Franco Junior diz:
É claro que está em jogo aqui a ideia de que a mulher traz consigo a mancha de ter sido a responsável pelo pecado original, a partir do ato de Eva, quando tomou o fruto proibido. Essa visão teve forte presença no imaginário medieval, causando o fenômeno da misoginia entre os nobres e cavaleiros das Cortes Medievais. (1992 apud JUNIOR, 2005, p.47).
Existe a especulação de alguns historiadores dizendo que este tipo de
educação, “pode ter sido uma das causas responsáveis pelo não envolvimento
de Dom Sebastião com nenhuma mulher. E este fato teria acarretado
consequentemente, a carência de um herdeiro para o trono português”.
(GODOY, 2005, p.47).
O problema dinástico vai perpassar todo o reinado de Sebastião.
Tentativas de casa-lo com uma francesa, resolvendo assim alguns problemas
políticos e comerciais, foram feitas. A diplomacia da Santa Sé, depois de tentar
o casamento do jovem rei com a filha do imperador alemão, quedou-se à
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perspectiva de um casamento francês. Havia tentativas em diversas direções e
por diversos interesses. Mattoso diz que:
D. Sebastião, por doença ou misoginia, não resolveu o assunto, embora dele se tivesse ocupado. Aliás, as interferências estrangeiras nesta matéria são demasiado gritantes para que uma personalidade forte como a de D. Sebastião pudesse acatar o que queriam impor-lhe, como se ele próprio não contasse. Nesta matéria tratavam-no simplesmente como uma das peças da política dinástica dos Áustrias, que tinham Felipe II como chefe de família e D. Catarina como sua fiel colaboradora em Portugal. (MATTOSO, 1997, p.457).
A educação de D. Sebastião foi voltada, primordialmente, para a arte
da guerra, já que ele era o desejado para devolver ao povo português as
conquistas de outrora. Este desejado, sonhado, foi cantado, educado e
influenciado pelos desejos do povo.
Para entender-se de forma mais precisa o que se passou com D.
Sebastião até aqui, é importante fazer-se uma digressão na história de
Portugal. Para isso reporta-se a lenda do Milagre de Ourique, cujo protagonista
foi Dom Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal. A ele atribui-se uma carta
relatando uma revelação de Jesus Cristo em 25 de julho de 1139. Neste
documento Portugal recebe a profecia de ser o povo que levaria o cristianismo
a conquista do mundo. Fala-se também de uma décima sexta descendência,
que seria o cumprimento efetivo dessa profecia e Dom Sebastião foi o décimo
sexto rei de Portugal. Muito embora, por motivos políticos, há quem coloque o
décimo sexto reinado sobre outro personagem. Durante toda a sua formação o
jovem rei foi sendo ensinado que seu antepassado Dom Afonso Henriques era
o modelo a ser seguido. Tem-se então um herói a ser copiado, uma missão
para o povo português como a grande conquistadora em nome do domínio
cristão e aquele em que se materializaria a profecia. Esses e outros aspectos
levaram Dom Sebastião a uma empreitada arriscada, a guerra. Quanto aos
preparativos para a guerra diz-nos José Mattoso:
O rei consegue reunir 16.500 homens, uns treinados, outros
bisonhos, uns confiantes no que poderia resultar do saque,
muitos seguros na eficácia da proteção divina, que não faltaria
ao seu predestinado capitão (...). Havia que acautelar os
abastecimentos em víveres e munições. O objetivo tinha de
estar fixado com rigor, bem como os trajetos, a estratégia e a
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eventualidade de necessárias inversões no sentido de marcha
com apoio na retaguarda no decurso da campanha. Os vários
corpos de cavalaria e de infantaria e a escassa artilharia tinham
de estar ligados por uma cadeia de comando bem definida.
Nada disto foi devidamente pensado ou preparado. A
expedição pasmou os contemporâneos pelo luxo. Era como
que a partida para uma imensa e faustosa festa. Poucos teriam
consciência do perigo que iam correr. A convicção e o
entusiasmo do rei eram contagiantes. Nem de outro modo se
explica que o Duque de Bragança tivesse enviado o filho D.
Teodósio, uma criança ainda, se não para um esperado
passeio triunfal. Não seria. (MATTOSO, 1997, p.459).
O embaixador de Filipe II, D. João da silva, observa logo durante uma
das paragens da armada que transportava o exército: “é grande lástima ver ir o
rei sem homem que entenda o que vamos fazer, e assim parece o ganhar
impossível e o perder certo, porque dependemos totalmente de milagre”.
(MATTOSO,1945 apud VELLOSO, 1997, P.460)
Depois de fatos políticos e econômicos, onde até a Santa Sé se
envolvera, Dom Sebastião manda buscar a espada de Dom Afonso Henriques
que estava em Santa Cruz de Coimbra, e a leva para a Batalha de Alcácer
Quibir. Um herói levando a espada de outro herói. A narrativa toma contorno
trágicos na Batalha de Alcácer-Quibir, no norte da África:
Em 24 de junho de 1578, partiu a armada de Portugal rumo a Tânger. Segundo uma carta de autor anônimo, 847 velas levavam 24 mil homens aos campos africanos. Um conselho formou-se em Arzila para discutir a melhor estratégia para atacar os Mouros em Marrocos. Organiza-se então uma investida em campo aberto, por entenderem que tal estratagema é mais eficaz. Na manhã de 4 de agosto de 1578, finalmente é travada uma batalha em campo aberto nas campinas de Alcácer Quibir. (GODOY, 2005, p.34).
Dom Sebastião, confiante nos desígnios divinos, numa perspectiva de
messias, queria ações militares extremadas. Diz Mattoso:
O seu apetite era caminhar por terra com muito risco da sua pessoa e da sua empresa. Para tal vai escolher o desembarque em Arzila e o deslocamento por terra até Larache, conquistando Alcácer Quibir no caminho. Motivava-o a possibilidade de provocar um confronto pessoal com o xerife. Este estava a postos, aguardando, em sua terra, rodeado por vassalos, tirando proveito das delongas e inépcias do rei português. (MATTOSO, 1997, p.460).
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Menor quantidade de homens e o despreparo de D. Sebastião e dos
demais combatentes levaram a derrota inapelável, mesmo tendo o jovem rei
um comportamento épico.
Após a morte de D. Sebastião em combate, assumiu o reino de
Portugal seu tio cardeal D. Henrique, que governou por apenas um ano e cinco
meses e teve seu reinado marcado por intensas lutas políticas. A morte de D.
Sebastião em Alcácer Quibir e o breve reinado de D.Henrique iniciam um
período com sonhos grandiosos frustrados, levando Portugal a ser Vassalo de
Castela, de 1580 a 1640, sob o governo dos Filipes.
A morte de D. Sebastião é cheia de significados para o povo português deixou
a princípio, sentimento de tristeza e desamparo. Neste momento é mister
introduzir-se dois personagens: Bandarra e D. João de Castro.
Houve um sapateiro em Trancoso, chamado Gonçalo Annes Bandarra que
dedicou-se à divulgação em trovas de profecias messiânicas. Tinha um bom
conhecimento das escrituras do Antigo Testamento, da qual fazia as suas
próprias interpretações, tendo composto escritos falando sobre a vinda
do Encoberto e o futuro de Portugal como reino universal. Em 1603, D. João de
Castro, editou-as e comentou-as numa obra impressa em Paris e
intitulada "Paráfrase e Concordância de Algumas Profecias de
Bandarra". As Trovas foram interpretadas como uma profecia ao regresso do
Rei D. Sebastião após o seu desaparecimento na Batalha de Alcácer-Quibir em
Agosto de 1578. Os escritos de Bandarra são consideradas a Bíblia do
Sebastianismo e foram interpretados de acordo com os diversos interesses ao
longo do tempo:
Bandarra, que é a fonte principal e em todos os tempos foi a cartilha da religião sebastianista. Quando alguma vez as Trovas não davam a justificação cabal dos acontecimentos, adicionavam-se folhas, ou modificavam-se as existentes, de sorte que, qualquer que fosse o objeto que o sapateiro de Trancoso tinha em vista quando as compôs, o sebastianismo apossou-se delas, em cada uma das suas fases, como cabedal próprio, e explorando este tesouro ligou indissoluvelmente ao nome do Bandarra a ideia que exprime no seu. (AZEVEDO, 2013, l.492).
João de Castro lutou com todas as forças para convencer a todos
sobre a volta de D. Sebastião. Diz Azevedo que:
43
D.João de Castro embebido no estudo das profecias, se entusiasmou rapidamente com a crença de que havia de ser D. Sebastião, o Encoberto, imperador do Mundo; que por isso estaria ainda vivo, como muitos criam, e andaria a peregrinar por terras longínquas. (AZEVEDO, 2013, l.496).
Cabe chamar a atenção para o fato de João de Castro ter feito uma
paráfrase das Trovas, interpretando-as e colocando na boca do profeta coisas
que serviriam para legitimar sua crença sebastianista. Para ilustrar esta
afirmação podemos ver uma parte relativa aos anos a que as trovas se
referiam como data para libertação de Portugal, quando D. João transcreve: “Já
o tempo desejado/ É chegado/ se chegam os oitenta, etc. (AZEVEDO, 2013,
l.560). Dessa forma defendia a ideia de que o fato de terem se tornado domínio
de Castela no ano de 1580, nada mais era do que o início do cumprimento das
profecias com relação a D. Sebastião, agora o Encoberto.
Azevedo diz que o Padre Antônio Vieira chegou a afirmar que
Bandarra era mui iluminado profeta quando diz que:
É o padre António Vieira que no-lo dá a saber, e o disse aos inquisidores no seu processo, na sessão de 25 de setembro de 1663. Os pregadores, celebrando a aclamação do novo rei, não hesitavam em dizer, do púlpito, serem as Trovas realmente profecias, e verdadeiro profeta o autor. (AZEVEDO, 2013, l.976).
Vieira, provavelmente, tenha sido o maior intérprete das profecias de
Bandarra, e essa premissa será assunto desta dissertação à frente.
