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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES - SCHLA

DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA – DECISO

“PORQUE A GENTE CUIDA”: O ECOFEMINISMO E A AGROECOLOGIA NA

PROMOÇÃO DA SOBERANIA ALIMENTAR – JUNÇÕES E SIGNIFICADOS PARA

MULHERES DA AGRICULTURA CAMPONESA NA REGIÃO CENTRAL DO

PARANÁ

Curitiba 2015

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CAMILA MUDREK

“PORQUE A GENTE CUIDA”: O ECOFEMINISMO E A AGROECOLOGIA NA

PROMOÇÃO DA SOBERANIA ALIMENTAR – JUNÇÕES E SIGNIFICADOS PARA

MULHERES DA AGRICULTURA CAMPONESA NA REGIÃO CENTRAL DO

PARANÁ

Monografia apresentada como requisto para obtenção do grau de Bacharelado do Curso de Ciências Sociais, Setor de Ciências Humanas e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientação: Professor Osvaldo Heller Silva

CURITIBA 2015

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Agradecimentos

De forma grandiosa carrego comigo exemplos e influências que me

levaram a pensar e desenvolver este trabalho. Antes de tudo, certamente estão meu

pais, Cléo e Uda (véio e véia) que me apoiaram incondicionalmente em uma

tremenda aventura que se desdobra - especialmente, mas também antes disso - a

partir dos meus quinze anos, quando vim para Curitiba enfrentar o mundo para além

de seus braços; obrigada por tudo que abdicaram para que eu estivesse aqui,

obrigada por todo exemplo de doação, cooperação e cuidado, obrigada por toda

paciência e carinho, obrigada por entender meus tempos e nunca, nunca duvidar

que meus sonhos mais malucos podem ser construídos. É com certeza por vocês e

através de vocês e mais ninguém que consegui passar por tudo e conquistar estas

linhas aqui, que sonhamos e conquistamos juntos.

Agradeço imensamente à Islândia e Osvaldo, que ensinaram a me

comprometer e respeitar ainda mais todas as formas de conhecimento, inclusive o

acadêmico. Vocês estarão sempre comigo daqui pra frente, obrigada. Ao Victor,

aquele salve meu guerreiro de fé, ele saberá o tamanho e a realidade de tudo, de

todos os dias. Às mulheres do Projeto BRASSAN e do Projeto Regaste, sigam lá

bruxas, o mundo precisa cada vez mais do trabalho de vocês, obrigada por

compartilhar comigo essa caminhada.

Acima de tudo, espero que este trabalho possa contribuir em algo para

continuarmos atuando e refletindo sobre a vida das mulheres da roça, como cantou

Dona Josefa de tão longe e sobre questões tão próximas!

Terezinha, Rosa, as Claudetes, Eli, Marici e outras tantas que não conheço mas que

dedicam suas vidas a construção de un otro mundo possible - essa é pra vocês.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO................................................................................................. 5

2. MULHER NÃO É SINÔNIMO DE NATUREZA – A SUPERAÇÃO DOS DUALISMOS OPRESSIVOS............................................................................... 8

3. FEMINISMO E ECOLOGIA: A FORMAÇÃO SOCIAL E TEÓRICA DO ECOFEMINISMO................................................................................................. 14

4. A PROPOSTA AGROECOLÓGICA................................................................ 27

4.1 A CEGUEIRA CONCEITUAL DO GÊNERO NA AGROECOLOGIA............. 32

5. OS CAMINHOS DE PROMOÇÃO DA SOBERANIA ALIMENTAR E O PROTAGONISMO DAS MULHERES................................................................... 40

5.1 A EXPERIÊNCIA DA ASSOCIAÇÃO DOS GRUPOS DE AGRICULTURA ECOLÓGICA SÃO FRANCISCO DE ASSIS (ASSIS) ......................................... 43

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................... 51

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................... 56

8. FILMES e RECURSOS DA INTERNET.............................................................. 58

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1. INTRODUÇÃO

Há muito se reconhece no Paraná uma força com grande peso na luta pela

redistribuição de terras, pela resistência ao uso de agroquímicos, pela preservação

de sementes, demarcação de terras, reconhecimento de identidades sociais

tradicionais, enfim, pela promoção de diferentes tipos de ruralidades e organizações

socioprodutivas que não respondem aos modelos hegemônicos de produção e

organização da vida. Dentro deste contexto me preocuparei em assinalar a

importância do reconhecimento das mulheres camponesas na atual organização da

luta pela Agroecologia - seja pela articulação com mercados institucionais, pela

atuação em Associação de agricultoras ecológicas ou pela caminhada em torno da

necessidade de reconhecimento de suas demandas próprias, dentro e fora de casa.

Neste sentido, procurarei demonstrar quanto o despertar para a luta coletiva e

o engajamento político trabalham também de forma a modificar os indivíduos e

cotidianos envolvidos neste processo que parece influenciar um olhar que repensa a

si mesma enquanto resignifica seu modo de vida. Como, de forma específica para

as mulheres, o contato com questões ecológicas favorece uma resignificação de

suas ações, seu trabalho, sua atuação e posicionamento de maneira a empoderar e

visibilizar suas vozes – de dentro e de fora.

O projeto tem como ponto de partida a análise feita pelo grupo de pesquisa e

extensão “Experiências vividas, construídas e compartilhadas em Soberania e

Segurança Alimentar e Nutricional: o papel das compras públicas no Brasil e

em Angola” (BRASSAN Brasil e Angola em prol da Soberania e Segurança

Alimentar e Nutricional) da Universidade Federal do Paraná, que trata a

aplicabilidade do PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), criado pelo Art 19 da

Lei 10.696/2003 que tem como finalidade a compra, pelo poder público, de alimentos

de agricultores(as) familiares, com dispensa de licitação, e sua destinação a

pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional, atendidas por

programas sociais e instituições governamentais ou não governamentais integrantes

da rede socioassistencial (BEZERRA, 2009).

O grupo de pesquisa e extensão iniciou atividades no segundo semestre de

2014, com idas a campo no objetivo de aproximar-se da realidade das sujeitas,

entender as demandas das famílias agricultoras ecológicas e trabalhar em conjunto

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com suas experiências e complexidade de lutas, conflitos e necessidades próprias.

Foram feitas inúmeras reuniões em todas as comunidades a fim de apresentar o

projeto e nossas possibilidades, bem como limitações e alcances de atuação,

enquanto ferramentas e instrumentos de apoio à estruturação dos circuitos locais de

abastecimento, que aproxime os circuitos de produção e consumo a partir da ASSIS

- Associação dos Grupos de Agricultura Ecológica São Francisco de Assis -

objetivando a promoção, fortalecimento e divulgação da Agroecologia.

Já em 2015, dando continuidade às atividades e visitas mensais às

comunidades de Irati e região, recebemos os três professores angolanos integrantes

do projeto que compartilharam conosco no 1º Seminário BRASSAN, realizado no

mês de Julho, as experiências de Angola enquanto um país em reconstrução, com

36% da população em níveis de pobreza extrema mas com forte potencial para o

desenvolvimento dos princípios agroecológicos a partir de redes de sociabilidade e

cooperação em tecnologias partilhadas de forma positiva.

Dentro deste projeto tive a oportunidade de estar em contato com famílias

atuantes no cultivo ecológico e na promoção da Agroecologia, situadas na região

central do Estado do Paraná, em comunidades próximas as cidades de Irati, Inácio

Martins, Fernandes Pinheiro, Teixeira Soares e Rio Azul, organizadas em

Associação de Produtores e Produtoras Ecológicos (ASSIS) desde meados de 2011.

Neste contexto, foram feitas entrevistas individuais com mulheres

participantes e atuantes na Associação, acompanhadas reuniões de organização,

discussões, reuniões de formação, presença em eventos oficiais da prefeitura,

oficinas e debates entre as associadas. Unindo interesse, pesquisa e curiosidade

individual também participei como facilitadora de uma Oficina aplicada na “14ª

Jornada de Agroecologia – Cuidando da Terra, Cultivando Biodiversidade,

Colhendo Soberania Alimentar” intitulada “Precisamos falar sobre plantas,

precisamos falar sobre nós mesmas – fortalecer laços entre mulheres é criar

resistência autônoma”, fruto de um estudo com Plantas Medicinais que desenvolvo

desde 2012, onde pude me aproximar de relatos de mulheres agricultoras

ecológicas de várias cidades brasileiras sobre sua relação com a natureza, suas

práticas de cuidado, sua visão crítica e de denúncia atuante quanto ao machismo e

dominação masculina tanto nos espaços de discussão política quanto no âmbito da

economia e relações cotidianas da família, que condizem de maneira direta com a

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realidade observada no Paraná.

Enquanto pesquisadora em construção proponho-me a perceber, a partir da

análise de narrativas de história de vida e bases conceituais fornecidas pela

Sociologia Rural e pelo Ecofeminismo Construtivista, as trajetórias delas e do

coletivo agroecológico em que estão inseridas e como essas experiências são

fundamentais para formá-las em “sujeitos políticos” (SILIPRANDI, 2009), bem como

nos ajudar a reconhecê-las enquanto protagonistas na promoção da Soberania

Alimentar.

As contribuições trazidas pela vertente construtivista do Ecofeminismo nos

ajudarão a entender e reconhecer a existência de processos sexuados que excluem

de forma diferente homens e mulheres construídos com referenciais sociais e

históricos de um mundo binário que as permite produzir diferentes subjetividades. As

marcas do caráter patriarcal que organiza seus interesses, valores e experiência de

vida, estão também presentes em como elas próprias entendem suas ações,

percebendo como a exploração tanto de mulheres quanto da natureza está marcada

pelas mesmas bases de dominação.

De tal maneira, espero mostrar como movimentos de transformação social

(feminismo e agroecologia) dialogam tanto no sentido micro (vidas individuais de

membros atuantes) até no sentido macro (mudança de estruturas sociais) em uma

perspectiva emancipatória que vai ao encontro da consolidação dos princípios da

Segurança e Soberania Alimentar e Nutricional (SSAN), bem como pretendo

visibilizar questões de gênero que deveriam marcar as discussões voltadas para

Agroecologia a fim de avançar passos que deem conta da multiplicidade e

complexidade que forma tanto a Agricultura Camponesa quanto as questões ligadas

a Ecologia e ao desenvolvimento sustentável.

Vale ainda apontar que optei por escrever a maior parte deste trabalho com

referencial ligado ao sujeito feminino, a fim de descentralizar a noção de “sujeito

universal” ligada pela norma culta (o próprio termo já nos diz muito) ao homem; tanto

porque a pesquisa foi feita por e é voltada para mulheres, supondo que a discussão

passa por uma revisão de privilégios entendo que a inversão deste referencial

universal justifica-se também enquanto desafio e provocação para repensarmos a

equidade de gênero em todas as formas de expressão.

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2. MULHER NÃO É SINÔNIMO DE NATUREZA – A SUPERAÇÃO DOS

DUALISMOS OPRESSIVOS

Desde nossa tenra infância, dentro do contexto cultural ocidental,

respondemos a processos de diferenciação e reprodução de normas de conduta

sexuada que tanto colocam nossos referenciais em oposição aos do “outro”, quanto

nos impõe limites específicos de ação e expressão – ‘isso é coisa de menino’, ‘aquilo

é coisa de menina’ – que buscam direcionar nossos papéis sociais determinando

nossas funções ao organizar em qual lado do binário rosa/azul deveremos estar.

Muitas de nós crescem vendo uma divisão dentro de casa, onde apenas a mãe é o

referencial que tudo sabe quanto ao lar; é ela quem cuida, limpa, alimenta, mesmo

com empregos assalariados fixos é sempre ela que sabe onde encontrar cada peça

que eventualmente pode nos fugir dentro das condições cotidianas do “viver bem”.

Muitas de nós também acabam por perceber um desencaixe nessa linha divisória,

não nos sentimos confortáveis em manter determinadas tarefas, padrões de beleza

ou formas de expressão que nos são designados – “se o meu irmão, primo ou amigo

não faz, por que eu tenho que fazer?” ou ainda – “se o meu irmão, primo ou amigo

faz, por que eu não posso fazer?”.

Neste sentido, apesar de podermos afirmar que tais modelos naturalizados

fragilizam e subordinam mulheres a uma posição de inferioridade criada

paradoxalmente pelas limitações dependentes deste mesmo processo, devemos

entender que esta identidade não é exclusivamente passiva aos processos de

socialização. A construção da identidade depende da matéria-prima que a cultura

fornece, sendo processada e reorganizada de acordo com o contexto social; desta

maneira a questão de gênero coloca-se na fricção tensa entre a estrutura e a ação,

o desejo do indivíduo e as expectativas sociais (GARCIA, 2012). Ou seja, esta

identidade, permanentemente forjada por meio de práticas cotidianas que a escola,

a família, a igreja ou vizinhança introjetaram na infância vai ser reforçada

constantemente pela mídia, artes, ciências e instituições.

Olhando um pouco mais atrás na história, no que compete ao período anterior

ao Neolítico, ou seja, em sociedades pré-agrícolas, de maneira geral somos

ensinadas que a responsabilidade quanto à alimentação dos grupos humanos era de

responsabilidade das mulheres; mais ainda, tendemos a acreditar que essa divisão

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excluía a energia feminina de atividades externas ligadas, por exemplo, a caça de

animais. Ao contrário do que está dito, Antropólogas feministas propõe uma leitura

em que mulheres atuavam de maneira igualitária e solidária aos homens na busca

pelo montante de alimentos do grupo, onde além da coleta de grãos, folhas e frutas,

inclui-se a caça (GARCIA, 2012).

A divisão sexual do trabalho ainda não respondia a demarcações tão rígidas e

limitantes quanto a que conhecemos e que correspondem ao período após o que se

convencionou chamar “revolução patriarcal”: da invenção do casamento e formação

da família nuclear, seguida pela delimitação da propriedade privada e pela formação

de novos arranjos sociais de produção na antiguidade do mundo medieval e dos

processos de industrialização fabril capitalista. Tudo indica que a sedentarização e

as transformações ocorridas no período do Neolítico contribuíram para a emergência

da hierarquização da sociedade, onde as relações de paridade alteram não apenas

um status social das mulheres, como também a visão que passam a ter de si

mesmas. O desenvolvimento de uma cultura machista se deu de forma lenta e com

constantes interrupções, alternado, geralmente, de acordo com os papéis

econômicos dos sexos no curso do desenvolvimento social. Para Bookchin (in:

LEMES, 2007) as questões relacionadas com o sexo e com a idade foram os fatores

mais importantes no desenvolvimento das hierarquias no contexto das sociedades

orgânicas. Já Zerzan (2010), afirma que a civilização que temos não passa da

história da dominação sobre a natureza e a mulher iniciada com a divisão do

trabalho, permanecendo ao longo de toda trajetória da humanidade.

Avançando na construção de um sentido mais amplo deste universo binário

que hierarquiza, divide, e limita nossa sociedade, temos como um dos principais

pilares que cria e reforça estes dualismos – a saber: natureza e cultura, primitivo e

moderno, razão e emoção, mente e corpo, homem e mulher, tradição e progresso,

privado e público, rural e urbano, atraso e desenvolvido – a Ciência Ocidental

Moderna.

Baseada em um racionalismo ultra valorizado, filho do Iluminismo, a

‘racionalidade econômica’ (LEFF, 2004) prevê uma ampla instrumentalização de

princípios que regem a produtividade, o desenvolvimentismo, o progresso mercantil,

a globalização urbanizada e o avanço da modernização do mundo em uma guinada

econômica e utilitarista. Todo o montante de significação que não correspondesse a

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estes princípios ficou necessariamente subjulgado ao campo da ordem simbólica,

subjetiva, atávica e, o mais importante, improdutiva.

