Download - Reflexões sobre a resistência indígena
o DRAMA DA CON STA NA FESTA:
reflexões sobre resistência indígena e circularidade cultural
1. Introdução
os últimos anos ampliou-se de maneira considerável o âmbito de inte
resse da história. Não mais se observa a polarização nos grandes temas e nas manifestações dos grupos.dominantes oomo objeto da produção historiográfica. A este quadro oontrapõe-se uma tendência ao resgate da atuação de segmentos até então excluídos dessa produção, visando-se recupernr Sllas manifestações e fonnas de resistência. Um sério problema decorre deste fato, devido à escassez e dispersâo dos registros relativos aos referidos segmentos. Os feitos de sua existência pouoo chegam ao nosso oonbecimento, através de testemunhos escritos. Cabe ao historiador, nessas circunstâncias, valer-se de "elementos imponderáveis: o faro, o golpe de vista, a intuição", a fim de obter as pistas, OS indícios que lhe possibilitem superar a
I EsIwlosHi.sf6tYos, RiodeJanci� val. S, D. 9,1992, p. 44-59
Rachei Soihet
opacidade e a fragmentação da documentação e desvendaro universo daqueles segmentos.1
O campo cultural adquire significado especial para esta modalidade de abordagem, pois, conforme as pesquisas têm demonstrado, este se constitui, via de regra, em canal privilegiado de expressão dos anseios, necessidades, aspirações dos subalternos. Também, a cultura se configura como o seu principal veículo de coesão e de construção de uma identidade própria.
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Durante muito tempo o termo cultura foi empregado unicamente 1\0 sentido iluminista, ou seja, referindo-se às chamadas expressões superiores do espúito humano - a arte, a literatura, a música ... Hoje, porém, oom base na antropologia, a grande maioria dos historiadores compreende a cultura como "a história das ações ou n0-ções subjacentes à vida cotidiana". Convergem para uma visuali2JIção deste conceito de maneira ampla, social e temalÍca-
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mente; como uma totalidade complexa que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costumes, além de outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade. Uma noção holIstica mas também processual, voltada para a mudança cultural e suas fonnas de ocorrência?
Robert Damton, um dos autores mais entusiasmados com o diálogo antropologia/história, esclarece que a história cultural trata a nossa civilização da mesma maneira que os antropólogos estudam as culturas exóticas. Cabe ao historiador etnográfico estudar o modo como as pessoas comuns entendiam o mundo. Com tal objetivo busca descobrir sua cosmologia, apreender como organizavam a realidade em suas mentes e a expressavam em seu comportamento.4
Este autor destaca, como contribuição fundamental da antropologia, a noção de diferença; com isto concorda Le Goff ao afirmar que nela reside uma das seduções fundamentais desta disciplina para os historiadores. Consolida-se, a partir dessa perspectiva, a visão de que os outros povos são diferentes, não pensam da mesma maneira que pensamos, o que, traduzido em termos do ofício do historiador, identificase oom a recomendação contra o anaclu-
. 5 D1Smo. Discorrendo acerca da similaridade en
tre o trabalbo do historiador e do antropólogo, o historiador Carlo Ginzburg afIrma que 'lIas bases são textuais. Ambos se vaIem de textos, intrinsecamente, dialógicos. A estrutura dia lógica pode ser explícita, o que ocorre tanto na série de perguntas e respostas presentes num processo inquisitorial como na transcrição das conversas entre o antropólogo e o seu informador.1à1 estrutura pode, também, ser implícita, como, por exemplo, nas notas etnográficas referentes a um ritual, um mito ou um utensílio. Para ele a e.«<ência de uma atitude antropológica, ou seja, o confronto entre
culturas diferentes, reside numa disposição dialógica.6
Em trabalho anterior Ginzburg nos informa sobre o empréstimo do termo cultura feito pela história à antropologia cultural, já num período relativamente tardio. Só através do conceito de "cultura primitiva" é que se chegou a reconhecer que aqueles indivíduos outrora definidos de forma paternalista como "camadas inferiores dos povos civilizados" possuíam cultura. Superou-se, assim, a posição daqueles que distinguiam nas idéias, crenças, visões de mundo das classes subalternas, nada mais do que um acúmulo desorgãnico de fragmentos de idéias, crenças, visões de mundo elaboradas pelas classes dominantes, provavelmente, vários séculos antes7
A concepção de circularidade cultural, que propõe como recíprocas as influências entre a cultura dos segInentos dominantes e subalternos, constitui-se numa outra importante contribuição de Giowurg, inspirado, como COnfCAA3, em Bakhtin, que buscaremos adotar em nossa abordagem. 8
Dentre os autores que enfatizam o papel decisivo da cultura como força motivadora da transformação histórica temos Natalie Davis e E.P. Thompson. Este, inovando o marxismo e opondo-se à visão tradicional, ressalta a impossibilidade de se entender o que é classe sem que esta seja percebida como uma formação social e cultural.9
Thompson reconhece a importância da utilização pelo historiador das contribuições dos folcloristas e da antropologia social, particularmente, no trabalho com s0-ciedades onde predominava o costume. Tal foi o seu caso ao se dispor a iCcuperar as formas de consciência plebéia na Inglaterra do século XVIII. Mantém porém uma atitude critica, tecendo considerações acerca das precauções a serem tomadas para que este intercâmbio se revele proveitoso.
A atenção às normas, valores e rituais pode proporcionar um significativo aumento do conhecimento histórico. Nesse
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sentido, um novo olhar do historiador Cezse sentir, nos últimos anos, com relação a inúmeros aspectos da vida considerados sem maior importância, como o calendário de ritos e Cestas. O significado do ritual, contudo, só pode ser interpretado quando os dados deixam de ser considerados como fragmentos do Colclore, como "relíquias", e passam a ser contextualizados. Assim, na análise do ritual, importa ultrapassarmos a forma e atentarmos para as relações reais que nele se expressam. Verificamos que qualquer que seja a sua origem e seu simbolismo maniCesto, este foi adaptado para um novo [un.
Tais recomendações são da maior relevância, pois, como lembra Tbompson:
A história é a disciplina do contexto e do processo: todo significado é um significado-no-rontexto, e quando as estruturas mudam as formas antigas podem expressar funções novas e as funções antigas podem encontrar sua expressão em fonnas novas. !O
Colocando-se numa posição análoga à de Keith Tbomas e de Natalie Oavis, esclarece que para eles "o impulso antropológico é percebido não na construção de modelos, mas na identificação de novos problemas, na percepção de antigos problemas sob novas perspectivas, na ênfase em normas ou sistemas de valores e rituais, na atenção às funções expressivas das diversas fonoas de motim e revolta e nas expressões sirobólicas da autoridade, do controle e da hegemonia".lt
As modalidades de resistência desenvolvidas pelos populares orupam papel central na obra de Tbompson e na de inúmeros outros autores. Estes descartam a visão de uma ação unilateral do poder sobre os dominados passivos e impotentes. Os suba Itemos náo estariam à mercê de forças históricas externas e detenninantes, desempenhando um papel ativo e essencial
na criação de sua própria história e na definição de sua identidade cultural.
