Teresa Robichez de Carvalho
A antecipação terapêutica de parto na hipótese de
anencefalia fetal: estudo de casos do Instituto Fernandes
Figueira e a interpretação constitucional do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro e do Supremo
Tribunal Federal
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio.
Orientadora: Nadia de Araujo
Rio de Janeiro, março de 2006.
Teresa Robichez de Carvalho
A antecipação terapêutica de parto na hipótese de
anencefalia fetal: estudo de casos do Instituto Fernandes
Figueira e a interpretação constitucional do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro e do Supremo
Tribunal Federal
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Nadia de Araújo
Orientadora
Departamento de Direito - PUC-Rio
José Ribas Vieira
Departamento de Direito – PUC-Rio
Cláudio Pereira de Souza Neto
Universidade Federal Fluminense
José Pontes Nogueira
Coordenador Setorial do Centro de Ciências Sociais – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 08 de março de 2006.
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e do orientador.
Teresa Robichez de Carvalho
Formada em Direito pela Universidade Federal Fluminense; Especialista em Ética Aplicada e Bioética pelo Instituto Fernandes Figueira.
Ficha Catalográfica
Carvalho, Teresa Robichez de
A antecipação terapêutica de parto na hipótese de
anencefalia fetal : estudo de casos do Instituto Fernandes
Figueira e a interpretação constitucional do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro e do Supremo
Tribunal Federal / Teresa Robichez de Carvalho ;
orientador: Nadia de Araújo. – Rio de Janeiro : PUC,
Departamento de Direito, 2006.
122 f. ; 30 cm
Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito.
Inclui referências bibliográficas.
1. Direito – Teses. 2. Direito Constitucional. 3. Bioética. 4. Anencefalia Fetal. 5. Interpretação Constitucional. I. Silva, José Roberto Gomes da. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito. III. Título.
CDD: 340
Agradecimentos
Agradeço à PUC-Rio, CAPES e FAPERJ, pelos auxílios concedidos, sem os
quais este trabalho não poderia ter sido realizado.
À minha orientadora Nadia de Araujo pelos ensinamentos, estímulo e confiança
que possibilitaram a elaboração deste estudo.
Ao Professor José Ribas Vieira pelo apoio e conhecimento compartilhado
durante todo o curso.
Ao professor Cláudio Pereira de Souza Neto pela participação na Comissão
Examinadora.
E a todos que de forma direta ou indireta me auxiliaram.
Resumo
Carvalho, Teresa Robichez de. A antecipação terapêutica de parto na hipótese de anencefalia fetal: estudo de casos do Instituto Fernandes Figueira e a interpretação constitucional do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro, 2006. 122p. Dissertação de Mestrado - Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. A interpretação constitucional é objeto freqüente de reflexão da doutrina
jurídica contemporânea, a ocorrência de conflito entre normas vigentes e uma
ampliação do caráter principiológico dos textos constitucionais exigem uma nova
proposta metodológica na interpretação da Carta Magna. A proposta de
permissão legal para antecipação terapêutica de parto em caso de anencefalia
fetal foi formulada como estudo de caso devido a sua repercussão nos diversos
setores da sociedade brasileira. A racionalidade laica utilizada pelos ensinos da
Bioética é essencial para a construção de argumentos legítimos no processo
deliberativo. Os dados empíricos do Instituto Fernandes Figueira comprovam a
especialidade deste tipo de gestação, impondo uma análise interdisciplinar na
qual os conhecimentos jurídicos recebem o complemento teórico da área
médica. Esta interligação dos campos científicos acarreta uma dinâmica no
estudo do Direito, não podendo mais ser este entendido como um sistema
fechado de normas. O conflito de valores fundamentais envolvidos no estudo de
caso e a provocação de uma solução judicial a respeito remetem a um
questionamento sobre a função constitucional do Supremo Tribunal Federal e
seu papel dentro do Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave Interpretação Constitucional; Princípios; Bioética; Anencefalia.
Abstract
Carvalho, Teresa Robichez de. The therapeutical anticipation of childbirth in case of fetal anencephaly: study of cases of the Instituto Fernandes Figueira and the constitucional interpretation of Tribunal de Justiça of Rio de Janeiro and Brazilian Supreme Federal Court. Rio de Janeiro, 2006. 122p. MSc. Dissertation - Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
The constitutional interpretation is frequent object of reflection of the legal
doctrine contemporary, the occurrence of conflict between effective norms and a
magnifying of the importance of principles in the texts constitutional demands a
new proposal of methodic in the interpretation of the Constitution. The study of
case formulated, the proposal of legal permission for therapeutical anticipation of
childbirth in case of fetal anencephaly, its repercussion in the diverse sectors of
the Brazilian society. The laical rationality used by educations of Bioethics is
essential for the construction of legitimate arguments in the deliberative process.
The empirical data of the Instituto Fernandes Figueira prove the specialty of this
type of gestation, imposing a new analysis in which the legal knowledge receive
the complement theoretical from the medical area. This interconnection of the
scientific fields causes one dynamic study of the Law, not being able the
understood of the Law as a closed system of norms. The conflict of basic values
in the study of case and the provocation of a judicial solution sends to a
questioning on the constitutional function of the Brazilian Supreme Federal Court
and its paper on the Democratic State of Right.
Keywords Constitutional Interpretation; Principles; Bioethics; Anencephaly.
SUMÁRIO 7
Sumário
1 INTRODUÇÃO .................................................................... 11
2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA.......................... 14
2.1. SURGIMENTO DA BIOÉTICA........................................................................................14
2.2. BIOÉTICA E DIREITO ..................................................................................................19
2.2.1. Documentos Jurídicos Internacionais ...............................................................20
2.2.2. Documentos Jurídicos Nacionais ......................................................................26
3 CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO ........................... 29
3.1. CONCEITUAÇÃO DO TERMO .......................................................................................29
3.2. ELEMENTOS BIOÉTICOS .............................................................................................33
3.3. ELEMENTOS JURÍDICOS..............................................................................................37
3.3.1. Documentos Jurídicos Internacionais ...............................................................38
3.3.2. Documentos Jurídicos Nacionais ......................................................................41
4 INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL ............................. 45
4.1. TEORIAS SOBRE A INTERPRETAÇÃO ...........................................................................45
4.1.1. O que é interpretar? ..........................................................................................45
4.1.2. Por que interpretar?..........................................................................................47
4.1.3. Como interpretar? .............................................................................................49
4.2. INTERPRETAÇÃO ESPECIFICAMENTE CONSTITUCIONAL .............................................51
4.3. TEORIA DOS PRINCÍPIOS .............................................................................................54
4.4. A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL NOS CASOS DIFÍCEIS. .......................................57
4.5. ASPECTOS DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA DE ROBERT ALEXY..................................64
5 ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO
PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL..................... 69
5.1. APRESENTAÇÃO DO ESTUDO DE CASO .......................................................................69
5.2. APORTE MÉDICO .......................................................................................................72
5.3. APORTE JURÍDICO ......................................................................................................78
SUMÁRIO 8
5.4. O CASO NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO....................................................................81
5.4.1. Coleta de dados empíricos: Instituto Fernandes Figueira ................................81
5.5. O CASO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL................................................................94
5.5.1. O Caso Gabriela Cordeiro ................................................................................94
5.5.2. A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº 54.....................96
6 CONCLUSÃO INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A
LUZ DO APORTE TEÓRICO ............................................... 104
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................. 115
9
LISTA DE FIGURAS
Figura 1. Foto de recém nascido anencéfalo .....................................................74
Figura 2. Ultrassonografia de feto anencéfalo....................................................75
Figura 3. Ultrassonografia em três dimensões de feto anencéfalo.....................75
Figura 4. Solicitação judicial para interrupção da gestação................................85
Figura 5. Concessão da autorização judicial ......................................................85
Figura 6. Documentos jurídicos constantes do prontuário médico .....................86
Figura 7. Tempo entre a solicitação e a autorização judicial ..............................91
Figura 8. Vitabilidade fetal..................................................................................92
Figura 9. Tempo de vida fetal ............................................................................92
Figura 10. Confirmação do diagnóstico..............................................................93
10
A história ensina que a estirpe que num
povo se conserva melhor é aquela em que
a maioria dos homens tem um vivo senso
da comunidade, em conseqüência da
identidade de seus princípios habituais e
indiscutíveis, ou seja, devido a sua crença
comum.
Nietzsche
INTRODUÇÃO 11
1 INTRODUÇÃO
A defasagem temporal entre as descobertas científicas e a elaboração de
normas jurídicas reguladoras da sociedade há muito é objeto de análise dos
estudiosos não só do Direito, mas de toda Ciência Social Aplicada.
Uma das respostas fornecidas a este problema é a elaboração de um novo
ramo da ética aplicada denominado de Bioética. Série de correntes de
pensamento, desenvolvida principalmente a partir da segunda metade do século
XX, a bioética lida com questões morais e filosóficas envolvendo as mais
diversas ciências. É um movimento acadêmico de natureza interdisciplinar que
nasce com a busca por respostas a questionamentos pertinentes a valores
tradicionais acerca do nascer, viver, adoecer e morrer no contexto histórico das
sociedades democráticas, pluralistas e secularizadas contemporâneas.
A interligação cada vez mais freqüente entre os conhecimentos
acadêmicos acarreta a necessidade dos agentes jurídicos se familiarizarem com
descobertas de outros ramos científicos, entre eles a medicina. Este
relacionamento é denominado por alguns autores de Biodireito cuja função é
relacionar os estudos bioéticos com as doutrinas jurídicas. Porém, a relação
entre os avanços científicos e as normas de conduta estabelecidas pelos
ordenamentos jurídicos ainda é primária, necessitando de uma discussão
metodológica sobre o tema. O Brasil depara-se com uma dificuldade ainda maior
- a problemática da injustiça e exclusão social. Convivemos com avanços
tecnológicos de ponta ao lado de situações de miséria social e sanitária
medievais. As discussões ainda persistentes juntam-se aos problemas
emergentes, levando a uma necessidade de identidade própria da bioética, e
conseqüentemente, do biodireito brasileiro.
INTRODUÇÃO 12
A complexidade das organizações humanas contemporâneas acarreta
também outra problemática, qual seja o conflito entre os diversos valores morais
adotados e expressos concomitantemente no ordenamento jurídico vigente.
Diversas teorias buscam uma solução jurídica racional para a resolução destes
conflitos. Dentre elas a teoria da ponderação de princípios e a técnica
argumentativa como legitimadora das decisões judiciais que abrangem princípios
contraditórios quando da aplicação ao caso concreto.
A metodologia adotada utilizará: 1) a revisão bibliográfica sobre aspectos
da bioética relacionados à temática do aborto e sobre interpretação de textos
legais, especialmente constitucional; e 2) estudo de caso: antecipação do parto
em caso de anencefalia fetal, onde serão colhidos dados através da técnica de
aplicação de formulários no Instituto Fernandes Figueira.
O trabalho será dividido em três partes principais.
A primeira lidará com as questões teóricas sobre o tema. O capítulo um
será destinado a tecer algumas considerações sobre a bioética, desde o
surgimento deste ramo científico, passando pelas teorias metodológicas
atualmente utilizadas, até o seu relacionamento com a ciência jurídica. O
segundo capítulo tratará do aborto – considerações sobre a nomenclatura do
termo, aspectos bioéticos e jurídicos, inclusive com os documentos legais
externos e internos. E, por fim, o terceiro capítulo que analisará algumas teorias
sobre interpretação constitucional. O ato de interpretar uma norma jurídica,
especialmente uma Constituição, é uma atividade que tem como finalidade a
compreensão ou aclaração de seu texto objetivando sua aplicação ao caso
concreto. Tal atividade é essencial para que os valores elencados na Carta
Magna sejam concretizados nos casos propostos ao Poder Judiciário, cabendo
ao intérprete a busca de métodos e técnicas interpretativas capazes de
assegurar a observância dos princípios fundamentais ao Estado Democrático de
Direito.
A segunda parte deste trabalho proporá o estudo de caso da antecipação
terapêutica do parto de gestantes de fetos anencéfalos. O estudo proposto
enquadra-se perfeitamente nas problemáticas referidas anteriormente por
envolver valores e conceitos conflitantes, além de ser pauta atual de discussão,
não somente em nosso Tribunal Supremo, como na mídia e nos mais diversos
seguimentos da sociedade. O quarto capítulo buscará suporte teórico na ciência
médica a respeito da anencefalia, sobre o diagnóstico e prognóstico desta
deformidade. E dados empíricos sobre a gestação de fetos anencéfalos no
Instituto Fernandes Figueira. A metodologia adotada na pesquisa será a de
INTRODUÇÃO 13
análise de prontuários objetivando o recolhimento de dados. A escolha do
Instituto Fernandes Figueira decorreu de sua especialização em gestações de
alto risco, inclusive de fetos anencéfalos, e pela alta qualificação de seus
profissionais, sendo este um hospital de referência no Estado do Rio de Janeiro.
As autorizações judiciais relativas aos casos analisados nesta pesquisa empírica
serão analisadas com o intuito de levantar os argumentos que fundamentaram
essas decisões. A seguir, será estudado ainda o histórico da antecipação
terapêutica do parto de anencéfalos no Supremo Tribunal Federal, iniciado com
um Habeas Corpus e atualmente em pauta com uma Ação de Descumprimento
de Preceito Fundamental.
E a terceira parte, desenvolvida no capítulo quinto, relacionará as duas
anteriores, utilizando os aspectos teóricos para discutir o estudo de caso. A
intenção será demonstrar que a antecipação terapêutica de parto é uma das
hipóteses que demandam do aplicador do direito a busca constante pela
racionalização das decisões jurídicas, devendo estas ser submetidas ao crivo da
legitimidade dos argumentos adotados. A discricionariedade que os
ordenamentos jurídicos atuais fornece aos juízes não deve ser associada a uma
arbitrariedade, onde a decisão é carente de uma verificação objetiva de sua
fundamentação. Ronald Dworkin e Robert Alexy são apenas dois dos juristas
que têm como preocupação a valoração extrema dos princípios sem que haja
uma reflexão teórica sobre a aplicação dos mesmos.
À guisa de conclusão, ressaltada será a importância da interpretação
constitucional nos estados contemporâneos. O texto constitucional, como
paradigma legal dos ordenamentos jurídicos, deve estabelecer normas que
concretizem os valores primordiais da sociedade. Em vista da pluralidade de
princípios norteadores e da complexidade dos casos concretos que demandam
uma resposta judiciária não é mais suficiente uma aplicação do Direito
meramente subsuntiva, na qual cada lide deve ser enquadrada dentro de uma
determinada norma. As técnicas jurídicas não mais se iludem com a
possibilidade do legislador esmiuçar os textos normativos de forma a prever toda
e qualquer hipótese prática de conflito. O Supremo Tribunal Federal como
guardião da Constituição Federal deve atentar para a utilização da ponderação
de princípios e argumentação racional na fundamentação de suas decisões o
que possibilitará um controle participativo do povo e a manutenção de sua
legitimidade perante um processo decisório característico do Estado
Democrático de Direito.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 14
2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA
2.1.Surgimento da Bioética
As descobertas científicas trazem consigo conseqüências muitas das
vezes desconhecidas por seu inventor. Sua rapidez na área biomédica torna
difícil o acompanhamento da totalidade de seu impacto na vida humana. A
sociedade contemporânea, por sua complexidade e diversidade, apresenta
novos conflitos e, conseqüentemente, busca novas metodologias científicas para
solucioná-los. Os aspectos negativos oriundos do progresso tecnológico devem
ser questionados e ponderados através de um diálogo interdisciplinar.
Apesar de encontrarmos uma preocupação ética na ciência médica desde
a época de Hipócrates e seu juramento perpetrado até os dias atuais, esta ética
era somente direcionada para a relação médico-paciente. Nas sociedades
tribais, os atos dos “curandeiros” eram regrados por um conjunto de valores. O
Código de Hammurabi (lei de talião): prevê a amputação da mão do médico que
matar ou prejudicar fisicamente um paciente nobre1. E o supra citado Hipócrates,
através de seu juramento, estabelecia três parâmetros principais: os dois
princípios de não maleficência e de beneficência, consoante com a visão do
caráter sagrado da vida humana, e a obrigação do médico de honrar e, se
necessário, sustentar seus mestres.
A junção destas preocupações com outros ramos de conhecimentos foi
proposta pelo oncologista norte-americano Van Rensselaer Potter que empregou
o neologismo "Bioética" pela primeira vez em um artigo publicado em 1970. E,
posteriormente, em 1971, publicou o seu livro intitulado Bioethics: Bridge to the
Future. Van Potter, em sua visão global da humanidade, defendia a importância
das ciências biológicas na melhoria da qualidade de vida e se preocupava com a
1 O referido código trata do salários dos médicos juntamente com outros ofícios
como o de veterinário, arquiteto e bateleiro. Rege o seu artigo 218: “Se um médico trata alguém de uma grave ferida com a lanceta de bronze e o mata ou lhe abre uma incisão com a lanceta de bronze e o olho fica perdido, se lhe deverão cortar as mãos.”. Fonte: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/hamurabi.htm em 02.01.2006.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 15
sobrevivência do planeta. A proposta de Van Potter era edificar uma ponte entre
elementos aparentemente separados: a ciência e a humanidade. O conceito de
bioética de Van Potter é explicado em seu livro supra citado da seguinte forma:
“Eu proponho o termo Bioética como forma de enfatizar os dois componentes mais importantes para se atingir uma nova sabedoria, que é tão desesperadamente necessária: conhecimento biológico e valores humanos.”2 O Prof. Tristran Engelhardt leciona Ética na Universidade do Texas e diz
que: “A Bioética funciona como uma lógica do pluralismo, como um
instrumento para a negociação pacífica das instituições morais.”3
A Enciclopédia de Bioética ensina que: ”Bioética é o estudo sistemático
das dimensões morais - incluindo visão moral, decisões, conduta e
políticas - das ciências da vida e atenção à saúde, utilizando uma
variedade de metodologias éticas em um cenário interdisciplinar”4.
A partir daí, o conceito de Bioética foi rapidamente difundido e passou a
integrar também os aspectos médicos, ou seja, como ética aplicada ao campo
da medicina e da biologia.
A posterior consolidação da Bioética coincide com as conquistas referentes
aos direitos humanos. Por tal razão, é retomada a preocupação mundial com
questões éticas, desenvolvendo a eticidade das pesquisas com sujeitos
humanos como um de seus principais focos de atenção.
Inicialmente este termo denotava a preocupação ética com o equilíbrio e a
preservação dos seres humanos com seu ambiente ecológico. Desde então,
diversas correntes de pensamento têm oferecido instrumentos metodológicos no
sentido de sistematizar e totalizar os conhecimentos nesta área. Este talvez seja
o maior problema da bioética contemporânea: a pretensão de reunir toda a
verdade em seu modo de ver, enquanto seria mais útil buscar respostas aos
desafios de cada dia.
A atualidade da temática é explicada se considerarmos que os avanços
médicos obtidos por volta da metade do século XX produziram mudanças
drásticas nos cuidados com a saúde. Hodiernamente nos deparamos com
indagações sobre a moralidade do aborto, da eutanásia, da engenharia genética,
da alocação de recursos no setor da saúde, da venda de órgãos, entre outras.
2 POTTER, V., Bioethics. Bridge to the future, 1971, p. 2. 3 ENGELHARDT JR, H., Manuale di Etica, 1991, p. 19. 4 REICH, W.T. Encyclopedia of Bioethics, 1995.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 16
Três teorias foram propostas objetivando resolver os conflitos bioéticos
surgidos.
A primeira denominada de Bioética dos Limites surge com o Código de
Nüremberg (1947) e a Declaração de Helsinque (1964-2000). Esta teoria visa
regulamentar a experimentação em humanos baseada no princípio do
consentimento livre e esclarecido e nos direitos naturais e inalienáveis das
pessoas. Considera que existe uma “periculosidade intrínseca” do saber-fazer
tecnocientífico não só em período de guerra (nazismo), mas também em período
de paz (as pesquisas mencionadas). Tal reflexão origina a criação dos Comitês
de Ética em Pesquisa (1973, US National Commission for the Protection of
Human Subjects and Behavioral Research) e de Relatórios (1974, Belmont
Report).
A segunda pode ser denominada de Bioética dos novos dilemas morais.
Também acarreta a criação de Comissões de Ética como a God Commission
(Seattle, 1962) e a Harvard Ad Hoc Commission on Brain Death (Boston, 1968).
Aborda questões como: quais são os critérios pertinentes de morte para uma
intervenção clínica moralmente legítima? Quais são os critérios de justiça
distributiva que devem ser adotados em situações de recursos finitos e
escassos? Considera que o papel da bioética não consiste em impor limites, mas
sim, em indicar soluções normativas para os problemas que surgem na pesquisa
e na prática clínica, tendo em conta as tradições culturais e o contexto histórico.
E por fim, a Bioética Analítica dos Casos Concretos. Concepção que faz
surgir a bioética com o neologismo bioethics (Potter, 1970), a criação do Institute
of Society, Ethics and the Life Sciences por D. Callahan e W. Gaylin (1969, hoje
conhecido como Hasting Center, a criação da Society for Philosophy and Public
Affairs (1971) e o Joseph and Rose Kennedy Institute for the Study of Human
Reproduction and Bioethics (1971). Considera a Bioética pertencente ao âmbito
das Éticas Aplicadas, adotando a análise racional e imparcial dos conflitos e
propondo soluções no contexto de sociedades multiculturais.
Diversas metodologias são apresentadas como instrumental para
refletirmos sobre essas questões, como por exemplo: utilitarismo, principialismo,
kantismo ou da obrigação, a ética do caráter, individualismo liberal, da
responsabilidade, comunitarismo e a casuística. Cada teoria abordará as
indagações éticas de uma forma distinta, e, muitas das vezes, apresentará
soluções diferentes ao mesmo dilema.
No âmbito deste trabalho será adotada a corrente principialista,
regulamentada pelo Relatório Belmont. Esta escolha foi influenciada pelo
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 17
reconhecimento de sua importância e eficácia no meio bioético e sua
aproximação com teorias jurídicas.
O Relatório Belmont5 decorreu de uma combinação de fatores, dentre eles
a crescente reflexão ética sobre a pesquisa com seres humanos e a ocorrência
de diversos escândalos envolvendo pesquisadores. Foi então criada a Comissão
Presidencial de Proteção dos Seres Humanos para elaborar um relatório que
tinha como objetivo se tornar um protótipo para outros tantos documentos no
sentido de assegurar que as pesquisas envolvendo seres humanos sejam
conduzidas de maneira ética.
O referido relatório, promulgado em 18 de abril de 1978, estabelece três
princípios como relevantes para as pesquisas com seres humanos, embora não
exclua que em certos casos podem ser aplicados mais princípios.
O primeiro princípio é o da autonomia e do respeito pelas pessoas, o qual
estabelece que os indivíduos devem ser tratados como agentes autônomos, há a
necessidade do consentimento informado do participante e deve ser protegida a
pessoa que por qualquer razão tenha sua autonomia diminuída.
O segundo princípio é o da beneficiência, segundo o qual os participantes
da pesquisa devem ser beneficiados pela mesma, não bastando sua anuência
ou a não ocorrência de danos.
E o último princípio estipulado neste documento é o da justiça, onde se
prima pela distribuição igualitária dos benefícios da pesquisa, rejeitadas
quaisquer discriminações na utilização dos resultados obtidos.
Beauchamps e Childress sistematizaram a teoria principialista6. Para
estes autores:
“Os princípios (e coisas do gênero) nos orientam para certas formas de comportamento; porém, por si mesmos, eles não resolvem conflitos de princípios. Enquanto a especificação promove um desenvolvimento substantivo da significação e do escopo das normas, a ponderação consiste na deliberação e na formulação de juízos acerca dos pesos relativos das normas.”7
5 O texto atualizado do relatório foi obtido através do endereço eletrônico:
www.fda.gov 6 Embora estes autores estejam muito direcionados à pesquisa médica, os
princípios propostos encontram aplicação nos diversos conflitos bioéticos enfrentados atualmente. A observância destas diretrizes gerais deve ser analisada de forma específica em cada problemática. O capítulo final deste estudo terá como objetivo justamente tal aplicação. Os quatro princípios serão confrontados com os argumentos defendidos de forma favorável e contrária à antecipação terapêutica do parto em caso de anencefalia fetal.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 18
O modelo pensado por Beauchamps e Childress pauta-se em quatro
princípios basilares, foi acrescentado o da não-maleficiência aos princípios
estabelecidos em Belmont. Segundo esta linha de raciocínio, o princípio da não-
meleficiência seria caracterizado pela máxima: O pesquisador não deve infringir
mal ou dano no desenvolvimento da pesquisa, enquanto que o princípio da
beneficiência adotaria como pilares as noções de impedir que ocorram males ou
danos e sanar os mesmos caso aconteçam8.
Beauchamp & Childress desenvolveram teorias para iluminar a prática
empírica e determinar o que deve ser feito, utilizando a experiência para testar,
corroborar e revisar teorias. Buscam uma estratégia dialética que procura
coerência entre julgamentos particulares e gerais utilizando a ponderação e
priorização de normas através da deliberação e formulação de juízos acerca dos
pesos relativos das normas.
Embora estes autores estejam muito direcionados à pesquisa médica, os
princípios propostos encontram respaldo em diversos conflitos bioéticos
enfrentados atualmente. A observância destas diretrizes gerais deve ser
analisada de forma específica em cada problemática. O capítulo final deste
estudo terá como objetivo justamente tal aplicação. Os quatro princípios serão
confrontados com os argumentos defendidos de forma favorável e contrária à
permissão legal da antecipação do parto em caso de anencefalia fetal.
Outro princípio que usa a ponderação é o princípio utilitarista9 o qual rege
que a melhor resposta ética é aquela oriunda da ponderação entre a ação e sua
conseqüência. Então: “o ato correto em cada circunstância é aquele que produz
o melhor resultado global, conforme determinado por uma perspectiva impessoal
que confere pesos iguais aos interesses de cada uma das partes afetadas.”10 O
problema deste princípio é sua aplicação pura ou absoluta, pois, tal modelo de
pensamento, adota uma noção de justiça baseada no abstrato conceito da
7 BEAUCHAMPS, T., CHILDRESS, J. Princípios de ética biomédica, 2002, p. 49. 8 BEAUCHAMPS, T., CHILDRESS, J., Princípios de ética biomédica, 2002. p. 212. 9 Nos fundamentos de sua estrutura, o utilitarismo encara um indivíduo como a
expressão da utilidade, da satisfação, do prazer, da felicidade ou do desejo de realização. Alguns representantes desta corrente de pensamento podem ser citados como Jeremy Bentham que sugeriu uma forma de quantificar a utilidade em 7 critérios: Intensidade, Duração, Certeza, Proximidade, Fecundidade, Pureza, Extensão; e John Stuart Mill o qual acredita que as pessoas são motivadas pela promessa de felicidade, através do sucesso ou do dinheiro.
10 BEAUCHAMPS, T., CHILDRESS, J., Princípios de ética biomédica, 2002. p. 62 – 63.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 19
maioria. Contudo, conforme ressalta John Rawls, o que é bom para a maioria
das pessoas não o é necessariamente para todos. 11
Diante do exposto, a bioética é um instrumental essencial para o debate de
questões morais levantadas na realidade atual, somente sendo possível o
diálogo racional se entendidos seus princípios e interdisciplinaridade. Essa
última característica nos leva ao próximo ponto – a relação entre a bioética e os
ordenamentos jurídicos.
2.2. Bioética e Direito
A ciência jurídica tem como objetivo regular as relações sociais e
estabelecer regras de conduta para os indivíduos. Assim sendo, clara é sua
importância nesta discussão a respeito dos limites que devem ser propostos aos
avanços científicos. A busca pelo saber muitas das vezes esquece a célebre
frase de Kant que o ser humano não pode ser utilizado como mero instrumento e
sim como fim em si mesmo12.
Tal preocupação ficou patente no século XX onde se assistiu a um
extraordinário processo de expansão e universalização da proteção internacional
dos direitos humanos, que passaram a ser reconhecidos como tema de legítimo
interesse internacional, especialmente após as atrocidades cometidas durante a
Segunda Guerra Mundial.
Juristas e filósofos voltaram seu interesse para a conceituação e
classificação dos direitos humanos. A busca histórica de valores e conceitos é
pertinente ao momento constitucional dos Estados, na visão pós-positivista onde
o direito e sua finalidade – a dignidade humana – não mais podem ser
separados. O professor Ingo Sarlet nos orienta nesse sentido:
“(...) a história dos direitos fundamentais é também uma história que desemboca no surgimento do moderno Estado constitucional, cuja essência e razão de ser residem justamente no reconhecimento e na proteção da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais do homem”.13
11 RAWLS, J. Uma teoria da justiça, 1981. 12 CHAUÍ, M., Convite à filosofia, 1997, p. 346. 13 SARLET, I., A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 1999, p. 36.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 20
Após ter o mundo tomado conhecimento das atrocidades cometidas em
nome da ciência pelos nazistas por ocasião da II Guerra Mundial, os diversos
segmentos sociais reuniram esforços no sentido de elaborar limites a estas
pesquisas e práticas, a fim de assegurar a integridade e dignidade das pessoas,
incluídos os casos de participação em pesquisas biomédicas.
O chamado Biodireito busca relacionar dois campos de conhecimento: o
direito e a bioética. Esta nomenclatura é relativamente nova e ainda muito
criticada principalmente pelos bioticistas que consideram não haver
propriamente um biodireito, mas sim, áreas de intercessão entre essas duas
ciências distintas.14 No âmbito deste estudo o termo biodireito será empregado
significando a preocupação dos operadores do direito, doutrinariamente ou
judicialmente, em delimitar através de documentos normativos a ação de
pesquisadores e demais envolvidos, tendo por fim, evitar abusos que poderão
advir.
2.2.1.Documentos Jurídicos Internacionais
Os documentos jurídicos internacionais relacionados com a bioética
surgem nesse contexto. Esses serão divididos em duas partes. A primeira trará
os documentos jurídicos gerais, compreendendo, sobretudo, os tratados
internacionais. Já a segunda parte elencará alguns documentos jurídicos
pertinentes a países específicos.
Dentre os documentos de maior relevância no âmbito internacional de
bioética estão: o Código de Nüremberg (1947); a Declaração Universal dos
Direitos Humanos (1948); Pacto de São José (1949); a Declaração de Helsinki
(1964)15; O Relatório Belmont (1978); as Diretrizes Internacionais para Revisão
Ética de Estudos Epidemiológicos (1991); Declaração Universal Bioética
(2005).16
O Tribunal de Nuremberg, em 9 de dezembro de 1946, julgou vinte e três
pessoas - vinte das quais, médicos - que foram consideradas criminosas de
guerra, pelos brutais experimentos realizados em seres humanos. Em 19 de
14 O próprio Conselho Federal de Medicina já utiliza este termo realizando,
inclusive, um simpósio com tal tema no ano de 2000. 15 Revisada em Tóquio (1975), Veneza (1983), Hong Kong (1989), Somerset West
(1996) e Edimburgo (2000) 16 Outros documentos internacionais, de cunho principalmente de direitos
Humanos, poderiam ser mencionados, porém no âmbito deste trabalho foram destacados apenas os estritamente relativos à bioética. Para a obtenção de outros sugere-se: www.un.org.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 21
agosto de 1947 divulgou as sentenças, além de um documento que ficou
conhecido como Código de Nuremberg.
O Código estabelecia17: 1) o consentimento voluntário e informado do ser
humano participante de qualquer experiência científica sem qualquer intervenção
de elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra forma de
restrição posterior; O dever e a responsabilidade de garantir a qualidade do
consentimento repousam sobre o pesquisador que inicia ou dirige um
experimento ou se compromete nele; 2) O experimento deve produzir resultados
vantajosos para a sociedade, que não possam ser buscados por outros métodos
de estudo, mas não podem ser feitos de maneira casuística ou
desnecessariamente; 3) O experimento deve ser conduzido de maneira a evitar
todo sofrimento e danos desnecessários, quer físicos, quer materiais; 4) Não
deve ser conduzido qualquer experimento quando existirem razões para
acreditar que pode ocorrer morte ou invalidez permanente; exceto, talvez,
quando o próprio médico pesquisador se submeter ao experimento; 5) O grau de
risco aceitável deve ser limitado pela importância do problema que o
pesquisador se propõe a resolver; 6) O experimento deve ser conduzido apenas
por pessoas cientificamente qualificadas; 7) O participante do experimento deve
ter a liberdade de se retirar no decorrer do experimento e 8) O pesquisador deve
estar preparado para suspender os procedimentos experimentais em qualquer
estágio, se ele tiver motivos razoáveis para acreditar que a continuação do
experimento provavelmente causará dano, invalidez ou morte para os
participantes.
Sete acusados foram condenados à morte. Este documento tornou-se um
marco, pois, foi o primeiro a estabelecer recomendações internacionais sobre os
aspectos éticos envolvidos na pesquisa em seres humanos.
Em 1948 é aprovada uma das declarações internacionais mais amplas e
relevantes para a luta em prol dos Direitos Humanos: A Declaração Universal
dos Direitos do Homem das Nações Unidas. Este documento é um dos mais
importantes no plano jurídico internacional devido a sua amplitude de proteção.
A declaração preocupou-se, fundamentalmente, com quatro ordens de direitos
individuais, conforme assevera Celso Ribeiro Bastos18. Primeiro os direitos
pessoais do indivíduo: direito à vida, à liberdade e à segurança. Segundo os
direitos do indivíduo em face das coletividades: direito à nacionalidade, de asilo,
17 Íntegra do texto foi obtida no site:
http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/nuremberg/nuremb1.htm 18 BASTOS, C., Curso de Direito Constitucional, 2000, pg.174-175.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 22
de livre circulação e de residência e de propriedade. Terceiro as liberdades
públicas e os direitos públicos: liberdade de pensamento, de consciência e
religião, de opinião e de expressão, de reunião e de associação. Quarto direitos
econômicos e sociais: direito ao trabalho, à sindicalização, ao repouso e à
educação.
O pensador italiano Norberto Bobbio19 diz que: "A Declaração Universal representa a consciência histórica que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade do século XX. É uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro: mas suas tábuas não foram gravadas de uma vez para sempre". A Associação Médica Mundial desenvolveu em 1964 a Declaração de
Helsinque como um documento de princípios éticos, para fornecer orientações
aos médicos e outros participantes de pesquisas clínicas envolvendo seres
humanos. Foi revisada nos anos de 1975; 1983; 1989 e 2000. Nos dizeres de
Débora Diniz e Marilena Côrrea a declaração ”representou a tradução e a
incorporação, pelas entidades médicas de todo o mundo, dos preceitos éticos
instituídos pelo Código de Nuremberg, definindo uma base ética mínima
necessária às pesquisas e aos testes médicos com seres humanos (...)”20.
A Convenção Americana de Direitos Humanos, adotada e aberta à
assinatura na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos
em 22 de novembro de 1969, originou o Pacto de São José da Costa Rica21.
Direitos fundamentais são elencados juntamente com garantias processuais para
sua concretização como a proibição de decretar-se a prisão civil do depositário
infiel, duplo grau de jurisdição e a possibilidade de apelação em liberdade.
As Diretrizes Éticas Internacionais para a Pesquisa Envolvendo Seres
Humanos de 1991 elaboradas em Genebra tratam respectivamente: 1)
Consentimento Informado Individual; 2) Informações Essenciais para os
Possíveis Sujeitos da Pesquisa; 3) Obrigações do pesquisador a respeito do
Consentimento Informado; 4) Indução a participação; 5) Pesquisa envolvendo
crianças; 6) Pesquisa envolvendo pessoas com distúrbios mentais ou
comportamentais; 7) Pesquisa envolvendo prisioneiros; 8) Pesquisa envolvendo
19 BOBBIO, N., A Era dos Direitos, 1992, p. 34. 20 DINIZ, D., CORRÊA, M., Por uma análise crítica da proposta de modificação da
Declaração De Helsinki, 2000, p. 2. 21 Este pacto foi recepcionado pelo ordenamento jurídico brasileiro através do
Decreto nº 678 / 92 e no tocante ao aborto estabelece uma norma importante em seu artigo 4º, qual seja, de que toda a pessoa tem o direito à vida, e que este direito deve ser protegido a partir da concepção.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 23
indivíduos de comunidades subdesenvolvidas; 9) Consentimento informado em
estudos epidemiológicos; 10) Distribuição eqüitativa de riscos e benefícios; 11)
Seleção de gestantes e nutrizes como sujeitos de pesquisa; 12) Salvaguardas à
confidencialidade; 13) Direito dos sujeitos à compensação; 14) Constituição e
responsabilidades dos comitês de revisão ética e 15) Obrigações dos países
patrocinador e anfitrião.
A Declaração Universal Bioética é fruto de uma Reunião Internacional da
qual participaram 90 países, dentre eles o Brasil. A referida declaração já em seu
a artigo primeiro estabelece seu escopo: trata das questões éticas
relacionadas à medicina, às ciências da vida e às tecnologias associadas
quando aplicadas aos seres humanos, levando em conta suas dimensões
sociais, legais e ambientais. E é dirigida aos Estados. Quando apropriado e
pertinente, ela também oferece orientação para decisões ou práticas de
indivíduos, grupos, comunidades, instituições e empresas públicas e privadas.
Com o intuito de apenas destacar alguns pontos serão trazidas normas de
diversos países, ora privilegiando a quantidade, ora o qualitativo de tais
documentos jurídicos.
A Inglaterra possui dois documentos relevantes nesta perspectiva. O
primeiro trata da clonagem humana, prevendo expressamente ser um ato para
proibir a colocação em uma mulher de um embrião humano que fosse gerado de
outra maneira que não seja pela fertilização. Já o segundo lida com
experimentos e procedimentos científicos relacionados com embriões e
gametas. Alguns aspectos importam ser salientados como, por exemplo, a
definição expressa de quem é a mãe (a mulher que está carregando ou carregou
uma criança em conseqüência de colocar nela um embrião ou o esperma, e
nenhuma outra mulher, é tratada como a mãe da criança) 22 e quem é o pai (a
outra parte da união será tratado como o pai da criança, a menos que,
demonstre que não consentiu na utilização do embrião ou esperma para
inseminação) 23. Ademais este mesmo ato estabelece alguns casos de
permissão de interrupção da gravidez, são eles: (a) a gravidez não excedeu sua
vigésima quarta semana e que a continuação da gravidez envolveria o risco,
maior do que se a gravidez for terminada, de ferir a saúde física ou mental da
Fonte: http://www.presidencia.gov.br/CCIVIL/decreto/1990-1994/anexo/andec678-92.pdf acesso em 01.02.2006.
22 Human Fertilisation and Embryology Act 1990, art. 27. Fonte: http://www.bioetica.org/ukfert.htm acesso em 09/06/2005.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 24
mulher grávida ou de algumas crianças existentes de sua família; (...) (d) que há
um risco substancial que a criança sofreria sérios riscos físicos ou anomalias
mentais. Ressaltamos nestas duas hipóteses a previsão de risco mental da
gestante e a ocorrência de anomalias mentais do feto.
A Itália também elaborou dois documentos: um tratando da coleta de
dados e informação consciente do paciente e o segundo sobre a proteção da
mãe e da criança. Este segundo rege que a interrupção voluntária da gravidez
não pode ser confundida com procedimentos de controle da natalidade,
atribuindo ao Estado e agências locais de saúde o dever de informar as
gestantes sobre seus direitos jurídicos e sociais na área da saúde.
Em Portugal destaca-se a proibição da clonagem e utilização científica de
embriões. O Decreto 135/VII de 1997 proíbe a criação ou utilização de embriões
para fins de investigação ou experimentação científica. No entanto, aceita a
investigação quando esta tenha como único propósito beneficiar o embrião. E, a
segunda norma jurídica é a Lei sobre Técnicas de Procriação Assistida,
promulgada pelo Parlamento em Julho de 1999, proíbe a clonagem reprodutiva e
criminaliza a sua utilização.
A Espanha possui um amplo número de documentos jurídicos bioéticos
regendo: fecundação assistida e material genético24, transplantes25,
medicamentos26, responsabilidade civil e penal dos profissionais de saúde27.
Na Finlândia a investigação médica é regida pela Lei da Investigação
Médica (1999). Segunda a mesma, os embriões excedentes dos tratamentos de
fertilização podem ser utilizados para investigação, desde que os doadores
tenham dado o seu consentimento por escrito. Porém, decorrido o prazo de 15
anos, os óvulos e o têm de ser destruídos.
O ordenamento jurídico alemão promulgou a Lei de Proteção do Embrião
(Embryonenschutzgesetz), que entrou em vigor em Janeiro de 1991, só permite
o diagnóstico ou análise de um embrião para seu próprio benefício e com o
objetivo de implantar este embrião individual no útero da respectiva mãe com
23 Human Fertilisation and Embryology Act 1990, art. 28. Fonte:
http://www.bioetica.org/ukfert.htm acesso em 09/06/2005. 24 Lei 35/1988 - Técnicas de reprodução assistida; Lei 42/1988 - Doação e
utilização de embriões e fetos humanos ou de suas células, tecidos ou órgãos; Real Decreto 412/1996 – estabelece protocolos obrigatórios de estudo dos doadores e usuários relacionados com as técnicas de reprodução humana; Real Decreto 415/1997 – Cria a Comissão Nacional de Reprodução Humana Assistida.
25 Lei 30/1979. 26 Circular 24/1997 – Disposições Gerais de Farmácia e Produtos Sanitários. 27 Lei orgânica 10/1995 – Código Penal.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 25
vista à gravidez e parto. Assim, a utilização de embriões na investigação médica
é ilegal na Alemanha.
O Equador possui uma normatização jurídica nesta área interessante.
Citam-se como documentos: lei de gestão ambiental, lei nº 3 sobre
biodiversidade (protege a Amazônia equatoriana e dispõe sobre os experimentos
com caráter medicinal), Código de Ética Médica - acordo nº 14660 – (proíbe a
eutanásia e o aborto sem fins terapêuticos para a mãe) e por fim, a lei de
transplante de órgãos (adota a morte cerebral28 como fator de decisão pra fins
de transplante).
Nas Filipinas ressaltam-se duas normas. A primeira estabelece regras para
as pesquisas e procedimentos genéticos. Neste documento privilegia-se a
informação consciente do paciente, estabelecendo uma série de critérios para a
obtenção do consentimento e até mesmo de desconsideração do mesmo, se não
atendidas as normas previstas. Na segunda norma jurídica denominada de Ato
da Medicina Tradicional e Alternativa de 1997 o qual visa criar o instituto filipino
do cuidado de saúde tradicional e alternativo, e, acelerar o desenvolvimento
deste tipo de tratamento no país.
A Argentina divide sua legislação em três âmbitos: o nacional, o provincial
e o municipal. No tocante à bioética existem diversos documentos jurídicos
argentinos, demonstrando uma abrangente preocupação com esta temática.
Tais documentos versam sobre alguns assuntos específicos, como por exemplo:
meio ambiente29, dados investigativos e privacidade30, direitos à saúde e ética
hospitalar31, direito de autodeterminação do paciente32, discriminação por razões
28 Estabelece, em seu artigo 2º, como critérios determinantes da morte cerebral: a)
coma irreversível; b) Ausência de respiração espontânea;c) Apnéia após dois minutos de parada do respirador; d) pupilas permanentemente midriátricas e arrefléxicas ao estímulo luminoso; e) Ausência de reflexos oculocefálico;f) Ausência oculovestibulares dos reflexos; g) Ausência da reflexão da farínge; e h) inatividade bio-elétrica verificado pelo encefalograma do eletro. A certificação será assinada pelos três membros do grupo médico.
29 Resolução 91/03: Biodiversidade; Decreto 1347/97: diversidade biológica; Pacto Federal Ambiental de 1993; Lei 24051: Resíduos perigosos; Lei 24.375/94: Ratifica o Convênio da Diversidade Biológica; Resolução 693/04: Alimentação e a Agricultura; Lei 25.670/02: proteção ambiental.
30 Decreto 200 / 97: Proíbe experiências de clonagem com seres humanos; Lei 23.236/ 00 e Lei 25.326 / 00: proteção de dados pessoais; Lei 25.457/ 01: direito à identidade; Lei 25.467/ 01: ciência, tecnologia e inovação; Resolução 415/04: Cria o registro de digitais genéticas; Lei 1.226/ 03: sistema de identificação do recém nascido e sua mãe; Lei 25.929 / 04: Direitos dos pais e da pessoa recém nascida.
31 Lei 24.742/ 96: Comitê Hospitalar de Ética; Decreto 426 / 98; Código de Ética / 01; Lei 4861 / 95: Comitês Hospitalares de Ética; Lei n° 3099 / 97: Bioética. Investigação, análises e difusão; Lei n° 6507/ 93: Comitês Hospitalares de Ética.
32 Lei 3076 / 97: Direitos do Paciente. Determinação.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 26
genéticas33, medicamentos34, sexualidade e reprodução35 e transplante de
órgãos36. Mas a postura Argentina em relação aos avanços científicos e éticos
ainda é muito acanhada, prevalecendo a visão tradicional e proibitiva de diversos
procedimentos.
Por fim, destaca-se que em alguns países ainda não há uma proteção
legislativa considerável sobre os problemas surgidos com os estudos bioéticos,
havendo apenas a preocupação com uma temática específica. São exemplos o
Chile (lei geral sobre o meio ambiente), a Colômbia (também possui uma lei
geral sobre meio ambiente), Costa Rica (lei sobre reprodução assistida e
transplante de órgãos), Peru (lei sobre biodiversidade e gestão ambiental),
Uruguai (lei de transplante de órgãos), Nova Zelândia (lei sobre meio ambiente e
biodiversidade), Índia (lei sobre biodiversidade e proteção dos fazendeiros e pela
diversidade na agricultura).
Diversos outros documentos ainda dependem de aprovação. Como é o
caso do projeto de lei francês que versa sobre a autodeterminação do paciente e
seu direito de morrer com dignidade37. Tal documento prevê em seu artigo 1º
que toda pessoa em condições de apreciar as conseqüências de suas escolhas
e os seus atos é único juiz da qualidade e a dignidade da sua vida bem como a
oportunidade de pôr termo à mesma.
2.2.2.Documentos Jurídicos Nacionais
No âmbito interno a temática bioética é de extrema novidade sendo tal fato
notado claramente nas previsões legais vigentes.
Vale salientar, primeiramente, a grande diversidade de normas jurídicas
sobre a temática do meio ambiente e sua proteção. A diversidade de subtemas
é enorme. São mais de 150 normas referentes à proteção ambiental, dentre elas:
Ação Civil Pública (Lei 7.347/ 85), Agrotóxicos (Lei 7.802/ 89), Área de Proteção
Ambiental (Lei 6.902/ 81), Atividades Nucleares (Lei 6.453/ 77), Crimes
33 Lei 421: Proteção contra a discriminação por razões genéticas. 34 Lei 25.649 e Resolução 326 / 02: Promovem a utilização de medicamentos pelo
seu nome genérico; Disposição 3598/ 02: Categorização de Estabelecimentos Assistenciais, Centros de Estudos de Bioequivalência / Biodisponibilidade.
35 Lei 25.673/02, 6433/96 e 418/00: Saúde Reprodutiva e Procriação Responsável. 36 Lei 24-193 / 1993: Transplantes de órgãos e material anatômico. 37 Por iniciativa de Pierre Biarnes esta proposta de lei foi depositada sobre o
escritório do Senado Francês em 26 de Janeiro de 1999 com as assinaturas de 55 outros senadores. Porém até hoje não foi aprovada.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 27
Ambientais (Lei 9.605/ 98), Engenharia Genética (Lei 8.974/ 95), Exploração
Mineral (Lei 7.805/ 89), Fauna Silvestre (Lei 5.197/ 67), Florestas (Lei 4771/ 65),
Gerenciamento Costeiro (Lei 7661/ 88), IBAMA (Lei 7.735/ 89), Parcelamento do
solo urbano (Lei 6.766/ 79), Política Agrícola (Lei 8.171/ 91), Política Nacional do
Meio Ambiente (Lei 6.938/ 81), Recursos Hídricos (Lei 9.433/ 97), Resoluções do
Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), Zoneamento Industrial nas
Áreas Críticas de Poluição (Lei 6.803/ 80). 38
Algumas matérias plúrimas também foram objeto de positivação pelo
ordenamento jurídico brasileiro. Dentre elas: O Decreto nº 914, de 6 de setembro
de 1993 que teve como objetivo instituir a Política Nacional para a Integração da
Pessoa Portadora de Deficiência; a Medida Provisória nº 2.126-11 sobre acesso
à Biodiversidade de 26 de abril de 2001; o Decreto 98.830 tece limitações para a
coleta, por estrangeiros, de dados e materiais científicos no Brasil.
A Lei nº 9.787 de 10 de fevereiro de 1999, que embora tenha modificado
uma norma com aspectos gerais sobre vigilância sanitária, estabelece o
medicamento genérico e dispõe sobre a utilização de nomes genéricos em
produtos farmacêuticos. A referida norma jurídica teve um impacto
impressionante na sociedade brasileira. Apesar das críticas sobre a qualidade
dos produtos propiciou uma maior possibilidade de aquisição de medicamentos
por camadas pobres da população brasileira;
Sobre engenharia genética temos as seguintes normas: Lei nº 8 501, de 30
de novembro de 1992; Lei nº 8 974, de 05 de janeiro de 1995 e Lei nº 9 434, de
04 de fevereiro de 1997, complementadas por decretos, regulamentos e
resoluções do Conselho Nacional de Saúde e do Conselho Federal de Medicina,
inclusive o Código de Ética Médica. Entretanto, com a caracterização dos
direitos relativos ao genoma humano como direitos humanos pela UNESCO, tal
temática deve ser encarada utilizando um novo paradigma, qual seja, qualquer
discussão terá que observar os princípios e os direitos estabelecidos na
Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos.
A doação de órgãos é regulada pela Lei nº 10.211/01, dando nova redação
ao artigo 9º da Lei nº 9.434/97: Art. 9º. É permitido à pessoa juridicamente capaz
dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do corpo vivo para fins
terapêuticos ou transplantes em cônjuges ou parentes consangüíneos até o
quarto grau, (...), ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização
38 Fonte: www.senado.gov.br acesso em 17.10.2005.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 28
judicial,(...). Tal normatização é criticada, pois segundo alguns abrem caminhos
para a venda de órgãos humanos, falseada no aspecto de doação.
A pesquisa científica e médica envolvendo seres humanos também tem
sido objeto de regulamentação na maior parte das vezes através de resoluções
de órgãos ligados à ciência médica. Dentre elas: Resolução CNS39 196/96
(estabelece diretrizes e normas para pesquisa em seres humanos), Resolução
CNS 251/97 (estipula normas de pesquisa com novos fármacos, medicamentos,
vacinas e testes diagnósticos envolvendo seres humanos), Resolução CNS
303/00 (trata das pesquisas na área de reprodução humana), Resolução CFP40
016/00 (regula a pesquisa em psicologia com seres humanos), Resolução
HCPA41 01/97 (normatiza o uso de informações de prontuários e bases de
dados), Resolução CNS 347/05 (projetos com uso ou armazenamento de
material biológico). Ainda no tocante à pesquisa em 1992 oi editada a lei nº
8.051 que estabelece normas e limites para a utilização de cadáver humano que
não foi reclamado para fins de pesquisa e de ensino.
Por fim, a lei no 11.105 de 24 de março de 2005, conhecida como a Lei
Nacional de Biossegurança. Este dispositivo estabelece normas de segurança e
mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos
geneticamente modificados e seus derivados; cria o Conselho Nacional de
Biossegurança (CNBS) e reestrutura a Comissão Técnica Nacional de
Biossegurança (CTNBio). A referida lei tece inicialmente uma série de
conceituações, dentre elas o de organismo geneticamente modificado, sendo
este: qualquer organismo cujo material genético (ADN ou ARN) tenha sido
modificado por qualquer técnica de engenharia genética. Um dos pontos
fundamentais deste texto normativo é a preocupação com a fiscalização das
pesquisas envolvendo tais organismos e técnicas, prevendo a lei a
obrigatoriedade de aprovação de todo projeto de pesquisa por comitês de ética
em pesquisa. Outra importante previsão é expressa no artigo 5o da lei 11.105 o
qual permite, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco
embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e
não utilizados no respectivo procedimento.
39 Sigla referente ao Conselho Nacional de Saúde. 40 Sigla referente ao Conselho Federal de Psicologia 41 Sigla referente ao Hospital de clínicas de Porto Alegre o primeiro que adotou
esta medida de confidencialidade e que depois foi adotada em âmbito nacional.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 29
3 CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO
3.1.Conceituação do Termo
A linguagem pode ser entendida como instrumento de comunicação inter-
pessoal. No exercício de comunicação é possível distinguir alguns elementos:
um emissor, um receptor, uma mensagem que se procura transmitir e um código
compartilhado pelos interlocutores. O desafio é justamente que o receptor
perceba a significação da mensagem do emissor. Os problemas e disparidades
causados pelos ruídos ou mesmo a utilização de jogos interpretativos no
emprego da comunicação têm direcionado diversos ramos do conhecimento a
seu estudo.
Guibourg, Ghigliani e Guarinoni definiram linguagem como um conjunto de
signos e símbolos organizados em uma estrutura mais ou menos orgânica com
funções determinadas, de forma que a linguagem constitui um sistema de
símbolos que servem à comunicação. Assim, tendo em vista que toda ciência é
um conjunto de enunciados, sua expressão é constituída através de uma
linguagem pré-fixada42.
A semiótica - disciplina que estuda os elementos representativos no
processo de comunicação - pode ser divida em três partes: sintaxe, semântica e
pragmática. De modo geral, é possível afirmar que a sintaxe estuda os signos de
forma pura, independente de seu significado, em outras palavras, preocupa-se
com a construção tecnicamente coerente das frases em determinado idioma. Na
semântica, a análise debruça-se sobre os signos em sua relação com os objetos
por eles designados, isto é, sobre o problema dos significados. Por fim, a
pragmática cuida da relação entre os signos e as pessoas que as usam, ou seja,
o contexto em que os termos são empregados. 43
42 GUIBOURG, R., GHIGLIANI, A., GUARINONI, R. Lenguaje, 2000, p. 19. 43 Ibid., p. 33.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 30
Quanto à semântica é importante destacar a questão da definição. O ato
de definir pode ser entendido como explicar um conceito com outro conceito.
Toda definição demarca um campo de significado. Normativamente algumas
definições são importantes para por fim às dificuldades da doutrina,
uniformizando e continentalizando um quadro semântico ou ainda para reduzir a
instabilidade de termos que estão na linguagem comum. Nesse último caso há o
problema da linguagem técnica usada para suprir a instabilidade de termos
comuns, mas esse uso técnico importa em uma nova dificuldade, qual seja, pode
prejudicar a compreensão e afastar os destinatários finais.
As definições legais geralmente são aclaratórias44. No âmbito jurídico o
estudo dos problemas relacionados à linguagem é prioritário à medida que as
proposições jurídicas que norteiam as condutas de determinada sociedade
devem ser precisas em suas definições e conceitos. Somente obedecemos ou
seguimos as normas inteligíveis. Ou pior, um entendimento errôneo sobre
determinada norma poderá acarretar, inclusive, o seu descumprimento. 45
O aborto é disciplinado pelo sistema jurídico pelos artigos 124 a 128 do
Código Penal, tendo como tutela jurídica o direito à vida do feto. O legislador
penal não definiu o que seria o aborto, relegando esta tarefa aos intérpretes.
Diversos são os entendimentos sobre esta palavra, destacaremos apenas os
propostos pelos doutrinadores jurídicos e a definição dos profissionais da saúde.
Etimologicamente o vernáculo aborto é de origem latina, decompondo-se
em ab (privação) e ortus (nascimento). França Limongi, em sua Enciclopédia de
Direito, diferencia os termos aborto, abortamento e aborticídio. Esse último
segundo o autor é um neologismo empregado por Saraiva significando a morte
da criança dada à luz antes do tempo, independente da causa desta
antecipação. O termo aborto diferencia-se pela finalidade de sacrificar o feto. Já
abortamento seria o ato de abortar, gerando o produto aborto.
Para Ronald Dworkin “aborto significa matar deliberadamente um embrião
humano em formação”. 46
A definição proposta por De Plácido e Silva em seu vocabulário Jurídico é
a seguinte: “Aborto. Expulsão prematura do feto, ou embrião, antes do tempo do
parto.” 47 Já Heleno Fragoso em suas Lições de Direito Penal salienta a origem
44 ALCHOURRÓN, C., BULYGIN, E. Análisis lógico y derecho, 1991, p. 448. 45 Alchourron e Bulygin destacam a diferença crucial entre as definições de caráter
oficial e as meras definições privadas. Ibid., p. 441. 46 DWORKIN, R. Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais,
2003. p.1. 47 DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico, 1987, p. 11.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 31
cristã deste termo, in verbis: ”Deve-se ao Cristianismo o entendimento segundo
o qual o aborto significa a morte de um ser humano, e, pois, virtualmente,
homicídio”48. Dois são os elementos básicos para a conceituação jurídica
doutrinária do aborto: a retirada prematura do feto do ventre materno, tendo
como conseqüência, sua morte.
A prática de abortamento é punida penalmente por ser considerada uma
espécie de homicídio, sendo excluídas da punibilidade legal apenas duas
hipóteses previstas no artigo 128 do Código Penal, quais sejam: o aborto
necessário (se não há outro meio de salvar a vida da gestante) e o aborto
emocional ou ético em caso de gravidez resultante de estupro.
No tocante à definição médica de aborto serão utilizadas três nuances: a
idade gestacional, a capacidade sensitiva e a intenção da gestante. Diversas
outras classificações são feitas pela doutrina, tanto jurídica como médica, como
ressaltado na obra da professora Maria Helena Diniz que traz ainda a
classificação quanto ao consentimento (sofrido – sem consenso da gestante,
consentido – realizado com a anuência da gestante e procurado – se a gestante
for o agente principal). 49
A primeira classificação utiliza como parâmetro conhecimentos obstétricos
em razão da formação do embrião. Segundo Antonio Jorge Salomão:
“Considera-se aborto a expulsão ou a extração de feto ou embrião que pese menos de 500 gramas (idade gestacional de aproximadamente 20-22 semanas completas ou de 140-154 dias completos) ou de qualquer outro produto da gestação de qualquer peso e especificamente designado, independentemente da idade gestacional, tenha ou não sinal de vida e seja ou não espontâneo ou induzido. Abortamento espontâneo é a interrupção natural da gravidez antes da 20ª semana de gestação.” 50 O autor supra citado fornece ainda alguns critérios de classificação para o
abortamento, são eles: a idade gestacional (a OMS divide os abortos em
precoce – antes da 12ª semana - e tardio – entre a 12ª e a 20ª semana); o peso
fetal (aborto - menor que 500g, imaturo – entre 500g e 999g e prematuro – entre
1000g e 2500g); forma (espontâneo – quando não há nenhum fator precipitante
do quadro) e induzido (quando ocorreu ação deliberada para interromper a
48 FRAGOSO, H. Lições de Direito Penal, 1986, p. 107. 49 DINIZ, M. O estado atual do biodireito, 2002. p. 33. 50 SALOMÃO, A. Abortamento espontâneo. In Obstetrícia Básica. Bussâmara
Neme, 1994. p. 363.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 32
gestação) e quadro clínico (ameaça, inevitável, incompleto, completo e retido ou
frustrado). 51
A segunda classificação considera como fator importante o momento que o
feto passa a sentir dor. Segundo Ronald Dworkin é a partir do sétimo mês de
concepção que o feto desenvolve a capacidade reflexiva quando inicia a
atividade elétrica do cérebro no tronco cerebral. E a sensação de dor somente
seria possível após a conexão entre o tálamo e o neocórtex fetal, o que embora
ainda não esteja determinada com precisão, acredita-se não ocorrer antes da
metade do período gestacional.
A terceira classificação dos diversos tipos de abortos é elaborada segundo
o entendimento bioético e pode ser depreendida da seguinte forma: 52
1) Interrupção eugênica da gestação (IEG): são os casos de aborto
ocorridos em nome de práticas eugênicas, isto é, situações em que se
interrompe a gestação por valores racistas, sexistas, étnicos, etc. Comumente,
sugere-se o praticado pela medicina nazista como exemplo de IEG quando
mulheres foram obrigadas a abortar por serem judias, ciganas ou negras. Regra
geral, a IEG processa-se contra a vontade da gestante, sendo esta obrigada a
abortar;
2) Interrupção terapêutica da gestação (ITG): são os casos ocorridos em
nome da saúde materna, isto é, situações em que se interrompe a gestação para
salvar a vida da gestante. Hoje em dia, em face do avanço científico e
tecnológico ocorrido na medicina, os casos de ITG são cada vez em menor
número, sendo raras as situações terapêuticas que exigem tal procedimento;
3) Interrupção seletiva da gestação (ISG): são os casos de aborto ocorridos
em nome de anomalias fetais, isto é, situações em que se interrompe a gestação
pela constatação de lesões fetais. Em geral, os casos que justificam as
solicitações de ISG são de patologias incompatíveis com a vida extra-uterina,
sendo o exemplo clássico o da anencefalia;
4) Interrupção voluntária da gestação (IVG): referem-se à autonomia
reprodutiva da gestante ou do casal, isto é, situações em que se interrompe a
gestação porque a mulher ou o casal não mais deseja a gravidez, seja ela fruto
51 Ibid., p. 363. 52 A classificação proposta é apresentada no livro editado pelo próprio Conselho
Federal de Medicina e de autoria de Diniz e Almeida. COSTA, S, OSELKA, G, GARRAFA, V. Iniciação à bioética, 1998.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 33
de um estupro ou de uma relação consensual. Muitas vezes, as legislações que
permitem a IVG impõem limites gestacionais à prática.
Note-se que a nomenclatura utilizada é a interrupção da gravidez e não
aborto. Tal fato tem como explicação a forte resistência e a preconceituação que
traz em si o termo. A bioética tem tentado analisar o assunto através do debate
racional livre. No ponto seguinte trataremos de forma mais aprofundada sobre as
questões bioéticas que envolvem o aborto.
3.2.Elementos Bioéticos
A problemática do aborto é considerada atualmente uma questão de saúde
pública. Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) metade
das gestações é indesejada e uma a cada nove mulheres recorre ao aborto. No
Brasil, estatísticas demonstram que o índice de abortamento é de 31%. Ou seja,
ocorrem, aproximadamente, 1,44 milhões de abortos espontâneos e inseguros
com taxa de 3,7 para cada 100 mulheres. A gravidade da situação do
abortamento também se reflete no SUS. Apenas no ano de 2004, o número de
mulheres internadas para fazer curetagem pós-aborto foi de 243.988.53 Contudo,
o aborto envolve aspectos complexos da natureza humana: vida, sexualidade e
religião.
Diante de tal quadro, a bioética tem um papel importante na discussão das
questões referentes à moralidade do aborto. Há cada vez mais a tentativa de
avaliar racionalmente os argumentos contrários e favoráveis e submetê-los ao
crivo da justificação social.
A primeira dificuldade que surge no tratamento do aborto é a determinação
do início da vida e, a partir de que momento, se é que isso ocorre, o feto é tido
como pessoa54. A primeira possibilidade considera a fecundação como o ponto
inicial, a Igreja Católica e os pensamentos mais conservadores adotam essa
teoria55. O preformismo, doutrina segundo a qual o indivíduo já estaria contido
plenamente no sêmen, também defendia a animação imediata só dependendo
do decurso do tempo para o desenvolvimento pleno do ser humano. Tal tese é
descartada atualmente. A epigênese defende o desenvolvimento biológico
53 Fonte: www.saude.gov.br acesso em 28.10.2005. 54 Sobre a noção jurídica e filosófica de pessoa e o biodireito vide XAVIER, E. A
bioética e o conceito de pessoa:a re-significação jurídica do ser enquanto pessoa, 2000. 55 Embora São Tomás de Aquino, um dos importantes pensadores da teologia
católica, defendesse a tese de que a animação, ou seja, a junção do corpo com a alma,
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 34
gradual da pessoa. A lei biogenética proposta por Ernst Haeckel também propõe
a animação tardia do organismo humano. Neste sentido se destacam as
observações de Laurente Degos que estabelece algumas etapas importantes do
desenvolvimento fetal:
“1) O estádio de 8 células marca um início de individualidade. Antes deste estádio, cada uma das células do embrião pode dar origem a um ser completo, incluindo o desenvolvimento da placenta. São, portanto intercambiáveis. Após este estádio, as células diferenciam-se entre as do exterior e as do interior. 2) Por volta do 10º dia, o embrião implanta-se no útero. O ser potencialmente humano começa a sua vida relacional. Neste estádio, o embrião está envolvido por uma cápsula, que ele parte com empurrões a fim de se implantar no tecido uterino. 3) Por volta da 10ª-14ª semana, sobressai de maneira significativa. Corresponde à que é arbitrariamente atribuída à passagem do embrião a feto. "Feto" é uma palavra reservada à vida embrionária do homem, que começa ao fim de 3 meses de gravidez. A silhueta do embrião toma forma humana. É no decurso do período da 10ª-12ª semana que se inicia a migração dos 80 bilhões de neurônios para a sua localização definitiva, terminando no 6º mês (24ª semana) de gravidez. Antes da 10ª-12ª semana, os neurônios não têm atividade. Se o fim da vida é determinado pelo fim da atividade cerebral, pode admitir-se que o início da vida corresponde ao início da rede cerebral, e portanto da coordenação do organismo por um futuro cérebro. Este período (10ª-14ª semana) é também o que, na maioria dos países, é considerado como o limite da autorização da interrupção voluntária da gravidez. 4) 6º mês, é uma etapa decisiva na vida do feto. O sistema nervoso está no lugar. O bebê a nascer pode viver de modo autônomo e independente.“ 56 57(grifos nosso)
Finalmente, há entendimentos de que o feto não é, em momento algum,
uma pessoa, somente adquirindo tal característica em sua vida extra-uterina.
Este posicionamento, embora radical, é adotado pelo ordenamento jurídico pátrio
que mesmo reconhecendo direitos ao nascituro somente considera pessoa
aquele ser que nasce com vida.
A segunda grande discussão bioética sobre o procedimento médico de
aborto é a relação materno-fetal58. Hodiernamente, com avanços tecnológicos
cada vez mais constantes, técnicas invasivas de diagnóstico e tratamento intra-
uterino têm se tornado comuns. Há um questionamento sobre a autonomia da
ocorria no 40º dia para os fetos do sexo masculino e no 80º dia para os do sexo feminino.
56 DEGOS, L. Os critérios biológicos da presença de uma pessoa humana, 2002, p. 21.
57 Interessante observar que segundo a resolução nº 1601/00 do Conselho Federal de Medicina o médico somente é obrigado a fornecer declaração de óbito de fetos com mais de 20 semanas ou 500 gramas. Antes desse prazo o feto morto é considerado material ou resíduo biológico.
58 Para o aprofundamento do tema vide Conflito materno-fetal? In DINIZ, Débora Diniz, COSTA, Sérgio. Bioética: ensaios. Brasília: Letras Livres, 2004.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 35
gestante e seus direitos de consentir ou não com a realização desses
procedimentos. A relação entre esses dois indivíduos tão ligados também é
discutida no aborto. Posições radicais consideram o feto como mero órgão ou
organismo dentro do corpo da mãe, cabendo total arbítrio materno sobre o
mesmo. Contrariamente, outros consideram o feto como um indivíduo com
interesses e direitos. Sobre a relação entre o feto e a gestante escreve Ronald
Dworkin:
O feto “é dela (da gestante), e é dela mais do que qualquer outra pessoa porque
é, acima de tudo, sua criação e sua responsabilidade; está vivo porque ela fez com que
se tornasse vivo. Ela já fez um intenso investimento físico e emocional nele, diferente do
que qualquer outra pessoa tenha feito, inclusive o pai; por causa dessas ligações físicas
e emocionais, é tão errado dizer que o feto está separado dela como dizer que não está.” 59
Uma das mais importantes obras sobre o abortamento é a de Maurizio
Mori60. O autor além de considerar polêmica a afirmativa de que o feto é ou não
pessoa e, portanto, com direito à vida, oferece como questionamento se o direito
à vida de uma pessoa implica o direito de fazer uso do corpo da mulher para
continuar a viver. Neste ponto ele destaca a questão da autonomia da mulher
quanto à disposição de seu corpo.
Maurizio Mori também apresenta cinco momentos históricos de reflexão
sobre a permissão ou proibição do aborto.
No primeiro momento, predominava nas sociedades a permissão irrestrita
tendo como justificativa a visão de que o aborto era um ato de caráter
estritamente privado. Durante este período o feto era considerado como parte
integrante do corpo materno ou, como ressaltam alguns autores, parte das
vísceras da gestante.
A seguir, com o advento e propagação dos ideais cristãos, o aborto foi
severamente proibido, e a base doutrinária imposta considerava tal ato
pecaminoso e atentatório contra o matrimônio.
No terceiro momento persiste a proibição, porém a justificação muda.
Diversos ordenamentos jurídicos coíbem o aborto, estipulando-o crime contra a
pessoa, contra a geração, contra a sanidade e a integridade da estirpe, entre
outros.
59 DWORKIN, R., Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais,
2003, p. 77. 60 MORI, M., A moralidade do aborto. Sacralidade da vida e o novo papel da
mulher, 1997, p. 17-26.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 36
No início dos anos 60 a utilização de um medicamento chamado talidomida
acarretou, durante as primeiras fases da gravidez, uma série de anomalias
graves nos fetos. Então, a discussão volta sua atenção para a possibilidade de
legalização do aborto em casos de anomalias fetais severas.
Outro evento ocorre pouco após, em 1973, contribuindo para a legalização
do aborto – a decisão da Suprema Corte Americana no emblemático caso Roe x
Wade. A decisão judicial citada determinou que o feto, ou aquele ainda não
nascido, não pode ser considerado pessoa e, portanto, não seriam sujeitos
protegidos juridicamente e que as leis até então existentes no país proibitivas do
aborto violavam o direito constitucional à privacidade da mulher. Essa noção de
privacidade deve ser entendida no sentido de soberania quanto às decisões
particulares, e não como direito de utilizar livremente seu próprio corpo.
O último momento mencionado por Maurizio Mori diz respeito
principalmente aos países europeus. Segundo o autor atualmente a Europa tem
direcionado o debate no sentido de coibir os abortos clandestinos, encarando o
assunto como problema de saúde pública, e por isso, a legalização da prática
cresceu.
Algumas posições atuais podem ser destacadas quanto ao tema61. A
posição católica que condena qualquer tipo de aborto, inclusive o necessário à
sobrevivência materna. A postura do Movimento pela Vida oponente também à
prática, contudo, admite determinadas exceções. O movimento pela legalização
do aborto para a qual o aborto deve ser regulamento socialmente. E a posição a
favor da liberalização do aborto, segundo a qual este assunto é de âmbito
privado da mulher, e como tal, deve ser decidido exclusivamente pela gestante e
seu médico.