Reforçando ainda mais a ideia de binário, aprendemos a separar a história

humana da história natural e apagar visões de mundo que abrangem outras formas

culturais de significação. A história do mundo tornou-se a história da civilização

humana, e qualquer traço anterior a isso é considerado “pré”-histórico.

No campo do saber ambiental, muitos autores e autoras preocuparam-se em

denunciar e problematizar esta lógica utilitarista que passou a orientar não só as

relações sociais humanas, como também suas significações de mundo. Segundo

Enrique Leff:

“A racionalização econômica do mundo, fundada no projeto científico da

modernidade (...) desestruturou ecossistemas, degradou o ambiente,

desnaturalizou a natureza, e não apenas converteu esta ciência em

instrumento de poder, mas este poder se apropriou da potência da natureza e

permitiu que fosse usado por alguns homens contra outros homens”. (sic)

Ainda neste sentido, algumas Ecofeministas, como Val Plumwood avançam

ao afirmar que:

“As estruturas de dominação legitimadas criam hierarquias dualísticas

que fundamentam o pensamento ocidental não apenas de uma lógica binária,

mas de oposições, como céu/terra, mente/corpo, macho/fêmea,

humano/animal, espírito/matéria, cultura/natureza, cristão/outros, branco/não

branco”. (in: GARCIA,2012)

Em nome da produção de conhecimento e desenvolvimento econômico ligado

a um mundo globalizado e unificado, a racionalidade moderna destruiu bases da

sustentabilidade da vida, invadindo outros universos de significação que vinculam o

marco opressivo antropocêntrico ao ‘marco opressivo androcentrico’

(SILIPRANDI,2009) na ciência e na história, ao excluir e desprezar conhecimentos

holísticos que não operam nesta lógica, bem como saberes e formas produtivas

ligadas aos valores de manutenção da vida que foram crescentemente relegados a

processos inferiorizados ligados ao cuidado do ambiente privado.

Neste sentido, a razão é a perspectiva superior que legitima a dominação e a

mesma lógica que a justifica cria também uma série de conceitos interligados que

produzem distanciamentos entre noções tidas enquanto opostas, e mais que isso,

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hierarquizam esta diferença. A exemplo: homens = razão, mente / mulheres = corpo,

natureza; onde o ‘superior’ está justificado para oprimir ou subjulgar o ‘inferior’,

negando uma relação de dependência entre as duas esferas. Esta postura de

dominação do paradigma desenvolvimentista provoca uma subjugação do ‘princípio

feminino’ (SHIVA, 1991), ou seja, de características ligadas ao feminino ou

feminilizadas, ao ver o meio ambiente enquanto recurso passível de exploração e à

disposição da vida humana, tanto quanto a mulher exclusivamente enquanto

reprodutora – e não produtora – desta mesma vida.

Uma das preocupações da Teoria Feminista está em justamente denunciar

como o mesmo Iluminismo que nos libertou de dogmas religiosos nos impôs o

prevalecimento de uma racionalidade que nos aprisiona a uma maneira instrumental

de percepção de mundo, onde sentimentos como emoção, espontaneidade e

estética são ligados a um universo primitivo e atrasado a ser dominado, explorado e

superado.

Ora, vejamos, em um universo onde convivemos com expressões como “Mãe

Terra”, “Mãe Natureza”, “Deusa Mãe”, ou ainda “estupro da natureza”, entre outras

significações metafóricas de produção de sentido, podemos afirmar uma relação

direta entre ambas, traduzidas em processos de feminização da natureza e/ou a

naturalização das mulheres que historicamente foram diretamente reduzidas a uma

determinante biológica: a maternidade. A gravidez, a gestação, o parto e a

amamentação as colocariam fora da esfera pública, ocupadas com a criação da

prole (GARCIA,2012).

Segundo Di Ciommo (1990), o dualismo “é o processo pelo qual conceitos

antagônicos foram construídos como opostos excludentes e apropriados pelo

julgamento moral da lógica de dominação”. Deste modo, podemos afirmar que a

formação dualista remete não apenas a um referencial de progresso e evolutivo

como também patriarcal, que se reforçam mutuamente. Esta ‘dialética dos

contrários’ (LEFF, 2004) estabelece uma crescente inferiorização do “outro” que não

corresponde ao modo universal referenciado nas relações de poder ligadas também

ao universo simbólico do imaginário social.

Justifica-se que as formas humanas de agir, passando de um modelo

orgânico para outro, mecânico, ao longo da História, são responsáveis pela

progressiva degradação e subordinação do meio natural e da mulher, o que Alicia

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Puleo irá chamar de ‘bases mútuas de opressão’ (PULEO, 2009) que se reafirmam

de forma complexa e correspondente.

Mas então por que mulheres, especialmente as do campo e do ambiente

rural, parecem ter uma propensão maior de afinidade com a natureza?

Dentro da realidade camponesa podemos identificar uma diretriz do discurso

sobre a natureza onde muitas mulheres evidenciam uma ligação justamente neste

sentido da reprodução da vida – “A terra, a natureza e as mulheres a gente se

identifica porque a gente produz a vida e a natureza, a terra, toda a diversidade

também produz a vida. Então a gente tem uma identidade muito próxima e muito

comum" – diz uma das entrevistadas no documentário “As Sementes” (2015, 30 min)

da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Agora, a partir de leituras críticas Feministas e/ou Ecofeministas, é possível

considerar que o interesse de mulheres por temas ecológicos não é um mecanismo

automático de identificação ligada ao sexo. Por mais que pareça óbvio é importante

apontar que muitas mulheres também detestam ou ainda combatem ‘ecologismos’,

isto porque precisamos entender que mulher não é categoria de um bloco unitário de

percepções e ações - somos múltiplas e diversas tanto quanto possível. Ainda mais

que isso, também podemos identificar outros aspectos das identidades de gênero

em que percebemos uma ampla variedade de indivíduos que adquirem tendências

vinculadas com a socialização de certas tarefas e atitudes, onde o coletivo feminino

tradicionalmente tem sido responsável pelas tarefas de cuidado da vida mais frágil e

de manutenção da infraestrutura material doméstica desenvolve-se, em termos

estatísticos, uma subjetividade ‘relacional’, atenta aos demais e com maior

expressão na afetividade e que quando se unem a uma adequada informação e uma

sã desconfiança aos discursos hegemônicos, dão-se as condições para que se

desperte seu interesse pela ecologia (PULEO, 2009).

Mais ainda, entendemos que as bases da dominação pressupõe a criação de

barreiras que mantém cercadas as próprias subordinadas, promovendo uma

aceitação inconsciente da opressão no nível individual, de maneira a perpetuar

valores que condizem com a reprodução de imaginários que respondem a esta

norma. Loreley Garcia complementa ao afirmar que “no caso da opressão sexual, a

mulher, por meio da aculturação e socialização, deve ser moldada como grupo

subordinado e o homem como grupo dominante” (GARCIA, 2012); esta

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internalização da estrutura do sistema opressivo, ou o que Gayle Rubin irá chamar

de “sistema sexo/gênero”, mantém a estrutura social de subordinação feminina e

dominação masculina que perpetuará doutrinas enquanto não houver uma

consciência de gênero (RUBIN, 1993).

O sistema de sexo/gênero é fruto de um estudo feito por Rubin na tentativa de

avançar nos sentidos da construção e manutenção das estruturas – remontando

desde o tabu do incesto e do parentesco até a formação da família nuclear e

situação das mulheres no capitalismo – que fundam a organização social, bem como

problematizar tais construções de forma a considerar seus efeitos na cultura, na

sexualidade, no trabalho, no público e no privado de maneira diversa, específica e

complexa. Tal conceito, sistema sexo/gênero, é entendido enquanto instituição

historicamente construída, durante séculos de aculturação que naturalizaram os

papéis homem e mulher de maneira a parecerem imutáveis e que a partir da religião,

de leis sexistas e privação educacional são mantidos e perpetuados dentro das

diferenças na experiência social das mesmas.

Dito isso, percebemos que justamente por estarem diretamente ligadas às

tarefas do cuidado e da manutenção da vida, desenvolve-se uma perspectiva

construtivista da subjetividade de gênero; ou seja, o feminino constrói-se em

referência à natureza, ao ambiente privado, às preocupações com o cuidado, a partir

da experiência, não de uma essência.

Agora a diferença específica e de vasta importância para a discussão de

gênero na Agroecologia reside na re-valorização que se dá para e a partir da

natureza. Dentro de seus princípios a Agroecologia entende a natureza enquanto

sujeito diverso, múltiplo, de potência criadora e provido de valor; e é justamente esta

diversidade de valores que parece interessante para as agricultoras ecológicas, que

se auto-reconhecem enquanto pares com a natureza também produzem aí uma

inversão da lógica que as desvaloriza:

"Hoje quem se identifica mais com a agroecologia são as mulheres,

por mais que isso nas pesquisas não saia. Por quê? Porque é ao redor de

casa. O que a agroecologia faz? Faz com que as pessoas também

enxerguem. Porque ela que traz a fruta, que traz a verdura, ela que traz

algum dinheiro extra, que faz toda esta estória do rodízio, a estória da

diversidade. Por isso que ela encanta primeiro as mulheres (...) A gente

acredita que tem que ter diversidade dentro da propriedade. Dentro da

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propriedade e dentro da vida da gente" (Sementes, 2015, 30 min).

Ou seja, elas se re-conhecem ao reconhecer a natureza enquanto ser provido

de poder criativo, de potência múltipla inversa ao referencial hierárquico de

subordinação. Esta mudança de laços produz uma independência ao modelo

normativo ao empoderar e dar voz a instâncias da estrutura antes desvalorizadas -

dois pressupostos tidos como inferiores dentro da organização social - criando um

novo universo de percepção delas mesmas e de suas potências ao entender que

estes valores a elas atribuídos não as limitam, mas podem gerar deslocamentos das

matrizes do poder/saber/ser.

3. FEMINISMO E ECOLOGIA: A FORMAÇÃO SOCIAL E TEÓRICA DO

ECOFEMINISMO

As conexões entre o feminismo e a ecologia são facilmente percebidas aos

olhos atentos de quem acompanha diferentes formas de resistência ao modelo

desenvolvimentista, hierárquico e mercantil especialmente marcado no início do

século XX. Movimentos de resistência encabeçados por mulheres tratavam de

inúmeras questões que faziam frente ao modelo que se conformava a partir da

exploração e dominação androcêntrica, etnocêntrica/colonial e especista: luta pelo

direito a terra, pelo acesso aos meios de vida, resistência a formação de bases

militares, prisões e a exploração/contaminação nuclear, a invasão cultural,

vivisecção e exploração de animais não-humanos ou contra o desmatamento de

florestas, por exemplo.

Dentro de um sistema simbólico de identificação e de monopólio masculino

que entende a natureza como meio de uso de recursos e a feminilidade enquanto

casta, inofensiva, dependente e dessexualizada, percebe-se que muitas

organizações de mulheres preocuparam-se em tratar dos temas de forma complexa

e articulada, propondo novas maneiras de pensar/fazer um mundo verdadeiramente

sustentável.

Nos eixos “centrais” - nos EUA e países europeus - a preocupação maior

desses movimentos estava ligada a luta contra envio de tropas militares a países

“terceiro mundistas” dentro do esquema de organização política, econômica e social

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do período pós-guerra, conformado em ‘ajustes’ estruturais e políticas

intervencionistas que pretendiam defender a economia mundial de novas crises e

promoveriam o welfare state estável, bem como a promoção de acampamentos e

formatos de ação direta não violenta que resistissem à construção de bases

nucleares no interior dos seus próprios países.

A exemplo disso temos o Greenham Common Women’s Peace Camp, um

acampamento de mulheres pacifistas que se organizaram contra a formação de uma

base de produção de armas nucleares, em Berkshire, na Inglaterra, onde em

Setembro de 1981 trinta e seis mulheres se acorrentaram as grades da base para

impedir a entrada de funcionários, já em Maio de 1982 eram duzentas e cinquenta,

em Dezembro mais de trinta mil mulheres ‘abraçaram’ a base, formando um cordão

ao seu redor, mas o movimento passou a ter grande reconhecimento quando em 1

de Abril de 1983 setenta mil mulheres formaram uma corrente humana com 23km de

extensão no caminho da fábrica base. Depois disso, formaram-se pequenos

acampamentos nos nove portões que davam acesso a base, com uma luta que

durou dezenove anos e teve como resultado a retirada dos mísseis em 1991 e o

reconhecimento do direito das protestantes a transformar o local em um memorial de

resistência na Inglaterra. Como pode ser lido no site da organização “a participação

exclusiva de mulheres nos acampamentos de paz também permitiu que mulheres

afirmassem seu próprio domínio em uma arena política geralmente reservada aos

homens. As mulheres do Greenham integraram-se nesses ambientes políticos de

predominância masculina não através da violência, mas por sua mera presença em

um local "masculino" tal como a base militar de Greenham Common”¹.

Em 1979-1980 formou-se, nos Estados Unidos, o Women and Life on Earth

(WLOE – Mulheres e Vida na Terra), para responder ao desastre na base núcleo-

elétrica de Three Mile Island, que afetou a população da Pensilvânia, promovendo

congressos e espaços de discussão que tratassem especificamente de um

feminismo ecológico, das relações entre mulheres e ecologia, feminismo e a não-

violência, que na primavera de 1980 reuniu mais de seiscentas mulheres norte-

americanas em volta do tema. Após o encontro, foram feita dezenas de ações, em

diferentes cidades contemplando os eixos acordados de paz, ecologia e justiça

global. Uma das ações se deu inclusive no Pentágono, onde em Novembro de 1980

mais de duas mil mulheres cercaram a área reivindicando “um basta as incríveis

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invenções para a morte”. A organização existe até hoje e mantém as preocupações

com sustentabilidade (mercados locais e ecológicos) e alimentação (soberania

alimentar), bem como atenção a temas atuais como mulheres refugiadas, indígenas

e camponesas².

Já em países del sur as expressões de resistência estavam ligadas a defesa

da terra e da natureza, à preocupação com destinação de recursos e a denunciar os

efeitos do “mau desenvolvimento” que atingia diretamente as mulheres pobres, em

sua grande maioria campesinas, cuja vida dependia do acesso a água, a terra e a

lenha, por exemplo. Certamente o Movimento Chipko é um dos mais citados dentro

da memória ecofeminista, por marcar a Índia da década de 70 quando mulheres

camponeses, de maneira espontânea e inspiradas pelas ações pacifistas de Gandhi,

abraçaram árvores que estavam sendo cortadas por madeireiros na região de Uttar

Pradesh buscando proteger de florestas que sustentavam seu meio tradicional de

existência sustentável e seu acesso a comida, água e combustível. Estas mesmas

mulheres perceberam que elas não eram impotentes e também desenvolveram

ações contra o aumento expressivo do uso de álcool pelos homens das vilas em que

viviam – sobretudo os que trabalhavam com o desmatamento – e que afetava suas

famílias; elas debruçaram-se sobre os efeitos que rodeavam este sistema de

exploração da madeira, desde a erosão e degradação do solo até a reação violenta

dos maridos quanto à participação delas nesses ambientes que passaram a ser

considerados políticos. Um dos homens disse: “Que bobas vocês são! Como vocês,

que estão impedindo a derrubada das árvores, vão saber o valor das florestas?

Vocês sabem o que as florestas oferecem? Elas produzem lucros, resina e madeira”.

A resposta das mulheres, cantada por todas, foi: “O que as florestas oferecem?

Oferecem água, terra e ar puro. Oferecem água, terra e ar puro. Sustentam a terra e

tudo que ela dá” (SHIVA, 1991). Após a vitória das primeiras ações o Movimento se

espalhou por outras regiões da Índia e sua história continua sendo contada como

exemplo de resistência.

