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REENCARNAÇÃO:PRÓS
E CONTRASPe. Estêvão Bettencourt C.S.B.
APRESENTAÇÃO
O tema "Reencarnação" ocorre frequentemente quando se discute o
sentido da vida. As indagações que esta suscita parecem, às vezes,
poder resolver-se pelo recurso a encarnações anteriores. Todavia esta
"solução fácil" nada resolve, pois é preciso confessar que as "encarnações
anteriores" ainda são menos lúcidas ou mais misteriosas que a vida
presente. Quem é que saberia contar os enredos de suas existências
pregressas? Por conseguinte, é oportuno examinarmos os fundamentos
com que muitos apelam para a tese da reencarnação: quais os
argumentos em que se apoiam? E qual a força de tais dados, à luz da
Psicologia, da Parapsicologia, da Filosofia e da Bíblia Sagrada?
A fé cristã ensina que certas interrogações suscitadas pela existência
presente são, para nós, de difícil penetração, não porque uma força cega ou
mecânica esteja a reger a nossa história, mas porque um Grande Amor
exerce a sua sábia Providência sobre nós. Tal é o amor de Deus, que,
sendo infinitamente perfeito, não pode ser plenamente compreendido por
nossa inteligência criada. Se há interrogações; em nossa vida, estas se
devem ao fato de os desígnios de Deus ultrapassarem longe o nosso limitado
entendimento. Quando não compreendemos o plano de Deus, is to se dá
porque Ele é mais Amor do que podemos imaginar. Um d ia, quando o virmos
face-a-face (c f . 1Cor 13 , 12 ; 1Jo 3 ,2 ) , teremos a resposta para as
dúvidas que hoje gostariamos de resolver recorrendo a hipóteses.
O presente opúsculo, aborda a temática da reencarnação sob seus
vários aspectos, a fim de ajudar, em termos simples, a reflexão das pessoas
interessadas. Estas sentem, por vezes, a necessidade de explicações que
em poucas palavras vão ao essencial.
Possa este opúsculo prestar serviço aos seus leitores e levá-los a 2
compreender melhor que o amor do Deus irreversível está na raiz da existência
de todo homem, a fim de conduzi-lo à plenitude da Vida através da caminhada
da existência presente!
Estêvão Bettencourt, O.S.B.REENCARNAÇÃO: PRÓS E CONTRAS
SUMÁRIOApresentação .................................................................................2
1. Que é reencarnação'? .............................................................. 4
2. Reencarnação: Sim ou Não? ...................................................... 4
2.1. Razões de ordem psicológica
2.1.1. Narrações feitas em sono hipnótico ...............5
2.1.2. O fenômeno da paramnésia .......................... 7
2.1.3. E os gênios? .................................................. 8
2.1.4. Aprender é recordar ....................................... 8
2.1.5. As simpatias e antipatias ............................... 9
2.1.6. As tendências e inclinações ........................ 10
2.1.7. Os instintos .................................................. 10
2.1.8. As semelhanças e dissemelhanças ............ 10
2.2. Razões de ordem filosófico-religiosa
2.2.1. A desigualdade de sortes ............................ 11
2.2.2. O inferno ...................................................... 12
2.3 Razões de ordem natural
2.3.1. A lei dos contrários ...................................... 13
2.3.2. Natureza cíclica ......................................... 13
2.4. Razões de ordem histórica
2.4.1. Povos não-cristãos ................................ 14
2.4.2. Na tradição da Igreja ............................. 14
2.5. Razões de ordem bíblica
2.5.1. João Batista e Elias .................................................... 16
2.5.2. Jesus e Nicodemos ........................................... 16
2.5.3. Jesus e o cego de nascença ............................. 173
3. Conclusão ......................................................................... 17
REENCARNAÇÃO: PRÓS E CONTRAS
A Crença na reencarnação tem-se alastrado não só entre os não
cristãos, mas também entre os fiéis católicos. Muitos destes, mal
informados sobre o assunto, julgam poder conciliar entre si a fé católica e
a doutrina da reencarnação. Eis por que, nas páginas seguintes,
abordaremos: 1) a noção de reencarnação; 2) os argumentos debatidos
em torno do assunto; 3) Reencarnação e Ressurreição.
1. QUE É A REENCARNAÇÃO?Reencarnação significa a volta de um espírito ou elemento psíquico
à carne ou ao corpo. Supõe que determinado espírito tenha animado um
corpo em vida anterior; ter-se-á desencarnado e, após certo intervalo,
haverá retornado à terra assumindo outro corpo. As reencarnações são
regidas pela lei do Karma, que, conforme seus defensores, obriga todo
indivíduo a pagar (expiar) em encarnação posterior as falhas cometidas
na vida presente; seria uma lei cega. Deixaria de se exercer desde que a
pessoa não tivesse mais; pecado a expiar; isto lhe permitiria desencarnar-
se definitivamente.
Segundo os povos de tradição hinduísta, a reencarnação pode
ocorrer em corpo de animal irracional (daí o respeito de muitos pelos
animais infra-humanos). Os ocidentais, porém, acreditam que as
transmigrações das almas se dão apenas de um corpo humano para
4
outro.
Além das correntes religiosas derivadas da Índia, devemos
mencionar que várias escolas filosófico-religiosas ocidentais adotam a
crença da reencarnação: assim o Espiritismo, a Rosa-Cruz, o
Essencialismo, a Logosofia, a Antroposofia, etc.
A palavra reencarnação tem seus sinônimos ou quase sinônimos:
metempsicose (transmigração das almas), metensomatose (mudança de
corpo), palingenesia (repetido nascimento), pluralidade de existências etc.
Perguntamo-nos agora: quais os argumentos geralmente aduzidos
nos debates em torno da reencarnação?
2. REENCARNAÇÃO: SIM OU NÃO?A tese da reencarnação luta com a grande dificuldade de, em
estado psíquico normal, ninguém ter consciência ou reminiscência de já
haver existido no corpo em uma pré-vida. É o que reconhece
sinceramente um ardoso adepto moderno da reencarnação:
"O mais importante argumento contra a reencarnação é o
esquecimento quase geral das vidas passadas; são extremamente raras
as recordações de reencarnação; eis por que podem ser consideradas
como ilusões individuais... Se é verdade que já vivemos algumas vezes,
como se explica não só o esquecimento geral (das vidas anteriores), mas
o esquecimento dessas vidas por espíritos elevados e sobretudo pelos
místicos, que penetram até a essência do ser?" (W. LUTOSLAWSKI,
Preesistenza e Reincarnazione, p. 61s, citado por SIWEK, A
Reencarnação dos Espíritos. São Paulo 1946, p. 192).