No ponto seguinte serão abordados os aspectos jurídicos do aborto. Serão
elencadas as principais leis internacionais e como o Brasil tem regulamentado a
questão, seja através de leis já promulgadas, seja por meio de projetos de leis
em tramitação nas Casas Legislativas.
61 Ibid., p. 30 – 31.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 37
3.3.Elementos Jurídicos
O aborto sempre constituiu uma prática comum em diversas sociedades.
Entretanto, o tratamento jurídico dispensado a este ato não encontra uma
uniformidade de regulamentação.
Inicialmente o aborto era visto de duas formas ou era considerado assunto
de cunho exclusivamente familiar, com algumas repercussões somente no direito
privado, ou um ato criminoso e passível de punição penal.
No direito penal hebreu o ato voluntário de abortar constituía um crime,
punível com pena de morte, sendo permitido apenas para resguardar a vida da
genitora. 62
No Oriente Médio e na Grécia Antiga, assim como os romanos,
consideravam o feto como parte das vísceras da mãe, cabendo a esta a decisão
sobre a continuidade da gravidez.
O Código de Hammurabi63, datado do século XXIII, previa em seu Capítulo
XI – Artigos 208 a 214 os crimes de agressão contra as mulheres gestantes que
tinham como conseqüência expelir o fruto de seu seio. As penas estipuladas
eram de indenização e sua quantificação dependia da origem da gestante: se
filha de um homem livre o valor era de 10 siclos de prata pelo fruto de seu seio e
se ocorreu a morte da mulher a pena era a morte da filha do homem que a feriu;
se era filha de um homem vulgar a indenização montava a 5 minas de prata, se
acarretou a morte, mais meia mina de prata; e por fim, se a gestante fosse
escrava o seu senhor receberia dois siclos de prata pela agressão e um terço de
uma mina de prata se o resultado foi o falecimento.
Na Idade Média, com a influência do direito canônico, a punição do aborto
tornou-se mais freqüente. Inicialmente considerado pelo clero um crime contra o
matrimônio, somente há poucas décadas a Igreja passou a considerar o aborto
um crime contra a vida64. Porém, a própria Igreja revelava entendimentos
confusos sobre a matéria. São Tomás de Aquino era contrário ao aborto, mas
admitia que o mesmo fosse feito antes do surgimento da alma o que ocorria em
40 dias após a concepção se homem e 80 dias se mulher. Os Dicastérios
Romanos, embora contrários ao aborto, hesitaram quando perguntados sobre a
62 Livro de Êxodo capítulo 21 versículos 22 e 23. 63 Fonte: www.dhnet.org.br/direitos/anthist/hamurabi.htm 64 Conforme destaque de M. José Nunes: “Assim, a punição do aborto, durante os
seis primeiros séculos do cristianismo, não era referida, em primeiro lugar, ao feto cuja vida seria tirada, mas ao adultério que o aborto revelava.” Fonte:
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 38
possibilidade em casos de inviabilidade de vida do nascituro. 65 A argumentação
de que o aborto seria o assassinato de um inocente foi formulada por Pio XI em
1930 através da Encíclica Casti Conubii. Mas é em 1968 que a Igreja demonstra
firmemente sua repugnância não só aos meios abortivos como também aos
meios artificiais de contracepção, através da elaboração da Encíclica Humanae
Vitae66. No mesmo ano foi elaborada a Carta Pastoral dos Bispos nórdicos a qual
dizia:
"Quando uma pessoa, por razões sérias e bem ponderadas não se convence pelos argumentos da encíclica (Humanae Vitae), tem o direito de adotar uma opinião distinta daquela apresentada em um documento não infalível. Que ninguém, pois, seja tido como mau católico pela única razão de discordar... Ninguém, nem mesmo a Igreja, pode dispensar do dever de seguir a própria consciência." 67
3.3.1.Documentos Jurídicos Internacionais
A postura proibitiva tem se perpetrado nas sociedades hodiernas. A seguir
serão expostas as previsões jurídicas em diversos países. 68
Em 72 países o aborto é totalmente proibido ou permitido apenas em caso
de risco de vida para a gestante, perfazendo o total de 26,1% da população
mundial, dentre eles: Afeganistão, Andorra, Angola, Antígua e Barbuda,
Bangladesh, Butão, Brunei, República da África-Central, Chile, Colômbia, Congo,
República Democrática do Congo, Dominica, República dominicana, Egito,
Gabão, Guatemala, Guiné-Bissau, Haiti, Honduras, Indonésia, Irã, Iraque,
Irlanda, Quênia, Quiribati, Laos, Lesoto, Líbia (requer notificação e autorização
parental), Madagascar, Malaui (requer autorização do esposo), Mali (permite
também em caso de estupro e incesto), Malta, Ilhas Marshall, Mauritânia,
República das Maurícias, México (também permite em caso de estupro),
Principado de Mônaco, Birmânia, Nicarágua (requer autorização do esposo),
Níger, Nigéria, Omã, Panamá (permite em caso de estupro e anomalia fetal),
http://www.catolicasporelderechoadecidir.org/aborto8.shtm acesso em 28 de outubro de 2005.
65 Segundo Anjos a resposta do Dicastério foi: ”consultar autores sérios, sejam antigos ou recentes, e agir prudentemente.”
66 A íntegra da Encíclica pode ser obtida através do endereço eletrônico : http://www.vatican.va/holy_father/paul_vi/encyclicals/documents/hf_pvi_enc_25071968_humanae-vitae_po.html
67 Texto retirado do endereço eletrônico: http://www.catolicasporelderechoadecidir.org/aborto8.shtm acesso em 28 de outubro de 2005.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 39
Papua Nova Guiné, Paraguai, Filipinas, São Marino, São Tomé e Príncipe,
Senegal, Ilhas Salomão, Somália, Siri Lanka, Sudão (permite em casos de
estupro), Suriname, Síria (requer autorização do genitor), Tanzânia, Togo,
Tonga, Suazilândia, Tuvalu, Uganda, Emikrados Árabes, Venezuela e Iêmen.
Em 35 países, 9,9% da população mundial, o aborto é permitido para
preservar a saúde física da mãe e para preservar sua vida, dentre eles: Brasil
(também permite em caso de estupro), Argentina (também permite em caso de
estupro), Bahamas, Benim (permite em casos de estupro, incesto e anomalia
fetal), Bolívia (permite também em casos de estupro e incesto), Burquina Faso
(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Burundi, Camarões
(permite em caso de estupro), Chade (permite em casos de estupro, incesto e
anomalia fetal), Comores, Costa Rica, Djibouti, Equador (permite em casos de
estupro ou se a mulher tem alguma incapacidade mental), Eritréia, Etiópia,
Grenada, Guiné (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal),
Jordânia, Kuwait, Maldivas, Marrocos, Moçambique, Paquistão, Peru, Polônia
(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Catar, Ruanda, Arábia
Saudita, Santa Lúcia, Tailândia (permite em casos de estupro), Uruguai (permite
em casos de estupro), Vanuatu e Zimbabué (permite em casos de estupro,
incesto e anomalia fetal).
Países que permitem o aborto também em casos de preservação da saúde
mental: Argélia, Botswana (permite em casos de estupro, incesto e anomalia
fetal), Gâmbia, Gana (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal),
Hongo Kong (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Israel
(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Jamaica, Libéria
(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Malásia, Namíbia
(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Nauru, Nova Zelândia
(permite em casos incesto e anomalia fetal), Irlanda do Norte, Portugal (permite
em casos de estupro e anomalia fetal), são Cristóvão e Nevis, Samoa, Serra
Leoa, Seichelles (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal),
Espanha (permite em casos de estupro e anomalia fetal) e Trindade e Tobago.
Estes países perfazem o total de 20 e representam 2.7% da população mundial.
Apenas 14 países admitem argumentos socioeconômicos para a
realização do aborto, totalizando 20.7% da população mundial: Austrália,
Barbados (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Belize
68 Os dados sobre a legislação internacional sobre o aborto foi em sua grande
maioria obtidos através do site http://www.aborto.com/htm/mapaleyes.htm acesso em 18/10/2005.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 40
(permite também em casos de anomalia fetal), Chipre (permite em casos de
estupro e incesto), Fiji, Finlândia (permite em casos de estupro e incesto), Grã
Bretanha (permite em casos de anomalia fetal), Índia (permite em casos de
estupro e anomalia fetal), Japão (autorização do esposo), Luxemburgo (permite
em casos de estupro e anomalia fetal), São Vicente e Granadinas (permite em
casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Taiwan (permite em casos de
estupro, incesto e anomalia fetal) e Zâmbia (permite em casos de anomalia
fetal).
E por fim, totalizando 40.5% da população mundial, distribuídos em 54
países, estão aqueles ordenamentos onde o aborto é permitido, ressalvadas as
restrições quanto ao tempo de gestação feitas por alguns deles. Dentre eles:
Albânia, Armênia, Áustria (14 semanas), Azerbaijão, Bareine, Belarus, Bélgica
(14 semanas), Bósnia-Herzegovina, Bulgária, Cambodia (14 semanas), Canadá,
Cabo Verde, China (é proibido expressamente o aborto seletivo de sexo),
Croácia, Cuba, Coréia do Norte, Dinamarca, Estônia, Macedônio, França (14
semanas), Geórgia, Alemanha (14 semanas), Grécia, Guiana (8 semanas),
Hungria, Itália, Cazaquistão, Lituânia, Moldávia, Mongólia, Nepal, Romênia (14
semanas), Rússia, Sérvia e Montenegro, Singapura (24 semanas), Eslováquia,
Eslovênia, África do Sul, Suécia (18 semanas), Suíça, Tajiquistão, Tunísia,
Turquia (10 semanas), Ucrânia, Estados Unidos (de acordo com leis de cada
estado), Usbequistão e Vietnã.
O aborto inseguro tem sido objeto de debates acirrados nas Nações
Unidas. Apesar das pressões conservadoras e das intermináveis negociações, o
resultado final tem sido positivo, com um crescente reconhecimento da
descriminalização do aborto como legítima questão de direitos humanos:
O Programa de Ação da Conferência Internacional de População e
Desenvolvimento, realizada no Cairo em 1994, reconheceu, pela primeira vez
em um documento inter-governamental, o aborto inseguro como grave problema
de saúde pública (parágrafo 8.25)69. No processo de revisão Cairo + 5 (1999), o
69 Parágrafo 8.25 do Programa de Ação do Cairo: Em nenhuma circunstância o
aborto deve ser promovido como um método de planejamento familiar. Todos os governos e todas as organizações inter-governamentais e não-governamentais pertinentes, são instadas a reforçar seus compromissos com a saúde das mulheres, a considerar os efeitos do aborto inseguro sobre a saúde como um problema crucial de saúde pública e a reduzir o recurso ao aborto, mediante ampliação e melhoria dos serviços de planejamento familiar. Deve ser atribuída prioridade máxima às ações de prevenção da gravidez indesejada e todos os esforços devem ser envidados para evitar a necessidade do abortamento. As mulheres que experimentam gestações indesejadas devem ter acesso imediato a informações confiáveis e um aconselhamento compassivo. Quaisquer mudanças ou medidas relacionadas com o abortamento que se introduzam no
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 41
texto aprovado recomenda o treinamento de profissionais para atender às
mulheres nos casos em que o aborto é legal, embora não se tenha conseguido
incluir, no documento final, a recomendação sobre a revisão das leis punitivas.
A Conferência Mundial sobre a Mulher (Pequim), realizada em 1995,
reafirmou o conteúdo do parágrafo 8.25 do Cairo, acrescentando a
recomendação de que os países revisassem as leis que punem mulheres que
se submetem a abortos ilegais (parágrafo 106k). No mesmo ano ocorre a
Conferência de Beijing (Fourth World Conference on Women) direcionada
exclusivamente para os direitos femininos. E, em 2000, o documento final de
Pequim + 5 incorpora na íntegra o texto do parágrafo 106k da Plataforma de
Ação de Pequim, mencionando a necessidade de revisar as leis que punem a
prática do aborto inseguro. 70
3.3.2.Documentos Jurídicos Nacionais
No Brasil o aborto foi regulamentado pela primeira vez pelo Código
Criminal do Império de 16 de dezembro de 1830 e era enquadrado nos crimes
contra a segurança da pessoa e da vida, nos artigos 199 e 200. Até então não
havia previsão jurídica para este ato e, conseqüentemente não era proibido ou
punido penalmente.
Após, o Código Penal da República, de 1890, no Titulo X, ampliou a
imputabilidade nos crimes de aborto, prevendo a punição para a mulher que
praticasse o auto-aborto, porém atenuou a pena nos casos de estupro ou com a
finalidade de "ocultar a desonra própria". Introduziu, ainda, uma exclusão de
punibilidade para o aborto necessário que visava salvar a vida da gestante.
O tratamento jurídico brasileiro atual no tocante à prática abortiva é de
cunho proibitivo. Diversos são os diplomas legais referentes ao tema.
sistema de saúde, só podem ser determinadas a partir do âmbito nacional e local, e de acordo com o processo legislativo nacional. Nas circunstâncias em que o aborto não contraria a lei, o procedimento deve ser seguro. Em todos os casos, as mulheres devem ter acesso a serviços de qualidade para o tratamento de complicações resultantes do aborto. Os serviços de orientação pós-aborto, de educação e de planejamento familiar devem ser prontamente disponibilizados, o que ajudará também a evitar abortos repetidos. Fonte: http://www.redesaude.org.br acesso em 18/10/2005.
70 Além de repetir o parágrafo 8.25 acrescenta que: “...Os serviços de orientação pós-aborto, de educação e de planejamento familiar devem ser prontamente disponibilizados, o que ajudará também a evitar abortos repetidos”, considerar a revisão das leis que contenham medidas punitivas contra as mulheres que se submeteram a abortamentos ilegais.” Fonte: http://www.redesaude.org.br acesso em 18/10/2005.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 42
A Constituição da República embora não trate do tema de forma específica
assegura o direito à vida de forma ampla, incluindo assim, a vida intra-uterina.
Tal previsão é constante do artigo 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)”.
A Lei das Contravenções Penais, de 1941, por sua vez, no capítulo "Das
Contravenções referentes à Pessoa" dispõe em seu artigo 20 que é também
ilícito o anúncio de meio abortivo, seja ele processo, substância ou objeto,
estipulando pena de multa71.
A Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943, quando trata das férias
anuais do trabalhador estabelece: “Art. 131. Não será considerada falta ao
serviço, para os efeitos do artigo anterior a ausência do empregado: (...) II -
durante o licenciamento compulsório da empregada por motivo de maternidade
ou aborto não criminoso, observados os requisitos para percepção do salário-
maternidade custeado pela Previdência Social;”
Apenas oito constituições estaduais, dos 26 Estados que compõem a
República Federativa do Brasil, referem-se ao aborto legalmente permitido,
visando garantir sua efetiva implementação, a saber: Amazonas, Bahia, Goiás,
Minas Gerais, Pará, Rio de Janeiro, São Paulo e Tocantins. 72 O Espírito Santo é
o único Estado a considerar inaceitável o aborto diretamente provocado,
colocando-o ao lado do genocídio, do suicídio, da eutanásia, da tortura e de
outras formas de violência. In verbis: Art. 199. (...) Parágrafo único. São
inaceitáveis, por atentar contra a vida humana, o aborto diretamente provocado,
o genocídio, o suicídio, a eutanásia, a tortura e a violência física, psicológica ou
moral que venham a atingir a dignidade e a integridade da pessoa humana.
O Código Civil Brasileiro, de 2002, não contém nenhum dispositivo
específico sobre o aborto, mas protege o feto desde sua concepção em seu
artigo 2º.
A legislação penal em vigor é expressa na proibição do aborto nos artigos
124 a 128 do Código Penal de 1940, enquadrando-os no capítulo referente aos
crimes contra a vida.
71 A redação original deste artigo previa também como contravenção o anúncio de
meios contraceptivos, porém foi alterado pela Lei 6.734/1979. 72 Dados obtidos através do site
http://www.cladem.org/portugues/nacionais/brasil/informe_aborto_brasilp.asp acesso em 18/10/2005
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 43
O artigo 124 do referido código trata do auto-aborto e do aborto provocado,
com o consentimento da gestante, prevendo pena de detenção de 1 a 3 anos.
O artigo seguinte rege sobre o aborto provocado sem o consentimento da
gestante, pena estabelecida de 3 a 10 anos de reclusão e prevê a pena de 1 a 4
anos se o aborto foi provocado por terceiro, mas com consentimento. No
parágrafo único desse artigo vemos uma causa de aumento da pena se a
gestante não é maior de 14 (quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se
o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.
A forma qualificada é prevista no artigo 127, aumentando a pena em um
terço se em conseqüência do aborto a gestante sofre lesão corporal de natureza
grave; e duplicando se lhe sobrevém a morte.
Já o artigo 128 estabelece os casos permissivos de aborto. O inciso I trata
do aborto necessário, ou seja, quando não há outro meio de salvar a vida da
gestante, e o inciso II do chamado aborto emocional, no caso de gravidez
resultante de estupro.
A primeira iniciativa de reforma legal aconteceu em 1983, quando um
projeto de lei pela legalização do aborto foi apresentado à Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e rejeitado. Em 1985, no Rio
de Janeiro, a Assembléia Legislativa aprovou projeto de lei que obrigava o
serviço público de saúde a oferecer o procedimento nos dois casos previstos
pelo Código Penal. O então governador do estado – que num primeiro momento
havia sancionado – vetou o projeto. Mas a proposta de assegurar na rede
pública de saúde o acesso ao aborto nos casos de risco de vida e estupro foi
retomada pela administração municipal de São Paulo, que criou no Hospital do
Jabaquara, em 1990, o primeiro serviço público para atender os casos de aborto
previstos pela lei penal.
Em 1992 foi criada uma Comissão para Reformulação do Código Penal, e
a parte específica dos crimes contra a vida foi orientada por uma subcomissão,
presidida pelo desembargador Dr. Alberto Franco, a qual propôs a
descriminalização do aborto se comprovada má formação fetal, desde que
ocorra a interrupção até a 24ª semana. Tal proposta até hoje não foi adotada.
Diversos projetos de leis têm tramitado nas Casas Legislativas brasileiras,
tanto no plano nacional como nos planos estaduais e municipais. Mas também
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 44
há projetos no sentido contrário visando retirar da lei os casos em que a
interrupção da gravidez está permitida73.
Tramitam no Congresso Nacional 24 propostas que, direta ou
indiretamente, referem-se ao tema. Há propostas para estender os benefícios da
lei aos casos de mal-formação fetal; outras querem autorizar a interrupção a
partir da decisão da mulher, levando em conta o tempo da gestação; e há
também as que objetivam suprimir do Código Penal o artigo que caracteriza o
aborto como crime.
O Projeto de Lei 1135/91, de autoria dos ex-deputados Eduardo Jorge e
Sandra Starling, visa revogar o artigo 124 do Código Penal. A relatora, deputada
Jandira Feghali (PCdoB-RJ), apresentou um substitutivo incorporando alguns
pontos de 15 projetos de leis sobre o mesmo tema e acrescentou outros
aspectos no tocante ao tempo de gestação. No fim de setembro de 2005, a
Comissão de Revisão da Legislação Punitiva que Trata da Interrupção Voluntária
da Gravidez - entregou à Câmara um relatório sobre o assunto, propondo a
descriminalização do aborto no Brasil. De acordo com o texto apresentado pela
relatora, a mulher poderá optar pelo aborto até a 12ª semana de gestação, sem
que haja necessidade de justificação. A interrupção da gravidez poderá ocorrer
até a 20ª semana se resultante de estupro. E, finalmente, segundo o substitutivo,
o aborto poderá ocorrer em qualquer momento se for constatado grave risco à
saúde da gestante e de malformação do feto incompatível com a vida.
A proposta de um plebiscito sobre a legalização do aborto foi feita pelo
deputado Salvador Zimbaldi (PSB-SP), propondo a realização da consulta no fim
de 2007. Mas também há projetos que retrocedem, retirando da lei os casos em
que a interrupção da gravidez está permitida74.
Apesar de diversas tentativas legislativas a postura brasileira ainda tem
cunho proibitivo marcada em grande parte pela doutrina católica e falta de
justificação racional dos argumentos no seio da sociedade de forma livre.
Somente através da ampla discussão sobre os aspectos bioéticos e
constitucionais envolvidos em tal problemática será possível repensarmos o
tratamento jurídico do nosso país.
73 São exemplos: Projeto de Lei (PL) 5058/05, PL 5364/05, PL 7235/02 e PL
1459/03. Fonte: http://www.camara.gov.br/internet/agencia/materias acesso em 28 de outubro de 2005.
74 São exemplos: Projeto de Lei (PL) 5058/05, PL 5364/05, PL 7235/02 e PL 1459/03. Fonte: http://www.camara.gov.br/internet/agencia/materias acesso em 28 de outubro de 2005.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 29
3 CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO
3.1.Conceituação do Termo
A linguagem pode ser entendida como instrumento de comunicação inter-
pessoal. No exercício de comunicação é possível distinguir alguns elementos:
um emissor, um receptor, uma mensagem que se procura transmitir e um código
compartilhado pelos interlocutores. O desafio é justamente que o receptor
perceba a significação da mensagem do emissor. Os problemas e disparidades
causados pelos ruídos ou mesmo a utilização de jogos interpretativos no
emprego da comunicação têm direcionado diversos ramos do conhecimento a
seu estudo.
Guibourg, Ghigliani e Guarinoni definiram linguagem como um conjunto de
signos e símbolos organizados em uma estrutura mais ou menos orgânica com
funções determinadas, de forma que a linguagem constitui um sistema de
símbolos que servem à comunicação. Assim, tendo em vista que toda ciência é
um conjunto de enunciados, sua expressão é constituída através de uma
linguagem pré-fixada42.
A semiótica - disciplina que estuda os elementos representativos no
processo de comunicação - pode ser divida em três partes: sintaxe, semântica e
pragmática. De modo geral, é possível afirmar que a sintaxe estuda os signos de
forma pura, independente de seu significado, em outras palavras, preocupa-se
com a construção tecnicamente coerente das frases em determinado idioma. Na
semântica, a análise debruça-se sobre os signos em sua relação com os objetos
por eles designados, isto é, sobre o problema dos significados. Por fim, a
pragmática cuida da relação entre os signos e as pessoas que as usam, ou seja,
o contexto em que os termos são empregados. 43
42 GUIBOURG, R., GHIGLIANI, A., GUARINONI, R. Lenguaje, 2000, p. 19. 43 Ibid., p. 33.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 30
Quanto à semântica é importante destacar a questão da definição. O ato
de definir pode ser entendido como explicar um conceito com outro conceito.
Toda definição demarca um campo de significado. Normativamente algumas
definições são importantes para por fim às dificuldades da doutrina,
uniformizando e continentalizando um quadro semântico ou ainda para reduzir a
instabilidade de termos que estão na linguagem comum. Nesse último caso há o
problema da linguagem técnica usada para suprir a instabilidade de termos
comuns, mas esse uso técnico importa em uma nova dificuldade, qual seja, pode
prejudicar a compreensão e afastar os destinatários finais.
As definições legais geralmente são aclaratórias44. No âmbito jurídico o
estudo dos problemas relacionados à linguagem é prioritário à medida que as
proposições jurídicas que norteiam as condutas de determinada sociedade
devem ser precisas em suas definições e conceitos. Somente obedecemos ou
seguimos as normas inteligíveis. Ou pior, um entendimento errôneo sobre
determinada norma poderá acarretar, inclusive, o seu descumprimento. 45
O aborto é disciplinado pelo sistema jurídico pelos artigos 124 a 128 do
Código Penal, tendo como tutela jurídica o direito à vida do feto. O legislador
penal não definiu o que seria o aborto, relegando esta tarefa aos intérpretes.
Diversos são os entendimentos sobre esta palavra, destacaremos apenas os
propostos pelos doutrinadores jurídicos e a definição dos profissionais da saúde.
Etimologicamente o vernáculo aborto é de origem latina, decompondo-se
em ab (privação) e ortus (nascimento). França Limongi, em sua Enciclopédia de
Direito, diferencia os termos aborto, abortamento e aborticídio. Esse último
segundo o autor é um neologismo empregado por Saraiva significando a morte
da criança dada à luz antes do tempo, independente da causa desta
antecipação. O termo aborto diferencia-se pela finalidade de sacrificar o feto. Já
abortamento seria o ato de abortar, gerando o produto aborto.
Para Ronald Dworkin “aborto significa matar deliberadamente um embrião
humano em formação”. 46
A definição proposta por De Plácido e Silva em seu vocabulário Jurídico é
a seguinte: “Aborto. Expulsão prematura do feto, ou embrião, antes do tempo do
parto.” 47 Já Heleno Fragoso em suas Lições de Direito Penal salienta a origem
44 ALCHOURRÓN, C., BULYGIN, E. Análisis lógico y derecho, 1991, p. 448. 45 Alchourron e Bulygin destacam a diferença crucial entre as definições de caráter
oficial e as meras definições privadas. Ibid., p. 441. 46 DWORKIN, R. Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais,
2003. p.1. 47 DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico, 1987, p. 11.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 31
cristã deste termo, in verbis: ”Deve-se ao Cristianismo o entendimento segundo
o qual o aborto significa a morte de um ser humano, e, pois, virtualmente,
homicídio”48. Dois são os elementos básicos para a conceituação jurídica
doutrinária do aborto: a retirada prematura do feto do ventre materno, tendo
como conseqüência, sua morte.
A prática de abortamento é punida penalmente por ser considerada uma
espécie de homicídio, sendo excluídas da punibilidade legal apenas duas
hipóteses previstas no artigo 128 do Código Penal, quais sejam: o aborto
necessário (se não há outro meio de salvar a vida da gestante) e o aborto
emocional ou ético em caso de gravidez resultante de estupro.
No tocante à definição médica de aborto serão utilizadas três nuances: a
idade gestacional, a capacidade sensitiva e a intenção da gestante. Diversas
outras classificações são feitas pela doutrina, tanto jurídica como médica, como
ressaltado na obra da professora Maria Helena Diniz que traz ainda a
classificação quanto ao consentimento (sofrido – sem consenso da gestante,
consentido – realizado com a anuência da gestante e procurado – se a gestante
for o agente principal). 49
A primeira classificação utiliza como parâmetro conhecimentos obstétricos
em razão da formação do embrião. Segundo Antonio Jorge Salomão:
“Considera-se aborto a expulsão ou a extração de feto ou embrião que pese menos de 500 gramas (idade gestacional de aproximadamente 20-22 semanas completas ou de 140-154 dias completos) ou de qualquer outro produto da gestação de qualquer peso e especificamente designado, independentemente da idade gestacional, tenha ou não sinal de vida e seja ou não espontâneo ou induzido. Abortamento espontâneo é a interrupção natural da gravidez antes da 20ª semana de gestação.” 50 O autor supra citado fornece ainda alguns critérios de classificação para o
abortamento, são eles: a idade gestacional (a OMS divide os abortos em
precoce – antes da 12ª semana - e tardio – entre a 12ª e a 20ª semana); o peso
fetal (aborto - menor que 500g, imaturo – entre 500g e 999g e prematuro – entre
1000g e 2500g); forma (espontâneo – quando não há nenhum fator precipitante
do quadro) e induzido (quando ocorreu ação deliberada para interromper a
48 FRAGOSO, H. Lições de Direito Penal, 1986, p. 107. 49 DINIZ, M. O estado atual do biodireito, 2002. p. 33. 50 SALOMÃO, A. Abortamento espontâneo. In Obstetrícia Básica. Bussâmara
Neme, 1994. p. 363.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 32
gestação) e quadro clínico (ameaça, inevitável, incompleto, completo e retido ou
frustrado). 51
A segunda classificação considera como fator importante o momento que o
feto passa a sentir dor. Segundo Ronald Dworkin é a partir do sétimo mês de
concepção que o feto desenvolve a capacidade reflexiva quando inicia a
atividade elétrica do cérebro no tronco cerebral. E a sensação de dor somente
seria possível após a conexão entre o tálamo e o neocórtex fetal, o que embora
ainda não esteja determinada com precisão, acredita-se não ocorrer antes da
metade do período gestacional.
A terceira classificação dos diversos tipos de abortos é elaborada segundo
o entendimento bioético e pode ser depreendida da seguinte forma: 52
1) Interrupção eugênica da gestação (IEG): são os casos de aborto
ocorridos em nome de práticas eugênicas, isto é, situações em que se
interrompe a gestação por valores racistas, sexistas, étnicos, etc. Comumente,
sugere-se o praticado pela medicina nazista como exemplo de IEG quando
mulheres foram obrigadas a abortar por serem judias, ciganas ou negras. Regra
geral, a IEG processa-se contra a vontade da gestante, sendo esta obrigada a
abortar;
2) Interrupção terapêutica da gestação (ITG): são os casos ocorridos em
nome da saúde materna, isto é, situações em que se interrompe a gestação para
salvar a vida da gestante. Hoje em dia, em face do avanço científico e
tecnológico ocorrido na medicina, os casos de ITG são cada vez em menor
número, sendo raras as situações terapêuticas que exigem tal procedimento;
3) Interrupção seletiva da gestação (ISG): são os casos de aborto ocorridos
em nome de anomalias fetais, isto é, situações em que se interrompe a gestação
pela constatação de lesões fetais. Em geral, os casos que justificam as
solicitações de ISG são de patologias incompatíveis com a vida extra-uterina,
sendo o exemplo clássico o da anencefalia;
4) Interrupção voluntária da gestação (IVG): referem-se à autonomia
reprodutiva da gestante ou do casal, isto é, situações em que se interrompe a
gestação porque a mulher ou o casal não mais deseja a gravidez, seja ela fruto
51 Ibid., p. 363. 52 A classificação proposta é apresentada no livro editado pelo próprio Conselho
Federal de Medicina e de autoria de Diniz e Almeida. COSTA, S, OSELKA, G, GARRAFA, V. Iniciação à bioética, 1998.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 33
de um estupro ou de uma relação consensual. Muitas vezes, as legislações que
permitem a IVG impõem limites gestacionais à prática.
Note-se que a nomenclatura utilizada é a interrupção da gravidez e não
aborto. Tal fato tem como explicação a forte resistência e a preconceituação que
traz em si o termo. A bioética tem tentado analisar o assunto através do debate
racional livre. No ponto seguinte trataremos de forma mais aprofundada sobre as
questões bioéticas que envolvem o aborto.
3.2.Elementos Bioéticos
A problemática do aborto é considerada atualmente uma questão de saúde
pública. Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) metade
das gestações é indesejada e uma a cada nove mulheres recorre ao aborto. No
Brasil, estatísticas demonstram que o índice de abortamento é de 31%. Ou seja,
ocorrem, aproximadamente, 1,44 milhões de abortos espontâneos e inseguros
com taxa de 3,7 para cada 100 mulheres. A gravidade da situação do
abortamento também se reflete no SUS. Apenas no ano de 2004, o número de
mulheres internadas para fazer curetagem pós-aborto foi de 243.988.53 Contudo,
o aborto envolve aspectos complexos da natureza humana: vida, sexualidade e
religião.
Diante de tal quadro, a bioética tem um papel importante na discussão das
questões referentes à moralidade do aborto. Há cada vez mais a tentativa de
avaliar racionalmente os argumentos contrários e favoráveis e submetê-los ao
crivo da justificação social.
A primeira dificuldade que surge no tratamento do aborto é a determinação
do início da vida e, a partir de que momento, se é que isso ocorre, o feto é tido
como pessoa54. A primeira possibilidade considera a fecundação como o ponto
inicial, a Igreja Católica e os pensamentos mais conservadores adotam essa
teoria55. O preformismo, doutrina segundo a qual o indivíduo já estaria contido
plenamente no sêmen, também defendia a animação imediata só dependendo
do decurso do tempo para o desenvolvimento pleno do ser humano. Tal tese é
descartada atualmente. A epigênese defende o desenvolvimento biológico
53 Fonte: www.saude.gov.br acesso em 28.10.2005. 54 Sobre a noção jurídica e filosófica de pessoa e o biodireito vide XAVIER, E. A
bioética e o conceito de pessoa:a re-significação jurídica do ser enquanto pessoa, 2000. 55 Embora São Tomás de Aquino, um dos importantes pensadores da teologia
católica, defendesse a tese de que a animação, ou seja, a junção do corpo com a alma,
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 34
gradual da pessoa. A lei biogenética proposta por Ernst Haeckel também propõe
a animação tardia do organismo humano. Neste sentido se destacam as
observações de Laurente Degos que estabelece algumas etapas importantes do
desenvolvimento fetal:
“1) O estádio de 8 células marca um início de individualidade. Antes deste estádio, cada uma das células do embrião pode dar origem a um ser completo, incluindo o desenvolvimento da placenta. São, portanto intercambiáveis. Após este estádio, as células diferenciam-se entre as do exterior e as do interior. 2) Por volta do 10º dia, o embrião implanta-se no útero. O ser potencialmente humano começa a sua vida relacional. Neste estádio, o embrião está envolvido por uma cápsula, que ele parte com empurrões a fim de se implantar no tecido uterino. 3) Por volta da 10ª-14ª semana, sobressai de maneira significativa. Corresponde à que é arbitrariamente atribuída à passagem do embrião a feto. "Feto" é uma palavra reservada à vida embrionária do homem, que começa ao fim de 3 meses de gravidez. A silhueta do embrião toma forma humana. É no decurso do período da 10ª-12ª semana que se inicia a migração dos 80 bilhões de neurônios para a sua localização definitiva, terminando no 6º mês (24ª semana) de gravidez. Antes da 10ª-12ª semana, os neurônios não têm atividade. Se o fim da vida é determinado pelo fim da atividade cerebral, pode admitir-se que o início da vida corresponde ao início da rede cerebral, e portanto da coordenação do organismo por um futuro cérebro. Este período (10ª-14ª semana) é também o que, na maioria dos países, é considerado como o limite da autorização da interrupção voluntária da gravidez. 4) 6º mês, é uma etapa decisiva na vida do feto. O sistema nervoso está no lugar. O bebê a nascer pode viver de modo autônomo e independente.“ 56 57(grifos nosso)
Finalmente, há entendimentos de que o feto não é, em momento algum,
uma pessoa, somente adquirindo tal característica em sua vida extra-uterina.
Este posicionamento, embora radical, é adotado pelo ordenamento jurídico pátrio
que mesmo reconhecendo direitos ao nascituro somente considera pessoa
aquele ser que nasce com vida.
A segunda grande discussão bioética sobre o procedimento médico de
aborto é a relação materno-fetal58. Hodiernamente, com avanços tecnológicos
cada vez mais constantes, técnicas invasivas de diagnóstico e tratamento intra-
uterino têm se tornado comuns. Há um questionamento sobre a autonomia da
ocorria no 40º dia para os fetos do sexo masculino e no 80º dia para os do sexo feminino.
56 DEGOS, L. Os critérios biológicos da presença de uma pessoa humana, 2002, p. 21.
57 Interessante observar que segundo a resolução nº 1601/00 do Conselho Federal de Medicina o médico somente é obrigado a fornecer declaração de óbito de fetos com mais de 20 semanas ou 500 gramas. Antes desse prazo o feto morto é considerado material ou resíduo biológico.
58 Para o aprofundamento do tema vide Conflito materno-fetal? In DINIZ, Débora Diniz, COSTA, Sérgio. Bioética: ensaios. Brasília: Letras Livres, 2004.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 35
gestante e seus direitos de consentir ou não com a realização desses
procedimentos. A relação entre esses dois indivíduos tão ligados também é
discutida no aborto. Posições radicais consideram o feto como mero órgão ou
organismo dentro do corpo da mãe, cabendo total arbítrio materno sobre o
mesmo. Contrariamente, outros consideram o feto como um indivíduo com
interesses e direitos. Sobre a relação entre o feto e a gestante escreve Ronald
Dworkin:
O feto “é dela (da gestante), e é dela mais do que qualquer outra pessoa porque
é, acima de tudo, sua criação e sua responsabilidade; está vivo porque ela fez com que
se tornasse vivo. Ela já fez um intenso investimento físico e emocional nele, diferente do
que qualquer outra pessoa tenha feito, inclusive o pai; por causa dessas ligações físicas
e emocionais, é tão errado dizer que o feto está separado dela como dizer que não está.” 59
Uma das mais importantes obras sobre o abortamento é a de Maurizio
Mori60. O autor além de considerar polêmica a afirmativa de que o feto é ou não
pessoa e, portanto, com direito à vida, oferece como questionamento se o direito
à vida de uma pessoa implica o direito de fazer uso do corpo da mulher para
continuar a viver. Neste ponto ele destaca a questão da autonomia da mulher
quanto à disposição de seu corpo.
Maurizio Mori também apresenta cinco momentos históricos de reflexão
sobre a permissão ou proibição do aborto.
No primeiro momento, predominava nas sociedades a permissão irrestrita
tendo como justificativa a visão de que o aborto era um ato de caráter
estritamente privado. Durante este período o feto era considerado como parte
integrante do corpo materno ou, como ressaltam alguns autores, parte das
vísceras da gestante.
A seguir, com o advento e propagação dos ideais cristãos, o aborto foi
severamente proibido, e a base doutrinária imposta considerava tal ato
pecaminoso e atentatório contra o matrimônio.
No terceiro momento persiste a proibição, porém a justificação muda.
Diversos ordenamentos jurídicos coíbem o aborto, estipulando-o crime contra a
pessoa, contra a geração, contra a sanidade e a integridade da estirpe, entre
outros.
59 DWORKIN, R., Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais,
2003, p. 77. 60 MORI, M., A moralidade do aborto. Sacralidade da vida e o novo papel da
mulher, 1997, p. 17-26.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 36
No início dos anos 60 a utilização de um medicamento chamado talidomida
acarretou, durante as primeiras fases da gravidez, uma série de anomalias
graves nos fetos. Então, a discussão volta sua atenção para a possibilidade de
legalização do aborto em casos de anomalias fetais severas.
Outro evento ocorre pouco após, em 1973, contribuindo para a legalização
do aborto – a decisão da Suprema Corte Americana no emblemático caso Roe x
Wade. A decisão judicial citada determinou que o feto, ou aquele ainda não
nascido, não pode ser considerado pessoa e, portanto, não seriam sujeitos
protegidos juridicamente e que as leis até então existentes no país proibitivas do
aborto violavam o direito constitucional à privacidade da mulher. Essa noção de
privacidade deve ser entendida no sentido de soberania quanto às decisões
particulares, e não como direito de utilizar livremente seu próprio corpo.
O último momento mencionado por Maurizio Mori diz respeito
principalmente aos países europeus. Segundo o autor atualmente a Europa tem
direcionado o debate no sentido de coibir os abortos clandestinos, encarando o
assunto como problema de saúde pública, e por isso, a legalização da prática
cresceu.
Algumas posições atuais podem ser destacadas quanto ao tema61. A
posição católica que condena qualquer tipo de aborto, inclusive o necessário à
sobrevivência materna. A postura do Movimento pela Vida oponente também à
prática, contudo, admite determinadas exceções. O movimento pela legalização
do aborto para a qual o aborto deve ser regulamento socialmente. E a posição a
favor da liberalização do aborto, segundo a qual este assunto é de âmbito
privado da mulher, e como tal, deve ser decidido exclusivamente pela gestante e
seu médico.
No ponto seguinte serão abordados os aspectos jurídicos do aborto. Serão
elencadas as principais leis internacionais e como o Brasil tem regulamentado a
questão, seja através de leis já promulgadas, seja por meio de projetos de leis
em tramitação nas Casas Legislativas.
61 Ibid., p. 30 – 31.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 37
3.3.Elementos Jurídicos
O aborto sempre constituiu uma prática comum em diversas sociedades.
Entretanto, o tratamento jurídico dispensado a este ato não encontra uma
uniformidade de regulamentação.
Inicialmente o aborto era visto de duas formas ou era considerado assunto
de cunho exclusivamente familiar, com algumas repercussões somente no direito
privado, ou um ato criminoso e passível de punição penal.
No direito penal hebreu o ato voluntário de abortar constituía um crime,
punível com pena de morte, sendo permitido apenas para resguardar a vida da
genitora. 62
No Oriente Médio e na Grécia Antiga, assim como os romanos,
consideravam o feto como parte das vísceras da mãe, cabendo a esta a decisão
sobre a continuidade da gravidez.
O Código de Hammurabi63, datado do século XXIII, previa em seu Capítulo
XI – Artigos 208 a 214 os crimes de agressão contra as mulheres gestantes que
tinham como conseqüência expelir o fruto de seu seio. As penas estipuladas
eram de indenização e sua quantificação dependia da origem da gestante: se
filha de um homem livre o valor era de 10 siclos de prata pelo fruto de seu seio e
se ocorreu a morte da mulher a pena era a morte da filha do homem que a feriu;
se era filha de um homem vulgar a indenização montava a 5 minas de prata, se
acarretou a morte, mais meia mina de prata; e por fim, se a gestante fosse
escrava o seu senhor receberia dois siclos de prata pela agressão e um terço de
uma mina de prata se o resultado foi o falecimento.
Na Idade Média, com a influência do direito canônico, a punição do aborto
tornou-se mais freqüente. Inicialmente considerado pelo clero um crime contra o
matrimônio, somente há poucas décadas a Igreja passou a considerar o aborto
um crime contra a vida64. Porém, a própria Igreja revelava entendimentos
confusos sobre a matéria. São Tomás de Aquino era contrário ao aborto, mas
admitia que o mesmo fosse feito antes do surgimento da alma o que ocorria em
40 dias após a concepção se homem e 80 dias se mulher. Os Dicastérios
Romanos, embora contrários ao aborto, hesitaram quando perguntados sobre a
62 Livro de Êxodo capítulo 21 versículos 22 e 23. 63 Fonte: www.dhnet.org.br/direitos/anthist/hamurabi.htm 64 Conforme destaque de M. José Nunes: “Assim, a punição do aborto, durante os
seis primeiros séculos do cristianismo, não era referida, em primeiro lugar, ao feto cuja vida seria tirada, mas ao adultério que o aborto revelava.” Fonte:
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 38
possibilidade em casos de inviabilidade de vida do nascituro. 65 A argumentação
de que o aborto seria o assassinato de um inocente foi formulada por Pio XI em
1930 através da Encíclica Casti Conubii. Mas é em 1968 que a Igreja demonstra
firmemente sua repugnância não só aos meios abortivos como também aos
meios artificiais de contracepção, através da elaboração da Encíclica Humanae
Vitae66. No mesmo ano foi elaborada a Carta Pastoral dos Bispos nórdicos a qual
dizia:
"Quando uma pessoa, por razões sérias e bem ponderadas não se convence pelos argumentos da encíclica (Humanae Vitae), tem o direito de adotar uma opinião distinta daquela apresentada em um documento não infalível. Que ninguém, pois, seja tido como mau católico pela única razão de discordar... Ninguém, nem mesmo a Igreja, pode dispensar do dever de seguir a própria consciência." 67
3.3.1.Documentos Jurídicos Internacionais
A postura proibitiva tem se perpetrado nas sociedades hodiernas. A seguir
serão expostas as previsões jurídicas em diversos países. 68
Em 72 países o aborto é totalmente proibido ou permitido apenas em caso
de risco de vida para a gestante, perfazendo o total de 26,1% da população
mundial, dentre eles: Afeganistão, Andorra, Angola, Antígua e Barbuda,
Bangladesh, Butão, Brunei, República da África-Central, Chile, Colômbia, Congo,
República Democrática do Congo, Dominica, República dominicana, Egito,
Gabão, Guatemala, Guiné-Bissau, Haiti, Honduras, Indonésia, Irã, Iraque,
Irlanda, Quênia, Quiribati, Laos, Lesoto, Líbia (requer notificação e autorização
parental), Madagascar, Malaui (requer autorização do esposo), Mali (permite
também em caso de estupro e incesto), Malta, Ilhas Marshall, Mauritânia,
República das Maurícias, México (também permite em caso de estupro),
Principado de Mônaco, Birmânia, Nicarágua (requer autorização do esposo),
Níger, Nigéria, Omã, Panamá (permite em caso de estupro e anomalia fetal),
http://www.catolicasporelderechoadecidir.org/aborto8.shtm acesso em 28 de outubro de 2005.
65 Segundo Anjos a resposta do Dicastério foi: ”consultar autores sérios, sejam antigos ou recentes, e agir prudentemente.”
66 A íntegra da Encíclica pode ser obtida através do endereço eletrônico : http://www.vatican.va/holy_father/paul_vi/encyclicals/documents/hf_pvi_enc_25071968_humanae-vitae_po.html
67 Texto retirado do endereço eletrônico: http://www.catolicasporelderechoadecidir.org/aborto8.shtm acesso em 28 de outubro de 2005.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 39
Papua Nova Guiné, Paraguai, Filipinas, São Marino, São Tomé e Príncipe,
Senegal, Ilhas Salomão, Somália, Siri Lanka, Sudão (permite em casos de
estupro), Suriname, Síria (requer autorização do genitor), Tanzânia, Togo,
Tonga, Suazilândia, Tuvalu, Uganda, Emikrados Árabes, Venezuela e Iêmen.
Em 35 países, 9,9% da população mundial, o aborto é permitido para
preservar a saúde física da mãe e para preservar sua vida, dentre eles: Brasil
(também permite em caso de estupro), Argentina (também permite em caso de
estupro), Bahamas, Benim (permite em casos de estupro, incesto e anomalia
fetal), Bolívia (permite também em casos de estupro e incesto), Burquina Faso
(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Burundi, Camarões
(permite em caso de estupro), Chade (permite em casos de estupro, incesto e
anomalia fetal), Comores, Costa Rica, Djibouti, Equador (permite em casos de
estupro ou se a mulher tem alguma incapacidade mental), Eritréia, Etiópia,
Grenada, Guiné (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal),
Jordânia, Kuwait, Maldivas, Marrocos, Moçambique, Paquistão, Peru, Polônia
(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Catar, Ruanda, Arábia
Saudita, Santa Lúcia, Tailândia (permite em casos de estupro), Uruguai (permite
em casos de estupro), Vanuatu e Zimbabué (permite em casos de estupro,
incesto e anomalia fetal).
Países que permitem o aborto também em casos de preservação da saúde
mental: Argélia, Botswana (permite em casos de estupro, incesto e anomalia
fetal), Gâmbia, Gana (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal),
Hongo Kong (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Israel
(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Jamaica, Libéria
(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Malásia, Namíbia
(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Nauru, Nova Zelândia
(permite em casos incesto e anomalia fetal), Irlanda do Norte, Portugal (permite
em casos de estupro e anomalia fetal), são Cristóvão e Nevis, Samoa, Serra
Leoa, Seichelles (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal),
Espanha (permite em casos de estupro e anomalia fetal) e Trindade e Tobago.
Estes países perfazem o total de 20 e representam 2.7% da população mundial.
Apenas 14 países admitem argumentos socioeconômicos para a
realização do aborto, totalizando 20.7% da população mundial: Austrália,
Barbados (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Belize
68 Os dados sobre a legislação internacional sobre o aborto foi em sua grande
maioria obtidos através do site http://www.aborto.com/htm/mapaleyes.htm acesso em 18/10/2005.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 40
(permite também em casos de anomalia fetal), Chipre (permite em casos de
estupro e incesto), Fiji, Finlândia (permite em casos de estupro e incesto), Grã
Bretanha (permite em casos de anomalia fetal), Índia (permite em casos de
estupro e anomalia fetal), Japão (autorização do esposo), Luxemburgo (permite
em casos de estupro e anomalia fetal), São Vicente e Granadinas (permite em
casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Taiwan (permite em casos de
estupro, incesto e anomalia fetal) e Zâmbia (permite em casos de anomalia
fetal).
E por fim, totalizando 40.5% da população mundial, distribuídos em 54
países, estão aqueles ordenamentos onde o aborto é permitido, ressalvadas as
restrições quanto ao tempo de gestação feitas por alguns deles. Dentre eles:
Albânia, Armênia, Áustria (14 semanas), Azerbaijão, Bareine, Belarus, Bélgica
(14 semanas), Bósnia-Herzegovina, Bulgária, Cambodia (14 semanas), Canadá,
Cabo Verde, China (é proibido expressamente o aborto seletivo de sexo),
Croácia, Cuba, Coréia do Norte, Dinamarca, Estônia, Macedônio, França (14
semanas), Geórgia, Alemanha (14 semanas), Grécia, Guiana (8 semanas),
Hungria, Itália, Cazaquistão, Lituânia, Moldávia, Mongólia, Nepal, Romênia (14
semanas), Rússia, Sérvia e Montenegro, Singapura (24 semanas), Eslováquia,
Eslovênia, África do Sul, Suécia (18 semanas), Suíça, Tajiquistão, Tunísia,
Turquia (10 semanas), Ucrânia, Estados Unidos (de acordo com leis de cada
estado), Usbequistão e Vietnã.
O aborto inseguro tem sido objeto de debates acirrados nas Nações
Unidas. Apesar das pressões conservadoras e das intermináveis negociações, o
resultado final tem sido positivo, com um crescente reconhecimento da
descriminalização do aborto como legítima questão de direitos humanos:
O Programa de Ação da Conferência Internacional de População e
Desenvolvimento, realizada no Cairo em 1994, reconheceu, pela primeira vez
em um documento inter-governamental, o aborto inseguro como grave problema
de saúde pública (parágrafo 8.25)69. No processo de revisão Cairo + 5 (1999), o
69 Parágrafo 8.25 do Programa de Ação do Cairo: Em nenhuma circunstância o
aborto deve ser promovido como um método de planejamento familiar. Todos os governos e todas as organizações inter-governamentais e não-governamentais pertinentes, são instadas a reforçar seus compromissos com a saúde das mulheres, a considerar os efeitos do aborto inseguro sobre a saúde como um problema crucial de saúde pública e a reduzir o recurso ao aborto, mediante ampliação e melhoria dos serviços de planejamento familiar. Deve ser atribuída prioridade máxima às ações de prevenção da gravidez indesejada e todos os esforços devem ser envidados para evitar a necessidade do abortamento. As mulheres que experimentam gestações indesejadas devem ter acesso imediato a informações confiáveis e um aconselhamento compassivo. Quaisquer mudanças ou medidas relacionadas com o abortamento que se introduzam no
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 41
texto aprovado recomenda o treinamento de profissionais para atender às
mulheres nos casos em que o aborto é legal, embora não se tenha conseguido
incluir, no documento final, a recomendação sobre a revisão das leis punitivas.
A Conferência Mundial sobre a Mulher (Pequim), realizada em 1995,
reafirmou o conteúdo do parágrafo 8.25 do Cairo, acrescentando a
recomendação de que os países revisassem as leis que punem mulheres que
se submetem a abortos ilegais (parágrafo 106k). No mesmo ano ocorre a
Conferência de Beijing (Fourth World Conference on Women) direcionada
exclusivamente para os direitos femininos. E, em 2000, o documento final de
Pequim + 5 incorpora na íntegra o texto do parágrafo 106k da Plataforma de
Ação de Pequim, mencionando a necessidade de revisar as leis que punem a
prática do aborto inseguro. 70
3.3.2.Documentos Jurídicos Nacionais
No Brasil o aborto foi regulamentado pela primeira vez pelo Código
Criminal do Império de 16 de dezembro de 1830 e era enquadrado nos crimes
contra a segurança da pessoa e da vida, nos artigos 199 e 200. Até então não
havia previsão jurídica para este ato e, conseqüentemente não era proibido ou
punido penalmente.
Após, o Código Penal da República, de 1890, no Titulo X, ampliou a
imputabilidade nos crimes de aborto, prevendo a punição para a mulher que
praticasse o auto-aborto, porém atenuou a pena nos casos de estupro ou com a
finalidade de "ocultar a desonra própria". Introduziu, ainda, uma exclusão de
punibilidade para o aborto necessário que visava salvar a vida da gestante.
O tratamento jurídico brasileiro atual no tocante à prática abortiva é de
cunho proibitivo. Diversos são os diplomas legais referentes ao tema.
sistema de saúde, só podem ser determinadas a partir do âmbito nacional e local, e de acordo com o processo legislativo nacional. Nas circunstâncias em que o aborto não contraria a lei, o procedimento deve ser seguro. Em todos os casos, as mulheres devem ter acesso a serviços de qualidade para o tratamento de complicações resultantes do aborto. Os serviços de orientação pós-aborto, de educação e de planejamento familiar devem ser prontamente disponibilizados, o que ajudará também a evitar abortos repetidos. Fonte: http://www.redesaude.org.br acesso em 18/10/2005.
70 Além de repetir o parágrafo 8.25 acrescenta que: “...Os serviços de orientação pós-aborto, de educação e de planejamento familiar devem ser prontamente disponibilizados, o que ajudará também a evitar abortos repetidos”, considerar a revisão das leis que contenham medidas punitivas contra as mulheres que se submeteram a abortamentos ilegais.” Fonte: http://www.redesaude.org.br acesso em 18/10/2005.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 42
A Constituição da República embora não trate do tema de forma específica
assegura o direito à vida de forma ampla, incluindo assim, a vida intra-uterina.
Tal previsão é constante do artigo 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)”.
A Lei das Contravenções Penais, de 1941, por sua vez, no capítulo "Das
Contravenções referentes à Pessoa" dispõe em seu artigo 20 que é também
ilícito o anúncio de meio abortivo, seja ele processo, substância ou objeto,
estipulando pena de multa71.
A Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943, quando trata das férias
anuais do trabalhador estabelece: “Art. 131. Não será considerada falta ao
serviço, para os efeitos do artigo anterior a ausência do empregado: (...) II -
durante o licenciamento compulsório da empregada por motivo de maternidade
ou aborto não criminoso, observados os requisitos para percepção do salário-
maternidade custeado pela Previdência Social;”
Apenas oito constituições estaduais, dos 26 Estados que compõem a
República Federativa do Brasil, referem-se ao aborto legalmente permitido,
visando garantir sua efetiva implementação, a saber: Amazonas, Bahia, Goiás,
Minas Gerais, Pará, Rio de Janeiro, São Paulo e Tocantins. 72 O Espírito Santo é
o único Estado a considerar inaceitável o aborto diretamente provocado,
colocando-o ao lado do genocídio, do suicídio, da eutanásia, da tortura e de
outras formas de violência. In verbis: Art. 199. (...) Parágrafo único. São
inaceitáveis, por atentar contra a vida humana, o aborto diretamente provocado,
o genocídio, o suicídio, a eutanásia, a tortura e a violência física, psicológica ou
moral que venham a atingir a dignidade e a integridade da pessoa humana.
O Código Civil Brasileiro, de 2002, não contém nenhum dispositivo
específico sobre o aborto, mas protege o feto desde sua concepção em seu
artigo 2º.
A legislação penal em vigor é expressa na proibição do aborto nos artigos
124 a 128 do Código Penal de 1940, enquadrando-os no capítulo referente aos
crimes contra a vida.
71 A redação original deste artigo previa também como contravenção o anúncio de
meios contraceptivos, porém foi alterado pela Lei 6.734/1979. 72 Dados obtidos através do site
http://www.cladem.org/portugues/nacionais/brasil/informe_aborto_brasilp.asp acesso em 18/10/2005
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 43
O artigo 124 do referido código trata do auto-aborto e do aborto provocado,
com o consentimento da gestante, prevendo pena de detenção de 1 a 3 anos.
O artigo seguinte rege sobre o aborto provocado sem o consentimento da
gestante, pena estabelecida de 3 a 10 anos de reclusão e prevê a pena de 1 a 4
anos se o aborto foi provocado por terceiro, mas com consentimento. No
parágrafo único desse artigo vemos uma causa de aumento da pena se a
gestante não é maior de 14 (quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se
o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.
A forma qualificada é prevista no artigo 127, aumentando a pena em um
terço se em conseqüência do aborto a gestante sofre lesão corporal de natureza
grave; e duplicando se lhe sobrevém a morte.
Já o artigo 128 estabelece os casos permissivos de aborto. O inciso I trata
do aborto necessário, ou seja, quando não há outro meio de salvar a vida da
gestante, e o inciso II do chamado aborto emocional, no caso de gravidez
resultante de estupro.
A primeira iniciativa de reforma legal aconteceu em 1983, quando um
projeto de lei pela legalização do aborto foi apresentado à Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e rejeitado. Em 1985, no Rio
de Janeiro, a Assembléia Legislativa aprovou projeto de lei que obrigava o
serviço público de saúde a oferecer o procedimento nos dois casos previstos
pelo Código Penal. O então governador do estado – que num primeiro momento
havia sancionado – vetou o projeto. Mas a proposta de assegurar na rede
pública de saúde o acesso ao aborto nos casos de risco de vida e estupro foi
retomada pela administração municipal de São Paulo, que criou no Hospital do
Jabaquara, em 1990, o primeiro serviço público para atender os casos de aborto
previstos pela lei penal.
Em 1992 foi criada uma Comissão para Reformulação do Código Penal, e
a parte específica dos crimes contra a vida foi orientada por uma subcomissão,
presidida pelo desembargador Dr. Alberto Franco, a qual propôs a
descriminalização do aborto se comprovada má formação fetal, desde que
ocorra a interrupção até a 24ª semana. Tal proposta até hoje não foi adotada.
Diversos projetos de leis têm tramitado nas Casas Legislativas brasileiras,
tanto no plano nacional como nos planos estaduais e municipais. Mas também
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 44
há projetos no sentido contrário visando retirar da lei os casos em que a
interrupção da gravidez está permitida73.
Tramitam no Congresso Nacional 24 propostas que, direta ou
indiretamente, referem-se ao tema. Há propostas para estender os benefícios da
lei aos casos de mal-formação fetal; outras querem autorizar a interrupção a
partir da decisão da mulher, levando em conta o tempo da gestação; e há
também as que objetivam suprimir do Código Penal o artigo que caracteriza o
aborto como crime.
O Projeto de Lei 1135/91, de autoria dos ex-deputados Eduardo Jorge e
Sandra Starling, visa revogar o artigo 124 do Código Penal. A relatora, deputada
Jandira Feghali (PCdoB-RJ), apresentou um substitutivo incorporando alguns
pontos de 15 projetos de leis sobre o mesmo tema e acrescentou outros
aspectos no tocante ao tempo de gestação. No fim de setembro de 2005, a
Comissão de Revisão da Legislação Punitiva que Trata da Interrupção Voluntária
da Gravidez - entregou à Câmara um relatório sobre o assunto, propondo a
descriminalização do aborto no Brasil. De acordo com o texto apresentado pela
relatora, a mulher poderá optar pelo aborto até a 12ª semana de gestação, sem
que haja necessidade de justificação. A interrupção da gravidez poderá ocorrer
até a 20ª semana se resultante de estupro. E, finalmente, segundo o substitutivo,
o aborto poderá ocorrer em qualquer momento se for constatado grave risco à
saúde da gestante e de malformação do feto incompatível com a vida.
A proposta de um plebiscito sobre a legalização do aborto foi feita pelo
deputado Salvador Zimbaldi (PSB-SP), propondo a realização da consulta no fim
de 2007. Mas também há projetos que retrocedem, retirando da lei os casos em
que a interrupção da gravidez está permitida74.
Apesar de diversas tentativas legislativas a postura brasileira ainda tem
cunho proibitivo marcada em grande parte pela doutrina católica e falta de
justificação racional dos argumentos no seio da sociedade de forma livre.
Somente através da ampla discussão sobre os aspectos bioéticos e
constitucionais envolvidos em tal problemática será possível repensarmos o
tratamento jurídico do nosso país.
73 São exemplos: Projeto de Lei (PL) 5058/05, PL 5364/05, PL 7235/02 e PL
1459/03. Fonte: http://www.camara.gov.br/internet/agencia/materias acesso em 28 de outubro de 2005.
74 São exemplos: Projeto de Lei (PL) 5058/05, PL 5364/05, PL 7235/02 e PL 1459/03. Fonte: http://www.camara.gov.br/internet/agencia/materias acesso em 28 de outubro de 2005.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 45
4 INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
4.1.Teorias sobre a Interpretação
O objetivo deste capítulo é fornecer o aporte teórico de diversos autores
sobre interpretação de um texto normativo, especialmente, constitucional. Esse
suporte será essencial para a posterior discussão das possíveis interpretações
do ordenamento jurídico brasileiro no estudo de caso da permissão de
antecipação do parto na ocorrência de anencefalia fetal. Quando então serão
analisados os argumentos utilizados para defender ou proibir tal hipótese,
levantando as técnicas argumentativas principais de ambos os entendimentos.
Quatro questionamentos são essenciais quando o assunto é
interpretação: O que é interpretar, por que interpretar, como interpretar e quais
as dificuldades do ato interpretativo. As respostas a essas perguntas variam
conforme a época e a metodologia de cada autor.
4.1.1. O que é interpretar?
O ato de interpretar significa fornecer significação às palavras, é
primeiramente a análise semântica de um texto. Por tal razão a semiótica75 é
vital para a interpretação76. A norma legal, como todo texto escrito, necessita da
75 A semiótica - disciplina que estuda os elementos representativos no processo de
comunicação - pode ser divida em três partes: sintaxe, semântica e pragmática. De modo geral, é possível afirmar que a sintaxe estuda os signos de forma pura, independente de seu significado, em outras palavras, preocupa-se com a construção tecnicamente corrente das frases em determinado idioma. Na semântica, a análise debruça-se sobre os signos em sua relação com os objetos por eles designados, isto é, sobre o problema dos significados. Por fim, a pragmática cuida da relação entre os signos e as pessoas que as usam, ou seja, o contexto em que os termos são empregados. GUIBOURG, R., GHIGLIANI, A., GUARINONI, R. Lenguaje, 2000, p. 33.
76 Willis Santiago Guerra Filho ressalta a importância desses conhecimentos no campo do Direito. Cita-se: “O aspecto sintático do conhecimento é tradicionalmente trabalhado no âmbito da lógica formal. (...) As funções semântica e pragmática, por sua vez, corresponderiam ao campo da lógica material, que gira em torno de objetos mundanais, cujo principal, para o Direito, é a Justiça.” GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência jurídica, 2001, p.104.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 46
interpretação que pode ser considerada como meio termo entre as previsões
legais e a solução do caso concreto.
A interpretação no entender de Ricardo Guastini pode significar tanto a
atividade como o resultado desta atividade. A interpretação de um texto atribui
sentido ou significado a um determinado fragmento da linguagem.77
Carlos Maximiliano, em sua obra recentemente reeditada sobre
Hermenêutica e Aplicação do Direito, diferencia os termos Hermenêutica78 -
entendida como teoria científica da arte de interpretar cujo objeto de estudo e a
sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e alcance
das expressões do Direito - e Interpretação, tida como concretização da primeira.
A interpretação, no entender de Margarida Camargo, deve ser vista como
ação mediadora que busca compreender o real significado do que foi escrito por
outra pessoa. O ato de concretização depende dessa prévia interpretação da
norma e do fato resultando em uma determinada decisão concreta.
O termo Hermenêutica é adotado por Ivo Dantas como ato de interpretar,
como um conjunto de princípio que devem servir como orientação e regulação
para a interpretação das normas jurídicas. Já o termo interpretar é definido como
o descobrimento do sentido real da norma e seu conteúdo ôntico. 79
Umberto Eco demonstra sua preocupação com a questão dos limites da
interpretação. Um texto em si já impõe restrições a seus intérpretes. Os limites
da interpretação são coincidentes de forma obrigatória com os direitos do texto.
Esse autor trata das noções de uso e interpretação.
77 GUASTINI, R., Estudios sobre la interpretación jurídica, 2003. 78 Margarida Camargo, cuja obra objetiva relacionar as noções de Hermenêutica e
Argumentação78, elabora um breve histórico sobre a significação do termo hermenêutica. Inicia no período da Grécia Antiga Histórico tendo como função levar a mensagem dos deuses aos homens. Significava traduzir algo inteligível para a linguagem dos homens. Em Roma a Hermenêutica desenvolveu-se com a própria prática jurídica. Os pretores e jurisconsultos diziam o direito no caso concreto e essas decisões foram, com o tempo, transformadas em máximas cada vez mais abstratas e obrigatórias. Os glosadores do século XI e XII, após a descoberta do Corpus Iuris Civilis, iniciam um esforço acerca de seu entendimento e compreensão. O desenvolvimento das cidades italianas acarreta a criação de uma corporação própria denominada de Universidade e sua criação teve como resultado a elaboração as glosas especificando palavra por palavra, tal interpretação foi feita pelos próprios professores. O método escolástico foi responsável pelo aparecimento da dogmática jurídica. A seguir, com o historicismo, a hermenêutica reconhece a necessidade da interpretação das circunstâncias históricas da criação do texto e também as circunstâncias que determinavam sua concretização posterior. Assim, a hermenêutica não se baseava mais unicamente em seu aspecto exegético. Porém é somente com o advento do Iluminismo que a interpretação e a hermenêutica deixam de significar a mesma coisa. A hermenêutica encontra seu status de ciência, na qual são englobadas as técnicas interpretativas.
79 DANTAS, I., Princípios constitucionais e interpretação constitucional, 1995. p. 83.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 47
“Defender a interpretação do texto contra o uso dele não significa que os textos não possam ser usados. Mas o livre uso dele nada tem a ver com sua interpretação, visto que a interpretação e uso sempre pressupõem uma referência ao texto-fonte, quando mais não seja, como pretexto.”
4.1.2. Por que interpretar?
A interpretação jurídica tem como finalidade precípua determinar o real
sentido de uma norma legal, qual a sua intenção, o alcance de sua previsão e
como deve ser aplicada a um interesse humano evidenciado através de uma
ação judicial.
O ato de interpretar um texto normativo não é tarefa simples. A
linguagem, além de seus defeitos próprios, admite conceituações de termos que
variam conforme a época de sua escrita e de sua leitura. Os textos legais ainda
carregam outra questão passível de problemas, qual seja os valores e interesses
expressos em uma norma podem não mais coincidir com os atuais80.
De forma sintética ressaltam-se os dizeres de Carlos Maximiliano: “a
palavra é um mau veículo do pensamento” 81 e “não perdura o acordo
estabelecido entre o texto expresso e as realidades objetivas” 82. Essas duas
afirmações sintetizam várias dificuldades enfrentadas pelos intérpretes legais.
A necessidade de interpretar uma norma jurídica admite dois
entendimentos principais. Há aqueles que entendem que qualquer norma jurídica
imprescinde da aclaração de seus termos, e há aqueles que entendem que
somente as normas que possuem certa vaguidade ou imprecisão devem ser
objeto de interpretação.
Ricardo Guastini destaca esses dois posicionamentos sobre interpretação
jurídica83.
80 A obra Hermenêutica e Argumentação propõe essa dificuldade no papel
interpretativo de concretização do direito, qual seja, o distanciamento histórico entre a origem do texto, carregado de intenções de seu autor bem como do espírito da sua época, e o momento atual em que a lei, ou texto, é interpretada e aplicada.80 Por ser a norma jurídica uma decorrência da ação humana, ela carrega em si uma significação, sentido e valor dependentes de um porquê histórico, da mesma forma que o intérprete é um ser historicamente orientado e que faz parte de uma tradição. O intérprete é aquele que busca aplicar a legislação conferindo-lhe a melhor adequação ao momento presente.
81 MAXIMILIANO, C., Hermenêutica e aplicação do direito, 2005, p. 29. 82 Ibid., p. 10. 83 Margarida Camargo também tece algumas considerações históricas a respeito
dos diversos entendimentos jurídicos sobre o papel da interpretação. Começa com a Escola da Exegese a qual propunha que o Poder Judiciário deveria ser restrito ao do apego excessivo às palavras da lei e que qualquer atividade fora deste âmbito representaria um arbítrio. Esta corrente de pensamento representa a pretensão de
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 48
O primeiro adota uma postura restrita de interpretação e atribui uma
possível escolha de significado somente a uma formulação normativa passível
de dúvida ou obscuridade, e, unicamente nesses casos deve ser aplicada a
interpretação. A adoção deste conceito importa na aceitação de que as palavras
têm em si um significado intrínseco ou próprio. Esta concepção origina a teoria
cognitiva da interpretação que considera que interpretar é verificar
empiricamente o significado objetivo dos textos normativos ou a intenção
subjetiva de seus autores. Os enunciados dos intérpretes são enunciados do
discurso descritivo, podem comprovar a veracidade ou não desses enunciados.
Tal teoria entende o sistema jurídico como necessariamente completo (sem
lacunas) e coerente (sem antinomias), não havendo espaço para a
discricionariedade judicial. Toda questão jurídica admite somente uma resposta
justa.
De forma contrária, a postura ampla de interpretação admite uma
atribuição de significado a qualquer formulação jurídica, independentemente de
haver dúvidas ou controvérsias. Tal posicionamento nos leva à conclusão que
todo texto requer uma interpretação, sendo esta um pressuposto necessário à
aplicação da norma a qualquer caso. A própria atribuição de significado a um
texto requer uma valoração, eleição ou decisão. Não há um significado próprio
encontrar na letra da lei a resposta para qualquer conflito apresentado concretamente. Tal posicionamento um tanto extremo recebeu prontamente a crítica de Gény para quem a ocorrência de lacunas não preenchidas pela lei era evidente. Portanto, a mera subsunção do fato à norma geral não é suficiente, devendo a atividade do intérprete se coadunar com as regras e princípios gerais norteadores da ordem jurídica positiva. Já Savigny vê o direito codificado como imposição racional do despotismo, pois não observa os costumes o que acarreta a não efetividade à pura e real vontade popular. A função legislativa ofereceria apenas um mero suporte ao costume para tolir-lhe as incertezas e as indeterminações. O formalismo jurídico alemão também é mencionado por Margarida. Segundo este entendimento a atividade científica seria responsável por estipular conceitos bem definidos cujo objetivo é garantir a segurança das relações jurídicas através da diminuição da ambigüidade e vaguidade dos termos legais. Esse alto grau de racionalidade originou o dogma da subsunção. O positivismo desvincula os fatos de qualquer valoração que lhe pudesse ser inferida, através do processo de generalização e abstração. Embora, esteja presente uma preocupação em relacionar os fatos sociais e o direito, de maneira que a legislação seja o mais fiel possível àqueles. Jhering formula sua crítica ao formalismo. Esse autor vê o direito como processo dinâmico levado pelo espírito prático que chega à realização. Por fim, Margarida Camargo cita Kelsen. Cuja busca pretende isolar o direito de indagações relativas aos criadores da lei ou suas intenções. O fundamento de validade do direito não está nesses fatos, mas na própria norma superior que o prescreve. O ordenamento jurídico positivo encerra-se nele mesmo, prevendo e controlando a sua própria existência como bastante em si mesmo. Na sua teoria não há espaço para a hermenêutica, ou a explicações de termos como compreensão, interpretação e concretização do direito. Basta-lhe a subsunção do fato a norma válida. Atualmente é predominante na doutrina hermenêutica a razão objetiva da lei em detrimento da razão subjetiva ou originária.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 49
das palavras e sim aquele atribuído pelo intérprete. Para este entendimento os
enunciados interpretativos não são verdadeiros ou falsos, fala-se antes em
preferência entre os termos. O ordenamento jurídico não é completo ou coerente
e diante de lacunas os juízes criam um direito novo, e por isso deve ser clara a
demarcação das funções judiciais e legislativas.