Como assinala Michel de Certeau, torna-se necessário inverter as preorupaÇÕes de Foucault, ou seja, não mais trata de precisar como a violência da ordem transrorma-se em tecnologia disciplinar, mas de "exumar as fonoas sub-reptícias que assume a criatividade dispersa, tática e brico/euse dos dominados, com vistas a reagir à opressão que sobre eles incide".12
Esta resistência não se apresenta, necessariamente, de fonoa violenta, através de motins e outros confrontos. Pequenos furtos, utilizações jocosas de signos do poder, cartas anônimas, canções, inversões, irreverências, representações teatrais, que em sua maioria encontram expressão nas festas, são exemplos das fonoas simbólicas nas quais pode se apresentar a resistência.
2 . ... e a festa entra na história
A festa se constitui num cenário privilegiado para a observação desses pressupostos. Em medida diversa, de acordo com a modalidade, na festa estão presentes aspectos expressivos do universo cultural dominante; por outro lado, aí encontram-se imbricados elementos próprios da cultura popular, com suas tradiçóes, seus símbolos, suas práticas. A resta é local de encontro e lazer desses grupos, nela ocorrendo Ulna influência recíproca entre ambos os segmentos.
O interesse dos historiadores pela festa é recente. Até hem pouco tempo, ela era foco de atenção apenas do Colclore e da antropologia. Os avanços na história cultural, como já Coi visto, contribuíram para a mudança desse panorama. De qualquer fonna, ao ingJessar nos domfnios de aio, a resta Coi por muitos considerada como um tema menor, periférico, desmobiliza-
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dor. O diálogo entre Pierre Vilar e Vovelle é sintomático. Vdar, embora amistosamente, questiona \bveUe - historiador de temas tão heterodoxos como a morte e a festa -se não seria muito mais proveitoso interessar-se pelos processos de tomada de ronsciência entre as massas. Ainda mais que VoveUe se dizia marxista!
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O fato talvez revele o desconhecimento de Vdar do "paradigma conjecturai" -um método discutido e batizado por Gin7hurg. Estudiosos tão diversos como Morelli -voltado para a história da arte -, Arthur Conan Doyle-autorde célebres romances policiais -e Freud -criador da psicanálise - foram adeptos desse método. Devia-se, de acordo com esse método, que se revelou de fundamental importãncia para as ciências humanas, atentar, não para as características mais aparentes, mas para os detalhes secundários, aspectos aparentemente insignificantes, capazes de fornecer as vias de acesso a uma realidade mais profunda, inatingível de outra forma.14
Muitos autores consideraram a festa como uma válvula de escape para as tensões do cotidiano, pemútida, controlada e estimulada pelos grupos dominantes. Constituir-se-ia, em última instância, em um recurso utilizado pelo poder para a manipulação e o reforço da ordem vigente, capitalizando em proveito próprio os excessos nela manifestados. Esta é, porém, uma perspectiva simplista, unidimensional, que elide a complexidade dessa forma de expressão, de grande riqueza para o descortino das atitudes, valores e comportamentos dos diversos grupos sociais. A festa se const.itui num palco onde a dialética dominação/resistência marca sua presença, possibilitando ao historiador, munido do método acima, alcançar a essência de significados sociais por vezes inacessíveis através de outros caminhos.t5
Micbel \bveUe concorda com esta posição, ao afirmar ser a festa um maravilhoso campo de observação para o historiador:
momento de verdade em que um grupo ou uma coletividade projeta simbolicamente sua representação de mundo, e até filtra metaforicamente todas as suas tensões.t6
Também para Natalie Oavis a festa possivelmente se constitui no
elelnento fundamental da vida coletiva, porque exprime com marcante intensidade as dimensões dos papéis sociais e o confronto dos simbolos que eles "significam".l?
Mikhail Bakhtin, no seu belíssimo trabalhosobre Rabelais, fazemergircom toda a força a cultura cômica popular da Idade Média e do Renascimento, que, para o autor, é fundamental na determinação do conjunto de seu sistema de imagens. Embora Bakhtin focalire essencialmente o período histórico citado, faz algumas generalizações que o extrapolam.
Assim, refere-se às festividades como uma forma primordial, marcante, da civilização humana. Discorda daqueles que as explicam como um produto das condições e finalidades práticas do trabalho coletivo ou como um produto da necessidade biológica (fisiológica) do descanso periódico. Para ele as festas tiveram sempre um sentido profundo, exprimindo uma concepção de mundo, vinculando-se ao mundo dos ideais.18
Sob o regime feudal na Idade Média, a relação da festa com os fins superiores da existência humana - a ressurreição e a renovação - alcançava sua plenitude e sua pureza 110 carnaval e em outras festas populares e públicas. Nestas circunstãncias, a festa convertia-se na segunda vida do povo, o qual penetrava temporariamente no reino utópico da universalidade, liberdade e abundância.
Estabeleciam-se na ocasião entre os indivíduos, separados por barreiras intrans-
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poníveis na vida cotidiana, relações novas verdadeimmente humanas. Desaparecia, provisoriamente, a alienação.19
As festas oficiais se revelavam totalmente opostas a este quadro. Contribuíam,
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apenas, para sancionar o regIme em vigor, para fortificá-lo. Olhavam para trás, para o passado, confinnando a ordem social presente. As distinções hierárquicas destacavam-se intencionalmente, sendo finalidade destas festas a consagração da desigualdade, ao contrário do carnaval em que todos eram iguais.2°
A festa revolucionária, visando COffiO
lidar na população a memória da Revolução de seus heróis, tem seu ponto alto no século XIX. Comemorativa de um acontecimento que assinala a instauração de um novo tempo, tem como preocupação, através de seus símbolos e ritos, transmitir a mensagem de que a Revolução chegou a tenno, buscando garantir coesão social à
-naçao. Reviver uma história remanipulada, re
ajustada, reprimida; inventar uma nova sacrnlidade - o culto cívico em substituição à antiga religião -são alguns dos objetivos deste tipo de festa. Segundo Mona Ozouf, historiadora que com sua fina sensibilidade desvenda inúmeros significados de festa revolucionária, esta '101era mal a mudança", esforçando-se por neutralizá-Ia em rito.
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As festas religiosas, as execuções públicas com seu teatro de controle e o contrateatro da multidão, são algumas outras modalidades de festa que empolgavam a população e que passaram a se constituir em objeto da atenção dos historiadores. Estes, através da inventividade na busca de fontes e na utilização de métodos refinados, têm conseguido recuperar significativas informações acerca da cultura dos diferentes grupos sociais, dos conflitos e das fonoas de interpenetração cultural aí presentes.