É importante observar nesse momento e trazer à tona a figura de
Manuel Bocarro Francês, também referido como Jacob Rosales que viveu de
1588 a 1668 e que foi um português de ascendência judaica. Diz Azevedo que:
O matemático famoso Manuel Bocarro Francês, também alquimista e médico, quando em 1618 observava o cometa que nesse ano apareceu. Aqui a ciência punha-se de acordo com o prodígio, mas, porque falava em nome da razão iluminada, cumpria-lhe corrigir os erros em que laborava a simples fé. Dizia ele que, como sebastianista, acreditava não ter o soberano perecido na batalha. Rei temos nele, assegurava, não porém em pessoa, mas no sangue da sua raça; e os prognósticos se haviam de cumprir em 1653, cem anos passados do nascimento de D. Sebastião. (AZEVEDO, 2013, l.749).
Manuel Bocarro fizera imprimir em 1624 a Anacephaleosis da
monarquia lusitana, poema de 131 oitavas, dedicado a Filipe IV. Era a primeira
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parte de uma obra que constava de quatro estrofes, consagrada a cantar as
glórias da Nação. (AZEVEDO, 2013, l.753). Esta nova interpretação em relação
ao Encoberto, apareceu num momento conflituoso entre o governo castelhano
e as ordens monásticas. Diz Azevedo que:
Aos muitos erros que o regime dos Filipes cometeu, juntou mais o de ofender os interesses e provocar as iras dela, e esse tinha de lhe ser fatal. A controvérsia sobre o real de água, que abrangia todos os eclesiásticos; a longa e pertinaz contenda da desamortização das capelas, com as ordens monásticas; o conflito com o delegado da Cúria, cujas consequências agravou o interdito, por efeito do qual a maior parte das cerimónias do culto foram suspensas em quase todo o reino; tudo isto levantou contra o governo a gente do Igreja, tão numerosa, e ao mesmo passo, pela repercussão inevitável, o povo em geral. Mas o cúmulo foi chamar ele a contas o Santo Ofício inviolável, sobre os bens confiscados aos réus, por lei atribuídos à coroa, e que os inquisidores como próprios tinham sempre administrado e despendido. (AZEVEDO, 2013, l.831).
Nessa época todos os ramos da família eclesiástica se achavam em
desavença com o governo, desavença ainda mais grave, por tratar de
interesses materiais que nenhuma das partes aceitavam abrir mão. Diz
Azevedo que:
Mais pertinazes e ativos na oposição que qualquer dos outros contentores se mostravam os jesuítas, e em Lisboa, Madrid e Roma não poupavam esforços no intuito de contrastar o governo castelhano. Entre eles, mais sagaz, o padre Nuno da Cunha, reitor do Colégio dos Irlandeses, que ao lado do coletor apostólico, Bispo de Nicastro, escrevia os editais contra as autoridades do reino, e — caso de mais valor ainda — escreveu também o breve que, sobre o assunto das capelas, veio de Roma com o selo de Urbano VIII. Este mesmo foi quem realizou a aliança com a ordem rival dos dominicanos, unindo assim para a luta os dois organismos mais poderosos do clero nacional. (AZEVEDO, 2013, l.839).
Na esteira do conflito, eclodiu em 1637 a sedição de Évora. Duas
províncias se punham em declarada revolta. As execuções fiscais tinham
provocado o levantamento popular, mas o governo sabia bem a que excitações
ele obedecia, quando mandava procurar nos claustros os verdadeiros
revolucionários. (AZEVEDO, 2013, l.846).
As Trovas eram livro que em cópias manuscritas andava em mãos de
toda a população, lido, relido, decorado e discutido. Inclusive na Espanha os
portugueses que estavam por lá o estudavam. O deslocamento da crença num
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rei que ressuscitaria para a crença em alguém que herdasse a coroa por
consanguinidade foi fator importante para impulsionar as esperanças do povo
português:
Atentos a observarem os menores fatos, cada dia viam justificarem-se os vaticínios. A sedição de Évora fora predita pelo Bandarra: Antes que cerrem quarenta Erguer-se-á grã tormenta. Em 1638 chega ao reino o infante D. Duarte. Logo acode às lembranças a cópia: Este rei tem um irmão. Bom capitão. (AZEVEDO, 2013, l.888).
Na verdade, as autoridades sabiam que os Jesuítas estimulavam as
revoltas através da crença sebastianista:
D. Francisco Manuel observa que a afeição recíproca entre os jesuítas e D. Sebastião fez com que muitos varões doutos da companhia não só duvidassem da morte dele, senão que esperassem que havia de ser restituído ao trono. Esses foram abonando a crença com opiniões de santos, profetas e astrólogos, os mesmos de que já se servira D. João de Castro. Tornou-se assim a Companhia foco ativo do sebastianismo, e não admira que, sobrevindo a desavença com o Estado castelhano, lançasse mão de arma que tinha em casa, e tão incômoda ao adversário. (AZEVEDO, 2013, l.862).
Há precedentes que explicam a interpretação dos Jesuítas quanto ao
sebastianismo:
Em 1578, o padre José de Anchieta, missionário no Brasil, tivera conhecimento da derrota de D. Sebastião no próprio dia da batalha, e assegurava que estava a salvo e tornaria a reinar. O irmão Afonso Rodrigues, que vivia em Maiorca, e a quem Deus favorecia com visões, tivera uma de D. Sebastião, que vinha do céu numa armada a conquistar a mourisma; e diziam os padres de Santo Antão terem achado a relação disso em certo livro, que uns missionários de Castela levaram para as Índias; com grande espanto deles, que nunca tal haviam visto no volume. Em Cochim o irmão Pedro de Basto, estando a orar pela salvação do reino, viu aparecer D. Sebastião, e ouviu uma voz dizer que o império de Espanha acabava. (AZEVEDO, 2013, l.870).
Percebe-se movimento político religioso para independência
portuguesa do governo de Castela. Crenças antigas, em virtude do momento
político, são trazidas à tona para fomentar a independência. Vemos isso
quando sabemos que:
Em 1625 saiu à luz o livro célebre da Vida de Simão Gomes. O autor, padre Manuel da Veiga, era dos reconhecidos adversários de Castela, e facilmente se concebe em que sentido escreveria. Era voz corrente que ainda em vida de D.
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Sebastião, o Sapateiro santo havia predito a perda do reino, seguida mais tarde da restauração. O livro vinha consagrar o vaticínio, que já tinha sido, como sabemos, um dos motivos da conversão de D. João de Castro. E não faltavam notícias de como o fato igualmente se havia manifestado também a outros filhos da Companhia. (AZEVEDO, 2013, l.869).
Os Jesuítas fomentavam a crença messiânica de forma hábil. A
crença sebastianista era força motriz para a liberdade nacional, pois era
elemento utilíssimo para agitar os espíritos.
Em 1640 Filipe IV enviou o duque de Bragança encoberto à Lisboa
para falar com a duquesa de Mântua. “Quem duvidaria de que fosse ele o que
as profecias designavam, quando Deus falava pela voz do castelhano inimigo?”
(AZEVEDO, 2013, l.897). Muitas crenças baseadas no mito da fundação de
Portugal e nas trovas levavam o povo a acreditar no fim do domínio de Castela.
Em 1640 era crença comum que nesse ano terminaria o jugo estranho, porque assim o dizia uma carta de S. Bernardo a D. Afonso Henriques, segundo a qual estaria o reino sessenta anos em cativeiro. (AZEVEDO, 2013, l.900).
Em primeiro de dezembro de 1640, o duque de Bragança, agora
denominado D. João IV foi aclamado rei de Portugal e no dia 15 daquele mês
foi coroado novo monarca português. Com relação a esse fato diz Azevedo
que:
Os sebastianistas tinham por cumprida a profecia na pessoa do seu rei, que era na ordem da sucessão o décimo sexto. A primeira parte realizara-se no desastre de Alcácer; a segunda incutia-lhes a fé viva na volta de D. Sebastião. Com melhor razão aparente os corifeus do partido restaurador contavam as dezesseis gerações em D. João, duque de Bragança. (AZEVEDO, 2013, l.934).
Sebastião José de Carvalho e Melo, também conhecido como
Marquês de Pombal e Conde de Oeiras, que viveu entre 13 de maio de 1699 e
8 de maio de 1782 que era um nobre, liberal diplomata e estadista português.
Foi secretário de Estado do Reino durante o reinado de D. José I. Figura
carismática, porém controversa. Era um dos mais encarniçados inimigo dos
Jesuítas. Para ele os seguidores de Inácio de Loyola eram os responsáveis por
manobras para a aclamação de D. João IV. Diz Azevedo que:
No seu ódio coletivo aos jesuítas, Pombal singularizou dois, a quem acima de todos detestou: Gabriel Malagrida ainda vivo,
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Antônio Vieira, já morto. Sobre o primeiro sabe-se como, com horror do Mundo, satisfez o seu rancor. Ao outro, não podendo atingi-lo mais que na memória, contentou-se em, até onde lhe foi possível, difamar-lhe. O capítulo do sebastianismo proporcionou-lhe a oportunidade. Antônio Vieira foi apontado como o principal fautor da seita, e isso se lhe imputou por crime hediondo. As cópias do Bandarra tinha-as composto ele, depois da aclamação de D. João IV. (AZEVEDO, 2013, l.1530).
Adiante tratar-se-á do Padre Vieira, personagem emblemático.
Chama-se atenção para a reconhecida influência dos Jesuítas, baseados no
sebastianismo, na libertação portuguesa de Castela.
No Brasil há sinais históricos dessa herança cultural que recebemos
de Portugal denominada sebastianismo. Chamamos atenção para “A
Irmandade do Bom Jesus da Pedra”. Em 1819, na região da Serra do
Rodeador em Pernambuco, o “profeta” Silvestre José dos Santos, também
conhecido como “mestre Quiou”, fundou a Irmandade do Bom Jesus da Pedra
e passou a pregar que todas as dificuldades e tristezas dos sertanejos teriam
fim com o breve retorno de D. Sebastião. Apesar de terem restado poucos
relatos detalhados a respeito dos rituais realizados pelos membros da
Irmandade, sabemos que Silvestre Santos era a figura central em todos eles.
