Download - Ritmo e Mtricidade
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DISSERTAO DE MESTRADO
RITMO, MOTRICIDADE,
EXPRESSO:
O TEMPO VIVIDO NA MSICA
Alberto Andrs Heller
CENTRO DE CINCIAS DA EDUCAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA UFSC
LINHA DE PESQUISA: EDUCAO E COMUNICAO
ORIENTADOR: PROF. DR. ARI PAULO JANTSCH
CO-ORIENTADOR: PROF. DR. MARCOS JOS MLLER
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NDICE
Introduo .................................................................................. 06
Parte I Fenomenologia da experincia musical Captulo 1 Do objeto musical ..................................................................... 09 Captulo 2 Ritmo e metro: espacializao da experincia musical ............ 17 Captulo 3 Ritmo e motricidade .................................................................. 38 Captulo 4 Motricidade e expresso ........................................................... 51 Captulo 5 Expresso e temporalidade ....................................................... 65
Parte II Crtica fenomenolgica da experincia de educao musical Captulo 6 Desconstruo da representao do corpo-prprio na educao musical A questo da tcnica ........................... 86 Captulo 7 A percepo do corpo-prprio e a redescoberta do tempo vivido A questo do ritmo ....................................... 113 Captulo 8 A compreenso do tempo vivido e a expresso musical A questo da interpretao ...................... 136 Concluso .................................................................................. 164 Bibliografia .................................................................................. 167
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RESUMO / RESUMEN / ZUSAMMENFASSUNG
A presente dissertao examina criticamente alguns dos fundamentos da ao
musical, especialmente no que se refere tcnica, ao corpo e expresso, bem como
sua interligao. Atravs do mtodo fenomenolgico e de alguns de seus principais
conceitos (como os de intencionalidade, corpo-prprio, esquema corporal, expresso e
tempo vivido) pretende-se tentar compreender a essncia da experincia artstica.
Acredita-se, a partir de tal compreenso, tornar possvel ultrapassar a mentalidade de
reproduo comumente encontrada no apenas na educao musical como na educao
de uma forma geral.
La presente dissertacin analiza criticamente algunos de los fundamentos de la
accin musical, especialmente en lo que se refiere a la tcnica, al cuerpo y a la expresin,
as como a su interligacin. Atravs del mtodo fenomenolgico y de algunos de sus
principales conceptos (como los de intencionalidad, cuerpo-prprio, esquema corporal,
expresin y tiempo vivido) se pretende tratar de comprender la esencia de la experiencia
artstica. Se piensa, a partir de tal comprensin, tornar posible ultrapasar la mentalidad de
reproduccin normalmente encontrada no solamente en la educacin musical como
tambin en la educacin de una forma general.
Der folgender Text analysiert en kritischer Art einige der Fundamente des
musikalischen Aktes, besonders was die Technik, der Krper und den Ausdruck betrifft, so
wie die Verbindung zwischen diese Elemente. Durch die fenomenologische Methode und
einige ihren wichtigsten Konzepte (wie die Intentionalitt, den eigenen Krper, den
Ausdruck und die gelebte Zeit) will man versuchen die Essenz des knstlerischen
Erlebnisses zu verstehen. Dieses Verstehen soll das berwinden der
Reproduktionsmentalitt (die wir nicht nur in der musikalischen sondern auch in der
allgemeinen Erziehung finden) ermglichen.
Palavras-chave: Fenomenologia; educao; msica; expresso; arte.
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AGRADECIMENTOS
Agradeo, em primeiro lugar, ao meu orientador, Prof. Dr. Ari Paulo
Jantsch, no apenas pela orientao do trabalho, mas principalmente pela
aceitao do projeto desta dissertao no programa do curso - um projeto
inicialmente de difcil adaptao, dado seu carter interdisciplinar.
Agradeo enormemente ao meu co-orientador, Prof. Dr. Marcos Jos
Mller, por suas valiosssimas contribuies ao longo destes dois anos de
convvio, que resultaram, mais que numa dissertao de mestrado, numa
experincia de vida. Erros ou falhas de interpretao no que diz respeito
fenomenologia neste trabalho devem ser inteiramente computados ao autor da
dissertao, no sua brilhante orientao.
Agradeo ao Prof. Dr. Lucdio Bianchetti, sempre fonte de inspirao e
entusiasmo, que esteve presente, de corpo e alma, ao longo de todo o percurso.
Agradeo, enfim, a todos os que compartilharam destes meses, meses que
passaram, infelizmente, muito rpido, mas que abriram caminhos pelos quais
continuaremos caminhando juntos.
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Haver um ano em que haver um ms em que haver uma semana
em que haver um dia em que haver uma hora
em que haver um minuto em que haver
um segundo
e dentro do segundo
haver o no-tempo sagrado
da morte transfigurada.
Clarice Lispector
Wer den Ernst einer Melodie empfindet, was nimmt der wahr? Nichts, was sich
durch Wiedergabe des Gehrten mitteilen liesse.1
Wittgenstein
1 Quem sente a seriedade de uma melodia, que percebe ele? Nada que se deixasse compartilhar atravs da reproduo do que se ouviu. (WITTGENSTEIN, 1990, p.546)
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INTRODUO
Aps mais de quinze anos atuando na rea de educao e pedagogia
musical no Brasil e na Alemanha, foi impossvel deixar de constatar entre os
estudantes das escolas de msica (tanto nas de nvel fundamental e mdio quanto
nas de nvel superior) e mesmo entre os msicos profissionais, uma certa crise,
crise observvel em vrios nveis, desde o humano at o artstico.
Para compreender essa situao conveniente lembrar que o estudo
acadmico e formal da msica historicamente bastante novo at o sculo XIX
a msica era ou transmitida de pais para filhos ou ento dada apenas a
determinadas pessoas, geralmente nas igrejas e nos palcios. O livre acesso da
populao a ela, bem como a instituio de cursos universitrios para sua
profissionalizao, so pois fatos extremamente recentes.
Mesmo com uma histria to recente, a pedagogia musical tem se
desenvolvido de forma impressionantemente rpida. Resta-nos, porm, analisar
criticamente em que sentido se deu tal desenvolvimento. O primeiro fato que nos
deveria chamar a ateno a nfase atualmente dada reproduo de obras de
arte em detrimento da produo. Se at o sculo XIX a figura do instrumentista
no se separava da figura do compositor, o mesmo no se d hoje: com a
especializao, separaram-se ambos. A figura do compositor foi idealizada e
romantizada: trataria-se de um dom divino, que a pessoa nasce com ele ou no
(falcia que inibiu e inibe ainda milhares de alunos). Em funo disso, as escolas
centraram seus esforos no na criao, mas no aprendizado da recriao ao
instrumento (faz-se aulas hoje de piano, de violo, e com isso subentende-se
que se estudar o repertrio para piano, o repertrio para violo).
Aprende-se nas escolas de msica a interpretar as obras de Bach,
Beethoven, Chopin e todos os outros compositores consagrados pela tradio
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musical. A princpio isso no apresenta problema algum fundamental conhecer
as obras maravilhosas que esses autores produziram. O problema que no se
ensina a fazer o que eles fizeram criar; apenas se ensina a reproduzir o que eles
fizeram. como se nas escolas se ensinasse a ler mas no a escrever.
Isso no significa que se pretenda que todos os estudantes de msica se
tornem compositores assim como no se pretende que quem aprende a
escrever se transforme necessariamente num grande escritor o que no nos
isenta obviamente da necessidade de aprender a expressar-nos por meio da
escrita.
Os primeiros tratados musicais com fins didticos datam do sculo XVIII,
como o caso do famoso tratado de Carl Philipp Emanuel Bach (filho de Johann
Sebastian Bach), Ensaio sobre a verdadeira arte de se tocar instrumentos de
teclado (Versuch ber die wahre Art das Clavier zu spielen), de 1753. Os tratados,
desde ento, foram se especializando cada vez mais em tentar aprimorar a
tcnica do instrumentista. A maioria dos mtodos de ensino instrumental se guiam
pelo critrio de eficincia: como aprender a tocar o instrumento x ou y melhor e
mais rapidamente - como ironiza o compositor John Cage, hoje podemos ir
rapidamente de um canto ao outro do planeta; o que temos que nos perguntar
porm : queramos afinal ter ido para l? (CAGE,1985, p.12). A facilidade dos
meios nos fez esquecer ou confundir os fins, sobre os quais precisamos sempre
voltar a discutir.
A diferenciao entre um criar e um tocar deve ser transposta: no h
tocar sem criao, nem criao sem tocar. preciso voltar aos fundamentos do
fazer em msica e resgatar o que o artstico da expresso musical. Nesse
sentido, estaremos discutindo no a msica em si, mas as formas, os modos
como nos relacionamos com ela. H uma essncia no fazer musical que no
propriamente um produzir, mas um deixar aparecer. Essa diferena est
implcita nos diferentes sentidos da tcnica, um dos principais conceitos a serem
aqui tratados (no conceito vulgar de tcnica imperam as leis da causalidade:
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atravs da tcnica meu intelecto controla o corpo para que este produza uma
obra, finalidade da ao. Como pretendemos demonstrar, a experincia do
fenmeno expressivo no se d de forma alguma assim).
Para melhor compreender a expresso musical, veremos as relaes que
se estabelecem entre corpo (falaremos em motricidade, compreendendo o corpo
como movimento), ritmo (compreenso corporal das relaes espao-temporais-
expressivas), expresso, tempo e conscincia.
Em funo da natureza da pesquisa, o referencial terico que utilizaremos
ser a fenomenologia, especialmente atravs de seus principais autores: Husserl,
Heidegger e Merleau-Ponty (principalmente Merleau-Ponty, cujas pesquisas sobre
a percepo so particularmente importantes para nossos fins). Guiando-nos por
meio de alguns conceitos da fenomenologia como os de intencionalidade, corpo-
prprio, esquema corporal, expresso e tempo vivido (citando apenas alguns
exemplos) esperamos poder chegar aos fundamentos da ao musical.
Isso no quer dizer, porm, que este trabalho se pretenda filosfico. Se
dialoga com a filosofia, apenas para melhor compreender seu objeto de estudo.
Apesar desta dissertao ser uma pesquisa direcionada primeiramente a
musicistas (intrpretes, educadores, alunos de msica), torna-se de interesse
geral uma vez que discute os fundamentos da ao humana.
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Parte I Fenomenologia da experincia musical
Captulo 1
Do objeto musical
Situao corriqueira numa aula de msica: o aluno toca uma determinada
obra e o professor o censura, alegando que este no a compreendeu. Nos
perguntamos: o que este compreender? O que se compreende da msica,
quando dizemos que a compreendemos?