3. A originalidade da América Latina
Após este intróito, que consideramos fundamental, chegamos enfim à América Latina, teatro desta abordagem, na qual por largo tempo buscou-se analisar a participação e organização dos trabalhadores, segundo o modelo europeu. As especificidades do contexto latino-americano vinham sendo vistas de fonoa negativa. Atribuía- se aos populares de Sllas diferentes regiões características de passividade, inação, oque teria impedido a fonnação de conhecimentos novos e positivos a seu respeito.22
Nenhuma preocupação se fez sentir sobre o conteúdo de classe das reivindicações populares expressas através de movimentos aparentemente "apolílicos". Citam-se, entre eles, os quebra-quebras de transportes coletivos, os saques de lojas e annazéns de gêneros de primeira necessidade e os motins derivados dos motivos mais diversos. Ocorre, igualmente, que a situação de tensão e insatisfação destes segmentos também pode expressar-se em fonnas de resistência cotidiana, por vezes comedida, por outras carnavalesca. O deboche, a paródia, o teatro, a inversão, são algumas das expressões através das quais os populares tornam explícita sua consciência da relatividade das verdades e das autoridades no poder.
Os populares da América Lati na, cientes de sua marginalidade e das dificuldades na superação desta condição, como uma de suas opções preferenciais, investiram sua energia nestas fonnas algo metafóricas. Valendo.>;e de fonoas alternativas de organização, ocorre sua intensa participação em grandes festas como o carnaval e festividades religiosas nas quais a carnaval�ção também está presente - dentre elas, a de Nossa Senhora de Guadalupe no México e a de Nossa Senhora da Penha no Brasil.
Nas áreas de predominância indígena a dramatização da conquista é um dos even-
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tos mais freqüentados, até nossos dias. Embora o conteúdo indígena se ache impregnado de influências espanholas, muitos dos fatos históricos apresentam-se modificados, invertidos, sinalizando claramente em direção a uma fomla de resistência.
Considerando a sua originalidade e riqueza simbólica, decidimo-nos pelo enfoque desse tipo de manifestação, na qual a tragédia indígena é o espetáculo. O fenômeno da conquista, marcado pelo cboque entre dllas culturas distintas, uma delas pretendendo a destruição da outra, é rememorado anualmente, deixando entrever, de fOffil3 significativa, a visão do indígena sobre o acontecimento. Esta representação, por si SÓ, constitui um testemunho do fracasso daquele objetivo.
4. O drama: a versão popular da conquista
Até os dias atuais, os indígenas do Peru, Guatefll3la e México encenam peças teatrais contendo recitaçÕes, cantos e danças sobre o tefll3 da conquista. Estas peças constituem-se em fontes, não apenas para deslindar a intelPretação indígena da conquista, mas também para avaliar suas formas de resistência; ainda, para tentar extrair elementos acerca da visão destes grupos ante a dominação num sentido mais amplo, sem esquecer o contato que oos proporcionam com a sua riqueza simbólica. As peças apresentam alguma influência hispânica, em quantidade variável, revelando a circularidade cultural; existem versões em que esta presença di ficilmente será identificada.
Estas obras foram transmitidas oralmente, remontando ao século XVI. Desde então o tefll3 já constava do teatro indígena, segundo o testemunho de Las Casas. Sua transcrição data apenas do século XIX.
No Peru e na Bolívia temos a "Tragédia da morte de Atabualpa"; na Guatemala, a uDança da conquista"� e, no México, a "Dança das plumas" e a "Grande conquista". Todas elas, por sua vez, apresentam variaçôes regionais. Sua representação, via de regra, ocorre por ocasião das festas cristãs; apenas em Oruro também durante o carnaval ela é levada a efeito.
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Decidimo-nos pela apresentação fll3is ponnenorizada do exemplo peruanolboliviano, apontando nos demais os traços que mais sobressaem. A exibição do drama é feita na praça central para Ufll3 multidão de espectadores, que são mantidos à distância por dois jovens portadores de máscaras diabólicas e affil3dos com tridentes. O acompanhamento musical é feito por instrumentos indígenas, (Jautas e pequenos tambores. Os atores dividem-se em dois grupos: os indígenas e, à Ufll3 distância aproximada de vinte metros, os espanhóis. Os indígenas usam fantasias. Aqueles que fazem o papel de espanhóis llsam capacetes semelhantes aos do tempo da conquista e annaduras da época da independência, ou uni fonnes do exército atual; estão affil3dos de sabres, bastôes e fuzis de caça.
Na Guatemala, é exaltada, numa parte do drafll3, a atuação de Tecum Uman, herói nacional que liderou a resistência aos espanhóis. Todos llsam máscaras,sendo que as máscarns indígenas trazem um sorrlso, enquanto as espanholas, com longos narizes, têm um semblante fecbado. Os atores usam fantasias e adereços fll3is trabalhados do que aqueles do Peru. A popularidade desta manifestação é tafll3nha que contribuiu para o crescimento de um ativo artesanato no país. Confeccionam-se trajes, máscaras e outros acessórios em oficinas especializadas. Desenvolve-se, igualmente, um comércio bastante intenso.
No Peru, a variação fll3is rica e expressiva da visão indígena sobre a conquista é a que apresentamos abaixo, que resume a primeira parte da ''Tragédia de Atabualpa":
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A ação COlllC"" com o anúncio de uma ameaça. Atabualpa relata às nustas24 um sonho que o inquietou: durante dllas noites seguidas viu o Sol, seu pai, c0-berto por uma fumaça negra, enquanto o céu e a montanha queimavam oomo a plumagem do pi/JaJ;'15 uma buaca26 anunciava-lhe um acontecimento temvel: a cbegada de guerreiros vestidos de ferro, vindos para destruir seu reino. A princesa Qhora Chinpu sugere-lhe pedir ao grande sacerdote que interprete seu sonho: confrnnando-se o presságio funesto, deve reunir seus guerreiros para rechaçar aos invasores. Atabualpa ordena ao adivinho HuayUa Huisa que vá donoir em sua habitação de ouro para interpretar o sonho. Enquanto isso, o Inca evoca seus antepassados: Manco Capac, filho do Sol e Viracoeha, que pela primeira vez anunciou a vinda de homens barbudos. Jura derramar lagos de sangue para expulsar os inimigos. Ao voltar HuaylJa Huisa confinna o perigo: sonhou que vinham homens barbudos pelo mar, sobre embarcaçóes de ferro. O Inca ordena-lhe que observe o horizonte. O adivinho olha em todas as direções, porém nada descobre e decide donnir de novo. intervém então o coro, que anuncia a cheg a d a d o s i ni m i g o s (pelo mar). Sucedem-se episódios complexos: HuayUa Huisa, dificilmente despertado, volta a dormir. Desperta-{) pela segunda vez, com maior dificuldade todavia, Kishkis (depois de esforços vãos do coro e de outros personagens). O adivinho confirma a cbegada dos h0-mens barbudos e os descreve minuciosamente expressando, por sua vez, seu terror e sua estupefação. Porém o Inca tem todavia esperança.