Outro movimento que ficou mundialmente conhecido através de sua

idealizadora, Wangari Maatai, ganhadora do prêmio Nobel em 2004, é o Green Belt

Movement – Movimento Cinturão Verde. Desde 1977 a professora Maatai iniciou a

organização com base indígena, no Quênia, a fim de treinar mulheres para combater

o desmatamento e a erosão do solo co a plantação de árvores e preservação da

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natureza. A partir dessas premissas, o GBM incentivou mulheres a trabalhar em

conjunto para a produção de mudas e plantar árvores para melhorar o solo, a

estocar água da chuva, fornecer alimentos e lenha, e paga a elas uma pequena

ajuda monetária por seu trabalho. Ao dar início a este projeto Maatai entendeu a

importância de incentivas às mulheres a questionarem porque era tão distante para

elas terem poder de questionar suas dificuldades ambientais, política e econômicas,

consequentemente o GBM passou a ser um vetor de discussões quanto o acesso a

participação democrática em ambientes políticos de decisão, bem como fiscalizar a

ação das lideranças governamentais responsáveis pela agricultura, alimentação e a

ecologia do país. Wangari Maatai morreu em Setembro de 2011, com 71 anos, mas

a organização permanece ativa dentro dos eixos propostos desde sua fundação e

ainda carregam os ideais de sua fundadora: “quando plantamos árvores, estamos

plantando esperança”3.

Ainda de grande expressão é importante citar a ampla participação

protagonista de mulheres nos movimentos de lutas por direito e libertação animal.

Atacando desde os padrões culturais da alimentação ocidental e os malefícios

sociais do consumo da carne, organizações como Feminists for Animal Rights

(Feministas pelos direitos animais) preocupam-se em apontar as ligações entre a

exploração animal e animalização das mulheres, no sentido de entender os

tratamentos de ambos em uma sociedade patriarcal. Carol Adams em seu livro “A

Política Sexual da Carne – a relação entre o carnivorismo e a dominância masculina”

explicita, por exemplo, o consumo metafórico da carne ao denunciar expressões

utilizadas para inferiorizar mulheres ao ligá-las a atributos animais, ou enquanto

“pedaço de carne” a ser caçada, dominada e consumida pelo viril caçador

masculino, imagem esta extremamente reforçada por estratégias publicitárias ou

metáforas da linguagem informal. É muito comum escutarmos piadas direcionadas a

homens que se tornam vegetarianos, ou ainda expressões depreciativas voltadas

para mulheres, tais como: vaca, galinha, potranca e etc.

Adams propõe então a criação de uma teoria crítica feminista-vegetariana que

traga uma percepção de que no mundo patriarcal as mulheres e os animais se

encontram em situação semelhante: são objetos, e não sujeitos. Portanto, a

estrutura patriarcal do referente ausente – que torna ausentes como sujeitos as

mulheres, os animais e a natureza, demorona pontos de referência e resulta em

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opressão superposta – exige uma contestação do feminismo e do vegetarianismo,

unidos (ADAMS, 2012).

Além dos exemplos citados, não é preciso ir longe para reconhecermos

ligações entre lutas por libertação das mulheres com a luta ecológica por uma

compreensão política da dimensão de sujeito da natureza. No Brasil o Movimento

dos Sem Terra (MST) e a Via Campesina são organizações do campesinato e da

vida rural que tem em sua base a preocupação com o feminismo e a ecologia, tendo

como princípios a recuperação ambiental e processos coletivos de organização.

Entre os braços destes movimentos temos o MMC – Movimento de Mulheres

Camponesas. Em 2015 uma de suas ações durante a Jornada Nacional das

Mulheres Camponesas foi amplamente divulgada, nesta ação cerca de mil mulheres

destruíram milhares de mudas de eucalipto transgênico da empresa FuturaGene

Brasil Tecnologia Ltda., da Suzano Papel e Celulose, no município de Itapetininga,

em São Paulo. Elas pretendiam denunciar os males que uma possível liberação de

eucalipto transgênico pode causar no meio ambiente, “Se aprovado pela comissão

(CNTbio) esse pedido de venda, o eucalipto reduziria sua rotação de seis/sete

anos para, apenas, quatro anos. O gasto de água será maior que os 25 a 30

litros/dia de por cada eucalipto plantado que se utiliza hoje. Estamos,

novamente, chamando atenção para o perigo dos desertos verdes”, afirmou

Catiane Cinelli, integrante do Movimento de Mulheres Camponesas, em nota

oficial4. Este tipo de ação já tinha sido utilizado pelo movimento em outros

momentos de protesto e denúncia quanto aos malefícios do agrotóxico e os

efeitos do agronegócio e da cultura extensiva.

Outro formato de ação que se tornou internacional é o “Women in Black”

(Mulheres de Preto), liderada pela Coalizão de Mulheres pela Paz Justa (Coalition of

Women for a Just Peace), movimento iniciado por mulheres israelenses, desde 1988

que, ao lado de mulheres árabes, fazem manifestações pela paz e contra

movimentos de ocupação militar, vestidas de preto.

Existem ainda outros exemplos, como o das mulheres da Região Krim, na

União Soviética, que se opuseram corajosamente contra a instalação de uma nova

usina nuclear, ou as mulheres da Nação Índia de Nevada Shoshone Ocidental, que

se opuseram aos testes nucleares e as mulheres que no Pacífico combatem por um

futuro livre de radiação, prevenindo danos para seus filhos através de testes

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atômicos franceses (DI CIOMMO, 1999). Com a explosão do Movimento Feminista

na década de 60 e suas bandeiras históricas – autonomia, direitos reprodutivos,

igualdade real, pobreza, violência sexista, acesso aos espaços de poder - aliadas

aos movimentos pelos direitos civis, ganha força para pressionar governos e

formação de políticas públicas internacionais que apoiem as mulheres mais pobres.

Os efeitos disruptivos do colonialismo e da modernização na divisão sexual do

trabalho após a introdução da economia de mercado atingem diretamente as

mulheres, que tem posição central na economia das sociedades do Terceiro Mundo

(GARCIA, 2012). O ano de 1975 quando a ONU proclama a Década da Mulher e o

“Ano Internacional da Mulher”, dando visibilidade à exclusão das mulheres no

desenvolvimento social e econômico, trazendo a tona questões que tinham ficado a

margem dos processos em curso, onde mulheres não eram reconhecidas coo

‘agentes econômicos produtivos’ (SILIPRANDI, 2009) e as atividades reprodutivas

que sempre desempenharam permaneciam desprezadas.

Ainda nas agendas internacionais, uma parte dos movimentos de mulheres

lutava para que se reconhecesse o papel das mulheres na gestão de recursos,

pautando mais destinação de recursos para políticas com vínculo ambiental e menos

recursos voltados para políticas compensatórias de bem-estar social, com propostas

que efetivamente desse valor e atribuísse equidade as mulheres ao problematizar

uma visão incompleta e sexista de seu papel no desenvolvimento.

Será em 1992, na Conferência do Rio de Janeiro, que as imbricações entre os

temas ecológicos e movimentos de mulheres aparecerão em uma perspectiva mais

complexa, o espaço de articulação dessas propostas foi o Planeta Fêmea, dentro do

Fórum Global, um território específico para a discussão das questões das mulheres.

O Planeta Fêmea conseguiu ser um ponto de encontro de feministas de diversas

matizes, do norte e do sul, ecologistas, ambientalistas, grupos de base, acadêmicas,

militantes políticas, e realizou eventos praticamente sobre todos os temas que

estavam em discussão na conferência oficial (SILIPRANDI, 2009). Neste evento

ficou clara a pergunta que precisava ser respondida: quem sofre e quem se

beneficia com a degradação ambiental?

Após o reconhecimento internacional da necessidade de uma agenda que

previsse questões de gênero e relacionadas às vidas das mulheres e o esforço das

lideranças de movimentos de mulheres em promover a participação das mesmas,

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ampliam-se no Brasil organizações de mulheres rurais – mesmo que gênero ainda

fosse visto como ‘luta de categoria’, que supostamente dividiria as forças dos

movimentos de luta pela terra e reforma agrária.

Em 1995, editou-se um documento importante (Programa Agrário) em que se

reconhecia a dureza da vida das mulheres rurais por conta da dupla jornada, do

preconceito, do machismo e das discriminações. No período seguinte, a postura da

direção do Movimento dos Sem Terra (movimento de maior expressão no país)

começa a mudar: em 1996, realiza-se o I Encontro de Mulheres Militantes do MST,

em que se cria o Coletivo Nacional de Mulheres, passando a ter a função de

provocar a discussão nas instâncias internas do movimento (SILIPRANDI, 2009).

Além disso, da participação no movimento sindical, no MST e em movimentos

autônomos as mulheres passam a organizar-se em diferentes grupos, como o

Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), Movimento de

Mulheres Pescadoras, ou de mulheres indígenas que passaram a se organizar por

toda Amazônia Brasileira, assim como a Organização das Mulheres Quilombolas,

em nível nacional. Destacam-se também na década de 90 organizações como o

Movimento Articulado de Mulheres da Amazônia (MAMA), que propôs uma

articulação regional feminista e ambientalista, não governamental, também presente

em todos os estados da Amazônia Brasileira e que coloca novas questões sobre as

preocupações das mulheres com a preservação ambiental a serem incorporadas

nas agendas políticas (Sacchi,2005 in:SLIPRANDI,2009), e o início da Marcha das

Margaridas que se mobiliza sob a bandeira “Contra a fome, a pobreza e a violência

sexista”, reconhecidas pelo governo federal em Resolução nº6, de 22/02/2001, em

que o mesmo se comprometia a incluir a perspectiva de gênero em todos os

instrumentos administrativos sob tutela do Ministério do Desenvolvimento Agrário.

Estes movimentos de base, ou outros tantos menos conhecidos, que

ocorreram em regiões da Ásia, da África e da América Latina tiveram – e continuam

tendo - forte importância para demonstrar que essas mulheres camponesas não são

meras vilãs ou vítimas apáticas da destruição ambiental. Mais que isso, comprova o

quanto elas são inclusive militantes ativas em relação à necessidade de ‘cambio’ nos

modelos produtivos, a partir de críticas que constroem em suas condições empíricas

de sobrevivência. Essas lutas ocorridas em seus territórios articularam a defesa do

meio natural com a necessidade de protagonismo dessas mulheres nas decisões

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sobre os mesmos, bem como o próprio caminho da luta enriquece o esclarecimento

e fortalece questões ligadas ao feminismo que passam a mostrar as inúmeras faces

da opressão sofrida pelas mulheres e que não estavam sendo levadas em conta

pelas políticas de desenvolvimento que atingem principalmente o terceiro mundo.

Dito isso, é importante frisar que o Ecofeminismo além de ser um movimento

social que compõe diversas lutas ambientais e relativas a questões de gênero, é

também um discurso teórico que decorre dos desdobramentos dos feminismos

“terceiro-mundistas”, pós-colonialistas e multiculturalistas dos anos 1990. Essas

questões que se entrecruzam na formação das identidades das mulheres se

juntaram às críticas que já vinham sendo feitas desde os anos 70 pelas mulheres

negras sobre a impossibilidade de, no limite, universalizar-se a condição feminina

como a única forma de opressão vivida por todas as mulheres (SILIPRANDI, 2009).

Dentro do ambiente acadêmico, a Teoria Feminista vem desempenhando

papel fundamental no repensar da vida social para além do referencial masculino,

branco, heterossexual e do norte. Assim, o ‘sujeito universal’ (MARIANO, 2005)

desmembra-se em outras representatividades de múltiplas formas de expressão dxs

sujeitxs e inúmeras teorias (como Teoria Pós-Colonial, Teoria Queer) reconhecem a

importância do feminismo enquanto pensamento emancipador dos moldes

acadêmicos clássicos e/ou tradicionais que, na maioria das vezes, não considera

questões de identidade, corpo, sexualidade e desejo de forma não só múltipla e

diversa como também política.

Este feminismo do qual o Ecofeminismo bebe, busca justamente reconhecer a

enorme diversidade que articula tanto as vivência e expressões de dominação,

quanto às leituras de resistência e propostas de superação, tomando força de

expressão ao articular essas demandas de maneira social e política, ao pautar um

reconhecimento e empoderamento das mulheres a partir não só da ênfase na

autonomia econômica, como também no alcance da garantia de direitos específicos

nas questões levantadas por mulheres, levando em consideração as diferentes

formas como os mecanismos de dominação operam em cada situação e que, muitas

vezes, não são colocadas na prática das teorias de organizações mundiais ou das

políticas públicas nacionais.

Avançando um pouco nas acepções de sujeito, o Ecofeminismo reconhece e

reforça a necessidade de uma ‘parceria ética’ (GARCIA, 2012) com a natureza, que

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implica na construção de uma nova consciência sobre ela, a ser vista enquanto um

sujeito igual, uma parceira ativa da humanidade, numa relação dinâmica que permita

redefinir as condições do (des)envolvimento. Desta forma, reconheceríamos que a

natureza evolui por si mesma, independentemente da humanidade, em seu próprio

tempo e espaço. Ainda segundo Loreley Garcia, em seu livro “Meio Ambiente &

Gênero”:

“A parceria ética com os humanos implica em que cada qual tenha seu

espaço, tempo e atenção permitindo ao outro crescer e se desenvolver e

fornecendo apoio não dominador. Os seres humanos devem espaço à

natureza e, aos não humanos, tempo e cuidado permitindo que se

reproduzam, evoluam e respondam às ações humanas. Desta forma, o

Ecofeminismo está enraizado nas éticas ambiental e feminista a partir de

duas importantes questões teóricas: o bem-estar da natureza não humana e a

desigualdade na relação entre homens e mulheres”.

Em meados da década de 1970, em meio a discussões sobre o aumento

populacional e a emergência de discursos ecologistas que guinavam cada vez mais

para a necessidade de diminuir as taxas de crescimento da população mundial,

impondo limites à reprodução, onde as causas da pobreza no mundo eram

diretamente relacionadas ao número de pessoas existentes em um sistema global

em crise ambiental, o discurso Ecofeminista vem denunciar os limites que seriam

impostos ao direito de escolha das mulheres quanto à procriação. Mais ainda, na

antes da década de 70, o debate feminista do ‘pessoal é político’, e a preocupação

em colocar em evidência os mecanismos de poder que estavam por trás do racismo,

do sexismo e da irresponsabilidade humana quanto ao meio ambiente, permeavam

as discussões e críticas ao modelo civilizatório.

No centro deste debate, estará a francesa Françoise D’Eaubonne, a

primeira escritora a usar o nome “Ecofeminismo” em seu texto Le Feminisme ou la

mort, em 1974. Para a autora o controle de natalidade era só uma parte da equação

que colocaria o sistema global em crise, sendo a outra o modelo econômico

produtivista excludente, dominado pelos homens, que orientava os países

industrializados (tanto capitalistas como socialistas) e que estava levando a

humanidade ao colapso, numa clara relação entre superpopulação, devastação da

natureza e dominação masculina (PULEO, 2004 in: SILIPRANDI, 2009). Segundo

D’Eaubonne, se o controle da reprodução estivesse efetivamente nas mãos das

mulheres, reconhecendo as mesmas enquanto as mais interessadas na liberdade de

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escolha, o problema da superpopulação não existiria, diferentemente de obrigá-las a

um modelo de controle de fecundidade onde o poder não estaria em suas mãos.

