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Page 1: Trabalho conclusão de curso Antropologia do Direito

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E DIREITO

EDUARDO CASTELO BRANCO E SILVA Aluno PPGSD – Crédito Externo

Trabalho de fim de semestre visando

aprovação na disciplina Antropologia

do Direito ministrada por Roberto Kant

de Lima

Niterói

2012

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2 – Considerando, pelo menos, dois textos relacionados na bibliografia do curso,

discuta a relevância dos estudos sobre as formas institucionais de administração de

conflitos na pesquisa jurídica contemporânea

Qualquer grupamento social está sujeito a conflitos entre seus membros ou entre

membros de grupamentos diferentes, e tais conflitos, de uma forma ou de outra, devem

ser dirimidos sob pena das relações sociais entre os envolvidos virem a se deteriorar. A

importância do estudo sobre as formas que tais conflitos podem ser resolvidos ou, pelo

menos, administrados, vem do enorme leque de métodos, raciocínios e variações que

podem ser empregados pelos diversos núcleos sociais para alcançar esta meta.

Administrar os referidos conflitos é uma das atribuições clássicas a líderes e

outras unidades detentoras de um poder político tanto que, não importando se tal poder

é exercido por um único indivíduo ou um grupo ou conselho de indivíduos, se em nome

próprio, dos considerados cidadãos pelo grupamento ou representando alguma

autoridade divina ou mítica, a autoridade conferida a este agente político dá a ele a

capacidade tanto de resolver conflitos pessoalmente quanto, em alguns casos, delegar a

terceiros, a capacidade de resolver estes conflitos em seu nome,

Em primeiro lugar, como fez Clastres, cabe desmontar a ideia de que o poder

político é necessariamente vinculado a um poder de coerção. O reconhecimento de um

detentor do poder político e a capacidade que este tem de impor por meio da força ou de

sanções as decisões que considera corretas é tão diverso quanto a variedade de

organizações e de tradições existentes no globo. Clastres mesmo aponta como exemplos

a organização de civilizações pré-colombianas (tomando o cuidado de excluir os incas e

astecas) em que, exceto em situações excepcionais, notadamente o estado de guerra, não

havia uma relação de submissão entre dois membros adultos, da mesma sociedade. A

Grande Liga dos Iroqueses pode ser vista como um Estado que reuniam, em aliança, as

cinco tribos desta etnia, mas esta destoava da caracterização de Estado ao observarmos

que os 50 Conselheiros não eram mais poderosos que os chefes índios que não

compunham o conselho. Não nos é evidente que a coerção e a subordinação constituem

a essência do poder político sempre e em qualquer lugar (Clastres, 1978).

Toda a sociedade, independente de como se organiza, tem poder político. O

poder político como coerção é somente uma manifestação particular do mesmo mas, em

nenhum momento é a única manifestação possível. Mesmo em uma sociedade sem um

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chefe definido o poder político existe pois este é fundamental para a vida em sociedade.

Não existe sociedade sem poder (Clastres).

As elaborações de Laura Nader em The Disputing Process acerca das

motivações e dos métodos para a resolução de conflitos observados em todos os artigos

do livro reforçam a não obrigatoriedade do monopólio da força para a resolução dos

conflitos bem como reforça o ponto da necessidade de um mecanismo reconhecido e

aceito por todos os membros da sociedade em questão para a manutenção da ordem

social e da harmonia dentro do grupamento social. Nader observou cinco “variações”

em todos os casos: “Suportar o problema” (tradução livre de “lumping it”), Evitar o

ponto de disputa, coerção, negociação e mediação, a diferença entre estes dois últimos é

a presença ou não de um terceiro facilitador.

A explicação para a importância de tal classificação é a base da conclusão para a

importância para o estudo de formas institucionais de resolução de conflitos: Existem

inúmeras sociedades, tais relacionamentos geram infinitos e variados conflitos entre

seus membros. Conflitos estes que, em nome da adequada manutenção da sociedade,

devem ser dirimidos. A maneira pela qual uma sociedade em específico chegará a

solução é, sob vários aspectos, secundária frente à necessidade principal de cumprir a

função do ato, tal seja resolver estes conflitos. Como ponto comum em todos estes casos

temos a aceitação, tácita ou explícita, coagida ou não, do resultado do procedimento de

solução.

A importância de estudar outros métodos de resolução de conflitos pode ser o

caminho para resolvermos um problema crônico na justiça brasileira que é a não

satisfação do resultado de conflitos e a utilização de métodos não reconhecidos pelo

Estado de resolução de conflitos que, frequentemente, entra em choque com a “solução

Estatal”. Em comunidades mais isoladas ou de baixa renda em que o poder Estatal

mostra-se ausente ou diminuído, são estas formas alternativas de resolução de conflitos

as empregadas e obedecidas. A determinação do Estado, neste caso visto como um ente

externo às dinâmicas sociais daquela área tem sua eficácia diminuída ou, até mesmo

inócua. Os estudos dos meios de resolução de conflito podem indicar o motivo real para

esta “ineficiência” e apontar para novas metodologias e políticas que tragam um

aprimoramento para a própria maneira do “processo solucionador de conflitos” (e aqui

propositalmente evito usar o termo “Judiciário”) e tornar o mesmo mais abrangente e

universal dentro da sociedade.

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O estudo dos diversos métodos reconhecidos de resolução de conflitos é uma

maneira de observarmos a própria subjetividade em nossos valores e instituições e, com

isso, compreender o fenômeno do conflito e de suas soluções dentro da nossa sociedade.

Ao estudar, por exemplo, uma série de conflitos que, pela letra da lei, foram resolvidos

mas cujos efeitos não perduram, ou são ignorados/alterados, podemos verificar

similaridades em ineficiências em nossas própria sociedade e utilizar este campo de

estudo comparativo e relativizado para então compreender o fenômeno social da

resolução de conflitos e produzir, se não uma metodologia mais eficiente do ponto de

vista cronológico para nós mesmos, ao menos uma metodologia melhor aceita e que

atinja aos anseios de nossa sociedade. Tal satisfação dos resultados, diminuindo o

retorno do indivíduo ao processo deliberativo, que deveria ser o verdadeiro e único

objetivo da resolução dos conflitos, é um indicador de eficiência e satisfação por si só.

3 – Considerando os textos relacionados na bibliografia do curso, explicite como o

saber jurídico é definido, em contraposição a uma suposta “ciência do direito”.