Declarando possuir poderes sobrenaturais, o mestre incentivava os fiéis a
confessarem suas faltas e agonias e estabelecia as penitências
correspondentes, as quais, em geral, correspondiam a quantias em dinheiro.
Em poucos meses, um número significativo de membros da Irmandade passou
a morar em cabanas construídas ao redor da moradia de Quiou, criando uma
comunidade com regras e práticas bastante particulares – condenavam, por
exemplo, o roubo, mas consideravam absurdo passarem fome; assim,
justificavam plenamente o furto de alimentos de propriedades vizinhas cujos
donos não tinham se convertido às pregações de Silvestre dos Santos.
Considerados hereges pelo clero católico e bandidos pelas autoridades de
Pernambuco, a perseguição aos sebastianistas da serra do Rodeador foi
implacável. Em 1820, o governador, Luís do Rego Barreto, contando com o
financiamento de importantes fazendeiros da região, organizou uma milícia
para destruir a Irmandade a partir da prisão ou mesmo assassinato de seus
membros. O pequeno povoado foi invadido e as cabanas queimadas. Todos os
homens acabaram fuzilados ou decapitados, enquanto as mulheres e crianças
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foram levadas para Recife, onde acabaram abandonados pelas ruas já que não
existiam instalações públicas que pudessem servir de prisão a elas.
(QUEIROZ, 1976, p. 220).
Deve-se também observar o fenômeno denominado “O Reino
Encantado de Pedra Bonita”. Em 1836, João Antônio dos Santos chegou ao
município de São José do Belmonte, trazendo algumas pequenas pedras
brilhantes que seriam valiosos diamantes. Contava que encontrara o “tesouro”
no fundo de um lago, ao lado do qual estavam duas grandes rochas que, na
verdade, seriam duas torres de uma catedral “encantada” – segundo o que lhe
fora revelado em sonho por D. Sebastião. Não levou muito tempo para que um
número significativo de sertanejos adotasse João dos Santos como seu líder e
se mudasse para os arredores das duas rochas a fim de rezar pelo breve
desencanto delas e, por conseguinte, pelo ressurgimento de D. Sebastião que
salvaria a todos das “privações” deste mundo. Em determinado momento, com
o sumiço de João Antônio dos Santos, João Ferreira, seu cunhado, proclamou-
se rei e retomou com mais veemência suas pregações. O novo líder afirmava
ter visto D. Sebastião, o qual confirmara serem as duas rochas torres de uma
catedral encantada. Contudo, para desencantá-las não bastavam rezas e
penitências – era preciso que as bases das pedras fossem banhadas com
sangue de homens e mulheres, os quais seriam recompensados por seu
sacrifício com “riquezas e felicidades infinitas” após a instalação do novo reino
de D. Sebastião. Os sacrifícios foram marcados para o dia 14 de maio de 1838.
O pai de João Ferreira foi o primeiro a oferecer seu sangue, dando início ao
morticínio de mais de 50 pessoas, incluindo crianças. Três dias depois, após
comandar pessoalmente o sacrifício de suas duas esposas, chegou a vez do
rei ter a garganta cortada por seus próprios seguidores. Isso porque Pedro
Antônio, irmão do desaparecido João dos Santos, passou a afirmar que
também sonhara com D. Sebastião, o qual lhe revelara que só faltava o sangue
de Ferreira para as pedras desencantarem. Pedro Antônio tornou-se, então, o
novo rei. Contudo, seu reinado durou pouco mais de 24 horas. Alarmado pelo
grande número de mortes, o coronel da Guarda Nacional, Manuel Pereira da
Silva, invadiu com suas tropas o Reino Encantado e assassinou a maior parte
de seus moradores, a exemplo do que acontecera na serra do Rodeador
dezoito anos antes. (QUEIROZ, 1976, p. 222).
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Ainda nessa linha sebastianista diz Maria Isaura Pereira de Queiroz
que: “O Messias brasileiro mais conhecido e estudado foi Antônio Conselheiro,
cuja família se celebrizara numa dessas lutas frequentes do interior do Brasil, a
luta entre Maciéis e Araújos, no Ceará”. (QUEIROZ, 1976, p. 225). Sobre ele
tratar-se-á mais adiante de forma mais apurada.
Depois do que vimos acima pode-se destacar a criação de Portugal
sendo legitimada por crença religiosa que prenunciava um futuro de glórias
para aquela nação. Pode-se destacar também a religião sendo usada em
relação a Dom Sebastião. Ele era um rei esperado, alguém escolhido por Deus
para devolver aos portugueses glórias já vivenciadas. Essa perspectiva
religiosa foi fator impulsionador do jovem e rei e seus seguidores para
enfrentarem uma guerra que levaria Portugal, após a morde do jovem rei, ao
domínio espanhol. Destaca-se ainda a perspectiva religiosa sendo utilizada
para infundir no povo português a certeza da restauração. As crenças foram
manipuladas para que os que ansiavam pela restauração do reino vissem nas
profecias a certeza da época da libertação.
Isso nos lembra o que foi tratado no capítulo anterior:
A legitimação religiosa pretende relacionar a realidade humanamente definida com a realidade última, universal e sagrada. As construções da atividade humana, intrinsecamente precárias e contraditórias, recebem, assim a aparência de definitiva segurança e permanência. Dito de outra maneira, os nomoi humanamente construídos ganham um status cósmico. (BERGER, 1985, p.59).
A religião deu sentido aos empreendimentos do povo português ao
longo da história. Trazendo certezas e esperanças. Pode-se fazer uma leitura
messiânica do que tratamos até agora. Ou seja, a esperança de que alguém
irromperá na história para, de forma revolucionária, transformar o status quo,
principalmente entre aqueles que estão sofrendo as mazelas da injustiça e da
pobreza.
É possível observar o entrelaçamento da religião com a política na
criação do sebastianismo. Percebe-se que o mesmo fenômeno foi interpretado
de diversas formas e chegou ao Brasil. Na sequência analisaremos a leitura
que Padre Vieira e Antônio Conselheiro fazem do fenômeno.
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Capítulo 3
VIEIRA E CONSELHEIRO, INTERPRETES DE UMA LENDA
3.1 PADRE ANTÔNIO VIEIRA
UM SEBASTIANISTA CONVICTO
Antônio Vieira nasceu em 06 de fevereiro de 1608, na cidade de
Lisboa. Juntamente com sua família, foi levado para a Bahia por seu pai
Cristovão Ravasco, partindo de Portugal em 1614. Na juventude se mostrou
aluno inteligente e esforçado. Foi ordenado Presbítero (padre) em dezembro de
1634, pouco antes de completar 27 anos. “Como já tantas vezes foi notado, foi
um homem de ação, inserido na sua circunstância e, sobretudo, comprometido
com a missão de a modificar”. (CALAFATE, 2015, p.15).
Vieira sempre foi leitor crédulo das Trovas de Bandarra, escritos de
forte teor profético, que foram escritas por volta de 1530, em Trancoso, por um
sapateiro chamado Gonçalo Annes Bandarra, que foram publicadas por um
nobre português de nome João de Castro, com o título de “Paráfrase e
Concordância de Algumas Profecias de Bandarra Sapateiro de Trancoso”. As
profecias contidas nas Trovas foram aplicadas a Dom Sebastião, mostrando-o
como o Encoberto, sendo as Trovas consideradas a bíblia do Sebastianismo
(GODOY, 2015). Diz Bosi que:
O Padre Antônio Vieira Passou a sua longa vida entre os cuidados do presente e os sonhos do futuro. À primeira vista essa junção de constante operosidade e fantasias de visionário deixará perplexo quem quiser traçar a sua biografia. O diplomata solerte, o conselheiro de projetos econômicos de longo alcance e missionário zeloso parecem incompatíveis com o leitor crédulo das trovas do sapateiro Bandarra e o crente na ressureição de um rei morto havia poucos anos. O Homem realista do aqui e agora, convicto da primazia do dinheiro e do poder militar no xadrez da política europeia, é, ao mesmo tempo, o milenarista que espera o advento iminente do Quinto Império universal figurado nas profecias de Daniel. (BOSI, 2011, p.9).
Para Vieira nada acontece sem que se possa discernir os desígnios
da Providência; certeza que o confortará até os derradeiros escritos e
sustentará a sua vasta obra profética. (Bosi, 2011).
Há poucas informações acerca da docência de Vieira, que só
51
receberia a ordenação de presbítero em dezembro de 1634, pouco antes de
completar 27 anos de idade:
Sabe-se que não se restringiu ao ensino de retórica o seu magistério nos colégios da companhia. Na Bahia foi designado professor de filosofia e de teologia, o que significa uma intensa leitura da Suma teológica de Santo Tomás, a autoridade por excelência recomendada na Ratio Studiorum. (Plano e Organização de Estudos da Companhia de Jesus) (BOSI, 2011, p.17).
Como pregador Vieira estreou na Bahia na quarta dominga da
Quaresma de 1633, ainda antes de ordenado presbítero. Utilizava-se dos
sermões para combater a invasão holandesa:
Nos primeiros sermões prevalece a fusão de retórica bélica desencadeada pelo receio de novas arremetidas dos holandeses, senhores de Pernambuco, e expressões de religioso horror ao eventual triunfo dos hereges, cuja violência iconoclasta ainda estava na memória dos que tinham sofrido a invasão de 1624. A iminência do perigo, a narração expressionista dos seus males, o repto à resistência dos colonos bem como os rogos ao auxílio divino serão uma constante no sermonário político-religioso de Vieira nesse período turbulento de nossa vida colonial. (BOSI, 2011, p.19).