Outro texto emblemático para se pensar a relação mulheres/natureza,

lançado em 1979, foi o de Sherry Ortner, antropóloga norte-americana, com o título

“Está a mulher para o homem assim como a natureza para a cultura?” que

preocupa-se em interpretar a subordinação feminina sob a luz de fatores na

estrutura da situação mais generalizada. Ou, como diz a própria autora, o propósito

do artigo é responder:

“O que poderia ter havido na estrutura generalizada e nas condições de

existência comuns a cada cultura, que poderia levá-las a colocar um valor

inferior sobre a mulher? Especificamente minha tese é que a mulher está

sendo identificada com - ou se se desejar, parece ser um símbolo de - alguma

coisa que cada cultura desvaloriza, alguma coisa que cada cultura determina

como sendo uma ordem de existência inferior a si própria. Agora parece que

há uma única coisa que corresponde aquela descrição e é a 'natureza' no

sentido mais generalizado” (p.100).

Ortner retoma questões já apontadas em “O segundo sexo” de Simone de

Beauvoir, de 1949, para compreender como a situação de subordinação das

mulheres está relacionada à distinção mantida, nessas sociedades, entre os

atributos da natureza e os da cultura – segundo ela, enquanto a mulher for definida

universalmente em termos de um papel amplamente materno e doméstico, esta será

a origem de sua subordinação universal - assim, defendia que, além de ser

necessário que as mulheres participassem mais intensamente do mundo público, os

seres humanos como um todo, através da cultura, passassem a valorizar mais as

atividades reprodutivas das mulheres, atribuindo-lhes outro sentido que não fosse de

inferiorização (ORTNER, 1979).

Como já vimos aqui, a questão dos dualismos natureza/cultura,

mulher/homem, razão/emoção, corpo/mente e etc, se tornou central no pensamento

Ecofeminista; porém, desde sua origem – do ecofeminismo – estas noções foram

tomadas de diferentes maneiras, com diferentes abordagens, dividindo-se

atualmente em direções por vezes divergente. Desta forma, não é possível afirmar o

Ecofeminismo de maneira unilateral, ou ainda, devemos entender que

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“ecofeminismo não é um só, mas múltiplo” (PULEO, entrevista 2009) e por isso

podemos vê-lo como “uma das mais radicais correntes do movimento ambientalista

porque se propõe a desestabilizar as bases sobre a civilização que separa

natureza/cultura e hierarquiza os sexos” (GARCIA, 2012). Portanto, a definição de

princípios fundamentais do Ecofeminismo basear-se-ia, em primeiro lugar, no

“reconhecimento de que existem vínculos importantes entre a opressão das

mulheres e da natureza” (DI CIOMMO, 1999).

Isto dito, podemos dar sequência na compreensão da formação e

desdobramentos do Ecofeminismo assumindo que alguns recortes e visões

abraçadas por esta corrente de pensamento podem escapar a esta apresentação,

dado tanto à limitação ao tema que nos cabe, quanto pela intenção do que se

pretende discutir aqui.

De maneira introdutória, no que diz respeito ao período entendido de sua

formação ‘clássica’, o Ecofeminismo preocupa-se em criticar a ‘cultura masculina’

enquanto obcecada por poder, marcada por guerras, organizações militares e

hierárquicas, bem como pelo envenenamento da terra, da água e do ar. Dentro das

demandas específicas das mulheres, esta vertente preocupou-se, primeiramente,

em buscar valorizar formas alternativas de cuidado com a saúde, de maneira mais

expressiva ligada a ginecologia natural. Frente a manipulação crescente dos corpos

das mulheres, estas feministas denunciariam os efeitos secundários de

anticoncepcionais e do uso de hormônios para superação da menopausa; estas

preocupações passavam pela preocupação quanto a libertação dos corpos a partir

do desenvolvimento de uma consciência ginocentrica e biofílica, fazendo frente a

civilização falocentrica e necrofilica dominante, assumindo uma essência oposta

entre homens e mulheres (PULEO,2002) onde mulheres representariam as

salvadoras da terra por carregarem em si a essência que as ligaria de maneira direta

com valores de proteção e manutenção da vida.

Desta forma, este feminismo da diferença, assume que a mulher estaria

eximida de todo mal, fechada na cultura feminina, que parece garantir que todas as

mulheres, igualmente, seriam seres positivos – revalorizando características

entendidas como femininas, de sensibilidade e cuidado; ou seja, segundo esta

vertente, a exclusão do poder teria isentado a mulher de participar das

configurações dominantes, tornando-as fontes de uma ótica privilegiada: a da pureza

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com relação ao que se fez de errado no planeta, e ao que se perpetuou contra a

natureza (DI CIOMMO, 1999).

Vandana Shiva é certamente o nome mais reconhecido desta vertente,

também ligada ao que se convencionou chamar “Ecofeminismo Espiritualista” ao

criticar o desenvolvimento técnico ocidental que colonizou o mundo. Shiva preocupa-

se em denunciar este “mau desenvolvimento” (PULEO, 2002) que desconhece ou

desconsidera a conexão existente na parceria entre mulheres e natureza, assim

como os usos resultantes desse diálogo nos processos de criação de riqueza. A

autora, ganhadora do Prêmio Nobel Alternativo, o “prêmio da sustentabilidade” (em

1984), e o Prêmio Nobel da Paz em 2004, evoca o “princípio feminino” enquanto

pressuposto para conservação ecológica, recorrendo à cosmologia tradicional hindu

para resgatar elementos que mostram a ligação dual dos atributos do feminino e do

masculino, onde o feminino representaria a atividade, o dinamismo, criação,

reprodução e regeneração, ligadas a simbologia de Shakti (a energia dinâmica) (DI

CIOMMO, 1999). Segundo a autora, a morte simbólica do princípio feminino da

natureza dá início à crise ecológica, fundando fontes de desigualdade entre o

trabalho ligado a procriação e ao trabalho ‘produtivo’ ligado ao lucro e ao capital,

presente nas origens do paradigma mecanicista do mau desenvolvimento, dos

postulados patriarcais de homogeneidade, dominação e centralização, que

fundamentam os modelos e estratégias de desenvolvimento dominantes. A

recuperação de atributos femininos – e sua valorização – seriam as bases para

transcender e transformar o modelo de produção e organização social que valoriza a

dominação, a produtividade mercantil, a hierarquização militar e de subjulgação

cultural.

Mesmo que este primeiro momento das concepções ecofeministas tenha sido

amplamente criticado e superado por diversas correntes do mesmo movimento,

ainda hoje associa-se o nome unicamente a esta sua primeira forma

biologista/essencialista que assumia conexões diretas e essencializadas entre

mulheres e natureza. Ainda assim, algo se manteve destas primeiras críticas ao

modelo de desenvolvimento dominante, que reconheceria a necessidade de superar

princípios como: julgamento de valor hierárquico, os dualismos baseados na

diferença e a lógica da dominação enquanto justificativa para a subordinação.

O ecofeminismo contando com distintas significações, compõe uma ideia

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fundamental, que é a existência de uma interconexão entre a dominação da

natureza pelos seres humanos e a sujeição feminina aos homens, expressando a

predominância de formas patriarcais na estruturação ocidental, que remete o papel

da mulher apenas à reprodução social (SOUZA, 2008). Mais a frente, serão

entendidos como princípios orientadores no mosaico Ecofeminista, de forma direta,

críticas a todas as formas de dominação, aceitação da natureza enquanto sujeito, e

o mais importante: a negação de um mundo binário, dividido entre diferentes formas

da valoração e representação, simbólicas ou materiais, que desacreditam uma

experiência monolítica partilhada por todas as mulheres.

Esta talvez seja a mais importante marca do Ecofeminismo Construtivista, que

nos interessa aqui ao considerar características históricas, empíricas, conceituais,

que nos ajudem a entender que a correlação entre mulher e natureza é alimentada

constantemente por um processo em que vários aspectos da situação feminina,

físicos, sociais e psicológicos, contribuem para que ela seja considerada como mais

próxima da natureza, enquanto que as instituições lembram essa proximidade (DI

CIOMMO, 1999). Ou seja, a ligação da mulher e da natureza está referenciada a sua

existência e não de sua essência.

Existem ainda outras formas classificatórias dentro da construção teórica do

Ecofeminismo e suas “escolas”, tais como: a) feminismo ambientalista, discute os

usos dos recursos naturais baseados nos diferentes papéis desenvolvidos no

trabalho e nas responsabilidades diárias de cada gênero, b) feminismo social, foca

nos papéis de gênero na política econômica, ao analisar os impactos da produção e

reprodução da relação de homens e mulheres aos sistemas econômicos, c)

feminismo pós-estruturalista, que explica a relação do gênero ao meio ambiente

como reflexo de crenças de identidade e diferença, tais coo raça, classe, gênero,

idade e etnia nos sentidos do desenvolvimento. Bem como estratégias conceituais

que se diferenciam em suas abordagens, a exemplo: o ecofeminismo ilustrado de

Alicia Puleo, que se inscreve na tradição crítica da opressão e defesa da igualdade,

mas também reconhece de forma crítica os avanços do Iluminismo a abertura de

novas perspectivas de pensamento o ecofeminismo transformador de Karen Warren

que foca nas conexões entre todos os sistemas de opressão e no estabelecimento

de todas as relações entre feminismo e ecologia, ou ainda o ecofeminismo critico de

Val Plumwood que acaba com os dualismo homem/mulher, cultura/natureza e

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envolve a reconceitualização tanto da natureza quanto da identidade humana, bem

como na relação entre ambas de uma forma não-hierarquica.

Enfim, o pensamento Ecofeminista apresenta-se de maneira complexa entre

discursos e conexões que dialogam ao pensar os paralelos teóricos, linguísticos,

históricos e culturais que explicitam a opressão e a subordinação de mulheres e

natureza, especialmente na cultura ocidental – e a sua sistematização na construção

de conceitos binários e hierárquicos que justificam a dominação –, além de advogar

uma profunda reverência a todo tipo de vida, e a importância do reconhecimento da

inter-relação entre humanos, não-humanos e a terra, bem como prever uma

inversão nos valores de produção ligados à geração de lucro através de uma política

de valorização/universalização dos múltiplos aspectos que compõe a manutenção e

o respeito a vida ao propor formas mais justas e igualitárias de convivência.

4. A PROPOSTA AGROECOLÓGICA

A fase atual de desenvolvimento do capitalismo e do modelo de

agricultura que se conforma após a revolução verde tem buscado impor e consolidar

a falácia do ‘controle’ sobre a natureza, através de tecnologias e técnicas que

‘estratificam as causas e efeitos da produção sem considerar sua complexa

composição de inter-relações sócio-culturais e biofísicas’ (MORIN,1994, apud

ROCES; MONTIEL, Vol 1,2010), ou seja, passamos por uma simplificação de

agrecossistemas e pelo rompimento do equilíbrio ecológico em que se baseava a

produtividade. Tais premissas produtivas acabam por manter uma relação de

vulnerabilidade para as comunidades camponesas ao criar obstáculos políticos no

acesso aos recursos necessários para a produção autônoma de alimentos, famílias

agricultoras passam a depender do mercado tanto na compra de insumos quanto na

venda de sua produção.

Outros efeitos desta agricultura “moderna”, baseada no uso de fertilizantes

químicos, agrotóxicos, máquinas e da especialização da produção vegetal e animal

passam pela ampla concentração de terra e de renda, êxodo rural, desestrutuação

de comunidades rurais, erosão, salinização e perda da fertilidade dos solos,

desmatamento e perda da biodiversidade, contaminação dos solos, água, animais,

seres humanos, alimentos, maior resistência de doenças e pragas na agricultura,

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aumento da dependência tecnológica dos agricultores em relação a grandes

empresas, bem como mudanças nas formas de organização social, econômica e

política que a sustentam.

Dentro do escopo de discussões que pensam enfoques alternativos para esta

trajetória, a Agroecologia surge como um conjunto de disciplinas científicas que

buscam analisar e atuar sobre estes sistemas. Neste sentido, a sustentabilidade é

definida, de forma ampla, como a capacidade de esses processos perdurarem no

tempo, conciliando a atividade agrícola e a manutenção das características

ecológicas do ambiente, e proporcionando meios de vida dignos para as pessoas

envolvidas (SILIPRANDI,2009).

Essa proposta de reconstrução crítica, tanto para a produção de um novo

conhecimento agrário, quanto para o formato de organização da vida, surge como

resposta a propostas tradicionais onde acredita-se ser necessário manter o

crescimento econômico com base no avanço da industrialização e do melhoramento

técnico dos métodos convencionais na agricultura, desde que os problemas

ambientais gerados por estes processos sejam atenuados.

Segundo seus teóricos, a agroecologia se apresenta como uma matriz

disciplinar integradora, totalizante, holística, capaz de aprender e aplicar

conhecimentos gerados em diferentes disciplinas científicas para estilos que

promovam a transição a um desenvolvimento rural e de agricultura sustentáveis

(CAPORAL, COSTABEBER, PAULUS, 2006).

Mais ainda, a proposta Agroecológica exige uma abordagem complexa e

ampla dentro até mesmo da apresentação de seus preceitos, ou, como afirmaram os

autores citados acima, precisamos “entender a Agroecologia como uma ciência do

campo da complexidade”, como uma ciência que vai além dos moldes cartesianos

de explicação e organização do mundo da vida, que busca não apenas um modelo

de agricultura sustentável, mas que pressupõe um respeito às culturas locais, as

características e especificidades das populações e comunidades rurais que vivem

em cada região ou agroecossistema em que se fará o manejo; os princípios da

Agroecologia retomam perguntas, ciências e visões de mundo que ficaram a

margem do plano desenvolvimentista ao reconsiderar um formato de conhecimento

não fragmentado, isolado ou hierárquico.

Segundo destaca Ema Siliprandi (2009), vale lembrar que a formação teórica

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da agroecologia passa por uma vertente agronômica, representada especialmente

pelo trabalho de Miguel Altieri, professor do curso na Universidade do Chile, uma

vertente sociológica representada pelos estudos desenvolvidos por Sevilla Guzmán,

e ainda uma vertente indígena/camponesa vinculada aos movimentos sociais e

representada principalmente por Enrique Leff. Estas concepções levariam em conta

e se desenvolveriam em relação às lutas sociais rurais de cada país, em diferentes

contextos, porém sempre enquanto crítica e questionamento quanto à validade das

propostas da Revolução Verde.

Muito já foi dito sobre os efeitos, as falhas, a falácia ou a incapacidade da

Revolução Verde em atingir seus objetivos contra a fome e a distribuição de comida

na Terra, ainda mais, este modelo científico foi levado ao seus extremos quando

pensamos em efeitos ambientais de nível macro, como o aquecimento global, a

contaminação da camada de ozônio, contaminação de alimentos, a diminuição da

diversidade de alimentos produzidos em troca da produção de commodities. A atual

conjuntura de crise alimentar global, do uso intensivo de agrotóxicos, da

contaminação, da busca crescente por transgênicos cada vez mais ‘resistentes’, do

aumento de doenças cardiovasculares, endócrinas, nucleares, bem como da

padronização do gosto, do aumento irresponsável da produção de processados

comprovadamente cancerígenos (Organização Mundial de Saúde, OMS – em

relatório publicado dia 26 de Outubro de 2015), representam o fracasso do sistema

agroalimentar em atender as necessidades básicas humanas, especialmente entre

os mais atingidos pela dinâmica competitiva dos mercados: os países pobres. Mais

que isso, estima-se que no mundo, a cada 7 minutos morre uma criança de

desnutrição. Quase 13 mil crianças morrem por dia (CAPORAL, 2011). Em Maio de

2015 a FAO anunciou que o número de famintos no mundo ainda chega a 795

milhões5.