Certos temas, ou mesmo detalhes, recordam fatos presentes nas C1Ônicas sobre a conquista. Em primeiro plano destacam-
se os temveis presságios, que antecederam à chegada dos espanhóis, anunciando uma catástrofe iminente. Aqui estes manifestam-se no sonho de Atahualpa: o Sol, Deus Supremo, apresentava-se envolto em fumaça, o céu e as montanhas em chamas!
OImprir-se-ia a predição do antepassado V1f3coeha, Deus criador e civilizador? Homens desconhecidos viriam destruir o Império? O sonho do Inca é confinnado pelo adivinho. Homens estranhos estão chegando: barbudos, vestidos de ferro, singramo marem grandes embarcaçóes, também de ferro, como de ferro são as fundas que carregam e que, ao invés de pedras, lançam fogo.
O detalhe na descrição da aparencia dos espanhóis é outro dado presente em todas as CrôniClS e é revelador de um dos ma;ores abalos dos indígenas. Nunca haviam se deparado com seres tão bizarros! Alguns, como Huáscar, innão e rival de Atabualpa na disputa pelo poder, consideraram-DOS deuses. Armai, tenninada a sua obra civilizadora, Viracocha retirara-se, andando pelo mar, na direção oeste. Mas prolnetera voltar. O mito é alimentado por alguns sacerdotes que o cercavam. Em situação de inferioridade ante seu rival, Huáscar reanima-se. Ainda mais que a imagem de V1f3-coeha, existente num templo em sua honra, era a de um homem de elevada estatura, barbudo, vestido com uma longa túnica.
Este não era porém o caso deAtabualpa. Ele não teria chegado a aCleditar que os espanhóis fossem dellses e, como se verifica no trecho da peça acima, ficara preocupado. Na sociedade inca, porém, a p0-tência na guerra era avaliada pelo número de homens. A desproporção entre o número de guerreiros incas e espanhóis era imensa. Além disso, havia o rumor de que os cavalos perdiam a efICácia durante a noite. Daí, talvez, a referência no citado trecho à esperança do Inca?'
Na "Dança da conquista" guatemalteca, hem como na "Dança das plumas" mexi-
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cana, também ocorrem os sonhos premonitórios. Na primeira, o velho rei Quicbé mostra grande temor, após sonhar com a sua própria morte que se seguiria à chegada de homeM com armas mágiCls, Seus filhos recomendam a resistêllCia, da qual se encarregará Terum. Quicbé confia seu estandarte a Tecum, que recebe o apoio dos demais caciques e promete vencer os espanhóis. Thcum, por sua vez, terá um sonho inquietante, na véspera do combate. Uma pomba a serviço dos espanhóis vence o seu exército; ele se vê levado três vezes pelos ares, cai as três vezes, e seu coração cindese em duas partes sangrentas.
O espanto com relaçãt> aos espanhóis apresenta-se aqui muito atenuado, manifestando-se em duas curtas passageM. Na primeira, esse espanto fica explicitado quando é dito que os príncipes, filbos de Quicbé, Uas.�ombram-se ante seu estranho semblante". Na outra, é evidenciado o medo experimentado por Quicbé com relação ao raio dos ufilhos do sol", ou seja às suas armas. Através dessa expressão, verificase que os consideram deuses.
Na "Dança das plumas", Montezuma sonha com alguM dos presságios contidos em documentos mexicanos do século XVI que se referem à conquista: "as águas crescem e se elevam até o céu; uma estrela desconhecida brilha durante a manhã; uma águia tenta penetrar no palácio". Os seus vass.alos advertem-no de que ua tem, a áglla, o céu e os astros anuociam o fim do seu Império". Montezuma, porém, armna que não perdeu a esJl:'rança e diz ter o mundo em seu poder.
A utilização do sonho como veículo para previsão dos acontecill-.zntos, uma coMtante nesses dramas, não revela grande distAocia da concepção junguiana; segundo ]ung, os sonhos possuem um aspecto prospectivo, ''uma antecipação inconsciente da realização consciente futura". Podem não presoagiar ou desafiar, mas
resumiras tarefas neressárias iara o preenchimento de uma condição.2
Ressalta-se, também, a presença de elementos de fundamental importância para tais grupos: os simbolos e os mitos, estes últimos expressões de formas de vida, de estruturas de existêocia, ou seja, de parâmetros que permitem ao home.n inserir- se na realidade. Deles se utilizam na decifração dos mistérios do mundo, o que lhes permite a leitura de sua realidade social. Dessa forma, apoderam-se de seu ambiente natural e social, sentindo-se parte integrante deste mundo. Nas sociedades préindustrializadas o mito é, portanto, uma realidade viva e infIuellCiadora do comportamento individual e coletivo.
Na segunda parte da ''Tragédia de Atahualpa":
Celebram-se ellCOntros preliminares entre índios e espanhóis. Uma primeira entrevista reúne HuayUa Huisa e Alrnagro. O sacerdote pergunta a este último por que os home.lS barlJUdos invadem o pa�. Como resposta, Almagro só move os lábios. Felipillo traduz estas palavras silenciosas e declara que os espanhóis, enviados pelo Senhor mais poderoso da terra, vieram em busca de ouro e prata. Aparece então o padre Valverde, que o interrompe: os espanhóis vieram para dar a conhecer o verdadeiro Deus. Finalmente, Alrnagro entrega ao adivinho uma carta para Atahualpa. Desenvolve-se, a partir daí, uma longa série de episódios, rujo único tema é a estupefação e a incompwensão dos índios ante a misteriosa "Colha de milho" que Alrnagro envia ao Inca. A carta ci/CUla de mão em mão, porém ninguém pode decifrar sua muda mellS3gem. Fracassam sucessivamente Atahua·lpa, HuayUa Huisa, e alguns dos seus generais como ChallkLochima e Kishkis. Por
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ordem do Inca, Huaylla Huisa cai novamente em sono profundo. Um último encontro preliminar reúne Sairi Túpaj e Pizam>. Atabualpa confia a seu emissário os emblemas reais (funda, acha e serpentes de ouro). Sairi Túpaj ameaça Pizam> e o intima a deixar o país. Pizarro "só move os lábios"; Felipillo traduz que os espanhóis vieram para levar Atahualpa, ou sua cabeça ao Rei de Espanha. Sairi Túpaj não compreende e sugere a Pizam> que ele mesmo fale a Atabualpa. Depois de Sairi Túpaj retomar ao palácio, Atahualpa decide reunir seus guerreiros a fim de expulsar os invasores.