Com estas perguntas nos situamos na questo da definio do objeto
sonoro, questo ampla e delicada que nos leva a perguntas importantes da
esttica musical, como por exemplo: sob quais critrios uma seqncia sonora
passa a receber o estatuto de msica? O que qualifica um som como artstico?
Trata-se de questes j muito discutidas, que no pretendemos abordar aqui (a
no ser indiretamente).
Constatemos, antes de mais nada, que qualquer som , em si, o que ele .
Nem mais, nem menos. O som da gua corrente de um riacho no triste nem
alegre: apenas . Mas nossa cultura outorgou a esse som uma srie de
significados que nos remete a determinados padres emocionais, e qualquer som
que se lhe assemelhe pode tambm nos remeter, mesmo que inconscientemente,
a esses mesmos padres.
Trata-se, portanto, de uma dificuldade considerar o som simplesmente em
si mesmo dentro de um certo contexto cultural. Segundo John Cage, grande
revolucionrio da msica, tal contexto teria afetado nossa percepo real do som,
de forma que, dentro do sistema criado (referindo-se aqui msica ocidental), um
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som deixara de ser um som para se tornar uma idia. Em seu estilo sempre
mordaz e irnico, afirma que
se um som tiver a desgraa de no ter um smbolo ou se ele parecer complexo demais, ejetado do sistema: um rudo ou no-musical. Os sons privilegiados que se salvam so arranjados em modos e escalas ou, hoje, em sries2 e se inicia um processo abstrato chamado composio. Isto , um compositor usa os sons para expressar uma idia ou um sentimento ou uma integrao de ambos. No caso de uma idia musical, dizem que os sons em si j no so importantes; o que conta a relao entre eles. Na verdade essas relaes so bem simples: um cnon como brincar de pegador. A fuga um brinquedo mais complicado; mas pode ser quebrada por um nico som: digamos, de uma sirene de bombeiro, ou de um apito de um barco que passa. O mximo que qualquer idia musical consegue mostrar quo inteligente foi o compositor que a teve; e o modo mais fcil de descobrir o que era a idia musical voc se colocar num tal estado de confuso que voc passe a pensar que um som no algo para se ouvir, mas sim, algo para se olhar (CAGE, 1985, p.97).
Cage critica, e com toda a razo, a intelectualizao da experincia
musical, e conclama, principalmente em outros textos, que a arte volte ao que lhe
prprio, vida, e que voltemos a perceber os sons como eles so, destituindo-
os de seu significados culturalmente agregados (o que mais difcil do que se
possa imaginar).
De toda sorte, ao falarmos em compreender uma msica ou uma
seqncia sonora no podemos pensar em termos de d maior significa alegria,
r menor significa tristeza, etc (o que no significa, claro, que no possam ser
acrescentados a essa nota d outros fatores que, com eles sim, possamos falar
numa alegria e numa tristeza). preciso, pois, distinguir o que o em-si sonoro do
que atributo ou, usando a terminologia de Saussure, distinguir no signo sonoro
o significante do significado. Conforme Jakobson,
desde a Antigidade, essa conexo constituiu, para a cincia da linguagem, um eterno problema. O total esquecimento em que, entretanto, o haviam deixado os lingistas do passado recente, pode ser ilustrado pelos freqentes louvores dirigidos pretensa novidade da interpretao que Ferdinand de Saussure fez do signo, particularmente do signo verbal, como unidade indissolvel de dois constituintes o significante e o significado -, quando essa concepo, como
2 Cage refere-se msica serial e ao dodecafonismo, sistemas criados no incio do sculo XX por Arnold Schnberg (durante certo perodo professor de Cage).
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tambm a terminologia na qual se exprimia, fra inteiramente retomada da teoria dos esticos, a qual data de mil e duzentos anos atrs. Essa doutrina considerava o signo (smeion) como uma entidade constituda pela relao entre o significante (smainon) e o significado (smainomenon). O primeiro era definido como sensvel (aisthton) e o segundo como inteligvel (noton), ou ento, para utilizar um conceito mais familiar aos lingistas, traduzvel. Alm disso, a referncia aparecia claramente distinguida da significao pelo termo tynkhanon (JAKOBSON, 1995, p.98).
Uma distino entre o sensvel e o inteligvel no , portanto, nem nova,
nem restrita ao signo verbal. Ao utilizar, porm, tal nomenclatura no mbito
musical (e isso j se tornou comum), estamos tratando a msica como linguagem.
O que nos autoriza a isso? Fala-se em linguagem corporal, linguagem das cores,
linguagem dos sinais etc. Em seu sentido mais amplo, a linguagem poderia ser
vista como uma forma de comunicao e isso, sem dvida, a msica o faz,
independentemente de seu grau de sistematizao e de estruturao.
Os significados atribudos dentro dessa estruturao variam, claro,
conforme a cultura - dificilmente um aborgene australiano ouviria na Nona
Sinfonia uma ode humanidade -, o que nos remeteria velha discusso sobre a
msica enquanto linguagem universal.
De qualquer forma, preciso lembrar que linguagem no o mesmo que
lngua; preciso distinguir entre as relaes intrnsecas dos significantes (no caso,
a produo musical em si) e as possveis associaes a um sistema de
referncias. Da mesma forma, preciso distinguir a significao intrnseca de uma
seqncia musical da reflexo que ela possa vir a provocar (podemos, por
exemplo, refletir sobre os efeitos que a msica produz em ns e formular
verbalmente o que eles nos evocam: por exemplo, uma paisagem, uma atmosfera,
uma imagem, um sentimento).
Tal verbalizao , porm, secundria ao momento da percepo - o que
no quer dizer que no seja necessria numa posterior anlise dessas
percepes. Ela o que chamamos de uma representao. fundamental para a
nossa discusso que se distinga a percepo original da percepo representada.
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Mesmo concordando quanto ao carter pessoal, cultural e histrico da
comunicao, podemos nos perguntar o porqu da associao de um sentimento
ou de uma imagem a uma dada forma musical. Poderamos nos contentar com a
explicao de que h sculos temas tristes so tratados, no sistema tonal3,
preferencialmente no modo menor, e que por isso tendemos a associar o modo
menor tristeza. Mas mesmo no sistema tonal (to codificado que j quase o
poderamos tratar como a uma lngua) os mesmos acordes assumem inmeras
conotaes e nuances diferenciadas, gerando uma complexidade que contradiz o
aparente simplismo da explicao anterior, complexidade essa que se acentua ao
tomarmos outros sistemas como referncia, como a msica atonal, a serial ou a
msica eletrnica.
Seja como for, a msica comunica. Comunica o qu? A abertura do signo
musical plena: imagem acstica no corresponde um significado determinado.
Algum poderia neste momento intervir e argumentar: mas geralmente h um
contedo a ser transmitida pelo msico: se ele toca uma sonata de Mozart,
reconheo os momentos afetuosos, os momentos trgicos, os momentos
patticos, e numa conversa com o intrprete descubro que ele quis passar
exatamente esses sentimentos, ou seja: houve uma mensagem, e ela foi
compreendida.
Correto. Realmente, um bom intrprete deve ter clareza em suas intenes
musicais, atravs das quais exprime sua interpretao da obra. Porm, o que foi
comunicado (no exemplo usado, a afetuosidade, a tragdia, o pattico) estava nos
sons em si ou na inteno do intrprete?
3 A tonalidade um princpio de estruturao musical que relaciona os signos musicais com um centro de convergncia denominado tnica trata-se de um sistema eminentemente ocidental, baseado na hierarquia entre os sons de uma escala e de uma tonalidade (a partir da renascena, privilegiam-se na msica ocidental as tonalidades maiores e menores).
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Vejamos. O compositor faz na partitura diversas anotaes atravs das
quais ele mostra ao intrprete como ele pensa e como ele deseja que aquela
msica seja interpretada. Essas anotaes podem eventualmente ser mal
compreendidas ou mal interpretadas. Se a questo de uma tal incompreenso
da escrita musical residisse meramente na no obedincia s determinaes do
compositor, poderamos supor que um computador faria uma interpretao
perfeita da obra, j que executaria exatamente o que est na partitura.
Comparemos por um momento um computador de ltima gerao, servido dos
mais modernos e completos softwares de msica, a um msico.
Fizemos a experincia (experincia informal e sem nenhum rigor cientfico,
constando aqui, portanto, apenas a ttulo de ilustrao) de submeter uma platia
audio de vrias msicas tocadas ora por um computador, ora por um msico,
sendo que a platia no tinha acesso visual fonte sonora. Obviamente sabiam
quando era um e quando era o outro devido diferena de timbre. Mas a nossa
pergunta platia foi: o que vocs sentiram? Sem exceo, a msica no
computador foi percebida como qualitativamente inferior msica feita pelo
homem fria, impessoal, sem graa, chata, mecnica, sem emoo, quadrada
foram apenas alguns dos termos usados para definir a msica computadorizada.
Segundo os relatos, as pessoas no se sentiram tocadas pela msica vinda da
mquina; reconheceram as obras, mas no houve uma vivncia da experincia
musical, ocorrendo o contrrio com a execuo humana.
Colocando a questo sob outro ngulo: podemos dizer que a ltima sonata
de Beethoven, a Sonata para piano Opus 111, uma grande obra de arte; mas,
executada por um computador, continua sendo uma grande obra de arte?
Obviamente reconheceremos a obra e diremos: esta a Sonata Opus 111 de
Beethoven, que uma grande obra de arte. Mas provavelmente no estaremos
vivenciando essa grandeza atravs do computador. Ao afirmar isso no estamos
condenando a tecnologia ao contrrio: que bom que ela existe! O que nos
interessa aqui buscar a essncia do objeto sonoro, que, acreditamos, no se
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encontra nas notas em si - motivo pelo qual um computador pode decodificar
perfeitamente uma partitura mas que, ao ouvirmos, nos d a ntida impresso de
que falta algo, algo essencial. Insistamos portanto: o que esse algo?
Se olharmos do ponto de vista da preciso tcnica e da fidelidade ao texto,
o computador perfeito, respeitando absolutamente cada valor e tocando cada
nota exatamente no momento certo. E mesmo assim no nos convence
musicalmente. No nos comunica o que gostaramos que tivesse comunicado.
Poderamos perguntar: mas como no comunicou o que deveria ser
comunicado, se a msica foi corretamente executada, nota por nota, e a obra foi
perfeitamente reconhecida?