Ricardo Guastini apresenta ainda uma teoria intermediária a qual
sustenta que a interpretação pode assumir em certos casos a natureza de
atividade cognitiva e em outros uma atividade de decisão discricionária.
Distingue dois tipos de enunciados interpretativos. Quando o significado
atribuído recai no núcleo essencial resulta então, uma simples verificação do
significado preexistente aceito, mas se o significado atribuído recai sobre uma
área duvidosa, de penumbra, o resultado será uma decisão discricionária. Volta
às noções de casos claros, onde deve ocorrer a aplicação pura do texto e os
casos duvidosos, nos quais o intérprete deve adotar valorações em sua
escolha84.
4.1.3.Como interpretar?
A pergunta acima formulada envolve dois elementos: o intérprete e a
metodologia adotada. O aplicador da norma é quem dirá qual a interpretação
correta do ordenamento jurídico ao caso concreto e a metodologia adotada pelo
mesmo determinará como será o processo interpretativo e qual será o resultado
deste.
Segundo Carlos Maximiliano o intérprete deve possuir três qualidades:
probidade, ilustração e critério. Cabe ao intérprete não só examinar através das
palavras os pensamentos possíveis, mas, principalmente, entre os possíveis o
único apropriado, “o sentido conducente ao resultado mais razoável, que melhor
corresponda às necessidades da prática, e seja mais humano, benigno, suave.”
85
Em seu texto sobre as Teorias da Interpretação Manuel Ortega86 ensina
que a interpretação de normas pode dar lugar a resultados diferentes, cabendo
aos operadores do Direito, na aplicação ao caso concreto, eleger entre as
distintas alternativas para que sua atividade compreenda tanto atos de
conhecimento como de vontade. Segundo ele dois tipos de concepção podem
84 GUASTINI, R. Estudios sobre la interpretación jurídica, 2003, p. 16-17. 85 MAXIMILIANO, C., Hermenêutica e aplicação do direito, 2005, p. 135. 86 ORTEGA, M. Sobre la interpretación del derecho, 2003.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 50
ser destacados: as teorias prescritivas87 que se dedicam não só a explicar como
se justificam as decisões judiciais, mas também como estas deveriam ser
justificadas para que possam ser consideradas corretas; e as teorias
descritivas88 que partem da experiência jurídica para descobrir quais são os
diferentes elementos que determinam e influenciam no processo decisório.
Esta divisão é bastante atual já que diferencia as posturas formalista e
pragmática. A primeira lidaria com os métodos tradicionais de interpretação:
literal, o sistemático, o histórico e o teleológico. Este método tem como máxima a
subsunção, ou seja, uma norma (premissa maior) deve ser aplicada ao caso
concreto (premissa menor). A nova metodologia constitucional entende que a
87 As teorias prescritivas têm como pretensão fundamental assinalar como os
sujeitos que aplicam o direito devem interpretar as normas. Buscam condicionar e determinar a atividade do intérprete com a finalidade de influir em seu comportamento. Este comportamento para ser considerado correto deve descobrir certos elementos que se encontram na vontade do legislador, na vontade da lei ou na racionalidade argumentativa dos sujeitos que participam do processo. O intérprete recebe instruções que deve seguir para que sua conduta seja considerada legítima. Manuel Ortega destaca três teorias prescritivas: a direção subjetiva, a direção objetiva e a que concebe a interpretação como argumentação. A direção subjetiva entende que o intérprete busca essencialmente o elemento da vontade do legislador, os desejos e fins que efetivamente operaram na mente do legislador no momento de promulgação da norma. Esta teoria é criticada por seu alto grau de ficção. Diante da complexidade dos sistemas jurídicos atuais não é possível encontrar uma vontade efetiva e homogenia, à medida que, o órgão legislativo é composto pela pluralidade de membros e opiniões muitas das vezes contraditórias. Embora esta corrente de pensamento tenha enfraquecido não desapareceu. A direção objetiva considera que há uma vontade objetiva na própria norma, uma vez criada separa-se de seu autor. O êxito de tal concepção foi fruto da necessidade de adequação dos textos legislativos às novas relações oriundas de mudanças sociais, políticas e econômicas. Esta proporciona uma maior liberdade do intérprete, estabilidade do direito, haja vista que adaptado às novas circunstâncias sem a necessidade de modificação de seu texto e o progresso e evolução das instituições jurídicas. Porém, tal forma de interpretar um texto deve ser adotada de forma criteriosa, pois os limites entre a interpretação e a criação do Direito são tênues e devem ser melhor aclarados. Ortega alerta para a possibilidade de que tal interpretação pode modificar realmente a norma, fazer com que esta estabeleça justamente o contrário da intenção inicial, permitindo a interpretação contra legem. Finalmente, a teoria que concebe a interpretação como argumentação. Neste sentido, os termos legais sempre permitem uma margem decisória, pela necessidade de que seja interpretada pela ocorrência de lacunas, pela seleção e qualificação dos fatos que chegam a juízo. O ponto contrário de tal teoria consiste na alta liberdade conferida ao intérprete que diminui consideravelmente a objetividade e a segurança, podendo conduzir à arbitrariedade. Para corrigir tais distorções Manuel Ortega propõe certos limites ou requisitos cujo cumprimento garante a correção e racionalidade da decisão. Dentre eles a necessidade de justificação, de fundamentação e de comunicação intersubjetiva.
88 As teorias descritivas acreditam que o exame da experiência jurídica revela a presença de elementos irracionais que não podem ser eliminados através do processo de justificação porque a motivação se apresenta como um instrumento insuficiente, pois, não permite controlar a atuação judicial. Os representantes do realismo destacam a importância da personalidade do juiz em seu processo decisório. As decisões não são meras reproduções ou aplicações de regras previamente estabelecidas. Manuel Ortega destaca que estas teorias não se restringem a propor novas metodologias jurídicas, mas
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 51
complexidade dos conflitos atuais não encontra resposta satisfatória na
metodologia tradicional. Os casos concretos, principalmente os que envolvem
normas constitucionais, já não podem mais ser encaixados de forma completa
em uma única norma, havendo casos onde os valores envolvidos colidem e a
mera subsunção torna-se impossível, pois várias premissas maiores podem ser
aplicadas. Por tal razão, os doutrinadores têm voltado a atenção para os casos
em si, buscando novas técnicas interpretativas de solução. 89
4.2. Interpretação Especificamente Constitucional
A Constituição é o texto normativo que expressa os valores jurídicos
essenciais para a sociedade por ela regulada. As sociedades contemporâneas
têm como característica sua pluralidade, e tal é evidenciado também através dos
textos constitucionais, junto com valores sociais e protetivos os valores liberais
permeiam as Cartas Políticas. Outro fator diferencial é a ocorrência de normas
abertas e principiológicas90, o que torna a interpretação da Constituição uma
tarefa mais árdua e que necessita de uma metodologia própria. 91
também têm voltado sua atenção à finalidade política, e por tal razão, resultam mais úteis.
89 Ressalta Marcelo Neves que há uma tendência na Hermenêutica contemporânea, principalmente no Estado Democrático de Direito, de enfatizar a dimensão pragmática do processo interpretativo. Tal processo “caminha de uma primazia da segurança formal, passa pelo predomínio da delimitação ou descoberta do sentido material e chega ao problema da incerteza condicionada pelo pluralismo e o dissenso estrutural da esfera pública.” P.357. No entender de Marcelo Neves a interpretação-aplicação jurídica no Estado Democrático de Direito deve considerar a tensão constante entre a validação interna do próprio ordenamento e a validação externa que advém da esfera pública. Somente através de uma mínima congruência entre essas expectativas será possível à manutenção e reconstrução do sentido do texto constitucional.
90 Cláudio Pereira De Souza Neto diz que: “a grande presença dos princípios nas constituições contemporâneas tem sido apresentada como uma das principais razões para se caracterizar a metodologia constitucional como específica.” SOUZA NETO, C. Teoria constitucional e democracia deliberativa. Um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática, 2006, p. 209.
91 García Amado em seu texto sobre a interpretação constitucional afirma que a interpretação constitucional será dependente da concepção que se tem sobre o valor normativo do próprio texto constitucional. E destaca três correntes sobre a interpretação constitucional. A primeira denominada pelo autor de lingüística, adota a Constituição como um conjunto de enunciados lingüísticos compilados em um texto, o qual se tem por jurídico e de maior hierarquia dentro dos textos jurídicos. Não se questiona sobre a importância ou o papel constitucional. A interpretação ocorre como em qualquer texto jurídico, através do entendimento dos vocábulos utilizados. A concepção voluntarista vê a Constituição como expressão de uma vontade suprema, individual ou coletiva, cujos desígnios concretos e a capacidade de expressão são limites à prática jurídica no ordenamento. Interpretar seria então averiguar os conteúdos de vontade deste texto. Já a concepção material entende o texto constitucional como sendo uma ordem objetiva de valores que constituem uma prefiguração ideal e permanente dos mundos juridicamente
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 52
O Direito Constitucional, por envolver valores jurídico-sociais92 de uma
determinada organização política, não pode utilizar as mesmas técnicas
interpretativas do Direito Privado. A amplitude dos princípios positivados na
Carta Magna não permite a simples subsunção da norma ao caso proposto. E
qualquer conflito pertinente ao âmbito constitucional parte do entendimento de
que “devem as instituições ser entendidas e postas em função de modo que
correspondam às necessidades políticas, às tendências gerais da nacionalidade,
à coordenação dos anelos elevados e justas aspirações do povo” 93.
Neste sentido de uma nova metodologia constitucional o trabalho de
Friedrich Müller – Métodos de trabalho no Direito Constitucional. A sua metódica
abrange os termos hermenêutica, metodologia e interpretação94. O referido
jurista parte das decisões do Tribunal Constitucional Federal da República
Federal da Alemanha para entender a concretização das normas constitucionais.
O autor questiona a teoria tradicional da interpretação segundo a qual um caso
jurídico prático deve ser subsumido ao preceito normativo. O referido tribunal,
atualmente, considera o texto da norma apenas uma primeira instância
interpretativa e limite das alternativas possíveis, evitando apenas as
interpretações contra legem. As decisões do tribunal foram extraídas da
realidade e não segundo uma valoração tradicional restrita às normas.
Porém, Friedrich Müller não pretende excluir das técnicas interpretativas
a concepção tradicional, apenas demonstra que essa não é completa ou única.
Propõe um enfoque múltiplo da metódica de concretização da constituição,
evoluindo de uma lógica puramente formal a uma concretização direcionado ao
caso em voga. 95
possíveis. Portanto, o intérprete deve buscar conhecer os valores adotados pela ordem constitucional.
92 Noção importante sobre valores constitucionais é enunciada por José Moreso quando inicia seu texto sobre primazia constitucional relembrando a idéia de precompromisso expressa no ideal de democracia constitucional. O precompromisso consiste no fato de ater-se a si mesmo em certas situações e excluir determinadas decisões do futuro, para preservar uma decisão do passado que se valora positivamente. MORESO, J., La indeterminación del derecho y la interpretación de la constitución, 1997, p. 166.
93 MAXIMILIANO, C., Hermenêutica e aplicação do direito, 2005, p. 249. 94 Hermenêutica se refere às condições de princípio da concretização jurídica
normativamente vinculada do direito. Metodologia significa a totalidade das regras técnicas da interpretação no trato com normas jurídicas. E interpretação diz respeito às possibilidades do tratamento jurídico-filosófico do texto, i. é, da interpretação de textos de normas. MÜLLER, F. Métodos de trabalho do direito constitucional, 2005, p. 2.
95 Contudo, este novo método, admite ele, não é imune a críticas. A tendência atual de transformar a metódica em sistemas de valores na concretização jurídica pode acarretar a casuística e a transformação do Estado de Direito em Estado do Judiciário. A crescente discricionariedade dos Magistrados tem espaço com a carência de uma
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 53
A doutrina constitucional no Brasil tem buscado solução para o problema
da efetivação de um texto normativo que prevê uma série de valores96, vê-se a
recorrência de dois temas – a efetivação da norma e os princípios
constitucionais.
No tocante à concretização dos princípios Ivo Dantas considera que
qualquer interpretação, principalmente a da própria Constituição, há de ser feita
levando-se em conta o sentido exposto nos princípios fundamentais
consagrados na Lei Maior. A eficácia da Constituição depende não só de sua
fidelidade aos valores sociais e políticos consagrados pela sociedade, mas
também – e principalmente – de uma correta interpretação daquilo que o texto
prescreve97 e apenas uma interpretação que analise a Constituição como um
sistema de princípios e normas obterá o verdadeiro sentido do texto.
Ainda quanto ao tema Humberto Ávila destaca quatro obstáculos à
efetivação dos direitos fundamentais constitucionais.
O primeiro é denominado conseqüencialismo que impulsiona o magistrado
a utilizar o raciocínio jurídico baseado nas conseqüências de sua decisão e não
nas normas ou princípios vigentes.
O segundo obstáculo é o idealismo no qual a interpretação jurídica parte
de modelos ideais, no mais das vezes antigos ou estrangeiros, relegando a
segundo plano o modelo jurídico positivo nacional.
O terceiro é o construtivismo, onde o intérprete parte da premissa correta
de que a norma não é o texto normativo, e sim o resultado da interpretação de
um texto, para chegar à conclusão de que pode construir qualquer alternativa
interpretativa, desconsiderando, inclusive, os conteúdos mínimos dos
dispositivos constitucionais e legais. O efeito disso é claro: o conteúdo semântico
metodologia como a de raiz positivista. Com o intuito de suprir tal falta Friedrich Müller propõe alguns parâmetros que importarão em uma metódica do direito constitucional. Segundo ele os juristas devem transcender a compreensão e a interpretação, chegando à uma aplicação das normas. Para tanto, o mito de que existe uma única solução correta para cada caso proposto dentro da legislação deve ser abolido. O ato de concretizar não se limita às ações de interpretar, aplicar ou subsumir, diametralmente significa produzir uma solução ao conflito social posto ao Judiciário utilizando como parâmetro e limite não só a norma positivada, mas um quadro da democracia e do Estado de Direito.
96 Luís Roberto Barroso escreve que “O novo direito constitucional brasileiro, cujo desenvolvimento coincide com o processo de redemocratização e reconstitucionalização do país, foi fruto de duas mudanças de paradigma: a) a busca da efetividade das normas constitucionais, fundada na premissa da força normativa da Constituição; b) o desenvolvimento de uma dogmática da interpretação constitucional, baseada em novos métodos hermenêuticos e na sistematização de princípios específicos de interpretação constitucional.”
97 DANTAS, I., Princípios constitucionais e interpretação constitucional, 1995, p. 79.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 54
das regras cede em favor de qualquer conteúdo. E por fim, o quarto obstáculo à
efetivação dos direitos fundamentais é o principialismo que acarreta a
manipulação de princípios sem que o aplicador considere devidamente as regras
imediatamente aplicáveis. 98
A positivação cada vez mais constante de valores através de princípios
normativos acarreta uma mudança na estrutura dos ordenamentos jurídicos
necessitando de uma adequação de toda ciência jurídica. Neste sentido a teoria
dos princípios.
4.3. Teoria dos princípios
A teoria dos princípios tem o intuito de responder sobre a qualificação destas
normas jurídicas, sobre seu modo correto de aplicação a fim de obter a melhor
resposta jurídica possível a uma determinada situação. A teoria dos princípios
tem como preocupação analisar a diferenciação entre as regras e os princípios.
Tal distinção será importante a este trabalho haja vista que o estudo de caso
trata de colisões entre regra e princípio e entre dois princípios constitucionais.
Um panorama sobre a referida diferenciação é fornecido por Humberto
Ávila99. O jurista inicia com as lições de Josef Esser o qual utiliza como critério
distintivo a qualidade entre regras e princípios, estes são normas que
estabelecem fundamentos para encontrar um determinado mandamento. Karl
Larenz considera que os princípios não possuem aplicação imediata como as
regras e, por tal razão, somente indicariam a direção para a obtenção de uma
regra sobre a hipótese. Canaris é citado a seguir e afasta os princípios das
regras por duas características: os princípios têm conteúdo axiológico e sua
aplicação somente ocorre através de um processo dialético de complementação
e limitação. No final de sua consideração Humberto Ávila ressalta a importância
de Ronald Dworkin e Robert Alexy, juristas que serão estudados com o objetivo
de destacar os aspectos de ponderação e argumentação no processo de
interpretação e aplicação das normas jurídicas.
A doutrina nacional tem procurado formular uma teoria dos princípios,
estabelecendo conceitos e critérios de diferenciação diversos, no intuito de
98 ÁVILA, H. Direitos fundamentais dos contribuintes e os obstáculos à sua
efetivação. In PIRES, A., TÔRRES, H., 2006, p. 345-361.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 55
adequar a dogmática jurídica ao texto constitucional vigente, repleto de
princípios. Com mais de 15 anos de vigência o texto constitucional necessita da
devida aplicação de todas as suas normas, regras e princípios, nos conflitos
propostos judicialmente, e por isso, a teoria dos princípios se desenvolveu
também na pragmática jurídica. Os direitos fundamentais têm sido enquadrados
nesta categoria de princípios porque são normas constitucionais de caráter
finalístico e definidoras de direitos e garantias. 100
A definição de princípio é construída primeiramente a partir da concepção
que se faz sobre seu caráter e força normativa. Há estudiosos que consideram
os princípios apenas como diretrizes e não como normas101. Porém, com a
constitucionalização positivada os princípios cada vez mais freqüentes nos
ordenamentos jurídicos, a doutrina majoritária tem entendido os princípios como
integrantes do sistema jurídico conjuntamente com as regras. 102 A seguir, a
conceituação de princípios que atenta para a diferenciação entre esses e as
regras, principalmente no tocante à sua finalidade e âmbito de aplicação.
Humberto Ávila propõe três critérios de diferenciação entre regras e
princípios: 1)Quanto ao modo de prescreverem o comportamento – as regras
são imediatamente descritivas e os princípios imediatamente finalísticos. 2)
Quanto à justificação que exigem – as regras pretender correlacionar a
construção conceitual e da norma e a finalidade que lhe fundamenta. Já os
princípios correlacionam o estado das coisas posto como fim e os efeitos da
conduta a ser tomada. 3)Quanto ao modo como contribuem para a decisão – as
regras são preliminarmente decisivas e abarcantes, pretendem gerar uma
solução específica ao caso concreto, enquanto que os princípios são normas
preliminarmente complementares e parciais, tem como pretensão contribuir para
a tomada de decisão. 103
Duas são as orientações propostas por Ronald Dworkin quanto ao papel dos
princípios no tocante às obrigações jurídicas. Inicialmente, pode-se tratar os
princípios jurídicos da mesma maneira que são tratadas as regras jurídicas e
99 ÁVILA, H., Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios
jurídicos, 2003, p. 26. 100 De acordo com o proposto, TAVARES, A.. Elementos para uma teoria geral dos
princípios na perspectiva constitucional. In LEITE, G., 2003, p. 44; 101 Neste sentido José Afonso da Silva que enquadra os princípios na categoria de
normas eficácia limitada, dependendo de atividade legislativa para sua efetividade. SILVA, J. Aplicabilidade das normas constitucionais, 1999, p. 163.
102 Fazem parte desta doutrina Ronald Dworkin, Robert Alexy, Humberto Ávila, entre outros.
103 ÁVILA, H., Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 2003, p. 119-120.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 56
dizer que alguns princípios possuem obrigatoriedade de lei e devem ser levados
em conta por juízes e juristas que tomam decisões sobre obrigações jurídicas.
Ou então, pode-se negar que tais princípios possam ser obrigatórios no mesmo
sentido que algumas regras o são. Assim, os juízes vão além das regras a que
estão obrigados a aplicar e lançam mão de princípios extralegais que eles têm
liberdade de aplicar, se assim o desejar, e somente em casos não englobados
pelas regras, de forma excepcional.
Tais abordagens geram diferentes conseqüências, já que a primeira
alternativa trata os princípios como obrigatórios para os juízes, de tal modo que
eles incorrem em erro ao não aplicá-los quando pertinente. A segunda
alternativa trata os princípios como resumo daquilo que os juízes na sua maioria
adotam como princípio de ação, quando forçados a ir além dos padrões aos
quais estão vinculados. Ou seja, as alternativas divergem quanto ao fato de
serem os princípios normas jurídicas ou instrumentos externos ao ordenamento.
Para Ronald Dworkin o diferencial entre princípios e regras é de natureza
lógica104. Os princípios serão aplicados pelas autoridades públicas, inclusive
pelos julgadores, quando forem considerados relevantes, apontando para uma
ou outra direção. Ademais, os princípios possuem uma dimensão de peso ou
importância, e quando colidem o intérprete que vai resolver o conflito deve levar
em conta a força relativa de cada princípio envolvido. Neste ponto a ponderação
e o impacto da aplicação de um princípio será determinante para sua utilização.
Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e a escolha de um
princípio ou uma política particular será diversas vezes objeto de controvérsia.
As regras não possuem essa dimensão valorativa, são funcionalmente
importantes ou desimportantes, podendo haver certa hierarquia entre elas. Se
duas regras estão em conflito, uma suplanta a outra em virtude de sua
importância maior, sendo assim, uma delas não pode ser válida. As regras são
aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada, dados os fatos que uma regra estipula, ou
a regra será válida, e neste caso, a resposta por esta fornecida deve ser aceita,
ou não, e neste caso ela nada contribui para a decisão.
Ronald Dworkin entende que os princípios são elementos do sistema
jurídico e, portanto, são normas que devem ser consideradas pelo julgador
quando proferir uma decisão jurídica. Entretanto, ressalta que a utilização dos
104 Ronald Dworkin trabalha esta questão, principalmente, quando expõe os
modelos de regras I e II em seu livro Levando os direitos a sério, nestes capítulos o autor rebate a posição tradicional positivista – exemplificado nas concepções de Hart – e propõe a sua visão sobre o modelo a ser adotado.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 57
princípios não pode ocorrer de forma arbitrária, devendo estes ser aplicados de
preferência em casos onde não há no ordenamento uma norma clara e
completamente aplicável. 105 Ele adota a postura pós-positivista segundo a qual
as pretensões normativas podem e devem ser fundamentadas racionalmente.
Essas hipóteses são consideradas Hard Cases ou casos difíceis como são
conhecidas no Brasil.
4.4.A interpretação constitucional nos casos difíceis.
A interpretação, como visto anteriormente, é útil na concretização de
qualquer texto normativo. Entretanto, existem situações que por sua
complexidade exigem uma hermenêutica mais detalhada e difícil. Neste sentido,
surge a doutrina americana denominada de Hard Cases, os quais não
encontram uma solução tranqüila quando inseridos nos ditames legais, não
sendo possível a simples subsunção de uma regra. No prefácio de Levando os
Direitos à Sério Calsamiglia106 esclarece que um caso poderá ser considerado
difícil se existir uma incerteza quanto à aplicação da norma jurídica ao caso
concreto.
A ocorrência dos chamados casos difíceis torna a Ciência Jurídica passível
de questionamentos e incertezas. O sistema jurídico parece incompleto e falho, a
técnica positivista de aplicação do caso concreto à norma elaborada através da
subsunção não encontra mais respaldo na complexidade da sociedade.
No tocante a este trabalho é importante mencionarmos alguns
posicionamentos sobre o assunto, para tanto será utilizada a doutrina Ronald
Dworkin e posteriormente a crítica feita por Manuel Atienza. Ambos lidam com
a preocupação a respeito do excessivo argumento valorativo nas decisões
105 Cláudio Pereira comentando Dworkin ressalta que “o autor destaca
especialmente que, se o juiz possui o poder de decidir por sua própria vontade as questões que lhe são apresentadas, as noções de autonomia pública, segurança jurídica e separação de poderes ficam prejudicadas. De fato, o juiz que está legislando, se apropriando de uma função do legislador – o que cria problemas sérios de legitimação. (...) Quando o juiz legisla no caso concreto está criando normas retroativas. Ademais, a vontade dos jurisdicionados não terá sido levada em conta no processo de produção normativa. Por essas razões, impõe-se ao pensamento jurídico buscar soluções para a discricionariedade judicial.” p. 223-224.
106 Este prefácio ao livro Levando os Direitos a Sério somente é encontrado na versão espanhola do texto sob a nomenclatura ”Ensayo sobre Dworkin”.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 58
judiciais, tendendo essas ao subjetivismo demasiado. Essa parte do capítulo visa
demonstrar que o estudo de caso não deve ser entendido de forma simplista, no
sentido de mera aplicação de normas vigentes. As problemáticas oriundas de
conflitos bioéticos, como o que será proposto, são exemplos dos chamados
casos difíceis, pois envolvem valores relevantes e muitas das vezes
considerados inconciliáveis. Entretanto tais demandas exigem um
posicionamento jurídico, cabendo aos aplicadores encontrar uma forma racional
de ponderar os interesses envolvidos resultando em uma decisão satisfatória.
Impensável falar na Teoria dos Casos Difíceis sem mencionar os
ensinamentos de Ronald Dworkin. Este jurista tem como preocupação inicial
rebater um dos grandes pensadores do positivismo jurídico – Hart. A relação
entre os dois tem pontos semelhantes e pontos contraditórios.
A semelhança, no âmbito deste trabalho, que desejamos levantar é quanto à
concordância sobre a existência de casos difíceis.
A divergência com Hart envolve dois prismas. Primeiro, Ronald Dworkin
critica o normativismo que considera o direito como sendo um sistema composto
exclusivamente por regras por considerar que tal pensamento acarretará
necessariamente na ocorrência de lacunas no ordenamento vigente à medida
que as normas não acompanham o ritmo das necessidades e mudanças sociais.
E, em segundo, questiona a legitimação do Judiciário quando decide por razões
próprias, ocorrendo na verdade a criação de uma nova norma. No seu entender
há que se buscar critérios limitadores e paradigmáticos para as decisões
judiciais, papel este que deve ser realizado pelos princípios jurídicos.
A teoria de Ronald Dworkin sobre a existência e solução dos casos
considerados difíceis perpassa alguns momentos importantes. Primeiro lidará
com a noção de princípio, considerando estes como elementos do sistema
jurídico. Segundo tratará da questão da integridade como método e forma de
entender este sistema. E por fim, entrará na questão da discricionariedade do
Poder Judiciário.
A teoria dos princípios, já anteriormente estudada, é de fundamental
importância na resolução dos casos difíceis, já que não obtendo uma regra
específica no ordenamento jurídico o julgador deverá buscar nos princípios,
sendo estes entendidos também como normas jurídicas, a solução para o caso
concreto.
A segunda teoria de Ronald Dworkin trata da integridade. O autor a coloca
como terceiro ideal juntamente com a justiça e a eqüidade e destaca dois
princípios de integridade. Um chamado de legislativo que pede aos legisladores
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 59
que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente e o outro denominado
de jurisdicional que demanda que a lei seja vista como coerente. No âmbito
deste trabalho será abordado apenas o segundo princípio, parte fundamental de
sua teoria para o entendimento da discricionariedade do Judiciário e a solução
dos casos difíceis.
O direito como integridade rejeita a questão de que os juízes descobrem ou
inventam o direito, sugere que só se entende o raciocínio jurídico tendo em vista
que os juízes fazem as duas coisas e nenhuma delas. E afirma que não é
possível ao juiz obter uma resposta exclusivamente certa nos casos difíceis do
direito.
A contribuição dos juízes é mais direta, e a distinção entre autor e intérprete
é uma questão de aspectos diferentes do mesmo processo. Portanto, há como
encontrar uma comparação entre literatura e direito, denominada pelo autor de
romance em cadeia. Cada romancista escreve seu próprio capítulo de modo a
criar da melhor maneira possível o romance, como se a obra fosse de um único
autor. Duas dimensões devem ser observadas nesta elaboração: adequação e
interpretação que tornará a obra mais significativa ou melhor. Neste sentido, o
intérprete deve analisar, primeiramente, qual interpretação se adapta melhor a
um texto e, após, qual torna o romance substancialmente melhor. Um romancista
em cadeia tem muitas decisões difíceis a tomar e pode-se esperar que diversos
romancistas em cadeia tomem decisões diferentes, porém nenhum deles pode
se afastar do romance.
O juiz Hércules – modelo contrafático de Ronald Dworkin -, criterioso e
metódico, deve julgar o caso seguindo algumas etapas. Começa por selecionar
diversas hipóteses que correspondem à melhor interpretação dos casos
precedentes. Elabora uma interpretação com base em princípios competitivos,
mas contraditórios, como uma lista parcial de interpretações. Verifica cada
hipótese dessa breve lista perguntando-se se uma pessoa poderia ter dado os
veredictos dos casos precedentes se estivesse aplicando esta interpretação.
Compara as razões com suas sólidas convicções políticas sobre o valor relativo
de suas interpretações. E, por fim, descarta as interpretações impossíveis,
chegando à melhor interpretação.
Qualquer juiz desenvolverá ao longo de sua formação uma concepção
funcional individualizada do direito na qual ele se baseará para decidir. Mas os
fatos brutos da história jurídica limitarão o papel que podem desempenhar, em
suas decisões, as convicções pessoais de um juiz em questões de justiça. Fato
este que nos leva à análise da discricionariedade do juiz.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 60
A postura positivista considera que os juízes quando utilizam os princípios
em suas decisões o fazem como algo fora do direito, valendo-se de seu poder
discricionário de aplicá-los ou não107. Afirmam que um juiz não tem poder
discricionário quando uma regra clara e estabelecida está disponível. Apenas de
forma excepcional devem formar seu próprio juízo ao aplicar padrões jurídicos.
Hart, no entanto, afirma que quando o poder discricionário do juiz está em jogo,
não podemos mais dizer que ele está vinculado a padrões, mas devemos, em
vez disso, falar sobre os padrões que ele tipicamente emprega. O poder
discricionário é, então, o agir de acordo com aquilo que os tribunais têm por
princípios. Mas para esta corrente de pensamento princípios e políticas não são
regras válidas de uma lei acima do direito, porque certamente não são regras.
São padrões extrajurídicos que cada juiz seleciona de acordo com suas próprias
luzes, no exercício de seu poder discricionário.
Para Ronald Dworkin, o conceito de poder discricionário é relativo,
admitindo-o somente em casos onde há uma série de alternativas previamente
estabelecidas. O poder discricionário pode ser entendido como um espaço vazio,
circundado por diversas restrições. O juiz quando exerce sua função jurisdicional
não se propõe simplesmente a declarar, como dado frio, o que foi primeiramente
estabelecido pelo Legislativo. Em seu entender o julgador realmente possui tal
dever como justificativa para sua própria decisão. Se for assim, a regra social
não pode ser a fonte do dever, como Hart acredita que seja.
Na maioria dos casos difíceis, os juízes assumem uma postura diferente da
descrita por Ronald Dworkin (de que o juiz deve decidir com base na
argumentação que lhe parecer a mais forte), enquadrando sua divergência como
uma divergência acerca dos padrões que eles estão proibidos ou obrigados a
levar em conta, ou acerca do peso relativo que estão obrigados a lhes atribuir.
Na exposição sobre os casos difíceis – aqueles onde aparentemente não há
uma ou somente uma solução para a lide ou conflito - Ronald Dworkin percorre
três etapas principais108.
Inicialmente, resume a postura da Teoria do Positivismo Jurídico para tais
situações ressaltando que quando uma ação judicial específica não pode ser
submetida a uma regra de direito clara, estabelecida de antemão por alguma
107 Para Ronald Dworkin somente faz sentido falar em Poder Discricionário quando
alguém é encarregado de tomar decisões de acordo com padrões estabelecidos por uma determinada autoridade. DWORKIN, R., Levando os direitos a sério, 2002, p. 50.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 61
instituição, o juiz tem o poder discricionário para decidir o caso de uma maneira
ou de outra, parecendo supor que uma ou outra das partes tinha o direito
preexistente de ganhar a causa. Porém, para o autor tal idéia não passa de uma
ficção porque, na verdade, o juiz legisla novos direitos jurídicos, e em seguida os
aplica retroativamente ao caso em questão.
A seguir passa à sua crítica, considerando essa teoria da decisão judicial
totalmente inadequada, pois, mesmo quando nenhuma regra regula o caso, uma
das partes pode, ainda assim, ter o direito de ganhar a causa. Não há um
procedimento mecânico para demonstrar quais são os direitos das partes nos
casos difíceis.
Por fim, Ronald Dworkin propõe uma alternativa à solução dos mesmos. Diz
que o ideal seria o juiz (Hércules), mesmo nos casos difíceis, descobrir quais são
os direitos das partes, e não inventar novos direitos retroativamente. Isso é o
ideal, mas por diversas razões não pode ser plenamente concretizado na prática.
As leis e as regras do direito costumeiro (common law) são quase sempre vagas
e devem ser interpretadas antes de se poder aplicá-las aos novos casos. Além
disso, alguns desses casos colocam problemas tão novos que não podem ser
decididos nem mesmo se ampliadas ou reinterpretadas as regras existentes.
Diante desta necessidade prática admite Ronald Dworkin que os juízes às
vezes são levados a criar um novo direito, seja de forma dissimulada ou
explícita. Porém ele coloca três questões que devem ser analisadas.
Primeiro, ao criar um novo direito os juízes devem agir como se fossem
delegados do poder legislativo, promulgando as leis que, em sua opinião, os
legisladores promulgariam caso se vissem diante do problema. Ocorre aqui um
problema de legitimidade haja vista que as leis de uma comunidade devem ser
criadas por pessoas eleitas pelo povo. Como os juízes não são eleitos, o fato de
eles criarem leis parece estar comprometido.
Além disso, se um juiz criar uma nova lei e aplicá-la retroativamente ao caso
diante de si, a parte perdedora será punida, não por ter violado algum dever que
tivesse, mas sim por ter violado um novo dever, criado pelo juiz após o fato.
Esses dois argumentos se combinam para sustentar o ideal tradicional de
que a decisão judicial deve ser o menos original possível.
Outro fator impeditivo de criação de normas pelo julgador é o fato de que as
novas decisões refletem tanto a moralidade política do próprio juiz, como
108 Utilizaremos como referência para esta parte do trabalho o capítulo 4. Casos
Difíceis do livro Levando os Direitos a sério.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 62
também a moralidade que se acha inscrita nas tradições do direito costumeiro, e
tais moralidades podem ser diferentes.
Ronald Dworkin encerra dizendo que se deve confiar nas técnicas de
decisão judicial que, a nosso juízo, possam reduzir o número de erros, com base
em algum juízo a respeito das capacidades relativas dos homens e das mulheres
que podem desempenhar diferentes papéis. E fornece uma orientação aos
juízes: eles podem muito bem errar nos juízos políticos que emitem, e devem,
portanto, decidir os casos difíceis com humildade109.
As considerações de Ronald Dworkin sobre os casos difíceis levam à sua
conclusão de que mesmo nesses, utilizando os princípios como parâmetro,
pode-se obter uma única resposta correta para a lide proposta. Porém,
reconhece que na prática é difícil, por vezes impossível, encontrar tal resposta,
mas mesmo assim isto não invalida sua afirmativa de que ela existe, embora não
encontrada.
Manuel Atienza110, fazendo uma crítica ao pensamento de Ronald Dworkin,
diz que na verdade para este a distinção entre casos fáceis ou difíceis é
relativizada, pois não é necessário um método para cada espécie de caso e, em
última análise, mesmo os casos difíceis somente admitem uma resposta correta,
o que os transformaria para o juiz Hércules em um caso fácil.
Para o referido autor, a distinção de Ronald Dworkin entre regras e princípios
não pode ser aplicada aos princípios bioéticos porque nenhum deles pode ser
interpretado como simples diretrizes. Ademais Manuel Atienza discorda que os
princípios morais podem ser hierarquizados da maneira como propõe Ronald
Dworkin, embora ressalte que alguma espécie de ordenação deva haver no
processo de aplicação.
Manuel Atienza apresenta uma teoria que serviria como método jurídico para
a resolução dos casos difíceis, especialmente os relacionados à bioética. Tal
método importa na observância de dois passos: a construção de uma taxonomia
que permita enquadrar cada caso dentro de uma determinada categoria, o que
constitui o primeiro esforço argumentativo do tribunal; e a elaboração de uma
série de regras de prioridades que não supõe uma hierarquia estanque entre os
princípios.
O próprio jurista reconhece que seu método ainda leva a um conjunto de
soluções abertas e incompletas, mas isso não significa que acarreta decisões
109 DWORKIN, R., Levando os direitos a sério, 2002, p. 203. 110 ATIENZA, M. Los limites de la interpretación constitucional. De nuevo sobre los
casos trágicos, 1997, p. 11.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 63
arbitrárias ou subjetivas, devendo sempre obedecer a critérios de racionalidade e
coerência. Ele utiliza os ensinamentos os quatro princípios kantianos: princípio
da autonomia, princípio da dignidade, princípio da universalidade ou igualdade e
o princípio da informação. Porém, acredita que somente a aplicação destes
princípios não será suficiente para solucionar casos difíceis e bioéticos e elenca
outros. Como: princípio do paternalismo justificado (que considera lícito a
interferência na vida de outro em determinados casos), princípio do utilitarismo
restringido (admite uma ação que não cause benefícios a uma pessoa se produz
um benefício apreciado para outros, se há o consentimento do afetado e se não
é uma medida degradante), princípio do trato diferenciado (há hipóteses lícitas
de tratamento desigual entre as pessoas) e princípio de segredo (permite ocultar
informações sobre a saúde de um indivíduo em determinadas exceções).
A problemática deste modelo é admitida pelo próprio autor quando afirma
que esta série de princípios ajuda na solução de algumas situações, mas não
permite resolver a complexidade de certos casos difíceis. Por tal razão os
princípios precisam ser concretizados na forma de normas. E é nesta
necessidade que reside a dificuldade dos problemas bioéticos. O desafio é
construir a partir dos princípios um conjunto de pautas específicas que resultem
coerentes e permitam resolver os problemas práticos que não apresentam um
consenso. Por fim, Manuel Atienza afirma que a liberdade de consciência e de
livre escolha de decisões pressupõe uma responsabilidade e uma reflexão sobre
qualquer tema objeto de debate. E somente através desse exercício racional
será atingido o ideal de que as leis correspondam às escolhas de cidadãos
conscientes.
A solução, segundo Manuel Atienza, poderia ter origem em duas vias: a
legislativa e a judicial. A legislativa tem como ponto positivo sua legitimação
decorrente de sua composição democrática, mas acarreta o risco de não suscitar
um consenso entre os legisladores e não alcançarem o nível de concretização,
ou serem por demais específicas não comportando a diversidades de situações
fáticas. A segunda via, e mais adequada para os dilemas bioéticos segundo ele
é a judicial. Seja por meio de um julgador comum ou através da criação de um
comitê de âmbito nacional que funcionaria como segunda instância para os
casos bioéticos.
No âmbito deste estudo, a pretensão restringir-se-á à via judicial. A
discussão não adentrará no papel do Poder Legislativo ou na questão da
legitimidade do Tribunal Constitucional. Apenas serão analisadas as hipóteses
interpretativas que reclamam um posicionamento judicial específico. Neste
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 64
sentido a contribuição de Ronald Dworkin será preciosa, vez que, sua teoria,
através da ponderação dos princípios, fornece um instrumental prático para a
concretização do Direito em casos de conflitos entre valores morais importantes.
4.5. Aspectos da Argumentação Jurídica de Robert Alexy
Robert Alexy segue o pensamento de Ronald Dworkin sobre a existência
de normas e princípios dentro do sistema jurídico, porém acrescenta o elemento
procedimento. Pretende ele elaborar uma teoria analítica e descritiva da
argumentação jurídica. Difere de Ronald Dworkin, pois entende que as regras
procedimentais não garantem a obtenção de uma única resposta correta, e sim
que os vários participantes do discurso jurídico cheguem a soluções racionais,
embora às vezes possam ser incompatíveis entre si.
O fenômeno denominado de Colisão de Direitos Fundamentais por
Robert Alexy111 ocorre quando o exercício de um direito fundamental gera
conseqüências negativas sobre direitos fundamentais de outros cidadãos,
acarretando assim, um conflito de direitos.
Os direitos fundamentais ou constitucionais são direitos abstratos, e
positivados na maioria dos textos constitucionais por meio de princípios.
Considera ele que os princípios são mandados de otimização que se
caracterizam por sua aplicação em graus distintos de acordo com o caso
concreto, buscando sempre sua realização na maior medida possível, fática e
juridicamente.
A listagem dos direitos fundamentais pelo ordenamento constitucional é
apenas a primeira fase de sua concretização. Após deve haver a determinação
do peso relativo a cada direito considerado prima facie, ou seja, o
estabelecimento do papel dos direitos dentro da razão jurídica. Segundo Robert
Alexy os princípios devem ser promovidos pela prática jurídica e
institucionalizados pela decisão política, sendo a força obrigatória dos direitos
fundamentais controlada pela Corte Constitucional.
Para Robert Alexy a solução da colisão destes direitos pode ser entendida
segundo dois entendimentos sobre o sistema jurídico: a teoria das regras e a
teoria dos princípios.
111 ALEXY, R. Colisão de Direitos Fundamentais e Realização de Direitos
fundamentais no Estado de Direito Democrático, 1999.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 65
A teoria das regras estabelece que pelo menos um dos direitos deve ser
declarado inválido, que uma das normas deve ser declarada não-aplicável ou
que ambas devem ser descartadas. A aplicação desse tipo de norma ocorre com
a subsunção. Contudo, a dificuldade de adoção desta teoria é a de conciliar a
invalidação de um princípio constitucional sem que ocorra uma invalidação do
próprio texto constitucional, ou seja, preterindo um princípio a outro se torna
difícil a vinculação ou obrigatoriedade da constituição.
A teoria adotada pelo autor é a teoria dos princípios, que se baseia na
seguinte premissa: quanto mais intensa é uma intervenção em um direito
fundamental tanto mais graves devem ser as razões que a justificam. O ponto
positivo desta teoria é o fato de conciliar a vinculação que deve ter a regra
constitucional à flexibilização do mesmo texto, possibilitando que um princípio
não seja efetivado em determinado momento sem que isto represente a sua
invalidez. Esta teoria possibilita que dois direitos ou princípios aparentemente
conflitantes permaneçam no mesmo ordenamento sem que ocorra a invalidade
de um deles, pois aplica a ponderação. Pondera-se, com base nos elementos
disponíveis no caso prático, qual direito ou princípio conduz à solução da colisão,
devendo prevalecer o que importa na menor interferência na liberdade ou no
direito fundamental do outro.
A ponderação pode ser conceituada como técnica jurídica de solução de
conflitos normativos que envolvem valores ou opções políticas em tensão,
insuperáveis pelas formas de hermenêutica tradicionais. 112
Toda colisão entre princípios pode ser expressa como uma colisão entre
valores. Isto demonstra que o problema de prioridade entre princípios
corresponde a um problema de hierarquia entre valores e que a inclusão de
direitos fundamentais no sistema jurídico conduz à conexão entre Direito e
Moral113. E justamente por envolver valores a resposta correta para a
ponderação entre os princípios conflitantes não é clara, não devendo a teoria do
discurso ser entendida como um instrumental capaz de determinar de forma
exata o peso de cada direito, mas mostra os argumentos racionais possíveis
112 BARCELLOS, A., Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, 2005. p.
23. A autora citada propõe três etapas para a técnica da ponderação: a primeira tem como finalidade a identificação dos enunciados normativos em tensão, a segunda etapa os fatos relevantes o caso concreto e por fim, a terceira lida com a decisão que atribuirá os pesos devidos aos diversos elementos normativos pertinentes ao caso, relacionando fatos e normas.
113 ALEXY, R., Derechos, Razonamiento Jurídico y Discurso Racional, 1993, p. 49
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 66
acerca dos direitos. Para tanto Robert Alexy propõe que a teoria dos princípios
necessita de um complemento através da teoria da argumentação jurídica.
A racionalidade da argumentação jurídica não busca a correta resposta ao
conflito, mas sim se os valores utilizados como fundamentação são suscetíveis
de controle racional. A noção de única resposta correta faz referência a um
consenso o que é pouco provável quando se trata de princípios. A teoria da
argumentação tem como ponto fundamental a rejeição da lógica formal dedutiva
como suficiente para o processo jurídico decisório, engloba a tópica de Viehweg,
a nova retórica de Perelman e a lógica formal de Toulmin114. Este trabalho lidará
de forma mais específica com a teoria argumentativa procedimental de Robert
Alexy.
O processo argumentativo inicia-se de forma semelhante ao processo
subsuntivo. Primeiro o intérprete deve analisar o ordenamento jurídico e verificar
quais as normas jurídicas importantes no caso concreto e após faz a interação
entre os fatos e as normas. Porém, após essa etapa a argumentação propõe um
terceiro passo – a atribuição de peso às normas encontradas e a gradação de
intensidade em que a solução deverá ser aplicada. 115
Nesta etapa importante será o estudo do princípio da proporcionalidade
que é entendido hoje como um dos melhores parâmetros no processo
argumentativo. O princípio da proporcionalidade tem guarida na doutrina jurídica
durante o período de crise do sistema legalista116. O ordenamento jurídico inicia
114 Manuel Atienza elabora uma síntese do pensamentos destes três autores.
Viehweg caracteriza a tópica por três elementos: 1) técnica do pensamento problemático; 2) noção de topos ou lugar-comum; 3) busca e exame de premissas. Os tópicos devem ser vistos como premissas compartilhadas que têm uma presunção de plausibilidade ou que, pelo menos, impõem a carga da argumentação a quem os considerada. (p. 49). A idéia do plausível também perpassa os argumentos de Perelman. O raciocínio jurídico em Perelman deve atentar para a conciliação dos valores de eqüidade e segurança jurídica, a procura de uma solução que seja de acordo com a lei, mas também que observe os parâmetros eqüitativos, razoáveis e aceitáveis (p. 77). Toulmin considera a argumentação como atividade total de propor pretenções com o intuito de criar razões que serão criticadas e defendidas (p. 95). ATIENZA, M., As razões do direito. Teorias da argumentação jurídica, 2003.
115 Neste sentido o ensinamento de Ana Paula de Barcellos que propõe ainda dois critérios gerais para a aplicação da ponderação: a preferência das regras sobre os princípios constitucionais e a preferência das regras que tutelam a dignidade humana e os direitos fundamentais em detrimento das demais. BARCELLOS, A. Alguns parâmetros normativos para a ponderação constitucional, 2003. p. 57-58, 70.
116 Pode ser feito um paralelo entre a origem do princípio da proporcionalidade e a Bioética, ambas surgem em um contexto de questionamento da moral vigente e do papel das ciência no comportamento humano. Enquanto o primeiro procura fornecer uma legtimidade para além da legalidade, a segunda busca limites nos valores para as descobertas e experimentos científicos.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 67
um processo evolutivo onde a mera previsão legal de um determinado
comportamento não o torna legítimo. 117
A proporcionalidade traz em si a noção de ponderação entre valores, a
aplicação de um determinado princípio deve ser proporcional à inviabilidade do
outro princípio. Willis Santiago Guerra Filho define o princípio da
proporcionalidade como “mandamento de otimização, do respeito máximo a todo
direito fundamental em situação de conflito com outro(s), na medida do jurídico e
faticamente possível.” 118
Porém, como ensina Humberto Ávila, o princípio da proporcionalidade não
deve ser confundido com a justa proporção, ponderação de bens, concordância
prática, proibição de excessos ou razoabilidade. O princípio da proporcionalidade
atenta para três exames: 1) o da adequação: exige uma relação entre fim e
meio; 2) necessidade: observa se existe algum meio alternativo àquele
escolhido; e 3) proporcionalidade em sentido estrito: comparação entre a
importância da realização do fim e a intensidade da restrição aos direitos
fundamentais. 119
Na etapa final do processo argumentativo será necessária a utilização
deste princípio. Os valores envolvidos em um caso difícil serão ponderados e
será analisada a medida de aplicação do direito fundamental que no caso em
voga deve prevalecer.
Robert Alexy propõe algumas regras procedimentais para verificar a
racionalidade da argumentação jurídica120. Dentre elas estão as regras
fundamentais, quais sejam: nenhum falante pode contradizer-se; todo falante só
pode afirmar aquilo que ele mesmo acredita; todo falante que aplique um
predicado F a um objeto A deve estar disposto a aplica F também a qualquer
117 Larry Kohlberg desenvolveu o modelo de avaliação do desenvolvimento do
julgamento moral apoiado no estruturalismo de Piaget, descrevendo e demonstrando que os indivíduos constroem a consciência moral segundo uma seqüência que se inicia no período pré-convencional e culmina no período pós-convencional No nível pré-convencional a consciência moral é direcionada por noções de punição e hedonismo instrumental relativista. No estágio convencional a consciência moral do indivíduo é orientada para a lei e para a ordem. E por fim, no último estágio, o pós-convencional, a consciência moral supere à noção de normas legais chegando aos princípios universais de consciência, no qual o indivíduo é capaz de desobedecer uma lei por considerá-la injusta, arcando com as conseqüências de seu ato. KOHLBERG, L., Moral stages and moralization: the cognitive developmental approach, 1976.
118 Guerra Filho, Willis Santiago. Sobre o princípio da proporcionalidade, 2003. p.245.
119 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 2003. p. 114-116.
120 ALEXY,R., Teoria da argumentação jurídica. A teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica, 2005. p. 283.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 68
objeto igual a A em todos os aspectos relevantes; todo falante só pode afirmar
os juízos de valor e de dever que afirmaria dessa mesma forma em todas as
situações em que afirme que são iguais em todos os aspectos relevantes, e;
diferentes falantes não podem usar a mesma expressão com diferentes
significados121.
A temática discutida neste trabalho enquadra-se perfeitamente nesta
perspectiva procedimental, à medida que, o aborto, qualquer que seja sua
motivação, desperta argumentos quase inconciliáveis sendo difícil a menção a
qualquer tipo de consenso, ou uma única resposta correta. Porém, a submissão
da legalidade da antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia ao
Poder Judiciário requer ao menos uma fundamentação racional da decisão
proferida.
121 A teoria do discurso pretende oferecer um critério, em condições específicas,
capaz de determinar a racionalidade de uma decisão e do processo decisório na Ciência Jurídica. Segundo Robert Alexy não é a produção de segurança o fator característico da racionalidade do Direito, e sim o cumprimento de uma série de condições, critérios ou regras.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 69
5 ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL
5.1.Apresentação do Estudo de Caso
O termo antecipação terapêutica do parto foi proposto pela antropóloga
Débora Diniz em suas diversas obras sobre o tema. Segundo a autora a
substituição do termo aborto pela expressão antecipação terapêutica do parto
retira da gestante o peso de séculos de preconceitos e dogmas religiosos. A
situação vivenciada por tais mulheres é por demais específica para ser
enquadrada juntamente com os outros casos de interrupção da gestação.
Embora esta redefinição seja objeto de críticas, no âmbito deste trabalho, será
adotada esta nomenclatura como opção metodológica visando diferenciar esta
hipótese das demais espécies de procedimentos médicos com fim de
interromper a gravidez.
O Brasil é o quarto país do mundo em ocorrência da anencefalia fetal de
acordo com dados disponibilizados pela Organização Mundial de Saúde,
estando atrás somente do México, Chile e Paraguai. No total de 10 mil
gestações levadas a termo em nosso país, cerca de nove apresentam essa má-
formação do feto. Essa taxa é mais de cinqüenta vezes maior que a observada
em diversos países europeus. Tal proporção pode ter como fundamento dois
fatores: a carência nutricional, principalmente de vitaminas do complexo B, e a
proibição legal da interrupção da gravidez.
A repercussão do tema na mídia nacional é extrema. Diversos segmentos
sociais expressam opiniões e sentimentos a respeito da interrupção da gestação
nestes casos. A falta de precisão dos termos e a ignorância também são
recorrentes na discussão. Contudo, a evidência de assunto de tamanha
importância nos meios de comunicação é tida como válida e útil, desde que o
conflito de posições seja exposto em um debate racional e aberto a todos. Um
Estado Laico como o Brasil deve preferir a utilização de argumentos não
religiosos, embora na prática tal não ocorra e ainda vemos a influência
preponderante das posições religiosas.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 70
À guisa de ilustração, são trazidas as seguintes reportagens: “O parto da
Justiça” - Revista Época de 13/09/1999; “Autorização para aborto dura até 1
mês” – Folhaonline em 27/02/2005; “Conselho adia debate sobre aborto de
anencéfalo a pedido de Zilda Arns” – Folhaonline em 17/02/2004; “OAB é a
favor de interrupção da gravidez em caso de anencefalia fetal”- Folhaonline
em 17/08/2004; “Saiba mais sobre anencefalia”- Folhaonline em 13/07/2004;
“O direito ao aborto”- GLOBO em 06/03/2004; “Liminar concedida pelo
Supremo Tribunal Federal”- Agência UNB em 23/07/2004; “Entrevista:
Aborto de fetos / bebês anencéfalos”- Notícias Dia-a-Dia em 23/07/2004;
“Brasil é o quarto país em nascimento de fetos com anencefalia, revela
OMS”- AOLNotícias em 19/08/2004; “Juiz de Goiânia autoriza aborto de feto
anencéfalo”- AOLNotícias em 17/11/2004; “Médico Com Causa” – Revista Isto
É, número 183 de 9/02/2005; “Conselho apóia interrupção da gravidez em
casos de anencefalia fetal”- Folhaonline em 10/03/2005; “Mulher consegue
na Justiça aborto de feto anencéfalo” – Agência Estado de 10/05/2005; “O
direito irrefutável ao aborto” – Jornal da Ciência de 28/10/2005;
Representantes de diversas crenças religiosas, algumas delas destacadas
no livro Anencefalia: o pensamento brasileiro em sua pluralidade, opinam a
respeito da moralidade da interrupção do parto.
O primeiro credo exposto, e certamente o mais atuante no tocante ao
aborto, é o catolicismo. Segundo Dom Odilo Pedro Scherer122:
“Toda agressão contra a vida humana, ainda mais a vida frágil e inocente, por qualquer motivo, ainda que seja em nome da ciência, ou do conforto de outras pessoas, não faz honra à humanidade e é sinal de decadência da ética e retrocesso na civilização. A CNBB espera que a decisão do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL esteja orientada pelo respeito pleno à frágil vida do feto / bebê anencéfalo.”
O Rabino Henry Sobel, presidente do Rabinato da Congregação Israelita
Paulista, esclarece que123:
“A meu ver, a antecipação do parto em caso de anencefalia deve ser permitida. (...). O que o judaísmo pode oferecer a estas mulheres é apoio humano e moral. Como rabino, eu faria tudo ao meu alcance para que a mulher possa tomar essa decisão sem o mínimo sentimento de culpa. Muito pelo contrário, eu acho que a decisão da mãe tem que ser apoiada.”
122 ANIS. Anencefalia. O pensamento brasileiro em sua pluralidade, 2004. p. 46. 123 Ibid., p. 47.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 71
O Bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcelo Silva, destaca a
posição de sua denominação religiosa124:
“A posição da Igreja Universal é sempre a favor da qualidade de vida e do bem-estar das pessoas. Nós entendemos que há casos em que a interrupção da gravidez é a atitude certa a ser tomada. A nossa fé tem que ser conduzida com inteligência, caso contrário cairemos no fanatismo. Temos que preservar a vida da mãe, já que seria inútil dar à luz uma criança que não tem chances de vida.” Lairton de Oxum é representante da Associação Brasileira de Umbanda,
Cultos Afro-Brasileiros e Ameríndios diz que125:
“A minha opinião é de que não deve haver a antecipação do parto porque como espiritualista acredito na reencarnação. (...) Mas a opinião de nossa associação é favorável que o Supremo Tribunal Federal conceda essa liminar126, pois a decisão depende das próprias grávidas. (...) Mas nós damos o conforto espiritual através de orações, de preces, porque essa criança é um espírito, então como espírito nós temos que olhar por este lado.”
Lama Tartchin praticante budista acredita que127: “De acordo com os ensinos budistas tibetanos, para que um ser venha a ter uma completa existência são necessários 3 fatores: espermatozóide, óvulo e mente. Se um corpo veio a se formar sem um órgão, impossibilitando que este venha a ter uma existência independente (não morrer após o parto), é porque houve a falta de um ou mais dos 3 fatores. No budismo não há pecado. Há carma, isto é, lei da causa e efeito. A gestante que será responsável pelo efeito de seus atos e a decisão de seus atos diz respeito apenas a ela.” Por fim, destaca-se a posição da Federação Espírita Brasileira, através de
seu diretor Geraldo Campetti128: “(...) doutrina espírita em relação ao aborto é a de que não somos contra o aborto, mas a favor do não-aborto. Entendemos que o ser humano é, também, espírito. Nesse sentido, não poderíamos ser favoráveis a um aborto provocado, mesmo com a conotação terapêutica no caso da anencefalia. (...). Nossa opinião a respeito da antecipação do parto também é visto como um tipo de aborto, e é um aborto provocado e, no nosso entendimento, não deve se realizado.”
124 Ibid., p. 48. 125 Ibid., p. 49. 126 À época dessa entrevista ainda não tinha sido concedida a liminar pelo Ministro
Marco Aurélio que foi posteriormente revogada pelo plenário. 127 Ibid., p. 50. 128 Ibid., p. 51.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 72
5.2.Aporte Médico
A pretensão deste estudo não é a análise técnica sobre a anencefalia fetal.
Porém, o estudo de caso envolve conceitos e determinações interdisciplinares.
Assim sendo, este capítulo objetiva apresentar, mesmo que de forma breve,
aspectos sobre a definição e o diagnóstico dessa anomalia, objetivando analisar
a certeza científica de tal procedimento.
Durante séculos, em diversas culturas, a arte de curar era considerada
uma prática mágico-religiosa. Os responsáveis pelo tratamento de doenças
eram, em sua grande maioria, pajés e sacerdotes, e o instrumento básico para a
cura era a fé do doente. No início da era cristã a prática da medicina em Roma e
nas grandes cidades da época era feita quase que exclusivamente por médicos
gregos. Adicionalmente eram numerosos os charlatães que prescreviam ervas,
amuletos ou encantamentos. Na Roma Antiga a medicina era considerada uma
profissão indigna para um cidadão romano.
Hipócrates, na Antiga Grécia, inicia uma visão empírica da medicina, em
que algumas doenças passaram a ter origens naturais. Ele, considerado pai da
medicina, foi o primeiro a empregar o termo diagnóstico, que significa
discernimento, formada do prefixo dia - através de e gnosis - conhecimento.
Diagnóstico, portanto, é discernir pelo conhecimento. A instrumentalização da
ciência médica teve início no século XIX com a invenção do estetoscópio por
Laennec em 1816. Porém, somente no final do século passado, a medicina
adquiriu um caráter científico, onde há uma causa para a doença e existe um
meio eficaz de combatê-la. Louis Pauster é considerado o precursor dessa fase
científica da medicina, considerada a primeira revolução dessa área de
conhecimento.
A tecnologia médica se desenvolveu no decorrer do século XX, com o
diagnóstico por imagens, endoscopia, métodos gráficos, exames de laboratório e
provas funcionais. A influência da corrente de pensamento denominada de
positivismo na medicina acarretou a busca maior pela certeza científica através
do aperfeiçoamento do material humano e instrumental envolvidos. O positivismo
defende que só a ciência pode satisfazer a necessidade de conhecimento, visto
que, só ela parte dos fatos e aos fatos se submete para confirmar suas
verdades, tornando possível a obtenção de noções absolutas. Nesse contexto,
surge a chamada Medicina Baseada em Evidência (MBE). De acordo com a
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 73
conceituação proposta por David Sackett129 a MBE é a integração das melhores
evidências de pesquisa com a habilidade clínica e a preferência do paciente e
envolve cinco fatores: desenvolvimento de estratégias para identificar e analisar
as evidências; criação de revisões sistemáticas e sumários concisos dos efeitos
da assistência à saúde; criação de revistas dedicadas à MBE de publicação
secundária; criação de sistemas de informação que nos trazem os avanços em
segundos e identificação e aplicação de estratégias efetivas para o aprendizado
durante toda a vida e para melhora de nosso desempenho clínico.
Hodiernamente, estamos vivendo uma nova revolução representada por
procedimentos como a engenharia genética e o estudo da bioquímica cerebral e
novos métodos de diagnóstico e tratamento.
O diagnóstico pré-natal de anomalias fetais foi um avanço na medicina
propagado a partir da década de 50, mas, difundida no Brasil no final dos anos
70. Nos últimos anos desenvolveu-se uma nova área multidisciplinar de atuação,
denominada Medicina Fetal, que incorporou às técnicas de diagnóstico as
possibilidades da terapêutica intra-uterina.
O fechamento do tubo neural ocorre em 20 a 28 dias após a concepção.
Não ocorrendo, o tecido neural fica exposto e há rupturas secundárias na brida
amniótica. Os denominados defeitos de fechamento do tubo neural ocorrem em
conseqüência de anormalidades de formação fetal em fases precoces da
gestação. As espécies de defeitos de fechamento do tubo neural são:
anencefalia, inincefalia, espinha bífida e encefalocese.
A anencefalia pode ser conceituada como sendo: “Um dos defeitos do tubo neural caracterizado pela ausência completa ou parcial do cérebro, das meninges, do crânio e da pele. Pode ser dividida em holocrania e merocrania. A ausência de toda a calota craniana caracteriza a holocrania. Na merocrania, ocorre a ausência parcial da calota craniana com ectopia do encéfalo. (...) Representa uma má-formação letal.” 130
A anencefalia é considerada a fase final da acrania, em conseqüência da
ruptura do tecido cerebral anormal, não protegido pela calvária.
129 SACKETT, D., Medicina baseada em evidências: prática e ensino, 2003. 130 MORON, A., Medicina fetal na prática obstétrica, 2003. p. 173.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 74
Figura 1. Foto de recém nascido anencéfalo131
Roger Sanders traz em sua obra a epidemologia da doença. Segundo ele a
incidência da anencefalia é geográfica e depende da população. E a
hereditariedade é multifatorial dependendo de implicações de fatores genéticos e
ambientais. A incidência é variável na dependência da região e outros fatores
como a raça, porém ocorre de 0,1 a 1% dos nascituros.
Antonio Moron estabelece três fases na ocorrência da anencefalia.
Primeiro, há um defeito no fechamento do neuróporo rostral. A seguir, ocorre a
exencefalia, onde há a exteriorização do cérebro desenvolvido para o meio
amniótico, e, finalmente, resulta na destruição do tecido cerebral.
O diagnóstico precoce pode ser realizado através de sonda transvaginal a
partir da 11a semana, período no qual se observa a ausência da calota craniana
com exteriorização de tecido cerebral. A partir da 15a semana os aspectos
característicos da anencefalia são diagnosticados com precisão por meio da
ultra-sonografia. O tecido cerebral é gradualmente eliminado pelo contato com o
líquido amniótico e desaparece totalmente na 17a semana, restando apenas as
veias intracranianas. O exame ultrassonográfico apresenta uma alta precisão
diagnóstica para a detecção de acrania durante o segundo semestre com taxa
diagnóstica de 100%.132
131 Foto obtida no documentário Doutor, Eu não sabia, produzido pela ANIS. 132 Ressalte-se que obviamente tal taxa de precisão depende da qualificação do
profissional que realizará o exame. Por isso, para a determinação da ocorrência desta anomalia os exames são confirmados por outra equipe médica através de novo exame de ultra-sonografia. A referida taxa de precisão é proposta por NYBERG, D., Diagnostyc imaging of fetal anomalies, 2003. p.294.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 75
Figura 2. Ultrassonografia de feto anencéfalo133
Figura 3. Ultrassonografia em três dimensões de feto anencéfalo134
Os autores estudados ressaltam o chamado diagnóstico diferencial. São
exemplos: encefalocele grande – o crânio será visível através de um exame
minucioso, outras malformações estão associadas como a inincefalia e
hidrocefalia; microcefalia – o crânio é pequeno. Essas anomalias não importam
necessariamente inviabilidade fetal e por tal razão diferem do estudo de caso
proposto. 135
133 Ultrassonografia fornecida pelo IFF. 134 Imagem obtida no endereço eletrônico: www.thefethus.org em 02.01.2006 135 Este dado é importante à medida que reportagens, muitas das vezes sem o
devido embasamento científico, afirmam a sobrevivência por meses e até mesmo anos, igualando anomalias diversas.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 76
Pesquisas recentes procuram determinar a sobrevida de fetos anencéfalos.
Em uma revisão de 181 recém-natos portadores dessa anomalia apenas 40%
sobreviveram até 24 horas e 5 % permaneceram vivos por até uma semana.
Outro estudo de 205 infantes anencéfalos, pesando mais de 2,5 quilos mostrou
que apenas 9% tiveram uma sobrevida de uma semana. 136
Diversos estudos buscam demonstrar também a alta periculosidade da
gravidez à vida da gestante. O médico obstetra Thomaz Gollop137 ressalta dois
fatores que agravam os riscos maternos: 1) possibilidade de polidrâmnio, ou
seja, excesso de líquido amniótico que causa maior distensão do útero,
possibilidade de atonia após o parto, hemorragia e, no esvaziamento do excesso
do líquido, a possibilidade de deslocamento prematuro de placenta, que é um
acidente obstétrico considerado grave. O segundo fator é que por não terem o
pólo cefálico os fetos anencéfalos, podem iniciar a expulsão antes da dilatação
completa do colo do útero e ter a chamada distócia do ombro, porque nesses
fetos, com freqüência, o ombro é grande ou maior que a média e pode haver um
acidente obstétrico na expulsão do feto. Segundo ele a distócia do ombro
acontece em 5%, o excesso de líquido em 50%138 e a atonia do útero em 10% a
15% dos casos.
O médico Jorge Andalaft139, coordenador da comissão Violência Sexual e
Interrupção da Gestação da Federação Brasileira das Associações de
Ginecologia e Obstetrícia, observa um aumento de 22% no parto de fetos
anencéfalos. Esse acréscimo decorre da própria deformidade que impossibilita o
encaixe adequado do feto devido à ausência da completa formação da caixa
craniana. Os fetos normalmente encontram-se na posição sentada, atravessada
o que acarrete um risco para a vida da gestante no momento do parto e a
demora excessiva desse, entre 14 e 16 horas, enquanto os partos considerados
normais duram aproximadamente 6 horas.
A ANIS editou um documentário chamado Doutor Eu Não Sabia com o
referido médico destacando uma experiência por este vivida onde um de seus
alunos residentes, orgulhosamente, relata que convenceu uma gestante de feto
anencéfalo a não interromper a gravidez. O Dr. Jorge inicia então o relato de
136 MORON, A., Medicina fetal na prática obstétrica, 2003, p. 296. 137 ANIS. Anencefalia. O pensamento brasileiro em sua pluralidade, 2004. p. 27-
28. 138 A geneticista Dafne Horovitz apresenta uma taxa de 75% de polidramnia e
ainda apresenta outro fator de risco, qual seja, a hipertensão materna aumentada nessas gestações.
139 ANIS. Anencefalia. O pensamento brasileiro em sua pluralidade, 2004. p. 31.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 77
como são os procedimentos de pré-natal e as complicações que podem ocorrer
durante a gestação e durante o parto. O obstetra elenca a ocorrência de
polidrâmnio, hipertensão que pode acarretar desmaios e convulsões, alto
número de contrações que pode levar a uma hemorragia irremediável
denominada de atonia uterina, entre outros contratempos médicos. Além disso, o
documentário atenta para o fato de que nascido o feto, não importando a
duração de sua vida, ele terá que ser registrado, emitido seu atestado de óbito e
enterrado. Caso a família não possua recursos financeiros para arcar com uma
sepultura privada o caminho a ser percorrido é ainda mais vexatório. O pai ou
algum parente deverá comparecer a uma delegacia de polícia, registrar um
Boletim de Ocorrência solicitando o serviço de verificação de óbito para que o
enterro ocorra através dos serviços públicos. Feito isso, a família acompanhará
obrigatoriamente a retirada do corpo do feto do hospital até o lugar de seu
sepultamento, lembrando que a mãe estará impossibilitada de participar do
enterro, pois ainda estará internada em recuperação pós-natal. A recuperação
dessa mulher é oura fase traumática à medida que ficará na enfermaria junto de
outras mulheres que deram à luz e estão felizes e acompanhadas de seus filhos.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) tem proferido manifestações sobre
o tema. Seja através de Resoluções ou fornecendo pareceres o órgão expressa
de forma clara a incontroversa quanto à inviabilidade da vida extra-uterina dos
fetos que apresentam anencefalia.
A Resolução nº 1.752/04 do CFM datada de 8 de setembro de 2004 prevê
a autorização ética do uso de órgãos ou tecidos de anencéfalos para a
realização de transplantes. Nas considerações inicias do referido texto é dito
que: os anencéfalos são natimortos cerebrais (por não possuírem os hemisférios
cerebrais) que têm parada cardiorrespiratória ainda durante as primeiras horas
pós-parto, quando muitos órgãos e tecidos podem ter sofrido franca hipoxemia,
tornando-os inviáveis para transplantes; que para os anencéfalos, por sua
inviabilidade vital em decorrência da ausência de cérebro, são inaplicáveis e
desnecessários os critérios de morte encefálica; e que a Resolução CFM nº
1.480/97, em seu artigo 3º, cita que a morte encefálica deverá ser conseqüência
de processo irreversível e de causa conhecida, sendo o anencéfalo o resultado
de um processo irreversível, de causa conhecida e sem qualquer possibilidade
de sobrevida, por não possuir a parte vital do cérebro. O artigo 1º da Resolução
diz que uma vez autorizado formalmente pelos pais, o médico poderá
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 78
realizar o transplante de órgãos e/ou tecidos do anencéfalo, após o seu
nascimento.
Diversos pareceres foram emitidos pelos Conselhos Regionais quanto ao
tema, dentre eles:
PROCESSO CONSULTA Nº 07/2000 CRM-PB, protocolado em 15/05/2000 ASSUNTO: Solicita parecer sobre a legalidade ética da interrupção de gestação de feto de 30 semanas (em 14/04/2000) por provavelmente apresentar má-formação congênita chamada de anencefalia.