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Um aspecto fundamental, apresentado neste trecho, re(ere-se à barreira na comunicação entre elementos de culturas tão díspares. Tal fato é simbolizado, através das respostas mudas dos espanhóis aos questionamentos dos Ú1dios, na qual aqueles limitam-se a "mover os lábios". No episódio da carta, a "folha de milho" que passa de mão em mão, também fica simbolizado esse fato. O choque das culturas também manifesta-se na falta de compreensão do emissário de Atahualpa em relação à pretensão dos espanhóis de "levar Atahualpa, ou sua cabeça, ao Rei de Espanha". O Inca era, aos olhos de seus súditos, o todo poderoso Filho do Sol, principal intermediário entre deuses e homens, numa posição superior inclusive à do Grande Sacerdote. Uma presunção desta natureza se afigurava impensável!
A cobiça dos espanhóis, tão marcante na conquista, é expressa pela resposta de Almagro de que a razão da invasão do país era a busca de ouro e prata. O padre Valverde reage, sintomaticamente, a esta resposta. lntem>mpe Almagro dizendo que os espanhóis vieram, na verdade, para fazer conhecer aos indígenas o verdadeiro Deus.
.. Tal afinnação levada a efeito de fonna arrogante denota a percepção dos indíge-
nas quanto ao autoritarismo da Igreja na sua pretensão de evangelizar as massas. Por outro lado, a resposta de Almagro demonstra a denúncia do índio ante à rapina cometida pelos espanhóis na sua ânsia de rique7JIs. Aliás, esta visão do comportamento dos conquistadores ante à presença de riquezas pode ser constatada em outros depoimentos: "Como se fossem macacos, levantavam o ouro, faziam trejeitos de satisfação, era como se lhes renovasse e se lhes iluminasse o coração". De deuses passam a ser vistos como animaisl
3!
Uma nota a acrescentar diz respeito à simetria no relacionamento dos incas com os espanhóis. futo na atitude do sacerdote ao questionar Almagro sobre a invasão, como na intimação de Sairi Túpaj a Pizam> para abandonar o país, fica claro, na representação do drama, que os indígenas não se subestimavam ante o invasor.
Finalmente, na última parte da "Tragédia de Atabualpa", ocorre:
a irrupção de Pizam> no palácio de Atahualpa (em Oruro e Toco, os espanhóis se precipitam disparando suas armas de fogo). O Inca resiste e ameaça Pizarro. Este, movendo sempre os lábios (e traduzido por Felipillo), intima o Inca para que o siga até Barcelona. Atahualpa muda bruscamente de atitude e se rende: os espanhóis lhe atam as mãos e o coro lamenta a sua sorte. Atabualpa oferece a Pizam> ouro e prata, numa quantidade que cubra a planicie até o limite do tiro de sua funda. Pizarro exige que se recubra toda a planície. Atahualpa indigna-se, porém logo aceita tudo quanto se lhe exige e suplica que não se lhe tire a vida. Pizam> recusa. A tragédia alcança seu ponto culminante. Atahualpa despede-se dos seus, lega seus emblemas reais às princesas e seus dignitários. Seu filho Inlcaj Churin quer morrer com ele; Atahualpa o faz prometer que se retirará para Vilcabamba com
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seus fiéis e não reco nhecerá a dominação espanhola; um dia, seus descendentes pers eguirão os i n i migos barbudos recordando que este país foi o de Atabualpa, seu pai e único Senhor. Atabualpa volta-se conb'a Pizarro e lança-lhe uma maldição: ficará eternamente mancbado por seu sangue e os súditos do Inca jamais o respeitarão. O padre Valverde exorta Atabualpa para que aceite o batismo e confesse seus pecados. O Inca não compiOende. O padre Valverde apresenta-lhe a Bíblia; "Não me diz absolutamente nada", diz Atabualpa. O padre Valverde o amsa de blasfemo e exige seu C3stigo, porém lhe administra a extrema-unção. Pizarro atravessa Atabualpa com sua espada. Seguem-se lamentações do coro e dos súditos do Inca: o mundo inteiro participa na morte de Atabualpa. O coro, por sua vez, lança uma maldição contra Pi-13rro. A cena final reúne o Rei de Espanha e Pizallo: este oferece ao seu soberano a cabeça e o [IourudeAtabualpa. O Rei de Espanha se indigna com o crime, elogia o Inca e anuncia que Pi-13rro será castigado. Este maldiz sua espada e o dia que o viu nascer. Logo cai por terra morto.
Alguns dos temas aqui se repetem e, lIlesmo, se acentuaOL A incomunicabilidade entre índios e espanhóis, símbolo do abismo entre as dllas culturas, está presente no jogo cênico do movimento dos lábios realizado por Pizarro, como também no episódio da Bíblia.
Aliás, esta cena corresponde ao evento bistórico de Cajamarca, durante a entrevista entre Pizarro e Atabualpa. Segundo outras fontes, ao lbe ser proposta a religião C3tólica, Atabualpa rtalsa enfaticamente, alegando "que a sua é muito boa e se dava muito bem com ela"; além disso, "Jesus Cristo estava morto, mas o sol e a lua não morriam". Ao lbe ser entregue a Bíblia
como reveladora dos segredos da criação do mundo, Atabualpa "pegou-a, abriu-a, olbou-a de todos os lados e a folbeou". Dizendo queo livro nada lhe falava,jogouo no chão. O Padre Vicente, como ocorre no trecho acima, exige vingança. Esta não se fez demorar, e o Inca termina por ser preso.32
A cobiça dos espanhóis tem, igualmente, espaço privilegiado no espisódio do resgate. O seu valor teria sido fabuloso, conforme muitos bistoriadores o atestam. Duas das principais fontes da extrema violência do conquistador, a intolerãncia pela religião do outro e a ambição desenfreada, são aqui desnudadas?3
Aatitude digna de Atabualpa, sem qualquer b'aço de submissão mesmo nos piores momentos, é outro aspecto que extravasa da representação. Pode-se verificá-lo através de alguns episódios como a exortação a seu filbo para resistir aos espanhóis; a rnaldição que lança a Pizarro e a sua rejeição l Bíblia,já mencionada. lãl atitude não teria se distanciado da realidade, contrapondo-se à de Montezuma. Este teria se mostrado besitante e subserviente, não opondo resistência a Cortez. 34
O alcance cósmiCo do assassinato do Inca também fica insinuado no drama em foco. O Império desmoronou, uma vez que ele assegurava a barmonia universal. O filho do Sol "protegia seus súditos com sua sombra, fazia falar as montanhas e seu s0-pro punha o mundo em movimento". Perderam aqueles s"as referências, lamentando o terrfvel acontecimento que desestruturara sllas vidas. Só o retorno do loca poderá devolver 80 mundo a barmonia perdida.