Ora, para quem ignora o motivo pelo qual está destinado a se purificar
neste mundo (ou pelo qual se reencarnou), é vã a sanção ou a
reencarnação. A justiça humana exige que o réu castigado saiba por
que é punido; o bom senso se revolta contra punição que não tenha
explicação. Para que eu me possa emendar dos erros pelos quais sou
punido, devo saber quais foram. Até mesmo o cão que é castigado por
ter sujado a casa, é instruído a respeito da falta que cometeu. Notemos
as sábias palavras de Enéias de Gaza († 520 aproximadamente):
"Quando tenho de castigar meu filho ou meu servo, ...começo por
admoestá-los a fim de se lembrarem bem para o futuro e assim poderem
evitar recair no mesmo erro. Não deveria Deus, quando envia as mais
terríveis punições, instruir aqueles que as sofrem, a respeito do motivo
desses castigos? Poderia Ele tirar-nos de todo a recordação de nossos
crimes? ...que proveito se há de esperar da punição, se ninguém nos
mostra qual foi a nossa culpa? Em verdade, semelhante castigo vai
contra o que pretende: irrita e leva à revolta" (Theophrastes, PG
85,302).
Não obstante, os reencarnacionistas julgam poder valer-se de
razões de ordem psicológica, filosófica, física, histórica e bíblica para
firmar a sua tese. Examinemos, pois, tais argumentos.
2.1. Razões de ordem psicológicas 2.1.1. Narrações feitas em sono hipnótico
1. Para estudar este assunto, vamos, antes do mais, relatar a
história de Virgínia Tighe ocorrida em 1952 nos Estados Unidos da
América, pois tal é o caso mais famoso e típico entre os congêneres.
Virgínia Tighe foi hipnotizada por Morey Bernstein, honrado
comerciante de Pueblo, Colorado (U.S.A.), de 36 anos de idade, que se
dedicava ao hipnotismo à guisa de passatempo, sem ser especialista no
assunto. Levando a Sra. Virgínia à regressão de idade, fê-la "transpor o 5
limiar desta vida e passar para a sua existência pregressa": Virgínia
então contou que no século XIX vivera na Irlanda com o nome de Bridey
Murphy. Teria nascido aos 20/12/1798 em Cork, Irlanda. Aos 15 anos de
idade, estudava. Casou-se com Sean Brian MacCarthy, filho de um
advogado de Cork, e foi morar em Belfast, conforme o enredo
apresentado. Divertia-se tocando a lira e dançando a Jiga. Comprava
sua roupa no Cadenns House. O seu marido era professor de Direito na
Quenn's University de Belfast e escrevia artigos para o periódico News-Letter da cidade. Bridey terá morrido num domingo de 1864, vítima de
uma queda. Descreveu seus funerais e sua vida desencarnada; ressaltou
que não passara pelo purgatório, ao contrário do que lhe insinuara o Pe.
John Goran, da igreja de Santa Teresa. Acrescentou ainda alguns dados
sobre a sua nova encarnação, em curso desde 1923.
A história contada por Virgínia nessa "encarnação anterior" era
muito vivaz e minuciosa; a narradora usava sotaque irlandês e expressões
regionais da Irlanda, dançava a Jiga e apresentava particularidades tão
verossímeis que parecia realmente ter experimentado tudo quanto ela
descrevia. Impressionado com tais resultados, Morey Bernstein mandou
uma comissão de peritos à Irlanda para averiguar a genuinidade das
narrações; estes — como também os repórteres do Post de Denver, do
Daily News de Chicago e do Life, que se lhes seguiram — puderam
comprovar a veracidade de vários tópicos do enredo narrado; outros não
foram confirmados; pareciam mesmo anacrônicos (por exemplo, Bridey
Murphy teria raspado toda a pintura de sua cama de metal quando tinha
quatro anos de idade em 1802; ora antes de 1850 não havia camas de
metal na Irlanda). Em janeiro de 1956 Morey Bernstein publicou os
resultados de todas as suas experiências e pesquisas no livro The Search of Bridey Murphy (A procura de Bridey Murphy), de 256 páginas; em
poucas semanas venderam-se 170.500 exemplares dessa obra!
O fato é que, para muita gente, o fenômeno Bridey Murphy parecia ser a
prova cabal de que existe reencarnação; as grandes revistas ilustradas da
Europa e dos Estados Unidos publicaram longas reportagens sobre o
caso Bridey Murphy, insinuando tal teoria; tenha-se em vista especial-
mente a revista Life (edição espanhola) de 9/4/1957. Multiplicaram-se as
sessões de hipnotismo destinadas a descobrir e identificar "encarnações
anteriores" dos respectivos pacientes; em jornais apareceram anúncios
de hipnotizadores que se prontificavam para detectar vidas pregressas
dos seus clientes ao preço do US$ 25 por cada existência desvendada.
As consequências deste reboliço foram sensacionais: na Califórnia, Mr.
Hypnosis fez "retroceder" uma mulher que fora cavalo em 1800! Em
Shreveport, Luisiana (U.S.A.), registrou-se o recorde: um rapaz de 17
anos hipnotizou uma moça que recuou dez mil anos no tempo. Em Sha-
wnee, Oklahoma, um jovem de 19 anos, chamado Richard Swink, redigiu
a seguinte mensagem: "Sinto muita curiosidade acerca do relato de
Bridey Murphy; por conseguinte, quero ir investigá-lo pessoalmente": e
suicidou-se com um tiro!...
Todavia muitos estudiosos revelaram menos entusiasmo; quem
conhecia psicologia e hipnotismo, não se impressionava com o livro de
Bernstein, pois não apresentava novidades. Durante decênios os
reencarnacionistas já haviam apontado casos semelhantes, embora
menos vultosos. Eram, por exemplo, conhecidas as experiências do coro-
nel Albert de Rochas que, no início do século XX, teria induzido uma
paciente hipnotizada a reviver onze "encarnações"; em 1887 o espírita
Fernandes Colavida "magnetizara" um médium que conseguia recordar
quatro de suas "reencarnações"; os teosofistas Annie W. Beasant e
Leadbeater referiam várias experiências do mesmo tipo.
O caso de Bridey Murphy fói finalmente desvendado, quando em Chicago
o pastor protestante Wally White se pôs a acompanhar o enredo narrado 6
por Virgínia. O Rev. White conhecera a jovem Virgínia, quando
frequentava a igreja dele; em uma série de artigos para o Jornal American
de Chicago, revelou que, como criança, Virgínia vivia do outro lado da rua
em que residia a Sra. Bridie (não Bridey) Murphy Corkell; pôs-se a
namorar o filho dessa senhora irlandesa, de modo que ia frequentemente
à casa desta e ouvia as histórias autobiográficas narradas por Bridie
Murphy Corkell, com sotaque irlandês e com recurso ao folclore e ao lin-
guajar próprios das regiões de Cork e Belfast; Virgínia absorvia essas
histórias com grande interesse, a ponto de se identificar (até certo grau)
com a senhora irlandesa, que ela julgava seria a sua futura sogra.
Todavia desfez o namoro e esqueceu as experiências vividas em casa de
Bridie Murphy Corkell. Contudo ficaram no seu inconsciente todas as
reminiscências que lhe haviam sido transmitidas pela irlandesa. Ora, anos
depois colocada em sono hipnótico por Bernstein, Virgínia (como toda
pessoa hipnotizada) perdeu o controle de si mesma e deixou-se
comandar totalmente pelo hipnotizador. Ele lhe ordenava (como narra o
próprio Bernstein): "quero que sua mente retroceda mais e mais... Há
outras cenas, de terras distantes e lugares longínquos, em sua memória.