De onde deduzimos que comunicao artstica se sobrepe outros tipos
de comunicao e informao que no constam da partitura musical, mas que so
to importantes quanto as notas ou talvez mesmo mais (poderamos, nesse
sentido, fazer uma analogia prtica psicoteraputica, na qual a informao
relevante no est necessariamente no que o paciente diz, mas muito mais no
como diz, ou ainda: no que no diz).
A prpria palavra interpretao nos ilumina esse fato: inter petras entre as
pedras. na expressividade humana do gesto que une as notas que reside o
artstico da msica: na abertura entre as notas, que se preenche em ato. esse
ato que assegura a vivncia e a espontaneidade do fazer musical.
Quando falamos em msica falamos em arte, e quando falamos em arte
falamos em criao. A criatividade vulgarmente compreendida como inventar
coisas novas em msica, o compositor considerado o representante por
excelncia da capacidade criativa. Mas ser criativo no significa que todos
devamos tornar-nos compositores nem escritores nem inventores. Trata-se
simplesmente de uma forma de lidar com as coisas e consigo mesmo. No se
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trata de produzir arte, mas de ser artstico. uma ao, no um produto. E
sobre essa ao que pretendemos discutir neste trabalho.
Comeamos perguntando pelo objeto sonoro. O objeto sonoro ,
obviamente, o som. Seu estudo seria, conseqentemente, a acstica. Porm, para
que esse som adquira um sentido (um sentido para mim, para o outro, um sentido
at mesmo em relao aos outros sons), deve ter uma inteno, inteno
expressa no para...
Interessa-nos aqui esse som para a conscincia: como ambos se envolvem.
por isso que no faremos esta discusso a partir da esttica, nem da acstica,
nem da histria, nem da psicologia, mas a partir de uma fenomenologia da
experincia musical. Queremos compreender o objeto sonoro na experincia que
dele temos. Como percebo o som? Atravs do pensamento? Atravs de uma
representao intelectual? Atravs do meu corpo?
Uma vez que o prprio som decorrente do ritmo (o som produzido por
vibraes e freqncias) e que s posso perceb-lo porque tenho um corpo,
comearemos nossa discusso tratando, nos prximos captulos, exatamente
desses dois elementos, bem como de suas relaes com o fenmeno sonoro.
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Parte I Fenomenologia da experincia musical
Captulo 2
Ritmo e metro: espacializao da experincia musical
Provavelmente seja o termo Ritmo um dos mais incompreendidos no mbito
musical. Costuma ser entendido como uma espcie de pulsao, ou seja, como
uma ordenao da msica em batidas ou pulsos - peridicos e regulares (o que
caracteriza, na verdade, a diviso mtrica). Neste captulo, examinaremos mais
detalhadamente essa diferena, bem como suas implicaes, muito mais srias e
profundas do que possa parecer num primeiro momento. Vejamos primeiramente
algumas definies de ritmo no Novo Dicionrio Aurlio da lngua portuguesa:
ritmo . [Do gr. rhytms, 'movimento regrado e medido', pelo lat. rhytmu.] S. m. 1. Movimento ou rudo que se repete, no tempo, a intervalos regulares, com acentos fortes e fracos: o ritmo das ondas, da respirao, da oscilao de um pndulo, do galope de um cavalo. 2. No curso de qualquer processo, variao que ocorre periodicamente de forma regular: o ritmo das mars, das fases da Lua, do ciclo menstrual. 3. Sucesso de movimentos ou situaes que, embora no se processem com regularidade absoluta, constituem um conjunto fluente e homogneo no tempo: o ritmo de um trabalho. 4. Nas artes, na literatura, no cinema, etc., a disposio ou o desenvolvimento harmonioso, no espao e/ou no tempo, de elementos expressivos e estticos, com alternncia de valores de diferente intensidade: o ritmo de uma escultura, de uma pea de teatro. 5. Arte Pot. Num verso ou num poema, a distribuio de sons de modo que estes se repitam a intervalos regulares, ou a espaos sensveis quanto durao e acentuao. 6. Ms. Agrupamento de valores de tempo combinados de maneira que marquem com regularidade uma sucesso de sons fortes e fracos, de maior ou menor durao, conferindo a cada trecho caractersticas especiais. 7. Ms. A marcao de tempo prpria de cada forma musical: ritmo de marcha, de valsa, de samba. 8. Ms. O conjunto de instrumentos de percusso e outros similares que marcam o ritmo (6) na msica popular; bateria. 9. Bras. O conjunto de ritmistas [v. ritmista (1 e 2)]. Ritmo circadiano. Biol. 1. Ritmo espontneo, prprio de cada espcie animal ou vegetal, a partir de certa fase evolutiva, observado em condies ambientais constantes, mas no influencivel por iluminao, e que se manifesta de acordo com o momento do dia, por variaes peridicas das funes biolgicas (respirao, circulao, digesto, secrees endcrinas, etc.); pode ser observado at mesmo em nvel celular. Ritmo de galope. Card. 1. Desdobramento da primeira bulha cardaca, de modo que, pela ausculta, se ouvem trs rudos cardacos, separados por
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pausas; rudo de galope. Em ritmo de Braslia.
preciso esclarecer primeiramente nessas definies por que idia
original de ritmo enquanto movimento foram acrescentadas as idias de
periodicidade e de regularidade, bem como esclarecer de que forma e sob quais
parmetros esses termos devem ser compreendidos. O movimento regrado e
medido do rhytms pode facilmente induzir o leitor a uma concepo simtrica de
tempo e de espao, mas a possvel mensurabilidade destes no implica nem
numa regularidade em termos de igualdade nem numa regularidade em termos de
simetria. Segundo Lorenzo Mammi,
ritmo uma palavra grega que deriva de reo, fluir. No seu primeiro e mais amplo significado, o ritmo portanto a maneira com que um evento flui no tempo. No h nesse termo nenhuma referncia necessria a regularidades peridicas ou a relaes matemticas entre intervalos. Todavia, o ritmo se torna mais interessante, para o pensamento grego de origem pitagrica ou platnica, na medida em que se descobre nele uma regularidade e uma proporo que o aproxime dos movimentos perptuos. A teoria rtmica dos gregos ser portanto um esforo contnuo para a regularizao e a matematizao das duraes. (...) Os latinos absorveram a teoria musical grega numa fase j avanada de matematizao, tanto que cometeram um erro de traduo revelador: interpretaram a palavra ritmos no como um derivado do verbo reo, fluir, mas como uma deformao do substantivo artmos, nmero, e verteram no latim numerus. A conseqncia foi uma mudana de perspectiva: para os gregos, os valores numricos eram algo que podia e devia ser extrado do fluir dos eventos, mas no era dado de antemo; para os latinos, ao contrrio, so rtmicas apenas aquelas duraes que j se apresentam como quantidades regulares, numricas. Todos os movimentos irregulares ficam com isso fora do campo do conhecimento (MAMMI, 1994, p.46).
Esse fato de fundamental importncia para que possamos compreender a
dificuldade existente em relao compreenso do ritmo, termo geralmente usado
muito mais em sua concepo de regularidade (artmos) que de fluxo (reo). No
caso da msica, a simetria perfeita entre a durao dos pulsos apenas aparente.
Mesmo um elemento rtmico que se repita de forma aparentemente igual nunca
exatamente igual. Como j foi apontado por Herklito (fragmento 91),
em rio no se pode entrar duas vezes no mesmo, nem substncia mortal tocar duas vezes na mesma condio; mas pela intensidade e rapidez da mudana dispersa e de novo rene (ou melhor, nem mesmo de novo nem depois, mas ao mesmo tempo), compe-se e desiste, aproxima-se e afasta-se (HERKLITO, 1978, p.88).
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No caso da msica, a iluso de simetria especialmente evidente na
notao musical: escritos, todos os valores e duraes so aparentemente iguais
entre si: semibreves, mnimas, colcheias etc. Uma srie de fatores intervm,
porm, durante a execuo, diferenciando-os mesmo que imperceptivelmente.
Uma igualao na prtica entre as duraes musicais consideradas
teoricamente como iguais no nem possvel nem mesmo desejvel, pois as
sutis diferenciaes, conscientes ou inconscientes, desejadas ou involuntrias,
so na verdade responsveis por um incalculvel valor informativo e expressivo. A
simetria perfeita entre as duraes musicais acarretaria em total redundncia e
conseqente monotonia e empobrecimento do discurso musical. Todo discurso,
seja ele oral ou musical, evita sistematicamente a repetio vazia de novas
informaes (a no ser nos raros casos onde precisamente a falta de novas
informaes a informao desejada, ou onde a repetio tem uma funo
esttica por si, como no caso da msica minimalista oua-se Steve Reich, por
exemplo).
E realmente, durante sculos a msica ocidental foi regida pelos preceitos
da retrica, da ars bene loquendi, tanto que falamos em retrica musical (o ponto
de partida quase sempre a retrica de Aristteles, assim como de Ccero,
Quintiliano, Bocio e outros). A retrica num discurso busca, entre outras coisas,
meios para a obteno de um bom equilbrio entre informao e redundncia
pois, assim como a falta de informaes pode incorrer em monotonia, o excesso
pode acarretar confuso.
A fim de garantir tal equilbrio, Mattheson, em sua obra Der vollkommene
Capellmeister (O exmio mestre de capela), de 1739, uma das principais fontes
sobre retrica musical, expe como componentes de um discurso o inventio (o
contedo, as idias), a dispositio ou elaboratio (a organizao das idias), a
decoratio (a ornamentao do discurso) e a pronuntiatio ou elocutio (a execuo, a
interpretao do discurso). Em outras palavras, tambm se poderia dizer que
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a retrica um conjunto de desvios suscetveis de autocorreo, isto , que modificam o nvel normal de redundncia da lngua, transgredindo regras, ou inventando outras novas. O desvio criado por um autor percebido pelo leitor graas a uma marca, e em seguida reduzido graas presena de um invariante. O conjunto dessas operaes, tanto as que se desenvolvem no produtor como as que tm lugar no consumidor, produz um efeito esttico especfico, que pode ser chamado ethos e que o verdadeiro objeto da comunicao artstica (DUBOIS, 1974, p.126).
na sutil diferenciao das duraes e nfases do discurso que
encontramos a expresso artstica em msica. O que e o como da comunicao
se combinam num grande complexo informativo, no qual o como assume uma
funo essencialmente expressiva e qualitativa (na verdade, o que e o como
fundam-se mutuamente na expresso, como veremos).
Ao falarmos em diferenciao das duraes estamos nos referindo a
dilataes e contraes temporais: a expresso requer no discurso diferenciaes
quantitativas - ora mais, ora menos tempo e qualitativas. nesse sentido que
podemos falar num carter temporal do discurso.