EMENTA: O artigo 128 do Código Penal, em vigor, nos seus incisos I e II, permite a realização de abortamento para salvar a vida da gestante e nos casos de estupro. Em decorrência, o artigo 42 do Código de Ética Médica propugna a sua obediência. Com a evolução do armamentário tecnológico médico é possível, com uma boa margem de acerto, diagnosticar doenças na vida intra-uterina, algumas reconhecidamente incompatíveis com a vida humana. A anencefalia é um exemplo clássico. Independente do aspecto moral, ético ou legal, dois parâmetros são essenciais: termo de consentimento da gestante e/ou do pai e a certeza diagnóstica mediante a confirmação do diagnóstico por pelo menos duas ultra-sonografias. Nestes casos, o médico só deve realizar a interrupção da gestação em estrito cumprimento à determinação judicial.
A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia
(FERASGO) emitiu parecer favorável a respeito do tema:
“Do ponto de vista dos direitos sexuais e reprodutivos, buscando não restringir a autonomia das mulheres, somos favoráveis à livre decisão pela antecipação do parto na anencefalia. Do ponto de vista clínico e obstétrico há evidências muito claras de que a manutenção da gestação pode elevar o risco de morbi-mortalidade materna, justificando-se, deste modo, a livre decisão de médicos e pacientes pela antecipação do parto.” 140
5.3.Aporte Jurídico
No âmbito jurídico, ainda em 1996, segundo pesquisa realizada por Gollop,
foram encontrados cerca de trezentos e cinqüenta alvarás autorizando a
antecipação terapêutica de parto de fetos anencéfalos, sendo que o primeiro
datado de 1991, da cidade de Rio Verde, no estado de Mato Grosso.
140 Texto disponibilizado no site da FEBRASGO sob o título Anencefalia – Posição
da FEBRASGO, www.febrasgo.org.br acesso em 08/11/2005.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 79
Dois posicionamentos principais podem ser observados no meio jurídico a
respeito do tema: um proibitivo e outro permissivo.
O primeiro, no mais das vezes de caráter positivista, considera a
antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia como uma espécie de
aborto, e como tal, por não estar prevista nas hipóteses de exclusão de
punibilidade deve ser encarada como um crime contra a vida, respondendo
penalmente tanto o médico quanto a gestante que consentiu com o
procedimento. Neste sentido, o entendimento de Maria Helena Diniz em sua
obra sobre biodireito na qual a autora afirma que a antecipação não passa de
uma interrupção seletiva da gravidez, igualando o ato à eugenia.
A eugenia é tema recorrente na discussão sobre a interrupção da gravidez
em caso de anencefalia. Diversos escritores comparam as práticas, alertando
sobre o perigo de que a permissão legal do aborto nesse caso seria permitir a
seleção de seres humanos indesejáveis. Estes autores utilizam uma teoria
denominada de Ladeira Escorregadia, segundo a qual, a permissão de um
determinado comportamento cuja importância é pontual pode levar a uma
aceitação de comportamentos cada vez mais amplos. Esta ferramenta utilizada
principalmente no campo da bioética permite chamar a atenção sobre os
possíveis abusos e aconselhar a prudência.
Especificamente sobre o aborto de fetos anencéfalos Hare acredita
possível que a autorização legal de realização de aborto em casos extremos
como a anencefalia abriria margem para o assassinato de fetos nas demais
gestações, principalmente aqueles portadores de deficiências141.
No artigo Eugenia e Bioética: os limites da ciência face à dignidade
humana o autor tece um breve histórico sobre a eugenia e a necessidade de
regulamentação jurídica em relação a algumas práticas médicas, principalmente
no tocante à reprodução humana. Eduardo Leite remonta à origem da prática
aos gregos que matavam as crianças nascidas com alguma deformidade e ainda
na Babilônia onde a rainha Semiramis determinou a castração dos jovens
defeituosos. Porém, o termo eugenia somente é criado em 1883 por Francis
Galton baseado na teoria de hereditariedade e evolução de Darwin.
Galton propagava a visão de que alguns estão predestinados ao sucesso
devido às suas características genéticas dependentes diretamente da
hereditariedade, enquanto os demais, pelo mesmo motivo, estariam fadados ao
141 HARE, R. Essays on Bioethics, 1993. p.180-181.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 80
fracasso. O segundo grande impulsionador das teorias eugênicas foi o
descobrimento da ciência genética através de Mendel. As medidas eugênicas,
dotadas agora de “teor científico”, ganharam força em diversos países,
influenciando também suas legislações.
As leis eugênicas visavam dois fatores: a exclusão de pessoas
indesejadas (seja através da restrição à imigração, a internação dos anormais ou
até mesmo pela eutanásia) e a adoção de medidas de procriação (medida
negativa – esterilização ou positiva – encorajamento dos indivíduos sãos a se
reproduzirem). O preconceito que utiliza como mecanismo a eugenia tem como
ápice o Regime Nazista Alemão. Várias práticas de eliminação dos indivíduos
inferiores tinham como fundamento diversos estudos médicos e genéticos e
como legitimação o ordenamento jurídico. As atrocidades são notórias e levaram
ao questionamento sobre o papel e limites da ciência até os dias atuais.
Adrienne Asch, em seu artigo Diagnóstico pré-natal e aborto seletivo142,
aponta para a problemática da legalização do aborto eugênico sem que haja
uma preocupação com a devida informação sobre deficiências oriundas das
doenças genéticas. A autora, portadora de deficiência física, diz que a sociedade
atual em que vivemos é altamente preconceituosa e desinformada a respeito das
capacidades dos deficientes físicos importando na diminuição da dignidade da
pessoa humana desses indivíduos.
A segunda corrente considera que a situação da anencefalia fetal é sui
generis e, portanto, não deve ser enquadrada na proibição legal. Porém, os
argumentos são variados, atacando os diversos elementos do crime143, dentre
eles: a atipicidade da conduta, a inexigibilidade de conduta diversa e a causa de
exclusão da ilicitude.
O promotor de Justiça Diaulas Costa Ribeiro analisa aspectos do crime no
estudo de caso proposto144. Quanto à tipicidade o autor considera que a
antecipação terapêutica do parto em caso de anencefalia fetal afasta a tipicidade
da conduta, pois apenas o feto com capacidade fisiológica de ser pessoa pode
configurar como sujeito passivo do crime de aborto. A seguir apresenta a falta de
nexo de causalidade entre a conduta da gestante e a morte do feto, à medida
142 In Perfil das Percepções sobre as Pessoas com Síndrome de Down e do seu
atendimento: Aspectos Qualitativos e Quantitativos. Márcio Ruiz Schiavo.(coord) Brasília: Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down, 1999.
143 Segundo Bitencourt o conceito clássico de delito envolve: ação, tipicidade, antijuridicidade e cupabilidade. Tratado de direito penal, 2003. pg. 48.
144 RIBEIRO, D., Antecipação terapêutica de parto: uma releitura jurídico-penal do aborto por anomalia fetal no Brasil, 2004. p. 93-141.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 81
que, o feto cessa suas atividades biológicas em razão da patologia prévia e não
do ato cirúrgico interventivo da gestação. E por fim, o estado de necessidade é
outro aspecto penal estudado pelo promotor. Segundo Diaulas a continuidade da
gestação torna-se um risco desnecessário à saúde da mulher, pois há de um
lado na gestação anencefálica um aumento dos riscos maternos e a inviabilidade
da vida fetal do outro lado.
Paulo César Busato é um dos autores a considerar a conduta da
antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia como atípica. Em seu
artigo Tipicidade material, aborto e anencefalia o doutor em Direito Penal
considera que no caso em voga em razão da inviabilidade de vida extra-uterina
não há o bem jurídico vida tutelado pelo direito e, por tal razão, não há que se
falar em afronta aos dispositivos penais previstos no capítulo dos crimes dolosos
contra a vida. Assim sendo, inexistindo bem jurídico a ser protegido pelo Estado,
a conduta da gestante que interrompe a gestação é atípica, não cabendo
qualquer responsabilidade penal. No mesmo sentido, o entendimento de Adel El
Tasse em seu artigo Aborto de feto com anencefalia: ausência de crime por
atipicidade. 145
Enquanto não ocorrer uma normatização deste caso específico juristas
apresentarão as mais diversas teses interpretativas sobre a licitude da
antecipação terapêutica de parto em caso de fetos anencéfalos.
5.4. O caso no Estado do Rio de Janeiro
5.4.1.Coleta de dados empíricos: Instituto Fernandes Figueira
O Instituto Fernandes Figueira (IFF), estabelecido em 1924, é a unidade
materno-infantil da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Realiza pesquisa, ensino
e assistência no âmbito da saúde da criança, da mulher e do adolescente, sendo
referência em tratamento em diversas doenças de alta complexidade.
Reconhecido nacional e internacionalmente como centro de excelência, o IFF
atua no desenvolvimento tecnológico, extensão, assim como na formação e
capacitação de recursos humanos.
A escolha do instituto decorreu de sua especialização em gestações de
alto risco (inclusive de fetos anencéfalos) e pela alta qualificação de seus
profissionais, sendo este um hospital de referência no Estado do Rio de Janeiro.
145 TASSE, A., Aborto de feto com anencefalia: ausência de crime por atipicidade,
2004, p. 101–113.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 82
O IFF também possui um curso de especialização em Bioética e Ética
aplicada direcionado para fornecer uma análise interdisciplinar para profissionais
de diversas áreas de conhecimento sobre aspectos relevantes da Bioética. Clara
a preocupação do instituto em agregar os dados cotidianos com a reflexão
filosófica e teórica sobre aspectos da ciência médica.
Atualmente, devido à constante ocorrência de anomalias incompatíveis
com a vida fetal, o IFF elaborou uma rotina de atendimento às gestantes com
patologias fetais cabíveis de interrupção judicial, dentre elas a anencefalia. Tal
documento prescreve sete fases que deverão ser observadas durante o
tratamento pré-natal. Na primeira fase denominada de triagem a paciente
diagnosticada em outra unidade hospitalar ou mesmo dentro do próprio
Fernandes Figueira é encaminhada para o setor de medicina fetal onde será
feita a confirmação diagnóstica. No caso da anencefalia através de novo exame
ultrassonográfico ou reexame do anteriormente realizado. A seguir, já no setor
de medicina fetal, após a confirmação do diagnóstico, a paciente será orientada
sobre a patologia de seu feto e sobre os procedimentos que serão adotados.
Nesta fase também é feito o esclarecimento sobre a possibilidade de interrupção
da gestação. Na terceira fase inicia-se propriamente o pré-natal, com a abertura
de prontuário. Os procedimentos de praxe do pré-natal são realizados, como por
exemplo: a solicitação de exames dos mais diversos (hematologia, imunologia,
etc), marcação de matrícula, encaminhamento ao setor de genética e consultas
pré-natais. Os exames clínicos obstétricos e avaliação laboratorial são feitos na
fase posterior denominada de matrícula, momento este, onde também será
encaminhada a gestante, caso manifeste seu desejo e obtenha judicialmente o
alvará permissivo, à outra rotina para marcação do processo de interrupção da
gestação. Esta nova rotina tem como objetivo marcar a internação para a
realização de cardiocentese e indução do trabalho de parto, predominantemente
as quintas ou segundas-feiras. A seguir a paciente retorna ao setor de medicina
fetal onde será orientada sobre o procedimento, devendo assinar o
consentimento pós-informado específico para a cardiocentese (feticídio), e
autorização de necropsia, que serão anexados ao prontuário juntamente com a
autorização judicial. Conclusivamente, a fase sétima, chamada de puerpério,
preocupa-se com a confirmação do diagnóstico, através da necropsia do feto.
Ainda no tocante ao procedimento adotado, o IFF, através do setor de
genética, possui um documento padrão cujo objetivo é embasar tecnicamente o
pedido judicial para interrupção da gestação. Tal documento, via de regra, é
encaminhado para a defensoria pública e constam dados sobre a precisão do
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 83
diagnóstico e as demais medidas tomadas no sentido de confirmar a anomalia,
além de uma breve consideração sobre a inviabilidade de vida extra-uterina do
feto. Juntamente com este documento é enviada uma cópia do parecer favorável
do Comitê de Ética do IFF emitido pelo responsável pelo setor de genética do
instituto.
O estudo de caso proposto será realizado através dos dados empíricos
que foram colhidos através da técnica de aplicação de formulário padrão cujo
preenchimento teve como origem prontuários, ou seja, dados clínicos de
pacientes que buscaram assistência pré-natal no próprio instituto. O formulário
elaborado visava as seguintes informações:
DADOS SOBRE A INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO:
⇒ Ano de entrada:
⇒ Solicitação da Interrupção : ( ) Sim ( ) Não
⇒ Concessão da autorização: ( ) Sim ( ) Não
⇒ Fundamentação da sentença:
⇒ Tempo entre solicitação e autorização judicial :
⇒ Tempo entre autorização judicial e internação:
⇒ Tempo entre internação e feticídio:
⇒ Tempo entre feticídio e parto:
DADOS DO RECÉM NASCIDO
⇒ Vitabilidade: ( ) Vivo ( ) Nati
⇒ Tempo de vida:
⇒ Confim Diag Neonat. ( ) Sim ( )Não
Algumas considerações são importantes antes da exposição dos
resultados obtidos.
Inicialmente, por ser uma pesquisa envolvendo informações sobre seres
humanos, segundo a Resolução no 196 de 1996 do Conselho Federal de
Medicina, fez-se necessário perpassar um procedimento junto ao Comitê de
Ética do Instituto Fernandes Figueira o qual emitiu o registro de número 052/05
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 84
em 21.11.2005146. Os dados obtidos não importarão em nenhuma forma de
identificação dos pacientes.
O período compreendido foi de 1992 até 2004, sendo a escolha dos
prontuários decorrente do melhor preenchimento dos dados visados. Alguns
prontuários, especialmente os anteriores a 2000, possuem poucas informações
sendo inútil a sua utilização. No total foram analisados 107 (cento e sete)
prontuários.
Os dados obtidos podem ser divididos em duas vertentes. A primeira
refere-se a questões jurídicas da solicitação judicial para a antecipação do parto.
E a segunda quanto à viabilidade fetal e confirmação do diagnóstico após o
parto.
A primeira informação relevante do estudo de caso aponta para a opção da
gestante no tocante ao desejo de interromper a gravidez. Duas experiências
relatadas podem ser tidas como pólos opostos da sensação experimentada pela
gestante quando recebido o diagnóstico da anomalia. A primeira gestante,
embora consciente da brevidade da sobrevida de seu filho, manifesta durante
todo o período gestacional a intenção de levar a gravidez até o seu fim natural,
assegurando inclusive a realização de uma comemoração de nascimento. A
segunda gestante, de forma contrária, emite sua vontade de o quanto antes
realizar o procedimento jurídico e médico para a antecipação do parto, chegando
a mencionar para a equipe médica responsável por seu acompanhamento pré-
natal o seu sofrimento ao se sentir como um “caixão ambulante”.
Os dados a seguir demonstram o equilíbrio na percentagem das mulheres
que optam por solicitar a interrupção da gestação. Apenas dois números
percentuais a mais dos casais, mesmo informados sobre a possibilidade da
obtenção de uma permissão legal, preferem aguardar o final natural da gravidez.
O gráfico a seguir demonstra o que foi supra mencionado.
146 Íntegra do documento m anexo (anexo2).
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 85
Figura 4. Solicitação judicial para interrupção da gestação
Ademais, do total de 55 (cinqüenta e cinco) solicitações de alvarás
judiciais, 9 (nove) desistiram da interrupção em alguma fase do pré-natal,
mesmo após obterem a autorização do Poder Judiciário.
Outro dado obtido com a pesquisa empírica demonstra a posição
majoritária do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro quanto ao estudo
de caso proposto. Somente duas solicitações foram negadas, enquanto que 96%
das decisões foram proferidas no sentido de permitir a antecipação terapêutica
do parto.
AUTORIZAÇÃO JUDICIAL
SIM96%
NÃO4%
Figura 5. Concessão da autorização judicial
Solicitação da Interrupção da gestação
não 49% sim
51%
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 86
Esse dado é essencial à medida que representa dois fatores importantes
para o Direito. Primeiramente, que já há um posicionamento jurisprudencial
majoritário a respeito do tema. Embora as fundamentações utilizadas pelos
julgadores não sejam unânimes, quase a totalidade deles considera lícita a
antecipação do parto em caso de anencefalia fetal. E segundo, o tratamento
desigual fornecido a duas gestantes que manifestaram seu desejo de
interromper a gravidez, mas obtiveram uma resposta negativa por parte do
Estado. Tal fato demonstra a insegurança ainda existente decorrente da falta de
normatização a respeito do tema, deixando a critério do julgador a interpretação
dos valores envolvidos.
Outro fator relevante foi a inobservância pelo IFF de um procedimento
interno rígido quanto aos documentos jurídicos anexados aos prontuários. A falta
de um padrão a ser seguido acarreta a inexistência inclusive do próprio alvará
autorizatório do procedimento de antecipação do parto. O gráfico a seguir
demonstra os documentos encontrados nos prontuários.
DOCUMENTOS JURÍDICOS
46%
40%
2%12%
só alvará
alvará e decisão
não há sequer o alvará, somente sendo anotado no prontuárioque a gestante portava a autorização judicial. só acórdão negativo
Figura 6. Documentos jurídicos constantes do prontuário médico
Na grande parte dos casos somente é anexado o alvará judicial. Em 40%
dos casos, relacionados aos dois últimos anos, há além do alvará a decisão
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 87
proferida, tais decisões demonstram a variedade de teses jurídicas utilizadas
pelos juízes para conceder a autorização.
Nas decisões analisadas, 24 (vinte e quatro) no total, alguns argumentos
foram utilizados como base jurídica para a concessão do alvará conforme
enunciado abaixo:
1) Processo nº 2003.206.000364-1 - A evolução tecnológica tornou
possível detectar com absoluta certeza anomalias que tornam
inviáveis a vida extra-uterina. Cita Luiz de Asúa; impossibilidade
absoluta da vida, e por tal razão, a tutela penal não merece ser
exercida. Sacrifícios físicos e psicológicos maternos acarretam
riscos para a saúde da mãe. Interpretação analógica do artigo
128, I Código Penal como fundamento legal para a permissão da
intervenção cirúrgica.
2) Processo nº 2003.067.1128-4 - O Legislador não se ocupou de
regular a hipótese. Não pode no entanto o juízo, sob a alegação
de inexistência de regra específica sobre o tema, negar a
prestação jurisdicional. Há casos nos quais o legislador se
mantém omisso não fazendo qualquer opção, cabe ao intérprete,
após verificar a efetiva existência do conflito, ponderar qual
desses direitos deve prevalecer. No caso em voga de um lado há
o direito à vida do outro o direito à liberdade e à dignidade da
pessoa humana. O direito à vida é fundamental, mas não
absoluto. De fato, ao autorizar o aborto na hipótese de gravidez
resultante de estupro, o legislador sinaliza que a afetividade
entre gestante e feto é prevalecente ao direito à vida. Jamais
poderá a requerente desenvolver qualquer afeto por um ser que
evoluirá necessariamente para êxito letal. No entanto, no caso
dos autos não se cogita nem mesmo colisão de direito
fundamental. Cita a lei 9434/97 - morte encefálica. Logo, não
havendo vida, mas mera proliferação de células, não há que se
cogitar de direito fundamental à vida, tendo a requerente o direito
fundamental à liberdade e à saúde de retirada de corpo estranho
que tanto sofrimento gera.
3) Processo nº 2003.078.00030 - Decisão de segunda instância, 1ª
instância indeferiu. Fundamentos: complicações na gestação;
conduta atípica pois não atinge nenhum bem jurídico penalmente
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 88
tutelado. E por se tratar de liminar ressalta que estão presentes o
fumus boni iuris e periculum in mora.
4) Processo nº 2004.001.008443-1 - Decisão constante do
prontuário muito sucinta. Autorização da interrupção utilizando
como fundamento os elementos de convicção constantes das
provas dos autos, mormente os pareceres médicos e
manifestação favorável da curadoria especial e do Parquet.
5) Processo nº 2004.001.025612-6 – Utiliza tripla fundamentação:
não é figura típica de aborto por impossibilidade de sobrevida do
feto. Conduta não punível. Em segundo, há ausência de ilicitude
por ser aborto necessário pela saúde, vida e seqüelas
psicológicas impostas à gestante. E em terceiro, por
inexigibilidade de conduta diversa. Tal sentença aparece de
forma idêntica em outros dois processos de nº 2003.001.069344-5
e 2002.001.120804-4.
6) Processo nº 2003.029.046333-1 - Embora a situação não
encontre amparo em nossa legislação penal, sendo a conduta
tipificada em tese, a jurisprudência já vem se manifestando pela
possibilidade de se interromper a gravidez em casos extremos
como o dos autos.
7) Processo nº 2003.001.057625-8 - Em que pese a legislação
vigente incriminar o aborto com o consentimento da gestante,
ressalvados os casos de aborto necessário e quando a gravidez
for resultante de estupro, outras hipóteses não contempladas na
lei estão a exigir uma análise mais consentânea com a realidade
descortinada pela medicina e pelo progresso tecnológico. Mais
moral e social a interrupção por inviabilidade de sobrevivência do
feto justifica se tanto ou mais do que o aborto por motivo de
honra, estupro. Sob o aspecto jurídico deve-se questionar se a
destruição do feto, sem qualquer possibilidade de sobreviver
como ser humano, enquadra-se no crime de aborto, que tem por
objeto jurídico a vida humana. Cita julgados precedentes.
Anteprojeto da reforma do Código Penal, no Congresso
Nacional, prevê como excludente de ilicitude o aborto
eugenésico. Nova modalidade de justificação do aborto a ser
introduzida em nossa legislação penal evitará não só o
nascimento de seres infelizes, mas também, fará cessar o
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 89
sofrimento da gestante, não mais obrigada a aguardar em seu
corpo o nascimento de um ser sem condições de sobreviver ou
em condições de sobreviver por algum tempo de forma anormal.
Evita também as funestas conseqüências dos abortos
clandestinos, realizados com enormes riscos para a vida e a
saúde da gestante. Aplica a interpretação extensiva do artigo
128, I do Código Penal. Outro caso analisado utiliza de forma
exata a mesma fundamentação (2003.001.094742-0).
8) Processo nº 2003.038.007520-4 - Utiliza como fundamentação a
Inexigibilidade de conduta diversa por parte da gestante. Esta
fundamentação é utilizada em duas outras decisões judiciais de
forma idêntica (2003.038.010812-0 e 2003.038.007520-4).
9) Processo nº 2003.054.003635-9 - Fundamentos: aparente
conflito com artigo 128 Código Penal, por não ser uma das
hipóteses expressas na permissão legal. Porém, deve o
intérprete utilizar instrumental técnico novo. A comissão de ética
do IFF manifestou-se concorde com a interrupção da gestação
sugerida e já há outros julgados neste sentido. Não há vida a ser
protegida legalmente a mesmo que este feto se mostra inviável.
Falta o objeto da tutela penal. Nos termos vertentes deixa de
constituir crime falecendo os elementos necessários para a
tipificação de aborto.
10) Processo nº 2002.054.021393-0 - Fundamento nos artigos 5º, III
da Constituição Federal e 3º do Código Penal, nos princípios
gerais do direito, nos princípios da jurisdição voluntária, artigos
1104 e seguinte do Código de Processo Civil.
11) Processo nº 2002.001.092453-2 - Diante da comprovação
técnica da inviabilidade da sobrevivência do feto, ponto relevante
para se desconsiderar a ofensa ao bem jurídico penalmente
tutelado no Capítulo I, do Título I, Parte especial do Código Penal
com fulcro no disposto no inciso I, do artigo 128, daquele diploma
legal, defere o pedido.
12) Processo nº 2002.001.118545-7 - Ante a ausência de
perspectiva devida para o nascituro e o altíssimo risco da
gravidez em casos de anencefalia fetal aplica o artigo 128, I
Código Penal analogicamente e em uma interpretação extensiva
fica caracterizado o aborto necessário.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 90
13) Processo nº 99.001.088305-9 - Aborto eugenésico tem
acolhimento na doutrina e jurisprudência. Proteção ao objeto
jurídico preservação da vida não é infringido no caso em
questão. Fulcro: artigos 128, I Código Penal; 4º da Lei de
Introdução do Código Civil e artigos 1103, 1104 e 1109 do
Código de Processo Civil.
14) Processo nº 98.001.03402-0 - Em um dos casos analisados a
fundamentação não adentra no mérito da anencefalia fetal, pois
a gravidez decorreu de estupro.
15) Processo nº 2003.207.007966-6 - Aborto pressupõe que a
gravidez seja normal e não somente patológica. Se o que existe
é produto conceptivo degenerado, lícita é a intervenção. Cita a lei
de doação de órgãos. Vida ligada indissoluvelmente à existência
de cérebro. Iguala à gravidez molar já consagrada na
jurisprudência. Crime impossível pois não há vida.
16) Constam duas breves decisões em alvarás sem a especificação
do número do processo que utilizam como fundamento a
hipótese permissiva contida no artigo 128, II do Código Penal,
analogicamente.
17) Processo nº 2003.001.146495-6 - Questão da tipicidade da
conduta sabendo que o feto não tem perspectiva de vida. Crime
de aborto tem como escopo tutelar a vida humana em formação.
Constatada a falta de perspectiva de vida, inexiste violação ao
bem jurídico tutelado; evolução da medicina e CP de 1940. Se a
legislação não pode acompanhar com a necessária celeridade a
evolução social, constitui função do julgador, sem dúvida, aplicá-
la ao mundo atual.
18) Habeas Corpus nº 5355/2003 - Princípios da dignidade humana
e razoabilidade. Direito de escolha da gestante. Atipicidade do
aborto porque não há lesividade do bem jurídico tutelado.
Este último caso merece uma observação mais apurada, pois pode ser tido
como exemplo típico da insegurança que acarreta a prolação de decisões
judiciais conflituosas. A gestante orientada segundo a rotina anteriormente
mencionada, manifesta sua vontade no sentido de interromper a gestação e
assim é encaminhada pelo setor de medicina fetal para devidas orientações
jurídicas da defensoria pública. Em primeira instância o pedido foi negado sob o
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 91
argumento de que a legislação penal proíbe a prática de aborto, senão nos
casos taxativos previstos no Código Penal. A gestante recorreu da decisão
obtendo em 16 de dezembro de 2003 a permissão legal para a realização da
intervenção médica. Com a devida autorização a paciente foi internada no dia 18
de dezembro do referido ano, sendo neste mesmo dia executado o procedimento
de antecipação do parto. Porém, um terceiro estranho à relação médico-paciente
recorreu da decisão proferida, em Habeas Corpus, pelo Tribunal do Estado do
Rio de Janeiro e em 19 de dezembro de 2003 foi proferida uma decisão pelo
Superior Tribunal de Justiça no processo de nº 32757/ RJ no sentido de deferir a
liminar para que não fosse tomada qualquer procedimento visando a interrupção
antecipada da gravidez. O Instituto Fernandes Figueira encaminhou um ofício ao
STJ informando ao tribunal que o procedimento interventivo já tinha sido
realizado no dia anterior ao da prolação da decisão. Retornando do recesso
forense o STJ, em 04 de março de 2004, o ministro Felix Fischer profere a
decisão no sentido de ter o Writ como prejudicado por perda do objeto vez que já
havia ocorrido a interrupção antecipada da gravidez, em conformidade à decisão
proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Um dos casos negativos da autorização judicial fundamentava-se apenas
na declaração de que a anencefalia não podia ser enquadrada nas hipóteses
legais de permissão para a realização do aborto e o processo recebeu o nº
2003.021.018943-0. O segundo não consta qualquer informação judicial, apenas
sendo anotado no prontuário que a gestante obteve uma decisão negativa.
O tempo entre a solicitação e a autorização judicial também foi objeto de
análise. A decisão proferida de forma mais breve foi proferida em 3 (três) dias e
a mais demorada em 65 (sessenta e cinco) dias. O tempo médio das decisões
analisadas foi em torno de 20 (vinte) dias.
Tempo entre a solicitação e a autorização judicial
0
1
2
3
4
5
6
não c
onsta
3 dia
s
4 dia
s
5 dia
s
6 dia
s
7 dia
s
8 dia
s
9 dia
s
10 di
as
12 di
as
13 di
as
14 di
as
15 di
as
16 di
as
17 di
as
18 di
as
19 di
as
21 di
as
22 di
as
24 di
as
25 di
as
26 di
as
28 di
as
29 di
as
42 di
as
62 di
as
65 di
as
Figura 7. Tempo entre a solicitação e a autorização judicial
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 92
No tocante à viabilidade fetal, dois gráficos serão expostos. O primeiro
compara a ocorrência de natimortos, já falecidos no momento do parto ou da
antecipação terapêutica e os que sobreviveram.
VITABILIDADE FETAL
VIVO42%
NATIMORTO58%
Figura 8. Vitabilidade fetal
E o segundo gráfico demonstra o tempo de vida dos 42% de fetos que
nasceram vivos. O maior tempo foi de 5 (cinco) dias e o menor de 5 (cinco)
minutos e em 6 (seis) casos não consta do prontuário a sobrevida dos fetos.
TEMPO DE VIDA FETAL
0
1
2
3
4
5
6
não c
onsta
5dias
11h4
3min 8h
6h30
min
4h02
min
3h22
min 3h
2h45
min 2h
1h42
min
1h40
min
1h35
min
1h28
min
1h20
min
1h17
min
1h04
min 1h50
min48
min45
min42
min41
min36
min35
min33
min30
min27
min25
min23
min20
min14
min10
min8m
in5m
in
Figura 9. Tempo de vida fetal
E por fim, a confirmação posterior do diagnóstico é quase totalitária,
somente não havendo certeza porque em 4% dos casos não foi feita qualquer
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 93
menção a este respeito no prontuário. Porém, em nenhum caso há a não
confirmação do diagnóstico.
CONFIRMAÇÃO DO DIAGNÓSTICO
SIM96%
IGNORADO4%
Figura 10. Confirmação do diagnóstico
Algumas conclusões podem ser extraídas dos dados obtidos.
Primeiramente, já há no Estado do Rio de Janeiro uma jurisprudência permissiva
da antecipação do aborto em casos de anencefalia fetal e pode ser observada
inclusive certa brevidade na formulação da decisão jurídica (em torno de vinte
dias).
Segundo, os juízes muitas vezes aplicam analogicamente os dispositivos
legais, valendo-se sobretudo da defasagem dos documentos jurídicos e as
descobertas científicas na área médica. Os princípios constitucionais e a
jurisprudência também são parâmetros de interpretação utilizados pelos
julgadores.
Terceiro, somente nos últimos três anos as informações jurídicas têm sido
objeto de preocupação por parte dos institutos médicos, valendo-se atualmente
de uma rotina o IFF visa a padronização dos documentos anexados ao
prontuário, constando desta rotina especificamente a obrigatoriedade de anexar
a autorização judicial ao prontuário. Fato este estranho aos documentos
analisados anteriores a 2001.
E por fim, ficou demonstrada que mesmo com a informação aos genitores
das conseqüências e riscos da gestação apenas a metade deles busca a
interrupção da gestação através da via judicial. Demonstra tal percentagem que
mesmo conscientes de que há uma alternativa para interromper a gravidez em
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 94
quase 50% dos casos a gestante e seu companheiro optam por levar a gravidez
até o final.
5.5.O caso no Supremo Tribunal Federal
5.5.1. O Caso Gabriela Cordeiro147
Gabriela de Oliveira Cordeiro é uma jovem residente na cidade de
Teresópolis no estado Rio de Janeiro que no quarto mês de sua gestação
recebeu o diagnóstico de anencefalia de seu feto. O médico responsável por seu
pré-natal a informou sobre a letalidade da doença e a impossibilidade de
tratamento.
Com o apoio de seu cônjuge Gabriela inicia sua saga na busca da
autorização judicial para realizar a antecipação do parto. A primeira dificuldade
encontrada pelo casal ocorreu antes do início da ação judicial. Somente após
muita espera e constrangimentos a Promotora Soraya Taveira Gaya convenceu-
se da especificidade do caso e encaminhou o caso para a defensora pública
Andréia Teixeira Pacheco que representaria judicialmente o casal.
Em 6 de novembro de 2003 o pedido de autorização para a antecipação do
parto foi impetrado na Comarca de Teresópolis. O juiz Paulo Rudolfo Tostes
negou o pedido fundamentando sua decisão no argumento de que o Código
Penal não admitia a prática de aborto em casos de anencefalia, portanto, tal ato
é considerado crime pelo ordenamento brasileiro.
Houve apelação ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro cuja
relatoria do processo ficou a cargo da Desembargadora Gizelda Leitão Teixera
que concedeu a autorização judicial para o procedimento médico no dia 19 de
novembro de 2003, quando Gabriela já estava no quinto mês de gestação.
Porém, no dia 21 de novembro do mesmo ano os advogados Carlos Brasil
e Paulo Leão Junior ingressaram em juízo com um agravo tendo como
147 As informações sobre o caso foram retiradas das obras:ANIS. Anencefalia. O
pensamento brasileiro em sua pluralidade, 2004 e CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DA BAHIA. Anencefalia e Supremo Tribunal Federal, 2004 e do site www.Supremo Tribunal Federal.gov.br.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 95
argumento a sacralidade da vida. O juiz José Murta Ribeiro cassou a autorização
anteriormente concedida e ordenou que o processo retornasse à relatora
Gizelda. No mesmo dia 21 o padre Luiz Carlos Lodi da Cruz de Anápolis,
presidente do movimento Pró-Vida da Igreja Católica, entrou com um Habeas
Corpus em favor do feto de Gabriela no Superior Tribunal de Justiça.
Em 25 de novembro a Desembargadora Gizelda indeferiu o agravo
proposto mantendo a autorização judicial para a antecipação, neste mesmo dia a
Ministra Laurita Vaz do STJ derruba a autorização concedida pelo TJ do Rio de
Janeiro até que o Habeas Corpus fosse decidido meritoriamente pelo STJ. O
Procurador-Geral da República emitiu parecer apoiando a decisão da Ministra
Laurita Vaz, ou seja, contrário à autorização em 10 de dezembro de 2003.
No início do recesso forense Gabriela estava no sexto mês de gestação.
Em 26 de fevereiro de 2004 as organizações ANIS e THEMIS ingressaram
no Supremo Tribunal Federal com um pedido de Habeas Corpus, porém em
favor de Gabriela, a fundamentação da ação foi pautada no direito à saúde, à
liberdade e à dignidade de Gabriela em decidir sobre sua própria vida.
O relator designado foi o Ministro Joaquim Barbosa que reconhecendo a
urgência do pedido colocou em pauta o processo já no dia 4 de março. O
resultado da ação foi a declaração de perda do objeto, já que, foi apresentado ao
Tribunal o atestado de óbito de Maria Vida, filha de Gabriela que sobreviveu
apenas sete minutos. Apesar da perda do objeto três Ministros emitiram seus
pronunciamentos a respeito da lide, lamentando o cerceamento do direito de
Gabriela de ter decidido sobre sua própria vida, ou, pelo menos ter obtido uma
resposta jurídica a seu pedido.
O relator Joaquim Barbosa inicialmente tece alguns comentários a respeito
da admissibilidade do Habeas Corpus e da competência do Supremo em julgar
tal ação já que há alegações de afronta a direitos e princípios constitucionais,
principalmente o princípio da dignidade da pessoa humana. Outro aspecto
processual é analisado pelo Ministro Joaquim Barbosa. O relator considera nulo
o acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça pela falta de competência
do mesmo em julgar a matéria, qual seja, habeas corpus atacando decisão
monocrática de membro do tribunal. No mérito o ministro elenca dois
argumentos: direito à liberdade individual da gestante e o segundo refere-se aos
diferentes graus de tutela penal da vida humana.
O Ministro Sepúlveda Pertence não adentra no mérito da lide, somente
constando de sua manifestação o cabimento do Habeas Corpus no caso por ser
assunto intimamente relacionado com o direito à vida.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 96
O Ministro Carlos Ayres Britto também pugna pelo não recebimento do
remédio constitucional pela perda do objeto. Porém, acrescenta seu lamento
pela perda da oportunidade do Supremo Tribunal Federal “debater um tema vital
no plano do direito e no da dignidade, seja da pessoa humana, em geral, seja da
condição feminina, em particular. Também havia anotado, aqui, a minha
perplexidade diante de um caso médico que, por antecipação, dizia que algo que
se desenvolvia no útero de uma mulher jamais se transformaria em alguém, ou
seja, t:ínhamos o fenômeno de um casulo, que seria o útero, de uma crisálida
que seria o feto, mas jamais a borboleta alçaria vôo, porque a criança não teria
condições de sobreviver. Mas fica para outra oportunidade o debate desse tema
tão candente.”
Porém, o desejo do ministro Carlos Ayres Britto não tardou em se cumprir.
Em meados de 2004 o Supremo Tribunal Federal foi novamente provocado a
emitir seu entendimento a respeito do caso através de uma Ação de
Descumprimento de Preceito Fundamental.
5.5.2.A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº 54
A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é uma
ação constitucional prevista no artigo 102, § 1º da Constituição Federal de 1988
e regulamentada pela Lei 9.882/99. Esta ação tem como objetivo evitar ou
reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público148.
Alguns requisitos são necessários para a propositura desta ação, dentre eles: o
não cabimento de outro remédio constitucional, a especificação na petição inicial
do preceito fundamental descumprido acrescida da prova de sua violação149. A
argüição é sujeita ao princípio da indisponibilidade e sua decisão é irrecorrível,
não cabendo sequer ação rescisória.
A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS)
ingressou judicialmente, em 17 de junho de 2004, com uma argüição de
descumprimento de preceito fundamental buscando um posicionamento do
Supremo Tribunal Federal no tocante antecipação terapêutica do parto ante a
anencefalia do feto e as conseqüências jurídicas para os profissionais de saúde.
A representação autoral é de responsabilidade do constitucionalista Luís
Roberto Barroso. Já em nota prévia a inicial distingue os termos aborto e
148 Artigo 1º da Lei 9.882/99 149 Artigo 3º da Lei 9.882/99
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 97
antecipação terapêutica do parto. Pretende a sociedade autoral demonstrar que
a antecipação terapêutica de parto em casos de anencefalia fetal situa-se no
âmbito da medicina e do senso comum, diferentemente da interrupção voluntária
da gravidez de concepto viável. Busca com isso o eminente advogado retirar o
debate moral a respeito do tema, através da simplificação da hipótese.
Alguns argumentos sobre a hipótese são levantados: a inviabilidade de
vida do feto, a certeza diagnóstica do exame, o aumento do risco para a saúde
da gestante (baseada em um parecer da FEBRASGO).
Quanto às questões processuais relevantes destaca-se a legitimação
ativa da CNTS, a pertinência temática e o cabimento da via escolhida.
No mérito a ação foi fundamentada nos preceitos constitucionais da
dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autonomia da vontade e a
garantia da saúde da gestante prevista nos artigos 1, 5, 6 e 196 da Constituição
de 1988. Foi utilizado como alegação principal o fato de que a adoção de tais
preceitos constitucionais afastaria a aplicação das sanções legais impostas aos
profissionais de saúde dispostas nos artigos 124, 126 e 128 I e II do Código
Penal nos casos de atestada anencefalia fetal.
O pedido principal é a declaração de inconstitucionalidade da
interpretação dos artigos 124, 126 e 128 do código Penal como impeditivos da
antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencéfalo,
reconhecendo-se o direito desta gestante de se submeter ao procedimento sem
a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra
forma de permissão específica do Estado. Como pedido alternativo é
apresentado o requerimento de que se julgado o descabimento da ADPF, que o
Supremo Tribunal a receba como ação direta de inconstitucionalidade.
O feito foi distribuído ao Ministro Marco Aurélio para que o mesmo
funcionasse como relator do processo.
A Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, a Associação Nacional
Pró-vida e Pró-família e a Associação UNIVIDA, entre outras, pleitearam sua
admissão no feito na qualidade de Amicus Curiae. O relator proferiu decisões
indeferindo o pedido da CNBB e demais associações com fundamento no artigo
7, § 2º da lei nº 9.868/99 o qual confere ao Ministro relator a decisão a respeito
da conveniência de intervenções no processo. 150
150 Decisões do relator quanto ao mesmo tema nas petições: PG Nº 69849/04, PG
Nº 75796/04, PG Nº 77365/04, PG Nº 81135/04, PG Nº 84862/04, PG Nº 85934/04,
PG Nº 89467/04, PG N.º 90229/04, PG N.º 93748/04, 95645/2004, PG Nº110483/04.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 98
A Procuradoria Geral da República emitiu seu parecer no sentido de
indeferimento do feito por não ser adequada a interpretação conforme a
Constituição. Elenca também como fundamentação a primazia jurídica do direito
à vida do feto mesmo que por tempo ínfimo. E que a hipótese não encontra
respaldo constitucional ou legal.
O Ministro Marco Aurélio, em sede de liminar no dia 01 de julho de 2004,
acolheu os pedidos formulados, reconhecendo a relevância do pleito e o risco de
manter-se o ambiente de desencontros de pronunciamento judiciais. Decidiu
pelo sobrestamento dos demais processos e decisões não transitadas em
julgado relacionadas a esta problemática, e, pelo reconhecimento do direito
constitucional da gestante de submeter-se à antecipação terapêutica do parto de
fetos anencéfalos, a partir de laudo médico atestando tal anomalia.
No dia 30 de setembro foi revogada a medida liminar sob a alegação de
que a repercussão do que decidido sob o ângulo precário e efêmero da medida
liminar redundou na emissão de entendimentos diversos. Declarou-se a
importância da realização de uma audiência pública e a admissão no feito como
Amicus Curiae de diversas entidades: Federação Brasileira de Ginecologia e
Obstetrícia, Sociedade Brasileira de Genética Clínica, Sociedade Brasileira de
Medicina Fetal, Conselho Federal de Medicina, Rede Nacional Feminista de
Saúde, Direitos Sociais e Direitos Representativos, Escola de Gente, Igreja
Universal, Instituto de Biotecnia, Direitos Humanos e Gênero. E remete ao
plenário para a designação de audiência para apreciar questão de ordem relativa
à admissibilidade da ADPF.
Questão de ordem foi posta em mesa no dia 20 de outubro de 2004 no
sentido de considerar a adequação da ação proposta. O relator, Ministro Marco
Aurélio, profere um relatório inicial sobre o processo e sobre a medida liminar
deferida.
Concede a palavra ao advogado do autor que rebate os argumentos
aviltados pela Procuradoria da República, quais sejam: a ilegitimidade do
Supremo Tribunal Federal como legislador positivo e a inadequação da ADPF.
Sobre a ilegitimidade Luís Roberto Barroso levanta a importância do Supremo
Tribunal Federal e que a interpretação conforme a Constituição não cria norma,
mantendo o texto elaborado pelo legislador. Nos dizeres do advogado referido a
ADPF busca um resultado menor que a declaração de inconstitucionalidade, pois
tem como objetivo reconhecer a afastabilidade de aplicação dos artigos penais
apenas no caso proposto e não erga omnes. Quanto à admissibilidade da ADPF
o representante autoral defende a ocorrência dos três requisitos para a admissão
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 99
da ação: lesão a preceito fundamental, ato do poder público e inexistência de
outro meio eficaz para cessar a lesão. Ele ainda ressalta que tais requisitos são
fundamentais para evitar o acúmulo de ADPF no Supremo, mas assegura a
relevância dessa ação. Ainda oralmente Luís Roberto Barroso reafirma o pedido
alternativo proposto na inicial de recebimentos da ação como ação direta de
inconstitucionalidade e diz que apenas a técnica não é suficiente, embora tenha
se atido às questões processuais o mérito é essencial, elencando de forma
breve os argumentos meritórios da ação. Conclui sua fala afirmando que pior
solução seria dizer à sociedade que o Supremo Tribunal Federal não vai se
pronunciar sobre tema de tamanha importância.
O Procurador Geral da República Cláudio Fontelles inicia seu
pronunciamento lembrando o ensinamento de Rui Medeiros de que a
interpretação conforme a Constituição pode se substituir ao legislador, e que
esta não pode contrariar o texto legal. Diz que de acordo com o princípio da
separação dos poderes é vedado ao juiz à criação de uma nova lei, somente
cabendo a este averiguar se a lei contraria ou não a Lei Maior. Após começa a
análise dos dispositivos penais que tipificam a conduta. O procurador levanta a
impossibilidade de que a interpretação conforme o texto constitucional acarretará
a exclusão da punibilidade, pois as exceções devem ser interpretadas de forma
literal e restritiva, não comportando analogia. Afirma Cláudio Fontelles que o
princípio da ponderação e proporcionalidade privilegia o direito à Vida, sendo
indiferente a duração desta vida. Por fim, salienta que seus argumentos têm
cunho estritamente jurídico e não religioso.
O relator retoma a palavra proferindo seu relatório no sentido de
considerar admissível a ADPF. O Ministro traz como dado a informação de que
uma ação demora aproximadamente 5 anos do tribunal inicial até o julgamento
final do Supremo Tribunal Federal. Segundo ele o processo objetivo de controle
de constitucionalidade exerce de forma precípua a guarda da constituição
afastando decisões conflitantes e numerosas de órgãos inferiores, e uma nova
forma de realizar este controle é através da ADPF. Utiliza ainda como
argumentos a importância dessa decisão para as pessoas de baixa renda que
têm que recorrer ao serviço público de saúde, a mobilização da sociedade civil
em torno da temática, a eliminação do elevado número de Recursos
Extraordinários e a observância da petição inicial dos requisitos legais. À guisa
de conclusão, Marco Aurélio defende que o Supremo Tribunal Federal tem que
se manifestar quer num sentido, quer no outro devido ao seu papel constitucional
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 100
e institucional no Estado Democrático de Direito e pela impiedade da História
com a inércia.
Diante do pedido de vista do Ministro Carlos Britto, interrompeu-se o
julgamento neste tocante.
Ocorre que na mesma sessão o Ministro Eros Grau levanta a hipótese de
revogação da liminar monocraticamente concedida pelo relator. Não houve o
referendo do plenário do Tribunal. E, segundo ele, a liminar ofende a dignidade
do feto tratando-o como coisa e não como pessoa.
O Presidente do Tribunal, Nelson Jobim, esclarece que a liminar continha
dois aspectos: o sobrestamento dos feitos nas instâncias inferiores e o
reconhecimento do direito das gestantes enquadradas no caso de realizar a
interrupção sem a necessidade de autorização judicial específica.
O Ministro Marco Aurélio afirma que no dia 2 de agosto a concessão
monocrática da liminar foi trazida à bancada e por tal razão houve o referendo da
liminar. Defende o julgamento apenas quanto à admissibilidade da ação e não
no tocante à liminar.
O Ministro Eros Grau reafirma que não aconteceu o referendo no que é
acompanhado pelos demais membros. Carlos Britto se manifesta no sentido de
manter a liminar. Há uma nova votação para determinar a concessão da palavra
novamente ao advogado da autora para defender a manutenção da liminar
obtida anteriormente. A decisão defere o uso da tribuna ao representante
autoral.
Luís Roberto Barroso inicia sua segunda fala elencando os requisitos da
concessão de liminar: relevância e perigo na demora. O primeiro estaria
presente na lide nos princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade,
autonomia da vontade e direito à saúde. A dignidade humana enquadra-se na
integridade física e psicológica da gestante, no entender do constitucionalista o
registro civil de um natimorto, o óbito, enterro e a falta de recursos financeiros da
mulher seriam equiparáveis à tortura psicológica. A ninguém deve ser imposto
sofrimento evitável. Outro ponto seria a violação do princípio da legalidade se
entendida a interpretação conforme a constituição anteriormente referida. Como
fundamento Luís Roberto Barroso propõe também a atipicidade do fato. Como a
morte para o Direito é a morte cerebral, o feto anencéfalo não pode ser
considerado ser vivo, somente mantendo a vitalidade através de um aparelho
que é o corpo materno. Assim sendo, não há conflito entre bens jurídicos porque
não há vida. O segundo requisito – perigo na demora – é demonstrado nos
diversos pronunciamentos judiciais conflitantes a respeito do tema. Retratar a
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 101
liminar neste momento passará a mensagem de insegurança quanto às decisões
da corte suprema, ferindo a credibilidade do Judiciário. Finaliza sua
apresentação destacando a importância da laicização do Estado e o apoio de
diversas entidades como o Conselho Federal de Medicina, Ordem dos
Advogados do Brasil e organizações feministas.
Após, o Procurador Geral da República solicita o reexame da liminar. Os
argumentos apontados são: o bem maior protegido juridicamente é a vida (não
vê argumentos jurídicos que afastem esse direito) e vida intra-uterina é vida, não
podendo haver a coisificação do feto, a noção de vida é atemporal. Utiliza o
princípio da ponderação considerando que nem todas as gestantes sofrem com
a continuação da gestação, mas todos os fetos morrem.
O ministro Marco Aurélio é o primeiro a proferir seu voto. Inicialmente,
afirma o beneplácito do plenário quanto à liminar já que a mesma perdurou por
mais de quatro meses. Ressalta que em uma ação conjunta com o Ministério
Público, as gestantes já não necessitam ingressar em juízo para obter a
permissão de antecipação, e se o Ministério Público do Distrito Federal pode
autorizar, quanto mais demonstrada a competência do Supremo Tribunal
Federal. A lei 9.882/99 permite que a liminar suspenda as decisões não
transitadas em julgado e a adoção de qualquer outra medida ligada à matéria
discutida. Declara seu voto no sentido de manter a liminar, acreditando que a
suspensão da medida já deferida importaria em insegurança jurídica e o
descrédito da prestação judicial provisória. Apela para a formação ética e
humanística dos julgadores, rechaçando a pressão religiosa.
O Ministro Eros Grau estabelece um raciocínio contrário, para ele a
insegurança jurídica reside na própria liminar e não em sua cassação. Ressalta
que seu voto será exclusivamente técnico e jurídico. Nega referendo à liminar
sob o fundamento de que a mesma atenta contra a vida reconhecida pelo
Código civil e que não pode o julgador estabelecer nova exclusão de
punibilidade ignorada pelo legislador.
O Ministro Joaquim Barbosa, adstrito aos aspectos processuais nega
referendo à liminar por considerar que nesse momento ainda não realizado o
exame de admissibilidade impossível o deferimento de liminar.
O Ministro Carlos Britto inicia seu voto confessando que suas convicções
a respeito do tema encontram-se abaladas. Tece comentários sobre o caráter
machista de nossa sociedade, crê inclusive que se os homens engravidassem o
aborto a muito deixaria de ser crime. A seguir, trata da viabilidade do feto,
questionando se há o direito de viver ou direito de viver para morrer e que o
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 102
anencéfalo será algo que nunca será alguém. Salienta a riqueza do amor
materno e considera que a liminar apenas devolve a questão ao arbítrio a quem
cabe decidir. Encontra indicadores para endossar a medida e, portanto, vota
favoravelmente à liminar.
O Ministro Cezar Peluso ressalta que a liminar somente pode ser
concedida quando há uma alta probabilidade de confirmação ao final do
processo. No caso em questão entende o ministro que a liminar ofende o valor
jurídico da vida protegida juridicamente mesmo ainda no ventre materno. A
história da criminalização do aborto é ponto de destaque em sua manifestação.
O crime de aborto tem sua origem na necessidade de preservar a vida humana,
independente de deformidade. O diagnóstico da anencefalia é novo, porém, a
ocorrência de inviabilidade da vida extra-uterina não. A duração da vida não está
à disposição das pessoas, só coisa é objeto de disposição alheia. Vota no
sentido da cassação da medida.
Após é dada a palavra ao Ministro Gilmar Mendes. Esse inicia sua fala
diferenciando o papel positivo do negativo do julgador, afirmando a construção
diária pelo Supremo Tribunal Federal de interpretações até mesmo de normas
constitucionais. Porém, não vislumbra os requisitos da liminar no caso em voga e
por isso vota no sentido de cassar a decisão monocrática.
A ministra Ellen Gracie considera a liminar satisfativa porque autoriza o
aborto em casos não previstos na legislação. Acompanha os votos da maioria
por considerar incabível tal medida se o Tribunal ainda não se manifestou sobre
a admissibilidade da ação.
Carlos Velloso concorda com a ministra anteriormente referida no tocante
ao caráter satisfativo da liminar e a incerteza quanto ao cabimento do meio
jurídico escolhido, por tais razões vota com o intuito de revogar a liminar.
O Ministro Celso de Mello formula ponderações sobre o papel do juiz
republicano em uma república laica e a neutralidade confessional que deve
pautar suas decisões. Considera a importância da decisão atacada e de seus
fundamentos dentre eles destaca: extensão e titularidade do direito à vida, direito
sexual, direito à saúde, direito reprodutivo, autonomia da vontade e saúde física
e mental da gestante. Destarte, há densidade jurídica na cautelar decidindo pela
manutenção integral da liminar.
O ministro Sepúlveda Pertence concorda com o relator sobre a
protelação do Tribunal no caso e não vê como voltar às decisões controvertidas,
preferindo manter a liminar nos seus termos. Criada uma situação de fato o
Supremo Tribunal Federal assumiu uma política judiciária.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 103
Como resultado, o Tribunal, por maioria, referendou a primeira parte da
liminar concedida, no tocante ao sobrestamento dos processos e decisões não
transitadas em julgado, vencido Cezar Peluso. E, também por maioria, foi
revogada a segunda parte da liminar, que reconhecia o direito constitucional da
gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencéfalos,
vencidos: Marco Aurélio, Carlos Britto, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence.
Atualmente, os processos judiciais interpostos e não transitados em julgado
estão suspensos. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental de
número 54 foi considerada admissível em 27 de abril de 2005, por maioria de
votos, e aguarda julgamento no tocante ao mérito sobre a legalidade do
procedimento médico de antecipar o parto em caso de anencefalia fetal sem a
necessidade de cada hipótese de solicitação ser submetida ao Poder Judiciário
como ocorria até a propositura da ação.
INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 104
6 CONCLUSÃO INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO
A etapa conclusiva deste trabalho tem como finalidade relacionar o
instrumental teórico elencado nos capítulos sobre a bioética, o aborto e a
interpretação constitucional e o estudo de caso da antecipação terapêutica do
parto em caso de anencefalia fetal proposto no capítulo anterior.
No tocante aos argumentos bioéticos a teoria analítica dos casos
concretos parece a mais adequada, pois tem como parâmetro a utilização de
uma situação prática a fim de indicar soluções normativas para os problemas,
como é o caso do estudo sobre a legalidade do procedimento de antecipação do
parto em casos de anencefalia fetal. A metodologia adotada propõe a
ponderação entre a solução dada ao caso concreto de acordo com quatro
princípios: autonomia, beneficiência, não-maleficiência e justiça. A teoria bioética
dos princípios encontra uma limitação de ordem metodológica, qual seja, a falta
de hierarquização entre as quatro diretrizes orientadoras. Tal ausência ocasiona
uma insuficiência da teoria em hipóteses onde há conflito entre os princípios
elencados. Permite uma subjetividade extrema quanto à valoração dos princípios
não fornecendo uma resposta legitimada racionalmente151.
Por tal razão, essenciais as contribuições jurídicas de Ronald Dworkin e
Robert Alexy. Os referidos juristas lidam com a questão de princípios e a
possível ocorrência de incoerências no sistema jurídico. Cada um deles propõe
uma teoria visando uma mínima racionalidade na escolha do intérprete de certo
princípio em detrimento de outro. Ronald Dworkin rege que o sistema jurídico é
composto de regras e princípios, formando uma integridade coerente e limitadora
da discricionariedade do juiz. Robert Alexy estabelece que os princípios são
mandados de otimização que devem ser aplicados gradativamente ao caso
concreto na busca pela realização dos valores sociais na maior medida possível,
151 Uma crítica formulada por Fermin Schramm e Miguel Kottow é a adoção da
corrente principialista pensada por Beauchamps e Childress como instrumental para os conflitos clínicos de forma inespecífica e sem as devias adaptações para outros conflitos bioéticos que necessitam de uma abordagem específica. In SCHARAMM, F., KOTTOW, M., Princípios bioéticos em salud pública limitaciones y propuestas., 2001. p. 949-956.
INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 105
fática e juridicamente. E, através da racionalidade da argumentação jurídica,
verifica se os valores utilizados como fundamentação são suscetíveis de controle
racional.
Ronald Dworkin tece alguns comentários especificamente sobre a temática
do aborto. Acredita que o ponto problemático da questão gira em torno da
polarização das visões envolvidas. Os favoráveis à legalização do aborto
acreditam que o feto não deve ser entendido como mais que um aglomerado de
células, um código genético. Contudo os partidários da proibição do aborto
consideram o feto como um sujeito moral. Diante de tal incongruência muitos
consideram impensável o debate racional entre eles.
Nos dizeres de Ronald Dworkin:
“Trata-se de uma questão de convicções inatas, e o máximo que podemos pedir a cada lado não é que compreenda o outro, ou mesmo que o respeite, mas apenas uma pálida civilidade (...). Se a divergência for realmente tão forte, não poderá haver nenhuma transigência baseada em princípios; na melhor das hipóteses, haverá apenas um frágil e melindroso empate, definido pelo puro poder político.” 152
Qualquer discussão a respeito da temática sobre o aborto envolverá
pensamentos quase sempre inconciliáveis. Porém, como ressalta o supra
mencionado jurista a falta de consenso não ocorre somente pela disparidade
entre as opiniões e sim, muito mais inclusive, por um erro de conceituação entre
o que é moral e o que é legal. Embora a grande parte das pessoas acredite que
é intrinsecamente errado pôr fim a uma vida humana há também um forte
entendimento de que a decisão de interromper a gravidez em sua fase inicial é
de foro íntimo da gestante. Explica Ronald Dworkin:
“Essa combinação de pontos de vistas não é apenas coerente; na verdade, mostra-se igualmente de conformidade com uma grande tradição de liberdade de consciência das modernas democracias pluralistas. É bastante comum pensar que não compete ao governo ditar aquilo que seus cidadãos devem pensar sobre valores éticos e espirituais, em especial sobre valores religiosos.” 153
E este é o entendimento defendido neste estudo. A sociedade brasileira
está diante de uma oportunidade de debater sobre as razões levantadas pelos
grupos contrários e favoráveis ao aborto. E somente através de um
152 DWORKIN, R., Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais,
2003. p. 12. 153 Ibid., p. 18.
INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 106
procedimento democrático será possível obter um consenso, não sobre a
moralidade do aborto, mas sim sobre o tratamento jurídico adequado a cada
caso específico, propondo normas legais que sirvam de parâmetro e princípios
norteadores aos julgadores em hipóteses ainda não vivenciadas.
Ronald Dworkin, após discorrer sobre os argumentos e objeções quanto ao
aborto conclui sua obra voltando a atenção dos leitores para o princípio da
dignidade humana. O princípio da dignidade humana traz em si a noção de valor
intrínseco da vida.
Giorgio Agamben, porém, inova no tratamento deste termo quando em sua
obra Homo Sacer levanta a origem deste vocábulo. Segundo o autor a
sacralidade da vida envolvia dois termos: a impunidade da matança e a exclusão
do sacrifício. O Homo Sacer seria uma pessoa posta fora do âmbito da jurisdição
humana, mas sem ultrapassar para a vida humana. Giorgio Agamben então
salienta que:
“A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o poder soberano como um direito humano em todos os sentidos fundamental, exprime, ao contrário, em sua origem, justamente a sujeição da vida a um poder de morte, a sua irreparável exposição na relação de abandono.” 154 A palavra dignidade tem etimologicamente inserida a noção de
merecimento de estima e honra e sempre ligada ao ser humano. Digno confere
então uma importância essencial do Homem. Segundo Hannah Arendt a
dignidade humana refere-se a sua singularidade na alteridade155. O Homem é
singular justamente por sua identificação com todos e ao mesmo tempo sua
particularidade. A pluralidade humana é oriunda da pluralidade de seres
singulares.
A teoria kantiana estabelece a dignidade como um valor. Para ela dois
valores podem ser destacados: o preço e o valor. O primeiro refere-se às coisas
e o segundo às pessoas.
A professora Maria Celina Bodin de Moraes procura estabelecer um
substrato material para o entendimento do princípio, procurando enfatizar sua
importância para o ordenamento jurídico156. A autora enumera quatro postulados
retirados da obra Convite à filosofia de Marilena Chauí: 1) o sujeito moral
reconhece a existência do outro como sujeito igual a ele; 2) merecedores do
154 AGAMBEN, G., Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua, 2002. p. 91. 155 ARENDT, H., A condição humana, 2000. p. 189. 156 MORAES, M., Danos à pessoa humana. Uma leitura civil-constitucional dos
danos morais, 2003. p. 85.
INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 107
mesmo respeito à integridade psicofísica; 3) é dotado de vontade livre, de
autodeterminação; e 4) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a
garantia de não vir a ser marginalizado. Maria Celina de Moraes relaciona esses
postulados com os princípios jurídicos da igualdade, a integridade física e moral,
da liberdade e da solidariedade.
Ana Paula de Barcellos, também objetivando fornecer uma efetividade ao
princípio da dignidade humana, relaciona-o com a noção de mínimo existencial,
entendida como um conjunto de prestações materiais mínimas sem as quais
pessoa se encontraria em situação de indignidade.157
Esta também é a intenção dos autores da obra coletiva organizada por
Ingo Sarlet. O próprio título do livro já faz referência à dificuldade do termo, a
escolha da nomenclatura dimensões da dignidade humana visa demonstrar a
complexidade da própria pessoa humana. Ingo Sarlet menciona a problemática
de considerar o termo dignidade humana como universal, e mesmo que fosse
possível não haveria como evitar entendimentos diversos sobre quais atos
seriam ofensivos à dignidade humana158. Béatrice Maurer considera duas
dimensões da dignidade: uma substancial, ligada à noção de igualdade entre as
pessoas e a dignidade denominada de “atuada”, que seria a manifestação, a
realização de atos garantidores da dignidade159. As noções de vida e dignidade
humana estão intimamente relacionadas, não havendo uma conceituação
técnica capaz de separar objetivamente os âmbitos de atuação de cada
princípio. Para Michael Kloepfer estes termos devem ser entendidos como uma
unidade, de forma conjugada, porém isso não significa que representem o
mesmo direito fundamental. Os dois bens jurídicos podem, inclusive, entrar em
conflito entre si e “é preciso que resulte aqui, uma solução ponderada pautada
pelo critério do menor sacrifício possível de direitos fundamentais”160. A falta de
uma clara definição do termo dificulta e por vezes impossibilita sua efetivação. E
por fim, o entendimento de Peter Häberle, para quem a dignidade humana deve
ser fundamento da comunidade estatal, cabendo ao Poder Constituinte e ao
cidadão “acompanhar e seguir as fases do crescimento cultural e, com isso,
157 BARCELLOS, A., A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O princípio
da dignidade da pessoa humana, 2002. p. 305. 158 SARLET, I. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma
compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In Dimensões da dignidade. Ensaios de filosofia do direito e direito constitucional, 2005.
159 MAURER, B. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa humana... ou pequena fuga incompleta em torno de um tema central. In Dimensões da dignidade. Ensaios de filosofia do direito e direito constitucional, 2005.
INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 108
também as dimensões da dignidade humana em permanente processo de
evolução.” 161
A dignidade humana permeia toda a discussão sobre o aborto. Não só
porque a realização inconseqüente do ato atenta contra a dignidade de uma vida
humana, mesmo que em potencial, como também porque a imposição de
valores à gestante afronta a dignidade dessa, à medida que, restringe sua
liberdade individual. O princípio da dignidade da pessoa humana é utilizado
como premissa para a proibição do aborto e também como fundamentação para
a permissão da interrupção da gestação no caso proposto haja vista que a
obrigação legal de concluir a gravidez é tida como uma violência injustificada à
integridade psicofísica da mulher.
Neste ponto, destaca-se uma das regras fundamentais de Robert Alexy, já
citada anteriormente, segundo a qual um mesmo termo não pode ser utilizado de
forma distinta pelos falantes em um mesmo processo argumentativo. Assim
sendo, o princípio da dignidade da vida humana não será utilizado como base
argumentativa para nenhum dos entendimentos.
Desta feita, passa-se à análise dos argumentos defendidos no estudo de
caso. Os argumentos mais relevantes são: a sacralidade da vida e o direito à
integridade psicofísica que estaria sendo afrontado na obrigatoriedade legal da
mulher concluir seu período gestacional na hipótese de anencefalia de seu feto.
Segundo Ronald Dworkin existem duas objeções ao aborto. A primeira
denominada de derivativa considera que o feto desde sua concepção já possui
interesses próprios, dentre eles o de permanecer vivo, tendo o Estado que
garantir a proteção de seus interesses básicos. A segunda objeção é
denominada de independente e reconhece à vida humana um valor intrínseco e
inato, em seus dizeres “o caráter sagrado da vida humana começa quando sua vida
biológica se inicia, ainda antes de que a criatura à qual essa vida é intrínseca tenha
movimento, sensação, interesses ou direitos próprios.” 162
Qualquer concepção que se tenha sobre ordenamento jurídico,
especialmente a concepção ocidental contemporânea, terá como objeto
primordial de proteção o ser humano. As normas legais, embora variáveis em
160 KLOEPFER, M., Vida e dignidade da pessoa humana. In Dimensões da
dignidade. Ensaios de filosofia do direito e direito constitucional, 2005. p. 157. 161 HÄBERLE, P., A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal.
In Dimensões da dignidade. Ensaios de filosofia do direito e direito constitucional, 2005, p. 150.
162 DWORKIN, R., Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais, 2003. p. 13.
INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 109
seu conteúdo e forma, trazem em seus textos o princípio do respeito à vida
humana. Tal fato tem desdobramentos diversos conforme os valores e tradições
de cada população. O principal destes é a proibição de retirar a vida de um ser
humano em seus diferentes graus: homicídio, infanticídio, pena de morte, e,
finalmente, aborto.
Desta proibição preliminar à organização social humana decorre o conceito
de sacralidade da vida. Este termo é por muitos criticado por sua evidente
origem em valores religiosos, porém destaca-se que há muito tempo este
vocábulo tem sido desassociado dos referidos padrões meramente espirituais
para obter um embasamento moral laico. E será este fundamento do princípio da
sacralidade da vida que tratar-se-á neste estudo, relegando os aspectos
meramente religiosos quanto à origem e soberania divina sobre a vida humana.
No ordenamento jurídico brasileiro podem ser destacadas duas previsões
legais fundamentais sobre o tema. O artigo 124 do Código Penal Brasileiro de
1940 proíbe expressamente a prática do aborto, destacando o referido diploma
legal em seu artigo 128 os casos de exceção, nos quais, a prática do
abortamento é permitida por lei.
Como visto no capítulo sobre interpretação, segundo as técnicas
tradicionais de hermenêutica, prima-se pela interpretação literal do texto vigente.
De acordo com este entendimento os dispositivos legais expostos são claros
quanto à ilegalidade de qualquer interrupção voluntária da gravidez fora dos
parâmetros legais permissivos. Assim, a norma não merece qualquer
interpretação extensiva a outros casos, sendo clara que a antecipação do parto
em casos de anencefalia é crime, sendo qualquer outra interpretação contra
legem, não podendo ser aplicada.
A valorização máxima da vida humana enquadra-se de forma completa no
princípio bioético da não-maleficiência. Isto significa que a alegação de um
suposto direito da gestante não pode ser aceito, pois afrontaria diretamente o
princípio supra mencionado. A conduta da mulher acarretaria o dano irreversível
da morte de outro ser humano. Portanto, o argumento da sacralidade da vida
encontra um respaldo considerável na teoria bioética principialista.
Ademais, vimos na parte teórica que uma das grandes preocupações dos
estudiosos da bioética é a repetição das barbáries da eugenia nazista. Temem
eles que a permissão do aborto em casos de anomalias incompatíveis com a
vida acarrete a tolerância social e jurídica ao aborto em casos de deficiência
física ou mental. A teoria denominada no Brasil de ladeira escorregadia visa
INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 110
justamente chamar a atenção para tal possibilidade, evitando a classificação de
indivíduos como subumanos, indignos de proteção estatal.
Este argumento nos leva à principal objeção à interrupção da gestação
devido à anencefalia, qual seja não há como valorar diferentemente a vida
humana, estabelecendo graus diversos de qualificação de um indivíduo. Esta
argumentação encontra objeção no próprio ordenamento jurídico brasileiro
quando o legislador estabelece punições diferenciadas às diversas afrontas ao
direito à vida: homicídio, infanticídio e aborto. Porém, como a ciência ainda não
foi capaz de determinar com precisão o momento de início da vida humana,
então, utilizando o princípio da precaução163, qualquer organismo humano em
desenvolvimento deve ser protegido juridicamente. Não se pode determinar a
vida humana pela sua duração ou por suas capacidades. Não é menos humano
um feto por viver apenas alguns minutos ou horas e, enquanto perdurar suas
atividades fisiológicas, tem este direito à vida.
Na via contrária, há uma forte tendência bioética em valorizar outro
aspecto da vida humana – a qualidade. Atualmente a noção de sacralidade da
vida não é bastante, a manutenção de uma vida humana não é suficiente,
devendo os organismos estatais primar por elementos essenciais como a
autonomia, a saúde e o bem-estar do indivíduo. Dentro desta perspectiva serão
analisadas as razões que priorizam o direito à integridade psicofísica164 da
mulher.
Os vários argumentos que embasam este direito adotam as teorias
interpretativas mais modernas. Segundo as quais o texto constitucional deve ser
interpretado de forma mais ampla, por envolver valores e princípios abstratos,
conferindo-lhe a melhor adequação ao momento presente através de
referenciais ligados à noção de ponderação e argumentação.
O direito de escolha da gestante encontra suporte no princípio da
autonomia. Segundo este, a pessoa deve ser autônoma para determinar
163 O princípio da precaução é utilizado de forma corrente pelos doutrinadores do
Direito Ambiental e consiste em adotar uma postura defensiva em relação à procedimentos ou aos cuja conseqüência é ignorada.
164 Maria Celina Bodin de Moraes tece alguns comentários sobre a evolução deste princípio, ressaltando que inicialmente a integridade psicofísica era relacionada apenas à noções de tortura e tratamentos penais. Contudo, abrange diversos direitos da personalidade, como por exemplo: vida, nome, honra, identidade pessoal, corpo, entre outros. Hoje institui um amplo direito à saúde, ou como diz a autora, um completo bem-estar psicofísico e social, e contém ainda o direito à existência digna. MORAES, M. Danos à pessoa humana. Uma leitura civil-constitucional dos danos morais, 2003. p. 94.
INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 111
aspectos relevantes de sua vida, entre eles o direito reprodutivo. Esse
argumento é defendido de forma genérica para o aborto, mas no caso de
anencefalia seria reforçado, pois com a inviabilidade da vida fetal não há outro
sujeito a ser prejudicado. Além disso, o sofrimento gerado pela gravidez de um
feto anencéfalo sem viabilidade de vida extra-uterina e as possíveis
complicações de uma gestação também podem ser englobados no princípio da
beneficiência, já que a interrupção da gestação causaria um bem à saúde física
e, principalmente, à saúde psicológica da gestante.