Você poderá falar-me sobre elas e responder às minhas perguntas". Foi
imediatamente após esta ordem que Virgínia Tighe se converteu em Bridey
Murphy, de Cork na Irlanda; para desempenhar o papel correspondente,
tirou do seu inconsciente as noções que a velha irlandesa lhe tinha
narrado e que ela passou a apresentar como suas próprias experiências
de vida pregressa. — O pastor Wally White revelou que Virgínia, jovem,
fizera declamações em irlandês,... que aos sete anos de idade havia
raspado a pintura de sua cama de metal e, em consequência, levara uma
surra (façanha esta que Virgínia atribuía a "Bridey Murphy" na encarnação
anterior). O nome do esposo de Bridey — Sean Brian MacCarthy —
explicava-se bem: Sean é a forma irlandesa de João (nome do filho de
Bridie Murphy Corkell, que Virgínia namorara), e Brian era o nome do
esposo atual e real de Virgínia Tighe... Assim vários pormenores da vida
de Virgínia Tighe, oportunamente investigados, coincidiam com o enredo
atribuído a Bridie Murphy e o elucidavam suficientemente; evidenciava-se,
desta maneira, que, para atender ao comando de Bernstein, Virgínia não
havia narrado senão experiências de sua vida presente, livremente
associadas entre si. Tornava-se inútil ou mesmo anticientífico o recurso à
reencarnação.
2. Narrado e desvendado o caso de Virgínia Tighe, podemos propor
as seguintes considerações:
As pesquisas sobre as narrações de vida pregressa feitas em sono
hipnótico permitem dizer que se trata de fenômenos letárgicos, assim
explicáveis: habitualmente temos conscientes apenas 1/8 dos
conhecimentos que adquirimos desde a infância; os 7/8 restantes ficam
no inconsciente, como que ignorados. Contudo, por efeito de choque psi -
cológico forte, as noções latentes podem aflorar à mente e combinar-se
de muitas maneiras, dando ocasião a que o indivíduo fale e proceda como
se houvesse mudado de personalidade. É o que se verifica, por exemplo,
quando alguém é colocado em estado de transe: um hipnotizador que
possua domínio sobre seu paciente, pode sugerir-lhe que experimente as
situações mais estranhas e ridículas: o hipnotizado sentirá então
sucessivamente calor e frio com sintomas típicos destas situações; fará
convictamente as vezes de soldado, de General e de Rei, de ricaço e de
mendigo, de acordo com as sugestões que o operador lhe quiser incutir;
retrocederá no tempo, comportando-se como criança, tomando voz
infantil, mostrando-se tagarela e caprichoso; tentará engatinhar,
escreverá com letra de aprendiz de escola primária. E, se o hipnotizador
insistir, conseguirá que seu paciente "ultrapasse o limiar da vida
presente", contando episódios de uma vida anterior à atual, episódios 7
que, uma vez analisados, se evidenciam como fatos ocorridos ao
hipnotizado na existência atual, mas diversamente associados pela
fantasia. Da mesma forma, o operador poderá fazer que o paciente
antecipe o futuro ou a velhice, tomando a voz rouca e trêmula de um
ancião. Vale a pena registrar o seguinte: o hipnotizador que em
Shreveport (Luisiana) conseguiu levar diversas pessoas a vidas
pregressas, cometeu um descuido ao enfrentar o quarto paciente: em vez
de lhe dizer: "Quero que você retroceda... mais... e mais... através do
tempo... até outro lugar...", disse "...mais... e mais... até outro mundo". O
paciente então anunciou imediatamente que era um ser estranho chamado
"C", que vivia na Luz e que realizava viagens interplanetárias num disco
voador!...
Também é significativo este particular: em geral, as pessoas que
dizem recordar-se de suas existências passadas, apresentam-se como
personagens importantes. O observador Douglas Home declarava que já
tivera a honra de encontrar ao menos doze Maria Antonieta, rainha da
França, seis ou sete Maria Stuart, rainha da Inglaterra, multidão de São
Luís e outros reis, uns vinte Alexandres e Césares; nunca, porém, se
defrontara com personagem insignificante... Ora quem entra numa clínica
de doentes mentais, tem fácil oportunidade de conversar com muitos
"vultos eminentes" da história passada. As pretensas afirmações de reen-
carnação não serão, pois, em vários casos, expressões requintadas da
megalomania de indivíduos psicopatas?
2.12. O fenômeno da paramnésia
Muitas pessoas que vão, pela primeira vez, a determinado
lugar, têm a impressão de já haver estado aí, reconhecendo o
ambiente com suas características. Pergunta-se: como explicar tal
fenômeno, dito de paramnésia, senão pela reencarnação? Em vida
pregressa, a pessoa já teria visitado tal lugar.
— A propósito, podem-se fazer quatro considerações, que
dispensam a reencarnação.
a) Às vezes a pessoa não esteve conscientemente no lugar,
mas lá esteve inconscientemente; ora o inconsciente (mesmo o de uma
criança de colo) colhe impressões e as guarda latentes. Digamos, pois,
que uma criança seja levada a uma praça pública ou a um cemitério;
trinta anos mais tarde supostamente, esta pessoa volta a tal ambiente;
compreende-se que o reconheça imediatamente... Afirmará
conscientemente já ter visitado o lugar — o que será verdade, não,
porém, numa encarnação anterior.
b) Pode acontecer também que a pessoa tenha visto imagens
do lugar em fotografias de livros ou filmes — o que leva a crer que já
tenha estado no lugar.
c)Existe também a explicação pela hiperestesia. Há pessoas cujo
inconsciente é capaz de ler o inconsciente de outrem. Ora, se vou ao
Japão pela primeira vez e tenho a impressão de já ter estado lá, posso
perguntar-me se nunca me achei ao lado de uma pessoa que já tivesse
estado no Japão. Caso positivo (o que é plausível), eu terei percebido
inconscientemente o que o amigo vira conscientemente e trazia no seu
inconsciente.
d) Acontece também que há muitos objetos semelhantes, de
modo que, ao dizermos que já vimos algo, podemos estar confundindo
esse algo com algum semelhante.
Em suma, há várias explicações para o fenômeno da
paramnésia dotadas de base científica; a única destituída de
fundamento seria o recurso à reencarnação.
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2.1.3. E os gênios?
As pessoas geniais, segundo os reencarnacionistas, seriam
espíritos que se aperfeiçoam em numerosas encarnações
anteriores.
— Tal explicação é gratuita. Quem observa os gênios, verifica
que não nasceram sabendo, mas são pessoas que estudam e
pesquisam concentradamente ou sem dispersão. Ora, isto supõe
inteligência perspicaz e vontade decidida, mas não su põe
encarnações anteriores.