O desafio ltimo, tanto da identidade estrutural da funo narrativa quanto da exigncia da verdade de toda obra narrativa, o carter temporal da experincia humana. O mundo exibido por qualquer obra narrativa sempre um mundo temporal. Ou: o tempo torna-se tempo humano na medida em que est articulado de modo narrativo; em compensao, a narrativa significativa na medida em que esboa os traos da experincia temporal (RICOEUR, 1994, p.57).
Repetimos: a narrativa significativa na medida em que esboa os traos
da experincia temporal. Ricoeur nos fala em experincia temporal; o tempo
experienciado, o tempo vivido (expresso to querida da fenomenologia). As
variaes temporais (qualitativas e quantitativas) da narrativa no so mero
ornamento, mas fazem parte integrante do seu contedo.
Mas e quanto a esse tempo, que se vive: que tempo esse? o tempo do
relgio, o tempo psicolgico ou um terceiro tempo, algo como um tempo em si?
Podemos dizer que a msica se estende no tempo ou seria mais apropriado dizer
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que, porque a msica se estende, h tempo? Perguntas delicadas, que vm
entretendo h sculos filsofos e cientistas.
Comecemos considerando a msica no tempo a msica no deixa de ser
uma narrativa, e, assim como esta, se estende no tempo. por isso que podemos
dizer que uma msica dura sete minutos enquanto outra dura quarenta, sendo a
primeira relativamente curta e a segunda relativamente longa, assim como se
pode dizer o mesmo de um discurso ou de uma pea teatral ou mesmo de um
filme. Nesses casos, h um tempo concreto de enunciao, um tempo mensurvel
- o tempo do relgio; o enunciador precisou de um tempo x para transmitir a
mensagem e o observador/ouvinte precisou desse mesmo tempo para receb-la.
O mesmo no se pode dizer do tempo psicolgico, onde obviamente os
sete minutos de uma pea no so igualmente longos para dois ou mais
ouvintes/observadores: uns diro que o tempo passou rpido, outros diro que o
tempo demorou a passar. Sobre isso a relatividade e a psicologia j nos deram
numerosas anlises.
A questo que nos interessa aqui no simplesmente a constatao
(bvia) da relatividade da percepo temporal, mas sim compreender como o
fenmeno temporal e o fenmeno perceptivo se relacionam. Ou ainda:
analisar o tempo no tirar as conseqncias de uma concepo preestabelecida da subjetividade; ter acesso, atravs do tempo, sua estrutura concreta (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 550).
Ao tentarmos compreender o tempo na msica, precisaremos distinguir
entre dois termos: ritmo e metro, o metro enquanto medida objetiva e mensurvel
do tempo, o tempo do relgio (Kronos), e o ritmo enquanto movimento expressivo
no espao originando um tempo prprio, comumente denominado subjetivo, mas
que, cremos, tambm objetivo, e no psicolgico, sendo sua objetividade
baseada, porm, em outro tempo que no o cronolgico um tempo ao qual
poderamos talvez chamar de Ain.
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Nome prprio, Ain , na mitologia grega, filho de Kronos e Filira. Enquanto
nome comum, ain pode assumir dois sentidos: o primeiro o de tempo sem
idade, eternidade, que posteriormente se associou ao aevum latino; o segundo
o de medula espinhal, substncia vital, esperma, suor. A entidade alegrica
pode, segundo Jos Cavalcante de Souza em sua traduo do termo tempo nos
fragmentos de Herklito (1978, p.84), ser compreendida nos dois sentidos. Porm
no nos interessa tentar batizar cada um desses tempos com algum nome, de
forma que no nos utilizaremos de nenhuma espcie de contraposio entre
Kronos e Ain, contraposio que envolveria o risco de uma simplificao
perigosa. Mais til, nos parece, partir de nossas experincias cotidianas do
tempo, talvez comeando pelo tempo que nos mais costumeiro: o tempo do
relgio.
Que experienciamos ns do relgio sobre o tempo? O tempo algo no qual um ponto-agora pode ser fixado, de tal forma que sempre h dois pontos temporais, um antes, outro depois. Nisso no esto distinguidos no tempo um ponto de agora do outro. Ele enquanto agora o possvel antes de um depois, enquanto depois o depois de um antes. (...) Medida nos d o de-quando-at-quando. Um relgio mostra o tempo agora so nove horas; trinta minutos desde que aquilo ocorreu. Em trs horas ser meio-dia. Porm o tempo agora, no qual olho para o relgio: o que esse agora? (...) Disponho eu sobre o agora? Sou eu o agora? qualquer outro o agora? Ento seria o tempo eu mesmo, e qualquer outro seria o tempo. (...) Sou eu o tempo, ou apenas aquele que o diz? (HEIDEGGER, 1995, p.9).
Em todas essas perguntas aparece um eu: o tempo para mim. Como
bem observou Merleau-Ponty, se a metfora de Herklito sobre o rio funcionou at
hoje, foi porque sempre colocamos um observador margem desse rio
testemunhando seu curso. O tempo supe uma viso sobre o tempo; ele no
um processo real, nem uma sucesso efetiva que eu me limitaria a registrar; ele
nasce de minha relao com as coisas (MERLEAU-PONTY, 1994, pg.551).
A sucesso efetiva que eu me limitaria a registrar refere-se percepo do
tempo relacionada mudana: sei que passou o tempo porque o sol no est
mais no mesmo lugar; atravs do movimento e da mudana que tenho a
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percepo da passagem e, conseqentemente, do tempo. Quando Aristteles
relacionou tempo com movimento, porm, no escreveu que o tempo era o
movimento; ele escreveu que o tempo era uma das determinaes essenciais do
movimento, isto , sua medida. Se o mesmo movimento acontece com duraes
diferentes, simplesmente ele no mais o mesmo movimento (CASTORIADIS,
1992, p.268). No pode ser o mesmo movimento, pois cada movimento envolve
outra relao, outra temporalidade, outra expresso.
A expresso se d no movimento poderamos talvez at dizer: ela o
movimento. Compreender o movimento ter acesso s nossas relaes
espaciais, compreender nossa vida como espacialidade expressiva. A prpria
vida, segundo Mrio de Andrade,
se manifesta pelo movimento. O homem para compreender o movimento o organizou. O organizou de duas maneiras: uma abstrata consciente a que a gente d o nome de tempo (minutos, horas, dias, semanas, etc.) e outra expressiva subconsciente que tem o nome de ritmo. O tempo a organizao abstrata do movimento. O ritmo a organizao expressiva do movimento (ANDRADE, 1983, p.78).
No trecho acima, Mrio de Andrade diferencia ritmo de tempo, este ltimo
subentendido por ele como metro, como diviso regular, peridica, simtrica,
cronolgica. O metro define uma quantidade, um nmero. Vou de uma nota
outra, por exemplo, a cada segundo, ou a cada meio segundo. J o ritmo implica
em que eu saiba como ir de uma nota outra: com que tenso, com que carter,
com que intensidade (com que intencionalidade!), e com que durao, pois, por
motivos expressivos, algumas notas precisam de mais tempo que outras (em
msica, o termo tcnico para essa flutuao do tempo rubato, que, em italiano,
significa roubado: rouba-se uma certa durao do tempo provocando uma
acelerao e conseqente intensificao e compensa-se depois desacelerando,
devolvendo o tempo roubado. O termo rubato caracterizou-se como tal durante o
sculo XIX, mas na prtica existe, certamente, desde sempre no perodo
barroco, por exemplo, era denominado aggica).
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justamente no ir de uma nota outra que reside o grande problema
musical, e no no trabalho braal do produzir notas. No caso do piano, mesmo
um beb tem fora suficiente para abaixar as teclas. A dificuldade musical no se
encontra no baixar as teclas nem nas notas isoladas, mas sim entre as notas, na
relao de uma para com as outras (veremos mais detalhadamente no captulo 4
desta dissertao a questo da relao entre o todo e as partes, tratada por
Husserl na sua Terceira Investigao Lgica - Sobre a teoria do todo e das partes
-, onde ele explicita seu conceito de fundao, no qual uma parte est fundada na
outra, havendo uma no-independncia entre as partes, qual ele chama de
relao de fundamentao ou relao de enlace necessrio).
no ir de uma nota outra - subentende-se nesse ir um deslocamento
espacial e temporal - que observamos o movimento. Alis, importante que
ampliemos nosso conceito de movimento, no considerando como tal apenas o
deslocamento fsico; qualquer inteno expressiva j realiza em si um movimento.
Podemos, portanto, dizer que a expressividade em msica no se encontra nas
notas isoladas, mas no movimento que as une. nesse sentido que podemos
falar numa espacializao da experincia musical.
Na verdade, tal espacializao j se encontra explcita no prprio
movimento de uma onda sonora:
o som o produto de uma seqncia rapidssima (e geralmente imperceptvel) de impulses e repousos (que se representam pela ascenso da onda) e de quedas cclicas desses impulsos, seguidas de sua reiterao. A onda sonora, vista como um microcosmo, contm sempre a partida e a contrapartida do movimento num campo praticamente sincrnico (j que o ataque e o refluxo sucessivos da onda so a prpria densificao de um certo padro do movimento, que se d a ouvir atravs das camadas de ar). No a matria do ar que caminha levando o som, mas sim um sinal de movimento que passa atravs da matria, modificando-a e inscrevendo nela, de forma fugaz, o seu desenho (WISNIK, 1993, p.15).
O som, enquanto sinal de movimento propagando-se no ar, pode assim ser
tambm compreendido entre os fenmenos espaciais (muitos gostam at mesmo
de ver, metafrica e poeticamente, o som como fruto da dana: a dana da
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matria, o movimento gerando a msica). E, por mais parecidos que sejam esses
movimentos de onda, nunca so exatamente iguais: mesmo que vrios
instrumentos toquem uma mesma nota l, cada uma apresentar diferenas (s
vezes sutis, s vezes nada sutis) entre si.
O estudo da acstica nos mostra que justamente na impreciso de uma
onda sonora que residem seu carter, sua cor, seu timbre; os sinais sonoros no
so simples e unidimensionais, mas complexos e sobrepostos. As diferentes
freqncias se alternam e se misturam, freqncias que no escutamos como tais,
mas cujo produto reconhecemos enquanto timbre. Os sons
entram em dilogo e exprimem semelhanas e diferenas na medida em que pe em jogo a complexidade da onda sonora. o dilogo dessas complexidades que engendra as msicas (Idem, Ibidem, p.23).