A “Ciência do Direito”, conforme é referida por certos teóricos positivistas trata-

se da crença que o estudo do Direito e a lei devem responder a todas as perguntas e

atender a todos os anseios que possam porventura surgir em uma determinada sociedade

e, desta forma, é dever dos juristas e outros estudiosos do Direito adaptar este código de

leis e de regulamentos de conduta para as situações que põem em dúvida esta

onisciência do Direito.

A dificuldade de sustentação deste raciocínio ocorre justamente com a

incapacidade do Direito, enquanto construção humana, de responder isoladamente a

todas as variáveis e particularidades que a relação entre duas pessoas em uma mesma

sociedade podem acarretar. O “Zeitgeist”, o espírito das eras, é mutável em sua natureza

e as instituições sociais devem acompanhar tais mudanças nas percepções da sociedade

que representam.

Tal percepção de “assepsia” da ciência do Direito pode ser observada pela

própria relação dos alunos com professores no ensino do Direito como apontou Kant de

Lima em sua Antropologia da Academia. A distância que alunos de Direito mantêm da

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teoria em comparação com a aplicação prática, e a enorme deferência acrítica que certos

autores consagrados encontram tanto em exposições dadas por professores em aula,

quanto pela eventual citação doutrinária vista em peças processuais.

A percepção de insuficiência do Direito encontra resistência dentro da área e não

é incomum observar laudos externos ao campo do Direito serem desconsiderados ou

considerados parcialmente, o que comprometeria a integridade teórica do mesmo, por

conta de percepções particulares do juízo encarregado de determinado processo. Como

ilustração, aponto a transcrição do voto reproduzida em artigo de 2010 escrito por

Baptista e Kant de Lima: “não me importa o que pensam os doutrinadores...”.

Neste ponto, Giddens é feliz ao igualar o Direito ao Saber Local. A própria

percepção do que é direito e do que é possível que possa ser feito em relação a

determinado acontecimento é dependente do conjunto de valores e crenças que uma

determinada sociedade tem de si e do mundo a sua volta. Os regulamentos e regras

devem ser curvar a sociedade que as criou, e nunca o contrário.

O Saber Jurídico pode então ser definido como a compreensão da insuficiência

de uma resposta às questões da sociedade considerando-se somente o campo do

conhecimento que os positivistas e processualistas consideram como “ciência jurídica” e

o reconhecimento das contribuições que outros campos do conhecimento, vistos pela

doutrina clássica do Direito como externos ao mesmo, podem dar para a compreensão

do conjunto de dinâmicas sociais que resultam em uma resolução de conflitos nos

moldes que o Judiciário reconhece. O Saber Jurídico dedica boa parte de seu foco em

compreender e analisar toda a dinâmica social por trás dos atos vistos como jurídicos,

suas motivações, suas repercussões e o quão tais atos coadunam com os anseios e

percepções da sociedade.

O saber jurídico é criado quando o ordenamento jurídico é avaliado e percebido

como um objeto de pesquisa a ser estudado e analisado, não diferente de tantos outros

componentes de uma sociedade. O estudioso do direito que tenha de fato pretensões de

dominar o fenômeno de criação das leis não pode se limitar a mera repetição e

enaltecimento da doutrina já consagrada. Um pecado ainda maior é ignorar a

contribuição potencial que outros ramos da produção do conhecimento científico pode

oferecer. Kwame Appiah, em Ethics of Identity conclui que “nenhum homem é uma

ilha” e o mesmo pode ser dito de toda forma de conhecimento. Nenhum conhecimento

basta por si só e nem tem o poder de afastar o outro e ignorar suas influências.

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E DIREITO

EDUARDO CASTELO BRANCO E SILVA Aluno PPGSD – Crédito Externo

RELATÓRIO DE SEMINÁRIO – 8ª SESSÃO

Niterói

2012

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O presente relatório foca-se na oitava sessão de seminários-aula mediados pelo

professor Roberto Kant de Lima para sua aula de Antropologia do Direito realizada no

dia 16 de maio de 2012. Três textos compuseram a sessão: O Saber Local: fatos e leis

em uma perspectiva comparativa, publicado como capitulo no livro O Saber Local, de

Clifford Geertz; O artigo intitulado Comparação e Interpretação na Antropologia

Jurídica, de Luís Roberto Cardoso de Oliveira, artigo publicado o Anuário

Antropológico do ano de 1989; e o artigo Sensibilidades jurídicas, saber e poder: bases

culturais de alguns aspectos do direito brasileiro em uma perspectiva comparada,

publicada no Anuário Antropológico do Rio de Janeiro, ano de 2009.

O trabalho de Geertz tem uma influência significativa nos outros dois artigos.

Este artigo expõe diversas concepções e variações de conceitos como Direito, Justiça e,

até mesmo, correto, no relato do caso de Regreg e nas diferentes concepções das

culturas hindu, muçulmana e malaia. Geertz conclama por algo além do mero saber

local ao propor que as diferentes manifestações das diferentes culturas possam tornar-se

comentários umas das outras, na lógica do bazar mercante em que o diálogo entre as

diferentes sociedades está envolto em uma cacofonia de várias vozes que interagem

entre si.

O artigo de Oliveira é um comentário ao trabalho de Geertz apresentado n’O

Saber Local. O ponto mais evidente neste artigo é a crítica que o mesmo a uma

percebida “condicionalidade exacerbada” feita por Geertz em O Saber Local e que tal

exagero teria problemas de aplicabilidade. A maior parte do artigo foca no relato de

Regreg, que, para Oliveira, teve a contextualidade por trás das decisões de Regreg

adequadamente consideradas, criando uma visão parcial que colocou o nativo em tela

como um alguém de má vontade ou mesmo um herege aos olhos daquela vila. Para

Oliveira, há uma possibilidade de uma conjuntura ou de reflexo de alguma força nos

atos de Regreg que impedia o mesmo de tomar decisão diversa da tomada. Oliveira,

conforme apontado no seminário esquece que a exposição sobre Regreg não é uma

divagação sobre o que é ou o que poderia ter sido. O fato concreto observado é a

situação precária de um indivíduo que poderia ser um dos chefes da aldeia e que, por

atos que desafiaram o decoro e as dinâmicas sociais da aldeia, se tornou algo

comparável a um animal. Discutir o que é ou poderia ter sido é um campo deveras

hipotético melhor deixado para os oráculos e escritores de ficção.