Quanto a crianças-prodígio, pode-se obser var o seguinte:
Muitas vezes as crianças-prodígio são as que aprendem com
rapidez e facilidade. Todavia estes predicados se devem à
constituição nervosa de tais crianças, de tal modo que raramente
elas se torna pessoas talentosas. Ao contrário, as crianças apa -
rentemente não talentosas, mas dotadas de natu reza calma,
aprendem de maneira mais contínua e podem chegar a ser
pessoas de importância ou mesmo geniais.
Deve-se observar que as crianças tidas como prodígios em
matemática ou música são como as demais crianças em outros
setores de atividade intelectual. Ora, verif ica-se que os prodígios
do cálculo são os mais mecânicos que há, pois as máquinas
calculadoras os podem reproduzir (sem ter inteligência): às vezes,
pessoas pouco prendadas têm extraordinária facilidade para o
cálculo — o que mostra que este não é o sinal de prodígio nem
de genialidade. Algo de semelhante se diga em relação aos
prodígios musicais.
2. 1.4. Aprender é recordar
Há pessoas que aprendem com tanta facil i dade que dão a
impressão de que estão apenas avivando conhecimentos já
adquiridos (no caso... adquiridos em vida pregressa). O argumento
não é recente, pois já Platão († 348 a.C.) o util izava: no diálogo
Ménon refere que Sócrates fazia perguntas a um escravo, que
respondia acertadamente; ora, tais respostas, segundo o fi lósofo,
revelavam a aquisição de conhecimentos numa vida anterior à
união da alma com tal corpo. Platão observava ainda que todos
os homens trazem conhecimentos em estado latente, que não
foram adquiridos na vida presente, mas, sim, numa encarnação
anterior.
Já Santo Agostinho († 430) criticava tal argumentação,
ponderando que as respostas acertadas eram sugeridas ao
escravo pelo próprio modo como eram feitas: "A proporção que lhe
faziam perguntas bem graduadas e coordenadas, o escravo via o que
lhe apontavam e contava o que via" (De Trinitate, XII 15; PL 42, 1011).
Observemos ainda que a arte de estudar e aprender é uma
atividade psicossomática; está em relação não só com o psíquico do
estudioso, mas também com as suas disposições físicas ou corporais; a
imbecilidade, a debilidade mental ou idiotice... são consequências de
lesões do organismo e, em especial, do cérebro. De outro lado, os espí-
ritos ditos "mais evoluídos" beneficiam-se de disposições orgânicas e
fisiológicas que tornam a aprendizagem mais fácil, imediata e intuitiva.
Uma alma bem dotada, num corpo sadio, é naturalmente propensa a
rápida e perspicaz apreensão da verdade.
2.1.5. As simpatias e antipatias
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Duas pessoas que não se conhecem mutuamente, podem
experimentar viva simpatia ou antipatia uma pela outra, ao se
encontrarem pela primeira vez. Os reencarnacionistas tentam explicar o
fenômeno afirmando que eram amigos ou inimigos em encarnação
anterior.
— Sem o recurso gratuito à reencarnação, tal fato se pode elucidar
de quatro maneiras:
a) Os psicólogos falam de "recordação traumática": uma ocorrência
insignificante da infância ou da juventude de alguém pode deixar marcas
no psiquismo dessa pessoa para o resto da vida. Assim uma criança que
sofra uma emoção desagradável por parte de um animal (sapo, cachorro,
gato, serpente...), poderá sentir, por toda a sua existência, profunda
repulsa por tais animais. O mesmo efeito pode provir de certas pessoas
ou de certos nomes de pessoas: conta-se o caso de alguém que, ao
frequentar o Grupo Escolar, voltava quase diariamente para casa com
uma turma de crianças, entre as quais uma menina de nome Hildegarda,
que era grandona e detratora; bastou isto para que mais tarde sentisse
antipatia por qualquer mulher de nome Hildegarda. Também se diz que o
filósofo René Descartes sempre alimentou simpatia por olhos vesgos,
porque a primeira mulher que ele amou, sofria deste defeito. Em suma, a
psicologia registra numerosos casos em que a emoção-choque já há
muito desapareceu, mas persiste o estado emocional correspondente.
b) Os psicólogos também conhecem a "lei da individualidade dos
instintos", que assim pode ser formulada: quando algum instinto nosso se
satisfaz plenamente com determinado objeto, perde o interesse por
qualquer outro objeto da mesma espécie; daí provêm simpatias
irrefletidas para com certos lugares e certas pessoas, como se só esses
lugares e essas pessoas fossem capazes de nos trazer a felicidade.
c) Também a lei das associações psicológicas explica muitos casos
de simpatia à primeira vista: as pessoas com que nos encontramos pela
primeira vez, nos lembram (por suas semelhanças nas feições, no modo
de falar, no olhar, nos gesto...) outras pessoas que nos são raras ou
avessas. Daí as simpatias e antipatias espontâneas.
d) Outras vezes os sentimentos de simpatia ou antipatia têm fundo
sexual (sex-appeal); trata-se de algo natural, nem sempre dotado de
características perversas.
Todas estas explicações dispensam a reencarnação.
2.9.6. As tendências e inclinações
Algumas crianças sentem forte inclinação para alguma
profissão ou arte: querem tornar-se soldados, aviadores,
engenheiros, artistas de cinema ou televisão... Ora, isto, dizem-nos,
só se explica porque tais pessoas exerceram tal profissão ou arte em
encarnação anterior.
Respondemos: se tais inclinações provêm de uma vida anterior,
devem ser inatas. Ora, é difícil admitir que alguém tenha sido
astronauta, locutor ou artista de televisão... em encarnação anterior,
visto que se trata de profissões recentes. Deve, pois, haver outra
explicação para o fenômeno; com efeito, a psicologia ensina que, se
alguém ouvir, desde a infância, elogiar certa arte ou ciência, poderá
facilmente conceber o seu futuro em função de tal arte ou ciência.
2.1.7. Os instintos
É costume sentirmos inclinações para certas coisas e aversão por outras;
trata-se de instintos que trazemos inatos e não adquiridos nesta vida; por
conseguinte são provas de encarnações anteriores, conforme os 10
reencarnacionistas. "O homem que revela talento musical, talvez tenha sido
rouxinol; o que possui grandes capacidades para arquiteto, talvez ante-
riormente tenha vivido como castor", escreve o espírita L. Figuier (Dopo
Morte, p. 336).
— Observamos que todos os homens, assim como os animais
irracionais, têm instintos congênitos, sem os quais não poderiam
sobreviver (alimentar-se, defender-se...), mas pereceriam fatalmente; os
instintos básicos pertencem à estrutura dinâmica de qualquer organismo
vivo. Além dos instintos fundamentais, compreende-se que os seres
humanos tenham instintos peculiares, característicos da respectiva
personalidade; habilitam seus portadores a exercer suas funções na
sociedade ou a se entrosarem na comunidade humana— sem o que
ninguém se auto-realiza.