O que Caporal (2011) irá chamar de “paradigma químico”, vem sendo

questionado no mesmo tanto em que a universalidade e suposta objetividade

científica construídas no último século. A agroecologia aproveita-se deste

movimento no sentido de considerar não só a multiplicidade do saber científico que

incorpora diferentes áreas de conhecimento, como também os saberes e

experiências das próprias pessoas agricultoras, promovendo um “desenvolvimento

rural mais humanizado e o desenho e manejo de agroecossitemas sustentáveis”

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(CAPORAL, 2011). Já Guzmán (2002) revela que a Agroecologia tem uma natureza

social, uma vez que se apóia na ação social coletiva de determinados setores da

sociedade civil vinculados ao manejo de recursos naturais, em um processo de

interação com diversos grupos e movimentos sociais. Nos diz o autor:

“A Agroecologia se propõe não só a modificar a parcelização

disciplinar, senão também a epistemologia da ciência, ao trabalhar mediante

a orquestração de distintas disciplinas e "formas de conhecimento" que

compõem seu pluralismo dual: metodológico e epistemológico, onde a

perspectiva sociológica tem um papel central. Isso se deve à amplitude do

enfoque agroecológico que, desde a propriedade, pretende compreender toda

a complexidade de processos biológicos e tecnológicos -fundamentalmente

durante a produção - e socioeconômicos e políticos - basicamente durante a

circulação dos bens produzidos até que cheguem ao consumidor - que

intervém no fato de uma semente se transformar em um bem de consumo”.

É importante ressaltar, portanto, a estreita relação da pesquisa científica

voltada para a Agroecologia feita em colaboração com os atores sociais que também

desenvolviam uma ciência – o que marca, desde o inicio os temas, os objetivos e os

métodos de análise dessas novas teorias. Eduardo Ehlers (apud SILIPRANDI, 2009)

lembra que bem antes que o termo “agroecologia” passasse a ser conhecido, já

existiam modelos de agricultura com enfoque ecológico. Ainda segundo Siliprandi,

essa disputa de concepções vinha desde o século XIX – entre uma visão positivista

mecanicista da ciência, que reduzia o solo a um substrato onde se desenvolviam as

atvidades agrícolas e outra perspectiva, mais holística, que reivindicava que o meio

natural era um todo orgânico pleno de vida (SILIPRANDI, 2009, p106). Vale citar

aqui, a título de exemplo, a Agricultura Biodinâmica de Rudolf Steiner, de 1920, a

Agricultura Orgânica de Albert Howard ou a Agricultura Natural de Okada e Fukuoka,

de 1930 e ainda a proposta de Agricultura Biológica, de Hans Peter Muller, de 1970.

A partir deste contexto que tem como princípio a recuperação ambiental e o

favorecimento a processos coletivos de organização, com protagonismo central nos

agricultores e agricultoras, são lançados alguns conceitos que povoam a

Agroecologia enquanto proposta emancipatória. Sevilla Guzmán (2001) resume

algumas característica do que chama de desenvolvimento rural equilibrado, a partir

de uma visão agroecológica: uma agricultura com bases familiares, com

integralidade nas atividades econômicas e sócio-culturais, uma maior estabilidade

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na produção com harmonia e equilíbrio no crescimento, com autonomia e gestão

compartilhada (pública e da comunidade), garantia de segurança alimentar com

minimização de externalidades e criação de mercados locais ou alternativos,

potencialização dos circuitos curtos de comercialização, que entenda este

rompimento com o discurso agronômico convencional enquanto fruto da experiência

ativa dos sujeitos em relação direta com a natureza e seu funcionamento, através de

tecnologias que não buscam simplesmente o lucro ou o incremento da

produtividade, estímulo ao manejo consciente que busque não apenas o resgate de

tecnologias e técnicas ancestrais mas que também favoreça a criatividade na busca

por soluções com base na co-evolução entre os sistemas naturais e sociais bem

como a manutenção de uma pluriatividade e complementariedade de renda que

utilize de forma múltipla o território, as energias e os materiais. Além disso, ampliar o

diálogo de saberes que incorpore outras formas de conhecimento que considere

como ponto de partida a “inseparabilidade dos sistemas sociais e ecológicos; ou

seja, as relações entre agentes sociais e ecossistemas, desta forma a problemática

do manejo dos recursos naturais deve ser pensada a partir de uma tripla

perspectiva: ecológica, socioeconômica e sócio-prolítica” (SEVILLA GUZMAN, 2001)

a fim de promover o empoderamento dos etnosecossistemas envolvidos nesta

proposta.

A valorização do grupo social – agricultoras e agricultores camponeses –

passa, necessariamente, pelo reconhecimento dos mesmos também enquanto

atores políticos que concebem uma mudança social a partir de um processo de

engajamento coletivo. No contexto brasileiro, a Articulação Nacional de Agroecologia

(ANA) talvez seja um dos expoentes mais importantes no costurar destas redes de

agroecologia que surgem em diferentes localidades e contextos do país, ao lado de

organizações como a ABA – Associação Brasileira de Agroecologia, As-PTA, o

próprio Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), assim como MMC –

Movimento de Mulheres Camponesas, MPA – Movimento dos Pequenos

Agricultores e inúmeras outras articulações locais ou ligadas também a Via

Campesina.

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4.1 A CEGUEIRA CONCEITUAL DO GÊNERO NA AGROECOLOGIA

A visão e os princípios Agroecológicos nos permitem reinterpretar nossa

relação de pertencimento, questionar nossas noções hierárquicas em relação à

Natureza. Partindo da discussão que caracteriza o marco opressivo antropocêntrico

(MONTIEL; PÉREZ,2013) organizamos nosso universo de significações a partir do

“nós” e dos “outros”, sendo o “nós” tudo aquilo que é humano ou que foi tocado pelo

humano, isto é o que é “nosso” – o que construímos e caracterizamos segundo

nosso entendimento, em uma relação verticalizada onde nos encontramos no topo.

Aquilo que é selvagem, desconhecido ou nativo é tido como algo a ser dominado,

descoberto por “nós” para podermos aplicar-lhe sentido, atribuir-lhe valor; ao

contrário, na Agroecologia buscamos entender estes sentidos como já existentes e,

mais que isso, não nos vemos ‘acima’ destes processos, somos todas membros

atuantes em um mesmo sistema – a vida como um todo, do qual fazemos parte de

maneira horizontal. Como escreve Regina Célia Di Ciommo: “Tememos relembrar

aquilo que sabemos em nossos corpos e nossos sentimentos, mas que fomos

obrigados a esquecer em nossa consciência civilizada e fragmentada: que assim

como as florestas que destruímos ou os rios que secamos ou sujamos, nós somos

Natureza” (DI CIOMMO, 1999, p122). Ou, ainda, a ecofeminista Judith Plant que nos

diz que: “Ao invés de lutarmos por nossas vidas, empenhamos nossos esforços para

defendermos a ilusão; negamos todas as evidencias de que esta civilização, que

deformou nossas mentes, está também destruindo a Terra” (PLANT, 1989 apud DI

CIOMMO, 1999, p119).

De fato, a Agroecologia pensa uma visão de mundo onde não haja hierarquia

para a existência, e ao repensar as bases cientificas de seu modo de fazer, saber e

ser, também propõe uma nova perspectiva para as visões dualistas nas relações de

poder imbricadas no cotidiano das pessoas atuantes em suas praticas – sejam

produtoras, sejam consumidoras. Esta visão que olha a Natureza como ativa,

participante e continuamente engajada em um processo dinâmico e em

desenvolvimento próprio, assume a existência de crescentes níveis de complexidade

e diversidade na sua dimensão de sujeito, assim como aplica o mesmo sentido para

as relações humanas que se interconectam neste contexto. Desta forma, a diferença

tem um forte potencial para deixar de significar conflito e passar a ser vista como

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uma oportunidade de criar novos valores (DI CIOMMO, 1999) onde retomando um

pouco do que foi discutido no primeiro capítulo deste trabalho, a cultura passa a ser

a realização da potencialidade e subjetividade latente na natureza.

Esta crítica ao que vê a Natureza como mero ‘recurso’ à disposição dos

humanos pretende expor a contradição presente na desvalorização da mesma. Nós,

os humanos, não temos capacidade de sobreviver apartados da natureza, e em

nome de nossa própria sobrevivência precisamos imprimir uma nova roupagem

(GARCIA,2012) aos projetos de desenvolvimento que considerem a sensibilidade e

a solidariedade compassiva nas ações com os desfavorecidos pelo sistema. Neste

crivo, as críticas Ecofeministas vêm denunciando as categorias onde o foco no

crescimento econômico e a perseguição incessante do desenvolvimento é uma

continuidade do processo de colonização, que caracterizam o marco opressivo

etnocêntrico do pensamento ocidental, onde as necessidades dos povos locais ‘não-

modernos’ são inferiorizados e assimilados a natureza. Esta centralidade cultural

ocidental se constrói em torno do mundo urbano do emprego de status de classe

burguesa, e que se complexifica com as hierarquias sociais de raça (branca),

orientação sexual (heterossexual), de opção religiosa (cristã) e de sexo-gênero

(homem) (MONTIEL;PÉREZ, 2013).

Pensando ainda no nosso objetivo de conectar os significados das múltiplas

opressões envolvidas na valorização deste formato, podemos afirmar que alguns

marcos opressivos se conectam de maneira a produzir justificativas sociais,

econômicas e ambientais que perpetuam esta dominação. Segundo Irene Garcia

Roces e Marta Soler Montiel (2010):

“O marco antropocêntrico reforça tanto o etnocentrismo como o

androcentrismo ocidental. A desvalorização da natureza é o vetos valorativo

que une os três marcos como têm mostrado distintas autoras ecofeministas.

As outras culturas, povos e formas de organização sociocultural, produtiva e

política são identificadas com a natureza enquanto não são dominadas pela

tecnologia e a ciência, frutos prioritários da cultura da razão. A legitimidade

assumida para o domínio, exploração e destruição da natureza se projeta

sobre as culturas não ocidentais, entre elas a camponesa. Da mesma forma,

a identificação do feminino com a natureza e o emocional em contraposição

ao cultural e racional é a chave que abre a porta a falsa legitimidade ocidental

para o controle e subordinação das mulheres, assim como a depreciação a

tudo o que se identifica com o feminino.” (MONTIEL;ROCES,

Vol1,2010,p47)

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Dentro destas conexões e da amplitude da mudança social proposta pela

Agroecologia, me preocupei em entender mais de perto como tais processos

funcionam de forma específica entre os homens e mulheres participantes da

Associação dos Grupos de Agricultura Ecológica São Francisco de Assis, da região

de Irati, no Paraná. Entrevistei apenas mulheres por sentir falta de ouvir mais as

suas vozes nas reuniões do grupo em que tive oportunidade de participar, por

perceber que a maior parte das falas é tomada pelos homens; portanto, busquei

conhecer suas histórias de vida, conversar de perto nos momentos de descontração

após o almoço ou fazendo visitas a suas casas especificamente para falar com elas,

entrevistá-las e ouvi-las de forma mais aberta e clara.

Terezinha, 49 anos, com duas filhas, morou a vida inteira na comunidade de

Arroio Grande, próximo ao município de Rebouças, em sua trajetória relata que

“uma das maiores alegrias que a Agroecologia pode trazer é poder dizer que

sabemos o que estamos comendo”. Terezinha é uma das integrantes mais ativas da

Associação, ela participa de feiras na Universidade (UNICENTRO) da cidade e na

Casa da Economia Solidária, também em Irati, onde leva “de tudo um pouco:

verduras, saladas, pão, bolacha, geléia, macarrão, cerveja caseira, polpa de sucos e

também os remédios caseiros, as tinturas, os xaropes e pomadas” e segunda ela é

muito bom “nas feiras, ouvir que a comida tem sabor de verdade, e que os clientes,

que viram amigos, vão estar se alimentando bem também”. Mais que isso ela diz

que na feira a diversidade tem que estar presente, por isso em casa ela e o marido

Roberto Carlos tentam plantar uma boa variedade de verduras e hortaliças:

mandioca, abóbora, feijão, beterraba, couve, batata doce, tomate, cenoura,

espinafre, etc. Terezinha, como dito, também preocupa-se com questões ligadas à

saúde, aos conhecimentos tradicionais – como feitura de chás e pomadas com

poder curativo. Ela e Roberto Carlos fizeram no ano de 2015 um curso de bioenergia

que ajuda a tratar a terra, os animais e as pessoas da família com base nesses

conhecimentos.

Outra fala, de Claudete Ivanski ressalta a importância da organização coletiva

para manter a produção, segundo ela “em grupo é melhor do que sozinho, a

variedade aumenta e quando conseguimos organizar mutirão para ir cada dia em

uma casa isso é coisa que na agricultura convencional não acontece, lá só é só a

máquina que faz”, percebendo ainda todo o valor da biodiversidade e respeito ao

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meio ambiente. Outra entrevistada, Dona Rosa, também diz que

“cada plantinha que você planta é amor na terra, talvez por isso minha

mãe com 80 anos ainda pega a enxadinha e vai lá na horta dela, e minha filha

também, fez antropologia no IFPR e agora trabalha com faxinalenses,

quilombolas e sempre que vem em casa também plantamos, ela me faz

perguntas sobre tudo de como eu planto, porque que eu planto assim. E é

bom, talvez a gente não consiga atingir a família inteira mas já é bom”.

Dona Rosa também relata que, apesar de sempre ter este cuidado na sua

forma de cultivo ela só entrou em contato com a Agroecologia a partir da ASSIS, e

desde então passou a se organizar em grupos, mesmo que o marido a

acompanhasse muito pouco, e quando eles compraram a chácara própria nunca

mais foi usado veneno, nem na lavoura dele. Ela também vende seus doces e

verduras em uma feira na sua comunidade e para pessoas que fazem encomendas

ou compram produtos diretamente em sua casa.

Dentro deste escopo, passamos a pensar e analisar quais estratégias

poderiam libertar tanto as mulheres quanto a natureza. Neste sentido o pensar

agroecológico deve, necessariamente, incorporar o feminismo e, por isso, uma

política de reconhecimento da “cultura feminina” - onde alternativas de produção e

distribuição de alimentos em bases coletivas que considerem também uma transição

onde a antiga divisão sexual de papéis seja questionada e novas relações de gênero

instituidas. Todas as entrevistadas afirmam conhecer mulheres que são impedidas

de sair de casa sozinhas (precisam levar filhos junto), ou não podem trabalhar fora

porque “lugar de mulher é em casa”.

Mais que isso, duas delas citaram o mesmo exemplo de um casal que faz

parte da própria Associação (ASSIS) e que a mulher não pode participar das

reuniões, cursos ou oficinas sem a presença do marido. Ou ainda, todas elas

reconhecem a dificuldade em voltar da roça, onde marido e esposa trabalham

juntos, e ter que dar conta – desta vez sozinha – de limpar a casa, lavar as roupas,

fazer comida e, ainda muitas vezes, cuidar dos filhos. A dupla, ou tripla jornada de

trabalho das mulheres já é denunciada há muito como uma problemática que precisa

ser superada, mais que isso, percebemos que as mulheres ainda podem ser

mantidas invisíveis através de proibições ou constrangimentos, da divisão sexual de

tarefas e da recusa masculina em assumir os problemas “femininos” como sendo

seus próprios problemas também – mesmo na Agroecologia. Outra relatante diz que

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já foi em reuniões só para cozinhar e foi constrangida quando passou os dias de

uma determinada semana “fora de casa” ajudando a organizar e chamar membros

para participar de encontros - “quando eu volto parece que estou presa”, diz ela.

Essa é uma cultura que tende a manter as mulheres isoladas e afastadas das

posições de poder (DI CIOMMO,1999,p.105) e que não fique apenas no campo do

“pensar” mas que participe do “fazer agroecológico” também dentro de casa, do

ambiente privado das relações de poder.