Este princípio permite uma interpretação extensiva do artigo 128 do Código
Penal Brasileiro que permite a prática abortiva em casos de perigo à vida da
gestante. Alguns estudos têm sido propostos sobre o aumento do risco materno
nesses casos de gravidez, porém não há ainda um consenso médico a respeito
do tema para afirmar categoricamente que, pelo menos na parte física, há um
risco justificador da interrupção da gravidez.
Já no tocante aos danos psicológicos, há um forte entendimento de que a
obrigação legal a que é submetida a mulher ao levar a cabo a gestação de um
feto inviável é comparável à tortura. Os desconfortos e limitações impostos por
qualquer gestação seriam agravados pelo fato da consciência da gestora de que
seu feto não terá um desenvolvimento normal.
Nos dizeres da antropóloga Débora Diniz: “O fato é que o diagnóstico de má-formação fetal, em especial daquelas incompatíveis com a vida extra-uterina, não compõe o rol de expectativas das mulheres grávidas. O diagnóstico da má-formação fetal é, sem sombra de dúvida, uma das experiências mais angustiantes que uma mulher grávida pode experimentar. E parte importante desta angústia decorre exatamente da precisão diagnóstica possibilitada pelas técnicas: há uma limitação técnica da medicina fetal, pois, não há possibilidades terapêuticas para a grande maioria dos diagnósticos de má-formação fetal e, acrescido a isto, há uma limitação legal que restringe as decisões reprodutivas da mulher grávida, dificultando ou mesmo proibindo o aborto seletivo.“ 165 Os dados obtidos na parte empírica deste estudo embasam alguns
argumentos favoráveis à permissão do aborto.
Primeiro, a certeza científica de inviabilidade fetal e a confirmação total dos
diagnósticos realizados, não havendo um só caso onde a doença fora
descartada no exame pós-morte.
165 DINIZ, D. Quem autoriza o aborto? médicos, promotores e juízes em cena,
2003, p. 2.
INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 112
A ocorrência de diversos julgados permitindo a prática, o que evidencia
uma tendência jurisprudencial que acarreta uma insegurança jurídica se
modificada sem que haja uma fundamentação para tanto. É certo que somente o
Supremo Tribunal Federal pode emitir uma decisão jurídica obrigatória aos
demais ramos judiciários, porém, a reiteração de decisões em um determinado
sentido faz supor ao cidadão que aquele é o entendimento jurídico a respeito do
assunto. Ademais, a ínfima minoria que tem a solicitação negada não recebe um
tratamento jurídico igualitário, vez que, não lhe é dado o direito de escolha
concedido às demais solicitações, sendo que se encontra na mesma situação
que estas.
Os julgados estudados fundamentam outro ponto jurídico favorável à
permissão da interrupção que é a atipicidade da conduta. Tal formulação
jurídica, como visto em capítulo anterior, utiliza a legislação vigente sobre o
transplante de órgãos que estabelece a morte cerebral como determinante da
morte natural de uma pessoa. O feto anencéfalo caracteriza-se pela ausência de
cérebro, e silogisticamente, já deveria ser considerado morto para o
ordenamento jurídico. Então, quando a mãe antecipa o parto não acarreta
diretamente a morte do feto, a qual tem uma causa biológica natural, sendo
atípica a conduta da gestante ou do médico para o Direito.
Neste sentido, destaca-se o argumento principal que especifica o caso da
anencefalia – a inviabilidade de vida extra-uterina do feto. Neste contexto, não
há conflito de princípios por ausência de possibilidade de vida fetal. Assim
sendo, não há afronta voluntária à vida humana e sim uma inviabilidade natural.
Este entendimento se coaduna com a premissa de Robert Alexy de que
quanto maior a interferência em um princípio mais importante tem que ser a
realização de outro princípio. O direito fundamental da integridade psicofísica da
gestante não deve ser afastado haja vista que não será conservado o direito à
vida do feto. Assim sendo, não há uma justificação racional para restringir o
direito da mulher.
Conclusivamente, destacam-se as considerações de Hannah Arendt: “As perguntas específicas devem receber respostas específicas; e se a série de crises que temos vivido desde o início do século pode ensinar alguma coisa é, penso, o simples fato de que não há padrões gerais a determinar infalivelmente os nossos julgamentos, nem regras gerais a que subordinar os casos específicos com algum grau de certeza.” 166
166 ARENDT, H., Responsabilidade e julgamento, 2004. p. 7.
INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 113
A antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia deve ser
analisada de acordo com as peculiares características da hipótese. A atividade
legislativa brasileira não acompanhou as inovações técnicas da ciência médica,
não há uma previsão legal específica sobre o caso, o que permite tamanha
celeuma sobre a correta interpretação constitucional a respeito do tema. A
interpretação constitucional dos valores envolvidos não deve ser remetida à
legalidade ou não da prática abortiva, tema este muito mais amplo e complexo.
O que se pretende no estudo de caso é demonstrar que as descobertas
científicas das últimas décadas possibilitaram o conhecimento de um fator
determinante na gestação, a inviabilidade de vida extra-uterina.
O Supremo Tribunal Federal depara-se com uma situação jurídica sui
generis e, portanto, deve utilizar as técnicas interpretativas de forma a proferir
uma decisão com base em argumentos jurídicos racionais condizentes com os
valores expressos na Carta Magna de 1988. As normas constitucionais antes de
1988 tinham como problemática garantir a continuidade de sua vigência, diante
de tantos golpes a permanência de uma Constituição era hipóteses rara. Após a
promulgação da Constituição de 1988, e a estabilidade da democracia brasileira,
a preocupação passa a ser com a efetivação do texto constitucional167 e o
Supremo Tribunal Federal adquire um papel relevante neste sentido.
O debate deliberativo que se levantou a respeito do tema, por si só, já
representa um avanço para a democracia brasileira. A menção de que o relator
pretende convocar uma Audiência Pública para ouvir representantes de diversos
setores sociais alude a uma preocupação do Tribunal em observar parâmetros
democráticos em sua solução. A deliberação que precede o processo decisório é
indispensável à democracia. 168
A função outorgada pelos constituintes à Corte Suprema deve ser
conservada no sentido deste determinar qual a interpretação constitucional mais
adequada à lide em voga. A decisão a ser prolatada deve atentar para um
167 De acordo com este entendimento: “A legalidade constitucional, a despeito da
compulsão com que se emenda a Constituição, vive um momento de elevação: quinze anos sem ruptura, um verdadeiro recorde em um país de golpes e contra-golpes. (...) E a efetividade da Constituição, rito de passagem para o início da maturidade institucional brasileira, tornou-se uma idéia vitoriosa e incontestada. As normas constitucionais conquistaram o status pleno de normas jurídicas, dotadas de imperatividade, aptas a tutelar direta e imediatamente todas as situações que contemplam. BARROSO, L, BARCELLOS, A. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In BARROSO, L. A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, 2003, p. 329.
168 Neste sentido, SOUZA NETO, C. Teoria constitucional e democracia deliberativa. Um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática, 2006, p. 295.
INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 114
procedimento decisório racional e laico, através da argumentação e ponderação
dos valores constitucionais da integridade e da vida humana a fim de obter uma
legitimação democrática perante a sociedade plúrima. Segundo palavras do
Ministro Marco Aurélio, quer num sentido quer em outro, o Supremo Tribunal
Federal tem que emitir um posicionamento sobre a permissão legal de
antecipação de parto em caso de anencefalia fetal, pois a inércia institucional é
impiedosa à democracia169. Este trabalho não pretende determinar qual a única
resposta jurídica correta. Porém, “devemos insistir em que apresentem os melhores
argumentos possíveis, e, em seguida, perguntar a nós mesmos se seus argumentos são
suficientemente bons”. 170
169 Como dito anteriormente não é tratada, neste trabalho, a questão de separação
dos Poderes quanto à edição e aplicação de normas. Entretanto, vale citar Cláudio Pereira de Souza Neto: “Assim, um dos argumentos centrais para a restrição do ativismo judicial nessa área é justamente o da legitimação democrática. (...) O estabelecimento de finalidades se situa no campo do dissenso político e deve ser resolvido através do princípio majoritário. Como sublinhamos, as teorias democrático-deliberativas levam a uma restrição da atividade judicial ao campo da neutralidade política, que caracteriza o consenso procedimental, deixando em aberto à deliberação majoritária o dissenso conteudístico. O que não pode ocorrer é o estado violar os direitos fundamentais ou deixar de implementa-los – hipótese em que estará agindo ilegitimamente, ficando justificada a ação judicial.” SOUZA NETO, C. Fundamentação e normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à luz do princípio democrático. In BARROSO, L. A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, 2003.
170 DWORKIN, R., Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais, 2003, p. 203
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 115
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABEL, Francesc, BONE, Edouard e HARVEY, John C. La vida humana:
origen y desarrollo. Reflexiones bioeticas de cientificos y moralistas. Madrid:
Universidad Pontificia Comillas, 1989.
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. Tradução:
Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
ALCHOURRÓN, Carlos., BULYGIN, Eugenio. Análisis lógico y derecho.
Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991.
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. A teoria do discurso
racional como teoria da justificação jurídica. Tradução Zilda Silva. 2ª edição.
São Paulo: Landy, 2005.
____________. Colisão de Direitos Fundamentais e Realização de Direitos
fundamentais no Estado de Direito Democrático. In Revista da Faculdade de
Direito da UFRGS, v.17, 1999.
____________. Derechos, Razonamiento Jurídico y Discurso Racional. In
Revista Isonomia nº 1, 1993. Pg. 37 - 49.
____________. Sistema jurídico, principios y razón práctica. In Revista Doxa.
Nº 5, 1988. pg. 139 – 151.
AMADO, Juan Antonio García. Ensayos de filosofía jurídica. Bogotá: Editorial
Temis, 2003.
ANIS. Anencefalia. O pensamento brasileiro em sua pluralidade. Brasilia:
ANIS, 2004.
ANJOS, Márcio Fabri dos. Argumento Moral e Aborto. São Paulo: Loyola,
1976.
ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. Tradução Rosaura
Einchenberg. São Paulo: Companhia das letras, 2004.
_______________. A condição humana. 10a edição. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2000.
ASCH, Adrienne. Diagnóstico pré-natal e aborto seletivo. In Perfil das
Percepções sobre as Pessoas com Síndrome de Down e do seu
atendimento: Aspectos Qualitativos e Quantitativos. Márcio Ruiz
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 116
Schiavo.(coord) Brasília: Federação Brasileira das Associações de Síndrome
de Down, 1999.
ATIENZA, Manuel. As razões do direito. Teorias da argumentação
jurídica.Tradução Maria Cristina Guimarães Supertino. 3ª edição. São Paulo:
Landy, 2003
_______________. Los limites de la interpretación constitucional. De nuevo
sobre los casos trágicos. In Isonomia, nº 6, 1997.
_______________. Juridificar la bioética. In Isonomia nº 8, abril 1998.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos
princípios jurídicos. 2a edição. São Paulo: Malheiros, 2003.
_______________. Direitos fundamentais dos contribuintes e os obstáculos
à sua efetivação. In PIRES, Adilson Rodrigues, TÔRRES, Heleno Taveira
(organizadores). Princípios de direito financeiro e tributário. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006. p. 345-361.
BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade
jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
_______________. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O
princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
_______________. Alguns parâmetros normativos para a ponderação
constitucional. In BARROSO, Luís Roberto (organizador). A nova
interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações
privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 49-118.
BARROS, Alexandra. Limites à condenação do aborto seletivo: a deficiência
em contextos de países periféricos. In Série Anis 30, Brasília, LetrasLivres,
outubro, 2003. p.1-6.
BARROSO, Luís Roberto (organizador). A nova interpretação constitucional.
Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003.
_______________, BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. A
nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito
brasileiro. In BARROSO, Luís Roberto (organizador). A nova interpretação
constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio
de Janeiro: Renovar, 2003. p. 327-378.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 21ª edição. São
Paulo: Saraiva, 2000
BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princípios de ética
biomédica. Tradução Luciana Pudenzi. São Paulo: Loyola, 2002.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 117
BEZERRA, Paulo César Santos. Acesso à justiça. Um problema ético-social
no plano da realização do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral.
Volume 1. São Paulo: Saraiva, 2003.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 10ª edição. Rio de Janeiro: Campus,
1992.
BUCHANAN, A . Choosing who will be disabled: genetic intervention and the
morality of inclusion. In Social Philosophy and Policy 1996; 13.2:18-45: n.7,
21.
BUSATO, Paulo César. Tipicidade material, aborto e anencefalia. In Revista
Eletrônica de Ciências Jurídicas. RECJ.01.04, 2004.
CALLEN, Peter W. Ultra-sonografia em obstetrícia e ginecologia. Tradução
Octacílio Figueiredo Netto. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002.
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação. Uma
contribuição ao Estudo do Direito. 3ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 9ª edição. São Paulo: Ática, 1997.
CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DA BAHIA.
Anencefalia e Supremo Tribunal Federal. Brasília: Letras Livres, 2004
COSTA, Sergio Ibiapina Ferreira, OSELKA, Gabriel, GARRAFA, Volnei,
(coordenadores). Iniciação à bioética. Brasília: Conselho Federal de
Medicina, 1998.
DANTAS, Ivo. Princípios constitucionais e interpretação constitucional. Rio
de Janeiro: Lúmen Júris, 1995.
DEGOS, Laurent. Os critérios biológicos da presença de uma pessoa
humana. In Sciences et Avenir Hors-série, nº 130, mar/abr, 2002.
DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. Volume 1, 10 ª edição, Rio de
Janeiro: Forense, 1987.
DINIZ, Débora. O aborto seletivo no Brasil e os alvarás judiciais. In Série
Anis 12, Brasília, LetrasLivres, 1-6, junho, 2000.
____________. Quem autoriza o aborto? médicos, promotores e juízes em
cena. In Série Anis 27, Brasília, LetrasLivres, 1-11, julho, 2003.
____________. Abortion in brazilian bioethics. In Série Anis 32, Brasília,
LetrasLivres, 1-3, março, 2004
____________, RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto por anomalia fetal. Brasília:
Letras Livres, 2004.
____________, COSTA, Sérgio. Bioética: ensaios. Brasília: Letras Livres,
2004.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 118
____________, CORRÊA, Marilena. Por uma análise crítica da proposta de
modificação da Declaração De Helsinki . Série Anis 03. Brasília: LetrasLivres,
1-7, junho, 2000
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 2ª edição. São Paulo:
Saraiva, 2002.
DWORKIN, Ronald. Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades
individuais. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes,
2003.
____________. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes,
2002.
ECO, Umberto. Os limites da interpretação. São Paulo: Perspectiva, 2000.
ENGELHARDT JR., H. Tristan. Fundamentos da bioética. Tradução José A.
Ceschin. São Paulo: Loyola, 1998.
____________. Manuale di Etica. Milano: Il Sagiatore, 1999.
FEDERAÇÃO BRASILEIRA DAS ASSOCIAÇÕES DE SÍNDROME DE
DOWN. Perfil das Percepções sobre as Pessoas com Síndrome de Down e
do seu atendimento: Aspectos Qualitativos e Quantitativos. Márcio Ruiz
Schiavo (coordenador). Brasília: Federação Brasileira das Associações de
Síndrome de Down, 1999.
FRAGOSO, Heleno. Lições de Direito Penal. V.1, 8ª edição, Rio de Janeiro:
Forense, 1986.
FRANÇA, Limongi (coordenação). Enciclopédia Saraiva de Direito. Vol. 1.
São Paulo: Saraiva, 1977.
FREITAS, Juarez. O intérprete e o poder de dar vida à constituição: preceitos
de exegese constitucional. In GRAU, Eros Roberto, GUERRA FILHO, Willis
Santiago (organizadores). Direito Constitucional. Estudos em homenagem a
Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 26-248.
GARRAFA, Volnei; COSTA, Sérgio Ibiapina. A bioética no século XXI.
Brasília: UNB, 2000.
GOLLOP, Thomaz Rafael. Aborto por anomalia fetal. In Revista Bioética.
Simpósio: Aborto. Vol. 2, número 1, 1994.
____________, MACHADO, Lia Zanotta. O direito irrefutável ao aborto. In
Jornal da Ciência de 28 de outubro de 2005. p.9.
GONÇALVES, Guilherme Figueiredo Leite. Direito, certeza e tempo. In
TORRENS, Haradja Leite, ALCOFORADO, Mario Sawatani Guedes. A
expansão do direito: estudos de direito constitucional e filosofia do direito.
Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p. 341-345.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 119
GOUVÊA, Marcos Maselli. O controle judicial das omissões administrativas.
Novas perspectivas de implementação dos direitos prestacionais. Rio de
Janeiro: Forense, 2003.
GRAU, Eros Roberto, GUERRA FILHO, Willis Santiago (organizadores).
Direito Constitucional. Estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São
Paulo: Malheiros, 2001.
GUASTINI, Ricardo. Estudios sobre la interpretación jurídica. México: Porrúa,
2003.
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência jurídica. São Paulo:
Saraiva, 2001.
____________. Sobre o princípio da proporcionalidade. In LEITE, George
Salomão. Dos princípios constitucionais. Considerações em torno das
normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 237-
253.
GUIBOURG, R., GHIGLIANI, A., GUARINONI, R. Lenguaje. In: Introducción
al conocimiento científico. Buenos Aires: Eudeba, 2000.
HARE, R. Essays on Bioethics. Oxford: Oxford University Press, 1993.
HUNGRIA, Nelson e FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código
Penal. Vol. V. 6ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
ISFER, Eduardo Valente, SANCHEZ, Rita de Cássia, SAITO, Mauricio.
Medicina Fetal. Diagnóstico pré-natal e conduta. Rio de Janeiro: Revinter,
1996.
KOHLBERG, Larry. Moral stages and moralization: the cognitive
developmental approach. In Moral development behavior. New York: Holt,
Rinehart and Winston, 1976.
KOTTOW, Miguel. Introducción a la bioética. Santiago: Ed. Universitaria,
1995.
LEITE, Eduardo de Oliveira. Eugenia e bioética: os limites da ciência face à
dignidade humana. In Revista jurídica 321 – julho / 2004. Porto Alegre:
Notadez.
LEITE, George Salomão. Dos princípios constitucionais. Considerações em
torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros,
2003.
LIMA, João Batista de Souza. As mais antigas normas de direito. 2a edição.
Rio de Janeiro: Forense, 1983.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 120
MANARI FILHO, Luís Sérgio Soares. A comunidade aberta de intérpretes da
constituição. O Amicus Curie como estratégia de democratização da busca
do significado das normas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19a edição. Rio
de Janeiro: Forense, 2005.
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo
Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais.
Brasília: Brasília Jurídica, 2000.
MENDONÇA, Daniel. Interpretación y aplicación del derecho. Almería:
Universidad de Almería, 1997.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Parto, aborto e puerperio: asistencia humanizada
à mulher. Brasilia: Ministerio da Saúde, 2001.
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana. Uma leitura civil-
constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
MORESO, José Juan. La indeterminación del derecho y la interpretación de
la constitución. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales,
1997.
MORI, Maurizio. A moralidade do aborto. Sacralidade da vida e o novo papel
da mulher. Tradução de Fermin Roland Schramm. Brasilia: Editora
Universidade de Brasilia, 1997.
MORON, Antonio Fernandes. Medicina fetal na prática obstétrica. São Paulo:
Santos Editora, 2003.
MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. 3a edição.
Tradução Peter Naumann. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
NAVARRO, Pablo. Sistemas jurídicos, casos difíciles y conocimiento del
derecho. In Revista Doxa nº 14, 1993. pg. 243 -268.
NEVES, Marcelo. A interpretação jurídica no estado democrático de direito.
In GRAU, Eros Roberto, GUERRA FILHO, Willis Santiago (organizadores).
Direito Constitucional. Estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São
Paulo: Malheiros, 2001. p. 356-376.
NYBERG, David A.. Diagnostyc imaging of fetal anomalies. Philadelphia:
LIPPINCOTT Williams & Wilkins, 2003.
ORTEGA, Manuel Segura. Sobre la interpretación del derecho. Santiago de
Compostela: Universidade de Santiago de Compostela, 2003.
PINTO, Fernanda Menna. Da argüição de descumprimento de preceito
fundamental. In TORRENS, Haradja Leite, ALCOFORADO, Mario Sawatani
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 121
Guedes. A expansão do direito: estudos de direito constitucional e filosofia do
direito. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p. 275-286.
PIRES, Adilson Rodrigues, TÔRRES, Heleno Taveira (organizadores).
Princípios de direito financeiro e tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
POTTER, Van. Bioethics: Bridge to the future. Englewood Cliffs: Prentice
Hall, 1971:2.
REICH, WT. Encyclopedia of Bioethics. New York: MacMillan, 1995.
SÁ, Elida. Biodireito. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1999.
SACKETT, David L. (coordenador). Medicina baseada em evidências: prática
e ensino. Tradutor Ivan Carlquist. 2a edição. Porto Alegre: Artmed, 2003.
SADEK, Maria Tereza (organizadora). Acesso à justiça. São Paulo:
Fundação Konrad Adenauer, 2001.
SALOMÃO, Antonio Jorge. Abortamento espontâneo. In Obstetrícia Básica.
Bussâmara Neme. São Paulo: Sarvier, 1994.
SANDERS, Roger C., BLACKMON, Lílian R., HOGGE, W. Allen,
WUFSBERG, Eric A. Feto. Anomalias estruturais. Uma abordagem completa.
Tradução Maristela Fracaro Menck. Rio de Janeiro: Revinter, 1999.
SARLET, Ingo Wolfgang (organizador). Dimensões da dignidade. Ensaios
de filosofia do direito e direito constitucional. Tradução Ingo Wolfgang Sarlet,
Pedro Scherer de Mello Aleixo e Rita Dostal Zanini. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005.
________________. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1999.
________________. A pesquisa bioética no Brasil. In Cadernos Adenauer,
Rio de Janeiro, v. III, n. 1, p. 87-102, 2002.
________________, KOTTOW, Miguel. Princípios bioéticos em salud pública
limitaciones y propuestas. In Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, jul-
ago 2001. p. 949-956.
SEGRE, Marco, COHEN, Claudio. (Organizadores). Bioética. São Paulo:
Universidade de São Paulo, 1995.
SGRECCIA, Elio. Manual de bioética. V. 1, São Paulo: Loyola, 1996.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3a edição.
São Paulo: Malheiros, 1999.
SINGER, Peter. Ética Prática. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
SOARES, André Marcelo M. e PIÑEIRO, Walter Esteves. Bioética e
Biodireito. Uma introdução. São Paulo: Loyola, 2002.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 122
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria constitucional e democracia
deliberativa. Um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições
para a cooperação na deliberação democrática. Rio de Janeiro: Renovar,
2006.
________________. Jurisdição constitucional, democracia e racionalidade
prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
________________. Fundamentação e normatividade dos direitos
fundamentais: uma reconstrução teórica à luz do princípio democrático. In
BARROSO, Luís Roberto (organizador). A nova interpretação constitucional.
Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003. p. 285-326.
TASSE, Adel El. Aborto de feto com anencefalia: ausência de crime por
atipicidade. In Revista Jurídica no 322. Ano 52. Agosto ; 2004. pg. 101 – 113.
São Paulo: Notadez.
TAVARES, André Ramos. Elementos para uma teoria geral dos princípios na
perspectiva constitucional. In LEITE, George Salomão. Dos princípios
constitucionais. Considerações em torno das normas principiológicas da
Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 21-51.
TORRENS, Haradja Leite, ALCOFORADO, Mario Sawatani Guedes. A
expansão do direito: estudos de direito constitucional e filosofia do direito.
Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004.
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2002.
XAVIER, Elton Dias. A bioética e o conceito de pessoa: a re-significação
jurídica do ser enquanto pessoa. In Revista Bioética, vol. 8, nº 2, 2000.
INTRODUÇÃO 11
1 INTRODUÇÃO
A defasagem temporal entre as descobertas científicas e a elaboração de
normas jurídicas reguladoras da sociedade há muito é objeto de análise dos
estudiosos não só do Direito, mas de toda Ciência Social Aplicada.
Uma das respostas fornecidas a este problema é a elaboração de um novo
ramo da ética aplicada denominado de Bioética. Série de correntes de
pensamento, desenvolvida principalmente a partir da segunda metade do século
XX, a bioética lida com questões morais e filosóficas envolvendo as mais
diversas ciências. É um movimento acadêmico de natureza interdisciplinar que
nasce com a busca por respostas a questionamentos pertinentes a valores
tradicionais acerca do nascer, viver, adoecer e morrer no contexto histórico das
sociedades democráticas, pluralistas e secularizadas contemporâneas.
A interligação cada vez mais freqüente entre os conhecimentos
acadêmicos acarreta a necessidade dos agentes jurídicos se familiarizarem com
descobertas de outros ramos científicos, entre eles a medicina. Este
relacionamento é denominado por alguns autores de Biodireito cuja função é
relacionar os estudos bioéticos com as doutrinas jurídicas. Porém, a relação
entre os avanços científicos e as normas de conduta estabelecidas pelos
ordenamentos jurídicos ainda é primária, necessitando de uma discussão
metodológica sobre o tema. O Brasil depara-se com uma dificuldade ainda maior
- a problemática da injustiça e exclusão social. Convivemos com avanços
tecnológicos de ponta ao lado de situações de miséria social e sanitária
medievais. As discussões ainda persistentes juntam-se aos problemas
emergentes, levando a uma necessidade de identidade própria da bioética, e
conseqüentemente, do biodireito brasileiro.
INTRODUÇÃO 12
A complexidade das organizações humanas contemporâneas acarreta
também outra problemática, qual seja o conflito entre os diversos valores morais
adotados e expressos concomitantemente no ordenamento jurídico vigente.
Diversas teorias buscam uma solução jurídica racional para a resolução destes
conflitos. Dentre elas a teoria da ponderação de princípios e a técnica
argumentativa como legitimadora das decisões judiciais que abrangem princípios
contraditórios quando da aplicação ao caso concreto.
A metodologia adotada utilizará: 1) a revisão bibliográfica sobre aspectos
da bioética relacionados à temática do aborto e sobre interpretação de textos
legais, especialmente constitucional; e 2) estudo de caso: antecipação do parto
em caso de anencefalia fetal, onde serão colhidos dados através da técnica de
aplicação de formulários no Instituto Fernandes Figueira.
O trabalho será dividido em três partes principais.
A primeira lidará com as questões teóricas sobre o tema. O capítulo um
será destinado a tecer algumas considerações sobre a bioética, desde o
surgimento deste ramo científico, passando pelas teorias metodológicas
atualmente utilizadas, até o seu relacionamento com a ciência jurídica. O
segundo capítulo tratará do aborto – considerações sobre a nomenclatura do
termo, aspectos bioéticos e jurídicos, inclusive com os documentos legais
externos e internos. E, por fim, o terceiro capítulo que analisará algumas teorias
sobre interpretação constitucional. O ato de interpretar uma norma jurídica,
especialmente uma Constituição, é uma atividade que tem como finalidade a
compreensão ou aclaração de seu texto objetivando sua aplicação ao caso
concreto. Tal atividade é essencial para que os valores elencados na Carta
Magna sejam concretizados nos casos propostos ao Poder Judiciário, cabendo
ao intérprete a busca de métodos e técnicas interpretativas capazes de
assegurar a observância dos princípios fundamentais ao Estado Democrático de
Direito.
A segunda parte deste trabalho proporá o estudo de caso da antecipação
terapêutica do parto de gestantes de fetos anencéfalos. O estudo proposto
enquadra-se perfeitamente nas problemáticas referidas anteriormente por
envolver valores e conceitos conflitantes, além de ser pauta atual de discussão,
não somente em nosso Tribunal Supremo, como na mídia e nos mais diversos
seguimentos da sociedade. O quarto capítulo buscará suporte teórico na ciência
médica a respeito da anencefalia, sobre o diagnóstico e prognóstico desta
deformidade. E dados empíricos sobre a gestação de fetos anencéfalos no
Instituto Fernandes Figueira. A metodologia adotada na pesquisa será a de
INTRODUÇÃO 13
análise de prontuários objetivando o recolhimento de dados. A escolha do
Instituto Fernandes Figueira decorreu de sua especialização em gestações de
alto risco, inclusive de fetos anencéfalos, e pela alta qualificação de seus
profissionais, sendo este um hospital de referência no Estado do Rio de Janeiro.
As autorizações judiciais relativas aos casos analisados nesta pesquisa empírica
serão analisadas com o intuito de levantar os argumentos que fundamentaram
essas decisões. A seguir, será estudado ainda o histórico da antecipação
terapêutica do parto de anencéfalos no Supremo Tribunal Federal, iniciado com
um Habeas Corpus e atualmente em pauta com uma Ação de Descumprimento
de Preceito Fundamental.
E a terceira parte, desenvolvida no capítulo quinto, relacionará as duas
anteriores, utilizando os aspectos teóricos para discutir o estudo de caso. A
intenção será demonstrar que a antecipação terapêutica de parto é uma das
hipóteses que demandam do aplicador do direito a busca constante pela
racionalização das decisões jurídicas, devendo estas ser submetidas ao crivo da
legitimidade dos argumentos adotados. A discricionariedade que os
ordenamentos jurídicos atuais fornece aos juízes não deve ser associada a uma
arbitrariedade, onde a decisão é carente de uma verificação objetiva de sua
fundamentação. Ronald Dworkin e Robert Alexy são apenas dois dos juristas
que têm como preocupação a valoração extrema dos princípios sem que haja
uma reflexão teórica sobre a aplicação dos mesmos.
À guisa de conclusão, ressaltada será a importância da interpretação
constitucional nos estados contemporâneos. O texto constitucional, como
paradigma legal dos ordenamentos jurídicos, deve estabelecer normas que
concretizem os valores primordiais da sociedade. Em vista da pluralidade de
princípios norteadores e da complexidade dos casos concretos que demandam
uma resposta judiciária não é mais suficiente uma aplicação do Direito
meramente subsuntiva, na qual cada lide deve ser enquadrada dentro de uma
determinada norma. As técnicas jurídicas não mais se iludem com a
possibilidade do legislador esmiuçar os textos normativos de forma a prever toda
e qualquer hipótese prática de conflito. O Supremo Tribunal Federal como
guardião da Constituição Federal deve atentar para a utilização da ponderação
de princípios e argumentação racional na fundamentação de suas decisões o
que possibilitará um controle participativo do povo e a manutenção de sua
legitimidade perante um processo decisório característico do Estado
Democrático de Direito.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 14
2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA
2.1.Surgimento da Bioética
As descobertas científicas trazem consigo conseqüências muitas das
vezes desconhecidas por seu inventor. Sua rapidez na área biomédica torna
difícil o acompanhamento da totalidade de seu impacto na vida humana. A
sociedade contemporânea, por sua complexidade e diversidade, apresenta
novos conflitos e, conseqüentemente, busca novas metodologias científicas para
solucioná-los. Os aspectos negativos oriundos do progresso tecnológico devem
ser questionados e ponderados através de um diálogo interdisciplinar.
Apesar de encontrarmos uma preocupação ética na ciência médica desde
a época de Hipócrates e seu juramento perpetrado até os dias atuais, esta ética
era somente direcionada para a relação médico-paciente. Nas sociedades
tribais, os atos dos “curandeiros” eram regrados por um conjunto de valores. O
Código de Hammurabi (lei de talião): prevê a amputação da mão do médico que
matar ou prejudicar fisicamente um paciente nobre1. E o supra citado Hipócrates,
através de seu juramento, estabelecia três parâmetros principais: os dois
princípios de não maleficência e de beneficência, consoante com a visão do
caráter sagrado da vida humana, e a obrigação do médico de honrar e, se
necessário, sustentar seus mestres.
A junção destas preocupações com outros ramos de conhecimentos foi
proposta pelo oncologista norte-americano Van Rensselaer Potter que empregou
o neologismo "Bioética" pela primeira vez em um artigo publicado em 1970. E,
posteriormente, em 1971, publicou o seu livro intitulado Bioethics: Bridge to the
Future. Van Potter, em sua visão global da humanidade, defendia a importância
das ciências biológicas na melhoria da qualidade de vida e se preocupava com a
1 O referido código trata do salários dos médicos juntamente com outros ofícios
como o de veterinário, arquiteto e bateleiro. Rege o seu artigo 218: “Se um médico trata alguém de uma grave ferida com a lanceta de bronze e o mata ou lhe abre uma incisão com a lanceta de bronze e o olho fica perdido, se lhe deverão cortar as mãos.”. Fonte: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/hamurabi.htm em 02.01.2006.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 15
sobrevivência do planeta. A proposta de Van Potter era edificar uma ponte entre
elementos aparentemente separados: a ciência e a humanidade. O conceito de
bioética de Van Potter é explicado em seu livro supra citado da seguinte forma:
“Eu proponho o termo Bioética como forma de enfatizar os dois componentes mais importantes para se atingir uma nova sabedoria, que é tão desesperadamente necessária: conhecimento biológico e valores humanos.”2 O Prof. Tristran Engelhardt leciona Ética na Universidade do Texas e diz
que: “A Bioética funciona como uma lógica do pluralismo, como um
instrumento para a negociação pacífica das instituições morais.”3
A Enciclopédia de Bioética ensina que: ”Bioética é o estudo sistemático
das dimensões morais - incluindo visão moral, decisões, conduta e
políticas - das ciências da vida e atenção à saúde, utilizando uma
variedade de metodologias éticas em um cenário interdisciplinar”4.
A partir daí, o conceito de Bioética foi rapidamente difundido e passou a
integrar também os aspectos médicos, ou seja, como ética aplicada ao campo
da medicina e da biologia.
A posterior consolidação da Bioética coincide com as conquistas referentes
aos direitos humanos. Por tal razão, é retomada a preocupação mundial com
questões éticas, desenvolvendo a eticidade das pesquisas com sujeitos
humanos como um de seus principais focos de atenção.
Inicialmente este termo denotava a preocupação ética com o equilíbrio e a
preservação dos seres humanos com seu ambiente ecológico. Desde então,
diversas correntes de pensamento têm oferecido instrumentos metodológicos no
sentido de sistematizar e totalizar os conhecimentos nesta área. Este talvez seja
o maior problema da bioética contemporânea: a pretensão de reunir toda a
verdade em seu modo de ver, enquanto seria mais útil buscar respostas aos
desafios de cada dia.
A atualidade da temática é explicada se considerarmos que os avanços
médicos obtidos por volta da metade do século XX produziram mudanças
drásticas nos cuidados com a saúde. Hodiernamente nos deparamos com
indagações sobre a moralidade do aborto, da eutanásia, da engenharia genética,
da alocação de recursos no setor da saúde, da venda de órgãos, entre outras.
2 POTTER, V., Bioethics. Bridge to the future, 1971, p. 2. 3 ENGELHARDT JR, H., Manuale di Etica, 1991, p. 19. 4 REICH, W.T. Encyclopedia of Bioethics, 1995.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 16
Três teorias foram propostas objetivando resolver os conflitos bioéticos
surgidos.
A primeira denominada de Bioética dos Limites surge com o Código de
Nüremberg (1947) e a Declaração de Helsinque (1964-2000). Esta teoria visa
regulamentar a experimentação em humanos baseada no princípio do
consentimento livre e esclarecido e nos direitos naturais e inalienáveis das
pessoas. Considera que existe uma “periculosidade intrínseca” do saber-fazer
tecnocientífico não só em período de guerra (nazismo), mas também em período
de paz (as pesquisas mencionadas). Tal reflexão origina a criação dos Comitês
de Ética em Pesquisa (1973, US National Commission for the Protection of
Human Subjects and Behavioral Research) e de Relatórios (1974, Belmont
Report).
A segunda pode ser denominada de Bioética dos novos dilemas morais.
Também acarreta a criação de Comissões de Ética como a God Commission
(Seattle, 1962) e a Harvard Ad Hoc Commission on Brain Death (Boston, 1968).
Aborda questões como: quais são os critérios pertinentes de morte para uma
intervenção clínica moralmente legítima? Quais são os critérios de justiça
distributiva que devem ser adotados em situações de recursos finitos e
escassos? Considera que o papel da bioética não consiste em impor limites, mas
sim, em indicar soluções normativas para os problemas que surgem na pesquisa
e na prática clínica, tendo em conta as tradições culturais e o contexto histórico.
E por fim, a Bioética Analítica dos Casos Concretos. Concepção que faz
surgir a bioética com o neologismo bioethics (Potter, 1970), a criação do Institute
of Society, Ethics and the Life Sciences por D. Callahan e W. Gaylin (1969, hoje
conhecido como Hasting Center, a criação da Society for Philosophy and Public
Affairs (1971) e o Joseph and Rose Kennedy Institute for the Study of Human
Reproduction and Bioethics (1971). Considera a Bioética pertencente ao âmbito
das Éticas Aplicadas, adotando a análise racional e imparcial dos conflitos e
propondo soluções no contexto de sociedades multiculturais.
Diversas metodologias são apresentadas como instrumental para
refletirmos sobre essas questões, como por exemplo: utilitarismo, principialismo,
kantismo ou da obrigação, a ética do caráter, individualismo liberal, da
responsabilidade, comunitarismo e a casuística. Cada teoria abordará as
indagações éticas de uma forma distinta, e, muitas das vezes, apresentará
soluções diferentes ao mesmo dilema.
No âmbito deste trabalho será adotada a corrente principialista,
regulamentada pelo Relatório Belmont. Esta escolha foi influenciada pelo
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 17
reconhecimento de sua importância e eficácia no meio bioético e sua
aproximação com teorias jurídicas.
O Relatório Belmont5 decorreu de uma combinação de fatores, dentre eles
a crescente reflexão ética sobre a pesquisa com seres humanos e a ocorrência
de diversos escândalos envolvendo pesquisadores. Foi então criada a Comissão
Presidencial de Proteção dos Seres Humanos para elaborar um relatório que
tinha como objetivo se tornar um protótipo para outros tantos documentos no
sentido de assegurar que as pesquisas envolvendo seres humanos sejam
conduzidas de maneira ética.
O referido relatório, promulgado em 18 de abril de 1978, estabelece três
princípios como relevantes para as pesquisas com seres humanos, embora não
exclua que em certos casos podem ser aplicados mais princípios.
O primeiro princípio é o da autonomia e do respeito pelas pessoas, o qual
estabelece que os indivíduos devem ser tratados como agentes autônomos, há a
necessidade do consentimento informado do participante e deve ser protegida a
pessoa que por qualquer razão tenha sua autonomia diminuída.
O segundo princípio é o da beneficiência, segundo o qual os participantes
da pesquisa devem ser beneficiados pela mesma, não bastando sua anuência
ou a não ocorrência de danos.
E o último princípio estipulado neste documento é o da justiça, onde se
prima pela distribuição igualitária dos benefícios da pesquisa, rejeitadas
quaisquer discriminações na utilização dos resultados obtidos.
Beauchamps e Childress sistematizaram a teoria principialista6. Para
estes autores:
“Os princípios (e coisas do gênero) nos orientam para certas formas de comportamento; porém, por si mesmos, eles não resolvem conflitos de princípios. Enquanto a especificação promove um desenvolvimento substantivo da significação e do escopo das normas, a ponderação consiste na deliberação e na formulação de juízos acerca dos pesos relativos das normas.”7
5 O texto atualizado do relatório foi obtido através do endereço eletrônico:
www.fda.gov 6 Embora estes autores estejam muito direcionados à pesquisa médica, os
princípios propostos encontram aplicação nos diversos conflitos bioéticos enfrentados atualmente. A observância destas diretrizes gerais deve ser analisada de forma específica em cada problemática. O capítulo final deste estudo terá como objetivo justamente tal aplicação. Os quatro princípios serão confrontados com os argumentos defendidos de forma favorável e contrária à antecipação terapêutica do parto em caso de anencefalia fetal.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 18
O modelo pensado por Beauchamps e Childress pauta-se em quatro
princípios basilares, foi acrescentado o da não-maleficiência aos princípios
estabelecidos em Belmont. Segundo esta linha de raciocínio, o princípio da não-
meleficiência seria caracterizado pela máxima: O pesquisador não deve infringir
mal ou dano no desenvolvimento da pesquisa, enquanto que o princípio da
beneficiência adotaria como pilares as noções de impedir que ocorram males ou
danos e sanar os mesmos caso aconteçam8.
Beauchamp & Childress desenvolveram teorias para iluminar a prática
empírica e determinar o que deve ser feito, utilizando a experiência para testar,
corroborar e revisar teorias. Buscam uma estratégia dialética que procura
coerência entre julgamentos particulares e gerais utilizando a ponderação e
priorização de normas através da deliberação e formulação de juízos acerca dos
pesos relativos das normas.
Embora estes autores estejam muito direcionados à pesquisa médica, os
princípios propostos encontram respaldo em diversos conflitos bioéticos
enfrentados atualmente. A observância destas diretrizes gerais deve ser
analisada de forma específica em cada problemática. O capítulo final deste
estudo terá como objetivo justamente tal aplicação. Os quatro princípios serão
confrontados com os argumentos defendidos de forma favorável e contrária à
permissão legal da antecipação do parto em caso de anencefalia fetal.
Outro princípio que usa a ponderação é o princípio utilitarista9 o qual rege
que a melhor resposta ética é aquela oriunda da ponderação entre a ação e sua
conseqüência. Então: “o ato correto em cada circunstância é aquele que produz
o melhor resultado global, conforme determinado por uma perspectiva impessoal
que confere pesos iguais aos interesses de cada uma das partes afetadas.”10 O
problema deste princípio é sua aplicação pura ou absoluta, pois, tal modelo de
pensamento, adota uma noção de justiça baseada no abstrato conceito da
7 BEAUCHAMPS, T., CHILDRESS, J. Princípios de ética biomédica, 2002, p. 49. 8 BEAUCHAMPS, T., CHILDRESS, J., Princípios de ética biomédica, 2002. p. 212. 9 Nos fundamentos de sua estrutura, o utilitarismo encara um indivíduo como a
expressão da utilidade, da satisfação, do prazer, da felicidade ou do desejo de realização. Alguns representantes desta corrente de pensamento podem ser citados como Jeremy Bentham que sugeriu uma forma de quantificar a utilidade em 7 critérios: Intensidade, Duração, Certeza, Proximidade, Fecundidade, Pureza, Extensão; e John Stuart Mill o qual acredita que as pessoas são motivadas pela promessa de felicidade, através do sucesso ou do dinheiro.
10 BEAUCHAMPS, T., CHILDRESS, J., Princípios de ética biomédica, 2002. p. 62 – 63.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 19
maioria. Contudo, conforme ressalta John Rawls, o que é bom para a maioria
das pessoas não o é necessariamente para todos. 11
Diante do exposto, a bioética é um instrumental essencial para o debate de
questões morais levantadas na realidade atual, somente sendo possível o
diálogo racional se entendidos seus princípios e interdisciplinaridade. Essa
última característica nos leva ao próximo ponto – a relação entre a bioética e os
ordenamentos jurídicos.
2.2. Bioética e Direito
A ciência jurídica tem como objetivo regular as relações sociais e
estabelecer regras de conduta para os indivíduos. Assim sendo, clara é sua
importância nesta discussão a respeito dos limites que devem ser propostos aos
avanços científicos. A busca pelo saber muitas das vezes esquece a célebre
frase de Kant que o ser humano não pode ser utilizado como mero instrumento e
sim como fim em si mesmo12.
Tal preocupação ficou patente no século XX onde se assistiu a um
extraordinário processo de expansão e universalização da proteção internacional
dos direitos humanos, que passaram a ser reconhecidos como tema de legítimo
interesse internacional, especialmente após as atrocidades cometidas durante a
Segunda Guerra Mundial.
Juristas e filósofos voltaram seu interesse para a conceituação e
classificação dos direitos humanos. A busca histórica de valores e conceitos é
pertinente ao momento constitucional dos Estados, na visão pós-positivista onde
o direito e sua finalidade – a dignidade humana – não mais podem ser
separados. O professor Ingo Sarlet nos orienta nesse sentido:
“(...) a história dos direitos fundamentais é também uma história que desemboca no surgimento do moderno Estado constitucional, cuja essência e razão de ser residem justamente no reconhecimento e na proteção da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais do homem”.13
11 RAWLS, J. Uma teoria da justiça, 1981. 12 CHAUÍ, M., Convite à filosofia, 1997, p. 346. 13 SARLET, I., A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 1999, p. 36.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 20
Após ter o mundo tomado conhecimento das atrocidades cometidas em
nome da ciência pelos nazistas por ocasião da II Guerra Mundial, os diversos
segmentos sociais reuniram esforços no sentido de elaborar limites a estas
pesquisas e práticas, a fim de assegurar a integridade e dignidade das pessoas,
incluídos os casos de participação em pesquisas biomédicas.
O chamado Biodireito busca relacionar dois campos de conhecimento: o
direito e a bioética. Esta nomenclatura é relativamente nova e ainda muito
criticada principalmente pelos bioticistas que consideram não haver
propriamente um biodireito, mas sim, áreas de intercessão entre essas duas
ciências distintas.14 No âmbito deste estudo o termo biodireito será empregado
significando a preocupação dos operadores do direito, doutrinariamente ou
judicialmente, em delimitar através de documentos normativos a ação de
pesquisadores e demais envolvidos, tendo por fim, evitar abusos que poderão
advir.
2.2.1.Documentos Jurídicos Internacionais
Os documentos jurídicos internacionais relacionados com a bioética
surgem nesse contexto. Esses serão divididos em duas partes. A primeira trará
os documentos jurídicos gerais, compreendendo, sobretudo, os tratados
internacionais. Já a segunda parte elencará alguns documentos jurídicos
pertinentes a países específicos.
Dentre os documentos de maior relevância no âmbito internacional de
bioética estão: o Código de Nüremberg (1947); a Declaração Universal dos
Direitos Humanos (1948); Pacto de São José (1949); a Declaração de Helsinki
(1964)15; O Relatório Belmont (1978); as Diretrizes Internacionais para Revisão
Ética de Estudos Epidemiológicos (1991); Declaração Universal Bioética
(2005).16
O Tribunal de Nuremberg, em 9 de dezembro de 1946, julgou vinte e três
pessoas - vinte das quais, médicos - que foram consideradas criminosas de
guerra, pelos brutais experimentos realizados em seres humanos. Em 19 de
14 O próprio Conselho Federal de Medicina já utiliza este termo realizando,
inclusive, um simpósio com tal tema no ano de 2000. 15 Revisada em Tóquio (1975), Veneza (1983), Hong Kong (1989), Somerset West
(1996) e Edimburgo (2000) 16 Outros documentos internacionais, de cunho principalmente de direitos
Humanos, poderiam ser mencionados, porém no âmbito deste trabalho foram destacados apenas os estritamente relativos à bioética. Para a obtenção de outros sugere-se: www.un.org.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 21
agosto de 1947 divulgou as sentenças, além de um documento que ficou
conhecido como Código de Nuremberg.
O Código estabelecia17: 1) o consentimento voluntário e informado do ser
humano participante de qualquer experiência científica sem qualquer intervenção
de elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra forma de
restrição posterior; O dever e a responsabilidade de garantir a qualidade do
consentimento repousam sobre o pesquisador que inicia ou dirige um
experimento ou se compromete nele; 2) O experimento deve produzir resultados
vantajosos para a sociedade, que não possam ser buscados por outros métodos
de estudo, mas não podem ser feitos de maneira casuística ou
desnecessariamente; 3) O experimento deve ser conduzido de maneira a evitar
todo sofrimento e danos desnecessários, quer físicos, quer materiais; 4) Não
deve ser conduzido qualquer experimento quando existirem razões para
acreditar que pode ocorrer morte ou invalidez permanente; exceto, talvez,
quando o próprio médico pesquisador se submeter ao experimento; 5) O grau de
risco aceitável deve ser limitado pela importância do problema que o
pesquisador se propõe a resolver; 6) O experimento deve ser conduzido apenas
por pessoas cientificamente qualificadas; 7) O participante do experimento deve
ter a liberdade de se retirar no decorrer do experimento e 8) O pesquisador deve
estar preparado para suspender os procedimentos experimentais em qualquer
estágio, se ele tiver motivos razoáveis para acreditar que a continuação do
experimento provavelmente causará dano, invalidez ou morte para os
participantes.
Sete acusados foram condenados à morte. Este documento tornou-se um
marco, pois, foi o primeiro a estabelecer recomendações internacionais sobre os
aspectos éticos envolvidos na pesquisa em seres humanos.
Em 1948 é aprovada uma das declarações internacionais mais amplas e
relevantes para a luta em prol dos Direitos Humanos: A Declaração Universal
dos Direitos do Homem das Nações Unidas. Este documento é um dos mais
importantes no plano jurídico internacional devido a sua amplitude de proteção.
A declaração preocupou-se, fundamentalmente, com quatro ordens de direitos
individuais, conforme assevera Celso Ribeiro Bastos18. Primeiro os direitos
pessoais do indivíduo: direito à vida, à liberdade e à segurança. Segundo os
direitos do indivíduo em face das coletividades: direito à nacionalidade, de asilo,
17 Íntegra do texto foi obtida no site:
http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/nuremberg/nuremb1.htm 18 BASTOS, C., Curso de Direito Constitucional, 2000, pg.174-175.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 22
de livre circulação e de residência e de propriedade. Terceiro as liberdades
públicas e os direitos públicos: liberdade de pensamento, de consciência e
religião, de opinião e de expressão, de reunião e de associação. Quarto direitos
econômicos e sociais: direito ao trabalho, à sindicalização, ao repouso e à
educação.
O pensador italiano Norberto Bobbio19 diz que: "A Declaração Universal representa a consciência histórica que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade do século XX. É uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro: mas suas tábuas não foram gravadas de uma vez para sempre". A Associação Médica Mundial desenvolveu em 1964 a Declaração de
Helsinque como um documento de princípios éticos, para fornecer orientações
aos médicos e outros participantes de pesquisas clínicas envolvendo seres
humanos. Foi revisada nos anos de 1975; 1983; 1989 e 2000. Nos dizeres de
Débora Diniz e Marilena Côrrea a declaração ”representou a tradução e a
incorporação, pelas entidades médicas de todo o mundo, dos preceitos éticos
instituídos pelo Código de Nuremberg, definindo uma base ética mínima
necessária às pesquisas e aos testes médicos com seres humanos (...)”20.
A Convenção Americana de Direitos Humanos, adotada e aberta à
assinatura na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos
em 22 de novembro de 1969, originou o Pacto de São José da Costa Rica21.
Direitos fundamentais são elencados juntamente com garantias processuais para
sua concretização como a proibição de decretar-se a prisão civil do depositário
infiel, duplo grau de jurisdição e a possibilidade de apelação em liberdade.
As Diretrizes Éticas Internacionais para a Pesquisa Envolvendo Seres
Humanos de 1991 elaboradas em Genebra tratam respectivamente: 1)
Consentimento Informado Individual; 2) Informações Essenciais para os
Possíveis Sujeitos da Pesquisa; 3) Obrigações do pesquisador a respeito do
Consentimento Informado; 4) Indução a participação; 5) Pesquisa envolvendo
crianças; 6) Pesquisa envolvendo pessoas com distúrbios mentais ou
comportamentais; 7) Pesquisa envolvendo prisioneiros; 8) Pesquisa envolvendo
19 BOBBIO, N., A Era dos Direitos, 1992, p. 34. 20 DINIZ, D., CORRÊA, M., Por uma análise crítica da proposta de modificação da
Declaração De Helsinki, 2000, p. 2. 21 Este pacto foi recepcionado pelo ordenamento jurídico brasileiro através do
Decreto nº 678 / 92 e no tocante ao aborto estabelece uma norma importante em seu artigo 4º, qual seja, de que toda a pessoa tem o direito à vida, e que este direito deve ser protegido a partir da concepção.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 23
indivíduos de comunidades subdesenvolvidas; 9) Consentimento informado em
estudos epidemiológicos; 10) Distribuição eqüitativa de riscos e benefícios; 11)
Seleção de gestantes e nutrizes como sujeitos de pesquisa; 12) Salvaguardas à
confidencialidade; 13) Direito dos sujeitos à compensação; 14) Constituição e
responsabilidades dos comitês de revisão ética e 15) Obrigações dos países
patrocinador e anfitrião.
A Declaração Universal Bioética é fruto de uma Reunião Internacional da
qual participaram 90 países, dentre eles o Brasil. A referida declaração já em seu
a artigo primeiro estabelece seu escopo: trata das questões éticas
relacionadas à medicina, às ciências da vida e às tecnologias associadas
quando aplicadas aos seres humanos, levando em conta suas dimensões
sociais, legais e ambientais. E é dirigida aos Estados. Quando apropriado e
pertinente, ela também oferece orientação para decisões ou práticas de
indivíduos, grupos, comunidades, instituições e empresas públicas e privadas.
Com o intuito de apenas destacar alguns pontos serão trazidas normas de
diversos países, ora privilegiando a quantidade, ora o qualitativo de tais
documentos jurídicos.
A Inglaterra possui dois documentos relevantes nesta perspectiva. O
primeiro trata da clonagem humana, prevendo expressamente ser um ato para
proibir a colocação em uma mulher de um embrião humano que fosse gerado de
outra maneira que não seja pela fertilização. Já o segundo lida com
experimentos e procedimentos científicos relacionados com embriões e
gametas. Alguns aspectos importam ser salientados como, por exemplo, a
definição expressa de quem é a mãe (a mulher que está carregando ou carregou
uma criança em conseqüência de colocar nela um embrião ou o esperma, e
nenhuma outra mulher, é tratada como a mãe da criança) 22 e quem é o pai (a
outra parte da união será tratado como o pai da criança, a menos que,
demonstre que não consentiu na utilização do embrião ou esperma para
inseminação) 23. Ademais este mesmo ato estabelece alguns casos de
permissão de interrupção da gravidez, são eles: (a) a gravidez não excedeu sua
vigésima quarta semana e que a continuação da gravidez envolveria o risco,
maior do que se a gravidez for terminada, de ferir a saúde física ou mental da
Fonte: http://www.presidencia.gov.br/CCIVIL/decreto/1990-1994/anexo/andec678-92.pdf acesso em 01.02.2006.
22 Human Fertilisation and Embryology Act 1990, art. 27. Fonte: http://www.bioetica.org/ukfert.htm acesso em 09/06/2005.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 24
mulher grávida ou de algumas crianças existentes de sua família; (...) (d) que há
um risco substancial que a criança sofreria sérios riscos físicos ou anomalias
mentais. Ressaltamos nestas duas hipóteses a previsão de risco mental da
gestante e a ocorrência de anomalias mentais do feto.
A Itália também elaborou dois documentos: um tratando da coleta de
dados e informação consciente do paciente e o segundo sobre a proteção da
mãe e da criança. Este segundo rege que a interrupção voluntária da gravidez
não pode ser confundida com procedimentos de controle da natalidade,
atribuindo ao Estado e agências locais de saúde o dever de informar as
gestantes sobre seus direitos jurídicos e sociais na área da saúde.
Em Portugal destaca-se a proibição da clonagem e utilização científica de
embriões. O Decreto 135/VII de 1997 proíbe a criação ou utilização de embriões
para fins de investigação ou experimentação científica. No entanto, aceita a
investigação quando esta tenha como único propósito beneficiar o embrião. E, a
segunda norma jurídica é a Lei sobre Técnicas de Procriação Assistida,
promulgada pelo Parlamento em Julho de 1999, proíbe a clonagem reprodutiva e
criminaliza a sua utilização.
A Espanha possui um amplo número de documentos jurídicos bioéticos
regendo: fecundação assistida e material genético24, transplantes25,
medicamentos26, responsabilidade civil e penal dos profissionais de saúde27.
Na Finlândia a investigação médica é regida pela Lei da Investigação
Médica (1999). Segunda a mesma, os embriões excedentes dos tratamentos de
fertilização podem ser utilizados para investigação, desde que os doadores
tenham dado o seu consentimento por escrito. Porém, decorrido o prazo de 15
anos, os óvulos e o têm de ser destruídos.
O ordenamento jurídico alemão promulgou a Lei de Proteção do Embrião
(Embryonenschutzgesetz), que entrou em vigor em Janeiro de 1991, só permite
o diagnóstico ou análise de um embrião para seu próprio benefício e com o
objetivo de implantar este embrião individual no útero da respectiva mãe com
23 Human Fertilisation and Embryology Act 1990, art. 28. Fonte:
http://www.bioetica.org/ukfert.htm acesso em 09/06/2005. 24 Lei 35/1988 - Técnicas de reprodução assistida; Lei 42/1988 - Doação e
utilização de embriões e fetos humanos ou de suas células, tecidos ou órgãos; Real Decreto 412/1996 – estabelece protocolos obrigatórios de estudo dos doadores e usuários relacionados com as técnicas de reprodução humana; Real Decreto 415/1997 – Cria a Comissão Nacional de Reprodução Humana Assistida.
25 Lei 30/1979. 26 Circular 24/1997 – Disposições Gerais de Farmácia e Produtos Sanitários. 27 Lei orgânica 10/1995 – Código Penal.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 25
vista à gravidez e parto. Assim, a utilização de embriões na investigação médica
é ilegal na Alemanha.
O Equador possui uma normatização jurídica nesta área interessante.
Citam-se como documentos: lei de gestão ambiental, lei nº 3 sobre
biodiversidade (protege a Amazônia equatoriana e dispõe sobre os experimentos
com caráter medicinal), Código de Ética Médica - acordo nº 14660 – (proíbe a
eutanásia e o aborto sem fins terapêuticos para a mãe) e por fim, a lei de
transplante de órgãos (adota a morte cerebral28 como fator de decisão pra fins
de transplante).
Nas Filipinas ressaltam-se duas normas. A primeira estabelece regras para
as pesquisas e procedimentos genéticos. Neste documento privilegia-se a
informação consciente do paciente, estabelecendo uma série de critérios para a
obtenção do consentimento e até mesmo de desconsideração do mesmo, se não
atendidas as normas previstas. Na segunda norma jurídica denominada de Ato
da Medicina Tradicional e Alternativa de 1997 o qual visa criar o instituto filipino
do cuidado de saúde tradicional e alternativo, e, acelerar o desenvolvimento
deste tipo de tratamento no país.
A Argentina divide sua legislação em três âmbitos: o nacional, o provincial
e o municipal. No tocante à bioética existem diversos documentos jurídicos
argentinos, demonstrando uma abrangente preocupação com esta temática.
Tais documentos versam sobre alguns assuntos específicos, como por exemplo:
meio ambiente29, dados investigativos e privacidade30, direitos à saúde e ética
hospitalar31, direito de autodeterminação do paciente32, discriminação por razões
28 Estabelece, em seu artigo 2º, como critérios determinantes da morte cerebral: a)
coma irreversível; b) Ausência de respiração espontânea;c) Apnéia após dois minutos de parada do respirador; d) pupilas permanentemente midriátricas e arrefléxicas ao estímulo luminoso; e) Ausência de reflexos oculocefálico;f) Ausência oculovestibulares dos reflexos; g) Ausência da reflexão da farínge; e h) inatividade bio-elétrica verificado pelo encefalograma do eletro. A certificação será assinada pelos três membros do grupo médico.
29 Resolução 91/03: Biodiversidade; Decreto 1347/97: diversidade biológica; Pacto Federal Ambiental de 1993; Lei 24051: Resíduos perigosos; Lei 24.375/94: Ratifica o Convênio da Diversidade Biológica; Resolução 693/04: Alimentação e a Agricultura; Lei 25.670/02: proteção ambiental.
30 Decreto 200 / 97: Proíbe experiências de clonagem com seres humanos; Lei 23.236/ 00 e Lei 25.326 / 00: proteção de dados pessoais; Lei 25.457/ 01: direito à identidade; Lei 25.467/ 01: ciência, tecnologia e inovação; Resolução 415/04: Cria o registro de digitais genéticas; Lei 1.226/ 03: sistema de identificação do recém nascido e sua mãe; Lei 25.929 / 04: Direitos dos pais e da pessoa recém nascida.
31 Lei 24.742/ 96: Comitê Hospitalar de Ética; Decreto 426 / 98; Código de Ética / 01; Lei 4861 / 95: Comitês Hospitalares de Ética; Lei n° 3099 / 97: Bioética. Investigação, análises e difusão; Lei n° 6507/ 93: Comitês Hospitalares de Ética.
32 Lei 3076 / 97: Direitos do Paciente. Determinação.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 26
genéticas33, medicamentos34, sexualidade e reprodução35 e transplante de
órgãos36. Mas a postura Argentina em relação aos avanços científicos e éticos
ainda é muito acanhada, prevalecendo a visão tradicional e proibitiva de diversos
procedimentos.
Por fim, destaca-se que em alguns países ainda não há uma proteção
legislativa considerável sobre os problemas surgidos com os estudos bioéticos,
havendo apenas a preocupação com uma temática específica. São exemplos o
Chile (lei geral sobre o meio ambiente), a Colômbia (também possui uma lei
geral sobre meio ambiente), Costa Rica (lei sobre reprodução assistida e
transplante de órgãos), Peru (lei sobre biodiversidade e gestão ambiental),
Uruguai (lei de transplante de órgãos), Nova Zelândia (lei sobre meio ambiente e
biodiversidade), Índia (lei sobre biodiversidade e proteção dos fazendeiros e pela
diversidade na agricultura).
Diversos outros documentos ainda dependem de aprovação. Como é o
caso do projeto de lei francês que versa sobre a autodeterminação do paciente e
seu direito de morrer com dignidade37. Tal documento prevê em seu artigo 1º
que toda pessoa em condições de apreciar as conseqüências de suas escolhas
e os seus atos é único juiz da qualidade e a dignidade da sua vida bem como a
oportunidade de pôr termo à mesma.
2.2.2.Documentos Jurídicos Nacionais
No âmbito interno a temática bioética é de extrema novidade sendo tal fato
notado claramente nas previsões legais vigentes.
Vale salientar, primeiramente, a grande diversidade de normas jurídicas
sobre a temática do meio ambiente e sua proteção. A diversidade de subtemas
é enorme. São mais de 150 normas referentes à proteção ambiental, dentre elas:
Ação Civil Pública (Lei 7.347/ 85), Agrotóxicos (Lei 7.802/ 89), Área de Proteção
Ambiental (Lei 6.902/ 81), Atividades Nucleares (Lei 6.453/ 77), Crimes
33 Lei 421: Proteção contra a discriminação por razões genéticas. 34 Lei 25.649 e Resolução 326 / 02: Promovem a utilização de medicamentos pelo
seu nome genérico; Disposição 3598/ 02: Categorização de Estabelecimentos Assistenciais, Centros de Estudos de Bioequivalência / Biodisponibilidade.
35 Lei 25.673/02, 6433/96 e 418/00: Saúde Reprodutiva e Procriação Responsável. 36 Lei 24-193 / 1993: Transplantes de órgãos e material anatômico. 37 Por iniciativa de Pierre Biarnes esta proposta de lei foi depositada sobre o
escritório do Senado Francês em 26 de Janeiro de 1999 com as assinaturas de 55 outros senadores. Porém até hoje não foi aprovada.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 27
Ambientais (Lei 9.605/ 98), Engenharia Genética (Lei 8.974/ 95), Exploração
Mineral (Lei 7.805/ 89), Fauna Silvestre (Lei 5.197/ 67), Florestas (Lei 4771/ 65),
Gerenciamento Costeiro (Lei 7661/ 88), IBAMA (Lei 7.735/ 89), Parcelamento do
solo urbano (Lei 6.766/ 79), Política Agrícola (Lei 8.171/ 91), Política Nacional do
Meio Ambiente (Lei 6.938/ 81), Recursos Hídricos (Lei 9.433/ 97), Resoluções do
Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), Zoneamento Industrial nas
Áreas Críticas de Poluição (Lei 6.803/ 80). 38
Algumas matérias plúrimas também foram objeto de positivação pelo
ordenamento jurídico brasileiro. Dentre elas: O Decreto nº 914, de 6 de setembro
de 1993 que teve como objetivo instituir a Política Nacional para a Integração da
Pessoa Portadora de Deficiência; a Medida Provisória nº 2.126-11 sobre acesso
à Biodiversidade de 26 de abril de 2001; o Decreto 98.830 tece limitações para a
coleta, por estrangeiros, de dados e materiais científicos no Brasil.
A Lei nº 9.787 de 10 de fevereiro de 1999, que embora tenha modificado
uma norma com aspectos gerais sobre vigilância sanitária, estabelece o
medicamento genérico e dispõe sobre a utilização de nomes genéricos em
produtos farmacêuticos. A referida norma jurídica teve um impacto
impressionante na sociedade brasileira. Apesar das críticas sobre a qualidade
dos produtos propiciou uma maior possibilidade de aquisição de medicamentos
por camadas pobres da população brasileira;
Sobre engenharia genética temos as seguintes normas: Lei nº 8 501, de 30
de novembro de 1992; Lei nº 8 974, de 05 de janeiro de 1995 e Lei nº 9 434, de
04 de fevereiro de 1997, complementadas por decretos, regulamentos e
resoluções do Conselho Nacional de Saúde e do Conselho Federal de Medicina,
inclusive o Código de Ética Médica. Entretanto, com a caracterização dos
direitos relativos ao genoma humano como direitos humanos pela UNESCO, tal
temática deve ser encarada utilizando um novo paradigma, qual seja, qualquer
discussão terá que observar os princípios e os direitos estabelecidos na
Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos.
A doação de órgãos é regulada pela Lei nº 10.211/01, dando nova redação
ao artigo 9º da Lei nº 9.434/97: Art. 9º. É permitido à pessoa juridicamente capaz
dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do corpo vivo para fins
terapêuticos ou transplantes em cônjuges ou parentes consangüíneos até o
quarto grau, (...), ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização
38 Fonte: www.senado.gov.br acesso em 17.10.2005.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 28
judicial,(...). Tal normatização é criticada, pois segundo alguns abrem caminhos
para a venda de órgãos humanos, falseada no aspecto de doação.
A pesquisa científica e médica envolvendo seres humanos também tem
sido objeto de regulamentação na maior parte das vezes através de resoluções
de órgãos ligados à ciência médica. Dentre elas: Resolução CNS39 196/96
(estabelece diretrizes e normas para pesquisa em seres humanos), Resolução
CNS 251/97 (estipula normas de pesquisa com novos fármacos, medicamentos,
vacinas e testes diagnósticos envolvendo seres humanos), Resolução CNS
303/00 (trata das pesquisas na área de reprodução humana), Resolução CFP40
016/00 (regula a pesquisa em psicologia com seres humanos), Resolução
HCPA41 01/97 (normatiza o uso de informações de prontuários e bases de
dados), Resolução CNS 347/05 (projetos com uso ou armazenamento de
material biológico). Ainda no tocante à pesquisa em 1992 oi editada a lei nº
8.051 que estabelece normas e limites para a utilização de cadáver humano que
não foi reclamado para fins de pesquisa e de ensino.
Por fim, a lei no 11.105 de 24 de março de 2005, conhecida como a Lei
Nacional de Biossegurança. Este dispositivo estabelece normas de segurança e
mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos
geneticamente modificados e seus derivados; cria o Conselho Nacional de
Biossegurança (CNBS) e reestrutura a Comissão Técnica Nacional de
Biossegurança (CTNBio). A referida lei tece inicialmente uma série de
conceituações, dentre elas o de organismo geneticamente modificado, sendo
este: qualquer organismo cujo material genético (ADN ou ARN) tenha sido
modificado por qualquer técnica de engenharia genética. Um dos pontos
fundamentais deste texto normativo é a preocupação com a fiscalização das
pesquisas envolvendo tais organismos e técnicas, prevendo a lei a
obrigatoriedade de aprovação de todo projeto de pesquisa por comitês de ética
em pesquisa. Outra importante previsão é expressa no artigo 5o da lei 11.105 o
qual permite, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco
embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e
não utilizados no respectivo procedimento.
39 Sigla referente ao Conselho Nacional de Saúde. 40 Sigla referente ao Conselho Federal de Psicologia 41 Sigla referente ao Hospital de clínicas de Porto Alegre o primeiro que adotou
esta medida de confidencialidade e que depois foi adotada em âmbito nacional.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 29
3 CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO
3.1.Conceituação do Termo
A linguagem pode ser entendida como instrumento de comunicação inter-
pessoal. No exercício de comunicação é possível distinguir alguns elementos:
um emissor, um receptor, uma mensagem que se procura transmitir e um código
compartilhado pelos interlocutores. O desafio é justamente que o receptor
perceba a significação da mensagem do emissor. Os problemas e disparidades
causados pelos ruídos ou mesmo a utilização de jogos interpretativos no
emprego da comunicação têm direcionado diversos ramos do conhecimento a
seu estudo.
Guibourg, Ghigliani e Guarinoni definiram linguagem como um conjunto de
signos e símbolos organizados em uma estrutura mais ou menos orgânica com
funções determinadas, de forma que a linguagem constitui um sistema de
símbolos que servem à comunicação. Assim, tendo em vista que toda ciência é
um conjunto de enunciados, sua expressão é constituída através de uma
linguagem pré-fixada42.
A semiótica - disciplina que estuda os elementos representativos no
processo de comunicação - pode ser divida em três partes: sintaxe, semântica e
pragmática. De modo geral, é possível afirmar que a sintaxe estuda os signos de
forma pura, independente de seu significado, em outras palavras, preocupa-se
com a construção tecnicamente coerente das frases em determinado idioma. Na
semântica, a análise debruça-se sobre os signos em sua relação com os objetos
por eles designados, isto é, sobre o problema dos significados. Por fim, a
pragmática cuida da relação entre os signos e as pessoas que as usam, ou seja,
o contexto em que os termos são empregados. 43
42 GUIBOURG, R., GHIGLIANI, A., GUARINONI, R. Lenguaje, 2000, p. 19. 43 Ibid., p. 33.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 30
Quanto à semântica é importante destacar a questão da definição. O ato
de definir pode ser entendido como explicar um conceito com outro conceito.
Toda definição demarca um campo de significado. Normativamente algumas
definições são importantes para por fim às dificuldades da doutrina,
uniformizando e continentalizando um quadro semântico ou ainda para reduzir a
instabilidade de termos que estão na linguagem comum. Nesse último caso há o
problema da linguagem técnica usada para suprir a instabilidade de termos
comuns, mas esse uso técnico importa em uma nova dificuldade, qual seja, pode
prejudicar a compreensão e afastar os destinatários finais.
As definições legais geralmente são aclaratórias44. No âmbito jurídico o
estudo dos problemas relacionados à linguagem é prioritário à medida que as
proposições jurídicas que norteiam as condutas de determinada sociedade
devem ser precisas em suas definições e conceitos. Somente obedecemos ou
seguimos as normas inteligíveis. Ou pior, um entendimento errôneo sobre
determinada norma poderá acarretar, inclusive, o seu descumprimento. 45
O aborto é disciplinado pelo sistema jurídico pelos artigos 124 a 128 do
Código Penal, tendo como tutela jurídica o direito à vida do feto. O legislador
penal não definiu o que seria o aborto, relegando esta tarefa aos intérpretes.