2.1.8. As semelhanças e dissemelhanças
Quando, após a morte de certa pessoa, nasce outra, notavelmente
semelhante à falecida, dizem alguns estudiosos que estamos diante de
um caso de reencarnação; o espírito do defunto estaria voltando a este
mundo num corpo quase idêntico ao da encarnação anterior.
— Em resposta, pode-se observar: os reencarnacionistas não se
surpreendem de que um filho seja semelhante ao pai ou à mãe, pois isto
se explica naturalmente pelas leis da genética, sem necessidade de
recursos à reencarnação. Todavia, se nasce uma criança parecida com o
falecido avô ou bisavô ou algum outro parente "desencarnado", há quem
julgue que o surpreendente fenômeno deva ser explicado pela pluralidade
das existências. Na verdade esta tese revela a ignorância dos mais
recentes estudos concernentes à hereditariedade de caracteres físicos
(cor, feições, altura...) e psíquicos; ao gerarem uma criança, os pais condi-
cionam os seus traços somáticos e as faculdades psíquicas que
dependem destes (todas as ações humanas são atos de um composto
psicossomático).
Note-se ainda que, mesmo entre pessoas não consanguíneas,
podem existir extraordinárias semelhanças. É vão, porém, querer explicá-
las pela hipótese da reencarnação, visto que tais indivíduos não
consanguíneos são, muitas vezes, contemporâneos entre si, de modo
que um não pode ser a reencarnação do outro.
Há quem argumente em favor da reencarnação a partir do fato
contrário. Com efeito, dizem, entre filhos dos mesmos pais encontram-
se surpreendentes diferenças de capacidade intelectual e de caráter
moral; numa família de lar tranquilo, nasce às vezes um indivíduo de
espírito indisciplinado e vadio; ocorre que até entre gêmeos se deem ca-
racteres e temperamentos muito diversos. Isto tudo parece desafiar as
leis da hereditariedade e exigir explicação pela teoria da reencarnação.
Em contraparte, observamos que tal hipótese supõe noção
demasiado estreita da hereditariedade e do atavismo. Além disto,
não leva em consideração os fatores acidentais que afetam a vida
intra-uterina, o nascimento, a primeira infância de cada indivíduo e
que devem ser examinados um por um, em cada caso particular.
2.2. Razões de ordem filosófico-religiosa
2.2.1. A desigualdade de sortes
Um dos mais frequentes argumentos filosóficos é o das
desigualdades. Uns nascem ricos, sadios e muitos prendados, ao
passo que outros vêm ao mundo doentes, aleijados e pobres... Ora,
dizem-nos, isto só se pode explicar pelo fato de que uns e outros 11
viveram encarnações anteriores; por seus méritos ou deméritos
(sancionados pela lei do Karma), obtiveram sorte feliz ou
desgraçada para a sua presente encarnação. Com efeito, a lei do
Karma ensina que todo ato mau cometido é uma dívida contraída que
deverá ser paga; se não o for nesta existência mesma, será paga na
seguinte ou nas seguintes.
— Respondemos:
a) É gratuito o pressuposto de que todos os homens devem ter
começado a existir em iguais condições físicas e psíquicas. Deus é
soberanamente livre para criar quem Ele queira e como Ele queira. O
mundo inteiro está cheio de criaturas variegadas; não há sequer duas
folhas ou duas flores absolutamente iguais entre si. É precisamente esta
variedade que faz a beleza e a harmonia do universo. — O que a justiça
divina nos assegura, é que cada criatura, dentro da sua própria realidade,
recebe as graças necessárias para chegar á plenitude da perfeição; sem
dúvida, o Senhor Deus chama cada ser humano à perfeição e lhe oferece os
subsídios necessários para atingi-la.
b) É falso fazer coincidir a felicidade com saúde, dinheiro e sucesso
temporal... Muitos daqueles que possuem tais bens, são inquietos e sofrem
não raro dolorosos dramas íntimos ou públicos, ao contrário, muitos
daqueles que não os possuem, são tranquilos e serenos e comunicam aos
outros paz, magnanimidade e valores morais. Em última análise, a grandeza
de alguém não está no ter, mas no ser; pode alguém ter muitos bens mas
ser um monstro, como também pode ter muitos bens materiais, mas ser uma
grande personalidade. Ora a grande personalidade é herdeira da felicidade
máxima, que é a vida eterna.
De resto, é-nos muito difícil aquilatara felicidade dos homens, pois é certo
que não há quem não tenha sua cruz a carregar. A cruz é escola ou
instrumento de purificação ou engrandecimento como já ensinavam os
antigos gregos mediante o trocadilho páthos máthos (sofrimento é escola ou
educação); cf Hb 5, 8. É certo, porém, que, ao permitir seja cada um tentado,
o Senhor Deus se encarrega de lhe dar a graça necessária para superar o
mal e dele tirar o proveito respectivo (cf. 1 Cor 10, 13).
c) A lei do Karma é a aplicação da lei da causalidade física ao mundo
moral: "é lei sem exceção, que rege o universo inteiro, desde o átomo
invisível e imponderável até os astros; consiste em que toda causa produz o
seu efeito, sem que nada possa impedir ou desviar o efeito, uma vez posta a
causa" (ver F. M. PALMES, Metapsíquica y Espiritismo. Barcelona 1950, p.
482). É cega, automática e não inteligente, exatamente como as leis físicas.
O que se faz, terá inevitavelmente as suas consequências sem possibilidade
de perdão.
Ora não há prova de que exista a lei do Karma, como não há prova da
reencarnação. Trata-se de lei fatalista, mecanicista, que não se coaduna nem
com a bondade de Deus nem com a liberdade do homem; no Evangelho Deus
aparece como Pai... o Pai que, conforme a parábola do filho pródigo (Lc 15, 11-
32), perdoa imediatamente ao filho que se mostre arrependido. Pode-se
mesmo dizer que tal lei leva ao absurdo; com efeito, segundo o Karma, toda
pessoa sofredora nesta vida deveria estar pagando graves pecados de
encarnação anterior; seria um grande pecador reencarnado, ao passo que
todo indivíduo sadio e rico deveria estar colhendo os frutos positivos das
virtudes praticadas em existência pregressa (seria uma pessoa muito
benemérita) — o que é contraditado pela experiência.
d) Ainda a respeito do sofrimento, não podemos apontar a causa precisa
pela qual cada criatura sofre... e sofre tais e tais males; aliás, nenhum
sistema filosófico ou religioso o pode explicar de maneira cabal. Apenas
podemos afirmar, segundo a doutrina católica, que Deus, em seu plano
12
sumamente sábio, não se engana nem comete injustiça; um dia, todos
saberemos o porquê dos desígnios do Senhor. Entrementes pode-se dizer
que o sofrimento nem sempre é punição de pecados pessoais, mas é
sempre providencial; vem a ser ocasião de crescimento interior, de modo
que quem não sofre, se amesquinha ou se fecha no egoísmo; a natureza
humana é tal que ela se beneficia enormemente no cadinho do
sofrimento. A justiça de Deus consiste em ministrar a todo homem os
subsídios necessários para carregar a sua cruz com grandeza de alma,
de modo que adquira méritos.