Por outro lado, muitos ganhos são reconhecidos com as possibilidades que se

abrem a partir das estratégias deste fazer. Claudete, de 23 anos, casada, lembra

que durante sua infância e adolescência seu pai sempre foi “muito rígido, não me

deixava estudar à noite, tentei fazer o magistério mas só cursei o primeiro semestre,

era tudo muito difícil”; mas que, participando da cozinha comunitária agroindustrial,

formada por outras mulheres da Associação, pode “estar para fora para vender, o

que é bom pra quem gosta como eu, e com isso eu pude me tornar independente

porque não é a mesma coisa quando você tem o seu dinheiro e não depende de

mais ninguém”. Terezinha também demonstra grande satisfação em “poder estar na

feira, conversando com as pessoas, tudo quanto é tipo de gente, explicando como

fazemos nossa comida, como dá pra cultivar sem veneno e o quanto fica gostoso.

Todo mundo volta, porque dizem que a comida tem sabor”. Muitas dessas mulheres,

além de trabalhar na roça, na casa, na cozinha comunitária (fazendo, na maioria das

vezes, pães, bolachas, macarrão e geléias) ou em feiras, também fazem

artesanatos, bordados, vasos de bambu, ornamentos de miçangas, entre outros, e

esse trabalho passou a ser comercializado também entre pessoas que não moram

na comunidade delas, enquanto novas experiências que valorizam a multiplicidade

deste universo que faz parte do que é entendido como feminino.

De tudo fica um reconhecimento de que “as mulheres sempre enfrentam o

que for”, como diz Claudete, seja combatendo discursos que diziam que quem

produz comida sem agrotóxico é burro, replicando que elas não queriam matar seus

filhos, seja batendo de frente com impedimentos que não levam em consideração

suas questões fazendo corpo presente como maioria nas reuniões, seja se

fortalecendo em sua “vontade de mudar o mundo”, como diz Elisângela dos Santos,

de 23 anos, com um filho de 8 anos que diz que “poder cada um tem igual, e é

machismo achar que só homem que trabalha”. Elas são militantes ativas na busca

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onde através de um exame consciente e coletivo do mitos sobre inferioridade, o

medo ou letargia das mulheres é rejeitado, resultando em um redirecionamento de

energia para uma mudança positiva. A compreensão da universalidade das

experiências, dentro das condições de existência cotidiana, podem conduzir ao

entendimento que induza a uma mobilização que modifique o ambiente social, no

sentido de favorecer seu crescimento e desenvolvimento (DI CIOMMO,1999, p.104).

No pouco que pude conviver, ouvir ou participar nos trâmites de reuniões de

organização de demandas da Associação, me parece importante apontar alguns

fatos: a) em todas as reuniões no período de um ano em que fui bolsista do projeto

BRASSAN (Brasil e Angola em prol da Segurança e Soberania Alimentar e

Nutricional) em conjunto com agricultores e agricultoras, fomos recebidas e

recebidos nas casas das famílias integrantes, e em todas as reuniões, sem exceção,

eram as mulheres – muitas vezes mãe e filha – que ficavam na cozinha enquanto se

encaminhava a reunião na casa; b) das entrevistadas todas são responsáveis pelo

serviço doméstico, mesmo que trabalhe tanto quanto o marido na roça, na horta e no

trato dos animais; uma delas diz ser difícil conseguir participar tanto quanto o marido

das reuniões por “estar muito cansada de fazer tanta coisa no mesmo dia”, em uma

das famílias o marido ajuda na produção de panificados e “às vezes ajuda na louça”;

c) foi relatado, por duas entrevistadas, o caso de uma família em que o marido

impede a esposa de sair de casa desacompanhada de algum dos filhos, bem como

de participar das reuniões; d) todas disseram já ter ouvido falar que “lugar de mulher

é em casa”, assim como que “plantar sem agrotóxico é pra quem é louco ou burro”;

e) há relatos de casos de mulheres que iniciaram a plantar em sua horta sem

veneno, mas que o marido, ao discordar da proposta, passou o mesmo por cima de

tudo; f) todas acreditam na força familiar, na importância da união e dedicação aos

membros da família.

Deste modo, podemos afirmar que a agroecologia traz em si uma

preocupação com a diversidade e isso fica evidente nas falas das entrevistadas

especialmente quando trata da produção de alimentos e sua disposição na mesa

das famílias, bem como a valorização de formas de trabalho diversas, como seus

panificados e seus artesanatos, que passaram a ser também uma oportunidade

econômica para elas. Em algumas comunidades foram construídas cozinhas

comunitárias, na intenção de reunir mulheres para produção de pães, bolos,

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bolachas, geleias e macarrão, que são vendidos em feiras ou através do PNAE –

Programa Nacional de Alimentação Escolar. É importante ressaltarmos também, que

este tipo de organização além de ter um forte impacto positivo quanto a liberdade

econômica e de geração de renda própria para as mulheres participantes, também

carrega significados simbólicos ao favorecer a criação de espaços de fortalecimento

de laços entre elas que, ao estarem mais em contato direto umas com as outras,

têm a oportunidade de dialogar mais sobre questões próprias a elas mesmas,

abrindo mais um caminho para o empoderamento de mulheres dessas

comunidades. A agroecologia traz este convívio que pressupõe uma troca – de

conhecimentos, de atividades, de uma metodologia participativa, com rodízio de

funções – e isso precisa ser incentivado em todas as etapas de produção,

considerando os espaços públicos e privados da mesma.

Porém, nas falas que consegui levantar, há uma inconsistência quando

pensamos na contrapartida deste rodízio de tarefas, quando este parece não

reconhecer a necessidade de discutir ainda outros contextos que fixam papéis ou

relações hierárquicas na determinação de funções dentro da família. As

entrevistadas deixam claro que a responsabilidade das mulheres é maior, mais

volumosa e trabalhosa do que a dos homens, mais que isso, muitas delas usam

claramente a palavra machismo para descrever determinados tipos de

comportamento e inibições que fazem frente a mulheres agroecológicas da região

estudada, o que nos permite perceber que elas mesmas têm um forte entendimento

sobre estes significados em suas vidas e na vida de outras companheiras,

entendimento este que contém em si um potencial de mudança nessas lógicas

quando discutido e problematizado. Esta problemática está presente em diversas

realidades brasileiras, também por isso é uma discussão que vem acompanhando

os diálogos de quem se preocupa com a transição Agroecológica de forma

responsável. Segundo Emma Siliprandi e Gloria Patricia Zuluaga (2014) “precisamos

indagar sobre como os estereótipos da masculinidade afetam o pleno

desenvolvimento da agroecologia; a união da perspectiva ecológica com a convicção

da necessidade de alcançar a igualdade de gênero é garantia de uma modernidade

crítica, que converterá as mulheres em um novo sujeito revolucionário”.

No contexto rural brasileiro uma das possíveis saídas que vem sendo

amplamente discutida é a da especialização urgente da ATER (Assistência Técnica

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e Extensão Rural), com técnicos e técnicas que tenham vínculos reais com as

comunidades e com a transição agroecológica – ou seja, um quadro técnico

qualificado e que traga de forma responsável a formação e discussão de questões

de gênero para dentro das famílias, e que dê atenção para questões específicas

como saúde, por exemplo. Se o trabalho com as famílias camponesas continuar

sendo embasado por uma percepção generalizada de que estas são meramente

sujeitas de um novo modelo de produção e consumo, sem questionar as

inequidades e tensões que ocorrem em seu interior, as questões específicas das

mulheres continuarão sendo invisibilizadas. É importante assinalar que,

tradicionalmente, os estudos do campesinato vêm tendo como centro de interesse a

unidade doméstica de produção e, portanto, as comunidades camponesas ou

indígenas, que são percebidas como um conjunto de indivíduos indiferenciados em

relação ao gênero, onde as mulheres se mantêm submissas. Foi apenas quando as

feministas começaram a estudar desde uma perspectiva de gênero as unidades

domésticas de produção, que as mulheres foram se tornando visíveis, não apenas

na produção como também na reprodução das mesmas unidades, e, portanto,

fundamentais na agricultura familiar e na cultura camponesa

(SILIPRANDI;ZULUAGA, 2014).

Portanto, precisamos apontar que há um tipo de emancipação da mulher na

agroecologia pois ambas as noções de gênero e sustentabilidade colocam-se contra

uma visão produtivista e economicista (PACHECO, apud SILIPRANDI, 2009,p120)

promovendo uma maior integração do conhecimento que permite uma melhor

percepção do sistema agrário local de forma crítica e que rompe com os domínios

de uma ciência estanque na produção de conhecimento (SILIPRANDI,2009,p113).

Siliprandi ainda enumera alguns fatores que favorecem a melhoria da situação das

mulheres nos sistemas de produção agroecológico: a) o envolvimento em várias

etapas do processo produtivo; b) a valorização de atitudes geralmente atribuídas às

mulheres (o cuidado); c) uma integração de diferentes responsabilidades a fim de

quebrar o monopólio gerencial do homem; d) presença em maior número nos

espaços onde as propostas de apoio à transição são discutidas, tais como cursos e

seminários; e) a aquisição de novos conhecimento a partir da participação das

mulheres em espaços públicos, principalmente de comercialização (como as feiras)

que permitem um contato com públicos exteriores à propriedade, bem como o

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reconhecimento social do trabalho desenvolvido por elas, gerando-lhes auto-estima;

f) a obtenção, por si mesmas, de rendas mais permanentes, fruto direto de seu

trabalho, permitindo avanços em sua autonomia (SILIPRANDI, 2009, p123e124).

Ainda segundo a autora, para quebrar esta lógica é preciso que haja um processo

de empoderamento também político dessas mulheres – o que vai depender,

basicamente, de que elas consigam aparecer (individual e coletivamente) como

sujeitas ativas, nas famílias, nas comunidades, até influenciarem nas instituições

públicas, nas políticas, nas sociedades.

Desta forma, desafiar conceitos estabelecidos na análise da realidade rural e

camponesa é uma das maiores contribuições que o debate de gênero e a proposta

Ecofeminista pode trazer para a Agroecologia, por reconhecer o papel

central/fundamental da desigualdade de gênero na crise ecológica que atinge

aspectos de dominação que não seriam significativos ou seriam considerados

normais em sua construção.

5. OS CAMINHOS DE PROMOÇÃO DA SOBERANIA ALIMENTAR E O

PROTAGONISMO DAS MULHERES

A chamada ‘globalização alimentar’ (COLLADO; FERRE; MONTIÉL, 2010)

consolidou o sistema mundial de produção e distribuição de alimentos sobre a base

de uma crescente concentração de grandes empresas, em um contexto de

modernização capitalista imposta pelo Ocidente e trouxe consigo uma dependência

cada vez maior de insumos químicos, transporte de longas distancias, grande

processamento e empacotamento, transformando a comercialização e o consumo

em palavras-chave para o acesso a comida; assim a “alimentação se torna signo de

distinção em nossas sociedades opulentas” (MONTIÉL; PEREZ, Vol 8, 2013, p102).

Esta valorização mercantil se constitui e reforça a industrialização tanto dos

espaços de produção quanto das cozinhas domésticas dos lares – nos

acostumamos a comidas com cada vez mais ‘tempo de prateleira’, congelada, pré-

fabricada, instantânea e industrializada. Não ter tempo para cozinhar tornou-se um

símbolo da modernidade – ou comemos fora, ou comemos algo que já vem ‘semi-

pronto’ para nosso consumo. Além disso, cercar-se de eletrodomésticos passou a

ser, antes de tudo, sinal de progresso e de ascensão; neste sentido o acesso a bens

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de consumo cada vez mais tecnológicos (máquinas lava-louças, máquinas de fazer

pão, multi-processadores) e que auxiliem a mulher a dedicar cada vez menos tempo

a alimentação, substitui o que deveria ser uma socialização equitativa dos mesmos.

Outro aspecto de status ligado à industrialização e modernização também atinge o

que hoje são os mercados gourmets, onde a sofisticação do alimento carrega em si

mais um caminho para a distinção social a partir da comida.

Enfim, a alimentação parece se distanciar cada vez mais, tanto no nível

macro (grandes mercados), quanto no nível micro (cozinhas domésticas) de seu

propósito: comer, e comer bem. Com isso carrega em si processos de significação

tanto materiais (acesso ou não a bens) quanto simbólicos (moderno/atrasado), que

atinge especialmente as mulheres, tanto por serem elas as responsáveis pela busca

de àgua, lenha e combustíveis – matérias cada vez mais escassas pela degradação

ambiental em países do Terceiro Mundo – quanto por desvalorizar trabalhos e

responsabilidades em torno do cuidado em nome de valorização e prestígio dentro

da lógica urbana, moderna, mercantil e ocidental já discutida nos primeiros capítulos

deste trabalho. Quanto a mulheres camponesas, podemos afirmar que elas são as

maiores atingidas por estes efeitos e signos impostos pela mercantilização mundial

da alimentação. Segundo Loreley Garcia:

“Partindo dessa premissa, consideramos que as mulheres rurais,

quando são comparadas aos homens rurais, apresentam maior nível de

vulnerabilidade visto que o desmatamento, a escassez de água, a

degradação dos solos, a exposição aos agrotóxicos e aos dejetos industriais

poluentes afetam homens e mulheres de forma diferenciada. O tempo gasto

em atividades domésticas pode aumentar drasticamente quando há

esgotamento de recursos. A degradação florestal torna ainda mais difícil a

coleta de lenha, ervas silvestres, frutas e medicamentos naturais”. (GARCIA,

2012, pg200)

Ainda pensando nos impactos da orientação de desenvolvimento voltado para

as necessidades do mercado internacional, segundo a Organização das Nações

Unidas para Alimentação e Agricultura, em um século de globalização, a variedade

de espécies de plantas utilizadas para alimentação e outros usos decresceu de 100

mil para 30 mil só no continente asiático (FAO, 2011 in: GOMES;ANDRADE, 2013);

ou seja, diminuímos a variedade na base de nossa cultura alimentar ao nos

moldarmos a consumir produtos que estão disponíveis o ano inteiro na prateleira dos

mercados, junto aos industrializados com alto teor de açúcares, gorduras e sal. No

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Brasil, segundo a Pesquisa Nacional por amostra de domicílio (PNAD) 30,2% dos

domicílios (com 34,9 milhões) enfrentam situações de insegurança alimentar. Na

segunda edição de O Estado da Insegurança Alimentar e Nutricional no Brasil: um

retrato multidimensional6, promovido pela Organização das Nações Unidas para

Alimentação e Agricultura (FAO), e O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional

no Brasil – 2015 (SOFI Brasil) nosso país é líder mundial na produção de laranja,

café e cana-de-açúcar; segundo maior produtor de soja, feijão e carne bovina;

terceiro maior produtor de abacaxi e milho; quarto maior produtor de leite de vaca; e

quinto maior produtor de limão e banana. Ao mesmo tempo, ainda existe uma parte

da população em situação de insegurança alimentar, o que mostra que a quantidade

da produção de alimentos no país não se configura como um fator determinante da

fome. O mesmo ocorre nos Estados Unidos, também entre os maiores produtores de

alimentos no mundo, onde quase 15% da população estão em situação de

insegurança alimentar – 5,7% em situação de insegurança alimentar grave.

Por estes motivos, somados aos efeitos da Revolução Verde, da má

distribuição de terra, de renda e de acesso, comer tornou-se um ato político. Foi

neste sentido que a Via Campesina postulou o conceito de Soberania Alimentar,

definido como “o direito dos povos a alimentos nutritivos e culturalmente adequados,

acessíveis, produzidos de forma sustentável e ecológica, e o direito de decidir seu

próprio sistema alimentar e produtivo”7. Desta forma, a declaração política

apresentada pela organização em 1996, na Conferencia Mundial sobre Alimentação

da FAO em Roma defendia a alimentação enquanto direito humano fundamental.