Em janeiro de 1634, Vieira prega o Sermão de São Sebastião, onde de
forma contundente fala do santo, mas também de D. Sebastião, o jovem rei
desaparecido na batalha de Alcácer Quibir em 04 de agosto de 1578,
denominado neste ponto como o Encoberto. Observemos parte do sermão:
Primeiramente, foi São Sebastião, o Encoberto, porque encobriu a realidade da vida debaixo da opinião da morte. São palavras formais do texto eclesiástico da sua história: Quem omnium opinione mortuum, noctu sancta mulier Irene sepeliendi gratia jussiit auferri; sed vivum repertum domi suae cutravit, et Paulo post confirmata valetudine. - Oh! milagre! Oh! maravilha da Providência divina! Na opinião de todos era Sebastião morto: omnium opinione mortuum; mas na verdade e na realidade estava Sebastião vivo: vivum repertum; ferido sim, e malferido, mas, depois das feridas curado: Irene domi suae curavit; deixado sim por morto de dia na campanha, mas de noite retirado dela: noctu jussit auferri; com vozes sim de sepultura e de sepultado: Sepeliendi grafia; mas vivo, são, valente, e tão forte como de antes era: confirmata valetudine. - Assim saiu Sebastião daquela batalha, e assim foi achado depois dela: na opinião morto, mas na realidade vivo: opinione mortuum, vivum repertum. - Atam a São Sebastião a um tronco - escusada diligência, para quem estava mais atado a Cristo, mais preso na sua fé, e mais seguro na sua constância - voam as setas, empregam-se os tiros, despejam-se as aljavas, desaparece o corpo, pregam-se já umas setas em outras setas:
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quem não crerá que está morto Sebastião? Assim o creem os bárbaros, que já se retiram; assim o crê o tirano, que já está satisfeito; assim o choram os amigos, assim o lamenta a Igreja, assim o geme e suspira a cristandade; mas que importa que Sebastião esteja morto na opinião, se estava vivo na realidade? Isto é ser Sebastião, o Encoberto, porque encobriu a realidade da vida debaixo da opinião da morte: opinione mortuum, vivum repertum. (BOSI, 2011, p.635).
Percebe-se de forma clara nesta parte do sermão que Vieira era sebastianista
verdadeiro, defendendo a ideia do retorno do jovem rei, desaparecido em
batalha. Vieira sabe do estrago feito pelo desaparecimento de D. Sebastião, já
que pouco tempo após a Batalha de Alcácer Quibir e o breve reinado de seu tio
D. Henrique, no ano de 1580 Portugal voltou a ser domínio de Espanha e a
infância e boa parte da juventude de Vieira ainda vê esse domínio.
Uma das características de Vieira é o pragmatismo, jesuíta que era
queria ver o término do domínio espanhol, por isso passou a interpretar
sebastianismo de forma diferente, quando da restauração do reino português,
já que em 15 de dezembro de 1640 Dom João IV assume o reinado de
Portugal apartando-se da Espanha.
Vieira precisava de apoio para essa mudança de interpretação e o
argumento foi propiciado pelo matemático famoso Manuel Bocarro Francês,
também alquimista e médico, que em 1618 observava o cometa que apareceu
naquele ano. Diz Azevedo que:
Aqui a ciência punha-se de acordo com o prodígio, mas, porque falava em nome da razão iluminada, cumpria-lhe corrigir os erros em que laborava a simples fé. Dizia ele que, como sebastianista, acreditava não ter o soberano perecido na batalha. Rei temos nele, assegurava, não, porém em pessoa, mas no sangue da sua raça; e os prognósticos se haviam de cumprir em 1653, cem anos passados do nascimento de D. Sebastião. (AZEVEDO, 2013, l.749).
Esta interpretação de Bocarro em relação ao sebastianismo é usada por Vieira,
que agora passa a ver o cumprimento das profecias de Bandarra em D. João
IV.
Godoy defende a ideia de que Vieira deixa de ser sebastianista para ser
joanino mostrando que a partir da restauração do reino português ele desloca a
53
figura do Encoberto de Dom Sebastião para Dom João IV. (GODOY, 2005). Diz
ainda que:
Talvez neste momento o padre se torna joanista, já que o rei desaparecido, Dom Sebastião, de acordo com a lógica do seu novo discurso, é uma personagem que teve sua importância histórica num passado, de certa forma longínquo dos tempos em que Vieira vive, enquanto Dom João IV promovia nada mais nada menos que a tão esperada Restauração do trono português exatamente quando o padre está no auge de sua
missão clerical. (GODOY, 2005, p.119).
Bosi também trabalha com este assunto mostrando a perspectiva Inaciana
quando diz que:
Ponto obscuro, se não controverso, é a relação do jovem pregador com o sebastianismo. Os Jesuítas, uns aberta outros cautamente, teriam alimentado a crença na volta do rei desaparecido nas areias de Alcácer Quibir. Insatisfeita com a tirania castelhana, a maioria dos inacianos esperava pela restauração da soberania portuguesa, vindo a apoiar o movimento que levou o duque de Bragança ao trono sob o nome de D. João IV. (BOSI, 2011, p.20).
Não cremos ser obscuro e nem controverso, pois na verdade Vieira não deixou
de ser sebastianista, mas como vimos acima ele deixa de acreditar na volta de
D. Sebastião em pessoa e passa a defender a ideia de que alguém do sangue
do rei desparecido em batalha seria o cumpridor das profecias de Bandarra.
Vale observar que D. Sebastião e D. João IV eram descendentes de D. Manuel
I.
Observava-se ainda que Vieira era crente convicto nas trovas de
Bandarra tanto que dizia que Bandarra foi favorecido, ilustrado de Deus com
verdadeiro espírito de profecia (...) (Vieira, 2015). Disse ainda que (...) “as três
inteligências em que Bandarra foi insigne, foram a declaração das Escrituras.
Conhecimento das coisas secretas e predição das futuras”. (VIEIRA, 2015,
P.368). E interpretando de forma diferente usa-o para defender a aclamação de
D. João IV:
Só Deus, que é Senhor dos tempos e dos sucessos deles, o podia saber; e este é o tempo desejado que previu e de que fala Bandarra, quando diz: “Já o tempo desejado é chegado”. Logo assimilando determinadamente o tempo, declarando sem metáfora nem enigma que havia de ser no ano de quarenta; e não no princípio nem no meio, senão no fim, quando se cerrasse o ano: “já se cerram os quarenta”; e que neste fim e
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encerramento do ano havia de ser, não introduzido por si mesmo, senão levantando, não um governador e defensor do reino, senão rei, e não rei antigo ou que já o tivesse sido, senão rei novo. O rei novo é levantado. Assim o disse e escreveu mais de cem anos Bandarra; e assim o vimos mais de cem anos depois, rei, e novo, e levantado, e no ano de quarenta, e no fim dele: no memorável dia do primeiro de dezembro. (VIEIRA, 2015, P.379).
É importante destacar a adaptação feita pelos Jesuítas para legitimar
a restauração e ascensão ao reino de D. João IV. Na paráfrase de João de
Castro. Na trova número 88 trazia o nome Dom Foão, e o autor da paráfrase do
profeta de Trancoso usava as duas últimas letras para defender a ideia de que
aquela porção do texto falava de D. Sebastião. Os Jesuítas e outros que
apoiavam D. João IV como restaurador, defendiam a ideia de um erro de grafia.
Ou seja, que na verdade o que estava no texto seria D. João. Vejamos na
paráfrase de João de Castro: “Saia, saia esse Infante/ Bem andante/ O seu
nome é Dom Foão”. (AZEVEDO, 2013, L.586). Já segundo os da restauração:
“Saia, saia esse infante/ Bem andante/ O seu nome é Dom João”. (AZEVEDO,
2013, l.592).
Além de mudança na interpretação havia também alteração no texto.
Não abriram mão do sebastianismo, mas interpretaram de acordo com o status
quo.
Na verdade, a restauração do reino português abriu novas
perspectivas para Vieira e depois de lances sagazes deste, foi incluso numa
comitiva que constituída de diversas pessoas ilustres, inclusive o Governador
da Bahia, Dom Jorge Mascarenhas, partiu para Lisboa em 27 de fevereiro de
1641. Chegando lá foram recebidos calorosamente por Dom João IV (BOSI,
2011, p. 21).
Inicia-se aí uma nova fase na carreira de Vieira na condição de
conselheiro do rei. Diz Bosi:
A admiração de D. João IV pelo talento de Vieira deve ter sido imediata. Criou-se entre o rei e o sacerdote um elo pessoal bastante forte para resistir a conjunturas difíceis em que, provavelmente a contragosto, nem sempre pôde o primeiro atender aos conselhos do segundo. (BOSI, 2011, p.21).
Tantas mostras de consideração régia foram largamente retribuídas por Vieira,
que não hesitou em transpor para a pessoa de D. João IV, enquanto vivo e
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depois de morto, a crença na volta e na ressurreição de D. Sebastião. (BOSI,
2011).
Na condição de conselheiro Vieira propôs “a criação de uma
Companhia das Índias Ocidentais a exemplo das congêneres inglesa e
holandesa”. (BOSI, 2011, p.23). Para a concretização deste intento tinha como
maior dificuldade:
A ação antissemita das Inquisição, particularmente intensa e arbitrária em Portugal. Era no Santo Ofício e na mentalidade difusa entre nobres e clero que se entrincheiravam os maiores inimigos da empresa. O projeto, se executado, impediria a expulsão dos Judeus e o confisco de seus bens. (BOSI, 2011, p.23).
Como argumento, Vieira demonstra ao rei D. João IV a situação precária em
que se encontrava Portugal.
Antônio Vieira nessa primeira ida à Portugal, permaneceu naquele
país de 1641 até o final de 1652. E neste período foi pessoa importante para os
primeiros anos do governo restaurado. Diz Bosi que:
Em feliz contraponto com os altos e baixos que conheceu o emissário de D. João IV nas cortes europeias, o Vieira pregador obteve êxito crescente desde sua estreia na capela real no dia do Ano-Bom de 1642. Passam de cinquenta os sermões que, a partir dessa data, proferiu em Lisboa até sua volta ao Brasil no final de 1652. (BOSI, 2011, p.31).