2.2.2. O inferno
O conceito cristão de inferno, dizem, é contrário ao conceito de um
Deus bom e perfeito. Ora a tese da reencarnação o evita.
- Na verdade, a doutrina concernente ao inferno não derroga em
absoluto à Bondade de Deus. O que torna o inferno inaceitável a muitos
de nossos contemporâneos, é a concepção falsa que dele têm. É o que se
depreenderá das explanações abaixo.
Jesus deu claramente a entender que, após a peregrinação
terrestre, duas são as formas de vida possíveis para o homem: uma
bem-aventurada; a outra, infeliz. Assim, por exemplo, falam as parábolas
do joio e do trigo (Mt 13, 24-30), da rede do pescador (Mt 13, 37-40), dos
convidados à ceia (Lc 14, 16-24), das virgens (Mt 25, 1-12). Na história
do mau rico e do pobre Lázaro (Lc 16, 19-31) o contraste é inculcado
com a máxima veemência: na vida póstuma poderão inverter-se os papéis
que atualmente cabem aos indivíduos. As duas sortes são também
apresentadas com muita ênfase no quadro do juízo universal, em Mt 25,
33-46.
O inferno nada tem a ver com imagens populares de tanque de
enxofre fumegante, nem é algo criado por Deus. Vem a ser a frustração
total ou a separação de Deus resultante de livre opção da criatura na
terra.
Com outras palavras: todo ser humano foi feito naturalmente para o
bem... e para o Bem que não se acabe ou o Bem Infinito — Deus. Este,
explícita ou implicitamente, exerce atração sobre todo homem, à
semelhança do Norte que atrai a agulha da bússola. Se alguém, usando
da sua livre vontade, diz Sim a esse Norte (= Deus), encontra repouso e
plenitude (a bem-aventurança celeste)... Se, porém, voluntariamente
lhe diz Não e na hora da morte é encontrado pelo Senhor nessa atitude
de repulsa consciente e voluntária, terá o definitivo distanciamento de
Deus; o Senhor respeitará a sua opção negativa e não o forçará a voltar
para Deus. É tal estado que se chama inferno; a própria criatura a ele se
condena, sem que o Senhor Deus necessite de proferir alguma
sentença. Além dessa dolorosa frustração, há no inferno o que a
Sagrada Escritura chama fogo,... fogo, porém, que não é o da terra.
Tal estado é definitivo e sem fim, porque a alma humana é, por
si mesma, imortal. O mesmo só terminaria
— se o Senhor aniquilasse a criatura (o que seria contrário à
Sabedoria do Criador; Deus não destrói o que ele faz);
— se o Senhor forçasse a vontade da criatura a dizer-lhe um
Sim póstumo, contrário à livre opção da mesma (ora, o Senhor que
deu liberdade ao homem, não lha retira);
— se o Senhor cessasse de amar a criatura e deixasse de lhe
aparecer como o Sumo Bem; então o pecador se fecharia em si mesmo
ou no seu egoísmo, sem experimentar a atração de Deus; ele não sofreria
inferno. Eis, porém, que o Senhor não pode deixar de amar o homem,
porque Ele é incapaz de se contradizer; Ele não pode dizer Não após ter
dito Sim; o seu amor é irreversível.13
Eis o que se entende por inferno numa lúcida concepção. Vê-se que
tal estado, longe de ser incompatível com a santidade de Deus, resulta
precisamente do fato de que Deus ama a criatura... e a ama divinamente,
isto é, sem se poder desdizer e sem poder retirar-lhe o seu amor; cf. 2Tm
2, 11-13.
Vê-se, pois, que não há necessidade de reencarnação para
remover o "inferno indigno de Deus". Importa frisar que, no decorrer da
sua peregrinação terrestre, o homem recebe do Senhor todas as graças
necessárias para se santificar e chegar à plenitude da vida.
2.3. Razões de ordem natural 2.3.1. A lei dos contrários
Segundo Platão, a "lei dos contrários" é lei fundamental da
natureza. Por conseguinte, a vida só pode nascer da morte, pois esta
representa o contrário da vida. Por isto toda criança que nasce na carne,
é alguém que já morreu na carne.
— Em resposta, observemos que a lei dos contrários se aplica,
quando muito, às realidades homogêneas: um peso superior supõe a
existência de um inferior; um comprimento maior supõe outro menor; um
tempo dilatado supõe um menos prolongado... Tal lei, porém, não tem
significado no plano das realidades heterogêneas, pois nunca se derivará
um comprimento mais extenso de um peso mais leve, nem um tempo mais
dilatado de uma densidade mais fraca. Ora, a vida e a morte não são
realidades homogêneas: diferem entre si como o comprimento e o peso;
no que está morto, é impossível descobrir uma propensão, por mínima que
seja, para o desabrochar da vida; e na força de expansão que é a vida,
não se vê a tendência para a imobilidade que a morte é.
2.3.2. Natureza cíclica
A natureza, dizem, procede por ciclos: dia-noite, verão-inverno,
primavera-outono, semente-planta-semente... Por conseguinte, também
a existência do ser humano seria marcada pelos ciclos das
reencarnações.
— Respondemos que nenhuma dessas analogias tem força
probatória: não se vê por que deduzir das mesmas que o homem deva
periodicamente morrer e renascer. Mais: na natureza não se descobre
fenômeno algum que apresente genuína analogia com a reencarnação. A
semente lançada à terra desenvolve-se numa planta, que vive por algum
tempo e depois morre. O vento dispersará as cinzas da planta morta,
fertilizando os campos e favorecendo a germinação de outras sementes.
Mas nunca se ouviu dizer que a planta morta se transforma em semente e
assim recomeça a viver. É verdade que, antes de se transformar em
matéria podre, a planta produz frutos de cujas sementes se originam novas
plantas; estas, por sua vez, darão frutos, e assim indefinidamente. Essas
plantas novas, porém, não são a repetição ou a reencarnação das
anteriores; são indivíduos totalmente distintos: cada uma possui um
plano de organização unicamente seu.
2.4. Razões de ordem histórica 2.4.1. Povos não cristãos
Os reencarnacionistas apelam também para o testemunho dos
povos antigos, afirmando que estes, desde as mais remotas épocas e
com certa unanimidade, professaram a doutrina dos sucessivos retornos
a este mundo.
– Contudo um exame atento dos documentos da história leva a 14
conclusão assaz diversa. Eis o que afirma o Pe. Paulo Siweck S. J. em
sua obra A Reencarnação dos Espíritos:
"São muitos os povos que sempre se conservaram refratários
às concepções reencarnacionistas. Outros muitos só bem tarde
admitiram essa doutrina, que não existia no seu Credo primitivo.
Assim não encontramos vestígio nenhum da reencarnação
entre os persas, por exemplo; da mesma forma não reconhece a
reencarnação a religião primitiva da China, que só bem tardiamente
a aceita sob a influência do budismo. A religião do antigo Egito
também é alheia à idéia da reencarnação" (pp. 12s).