Outro conceito, primo da Soberania Alimentar, a Seguranção Alimentar e

Nutricional se define, segundo o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e

Nutricional – CONSEA (2009)8, enquanto a realização do direito de todos ao acesso

regular e permanente de uma alimentação saudável, de qualidade, em quantidade

suficiente e de modo permanente, devendo ser totalmente baseada em práticas

alimentares promotoras de saúde, sem comprometer o acesso a outras

necessidades essenciais, como um direito do brasileiro de se alimentar

devidamente, respeitando particularidades e características culturais de cada região.

Neste sentido, percebemos outros princípios norteadores da alimentação, que

como soberana, deve implicar na participação social dos povos e movimentos em

toda a cadeia de produção e circulação, levando em conta não só a participação

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desses atores no desenho do comércio, mas o respeito ao seu modo de produção e

à sua cultura. Desta forma, a alimentação é diretamente relacionada à reprodução

do ponto de vista físico e nutricional, bem como às necessidades culturais de grupos

e comunidades, ela corresponde a formas de racionalidades que traduzem um valor

moral e identitário pertinentes a seus modos de vida (ANDRADES;GOMES,Vol12,

2013), o que significaria um respeito ainda maior pela diversidade biológica e

sociocultural dos agroecossistemas envolvidos na produção.

Pensando nesses caminhos a agroecologia apresenta-se como proposta

alternativa para o desenvolvimento e análise destes sistemas rurais, assim como

para a erradicação da fome e da pobreza de forma coerente com a proposta política

da Soberania Alimentar desenvolvida pela Via Campesina

(MONTIEL;ROCES,VOL1,2010). Assim como a proposta da Soberania Alimentar

que dá centralidade a construção de sistemas alternativos, com produção local,

camponesa e proveniente da agricultura familiar e destinada a mercados locais, é

também coerente com o enfoque científico e prático da Agroecologia.

Ou seja, as diferentes estratégias de resistência e de busca pelo direito a

diversidade, de respeito aos sujeitos locais, de direito de escolha e participação

política e de autonomia produtiva se entrelaçam no campo das questões não só

rurais e camponesas, como também de acesso fundamental que atinge

especialmente o meio urbano (dependente, neste sentido, do rural): a alimentação.

5.1 A EXPERIÊNCIA DA ASSOCIAÇÃO DOS GRUPOS DE AGRICULTURA

ECOLÓGICA SÃO FRANCISCO DE ASSIS (ASSIS)

Existem hoje no Paraná várias experiências e organizações sociais que

propõe um modelo de desenvolvimento rural alternativo. Estas iniciativas incluem

grupos étnicos e comunidades tradicionais como faxinalenses e quilombolas,

organizações indígenas, trabalhadores e trabalhadoras rurais, assim como grupos

de extensão acadêmica e desenvolvimento de projetos participativos. A ASSIS

encontra-se como articuladora de diferentes grupos em torno da questão

Agroecologica, é composta hoje por cerca de cinquenta associados e associadas, de

quatro municípios e famílias de diferentes comunidades, assentamentos e faxinais,

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buscando explicitamente promover a Agroecologia em nível local e comunitário

através da participação de feiras, entrega mensal de ‘sacolas agroecológicas’ para

consumidores da região, acesso a programas de governo (como PNAE) e

comercialização junto a Rede Ecovida.

Antes da criação da Associação, as famílias se dedicavam (como ainda fazem

muitas na região) a plantação do fumo. O formato de cultivo de fumo que domina a

região está voltado para contratos com as grandes empresas tabagistas que,

segundo denunciam as famílias, “prende” os agricultores e agricultoras em ciclo de

pagamento pela produção e dívida sobre insumos e taxas de estrutura que dificultam

ao máximo a ‘saída’ dos agricultores e agricultoras frente a estes contratos. Mais

que isso, o cultivo de fumo depende de uma atenção inteiramente voltada para ele; o

processo de plantação, secagem e armazenamento demanda tanto das famílias que

mal sobra tempo para produzirem qualquer outro tipo de alimento, deixando-as

dependentes do mercado tradicional. As condições da produção também são

bastante prejudiciais à saúde das produtoras e produtores por depender de uma alta

quantidade de agrotóxico e pelo risco de intoxicação pela nicotina liberada ao

arrancar a folha de tabaco.

Ao fazer a transição agroecológica as famílias associadas preocuparam-se

em dar saída a produção. Uma das estratégias que funcionou ao longo dos anos foi

o acesso a programas de compra do governo, como o PAA (Programa de Aquisição

de Alimento) e o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar); com foco

especial no PAA na modalidade de compra institucional destinada a creches,

escolas e asilos da região. No auge de sua atuação a Associação chegou a contar

com 120 integrantes de famílias da região, que tiravam a maior parte da sua renda

mensal das entregas feitas à CONAB (Companhia Nacional de Abastecimento) para

o programa. É neste momento que as famílias se fortalecem, aumentam a produção

e a diversidade de alimentos cultivados, e nas rodas e assembleias semanais ou

mensais da Associação diversas questões – para a além da produção – são

discutidas, “a gente fica sabido e aprende a brigar, a informação nos forma” diz um

dos integrantes em reunião realizada na Unicentro para o “Mate Debate”, realizada

no dia 23 de Outubro de 2014.

O PAA, programa que surge em 2003 e emerge em 2006 como uma das

políticas estruturantes da Estratégia Fome Zero, foi de grande importância a nível

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nacional para fortalecer a agricultura familiar com enfoque na Soberania Alimentar e

Nutricional (SAN), pois através dele podem ser adquiridos alimentos diretamentes de

agricultores e agricultoras familiares e suas organizações, com dispensa de licitação,

para serem doados para instituições sociais (hospitais, entidades assistenciais,

escolas) e pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional (que

recebem cesta de alimentos), ou serem destinados à formação de estoques públicos

(CINTRÃO;SILIPRANDI,2011). Melhor dito por Bezerra (2010, p28):

“o PAA se apresenta como sendo um dos esforços do Estado em

formular e implementar políticas públicas que tenham como objetivo resolver

ou minimizar os problemas relacionados à situação de insegurança alimentar

e vulnerabilidade social nos espaços rurais e urbanos, de modo a promover

uma (re)conexão entre produtores e consumidores, que, por sua vez,

mediante o mecanismo de compra direta da agricultura familiar com doação

simultânea, passam a fornecer seus produtos (alimentos) para os chamados

centros consumidores”.

Desde a sua criação, o PAA teve um crescimento contínuo dos valores

alocados e do número de fornecedores. Em 2003, iniciou-se com R$63 milhões e 42

mil famílias fornecedoras e em 2008, foram aplicados cerca de R$490 milhões, com

compras de 166 mil famílias agricultoras (CINTRÃO; SILIPRANDI, 2011,p15).

Apesar de este contexto se demonstrar amplamente favorável para o fortalecimento

da agricultura familiar, da diversidade produtiva e sustentável no caminho da

expansão do alcance dos princípios da SAN, em 2013 assistimos a uma queda no

programa. Segundo Cátia Grisa, em exposição no I Seminário BRASSAN, foram seis

os principais motivos para o enfraquecimento do programa: I) o incremento

normativo de regras burocráticas que complexificam o acesso por parte dos

agricultores e agricultoras; II) mudança na fiscalização, com gestores distantes da

agricultura familiar e pouco flexíveis a suas especificidades; III) mudanças na

vigilância sanitária e dificuldade de adequação dos produtores e produtoras; IV) fim

da formação de Estoques; V) ampliação do PNAE; e o golpe mais sentido pela

Associação São Francisco de Assis VI) a criminalização.

No ano de 2013 as lideranças da Associação passaram 48 dias presas sob a

acusação de não cumprir os contratos da entrega na CONAB por substituir

determinado produto por outro não descrito nas tabelas de entrega. Depois dessas

acusações a Associação se desmobilizou, as prisões tiveram um efeito moral muito

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forte sobre os integrantes, as pessoas foram coagidas pelo resto da comunidade

depois das acusações; para estes agricultores e agricultoras a acusação de falha

perante a lei teve um peso moral e não político, porque para a comunidade se a

polícia veio prender estas pessoas é porque elas realmente fizeram alguma coisa de

errado. Assim, a ASSIS perdeu força, fôlego e pernas, algumas famílias que já

tinham feito as entregas mensais no mesmo mês das prisões até hoje não

receberam por isso, mas buscam, ainda assim, outras estratégias que deem conta

de suas demandas; foi aí que começaram a dar mais foco para as feiras locais.

Segundo Terezinha “teve um ano que a gente chegou a plantar de tudo: milho, soja,

feijão. Quando aconteceu tudo aqui eu pensei 'acabou', ele (meu marido) foi preso e

eu fiquei plantando minhas coisinhas pra comer, até que um dia me convidaram na

Unicentro pra fazer a feira. A professora me ligou e perguntou o que eu tinha, e eu

fui dizendo: eu tenho mandioca, abóbora, feijão, vidros de doces, molhos de tomate,

poupa de suco. Ela me disse pra trazer pra feira, e foi assim que começamos”.

Estes espaços de feira, predominantemente organizado por mulheres da

Associação, supõe uma ruptura com as atividades tradicionais das mulheres,

socializadas para atender as necessidades no âmbito privado, e tanto a produção

dos homens quanto a das mulheres têm saída no mercado. Isto supõe uma

visibilização e valorização da produção das mulheres (que não era vendida para os

intermediários por se tratar de pequenas quantidades) que passam a ter renda na

família. A feira suporta uma forma diferente de mercado orientado a atender as

necessidades alimentares das famílias da cidade, o que significa valorizar e ampliar

o trabalho das mulheres, que supera o âmbito privado (as necessidades de sua

família), alcançando a esfera do público (as necessidades das famílias

consumidoras da cidade (MONTIEL;ROCES,Vol1,2010,p58).

Mais que isso, poder vender seus alimentos agroecologicos nas feiras é,

conscientemente, motivo de maior orgulho entre elas, como diz Terezinha “Na

agroecologia a melhor coisa é produzir alimento, a riqueza maior é a dos meus

consumidores virem na feira e dizer que gostaram dos alimentos, e pra mim já era

bom saber o que eu tô comendo, mas saber que hoje através da feira muita gente tá

se alimentando bem também, vindo falar sobre como o alface, a cenoura tem sabor

e são diferentes do mercado”.

Apesar de não assumir de forma explícita a perspectiva de gênero, a

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participação das mulheres nas atividades da Associação é muito forte, como diz

Claudete “aqui o nosso grupo sempre teve mais mulher do que homem participando,

que se empenhavam; porque as mulheres sempre enfrentam tudo mais do que os

homens, enfrentam casa, enfrentam roça, enfrentam tudo né”. Esta constatação

indica um processo de empoderamento feminino, elas se sentem estimadas ao

serem dissociadas do que era restrito a reprodução. O próprio PAA, que cria um

mercado ‘institucional’, com preços justos, para os produtos tradicionalmente

vinculados à esfera feminina, ao “autoconsumo”, à “subsistência” e ao “quintal”,

cultivados em áreas próximas à casa, ou em áreas não aproveitadas para cultivos

comerciais (CINTRÃO; SILIPRANDI,2011), contribui para inclusão deste

empoderamento.

Além disso, no que diz respeito aos alcances da Soberania Alimentar,

podemos afirmar que esta – a alimentação adequada – é uma preocupação central

na fala de todas as entrevistas. Terezinha, por exemplo, afirma: "eu gosto do que eu

faço, e hoje eu tenho certeza que dá certo; a saúde melhorou bastante, através

desse trabalho a gente começou a se alimentar e a fazer consultas na bioenergia

pra alguma gripe ou infecção, coisa pouca. Mas a agroecologia pra mim hoje é ter

uma vida saudável, produzindo alimentos, se alimentando bem, sabendo que a

minha família não fica doente porque alimento não é só alimento, é remédio. É tá

fazendo alguma coisa que eu gosto, é minha vida, me sinto feliz”. Já Claudete diz:

“eu acho que é uma coisa boa que a gente faz, produzir alimento que não vai fazer

mal pros outros e que as pessoas que tão comendo sabe que é saudável, isso é

bom”.

Estas experiências e relatos traduzem um pouco da “teia da questão

alimentar” (Maria Emília Pacheco, 2015, em fala na Jornada das Questões Agrárias)

que passa não só por questões produtivas e de abastecimento, mas que considera

as diferentes pessoas, os vários atores envolvidos no processo, bem como a

multiplicidade de relações e de demandas específicas e tão diversas quanto

possível.

Nos debates da Soberania Alimentar e Nutricional (SAN) estes atores em sua

diversidade são pontos chaves para o direito humano à alimentação adequada e que

respeita a biodiversidade de cada sistema cultural envolvido. Assim sendo, se

pensarmos as disputas centradas nas grandes corporações, detentoras dos ganhos

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pelo domínio da industrialização e da artificialização dos sistemas agroalimentares

voltados para o mercado global, percebemos que estas fazem de nós, consumidores

e consumidoras, mera audiência que paga caro para ver o aumento da

contaminação de alimentos, do uso de conservantes químicos, esterilização de

sementes, despolitização e ‘medicalização’ da alimentação.

A proposta da Soberania Alimentar também está centrada na construção de

sistemas agroalimentares alternativos, que favoreçam o local, a produção

camponesa e a agricultura familiar onde prevaleçam relações de poder equilibradas,

que vão ao encontro das possibilidades abertas também na proposta da

Agroecologia e sua visão crítica quanto a construção de diálogos entre diferentes

saberes e formas de repensar e substituir relações hierárquicas – seja com a

natureza, seja com outras culturas, seja por diferentes formas de vida, seja entre os

seres humanos que buscam compor este sistema de maneira mais democrática.

É evidente o reconhecimento de que mulheres camponesas além de serem

as maiores responsáveis por tarefas de cultivo ligadas a reprodução e ao cuidado,

desempenham papel fundamental neste sentido de preservação das dinâmicas

produtivas que preservem e respeitem a vida. Na America Latina e no Caribe entre 8

e 30% do cultivo agrícola estão a cargo das mulheres, e a proporção de mulheres

produtoras aumentou 5 pontos na última década, ainda segundo o mesmo

Infográfico da FAO – “Igualdade de acesso a recursos e poder” (2013)9, investir na

educação de mulheres reduz em 43% a má nutrição infantil.

Aprofundando um pouco mais os números e reflexões e tomando por base

outro infográfico de gênero desenvolvido pela FAO – “A agricultura com cara de

mulher”10, pensando a agricultura de maneira geral (dentro dos moldes tradicionais

de cultivo) os homens tem maior direito sobre a terra (tanto em titularidade quanto

em parcela), pois em muitas culturas as leis tradicionais impedem que as mulheres

adquiram o herdem terra; maior acesso a insumos e a tecnologias (sementes,

fertilizantes e equipamentos agrícolas); acesso a formação, informação e educação,

ou oportunidade de atuar em pesquisas de 'alto-nível'; maior acesso a crédito, visto

que na maioria dos países existe uma diferença entre 5 e 10% entre homens e

mulheres; e acesso aos mercados, que, enquanto espaço público são

predominantemente masculinos. Ainda assim, se considerarmos a carga de trabalho

tanto remunerado quanto de “tarefas domiciliares”, as horas trabalhadas pelas

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mulheres supera a dos homens em todas as regiões do planeta.