Diversos são os entendimentos sobre esta palavra, destacaremos apenas os
propostos pelos doutrinadores jurídicos e a definição dos profissionais da saúde.
Etimologicamente o vernáculo aborto é de origem latina, decompondo-se
em ab (privação) e ortus (nascimento). França Limongi, em sua Enciclopédia de
Direito, diferencia os termos aborto, abortamento e aborticídio. Esse último
segundo o autor é um neologismo empregado por Saraiva significando a morte
da criança dada à luz antes do tempo, independente da causa desta
antecipação. O termo aborto diferencia-se pela finalidade de sacrificar o feto. Já
abortamento seria o ato de abortar, gerando o produto aborto.
Para Ronald Dworkin “aborto significa matar deliberadamente um embrião
humano em formação”. 46
A definição proposta por De Plácido e Silva em seu vocabulário Jurídico é
a seguinte: “Aborto. Expulsão prematura do feto, ou embrião, antes do tempo do
parto.” 47 Já Heleno Fragoso em suas Lições de Direito Penal salienta a origem
44 ALCHOURRÓN, C., BULYGIN, E. Análisis lógico y derecho, 1991, p. 448. 45 Alchourron e Bulygin destacam a diferença crucial entre as definições de caráter
oficial e as meras definições privadas. Ibid., p. 441. 46 DWORKIN, R. Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais,
2003. p.1. 47 DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico, 1987, p. 11.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 31
cristã deste termo, in verbis: ”Deve-se ao Cristianismo o entendimento segundo
o qual o aborto significa a morte de um ser humano, e, pois, virtualmente,
homicídio”48. Dois são os elementos básicos para a conceituação jurídica
doutrinária do aborto: a retirada prematura do feto do ventre materno, tendo
como conseqüência, sua morte.
A prática de abortamento é punida penalmente por ser considerada uma
espécie de homicídio, sendo excluídas da punibilidade legal apenas duas
hipóteses previstas no artigo 128 do Código Penal, quais sejam: o aborto
necessário (se não há outro meio de salvar a vida da gestante) e o aborto
emocional ou ético em caso de gravidez resultante de estupro.
No tocante à definição médica de aborto serão utilizadas três nuances: a
idade gestacional, a capacidade sensitiva e a intenção da gestante. Diversas
outras classificações são feitas pela doutrina, tanto jurídica como médica, como
ressaltado na obra da professora Maria Helena Diniz que traz ainda a
classificação quanto ao consentimento (sofrido – sem consenso da gestante,
consentido – realizado com a anuência da gestante e procurado – se a gestante
for o agente principal). 49
A primeira classificação utiliza como parâmetro conhecimentos obstétricos
em razão da formação do embrião. Segundo Antonio Jorge Salomão:
“Considera-se aborto a expulsão ou a extração de feto ou embrião que pese menos de 500 gramas (idade gestacional de aproximadamente 20-22 semanas completas ou de 140-154 dias completos) ou de qualquer outro produto da gestação de qualquer peso e especificamente designado, independentemente da idade gestacional, tenha ou não sinal de vida e seja ou não espontâneo ou induzido. Abortamento espontâneo é a interrupção natural da gravidez antes da 20ª semana de gestação.” 50 O autor supra citado fornece ainda alguns critérios de classificação para o
abortamento, são eles: a idade gestacional (a OMS divide os abortos em
precoce – antes da 12ª semana - e tardio – entre a 12ª e a 20ª semana); o peso
fetal (aborto - menor que 500g, imaturo – entre 500g e 999g e prematuro – entre
1000g e 2500g); forma (espontâneo – quando não há nenhum fator precipitante
do quadro) e induzido (quando ocorreu ação deliberada para interromper a
48 FRAGOSO, H. Lições de Direito Penal, 1986, p. 107. 49 DINIZ, M. O estado atual do biodireito, 2002. p. 33. 50 SALOMÃO, A. Abortamento espontâneo. In Obstetrícia Básica. Bussâmara
Neme, 1994. p. 363.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 32
gestação) e quadro clínico (ameaça, inevitável, incompleto, completo e retido ou
frustrado). 51
A segunda classificação considera como fator importante o momento que o
feto passa a sentir dor. Segundo Ronald Dworkin é a partir do sétimo mês de
concepção que o feto desenvolve a capacidade reflexiva quando inicia a
atividade elétrica do cérebro no tronco cerebral. E a sensação de dor somente
seria possível após a conexão entre o tálamo e o neocórtex fetal, o que embora
ainda não esteja determinada com precisão, acredita-se não ocorrer antes da
metade do período gestacional.
A terceira classificação dos diversos tipos de abortos é elaborada segundo
o entendimento bioético e pode ser depreendida da seguinte forma: 52
1) Interrupção eugênica da gestação (IEG): são os casos de aborto
ocorridos em nome de práticas eugênicas, isto é, situações em que se
interrompe a gestação por valores racistas, sexistas, étnicos, etc. Comumente,
sugere-se o praticado pela medicina nazista como exemplo de IEG quando
mulheres foram obrigadas a abortar por serem judias, ciganas ou negras. Regra
geral, a IEG processa-se contra a vontade da gestante, sendo esta obrigada a
abortar;
2) Interrupção terapêutica da gestação (ITG): são os casos ocorridos em
nome da saúde materna, isto é, situações em que se interrompe a gestação para
salvar a vida da gestante. Hoje em dia, em face do avanço científico e
tecnológico ocorrido na medicina, os casos de ITG são cada vez em menor
número, sendo raras as situações terapêuticas que exigem tal procedimento;
3) Interrupção seletiva da gestação (ISG): são os casos de aborto ocorridos
em nome de anomalias fetais, isto é, situações em que se interrompe a gestação
pela constatação de lesões fetais. Em geral, os casos que justificam as
solicitações de ISG são de patologias incompatíveis com a vida extra-uterina,
sendo o exemplo clássico o da anencefalia;
4) Interrupção voluntária da gestação (IVG): referem-se à autonomia
reprodutiva da gestante ou do casal, isto é, situações em que se interrompe a
gestação porque a mulher ou o casal não mais deseja a gravidez, seja ela fruto
51 Ibid., p. 363. 52 A classificação proposta é apresentada no livro editado pelo próprio Conselho
Federal de Medicina e de autoria de Diniz e Almeida. COSTA, S, OSELKA, G, GARRAFA, V. Iniciação à bioética, 1998.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 33
de um estupro ou de uma relação consensual. Muitas vezes, as legislações que
permitem a IVG impõem limites gestacionais à prática.
Note-se que a nomenclatura utilizada é a interrupção da gravidez e não
aborto. Tal fato tem como explicação a forte resistência e a preconceituação que
traz em si o termo. A bioética tem tentado analisar o assunto através do debate
racional livre. No ponto seguinte trataremos de forma mais aprofundada sobre as
questões bioéticas que envolvem o aborto.
3.2.Elementos Bioéticos
A problemática do aborto é considerada atualmente uma questão de saúde
pública. Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) metade
das gestações é indesejada e uma a cada nove mulheres recorre ao aborto. No
Brasil, estatísticas demonstram que o índice de abortamento é de 31%. Ou seja,
ocorrem, aproximadamente, 1,44 milhões de abortos espontâneos e inseguros
com taxa de 3,7 para cada 100 mulheres. A gravidade da situação do
abortamento também se reflete no SUS. Apenas no ano de 2004, o número de
mulheres internadas para fazer curetagem pós-aborto foi de 243.988.53 Contudo,
o aborto envolve aspectos complexos da natureza humana: vida, sexualidade e
religião.
Diante de tal quadro, a bioética tem um papel importante na discussão das
questões referentes à moralidade do aborto. Há cada vez mais a tentativa de
avaliar racionalmente os argumentos contrários e favoráveis e submetê-los ao
crivo da justificação social.
A primeira dificuldade que surge no tratamento do aborto é a determinação
do início da vida e, a partir de que momento, se é que isso ocorre, o feto é tido
como pessoa54. A primeira possibilidade considera a fecundação como o ponto
inicial, a Igreja Católica e os pensamentos mais conservadores adotam essa
teoria55. O preformismo, doutrina segundo a qual o indivíduo já estaria contido
plenamente no sêmen, também defendia a animação imediata só dependendo
do decurso do tempo para o desenvolvimento pleno do ser humano. Tal tese é
descartada atualmente. A epigênese defende o desenvolvimento biológico
53 Fonte: www.saude.gov.br acesso em 28.10.2005. 54 Sobre a noção jurídica e filosófica de pessoa e o biodireito vide XAVIER, E. A
bioética e o conceito de pessoa:a re-significação jurídica do ser enquanto pessoa, 2000. 55 Embora São Tomás de Aquino, um dos importantes pensadores da teologia
católica, defendesse a tese de que a animação, ou seja, a junção do corpo com a alma,
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 34
gradual da pessoa. A lei biogenética proposta por Ernst Haeckel também propõe
a animação tardia do organismo humano. Neste sentido se destacam as
observações de Laurente Degos que estabelece algumas etapas importantes do
desenvolvimento fetal:
“1) O estádio de 8 células marca um início de individualidade. Antes deste estádio, cada uma das células do embrião pode dar origem a um ser completo, incluindo o desenvolvimento da placenta. São, portanto intercambiáveis. Após este estádio, as células diferenciam-se entre as do exterior e as do interior. 2) Por volta do 10º dia, o embrião implanta-se no útero. O ser potencialmente humano começa a sua vida relacional. Neste estádio, o embrião está envolvido por uma cápsula, que ele parte com empurrões a fim de se implantar no tecido uterino. 3) Por volta da 10ª-14ª semana, sobressai de maneira significativa. Corresponde à que é arbitrariamente atribuída à passagem do embrião a feto. "Feto" é uma palavra reservada à vida embrionária do homem, que começa ao fim de 3 meses de gravidez. A silhueta do embrião toma forma humana. É no decurso do período da 10ª-12ª semana que se inicia a migração dos 80 bilhões de neurônios para a sua localização definitiva, terminando no 6º mês (24ª semana) de gravidez. Antes da 10ª-12ª semana, os neurônios não têm atividade. Se o fim da vida é determinado pelo fim da atividade cerebral, pode admitir-se que o início da vida corresponde ao início da rede cerebral, e portanto da coordenação do organismo por um futuro cérebro. Este período (10ª-14ª semana) é também o que, na maioria dos países, é considerado como o limite da autorização da interrupção voluntária da gravidez. 4) 6º mês, é uma etapa decisiva na vida do feto. O sistema nervoso está no lugar. O bebê a nascer pode viver de modo autônomo e independente.“ 56 57(grifos nosso)
Finalmente, há entendimentos de que o feto não é, em momento algum,
uma pessoa, somente adquirindo tal característica em sua vida extra-uterina.
Este posicionamento, embora radical, é adotado pelo ordenamento jurídico pátrio
que mesmo reconhecendo direitos ao nascituro somente considera pessoa
aquele ser que nasce com vida.
A segunda grande discussão bioética sobre o procedimento médico de
aborto é a relação materno-fetal58. Hodiernamente, com avanços tecnológicos
cada vez mais constantes, técnicas invasivas de diagnóstico e tratamento intra-
uterino têm se tornado comuns. Há um questionamento sobre a autonomia da
ocorria no 40º dia para os fetos do sexo masculino e no 80º dia para os do sexo feminino.
56 DEGOS, L. Os critérios biológicos da presença de uma pessoa humana, 2002, p. 21.
57 Interessante observar que segundo a resolução nº 1601/00 do Conselho Federal de Medicina o médico somente é obrigado a fornecer declaração de óbito de fetos com mais de 20 semanas ou 500 gramas. Antes desse prazo o feto morto é considerado material ou resíduo biológico.
58 Para o aprofundamento do tema vide Conflito materno-fetal? In DINIZ, Débora Diniz, COSTA, Sérgio. Bioética: ensaios. Brasília: Letras Livres, 2004.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 35
gestante e seus direitos de consentir ou não com a realização desses
procedimentos. A relação entre esses dois indivíduos tão ligados também é
discutida no aborto. Posições radicais consideram o feto como mero órgão ou
organismo dentro do corpo da mãe, cabendo total arbítrio materno sobre o
mesmo. Contrariamente, outros consideram o feto como um indivíduo com
interesses e direitos. Sobre a relação entre o feto e a gestante escreve Ronald
Dworkin:
O feto “é dela (da gestante), e é dela mais do que qualquer outra pessoa porque
é, acima de tudo, sua criação e sua responsabilidade; está vivo porque ela fez com que
se tornasse vivo. Ela já fez um intenso investimento físico e emocional nele, diferente do
que qualquer outra pessoa tenha feito, inclusive o pai; por causa dessas ligações físicas
e emocionais, é tão errado dizer que o feto está separado dela como dizer que não está.” 59
Uma das mais importantes obras sobre o abortamento é a de Maurizio
Mori60. O autor além de considerar polêmica a afirmativa de que o feto é ou não
pessoa e, portanto, com direito à vida, oferece como questionamento se o direito
à vida de uma pessoa implica o direito de fazer uso do corpo da mulher para
continuar a viver. Neste ponto ele destaca a questão da autonomia da mulher
quanto à disposição de seu corpo.
Maurizio Mori também apresenta cinco momentos históricos de reflexão
sobre a permissão ou proibição do aborto.
No primeiro momento, predominava nas sociedades a permissão irrestrita
tendo como justificativa a visão de que o aborto era um ato de caráter
estritamente privado. Durante este período o feto era considerado como parte
integrante do corpo materno ou, como ressaltam alguns autores, parte das
vísceras da gestante.
A seguir, com o advento e propagação dos ideais cristãos, o aborto foi
severamente proibido, e a base doutrinária imposta considerava tal ato
pecaminoso e atentatório contra o matrimônio.
No terceiro momento persiste a proibição, porém a justificação muda.
Diversos ordenamentos jurídicos coíbem o aborto, estipulando-o crime contra a
pessoa, contra a geração, contra a sanidade e a integridade da estirpe, entre
outros.
59 DWORKIN, R., Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais,
2003, p. 77. 60 MORI, M., A moralidade do aborto. Sacralidade da vida e o novo papel da
mulher, 1997, p. 17-26.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 36
No início dos anos 60 a utilização de um medicamento chamado talidomida
acarretou, durante as primeiras fases da gravidez, uma série de anomalias
graves nos fetos. Então, a discussão volta sua atenção para a possibilidade de
legalização do aborto em casos de anomalias fetais severas.
Outro evento ocorre pouco após, em 1973, contribuindo para a legalização
do aborto – a decisão da Suprema Corte Americana no emblemático caso Roe x
Wade. A decisão judicial citada determinou que o feto, ou aquele ainda não
nascido, não pode ser considerado pessoa e, portanto, não seriam sujeitos
protegidos juridicamente e que as leis até então existentes no país proibitivas do
aborto violavam o direito constitucional à privacidade da mulher. Essa noção de
privacidade deve ser entendida no sentido de soberania quanto às decisões
particulares, e não como direito de utilizar livremente seu próprio corpo.
O último momento mencionado por Maurizio Mori diz respeito
principalmente aos países europeus. Segundo o autor atualmente a Europa tem
direcionado o debate no sentido de coibir os abortos clandestinos, encarando o
assunto como problema de saúde pública, e por isso, a legalização da prática
cresceu.
Algumas posições atuais podem ser destacadas quanto ao tema61. A
posição católica que condena qualquer tipo de aborto, inclusive o necessário à
sobrevivência materna. A postura do Movimento pela Vida oponente também à
prática, contudo, admite determinadas exceções. O movimento pela legalização
do aborto para a qual o aborto deve ser regulamento socialmente. E a posição a
favor da liberalização do aborto, segundo a qual este assunto é de âmbito
privado da mulher, e como tal, deve ser decidido exclusivamente pela gestante e
seu médico.
No ponto seguinte serão abordados os aspectos jurídicos do aborto. Serão
elencadas as principais leis internacionais e como o Brasil tem regulamentado a
questão, seja através de leis já promulgadas, seja por meio de projetos de leis
em tramitação nas Casas Legislativas.
61 Ibid., p. 30 – 31.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 37
3.3.Elementos Jurídicos
O aborto sempre constituiu uma prática comum em diversas sociedades.
Entretanto, o tratamento jurídico dispensado a este ato não encontra uma
uniformidade de regulamentação.
Inicialmente o aborto era visto de duas formas ou era considerado assunto
de cunho exclusivamente familiar, com algumas repercussões somente no direito
privado, ou um ato criminoso e passível de punição penal.
No direito penal hebreu o ato voluntário de abortar constituía um crime,
punível com pena de morte, sendo permitido apenas para resguardar a vida da
genitora. 62
No Oriente Médio e na Grécia Antiga, assim como os romanos,
consideravam o feto como parte das vísceras da mãe, cabendo a esta a decisão
sobre a continuidade da gravidez.
O Código de Hammurabi63, datado do século XXIII, previa em seu Capítulo
XI – Artigos 208 a 214 os crimes de agressão contra as mulheres gestantes que
tinham como conseqüência expelir o fruto de seu seio. As penas estipuladas
eram de indenização e sua quantificação dependia da origem da gestante: se
filha de um homem livre o valor era de 10 siclos de prata pelo fruto de seu seio e
se ocorreu a morte da mulher a pena era a morte da filha do homem que a feriu;
se era filha de um homem vulgar a indenização montava a 5 minas de prata, se
acarretou a morte, mais meia mina de prata; e por fim, se a gestante fosse
escrava o seu senhor receberia dois siclos de prata pela agressão e um terço de
uma mina de prata se o resultado foi o falecimento.
Na Idade Média, com a influência do direito canônico, a punição do aborto
tornou-se mais freqüente. Inicialmente considerado pelo clero um crime contra o
matrimônio, somente há poucas décadas a Igreja passou a considerar o aborto
um crime contra a vida64. Porém, a própria Igreja revelava entendimentos
confusos sobre a matéria. São Tomás de Aquino era contrário ao aborto, mas
admitia que o mesmo fosse feito antes do surgimento da alma o que ocorria em
40 dias após a concepção se homem e 80 dias se mulher. Os Dicastérios
Romanos, embora contrários ao aborto, hesitaram quando perguntados sobre a
62 Livro de Êxodo capítulo 21 versículos 22 e 23. 63 Fonte: www.dhnet.org.br/direitos/anthist/hamurabi.htm 64 Conforme destaque de M. José Nunes: “Assim, a punição do aborto, durante os
seis primeiros séculos do cristianismo, não era referida, em primeiro lugar, ao feto cuja vida seria tirada, mas ao adultério que o aborto revelava.” Fonte:
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 38
possibilidade em casos de inviabilidade de vida do nascituro. 65 A argumentação
de que o aborto seria o assassinato de um inocente foi formulada por Pio XI em
1930 através da Encíclica Casti Conubii. Mas é em 1968 que a Igreja demonstra
firmemente sua repugnância não só aos meios abortivos como também aos
meios artificiais de contracepção, através da elaboração da Encíclica Humanae
Vitae66. No mesmo ano foi elaborada a Carta Pastoral dos Bispos nórdicos a qual
dizia:
"Quando uma pessoa, por razões sérias e bem ponderadas não se convence pelos argumentos da encíclica (Humanae Vitae), tem o direito de adotar uma opinião distinta daquela apresentada em um documento não infalível. Que ninguém, pois, seja tido como mau católico pela única razão de discordar... Ninguém, nem mesmo a Igreja, pode dispensar do dever de seguir a própria consciência." 67
3.3.1.Documentos Jurídicos Internacionais
A postura proibitiva tem se perpetrado nas sociedades hodiernas. A seguir
serão expostas as previsões jurídicas em diversos países. 68
Em 72 países o aborto é totalmente proibido ou permitido apenas em caso
de risco de vida para a gestante, perfazendo o total de 26,1% da população
mundial, dentre eles: Afeganistão, Andorra, Angola, Antígua e Barbuda,
Bangladesh, Butão, Brunei, República da África-Central, Chile, Colômbia, Congo,
República Democrática do Congo, Dominica, República dominicana, Egito,
Gabão, Guatemala, Guiné-Bissau, Haiti, Honduras, Indonésia, Irã, Iraque,
Irlanda, Quênia, Quiribati, Laos, Lesoto, Líbia (requer notificação e autorização
parental), Madagascar, Malaui (requer autorização do esposo), Mali (permite
também em caso de estupro e incesto), Malta, Ilhas Marshall, Mauritânia,
República das Maurícias, México (também permite em caso de estupro),
Principado de Mônaco, Birmânia, Nicarágua (requer autorização do esposo),
Níger, Nigéria, Omã, Panamá (permite em caso de estupro e anomalia fetal),
http://www.catolicasporelderechoadecidir.org/aborto8.shtm acesso em 28 de outubro de 2005.
65 Segundo Anjos a resposta do Dicastério foi: ”consultar autores sérios, sejam antigos ou recentes, e agir prudentemente.”
66 A íntegra da Encíclica pode ser obtida através do endereço eletrônico : http://www.vatican.va/holy_father/paul_vi/encyclicals/documents/hf_pvi_enc_25071968_humanae-vitae_po.html
67 Texto retirado do endereço eletrônico: http://www.catolicasporelderechoadecidir.org/aborto8.shtm acesso em 28 de outubro de 2005.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 39
Papua Nova Guiné, Paraguai, Filipinas, São Marino, São Tomé e Príncipe,
Senegal, Ilhas Salomão, Somália, Siri Lanka, Sudão (permite em casos de
estupro), Suriname, Síria (requer autorização do genitor), Tanzânia, Togo,
Tonga, Suazilândia, Tuvalu, Uganda, Emikrados Árabes, Venezuela e Iêmen.
Em 35 países, 9,9% da população mundial, o aborto é permitido para
preservar a saúde física da mãe e para preservar sua vida, dentre eles: Brasil
(também permite em caso de estupro), Argentina (também permite em caso de
estupro), Bahamas, Benim (permite em casos de estupro, incesto e anomalia
fetal), Bolívia (permite também em casos de estupro e incesto), Burquina Faso
(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Burundi, Camarões
(permite em caso de estupro), Chade (permite em casos de estupro, incesto e
anomalia fetal), Comores, Costa Rica, Djibouti, Equador (permite em casos de
estupro ou se a mulher tem alguma incapacidade mental), Eritréia, Etiópia,
Grenada, Guiné (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal),
Jordânia, Kuwait, Maldivas, Marrocos, Moçambique, Paquistão, Peru, Polônia
(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Catar, Ruanda, Arábia
Saudita, Santa Lúcia, Tailândia (permite em casos de estupro), Uruguai (permite
em casos de estupro), Vanuatu e Zimbabué (permite em casos de estupro,
incesto e anomalia fetal).
Países que permitem o aborto também em casos de preservação da saúde
mental: Argélia, Botswana (permite em casos de estupro, incesto e anomalia
fetal), Gâmbia, Gana (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal),
Hongo Kong (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Israel
(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Jamaica, Libéria
(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Malásia, Namíbia
(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Nauru, Nova Zelândia
(permite em casos incesto e anomalia fetal), Irlanda do Norte, Portugal (permite
em casos de estupro e anomalia fetal), são Cristóvão e Nevis, Samoa, Serra
Leoa, Seichelles (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal),
Espanha (permite em casos de estupro e anomalia fetal) e Trindade e Tobago.
Estes países perfazem o total de 20 e representam 2.7% da população mundial.
Apenas 14 países admitem argumentos socioeconômicos para a
realização do aborto, totalizando 20.7% da população mundial: Austrália,
Barbados (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Belize
68 Os dados sobre a legislação internacional sobre o aborto foi em sua grande
maioria obtidos através do site http://www.aborto.com/htm/mapaleyes.htm acesso em 18/10/2005.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 40
(permite também em casos de anomalia fetal), Chipre (permite em casos de
estupro e incesto), Fiji, Finlândia (permite em casos de estupro e incesto), Grã
Bretanha (permite em casos de anomalia fetal), Índia (permite em casos de
estupro e anomalia fetal), Japão (autorização do esposo), Luxemburgo (permite
em casos de estupro e anomalia fetal), São Vicente e Granadinas (permite em
casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Taiwan (permite em casos de
estupro, incesto e anomalia fetal) e Zâmbia (permite em casos de anomalia
fetal).
E por fim, totalizando 40.5% da população mundial, distribuídos em 54
países, estão aqueles ordenamentos onde o aborto é permitido, ressalvadas as
restrições quanto ao tempo de gestação feitas por alguns deles. Dentre eles:
Albânia, Armênia, Áustria (14 semanas), Azerbaijão, Bareine, Belarus, Bélgica
(14 semanas), Bósnia-Herzegovina, Bulgária, Cambodia (14 semanas), Canadá,
Cabo Verde, China (é proibido expressamente o aborto seletivo de sexo),
Croácia, Cuba, Coréia do Norte, Dinamarca, Estônia, Macedônio, França (14
semanas), Geórgia, Alemanha (14 semanas), Grécia, Guiana (8 semanas),
Hungria, Itália, Cazaquistão, Lituânia, Moldávia, Mongólia, Nepal, Romênia (14
semanas), Rússia, Sérvia e Montenegro, Singapura (24 semanas), Eslováquia,
Eslovênia, África do Sul, Suécia (18 semanas), Suíça, Tajiquistão, Tunísia,
Turquia (10 semanas), Ucrânia, Estados Unidos (de acordo com leis de cada
estado), Usbequistão e Vietnã.
O aborto inseguro tem sido objeto de debates acirrados nas Nações
Unidas. Apesar das pressões conservadoras e das intermináveis negociações, o
resultado final tem sido positivo, com um crescente reconhecimento da
descriminalização do aborto como legítima questão de direitos humanos:
O Programa de Ação da Conferência Internacional de População e
Desenvolvimento, realizada no Cairo em 1994, reconheceu, pela primeira vez
em um documento inter-governamental, o aborto inseguro como grave problema
de saúde pública (parágrafo 8.25)69. No processo de revisão Cairo + 5 (1999), o
69 Parágrafo 8.25 do Programa de Ação do Cairo: Em nenhuma circunstância o
aborto deve ser promovido como um método de planejamento familiar. Todos os governos e todas as organizações inter-governamentais e não-governamentais pertinentes, são instadas a reforçar seus compromissos com a saúde das mulheres, a considerar os efeitos do aborto inseguro sobre a saúde como um problema crucial de saúde pública e a reduzir o recurso ao aborto, mediante ampliação e melhoria dos serviços de planejamento familiar. Deve ser atribuída prioridade máxima às ações de prevenção da gravidez indesejada e todos os esforços devem ser envidados para evitar a necessidade do abortamento. As mulheres que experimentam gestações indesejadas devem ter acesso imediato a informações confiáveis e um aconselhamento compassivo. Quaisquer mudanças ou medidas relacionadas com o abortamento que se introduzam no
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 41
texto aprovado recomenda o treinamento de profissionais para atender às
mulheres nos casos em que o aborto é legal, embora não se tenha conseguido
incluir, no documento final, a recomendação sobre a revisão das leis punitivas.
A Conferência Mundial sobre a Mulher (Pequim), realizada em 1995,
reafirmou o conteúdo do parágrafo 8.25 do Cairo, acrescentando a
recomendação de que os países revisassem as leis que punem mulheres que
se submetem a abortos ilegais (parágrafo 106k). No mesmo ano ocorre a
Conferência de Beijing (Fourth World Conference on Women) direcionada
exclusivamente para os direitos femininos. E, em 2000, o documento final de
Pequim + 5 incorpora na íntegra o texto do parágrafo 106k da Plataforma de
Ação de Pequim, mencionando a necessidade de revisar as leis que punem a
prática do aborto inseguro. 70
3.3.2.Documentos Jurídicos Nacionais
No Brasil o aborto foi regulamentado pela primeira vez pelo Código
Criminal do Império de 16 de dezembro de 1830 e era enquadrado nos crimes
contra a segurança da pessoa e da vida, nos artigos 199 e 200. Até então não
havia previsão jurídica para este ato e, conseqüentemente não era proibido ou
punido penalmente.
Após, o Código Penal da República, de 1890, no Titulo X, ampliou a
imputabilidade nos crimes de aborto, prevendo a punição para a mulher que
praticasse o auto-aborto, porém atenuou a pena nos casos de estupro ou com a
finalidade de "ocultar a desonra própria". Introduziu, ainda, uma exclusão de
punibilidade para o aborto necessário que visava salvar a vida da gestante.
O tratamento jurídico brasileiro atual no tocante à prática abortiva é de
cunho proibitivo. Diversos são os diplomas legais referentes ao tema.
sistema de saúde, só podem ser determinadas a partir do âmbito nacional e local, e de acordo com o processo legislativo nacional. Nas circunstâncias em que o aborto não contraria a lei, o procedimento deve ser seguro. Em todos os casos, as mulheres devem ter acesso a serviços de qualidade para o tratamento de complicações resultantes do aborto. Os serviços de orientação pós-aborto, de educação e de planejamento familiar devem ser prontamente disponibilizados, o que ajudará também a evitar abortos repetidos. Fonte: http://www.redesaude.org.br acesso em 18/10/2005.
70 Além de repetir o parágrafo 8.25 acrescenta que: “...Os serviços de orientação pós-aborto, de educação e de planejamento familiar devem ser prontamente disponibilizados, o que ajudará também a evitar abortos repetidos”, considerar a revisão das leis que contenham medidas punitivas contra as mulheres que se submeteram a abortamentos ilegais.” Fonte: http://www.redesaude.org.br acesso em 18/10/2005.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 42
A Constituição da República embora não trate do tema de forma específica
assegura o direito à vida de forma ampla, incluindo assim, a vida intra-uterina.
Tal previsão é constante do artigo 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)”.
A Lei das Contravenções Penais, de 1941, por sua vez, no capítulo "Das
Contravenções referentes à Pessoa" dispõe em seu artigo 20 que é também
ilícito o anúncio de meio abortivo, seja ele processo, substância ou objeto,
estipulando pena de multa71.
A Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943, quando trata das férias
anuais do trabalhador estabelece: “Art. 131. Não será considerada falta ao
serviço, para os efeitos do artigo anterior a ausência do empregado: (...) II -
durante o licenciamento compulsório da empregada por motivo de maternidade
ou aborto não criminoso, observados os requisitos para percepção do salário-
maternidade custeado pela Previdência Social;”
Apenas oito constituições estaduais, dos 26 Estados que compõem a
República Federativa do Brasil, referem-se ao aborto legalmente permitido,
visando garantir sua efetiva implementação, a saber: Amazonas, Bahia, Goiás,
Minas Gerais, Pará, Rio de Janeiro, São Paulo e Tocantins. 72 O Espírito Santo é
o único Estado a considerar inaceitável o aborto diretamente provocado,
colocando-o ao lado do genocídio, do suicídio, da eutanásia, da tortura e de
outras formas de violência. In verbis: Art. 199. (...) Parágrafo único. São
inaceitáveis, por atentar contra a vida humana, o aborto diretamente provocado,
o genocídio, o suicídio, a eutanásia, a tortura e a violência física, psicológica ou
moral que venham a atingir a dignidade e a integridade da pessoa humana.
O Código Civil Brasileiro, de 2002, não contém nenhum dispositivo
específico sobre o aborto, mas protege o feto desde sua concepção em seu
artigo 2º.
A legislação penal em vigor é expressa na proibição do aborto nos artigos
124 a 128 do Código Penal de 1940, enquadrando-os no capítulo referente aos
crimes contra a vida.
71 A redação original deste artigo previa também como contravenção o anúncio de
meios contraceptivos, porém foi alterado pela Lei 6.734/1979. 72 Dados obtidos através do site
http://www.cladem.org/portugues/nacionais/brasil/informe_aborto_brasilp.asp acesso em 18/10/2005
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 43
O artigo 124 do referido código trata do auto-aborto e do aborto provocado,
com o consentimento da gestante, prevendo pena de detenção de 1 a 3 anos.
O artigo seguinte rege sobre o aborto provocado sem o consentimento da
gestante, pena estabelecida de 3 a 10 anos de reclusão e prevê a pena de 1 a 4
anos se o aborto foi provocado por terceiro, mas com consentimento. No
parágrafo único desse artigo vemos uma causa de aumento da pena se a
gestante não é maior de 14 (quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se
o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.
A forma qualificada é prevista no artigo 127, aumentando a pena em um
terço se em conseqüência do aborto a gestante sofre lesão corporal de natureza
grave; e duplicando se lhe sobrevém a morte.
Já o artigo 128 estabelece os casos permissivos de aborto. O inciso I trata
do aborto necessário, ou seja, quando não há outro meio de salvar a vida da
gestante, e o inciso II do chamado aborto emocional, no caso de gravidez
resultante de estupro.
A primeira iniciativa de reforma legal aconteceu em 1983, quando um
projeto de lei pela legalização do aborto foi apresentado à Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e rejeitado. Em 1985, no Rio
de Janeiro, a Assembléia Legislativa aprovou projeto de lei que obrigava o
serviço público de saúde a oferecer o procedimento nos dois casos previstos
pelo Código Penal. O então governador do estado – que num primeiro momento
havia sancionado – vetou o projeto. Mas a proposta de assegurar na rede
pública de saúde o acesso ao aborto nos casos de risco de vida e estupro foi
retomada pela administração municipal de São Paulo, que criou no Hospital do
Jabaquara, em 1990, o primeiro serviço público para atender os casos de aborto
previstos pela lei penal.
Em 1992 foi criada uma Comissão para Reformulação do Código Penal, e
a parte específica dos crimes contra a vida foi orientada por uma subcomissão,
presidida pelo desembargador Dr. Alberto Franco, a qual propôs a
descriminalização do aborto se comprovada má formação fetal, desde que
ocorra a interrupção até a 24ª semana. Tal proposta até hoje não foi adotada.
Diversos projetos de leis têm tramitado nas Casas Legislativas brasileiras,
tanto no plano nacional como nos planos estaduais e municipais. Mas também
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 44
há projetos no sentido contrário visando retirar da lei os casos em que a
interrupção da gravidez está permitida73.
Tramitam no Congresso Nacional 24 propostas que, direta ou
indiretamente, referem-se ao tema. Há propostas para estender os benefícios da
lei aos casos de mal-formação fetal; outras querem autorizar a interrupção a
partir da decisão da mulher, levando em conta o tempo da gestação; e há
também as que objetivam suprimir do Código Penal o artigo que caracteriza o
aborto como crime.
O Projeto de Lei 1135/91, de autoria dos ex-deputados Eduardo Jorge e
Sandra Starling, visa revogar o artigo 124 do Código Penal. A relatora, deputada
Jandira Feghali (PCdoB-RJ), apresentou um substitutivo incorporando alguns
pontos de 15 projetos de leis sobre o mesmo tema e acrescentou outros
aspectos no tocante ao tempo de gestação. No fim de setembro de 2005, a
Comissão de Revisão da Legislação Punitiva que Trata da Interrupção Voluntária
da Gravidez - entregou à Câmara um relatório sobre o assunto, propondo a
descriminalização do aborto no Brasil. De acordo com o texto apresentado pela
relatora, a mulher poderá optar pelo aborto até a 12ª semana de gestação, sem
que haja necessidade de justificação. A interrupção da gravidez poderá ocorrer
até a 20ª semana se resultante de estupro. E, finalmente, segundo o substitutivo,
o aborto poderá ocorrer em qualquer momento se for constatado grave risco à
saúde da gestante e de malformação do feto incompatível com a vida.
A proposta de um plebiscito sobre a legalização do aborto foi feita pelo
deputado Salvador Zimbaldi (PSB-SP), propondo a realização da consulta no fim
de 2007. Mas também há projetos que retrocedem, retirando da lei os casos em
que a interrupção da gravidez está permitida74.
Apesar de diversas tentativas legislativas a postura brasileira ainda tem
cunho proibitivo marcada em grande parte pela doutrina católica e falta de
justificação racional dos argumentos no seio da sociedade de forma livre.
Somente através da ampla discussão sobre os aspectos bioéticos e
constitucionais envolvidos em tal problemática será possível repensarmos o
tratamento jurídico do nosso país.
73 São exemplos: Projeto de Lei (PL) 5058/05, PL 5364/05, PL 7235/02 e PL
1459/03. Fonte: http://www.camara.gov.br/internet/agencia/materias acesso em 28 de outubro de 2005.
74 São exemplos: Projeto de Lei (PL) 5058/05, PL 5364/05, PL 7235/02 e PL 1459/03. Fonte: http://www.camara.gov.br/internet/agencia/materias acesso em 28 de outubro de 2005.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 45
4 INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
4.1.Teorias sobre a Interpretação
O objetivo deste capítulo é fornecer o aporte teórico de diversos autores
sobre interpretação de um texto normativo, especialmente, constitucional. Esse
suporte será essencial para a posterior discussão das possíveis interpretações
do ordenamento jurídico brasileiro no estudo de caso da permissão de
antecipação do parto na ocorrência de anencefalia fetal. Quando então serão
analisados os argumentos utilizados para defender ou proibir tal hipótese,
levantando as técnicas argumentativas principais de ambos os entendimentos.
Quatro questionamentos são essenciais quando o assunto é
interpretação: O que é interpretar, por que interpretar, como interpretar e quais
as dificuldades do ato interpretativo. As respostas a essas perguntas variam
conforme a época e a metodologia de cada autor.
4.1.1. O que é interpretar?
O ato de interpretar significa fornecer significação às palavras, é
primeiramente a análise semântica de um texto. Por tal razão a semiótica75 é
vital para a interpretação76. A norma legal, como todo texto escrito, necessita da
75 A semiótica - disciplina que estuda os elementos representativos no processo de
comunicação - pode ser divida em três partes: sintaxe, semântica e pragmática. De modo geral, é possível afirmar que a sintaxe estuda os signos de forma pura, independente de seu significado, em outras palavras, preocupa-se com a construção tecnicamente corrente das frases em determinado idioma. Na semântica, a análise debruça-se sobre os signos em sua relação com os objetos por eles designados, isto é, sobre o problema dos significados. Por fim, a pragmática cuida da relação entre os signos e as pessoas que as usam, ou seja, o contexto em que os termos são empregados. GUIBOURG, R., GHIGLIANI, A., GUARINONI, R. Lenguaje, 2000, p. 33.
76 Willis Santiago Guerra Filho ressalta a importância desses conhecimentos no campo do Direito. Cita-se: “O aspecto sintático do conhecimento é tradicionalmente trabalhado no âmbito da lógica formal. (...) As funções semântica e pragmática, por sua vez, corresponderiam ao campo da lógica material, que gira em torno de objetos mundanais, cujo principal, para o Direito, é a Justiça.” GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência jurídica, 2001, p.104.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 46
interpretação que pode ser considerada como meio termo entre as previsões
legais e a solução do caso concreto.
A interpretação no entender de Ricardo Guastini pode significar tanto a
atividade como o resultado desta atividade. A interpretação de um texto atribui
sentido ou significado a um determinado fragmento da linguagem.77
Carlos Maximiliano, em sua obra recentemente reeditada sobre
Hermenêutica e Aplicação do Direito, diferencia os termos Hermenêutica78 -
entendida como teoria científica da arte de interpretar cujo objeto de estudo e a
sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e alcance
das expressões do Direito - e Interpretação, tida como concretização da primeira.
A interpretação, no entender de Margarida Camargo, deve ser vista como
ação mediadora que busca compreender o real significado do que foi escrito por
outra pessoa. O ato de concretização depende dessa prévia interpretação da
norma e do fato resultando em uma determinada decisão concreta.
O termo Hermenêutica é adotado por Ivo Dantas como ato de interpretar,
como um conjunto de princípio que devem servir como orientação e regulação
para a interpretação das normas jurídicas. Já o termo interpretar é definido como
o descobrimento do sentido real da norma e seu conteúdo ôntico. 79
Umberto Eco demonstra sua preocupação com a questão dos limites da
interpretação. Um texto em si já impõe restrições a seus intérpretes. Os limites
da interpretação são coincidentes de forma obrigatória com os direitos do texto.
Esse autor trata das noções de uso e interpretação.
77 GUASTINI, R., Estudios sobre la interpretación jurídica, 2003. 78 Margarida Camargo, cuja obra objetiva relacionar as noções de Hermenêutica e
Argumentação78, elabora um breve histórico sobre a significação do termo hermenêutica. Inicia no período da Grécia Antiga Histórico tendo como função levar a mensagem dos deuses aos homens. Significava traduzir algo inteligível para a linguagem dos homens. Em Roma a Hermenêutica desenvolveu-se com a própria prática jurídica. Os pretores e jurisconsultos diziam o direito no caso concreto e essas decisões foram, com o tempo, transformadas em máximas cada vez mais abstratas e obrigatórias. Os glosadores do século XI e XII, após a descoberta do Corpus Iuris Civilis, iniciam um esforço acerca de seu entendimento e compreensão. O desenvolvimento das cidades italianas acarreta a criação de uma corporação própria denominada de Universidade e sua criação teve como resultado a elaboração as glosas especificando palavra por palavra, tal interpretação foi feita pelos próprios professores. O método escolástico foi responsável pelo aparecimento da dogmática jurídica. A seguir, com o historicismo, a hermenêutica reconhece a necessidade da interpretação das circunstâncias históricas da criação do texto e também as circunstâncias que determinavam sua concretização posterior. Assim, a hermenêutica não se baseava mais unicamente em seu aspecto exegético. Porém é somente com o advento do Iluminismo que a interpretação e a hermenêutica deixam de significar a mesma coisa. A hermenêutica encontra seu status de ciência, na qual são englobadas as técnicas interpretativas.
79 DANTAS, I., Princípios constitucionais e interpretação constitucional, 1995. p. 83.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 47
“Defender a interpretação do texto contra o uso dele não significa que os textos não possam ser usados. Mas o livre uso dele nada tem a ver com sua interpretação, visto que a interpretação e uso sempre pressupõem uma referência ao texto-fonte, quando mais não seja, como pretexto.”
4.1.2. Por que interpretar?
A interpretação jurídica tem como finalidade precípua determinar o real
sentido de uma norma legal, qual a sua intenção, o alcance de sua previsão e
como deve ser aplicada a um interesse humano evidenciado através de uma
ação judicial.
O ato de interpretar um texto normativo não é tarefa simples. A
linguagem, além de seus defeitos próprios, admite conceituações de termos que
variam conforme a época de sua escrita e de sua leitura. Os textos legais ainda
carregam outra questão passível de problemas, qual seja os valores e interesses
expressos em uma norma podem não mais coincidir com os atuais80.
De forma sintética ressaltam-se os dizeres de Carlos Maximiliano: “a
palavra é um mau veículo do pensamento” 81 e “não perdura o acordo
estabelecido entre o texto expresso e as realidades objetivas” 82. Essas duas
afirmações sintetizam várias dificuldades enfrentadas pelos intérpretes legais.
A necessidade de interpretar uma norma jurídica admite dois
entendimentos principais. Há aqueles que entendem que qualquer norma jurídica
imprescinde da aclaração de seus termos, e há aqueles que entendem que
somente as normas que possuem certa vaguidade ou imprecisão devem ser
objeto de interpretação.
Ricardo Guastini destaca esses dois posicionamentos sobre interpretação
jurídica83.
80 A obra Hermenêutica e Argumentação propõe essa dificuldade no papel
interpretativo de concretização do direito, qual seja, o distanciamento histórico entre a origem do texto, carregado de intenções de seu autor bem como do espírito da sua época, e o momento atual em que a lei, ou texto, é interpretada e aplicada.80 Por ser a norma jurídica uma decorrência da ação humana, ela carrega em si uma significação, sentido e valor dependentes de um porquê histórico, da mesma forma que o intérprete é um ser historicamente orientado e que faz parte de uma tradição. O intérprete é aquele que busca aplicar a legislação conferindo-lhe a melhor adequação ao momento presente.
81 MAXIMILIANO, C., Hermenêutica e aplicação do direito, 2005, p. 29. 82 Ibid., p. 10. 83 Margarida Camargo também tece algumas considerações históricas a respeito
dos diversos entendimentos jurídicos sobre o papel da interpretação. Começa com a Escola da Exegese a qual propunha que o Poder Judiciário deveria ser restrito ao do apego excessivo às palavras da lei e que qualquer atividade fora deste âmbito representaria um arbítrio. Esta corrente de pensamento representa a pretensão de
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 48
O primeiro adota uma postura restrita de interpretação e atribui uma
possível escolha de significado somente a uma formulação normativa passível
de dúvida ou obscuridade, e, unicamente nesses casos deve ser aplicada a
interpretação. A adoção deste conceito importa na aceitação de que as palavras
têm em si um significado intrínseco ou próprio. Esta concepção origina a teoria
cognitiva da interpretação que considera que interpretar é verificar
empiricamente o significado objetivo dos textos normativos ou a intenção
subjetiva de seus autores. Os enunciados dos intérpretes são enunciados do
discurso descritivo, podem comprovar a veracidade ou não desses enunciados.
Tal teoria entende o sistema jurídico como necessariamente completo (sem
lacunas) e coerente (sem antinomias), não havendo espaço para a
discricionariedade judicial. Toda questão jurídica admite somente uma resposta
justa.
De forma contrária, a postura ampla de interpretação admite uma
atribuição de significado a qualquer formulação jurídica, independentemente de
haver dúvidas ou controvérsias. Tal posicionamento nos leva à conclusão que
todo texto requer uma interpretação, sendo esta um pressuposto necessário à
aplicação da norma a qualquer caso. A própria atribuição de significado a um
texto requer uma valoração, eleição ou decisão. Não há um significado próprio
encontrar na letra da lei a resposta para qualquer conflito apresentado concretamente. Tal posicionamento um tanto extremo recebeu prontamente a crítica de Gény para quem a ocorrência de lacunas não preenchidas pela lei era evidente. Portanto, a mera subsunção do fato à norma geral não é suficiente, devendo a atividade do intérprete se coadunar com as regras e princípios gerais norteadores da ordem jurídica positiva. Já Savigny vê o direito codificado como imposição racional do despotismo, pois não observa os costumes o que acarreta a não efetividade à pura e real vontade popular. A função legislativa ofereceria apenas um mero suporte ao costume para tolir-lhe as incertezas e as indeterminações. O formalismo jurídico alemão também é mencionado por Margarida. Segundo este entendimento a atividade científica seria responsável por estipular conceitos bem definidos cujo objetivo é garantir a segurança das relações jurídicas através da diminuição da ambigüidade e vaguidade dos termos legais. Esse alto grau de racionalidade originou o dogma da subsunção. O positivismo desvincula os fatos de qualquer valoração que lhe pudesse ser inferida, através do processo de generalização e abstração. Embora, esteja presente uma preocupação em relacionar os fatos sociais e o direito, de maneira que a legislação seja o mais fiel possível àqueles. Jhering formula sua crítica ao formalismo. Esse autor vê o direito como processo dinâmico levado pelo espírito prático que chega à realização. Por fim, Margarida Camargo cita Kelsen. Cuja busca pretende isolar o direito de indagações relativas aos criadores da lei ou suas intenções. O fundamento de validade do direito não está nesses fatos, mas na própria norma superior que o prescreve. O ordenamento jurídico positivo encerra-se nele mesmo, prevendo e controlando a sua própria existência como bastante em si mesmo. Na sua teoria não há espaço para a hermenêutica, ou a explicações de termos como compreensão, interpretação e concretização do direito. Basta-lhe a subsunção do fato a norma válida. Atualmente é predominante na doutrina hermenêutica a razão objetiva da lei em detrimento da razão subjetiva ou originária.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 49
das palavras e sim aquele atribuído pelo intérprete. Para este entendimento os
enunciados interpretativos não são verdadeiros ou falsos, fala-se antes em
preferência entre os termos. O ordenamento jurídico não é completo ou coerente
e diante de lacunas os juízes criam um direito novo, e por isso deve ser clara a
demarcação das funções judiciais e legislativas.
Ricardo Guastini apresenta ainda uma teoria intermediária a qual
sustenta que a interpretação pode assumir em certos casos a natureza de
atividade cognitiva e em outros uma atividade de decisão discricionária.
Distingue dois tipos de enunciados interpretativos. Quando o significado
atribuído recai no núcleo essencial resulta então, uma simples verificação do
significado preexistente aceito, mas se o significado atribuído recai sobre uma
área duvidosa, de penumbra, o resultado será uma decisão discricionária. Volta
às noções de casos claros, onde deve ocorrer a aplicação pura do texto e os
casos duvidosos, nos quais o intérprete deve adotar valorações em sua
escolha84.
4.1.3.Como interpretar?
A pergunta acima formulada envolve dois elementos: o intérprete e a
metodologia adotada. O aplicador da norma é quem dirá qual a interpretação
correta do ordenamento jurídico ao caso concreto e a metodologia adotada pelo
mesmo determinará como será o processo interpretativo e qual será o resultado
deste.
Segundo Carlos Maximiliano o intérprete deve possuir três qualidades:
probidade, ilustração e critério. Cabe ao intérprete não só examinar através das
palavras os pensamentos possíveis, mas, principalmente, entre os possíveis o
único apropriado, “o sentido conducente ao resultado mais razoável, que melhor
corresponda às necessidades da prática, e seja mais humano, benigno, suave.”
85
Em seu texto sobre as Teorias da Interpretação Manuel Ortega86 ensina
que a interpretação de normas pode dar lugar a resultados diferentes, cabendo
aos operadores do Direito, na aplicação ao caso concreto, eleger entre as
distintas alternativas para que sua atividade compreenda tanto atos de
conhecimento como de vontade. Segundo ele dois tipos de concepção podem
84 GUASTINI, R. Estudios sobre la interpretación jurídica, 2003, p. 16-17. 85 MAXIMILIANO, C., Hermenêutica e aplicação do direito, 2005, p. 135. 86 ORTEGA, M. Sobre la interpretación del derecho, 2003.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 50
ser destacados: as teorias prescritivas87 que se dedicam não só a explicar como
se justificam as decisões judiciais, mas também como estas deveriam ser
justificadas para que possam ser consideradas corretas; e as teorias
descritivas88 que partem da experiência jurídica para descobrir quais são os
diferentes elementos que determinam e influenciam no processo decisório.
Esta divisão é bastante atual já que diferencia as posturas formalista e
pragmática. A primeira lidaria com os métodos tradicionais de interpretação:
literal, o sistemático, o histórico e o teleológico. Este método tem como máxima a
subsunção, ou seja, uma norma (premissa maior) deve ser aplicada ao caso
concreto (premissa menor). A nova metodologia constitucional entende que a
87 As teorias prescritivas têm como pretensão fundamental assinalar como os
sujeitos que aplicam o direito devem interpretar as normas. Buscam condicionar e determinar a atividade do intérprete com a finalidade de influir em seu comportamento. Este comportamento para ser considerado correto deve descobrir certos elementos que se encontram na vontade do legislador, na vontade da lei ou na racionalidade argumentativa dos sujeitos que participam do processo. O intérprete recebe instruções que deve seguir para que sua conduta seja considerada legítima. Manuel Ortega destaca três teorias prescritivas: a direção subjetiva, a direção objetiva e a que concebe a interpretação como argumentação. A direção subjetiva entende que o intérprete busca essencialmente o elemento da vontade do legislador, os desejos e fins que efetivamente operaram na mente do legislador no momento de promulgação da norma. Esta teoria é criticada por seu alto grau de ficção. Diante da complexidade dos sistemas jurídicos atuais não é possível encontrar uma vontade efetiva e homogenia, à medida que, o órgão legislativo é composto pela pluralidade de membros e opiniões muitas das vezes contraditórias. Embora esta corrente de pensamento tenha enfraquecido não desapareceu. A direção objetiva considera que há uma vontade objetiva na própria norma, uma vez criada separa-se de seu autor. O êxito de tal concepção foi fruto da necessidade de adequação dos textos legislativos às novas relações oriundas de mudanças sociais, políticas e econômicas. Esta proporciona uma maior liberdade do intérprete, estabilidade do direito, haja vista que adaptado às novas circunstâncias sem a necessidade de modificação de seu texto e o progresso e evolução das instituições jurídicas. Porém, tal forma de interpretar um texto deve ser adotada de forma criteriosa, pois os limites entre a interpretação e a criação do Direito são tênues e devem ser melhor aclarados. Ortega alerta para a possibilidade de que tal interpretação pode modificar realmente a norma, fazer com que esta estabeleça justamente o contrário da intenção inicial, permitindo a interpretação contra legem. Finalmente, a teoria que concebe a interpretação como argumentação. Neste sentido, os termos legais sempre permitem uma margem decisória, pela necessidade de que seja interpretada pela ocorrência de lacunas, pela seleção e qualificação dos fatos que chegam a juízo. O ponto contrário de tal teoria consiste na alta liberdade conferida ao intérprete que diminui consideravelmente a objetividade e a segurança, podendo conduzir à arbitrariedade. Para corrigir tais distorções Manuel Ortega propõe certos limites ou requisitos cujo cumprimento garante a correção e racionalidade da decisão. Dentre eles a necessidade de justificação, de fundamentação e de comunicação intersubjetiva.
88 As teorias descritivas acreditam que o exame da experiência jurídica revela a presença de elementos irracionais que não podem ser eliminados através do processo de justificação porque a motivação se apresenta como um instrumento insuficiente, pois, não permite controlar a atuação judicial. Os representantes do realismo destacam a importância da personalidade do juiz em seu processo decisório. As decisões não são meras reproduções ou aplicações de regras previamente estabelecidas. Manuel Ortega destaca que estas teorias não se restringem a propor novas metodologias jurídicas, mas
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 51
complexidade dos conflitos atuais não encontra resposta satisfatória na
metodologia tradicional. Os casos concretos, principalmente os que envolvem
normas constitucionais, já não podem mais ser encaixados de forma completa
em uma única norma, havendo casos onde os valores envolvidos colidem e a
mera subsunção torna-se impossível, pois várias premissas maiores podem ser
aplicadas. Por tal razão, os doutrinadores têm voltado a atenção para os casos
em si, buscando novas técnicas interpretativas de solução. 89
4.2. Interpretação Especificamente Constitucional
A Constituição é o texto normativo que expressa os valores jurídicos
essenciais para a sociedade por ela regulada. As sociedades contemporâneas
têm como característica sua pluralidade, e tal é evidenciado também através dos
textos constitucionais, junto com valores sociais e protetivos os valores liberais
permeiam as Cartas Políticas. Outro fator diferencial é a ocorrência de normas
abertas e principiológicas90, o que torna a interpretação da Constituição uma
tarefa mais árdua e que necessita de uma metodologia própria. 91
também têm voltado sua atenção à finalidade política, e por tal razão, resultam mais úteis.
89 Ressalta Marcelo Neves que há uma tendência na Hermenêutica contemporânea, principalmente no Estado Democrático de Direito, de enfatizar a dimensão pragmática do processo interpretativo. Tal processo “caminha de uma primazia da segurança formal, passa pelo predomínio da delimitação ou descoberta do sentido material e chega ao problema da incerteza condicionada pelo pluralismo e o dissenso estrutural da esfera pública.” P.357. No entender de Marcelo Neves a interpretação-aplicação jurídica no Estado Democrático de Direito deve considerar a tensão constante entre a validação interna do próprio ordenamento e a validação externa que advém da esfera pública. Somente através de uma mínima congruência entre essas expectativas será possível à manutenção e reconstrução do sentido do texto constitucional.
90 Cláudio Pereira De Souza Neto diz que: “a grande presença dos princípios nas constituições contemporâneas tem sido apresentada como uma das principais razões para se caracterizar a metodologia constitucional como específica.” SOUZA NETO, C. Teoria constitucional e democracia deliberativa. Um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática, 2006, p. 209.
91 García Amado em seu texto sobre a interpretação constitucional afirma que a interpretação constitucional será dependente da concepção que se tem sobre o valor normativo do próprio texto constitucional. E destaca três correntes sobre a interpretação constitucional. A primeira denominada pelo autor de lingüística, adota a Constituição como um conjunto de enunciados lingüísticos compilados em um texto, o qual se tem por jurídico e de maior hierarquia dentro dos textos jurídicos. Não se questiona sobre a importância ou o papel constitucional. A interpretação ocorre como em qualquer texto jurídico, através do entendimento dos vocábulos utilizados. A concepção voluntarista vê a Constituição como expressão de uma vontade suprema, individual ou coletiva, cujos desígnios concretos e a capacidade de expressão são limites à prática jurídica no ordenamento. Interpretar seria então averiguar os conteúdos de vontade deste texto. Já a concepção material entende o texto constitucional como sendo uma ordem objetiva de valores que constituem uma prefiguração ideal e permanente dos mundos juridicamente
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 52
O Direito Constitucional, por envolver valores jurídico-sociais92 de uma
determinada organização política, não pode utilizar as mesmas técnicas
interpretativas do Direito Privado. A amplitude dos princípios positivados na
Carta Magna não permite a simples subsunção da norma ao caso proposto. E
qualquer conflito pertinente ao âmbito constitucional parte do entendimento de
que “devem as instituições ser entendidas e postas em função de modo que
correspondam às necessidades políticas, às tendências gerais da nacionalidade,
à coordenação dos anelos elevados e justas aspirações do povo” 93.
Neste sentido de uma nova metodologia constitucional o trabalho de
Friedrich Müller – Métodos de trabalho no Direito Constitucional. A sua metódica
abrange os termos hermenêutica, metodologia e interpretação94. O referido
jurista parte das decisões do Tribunal Constitucional Federal da República
Federal da Alemanha para entender a concretização das normas constitucionais.
O autor questiona a teoria tradicional da interpretação segundo a qual um caso
jurídico prático deve ser subsumido ao preceito normativo. O referido tribunal,
atualmente, considera o texto da norma apenas uma primeira instância
interpretativa e limite das alternativas possíveis, evitando apenas as
interpretações contra legem. As decisões do tribunal foram extraídas da
realidade e não segundo uma valoração tradicional restrita às normas.
Porém, Friedrich Müller não pretende excluir das técnicas interpretativas
a concepção tradicional, apenas demonstra que essa não é completa ou única.
Propõe um enfoque múltiplo da metódica de concretização da constituição,
evoluindo de uma lógica puramente formal a uma concretização direcionado ao
caso em voga. 95
possíveis. Portanto, o intérprete deve buscar conhecer os valores adotados pela ordem constitucional.
92 Noção importante sobre valores constitucionais é enunciada por José Moreso quando inicia seu texto sobre primazia constitucional relembrando a idéia de precompromisso expressa no ideal de democracia constitucional. O precompromisso consiste no fato de ater-se a si mesmo em certas situações e excluir determinadas decisões do futuro, para preservar uma decisão do passado que se valora positivamente. MORESO, J., La indeterminación del derecho y la interpretación de la constitución, 1997, p. 166.
93 MAXIMILIANO, C., Hermenêutica e aplicação do direito, 2005, p. 249. 94 Hermenêutica se refere às condições de princípio da concretização jurídica
normativamente vinculada do direito. Metodologia significa a totalidade das regras técnicas da interpretação no trato com normas jurídicas. E interpretação diz respeito às possibilidades do tratamento jurídico-filosófico do texto, i. é, da interpretação de textos de normas. MÜLLER, F. Métodos de trabalho do direito constitucional, 2005, p. 2.
95 Contudo, este novo método, admite ele, não é imune a críticas. A tendência atual de transformar a metódica em sistemas de valores na concretização jurídica pode acarretar a casuística e a transformação do Estado de Direito em Estado do Judiciário. A crescente discricionariedade dos Magistrados tem espaço com a carência de uma
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 53
A doutrina constitucional no Brasil tem buscado solução para o problema
da efetivação de um texto normativo que prevê uma série de valores96, vê-se a
recorrência de dois temas – a efetivação da norma e os princípios
constitucionais.
No tocante à concretização dos princípios Ivo Dantas considera que
qualquer interpretação, principalmente a da própria Constituição, há de ser feita
levando-se em conta o sentido exposto nos princípios fundamentais
consagrados na Lei Maior. A eficácia da Constituição depende não só de sua
fidelidade aos valores sociais e políticos consagrados pela sociedade, mas
também – e principalmente – de uma correta interpretação daquilo que o texto
prescreve97 e apenas uma interpretação que analise a Constituição como um
sistema de princípios e normas obterá o verdadeiro sentido do texto.
Ainda quanto ao tema Humberto Ávila destaca quatro obstáculos à
efetivação dos direitos fundamentais constitucionais.
O primeiro é denominado conseqüencialismo que impulsiona o magistrado
a utilizar o raciocínio jurídico baseado nas conseqüências de sua decisão e não
nas normas ou princípios vigentes.
O segundo obstáculo é o idealismo no qual a interpretação jurídica parte
de modelos ideais, no mais das vezes antigos ou estrangeiros, relegando a
segundo plano o modelo jurídico positivo nacional.
O terceiro é o construtivismo, onde o intérprete parte da premissa correta
de que a norma não é o texto normativo, e sim o resultado da interpretação de
um texto, para chegar à conclusão de que pode construir qualquer alternativa
interpretativa, desconsiderando, inclusive, os conteúdos mínimos dos
dispositivos constitucionais e legais. O efeito disso é claro: o conteúdo semântico
metodologia como a de raiz positivista. Com o intuito de suprir tal falta Friedrich Müller propõe alguns parâmetros que importarão em uma metódica do direito constitucional. Segundo ele os juristas devem transcender a compreensão e a interpretação, chegando à uma aplicação das normas. Para tanto, o mito de que existe uma única solução correta para cada caso proposto dentro da legislação deve ser abolido. O ato de concretizar não se limita às ações de interpretar, aplicar ou subsumir, diametralmente significa produzir uma solução ao conflito social posto ao Judiciário utilizando como parâmetro e limite não só a norma positivada, mas um quadro da democracia e do Estado de Direito.
96 Luís Roberto Barroso escreve que “O novo direito constitucional brasileiro, cujo desenvolvimento coincide com o processo de redemocratização e reconstitucionalização do país, foi fruto de duas mudanças de paradigma: a) a busca da efetividade das normas constitucionais, fundada na premissa da força normativa da Constituição; b) o desenvolvimento de uma dogmática da interpretação constitucional, baseada em novos métodos hermenêuticos e na sistematização de princípios específicos de interpretação constitucional.”
97 DANTAS, I., Princípios constitucionais e interpretação constitucional, 1995, p. 79.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 54
das regras cede em favor de qualquer conteúdo. E por fim, o quarto obstáculo à
efetivação dos direitos fundamentais é o principialismo que acarreta a
manipulação de princípios sem que o aplicador considere devidamente as regras
imediatamente aplicáveis. 98
A positivação cada vez mais constante de valores através de princípios
normativos acarreta uma mudança na estrutura dos ordenamentos jurídicos
necessitando de uma adequação de toda ciência jurídica. Neste sentido a teoria
dos princípios.
4.3. Teoria dos princípios
A teoria dos princípios tem o intuito de responder sobre a qualificação destas
normas jurídicas, sobre seu modo correto de aplicação a fim de obter a melhor
resposta jurídica possível a uma determinada situação. A teoria dos princípios
tem como preocupação analisar a diferenciação entre as regras e os princípios.
Tal distinção será importante a este trabalho haja vista que o estudo de caso
trata de colisões entre regra e princípio e entre dois princípios constitucionais.
Um panorama sobre a referida diferenciação é fornecido por Humberto
Ávila99. O jurista inicia com as lições de Josef Esser o qual utiliza como critério
distintivo a qualidade entre regras e princípios, estes são normas que
estabelecem fundamentos para encontrar um determinado mandamento. Karl
Larenz considera que os princípios não possuem aplicação imediata como as
regras e, por tal razão, somente indicariam a direção para a obtenção de uma
regra sobre a hipótese. Canaris é citado a seguir e afasta os princípios das
regras por duas características: os princípios têm conteúdo axiológico e sua
aplicação somente ocorre através de um processo dialético de complementação
e limitação. No final de sua consideração Humberto Ávila ressalta a importância
de Ronald Dworkin e Robert Alexy, juristas que serão estudados com o objetivo
de destacar os aspectos de ponderação e argumentação no processo de
interpretação e aplicação das normas jurídicas.
A doutrina nacional tem procurado formular uma teoria dos princípios,
estabelecendo conceitos e critérios de diferenciação diversos, no intuito de
98 ÁVILA, H. Direitos fundamentais dos contribuintes e os obstáculos à sua
efetivação. In PIRES, A., TÔRRES, H., 2006, p. 345-361.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 55
adequar a dogmática jurídica ao texto constitucional vigente, repleto de
princípios. Com mais de 15 anos de vigência o texto constitucional necessita da
devida aplicação de todas as suas normas, regras e princípios, nos conflitos
propostos judicialmente, e por isso, a teoria dos princípios se desenvolveu
também na pragmática jurídica. Os direitos fundamentais têm sido enquadrados
nesta categoria de princípios porque são normas constitucionais de caráter
finalístico e definidoras de direitos e garantias. 100
A definição de princípio é construída primeiramente a partir da concepção
que se faz sobre seu caráter e força normativa. Há estudiosos que consideram
os princípios apenas como diretrizes e não como normas101. Porém, com a
constitucionalização positivada os princípios cada vez mais freqüentes nos
ordenamentos jurídicos, a doutrina majoritária tem entendido os princípios como
integrantes do sistema jurídico conjuntamente com as regras. 102 A seguir, a
conceituação de princípios que atenta para a diferenciação entre esses e as
regras, principalmente no tocante à sua finalidade e âmbito de aplicação.
Humberto Ávila propõe três critérios de diferenciação entre regras e
princípios: 1)Quanto ao modo de prescreverem o comportamento – as regras
são imediatamente descritivas e os princípios imediatamente finalísticos. 2)
Quanto à justificação que exigem – as regras pretender correlacionar a
construção conceitual e da norma e a finalidade que lhe fundamenta. Já os
princípios correlacionam o estado das coisas posto como fim e os efeitos da
conduta a ser tomada. 3)Quanto ao modo como contribuem para a decisão – as
regras são preliminarmente decisivas e abarcantes, pretendem gerar uma
solução específica ao caso concreto, enquanto que os princípios são normas
preliminarmente complementares e parciais, tem como pretensão contribuir para
a tomada de decisão. 103
Duas são as orientações propostas por Ronald Dworkin quanto ao papel dos
princípios no tocante às obrigações jurídicas. Inicialmente, pode-se tratar os
princípios jurídicos da mesma maneira que são tratadas as regras jurídicas e
99 ÁVILA, H., Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios
jurídicos, 2003, p. 26. 100 De acordo com o proposto, TAVARES, A.. Elementos para uma teoria geral dos
princípios na perspectiva constitucional. In LEITE, G., 2003, p. 44; 101 Neste sentido José Afonso da Silva que enquadra os princípios na categoria de
normas eficácia limitada, dependendo de atividade legislativa para sua efetividade. SILVA, J. Aplicabilidade das normas constitucionais, 1999, p. 163.
102 Fazem parte desta doutrina Ronald Dworkin, Robert Alexy, Humberto Ávila, entre outros.
103 ÁVILA, H., Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 2003, p. 119-120.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 56
dizer que alguns princípios possuem obrigatoriedade de lei e devem ser levados
em conta por juízes e juristas que tomam decisões sobre obrigações jurídicas.
Ou então, pode-se negar que tais princípios possam ser obrigatórios no mesmo
sentido que algumas regras o são. Assim, os juízes vão além das regras a que
estão obrigados a aplicar e lançam mão de princípios extralegais que eles têm
liberdade de aplicar, se assim o desejar, e somente em casos não englobados
pelas regras, de forma excepcional.
Tais abordagens geram diferentes conseqüências, já que a primeira
alternativa trata os princípios como obrigatórios para os juízes, de tal modo que
eles incorrem em erro ao não aplicá-los quando pertinente. A segunda
alternativa trata os princípios como resumo daquilo que os juízes na sua maioria
adotam como princípio de ação, quando forçados a ir além dos padrões aos
quais estão vinculados. Ou seja, as alternativas divergem quanto ao fato de
serem os princípios normas jurídicas ou instrumentos externos ao ordenamento.
Para Ronald Dworkin o diferencial entre princípios e regras é de natureza
lógica104. Os princípios serão aplicados pelas autoridades públicas, inclusive
pelos julgadores, quando forem considerados relevantes, apontando para uma
ou outra direção. Ademais, os princípios possuem uma dimensão de peso ou
importância, e quando colidem o intérprete que vai resolver o conflito deve levar
em conta a força relativa de cada princípio envolvido. Neste ponto a ponderação
e o impacto da aplicação de um princípio será determinante para sua utilização.
Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e a escolha de um
princípio ou uma política particular será diversas vezes objeto de controvérsia.
As regras não possuem essa dimensão valorativa, são funcionalmente
importantes ou desimportantes, podendo haver certa hierarquia entre elas. Se
duas regras estão em conflito, uma suplanta a outra em virtude de sua
importância maior, sendo assim, uma delas não pode ser válida. As regras são
aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada, dados os fatos que uma regra estipula, ou
a regra será válida, e neste caso, a resposta por esta fornecida deve ser aceita,
ou não, e neste caso ela nada contribui para a decisão.
Ronald Dworkin entende que os princípios são elementos do sistema
jurídico e, portanto, são normas que devem ser consideradas pelo julgador
quando proferir uma decisão jurídica. Entretanto, ressalta que a utilização dos
104 Ronald Dworkin trabalha esta questão, principalmente, quando expõe os
modelos de regras I e II em seu livro Levando os direitos a sério, nestes capítulos o autor rebate a posição tradicional positivista – exemplificado nas concepções de Hart – e propõe a sua visão sobre o modelo a ser adotado.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 57
princípios não pode ocorrer de forma arbitrária, devendo estes ser aplicados de
preferência em casos onde não há no ordenamento uma norma clara e
completamente aplicável. 105 Ele adota a postura pós-positivista segundo a qual
as pretensões normativas podem e devem ser fundamentadas racionalmente.
Essas hipóteses são consideradas Hard Cases ou casos difíceis como são
conhecidas no Brasil.
4.4.A interpretação constitucional nos casos difíceis.
A interpretação, como visto anteriormente, é útil na concretização de
qualquer texto normativo. Entretanto, existem situações que por sua
complexidade exigem uma hermenêutica mais detalhada e difícil. Neste sentido,
surge a doutrina americana denominada de Hard Cases, os quais não
encontram uma solução tranqüila quando inseridos nos ditames legais, não
sendo possível a simples subsunção de uma regra. No prefácio de Levando os
Direitos à Sério Calsamiglia106 esclarece que um caso poderá ser considerado
difícil se existir uma incerteza quanto à aplicação da norma jurídica ao caso
concreto.
A ocorrência dos chamados casos difíceis torna a Ciência Jurídica passível
de questionamentos e incertezas. O sistema jurídico parece incompleto e falho, a
técnica positivista de aplicação do caso concreto à norma elaborada através da
subsunção não encontra mais respaldo na complexidade da sociedade.