Na Índia mesma, que por vezes é tida como berço da tese da
reencarnação, a religião primitiva não conhecia tal doutrina. Os mais
antigos textos da literatura hindu, e também da literatura mundial, que
professam a palingenesia, datam dos séculos VII/VI antes de Cristo;
são alguns dos hinos Upanishads. Os orientalistas não sabem indicar
como nem por que tal crença se originou na Índia.
Mesmo nos povos que professavam a reencarnação, encontram-se
grandes vultos que não adotaram tal teoria; assim os mais destacados
pensadores de Roma e grande número de filósofos gregos (entre os quais
Aristóteles, sem dúvida o maior de todos).
Conclui-se, pois, que não há unanimidade entre os povos antigos a
respeito da reencarnação. Tal unanimidade, porém, existe no tocante à
crença na imortalidade da alma; todos os povos que a história conhece,
têm como certo que a morte do composto humano não acarreta a da alma
e que esta sobrevive ao separar-se do corpo. A ideia da ressurreição dos
corpos ou da recomposição do composto humano emerge no judaísmo
tardio (cf. Dn 12, 2s; 2Mc 7, 11.14) e se torna um dos grandes artigos de
fé do Cristianismo.
2.4.2. Na tradição da Igreja
Há quem diga que os cristãos da antiguidade acreditavam na
reencarnação. Somente no século VI a Igreja se terá afastado de tal
doutrina.
— Sendo assim, examinemos os testemunhos dos primeiros séculos
do Cristianismo:
Clemente de Alexandria († 215) julga ser a doutrina da
reencarnação arbitrária, porque não se baseia nem nas sugestões da
nossa consciência nem na fé católica; lembra que a Igreja não a pro fessa,
mas, sim, os hereges, especialmente Basílides e os Marcionistas. Cf.
Eclogae ex Scripturis Propheticis XVII, PG 9, 706; Excerpta ex Scriptis
Theodoti XXVIII, PG 9, 674; Stromata III, 3; IV, 12, PG 114s. 1290s.
S. Irineu († 202) observa que em nossa memória não se encontra
vestígio de pretensas existências anteriores (Adv. Haer II, 33, PG 7,
830s); em nome da fé, opõe o dogma da ressurreição dos corpos: nosso
Deus é bastante poderoso para restituir a cada alma o seu próprio corpo
(ib. II 33, PG 7, 833).
Outros autores antigos se poderiam citar a propor semelhantes
ponderações. O mais importante, porém, é Orígenes de Alexandria († 254).
Este propôs, à guisa de hipótese, a preexistência das almas: todos os
espíritos teriam sido criados desde toda a eternidade e dotados da mesma
perfeição inicial: muitos, porém, terão abusado da sua liberdade e pecado.
Tal pecado haverá sido, para Deus, a ocasião de criar um mundo material,
a fim de servir de lugar de castigo e purificação. Conforme a falta cometida,
cada espírito teve que tomar em punição um corpo mais ou menos grosseiro.
Os que não se purificassem devidamente nesta vida, deveriam passar, 15
depois da morte, para "um lugar de fogo". Mas finalmente todos seriam rein-
tegrados na suprema felicidade com Deus; o inferno não seria eterno.
Notemos que estas ideias foram propostas com reservas e a título de
hipótese (cf. Peri Archon, PG 11, 224). Todavia os discípulos de Orígenes,
chamados origenistas, eram monges do Egito, da Palestina e da Síria,
que se beneficiavam dos escritos ascéticos e místicos do mestre, mas eram
pouco versados em teologia; por conseguinte, não tinham critérios para
distinguir entre as verdades de fé e as proposições hipotéticas de
Orígenes. Os origenistas, portanto, nos séculos IV/VI professaram como
artigos de fé não só a preexistência das almas e a restauração final de
todos na felicidade inicial, mas também a reencarnação. Contrariavam
assim o pensamento do próprio Orígenes, que era avesso à reencarnação,
tida por ele como "fábula inepta e ímpia" (In Rom. PG 14, 1015).
As doutrinas dos origenistas chamaram a atenção das autoridades
da Igreja. Em 543, o Patriarca Menas de Constantinopla redigiu e promul-
gou quinze anátemas contra Orígenes, dos quais os quatro primeiros nos
interessam diretamente:
1. "Se alguém crer na fabulosa preexistência das almas e na
repudiável habilitação das mesmas (que é geralmente associada àquela),
seja anátema.
2. Se alguém disser que os espíritos racionais foram todos criados
independentemente da matéria e alheios ao corpo, e que vários deles
rejeitaram a visão de Deus, entregando-se a atos ilícitos, cada qual
seguindo as suas más inclinações, de modo que foram unidos a corpos, uns
mais, outros menos perfeitos, seja anátema.
3. Se alguém disser que o sol, a lua e as estrelas pertencem
ao conjunto dos seres racionais e que se tornaram o que eles hoje
são por se voltarem para o mal, seja anátema.
4. Se alguém disser que os seres racionais nos quais o amor
a Deus se arrefeceu, se ocultaram dentro de corpos grosseiros
como são os nossos, e foram em consequência chamados homens,
ao passo que aqueles que atingiram o último grau do mal tiveram,
como partilha, corpos frios e tenebrosos, tornando-se o que
chamamos demônios e espíritos maus, seja anátema.
O Papa Vigílio e os demais Patriarcas deram a sua aprovação a esses
artigos. Concluímos, pois, que a doutrina da reencarnação nunca foi profes-
sada oficialmente pela Igreja Católica (contradiz ao Credo cristão); todavia
após Orígenes (século III) foi professada por grupos particulares de monges
orientais, pouco iniciados em teologia; em 543 foi solenemente rejeitada
pelas autoridades da Igreja. A mesma condenação ocorreu nos Concílios
ecumênicos de Lião (1274) e Florença (1439), que ensinam a imediata
passagem desta vida para a sorte definitiva do além (DS 857 [464] e 1306
[93]). O Concílio Vaticano II, por sua vez, fala do "único curso da nossa
vida terrestre (Hb 9, 27)", tencionando assim opor-se à teoria da migração
das almas; cf. Lumen Gentium n2 48.
2.5. Razões de ordem bíblica
Os escritos do Novo Testamento estão intimamente associados ao
pensamento judaico pré-cristão. Ora este não admitia a reencarnação das
almas. Sendo esta doutrina professada por filósofos gregos, os judeus se
fecharam a ela, pois eram infensos a qualquer tipo de sincretismo religioso.
- Foi nesse ambiente que Jesus pregou o seu Evangelho.
Feita esta observação, passemos ao exame sucinto dos textos
bíblicos geralmente citados em favor da reencarnação.