Da afirmação acima nota-se um período de sucessos na vida de Vieira.
Há um episódio quando da doença de D. João IV que, de certa forma,
vai interferir na vida do padre famoso:
Chegando novamente a Lisboa, no ano de 1655, Vieira rumou para Salvaterra, onde se achava acamado D. João IV convalescendo de um ataque de uremia, enfermidade de que viria a morrer no ano seguinte. Saindo da visita, consolou a rainha dona Luísa, assegurando-lhe que o rei não partiria tão cedo, pois ainda deveria praticar grandes feitos, mas, se prouvesse a Deus tirá-lo do meio dos vivos, certamente o ressuscitaria para resgatar os lugares santos e estabelecer o império universal de Cristo. Catorze anos antes, ao estrear na capela real com o Sermão dos Bons anos, Vieira já identificara na pessoa de D. João IV a figura do Encoberto, aquele que restauraria o trono português e salvaria a cristandade. Essa convicção, que o levaria a barra do Santo Ofício, parece não tê-lo abandonado ao longo da vida inteira. (BOSI, 2011, p.58).
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Esta perspectiva de Vieira passa a impressão de que a defesa do
sebastianismo, agora, segundo o padre, evidente na pessoa de D. João IV, foi
fator si-ne-qua-non para que fosse julgado pelo Santo Ofício. Ainda mais
quando demonstra convicção em relação a D. João IV ao escrever ao padre
André Fernandes, confessor da rainha, uma longa carta, datada de Camutá, no
caminho do Rio Amazonas, em 29 de abril de 1659:
O texto desenvolve um discurso profético cerrado em torno de cada trova. O propósito é mostrar que Bandarra um verdadeiro profeta, pois as suas predições se haviam realizado e que, portanto, era justo acreditar que o mesmo sucederia às demais. D. João IV ressuscitaria em breve, venceria os turcos, converteria os gentios à cristandade e acolheria no seu império os judeus, que, por sua vez, reuniriam as doze tribos pelo mundo havia cerca de dois milênios. (BOSI, 2011, p.79).
Mas havia outros fatores utilizados para prejudicar o Conselheiro do rei:
A interpretação contextual não poderá ignorar a discrepância de opiniões e sentimentos entre Vieira e os mentores da Inquisição, pertencentes, em sua maioria, à Ordem dos Pregadores. A isenção do fisco, recomendada pelo jesuíta em favor dos mercadores judeus e cristãos novos, afetava diretamente os recursos financeiros do Santo Ofício, que procurara impugná-la por todos os meios. É preciso lembrar que o inquisidor – mor tinha, em Portugal, desde o reinado dos Filipes, um lugar assegurado no Conselho de Estado. (BOSI, 2011, p.59).
Observa-se aí que o verdadeiro motivador para o processo era uma questão
financeira e não simplesmente doutrinária. Ou seja, o Santo Ofício, em virtude
das ideias de Vieira estava perdendo poder e dinheiro:
O início do processo inquisitorial data de 1663, altura em que foi chamado a justificar as teses sobre a ressurreição de D.João IV, antes da ressureição universal, que passara a texto em 29 de abril de 1659 sob a forma de carta, endereçada a André Fernandes, Bispo eleito de Japão. (CALAFATE, 2015, p.16).
Observa-se que Vieira declarou na Inquisição ter feito o escrito do Quinto
Império, sem intuito de que viesse a público, e somente para o padre André
Fernandes este mostrasse à rainha, que poderia assim consolar-se da perda
que o reino e ela haviam padecido, com a morte e doença e D. João IV.
(AZEVEDO, 2013):
Não é crível ter o confessor, contra a vontade do seu amigo, dado tanta publicidade ao papel, que em pouco tempo andava, por assim dizer, em todas as mãos. Nem António Vieira era
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homem que dispensasse os grandes auditórios. Senhor de uma verdade não lhe consentia o ânimo segredá-la a quem quer que fosse. No púlpito, na sala do conselho, no recato da sua cela, ou, como agora, na solidão vasta dos rios amazónicos, tudo para ele era achar-se na tribuna. Mal lhe havia de surtir o hábito desta vez, porque o escrito foi pretexto do processo que daí a pouco o reteve cinco anos sob o jugo dos inquisidores, e mais de dois no cárcere em Coimbra. (AZEVEDO, 2013, l.1208).
Vieira escreveu grande obra, mostrando sua crença milenarista do
Quinto império, ensinando que este seria o império português. O pensamento
de Vieira nessa perspectiva é demonstrado em seus escritos denominado
“História do Futuro”, obra escrita desde 1649, e só editada em 1718:
Divide-se a História do Futuro em sete partes ou livros. No primeiro se mostra que há de haver no mundo um novo império; no segundo, que império há de ser; no terceiro, suas grandezas e felicidades; no quarto, os meios por que se há de introduzir; no quinto, em que terra, no sexto, em que tempo; no sétimo, em que pessoa. Estas sete coisas são as que há de examinar, resolver e provar esta história nova, que oferecemos, no Quinto Império do mundo. (CALAFATE, 2015, p.75).
Por sua vez, na antevisão deste futuro prodigioso e extraordinário, Antônio Vieira sublinhava:
A importância das profecias de Bandarra, a cuja interpretação se entregou com desvelo, levando-as a coincidir com os acontecimentos que marcaram a Restauração e com as esperanças num novo império do mundo, após a derrota do império turco, razão por que o considera verdadeiro profeta. (CALAFATE, 2015, p.34).
Vieira defende, na sua obra, que Bandarra não só predisse a sujeição
do reino à Castela e sua liberdade, mas que o fim de uma e o princípio da outra
havia de ser, segundo ele, no ano de quarenta, e que naquele ano seria
levantado novo Rei de Portugal, e que este se chamaria Dom João, com todas
as outras circunstâncias tão miúdas e particulares, como se verá no mesmo
lugar. Essa crença não o transforma em joanino, como já dissemos antes, mas
uma mudança de interpretação. Mudança da espera de D. Sebastião em
pessoa, para alguém que tinha o sangue de D. Sebastião no caso de D. João
IV:
O imperador, que há de vir como instrumento de Deus para vencer os turcos, conquistar a Terra Santa e inaugurar o Quinto Império, será português. O seu nome não é mencionado nesta segunda representação, ao contrário dos que se dá na primeira, cujo alvo é precisamente provar que D. João IV era o
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Encoberto, o Esperado, o Desejado, o Redivivo. (BOSI, 2011, p.85).
Vieira, condenado pela inquisição, ficou recluso em um Colégio dos
jesuítas em Coimbra, entre 1º de outubro de 1665 e 23 de dezembro de 1667,
quando sua reclusão foi transferida para a Casa do Noviciado dos jesuítas em
Lisboa. Em 30 de junho de 1668, recebeu o perdão das penas. (BOSI, 2011).
Como já observamos, Vieira era pragmático, por isso o vemos
mudando o personagem para cumprir as profecias do profeta Bandarra:
Antônio Vieira, pertinaz em suas opiniões e animado do desejo tirânico de as impor, tinha a faculdade de as abandonar e passar a outras, por um processo de evolução fácil e no fundo absolutamente lógico. Os menos dispostos para com ele poderiam taxá-lo por isso de versátil. O facto é que, pouco a pouco, foi abandonando a ideia da ressurreição de D. João IV, que não via realizar-se, e pondo em outros as esperanças do Quinto Império. (AZEVEDO, 2013, l.1278).
Passou a ver o Encoberto em D. Afonso VI, filho de D. João IV, e do qual se
dizia doente menta. Renega decididamente o rei falecido:
Passa em seguida o império a D. Pedro, e depois a seu primogénito, o primeiro D. João, que viveu poucos dias e a respeito de quem em 1689 pregou na Baía que não só havia de ser imperador senão imperador de todo o Mundo. E, como a morte do príncipe lhe inutilizou o presságio, dava-lhe um sentido místico, para asseverar que Deus o chamara ao império do Céu, ficando o da terra para o irmão esperado, que havia de ser D. João V. (AZEVEDO, 2013, l.1282).
Vieira, como bom componente da Companhia de Jesus, foi, portanto, ao longo
do tempo, se acomodando as transformações:
(...) é provável que a obra profética de Vieira tenha sido mais um lance do sebastianismo português, que ele rejeitou taticamente para melhor convertê-lo na espera do rei encoberto, alçando-o por fim à miragem do Quinto Império. (BOSI, 2011, p.117).
Podemos encerrar esta primeira parte do terceiro capítulo observando
que Vieira desde do início de sua carreira utilizou-se da religião para dar
sentido às coisas da política. Utilizou seus sermões para instigar a expulsão
dos Holandeses. Também fez uso da legitimação religiosa para concretizar
empreendimentos políticos e financeiros em terras portuguesas. Utilizou-se
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também da religião para defender-se dos Dominicanos da Inquisição. Vieira
utilizou-se da religião para legitimar seus atos.
A legitimação religiosa pretende relacionar a realidade humanamente definida com a realidade última, universal e sagrada. As construções da atividade humana, intrinsecamente precárias e contraditórias, recebem, assim a aparência de definitiva segurança e permanência. Dito de outra maneira, os nomoi humanamente construídos ganham um status cósmico. (BERGER, 1985, p.59).
Berger demonstra de forma contundente a pretensão da legitimação
religiosa. O padre famoso utilizou-se sagazmente desta grande legitimadora.
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3.2 ANTÔNIO CONSELHEIRO
Em 13 de março de 1830, nasceu em Quixeramobim, no Ceará, Antônio
Vicente Mendes Maciel. Foi o messias brasileiro mais conhecido e estudado,
teve sua família celebrizada numa dessas lutas, que já foram frequentes no
interior do Brasil, a luta entre Maciéis e Araújos, no Ceará, que deixou diversos
mortos em ambas as famílias. (QUEIROZ, 2003).
Depois de infância e mocidade acidentadas, Antônio Vicente Mendes Maciel, que, reservado pelo pai à carreira eclesiástica, não pudera cumprir seu destino, dedicou-se a partir de 1867 ou 1868 totalmente à vida religiosa. (QUEIROZ, 2003, p. 225).