No tocante a este trabalho é importante mencionarmos alguns
posicionamentos sobre o assunto, para tanto será utilizada a doutrina Ronald
Dworkin e posteriormente a crítica feita por Manuel Atienza. Ambos lidam com
a preocupação a respeito do excessivo argumento valorativo nas decisões
105 Cláudio Pereira comentando Dworkin ressalta que “o autor destaca
especialmente que, se o juiz possui o poder de decidir por sua própria vontade as questões que lhe são apresentadas, as noções de autonomia pública, segurança jurídica e separação de poderes ficam prejudicadas. De fato, o juiz que está legislando, se apropriando de uma função do legislador – o que cria problemas sérios de legitimação. (...) Quando o juiz legisla no caso concreto está criando normas retroativas. Ademais, a vontade dos jurisdicionados não terá sido levada em conta no processo de produção normativa. Por essas razões, impõe-se ao pensamento jurídico buscar soluções para a discricionariedade judicial.” p. 223-224.
106 Este prefácio ao livro Levando os Direitos a Sério somente é encontrado na versão espanhola do texto sob a nomenclatura ”Ensayo sobre Dworkin”.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 58
judiciais, tendendo essas ao subjetivismo demasiado. Essa parte do capítulo visa
demonstrar que o estudo de caso não deve ser entendido de forma simplista, no
sentido de mera aplicação de normas vigentes. As problemáticas oriundas de
conflitos bioéticos, como o que será proposto, são exemplos dos chamados
casos difíceis, pois envolvem valores relevantes e muitas das vezes
considerados inconciliáveis. Entretanto tais demandas exigem um
posicionamento jurídico, cabendo aos aplicadores encontrar uma forma racional
de ponderar os interesses envolvidos resultando em uma decisão satisfatória.
Impensável falar na Teoria dos Casos Difíceis sem mencionar os
ensinamentos de Ronald Dworkin. Este jurista tem como preocupação inicial
rebater um dos grandes pensadores do positivismo jurídico – Hart. A relação
entre os dois tem pontos semelhantes e pontos contraditórios.
A semelhança, no âmbito deste trabalho, que desejamos levantar é quanto à
concordância sobre a existência de casos difíceis.
A divergência com Hart envolve dois prismas. Primeiro, Ronald Dworkin
critica o normativismo que considera o direito como sendo um sistema composto
exclusivamente por regras por considerar que tal pensamento acarretará
necessariamente na ocorrência de lacunas no ordenamento vigente à medida
que as normas não acompanham o ritmo das necessidades e mudanças sociais.
E, em segundo, questiona a legitimação do Judiciário quando decide por razões
próprias, ocorrendo na verdade a criação de uma nova norma. No seu entender
há que se buscar critérios limitadores e paradigmáticos para as decisões
judiciais, papel este que deve ser realizado pelos princípios jurídicos.
A teoria de Ronald Dworkin sobre a existência e solução dos casos
considerados difíceis perpassa alguns momentos importantes. Primeiro lidará
com a noção de princípio, considerando estes como elementos do sistema
jurídico. Segundo tratará da questão da integridade como método e forma de
entender este sistema. E por fim, entrará na questão da discricionariedade do
Poder Judiciário.
A teoria dos princípios, já anteriormente estudada, é de fundamental
importância na resolução dos casos difíceis, já que não obtendo uma regra
específica no ordenamento jurídico o julgador deverá buscar nos princípios,
sendo estes entendidos também como normas jurídicas, a solução para o caso
concreto.
A segunda teoria de Ronald Dworkin trata da integridade. O autor a coloca
como terceiro ideal juntamente com a justiça e a eqüidade e destaca dois
princípios de integridade. Um chamado de legislativo que pede aos legisladores
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 59
que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente e o outro denominado
de jurisdicional que demanda que a lei seja vista como coerente. No âmbito
deste trabalho será abordado apenas o segundo princípio, parte fundamental de
sua teoria para o entendimento da discricionariedade do Judiciário e a solução
dos casos difíceis.
O direito como integridade rejeita a questão de que os juízes descobrem ou
inventam o direito, sugere que só se entende o raciocínio jurídico tendo em vista
que os juízes fazem as duas coisas e nenhuma delas. E afirma que não é
possível ao juiz obter uma resposta exclusivamente certa nos casos difíceis do
direito.
A contribuição dos juízes é mais direta, e a distinção entre autor e intérprete
é uma questão de aspectos diferentes do mesmo processo. Portanto, há como
encontrar uma comparação entre literatura e direito, denominada pelo autor de
romance em cadeia. Cada romancista escreve seu próprio capítulo de modo a
criar da melhor maneira possível o romance, como se a obra fosse de um único
autor. Duas dimensões devem ser observadas nesta elaboração: adequação e
interpretação que tornará a obra mais significativa ou melhor. Neste sentido, o
intérprete deve analisar, primeiramente, qual interpretação se adapta melhor a
um texto e, após, qual torna o romance substancialmente melhor. Um romancista
em cadeia tem muitas decisões difíceis a tomar e pode-se esperar que diversos
romancistas em cadeia tomem decisões diferentes, porém nenhum deles pode
se afastar do romance.
O juiz Hércules – modelo contrafático de Ronald Dworkin -, criterioso e
metódico, deve julgar o caso seguindo algumas etapas. Começa por selecionar
diversas hipóteses que correspondem à melhor interpretação dos casos
precedentes. Elabora uma interpretação com base em princípios competitivos,
mas contraditórios, como uma lista parcial de interpretações. Verifica cada
hipótese dessa breve lista perguntando-se se uma pessoa poderia ter dado os
veredictos dos casos precedentes se estivesse aplicando esta interpretação.
Compara as razões com suas sólidas convicções políticas sobre o valor relativo
de suas interpretações. E, por fim, descarta as interpretações impossíveis,
chegando à melhor interpretação.
Qualquer juiz desenvolverá ao longo de sua formação uma concepção
funcional individualizada do direito na qual ele se baseará para decidir. Mas os
fatos brutos da história jurídica limitarão o papel que podem desempenhar, em
suas decisões, as convicções pessoais de um juiz em questões de justiça. Fato
este que nos leva à análise da discricionariedade do juiz.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 60
A postura positivista considera que os juízes quando utilizam os princípios
em suas decisões o fazem como algo fora do direito, valendo-se de seu poder
discricionário de aplicá-los ou não107. Afirmam que um juiz não tem poder
discricionário quando uma regra clara e estabelecida está disponível. Apenas de
forma excepcional devem formar seu próprio juízo ao aplicar padrões jurídicos.
Hart, no entanto, afirma que quando o poder discricionário do juiz está em jogo,
não podemos mais dizer que ele está vinculado a padrões, mas devemos, em
vez disso, falar sobre os padrões que ele tipicamente emprega. O poder
discricionário é, então, o agir de acordo com aquilo que os tribunais têm por
princípios. Mas para esta corrente de pensamento princípios e políticas não são
regras válidas de uma lei acima do direito, porque certamente não são regras.
São padrões extrajurídicos que cada juiz seleciona de acordo com suas próprias
luzes, no exercício de seu poder discricionário.
Para Ronald Dworkin, o conceito de poder discricionário é relativo,
admitindo-o somente em casos onde há uma série de alternativas previamente
estabelecidas. O poder discricionário pode ser entendido como um espaço vazio,
circundado por diversas restrições. O juiz quando exerce sua função jurisdicional
não se propõe simplesmente a declarar, como dado frio, o que foi primeiramente
estabelecido pelo Legislativo. Em seu entender o julgador realmente possui tal
dever como justificativa para sua própria decisão. Se for assim, a regra social
não pode ser a fonte do dever, como Hart acredita que seja.
Na maioria dos casos difíceis, os juízes assumem uma postura diferente da
descrita por Ronald Dworkin (de que o juiz deve decidir com base na
argumentação que lhe parecer a mais forte), enquadrando sua divergência como
uma divergência acerca dos padrões que eles estão proibidos ou obrigados a
levar em conta, ou acerca do peso relativo que estão obrigados a lhes atribuir.
Na exposição sobre os casos difíceis – aqueles onde aparentemente não há
uma ou somente uma solução para a lide ou conflito - Ronald Dworkin percorre
três etapas principais108.
Inicialmente, resume a postura da Teoria do Positivismo Jurídico para tais
situações ressaltando que quando uma ação judicial específica não pode ser
submetida a uma regra de direito clara, estabelecida de antemão por alguma
107 Para Ronald Dworkin somente faz sentido falar em Poder Discricionário quando
alguém é encarregado de tomar decisões de acordo com padrões estabelecidos por uma determinada autoridade. DWORKIN, R., Levando os direitos a sério, 2002, p. 50.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 61
instituição, o juiz tem o poder discricionário para decidir o caso de uma maneira
ou de outra, parecendo supor que uma ou outra das partes tinha o direito
preexistente de ganhar a causa. Porém, para o autor tal idéia não passa de uma
ficção porque, na verdade, o juiz legisla novos direitos jurídicos, e em seguida os
aplica retroativamente ao caso em questão.
A seguir passa à sua crítica, considerando essa teoria da decisão judicial
totalmente inadequada, pois, mesmo quando nenhuma regra regula o caso, uma
das partes pode, ainda assim, ter o direito de ganhar a causa. Não há um
procedimento mecânico para demonstrar quais são os direitos das partes nos
casos difíceis.
Por fim, Ronald Dworkin propõe uma alternativa à solução dos mesmos. Diz
que o ideal seria o juiz (Hércules), mesmo nos casos difíceis, descobrir quais são
os direitos das partes, e não inventar novos direitos retroativamente. Isso é o
ideal, mas por diversas razões não pode ser plenamente concretizado na prática.
As leis e as regras do direito costumeiro (common law) são quase sempre vagas
e devem ser interpretadas antes de se poder aplicá-las aos novos casos. Além
disso, alguns desses casos colocam problemas tão novos que não podem ser
decididos nem mesmo se ampliadas ou reinterpretadas as regras existentes.
Diante desta necessidade prática admite Ronald Dworkin que os juízes às
vezes são levados a criar um novo direito, seja de forma dissimulada ou
explícita. Porém ele coloca três questões que devem ser analisadas.
Primeiro, ao criar um novo direito os juízes devem agir como se fossem
delegados do poder legislativo, promulgando as leis que, em sua opinião, os
legisladores promulgariam caso se vissem diante do problema. Ocorre aqui um
problema de legitimidade haja vista que as leis de uma comunidade devem ser
criadas por pessoas eleitas pelo povo. Como os juízes não são eleitos, o fato de
eles criarem leis parece estar comprometido.
Além disso, se um juiz criar uma nova lei e aplicá-la retroativamente ao caso
diante de si, a parte perdedora será punida, não por ter violado algum dever que
tivesse, mas sim por ter violado um novo dever, criado pelo juiz após o fato.
Esses dois argumentos se combinam para sustentar o ideal tradicional de
que a decisão judicial deve ser o menos original possível.
Outro fator impeditivo de criação de normas pelo julgador é o fato de que as
novas decisões refletem tanto a moralidade política do próprio juiz, como
108 Utilizaremos como referência para esta parte do trabalho o capítulo 4. Casos
Difíceis do livro Levando os Direitos a sério.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 62
também a moralidade que se acha inscrita nas tradições do direito costumeiro, e
tais moralidades podem ser diferentes.
Ronald Dworkin encerra dizendo que se deve confiar nas técnicas de
decisão judicial que, a nosso juízo, possam reduzir o número de erros, com base
em algum juízo a respeito das capacidades relativas dos homens e das mulheres
que podem desempenhar diferentes papéis. E fornece uma orientação aos
juízes: eles podem muito bem errar nos juízos políticos que emitem, e devem,
portanto, decidir os casos difíceis com humildade109.
As considerações de Ronald Dworkin sobre os casos difíceis levam à sua
conclusão de que mesmo nesses, utilizando os princípios como parâmetro,
pode-se obter uma única resposta correta para a lide proposta. Porém,
reconhece que na prática é difícil, por vezes impossível, encontrar tal resposta,
mas mesmo assim isto não invalida sua afirmativa de que ela existe, embora não
encontrada.
Manuel Atienza110, fazendo uma crítica ao pensamento de Ronald Dworkin,
diz que na verdade para este a distinção entre casos fáceis ou difíceis é
relativizada, pois não é necessário um método para cada espécie de caso e, em
última análise, mesmo os casos difíceis somente admitem uma resposta correta,
o que os transformaria para o juiz Hércules em um caso fácil.
Para o referido autor, a distinção de Ronald Dworkin entre regras e princípios
não pode ser aplicada aos princípios bioéticos porque nenhum deles pode ser
interpretado como simples diretrizes. Ademais Manuel Atienza discorda que os
princípios morais podem ser hierarquizados da maneira como propõe Ronald
Dworkin, embora ressalte que alguma espécie de ordenação deva haver no
processo de aplicação.
Manuel Atienza apresenta uma teoria que serviria como método jurídico para
a resolução dos casos difíceis, especialmente os relacionados à bioética. Tal
método importa na observância de dois passos: a construção de uma taxonomia
que permita enquadrar cada caso dentro de uma determinada categoria, o que
constitui o primeiro esforço argumentativo do tribunal; e a elaboração de uma
série de regras de prioridades que não supõe uma hierarquia estanque entre os
princípios.
O próprio jurista reconhece que seu método ainda leva a um conjunto de
soluções abertas e incompletas, mas isso não significa que acarreta decisões
109 DWORKIN, R., Levando os direitos a sério, 2002, p. 203. 110 ATIENZA, M. Los limites de la interpretación constitucional. De nuevo sobre los
casos trágicos, 1997, p. 11.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 63
arbitrárias ou subjetivas, devendo sempre obedecer a critérios de racionalidade e
coerência. Ele utiliza os ensinamentos os quatro princípios kantianos: princípio
da autonomia, princípio da dignidade, princípio da universalidade ou igualdade e
o princípio da informação. Porém, acredita que somente a aplicação destes
princípios não será suficiente para solucionar casos difíceis e bioéticos e elenca
outros. Como: princípio do paternalismo justificado (que considera lícito a
interferência na vida de outro em determinados casos), princípio do utilitarismo
restringido (admite uma ação que não cause benefícios a uma pessoa se produz
um benefício apreciado para outros, se há o consentimento do afetado e se não
é uma medida degradante), princípio do trato diferenciado (há hipóteses lícitas
de tratamento desigual entre as pessoas) e princípio de segredo (permite ocultar
informações sobre a saúde de um indivíduo em determinadas exceções).
A problemática deste modelo é admitida pelo próprio autor quando afirma
que esta série de princípios ajuda na solução de algumas situações, mas não
permite resolver a complexidade de certos casos difíceis. Por tal razão os
princípios precisam ser concretizados na forma de normas. E é nesta
necessidade que reside a dificuldade dos problemas bioéticos. O desafio é
construir a partir dos princípios um conjunto de pautas específicas que resultem
coerentes e permitam resolver os problemas práticos que não apresentam um
consenso. Por fim, Manuel Atienza afirma que a liberdade de consciência e de
livre escolha de decisões pressupõe uma responsabilidade e uma reflexão sobre
qualquer tema objeto de debate. E somente através desse exercício racional
será atingido o ideal de que as leis correspondam às escolhas de cidadãos
conscientes.
A solução, segundo Manuel Atienza, poderia ter origem em duas vias: a
legislativa e a judicial. A legislativa tem como ponto positivo sua legitimação
decorrente de sua composição democrática, mas acarreta o risco de não suscitar
um consenso entre os legisladores e não alcançarem o nível de concretização,
ou serem por demais específicas não comportando a diversidades de situações
fáticas. A segunda via, e mais adequada para os dilemas bioéticos segundo ele
é a judicial. Seja por meio de um julgador comum ou através da criação de um
comitê de âmbito nacional que funcionaria como segunda instância para os
casos bioéticos.
No âmbito deste estudo, a pretensão restringir-se-á à via judicial. A
discussão não adentrará no papel do Poder Legislativo ou na questão da
legitimidade do Tribunal Constitucional. Apenas serão analisadas as hipóteses
interpretativas que reclamam um posicionamento judicial específico. Neste
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 64
sentido a contribuição de Ronald Dworkin será preciosa, vez que, sua teoria,
através da ponderação dos princípios, fornece um instrumental prático para a
concretização do Direito em casos de conflitos entre valores morais importantes.
4.5. Aspectos da Argumentação Jurídica de Robert Alexy
Robert Alexy segue o pensamento de Ronald Dworkin sobre a existência
de normas e princípios dentro do sistema jurídico, porém acrescenta o elemento
procedimento. Pretende ele elaborar uma teoria analítica e descritiva da
argumentação jurídica. Difere de Ronald Dworkin, pois entende que as regras
procedimentais não garantem a obtenção de uma única resposta correta, e sim
que os vários participantes do discurso jurídico cheguem a soluções racionais,
embora às vezes possam ser incompatíveis entre si.
O fenômeno denominado de Colisão de Direitos Fundamentais por
Robert Alexy111 ocorre quando o exercício de um direito fundamental gera
conseqüências negativas sobre direitos fundamentais de outros cidadãos,
acarretando assim, um conflito de direitos.
Os direitos fundamentais ou constitucionais são direitos abstratos, e
positivados na maioria dos textos constitucionais por meio de princípios.
Considera ele que os princípios são mandados de otimização que se
caracterizam por sua aplicação em graus distintos de acordo com o caso
concreto, buscando sempre sua realização na maior medida possível, fática e
juridicamente.
A listagem dos direitos fundamentais pelo ordenamento constitucional é
apenas a primeira fase de sua concretização. Após deve haver a determinação
do peso relativo a cada direito considerado prima facie, ou seja, o
estabelecimento do papel dos direitos dentro da razão jurídica. Segundo Robert
Alexy os princípios devem ser promovidos pela prática jurídica e
institucionalizados pela decisão política, sendo a força obrigatória dos direitos
fundamentais controlada pela Corte Constitucional.
Para Robert Alexy a solução da colisão destes direitos pode ser entendida
segundo dois entendimentos sobre o sistema jurídico: a teoria das regras e a
teoria dos princípios.
111 ALEXY, R. Colisão de Direitos Fundamentais e Realização de Direitos
fundamentais no Estado de Direito Democrático, 1999.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 65
A teoria das regras estabelece que pelo menos um dos direitos deve ser
declarado inválido, que uma das normas deve ser declarada não-aplicável ou
que ambas devem ser descartadas. A aplicação desse tipo de norma ocorre com
a subsunção. Contudo, a dificuldade de adoção desta teoria é a de conciliar a
invalidação de um princípio constitucional sem que ocorra uma invalidação do
próprio texto constitucional, ou seja, preterindo um princípio a outro se torna
difícil a vinculação ou obrigatoriedade da constituição.
A teoria adotada pelo autor é a teoria dos princípios, que se baseia na
seguinte premissa: quanto mais intensa é uma intervenção em um direito
fundamental tanto mais graves devem ser as razões que a justificam. O ponto
positivo desta teoria é o fato de conciliar a vinculação que deve ter a regra
constitucional à flexibilização do mesmo texto, possibilitando que um princípio
não seja efetivado em determinado momento sem que isto represente a sua
invalidez. Esta teoria possibilita que dois direitos ou princípios aparentemente
conflitantes permaneçam no mesmo ordenamento sem que ocorra a invalidade
de um deles, pois aplica a ponderação. Pondera-se, com base nos elementos
disponíveis no caso prático, qual direito ou princípio conduz à solução da colisão,
devendo prevalecer o que importa na menor interferência na liberdade ou no
direito fundamental do outro.
A ponderação pode ser conceituada como técnica jurídica de solução de
conflitos normativos que envolvem valores ou opções políticas em tensão,
insuperáveis pelas formas de hermenêutica tradicionais. 112
Toda colisão entre princípios pode ser expressa como uma colisão entre
valores. Isto demonstra que o problema de prioridade entre princípios
corresponde a um problema de hierarquia entre valores e que a inclusão de
direitos fundamentais no sistema jurídico conduz à conexão entre Direito e
Moral113. E justamente por envolver valores a resposta correta para a
ponderação entre os princípios conflitantes não é clara, não devendo a teoria do
discurso ser entendida como um instrumental capaz de determinar de forma
exata o peso de cada direito, mas mostra os argumentos racionais possíveis
112 BARCELLOS, A., Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, 2005. p.
23. A autora citada propõe três etapas para a técnica da ponderação: a primeira tem como finalidade a identificação dos enunciados normativos em tensão, a segunda etapa os fatos relevantes o caso concreto e por fim, a terceira lida com a decisão que atribuirá os pesos devidos aos diversos elementos normativos pertinentes ao caso, relacionando fatos e normas.
113 ALEXY, R., Derechos, Razonamiento Jurídico y Discurso Racional, 1993, p. 49
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 66
acerca dos direitos. Para tanto Robert Alexy propõe que a teoria dos princípios
necessita de um complemento através da teoria da argumentação jurídica.
A racionalidade da argumentação jurídica não busca a correta resposta ao
conflito, mas sim se os valores utilizados como fundamentação são suscetíveis
de controle racional. A noção de única resposta correta faz referência a um
consenso o que é pouco provável quando se trata de princípios. A teoria da
argumentação tem como ponto fundamental a rejeição da lógica formal dedutiva
como suficiente para o processo jurídico decisório, engloba a tópica de Viehweg,
a nova retórica de Perelman e a lógica formal de Toulmin114. Este trabalho lidará
de forma mais específica com a teoria argumentativa procedimental de Robert
Alexy.
O processo argumentativo inicia-se de forma semelhante ao processo
subsuntivo. Primeiro o intérprete deve analisar o ordenamento jurídico e verificar
quais as normas jurídicas importantes no caso concreto e após faz a interação
entre os fatos e as normas. Porém, após essa etapa a argumentação propõe um
terceiro passo – a atribuição de peso às normas encontradas e a gradação de
intensidade em que a solução deverá ser aplicada. 115
Nesta etapa importante será o estudo do princípio da proporcionalidade
que é entendido hoje como um dos melhores parâmetros no processo
argumentativo. O princípio da proporcionalidade tem guarida na doutrina jurídica
durante o período de crise do sistema legalista116. O ordenamento jurídico inicia
114 Manuel Atienza elabora uma síntese do pensamentos destes três autores.
Viehweg caracteriza a tópica por três elementos: 1) técnica do pensamento problemático; 2) noção de topos ou lugar-comum; 3) busca e exame de premissas. Os tópicos devem ser vistos como premissas compartilhadas que têm uma presunção de plausibilidade ou que, pelo menos, impõem a carga da argumentação a quem os considerada. (p. 49). A idéia do plausível também perpassa os argumentos de Perelman. O raciocínio jurídico em Perelman deve atentar para a conciliação dos valores de eqüidade e segurança jurídica, a procura de uma solução que seja de acordo com a lei, mas também que observe os parâmetros eqüitativos, razoáveis e aceitáveis (p. 77). Toulmin considera a argumentação como atividade total de propor pretenções com o intuito de criar razões que serão criticadas e defendidas (p. 95). ATIENZA, M., As razões do direito. Teorias da argumentação jurídica, 2003.
115 Neste sentido o ensinamento de Ana Paula de Barcellos que propõe ainda dois critérios gerais para a aplicação da ponderação: a preferência das regras sobre os princípios constitucionais e a preferência das regras que tutelam a dignidade humana e os direitos fundamentais em detrimento das demais. BARCELLOS, A. Alguns parâmetros normativos para a ponderação constitucional, 2003. p. 57-58, 70.
116 Pode ser feito um paralelo entre a origem do princípio da proporcionalidade e a Bioética, ambas surgem em um contexto de questionamento da moral vigente e do papel das ciência no comportamento humano. Enquanto o primeiro procura fornecer uma legtimidade para além da legalidade, a segunda busca limites nos valores para as descobertas e experimentos científicos.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 67
um processo evolutivo onde a mera previsão legal de um determinado
comportamento não o torna legítimo. 117
A proporcionalidade traz em si a noção de ponderação entre valores, a
aplicação de um determinado princípio deve ser proporcional à inviabilidade do
outro princípio. Willis Santiago Guerra Filho define o princípio da
proporcionalidade como “mandamento de otimização, do respeito máximo a todo
direito fundamental em situação de conflito com outro(s), na medida do jurídico e
faticamente possível.” 118
Porém, como ensina Humberto Ávila, o princípio da proporcionalidade não
deve ser confundido com a justa proporção, ponderação de bens, concordância
prática, proibição de excessos ou razoabilidade. O princípio da proporcionalidade
atenta para três exames: 1) o da adequação: exige uma relação entre fim e
meio; 2) necessidade: observa se existe algum meio alternativo àquele
escolhido; e 3) proporcionalidade em sentido estrito: comparação entre a
importância da realização do fim e a intensidade da restrição aos direitos
fundamentais. 119
Na etapa final do processo argumentativo será necessária a utilização
deste princípio. Os valores envolvidos em um caso difícil serão ponderados e
será analisada a medida de aplicação do direito fundamental que no caso em
voga deve prevalecer.
Robert Alexy propõe algumas regras procedimentais para verificar a
racionalidade da argumentação jurídica120. Dentre elas estão as regras
fundamentais, quais sejam: nenhum falante pode contradizer-se; todo falante só
pode afirmar aquilo que ele mesmo acredita; todo falante que aplique um
predicado F a um objeto A deve estar disposto a aplica F também a qualquer
117 Larry Kohlberg desenvolveu o modelo de avaliação do desenvolvimento do
julgamento moral apoiado no estruturalismo de Piaget, descrevendo e demonstrando que os indivíduos constroem a consciência moral segundo uma seqüência que se inicia no período pré-convencional e culmina no período pós-convencional No nível pré-convencional a consciência moral é direcionada por noções de punição e hedonismo instrumental relativista. No estágio convencional a consciência moral do indivíduo é orientada para a lei e para a ordem. E por fim, no último estágio, o pós-convencional, a consciência moral supere à noção de normas legais chegando aos princípios universais de consciência, no qual o indivíduo é capaz de desobedecer uma lei por considerá-la injusta, arcando com as conseqüências de seu ato. KOHLBERG, L., Moral stages and moralization: the cognitive developmental approach, 1976.
118 Guerra Filho, Willis Santiago. Sobre o princípio da proporcionalidade, 2003. p.245.
119 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 2003. p. 114-116.
120 ALEXY,R., Teoria da argumentação jurídica. A teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica, 2005. p. 283.
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 68
objeto igual a A em todos os aspectos relevantes; todo falante só pode afirmar
os juízos de valor e de dever que afirmaria dessa mesma forma em todas as
situações em que afirme que são iguais em todos os aspectos relevantes, e;
diferentes falantes não podem usar a mesma expressão com diferentes
significados121.
A temática discutida neste trabalho enquadra-se perfeitamente nesta
perspectiva procedimental, à medida que, o aborto, qualquer que seja sua
motivação, desperta argumentos quase inconciliáveis sendo difícil a menção a
qualquer tipo de consenso, ou uma única resposta correta. Porém, a submissão
da legalidade da antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia ao
Poder Judiciário requer ao menos uma fundamentação racional da decisão
proferida.
121 A teoria do discurso pretende oferecer um critério, em condições específicas,
capaz de determinar a racionalidade de uma decisão e do processo decisório na Ciência Jurídica. Segundo Robert Alexy não é a produção de segurança o fator característico da racionalidade do Direito, e sim o cumprimento de uma série de condições, critérios ou regras.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 69
5 ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL
5.1.Apresentação do Estudo de Caso
O termo antecipação terapêutica do parto foi proposto pela antropóloga
Débora Diniz em suas diversas obras sobre o tema. Segundo a autora a
substituição do termo aborto pela expressão antecipação terapêutica do parto
retira da gestante o peso de séculos de preconceitos e dogmas religiosos. A
situação vivenciada por tais mulheres é por demais específica para ser
enquadrada juntamente com os outros casos de interrupção da gestação.
Embora esta redefinição seja objeto de críticas, no âmbito deste trabalho, será
adotada esta nomenclatura como opção metodológica visando diferenciar esta
hipótese das demais espécies de procedimentos médicos com fim de
interromper a gravidez.
O Brasil é o quarto país do mundo em ocorrência da anencefalia fetal de
acordo com dados disponibilizados pela Organização Mundial de Saúde,
estando atrás somente do México, Chile e Paraguai. No total de 10 mil
gestações levadas a termo em nosso país, cerca de nove apresentam essa má-
formação do feto. Essa taxa é mais de cinqüenta vezes maior que a observada
em diversos países europeus. Tal proporção pode ter como fundamento dois
fatores: a carência nutricional, principalmente de vitaminas do complexo B, e a
proibição legal da interrupção da gravidez.
A repercussão do tema na mídia nacional é extrema. Diversos segmentos
sociais expressam opiniões e sentimentos a respeito da interrupção da gestação
nestes casos. A falta de precisão dos termos e a ignorância também são
recorrentes na discussão. Contudo, a evidência de assunto de tamanha
importância nos meios de comunicação é tida como válida e útil, desde que o
conflito de posições seja exposto em um debate racional e aberto a todos. Um
Estado Laico como o Brasil deve preferir a utilização de argumentos não
religiosos, embora na prática tal não ocorra e ainda vemos a influência
preponderante das posições religiosas.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 70
À guisa de ilustração, são trazidas as seguintes reportagens: “O parto da
Justiça” - Revista Época de 13/09/1999; “Autorização para aborto dura até 1
mês” – Folhaonline em 27/02/2005; “Conselho adia debate sobre aborto de
anencéfalo a pedido de Zilda Arns” – Folhaonline em 17/02/2004; “OAB é a
favor de interrupção da gravidez em caso de anencefalia fetal”- Folhaonline
em 17/08/2004; “Saiba mais sobre anencefalia”- Folhaonline em 13/07/2004;
“O direito ao aborto”- GLOBO em 06/03/2004; “Liminar concedida pelo
Supremo Tribunal Federal”- Agência UNB em 23/07/2004; “Entrevista:
Aborto de fetos / bebês anencéfalos”- Notícias Dia-a-Dia em 23/07/2004;
“Brasil é o quarto país em nascimento de fetos com anencefalia, revela
OMS”- AOLNotícias em 19/08/2004; “Juiz de Goiânia autoriza aborto de feto
anencéfalo”- AOLNotícias em 17/11/2004; “Médico Com Causa” – Revista Isto
É, número 183 de 9/02/2005; “Conselho apóia interrupção da gravidez em
casos de anencefalia fetal”- Folhaonline em 10/03/2005; “Mulher consegue
na Justiça aborto de feto anencéfalo” – Agência Estado de 10/05/2005; “O
direito irrefutável ao aborto” – Jornal da Ciência de 28/10/2005;
Representantes de diversas crenças religiosas, algumas delas destacadas
no livro Anencefalia: o pensamento brasileiro em sua pluralidade, opinam a
respeito da moralidade da interrupção do parto.
O primeiro credo exposto, e certamente o mais atuante no tocante ao
aborto, é o catolicismo. Segundo Dom Odilo Pedro Scherer122:
“Toda agressão contra a vida humana, ainda mais a vida frágil e inocente, por qualquer motivo, ainda que seja em nome da ciência, ou do conforto de outras pessoas, não faz honra à humanidade e é sinal de decadência da ética e retrocesso na civilização. A CNBB espera que a decisão do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL esteja orientada pelo respeito pleno à frágil vida do feto / bebê anencéfalo.”
O Rabino Henry Sobel, presidente do Rabinato da Congregação Israelita
Paulista, esclarece que123:
“A meu ver, a antecipação do parto em caso de anencefalia deve ser permitida. (...). O que o judaísmo pode oferecer a estas mulheres é apoio humano e moral. Como rabino, eu faria tudo ao meu alcance para que a mulher possa tomar essa decisão sem o mínimo sentimento de culpa. Muito pelo contrário, eu acho que a decisão da mãe tem que ser apoiada.”
122 ANIS. Anencefalia. O pensamento brasileiro em sua pluralidade, 2004. p. 46. 123 Ibid., p. 47.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 71
O Bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcelo Silva, destaca a
posição de sua denominação religiosa124:
“A posição da Igreja Universal é sempre a favor da qualidade de vida e do bem-estar das pessoas. Nós entendemos que há casos em que a interrupção da gravidez é a atitude certa a ser tomada. A nossa fé tem que ser conduzida com inteligência, caso contrário cairemos no fanatismo. Temos que preservar a vida da mãe, já que seria inútil dar à luz uma criança que não tem chances de vida.” Lairton de Oxum é representante da Associação Brasileira de Umbanda,
Cultos Afro-Brasileiros e Ameríndios diz que125:
“A minha opinião é de que não deve haver a antecipação do parto porque como espiritualista acredito na reencarnação. (...) Mas a opinião de nossa associação é favorável que o Supremo Tribunal Federal conceda essa liminar126, pois a decisão depende das próprias grávidas. (...) Mas nós damos o conforto espiritual através de orações, de preces, porque essa criança é um espírito, então como espírito nós temos que olhar por este lado.”
Lama Tartchin praticante budista acredita que127: “De acordo com os ensinos budistas tibetanos, para que um ser venha a ter uma completa existência são necessários 3 fatores: espermatozóide, óvulo e mente. Se um corpo veio a se formar sem um órgão, impossibilitando que este venha a ter uma existência independente (não morrer após o parto), é porque houve a falta de um ou mais dos 3 fatores. No budismo não há pecado. Há carma, isto é, lei da causa e efeito. A gestante que será responsável pelo efeito de seus atos e a decisão de seus atos diz respeito apenas a ela.” Por fim, destaca-se a posição da Federação Espírita Brasileira, através de
seu diretor Geraldo Campetti128: “(...) doutrina espírita em relação ao aborto é a de que não somos contra o aborto, mas a favor do não-aborto. Entendemos que o ser humano é, também, espírito. Nesse sentido, não poderíamos ser favoráveis a um aborto provocado, mesmo com a conotação terapêutica no caso da anencefalia. (...). Nossa opinião a respeito da antecipação do parto também é visto como um tipo de aborto, e é um aborto provocado e, no nosso entendimento, não deve se realizado.”
124 Ibid., p. 48. 125 Ibid., p. 49. 126 À época dessa entrevista ainda não tinha sido concedida a liminar pelo Ministro
Marco Aurélio que foi posteriormente revogada pelo plenário. 127 Ibid., p. 50. 128 Ibid., p. 51.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 72
5.2.Aporte Médico
A pretensão deste estudo não é a análise técnica sobre a anencefalia fetal.
Porém, o estudo de caso envolve conceitos e determinações interdisciplinares.
Assim sendo, este capítulo objetiva apresentar, mesmo que de forma breve,
aspectos sobre a definição e o diagnóstico dessa anomalia, objetivando analisar
a certeza científica de tal procedimento.
Durante séculos, em diversas culturas, a arte de curar era considerada
uma prática mágico-religiosa. Os responsáveis pelo tratamento de doenças
eram, em sua grande maioria, pajés e sacerdotes, e o instrumento básico para a
cura era a fé do doente. No início da era cristã a prática da medicina em Roma e
nas grandes cidades da época era feita quase que exclusivamente por médicos
gregos. Adicionalmente eram numerosos os charlatães que prescreviam ervas,
amuletos ou encantamentos. Na Roma Antiga a medicina era considerada uma
profissão indigna para um cidadão romano.
Hipócrates, na Antiga Grécia, inicia uma visão empírica da medicina, em
que algumas doenças passaram a ter origens naturais. Ele, considerado pai da
medicina, foi o primeiro a empregar o termo diagnóstico, que significa
discernimento, formada do prefixo dia - através de e gnosis - conhecimento.
Diagnóstico, portanto, é discernir pelo conhecimento. A instrumentalização da
ciência médica teve início no século XIX com a invenção do estetoscópio por
Laennec em 1816. Porém, somente no final do século passado, a medicina
adquiriu um caráter científico, onde há uma causa para a doença e existe um
meio eficaz de combatê-la. Louis Pauster é considerado o precursor dessa fase
científica da medicina, considerada a primeira revolução dessa área de
conhecimento.
A tecnologia médica se desenvolveu no decorrer do século XX, com o
diagnóstico por imagens, endoscopia, métodos gráficos, exames de laboratório e
provas funcionais. A influência da corrente de pensamento denominada de
positivismo na medicina acarretou a busca maior pela certeza científica através
do aperfeiçoamento do material humano e instrumental envolvidos. O positivismo
defende que só a ciência pode satisfazer a necessidade de conhecimento, visto
que, só ela parte dos fatos e aos fatos se submete para confirmar suas
verdades, tornando possível a obtenção de noções absolutas. Nesse contexto,
surge a chamada Medicina Baseada em Evidência (MBE). De acordo com a
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 73
conceituação proposta por David Sackett129 a MBE é a integração das melhores
evidências de pesquisa com a habilidade clínica e a preferência do paciente e
envolve cinco fatores: desenvolvimento de estratégias para identificar e analisar
as evidências; criação de revisões sistemáticas e sumários concisos dos efeitos
da assistência à saúde; criação de revistas dedicadas à MBE de publicação
secundária; criação de sistemas de informação que nos trazem os avanços em
segundos e identificação e aplicação de estratégias efetivas para o aprendizado
durante toda a vida e para melhora de nosso desempenho clínico.
Hodiernamente, estamos vivendo uma nova revolução representada por
procedimentos como a engenharia genética e o estudo da bioquímica cerebral e
novos métodos de diagnóstico e tratamento.
O diagnóstico pré-natal de anomalias fetais foi um avanço na medicina
propagado a partir da década de 50, mas, difundida no Brasil no final dos anos
70. Nos últimos anos desenvolveu-se uma nova área multidisciplinar de atuação,
denominada Medicina Fetal, que incorporou às técnicas de diagnóstico as
possibilidades da terapêutica intra-uterina.
O fechamento do tubo neural ocorre em 20 a 28 dias após a concepção.
Não ocorrendo, o tecido neural fica exposto e há rupturas secundárias na brida
amniótica. Os denominados defeitos de fechamento do tubo neural ocorrem em
conseqüência de anormalidades de formação fetal em fases precoces da
gestação. As espécies de defeitos de fechamento do tubo neural são:
anencefalia, inincefalia, espinha bífida e encefalocese.
A anencefalia pode ser conceituada como sendo: “Um dos defeitos do tubo neural caracterizado pela ausência completa ou parcial do cérebro, das meninges, do crânio e da pele. Pode ser dividida em holocrania e merocrania. A ausência de toda a calota craniana caracteriza a holocrania. Na merocrania, ocorre a ausência parcial da calota craniana com ectopia do encéfalo. (...) Representa uma má-formação letal.” 130
A anencefalia é considerada a fase final da acrania, em conseqüência da
ruptura do tecido cerebral anormal, não protegido pela calvária.
129 SACKETT, D., Medicina baseada em evidências: prática e ensino, 2003. 130 MORON, A., Medicina fetal na prática obstétrica, 2003. p. 173.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 74
Figura 1. Foto de recém nascido anencéfalo131
Roger Sanders traz em sua obra a epidemologia da doença. Segundo ele a
incidência da anencefalia é geográfica e depende da população. E a
hereditariedade é multifatorial dependendo de implicações de fatores genéticos e
ambientais. A incidência é variável na dependência da região e outros fatores
como a raça, porém ocorre de 0,1 a 1% dos nascituros.
Antonio Moron estabelece três fases na ocorrência da anencefalia.
Primeiro, há um defeito no fechamento do neuróporo rostral. A seguir, ocorre a
exencefalia, onde há a exteriorização do cérebro desenvolvido para o meio
amniótico, e, finalmente, resulta na destruição do tecido cerebral.
O diagnóstico precoce pode ser realizado através de sonda transvaginal a
partir da 11a semana, período no qual se observa a ausência da calota craniana
com exteriorização de tecido cerebral. A partir da 15a semana os aspectos
característicos da anencefalia são diagnosticados com precisão por meio da
ultra-sonografia. O tecido cerebral é gradualmente eliminado pelo contato com o
líquido amniótico e desaparece totalmente na 17a semana, restando apenas as
veias intracranianas. O exame ultrassonográfico apresenta uma alta precisão
diagnóstica para a detecção de acrania durante o segundo semestre com taxa
diagnóstica de 100%.132
131 Foto obtida no documentário Doutor, Eu não sabia, produzido pela ANIS. 132 Ressalte-se que obviamente tal taxa de precisão depende da qualificação do
profissional que realizará o exame. Por isso, para a determinação da ocorrência desta anomalia os exames são confirmados por outra equipe médica através de novo exame de ultra-sonografia. A referida taxa de precisão é proposta por NYBERG, D., Diagnostyc imaging of fetal anomalies, 2003. p.294.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 75
Figura 2. Ultrassonografia de feto anencéfalo133
Figura 3. Ultrassonografia em três dimensões de feto anencéfalo134
Os autores estudados ressaltam o chamado diagnóstico diferencial. São
exemplos: encefalocele grande – o crânio será visível através de um exame
minucioso, outras malformações estão associadas como a inincefalia e
hidrocefalia; microcefalia – o crânio é pequeno. Essas anomalias não importam
necessariamente inviabilidade fetal e por tal razão diferem do estudo de caso
proposto. 135
133 Ultrassonografia fornecida pelo IFF. 134 Imagem obtida no endereço eletrônico: www.thefethus.org em 02.01.2006 135 Este dado é importante à medida que reportagens, muitas das vezes sem o
devido embasamento científico, afirmam a sobrevivência por meses e até mesmo anos, igualando anomalias diversas.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 76
Pesquisas recentes procuram determinar a sobrevida de fetos anencéfalos.
Em uma revisão de 181 recém-natos portadores dessa anomalia apenas 40%
sobreviveram até 24 horas e 5 % permaneceram vivos por até uma semana.
Outro estudo de 205 infantes anencéfalos, pesando mais de 2,5 quilos mostrou
que apenas 9% tiveram uma sobrevida de uma semana. 136
Diversos estudos buscam demonstrar também a alta periculosidade da
gravidez à vida da gestante. O médico obstetra Thomaz Gollop137 ressalta dois
fatores que agravam os riscos maternos: 1) possibilidade de polidrâmnio, ou
seja, excesso de líquido amniótico que causa maior distensão do útero,
possibilidade de atonia após o parto, hemorragia e, no esvaziamento do excesso
do líquido, a possibilidade de deslocamento prematuro de placenta, que é um
acidente obstétrico considerado grave. O segundo fator é que por não terem o
pólo cefálico os fetos anencéfalos, podem iniciar a expulsão antes da dilatação
completa do colo do útero e ter a chamada distócia do ombro, porque nesses
fetos, com freqüência, o ombro é grande ou maior que a média e pode haver um
acidente obstétrico na expulsão do feto. Segundo ele a distócia do ombro
acontece em 5%, o excesso de líquido em 50%138 e a atonia do útero em 10% a
15% dos casos.
O médico Jorge Andalaft139, coordenador da comissão Violência Sexual e
Interrupção da Gestação da Federação Brasileira das Associações de
Ginecologia e Obstetrícia, observa um aumento de 22% no parto de fetos
anencéfalos. Esse acréscimo decorre da própria deformidade que impossibilita o
encaixe adequado do feto devido à ausência da completa formação da caixa
craniana. Os fetos normalmente encontram-se na posição sentada, atravessada
o que acarrete um risco para a vida da gestante no momento do parto e a
demora excessiva desse, entre 14 e 16 horas, enquanto os partos considerados
normais duram aproximadamente 6 horas.
A ANIS editou um documentário chamado Doutor Eu Não Sabia com o
referido médico destacando uma experiência por este vivida onde um de seus
alunos residentes, orgulhosamente, relata que convenceu uma gestante de feto
anencéfalo a não interromper a gravidez. O Dr. Jorge inicia então o relato de
136 MORON, A., Medicina fetal na prática obstétrica, 2003, p. 296. 137 ANIS. Anencefalia. O pensamento brasileiro em sua pluralidade, 2004. p. 27-
28. 138 A geneticista Dafne Horovitz apresenta uma taxa de 75% de polidramnia e
ainda apresenta outro fator de risco, qual seja, a hipertensão materna aumentada nessas gestações.
139 ANIS. Anencefalia. O pensamento brasileiro em sua pluralidade, 2004. p. 31.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 77
como são os procedimentos de pré-natal e as complicações que podem ocorrer
durante a gestação e durante o parto. O obstetra elenca a ocorrência de
polidrâmnio, hipertensão que pode acarretar desmaios e convulsões, alto
número de contrações que pode levar a uma hemorragia irremediável
denominada de atonia uterina, entre outros contratempos médicos. Além disso, o
documentário atenta para o fato de que nascido o feto, não importando a
duração de sua vida, ele terá que ser registrado, emitido seu atestado de óbito e
enterrado. Caso a família não possua recursos financeiros para arcar com uma
sepultura privada o caminho a ser percorrido é ainda mais vexatório. O pai ou
algum parente deverá comparecer a uma delegacia de polícia, registrar um
Boletim de Ocorrência solicitando o serviço de verificação de óbito para que o
enterro ocorra através dos serviços públicos. Feito isso, a família acompanhará
obrigatoriamente a retirada do corpo do feto do hospital até o lugar de seu
sepultamento, lembrando que a mãe estará impossibilitada de participar do
enterro, pois ainda estará internada em recuperação pós-natal. A recuperação
dessa mulher é oura fase traumática à medida que ficará na enfermaria junto de
outras mulheres que deram à luz e estão felizes e acompanhadas de seus filhos.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) tem proferido manifestações sobre
o tema. Seja através de Resoluções ou fornecendo pareceres o órgão expressa
de forma clara a incontroversa quanto à inviabilidade da vida extra-uterina dos
fetos que apresentam anencefalia.
A Resolução nº 1.752/04 do CFM datada de 8 de setembro de 2004 prevê
a autorização ética do uso de órgãos ou tecidos de anencéfalos para a
realização de transplantes. Nas considerações inicias do referido texto é dito
que: os anencéfalos são natimortos cerebrais (por não possuírem os hemisférios
cerebrais) que têm parada cardiorrespiratória ainda durante as primeiras horas
pós-parto, quando muitos órgãos e tecidos podem ter sofrido franca hipoxemia,
tornando-os inviáveis para transplantes; que para os anencéfalos, por sua
inviabilidade vital em decorrência da ausência de cérebro, são inaplicáveis e
desnecessários os critérios de morte encefálica; e que a Resolução CFM nº
1.480/97, em seu artigo 3º, cita que a morte encefálica deverá ser conseqüência
de processo irreversível e de causa conhecida, sendo o anencéfalo o resultado
de um processo irreversível, de causa conhecida e sem qualquer possibilidade
de sobrevida, por não possuir a parte vital do cérebro. O artigo 1º da Resolução
diz que uma vez autorizado formalmente pelos pais, o médico poderá
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 78
realizar o transplante de órgãos e/ou tecidos do anencéfalo, após o seu
nascimento.
Diversos pareceres foram emitidos pelos Conselhos Regionais quanto ao
tema, dentre eles:
PROCESSO CONSULTA Nº 07/2000 CRM-PB, protocolado em 15/05/2000 ASSUNTO: Solicita parecer sobre a legalidade ética da interrupção de gestação de feto de 30 semanas (em 14/04/2000) por provavelmente apresentar má-formação congênita chamada de anencefalia.
EMENTA: O artigo 128 do Código Penal, em vigor, nos seus incisos I e II, permite a realização de abortamento para salvar a vida da gestante e nos casos de estupro. Em decorrência, o artigo 42 do Código de Ética Médica propugna a sua obediência. Com a evolução do armamentário tecnológico médico é possível, com uma boa margem de acerto, diagnosticar doenças na vida intra-uterina, algumas reconhecidamente incompatíveis com a vida humana. A anencefalia é um exemplo clássico. Independente do aspecto moral, ético ou legal, dois parâmetros são essenciais: termo de consentimento da gestante e/ou do pai e a certeza diagnóstica mediante a confirmação do diagnóstico por pelo menos duas ultra-sonografias. Nestes casos, o médico só deve realizar a interrupção da gestação em estrito cumprimento à determinação judicial.
A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia
(FERASGO) emitiu parecer favorável a respeito do tema:
“Do ponto de vista dos direitos sexuais e reprodutivos, buscando não restringir a autonomia das mulheres, somos favoráveis à livre decisão pela antecipação do parto na anencefalia. Do ponto de vista clínico e obstétrico há evidências muito claras de que a manutenção da gestação pode elevar o risco de morbi-mortalidade materna, justificando-se, deste modo, a livre decisão de médicos e pacientes pela antecipação do parto.” 140
5.3.Aporte Jurídico
No âmbito jurídico, ainda em 1996, segundo pesquisa realizada por Gollop,
foram encontrados cerca de trezentos e cinqüenta alvarás autorizando a
antecipação terapêutica de parto de fetos anencéfalos, sendo que o primeiro
datado de 1991, da cidade de Rio Verde, no estado de Mato Grosso.
140 Texto disponibilizado no site da FEBRASGO sob o título Anencefalia – Posição
da FEBRASGO, www.febrasgo.org.br acesso em 08/11/2005.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 79
Dois posicionamentos principais podem ser observados no meio jurídico a
respeito do tema: um proibitivo e outro permissivo.
O primeiro, no mais das vezes de caráter positivista, considera a
antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia como uma espécie de
aborto, e como tal, por não estar prevista nas hipóteses de exclusão de
punibilidade deve ser encarada como um crime contra a vida, respondendo
penalmente tanto o médico quanto a gestante que consentiu com o
procedimento. Neste sentido, o entendimento de Maria Helena Diniz em sua
obra sobre biodireito na qual a autora afirma que a antecipação não passa de
uma interrupção seletiva da gravidez, igualando o ato à eugenia.
A eugenia é tema recorrente na discussão sobre a interrupção da gravidez
em caso de anencefalia. Diversos escritores comparam as práticas, alertando
sobre o perigo de que a permissão legal do aborto nesse caso seria permitir a
seleção de seres humanos indesejáveis. Estes autores utilizam uma teoria
denominada de Ladeira Escorregadia, segundo a qual, a permissão de um
determinado comportamento cuja importância é pontual pode levar a uma
aceitação de comportamentos cada vez mais amplos. Esta ferramenta utilizada
principalmente no campo da bioética permite chamar a atenção sobre os
possíveis abusos e aconselhar a prudência.
Especificamente sobre o aborto de fetos anencéfalos Hare acredita
possível que a autorização legal de realização de aborto em casos extremos
como a anencefalia abriria margem para o assassinato de fetos nas demais
gestações, principalmente aqueles portadores de deficiências141.
No artigo Eugenia e Bioética: os limites da ciência face à dignidade
humana o autor tece um breve histórico sobre a eugenia e a necessidade de
regulamentação jurídica em relação a algumas práticas médicas, principalmente
no tocante à reprodução humana. Eduardo Leite remonta à origem da prática
aos gregos que matavam as crianças nascidas com alguma deformidade e ainda
na Babilônia onde a rainha Semiramis determinou a castração dos jovens
defeituosos. Porém, o termo eugenia somente é criado em 1883 por Francis
Galton baseado na teoria de hereditariedade e evolução de Darwin.
Galton propagava a visão de que alguns estão predestinados ao sucesso
devido às suas características genéticas dependentes diretamente da
hereditariedade, enquanto os demais, pelo mesmo motivo, estariam fadados ao
141 HARE, R. Essays on Bioethics, 1993. p.180-181.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 80
fracasso. O segundo grande impulsionador das teorias eugênicas foi o
descobrimento da ciência genética através de Mendel. As medidas eugênicas,
dotadas agora de “teor científico”, ganharam força em diversos países,
influenciando também suas legislações.
As leis eugênicas visavam dois fatores: a exclusão de pessoas
indesejadas (seja através da restrição à imigração, a internação dos anormais ou
até mesmo pela eutanásia) e a adoção de medidas de procriação (medida
negativa – esterilização ou positiva – encorajamento dos indivíduos sãos a se
reproduzirem). O preconceito que utiliza como mecanismo a eugenia tem como
ápice o Regime Nazista Alemão. Várias práticas de eliminação dos indivíduos
inferiores tinham como fundamento diversos estudos médicos e genéticos e
como legitimação o ordenamento jurídico. As atrocidades são notórias e levaram
ao questionamento sobre o papel e limites da ciência até os dias atuais.
Adrienne Asch, em seu artigo Diagnóstico pré-natal e aborto seletivo142,
aponta para a problemática da legalização do aborto eugênico sem que haja
uma preocupação com a devida informação sobre deficiências oriundas das
doenças genéticas. A autora, portadora de deficiência física, diz que a sociedade
atual em que vivemos é altamente preconceituosa e desinformada a respeito das
capacidades dos deficientes físicos importando na diminuição da dignidade da
pessoa humana desses indivíduos.
A segunda corrente considera que a situação da anencefalia fetal é sui
generis e, portanto, não deve ser enquadrada na proibição legal. Porém, os
argumentos são variados, atacando os diversos elementos do crime143, dentre
eles: a atipicidade da conduta, a inexigibilidade de conduta diversa e a causa de
exclusão da ilicitude.
O promotor de Justiça Diaulas Costa Ribeiro analisa aspectos do crime no
estudo de caso proposto144. Quanto à tipicidade o autor considera que a
antecipação terapêutica do parto em caso de anencefalia fetal afasta a tipicidade
da conduta, pois apenas o feto com capacidade fisiológica de ser pessoa pode
configurar como sujeito passivo do crime de aborto. A seguir apresenta a falta de
nexo de causalidade entre a conduta da gestante e a morte do feto, à medida
142 In Perfil das Percepções sobre as Pessoas com Síndrome de Down e do seu
atendimento: Aspectos Qualitativos e Quantitativos. Márcio Ruiz Schiavo.(coord) Brasília: Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down, 1999.
143 Segundo Bitencourt o conceito clássico de delito envolve: ação, tipicidade, antijuridicidade e cupabilidade. Tratado de direito penal, 2003. pg. 48.
144 RIBEIRO, D., Antecipação terapêutica de parto: uma releitura jurídico-penal do aborto por anomalia fetal no Brasil, 2004. p. 93-141.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 81
que, o feto cessa suas atividades biológicas em razão da patologia prévia e não
do ato cirúrgico interventivo da gestação. E por fim, o estado de necessidade é
outro aspecto penal estudado pelo promotor. Segundo Diaulas a continuidade da
gestação torna-se um risco desnecessário à saúde da mulher, pois há de um
lado na gestação anencefálica um aumento dos riscos maternos e a inviabilidade
da vida fetal do outro lado.
Paulo César Busato é um dos autores a considerar a conduta da
antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia como atípica. Em seu
artigo Tipicidade material, aborto e anencefalia o doutor em Direito Penal
considera que no caso em voga em razão da inviabilidade de vida extra-uterina
não há o bem jurídico vida tutelado pelo direito e, por tal razão, não há que se
falar em afronta aos dispositivos penais previstos no capítulo dos crimes dolosos
contra a vida. Assim sendo, inexistindo bem jurídico a ser protegido pelo Estado,
a conduta da gestante que interrompe a gestação é atípica, não cabendo
qualquer responsabilidade penal. No mesmo sentido, o entendimento de Adel El
Tasse em seu artigo Aborto de feto com anencefalia: ausência de crime por
atipicidade. 145
Enquanto não ocorrer uma normatização deste caso específico juristas
apresentarão as mais diversas teses interpretativas sobre a licitude da
antecipação terapêutica de parto em caso de fetos anencéfalos.
5.4. O caso no Estado do Rio de Janeiro
5.4.1.Coleta de dados empíricos: Instituto Fernandes Figueira
O Instituto Fernandes Figueira (IFF), estabelecido em 1924, é a unidade
materno-infantil da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Realiza pesquisa, ensino
e assistência no âmbito da saúde da criança, da mulher e do adolescente, sendo
referência em tratamento em diversas doenças de alta complexidade.
Reconhecido nacional e internacionalmente como centro de excelência, o IFF
atua no desenvolvimento tecnológico, extensão, assim como na formação e
capacitação de recursos humanos.
A escolha do instituto decorreu de sua especialização em gestações de
alto risco (inclusive de fetos anencéfalos) e pela alta qualificação de seus
profissionais, sendo este um hospital de referência no Estado do Rio de Janeiro.
145 TASSE, A., Aborto de feto com anencefalia: ausência de crime por atipicidade,
2004, p. 101–113.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 82
O IFF também possui um curso de especialização em Bioética e Ética
aplicada direcionado para fornecer uma análise interdisciplinar para profissionais
de diversas áreas de conhecimento sobre aspectos relevantes da Bioética. Clara
a preocupação do instituto em agregar os dados cotidianos com a reflexão
filosófica e teórica sobre aspectos da ciência médica.
Atualmente, devido à constante ocorrência de anomalias incompatíveis
com a vida fetal, o IFF elaborou uma rotina de atendimento às gestantes com
patologias fetais cabíveis de interrupção judicial, dentre elas a anencefalia. Tal
documento prescreve sete fases que deverão ser observadas durante o
tratamento pré-natal. Na primeira fase denominada de triagem a paciente
diagnosticada em outra unidade hospitalar ou mesmo dentro do próprio
Fernandes Figueira é encaminhada para o setor de medicina fetal onde será
feita a confirmação diagnóstica. No caso da anencefalia através de novo exame
ultrassonográfico ou reexame do anteriormente realizado. A seguir, já no setor
de medicina fetal, após a confirmação do diagnóstico, a paciente será orientada
sobre a patologia de seu feto e sobre os procedimentos que serão adotados.
Nesta fase também é feito o esclarecimento sobre a possibilidade de interrupção
da gestação. Na terceira fase inicia-se propriamente o pré-natal, com a abertura
de prontuário. Os procedimentos de praxe do pré-natal são realizados, como por
exemplo: a solicitação de exames dos mais diversos (hematologia, imunologia,
etc), marcação de matrícula, encaminhamento ao setor de genética e consultas
pré-natais. Os exames clínicos obstétricos e avaliação laboratorial são feitos na
fase posterior denominada de matrícula, momento este, onde também será
encaminhada a gestante, caso manifeste seu desejo e obtenha judicialmente o
alvará permissivo, à outra rotina para marcação do processo de interrupção da
gestação. Esta nova rotina tem como objetivo marcar a internação para a
realização de cardiocentese e indução do trabalho de parto, predominantemente
as quintas ou segundas-feiras. A seguir a paciente retorna ao setor de medicina
fetal onde será orientada sobre o procedimento, devendo assinar o
consentimento pós-informado específico para a cardiocentese (feticídio), e
autorização de necropsia, que serão anexados ao prontuário juntamente com a
autorização judicial. Conclusivamente, a fase sétima, chamada de puerpério,
preocupa-se com a confirmação do diagnóstico, através da necropsia do feto.
Ainda no tocante ao procedimento adotado, o IFF, através do setor de
genética, possui um documento padrão cujo objetivo é embasar tecnicamente o
pedido judicial para interrupção da gestação. Tal documento, via de regra, é
encaminhado para a defensoria pública e constam dados sobre a precisão do
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 83
diagnóstico e as demais medidas tomadas no sentido de confirmar a anomalia,
além de uma breve consideração sobre a inviabilidade de vida extra-uterina do
feto. Juntamente com este documento é enviada uma cópia do parecer favorável
do Comitê de Ética do IFF emitido pelo responsável pelo setor de genética do
instituto.
O estudo de caso proposto será realizado através dos dados empíricos
que foram colhidos através da técnica de aplicação de formulário padrão cujo
preenchimento teve como origem prontuários, ou seja, dados clínicos de
pacientes que buscaram assistência pré-natal no próprio instituto. O formulário
elaborado visava as seguintes informações:
DADOS SOBRE A INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO:
⇒ Ano de entrada:
⇒ Solicitação da Interrupção : ( ) Sim ( ) Não
⇒ Concessão da autorização: ( ) Sim ( ) Não
⇒ Fundamentação da sentença:
⇒ Tempo entre solicitação e autorização judicial :
⇒ Tempo entre autorização judicial e internação:
⇒ Tempo entre internação e feticídio:
⇒ Tempo entre feticídio e parto:
DADOS DO RECÉM NASCIDO
⇒ Vitabilidade: ( ) Vivo ( ) Nati
⇒ Tempo de vida:
⇒ Confim Diag Neonat. ( ) Sim ( )Não
Algumas considerações são importantes antes da exposição dos
resultados obtidos.
Inicialmente, por ser uma pesquisa envolvendo informações sobre seres
humanos, segundo a Resolução no 196 de 1996 do Conselho Federal de
Medicina, fez-se necessário perpassar um procedimento junto ao Comitê de
Ética do Instituto Fernandes Figueira o qual emitiu o registro de número 052/05
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 84
em 21.11.2005146. Os dados obtidos não importarão em nenhuma forma de
identificação dos pacientes.
O período compreendido foi de 1992 até 2004, sendo a escolha dos
prontuários decorrente do melhor preenchimento dos dados visados. Alguns
prontuários, especialmente os anteriores a 2000, possuem poucas informações
sendo inútil a sua utilização. No total foram analisados 107 (cento e sete)
prontuários.
Os dados obtidos podem ser divididos em duas vertentes. A primeira
refere-se a questões jurídicas da solicitação judicial para a antecipação do parto.
E a segunda quanto à viabilidade fetal e confirmação do diagnóstico após o
parto.
A primeira informação relevante do estudo de caso aponta para a opção da
gestante no tocante ao desejo de interromper a gravidez. Duas experiências
relatadas podem ser tidas como pólos opostos da sensação experimentada pela
gestante quando recebido o diagnóstico da anomalia. A primeira gestante,
embora consciente da brevidade da sobrevida de seu filho, manifesta durante
todo o período gestacional a intenção de levar a gravidez até o seu fim natural,
assegurando inclusive a realização de uma comemoração de nascimento. A
segunda gestante, de forma contrária, emite sua vontade de o quanto antes
realizar o procedimento jurídico e médico para a antecipação do parto, chegando
a mencionar para a equipe médica responsável por seu acompanhamento pré-
natal o seu sofrimento ao se sentir como um “caixão ambulante”.
Os dados a seguir demonstram o equilíbrio na percentagem das mulheres
que optam por solicitar a interrupção da gestação. Apenas dois números
percentuais a mais dos casais, mesmo informados sobre a possibilidade da
obtenção de uma permissão legal, preferem aguardar o final natural da gravidez.
O gráfico a seguir demonstra o que foi supra mencionado.
146 Íntegra do documento m anexo (anexo2).
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 85
Figura 4. Solicitação judicial para interrupção da gestação
Ademais, do total de 55 (cinqüenta e cinco) solicitações de alvarás
judiciais, 9 (nove) desistiram da interrupção em alguma fase do pré-natal,
mesmo após obterem a autorização do Poder Judiciário.
Outro dado obtido com a pesquisa empírica demonstra a posição
majoritária do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro quanto ao estudo
de caso proposto. Somente duas solicitações foram negadas, enquanto que 96%
das decisões foram proferidas no sentido de permitir a antecipação terapêutica
do parto.
AUTORIZAÇÃO JUDICIAL
SIM96%
NÃO4%
Figura 5. Concessão da autorização judicial
Solicitação da Interrupção da gestação
não 49% sim
51%
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 86
Esse dado é essencial à medida que representa dois fatores importantes
para o Direito. Primeiramente, que já há um posicionamento jurisprudencial
majoritário a respeito do tema. Embora as fundamentações utilizadas pelos
julgadores não sejam unânimes, quase a totalidade deles considera lícita a
antecipação do parto em caso de anencefalia fetal. E segundo, o tratamento
desigual fornecido a duas gestantes que manifestaram seu desejo de
interromper a gravidez, mas obtiveram uma resposta negativa por parte do
Estado. Tal fato demonstra a insegurança ainda existente decorrente da falta de
normatização a respeito do tema, deixando a critério do julgador a interpretação
dos valores envolvidos.
Outro fator relevante foi a inobservância pelo IFF de um procedimento
interno rígido quanto aos documentos jurídicos anexados aos prontuários. A falta
de um padrão a ser seguido acarreta a inexistência inclusive do próprio alvará
autorizatório do procedimento de antecipação do parto. O gráfico a seguir
demonstra os documentos encontrados nos prontuários.
DOCUMENTOS JURÍDICOS
46%
40%
2%12%
só alvará
alvará e decisão
não há sequer o alvará, somente sendo anotado no prontuárioque a gestante portava a autorização judicial. só acórdão negativo
Figura 6. Documentos jurídicos constantes do prontuário médico
Na grande parte dos casos somente é anexado o alvará judicial. Em 40%
dos casos, relacionados aos dois últimos anos, há além do alvará a decisão
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 87
proferida, tais decisões demonstram a variedade de teses jurídicas utilizadas
pelos juízes para conceder a autorização.
Nas decisões analisadas, 24 (vinte e quatro) no total, alguns argumentos
foram utilizados como base jurídica para a concessão do alvará conforme
enunciado abaixo:
1) Processo nº 2003.206.000364-1 - A evolução tecnológica tornou
possível detectar com absoluta certeza anomalias que tornam
inviáveis a vida extra-uterina. Cita Luiz de Asúa; impossibilidade
absoluta da vida, e por tal razão, a tutela penal não merece ser
exercida. Sacrifícios físicos e psicológicos maternos acarretam
riscos para a saúde da mãe. Interpretação analógica do artigo
128, I Código Penal como fundamento legal para a permissão da
intervenção cirúrgica.
2) Processo nº 2003.067.1128-4 - O Legislador não se ocupou de
regular a hipótese. Não pode no entanto o juízo, sob a alegação
de inexistência de regra específica sobre o tema, negar a
prestação jurisdicional. Há casos nos quais o legislador se
mantém omisso não fazendo qualquer opção, cabe ao intérprete,
após verificar a efetiva existência do conflito, ponderar qual
desses direitos deve prevalecer. No caso em voga de um lado há
o direito à vida do outro o direito à liberdade e à dignidade da
pessoa humana. O direito à vida é fundamental, mas não
absoluto. De fato, ao autorizar o aborto na hipótese de gravidez
resultante de estupro, o legislador sinaliza que a afetividade
entre gestante e feto é prevalecente ao direito à vida. Jamais
poderá a requerente desenvolver qualquer afeto por um ser que
evoluirá necessariamente para êxito letal. No entanto, no caso
dos autos não se cogita nem mesmo colisão de direito
fundamental. Cita a lei 9434/97 - morte encefálica. Logo, não
havendo vida, mas mera proliferação de células, não há que se
cogitar de direito fundamental à vida, tendo a requerente o direito
fundamental à liberdade e à saúde de retirada de corpo estranho
que tanto sofrimento gera.
3) Processo nº 2003.078.00030 - Decisão de segunda instância, 1ª
instância indeferiu. Fundamentos: complicações na gestação;
conduta atípica pois não atinge nenhum bem jurídico penalmente
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 88
tutelado. E por se tratar de liminar ressalta que estão presentes o
fumus boni iuris e periculum in mora.
4) Processo nº 2004.001.008443-1 - Decisão constante do
prontuário muito sucinta. Autorização da interrupção utilizando
como fundamento os elementos de convicção constantes das
provas dos autos, mormente os pareceres médicos e
manifestação favorável da curadoria especial e do Parquet.
5) Processo nº 2004.001.025612-6 – Utiliza tripla fundamentação:
não é figura típica de aborto por impossibilidade de sobrevida do
feto. Conduta não punível. Em segundo, há ausência de ilicitude
por ser aborto necessário pela saúde, vida e seqüelas
psicológicas impostas à gestante. E em terceiro, por
inexigibilidade de conduta diversa. Tal sentença aparece de
forma idêntica em outros dois processos de nº 2003.001.069344-5
e 2002.001.120804-4.
6) Processo nº 2003.029.046333-1 - Embora a situação não
encontre amparo em nossa legislação penal, sendo a conduta
tipificada em tese, a jurisprudência já vem se manifestando pela
possibilidade de se interromper a gravidez em casos extremos
como o dos autos.
7) Processo nº 2003.001.057625-8 - Em que pese a legislação
vigente incriminar o aborto com o consentimento da gestante,
ressalvados os casos de aborto necessário e quando a gravidez
for resultante de estupro, outras hipóteses não contempladas na
lei estão a exigir uma análise mais consentânea com a realidade
descortinada pela medicina e pelo progresso tecnológico. Mais
moral e social a interrupção por inviabilidade de sobrevivência do
feto justifica se tanto ou mais do que o aborto por motivo de
honra, estupro. Sob o aspecto jurídico deve-se questionar se a
destruição do feto, sem qualquer possibilidade de sobreviver
como ser humano, enquadra-se no crime de aborto, que tem por
objeto jurídico a vida humana. Cita julgados precedentes.
Anteprojeto da reforma do Código Penal, no Congresso
Nacional, prevê como excludente de ilicitude o aborto
eugenésico. Nova modalidade de justificação do aborto a ser
introduzida em nossa legislação penal evitará não só o
nascimento de seres infelizes, mas também, fará cessar o
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 89
sofrimento da gestante, não mais obrigada a aguardar em seu
corpo o nascimento de um ser sem condições de sobreviver ou
em condições de sobreviver por algum tempo de forma anormal.
Evita também as funestas conseqüências dos abortos
clandestinos, realizados com enormes riscos para a vida e a
saúde da gestante. Aplica a interpretação extensiva do artigo
128, I do Código Penal. Outro caso analisado utiliza de forma
exata a mesma fundamentação (2003.001.094742-0).
8) Processo nº 2003.038.007520-4 - Utiliza como fundamentação a
Inexigibilidade de conduta diversa por parte da gestante. Esta
fundamentação é utilizada em duas outras decisões judiciais de
forma idêntica (2003.038.010812-0 e 2003.038.007520-4).
9) Processo nº 2003.054.003635-9 - Fundamentos: aparente
conflito com artigo 128 Código Penal, por não ser uma das
hipóteses expressas na permissão legal. Porém, deve o
intérprete utilizar instrumental técnico novo. A comissão de ética
do IFF manifestou-se concorde com a interrupção da gestação
sugerida e já há outros julgados neste sentido. Não há vida a ser
protegida legalmente a mesmo que este feto se mostra inviável.
Falta o objeto da tutela penal. Nos termos vertentes deixa de
constituir crime falecendo os elementos necessários para a
tipificação de aborto.
10) Processo nº 2002.054.021393-0 - Fundamento nos artigos 5º, III
da Constituição Federal e 3º do Código Penal, nos princípios
gerais do direito, nos princípios da jurisdição voluntária, artigos
1104 e seguinte do Código de Processo Civil.
11) Processo nº 2002.001.092453-2 - Diante da comprovação
técnica da inviabilidade da sobrevivência do feto, ponto relevante
para se desconsiderar a ofensa ao bem jurídico penalmente
tutelado no Capítulo I, do Título I, Parte especial do Código Penal
com fulcro no disposto no inciso I, do artigo 128, daquele diploma
legal, defere o pedido.
12) Processo nº 2002.001.118545-7 - Ante a ausência de
perspectiva devida para o nascituro e o altíssimo risco da
gravidez em casos de anencefalia fetal aplica o artigo 128, I
Código Penal analogicamente e em uma interpretação extensiva
fica caracterizado o aborto necessário.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 90
13) Processo nº 99.001.088305-9 - Aborto eugenésico tem
acolhimento na doutrina e jurisprudência. Proteção ao objeto
jurídico preservação da vida não é infringido no caso em
questão. Fulcro: artigos 128, I Código Penal; 4º da Lei de
Introdução do Código Civil e artigos 1103, 1104 e 1109 do
Código de Processo Civil.