O segundo artigo, de Kant de Lima, usa os conceitos de Geertz de antropologia

de contextualização de instituições e o que estas mesmas instituições significam aos

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cidadãos locais que a elas estão submetidos. Kant de Lima faz comentários a maneira

com que Geertz trabalha com a percepção do Saber Local e o que o mesmo considera

como sensibilidade jurídica ocidental. Ainda mostra que a própria “sensibilidade

jurídica ocidental” não é algo uno e harmonioso, havendo discrepâncias significativas

dentro de países que estejam localizados no mesmo bloco geopolítico ocidental. No

caso da exposição deste autor, ele utiliza como pontos de comparação para a

discrepância de sensibilidades tão geograficamente próximas as percepções sobre

autoridade e as relações entre juízes, advogados e promotores.

I – Clifford Geertz - O Saber Local: fatos e leis em uma perspectiva comparativa

Como ponto em comum, a antropologia e o estudo do Direito tem como tarefa

descobrir princípios gerais em fatos locais. Devido a uma tendência metodológica do

direito de manter em campos opostos certos aspectos como, por exemplo, a teoria e a

prática, o enfoque forense e o enfoque etnográfico focam colocados também em

espectros opostos, criando uma hesitação na realização de trabalhos conjuntos entre o

Direito e a Antropologia, reduzindo os pontos de contato entre os dois campos de saber

a debates estáticos, como as diferenças e semelhanças na concepção de justiça entre

africanos e esquimós.

A relação entre estudiosos do direito e da antropologia, muitas vezes, dá-se pelas

perguntas, ou com esperança ou de maneira cética, se alguma coisa na outra área que

poderia ser útil para a resolução de problemas encontrados em sua área. Buscam, para

tal, uma consciência maior do significado da disciplina. Tal consciência poderá ser

desenvolvida através da busca de temas específicos de análise, ainda que apresentados

em formatos diferentes e tratados de maneiras distintas, mas que ainda assim estejam

localizados na intersecção entre as disciplinas. Ao invés de uma abordagem voltada para

o interior da própria disciplina, há de se promover um ir e vir hermenêutico entre os

campos, formando assim questões morais, políticas e intelectuais interessantes para

ambos os campos de estudo.

Como tema de metodologia importante para o ensaio temos as relações entre

fatos e lei, o é/deve ser. Para o Direito, isto significa voltar-se para a diferença entre o

que ocorreu e o que é legal. Para a antropologia, a prática observada e as convenções

sociais que governam aquela prática específica.

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O lugar dos fatos sempre foi algo central em julgamentos desde a contraposição

de natureza e convenções feita pelos gregos. Atualmente, tal explosão de fatos,

decorrente de procedimentos investigativos, aliados com um avanço tecnológico,

provoca uma enxurrada de peritos sobre os mais diversos assuntos. O aumento da

litigação no direito público provoca a necessidade de um juiz saber de tópicos muito

mais do que lhe interessa de verdade saber. Com isso, o mundo jurídico está perdendo o

controle do mundo das ocorrências e das circunstâncias. Não é possível prosseguir um

julgamento sem fatos, sejam reais ou simulados, mas a simplificação destes fatos e sua

redução de modo que possam ser resolvidas com as capacidades genéricas dos

responsáveis pela manutenção da lei é um processo necessário, ainda que seu exagero

tornem os fatos tênues à medida que crescem a complexidade empírica e o temor a esta

complexidade.

Compreender que os fatos são construídos socialmente por elementos jurídicos

que abarcam desde regulamentos sobre evidências até técnicas e retóricas dos agentes

em um julgamento (advogados e juízes) levanta questões importantes para uma teoria da

administração da justiça que considera que cada fato pode ser “encaixado” em uma

norma específica de acordo com uma seleção de versões acerca do que realmente

aconteceu. No caso, se o fato não pode ser levado para uma observação no tribunal e

somente reproduzido e simulado no mesmo, então a prática do tribunal não passa de um

ato de prestidigitação.

O processo de representação, ainda que não de fato um ato de prestidigitação,

ainda é um processo de representação, descrevendo um fato para que as próprias

descrições do mundo do direito possam fazer sentido. A parte jurídica do mundo não é

um mero conjunto de normas, mas uma maneira de imaginar a realidade. O importante

não é o que aconteceu, mas sim o que aconteceu aos olhos do direito. Se o direito se

modifica, então a maneira de ver o fato também se modifica.

A representação do fato, portanto, é normativa em seu princípio, o que gera

problemas para todos aqueles cujo objetivo seja examinar os fatos sem necessariamente

conciliar dois hemisférios opostos, é como criar uma representação para esta

representação.

Como uma maneira, na opinião de Geertz, melhor para tal exame que o

emparelhamento sugerido por alguns teóricos do Direito, temos uma interpretação de

adjudicação como sendo um movimento de ir e vir entre a linguagem do “se então” das

normas genéricas e o idioma do “como portanto” dos caos concretos. Ainda que possam

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ocorrer problemas em sujeitos de uma etnografia que não tenham uma inclinação para

um raciocínio condicional explícito, este método foca as atenções para a maneira a qual

as instituições legais traduzem a linguagem da imaginação para a linguagem da decisão.

Ao invés de tentar descobrir como juntar leis e fatos, buscamos saber como diferencia-

los.

Para um sistema jurídico ser viável, deverá ser capaz de unir a estrutura da

existência (se-então) com os eventos concretos (como-portanto), passando a impressão

que as duas são versões diferentes da mesma coisa, uma mais profunda e a outra mais

superficial. O direito não pode ser visto simplesmente como sendo um conjunto de

artifícios para evitar disputas, promover interesses e fazer acertos em casos

problemáticos. O direito seria uma opinião no meio de diversas outras opiniões. Ver tais

outras opiniões, outros direitos, é o primeiro passo para aqueles que desejam fazer uma

analise comparativa das bases culturais do direito. É possível que a diferenciação entre

fatos e leis exista universalmente, mas não a sua polarização.

A história de Regreg, apresentada no texto é um caso de exclusão de um

individuo de uma sociedade por perturbar a estrutura e o protocolo de um grupo social.

A questão era a maneira que o se/então era traduzida para o como/portanto. Deveriam

agir daquela maneira devido às crenças. A contextualização cultural do incidente é um

aspecto crítico da analise jurídica em qualquer outro lugar.