Wacbtel informa que, na variante do drama em Oruro, o coro roga pela ressurreição do Inca. Em La Paz a representação frnaliza com a ressurreição e o triunfo de Atabualpa. Wachtel sugere que o castigo de Pizarro simbolizaria a expulsão dos espanhóis anunciada por Atahualpa. Desse conjunto depreende que um messianismo
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acha-se esboçado na tragédia. Menciona uma possível associação dessa manifestação com o mito conente entre os índios do Peru e da Bolívia de que, depois da morte de Atahualpa, sua cabeça é cortada, levada a Cuzco e enterrada. Soh a terra, cresce um corpo; quando estiver inteiramente reconstituído, o Inca surgirá, a dominação estrangeira terá fim, e será restaurado o antigo Império?5
A "Dança da conquista" na Guatemala revela, ao contrário da versão acima focalizada, forte influência espanhola, embora parcialmente conserve a tradição indígena. Esta tradição está presente no momento em que dois emissários deAlvarado exigem de Tecum o seu batismo, ameaçando-<l com a perda do seu reino. Tecum indignado expulsa� violentamente, afinnando ser o rei Dom Carlos algum louco delirante. A loucura é um tema presente na cultura indígena da região, encontrada no Chilam Balam que expressa a tradição dos maias do Yucatán. A infelicidade que assolou o mundo deve-se à loucura dos espanhóis, segundo esta obra.36
Na batalha decisiva, Tecum, depois de alçar VÔO duas vezes, tenta cortar a cabeça de A1varado, apenas conseguindo denubar seu cavalo; o espanhol disto se aproveita e o mata, concretizando-se as previsões oníricas de Tecum. Este último fato, igualmente, coincide com as crônicas indígenas?7
Porém, em seguida, toda a atmosfera muda. Zunum, sucessor de Tecum, detém o combate e decide receber o batismo; todos os índios seguem seu exemplo. Os espanhóis dirigem-se a Utatlán, onde o rei Quiché recebe-<>s com humildade. Este declara-se vassalo do rei de Espanha, narrando que se lhe apareceu o Espírito Santo em sonhos sob a fonna de uma pomba. Os antigos adversários confratemizam e os fudios recebem o batismo. A peça fUlaliza com louvações aos santos e à Virgem Ma-
• na.
A tradição indígena está presente, apenas, até a morte de Tecum. Em seguida a este acontecimento, modifica-se totalmente o espírito da obra, que passa a integrar o aporte espanhol. Apesa r disso, atualmente, os fudios tem outra leitura; interpretam-na como bomenagem à heróica resistência de Tecum e não como uma glorificação do cristianismo. As palavras de um "mestre" guardião destas tradições traduzem esta percepção:
A conquista recorda que as bostes espanholas, não mais fortes, porém melhor armadas ... não tiveram outra missão senão destruir, para aumentar os domínios de sua pátria e os vassalos de seu rei ... E sem saber-se desde quando, anualmente representa-se a conquista do Reino Quiché, como um merecido tributo à resistência que os antepassados fizeram ao invasor.38
Já a "Dança das plumas" mexicana caracteriza-se poruma total inversão da realidade. MonteZllma, que se mostrou de enorme fraqueza ante os espanhóis, manifestase destemido. Reage com determinação às propostas insólitas dos espanhóis, enquanto estes são humildes e bajuladores como podemos verificar no episódio abaixo.
A1varado, levado à presença de Montezum., beija seus pés e este o faz sentar à sua direita. Ao transmitir a mensagem de Cortez, que exige o seu batismo, Montezuma muda bruseamente de atitude e expulsa A1varado. Cortez, informado do resultado da missão, prepara-se para o combate. Montezuma decide enviar um embaixador oferecendo ouro e prata aos espanhóis em troca de sua retirada. Cortez, por sua vez, rechaça-<l violentamente.
Finalmente, MonteZllma e Cortez encontram-se. Depois de questionado, Cortez desmente ter-lhe exigido o batismo. Montezuma indigna-se e o ameaça: "Pretendes que meus deuses são falsos? Até
o DRAMA DA CONQUISTA NA FESTA 55
onde chega a tua insolência!" Inicia-se a batalha. Cortez é vencido e se rende. Montezuma o encarcera, porém recomenda que seja tratado com respeito. Cortez reconhece sua loucura e deseja a morte. Porém Montezuma o indulta e é liberado. Cortez agradece o gesto de Montezuma e lhe suplica o seu perdão?9
Realmente, temos a conquista do México pelo avesso, recurso muito presente na cultura popular. Aqui, porém, não aparece a irreverência que também lhe é típica. O resultado é a reconciliação entre índios e espanhóis, sob a superioridade indígena. Justamente, o inverso da realidade. Embora os fatos históricos aí estejam presentes, estes são recriados, segundo uma outra lógica. A "Dança das plumas", uma das variaÇÕes do drama relativo à conquista do México, revela-se o oposto da "Tragédia de Atahualpa". Nesta, como vimos, predomina a hostilidade entre fudios e espanhóis e, ao final, observa-se uma situação de inferioridade indígena, embora prefigurando uma vitória posterior de Atahualpa. A inversão aqui presente significaria uma forma simbólica dos indígenas se compensarem do comportamento submisso de Monteruma? Este comportamento foi considerado inexplicável por alguns dos cronistas e outros testemunhos espanhóis do momento, e constrangedor para os ú,dios.
A fragilidade demonstrada por Monteruma frente aos espanhóis, conJO se preferisse não usar seu imenso poder, é assim comentada por Gomara, capelão e biógrafo de Cortez:
Nossos espanhóis nunca puderam saber a verdade, porque na época não compreendiam a lingua, e, depois, já não vivia nenhuma pessoa com quem Montezuma pudesse ter compartilhado seu segredo.
Em alguns momentos o despreza:
Montezuma deve ter sido um homem fraco e de pouca coragem, para ter se deixado prender assim e, mais tarde, preso, por nunca ter tentado fugir, mesmo quando Cortez lhe oferecia a liberd a d e e seus próprios h omens suplicavam que a aceiCaS5e.
Conclui que este:
ou era muito sábio, passando pelas coisas assim, ou tão néscio que não as sentia.40
Na verdade, os signos pnderiam em muito ter contribuído para tal comportamento, na medida em que talvez tenham juslificado um certo fatalismo por parte dos indígenas. Embora, em face dos desmandos dos espanhóis, grande parte dos dirigentes astecas tenham passado a pregar e a travar uma luta encarniçada com os invasores, cbamando-os de bárbaros, derrubando-os do pedestal de deuse�. E este sentimento se manteria, através dos tempos, perpetuando-se na sua memória. A tal ponto que, ainda hoje, assiste-se a uma representação em que Montezuma é mostrado como um herói a�errido e Cortez aparece servil e inglório. 1
5. Considerações finais
A manutenção pelos indígenas de grande parte de Sllas tradições, entre elas as representaÇÕes por nós focalizadas, constitui-se em algo digno de nota. Vivendo na área correspondente aos grandes impérios pré- colombianos, os indígenas sofreram, da parte dos espanhóis, um controle que estes pretendiam total, no qual a violência foi a tônica. A reação a esta dominação fez-se se)ltir de múltiplas formas; não apenas através de revoltas, mas também de
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56 ESnmos HlSTóRlCXlS - 1!>921'l
outros tipos de resistência. Em grande medida, os indígenas faziam das aÇÕC5 rituais, das representações, das leis que lhes eram impostas, algo diverso do que o conquistador pensava obter. Eles as subvertiam, não rejeitando-as ou mudando-as, mas utilizando-as com fins e em função de influências estranhas ao sistema do qual não po-d· fu ' 42 13m glf.