Fez um péssimo casamento, em virtude, provavelmente da péssima
índole da mulher, que fugiu com um Policial da cidade de Ipu. Após o ocorrido,
envergonhado e alquebrado, Maciel desce errante pelas paragens do sertão
cearense, até que após dez anos a impressão que se pode ter é de que aquele
Maciel, depois de muitas experiências havia morrido. (CUNHA,2009). Vivia de
esmolas, recusando o que fosse mais do que o suficiente para a sua
subsistência, não aceitava uma cama para descansar dando preferência para
uma tábua nua e se não fosse possível deitava mesmo no chão duro.
(CUNHA,2009).
Depois desse tempo surgiu em Itapecuru, no norte da Bahia, com
cabelos e barba compridos, magro, trajando hábito azul de brim americano,
com uma espécie de cajado. Euclides da Cunha é em muitos momentos
ambíguo em relação a Conselheiro, mas em determinado momento, apresenta-
o como inteligente, mas sem cultura e diz que muitas lendas haviam a seu
respeito. (Cunha,2009). Sua personalidade e forma de viver, além dos seus
conselhos, faziam crescer de forma vertiginosa a sua fama. Era chamado de
irmão Antônio, ainda não demonstrando o líder, mas alguém solicito.
(QUEIROZ, 2003).
É interessante notar a evolução dos nomes que recebeu o Conselheiro. Quando criança chamavam-no Antônio Vicente, na juventude, Maciel. No início de sua vida religiosa leiga, era conhecido por Irmão Antônio, ou também por Antônio dos Mares, Santo Antônio dos Mares, Antônio Aparecido e, finalmente, em meados da década de 1870, Antônio Conselheiro. Este último título demonstra que ele era considerado, mais que um beato, um sábio conselheiro, título
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religioso oitocentista que poucos sertanejos chegaram a receber. (Levine, 1995, p.186).
Quanto as lendas das quais Euclides da Cunha fala em profusão, Maria Isaura
Pereira de Queiroz descreve alguns aspectos:
Manifestava dons terapêuticos, realizando curas extraordinárias: Num fio de barba, um fragmento de unha, possuíam grandiosas virtudes contra vários males. Não tardou que a notícia de milagres viesse aumentar o seu renome. Diziam que quando rezava, a virgem chorava lágrimas de sangue; madeiros pesadíssimos eram erguidos apenas por dois homens como se fossem plumas, à sua ordem; em determinada hora do dia, entrava em êxtase, para se comunicar com o próprio Deus. (QUEIROZ, 2003, p. 226).
No começo andava solitário, mas em pouco tempo era seguido por
número cada vez maior de fiéis. Tentou se fixar a princípio em Itapecuru,
fundando o Arraial do Bom Jesus, que cresceu a ponto de parecer uma cidade.
Com o passar do tempo Antônio assumiu comportamento Belicoso, o que
depois de aproximadamente doze anos fez com que precisasse se retirar
daquela localidade. (QUEIROZ, 2003).
A proclamação da república fê-lo endurecer nesta fase; opondo-se-lhe abertamente, encarando-a como o prenúncio do fim do mundo, deixou a vila de Bom Jesus, quase por ele edificada, enveredando um dia sertão afora seguido dos fiéis, procurando no deserto dos chapadões desolados pela seca um local propício para instalar a Nova Jerusalém, onde os privilegiados pudessem esperar tranquilos o anunciado juízo final, furtando-se ao republicano governo do Anticristo. (QUEIROZ, 2003, p. 226).
Cabe ressaltar que o começo da década de 1890 foi um período
perturbador para os brasileiros, em virtude da problemática transição de um
regime monárquico para um regime republicano. “A República foi instaurada
após um rápido golpe militar, que praticamente não encontrou resistência, em
15 de novembro de 1889”. (LEVINE, 1995, p.35).
A sua decisão de se estabelecer em Canudos, no vale do Vasa-
Barris, foi consequência direta de um ataque desferido pela polícia contra ele e
seus seguidores em Masseté, em inicios de 1893:
Nesse ano, ele começou a pregar a respeito de uma terra sagrada do alto sertão. A resposta foi espantosa e imediata. Fluxos de pessoas - indivíduos sozinhos, famílias inteiras e
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eventualmente toda a população das regiões circunvizinhas – seguiram-no até Canudos, deixando suas casas, alguns até vendendo suas propriedades pelo que oferecessem primeiro, carregando suas posses, suas mobílias, seus altares portáteis para a nova colônia. (LEVINE, 1995, p.195).
Chegou ao Arraial de Canudos em 1893. Junto e depois dele chegaram
multidões o que fez com o que o arraial crescesse vertiginosamente. Havia
lugar para todos que quisessem achegar-se à comunidade.
Canudos localizava-se no interior remoto do Nordeste brasileiro, conhecido geralmente como sertão. Essa região era castigada por um clima severo e, normalmente, por uma terra pouco convidativa. A palavra “sertão” originou-se do termo “desertão”. (LEVINE, 1995, p.41).
Canudos teve crescimento vertiginoso e repentino:
Chegando a contar com mais de cinco mil casebres de taipa distribuídos muito próximos uns dos outros e cercados por morros. Sua população de 25 mil almas (que em seu auge, em 1895, deve ter atingido quase 35 mil) fazia da comunidade a segunda de toda a Bahia, depois de Salvador, a Capital do Estado, a cerca de 700 quilômetros ao sul. (LEVINE, 1995, p.42).
Quanto aos números acima há discrepância entre Levine e Queiroz. Para a
última, “no seu apogeu, calculava-se em oito mil a quantidade de habitantes no
Império de Belo Monte”. (QUEIROZ, 2003, p. 229). Seja como for, são números
admiráveis.
Entre 1893 e 1897, a comunidade constituiu-se como base de um movimento popular, tachado de atrasado pelos observadores de fora, mas extremamente forte e pragmaticamente adaptado às limitações da região – uma comunidade pia e religiosa organizada e dominada por Antônio Conselheiro, um católico ortodoxo, leigo e místico. (LEVINE, 1995, p.42).
Maciel, denominado Conselheiro há algum tempo, comandava com
carisma e mão de ferro a população do arraial. Vale lembrar que o Brasil vivia o
princípio da República, modelo com o qual Conselheiro não concordava e
combatia de forma virulenta em seus sermões, e insuflava esse sentimento em
seus seguidores. Ele era, com certeza, um sebastianista e utilizava-se dessa
crença para justificar a sua luta.
Em verdade vos digo, quando as nações brigam com as nações, o Brazil com o Brazil, a Inglaterra com a Inglaterra, a
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Prússia com a Prússia, das ondas do mar D. Sebastião sahirá com todo o seu exército e o restituio em guerra. Desde o princípio do mundo que encantou com todo seu exército e o restituio em guerra. E quando encantou-se afincou a espada na pedra, ella foo até aos copos e ele disse: Adeus mundo! Até mil e tantos e dois mil não chegarás! Neste dia quando sahir o seu exército tira a todos no fio da espada deste papel da República. O fim desta guerra se acabará na Santa Casa de Roma e o sangue hade ir até á junta grossa… (CUNHA,2009,p.165).
Estas palavras de Conselheiro mostram, de forma contundente, a sua
perspectiva sebastianista. “Os rudes poetas, rimando-lhe os desvarios em
quadras incolores, sem a espontaneidade forte dos improvisos sertanejos,
deixaram bem vivos documentos nos versos disparatados”.
(CUNHA,2009,p.195). D. Sebastião já chegou/ E traz muito regimento/
Acabando com o civil/ E fazendo casamento! Visita nos vem fazer/ Nosso rei D.
Sebastião./ Coitado daquele pobre/ Que estiver na lei do cão. (CUNHA,2009,
p.196).
Canudos era pacífica e calma. Os canudenses não eram sectários
como muitos defendem. Na verdade, por não concordarem com o status quo,
ansiavam pelo irromper na história, de alguém que pudesse provocar mudança
de vida. Mais importante para eles era rezar e esperar por Dom Sebastião do
que pegar em armas. (LEVINE, 1995). “A cidade era um refúgio organizado
em bases teocráticas, mas ligado de forma pragmática ao ambiente
circundante – um feito que por si só já demonstra a flexibilidade do Conselheiro
e de seus auxiliares”. (LEVINE, 1995, p.323). Ou seja, aqueles que não tinham
um trabalho dentro do arraial procuravam meios de ganhar seu sustento
trabalhando fora.
A visão euclidiana com relação a Canudos e Conselheiro não é das
mais positivas. Euclides da Cunha chama Antônio Conselheiro de documento
vivo do atavismo2. (CUNHA,2009). E isso ele fala de forma a mais pejorativa
possível, dando a entender que Antônio era herdeiro do que havia de pior na
sociedade pretérita:
2. Reaparição em um descendente de caracteres de um ascendente remoto e que permaneceram
latentes por várias gerações.
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As fases singulares de sua existência não são talvez, períodos sucessivos de uma moléstia grave, mas são com certeza, resumo abreviado dos aspectos predominantes de mal social gravíssimo. Por isto o infeliz, destinado à solicitude dos médicos, veio, impelido por uma potência superior, bater de encontro a uma civilização, indo para a história como poderia ter ido para o hospício. (CUNHA, 2009, p.144).
A frente diz Euclides de Conselheiro: “doente grave, só lhe pode ser
aplicado o conceito de paranoia, de Tanzi e Riva3. Em seu desvio ideativo
vibrou sempre, a bem dizer exclusiva, a nota étnica. Foi um documento raro de
atavismo”. (CUNHA,2009, p.144). O escritor famoso, foi também enfático em
relação as prédicas de Conselheiro:
(...) misto inextricável e confuso de conselhos dogmáticos, preceitos vulgares da moral cristã e de profecias esdrúxulas, segundo Euclides da Cunha, giravam sempre em torno de determinados temas, ressaltando as profecias relacionadas com esperanças milenaristas em torno do iminente regresso de D. Sebastião. A República, reinado do Anticristo, era indício seguro de que o fim do mundo não tardava e contaminara já a própria Igreja Romana, que não escapava também de suas objurgatórias. Mas em seguida D. Sebastião introduziria no mundo o paraíso terrestre, adquirindo Canudos foros de antecâmara do Éden, nova terra de Canaã. (QUEIROZ, 2003, p. 227).