A escrita musical simplifica por razes de praticidade a real complexidade
da msica: uma notao absolutamente precisa, que pudesse refletir fielmente
todas as sutilezas rtmicas e expressivas de uma msica, seria praticamente
impossvel de se escrever e mais impossvel ainda de se ler. Tambm em funo
da liberdade do intrprete feita tal simplificao, pois justamente nessa
complexidade de assimetrias e imperfeies que se expressa o pessoal, o
artstico individual e a espontaneidade do momento.
Encontramos j na antiga Babilnia tentativas de registrar de forma
permanente a experincia musical, tentativas que foram sendo aperfeioadas
pelos hebreus, pelos gregos e pelos romanos. Mas como transmitir atravs de
smbolos num papel uma experincia to complexa e rica como a informao
musical? Pois uma informao musical envolve, como estamos vendo, um
complexo informativo muito maior que a simples combinao altura/
durao/intensidade.
Uma significativa tentativa de sistematizao da escrita musical foi feita na
Idade Mdia pelo Papa Gregrio, entre os anos 590 e 604, sistematizao que
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teve o intuito de unificar a liturgia catlica, dando origem ao que hoje conhecemos
como canto gregoriano. Nele a notao se d mediante neumas (em grego, sinal,
gesto), que remontam quironomia e aos signos da prosdia grega (esses signos
mostravam combinaes de duraes maiores [--] e menores [u]; as combinaes
mais importantes eram: iambos: u -- ; trochaeos: -- u ; anapaest: u u -- ; dactylos:
-- u u ; spondeos: -- -- ; baccheos: u -- -- ; creticos: -- u -- ; ionicos: u u -- -- ;
choriambos: -- u u -- ).
Nesse tipo de notao, a diferenciao e a combinao entre duraes
curtas e longas era apenas aparentemente um sistema restrito de possibilidades;
no nos esqueamos que, em primeiro lugar, no havia uma definio exata de
quo longo era o som longo, nem de quo curto era o som curto; em segundo
lugar, a msica era sempre elaborada sobre um texto, de forma que era
inevitavelmente adaptada s necessidades declamatrias do cantor ou do orador.
Essas necessidades podiam ser de cunho tcnico (respirao), estrutural
(pontuao e pausas para melhor compreenso do texto), expressivas (nfases
interpretativas) ou mesmo acidentais.
O primeiro instrumento humano foi sem dvida alguma a voz; canto e fala
provavelmente no se encontravam separados em sua origem (entre as
conjecturas sobre a origem das lnguas esto as onomatopias, as imitaes dos
sons da natureza). Seja qual for a origem, o fato que as lnguas vo muito alm
das imitaes, o que no as desprende dos sons e melodias naturais, pois no h
lngua que no contenha em si uma melodia ou uma mnima entonao que seja.
Atravs dela reconhecemos expresses e sentimentos, reconhecemos a
procedncia da pessoa pelo seu sotaque, reconhecemos estados conscientes e
inconscientes da pessoa que fala (geralmente na melodia da voz que, dizemos,
as pessoas se traem e revelam seus verdadeiros sentimentos).
Joachim Quantz, um dos maiores tratadistas e tericos musicais do perodo
barroco, fez importantes comparaes entre a arte musical e a arte da
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declamao em seu tratado Versuch einer Anweisung, die Flte traversire zu
spielen (Ensaio de um mtodo para se tocar a flauta transversa), de 1752:
a execuo musical pode ser comparada ao discurso de um orador. Ambos, o orador e o msico, tm o mesmo objetivo: conquistar os coraes, excitar ou acalmar as paixes e transportar o ouvinte ora em um, ora em outro afeto. para os dois de grande utilidade ter conhecimento sobre os procedimentos um do outro. Exige-se do orador que ele tenha uma voz forte e clara, e uma dico ntida, precisa e pura; que ele no confunda nem engula letras; que ele tenha uma agradvel variedade na voz e na pronncia do idioma; que ele evite monotonia no discurso; de preferncia que o som das slabas e das palavras seja ora forte e ora suave, ora rpido e ora lento; que eleve sua voz nas palavras que exijam maior intensidade e faa o contrrio nas outras; que ele expresse cada afeto com outro timbre; que ele saiba diferenciar de forma apropriada o tom do seu discurso dependendo do local, dos ouvintes e do contedo do discurso, seja ele um discurso fnebre, festivo, engraado ou qualquer outro; e, finalmente, que ele assuma exteriormente uma boa postura (QUANTZ citado por BADURA-SKODA, 1990, P.136).
Em todos os conselhos de Quantz, um elemento em comum aparece: a
mudana. O empenho total em evitar a repetio redundante, a repetio bvia,
ou, mesmo em no se tratando de uma repetio, em evitar a todo custo uma
previsibilidade no discurso. A qualidade de cada tempo deve ser diferenciada,
vivenciada de forma nica, cada momento inscrevendo seu prprio tempo no
tempo, expresso de um ser no tempo, expresso que, como veremos, o prprio
tempo (captulo 5, Expresso e Temporalidade).
Nossa percepo de durao est intimamente ligada ao movimento e
mudana. Se o tempo cronolgico tem suas relaes estruturadas em movimentos
invariveis e determinados, os movimentos expressivos justamente por serem
expressivos necessitam de tempos variveis, no apenas na durao (durao
no sentido quantitativo) como tambm na qualidade, na intensidade desses
diversos tempos. Pois a relao do movimento expressivo essencialmente com
o ser, no com o relgio. O movimento expressivo pode at submeter-se a uma
mtrica musical, aparentando uma coincidncia entre metro e ritmo, mas so
sempre diferentes.
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Alis, importante observar que o rigor da mtrica musical no inibe de
forma alguma a liberdade rtmica, muito pelo contrrio: graas imposio de
uma estrutura regular que a mudana pode ser reconhecida enquanto mudana e
que o ethos pode ser reconhecido enquanto ethos.
A liberdade e a impreciso (espontaneidade na variao dos movimentos)
do ritmo no devem de forma alguma induzir-nos a uma idia de caos; por mais
paradoxal que parea, quanto maior a limitao, maior a liberdade.
Um caso verdico do meio musical (que acabou se transformando numa
anedota, mas que nos altamente instrutivo), o relato do compositor norte-
americano John Cage, que fala do episdio no qual uma aluna lhe apareceu certo
dia querendo aprender a compor. Como primeira lio, pediu ento a ela que
compusesse uma msica utilizando apenas uma nota. Uma semana depois ela
retornou sem ter feito a tarefa, alegando que apenas uma nota era demasiado
pouco material para uma composio. Cage respondeu-lhe que, sendo assim,
seria melhor que ela desistisse, pois se no conseguira compor com uma nota,
como pretendia compor com doze (CAGE, 1985, p.145)?
A limitao que a diviso mtrica impe ao ritmo apenas aparente. Sua
presena impede a instabilidade determinando regras, que o ritmo ento
infringe, infrao que percebida como mudana expressiva. Na verdade no h
regras nem infraes, apenas um sistema de equilbrio entre estrutura e liberdade,
entre disciplina e espontaneidade.
Outro exemplo da relao entre estrutura e liberdade encontra-se na
cerimnia do ch japonesa: trata-se de uma cerimnia com regras muito
precisamente definidas, to definidas que aparentemente no deixam margem
alguma espontaneidade. Joseph Campbell, perito em mitologias comparadas,
escreve a esse respeito:
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pois assim como a arte imita a ao da natureza, assim tambm a cerimnia do ch. A natureza gera espontaneidade, mas ao mesmo tempo tambm ordem. A natureza no , em primeira linha, nenhum mero protoplasma. E quanto mais complexa a ordem, tanto mais abrangente e forte pode vir luz a espontaneidade. A cerimnia mestra do ch , portanto, a maestria no manuseio da liberdade (impulso prprio) no campo de relaes de uma cultura altamente complexa, rgida e com regras claras, na qual, por tudo que a um sucede, se deveria sentir apenas gratido, to logo se esteja disposto a viver como ser humano (CAMPBELL, 1996, p.578).
Entre as mil folhas de uma rvore no encontramos duas iguais, por mais
parecidas que sejam; entre as milhares de formigas de um formigueiro no
encontramos duas iguais, por mais iguais que paream. Nossas duas orelhas no
so iguais nem totalmente simtricas, o mesmo ocorrendo com nossos braos,
nossas pernas, nossos olhos.
Seguindo essa lgica, constatamos que a diviso mtrica exige o
impossvel: exige que duas notas de mesma durao tenham realmente a mesma
durao. Tambm os professores de msica exigem isso veementemente de seus
alunos, obrigando-os para tanto a horas interminveis de exerccios e treinos. No
que a insistncia com o senso mtrico esteja errada! Mas trata-se simplesmente
de um artifcio pedaggico a fim de que o aluno tenha uma conscincia muito clara
sobre a estrutura em que se encontra, exatamente para que possa ento mud-la,
conforme suas necessidades expressivas (a liberdade rtmica pressupe uma
conscincia mtrica).
Dependendo do estilo musical, seja em msica erudita (uma obra
renascentista ou barroca, clssica ou romntica, impressionista ou expressionista),
seja em msica popular (uma obra de jazz ou bossa nova, uma cano folclrica
ou rock), cada um desses estilos pertence a uma tradio que define parmetros e
limites para a liberdade rtmica. O que no quer dizer que tais parmetros sejam
rgidos ou definitivos! Infelizmente, vrios mtodos oferecem atualmente
receiturios perigosamente simplificados e cannicos para a interpretao dos
diversos estilos (Bach se toca assim, Mozart assado). Atravs de tais
ensinamentos, muitas vezes os alunos so levados a idias errneas, como por
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exemplo: que o estilo romntico permite uma flexibilidade rtmica maior que o
estilo barroco o que no correto! Trabalha-se com clichs, perigosos para a
compreenso musical, levando freqentemente os alunos a idias estereotipadas
sobre os diferentes estilos e fazendo com que se atenham a receitas de como
tocar, quando o processo deveria ser muito mais de pesquisa diferenciada para
cada obra. No se pode dizer Bach se toca assim; cada obra de Bach tem
peculiaridades muito prprias que obedecem a relaes internas, constituindo
assim um organismo nico.
Seria ento desnecessrio o estudo da histria da msica? De forma
alguma! fundamental que se conhea a fundo o estilo de cada poca, bem como
os costumes, a cultura, a biografia do compositor, as artes contemporneas a ele -
a literatura, a pintura, o teatro, a dana etc. Mas uma iluso crer que tais
conhecimentos nos faro entender uma determinada obra. como estudar o
comportamento de um brasileiro e achar que se conhece a partir da o
comportamento de todos os brasileiros, pelo simples fato de que vivem no mesmo
pas e na mesma poca.