Ao comparar nossa visão do membro do conselho com outras formas de saber

local, tornamos uma consciência de outras formas de sensibilidade jurídica, bem como

ampliamos a consciência de sua própria sensibilidade. Tal relativismo não defende um

niilismo nem a noção de que tudo é válido, nem se exaure em demonstrar como são

diferentes os saberes e vivencias de uma sociedade diferente da nossa, mas sim visa

fundir processos de autoconhecimento, auto percepção e auto entendimento com os

processos do outro. Identifica o que somos e entre quem estamos. Desta maneira, nos

libertamos de representações errôneas de nossa maneira de encarar fatos contra

regulamentos, e nos obriga a aceitar versões discordantes de como efetuar tais

representações, visões não menos dogmáticas e não menos lógicas. Tal postura de ir e

vir do abstrato para o real resta em oposição com à dos antropólogos que se dedicam a

analise do direito. Retirar a estrutura abstrata de suas contribuições culturais tiraria todo

o valor de um sistema jurídico.

Geertz discorrerá sobre três variedades distintas de sensibilidade jurídica

estabelecerá as conexões entre estas sensibilidades e sobre a realidade. Isso será feito

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com a exploração de três conceitos: haqq significa verdade para os islâmicos, dharma,

dever para os índicos e adat, prática para os malaios. As três palavras tem uma

proximidade maior com a noção de direito que a noção de lei.

Ao contrário de hukum, que é um termo islâmico que se referencia ao conceito

de regras e regulamentos, haqq une tanto uma teoria do dever como um conjunto de

meras afirmações, quanto uma visão da realidade que a considera imperativa em sua

essência. Haqq, por ser um dos nomes de Deus (al-Haqq), retrata as coisas como

geralmente são, o que é real internamente e por si mesmo. A verdade de Haqq é a

realidade em si. A conexão do se/então com o como/portanto da vida cotidiana se

mostra na própria palavra. Haqq significa realidade, verdade, precisão, fato e Deus, mas

também pode significar direito ou dever ou justo. A adjudicação muçulmana não

envolve a união de um fato com um regulamento, pois ambos já nascem juntos. Os fatos

são normativos: há menos probabilidade de que possam divergir do Bem do que Deus

possa mentir.

O problema surge com o fato dos homens poderem mentir. O Corão é

considerado cristalino e completo em suas afirmações sobre o que é adequado ou não

fazer frente aos olhos de Alá. A analise jurídica, muitas vezes empregada com um risco

politico, é considerada como uma maneira de expressar versões coloquiais das verdades

divinas.

O tribunal muçulmano se pauta todo por provas orais, mesmo documentos

escritos e materiais de prova. Somente o testemunho falado tem algum valor. O que é

escrito não é uma prova legal, e sim a inscrição de algo que alguém disse a outro na

presença de testemunhas confiáveis. A palavra pessoal de um muçulmano conhecido é

superior a qualquer tipo de “pedaço de papel abstrato”. Atualmente, a credibilidade da

evidencia física é dependente do caráter moral do individuo que a elaborou. O

documento pega autenticidade de seu autor. Tal obsessão com o testemunho trouxe a

figura da testemunha acreditada, homens proeminentes localmente e de moral ilibada,

que testemunhavam em todos os caos levados aos tribunais. Homens cujo testemunho

não era questionável juridicamente. Apontar tais testemunhas era função do juiz (qadi),

que dispensava a dos predecessores. Cada qadi poderia elaborar seus próprios critérios,

e havia até mesmo o costume de criar testemunhas das testemunhas, pessoas que

atestariam o caráter das testemunhas “titulares”. Tal obsessão é justificada, pois uma

vez dada a sentença, esta era valida moral quanto judicialmente mesmo se baseada em

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um testemunho falso. O perjúrio não é punível pelas sanções humanas no direito

islâmico. A punição vem através da danação eterna.

Enquanto na tradição ocidental, empregamos muita energia para separar leis e

fatos, no mundo muçulmano esta energia foi empregada para uni-los, fazendo com que

a questão da explosão de fatos não os afete. O testemunho normativo serve para

representar o “aqui estamos” das circunstancias especificas nos termos da Verdade mais

ampla.

Quanto ao termo dharma, este pode ser extremamente diverso, devido a

fragmentação local das doutrinas e dos costumes que deram a origem ao termo

inicialmente. O significado do termo, por conta disso, é extremamente impreciso.

Dharma pode ser traduzido tanto como “dever” quanto como “lugar de algo dentro da

Grande Ordem das Coisas”. Para o direito, as noções mais relevantes vêm de

dhammayudda “uma guerra que se luta segundo um código” e dharmottama “o código

de justiça mais adequado para cada classe social”. Na sociedade indica, o direito e a

obrigação são considerados como relativos à posição na ordem social. Dharma é uma

organização de grupos e indivíduos em classes naturais de acordo com regulamentos aos

quais indivíduos e grupos adaptam suas vidas, de forma natural. Enquanto o haqq

transforma a lei em fato, o dharma transforma o fato em lei.

A principal distinção do direito indico é que o dharma é visto como uma noção

de que existem regras que devem ser obedecidas, como um principio de ordem. Dharma

é visto como dever e como natureza. Ele tem aquele dever, pois esta é sua natureza. O

conflito deve então ser resolvido, pois o dharma se destruído destrói, se protegido,

protege. O dever de proteger o dharma então envolve um senso de autoproteção e o

maior guardião do dharma, até o advento do colonialismo, era o rei. É o rei,

aconselhado pelos sábios adequados, que faz a conexão do se/então que dão coerência

as coisas e são relacionados ao dharma. Uma sociedade sem rei é uma sociedade sem

leis. O dharma do rei é ser justo e manter a lei igual para todos de acordo com o dharma

de cada um. O problema passa então a relacionar-se quanto à justiça do rei, se o mesmo

é justo ou não. Há o dharma dos que se dedicam não a executar a lei, mas a conhecê-la e

fazer com que o rei aja com cautela, mantendo o dharma real e, com isso, o dharma de

toda a sociedade. Em todo o mundo índico existia este princípio de que aos cultos cabia

conhecer a lei e aos poderosos executar a lei.

Em relação ao adat, os problemas de compreensão são criados pelo próprio

Ocidente. Inicialmente classificado como “costume”, tal definição fez surgir uma visão

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de justiça que tinha um caráter convencionalista, com todas as questões explicáveis pelo

costume. Após anos de debate sobre como administrar tal noção dentro do ordenamento

jurídico da região, com “facções” opostas quanto a ser a favor ou não à ocidentalização

do direito, o resultado foi a transformação de adat em adatrecht, ou seja, um “direito

costumeiro”. Tal direito deveria ser, então, sumariamente abandonado ou registrado,

catalogado e administrado pelo governo local.