Na aparência, aceitavam as normas impostas pelo colonizador, mas na intimidade do seu cotidiano mantinham seus valores, suas práticas, crenças. Dessa forma, observa-se a persistência signi ficativa de sua cultura, entremeada por elementos de origem hispânica, configurando uma interpretação cultural. A presença até os dias atuais destas dramatizações configura este fato, assim como a eficácia da resistência, levada a afeito por aqueles segmentos.
Wachtel considera que esta presença revela o trauma provocado pela conquista, cujos efeitos se fazem sentir sobre os índios até hoje. Tal acontecimento estaria ínscrito profundamente em suas estruturas mentais, constituindo-se num vestígio do passado no presente.43
Este autor parece conceber o fato de modo tradicional, vendo tais manifestaçóes como relíquias. Na verdade, a persistência dos acontecimentos da conquista na memória popular não exclui o fato de que os seus sig.úficados foram sendo atualizados em função das mudanças no contexto mais amplo; pois qualquer que seja a origem e o seu simbolismo manifesto, este é adaptado para um novo fim.
Deve-se destacar a organização criada pelos populares com vistas à realização desta manifestação. Tal fato sobressai ao lembrarmos que os indígenas nestes países ocupam o degrau mais baixo da escala social, numa posição equivalente aos negros no Brasil. Na Guatemala a tradição é conservada por um "mestre" de muito prestígio que possui um ou vários manuscritos, e cuja funçao, geralmente, passa de
pai para filho. Cabe-lhe ensinar a representação aos atores; decidida a encenação pelos habitantes de uma determinada localidade, estes chamam-no e retribuem seus serviços. Pagam-lhe as aulas e o aluguel das fantasias. A função de organizador da encenação, por outro lado, implica numerosos gastos: a hospedagem do "mestre" a rcalizaç.ão em sua casa dos ensaios e o fornecimento de bebida e alimento para os
. . 44 partIcIpantes.
O espetáculo se constitui numa fonte de significativa importância para detetar a visão dos popu la res sobre os acontecimentos e personagens da conquista, em que pese a influência espanhola que modificou mais intensamente o texto de algumas versões. De qnalquer forma, através de um cotejo com outras fontes, podemos realizar uma decantação das respectivas matrizes. Emerge destes textos uma atitude de admiração e respeito com relação aos soberanos indígenas. Estes são dignos, firmes, na sua rejeiçao às exigências dos conquistadores. Recusam com vccmência a imposição da religião cristã, sempre defendendo as sllas crenças, ao preço de suas vidas. AlguM deles têm sua postura confirmada por outros documentos. Tal é o caso de Atahualpa e de Tecum. No tocante a Montezuma, como já vimos, é realizada, numa das versões, uma invers.'io total no que tange ao seu comportamento ante os espanhóis. Apenas um deles, o rei Quiché na Guatemala, desde o início é apresentado como temeroso, claudicante. Sintomaticamente, ao fiml da "Dança da conquista", ocorre
.. . - . . . sua apoteohca oonversao ao cnsllarusmo, quando confraterniza com os conquistadores entoando loas à Virgem Maria. Daí se pode especular que se pretenda relacionar sua conversão à fragilidade por ele demonstrada.
Em contraposição, os espanhóis são vistos como arrogantes, arbitrários, opressores, ambiciosos e cruéis. A sua avidez pelo ouro é explicitada de forma até cari-
o DRAMA DA CONQUlST A NA FESTA 57
caturnl, particulannente na "Trngédia de Atabualpa". Na uDança das plumasu, mexicana, na qual predomina a inversão, estes aparecem humildes, submissos e até servis, características que outra documentação atribui a Montezuma. Na "Dança da ronquista", guatemalteca, na qual a influência espanhola parece ser maior, os espanhóis são amáveis, atenciosos, emborn não se desviem do seu proselitismo no tocante à religião cristã, indo até à guerrn parn alcançar seu objetivo. Apesardaquela influência, as máscarns indígenas apresentam um sorriso e as espanholas têm longos narizes e um semblante carregado.
Inúmeros elementos da mitologia e do simbolismo indígenas são encontrndos nestes drnmas. Nota-se uma atitude de reveréncia parn com os antigos deuses. Já os sacerdotes católicos, de maneirn idêntica aos demais espanhóis, são representados como intrnnsigentes, autoritários e cruéis. Esclarecedor, neste particular, é atentar parn o comportamento do padre Valverde com relação a Atahualpa. Aliás, um aspecto importante é o realce dado no drnma à intolerância religiosa dos conquistadores e à recusa enérgica dos sobernnos indígenas. A ênfase neste aspedO sobrepuja as menções relativas à excessiva· cobiça dos espanhóis. Denotaria este fato a maior sensibilidade dos índios aos esforços de extirpação de sua culturn, fator essencial de coesão e identidade desses grupos?
A internção culturnl está presente em inúmeru situações. Destaca-se o fato destas representações se realizarem em festas religiosas do calendário católico, das quais são a principal atrnção. Na Guatemala são antecedidas por ritos que lembrnm a antiga religião dos indígenas da região. Durnnte várias semanas os atores sobem, à meia noite, ao alto de uma montanha. Ali, pedem permissão parn encenar o drnma aos espíritos dos reis que vivenciarnm a conquista e aos deuses da montanha. Queimam copaI, incenso, recitam o antigo calendário
maia, fazem oferendas, acendem velas parn que nada de mal lhes aconteça. Entre outrns, a presença de elogios aos espanhóis e ã conversão dos índios, oomo ocorre na. própria Guatemala, denota esta internção.
Finalmente, importa ressaltar que esta é uma forma original de expressão dos populares. Nao encontrnmos exemplo similar na historiogrnfia sobre culturn relativa aos referidos segmentos, calcada na experiência européia que nos serve de parâmetro. Acentua-se, assim, a importância de nos debruçarmos sobre a culturn popular latino-americana, tão rica em simbolismos, em busca de alguém que os decodifique. Ton13-se necessário, em particular, observar sua contextualização, ultrnpassando a fonna, atentando-se parn as relações reais que nela se expressam. A culturn dos populares dessa área em grnnde medida ainda se mantém virgem, vista como folclore com todos os aspectos negativos que esta noção carrega. Poderemos, então, discernir se estes indígenas, ao encenar seus drnmas, pretendem apenas preservar a memória de seus antepassados, ou então lhes acrescentando novos significados, trnnsmutando os espanhóis de ontem naqueles que hoje os oprimem.