Nesse sentido, a fenomenologia prestou-nos um enorme favor ao
apresentar como mtodo o no se contentar nunca com os conhecimentos
descobertos e guardados do passado: a compreenso deve ser sempre nova e
atual. Existe uma histria, porm ela sempre tem que comear de novo. A
fenomenologia no pode ter seguidores porque preciso sempre chegar a novas
visualizaes, a novas anlises do fenmeno; o fenmeno no pode ser
conservado, ele tem que ser sempre revisto, sempre recriado. A literatura
fenomenolgica
somente pode ter um carter de exemplificao e de ilustrao do mtodo fenomenolgico; falar de um acervo de conhecimentos fenomenolgicos to absurdo como dizer que o conhecimento das letras do alfabeto significa saber ler (GREUEL, 1996, p.12).
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Nosso contato com a coisa deve ser um contato com a coisa, no com a
idia da coisa (da a insistncia fenomenolgica num retorno s coisas mesmas).
Alis, a palavra contato uma palavra muito interessante para os propsitos deste
trabalho, pois contm a idia do sentir enquanto percepo tctil: com tato. No
se trata, portanto, de uma tentativa de compreenso mental, representacional do
fenmeno, mas antes de uma intuio (ou, melhor, compreenso) fsica, corprea,
motriz. preciso transcender o senso comum, ou, como Husserl costumava dizer,
transcender a atitude natural em relao s coisas. De acordo com Heidegger,
esse modo de pensar, que h muito se tornou corrente, antecipa-se a toda a experincia imediata do ente. A antecipao veda a meditao sobre o ser do ente, de que cada vez se trata. assim que os conceitos dominantes de coisa nos barram o caminho. (...) Mantendo afastadas as antecipaes e os atropelos desse modo de pensar, deixar a coisa, por exemplo, repousar no seu ser-coisa. Que haver de mais fcil do que deixar o ente ser o ente que ? Ou com esta tarefa no estaremos perante o mais difcil, sobretudo se um tal projeto deixar ser o ente como ele representar exatamente o contrrio da indiferena que vira as costas ao ente a favor de um conceito de ser que no foi posto prova? Devemos voltar-nos para o ente, pens-lo em si mesmo, no seu ser, mas, ao mesmo tempo, deix-lo repousar em si mesmo, na sua essncia. (...) O que h de mais discreto, a coisa, o que mais obstinadamente escapa ao pensar. (...) necessrio que caiam primeiro as barreiras do que bvio e que os ilusrios conceitos habituais sejam postos de lado. (...) Mas a obra alguma vez acessvel em si? Para tal se conseguir, seria preciso retirar a obra de todas as relaes com aquilo que outro que no ela, a fim de a deixar repousar por si prpria em si mesma. Mas isso que visa j o mais autntico intento do artista. Atravs dele, a obra deve ser libertada para o puro estar-em-si-mesma. Justamente, na grande arte, e s ela est aqui em questo, o artista permanece algo de indiferente em relao obra, quase como um acesso para o surgimento da obra, acesso que a si prprio se anula na criao (HEIDEGGER, 1991, p.23 e 31).
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Sobre a questo do artista permanecer algo de indiferente em relao
obra, a que se refere Heidegger no texto acima, falaremos posteriormente (no se
trata de uma indiferena gerada pela passividade, mas de uma ao que visa a
no-ao: um deixar acontecer).
Que caiam as barreiras do bvio. Como no tratar como bvio aquilo que
nos sucede continuamente? No bvio que o sol se ponha diariamente? Como
evitar que a presena do parceiro num casamento de vinte anos no se
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transforme numa presena bvia? Como fazer para que as repeties no
amorteam nossa capacidade de percepo?
Ao deixar que as coisas repousem nelas mesmas no estamos nos
rendendo ao bvio nem tautologia (onde a=a), mas efetuando uma reduo do
objeto, reduo aqui pensada nos moldes fenomenolgicos de acordo com
Husserl (vide captulo 5)).
Um dos primeiros autores a sugerir uma espcie de reduo no mbito
musical foi Edward Hanslick, em seu livro Do belo musical, de 1854:
as idias expressas pelo compositor so, antes de mais nada, puramente musicais. sua fantasia, apresenta-se uma bela melodia determinada. Esta no deve ser nada alm dela mesma (HANSLICK, 1989, p.146).
Hanslick nos mostra assim uma viso praticamente fenomenolgica da
msica. Lembremos que a poca desse escrito ainda a poca dos grandes
arroubos do alto romantismo, sendo portanto compreensvel o desejo do autor de
enxugar a msica dos excessos e do sentimentalismo, bem como dos clichs
musicais do tipo tonalidades menores so tristes, tonalidades maiores so
alegres, escalas cromticas descendentes representam a dor, ritmos que
lembrem o toque do clarim so triunfais; antes de qualquer associao, seja uma
associao cultural, seja uma associao com uma tradio, sons so sons.
Pode parecer natural, principalmente aps tantas audies, o tema da
Quinta Sinfonia de Beethoven: sol sol sol mi bemol. To natural que j nem
nos perguntamos como devem soar essas quatro notas, ou mesmo se poderiam
soar diferente. No nos fazemos perguntas tais como: em que diferem as trs
notas sol?; com que intensidade devo tocar cada uma dessas notas?; existe uma
hierarquia de intensidade entre elas que direcione o fraseado?; qual o gesto mais
apropriado para dar-lhes o carter apropriado?; qual a velocidade apropriada para
que a frase soe dramtica?; e se for feito em outras velocidades, como fica? A
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tendncia energtica do tema aumenta ou diminui em direo ao mi bemol?;
acelera ou desacelera?
Perguntas como essas e muitas outras ampliam (ou amplificam, como diria
C. G. Jung) as perspectivas e possibilidades de interpretao em relao a algo
to simples como um tema de quatro notas. O tema adquire uma profundidade e
uma pluridimensionalidade antes no cogitada. Criamos um dilogo com o tema:
fazemos perguntas, propomos alternativas e novas possibilidades, o olhamos de
baixo, de cima e dos lados, experimentamos, inventamos. Aps tal processo
desenvolvemos com o tema uma familiaridade que antes no tnhamos,
familiaridade que nos permite optar por uma interpretao com conhecimento de
causa, e no porque foi a nica possibilidade que nos ocorreu, muito menos por
estarmos acostumados a ouvir a msica desta ou daquela forma. Desenvolvemos
assim, de forma lenta e progressiva, uma compreenso das relaes expressivas,
temporais e motrizes que envolvem a obra e sua execuo, relaes sempre
abertas e flexveis, natureza de sua liberdade.
No nos basta, porm, afirmar simplesmente que o ritmo tem uma enorme
liberdade de movimento atravs do qual se dissocia do metro: essa liberdade deve
ser conquistada e merecida; devemos saber usar a liberdade sem abusar dela.
Esse o grande diferencial de uma interpretao profissional e madura de uma
interpretao aleatria ou amadora: a compreenso e a vivncia da relao entre
expresso e movimento.
Por que falamos em compreenso e no em controle, como estamos
acostumados dos livros de tcnica instrumental? Como veremos no captulo 3
(Ritmo e Motricidade), controlar o movimento no significa que nossos
movimentos se do perante ordens e comandos mentais, mas sim que h uma
intencionalidade e uma pr-intencionalidade que coordenam, harmnica e
organicamente, esses movimentos. Ao tocar h, antes e durante a execuo, uma
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inteno musical que guia os movimentos; a interpretao est na relao de
mtua fundao entre gesto e inteno musical.
Convm relembrar aqui mais uma vez a etimologia da palavra
interpretao: inter petras entre as pedras. A msica no est nas notas, mas
entre as notas. Est no espao entre elas, no vazio, campo de possibilidades,
nada do qual emerge e se cria o ser.
Mas como devemos compreender esse vazio, esse nada? No ensaio
Merleau-Ponty: obra de arte e filosofia, Marilena Chau fala do Nada como uma
presena habitada por uma ausncia que no cessa de aspirar pelo preenchimento e que, a cada plenitude, remete a um vazio sem o qual no poderia vir a ser (CHAU, 2002, p.156).
Ou ainda Sartre, em O ser e o nada:
no movimento de interiorizao que atravessa todo o ser que o ser surge e se organiza como mundo, sem que haja prioridade do movimento sobre o mundo ou do mundo sobre o movimento. Mas esta apario do si-mesmo para alm do mundo, quer dizer, alm da totalidade do real, uma emergncia da realidade humana no nada. somente no nada que pode ser transcendido o ser (SARTRE, 1998, p.59).
Causa-nos uma certa confuso tentar pensar a realidade desse vazio - se
que um vazio. Seria o vazio um espao sem nada dentro, pronto para ser
ocupado por objetos fsicos? Esbarramos aqui no problema da materialidade do
espao-tempo. Em relao a isso, Einstein
quis mostrar que o espao-tempo no necessariamente algo a que possamos atribuir uma existncia separada e independente dos objetos da realidade fsica. Objetos fsicos no esto no espao. Estes objetos esto espacialmente estendidos. Assim, o conceito de espao vazio perde seu significado (EINSTEIN, 2000, p.7).
Tambm Heidegger pergunta pelo espao da presena: que lugar esse
do ser-a (Dasein)? o a um espao real, material, ou apenas uma distenso da
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alma, com diria Agostinho? Ou o a define antes um tempo, um ser-a-no-tempo,
nesse tempo e no noutro?
O ser-a (Dasein), compreendido em suas mximas possibilidades de ser, o tempo mesmo, no no tempo (HEIDEGGER, 1995, p.25).
O prprio Freud se ocupou desse problema numa pequena nota escrita
em 22 de agosto de 1938 (um ano antes de sua morte), ele cogita:
a espacialidade poderia ser a projeo da extenso do aparelho psquico. Nenhuma outra derivao provvel. Em lugar do a priori kantiano, as condies de nosso aparelho psquico. A psiqu extensa, mas disso nada sabe (FREUD, 1996, p.3432).
Mas por que estamos discutindo a questo da espacialidade na msica?
Porque queremos chegar a uma compreenso mais ampla do movimento, da
motricidade, espontaneamente organizados intencionalmente. Quando um
ouvinte se diz emocionado pela msica, geralmente ele est emocionado no pela
msica em si, mas pela intencionalidade do intrprete, que se faz ouvir junto a
cada som. No inter petras, nesse vazio entre as notas, o que liga uma nota
outra a inteno do intrprete (que pode ou no estar de acordo com a inteno
do compositor mas isso outro problema). Essa inteno ato, e o ato se
atualiza atravs do corpo atravs do movimento. O movimento
constitui o fator que a msica tem em comum com os estados sentimentais e aos quais ela pode dar forma, criativamente, em milhares de gradaes e contrastes. O conceito de movimento tem sido, at aqui, negligenciado de modo surpreendente nos estudos sobre a essncia e o efeito da msica; este conceito afigura-se-nos como o mais importante e o mais produtivo (HANSLICK, 1989, p.38).