De acordo com o teórico Mohamed Koesnoe, adat “é a forma de vida do povo

indonésio que tem como base seu sentido de decoro”. O problema para a adjudicação do

adat é efetuar a tradução de uma concepção que define “justiça” como harmonia

espiritual, uma espécie de tranquilidade universal. O julgamento, fazendo referencia ao

caso de Regreg, é mais uma questão de normalizar uma conduta que sistematizar um

direito. O adat tem sua importância na aproximação da harmonia social e do decoro

individual. A adjudicação do adat poderia ser vista como etiqueta. E, como a etiqueta,

sua preservação necessita que a correta aderência às regras possa ser vista por todos. Os

processos são, acima de tudo, processos de discussão e a unanimidade é alcançada

através da discussão dos detalhes de tudo repetidamente e em uma variedade enorme de

contextos. O direito é uma corrente e provérbios, slogans e recitações de literatura

didática. “Sua linguagem deve ser a do adat seguindo o caminho da correção que é

tranquilo como um mar sem ondas, estável colo uma planície sem vento, seu saber

firme em seu coração e para sempre consciente dos conselhos dos mais velhos”.

A busca pela verdade é uma tarefa retorica, uma aproximação de pontos de vista

através do uso de palavras sancionadas.

Os dois enfoques no direito comparativo – a tarefa de comparar várias estruturas

de poder; o foco em comparação dos vários processos de resolução de conflito nas

diferentes sociedades – para Geertz não entenderam a questão. Um por ver o direito

como uma entidade autônoma isolada e autossuficiente e o segundo por ver o direito

como demasiado político, organizado em artifícios sociais para promover certos

interesses e gerenciar conflitos de poder. Os três termos não só regulamentam um

comportamento, mas constroem este mesmo comportamento.

O direito é saber local, não só no sentido geográfico e histórico, mas também por

caracterizações do que acontece ligadas a suposições sobre o que é possível. A

sensibilidade jurídica é este complexo de caracterizações e suposições, relatos sobre

ocorrências reais apresentadas através de imagens relacionadas a princípios abstratos.

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O estudo comparativo do direito não pode se limitar a transformar diferenças

concretas em semelhanças abstratas nem localizar fenômenos idênticos sob nomes

diferentes. Os estudos devem ter como referencia o gerenciamento da diferença e não

sua eliminação.

Geertz se opõe ao argumento de que o Direito tem uma confiança consensual

entre todas as partes envolvidas enfraquece o mesmo quando este é mais importante, nas

situações onde há conflito. Se ele precisa de um “tecido social bem costurado”, ele é

uma extravagância que já foi superada. A mente jurídica moderna se alimenta mais de

casos de desordem do que de ordem. O direito reflete o saber moral de uma sociedade,

mas não é um apêndice a esta sociedade, participando ativamente, junto da fé, meios de

produção e práticas sociais na própria sociedade.

O direito ser um saber local e que ele constrói a vida social e não se limita só a

refleti-la leva a uma nova leitura da metodologia de um estudo comparativo: a tradução

da sensibilidade jurídica de uma cultura em termos, pressuposições, preocupações e

estruturas de ação de outra sensibilidade jurídica.

A dissensão no direito tem duas fontes principais: a persistência de

sensibilidades jurídicas formadas na época em que a sociedade era mais autossuficiente

e o confronto dessas sensibilidades com outras mais aceitas internacionalmente.

Contra a epistemologia neutra, Richard Rorty cria uma distinção entre discurso

normal e discurso anormal. Discurso normal é o que se desenvolve por regras,

premissas, convenções, critérios, crenças que servem para resolver conflitos onde os

depoimentos não estão de acordo. Ele rege a resolução de conflitos por meio de

procedimentos “confiáveis”. O discurso anormal é aquele que critérios já estabelecidos

e aceitos para chegar a um acordo não são o eixo do qual se move a comunicação, e o

objetivo não é avaliar pontos de vista divergentes em relação a um modelo. Os

indivíduos podem mudar de opinião de acordo com a quantidade de informações acerca

do ocorrido que chegam a eles “como posso saber o que penso até que entenda o que

você diz”.

Estudar o discurso anormal sob o ponto de vista de um discurso normal é fazer

sentido do que ocorre, em um momento que estamos inseguros para descrever o evento

e com isso iniciar uma exposição sistemática.

A hermenêutica do pluralismo jurídico não é a construção de uma linguagem

universal que possa ser adaptada a qualquer conceito e situação, mas sim a expansão das

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formas de discurso estabelecidas para que possam fornecer comentários válidos

assuntos normalmente estranhos à antropologia e ao direito.

A disputa entre um rei deus e o conselho da aldeia é parte de uma luta muito

mais ampla, a de decidir qual será o modo de vida do povo, de juntar o direito

tradicional com o direito ocidental instituído pela metrópole e resolver os

desentendimentos funcionais decorrentes disso.

O saber local, a visão do direito, a desagregação da antropologia do direito e

diversos outros fatores são produtos de uma forma de pensar que prospera com a

diversidade das coisas. Todos estes fatores não se unem para formar uma posição

sistemática, eles impulsionam uns aos outros com uma regularidade o suficiente para

conceber o direito como uma espécie de imaginação social.

Geertz conclama por algo mais que o saber local. Algo que possibilite que as

várias manifestações desse saber se transformem em comentários uma das outras.

Colocarmo-nos como entre os diferentes de nós sem criar um distanciamento,

considerando-os alienígenas, nem considera-los primitivos ou reduzi-los a padrões

universais como aluta pela sobrevivência, incorre em entropia intelectual e paralisia

moral. Perceber que a nossa voz é apenas uma dentre muitas e que precisamos usa-la é

algo difícil de aceitar. “A longa conversa da humanidade” pode estar envolta em uma

cacofonia que impede o desenvolvimento de um pensamento sistemático e a

transformação de formas locais de sensibilidade jurídica em comentários recíprocos

realçados mutuamente.

A questão principal é se os seres humanos, seja de onde forem poderão de algum

modo, continuar a imaginar formas de vida que possam viver na prática.

II - Luís Roberto Cardoso de Oliveira - Comparação e Interpretação na

Antropologia Jurídica

Luis Roberto Cardoso de Oliveira começa enunciando o que percebe como um

aspecto problemático na Antropologia Jurídica: as questões relativas à interpretação ou

compreensão do universo jurídico-legal nas sociedades não enquadradas no escopo

ocidental. A compreensão de processos de disputas pede uma análise de interpretações

alternativas e, com isso, inevitavelmente, uma comparação.