2.5.1. João Batista e Elias16
Mt 17, 10-13: Os judeus julgavam que Elias não morrera, mas
fora arrebatado aos céus (cf. 2Rs 2,11) e, por isto, voltaria à terra
para revelar e ungir o Messias. Ora, nos tempos de Cristo, politica-
mente agitados, o Profeta Elias era esperado em Israel com
particular insistência. Pois bem, Jesus respondeu que João Batista
fizera as vezes de Elias por reproduzir as atitudes fortes e
destemidas do Profeta (cf. Lc 1,17). O próprio João Batista negou
peremptoriamente ser Elias, quando os enviados dos judeus o
interrogaram (cf. Jo 1, 21). Á luz destas ponderações, entenda-se
também o texto de Mt 11, 14s.
Mais: no momento da Transfiguração aparecem a Jesus Moisés
e Elias (cf. Mt 17, 3). Ora, naquele tempo João já fora executado por
Herodes ou já morrera. Por conseguinte, deveria aparecer a Jesus
João Batista e não Elias conforme a doutrina da reencarnação, pois
esta ensina que, quando o espírito se materializa, sempre se
apresenta na forma da última encarnação. — Donde se vê que João
Batista não era a reencarnação de Elias.
2.5.2. Jesus e Nicodemos
Jo 3,3: O advérbio grego ánothen, que por vezes é traduzido
por de novo, reaparece em Mt , 26,51, para significar que, por
ocasião da morte de Jesus, o véu do Templo se cindiu ánothen, isto
é, de cima a baixo (não de novo).
Nicodemos não entendera as palavras de Jesus; fiel aos
ensinamentos judaicos, julgava impossível a reencarnação: "Como
pode um homem nascer, sendo velho? Poderá entrar segunda vez
no seio de sua mãe e voltar a nascer?" (Jo 3,4). Jesus logo
dissipou a dúvida, explicando que se tratava de renascer não no
sentido biológico, mas, sim de nascer de outro modo, ou seja, pela
água e pelo Espírito: "Em verdade, em verdade te digo: quem não
nascer da água e do Espírito, não poderá entrar no Reino de Deus"
(Jo 3,5). Positivamente, Jesus tinha em vista o Batismo, que torna o
homem filho de Deus.
2.5.3. Jesus e o cego de nascença
Jo 9, Is: Os judeus julgavam que todo mal é consequência de um
pecado. Por conseguinte, no caso de um cego de nascença, pensariam
num pecado dos pais (que, segundo a mentalidade do clã, seria punido
sobre os filhos), ou no pecado do próprio cego; esta última hipótese
deveria parecer-lhes absurda, pois sabiam que as crianças nascem sem
ter cometido previamente nem bem nem mal (cf. Rm 9,11). Assim
perplexos, lançaram suas interrogações a Jesus, sem se dar o trabalho
de procurar terceira solução para o caso. Ora, Jesus respondeu sem
abordar o aspecto especulativo da questão, elucidando diretamente a
situação concreta que lhe apresentavam: nem uma hipótese nem outra,
mas um desígnio superior de Deus ("... para se manifestarem nele, cego,
as obras de Deus").
De resto, a Escritura é diretamente contrária à reencarnação
quando, por exemplo, afirma: "Foi estabelecido, para os homens, morrer
uma só vez; depois do quê, há o julgamento" (Hb 9,27). Notemos
também as palavras de Jesus ao bom ladrão: "Hoje mesmo estarás
comigo no paraíso" (Lc 23,43). Os textos muito enfáticos em que Jesus e
os apóstolos anunciam a ressurreição dos mortos, o céu e o inferno, são
outros tantos testemunhos que se opõem à reencarnação: vejam-se Mt
5, 22; 13,50; 22, 23-33; Mc 3,29; 9, 43-48; Jo 5, 28s; 6, 54; l Cor 15, 13-17
19.
3. CONCLUSÃOComparando entre si a tese da reencarnação e a proposição cristã
da ressurreição, verificamos que entre uma e outra há duas diferenças
de base ou estruturais. Com efeito:
1) A doutrina cristã da ressurreição supõe um Deus, Pai Bondoso,
que toma a iniciativa de criar e também de salvar a criatura. Esta
salvação, Deus a oferece ao homem no decurso de uma vida passada na
terra, vida durante a qual a graça do Salvador solicita a criatura para a
felicidade eterna. Em vista disto, a Sabedoria Divina provê para que
nenhum auxílio falte ao homem no decorrer de sua peregrinação
terrestre. Em consequência, terminada esta vida, é justo que a criatura
humana entre na sua sorte definitiva: a ressurreição da carne permitirá que
o ser humano, em sua identidade psicossomática, tenha a sua justa sanção.
— Tal concepção é profundamente religiosa, pois reconhece o primado de
Deus sobre a criatura e o caráter gratuito da salvação.
O mesmo não se pode dizer da mentalidade reencarnacionista.
Com efeito; esta atribuiu ao homem o poder de se remir, de se tornar
perfeito por seus esforços, fazendo praticamente abstração do
auxílio divino. Pouco ou nada entra em linha de conta de um
reencarnacionista a noção de Deus, Pai bondoso e providente, que
deu existência aos homens, quis compartilhar e consagrar o
sofrimento e a morte do homem, e sem o qual a criatura nada
absolutamente pode. Não admira, pois, que a reencarnação tenha
sido outrora, e ainda hoje seja, frequentemente professada dentro de
uma filosofia panteísta ou monista. Sim, as crenças hindus, que
inspiram muitos reencarnacionístas, cancelam a distinção entre o
Divino e o humano, entre o Infinito e o finito, ensinando que a
Divindade "se realiza" no homem, "vai tomando consciência de si"
no homem, à medida que este evolui ou se aperfeiçoa. Esta tese parece
explicar que a criatura pode por si chegar à união com a Divindade;
todavia é ilógica, pois coloca o finito e o Infinito na mesma linha; ora
Deus, que por si é o Ilimitado, não pode vir a identificar-se com o finito e
o contingente.
2) A comovisão suposta pelo reencarnacionismo é pessimista em
relação à matéria, tida como cárcere ou sepulcro da alma (soma = sema,
em grego). A grande aspiração de muitos grupos reencarnacionistas é
libertar-se do corpo e, consequentemente, deste mundo material e da
sua história; por isto muitos povos que professam a reencarnação, não
evoluíram em sua civilização, mas vivem em condição de miséria,
porque não lhes interessa vincular-se aos bens materiais.
Ao contrário, a tese da ressurreição dos corpos é otimista em relação
à matéria, tida como criatura de Deus e parte integrante do ser humano. A
este título, o corpo humano deverá ressuscitar e participar da sorte
definitiva da alma humana. Por isto também o cristão se sente impelido a
trabalhar neste mundo material que Deus lhe deu, a fim de o configurar ao
desígnio do Criador. O cristão julga que a história tem um sentido
dinâmico e caminha para a sua plenitude, que será o Reino de Deus;
está longe de ser uma cadeia de ciclos monótonos e repetitivos, dos quais
é preciso escapar.
Na base destas considerações, pode-se afirmar que a doutrina da
reencarnação, apesar dos seus aspectos místicos, não se sustenta nem
18
aos olhos da razão nem diante da psicologia e da experiência humanas.
19