Portanto é, mais uma vez, imprescindível considerarmos diferentes formas,

braços e desdobramentos da economia nos processos em que se desenvolve a

vida, onde se consideram outras formas de racionalidade, que questionem as

lógicas de valorização mercantil – que vem sendo discutido também pelas propostas

da Economia Feminista e da economia do cuidado (FARIÑAS AUSINA, n21, 2015),

que pautam também a interdependência e/ou ecodependencia entre os diferentes

aspectos que ajudam a sustentar a vida. Segundo Gomes e Andrade (2013) os

propósitos e debates promovidos pela Soberania Alimentar, retomam diferentes

racionalidades que fazem frente aos modelos produtivos projetados – a

racionalidade científica, que traz em si a modernização tecnológica como necessária

para o desenvolvimento e as demais racionalidades, que foram subjugadas pela

primeira ao ter seus valores, saberes e práticas tradicionais deslegitimadas. A

racionalidade proposta pelos movimentos sociais ligados ao projeto político da SAN

busca resgatar estas racionalidades subalternas através de um “processo de

apropriação com participação social, que crie significados às ações técnicas

escolhidas em consonância com interesses coletivos” (ANDRADE;GOMES,

Vol12,2013,p397). Este processo entendido por Feenberg (2009, in:

ANDRADRE;GOMES,Vol12, 2013) como racionalização subversiva, cria uma

racionalidade não mediada pelo lucro e responsável com seu contexto e seu

horizonte cultural; ou seja, uma racionalidade que reconhece o universo cultural em

que está inserida, considerando as pertinências distintas de cada comunidade, bem

como suas características relações sociais de raça, gênero, etnia e conforma o

conhecimento dos sujeitos e sujeitas que a integram.

Não obstante a histórica falta de visibilidade e identificação com o consumo

doméstico e o cuidado familiar (SILIPRANDI, 2009) mulheres manejaram afirmar-se

enquanto sujeitos políticos em sua postura para forjar uma identidade e articular

seus interesses com projetos coletivos como o da Soberania Alimentar. A condição

da mulher camponesa apresenta-se enquanto um caso específico em que a sua

racionalidade é subjugada e marginalizada tanto pelas instituições sociais que

reproduzem o patriarcado, quanto pela racionalidade científica e econômica

marcada pelo capitalismo e, ao afirmarem a extrema importância de suas atividades

para a manutenção da diversidade e da qualidade de vida, elas estão tanto elevando

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sua auto estima e importância social de seu trabalho quanto criando formas

alternativas de empoderamento no sentido de encabeçar projetos políticos ligados a

preservação da diversidade, da saúde, da horizontalidade e do cuidado a partir de

pautas ligadas a questão alimentar.

Ao abrir espaço nestas pautas da Soberania Alimentar as mulheres

camponesas demonstraram o quanto o contexto de luta está tradicionalmente

referido e consoante aos seus interesses, de forma que encorajar uma maior

participação das mesmas também em espaços públicos de discussão é fortalecer a

construção dessa nova realidade.

O exemplo da ASSIS, de Irati, é sintomático neste sentido. Segundo o que

podemos observar a partir de sua atuação na Agroecologia, as mulheres passaram

a participar mais de ambientes públicos – como feiras, Jornadas, reuniões – e

valorizar seu trabalho – no cultivo de alimentos, mas também na produção de

artesanatos, medicamentos, processados. Todas as entrevistas que já atuaram, ou

ainda atuam em feiras, produção e venda comunitária de panificados, dizem sentir-

se muito bem com essas atividadades, como diz Claudete “se eu pudesse sair

vender todo dia eu saía, nem que seja pra oferecer só nas casas das pessoas que a

gente conhece; você parece que está se divertindo, e é bom porque eu não me torno

dependente”. A partir do momento em que elas se tornam responsáveis por parte da

produção de comercialização que gerará renda para a família elas se sentem mais

confiantes e encorajadas a “fazer parte” e se conscientizar da perspectiva pública e

política que o projeto Agroecológico proporciona.

Por outro lado, muitas vezes a ausência nas reuniões ou em ações do grupo

se deve a sobrecarga de trabalho derivada da responsabilidade exclusiva do

cuidado de filhos pequenos e o trabalho doméstico, mas foram relatadas também

ocasiões em que mulheres são coagidas a não participar. Marici, de Bituva dos

Machados, que foi a última presidente da Associação diz que quando assumiu a

presidência, em um momento de crise e reestruturação após as prisões de 2013,

ouvia coisas do tipo “agora sim que a ASSIS não vai pra frente, uma mulher na

diretoria”, ela conta que entende a força que mulheres e o papel fundamental que

elas tiveram no início a Associação, que agora “parece que os homens tomara tudo”.

Essa realidade vai de encontro a muitas outras relatadas em estudos sobre a

Agroecologia no Brasil; segundo as pesquisadoras as mulheres articulam-se

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politicamente levando consigo uma racionalidade que pode ser específica no

redesenho da agricultura familiar (ANDRADE;GOMES, Vol12, 2013), contudo, há

casos em que, quanto mais o sistema produtivo avança em direção às práticas

ecológicas e intregra-se mais fortemente ao mercado, mais as mulheres vão sendo

marginalizadas das decisões. Verifica-se, portanto, uma espécie de paradoxo: as

atividades que são de domínio das mulheres passam a ser controladas pelos

homens, e elas perdem o poder de barganha dentro das famílias, voltando a atuar

somente como mão-de-obra (SILIPRANDI,2009,p124), ou seja, a partir do momento

em que atividades desenvolvidas por elas passam obter valor mercadológico, para

além do autoconsumo, ou reconhecimento político, a atuação masculina passa a

substituir o protagonismo feminino nestes espaços, criando um paradoxo na

participação das mulheres. Em Irati essa “masculinização” acontece hoje,

especialmente, em relação aos espaços de fala, de organização e gestão da

Associação – em assembleias, reuniões, palestras sobre seu histórico de luta. O

controle dos mercados e acesso a programas institucionais como o PAA ou PNAE

também parece estar sobre a tutela dos homens; já as feiras tem uma maioria

participativa ligada ainda às mulheres.

Neste sentido, apesar de promoverem o empoderamento de mulheres e uma

maior autonomia em relação ao seu desenvolvimento econômico, a forma de

valorização do que é masculino ou feminino permanece, denunciando a dificuldade

de projetos políticos ligados a Agroecologia e a Soberania Alimentar ainda tem em

assimilar enfoques de gênero e formação específica para mulheres. A integração

destes temas nos discursos que já promovem um fortalecimento político quando

ligados a alimentação saudável e o desenvolvimento sustentável enquanto

alternativas para a agricultura camponesa e frente ao combate a fome, o

etnocentrismo da ciência e dos mercados globais, é de relevância vital para o pleno

desenvolvimento de uma perspectiva verdadeiramente democrática na contestação

da exploração de classe e da injustiça ambiental.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A convergência dos interesses ambientais, de gênero e de desenvolvimento

conduz a um enfoque na igualdade política, cultural e econômica (simbólicas e

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materiais) ligadas ao acesso a recursos e controle dos mesmos; por isso, buscar

compreender e interpretar a experiência local no contexto de processos globais de

mudança ambiental e econômica desempenha papel central nos estudos que

buscam compreender estes significados. Antes, os organismos internacionais

tratavam da saúde, meio ambiente, ciência e tecnologia ou desenvolvimento agrário

em suas agendas, atualmente, a partir do reconhecimento do gênero enquanto

categoria que interage com outros fatores sociais e influencia a experiência de vida

dos indivíduos e grupos sociais, é recomendado envolver esta transversalidade em

sua atuação (GARCIA,2012,p153).

A história do Terceiro Mundo foi escrita por colonizadores, homens brancos e

intolerantes com os povos estudados (GARCIA,2012), por isso, podemos perceber

nesta construção os marcos antropocêntricos, androcêntricos e etnocêntricos que a

permeiam (MONTIÉL;PEREZ,Vol8,2013). É necessário construirmos uma

abordagem que não se ancore nestes termos, que reconheça os inúmeros fatores

que promovem uma mudança social, inclusive do tipo de relação que cada

sociedade tem com o meio ambiente e as relações históricas de conflito e de

expressão de poder.

A investigação que busca anunciar as conexões entre gênero e ambiente

deve manter-se atenta a armadilha de justificar a conexão mulher-natureza a partir

da naturalização/essencialização do papel de cuidadoras, nutridoras e maternais,

bem como denunciar os interesses do capital em deslegitimar e criminalizar lutas

ambientais que constroem alternativas ao desenvolvimento voltado a acumulação e

lucro de pequenas parcelas das sociedades atuais.

Dentro do nosso campo de atuação, devemos preocupar-nos com a

construção de uma proposta ética da ciência que seja capaz de apresentar uma

visão ao futuro, com reflexões que se articulem e se conectem com a realidade

social, respeitando seu referencial histórico. Mais que isso, para pensarmos um

desenvolvimento não só sustentável como também democrático devemos incluir

novas narrativas na produção de um novo pensar, fazer e ser das alternativas

apresentadas.

Neste sentido, ao entendermos a alimentação – produção e consumo de

alimentos – enquanto atividade cotidiana fundamental para a sustentabilidade da

vida, ou seja, como questão chave na construção de diálogos possíveis por implicar

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diversos trabalhos e cuidados a serem valorizados a partir de um reconhecimento

sociocultural, econômico e político, sem dúvida devemos levar em conta que este

processo de revalorização passa pela “superação dos dualismos opressivos que

configuram nossos imaginários (pre)dominantes para que as pessoas, trabalhos,

espaços, culturas e territórios invisibilizados nos lares e no campo comecem a

valorizar-se coletivamente em vez de serem explorados/subordinados”

(MONTIEL;PEREZ,Vol8,2013,p108). As comunidades camponesas carregam em si

um forte potencial para favorecer novas racionalidades, que propõe estabilidade

frente ao crescimento, centra atenção a necessidades básicas, apoia a organização

coletiva, mas também adapta-se ao entorno e considera a biodiversidade. Mais

ainda, uma proposta que carregue em si a Agroecologia e a Soberania Alimentar

deve estar ciente das reflexões, análises e propostas em torno das desigualdades

sociais ligadas ao sexo/gênero e sexualidade devido a patriarcalidade imperante

dentro do sistema agroalimentario. É necessário problematizar as relação de gênero

e sexualidade no mundo camponês e no urbano para produzir um ressignificação

não androcentrica da alimentação em um contexto de globalização e colonialidade

(CURRIEL, 2008, in: MONTIEL;PEREZ,Vol8,2013).

No campo do pensar, precisamos reinterpretar categorias com o

indivíduo/gênero/espécie a luz de uma significação positiva da diferença e suas

relações devem ser redefinidas (DICIOMMO, 1999,p36) levando-se em conta que

são construções culturais e históricas, ou seja, precisamos desnaturalizar

justificativas que constroem um mundo dual que separa diferentes aspectos

enquanto opostos e irrelacionáveis.

No âmbito do fazer devemos democratizar e horizontalizar as

responsabilidades e atividades, a fim de valorizar a diversidade em todas as suas

manifestações; assim como potencializar “condições materiais e simbólicas para a

criação de culturas, grupos, experiências, subjetividades e formas de vida que não

sejam subalternizadas como condição necessária para a construção da

modernidade e do desenvolvimento (patriarcal e capitalista)” (RESTREPO;ROJAS,

2010).

Quanto ao ser, podemos considerar formais mais justas e realistas que

permitam o amplo desenvolvimento dos diferentes sentidos dos sujeitos, ao

considerar a vida de maneira mais ampla e não hierárquica. Ao buscar uma diferente

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proposta do ‘ser’ entendemos como vital a “valorização da multiplicidade complexa

que conseguiria reinventar a diferença em uma cultura não-hierarquica para redefinir

categorias como masculino/feminino e natureza/cultura, no sentido de

ressignificação positiva dos conceitos (DI CIOMMO,1999,p37).

Questionar sistemas fundamentais de valores culturais requer estratégias,

e dentro da realidade brasileira, conseguimos observar o quanto a melhor

oportunidade muitas vezes está ligada aos mesmos moldes institucionais que

procuramos criticar e transformar. Para as famílias agroecológicas de Irati,

programas como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e o PNAE (Programa

Nacional de Alimentação Escolar) significaram uma progressiva contribuição para

seu acesso aos mercados; no entanto, seria interessante verificar se com a criação

desses novos mercados pelo PAA pode haver uma “mudança no comando” na

medida em que passam a estar mais estruturados e com garantia de escoamento da

produção (CINTRÃO;SILIPRANDI,2011,p21). Assim como, em uma pesquisa mais

elaborada, poderíamos nos debruçar de maneira mais minuciosa sobre as

diferenças que compõe o grupo “mulheres” e, mais ainda, “mulheres do campo” e

que talvez aqui ficaram invisibilizadas. Questões como lesbianidade, negritude, faixa

etária, separação no casamento, ficaram a margem do perfil das entrevistadas e das

colocações aqui levantadas.

Mais uma vez afirmamos que o Movimento Ecofeminista insiste na

importância de relacionamentos saudáveis entre uns e outros para instalação das

bases para relações equilibradas com o mundo natural, assim sendo, segundo as

aqui supracitadas Marta Soler Montiel e Neira Pérez David, de que “dar centralidade

em nossas vidas a que comemos, problematizando como foi cultivada, transportada

e elaborada nossa comida é uma estratégia de recampenização ecofeminista para a

Soberania Alimentar (Vol 8, 2013,p109). De tudo, fica a evidência de que uma

formação de gênero deve caminhar junto com projetos políticos que carregam em si

propostas não hierárquicas de relação entre vidas.

Reconhecemos aqui que os projetos Agroecologicos abrem portas a

participação, visibilização e valorização do trabalho das mulheres por avançar no

sentido de uma organização agroalimentaria menos insustentável, confluindo com as

teses Ecofeministas (MONTIEL;ROCES,Vol1,2010) ao propor relações de poder

mais equilibradas na construção de uma alimentação sustentável e justa que põe a

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vida das pessoas em seu centro de interesse (MONTIEL;PEREZ,Vol8,2013); mas

também acreditamos que os fundamentos para a mudança social encontram-se na

transformação real das relações sociais e de gênero em um trabalho autônomo e

criativo que questione sistemas fundamentais de valores culturais e políticos (DI

CIOMMO, 1999).

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FILMES

Severinas - https://vimeo.com/73309361

Minha vida é no meio do mundo - https://vimeo.com/107769457

Mulheres da Terra - https://www.youtube.com/watch?v=HyEVbIFIpIsHYPERLINK

"https://www.youtube.com/watch?v=HyEVbIFIpIs&spfreload=10"&HYPERLINK

"https://www.youtube.com/watch?v=HyEVbIFIpIs&spfreload=10"spfreload=10

Mulheres que curam - https://www.youtube.com/watch?v=bjjZGeKN888

Mulher da Roça - https://www.youtube.com/watch?v=ZUyIeHLccMk

Sem feminismo não há Agroecologia - https://www.youtube.com/watch?v=JgAdlgF3Y-M

As Sementes - https://www.youtube.com/watch?v=PFjvcX2S_wo

RECURSOS DA INTERNET

¹Greenha Common - http://www.greenham-common.org.uk/

²Women and Life on Earth - http://www.wloe.org/Que-hay-de-nuevo.573.0.html

3Green Belt Movement - http://www.greenbeltmovement.org/

4Após ocupação na Suzano, camponeses ocupam prédio da CTNBio -

http://www.mst.org.br/2015/03/05/apos-ocupacao-na-suzano-outros-300-camponeses-

ocupam-predio-da-ctnbio-em-bsb.html

5FAO https://www.fao.org.br/download/SOFI_p.pdf

6O Estado da Insegurança Alimentar e Nutricional no Brasil: um retrato

multidimensional https://www.fao.org.br/download/SOFI_p.pdf

7Via Campesina http://viacampesina.org/en/

8CONSEA http://www4.planalto.gov.br/consea/publicacoes/a-seguranca-alimentar-e-

nutricional-e-o-direito-humano-a-alimentacao-adequada-no-brasil-1/relatorio-consea.pdf

9Infografico FAO Igualdade de acesso a recursos e poder

https://www.fao.org.br/ngcsgmcFAO.asp

10Infografico FAO A agricultura com cara de mulher -

http://www.fao.org/gender/infographic/es/


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