Quanto à população de Canudos Euclides não demonstra muito
apreço, dizendo que era uma mistura de bandidos, crentes fervorosos,
despreparados, uma verdadeira turba, dando a entender que não havia
nenhum tipo de filtro para a entrada em Canudos. (CUNHA,2009, p.181).
Queiroz aprimora o olhar para o arraial:
(...) não era qualquer que encontrava franqueada a entrada e a permanência no grupo, o que dependia de ordens do Conselheiro. Excluíam-se os que lhe tinham merecido a desconfiança, por republicanos, ladrões ou bêbedos; também as meretrizes; e quem negasse a divindade do chefe teria seus bens confiscados e seria morto, ou pelo menos corria o risco de ver repentinamente seus bens tomados pela Companhia do Bom Jesus. (QUEIROZ, 2003, p. 229).
3. Tanzi e Riva, os psiquiatras italianos autores da teoria antropológica do paranoico, fizeram da paranoia um verdadeiro caso de atavismo psíquico hereditário.
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É importante observarmos o que disse Levine sobre a população de Canudos:
Devemos lembrar que entre os habitantes de Belo Monte – representados pelos cronistas como caboclos crentes e patéticos que haviam entregue suas almas ao seu mestre - havia várias pessoas de diferentes raças e condições sociais, incluindo comerciantes, professores, ex escravos, índios, e centenas de jagunços, que, juntamente com outros tipos sertanejos, formavam a milícia da cidade. Todas essas pessoas, das mais refinadas às mais desordeiras, tiravam seus chapéus e abaixavam as suas armas quando na presença do Conselheiro. (LEVINE, 1995, p.290).
Euclides continua implacável, chamando Canudos de:
(...) comunidade homogênea e uniforme, massa inconsciente e bruta, crescendo sem evolver, sem órgão e sem funções especializadas, pela só justaposição mecânica de levas sucessivas, a maneira de um polipeiro4 humano.
(CUNHA,2009, p.181).
Com certeza essa é uma visão reducionista da comunidade de
Canudos, pois ao observarmos o funcionamento de Belo Monte, percebemos
que o arraial era administrado de forma muito eficiente e surpreendente. “No
comando da guerra estava João Abade, indivíduo de instrução maior do que o
comum na zona, braço direito de Conselheiro e executor supremo de suas
ordens”. (QUEIROZ, 2003, p. 231). Isso mostrava uma preocupação
estratégica, passando a impressão de que havia habilidades exploradas para o
bem comum. Pode-se ainda contrapor as afirmações de Euclides ao observar-
se que:
A chefia econômica e civil da vida em grupo coubera aos irmãos Vilanova. Antônio Vilanova exercia uma espécie de juizado de paz, anotando casamentos e zelando pela ordem interna do povoado. O outro irmão, Honório ou Horácio, dirigente do centro comercial, tendo alcançado a inteira confiança do Conselheiro, se tornara o administrador dos bens deste e da comunidade. Homens abastados, eram talvez os mais ricos do arraial, possuindo muitas casas e das melhores. (QUEIROZ, 2003, p. 231).
4. Colônia animal formada pela reunião de pólipos.
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Vê-se ainda, que na parte religiosa, tinha o Conselheiro como acólito Antônio
Beatinho, que vigiava o bom cumprimento dos deveres do culto, pela
coletividade. (QUEIROZ, 2003, p. 232).
Os doze chefes mais importantes destes setores – guerra, economia, vida civil, vida religiosa, - formavam uma espécie de conselho do messias e eram chamados seus apóstolos. Além destes, havia ainda uma guarda especial, denominada Companhia do Bom Jesus, ou Guarda Católica, ou Santa Companhia, que usava uniforme para distinguir dos outros adeptos. (QUEIROZ, 2003, p. 232).
Observa-se a preocupação organizacional procurando fazer com que
pessoas, com habilidades especificas, exercessem funções de liderança,
visando o bem da comunidade. Isso não tem nada a ver com “massa
inconsciente e bruta”, mas demonstra a existência de objetivos.
Pode-se levantar algumas possibilidades para a visão euclidiana com
relação a Conselheiro. Em primeiro lugar tratava-se de um oficial do Exército
Brasileiro, portanto, comprometido com uma das partes envolvidas na batalha
sangrenta que ceifou, de forma inapelável, a vida de Canudos. Nesta
perspectiva ele conta a história com olhar positivista, narrando na ótica dos
vencedores. Em segundo lugar, Euclides não teve acesso a material importante
sobre o pensamento de Conselheiro:
Foi por pouco que Euclides da Cunha deixou de conhecer dois cadernos, com a letra e o nome do Conselheiro. Isso porque, ao contrário do que pretendeu fazer passar, ele não ficou para assistir à derrocada final do vilarejo conselheirista. (VASCONCELLOS, 2017, p.22).
No dia 5 de outubro de 1897 quando os soldados, “vasculhando
escombros e ruinas em busca do corpo do Conselheiro, morto fazia uns quinze
dias, em vez do cadáver o que encontraram foi um caderno, e depois outro”.
(VASCONCELLOS, 2017, p.22).
Neles só se trata de questões fundamentais, cruciais para sustentar a história do Belo Monte que já completava dois anos: a observância dos mandamentos divinos, a consciência da falibilidade e da limitação humanas, a que deve corresponder, com sobras, a certeza da infinita amorosidade divina. (VASCONCELLOS, 2017, p.23).
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Nos cadernos encontrados observa-se um leitor havido além de interprete e
escritor arguto. Os escritos encontrados, chamados Apontamentos dos
Preceitos da Divina Lei de Nosso Senhor Jesus Cristo, para a Salvação dos
Homens, foram baseados, principalmente, em dois livros que acompanhavam o
beato continuamente: a Missão Abreviada para Despertar os Descuidados e
Sustentar o Fruto das Missões e as Horas Marianas. Observa-se que a Missão
Abreviada e porções da Bíblia foram as fontes principais dos escritos em pauta.
De forma muito interessante, Conselheiro usou o artifício da intertextualidade
na construção do seu texto. Observa-se que: “A palavra do Conselheiro é
expressão do seu pensamento, alimentado de tantas fontes e referencias que
hoje, ao menos parte, desconhecemos”. (VASCONCELLOS, 2017, p.20). Mas
também, observa-se que muito embora Conselheiro perscrute diversos textos
”a palavra que essa escrita registra é a do Conselheiro, não dos autores dos
quais se terá servido e de quem mesmo terá transcrito passagens.
(VASCONCELLOS, 2017, p.21).
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Observa-se nos textos paralelos abaixo que no Missão Abreviada há poucas
possibilidades de perdão, enquanto nos Apontamentos esta possibilidade é
realçada. (VASCONCELLOS, 2017, p.86).
Missão Abreviada Pasmai, ó Céus, pasmai sobre tanta maldade!...O juramento, diz São Paulo, é para se conhecer a verdade acabar com as contendas; mas no nosso tempo cada dia se veem mais demandas, mais desordens, os cartórios entulhados de papéis litigiosos, os tribunais cheios de papéis litigantes, os juízos embaraçados, posses antigas extraviadas, propriedades alienadas, dividas perdidas, testamentos anulados, escrituras falsa, e por que se vê tudo isso? Oh que responsabilidades! Que maiores embaraços para a salvação! Bem podeis temer e tremer quando derdes algum juramento; pois se injustamente causardes algum prejuízo, vós não tereis o perdão de Deus. (VASCONCELLOS, 2017, p.86).
Apontamentos O horror que inspira o vosso procedimento deixando-vos vencer pela ameaça para cometerdes um julgamento falso, que ocasiona o dano que sois responsáveis por ele. [...]. Se vos achardes penetrados de reconhecimento pelos benefícios que tendes recebido deles, é justo que deveis satisfazê-los, menos com sacrifício da vossa consciência; conservando-vos numa atitude invencível acerca deste objeto de tanta transcendência para o homem que verdadeiramente teme a Deus. Parece ser o esquecimento da morte que ocasiona tanta desgraça. É mais útil que não vos esqueçais que haveis de morrer: porque não há coisa mais importante para livrar os homens de ofender a Deus do que a repetida lembrança da morte.
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Observa-se que a Missão abreviada era cheia de ameaças enquanto os
Apontamentos estavam tomados de exortação:
O Líder de Belo Monte bebeu do Missão Abreviada, mas também ele terá percebido que essa obra praticamente inviabilizava o acesso ao céu; seu empenho decidido e ousado desenvolvia-se na direção contrária. Daí que suas prédicas e meditações salientem a gratuidade da ação amorosa de Deus, e a necessidade de corresponder a ela. (VASCONCELLOS, 2017, p.92).
Para ilustrarmos o que foi escrito por Conselheiro segue cópia de parte interessantíssima dos apontamenmtos
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Ao olharmos para os Escritos de Conselheiro, vemos alguém
diferente daquele retratado por Euclides da Cunha.
Observa-se que para Queiroz, não havia princípios políticos, mas sim
uma perspectiva de que a República era o Governo do Anticristo, que seria o
partido do demônio. “O único regime legítimo era a Monarquia, em que se
mantinham unidos Igreja e Estado e em que o governo estava nas mãos do
Rei, representante de Deus na terra”. (QUEIROZ, 2003, p. 238). Crê-se ser
uma visão muito romanceada da nobre pesquisadora. A mudança de regime
trouxe aumento de impostos e em muitos aspectos, deteriorou ainda mais a
vida do sertanejo. A queda da monarquia, a abolição da escravatura e a
introdução de mudanças na região trouxeram tensões e precipitaram
ansiedades à medida que o velho sistema desintegrava. (LEVINE, 1995,
p.178). Não houve melhoras com a chegada da República para os rincões do
Brasil, na verdade:
O poder político no Brasil rural continuou nas mãos de um pequeno número de famílias, baseado justamente na propriedade da terra. O Brasil funcionava como um “Estado Patrimonial, as elites políticas, antes e depois do regime monárquico, estavam mais preocupadas em conseguir – como forma de partilha do butim patrimonial – cargos e recompensas para si e para seus clientes. (LEVINE, 1995, p.178).