Notas
1 . Carlo Ginzburg, MiJos, emblema� sinais; morfologia e h ist6r;a, São Paulo, Campanhia das Lelras, t 989, p. 179.
2. RacheI Soihet, Um ensaio sobre res;stên· cia e circularidade cuúural: a festa da Penha (1890-1920), Cadernos do 1CHF n' 31, Niterói, UFF, ICHF, 1990; Monica Pimenta Velloso,"As tias baianas tomam conta do pedaço: espaço e identidade cultural no Rio de Janeiro", Estudos Históricos nO 6, Rio de Janeiro, Editora da Fun· dação Getútio Vargas, p. 207-228.
3. Peter Burke, Cultura popular na Idade Moderno, São Paulo, Companhia das Letras,
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58 • FSlUDOS HISTÓRlCXlS -1992}}
1989, p. 25; Oro F.S. Cardoso, A crise da uni· versidade ocidOlJal, Niterói, UFF, Dep� de História, p. 4 (mimeo).
4. Robert Damton, O grande massacre de gaJos, Rio de Janeiro, Graal, 1986, p. XIn.
5. Idem, ibidem, p. XV; Jacques Le Gorr, Refk:xõe.s sob,.. a história, Usboa, Edições 70, p. 49.
6. Carlo Ginzburg,A micro-hist6ria e outros ensaios, Usboa, Direi, 1991, 207.
7. Carla Ginzburg, O queijo eos vermes, São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 17.
8. Idem, ibidem, p. 21. 9. E.P. Thompson, A formação da classe
operária inglesa, vaI. 1, São Paulo, Paz e Terra, 1987, p. 10.
10. Idem, ibidem. Ver também "Folklore, antropologia e história n, Entrepassados,Ano U, rP 2, Buenos Aires, 1992, p. n.
11. Idem, ibidem, p. 64. 12. Michel de Certeau, L 'invenlion du quoti
dien, Paris, Uniao Générale D'Editions, 1980, p. 14.
13. Michel \bvelle, Ideologias e mentalidades, São Paulo, Brasiliense, 1987, p. 10.
14. Carla Ginzburg, MÍlos, emblemas, sinais, p. 144.
15. Georges Balandier é um exemplo de autor que assume uma posição desta natureza no seu trabalho O poder em cena, Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1982.
16. Michel Vovelle, op.cit., p. 246. 17. Natalie Zemon Davis, Cu/Juras do povo,
São Paulo, Paz e Terra, 1990, p. 87.
18. Mik,hail Bakhtin, A cu/Jura popular na Idade Média e no RenascimenJo; o conlex/o de François RabeiDis, São Paulo, Hudtec/Ed. Universidade de Brasnia, 1987, p. 7.
19. Idem, ibidem, p. 8.
20. Idem, ibidem,. 21. Mona Ozour, "A resta sob a Revolução
Franc( ss" em História: 110\.108 objetos, Rio de Janeiro, Francism Alves, 1976, p. 230.
22. José Alvaro Moisés, Reflexões sobre o estudo do populismo na América Latina, Niterói, p. 10 (mimeo).
23. Nathan Wacbtel, Los vencidos; los indias dei Perú frente a la conquista espaiiola
(1530-1570), Madrid, Alianza Editorial, p. 63 el • passlm.
24. As nustas são princesas indígenas e compõem o coro na representação.
25. Trata-se de um pássaro com plumagem vermelha.
26. fdolo, lugar sagrado. 27. Tais aspectos enoontram.-se mais detalha
dos, enriquecidos rom citaçôes de fontes, no trabalho de Jorge Luiz Ferreira, Conquista e
colonização da América Espanhola, São Paulo, Ática, 1992, p. 38.
28. N. Wacblel, op.cit., p. 74,76, 82. 29. Andrew Samuels et aI., Dicionário críti
co de análise junguiana, Rio de Janeiro, Imago, 1988, p. 208.
30. O texto do drama em fooo enoontra-se na
obra já citada de N. Wacblel à p. 67. 31. O comportamento de Pizarro e seus com
panheiros encontra-se descrito. a partir de fontes da éJX)C3, em Josetina Oliva de CoII,A resistência indígena, Porto Alegre, LPM, 1986, p. 209.
32. F. Lopez de Gomara, Histoire génirale des lndes, 1568, apud Ruggiero Romano, Mecanismos da conquista espanhola, São Paulo, Perspectiva, 1973, p. 77. Também em Jorge Luiz Ferreira, op.cit., p. 39.
33. Enlre outros, Miguel-Léon Portilla, A conquista da América Latina vista pelos índios; relatos astecas, maiase incas, Petrópolis, \bzes, 1984. Através de sua obra verifica.-se que várias fontes referem-se aos referidos aspectos; segundo OJaunu, o resgate pago por Atabualpa, ao qual se refere o trecho, equivaleria a meio século de roda a produçáo européia. Henri Favreafirma que transformado em moeda atual, chegaria à cifra de rem milbões de dólares. Tais observaçôes encontram-se em Jorge Luiz Ferreira, op.cit., p. 41.
34. Frei Bartolomé de Las Casas acentua a altivez de Atabualpa frente ao tratamento de que lhe deu Pizarro em Brevissima relaçdo da datruição das Indias; o paraíso destruído, Porto Alegre, LPM, 1984, p. 98. No tocante à hesitação e debilidade de Montezuma ante aos espanhóis, ver Tzvetan Todorov, A conquista daAINérica; a questão do outro, São Paulo, Martins Fontes, 1988, p. 54; também, Josefina Oliva de CoII, op.cit., p. 67.
35. N. Wachlel, op.cit., p. 69.
o DRAMA DA mNQUlSTA NA FESTA 59
36. O Chilam Balam de Chumayel é uma obra maia, coostaooo de vári05 1i\lTOS com textos que datam do século XVI, embora tenham sido transcritos posteriormente.
37. Josefioa O. de CoII transcreve o relato promenorizado dos feitos de TeClJm, ClJlminando com 8 ap(f seotação de sua morte na página 97.
38. Francisoo Javier Garcia, EI baile de la ClNlql'islll, Quezalleoango, 1934, .püd N. Wachiei, op.cit., p. 83.
39. Wachtel, p. 83.
40. T. Todorov, op.cit., p. 55.
•
•
41. Todorov faz um brilhante tratamento do comportamento de Montezuma, relaciooaodo-o com os signos próprios à cultura asteca. a partir da página 61.
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42. M. de Certeau, op.cit., p. 12. 43. N. Wachtel, op.cit., p. 63.
44. Idem, ibidem, p. 74.
Rachei Soihet é professora do Departamento de História da UFF .