Nos dicionrios o termo movimento vem sempre ligado idia de mudana,
de deslocamento no espao; mas, como afirmamos anteriormente, o movimento j
se inicia na inteno, no se remetendo, portanto, ao princpio de causalidade (no
qual o movimento seria o efeito de uma causa, de uma inteno). O que significa
que estamos sempre em movimento, sempre num agir.
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Mas poderemos denominar toda ao como ato? Heidegger define ato a
partir do conceito de intencionalidade, remetendo-nos a Husserl:
aos comportamentos da vida designa-se tambm atos: percepes, juzos, amor, dio... Que quer dizer aqui ato? No algo como trabalho, processo ou alguma outra fora, mas o significado de ato subentende simplesmente relao intencional (HEIDEGGER, 1988, p.47).
nessa relao intencional que gesto e msica se fundam mutuamente, e
que chamamos aqui de expresso. A expresso no se encontra, portanto
(insistimos), nas notas, mas sim no movimento, que uma ao espacialmente
estendida. Essa ao no est no tempo, ela mesma o tempo, instituindo um
tempo prprio, um tempo interno e orgnico (Ain), diverso do tempo cronolgico.
Essa sensao temporal a qualidade mesma do movimento, e caracteriza-se
como ritmo.
H pouco falvamos do espao entre uma nota e outra. Que espao
esse? Uma durao temporal? Sem dvida, o tempo cronolgico entre uma nota e
outra pode ser medido o que nos d a sensao de um espao temporal entre
elas. Quando se olha uma partitura v-se uma distncia que separa uma nota da
outra, o que nos d tambm uma impresso visual de distncia, de espao. Mas,
na prtica, nenhum intrprete pode nos dizer exatamente quanto dura o intervalo
entre duas notas, nem por quanto tempo esteve tocando uma pea. freqente
seu espanto quando, aps haver estudado um certo tempo com grande
concentrao, pensa haver passado uma hora, quando na verdade se passaram
trs ou quatro.
Isso ocorre porque, durante a execuo de uma obra, o intrprete est
entregue expresso da msica; sua percepo no a percepo de algo, mas
confunde-se com a prpria expresso. O intrprete no mede o tempo: ele o vive.
Claro, sua msica est inserida (pelo menos na maior parte das msicas
existentes) num contexto mtrico, o qual ele tem presente e ao qual se reporta.
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Mas trata-se apenas de uma referncia em torno da qual gravita: assim como
quem vive uma experincia intensa no mede o tempo de durao de sua
experincia (pois se estivesse medindo estaria tendo acesso a uma representao
a posteriori, a uma lembrana, e no a uma vivncia da experincia), da mesma
forma o ritmo no pergunta pelo metro. Seu tempo o tempo do movimento, e o
tempo o movimento o tempo da expresso.
Enquanto a expresso durar, durar o presente (eterno enquanto dure). O
estar sendo uma atividade sempre presente; quando dizemos foi, j no mais:
um presente que v a experincia no passado na qualidade de lembrana. A
disciplina necessria ao intrprete a de estar sempre no presente: ele uma
expresso que se transforma continuamente e que por isso nunca morre. Em sua
msica podem at haver pausas e respiraes, mas essas pausas e respiraes
no sero percebidas como interrupes nem como um deixar de ser se estiverem
inseridas num fluxo gestual expressivo num ritmo. por isso que devemos
compreender o ritmo como um fenmeno expressivo temporal (o que se tornar
mais claro nos prximos captulos).
Metro e ritmo no so excludentes: simplesmente agem de formas
diferentes, complementando-se. A sensao rtmica deve ser necessariamente
uma vivncia espontnea, no representada. Deve ser uma compreenso
primeira, uma inteno anterior a qualquer verbalizao, uma organizao do todo
em funo de uma inteno musical. Pois o ritmo uma compreenso primitiva do
tempo que ns exercemos com o corpo, antes mesmo de represent-la com o
pensamento.
Essa compreenso primitiva (ou Urerfahrung, experincia primeira) no
um ato deliberativo da conscincia, nem um fruto da vontade, mas uma
organizao espontnea. Representar-me essa compreenso (ou mesmo meu
corpo) tiraria essa espontaneidade e mudaria completamente meus movimentos,
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de forma que no mais estaria vivenciando uma experincia rtmica, mas sua
representao.
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Parte I Fenomenologia da experincia musical
Captulo 3
Ritmo e motricidade
O ritmo uma compreenso primitiva do tempo que ns exercemos com o
corpo, antes mesmo de represent-la com o pensamento. Voltemos a essa frase.
Nela encontramos duas palavras importantes para os prximos raciocnios: corpo
e pensamento. Existe um grande nmero de figuras de linguagem que parecem
contrapor ambos como se fossem opostos ou mesmo antagnicos: mente e corpo;
cabea e corao; razo e emoo; lgica e sensibilidade. Distines que do a
entender a existncia de mundos separados e distintos: um mundo exterior,
material, e um mundo interior, abstrato. Nessa imagem, um ser interior pensa e
d comandos a um corpo, tal qual algum manipula uma marionete. O corpo ,
visto sob esse ngulo, um instrumento do pensamento: o que est dentro (um
eu, que pensa e que d ordens) comanda o que est fora, um objeto neutro que
apenas executa as ordens recebidas.
Seguindo essa lgica, se o corpo mero instrumento, ento um
instrumento atravs do qual entro em contato com o mundo. O corpo seria ento
um intermedirio entre o eu e o mundo, matria que permitiria ao eu experimentar
o mundo.
Lembremos a observao de Einstein citada no captulo anterior: objetos
fsicos no esto no espao: os objetos so espacialmente estendidos. Da
mesma forma, nosso corpo no tem um lugar no espao: ele espao. Ou, como
diz Merleau-Ponty,
longe de meu corpo ser para mim apenas um fragmento de espao, para mim no haveria espao se eu no tivesse corpo (MERLEAU-PONTY, 1999, p.149).
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Foi principalmente como decorrncia da tradio cartesiana que distinguia
entre res extensa e res cogitans, cabendo a esta ltima uma quase exclusividade
na consecuo do saber sobre si e sobre aquele que o corpo passou a ser
considerado um simples objeto exterior. Nessa qualidade de objeto, as
experincias que por meio dele (do corpo) lograramos passaram a ser vistas com
desconfiana. Somente medida que filtradas pelo pensamento que, supunha-
se, as experincias corporais poderiam dar a conhecer algo (Merleau-Ponty atribui
a Husserl a tentativa de reabilitao ontolgica do sensvel).
A conseqncia dessa excluso da experincia foi o encobrimento da
gnese dos fenmenos em proveito de uma tese sobre essa gnese, a qual no
tem a ver com nossa vivncia, mas com uma idia de ser como se o que meu
corpo me revelasse no tivesse dignidade epistmica. De certa forma, a tradio
filosfica
jamais conseguiu suportar que a experincia seja ato selvagem do querer e do poder, inerncia de nosso ser ao mundo. Fugindo dela, ou buscando domestic-la, a filosofia sempre procurou refgio no pensamento da experincia, isto , representada pelo entendimento e, portanto, neutralizada: tida como regio do conhecimento confuso ou inacabado, a experincia como exerccio promscuo de um esprito encarnado s poderia tornar-se conhecvel e inteligvel se fosse transformada numa representao ou no pensamento de experimentar, pensamento de ver, pensamento de falar, pensamento de pensar. Assim procedendo, a tradio, tanto empirista como intelectualista, cindiu o ato e o sentido da experincia, colocando o primeiro na esfera do confuso e o segundo na do conceito. Compreender a experincia exigia sair de seu recinto, destacar-se dela para, graas separao, pens-la e explic-la, de sorte que, em lugar da compreenso da experincia, obteve-se a experincia compreendida, um discurso sobre ela para silenci-la enquanto fala prpria (CHAU, 2002, p.162).
E na recuperao dessa fala silenciosa que nos deparamos com a
experincia primeira, anterior a qualquer representao ou idia. Ao reabilitar o
sensvel no estaremos ignorando o pensamento, mas constatando outros modos
do pensar, ou melhor, uma concepo mais ampla do pensar, que inclua um
Cogito anterior ao Cogito, um Cogito silencioso anterior ao Cogito falado: o
Cogito tcito. No Cogito tcito no h a experincia de algo, mas a experincia
de mim por mim (MERLEAU-PONTY, 1999, 541), uma experincia silenciosa da
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presena a si. Assim, o Cogito propriamente dito no o ponto mximo da
reflexo e sim um irrefletido (CHAU, 2002, p.47).
Mas que tipo de saber esse, que no uma reflexo, nem uma fala, nem
uma representao? Como pensar esse Cogito silencioso sem transform-lo num
Cogito verbal4? Pois a que reside a dificuldade e o perigo: transformar a
experincia num pensamento de experincia, numa experincia derivada. A
experincia o que em ns se v quando vemos, o que em ns se fala quando
falamos, o que em ns se pensa quando pensamos; o contato do meu
pensamento comigo mesmo.
O Cogito tcito no , portanto, um produto de nossos pensamentos, muito
menos uma entidade anterior a eles (pens-lo como entidade seria pens-lo como
objeto). O Cogito tcito se revela na ao, na inteno, no movimento. Pois o
sujeito um sujeito motor. Isso significa, em primeiro lugar, que
nosso corpo no um objeto, nem seu movimento um simples deslocamento no espao objetivo, sem o que problema s seria deslocado, e o movimento do corpo prprio no traria nenhum esclarecimento ao problema da localizao das coisas, j que ele mesmo seria uma coisa. preciso que exista, como Kant o admitia, um movimento gerador de espao, que o nosso movimento intencional, distinto do movimento no espao, que aquele das coisas e de nosso corpo passivo. Mas h mais: se o movimento gerador do espao, est excludo que a motricidade do corpo seja apenas um instrumento para a conscincia constituinte. (...) O movimento do corpo s pode desempenhar um papel na percepo do mundo se ele prprio uma intencionalidade original, uma maneira de se relacionar ao objeto distinta do conhecimento. preciso que o mundo esteja, em torno de ns, no como um sistema de objetos dos quais fazemos a sntese, mas como um conjunto aberto de coisas em direo s quais ns nos projetamos (MERLEAU-PONTY, 1999, p.517).