Page 16: Trabalho conclusão de curso Antropologia do Direito

A perspectiva comparativa sempre teve uma boa aceitação desde os que ele

chama de precursores da antropologia jurídica (Durkheim, Weber...), para colocar a

posição dele em perspectiva, em relação à resenha dele sobre o texto de Geertz, o Autor

prefere discorrer sobre a polêmica existente entre Gluckman e Bohannan.

O ponto de conflito entre Gluckman e Bohannan fica em torno de divergências

quanto à compreensão dos processos de disputa em sociedades tribais e o quão

adequado é o aparato conceitual ocidental para tal. O primeiro defende tal aparato como

sendo resultado de uma tradição de pesquisa e não pode ser desprezada, o segundo

considera tal emprego como sendo etnocêntrica e insuficiente como reveladora das

práticas de resolução de conflitos. Tal pode ser observado pela preocupação de

Gluckman em apontar as semelhanças entre o direito europeu e o africano, e as opiniões

de Bohannan sobre a desnecessariedade de traduzir exatamente termos Lozi e das

categorias jurídicas. Para Bohannan, os sistemas poderiam ser entendidos por eles

mesmos.

As ideias evolucionistas de Gluckman sugerem uma linearidade universal dos

processos de formação e não consideram as diferenças entre os processos. As ideias de

dívida e obrigação são a principal característica do Direito em sistemas que prevalecem

relações que envolvem a maioria dos interesses das partes e muitos interesses diretos de

outros. As proposições sobre necessidade das interpretações comparativas impulsiona

este autor a fundamentar suas análises através da dissolução do caráter essencialmente

“relacional” e “definidor” das ideias no poder explicativo de seus elementos, o

significado então se torna absolutizado, perdendo de vista o contexto.

Moore concorda com Gluckman na impossibilidade de elaborar uma

metalinguagem sem influencia da cultura e necessidade de cuidado quando da escolha

de conceitos descritivos e reforça a importância do reconhecimento de um vocabulário

jurídico que Moore descreve como termos neutros (transações, acordos, interesses).

Moore cai na mesma falha de Gluckman: não reconhecer a necessidade do cientista

social de colocar-se em perspectiva ou assumir a posição do participante, Moore só

fundamenta seu projeto com a transformação das relações supostamente cobertas pelos

termos neutros em uma espécie de estudo da natureza.

Uma perspectiva diferente foi proposta por O’Connor e Geertz, enfatizando a

necessidade de questões de significado, tanto na elaboração de relatos etnográficos

quanto na comparação propriamente dita, concebendo então o Direito como “teoria

social indígena” ou “conhecimento local”.

Page 17: Trabalho conclusão de curso Antropologia do Direito

Geertz concebe o Direito como sendo uma “maneira distinta de imaginar o real”,

criticando a oposição de lei e fato. Ele ainda indica que, ainda que a condicionalidade

exacerbada apresente problemas de aplicabilidade, ainda é possível tematizar sensos de

justiça particulares. Geertz, com isso, procura fundamentar seus argumentos e

esquematiza três sensibilidades jurídicas pela analise de três locais de equacionamento

dos “se-assim”, “então-portanto”: as variedades islâmica, indica e malaia dos conceitos

chaves haqq (verdade), dharma (dever) e adat (prática).

A islâmica é apresentada pelo papel especial do testemunho normativo na

articulação entre “se-assim” “então-portanto” das decisões. A indica emprega uma

noção de dever cósmico, determinando a alocação de direitos e obrigações de acordo

com a posição das pessoas em uma ordem social. A tradição malaia se destacada pela

sua preocupação com o decoro, harmonia, acordo comunal e o procedimento.

Para Geertz, haqq negocia ser/dever, interpretando a lei como fato. Dharma

interpreta o fato como uma espécie de lei. A adat se preocupa, em oposição aos dois, em

um restabelecimento da normalidade e da harmonia consensual. Julgamento para adat é

para normalizar condutas.

Há dois problemas com o ensinado por Geertz: ao limitar a comparação a

tradução cultural, o autor evita um engajamento sério na crítica; se pararmos a analise

do equacionamento se-assim/então-portanto na dimensão situacional do contexto, o

modelo de Geertz não permite uma compreensão das sensibilidades jurídicas com a

densidade pretendida pelo mesmo.

Luis Roberto utiliza uma analise do caso de Regreg para desenvolver o

argumento de sua crítica. Nesta analise, ele escreve que, quando Geertz se limitou a

analisar a dimensão situacional do contexto, impediu o exame e o entendimento amplo

das pretensões de equidade. Ao não questionar a aplicação do procedimento em

processos de tomada de decisão específicos, o autor toma uma postura menos reflexiva,

onde as coisas devem ser tomadas como são. Para Luis Roberto, uma situação cuja

tipificação seja rígida em seu fato ideal não elimina um espaço aberto à possibilidade de

um debate quanto a contextualidade do caso específico. Não se pode ter um domínio

sobre questões de equidade sem investigar as questões de adequação. O autor coloca

que, mesmo após a designação de Regreg como um dos chefes da aldeia, sua recusa

poderia ser interpretada de outra maneira, como uma impossibilidade conjuntural ou

como reflexo de uma força maior.

Page 18: Trabalho conclusão de curso Antropologia do Direito

A recusa de Regreg, pela conjuntura e pelos acontecimentos, já seria definida

como uma má vontade deste para com a comunidade. Se considerarmos que havia na

decisão algo além da aplicação da regra pela regra, que sentido a atitude de Regreg

ameaçava a percepção balinesa de ordem, decoro e harmonia? Para responder tais

perguntas, deveríamos incorporar uma preocupação maior com a dimensão contextual

do caso específico em seu significado e assumir a posição do participante.

Para Luis Roberto, questionar a adequação de decisões e procedimentos

específicos enfatiza a necessidade do pesquisador não aceitar de forma imediata as

explicações de seus informantes. Este questionamento se volta contra o pesquisador,

que coloca suas pré-condições em risco e se expõe a novas ideias e interpretações

alternativas. Tomar uma decisão em termos de sim ou não quanto a legitimidade das

afirmações feitas por membros da comunidade não deve ser um obstáculo a analises

provisórias. Ele propõe uma abordagem radical da associação entre problemas de

legitimidade e interpretação. Focando na investigação da equidade de decisões, este

mesmo foco se transporia da avaliação de normas para a analise de interpretações.