14) Processo nº 98.001.03402-0 - Em um dos casos analisados a
fundamentação não adentra no mérito da anencefalia fetal, pois
a gravidez decorreu de estupro.
15) Processo nº 2003.207.007966-6 - Aborto pressupõe que a
gravidez seja normal e não somente patológica. Se o que existe
é produto conceptivo degenerado, lícita é a intervenção. Cita a lei
de doação de órgãos. Vida ligada indissoluvelmente à existência
de cérebro. Iguala à gravidez molar já consagrada na
jurisprudência. Crime impossível pois não há vida.
16) Constam duas breves decisões em alvarás sem a especificação
do número do processo que utilizam como fundamento a
hipótese permissiva contida no artigo 128, II do Código Penal,
analogicamente.
17) Processo nº 2003.001.146495-6 - Questão da tipicidade da
conduta sabendo que o feto não tem perspectiva de vida. Crime
de aborto tem como escopo tutelar a vida humana em formação.
Constatada a falta de perspectiva de vida, inexiste violação ao
bem jurídico tutelado; evolução da medicina e CP de 1940. Se a
legislação não pode acompanhar com a necessária celeridade a
evolução social, constitui função do julgador, sem dúvida, aplicá-
la ao mundo atual.
18) Habeas Corpus nº 5355/2003 - Princípios da dignidade humana
e razoabilidade. Direito de escolha da gestante. Atipicidade do
aborto porque não há lesividade do bem jurídico tutelado.
Este último caso merece uma observação mais apurada, pois pode ser tido
como exemplo típico da insegurança que acarreta a prolação de decisões
judiciais conflituosas. A gestante orientada segundo a rotina anteriormente
mencionada, manifesta sua vontade no sentido de interromper a gestação e
assim é encaminhada pelo setor de medicina fetal para devidas orientações
jurídicas da defensoria pública. Em primeira instância o pedido foi negado sob o
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 91
argumento de que a legislação penal proíbe a prática de aborto, senão nos
casos taxativos previstos no Código Penal. A gestante recorreu da decisão
obtendo em 16 de dezembro de 2003 a permissão legal para a realização da
intervenção médica. Com a devida autorização a paciente foi internada no dia 18
de dezembro do referido ano, sendo neste mesmo dia executado o procedimento
de antecipação do parto. Porém, um terceiro estranho à relação médico-paciente
recorreu da decisão proferida, em Habeas Corpus, pelo Tribunal do Estado do
Rio de Janeiro e em 19 de dezembro de 2003 foi proferida uma decisão pelo
Superior Tribunal de Justiça no processo de nº 32757/ RJ no sentido de deferir a
liminar para que não fosse tomada qualquer procedimento visando a interrupção
antecipada da gravidez. O Instituto Fernandes Figueira encaminhou um ofício ao
STJ informando ao tribunal que o procedimento interventivo já tinha sido
realizado no dia anterior ao da prolação da decisão. Retornando do recesso
forense o STJ, em 04 de março de 2004, o ministro Felix Fischer profere a
decisão no sentido de ter o Writ como prejudicado por perda do objeto vez que já
havia ocorrido a interrupção antecipada da gravidez, em conformidade à decisão
proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Um dos casos negativos da autorização judicial fundamentava-se apenas
na declaração de que a anencefalia não podia ser enquadrada nas hipóteses
legais de permissão para a realização do aborto e o processo recebeu o nº
2003.021.018943-0. O segundo não consta qualquer informação judicial, apenas
sendo anotado no prontuário que a gestante obteve uma decisão negativa.
O tempo entre a solicitação e a autorização judicial também foi objeto de
análise. A decisão proferida de forma mais breve foi proferida em 3 (três) dias e
a mais demorada em 65 (sessenta e cinco) dias. O tempo médio das decisões
analisadas foi em torno de 20 (vinte) dias.
Tempo entre a solicitação e a autorização judicial
0
1
2
3
4
5
6
não c
onsta
3 dia
s
4 dia
s
5 dia
s
6 dia
s
7 dia
s
8 dia
s
9 dia
s
10 di
as
12 di
as
13 di
as
14 di
as
15 di
as
16 di
as
17 di
as
18 di
as
19 di
as
21 di
as
22 di
as
24 di
as
25 di
as
26 di
as
28 di
as
29 di
as
42 di
as
62 di
as
65 di
as
Figura 7. Tempo entre a solicitação e a autorização judicial
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 92
No tocante à viabilidade fetal, dois gráficos serão expostos. O primeiro
compara a ocorrência de natimortos, já falecidos no momento do parto ou da
antecipação terapêutica e os que sobreviveram.
VITABILIDADE FETAL
VIVO42%
NATIMORTO58%
Figura 8. Vitabilidade fetal
E o segundo gráfico demonstra o tempo de vida dos 42% de fetos que
nasceram vivos. O maior tempo foi de 5 (cinco) dias e o menor de 5 (cinco)
minutos e em 6 (seis) casos não consta do prontuário a sobrevida dos fetos.
TEMPO DE VIDA FETAL
0
1
2
3
4
5
6
não c
onsta
5dias
11h4
3min 8h
6h30
min
4h02
min
3h22
min 3h
2h45
min 2h
1h42
min
1h40
min
1h35
min
1h28
min
1h20
min
1h17
min
1h04
min 1h50
min48
min45
min42
min41
min36
min35
min33
min30
min27
min25
min23
min20
min14
min10
min8m
in5m
in
Figura 9. Tempo de vida fetal
E por fim, a confirmação posterior do diagnóstico é quase totalitária,
somente não havendo certeza porque em 4% dos casos não foi feita qualquer
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 93
menção a este respeito no prontuário. Porém, em nenhum caso há a não
confirmação do diagnóstico.
CONFIRMAÇÃO DO DIAGNÓSTICO
SIM96%
IGNORADO4%
Figura 10. Confirmação do diagnóstico
Algumas conclusões podem ser extraídas dos dados obtidos.
Primeiramente, já há no Estado do Rio de Janeiro uma jurisprudência permissiva
da antecipação do aborto em casos de anencefalia fetal e pode ser observada
inclusive certa brevidade na formulação da decisão jurídica (em torno de vinte
dias).
Segundo, os juízes muitas vezes aplicam analogicamente os dispositivos
legais, valendo-se sobretudo da defasagem dos documentos jurídicos e as
descobertas científicas na área médica. Os princípios constitucionais e a
jurisprudência também são parâmetros de interpretação utilizados pelos
julgadores.
Terceiro, somente nos últimos três anos as informações jurídicas têm sido
objeto de preocupação por parte dos institutos médicos, valendo-se atualmente
de uma rotina o IFF visa a padronização dos documentos anexados ao
prontuário, constando desta rotina especificamente a obrigatoriedade de anexar
a autorização judicial ao prontuário. Fato este estranho aos documentos
analisados anteriores a 2001.
E por fim, ficou demonstrada que mesmo com a informação aos genitores
das conseqüências e riscos da gestação apenas a metade deles busca a
interrupção da gestação através da via judicial. Demonstra tal percentagem que
mesmo conscientes de que há uma alternativa para interromper a gravidez em
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 94
quase 50% dos casos a gestante e seu companheiro optam por levar a gravidez
até o final.
5.5.O caso no Supremo Tribunal Federal
5.5.1. O Caso Gabriela Cordeiro147
Gabriela de Oliveira Cordeiro é uma jovem residente na cidade de
Teresópolis no estado Rio de Janeiro que no quarto mês de sua gestação
recebeu o diagnóstico de anencefalia de seu feto. O médico responsável por seu
pré-natal a informou sobre a letalidade da doença e a impossibilidade de
tratamento.
Com o apoio de seu cônjuge Gabriela inicia sua saga na busca da
autorização judicial para realizar a antecipação do parto. A primeira dificuldade
encontrada pelo casal ocorreu antes do início da ação judicial. Somente após
muita espera e constrangimentos a Promotora Soraya Taveira Gaya convenceu-
se da especificidade do caso e encaminhou o caso para a defensora pública
Andréia Teixeira Pacheco que representaria judicialmente o casal.
Em 6 de novembro de 2003 o pedido de autorização para a antecipação do
parto foi impetrado na Comarca de Teresópolis. O juiz Paulo Rudolfo Tostes
negou o pedido fundamentando sua decisão no argumento de que o Código
Penal não admitia a prática de aborto em casos de anencefalia, portanto, tal ato
é considerado crime pelo ordenamento brasileiro.
Houve apelação ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro cuja
relatoria do processo ficou a cargo da Desembargadora Gizelda Leitão Teixera
que concedeu a autorização judicial para o procedimento médico no dia 19 de
novembro de 2003, quando Gabriela já estava no quinto mês de gestação.
Porém, no dia 21 de novembro do mesmo ano os advogados Carlos Brasil
e Paulo Leão Junior ingressaram em juízo com um agravo tendo como
147 As informações sobre o caso foram retiradas das obras:ANIS. Anencefalia. O
pensamento brasileiro em sua pluralidade, 2004 e CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DA BAHIA. Anencefalia e Supremo Tribunal Federal, 2004 e do site www.Supremo Tribunal Federal.gov.br.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 95
argumento a sacralidade da vida. O juiz José Murta Ribeiro cassou a autorização
anteriormente concedida e ordenou que o processo retornasse à relatora
Gizelda. No mesmo dia 21 o padre Luiz Carlos Lodi da Cruz de Anápolis,
presidente do movimento Pró-Vida da Igreja Católica, entrou com um Habeas
Corpus em favor do feto de Gabriela no Superior Tribunal de Justiça.
Em 25 de novembro a Desembargadora Gizelda indeferiu o agravo
proposto mantendo a autorização judicial para a antecipação, neste mesmo dia a
Ministra Laurita Vaz do STJ derruba a autorização concedida pelo TJ do Rio de
Janeiro até que o Habeas Corpus fosse decidido meritoriamente pelo STJ. O
Procurador-Geral da República emitiu parecer apoiando a decisão da Ministra
Laurita Vaz, ou seja, contrário à autorização em 10 de dezembro de 2003.
No início do recesso forense Gabriela estava no sexto mês de gestação.
Em 26 de fevereiro de 2004 as organizações ANIS e THEMIS ingressaram
no Supremo Tribunal Federal com um pedido de Habeas Corpus, porém em
favor de Gabriela, a fundamentação da ação foi pautada no direito à saúde, à
liberdade e à dignidade de Gabriela em decidir sobre sua própria vida.
O relator designado foi o Ministro Joaquim Barbosa que reconhecendo a
urgência do pedido colocou em pauta o processo já no dia 4 de março. O
resultado da ação foi a declaração de perda do objeto, já que, foi apresentado ao
Tribunal o atestado de óbito de Maria Vida, filha de Gabriela que sobreviveu
apenas sete minutos. Apesar da perda do objeto três Ministros emitiram seus
pronunciamentos a respeito da lide, lamentando o cerceamento do direito de
Gabriela de ter decidido sobre sua própria vida, ou, pelo menos ter obtido uma
resposta jurídica a seu pedido.
O relator Joaquim Barbosa inicialmente tece alguns comentários a respeito
da admissibilidade do Habeas Corpus e da competência do Supremo em julgar
tal ação já que há alegações de afronta a direitos e princípios constitucionais,
principalmente o princípio da dignidade da pessoa humana. Outro aspecto
processual é analisado pelo Ministro Joaquim Barbosa. O relator considera nulo
o acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça pela falta de competência
do mesmo em julgar a matéria, qual seja, habeas corpus atacando decisão
monocrática de membro do tribunal. No mérito o ministro elenca dois
argumentos: direito à liberdade individual da gestante e o segundo refere-se aos
diferentes graus de tutela penal da vida humana.
O Ministro Sepúlveda Pertence não adentra no mérito da lide, somente
constando de sua manifestação o cabimento do Habeas Corpus no caso por ser
assunto intimamente relacionado com o direito à vida.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 96
O Ministro Carlos Ayres Britto também pugna pelo não recebimento do
remédio constitucional pela perda do objeto. Porém, acrescenta seu lamento
pela perda da oportunidade do Supremo Tribunal Federal “debater um tema vital
no plano do direito e no da dignidade, seja da pessoa humana, em geral, seja da
condição feminina, em particular. Também havia anotado, aqui, a minha
perplexidade diante de um caso médico que, por antecipação, dizia que algo que
se desenvolvia no útero de uma mulher jamais se transformaria em alguém, ou
seja, t:ínhamos o fenômeno de um casulo, que seria o útero, de uma crisálida
que seria o feto, mas jamais a borboleta alçaria vôo, porque a criança não teria
condições de sobreviver. Mas fica para outra oportunidade o debate desse tema
tão candente.”
Porém, o desejo do ministro Carlos Ayres Britto não tardou em se cumprir.
Em meados de 2004 o Supremo Tribunal Federal foi novamente provocado a
emitir seu entendimento a respeito do caso através de uma Ação de
Descumprimento de Preceito Fundamental.
5.5.2.A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº 54
A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é uma
ação constitucional prevista no artigo 102, § 1º da Constituição Federal de 1988
e regulamentada pela Lei 9.882/99. Esta ação tem como objetivo evitar ou
reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público148.
Alguns requisitos são necessários para a propositura desta ação, dentre eles: o
não cabimento de outro remédio constitucional, a especificação na petição inicial
do preceito fundamental descumprido acrescida da prova de sua violação149. A
argüição é sujeita ao princípio da indisponibilidade e sua decisão é irrecorrível,
não cabendo sequer ação rescisória.
A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS)
ingressou judicialmente, em 17 de junho de 2004, com uma argüição de
descumprimento de preceito fundamental buscando um posicionamento do
Supremo Tribunal Federal no tocante antecipação terapêutica do parto ante a
anencefalia do feto e as conseqüências jurídicas para os profissionais de saúde.
A representação autoral é de responsabilidade do constitucionalista Luís
Roberto Barroso. Já em nota prévia a inicial distingue os termos aborto e
148 Artigo 1º da Lei 9.882/99 149 Artigo 3º da Lei 9.882/99
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 97
antecipação terapêutica do parto. Pretende a sociedade autoral demonstrar que
a antecipação terapêutica de parto em casos de anencefalia fetal situa-se no
âmbito da medicina e do senso comum, diferentemente da interrupção voluntária
da gravidez de concepto viável. Busca com isso o eminente advogado retirar o
debate moral a respeito do tema, através da simplificação da hipótese.
Alguns argumentos sobre a hipótese são levantados: a inviabilidade de
vida do feto, a certeza diagnóstica do exame, o aumento do risco para a saúde
da gestante (baseada em um parecer da FEBRASGO).
Quanto às questões processuais relevantes destaca-se a legitimação
ativa da CNTS, a pertinência temática e o cabimento da via escolhida.
No mérito a ação foi fundamentada nos preceitos constitucionais da
dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autonomia da vontade e a
garantia da saúde da gestante prevista nos artigos 1, 5, 6 e 196 da Constituição
de 1988. Foi utilizado como alegação principal o fato de que a adoção de tais
preceitos constitucionais afastaria a aplicação das sanções legais impostas aos
profissionais de saúde dispostas nos artigos 124, 126 e 128 I e II do Código
Penal nos casos de atestada anencefalia fetal.
O pedido principal é a declaração de inconstitucionalidade da
interpretação dos artigos 124, 126 e 128 do código Penal como impeditivos da
antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencéfalo,
reconhecendo-se o direito desta gestante de se submeter ao procedimento sem
a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra
forma de permissão específica do Estado. Como pedido alternativo é
apresentado o requerimento de que se julgado o descabimento da ADPF, que o
Supremo Tribunal a receba como ação direta de inconstitucionalidade.
O feito foi distribuído ao Ministro Marco Aurélio para que o mesmo
funcionasse como relator do processo.
A Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, a Associação Nacional
Pró-vida e Pró-família e a Associação UNIVIDA, entre outras, pleitearam sua
admissão no feito na qualidade de Amicus Curiae. O relator proferiu decisões
indeferindo o pedido da CNBB e demais associações com fundamento no artigo
7, § 2º da lei nº 9.868/99 o qual confere ao Ministro relator a decisão a respeito
da conveniência de intervenções no processo. 150
150 Decisões do relator quanto ao mesmo tema nas petições: PG Nº 69849/04, PG
Nº 75796/04, PG Nº 77365/04, PG Nº 81135/04, PG Nº 84862/04, PG Nº 85934/04,
PG Nº 89467/04, PG N.º 90229/04, PG N.º 93748/04, 95645/2004, PG Nº110483/04.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 98
A Procuradoria Geral da República emitiu seu parecer no sentido de
indeferimento do feito por não ser adequada a interpretação conforme a
Constituição. Elenca também como fundamentação a primazia jurídica do direito
à vida do feto mesmo que por tempo ínfimo. E que a hipótese não encontra
respaldo constitucional ou legal.
O Ministro Marco Aurélio, em sede de liminar no dia 01 de julho de 2004,
acolheu os pedidos formulados, reconhecendo a relevância do pleito e o risco de
manter-se o ambiente de desencontros de pronunciamento judiciais. Decidiu
pelo sobrestamento dos demais processos e decisões não transitadas em
julgado relacionadas a esta problemática, e, pelo reconhecimento do direito
constitucional da gestante de submeter-se à antecipação terapêutica do parto de
fetos anencéfalos, a partir de laudo médico atestando tal anomalia.
No dia 30 de setembro foi revogada a medida liminar sob a alegação de
que a repercussão do que decidido sob o ângulo precário e efêmero da medida
liminar redundou na emissão de entendimentos diversos. Declarou-se a
importância da realização de uma audiência pública e a admissão no feito como
Amicus Curiae de diversas entidades: Federação Brasileira de Ginecologia e
Obstetrícia, Sociedade Brasileira de Genética Clínica, Sociedade Brasileira de
Medicina Fetal, Conselho Federal de Medicina, Rede Nacional Feminista de
Saúde, Direitos Sociais e Direitos Representativos, Escola de Gente, Igreja
Universal, Instituto de Biotecnia, Direitos Humanos e Gênero. E remete ao
plenário para a designação de audiência para apreciar questão de ordem relativa
à admissibilidade da ADPF.
Questão de ordem foi posta em mesa no dia 20 de outubro de 2004 no
sentido de considerar a adequação da ação proposta. O relator, Ministro Marco
Aurélio, profere um relatório inicial sobre o processo e sobre a medida liminar
deferida.
Concede a palavra ao advogado do autor que rebate os argumentos
aviltados pela Procuradoria da República, quais sejam: a ilegitimidade do
Supremo Tribunal Federal como legislador positivo e a inadequação da ADPF.
Sobre a ilegitimidade Luís Roberto Barroso levanta a importância do Supremo
Tribunal Federal e que a interpretação conforme a Constituição não cria norma,
mantendo o texto elaborado pelo legislador. Nos dizeres do advogado referido a
ADPF busca um resultado menor que a declaração de inconstitucionalidade, pois
tem como objetivo reconhecer a afastabilidade de aplicação dos artigos penais
apenas no caso proposto e não erga omnes. Quanto à admissibilidade da ADPF
o representante autoral defende a ocorrência dos três requisitos para a admissão
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 99
da ação: lesão a preceito fundamental, ato do poder público e inexistência de
outro meio eficaz para cessar a lesão. Ele ainda ressalta que tais requisitos são
fundamentais para evitar o acúmulo de ADPF no Supremo, mas assegura a
relevância dessa ação. Ainda oralmente Luís Roberto Barroso reafirma o pedido
alternativo proposto na inicial de recebimentos da ação como ação direta de
inconstitucionalidade e diz que apenas a técnica não é suficiente, embora tenha
se atido às questões processuais o mérito é essencial, elencando de forma
breve os argumentos meritórios da ação. Conclui sua fala afirmando que pior
solução seria dizer à sociedade que o Supremo Tribunal Federal não vai se
pronunciar sobre tema de tamanha importância.
O Procurador Geral da República Cláudio Fontelles inicia seu
pronunciamento lembrando o ensinamento de Rui Medeiros de que a
interpretação conforme a Constituição pode se substituir ao legislador, e que
esta não pode contrariar o texto legal. Diz que de acordo com o princípio da
separação dos poderes é vedado ao juiz à criação de uma nova lei, somente
cabendo a este averiguar se a lei contraria ou não a Lei Maior. Após começa a
análise dos dispositivos penais que tipificam a conduta. O procurador levanta a
impossibilidade de que a interpretação conforme o texto constitucional acarretará
a exclusão da punibilidade, pois as exceções devem ser interpretadas de forma
literal e restritiva, não comportando analogia. Afirma Cláudio Fontelles que o
princípio da ponderação e proporcionalidade privilegia o direito à Vida, sendo
indiferente a duração desta vida. Por fim, salienta que seus argumentos têm
cunho estritamente jurídico e não religioso.
O relator retoma a palavra proferindo seu relatório no sentido de
considerar admissível a ADPF. O Ministro traz como dado a informação de que
uma ação demora aproximadamente 5 anos do tribunal inicial até o julgamento
final do Supremo Tribunal Federal. Segundo ele o processo objetivo de controle
de constitucionalidade exerce de forma precípua a guarda da constituição
afastando decisões conflitantes e numerosas de órgãos inferiores, e uma nova
forma de realizar este controle é através da ADPF. Utiliza ainda como
argumentos a importância dessa decisão para as pessoas de baixa renda que
têm que recorrer ao serviço público de saúde, a mobilização da sociedade civil
em torno da temática, a eliminação do elevado número de Recursos
Extraordinários e a observância da petição inicial dos requisitos legais. À guisa
de conclusão, Marco Aurélio defende que o Supremo Tribunal Federal tem que
se manifestar quer num sentido, quer no outro devido ao seu papel constitucional
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 100
e institucional no Estado Democrático de Direito e pela impiedade da História
com a inércia.
Diante do pedido de vista do Ministro Carlos Britto, interrompeu-se o
julgamento neste tocante.
Ocorre que na mesma sessão o Ministro Eros Grau levanta a hipótese de
revogação da liminar monocraticamente concedida pelo relator. Não houve o
referendo do plenário do Tribunal. E, segundo ele, a liminar ofende a dignidade
do feto tratando-o como coisa e não como pessoa.
O Presidente do Tribunal, Nelson Jobim, esclarece que a liminar continha
dois aspectos: o sobrestamento dos feitos nas instâncias inferiores e o
reconhecimento do direito das gestantes enquadradas no caso de realizar a
interrupção sem a necessidade de autorização judicial específica.
O Ministro Marco Aurélio afirma que no dia 2 de agosto a concessão
monocrática da liminar foi trazida à bancada e por tal razão houve o referendo da
liminar. Defende o julgamento apenas quanto à admissibilidade da ação e não
no tocante à liminar.
O Ministro Eros Grau reafirma que não aconteceu o referendo no que é
acompanhado pelos demais membros. Carlos Britto se manifesta no sentido de
manter a liminar. Há uma nova votação para determinar a concessão da palavra
novamente ao advogado da autora para defender a manutenção da liminar
obtida anteriormente. A decisão defere o uso da tribuna ao representante
autoral.
Luís Roberto Barroso inicia sua segunda fala elencando os requisitos da
concessão de liminar: relevância e perigo na demora. O primeiro estaria
presente na lide nos princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade,
autonomia da vontade e direito à saúde. A dignidade humana enquadra-se na
integridade física e psicológica da gestante, no entender do constitucionalista o
registro civil de um natimorto, o óbito, enterro e a falta de recursos financeiros da
mulher seriam equiparáveis à tortura psicológica. A ninguém deve ser imposto
sofrimento evitável. Outro ponto seria a violação do princípio da legalidade se
entendida a interpretação conforme a constituição anteriormente referida. Como
fundamento Luís Roberto Barroso propõe também a atipicidade do fato. Como a
morte para o Direito é a morte cerebral, o feto anencéfalo não pode ser
considerado ser vivo, somente mantendo a vitalidade através de um aparelho
que é o corpo materno. Assim sendo, não há conflito entre bens jurídicos porque
não há vida. O segundo requisito – perigo na demora – é demonstrado nos
diversos pronunciamentos judiciais conflitantes a respeito do tema. Retratar a
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 101
liminar neste momento passará a mensagem de insegurança quanto às decisões
da corte suprema, ferindo a credibilidade do Judiciário. Finaliza sua
apresentação destacando a importância da laicização do Estado e o apoio de
diversas entidades como o Conselho Federal de Medicina, Ordem dos
Advogados do Brasil e organizações feministas.
Após, o Procurador Geral da República solicita o reexame da liminar. Os
argumentos apontados são: o bem maior protegido juridicamente é a vida (não
vê argumentos jurídicos que afastem esse direito) e vida intra-uterina é vida, não
podendo haver a coisificação do feto, a noção de vida é atemporal. Utiliza o
princípio da ponderação considerando que nem todas as gestantes sofrem com
a continuação da gestação, mas todos os fetos morrem.
O ministro Marco Aurélio é o primeiro a proferir seu voto. Inicialmente,
afirma o beneplácito do plenário quanto à liminar já que a mesma perdurou por
mais de quatro meses. Ressalta que em uma ação conjunta com o Ministério
Público, as gestantes já não necessitam ingressar em juízo para obter a
permissão de antecipação, e se o Ministério Público do Distrito Federal pode
autorizar, quanto mais demonstrada a competência do Supremo Tribunal
Federal. A lei 9.882/99 permite que a liminar suspenda as decisões não
transitadas em julgado e a adoção de qualquer outra medida ligada à matéria
discutida. Declara seu voto no sentido de manter a liminar, acreditando que a
suspensão da medida já deferida importaria em insegurança jurídica e o
descrédito da prestação judicial provisória. Apela para a formação ética e
humanística dos julgadores, rechaçando a pressão religiosa.
O Ministro Eros Grau estabelece um raciocínio contrário, para ele a
insegurança jurídica reside na própria liminar e não em sua cassação. Ressalta
que seu voto será exclusivamente técnico e jurídico. Nega referendo à liminar
sob o fundamento de que a mesma atenta contra a vida reconhecida pelo
Código civil e que não pode o julgador estabelecer nova exclusão de
punibilidade ignorada pelo legislador.
O Ministro Joaquim Barbosa, adstrito aos aspectos processuais nega
referendo à liminar por considerar que nesse momento ainda não realizado o
exame de admissibilidade impossível o deferimento de liminar.
O Ministro Carlos Britto inicia seu voto confessando que suas convicções
a respeito do tema encontram-se abaladas. Tece comentários sobre o caráter
machista de nossa sociedade, crê inclusive que se os homens engravidassem o
aborto a muito deixaria de ser crime. A seguir, trata da viabilidade do feto,
questionando se há o direito de viver ou direito de viver para morrer e que o
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 102
anencéfalo será algo que nunca será alguém. Salienta a riqueza do amor
materno e considera que a liminar apenas devolve a questão ao arbítrio a quem
cabe decidir. Encontra indicadores para endossar a medida e, portanto, vota
favoravelmente à liminar.
O Ministro Cezar Peluso ressalta que a liminar somente pode ser
concedida quando há uma alta probabilidade de confirmação ao final do
processo. No caso em questão entende o ministro que a liminar ofende o valor
jurídico da vida protegida juridicamente mesmo ainda no ventre materno. A
história da criminalização do aborto é ponto de destaque em sua manifestação.
O crime de aborto tem sua origem na necessidade de preservar a vida humana,
independente de deformidade. O diagnóstico da anencefalia é novo, porém, a
ocorrência de inviabilidade da vida extra-uterina não. A duração da vida não está
à disposição das pessoas, só coisa é objeto de disposição alheia. Vota no
sentido da cassação da medida.
Após é dada a palavra ao Ministro Gilmar Mendes. Esse inicia sua fala
diferenciando o papel positivo do negativo do julgador, afirmando a construção
diária pelo Supremo Tribunal Federal de interpretações até mesmo de normas
constitucionais. Porém, não vislumbra os requisitos da liminar no caso em voga e
por isso vota no sentido de cassar a decisão monocrática.
A ministra Ellen Gracie considera a liminar satisfativa porque autoriza o
aborto em casos não previstos na legislação. Acompanha os votos da maioria
por considerar incabível tal medida se o Tribunal ainda não se manifestou sobre
a admissibilidade da ação.
Carlos Velloso concorda com a ministra anteriormente referida no tocante
ao caráter satisfativo da liminar e a incerteza quanto ao cabimento do meio
jurídico escolhido, por tais razões vota com o intuito de revogar a liminar.
O Ministro Celso de Mello formula ponderações sobre o papel do juiz
republicano em uma república laica e a neutralidade confessional que deve
pautar suas decisões. Considera a importância da decisão atacada e de seus
fundamentos dentre eles destaca: extensão e titularidade do direito à vida, direito
sexual, direito à saúde, direito reprodutivo, autonomia da vontade e saúde física
e mental da gestante. Destarte, há densidade jurídica na cautelar decidindo pela
manutenção integral da liminar.
O ministro Sepúlveda Pertence concorda com o relator sobre a
protelação do Tribunal no caso e não vê como voltar às decisões controvertidas,
preferindo manter a liminar nos seus termos. Criada uma situação de fato o
Supremo Tribunal Federal assumiu uma política judiciária.
ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 103
Como resultado, o Tribunal, por maioria, referendou a primeira parte da
liminar concedida, no tocante ao sobrestamento dos processos e decisões não
transitadas em julgado, vencido Cezar Peluso. E, também por maioria, foi
revogada a segunda parte da liminar, que reconhecia o direito constitucional da
gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencéfalos,
vencidos: Marco Aurélio, Carlos Britto, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence.
Atualmente, os processos judiciais interpostos e não transitados em julgado
estão suspensos. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental de
número 54 foi considerada admissível em 27 de abril de 2005, por maioria de
votos, e aguarda julgamento no tocante ao mérito sobre a legalidade do
procedimento médico de antecipar o parto em caso de anencefalia fetal sem a
necessidade de cada hipótese de solicitação ser submetida ao Poder Judiciário
como ocorria até a propositura da ação.
INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 104
6 CONCLUSÃO INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO
A etapa conclusiva deste trabalho tem como finalidade relacionar o
instrumental teórico elencado nos capítulos sobre a bioética, o aborto e a
interpretação constitucional e o estudo de caso da antecipação terapêutica do
parto em caso de anencefalia fetal proposto no capítulo anterior.
No tocante aos argumentos bioéticos a teoria analítica dos casos
concretos parece a mais adequada, pois tem como parâmetro a utilização de
uma situação prática a fim de indicar soluções normativas para os problemas,
como é o caso do estudo sobre a legalidade do procedimento de antecipação do
parto em casos de anencefalia fetal. A metodologia adotada propõe a
ponderação entre a solução dada ao caso concreto de acordo com quatro
princípios: autonomia, beneficiência, não-maleficiência e justiça. A teoria bioética
dos princípios encontra uma limitação de ordem metodológica, qual seja, a falta
de hierarquização entre as quatro diretrizes orientadoras. Tal ausência ocasiona
uma insuficiência da teoria em hipóteses onde há conflito entre os princípios
elencados. Permite uma subjetividade extrema quanto à valoração dos princípios
não fornecendo uma resposta legitimada racionalmente151.
Por tal razão, essenciais as contribuições jurídicas de Ronald Dworkin e
Robert Alexy. Os referidos juristas lidam com a questão de princípios e a
possível ocorrência de incoerências no sistema jurídico. Cada um deles propõe
uma teoria visando uma mínima racionalidade na escolha do intérprete de certo
princípio em detrimento de outro. Ronald Dworkin rege que o sistema jurídico é
composto de regras e princípios, formando uma integridade coerente e limitadora
da discricionariedade do juiz. Robert Alexy estabelece que os princípios são
mandados de otimização que devem ser aplicados gradativamente ao caso
concreto na busca pela realização dos valores sociais na maior medida possível,
151 Uma crítica formulada por Fermin Schramm e Miguel Kottow é a adoção da
corrente principialista pensada por Beauchamps e Childress como instrumental para os conflitos clínicos de forma inespecífica e sem as devias adaptações para outros conflitos bioéticos que necessitam de uma abordagem específica. In SCHARAMM, F., KOTTOW, M., Princípios bioéticos em salud pública limitaciones y propuestas., 2001. p. 949-956.
INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 105
fática e juridicamente. E, através da racionalidade da argumentação jurídica,
verifica se os valores utilizados como fundamentação são suscetíveis de controle
racional.
Ronald Dworkin tece alguns comentários especificamente sobre a temática
do aborto. Acredita que o ponto problemático da questão gira em torno da
polarização das visões envolvidas. Os favoráveis à legalização do aborto
acreditam que o feto não deve ser entendido como mais que um aglomerado de
células, um código genético. Contudo os partidários da proibição do aborto
consideram o feto como um sujeito moral. Diante de tal incongruência muitos
consideram impensável o debate racional entre eles.
Nos dizeres de Ronald Dworkin:
“Trata-se de uma questão de convicções inatas, e o máximo que podemos pedir a cada lado não é que compreenda o outro, ou mesmo que o respeite, mas apenas uma pálida civilidade (...). Se a divergência for realmente tão forte, não poderá haver nenhuma transigência baseada em princípios; na melhor das hipóteses, haverá apenas um frágil e melindroso empate, definido pelo puro poder político.” 152
Qualquer discussão a respeito da temática sobre o aborto envolverá
pensamentos quase sempre inconciliáveis. Porém, como ressalta o supra
mencionado jurista a falta de consenso não ocorre somente pela disparidade
entre as opiniões e sim, muito mais inclusive, por um erro de conceituação entre
o que é moral e o que é legal. Embora a grande parte das pessoas acredite que
é intrinsecamente errado pôr fim a uma vida humana há também um forte
entendimento de que a decisão de interromper a gravidez em sua fase inicial é
de foro íntimo da gestante. Explica Ronald Dworkin:
“Essa combinação de pontos de vistas não é apenas coerente; na verdade, mostra-se igualmente de conformidade com uma grande tradição de liberdade de consciência das modernas democracias pluralistas. É bastante comum pensar que não compete ao governo ditar aquilo que seus cidadãos devem pensar sobre valores éticos e espirituais, em especial sobre valores religiosos.” 153
E este é o entendimento defendido neste estudo. A sociedade brasileira
está diante de uma oportunidade de debater sobre as razões levantadas pelos
grupos contrários e favoráveis ao aborto. E somente através de um
152 DWORKIN, R., Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais,
2003. p. 12. 153 Ibid., p. 18.
INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 106
procedimento democrático será possível obter um consenso, não sobre a
moralidade do aborto, mas sim sobre o tratamento jurídico adequado a cada
caso específico, propondo normas legais que sirvam de parâmetro e princípios
norteadores aos julgadores em hipóteses ainda não vivenciadas.
Ronald Dworkin, após discorrer sobre os argumentos e objeções quanto ao
aborto conclui sua obra voltando a atenção dos leitores para o princípio da
dignidade humana. O princípio da dignidade humana traz em si a noção de valor
intrínseco da vida.
Giorgio Agamben, porém, inova no tratamento deste termo quando em sua
obra Homo Sacer levanta a origem deste vocábulo. Segundo o autor a
sacralidade da vida envolvia dois termos: a impunidade da matança e a exclusão
do sacrifício. O Homo Sacer seria uma pessoa posta fora do âmbito da jurisdição
humana, mas sem ultrapassar para a vida humana. Giorgio Agamben então
salienta que:
“A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o poder soberano como um direito humano em todos os sentidos fundamental, exprime, ao contrário, em sua origem, justamente a sujeição da vida a um poder de morte, a sua irreparável exposição na relação de abandono.” 154 A palavra dignidade tem etimologicamente inserida a noção de
merecimento de estima e honra e sempre ligada ao ser humano. Digno confere
então uma importância essencial do Homem. Segundo Hannah Arendt a
dignidade humana refere-se a sua singularidade na alteridade155. O Homem é
singular justamente por sua identificação com todos e ao mesmo tempo sua
particularidade. A pluralidade humana é oriunda da pluralidade de seres
singulares.
A teoria kantiana estabelece a dignidade como um valor. Para ela dois
valores podem ser destacados: o preço e o valor. O primeiro refere-se às coisas
e o segundo às pessoas.
A professora Maria Celina Bodin de Moraes procura estabelecer um
substrato material para o entendimento do princípio, procurando enfatizar sua
importância para o ordenamento jurídico156. A autora enumera quatro postulados
retirados da obra Convite à filosofia de Marilena Chauí: 1) o sujeito moral
reconhece a existência do outro como sujeito igual a ele; 2) merecedores do
154 AGAMBEN, G., Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua, 2002. p. 91. 155 ARENDT, H., A condição humana, 2000. p. 189. 156 MORAES, M., Danos à pessoa humana. Uma leitura civil-constitucional dos
danos morais, 2003. p. 85.
INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 107
mesmo respeito à integridade psicofísica; 3) é dotado de vontade livre, de
autodeterminação; e 4) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a
garantia de não vir a ser marginalizado. Maria Celina de Moraes relaciona esses
postulados com os princípios jurídicos da igualdade, a integridade física e moral,
da liberdade e da solidariedade.
Ana Paula de Barcellos, também objetivando fornecer uma efetividade ao
princípio da dignidade humana, relaciona-o com a noção de mínimo existencial,
entendida como um conjunto de prestações materiais mínimas sem as quais
pessoa se encontraria em situação de indignidade.157
Esta também é a intenção dos autores da obra coletiva organizada por
Ingo Sarlet. O próprio título do livro já faz referência à dificuldade do termo, a
escolha da nomenclatura dimensões da dignidade humana visa demonstrar a
complexidade da própria pessoa humana. Ingo Sarlet menciona a problemática
de considerar o termo dignidade humana como universal, e mesmo que fosse
possível não haveria como evitar entendimentos diversos sobre quais atos
seriam ofensivos à dignidade humana158. Béatrice Maurer considera duas
dimensões da dignidade: uma substancial, ligada à noção de igualdade entre as
pessoas e a dignidade denominada de “atuada”, que seria a manifestação, a
realização de atos garantidores da dignidade159. As noções de vida e dignidade
humana estão intimamente relacionadas, não havendo uma conceituação
técnica capaz de separar objetivamente os âmbitos de atuação de cada
princípio. Para Michael Kloepfer estes termos devem ser entendidos como uma
unidade, de forma conjugada, porém isso não significa que representem o
mesmo direito fundamental. Os dois bens jurídicos podem, inclusive, entrar em
conflito entre si e “é preciso que resulte aqui, uma solução ponderada pautada
pelo critério do menor sacrifício possível de direitos fundamentais”160. A falta de
uma clara definição do termo dificulta e por vezes impossibilita sua efetivação. E
por fim, o entendimento de Peter Häberle, para quem a dignidade humana deve
ser fundamento da comunidade estatal, cabendo ao Poder Constituinte e ao
cidadão “acompanhar e seguir as fases do crescimento cultural e, com isso,
157 BARCELLOS, A., A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O princípio
da dignidade da pessoa humana, 2002. p. 305. 158 SARLET, I. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma
compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In Dimensões da dignidade. Ensaios de filosofia do direito e direito constitucional, 2005.
159 MAURER, B. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa humana... ou pequena fuga incompleta em torno de um tema central. In Dimensões da dignidade. Ensaios de filosofia do direito e direito constitucional, 2005.
INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 108
também as dimensões da dignidade humana em permanente processo de
evolução.” 161
A dignidade humana permeia toda a discussão sobre o aborto. Não só
porque a realização inconseqüente do ato atenta contra a dignidade de uma vida
humana, mesmo que em potencial, como também porque a imposição de
valores à gestante afronta a dignidade dessa, à medida que, restringe sua
liberdade individual. O princípio da dignidade da pessoa humana é utilizado
como premissa para a proibição do aborto e também como fundamentação para
a permissão da interrupção da gestação no caso proposto haja vista que a
obrigação legal de concluir a gravidez é tida como uma violência injustificada à
integridade psicofísica da mulher.
Neste ponto, destaca-se uma das regras fundamentais de Robert Alexy, já
citada anteriormente, segundo a qual um mesmo termo não pode ser utilizado de
forma distinta pelos falantes em um mesmo processo argumentativo. Assim
sendo, o princípio da dignidade da vida humana não será utilizado como base
argumentativa para nenhum dos entendimentos.
Desta feita, passa-se à análise dos argumentos defendidos no estudo de
caso. Os argumentos mais relevantes são: a sacralidade da vida e o direito à
integridade psicofísica que estaria sendo afrontado na obrigatoriedade legal da
mulher concluir seu período gestacional na hipótese de anencefalia de seu feto.
Segundo Ronald Dworkin existem duas objeções ao aborto. A primeira
denominada de derivativa considera que o feto desde sua concepção já possui
interesses próprios, dentre eles o de permanecer vivo, tendo o Estado que
garantir a proteção de seus interesses básicos. A segunda objeção é
denominada de independente e reconhece à vida humana um valor intrínseco e
inato, em seus dizeres “o caráter sagrado da vida humana começa quando sua vida
biológica se inicia, ainda antes de que a criatura à qual essa vida é intrínseca tenha
movimento, sensação, interesses ou direitos próprios.” 162
Qualquer concepção que se tenha sobre ordenamento jurídico,
especialmente a concepção ocidental contemporânea, terá como objeto
primordial de proteção o ser humano. As normas legais, embora variáveis em
160 KLOEPFER, M., Vida e dignidade da pessoa humana. In Dimensões da
dignidade. Ensaios de filosofia do direito e direito constitucional, 2005. p. 157. 161 HÄBERLE, P., A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal.
In Dimensões da dignidade. Ensaios de filosofia do direito e direito constitucional, 2005, p. 150.
162 DWORKIN, R., Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais, 2003. p. 13.
INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 109
seu conteúdo e forma, trazem em seus textos o princípio do respeito à vida
humana. Tal fato tem desdobramentos diversos conforme os valores e tradições
de cada população. O principal destes é a proibição de retirar a vida de um ser
humano em seus diferentes graus: homicídio, infanticídio, pena de morte, e,
finalmente, aborto.
Desta proibição preliminar à organização social humana decorre o conceito
de sacralidade da vida. Este termo é por muitos criticado por sua evidente
origem em valores religiosos, porém destaca-se que há muito tempo este
vocábulo tem sido desassociado dos referidos padrões meramente espirituais
para obter um embasamento moral laico. E será este fundamento do princípio da
sacralidade da vida que tratar-se-á neste estudo, relegando os aspectos
meramente religiosos quanto à origem e soberania divina sobre a vida humana.
No ordenamento jurídico brasileiro podem ser destacadas duas previsões
legais fundamentais sobre o tema. O artigo 124 do Código Penal Brasileiro de
1940 proíbe expressamente a prática do aborto, destacando o referido diploma
legal em seu artigo 128 os casos de exceção, nos quais, a prática do
abortamento é permitida por lei.
Como visto no capítulo sobre interpretação, segundo as técnicas
tradicionais de hermenêutica, prima-se pela interpretação literal do texto vigente.
De acordo com este entendimento os dispositivos legais expostos são claros
quanto à ilegalidade de qualquer interrupção voluntária da gravidez fora dos
parâmetros legais permissivos. Assim, a norma não merece qualquer
interpretação extensiva a outros casos, sendo clara que a antecipação do parto
em casos de anencefalia é crime, sendo qualquer outra interpretação contra
legem, não podendo ser aplicada.
A valorização máxima da vida humana enquadra-se de forma completa no
princípio bioético da não-maleficiência. Isto significa que a alegação de um
suposto direito da gestante não pode ser aceito, pois afrontaria diretamente o
princípio supra mencionado. A conduta da mulher acarretaria o dano irreversível
da morte de outro ser humano. Portanto, o argumento da sacralidade da vida
encontra um respaldo considerável na teoria bioética principialista.
Ademais, vimos na parte teórica que uma das grandes preocupações dos
estudiosos da bioética é a repetição das barbáries da eugenia nazista. Temem
eles que a permissão do aborto em casos de anomalias incompatíveis com a
vida acarrete a tolerância social e jurídica ao aborto em casos de deficiência
física ou mental. A teoria denominada no Brasil de ladeira escorregadia visa
INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 110
justamente chamar a atenção para tal possibilidade, evitando a classificação de
indivíduos como subumanos, indignos de proteção estatal.
Este argumento nos leva à principal objeção à interrupção da gestação
devido à anencefalia, qual seja não há como valorar diferentemente a vida
humana, estabelecendo graus diversos de qualificação de um indivíduo. Esta
argumentação encontra objeção no próprio ordenamento jurídico brasileiro
quando o legislador estabelece punições diferenciadas às diversas afrontas ao
direito à vida: homicídio, infanticídio e aborto. Porém, como a ciência ainda não
foi capaz de determinar com precisão o momento de início da vida humana,
então, utilizando o princípio da precaução163, qualquer organismo humano em
desenvolvimento deve ser protegido juridicamente. Não se pode determinar a
vida humana pela sua duração ou por suas capacidades. Não é menos humano
um feto por viver apenas alguns minutos ou horas e, enquanto perdurar suas
atividades fisiológicas, tem este direito à vida.
Na via contrária, há uma forte tendência bioética em valorizar outro
aspecto da vida humana – a qualidade. Atualmente a noção de sacralidade da
vida não é bastante, a manutenção de uma vida humana não é suficiente,
devendo os organismos estatais primar por elementos essenciais como a
autonomia, a saúde e o bem-estar do indivíduo. Dentro desta perspectiva serão
analisadas as razões que priorizam o direito à integridade psicofísica164 da
mulher.
Os vários argumentos que embasam este direito adotam as teorias
interpretativas mais modernas. Segundo as quais o texto constitucional deve ser
interpretado de forma mais ampla, por envolver valores e princípios abstratos,
conferindo-lhe a melhor adequação ao momento presente através de
referenciais ligados à noção de ponderação e argumentação.
O direito de escolha da gestante encontra suporte no princípio da
autonomia. Segundo este, a pessoa deve ser autônoma para determinar
163 O princípio da precaução é utilizado de forma corrente pelos doutrinadores do
Direito Ambiental e consiste em adotar uma postura defensiva em relação à procedimentos ou aos cuja conseqüência é ignorada.
164 Maria Celina Bodin de Moraes tece alguns comentários sobre a evolução deste princípio, ressaltando que inicialmente a integridade psicofísica era relacionada apenas à noções de tortura e tratamentos penais. Contudo, abrange diversos direitos da personalidade, como por exemplo: vida, nome, honra, identidade pessoal, corpo, entre outros. Hoje institui um amplo direito à saúde, ou como diz a autora, um completo bem-estar psicofísico e social, e contém ainda o direito à existência digna. MORAES, M. Danos à pessoa humana. Uma leitura civil-constitucional dos danos morais, 2003. p. 94.
INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 111
aspectos relevantes de sua vida, entre eles o direito reprodutivo. Esse
argumento é defendido de forma genérica para o aborto, mas no caso de
anencefalia seria reforçado, pois com a inviabilidade da vida fetal não há outro
sujeito a ser prejudicado. Além disso, o sofrimento gerado pela gravidez de um
feto anencéfalo sem viabilidade de vida extra-uterina e as possíveis
complicações de uma gestação também podem ser englobados no princípio da
beneficiência, já que a interrupção da gestação causaria um bem à saúde física
e, principalmente, à saúde psicológica da gestante.
Este princípio permite uma interpretação extensiva do artigo 128 do Código
Penal Brasileiro que permite a prática abortiva em casos de perigo à vida da
gestante. Alguns estudos têm sido propostos sobre o aumento do risco materno
nesses casos de gravidez, porém não há ainda um consenso médico a respeito
do tema para afirmar categoricamente que, pelo menos na parte física, há um
risco justificador da interrupção da gravidez.
Já no tocante aos danos psicológicos, há um forte entendimento de que a
obrigação legal a que é submetida a mulher ao levar a cabo a gestação de um
feto inviável é comparável à tortura. Os desconfortos e limitações impostos por
qualquer gestação seriam agravados pelo fato da consciência da gestora de que
seu feto não terá um desenvolvimento normal.
Nos dizeres da antropóloga Débora Diniz: “O fato é que o diagnóstico de má-formação fetal, em especial daquelas incompatíveis com a vida extra-uterina, não compõe o rol de expectativas das mulheres grávidas. O diagnóstico da má-formação fetal é, sem sombra de dúvida, uma das experiências mais angustiantes que uma mulher grávida pode experimentar. E parte importante desta angústia decorre exatamente da precisão diagnóstica possibilitada pelas técnicas: há uma limitação técnica da medicina fetal, pois, não há possibilidades terapêuticas para a grande maioria dos diagnósticos de má-formação fetal e, acrescido a isto, há uma limitação legal que restringe as decisões reprodutivas da mulher grávida, dificultando ou mesmo proibindo o aborto seletivo.“ 165 Os dados obtidos na parte empírica deste estudo embasam alguns
argumentos favoráveis à permissão do aborto.
Primeiro, a certeza científica de inviabilidade fetal e a confirmação total dos
diagnósticos realizados, não havendo um só caso onde a doença fora
descartada no exame pós-morte.
165 DINIZ, D. Quem autoriza o aborto? médicos, promotores e juízes em cena,
2003, p. 2.
INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 112
A ocorrência de diversos julgados permitindo a prática, o que evidencia
uma tendência jurisprudencial que acarreta uma insegurança jurídica se
modificada sem que haja uma fundamentação para tanto. É certo que somente o
Supremo Tribunal Federal pode emitir uma decisão jurídica obrigatória aos
demais ramos judiciários, porém, a reiteração de decisões em um determinado
sentido faz supor ao cidadão que aquele é o entendimento jurídico a respeito do
assunto. Ademais, a ínfima minoria que tem a solicitação negada não recebe um
tratamento jurídico igualitário, vez que, não lhe é dado o direito de escolha
concedido às demais solicitações, sendo que se encontra na mesma situação
que estas.
Os julgados estudados fundamentam outro ponto jurídico favorável à
permissão da interrupção que é a atipicidade da conduta. Tal formulação
jurídica, como visto em capítulo anterior, utiliza a legislação vigente sobre o
transplante de órgãos que estabelece a morte cerebral como determinante da
morte natural de uma pessoa. O feto anencéfalo caracteriza-se pela ausência de
cérebro, e silogisticamente, já deveria ser considerado morto para o
ordenamento jurídico. Então, quando a mãe antecipa o parto não acarreta
diretamente a morte do feto, a qual tem uma causa biológica natural, sendo
atípica a conduta da gestante ou do médico para o Direito.
Neste sentido, destaca-se o argumento principal que especifica o caso da
anencefalia – a inviabilidade de vida extra-uterina do feto. Neste contexto, não
há conflito de princípios por ausência de possibilidade de vida fetal. Assim
sendo, não há afronta voluntária à vida humana e sim uma inviabilidade natural.
Este entendimento se coaduna com a premissa de Robert Alexy de que
quanto maior a interferência em um princípio mais importante tem que ser a
realização de outro princípio. O direito fundamental da integridade psicofísica da
gestante não deve ser afastado haja vista que não será conservado o direito à
vida do feto. Assim sendo, não há uma justificação racional para restringir o
direito da mulher.
Conclusivamente, destacam-se as considerações de Hannah Arendt: “As perguntas específicas devem receber respostas específicas; e se a série de crises que temos vivido desde o início do século pode ensinar alguma coisa é, penso, o simples fato de que não há padrões gerais a determinar infalivelmente os nossos julgamentos, nem regras gerais a que subordinar os casos específicos com algum grau de certeza.” 166
166 ARENDT, H., Responsabilidade e julgamento, 2004. p. 7.
INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 113
A antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia deve ser
analisada de acordo com as peculiares características da hipótese. A atividade
legislativa brasileira não acompanhou as inovações técnicas da ciência médica,
não há uma previsão legal específica sobre o caso, o que permite tamanha
celeuma sobre a correta interpretação constitucional a respeito do tema. A
interpretação constitucional dos valores envolvidos não deve ser remetida à
legalidade ou não da prática abortiva, tema este muito mais amplo e complexo.
O que se pretende no estudo de caso é demonstrar que as descobertas
científicas das últimas décadas possibilitaram o conhecimento de um fator
determinante na gestação, a inviabilidade de vida extra-uterina.
O Supremo Tribunal Federal depara-se com uma situação jurídica sui
generis e, portanto, deve utilizar as técnicas interpretativas de forma a proferir
uma decisão com base em argumentos jurídicos racionais condizentes com os
valores expressos na Carta Magna de 1988. As normas constitucionais antes de
1988 tinham como problemática garantir a continuidade de sua vigência, diante
de tantos golpes a permanência de uma Constituição era hipóteses rara. Após a
promulgação da Constituição de 1988, e a estabilidade da democracia brasileira,
a preocupação passa a ser com a efetivação do texto constitucional167 e o
Supremo Tribunal Federal adquire um papel relevante neste sentido.
O debate deliberativo que se levantou a respeito do tema, por si só, já
representa um avanço para a democracia brasileira. A menção de que o relator
pretende convocar uma Audiência Pública para ouvir representantes de diversos
setores sociais alude a uma preocupação do Tribunal em observar parâmetros
democráticos em sua solução. A deliberação que precede o processo decisório é
indispensável à democracia. 168
A função outorgada pelos constituintes à Corte Suprema deve ser
conservada no sentido deste determinar qual a interpretação constitucional mais
adequada à lide em voga. A decisão a ser prolatada deve atentar para um
167 De acordo com este entendimento: “A legalidade constitucional, a despeito da
compulsão com que se emenda a Constituição, vive um momento de elevação: quinze anos sem ruptura, um verdadeiro recorde em um país de golpes e contra-golpes. (...) E a efetividade da Constituição, rito de passagem para o início da maturidade institucional brasileira, tornou-se uma idéia vitoriosa e incontestada. As normas constitucionais conquistaram o status pleno de normas jurídicas, dotadas de imperatividade, aptas a tutelar direta e imediatamente todas as situações que contemplam. BARROSO, L, BARCELLOS, A. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In BARROSO, L. A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, 2003, p. 329.
168 Neste sentido, SOUZA NETO, C. Teoria constitucional e democracia deliberativa. Um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática, 2006, p. 295.
INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 114
procedimento decisório racional e laico, através da argumentação e ponderação
dos valores constitucionais da integridade e da vida humana a fim de obter uma
legitimação democrática perante a sociedade plúrima. Segundo palavras do
Ministro Marco Aurélio, quer num sentido quer em outro, o Supremo Tribunal
Federal tem que emitir um posicionamento sobre a permissão legal de
antecipação de parto em caso de anencefalia fetal, pois a inércia institucional é
impiedosa à democracia169. Este trabalho não pretende determinar qual a única
resposta jurídica correta. Porém, “devemos insistir em que apresentem os melhores
argumentos possíveis, e, em seguida, perguntar a nós mesmos se seus argumentos são
suficientemente bons”. 170
169 Como dito anteriormente não é tratada, neste trabalho, a questão de separação
dos Poderes quanto à edição e aplicação de normas. Entretanto, vale citar Cláudio Pereira de Souza Neto: “Assim, um dos argumentos centrais para a restrição do ativismo judicial nessa área é justamente o da legitimação democrática. (...) O estabelecimento de finalidades se situa no campo do dissenso político e deve ser resolvido através do princípio majoritário. Como sublinhamos, as teorias democrático-deliberativas levam a uma restrição da atividade judicial ao campo da neutralidade política, que caracteriza o consenso procedimental, deixando em aberto à deliberação majoritária o dissenso conteudístico. O que não pode ocorrer é o estado violar os direitos fundamentais ou deixar de implementa-los – hipótese em que estará agindo ilegitimamente, ficando justificada a ação judicial.” SOUZA NETO, C. Fundamentação e normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à luz do princípio democrático. In BARROSO, L. A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, 2003.
170 DWORKIN, R., Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais, 2003, p. 203
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 115
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABEL, Francesc, BONE, Edouard e HARVEY, John C. La vida humana:
origen y desarrollo. Reflexiones bioeticas de cientificos y moralistas. Madrid:
Universidad Pontificia Comillas, 1989.
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. Tradução:
Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
ALCHOURRÓN, Carlos., BULYGIN, Eugenio. Análisis lógico y derecho.
Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991.
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. A teoria do discurso
racional como teoria da justificação jurídica. Tradução Zilda Silva. 2ª edição.
São Paulo: Landy, 2005.
____________. Colisão de Direitos Fundamentais e Realização de Direitos
fundamentais no Estado de Direito Democrático. In Revista da Faculdade de
Direito da UFRGS, v.17, 1999.
____________. Derechos, Razonamiento Jurídico y Discurso Racional. In
Revista Isonomia nº 1, 1993. Pg. 37 - 49.
____________. Sistema jurídico, principios y razón práctica. In Revista Doxa.
Nº 5, 1988. pg. 139 – 151.
AMADO, Juan Antonio García. Ensayos de filosofía jurídica. Bogotá: Editorial
Temis, 2003.
ANIS. Anencefalia. O pensamento brasileiro em sua pluralidade. Brasilia:
ANIS, 2004.
ANJOS, Márcio Fabri dos. Argumento Moral e Aborto. São Paulo: Loyola,
1976.
ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. Tradução Rosaura
Einchenberg. São Paulo: Companhia das letras, 2004.
_______________. A condição humana. 10a edição. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2000.
ASCH, Adrienne. Diagnóstico pré-natal e aborto seletivo. In Perfil das
Percepções sobre as Pessoas com Síndrome de Down e do seu
atendimento: Aspectos Qualitativos e Quantitativos. Márcio Ruiz
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 116
Schiavo.(coord) Brasília: Federação Brasileira das Associações de Síndrome
de Down, 1999.
ATIENZA, Manuel. As razões do direito. Teorias da argumentação
jurídica.Tradução Maria Cristina Guimarães Supertino. 3ª edição. São Paulo:
Landy, 2003
_______________. Los limites de la interpretación constitucional. De nuevo
sobre los casos trágicos. In Isonomia, nº 6, 1997.
_______________. Juridificar la bioética. In Isonomia nº 8, abril 1998.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos
princípios jurídicos. 2a edição. São Paulo: Malheiros, 2003.
_______________. Direitos fundamentais dos contribuintes e os obstáculos
à sua efetivação. In PIRES, Adilson Rodrigues, TÔRRES, Heleno Taveira
(organizadores). Princípios de direito financeiro e tributário. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006. p. 345-361.
BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade
jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
_______________. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O
princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
_______________. Alguns parâmetros normativos para a ponderação
constitucional. In BARROSO, Luís Roberto (organizador). A nova
interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações
privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 49-118.
BARROS, Alexandra. Limites à condenação do aborto seletivo: a deficiência
em contextos de países periféricos. In Série Anis 30, Brasília, LetrasLivres,
outubro, 2003. p.1-6.
BARROSO, Luís Roberto (organizador). A nova interpretação constitucional.
Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003.
_______________, BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. A
nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito
brasileiro. In BARROSO, Luís Roberto (organizador). A nova interpretação
constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio
de Janeiro: Renovar, 2003. p. 327-378.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 21ª edição. São
Paulo: Saraiva, 2000
BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princípios de ética
biomédica. Tradução Luciana Pudenzi. São Paulo: Loyola, 2002.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 117
BEZERRA, Paulo César Santos. Acesso à justiça. Um problema ético-social
no plano da realização do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral.
Volume 1. São Paulo: Saraiva, 2003.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 10ª edição. Rio de Janeiro: Campus,
1992.
BUCHANAN, A . Choosing who will be disabled: genetic intervention and the
morality of inclusion. In Social Philosophy and Policy 1996; 13.2:18-45: n.7,
21.
BUSATO, Paulo César. Tipicidade material, aborto e anencefalia. In Revista
Eletrônica de Ciências Jurídicas. RECJ.01.04, 2004.
CALLEN, Peter W. Ultra-sonografia em obstetrícia e ginecologia. Tradução
Octacílio Figueiredo Netto. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002.
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação. Uma
contribuição ao Estudo do Direito. 3ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 9ª edição. São Paulo: Ática, 1997.
CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DA BAHIA.
Anencefalia e Supremo Tribunal Federal. Brasília: Letras Livres, 2004
COSTA, Sergio Ibiapina Ferreira, OSELKA, Gabriel, GARRAFA, Volnei,
(coordenadores). Iniciação à bioética. Brasília: Conselho Federal de
Medicina, 1998.
DANTAS, Ivo. Princípios constitucionais e interpretação constitucional. Rio
de Janeiro: Lúmen Júris, 1995.
DEGOS, Laurent. Os critérios biológicos da presença de uma pessoa
humana. In Sciences et Avenir Hors-série, nº 130, mar/abr, 2002.
DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. Volume 1, 10 ª edição, Rio de
Janeiro: Forense, 1987.
DINIZ, Débora. O aborto seletivo no Brasil e os alvarás judiciais. In Série
Anis 12, Brasília, LetrasLivres, 1-6, junho, 2000.
____________. Quem autoriza o aborto? médicos, promotores e juízes em
cena. In Série Anis 27, Brasília, LetrasLivres, 1-11, julho, 2003.
____________. Abortion in brazilian bioethics. In Série Anis 32, Brasília,
LetrasLivres, 1-3, março, 2004
____________, RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto por anomalia fetal. Brasília:
Letras Livres, 2004.
____________, COSTA, Sérgio. Bioética: ensaios. Brasília: Letras Livres,
2004.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 118
____________, CORRÊA, Marilena. Por uma análise crítica da proposta de
modificação da Declaração De Helsinki . Série Anis 03. Brasília: LetrasLivres,
1-7, junho, 2000
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 2ª edição. São Paulo:
Saraiva, 2002.
DWORKIN, Ronald. Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades
individuais. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes,
2003.
____________. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes,
2002.
ECO, Umberto. Os limites da interpretação. São Paulo: Perspectiva, 2000.
ENGELHARDT JR., H. Tristan. Fundamentos da bioética. Tradução José A.
Ceschin. São Paulo: Loyola, 1998.
____________. Manuale di Etica. Milano: Il Sagiatore, 1999.
FEDERAÇÃO BRASILEIRA DAS ASSOCIAÇÕES DE SÍNDROME DE
DOWN. Perfil das Percepções sobre as Pessoas com Síndrome de Down e
do seu atendimento: Aspectos Qualitativos e Quantitativos. Márcio Ruiz
Schiavo (coordenador). Brasília: Federação Brasileira das Associações de
Síndrome de Down, 1999.
FRAGOSO, Heleno. Lições de Direito Penal. V.1, 8ª edição, Rio de Janeiro:
Forense, 1986.
FRANÇA, Limongi (coordenação). Enciclopédia Saraiva de Direito. Vol. 1.
São Paulo: Saraiva, 1977.
FREITAS, Juarez. O intérprete e o poder de dar vida à constituição: preceitos
de exegese constitucional. In GRAU, Eros Roberto, GUERRA FILHO, Willis
Santiago (organizadores). Direito Constitucional. Estudos em homenagem a
Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 26-248.
GARRAFA, Volnei; COSTA, Sérgio Ibiapina. A bioética no século XXI.
Brasília: UNB, 2000.
GOLLOP, Thomaz Rafael. Aborto por anomalia fetal. In Revista Bioética.
Simpósio: Aborto. Vol. 2, número 1, 1994.
____________, MACHADO, Lia Zanotta. O direito irrefutável ao aborto. In
Jornal da Ciência de 28 de outubro de 2005. p.9.
GONÇALVES, Guilherme Figueiredo Leite. Direito, certeza e tempo. In
TORRENS, Haradja Leite, ALCOFORADO, Mario Sawatani Guedes. A
expansão do direito: estudos de direito constitucional e filosofia do direito.
Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p. 341-345.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 119
GOUVÊA, Marcos Maselli. O controle judicial das omissões administrativas.
Novas perspectivas de implementação dos direitos prestacionais. Rio de
Janeiro: Forense, 2003.
GRAU, Eros Roberto, GUERRA FILHO, Willis Santiago (organizadores).
Direito Constitucional. Estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São
Paulo: Malheiros, 2001.
GUASTINI, Ricardo. Estudios sobre la interpretación jurídica. México: Porrúa,
2003.
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência jurídica. São Paulo:
Saraiva, 2001.
____________. Sobre o princípio da proporcionalidade. In LEITE, George
Salomão. Dos princípios constitucionais. Considerações em torno das
normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 237-
253.
GUIBOURG, R., GHIGLIANI, A., GUARINONI, R. Lenguaje. In: Introducción
al conocimiento científico. Buenos Aires: Eudeba, 2000.
HARE, R. Essays on Bioethics. Oxford: Oxford University Press, 1993.
HUNGRIA, Nelson e FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código
Penal. Vol. V. 6ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
ISFER, Eduardo Valente, SANCHEZ, Rita de Cássia, SAITO, Mauricio.
Medicina Fetal. Diagnóstico pré-natal e conduta. Rio de Janeiro: Revinter,
1996.
KOHLBERG, Larry. Moral stages and moralization: the cognitive
developmental approach. In Moral development behavior. New York: Holt,
Rinehart and Winston, 1976.
KOTTOW, Miguel. Introducción a la bioética. Santiago: Ed. Universitaria,
1995.
LEITE, Eduardo de Oliveira. Eugenia e bioética: os limites da ciência face à
dignidade humana. In Revista jurídica 321 – julho / 2004. Porto Alegre:
Notadez.
LEITE, George Salomão. Dos princípios constitucionais. Considerações em
torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros,
2003.
LIMA, João Batista de Souza. As mais antigas normas de direito. 2a edição.
Rio de Janeiro: Forense, 1983.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 120
MANARI FILHO, Luís Sérgio Soares. A comunidade aberta de intérpretes da
constituição. O Amicus Curie como estratégia de democratização da busca
do significado das normas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19a edição. Rio
de Janeiro: Forense, 2005.
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo
Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais.
Brasília: Brasília Jurídica, 2000.
MENDONÇA, Daniel. Interpretación y aplicación del derecho. Almería:
Universidad de Almería, 1997.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Parto, aborto e puerperio: asistencia humanizada
à mulher. Brasilia: Ministerio da Saúde, 2001.
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana. Uma leitura civil-
constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
MORESO, José Juan. La indeterminación del derecho y la interpretación de
la constitución. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales,
1997.
MORI, Maurizio. A moralidade do aborto. Sacralidade da vida e o novo papel
da mulher. Tradução de Fermin Roland Schramm. Brasilia: Editora
Universidade de Brasilia, 1997.
MORON, Antonio Fernandes. Medicina fetal na prática obstétrica. São Paulo:
Santos Editora, 2003.
MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. 3a edição.
Tradução Peter Naumann. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
NAVARRO, Pablo. Sistemas jurídicos, casos difíciles y conocimiento del
derecho. In Revista Doxa nº 14, 1993. pg. 243 -268.
NEVES, Marcelo. A interpretação jurídica no estado democrático de direito.
In GRAU, Eros Roberto, GUERRA FILHO, Willis Santiago (organizadores).
Direito Constitucional. Estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São
Paulo: Malheiros, 2001. p. 356-376.
NYBERG, David A.. Diagnostyc imaging of fetal anomalies. Philadelphia:
LIPPINCOTT Williams & Wilkins, 2003.
ORTEGA, Manuel Segura. Sobre la interpretación del derecho. Santiago de
Compostela: Universidade de Santiago de Compostela, 2003.
PINTO, Fernanda Menna. Da argüição de descumprimento de preceito
fundamental. In TORRENS, Haradja Leite, ALCOFORADO, Mario Sawatani
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 121
Guedes. A expansão do direito: estudos de direito constitucional e filosofia do
direito. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p. 275-286.
PIRES, Adilson Rodrigues, TÔRRES, Heleno Taveira (organizadores).
Princípios de direito financeiro e tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
POTTER, Van. Bioethics: Bridge to the future. Englewood Cliffs: Prentice
Hall, 1971:2.
REICH, WT. Encyclopedia of Bioethics. New York: MacMillan, 1995.
SÁ, Elida. Biodireito. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1999.
SACKETT, David L. (coordenador). Medicina baseada em evidências: prática
e ensino. Tradutor Ivan Carlquist. 2a edição. Porto Alegre: Artmed, 2003.
SADEK, Maria Tereza (organizadora). Acesso à justiça. São Paulo:
Fundação Konrad Adenauer, 2001.
SALOMÃO, Antonio Jorge. Abortamento espontâneo. In Obstetrícia Básica.
Bussâmara Neme. São Paulo: Sarvier, 1994.
SANDERS, Roger C., BLACKMON, Lílian R., HOGGE, W. Allen,
WUFSBERG, Eric A. Feto. Anomalias estruturais. Uma abordagem completa.
Tradução Maristela Fracaro Menck. Rio de Janeiro: Revinter, 1999.
SARLET, Ingo Wolfgang (organizador). Dimensões da dignidade. Ensaios
de filosofia do direito e direito constitucional. Tradução Ingo Wolfgang Sarlet,
Pedro Scherer de Mello Aleixo e Rita Dostal Zanini. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005.
________________. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1999.
________________. A pesquisa bioética no Brasil. In Cadernos Adenauer,
Rio de Janeiro, v. III, n. 1, p. 87-102, 2002.
________________, KOTTOW, Miguel. Princípios bioéticos em salud pública
limitaciones y propuestas. In Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, jul-
ago 2001. p. 949-956.
SEGRE, Marco, COHEN, Claudio. (Organizadores). Bioética. São Paulo:
Universidade de São Paulo, 1995.
SGRECCIA, Elio. Manual de bioética. V. 1, São Paulo: Loyola, 1996.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3a edição.
São Paulo: Malheiros, 1999.
SINGER, Peter. Ética Prática. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
SOARES, André Marcelo M. e PIÑEIRO, Walter Esteves. Bioética e
Biodireito. Uma introdução. São Paulo: Loyola, 2002.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 122
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria constitucional e democracia
deliberativa. Um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições
para a cooperação na deliberação democrática. Rio de Janeiro: Renovar,
2006.
________________. Jurisdição constitucional, democracia e racionalidade
prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
________________. Fundamentação e normatividade dos direitos
fundamentais: uma reconstrução teórica à luz do princípio democrático. In
BARROSO, Luís Roberto (organizador). A nova interpretação constitucional.
Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003. p. 285-326.
TASSE, Adel El. Aborto de feto com anencefalia: ausência de crime por
atipicidade. In Revista Jurídica no 322. Ano 52. Agosto ; 2004. pg. 101 – 113.
São Paulo: Notadez.
TAVARES, André Ramos. Elementos para uma teoria geral dos princípios na
perspectiva constitucional. In LEITE, George Salomão. Dos princípios
constitucionais. Considerações em torno das normas principiológicas da
Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 21-51.
TORRENS, Haradja Leite, ALCOFORADO, Mario Sawatani Guedes. A
expansão do direito: estudos de direito constitucional e filosofia do direito.
Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004.
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2002.
XAVIER, Elton Dias. A bioética e o conceito de pessoa: a re-significação
jurídica do ser enquanto pessoa. In Revista Bioética, vol. 8, nº 2, 2000.