Haviam questões políticas inquietantes. É verdade que a
obrigatoriedade do casamento civil incomodava o beato, mas com certeza não
era somente isso. Conselheiro, não era um bárbaro, tinha consciência da
situação:
Certa vez, numa feira semanal, o Conselheiro parece ter estado presente quando uma velha curuca tentou se sentar para vender uma esteira de palha e o coletor municipal de impostos exigiu que ela pagasse mais do que o valor de sua mercadoria para ter o direito de vende-la. A velha teria então começado a chorar de soluçar, atraindo uma multidão. Nessa mesma noite, em seu sermão, o Conselheiro se reportou à situação da velha mulher protestando que a República estava tentando fazer voltar a escravidão. (LEVINE, 1995, p.206).
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Sua consciência das mazelas do sertanejo despertou-lhe o radicalismo de sua
visão Milenarista, podendo ser interpretado como um contraponto ao modelo
de miséria e exploração:
Os fiéis deviam pensar que iriam vivenciar uma forma de sociedade pós-terrena. Mais do que simplesmente a eliminação das distinções entre pobres e ricos, mais do que a igualdade de todos, eles queriam uma inversão bem ao gosto do catolicismo sombrio e rancoroso do Conselheiro, ou seja, uma sociedade na qual todos os pobres se tornassem ricos e os ricos, pobres. (LEVINE, 1995, p.338).
Foi alardeada, por questões políticas e econômicas da região, a
mentira, de que o povo de Canudos, capitaneado por Conselheiro, tinham
como objetivo a derrubada da República. Em virtude disso o governo resolveu
enviar o Exército para debelar uma rebelião que jamais existira. As três
primeiras incursões do Exército foram esmagadas pelos homens humildes e
fortes de Canudos. Na quarta expedição o governo usou armamentos
poderosíssimos, sem nenhuma chance para a população do Arraial. Em 22 de
setembro de 1897 morreu Antônio Conselheiro.
Ao ver tombarem as igrejas, arrombando o santuário, santos feitos em estilha, altares caídos, relíquias sacudidas no encaliçamento das paredes e – alucinadora visão! – o bom Jesus repentinamente a apear-se do altar-mor, baqueando sinistramente em terra, despedaçado por uma granada, o seu organismo combalido dobrou-se ferido de emoções violentas. Começou a morrer. Requintou na abstinência costumeira, levando-a a absoluto jejum. E imobilizou-se certo dia, de bruços, a fronte colada à terra, dentro do templo em ruínas. Ali o encontrou numa manhã Antônio Beatinho. Estava rígido e frio, tendo aconchegado no peito um crucifixo de prata. (CUNHA,2009, p.481).
Os sobreviventes esperaram por três dias a ressurreição de seu líder,
lembravam-se das palavras do beato que dizia que isso aconteceria:
Terminados os três dias, como antes mesmo de sucumbir já
catingava, os adeptos não suportaram o odor e sepultaram-no. Persistiu, porém, a crença de que ressurgiria entre milhões de arcanjos de espadas flamejantes, que destruiriam todos os inimigos. Medidas foram tomadas pelo governo para que a legenda não se espraiasse, mas ainda em 1950 era assinalada no local pelo menos uma família que aguardava o regresso do Conselheiro em carne e osso. (QUEIROZ, 2003, p. 241).
Muito material sobre Antônio Conselheiro foi produzido ao longo dos
anos, mas, para essa pesquisa importa demonstrar que Euclides não retratou o
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verdadeiro Conselheiro, que observa-se não ser um louco, ou bárbaro. E que
mesmo sendo um fanático religioso, o beato tinha consciência do momento
político que vivia. Vê-se também traços sebastianistas em suas prédicas. Isso
se explica pelos momentos de sofrimento do povo sertanejo:
Na visão do Conselheiro, que ele deve ter transmitido aos seus seguidores, não havia espaço para um longo futuro. Sob a superfície da teologia do Conselheiro estava a tradição da profecia sebastianista. Ao transmitir para o imaginário popular a esperança do retorno da figura paternal que era Dom Pedro II, misturando-a com a devoção regional por sinais penitenciais e apocalípticos, ele provocou pessoalmente uma modificação na tradição sebastianista: era o imperador, e não mais o rei, que iria retornar. (LEVINE, 1995, p.282).
Observa-se mais uma vez neste capítulo, a religião como legitimadora
potente. Conselheiro, a exemplo de D. Sebastião e Padre Vieira, utilizou a
religião para dar sentido às suas ações. Identifica-se aqui, novamente a religião
e a política juntas. Antônio Conselheiro não concordava com a República, por
isso desenvolveu um discurso político religioso defendendo que a Monarquia
era o melhor regime. Defesa essa que despertou resposta desproporcional por
parte das autoridades da época.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Trabalhar na presente pesquisa foi um privilégio. Pode-se observar a
perspectiva sociológica que a religião não é algo que vem do além ou extra
mundo, mas é uma iniciativa humana:
A religião é o empreendimento humano pelo qual se estabelece um cosmos sagrado. Ou por outra, a religião é a cosmificação feita de maneira sagrada. Por sagrado entende-se aqui uma qualidade de poder misterioso e temeroso, distinto do homem e, todavia, relacionado com ele, que se acredita residir em certos objetos da experiência. (BERGER, 1985, p.45).
Pois, o sagrado é visto como algo fora de série, que se por um lado
tem algo de perigoso, por outro, suas forças podem ser utilizadas no dia a dia.
“Embora o sagrado seja apreendido como distinto do homem, refere-se ao
homem, relacionando-se com ele de um modo em que não o fazem os outros
fenômenos não humanos”. (BERGER, 1985, p.46). O cosmos demonstrado
pela religião “transcende, e ao mesmo tempo inclui, o homem. O homem
enfrenta o sagrado como uma realidade imensamente poderosa distinta dele.
Essa realidade a ele se dirige, no entanto, e coloca a sua vida numa ordem,
dotada de significado”. (BERGER, 1985, p.47).
A religião é parte do labor humano como ser social. Alguém que
constrói o mundo, influencia esse mundo e é influenciado por ele. Este labor
humano, não é um ajuntamento de crendices, mas é algo que serve para dar
sentido à vida. Assim a religião é utilizada como instrumento de legitimação:
[...] a religião foi historicamente o instrumento mais amplo e efetivo de legitimação. Toda legitimação mantém a realidade socialmente definida. A religião legítima de modo tão eficaz porque relaciona com a realidade suprema as precárias construções da realidade erguidas pelas sociedades empíricas. As tênues realidades do mundo social se fundam no sagrado realissimum, que por definição está além das contingências dos sentidos humanos e da atividade humana. (BERGER, 1985, p.55).
A religião legítima as instituições infundindo-lhes um status ontológico
de validade suprema, isto é, situando-as num quadro de referência sagrado e
cósmico”. (BERGER, 1985, p.56).
Destas observações pode-se analisar em primeiro lugar a figura de
Dom Sebastião. Alguém que nasceu num momento de angustias do povo
português, em que depositaram esperanças para um retorno as conquistas de
tempos idos. Este, que ainda adolescente se tornou rei, tendo durante a sua
educação aprendido que deveria ser um guerreiro, resolveu levar Portugal a
uma Guerra desnecessária para muitos. Cabe observar que ele trabalhou
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numa perspectiva religiosa, como personagem cumpridor de profecias
grandiosas quanto ao domínio português. A religião legitimando as ações do
rei. O Jovem rei desapareceu na Batalha de Alcácer Quibir, mas no seu
desaparecimento surgiu o Sebastianismo, com a esperança na volta do rei,
agora encoberto. Agora por questões políticas, diversos interessados dão
significado religioso ao que na verdade era um desastre. A partir de 1580,
como vassalo de Castela, era mister que uma crença messiânica propiciasse
esperança para a restauração do reino. Religião e política juntas.
Mas olha-se ainda para o Padre Antônio Vieira, que usa as trovas de
Bandarra, para trabalhar com o Sebastianismo de forma diferente para
legitimar a restauração não pelas mãos do rei desaparecido em pessoa, mas
aplicando as profecias a D. João IV, que tinha nas veias o sangue de D.
Sebastião.
E por fim observa-se Antônio Conselheiro que, sendo sebastianista,
utilizou-se da religião e da crença no retorno do rei, para legitimar suas labutas
contra a República recém implantada.
Três personagens emblemáticos que se utilizaram da religião para
legitimarem suas empreitadas.
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REFERÊNCIAS
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2013.
BANDARRA, Gonçalo Anes. Trovas do Bandarra natural da Villa de Trancoso,
apuradas e impressas por ordem de um grande senhor de Portugal . HardPress
Publishing. Edição do Kindle.
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da religião. São Paulo: Paulus, 1985.
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Senhor e Salvador Jesus Cristo. São Paulo: É Realizações, 2017.
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Campinas: Luz Para o Caminho, 1995.
LEVINE, Robert M. O Sertão Prometido: O Massacre de Canudos. São Paulo:
Edusp, 1995.
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Editorial: São Paulo, 2005. Edição Kindle.
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QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Messianismo no Brasil e No Mundo. 3
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de São Paulo, 2009.
TERRAGUINHA, José. História de Portugal. São Paulo: Unesp, 2001.
VASCONCELLOS, Pedro Lima. Arqueologia de Um Monumento – Os
Apontamentos de Antônio Conselheiro/ Pedro Lima Vasconcellos. São Paulo: É
Realizações, 2017.
WEBER, Max. Sociologia das Religiões. São Paulo: Ícone Editora, 2015.