Estabelece-se uma diferenciação com Habermas no sentido que, ainda que esta tenha

como referência normas interpretadas, a equação deste ainda pede uma posição

terminativa sobre a validade de normas ou princípios. A sugestão de Luis Roberto seria,

para ele, mais promissora no contexto das preocupações antropológicas com a

compreensão de diferentes culturas, podendo flexibilizar associações estritas entre

situações ideais e casos específicos de conflito.

As questões de adequação tem um peso maior, pois a legitimidade/equidade de

decisões específicas não é avaliada quanto a qualquer conjunto de normas em particular,

mas em relação a validade de uma interpretação determinada. A pretensão da equidade

teria que satisfazer qualquer pessoa que tivesse acesso às peculiaridades do caso.

Para Oliveira, universalidade não significa exclusividade, pois sempre haverão

interpretações ou decisões tão válidas quanto a escolhida em uma situação concreta. Em

um debate, ainda assim, uma interpretação equânime tem que manter sua superioridade

em interpretações ou decisões arbitrárias.

Oliveira conclui que devemos evitar cair na armadilha da confusão entre eventos

isolados e características endêmicas a um sistema. A comparação entre diferentes

sensibilidades procuraria então diferentes tipos de “Tendências estruturais a reificação”

(Tear) e respectivas implicações. A proposta feita por Geertz é incompatível com uma

descrição densa que não admite um engajamento na critica cultural ou social. Se uma

Page 19: Trabalho conclusão de curso Antropologia do Direito

comparação nos levar a uma mudança enriquecedora que melhore nosso entendimento

anterior.

O esforço de desvelar o Tear deve ser visto como uma forma de identificar os

atos de força endêmicos ou poder normativo embutido no sistema social. Uma

vantagem desta identificação é a promoção de melhores condições de analise empírica

que a simulação de Habermas. A Tear dependerá da amplitude das relações afetadas

pelas tendências, bem como seu significado correspondente no contexto do sistema

social como um todo.

A atitude crítica, apresentada, ainda que de maneira insuficiente, por Geertz, é a

condição para o desenvolvimento mais profundo das sensibilidades jurídicas, assim

como a realização de interpretações de processos de resolução de disputas. A dimensão

contextual não pode ser descartada se é para o empreendimento analítico ter sucesso. Os

termos neutros de Moore trazem as especificidades de disputas e conflitos, portanto são

uteis na investigação dos detalhes das questões de adequação normativa, conquanto que

tais termos sejam mantidos sob controle. As questões de adequação oferecem um

vinculo integrador para os diferentes níveis dentro dos quais o processo continuo e

indissociável da ida e volta entre comparação e interpretação tem lugar.

III - Roberto Kant de Lima - Sensibilidades Jurídicas, Saber e Poder: Bases

Culturais de Aspectos do Direito Brasileiro em uma perspectiva comparada

O artigo foca em apresentar resultados de pesquisas sobre a compreensão e

aplicação do conceito “sensibilidade jurídica“ a diferentes contextos jurídicos.

A pesquisa foi realizada primeiramente com uma etnografia dos processos

judiciais no Brasil que eram submetidos ao tribunal do Júri. Uma dificuldade da

pesquisa foi ter acesso aos livros necessários no Brasil e, por isso, podemos traçar

paralelos com o próprio ensino de graduação em Direito, cujas fontes são muitas vezes

oriundas de bibliotecas particulares ou do esforço coletivo de diversos amigos e

conhecidos do estudante de Direito.

As diferenças entre o júri brasileiro e o trial by jury americano mostraram-se

evidentes quando na segunda etapa do estudo, este voltou-se somente às instituições dos

Estados Unidos.

Page 20: Trabalho conclusão de curso Antropologia do Direito

O Direito Americano pauta-se na noção de um direito constitucional universal

que um cidadão teria de serem julgados por iguais e um dever dos outros cidadãos de

julgar os potenciais infratores.

O tribunal do júri brasileiro, ao contrário, é somente a etapa de um processo

criminal com uma particularidade específica, o crime contra a vida.

Uma das distorções da transposição de dados entre os dois sistemas é o fato de

que, ao contrário dos EUA, certas circunstâncias que resultaram na perda da vida de

uma pessoa podem acarretar em um julgamento que não é classificado como homicídio.

Um exemplo apontado no texto é o latrocínio, em que a morte é uma consequência do

crime praticado contra o patrimônio.

A razão mais óbvia para tal seria a motivação que levou ao agente a cometer o

crime, que seria diversa entre os dois casos. A perspectiva comparativa que se delineava

tinha, ainda, uma falha grave. Era necessária a experiência empírica no sistema legal

americano para que os objetivos fossem adequadamente alcançados.

Entre as diferenças do campo empírico entre o Brasil e os EUA era o flagrante

clima de “oponibilidade” entre promotores e defensores públicos. Tal relacionamento,

aos olhos brasileiros, esquisito, também já fora observado pelo Autor entre os

advogados criminais e os policiais de outra cidade americana. Tal observação se

contrapõe ao clima mais amigável entre juízes, promotores e advogados criminais

brasileiros.

No início da década de 1990, por conta de suas experiências como professor na

área de segurança pública, mais diferenças afloraram. A reprodução de conhecimento

entre as polícias civil e militar era diversa, sendo a polícia militar mais dogmática e

instrucional, e apoiando-se em uma noção de dissenso insolúvel, necessitando de uma

terceira parte, externa, que resolveria de maneira definitiva o conflito. Tal visão se opõe

a lógica acadêmica de formação de consensos provisórios sobre fatos e a construção do

saber pela reflexão e explicitação das perspectivas dos envolvidos.

Geertz foi primordial para o estudo comparado realizado, por apresentar dilemas

referentes à generalização e comparação na antropologia, seja a impossibilidade de

tradução de certos signos nativos, ou colocando as categorias nativas em contextos

estranhos. Ao enfatizar o contexto do significado das instituições nativas, Geertz

possibilita a estas se afastar do papel de reflexo da sociedade. Definir, desta maneira, o

Direito como um saber local levanta a questão da fundamentação de sua legitimidade.

Page 21: Trabalho conclusão de curso Antropologia do Direito

Não é este o ponto de vista de países que se coadunam com a tradição do direito

civil, que se apoia muito mais na racionalidade do que na razoabilidade das regras

jurídicas. Tal motivo acarreta na percepção de uma superioridade o julgamento técnico

de um magistrado que o de uma pessoa comum, sem os saberes refinados julgados

necessários.