Sem a intencionalidade, nosso corpo seria um objeto, e seus movimentos
desprovidos de qualquer direo. A espacialidade do corpo no , como a dos
objetos exteriores ou a das sensaes espaciais, uma espacialidade de posio,
mas uma espacialidade de situao, pois na ao que a espacialidade do corpo
se realiza (Idem, ibidem, p.146).
4 Denominamos esse Cogito de verbal dado que se nos apresenta como uma fala para si: eu digo para mim que isso quer dizer isso.
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Quando escrevo no tenho a conscincia de todos os movimentos
necessrios escrita: sei o que quero escrever e simplesmente escrevo; no
penso o ato de escrever: a situao do ato de escrever que direciona minhas
aes. Enquanto ando no fico pensando perna direita, perna esquerda, levantar
o joelho, abaixar o joelho se pensasse nisso, provavelmente meu movimento
seria completamente antinatural e desengonado, e acabaria tropeando em
poucos passos. Tambm no penso para respirar: a respirao acontece.
Certa vez, durante uma aula de dana uma aula de tango, mais
especificamente -, eu e meu par devamos executar um determinado passo ao
chegar ao fim do salo para retornar ao meio dele. O passo era complicado, e
aps vrias tentativas frustradas e nada graciosas nas quais minhas pernas
pareciam querer fazer um n (eu estava tentando comandar cada movimento)
chamei o instrutor para pedir sua ajuda. Ele me sugeriu que no pensasse nos
movimentos das pernas nem dos ps nem dos braos nem do tronco, mas que
simplesmente tivesse presente durante a dana que eu queria voltar para o meio
do salo. Fiz isso e o sucesso foi imediato. Parei ento e me questionei: mas
como fiz isso? Que movimentos fiz agora que deram certo e antes no? No
sabia. O corpo se organizara sozinho em funo de uma meta. A situao
coordenara os movimentos para um determinado fim.
Enquanto estava tendo dificuldades com o movimento eu no estava
entregue ao ato de danar: eu estava pensando o ato de danar. Tal pensamento
constitui uma representao do movimento, no o movimento mesmo, razo pela
qual a motricidade espontnea foi, nesse exemplo, inibida. Quando tal fato ocorre,
dizemos do movimento que ele no harmonioso, no orgnico, no rtmico.
A compreenso do ritmo indissocivel de uma experincia perceptivo-
motriz primitiva, na qual podemos diferenciar experincias primitivas do corpo-
prprio e do mundo de experincias derivadas ou representadas do corpo e do
mundo como objetos. por isso que podemos dizer que o ritmo uma
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compreenso primitiva do tempo que ns exercemos com o corpo, antes mesmo
de represent-la com o pensamento.
O ritmo, assim como a viso, a audio e a compreenso da profundidade,
so relaes espontneas de equilbrio entre as partes sensveis da experincia
corporal. As experincias de nossos sentidos se entrelaam e se confundem umas
com as outras, intercomunicando-se e irradiando-se no corpo e em sua relao
com as coisas. Dessa forma, podemos falar em palpao pelo olhar ou em tato
visual, bem como numa motricidade do ver e do tocar. O olhar no a causa da
viso, assim como o ouvido no a causa da audio. Causa e efeito se
confundem na intencionalidade perceptiva (no h uma percepo seguida de um
movimento, como se uma fosse a causa do outro; a percepo e o movimento
formam um sistema que se modifica como um todo). As partes de meu corpo
no esto desdobradas umas ao lado das outras, mas envolvidas umas nas outras. (...) Meu corpo inteiro no para mim uma reunio de rgos justapostos no espao. Eu o tenho em uma posse indivisa e sei a posio de cada um de meus membros por um esquema corporal em que eles esto todos envolvidos (Idem, ibidem, p.193).
graas a esse esquema corporal que podemos falar numa transitividade,
reversibilidade e irredutibilidade dos sentidos. Em se tratando da experincia de
percepo de minha extenso corporal, por exemplo,
eu no preciso representar para mim os movimentos que devo executar para alcanar com a mo a regio da cabea que sinto comichar. (...) Na experincia de mim mesmo, estabeleo espontaneamente a sinergia das minhas partes, assim como a implicao das diversas dimenses de minha existncia no tempo (MLLER, 2001, p.181).
Dizemos de um gesto musical que ele rtmico quando o corpo todo se
envolve com a inteno sonora; o intrprete tem uma inteno precisa e o corpo,
como um todo indivisvel, se organiza em funo dessa inteno, gerando assim
uma relao de equilbrio. O ritmo a totalidade expressa no mbito desta relao
de equilbrio.
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O aparecimento de um movimento rtmico no se d por comandos nem por
ordens; o movimento rtmico no um querer, mas um poder; no da ordem do
eu penso, mas do eu posso. O corpo no coisa nem idia, mas espacialidade e
motricidade.
E por isso que surge a diferena, sutil mas poderosa, entre mover o corpo
e deixar que o corpo se mova. No primeiro caso h a presena de um comando:
um Cogito falante ordena a um corpo-objeto que este se movimente de uma
determinada forma. Segue-se assim que a ateno fica voltada para o movimento
do corpo, no para o fim ao qual se destina o movimento. como andar em
direo a uma rvore, mas olhando e comandando os ps em vez de olhar para
ela, correndo ento o risco de s perceber que se chegou rvore ao esbarrar ou
ao ter passado por ela.
Porm, quando deixamos que o corpo se mova, no queremos dizer que o
corpo deve ser abandonado, mas que devemos permitir que o corpo se organize
sem que ele precise seguir um conceito imposto pelo intelecto. Aqui os
pensamentos no se impe ao movimento: eles so simultneos. por isso que
o orador no pensa antes de falar, nem mesmo enquanto fala; sua fala seu pensamento (MERLEAU-PONTY, 1999, p.241).
Quando a mente discursiva analisa e d ordens ao movimento no tem
como estar plenamente atual a eles. A anlise um procedimento a posteriori:
analisa-se o que j ocorreu passado representado. Ordens e comandos so
expectativas que se projetam no futuro e que modificam subitamente um estado
presente.
Nesse sentido, a filosofia oriental frisa constantemente a necessidade de
um silncio da mente, silncio esse geralmente mal compreendido, como alerta
Daisetz Suzuki:
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alguns filsofos e telogos aludem ao Silncio oriental em contraste com o Verbo ocidental, que se fez carne. Mas no compreendem o que o Oriente realmente quer dizer com silncio, pois este no se ope ao verbo, o prprio verbo (SUZUKI/FROMM, 1989, p.78).
Especialmente o Zen demonstra grande preocupao com as diferentes
formas de interferncia da mente sobre o corpo. Suzuki d como exemplo disso
(op. cit.) o mestre Dogo, do sculo VIII, que recomendava: Logo que comeas a
pensar numa coisa, ela deixa de ser. Precisas v-la imediatamente, sem
raciocinar, sem hesitar. E oferece como ilustrao a histria de um grande
espadachim, Takuan, que aconselhava seus discpulos a manter a mente sempre
em estado de fluncia, pois, dizia ele, quando ela se detm em algum ponto isso
significa que o fluxo est interrompido e a interrupo nociva ao bem-estar da
mente - no caso do espadachim, pode significar a morte:
quando o esgrimista enfrenta o adversrio, no deve pensar no adversrio, nem em si mesmo, nem nos movimentos da espada do inimigo. Limita-se a estar l, empunhando a espada, que, esquecida de toda tcnica, seguir apenas, em verdade, os ditames do inconsciente. O homem se apagou como manejador da espada. Quando golpeia, no o homem, seno a espada nas mos do inconsciente que golpeia. Contam-se histrias em que o prprio homem no se advertiu do fato de haver derrubado o adversrio tudo inconscientemente. Em muitos casos, o funcionamento do inconsciente simplesmente milagroso (SUZUKI/FROMM, 1989, p.31).
Quando golpeia, no o homem, seno a espada nas mos do
inconsciente que golpeia. Em relao a essa afirmao, a pergunta que nos
fazemos, enquanto ocidentais, : como pode o inconsciente movimentar a
espada?
Quem se faz essa pergunta est provavelmente acostumado a pensar o
movimento como fruto da vontade, como um ato reflexivo - e quem reflete a
conscincia. Mas ser a conscincia responsvel pela sinergia espontnea entre
as partes de meu corpo? Certamente no, j que o corpo se organiza sozinho
em funo de uma inteno, como vimos nos exemplos acima. Claro que aqui
adentramos um terreno perigoso, tanto para a filosofia quanto para a psicologia e
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a cincia, que exigiria uma incurso nos domnios do consciente e do
inconsciente, incurso essa que fugiria ao mbito do presente trabalho.
De toda sorte, se Freud foi um dos primeiros a tentar estruturar e
sistematizar o inconsciente, isso no significa que, antes dele (mesmo que com
outras palavras), este no tenha sido tratado. Especiais contribuies para o tema
foram dadas por Schopenhauer e Nietzsche, e, muito antes deles (e de forma
bastante elaborada), na antiga filosofia oriental.
Em O mundo como vontade e representao (Die Welt als Wille und
Vorstellung) Schopenhauer coloca, entre outras questes, que, se a vontade
proviesse do intelecto, como se explicaria o fato de que nos animais inferiores,
junto a um mnimo de conhecimento, houvesse uma vontade to forte? preciso,
pois, diferenciar a vontade humana, que revela a atuao do intelecto, da Vontade
tomada como algo em-si-mesmo. Essa Vontade
s capaz de revelar-se na experincia interior que cada um de ns tem do seu prprio corpo em ao. Sendo o corpo a objetivao da Vontade, o ato de vontade um ato corporal. O ato de vontade jamais pode consistir na mera deliberao, pois esta corresponde mera representao intelectual do seu objeto, um mero desejo, sinnimo de aspirao. Na metafsica de Schopenhauer instaura-se definitivamente a precedncia da vontade sobre o intelecto ou, melhor dizendo, sobre as representaes intelectuais. (...) No homem, s em indivduos muito bem dotados que o intelecto pode ter a supremacia; neles que o intelecto se separa da vontade e no afetada por ela. Eles so chamados gnios e o seu saber o espelho objetivo do mundo (CACCIOLA, 1991, p.17 e 20).
Mais tarde Nietzsche ir noutra direo, e, no lugar do gnio citado por
Schopenhauer, apresentar a idia do bermensch, presente no Zarathustra (em
portugus bermensch geralmente traduzido como super-homem, mas
consideramos como traduo mais apropriada homem superior, termo, alis,
freqente na filosofia oriental, cujas primeiras tradues comeavam ento a
circular pela Europa, e que fortemente influenciaram, como o declararam os
prprios autores, Schopenhau