Não há, para Kant, um trial by jury de fato nestes países, o que tem é uma

decisão colegiada entre especialistas e leigos que julgam casos em conjunto. Este

raciocínio permite concluir que a referência de Geertz repouca em sua vertente da

common law. As discussões entre fato e lei definem os fatos em litígio, colocando-os

em contextos. Os fatos são consensuais. A interpretação deles que está aberta a debate.

O direito brasileiro, a contrário do exemplo americano, não se preocupa em

consensualizar os fatos. Ele se apoia pela regra do contraditório, considerando um

dissenso infinito que é dirimido pela autoridade do juiz. Este juiz escolherá os indícios

que o convence e quais não, justificando assim sua sentença, apoiado pelo “livre

convencimento motivado do juiz”.

Foucault, exposto pelo autor, entende que a sensibilidade jurídica é formada pelo

inquest, a aferição de fatos passados através de perguntas. O inquest está interessado no

testemunho daqueles que presenciaram o litígio. Desta maneira, o poder jurídico passa a

se exercer sobre fatos ocorridos no passado e reconstituídos através do inquérito. Para

Foucault, esta se torna a principal forma de controle social, até que é suplantado pelo

exame, que é o dispositivo extrajurídico de controle social e estruturado através de

fenômenos administrativos.

Berman, ainda que concorde com Foucault sobre o papel do inquest na forma de

apropriação de poder, este acredita que a forma que este inquest tomou foi a do trial by

jury e não inquérito. No século XIX, na ocasião da transformação da hegemonia do

inquérito pela do exame, ocorre uma hegemonia do trial by jury, torna o direito de

permanecer em silêncio em declaração tácita de inocente, submetendo todos os

acusados a processo e transforma o papel dos jurados, de pessoas que testemunharam o

ocorrido a pessoas sem um conhecimento prévio do fato ou dos envolvidos. Estas

mudanças extirpam o saber local das decisões e transformam este em um julgamento

social, de fatos apurados diante da sociedade.

No caso Brasileiro, esta evolução do Inquest apresenta uma versão particular. O

surgimento da inquirição-devassa, que é sigilosa e escrita e podendo ser iniciada pelo

juiz ex-officio.

Page 22: Trabalho conclusão de curso Antropologia do Direito

Tal procedimento é precedido por uma investigação preliminar para determinar

os fatos do conflito. Os dois modelos então são conceituados da seguinte maneira. O

acusatório, em que a acusação é pública desde o início e o inquisitório, que a acusação é

sigilosa. O sigilo do processo inquisitório vem da percebida necessidade de proteger a

honra de certos indivíduos. Seja qual for a motivação de tal proteção, é patente o estado

de superioridade que a Sociedade tem sobre o indivíduo neste modelo.

Devemos, então, falar de uma ou mais de uma sensibilidade? Ao contrário dos

modelos defendidos por Berman e Foucault, que se fundam ora em princípios

protestantes e romanos, ora em princípios católicos, a tradição brasileira privilegia as

instituições romanas e tenta afastar a inquirição da inquisição do Direito Canônico.

Tal questão se torna interessante ao verificarmos como se relaciona o instituto da

confissão no Brasil. Diferente dos EUA, que o silencia equivale a uma declaração de

inocente, no Brasil pauta-se na percepção do dito popular “quem cala consente”, não

devendo os acusados permanecer em silencio. Como no Brasil não foi criminalizada a

mentira, fora nos casos dos crimes contra a honra, os acusados podem efetivamente

fabricar fatos para explicar seus atos e, com isso, confundir a acusação, sendo até

mesmo acompanhados por seus advogados.

Ao contrário dos EUA, no Brasil a lógica do contraditório impõe uma certa

instrumentalidade ao argumento, possibilitando ao advogado tomar posições

radicalmente opostas, dependendo do cliente a ser defendido. Há também a diferença

nos acordos que, por necessitarem de uma homologação judicial, permitem uma certa

confraternização maior entre advogados e promotores. Ao contrário dos EUA, cujos

acordos são unicamente da responsabilidade dos representantes das partes.

Há, ainda, dois casos em extremos opostos: em um país há um Estado que, à

parte da sociedade, faz uma investigação sigilosa, reduz a termo o apurado e uma

autoridade pública o confere a fé pública.Com tudo feito, o promotor recebe tal

“dossiê”, faz uma análise e decide se oferece ou não denúncia e, só então, o acusado

fica ciente das investigações.

Do outro lado, temos ambas as partes dispostas a negociar a verdade e os fatos,

que prevalecerá frente a autoridade judiciária.

Kant estabeleceu dois modelos jurídicos para uma sociedade, o paralelepípedo,

em que a sociedade é composta por indivíduos com os mesmos direitos mas interesses

diferentes, e a pirâmide, em que a base é maior que o topo e a sociedade é composta por

segmentos desiguais e complementares, que devem ajustar-se harmonicamente.

Page 23: Trabalho conclusão de curso Antropologia do Direito

Ambos modelos fundamentam duas atitudes distintas entre o conhecimento

apropriado de maneira particular e o papel no exercício do poder pela autoridade

pública. No caso da pirâmide, quem está no vértice exerce seu poder de acordo com o

saber que se apropriou, que não tiveram acesso seus pares, pois pode deles se apropriar

por meios particulares.

No caso da lógica adversária, simbolizada pelo paralelepípedo, há a necessidade

que o saber particularizado seja anulado em público. O saber só pode se constituor em

poder quando está acessível a todos os interessados.

Outro ponto importante é que conceitos como convencimento, entendimento e

persuasão se encontram inadequados para analisar os eventos no direito brasileiro. No

Brasil, dada a desigualdade dos interlocutores, é a fala de autoridade que dá a tônica da

dinâmica processual. Sensibilidades jurídicas diversas se misturam e tornam o sistema

jurídico empírico um tanto opaco para os operadores do mesmo. As duas ideias de

igualdade apresentadas sustentam a ideia do contraditório cuja decisão nunca é das

partes envolvidas mas de um terceiro que detêm a autoridade.

No caso brasileiro, nem o regime da verdade da disciplina constituiu como

forma de expressão seja jurídica ou extrajurídica das formas de controle social pelo

saber que a vigilância provê. Nem o inquérito com sua separação entre saber e poder.

No fim, a administração atribui a autoridade o papel de oráculos oficiais da justiça.


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